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Fidel tese

Pretendeu-se com este trabalho compreender, no que concerne o estudo das relações raciais na sociedade angolana e ao longo do período compreendido entre 1950-1996, as razões que concorrem para que determinadas classificações assentes na noção de raça tenham sido um recurso fundamental nas lutas políticas, nomeadamente, em processos de inclusão e exclusão. Para levar por diante este objectivo seleccionámos um conjunto de categorias «raciais» como mestiço, branco, negro, indígena e assimilado, considerando que estas últimas são classificações que assentam em propriedades rácicas/características somáticas. Tendo em conta uma perspectiva interdisciplinar optámos por utilizar três conceitos nucleares: campo político, ideologia identitária e crise. Mediante estes três conceitos foi possível analisar a dinâmica do campo político angolano como espaço de lutas de classificação, em que classificações assentes em propriedades rácicas/características somáticas tiveram um papel fundamental, como recurso político, nos processos de institucionalização do capital político. Contudo, o campo não se estruturou nem configurou tendo em conta as propriedades rácicas/características somáticas. A sua dinâmica foi condicionada por outros princípios que relegaram para um segundo plano o papel que as classificações assentes em propriedades rácicas desempenhavam na luta política. Palavras-chaves: campo político; ideologia identitária; crise; lutas de classificação; negro; mestiço; branco, indígena, assimilado.

Resumo Pretendeu-se com este trabalho compreender, no que concerne o estudo das relações raciais na sociedade angolana e ao longo do período compreendido entre 1950-1996, as razões que concorrem para que determinadas classificações assentes na noção de raça tenham sido um recurso fundamental nas lutas políticas, nomeadamente, em processos de inclusão e exclusão. Para levar por diante este objectivo seleccionámos um conjunto de categorias «raciais» como mestiço, branco, negro, indígena e assimilado, considerando que estas últimas são classificações que assentam em propriedades rácicas/características somáticas. Tendo em conta uma perspectiva interdisciplinar optámos por utilizar três conceitos nucleares: campo político, ideologia identitária e crise. Mediante estes três conceitos foi possível analisar a dinâmica do campo político angolano como espaço de lutas de classificação, em que classificações assentes em propriedades rácicas/características somáticas tiveram um papel fundamental, como recurso político, nos processos de institucionalização do capital político. Contudo, o campo não se estruturou nem configurou tendo em conta as propriedades rácicas/características somáticas. A sua dinâmica foi condicionada por outros princípios que relegaram para um segundo plano o papel que as classificações assentes em propriedades rácicas desempenhavam na luta política. Palavras-chaves: campo político; ideologia identitária; crise; lutas de classificação; negro; mestiço; branco, indígena, assimilado. i ii Abstract Regarding the study of racial relations in the Angolan society in the period of 1950-1996, the aim of this research was to understand the reasons that lead certain classifications based on the notion of race to be a fundamental resource in political fights, namely, in processes of inclusion and exclusion. In order to accomplish our objective we select a set of “racial” categories such as mestizo, white, black, indigene and assimilado, considering that they are classifications based on racial proprieties/somatic characteristics. Taking into account an interdisciplinary perspective we chose to use three core concepts. That is: political field, ideological identity and crises. Through these three concepts it was possible to analyse the dynamics of the Angolan political field as a space of classification fights. Classifications based on racial proprieties/somatic characteristics played a central role, as a political resource, in the processes of institutionalization of the political capital. Nevertheless, the field was not structured nor set according to racial proprieties/somatic characteristics. Its dynamics was shaped up by other principles that relegated to the background the role classifications based on racial properties played in the political fight. Keywords: political field; ideological identity; crises; classification struggle; black; mestizo; white; indigene assimilado. . iii iv Agradecimentos Os meus agradecimentos vão em primeiro lugar para a minha Orientadora, Professora Dra Ana Mouta Faria, que se disponibilizou, a meu pedido, para orientar este trabalho e que o acompanhou metódica e zelosamente em todas as suas fases, pautando sempre pelo rigor, seriedade e cujas pertinentes sugestões contribuíram para consolidar as opções teóricometodológicas. Este trabalho nunca teria sido possível sem o apoio desinteressado de instituições e pessoas a quem quero manifestar o testemunho da minha gratidão. À reitoria da Universidade Agostinho Neto que se prontificou a custear a tese. À direcção da Faculdade Letras e Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto pelo apoio a este meu projecto. Ao departamento de História do ISCTE - IUL pela cedência de uma sala de estudo. Às funcionárias e aos funcionários dos serviços de biblioteca e documentação do ISCTE – IUL. Aos funcionários dos serviços académicos do ISCTE – IUL, em particular a Ilda Ferreira. O meu agradecimento vai também para a professora Maria do Céu Carmo Reis que me incentivou a realizar este projecto e sempre se prontificou a tecer considerações pertinentes. Não posso deixar de agradecer o estímulo, compreensão e apoio pessoal do Prof. Dout. Engº João Sebastião Teta no sentido de levar este projecto a bom porto. A realização do trabalho de campo em Luanda teria sido bem mais demorada e incerta se os militantes e Deputados do MPLA, da UNITA, da FNLA, PRS e AD/Coligação não se tivessem predisposto a conceder-me as entrevistas Também não posso deixar de manifestar a minha estima e gratidão a todos os que se prestaram a dar informações sobre Angola, nomeadamente ao escritor Artur Pestana “Pepetela”, à Dra. Maria Conceição Neto e ao Dr. Fernando Gambôa. À Dr.