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Toré e jurema: emblemas indígenas no nordeste do Brasil

2008, Ciencia E Cultura

C U L T U R A I N D Í G E N A /A R T I G O S OS ÍNDIOS DO NORDESTE O Nordeste etnológico pode ser referido com uma área de colonização antiga do Brasil. Logo no século XVI, a monocultura canavieira se desenvolveu no litoral da região e, em seguida, registra-se a introdução e o desenvolvimento da criação de gado no interior. Aliadas ao sistema de doação de sesmarias, essas experiências colonizadoras tiveram, como principal objetivo, a ocupaRodrigo de Azeredo Grünewald ção efetiva da terra. Para tanto, entre o rio São Francisco até a Serra do Ibiapaba (CE), estabeleceu-se, no início do século XVII, as “guerras justas” contra os “índios de corso”, isto é, aqueles que assaltavam oré e jurema são os dois principais ícones da indiafazendas de gado, engenhos de açúcar e outras unidades de produnidade nordestina. São elementos culturais que, ção (pp.30-31; 2). embora não exclusivos das sociedades indígenas, Já entre a segunda metade do século XVII e a primeira do XVIII, recodificam a autoctonia dos índios da região Norgistra-se o estabelecimento das missões religiosas que buscavam indeste do Brasil. O toré é uma tradição indígena de corporar os indígenas ao Estado colonial português. Seus aldeamendifícil demonstração substantiva por conta da variação semântica e tos, de fato, se propunham não apenas à conversão do “gentio” ao das diversas formas de suas realizações práticas entre as sociedades cristianismo, mas à assimilação dessa gente às unidades coloniais e indígenas e fora delas (1). Trata-se, a princípio, de uma dança riseu modo de vida – inclusive através de farta miscigenação. Porém, tual que consagra o grupo étnico. Não se pode, além disso, preciainda no século XVIII as missões jesuítas foram extintas e foi criado sar uma origem do termo e até do ritual do toré pela ausência de (e também extinto) o Diretório dos Índios, que igualmente visava à narrativas coloniais a seu respeito. O toré ganha visibilidade (e a reintegração dos índios à sociedade colonial. A partir levância atual) a partir de um processo social que da extinção deste, a região ficou entregue a criadose inicia na primeira metade do século XX. Hoje, res de gado e agricultores que procuraram consolio toré está inclusive totalmente incorporado ao PARÂMETROS dar suas posses sobre as terras. Apesar da ação de almovimento indígena no Nordeste como forma de DEFINIDORES gumas missões franciscanas ainda no início do expressão política. DA século XIX, as “guerras indígenas” prolongaram-se A jurema, por seu turno, pode ser uma planta, INDIANIDADE – mesmo que modesta, mas eficazmente – durante uma bebida e uma entidade. De fato há uma séSÃO FRUTO DE o período colonial. Tanto que “ao final do século rie de espécies botânicas referidas como jurema. A XIX já não se falava mais em povos e culturas indíMimosa tenuiflora (Willd). Poir é uma das que PROCESSO genas no Nordeste” (p.24; 3). mais chamam a atenção pela alta concentração de INTERNO DE N-N-dimetiltriptamina (DMT) que apresenta. AUTODEFINIÇÃO Na passagem do século XIX para o XX, as idéias de “progresso” e de “civilização” forneceram a tônica Isto é, uma substância capaz de promover intenpara a ação indigenista. Em 1910, foi fundado o sas alterações de consciência e percepção. Das casServiço de Proteção ao Índio (SPI) marcado ideologicamente pelas cas das raízes dessas plantas são elaboradas beberagens usadas ri“idéias dos postos de atração e dos postos de pacificação para se cotualmente por grande número de sociedades indígenas no locar os índios em contato com o civilizado” (4). No Nordeste, a Nordeste. Os grupos indígenas que não usam essa bebida fazem ação protecionista se desenvolveu a partir da segunda década do séreferência constante à planta como dotada de forças mágicas ou culo XX, intensificando-se entre os anos 1930 e 1950 de forma a cósmicas que são cultuadas ou, pelo menos, reconhecidas enquanpromover uma recuperação de parte dos territórios indígenas na reto portadoras de influências oriundas das matas nativas. Há, por gião através do reconhecimento de etnias autóctones. Semelhantes fim, a idéia de que jurema é uma entidade, uma personificação esprocessos de “territorialização” (3) continuam vigorosos nos dias piritual das citadas forças das florestas brasileiras. Este último senatuais em quase todos os estados nordestinos e são levados a efeito a tido é mais próprio às religiões afro-ameríndias (ou afro-brasileipartir de movimentos de emergências étnicas (etnogêneses) elaboraras), que substituíram