Vol. 35, n.º 1, 2021, pp. 133–153. DOI: doi.org/10.21814/diacritica.636
A ARTICULAÇÃO ENTRE ADVÉRBIO E ASPECTO:
UMA PROPOSTA COGNITIVISTA E MULTIMODAL
THE CONNECTION BETWEEN ADVERB AND ASPECT:
A COGNITIVIST AND MULTIMODAL PROPOSAL
Hayat Passos
[email protected]
Maíra Avelar**
[email protected]
No Português Brasileiro, a expressão do aspecto não se restringe apenas a verbos, mas pode ser
estendida a advérbios. Neste trabalho, temos por objetivo articular, no âmbito da Gramática
Cognitiva, as categorias de advérbio, iteração e aspecto/aspectualidade, a fim de descrever a
categoria advérbio aspectualizador de repetição. Além disso, demonstramos como a categoria
em questão pode ser instanciada pelo esquema construcional parcialmente preenchido [QNT +
vezes]. Considerando a relevância dos Estudos de Gesto na instanciação da categoria em análise,
é apresentada a articulação entre aspecto e gestos na Gramática Cognitiva, assim como o modelo
da Gramática de Construções do Enunciado. Posteriormente, são apresentados os procedimentos
metodológicos de identificação e análise gestual, em correlação com a fala, assim como a coleta
e a análise de exemplos ilustrativos. A discussão dos resultados evidencia que, as construções
verbais instanciadas pelo esquema [QNT + vezes] podem ser atreladas à repetição gestual,
marcando iteração ou reduplicação, e à ocorrência do Esquema Imagético gestual CICLO.
Portanto, do ponto de vista multimodal, a sucessão de eventos ou atos repetitivos, veiculados na
fala, constitui-se como uma ação limitada ou ilimitada, demonstrada nos gestos.
Palavras-chave: Advérbio. Aspecto. Gramática Cognitiva. Gramática de Construções do
Enunciado. Estudos de Gesto.
In Brazilian Portuguese, the expression of aspect is not restricted to verbs, but can be extended to
adverbs. In this study, we aim to articulate, in the framework of Cognitive Grammar, the
categories of adverb, iteration and aspect/aspectuality, to describe the category aspectualizer
adverb of repetition. Also, we demonstrate how the category in question can be instantiated by
the partially filled construction schema [QNT + times (‘vezes’)]. Considering the relevance of
Gesture Studies in the instantiation of the category under analysis, the articulation between aspect
and gesture in Cognitive Grammar is presented, as well as the model of Utterance Construction
Grammar. Afterwards, the methodological procedures of gesture analyses and identification are
presented, in correlation with speech, as well as the collection and analyses of illustrative
examples. The discussion of results demonstrates that verbal constructions instantiated by the
schema [QNT + times (‘vezes’)] can be linked to gesture repetition, marking iteration or
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Brasil. ORCID: 0000-0002-5454-7947
Laboratório de Estudos em Linguagem e Cognição (LeCogLing - DGP/CNPq), Departamento de Estudos
Linguísticos e Literários, Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Brasil. ORCID: 0000-0003-49076121.
**
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reduplication, and to the gesture Image Schema CYCLE. Therefore, from the multimodal point of
view, the succession of events or iterative acts, conveyed in speech, constitutes a limited or
unlimited action, demonstrated in gestures.
Keywords: Adverb. Aspect. Cognitive Grammar. Utterance Construction Grammar. Gesture
Studies.
•
1. Introdução
A ideia de que não apenas os verbos, mas também os advérbios, podem expressar aspecto
no Português Brasileiro parte de propostas de cunho funcionalista. O conceito de advérbio
aspectualizador é formulado inicialmente por Ilari (1992). Segundo considerações de
Prestes-Rodrigues (2012), do ponto de vista cognitivo-construcional, o advérbio
aspectualizador é constituído por construções, ou seja, por pareamentos forma (advérbio)
e sentido (aspecto), inseridas em outras construções e, portanto, em interação com outros
elementos. Em outras palavras, o advérbio e o aspecto serão abordados como compondo
uma construção inserida em outra, ou seja, interagindo com outros elementos da
construção em que aparecem.
A ausência de categorias específicas da articulação conceptual do aspecto em
advérbios, no âmbito da Linguística Cognitiva, motivou-nos a desenvolver nossa
pesquisa, pois, embora uma categorização como de advérbio aspectualizador e, mais
especificamente, de advérbio aspectualizador de repetição na Linguística Cognitiva não
tenha sido ainda explicitada, as noções de advérbio, aspecto e iteração/repetição, que
acreditamos ser pré-requisitos para construção dessa categoria de advérbios específica, já
o foram.
Especificamente, em relação à organização deste artigo, na primeira seção,
apresentaremos a pergunta e a hipótese que norteiam esta pesquisa. Na sequência, serão
apresentados e descritos os conceitos de advérbio e de iteração/repetição, a partir da teoria
da Gramática Cognitiva (Langacker 1987, 1997, 2000, 2008, 2013). Posteriormente,
trataremos do conceito mais geral de aspectualidade, desenvolvido por Cienki e
Iriskhanova (2018), a partir da Gramática Cognitiva e dos Estudos de Gesto, a partir do
modelo teórico da Gramática de Construções do Enunciado (Cienki 2017), uma vez que
pretendemos demonstrar a correlação entre os conceitos de advérbio e de
iteração/repetição, propostos na Gramática Cognitiva, com o conceito mais geral de
aspectualidade e da marcação verbo-gestual de eventos limitados e ilimitados, proposto
pela Gramática de Construções do Enunciado. Portanto, temos como objetivo demonstrar
como as categorias de advérbio, de repetição e de aspecto podem ser articuladas do ponto
de vista gramatical, numa perspectiva cognitiva e multimodal.
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2. Pergunta e hipóteses de pesquisa
A não-articulação entre os conceitos de advérbio, aspecto e repetição em categorias
como advérbio aspectualizador e de advérbio aspectualizador de repetição fez com que
surgisse a pergunta: é possível articular, de maneira sistemática, as noções de advérbio,
aspecto e iteratividade e propor a categoria advérbio aspectualizador de repetição na
Gramática Cognitiva?
Formulamos as seguintes hipóteses:
I.