ª Vitória de Almeida e Sousa, ao Adolfo Maria, à Helena Maria e ao João Vieira Lopes (Bavil) o meu obrigado pelo apoio material e pessoal. Quero também agradecer aos meus amigos que me apoiaram de várias maneiras neste processo de aquisição de saber. Cada um sabe das razões do seu nome constar nesta lista: v Cláudia Casimiro Maria Elisa Fernandes, Joana Ribeiro, Antonica Maria (Tónica), Henda Ducados, Wanda Lara., Constança Ceita, Paulo Fino, Vasco Pedro, Marcelino Paxe, Alexandre Silva, Amílcar Sousa Andrade, Gentil Viana (Tilo), Cláudio Tomás, João Carvalho, Luís Barreiros, Nendela Lihauca, Paulo Lara, Mário Jorge e Ayres de Menezes (Bebé) Lando Teta, e a tantos outros a quem devo este pedaço de sabedoria. O meu último agradecimento vai para o meu grupo etno-afectivo. À minha companheira Elisabete Santa Bárbara, (Sempre Bolingô); aos meus dois Kandengues, Kamba e Cochise, eterno afecto e eterno estamos juntos. vi À Céu, por tudo e (esse) mais alguma coisa: ser minha eterna amiga À Lena, exemplo de força, inteligência, coragem e… ternura, eterno berçário Ao Gentil, eterna lição de vida vii viii Índice Siglas ................................................................................................................... xv Introdução ............................................................................................................ 1 PRIMEIRA PARTE – PROBLEMÁTICA. ENQUADRAMENTO TEÓRICO E METODOLÓGICO. ESBOÇO HISTORIOGRÁFICO .............................. 13 Capítulo I. Problema, construção do objecto de investigação e estratégia metodológica ...................................................................................................... 15 1. Do problema à pergunta de partida ....................................................................................... 15 1.1 O historiador no seu labirinto ......................................................................................... 24 2. Objectivos, opção disciplinar e construção do objecto de investigação ............................... 33 2.1 Objectivos ....................................................................................................................... 33 2.2 Opção disciplinar ............................................................................................................ 34 2.3 A construção do objecto de investigação. A força dos conceitos ................................... 36 2.4 Construção do modelo de análise ................................................................................... 52 2.4.1 Ideologia identitária.............................................................................................................................. 52 2.4.2 Campo político ..................................................................................................................................... 53 2.4.3 Crise ..................................................................................................................................................... 54 2.4.4 Hipótese................................................................................................................................................ 55 3. Estratégia metodológica ........................................................................................................ 57 Capítulo II. Elementos históricos pertinentes para a compreensão da dominação colonial. Séculos XVI - XX ............................................................. 60 1. Africanos e portugueses. Das relações de cooperação às relações de conflito. Chegada e ocupação parcial........................................................................................................................ 61 1.1 Os limites do espaço português....................................................................................... 65 2. Uma conjuntura favorável à colonização .............................................................................. 70 3. Resistência e ocupação total ................................................................................................. 74 3.1 O acelerado definhar dos filhos do país. Resistência e dominação. O exemplo do movimento associativo ..................................................................................................................................................... 77 4. Ditadura militar e Estado Novo. A Consolidação do espaço colonial .................................. 81 4.1 Uma resistência silenciosa. Fragmentos de reavaliação de propriedades rácicas/características somáticas ........................................................................................... 85 SEGUNDA PARTE - DAS POLÍTICAS DE CLASSIFICAÇÃO ÀS CLASSIFICAÇÕES POLÍTICAS. A QUESTÃO RACIAL NO CAMPO POLÍTICO ANGOLANO. – (1950- 1996) ........................................................ 89 Capítulo III. Factores políticos e ideológicos que concorrem para a compreensão da formação e dinâmica do espaço nacionalista angolano. (1945-1963) ......................................................................................................... 91 ix 1. Esboço de uma conjuntura internacional. Guerra-fria, pan-africanismo e não-alinhamento. Do fim da Segunda Guerra Mundial até à criação da Organização de Unidade Africana........ 