a planta bebida por uma representação de dos por populações nativas que reivindicam da atual agência indigeforças nativas. nista – a Fundação Nacional do Índio (Funai) – o reconhecimento Jurema e toré são, portanto, elementos sagrados e, apesar de sua de seu status indígena e a conseqüente demarcação dos territórios indifusão ritual ou simbólica em contextos não-indígenas, eles são dígenas. Se na década de 1930, três ou quatro povos indígenas eram sempre marcadores nativos que indicam, afirmam e delimitam a reconhecidos no Nordeste, o número atual dos grupos reconhecidos presença (inclusive espiritual) indígena na sociedade brasileira. e/ou solicitando reconhecimento chega aos cinqüenta. Nos rituais das religiões brasileiras onde existem torés, estes são sempre um espaço indígena. Do mesmo modo com relação à jurema. Claro que existem outras entidades e outros espaços indígeCULTURA INDÍGENA NO NORDESTE Falar de cultura, de uma maneira nas nessas religiões, mas o importante aqui é que eles são tradições geral, para todos esses povos – tanto dos que guardam continuidade e símbolos que são atualizados pelos próprios grupos indígenas. histórica com o período colonial quanto dos de surgimento recente Examinemos então esse amplo contexto. – parece uma tarefa quase impossível se pensarmos em termos subs- TORÉ E JUREMA: EMBLEMAS INDÍGENAS NO NORDESTE DO BRASIL T 43 C U L T U R A I N D Í G E N A /A R T I G O S tantivos, ou seja, na enumeração dos modos de vida e dos aspectos Um ponto, portanto, que se torna logo evidente na configuração simbólicos e práticos dessas populações. Ao contrário do que se percultural emblemática dos índios do Nordeste é a posse de um símcebia nas primeiras sete décadas do século XX, isto é, que as culturas bolo comum, o compartilhar de uma ideologia expressa ritualmentipicamente indígenas do Nordeste estavam cedendo lugar a uma te que, embora com conteúdos e formatos alterados entre muitas cultura regional e que tais populações tendiam à assimilação ou à indessas comunidades, é recorrente ao informar (e constituir) a indiategração plena à vida (sociocultural) brasileira, o que se assinala nidade nordestina. atualmente é um conjunto de processos de revigoramento das culO toré, dessa forma, vem promovendo o referencial da autoctonia turas específicas desses povos. Culturas estas que ficaram mais evinordestina e vale ser apreendido de forma processual porque é justadentes nas etnografias indígenas nordestinas a partir dos anos 1980 mente a sua dinâmica dentro dos e entre os grupos étnicos que vem por conta de sua relevância para os processos políticos de afirmação ordenando a vida indígena no Nordeste (p.29; 1). étnica dessas comunidades. Dentre toda a diversidade sociocultural Assim, não apenas a clássica noção de “fronteiras étnicas” (8) é imencontrada em tais processos, achar uma unidade (um ponto de portante para a delimitação desses grupos indígenas, mas, em terconvergência) na conformação/composição cultural desses grupos mos culturais, deve-se ressaltar a evidente dinamicidade espacial e talvez seja uma maneira de sintetizar o núcleo cultural que caractetemporal da cultura, uma vez que as formas culturais encontradas riza a indianidade na região Nordeste do Brasil. Para tanto, vale renessas fronteiras não estão enclausuradas, mas em fluxo que as faz tomar a história do período recente de contato dos nativos com as moldar novos e remoldar antigos grupos indígenas na região. agências governamentais incumbidas de atestar suas indianidades e De forma semelhante, podemos considerar a jurema. Muitos dos inpromover a criação dos territórios indígenas brasileiros. dígenas nordestinos foram aldeados por missionários ou simplesSe a Constituição de 1988 considera como indígena as sociedades mente aculturados e até assimilados. Assim, deixaram seus rituais que “por suas categorias e circuitos de interação disantigos por um período, deixando igualmente de tinguem-se da sociedade nacional” e cujos membeber a jurema. Esta, por conta do sincretismo de bros se concebem como “descendentes de populaelementos entre sistemas de crenças brasileiros, acaÉ EVIDENTE NA ção de origem pré-colombiana” (p.177; 5), esses ba ganhando um novo status: o de um símbolo (uma parâmetros definidores da indianidade são fruto de CONFIGURAÇÃO representação) para o plano espiritual, das matas naCULTURAL DOS um processo interno de autodefinição (idem) e, tivas brasileiras e de sua gente autóctone. conseqüentemente, o reconhecimento dessas coQuando os torés foram resgatados ou criados entre ÍNDIOS DO munidades deve operar com um processo cognoscios grupos indígenas