É possível, a partir de uma perspectiva gramatical cognitiva e multimodal,
sistematizar as noções de advérbio, aspecto e iteratividade e, consequentemente,
propor a categoria advérbio aspectualizador de repetição a partir da perspectiva em
foco.
II.
O esquema construcional do advérbio aspectualizador de repetição corresponderia
ao esquema parcialmente preenchido [V + Qnt + vezes].
3. Advérbio, iteratividade e quantificadores na Gramática Cognitiva
Langacker (2017a) define a Gramática Cognitiva (GCog) como um quadro teórico
descritivo específico, no interior do amplo movimento da Linguística Cognitiva. Nesse
sentido, a GCog fornece descrições explícitas do sentido conceptual, incluindo a
caracterização semântica das noções gramaticais fundamentais, como a de advérbio, por
exemplo. O autor também aborda questões gramaticais relativas a planos linguísticos, tais
como o plano da realização concreta e o plano estrutural, como no caso da distinção entre
sentenças iterativas e sentenças habituais. Dessa maneira, o sentido de uma expressão
depende não somente do conteúdo conceptual que ela invoca, mas também da
perspectivação conceptual (construal), ou seja, da nossa capacidade de conceber e retratar
a mesma situação de maneiras alternativas.
3.1. O advérbio na perspectiva da Gramática Cognitiva
Langacker (2008, 2013) afirma que o advérbio, assim como o adjetivo, a preposição, o
infinitivo e o particípio, pertence à classe de expressões relacionais. A categorização
dessas expressões relacionais, de acordo com Langacker (2008), está baseada no número
e natureza dos participantes focais. O autor utiliza os termos “marco”(mr) e “trajetor”(tr)
para descrever entidades com proeminência focal, pois assume que, quando uma relação
é perfilada, vários graus de proeminência são conferidos aos participantes dessa relação.
Dessa forma, o autor (2008, 2013) estabelece que o trajetor constitui o participante com
maior proeminência (ou seja, aquela entidade com foco primário, a ser localizada,
avaliada e descrita) e o marco, o participante com proeminência secundária dentro de uma
relação de perfilamento.
Vale destacar que a proeminência focal corresponde a uma dimensão da
perspectivação conceptual (construal), ou seja, a uma questão de como uma situação é
concebida ou visualizada, não a algo objetivamente perceptível. No caso do advérbio,
segundo Langacker (2008, 2013), ele possui apenas um participante focal, o trajetor (sem
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o marco focalizado), que corresponde à própria relação (de tempo, de modo, etc.),
conforme pode ser ilustrado na Figura 1:
Figura 1. Esquema proposto por Langacker para a categoria advérbio.
Fonte: Langacker (2008, p. 116).
Para finalizar as discussões sobre advérbios na Gramática Cognitiva, apresentamos um
exemplo, selecionado por Langacker (1987, 2008, 2013), abordando o advérbio
rapidamente. Langacker (2008, 2013) afirma que esse advérbio confere proeminência
focal (status do trajetor) na atividade. Esse caso pode ser ilustrado em exemplos como: o
operário trabalha rapidamente. Complementarmente, conforme afirma Talmy (2000) “a
categoria domínio possui duas noções associadas ‘espaço’ e ‘tempo’” (Talmy 2000, p.
42).1
De acordo com o mesmo autor, “o tipo de quantidade é, genericamente, ‘matéria’
e, a respectiva forma, contínua ou discreta, é ‘massa’ ou ‘objetos’”.2 Já o tipo de
quantidade existente no tempo “é, genericamente, ‘ação’ e, na forma contínua ou discreta,
é ‘atividade’ ou ‘atos’ – nesse caso, os termos são utilizados de forma neutra,
independentemente de a ação ser estática ou contínua; autônoma ou agentiva”.3 No caso
do advérbio aspectualizador, ele não marca apenas modo, tal como ocorre com os
advérbios em geral, mas também ações discretas, realizadas de maneira repetida,
globalmente interpretadas como uma ação contínua.
3.2. A iteração na perspectiva da Gramática Cognitiva
Langacker (2000, 1997) argumenta que uma sentença iterativa perfila (este perfilamento
é realizado na relação marco (m) x trajetor (tr)), “um evento de ordem alta, localizado
no plano da realização concreta, ao passo que sentenças habituais, agrupadas como
predicações de validade geral4, perfilam eventos de ordem alta no plano estrutural”
(Langacker 2000, p. 251).5
No original: “the schematic category of domain has two principal member notions, space and time
the kind of quantity that exists in space is, generically, matter, and, in respectively continuous or discrete
form, is mass or objects”.
3
No original: “the kind of quantity existing in time is, generically, action and, in continuous or discrete
form, is activity and acts - terms here used neutrally as to whether the action is static or changing,
autonomous or agentive”.
4
Tais predicações podem sustentar períodos de tempo limitados ou ilimitados. Ex.: sua validade possui um
escopo temporal, dentro do qual pode ocorrer um conjunto indefinido e potencialmente ilimitado de
ocorrências do tipo de evento base.
5
No original: “A higher-order event residing in the actual plane, whereas habituals, grouped as general
validity predications, profile higher-order events in the structural plane”.
1
2
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Langacker (2000) afirma, ainda, que o verbo ou uma sentença finita perfila uma
relação de “processo”. Tanto o processo individual, quanto os processos de ordem alta,
podem ser perfectivos ou imperfectivos, e, assim, serem construídos como limitados ou
ilimitados dentro escopo temporal imediato da predicação. Além disso, esses processos
podem ser progressivos. Segundo o autor, a construção progressiva, no inglês, impõe, ao
perfectivo, um escopo imediato mais restritivo, o que exclui os pontos finais. A Figura
2 mostra os três tipos de processos de ordem alta, conforme Langacker (2000), perfectivo,
imperfectivo e progressivo:
Perfectivo de ordem alta
Imperfectivo de ordem
alta
Progressivo de ordem
alta
Figura 2. Processos de ordem alta.
Fonte: Langacker (2000, p. 249).
Qualquer tipo de processo de ordem alta envolve mais de uma instância perfectiva de
evento. Essas instâncias, conforme Langacker (2000), são perfiladas em conjunto e não
possuem localização específica no decorrer do eixo temporal. Isto é, “internamente, o
processo de ordem alta ocorre em massa, sendo limitado ou ilimitado” (Langacker 2000,
p. 248).6 Se for limitado, torna possível que o processo de ordem alta assuma o
progressivo.