91 1.1 Guerra-fria....................................................................................................................... 92 1.2 Pan-africanismo, negritude e não-alinhamento............................................................... 93 2. Aspectos da política colonial. (1950-1961) .......................................................................... 97 3. Breve caracterização do espaço colonial. Uma sociedade em permanente tensão. (19501961) ....................................................................................................................................... 102 3.1 O arbitrário classificatório ............................................................................................ 107 Capítulo IV. Um momento de reavaliação das propriedades rácicas /características somáticas. O panfleto como lugar de enunciação. (1956-1960) ............................................................................................................................111 1. Da prática cultural à prática política ................................................................................... 111 2. O panfleto como lugar de enunciação. Estratégias discursivas que remetem para processos de inclusão e exclusão na relação dominantes/dominados ou colonizadores/colonizados ..... 116 2.1 Documento (1). Manifesto “para um Amplo Movimento Popular de Libertação de Angola”. Provavelmente de 1956. ...................................................................................... 118 2.2 Documento (2). Panfleto do Grupo ELA de Angola “O nosso relatório para a conferência a realizar em Accra em Março do corrente ano”. Março de 1959. ................. 121 2.3 Os panfletos do MIA ..................................................................................................... 124 2.3.1 Documento (3). Panfleto do MIA “Aos Angolanos”. Provavelmente de 1959 .................................. 125 2.3.2 Documento (4). Panfleto do MIA “Aos Militares Angolanos”. Provavelmente de 1959 ................... 126 2.3.3 Documento (5). Panfleto do MIA “ Manifesto Africano”. Provavelmente de 1959........................... 129 2.4 Panfletos subscritos conjuntamente pelo MINA e pela UPA ....................................... 130 2.4.1 Documento (6). Panfleto subscrito pelo MINA e pela UPA “Ao povo de Angola”. Provavelmente de 1960 ............................................................................................................................................................. 131 2.4.2 Documento (7). Panfleto subscrito pelo MINA e pela UPA “Garantias Insofismáveis Aos Angolanos De Independência”. Provavelmente datado de 1960 ................................................................................... 132 2.5 Documento (8). Panfleto do MLNA “Ameaça Psicológica”. Provavelmente de 1959 134 2.6 Os panfletos da UPA ..................................................................................................... 136 2.6.1 Documento (9). Panfleto incompleto da UPA “Estímulo”. Provavelmente de fins de 1959 princípios de 1960 ........................................................................................................................................................ 136 2.6.2 Documento (10). Nota da UPA “Ao chefe da povoação e seus súbditos residentes em Kinkombo Kibenga”. A partir de Leopoldville, de Setembro de 1960 ......................................................................... 137 2.6.3 Documento (11). Panfleto da UPA “aos membros da UPA e a todos os nossos irmãos de Angola”. A partir de Leopoldville. Provavelmente de fins de 1960 ............................................................................... 138 2.6.4 Documento (12). Panfleto da UPA “A Todos Os Nossos Irmãos Vindos de Angola Bem Como A Quantos Ainda Residem em Angola”. A partir de Leopoldville. Provavelmente de 1960 .......................... 140 2.6.5 Documento (13). Panfleto da UPA “Associados da UPA Regozijai-vos”. Datado de 1 de Junho de 1960 ............................................................................................................................................................. 141 2.7 Os panfletos atribuídos a Agostinho Neto .................................................................... 143 2.7.1 Documento (14). Panfleto “Ao povo angolano. Há só um caminho para a resolução dos nossos problemas. A Independência do nosso país”. Angola é nossa”. Atribuído a Agostinho Neto. Provavelmente de 1960 ........................................................................................................................................................ 143 2.7.2 Documento (15). Panfleto “Um Ano de Cadeia Sem julgamento”. Atribuído a Agostinho Neto. Datado de 29 de Março de 1960 .................................................................................................................. 145 2.8 Panfletos anónimos ....................................................................................................... 147 2.8.1- Documento (16). Panfleto“Manifesto africano”I. Provavelmente de 1958 ....................................... 147 2.8.2 Documento (17). Panfleto “Manifesto Africano”II. Provavelmente de 1 de Janeiro de 1959 ............ 149 x 2.8.3. Documento (18). Panfleto “ Manifesto Africano ”III. Provavelmente de fins de 1958 ou princípios de 1959 ............................................................................................................................................................. 150 2.8.4. Documento (19). Panfleto “Aos africanos. O grito de luta pela liberdade”. Provavelmente de 1959 ..................................................................................................................................................................... 153 2.8.5 Documento (20). Panfleto “O Momento Aflito Que Atravessamos”. Provavelmente de 1957 ou 1958 ..................................................................................................................................................................... 