do Nordeste, a bebida da jurema NORDESTE A tivo que penetra nas malhas costuradas por um gruvoltou a se fazer presente em muitos desses grupos. POSSE DE UM po social que se funda como indígena. Contudo, não Se vários deles, entretanto, não bebem dessa bebida, era essa a interpretação que o antigo SPI tinha para SÍMBOLO COMUM exaltam, em suas canções, invocações etc, a jurema o reconhecimento dos indígenas numa região onde (símbolo) como alicerce de sua autoctonia (cf. 9). a aculturação e a mistura haviam criado as figuras do Assim, esses dois elementos culturais sagrados são “caboclo” ou do “remanescente indígena”. Baseado no exemplo dos fundamentos da indianidade nordestina, pois são gerais aos grupos. Fulni-ô, que, na contramão da assimilação, sustentavam a língua naCerto que de maneiras variadas, mas encontram-se presentes em totiva e um período de reclusão ritual (ouricuri), onde dançavam um dos eles e são emblemas do ser índio, pois entendidos pelos indíge“toré verdadeiro”, o inspetor do SPI no Nordeste passou a requerer, nas como o que os sacraliza enquanto etnias nordestinas. Claro que na primeira metade do século XX, a exibição da dança do toré para se muitos outros elementos de cultura poderiam ser lembrados como atestar a indianidade dos índios no Nordeste (6). Esta prática cultucomuns aos índios nordestinos, tais como alguns aspectos de suas reral passou, assim, a circular ideologicamente como sinal diacrítico lações produtivas com a natureza. Mas tais elementos não são genedessa ampla indianidade e, até hoje, é ensinada de grupos reconheciricamente apontados como fundamentos de suas etnicidades, sacrados a grupos que pleiteiam reconhecimento indígena em todo o Norlizadas nos mistérios da jurema e dos torés. deste. Mesmo grupos que apresentavam outras manifestações cultuHaveria ainda que se considerar aspectos culturais impostos aos ínrais (outras danças) incorporam o toré (ou a retórica do toré) como dios pelas agências indigenistas em termos de sua organização social padrão de etnicidade. e política. O “regime tutelar” (10) estabeleceu um modo de ser caracÉ verdade que outros elementos rituais, como o ouricuri ou os terístico para todos os grupos indígenas assistidos pela agência indipraiás, são igualmente importantes (e emblemáticas) manifestações genista que, em termos administrativos, caracteriza uma indianidaculturais indígenas. Reesink (7) tentou um esboço para marcar a de imposta pelo Estado. Esse modo de ser característico dos indígenas presença/distribuição desses três rituais indígenas que marcariam a sob administração tutelar, contudo, não é referido pelos índios como indianidade nordestina, apontando o caminho do sagrado para esemblemas que os torna índios, mas como um aparato necessário detabelecê-los. Embora alguns grupos se distingam pela posse desses corrente do fato de ser índio no Brasil. dois últimos rituais, eles também apresentam torés, que podem ser OS PARÂMETROS DA AUTOCTONIA Por fim, se a formação etnológidesempenhados emblematicamente em situações políticas ou de ca do Nordeste se dá por entre descontinuidades históricas, com contatos culturais variados. 44 C U L T U R A I N D Í G E N A /A R T I G O S processos de desaparecimento e ressurgimento de grupos indígenas entre o período colonial e os dias atuais, a afirmação contemporânea das etnicidades na região funda-se (ou justifica-se), em termos culturais, a partir da relação emblemática que tais populações alegam manter com a prática do toré ou com relação à representação da jurema. Contra a ilusão histórica da autoctonia, estabelece-se a realidade autóctone por meio da vinculação a essas representações sagradas. Rodrigo de Azeredo Grünewald é professor de antropologia do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unidade Acadêmica de Ciências Sociais da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. Grünewald, R. de A. “As múltiplas incertezas do toré”. In: Toré: regime encantado do índio do Nordeste. Recife: Massangana, 2005a. 2. Albuquerque, M. M. Pequena história da formação social brasileira. Rio de Janeiro: Graal, 3ª edição, 1984. 3. Oliveira, J. P. “Uma etnologia dos ‘índios misturados’: situação colonial, territorizalização e fluxos culturais”. In: A viagem da volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1999. 4. Rondon, general C. M. S. “Histórico do problema indígena no Brasil e debate de várias teses correlativas” In: Oliveira, L.H. Coletânia de leis, atos e memoriais referentes aos indígenas brasileiros compilados pelo oficial administrativo L. Humberto de Oliveira. 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