Uma diferença fundamental, que pode ser considerada como a maior responsável
pela distinção entre as sentenças iterativas e habituais, conforme a proposição de
Langacker (1997, 2000), está relacionada, respectivamente, à oposição entre plano da
realização concreta e o plano estrutural. O plano da realização concreta é constituído por
instâncias de eventos conceptualizadas como se ocorressem efetivamente.7 No entanto,
uma ocorrência de evento concreto pode estar atrelada a uma realidade passada ou a um
futuro potencial, ou, mesmo, envolver uma afirmação ou uma negação, que configuram
o plano estrutural.
Outra diferença, de acordo com Langacker (2000), entre os repetitivos/iterativos e
habituais é que o repetitivo/iterativo, de acordo com o padrão geral para verbos
perfectivos em inglês, é sempre construído como limitado (perfectivo). Para uma
referência de tempo presente no inglês, é necessário, portanto, o progressivo, como no
6
7
No original: “Internally, the high order process is mass-like, whether it is bounded or unbounded”.
Para Langacker (1997), a realização concreta (actuality) não é o mesmo que realidade (reality).
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exemplo, fornecido por Langacker (1997, p. 197, grifos do autor): “Sam está chutando o
cachorro dele várias vezes [repetitivo]”.8
A conceptualização dos perfectivos como limitados ocorre, conforme o autor
(1997), pois são descritas instâncias de eventos realizados de maneira concreta. Essa
conceptualização, portanto, não constitui uma propriedade geral, pois depende de
instâncias específicas. Uma característica dessas instâncias realizadas concretamente é
que elas podem ser contadas. A questão “quantas vezes?” é adequada, por exemplo, em
resposta a um repetitivo, exemplificado por “Sam chutou o cachorro dele novamente”
(Langacker 1997, p. 197, grifos do autor).9 Por contraste, Langacker (2000) afirma que
os habituais podem indicar temporalidade vs. habitualidade de final aberto e serem
perfectivos ou imperfectivos. Quando os habituais são perfectivos, é necessário o
progressivo para referir-se ao tempo presente, como em “meu gato persegue esse pássaro
toda manhã” [e] “meu gato está perseguindo aquele pássaro (de novo) toda manhã”
(Langacker 2000, p. 249, inserções nossas).10
Segundo Langacker (1997), tanto a iteratividade quanto a habitualidade podem ser
adicionadas a um valor verbal em inglês sem qualquer modificação na forma. As leituras
iterativa/repetitiva e habitual das sentenças a seguir, por exemplo, são selecionadas por
advérbios, entre parênteses, e outros fatores: “Sam chutou o cachorro dele (várias vezes)
[iterativa/repetitiva]; Sam chutou o cachorro dele (por muitos anos) [habitual]”
(Langacker 1997, p. 197).11 Langacker (1997) destaca que, nessas sentenças, o advérbio
interno (muitas vezes) especifica a repetição. A estrutura básica de uma sentença
repetitiva/iterativa, como: “meu gato persegue repetidamente aquele pássaro” (Langacker
2000, p. 252), é diagramada na Figura 3:
No original: “Sam is kicking his dog again and again”.
No original: “Sam kicked his dog again and again”.
10
No original: “My cat stalks that bird every morning; My cat is stalking that bird every morning again”.
11
No original: “Sam kicked his dog (several times). [iterative/repetitive]; Sam kicked his dog (for many
years) [habitual]”.
8
9
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Repetitiva
gj
pj
tr
gj
gj
m
pj
pj
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Especificação
de tipo
gj
pj
Plano da
realização
concreta
Figura 3. Estrutura básica de uma sentença repetitiva/iterativa.
Fonte: Langacker (2000, p. 252).
Sentenças, como a representada na Figura 3, perfilam eventos de ordem alta. Isto é,
eventos que envolvem várias instâncias do mesmo tipo de evento. No caso dessa sentença
específica, o evento refere-se a meu gato persegue aquele pássaro. De acordo com
Langacker (2000), essas instâncias de evento, geralmente, são relativas a indivíduos
específicos. Nesse caso, um gato específico e um pássaro específico. Na representação,
diagramada na Figura 3, “as linhas de correspondência pontilhadas indicam que o mesmo
indivíduo funciona como um trajetor (gj) de cada instância de evento, assim como o
mesmo indivíduo funciona como o marco (pj) de cada instância de evento” (Langacker
2000, p. 252).12
Essas instâncias de evento estão atreladas a pontos temporais específicos, pois
fazem parte do plano da realização concreta e perfilam um evento de ordem alta. Dessa
forma, para o autor (2000), a sentença “meu gato persegue repetidamente aquele pássaro”
caracteriza um evento complexo, constituído por várias instâncias, ainda que essas
instâncias sejam perfiladas da mesma maneira, repetidas vezes em momentos temporais
sucessivos. Nesse exemplo, é possível visualizar, do ponto de vista da construção da
sentença, que a iteração é marcada pela inserção do advérbio repetidamente, que confere
ao processo o status de repetição. Caso contrário, se não houvesse o advérbio, a ação
poderia ser considerada como habitual, apenas.
3.3 Quantificadores: tipos e construções
Nesta seção, buscamos fundamentar, teoricamente, a hipótese de que a categoria advérbio
aspectualizador de repetição, mais precisamente, os advérbios aspectualizadores de
No original: “Dotted correspondence lines indicate that the same individual functions as the trajector of
each component event instance, as the same individual as the landmark of each such instance”.
12
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repetição, constituídos pelo substantivo (nome) + o item lexical vezes, a saber, muitas
vezes, várias vezes, algumas vezes e poucas vezes, escolhidos, para realização desta
pesquisa, por uma questão de recorte, instanciariam o esquema construcional [QNT +
vezes]. Dessa forma, esses advérbios aspectualizadores de repetição seriam construções
parcialmente esquemáticas, parcialmente preenchidas, nos termos de Goldberg (2006),
nas quais um ou mais slots seriam lexicalmente fixos, como é o caso do slot preenchido
pelo nome (substantivo) vezes, enquanto outros slots seriam esquematicamente abstratos,
como é o caso de [QNT].