156 2.8.6 Documento (21). Panfleto “Contra as prepotências Governamentais e imperialistas. Reforcemos a nossa unidade na luta pela liberdade”. Datado de 1959 .............................................................................. 158 Capítulo V. Crises, práticas políticas e lutas de classificação. A configuração do campo político angolano. (1960-1964).........................................................164 1. Considerações acerca da nossa abordagem......................................................................... 165 2. Da UPA à FNLA/GRAE..................................................................................................... 170 2.1 A constituição da UPA e a institucionalização, truncada, do capital político .............. 172 2.1.1 O Congo Leopoldville. Esboço de evolução política. ........................................................................ 175 2.2 A primeira crise da UPA. Dissidência e recomposição ................................................ 176 2.2.1 A objectivação do capital militar e nova investidura ou a (des) salvadorização /(des)bakonguização da UPA ............................................................................................................................................................. 180 2.3 Nova crise da UPA e nova delegação política. A constituição da FNLA e do GRAE . 181 2.3.1 A constituição do FNLA/GRAE ou duas novas delegações políticas ................................................ 183 3. O percurso de legitimidade do MPLA. Crise, capital político e questão racial .................. 187 3.1 A delegação política. A constituição do primeiro Comité director do MPLA ............. 188 3.2 Viriato da Cruz e a remodelação do Comité Director ou um segundo momento de delegação do capital político ............................................................................................... 190 3.3 A chegada de Agostinho Neto ou o homem providencial ............................................ 195 3.3.1 O início da crise no MPLA. O tempo da implosão............................................................................. 196 3.4 A investidura de Agostinho Neto e o agravamento da crise ......................................... 199 3.4.1 As relações MPLA/ FNLA ................................................................................................................. 202 3.4.2 O papel do Congo Leopoldville ......................................................................................................... 208 3.5 O tempo da explosão. As classificações assentes em propriedades rácicas/características somáticas como exemplo de lutas de classificações no seio do MPLA ............................. 213 3.5.1 A retórica do grupo Viriato ................................................................................................................ 213 3.5.2 A retórica do grupo Neto .................................................................................................................... 215 3.5.3 Os efeitos da crise do MPLA na questão da inserção dos classificados de brancos no espaço nacionalista angolano. Entre a inclusão e a exclusão .................................................................................. 217 3.5.3.1 A “Carta Aberta ao Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), subscrita por Nacionalistas Angolanos de Raça Branca” e as cartas de Jorge Pires. Indignação e compreensão. ....... 219 3.5.3.2 O lugar da FUA no espaço nacionalista angolano ...................................................................... 221 3.6 O fim da crise no MPLA ............................................................................................... 224 3.6.1 O Congo Brazzaville .......................................................................................................................... 225 3.6.2 A consagração de Agostinho Neto ou o corpo político reificado num médico .................................. 227 3.7 O estado latente da questão racial ................................................................................. 229 Capítulo VI. O período tripolar e o regresso da questão racial. (1966-1975) 233 1. Introdução ........................................................................................................................... 233 2. Dinâmicas das organizações armadas nacionalistas e evolução da luta anti-colonial. ....... 238 (1966-1974 )............................................................................................................................ 238 2.1 O percurso de legitimidade da UNITA. Ou a terceira força ......................................... 239 2.2 O percurso de legitimidade da FNLA ........................................................................... 244 2.3 O percurso de legitimidade do MPLA .......................................................................... 248 xi 3. 1972-1974. O regresso da questão racial no MPLA. A “crise de 1972” e a Conferência Inter-regional dos Militantes do Moxico. ............................................................................... 252 3.1 Alguns elementos que possibilitam situar a “Manifestação Político-Militar dos Militantes na II Região”. ..................................................................................................... 254 3.2 Caracterização da “Manifestação Político-Militar dos Militantes na II Região” ......... 257 3.2.1 Efeitos e limites da “Manifestação político-militar dos Militantes na II Região” no subcampo político MPLA .......................................................................................................................................................... 