Langacker (2016, 2017b) propõe a formulação de dois tipos de quantificadores: os
absolutos e os relativos. As propriedades básicas dos quantificadores absolutos, conforme
explica o autor (2016), contrastam com as propriedades dos quantificadores relativos. Os
quantificadores absolutos, às vezes, podem ser utilizados como predicados oracionais,
como ocorre no exemplo “nossos problemas são {muitos/poucos/três/?vários}”
(Langacker 2016, p. 9, grifos do autor).13 Também podem ocorrer com elementos do
Ground definido, como em “aqueles três gatos/nossos muitos problemas; as poucas
casas que restam de pé; o pouco vinho que nós bebemos” (Langacker 2016. p. 9, grifos
do autor).14 Além disso, podem apresentar referentes nominais realizados, em contraste
aos referentes virtuais, como em: ex.: “Na sala havia muitos gatos” (Langacker 2016, p.
9, grifos do autor).15 E, por último, esses quantificadores são descritos de acordo com
uma escala de mensuração, ao invés da extensão máxima (EM).
Langacker (2016) defende que os elementos centrais se diferenciam em relação a
quatro parâmetros, dispostos na Figura 4:
(a) Escala de mensuração
quantificada
três, várias
contínua
muitos,
muito,
alguns,
poucos,
pouco, um pouco
(c) Ponto de referência
origem
norma
o
n
três, várias,
muitos, muito,
algumas, um pouco poucos, pouco
(b) Massa mensurada
plural
contínua
muito, pouco,
três,
várias,
um pouco
muitas, algumas,
poucas.
(d) Avaliação escalar
negativa
positiva
três,
várias,
muitas, algumas,
um pouco
poucos, pouco
Figura 4. Parâmetros para os quantificadores absolutos.
Fonte: Langacker (2016, p. 9).
Conforme disposto na Figura 4, o primeiro parâmetro para caracterização dos
quantificadores absolutos, de acordo com Langacker (2016), é a “escala de mensuração”,
que pode ser quantificada ou contínua. O segundo parâmetro diz respeito à “massa
No original: “Our problems are {many / few / three / ?several}”.
No original: “those three cats; our many problems; the few houses left standing; the little wine we drank”.
15
No original: “In the room were many cats”.
13
14
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mensurada”. Essa massa pode ser plural (como em três, várias, etc.) ou contínua (como
em muito, pouco, etc.). O terceiro parâmetro envolve o “ponto de referência”, que, por
sua vez, pode ser a origem da escala ou a norma. O último parâmetro está relacionado à
“avaliação escalar”, isto é, à direção do escaneamento mental. Essa avaliação pode ser
positiva (ex.: várias, muitas, etc.) ou negativa (ex.: poucos, pouco).
Langacker (2016) afirma que o surgimento da escala de mensuração ocorre por
meio da soma de comparações, com valores maiores que os anteriores. Para o autor, esse
escaneamento de valor em valor proporciona à escala uma direcionalidade inerente,
embora esse escaneamento não seja consciente. Langacker (2016) destaca que essa
direcionalidade inerente à própria escala não corresponde àquela direcionalidade da
avaliação escalar, uma vez a direcionalidade da avaliação escalar diz respeito ao modo
por meio do qual acessamos a escala e, com isso, especificamos quantidade. A seta em
negrito na Figura 4 indica a distinção da avaliação. Essa avaliação, para a maioria dos
quantificadores, “consiste no escaneamento que está de acordo com a direcionalidade
inerente à escala: escaneamento positivo da origem (o) ou da norma (n)” (Langacker
2016, p. 11).16
Em suma, a abordagem das construções quantificadoras, proposta por Langacker
(2016), relaciona-se aos quantificadores relativos e ao Ground nominal. No caso da
segunda hipótese formulada, as construções quantificadoras relacionam-se ao Ground
verbal. Dessa maneira, consideramos, assim como Langacker (2016), a construção [QNT
+ N], mais especificamente, a construção parcialmente esquemática [QNT + vezes], como
parte do esquema instanciado pelos advérbios apectualizadores de repetição. Entretanto,
diferentemente dos exemplos de construções analisadas pelo autor (2016), que envolvem
apenas, quantificadores relativos, os quantificadores que integram essa construção
correspondem a quantificadores absolutos (muitos, vários, alguns, poucos) e seriam,
portanto, caracterizados em relação a uma escala de mensuração quantificada.
Além disso, assumimos que essa construção se relaciona ao Ground oracional,
conforme definição de Langacker (2009, 2017b), uma vez que não implica identificação,
como ocorre no Ground nominal, mas a existência ou a ocorrência de instâncias de ação
e, particularmente, múltiplas instâncias do mesmo tipo de ação; neste caso, um evento de
ordem alta, relacionada ao verbo. A partir dessas considerações, é possível fundamentar,
cognitivamente, o esquema [QNT + vezes].
4. Aspecto e multimodalidade na Gramática Cognitiva e na Gramática de
Construções do Enunciado
Nesta seção, aprofundaremos a questão de tratar as construções gramaticais a partir de
um ponto de vista multimodal. Para isso, descreveremos a abordagem da Gramática de
Construções do Enunciado, proposta por Cienki (2017). Além disso, abordaremos
desdobramentos multimodais da correlação entre aspecto e gestos, a partir das
proposições de Parril (2000), baseadas, por sua vez, na Gramática Cognitiva (Langacker
2008, 2013).
No original: “consists in scanning that conforms to the scale’s inherent directionality: positive scanning
from either the origin (o) or a norm (n)”.
16
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4.1. Gramática de Construções do Enunciado: aspectos multimodais das construções
Cienki (2017) afirma que a proposta de Gramática de Construções do Enunciado objetiva
descrever as construções de forma multimodal (ou como construções que podem envolver
várias modalidades). Essa teoria considera, portanto, não só unidades léxico-gramaticais,
expressas verbalmente, como fazem outras abordagens gramaticais, como, por exemplo,
outras vertentes da Gramática de Construções. O autor segue o que propõe Kendon
(2004), que utiliza “o termo enunciado para se referir a qualquer conjunto de ações que
conte para os outros como uma tentativa de ‘dar’ alguma em informação de algum tipo”
(Cienki 2017, p. 2).17
Cienki (2017) diferencia dois modos de pensar sobre a estrutura profunda e a
estrutura superficial na GCxE. Um desses modos se relaciona ao o que pode ser descrito
como Construção Enunciativa (CEx), ao considerar todos elementos potenciais
(elementos, armazenados cognitivamente, que podem ocorrer na realização
comportamental de uma construção). Esse modo inclui os elementos examinados na
Gramática de Construções. Além deles, inclui, também, elementos gestuais potenciais (ou
outros) que possam ocorrer em instanciações de construções. O autor (2017) nomeia essa
estrutura profunda teórica como “EProfunda – potencial” (DeepS – potential) de uma
CEx. Ao tratar das CExs, Cienki (2017) afirma que, nessa perspectiva, elas possuem uma
estrutura prototípica que deve ser considerada na análise dos elementos de uma CExs, ou
seja, deve-se considerar “o quão central ou periférico [o elemento] está dessa CEx ou,
mais especificamente, da Eprofunda – potencial dessa CEx” (Cienki 2017, p. 3).18
Além disso, o Cienki (2017) define a ESuperf – utilizada (SurfS-used). Essa
estrutura é constituída por instâncias de uso real/atual, como, por exemplo, uma gravação
de vídeo, de uma determinada construção enunciativa. ESuperf – utilizada também pode
ser descrita como construtos. Fried (como citado em Cienki, 2017) define construtos
como “tokens concretos de enunciados produzidos no momento atual, que, por processos
de enraizamento, podem ser caracterizados como EProfundas – do usuário por aqueles
que adquirem a língua” (p. 4).19
Em relação aos processos de enraizamento, Langacker (1987) afirma as estruturas
linguísticas são concebidas de forma mais realista, quando são continuamente utilizadas
e, consequentemente, enraizadas. Segundo o autor (1987), quanto maior o uso de uma
estrutura, maior grau de enraizamento dessa estrutura. Em contrapartida, quanto menor o
período de uso dessa estrutura, menor o impacto positivo no enraizamento. Nesse sentido,
uma estrutura nova se torna progressivamente enraizada com o uso repetitivo, até tornarse unidade. O enraizamento das unidades, explica o autor (1987), varia de acordo com a
frequência de ocorrência. Ele assume que não existe um nível de enraizamento específico
que defina essas unidades e reconhece, portanto, a existência de unidades com graus
No original: “the term utterance to refer to any ensemble of action that counts for others as an attempt
by the actor to give information of some sort”.
18
No original: “how central or peripheral it is to that UCx, or more specifically, to the DeepS-potential of
that UCx”.
19
No original: "concrete utterance tokens that have actually been produced – that, through processes of
entrenchment can come to be categorized into DeepSs-user by those acquiring the language”.
17
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variáveis de enraizamento: se a unidade possuir maior enraizamento, será mais central e
linguisticamente mais significativa.
Nesse sentido, Cienki (2017) afirma que as CExs possuem uma estrutura
prototípica, de acordo com o modelo centro-periferia, ao considerar o status e as
características que compõem essa CEx. Para o autor (2017), as características que
compõem uma EProfunda, geralmente, possuem status variável, isto é, ao considerar a
construção, algumas características são mais centrais que outras (mais prototípicas da
categoria). O mesmo ocorre, conforme explica o autor (2017), para algumas
características expressas na ESuperf-potencial. Essas características podem ser avaliadas,
pelos membros de uma comunidade linguística, como mais prototípicas de uma
construção. Já outras características, em uma ESuperf – utilizada específica em um
determinado contexto, podem ser centrais, de acordo com a avaliação dos
falantes/ouvintes, para reconhecer a instanciação da CEx.
Por exemplo: o gesto de elevação de ombros (shrug), investigado por Streeck
(2009), e “eu não sei”/num sei (‘I don’t know’/’I dunno’) para expressar o
desconhecimento de algo ou a posição distante de alguém é um exemplo notório de
composto comportamental. Segundo Cienki (2017), palavras e gestos possuem status
central na CEx, mas a estrutura interna da construção de ESuperf – potencial pode variar:
diversos elementos podem servir de pistas centrais da CEx. Esses elementos podem ser
individuais ou combinados a outros. A depender do momento, outras pistas podem
assumir status periférico. No que se refere aos gestos, as características dessa CEx
“podem incluir elevação de ombros (um ou ambos os ombros), mão aberta, palma para
cima, uma boca franzida e uma possível inclinação de cabeça para o lado” (Cienki 2017,
p. 5).20 Um exemplo de gesto de elevação de ombros “completo” é fornecido por Streeck
(2009) e está disposto na Figura 5:
Figura 5. Gesto de elevação de ombros (shrug).
Fonte: Streeck (2009, p. 191).
Cienki (2017) explica, também, a respeito dos elementos verbais do enunciado nessa
CEx. Esses elementos podem incluir uma frase completa “eu não sei” (‘I don’t know’) ou
uma reduzida “num sei” (‘I dunno’) e o contorno entonacional desses enunciados pode
variar, de alto a baixo. O mesmo autor explica que, diferente dessa CEx “do gesto de
elevação de ombros”, na qual elementos podem assumir, momentaneamente, status
No original: “may include shoulder lifts (one or both shoulders), palm-up open-hand(s), a puckered
mouth, possibly a head tilt to the side”.
20
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periférico, existem outras CExs, nas quais os elementos são menos suscetíveis de serem
deslocados para a periferia na realização da ESuperf.
Por fim, em relação à GCxE, o último ponto que Cienki (2017) discute é a noção
de escopo dinâmico de comportamentos relevantes (ECR), descrita também em Cienki
(2015 e em outros textos). O autor (2015) define o ECR “como um modo de considerar
os vários tipos de status-significativos que os gestos podem ter” (Cienki 2015, p. 628).21
O autor (2015) propõe que todo conteúdo comunicativo possui um escopo dinâmico de
comportamentos relevantes. Ou seja, os focos do produtor22 e do participante são
variáveis ao eleger os comportamentos em determinado contexto. Conforme o autor
(2015, 2017), esse foco pode variar (ser dinâmico) de duas maneiras: em termos
ampliação ou diminuição e em termos de mudança de foco.
Em termos de ampliação ou diminuição, Cienki (2017) explica que o escopo do
produtor e do participante pode aumentar e incluir mais comportamentos, como, fala,
gestos, expressão facial ou diminuir e incluir apenas palavras, por exemplo. Em termos
de mudança, ao considerar que, para os falantes, a língua falada em interação constitui o
foco padrão, o autor afirma que pode ocorrer uma alteração temporária de foco,
alternando o foco central da fala para outros comportamentos, por exemplo, os gestos.
Essa mudança de foco pode ser ilustrada por uma situação na qual a alguém está em um
jogo de mímica e tem que se comunicar apenas por gestos.
Ainda em relação ao escopo de comportamentos relevantes, Cienki (2017) explica
que, no modelo da GCxE, o espoco de comportamentos relevantes das CExs varia. O
autor fornece exemplos nos quais a CEx pode ser expressa e reconhecida com vários
comportamentos, como o exemplo de “eu não sei/levantamento de ombros”. Além desses
exemplos já descritos, Cienki (2017) menciona, por último, CExs que possuem menos
elementos para expressão, como, por exemplo, o nome de uma fórmula química rara, que,
provavelmente, não possui um gesto convencionalizado, restringindo a expressão à
escrita ou à fala.
4.2. Aspecto e gestos na Gramática Cognitiva: desdobramentos multimodais
Do ponto de vista dos estudos em multimodalidade e gramática, Parril (2000) afirma que
há uma correlação entre aspecto linguístico e gestos espontâneos. Parril (2000) sustenta
essa afirmação com base nos estudos de Bailey (1997) e Narayanan (1997). Esses estudos,
retomados pela autora, enfatizam a questão de o aspecto ser baseado nos programas
motores, responsáveis pelo movimento corporal, mais especificamente, pelo movimento
das mãos e dos braços. A concepção de aspecto, conforme Parrill (2000), trata “dos modos
pelos quais os sentidos lexicais inerentes dos verbos ou do predicado (Aktionsart) são
incorporados em uma perspectivação conceptual (construal) específica de uma cena.”
No original: “as a way to take into account the varying kinds of sign-status that gestures can have”.
Ao invés de se referir aos termos tradicionais: “falante” e “destinatário” (ou ouvinte/visualizador), Cienki
(2015, 2017) utiliza a “categoria ampla de ‘produtores’ (para englobar, teoricamente, falantes, pessoas
gesticulando quando não estão falando e pessoas utilizando a língua de sinais) e ‘participantes’ (para
aqueles que estão atentos à comunicação de outra pessoa)” (Cienki 2017, p. 7).
21
22
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(Parril 2000, p. 20).23 A partir dessa noção de aspecto, a autora (2000) considera como
classes aspectuais principais: o perfectivo e o imperfectivo, de acordo com as proposições
de Langacker (2008, 2013).
Parril (2000) afirma que a categoria aspecto inclui, ao menos, o sentido lexicalizado
do verbo e dos argumentos verbais. Esse sentido lexicalizado do verbo, é, frequentemente,
chamado de Aktionsart (aspecto lexical), que é diferente do aspecto gramatical. A autora
(2000) destaca a grande influência que os argumentos verbais possuem na determinação
do valor aspectual do predicado. De acordo com Parril (2000), existe, em inglês, por
exemplo, uma diferença de aceitabilidade das sentenças “o coala corre de um lado para o
outro; o coala está correndo de um lado para o outro; o rio corre de um lado para o outro;
e o rio está correndo de um lado para o outro*” (Parril 2000, p. 19, grifos da autora), 24
em decorrência da perspectivação conceptual (construal) que é assumida pelo sujeito.
Os exemplos mencionados referem-se a cada localização do trajetor (do coala ou
do rio) em diferentes pontos no processamento do tempo. Segundo Parril (2000), na
concepção langackeriana, esse fenômeno é analisado ao considerar o movimento
subjetivo. Nas instâncias de movimento subjetivo, “a noção de direcionalidade é
motivada unicamente pelo processamento do tempo, que evolui na medida em que o
conceptualizador escaneia mentalmente, e acessa sequencialmente cada parte do trajetor”
(Huumo 2001, p. 42).25
Conforme Parril (2000), é possível que haja uma restrição na interpretação da
sentença, dependendo do objeto ou do modificador adverbial, que ocorra com o verbo,
como em: “o coala comeu por uma hora; *o coala comeu em uma hora; o coala comeu
o bolo em uma hora” (Parril 2000, p. 19, grifos da autora).26 Sendo assim, conforme a
autora (2000), a conceptualização dessas sentenças varia bastante, a depender do tipo de
ação descrito e do objeto dessa ação.
Em suma, a partir das discussões referentes às noções de advérbio, iteratividade e
aspecto, descritas no decorrer deste artigo e que acreditamos ser pré-requisitos para
construção da categoria advérbio aspectualizador de repetição na Gramática Cognitiva,
defendemos que é possível sistematizar essa categoria de advérbios em uma perspectiva
cognitiva, uma vez que, assim como os autores da área funcionalista, tais como Ilari
(1992), os autores da Linguística Cognitiva, como Parril (2000), por exemplo, também
reconhecem que a expressão do aspecto não se restringe ao verbo e abrange outros
constituintes da sentença, tais como os advérbios. Sendo assim, seria possível
conceptualizar, na perspectiva da Gramática Cognitiva, a categoria advérbio
aspectualizador e, mais especificamente, a categoria advérbio aspectualizador de
repetição.
No original: “the ways in which the inherent lexical meaning of a verb or predicate (aktionsart) are
incorporated into a particular construal of a scene”.
24
No original: “The wombat runs from here to there; The wombat is running from here to there; The river
runs from here to there.;*The river is running from here to there”.
25
No original: “the notion of directionality is motivated by processing time alone, which evolves as the
conceptualizer scans mentally through the complex configuration and sequentially accesses each of the
parts of the trajectory”.
26
No original: “The wombat ate for an hour.
*The wombat ate in an hour.
The wombat ate the cake in an hour.”
23
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5. Procedimentos metodológicos
A metodologia utilizada neste artigo está baseada na proposta metodológica,
desenvolvida Cienki e Iriskhanova (2018), para a análise do aspecto em uma perspectiva
multimodal. Dessa proposta, gostaríamos de destacar os critérios para definição,
identificação e análise dos gestos. No que se refere a esses critérios, Cienki e Iriskhanova
(2018) partem das proposições de gesto, fases gestuais, unidade gestual e frases gestuais,
propostas por Kendon (2004). Kendon (2004) define gesto como uma ação corporal
visível que possui um papel em unidades de ação e focaliza os estudos nos gestos
manuais. De acordo com o autor (2004), ao considerar a excursão do movimento, o gesto
manual passa por três fases principais: preparação, na qual ocorre o movimento inicial da
mão, golpe, na qual é manifestada a dinâmica de movimento de “esforço” e “formato”
com melhor clareza, e descanso (retração), na qual a mão relaxa ou é recuada. Kendon
(2004) define essa excursão completa, da posição de relaxamento à posição de descanso,
como unidade gestual.
Para Kendon (2004), após o golpe pode existir uma fase na qual o articulador (as
mãos, por exemplo) permanece na mesma posição do golpe. Kita (apud Kendon 2004)
nomeia essa posição de “post-stroke-hold (posição de manutenção pós-golpe)” (p. 112).
Essa posição, segundo Kendon (2004), parece ser uma maneira de prolongar a expressão
veiculada pelo golpe. O autor afirma que o golpe, a possível manutenção pós-golpe, a
preparação (incluindo pausas no movimento), compõem a frase gestual. Para ele, a frase
gestual não inclui, portanto, a fase de relaxamento (essa fase faz parte, apenas, da unidade
gestual, que comporta a frase gestual).
Cienki e Iriskhanova (2018) definem a unidade de análise a partir de uma pequena
variação da proposta de Kendon (2004). Diferente de Kendon (2004), os autores propõem
que a fase de descanso/retração faz parte tanto na unidade de análise (unidade gestual)
quanto da frase gestual. Eles destacam que, se existir uma sequência com vários golpes,
a fase de retração é considerada como último golpe. A Figura 6 sintetiza a composição da
unidade gestual em termos visuais com um exemplo, fornecido por Cienki e Iriskhanova
(2018), a partir dos dados do francês. Nesse exemplo, a falante diz: “Mas eles, eles
ficaram um pouco de lado” (‘mais eux, ils étaient un peu à part’) e a unidade gestual, que
inclui as frases e fases gestuais, é ilustrada, conforme pode ser visualizado na Figura 6:
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Mas (Mais)
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eles (eux)
Fase gestual (FG): preparação
FG: golpe
Frase gestual 1
estavam
(étaient)
eles (ils)
FG:manutenção
pós-golpe
FG: preparação
um (un)
pouco (peu)
FG: golpe
Frase gestual 2
De lado (à part).
FG: descanso.
Figura 6. Uma unidade gestual completa, frases e fases componentes.
Fonte: Cienki e Iriskhanova (2018, p. 69).
No que se refere aos critérios de análise dos gestos, Cienki e Iriskhanova (2018)
identificam o que chamaram de gestos limitados em contraste aos gestos não limitados.
Os autores identificam esses gestos de acordo com a qualidade de movimento,
particularmente, a partir de fatores como aceleração/desaceleração do movimento e
esforço de pulsação. Além disso, classificam o gesto na categoria e limitado ou ilimitado,
de acordo com as subcategorias dos esquemas de limitação. Sendo assim, ao considerar
os critérios de análise dos gestos, Cienki e Iriskhanova (2018) propõem um esquema,
disposto na Figura 7, contendo as categorias básicas de gestos limitados e ilimitados e os
subtipos utilizados para identificar esses gestos:
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Esquemas cinéticos do construal aspectual de evento
Variações de marcação de limites
Limitado
Início
Fim
Dupla-limitação
Pontual
Ilimitado
Ilimitado
Iterativo
Figura 7. Esquema para codificação das categorias gestuais “limitado” e “ilimitado” e os subtipos.
Fonte: Cienki e Iriskhanova (2018, p. 72).
6. Coleta de dados
Neste artigo, optamos por coletar, para realização de uma análise ilustrativa, duas
ocorrências vídeo-gravadas do advérbio aspectualizador de repetição constituídas pelo
quantificador várias e pelo nome vezes. Essas ocorrências foram extraídas do Distributed
Little Red Hen Lab. A base de dados do Red Hen consiste numa Biblioteca de Notícias
Internacionais, hospedada e mantida, de forma segura, pela Universidade da Califórnia
em Los Angeles (UCLA). O banco de dados possui, aproximadamente, 200 mil horas de
notícias transmitidas pela internet, num vasto número de línguas. Esse corpus revela a
criatividade e variedade cultural da rede de notícias em todo o mundo. Ele inclui, em
média, um bilhão de palavras em textos legendados, com marcação de data e hora, além
de, em média, um bilhão de palavras transcritas. O Red Hen também adiciona,
diariamente, milhares de horas em notícias (para mais informações acesse:
http://www.redhenlab.org/).
7. Análise ilustrativa e discussão
A análise das ocorrências coletadas está descrita a seguir, nas Figuras 8 e 9, por meio de
uma representação multimodal contendo: a fotografia do Golpe gestual e a transcrição,
com o enunciado27 em que ocorre o Golpe gestual negritado:
27
Os enunciados das duas ocorrências analisadas estão em Português Brasileiro.
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De uma vez só, ele está estreando no tráfico de drogas, ou ele já transportou quantidade
variada várias vezes, só que agora (...) pegaram.
Figura 8. Representação multimodal da ocorrência 1.
Fonte: dados do Red Hen.
Ao analisar a ocorrência 1, consideramos que o gesto, que co-ocorre com o advérbio
apectualizador de repetição várias vezes, corresponde a um gesto ilimitado iterativo,
conforme a proposição de Cienki e Iriskhanova (2018). Esse gesto envolve um
movimento controlado em um padrão repetitivo. No que se refere à repetição gestual,
Bressem (2014) propõe que ela pode marcar iteração ou reduplicação. No caso dessa
ocorrência, o gesto repetitivo marca iteração por meio de um gesto ilimitado. Na iteração,
descrita pela autora, como mais diretamente ligada às experiências corporais ou visuais,
não é possível separar os golpes gestuais.
Dessa maneira, nessa ocorrência, podemos constatar a realização de um golpe
gestual complexo, constituído pela repetição de um movimento cíclico, no qual o falante
realiza vários giros em velocidade constante, impossibilitando a separação dos golpes
gestuais. O gesto cíclico foi analisado por Ladewig (2011). De acordo com esta autora,
esse “gesto demonstra uma relação estável de forma e sentido: o movimento contínuo
circular para fora, correlacionado com o centro semântico da continuidade cíclica, em
diferentes contextos de uso.” (Ledewig 2011, p. 1).28
Além disso, nesta ocorrência, consideramos que o Esquema Imagético 29 CICLO foi
veiculado no gesto e segundo análise de Ladewig (2011) esse Esquema é o cerne do gesto
cíclico. De acordo com Cienki (1997), o Esquema Imagético CICLO integra um grupo
gestático de Esquemas Imagéticos que inclui os Esquemas de TRAJETÓRIA, PROCESSO,
ITERAÇÃO E FORÇA. O autor argumenta que “um CICLO pode ser entendido como uma
TRAJETÓRIA que retorna a seu ponto de origem, representando um PROCESSO que pode se
No original: “gesture shows a stable form-meaning relationship: The continuous circular outward
movement correlates with the semantic core of cyclic continuity in each context of use”.
29
Segundo Johnson (1987), “Esquemas Imagéticos são, precisamente, estruturas da nossa experiência
sensório-motora básica, pela qual encontramos um mundo que podemos entender e no qual podemos agir”.
(Johnson 1987, p. 136).
28
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repetir (ITERAÇÃO), em decorrência da FORÇA do momento.” (Cienki 1997, p. 8).30 Sendo
assim, na análise da ocorrência em destaque, notamos que, ao enunciar o advérbio várias
vezes, o falante realiza um gesto cíclico, veiculando cognitivamente o Esquema Imagético
CICLO no gesto, que envolve o Esquema ITERAÇÃO.
Realizada a análise da ocorrência 1, passemos à análise da ocorrência 2. A
representação multimodal da ocorrência 2 está disposta na Figura 9, conforme
mencionamos anteriormente:
Uma baleia ferida que foi arpoada várias vezes, foi sangrando, sangrando e parou de se
mover.
Figura 9. Representação multimodal da ocorrência 2.
Fonte: dados do Red Hen.
Na análise da ocorrência 2, consideramos que o gesto, que co-ocorre com o advérbio
apectualizador de repetição várias vezes, é um gesto de repetição, conforme definido por
Bressem (2014), e marca a reduplicação gestual. Na reduplicação gestual, conforme
Bressem (2014), os gestos são mais marcados, diferentemente do que na iteração, o que
torna possível a separação dos golpes gestuais. No caso da ocorrência analisada, o gesto
realizado pelo falante, além de ser um gesto de repetição-reduplicação, é um gesto
referencial, conforme proposição de Cienki (2005), baseado em Müller (1998), pois
representa a ação de “arpoar” a baleia, sendo que a tripla repetição dos golpes gestuais,
que co-ocorrem com o advérbio aspectualizador de repetição várias vezes, veiculado na
fala, marca a pluralidade da ação veiculada pelo verbo.
Assim, nessa ocorrência, ao enunciar o advérbio aspectualizador de repetição várias
vezes, constituído pelo quantificador várias, que, conforme Langacker (2016, 2017b),
constitui um quantificador absoluto e é caracterizado em relação a uma escala de
mensuração quantificada e a uma massa de quantificação plural (cf. Figura 4), o falante
No original: “A cycle can be understood as a path that returns to its point of origin, representing a process
which can be repeated (iteration) and continued by virtue of the force of momentum”.
30
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realiza um gesto referencial de repetição, que corporifica a quantificação plural e, por
consequência, a reduplicação gestual.
Portanto, a análise dessas duas ocorrências ilustrativas evidencia que, as
construções verbais instanciadas pelo esquema [QNT + vezes] podem ser atreladas à
repetição gestual, marcando iteração ou reduplicação, e à ocorrência do Esquema
Imagético gestual CICLO. Sendo assim, do ponto de vista multimodal, a sucessão de
eventos ou atos repetitivos, veiculados na fala, constitui-se como uma ação limitada ou
ilimitada, demonstrada nos gestos.
Sendo assim, conforme a proposta de Cienki (1997), o falante corporifica, por meio
dos gestos, a repetição do processo - nos casos em discussão, dos processos de transportar
e de arpoar - aos quais se vincula o advérbio. Dessa maneira, tal como proposto por
Langacker (2016), a construção adverbial [QNT + vezes] seleciona a leitura repetitiva da
sentença, pois, caso não houvesse a construção adverbial em questão, os processos
poderiam ser considerados como pontuais, ou seja, como tendo ocorrido uma única vez.
Do ponto de vista multimodal, a repetição gestual marca gramaticalmente a iteratividade
e o plural e, pelo fato de ser um enunciado gestual da construção adverbial [QNT + vezes],
vincula-se referencialmente aos processos verbais, como no caso de transportar, em que
o gesto veicula o sentido de tráfego e de arpoar, em que o gesto representa o arpão.
8. Conclusões
A perspectiva da Gramática Cognitiva e da Gramática de Construções do Enunciado são
capazes de oferecer abordagens teórico-metodológicas que permitam a análise do aspecto
e, por consequência, do advérbio aspectualizador de repetição em contextos multimodais,
uma vez que, para a Linguística Cognitiva, a investigação da mente humana não pode ser
separada do corpo, de modo que a experiência, a cognição e a realidade são concebidas a
partir de uma ancoragem corporal. No caso deste artigo e dos estudos que o fundamentam,
a partir, especificamente, da integração gesto-fala.
Em suma, essa argumentação de que a conceptualização do advérbio
aspectualizador de repetição ocorre na integração gesto-fala é exemplificada a partir da
análise dos dados ilustrativos e da evidência de que as ideias sobre as quais falamos
podem ser visualizadas na estrutura imago-esquemática dos gestos. Portanto, ao
considerar a análise dos gestos, é possível observar aspectos da conceptualização que não
estão disponíveis a partir, somente, da análise da linguagem verbal. No caso das
ocorrências analisadas neste artigo, as informações são veiculadas nos gestos por meio da
repetição, que marca a iteração ou reduplicação, e do Esquema específico CICLO.
A veiculação desse Esquema nos gestos e a sucessão de eventos ou atos repetitivos,
veiculados na fala, fornecem uma evidência multimodal do caráter de repetição dos
processos verbais vinculados ao advérbio; no caso das ocorrências aqui analisadas, do
advérbio várias vezes, e, por consequência, nos permite fundamentar a nossa primeira
hipótese de que é possível, a partir de uma perspectiva gramatical cognitiva e multimodal,
sistematizar as noções de advérbio, aspecto e iteratividade e, consequentemente, propor
a categoria advérbio aspectualizador de repetição.
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[recebido em 31 de outubro de 2020 e aceite para publicação em 17 de fevereiro de 2021]
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