261 3.3 A Conferência Inter-Regional do Moxico ou o fim – relativo – da crise racial no seio do MPLA ................................................................................................................................. 262 4. A apropriação do espaço social colonial por parte do campo político angolano num quadro de transição para a independência. A legitimidade das armas. (1974-1975) .......................... 264 4.1 Mobilização do maior número, fidelidade e traição ou o modo como o campo político angolano se apropriou da questão racial. O exemplo da categoria branco ......................... 265 Capítulo VII. O tempo da “Dipanda”. A bipolaridade do campo. Do estado latente da questão racial à lei do Bilhete de Identidade. (1975- 1996) ...........271 1. Introdução ........................................................................................................................... 271 2. A consolidação do MPLA/Estado em tempo de guerra. 1975-1991 .................................. 276 2.1 - As condicionantes externas ........................................................................................ 277 2.2. A consolidação do MPLA/Estado ................................................................................ 279 3. Consolidação da UNITA em tempo de guerra. Ou a investidura do dom .......................... 286 3.1. As condicionantes externas .......................................................................................... 286 3.2 Da “longa marcha” à investidura do dom ..................................................................... 289 4. A II República ou a nova divisão do trabalho político. (1992-1996) ................................. 295 4.1 Estado das relações de força no campo político angolano em 1996 ............................. 299 5. A Lei do Bilhete de Identidade. Ou a reificação jurídica do estigma (?)............................ 302 5.1 Esboço contextual. (1992-1996) ................................................................................... 302 5.2. O debate na Assembleia Nacional sobre a lei do BI visto pela Acta da Assembleia Nacional .............................................................................................................................. 305 5.2.1. A raça no BI entre a inclusão e a exclusão ........................................................................................ 307 Conclusão ..........................................................................................................314 Fontes e Bibliografia .........................................................................................326 Fontes de Arquivo ................................................................................................................... 327 Fontes Impressas ..................................................................................................................... 329 Fontes orais. Entrevistas ......................................................................................................... 333 Bibliografia ............................................................................................................................. 334 Imprensa Escrita...................................................................................................................... 355 Audiovisuais ........................................................................................................................... 356 Fontes e Bibliografia On Line................................................................................................. 356 xii Índice de Figuras Figura 1 - Operacionalização dos conceitos de ideologia identitária, campo político e crise ...... 56 Figura 2 - Signatários dos estatutos da UPA .............................................................................. 173 Figura 3 - Bureau provisório da UPA que funcionou até 23 de Outubro de 1960. .................... 174 Figura 4 - Lista dos membros do Comité Central, Definitivo, Eleitos na Assembleia-geral de 11 de Março de 1961, nos termos do Artº 10 Cap IV – dos Estatutos da União das Populações de Angola de 1 de Julho de 1960 . ...................................................................................... 179 Figura 5 - Comité Director remodelado, provavelmente em Novembro de 1961 ...................... 181 Figura 6 - Signatários da Frente Nacional de Libertação de Angola .......................................... 185 Figura 7 - Lista dos membros do GRAE .................................................................................... 185 Figura 8 - Primeiro Comité Director do MPLA em Conakry, 1960 ........................................... 188 Figura 9 - Comité Director do MPLA saído da remodelação de Maio de 1962 . ....................... 194 Figura 10 - Comité Director do MPLA saído da “Conferência Nacional” em Dezembro de 1962 ............................................................................................................................................. 200 Figura 11 - Comité Político-Militar do MPLA saído da Conferência Nacional em Dezembro de 1962..................................................................................................................................... 201 Figura 12 - Classificação através da Estigmatização .................................................................. 207 Figura 13 - Resultados, por províncias nas eleições legislativas em Angola, 1992 ................... 298 Figura 14 - Partidos e número de deputados representados na Assembleia Nacional ................ 300 xiii xiv Siglas AASA - Associação Africana do Sul de Angola ACA - Associação Cívica de Angola ACOA- American Commitée on África AD – Aliança Democrática (coligação) AHNA - Arquivo Histórico Nacional - Angola ALLIAZZO - Alliance des Ressortissants du Zombo AN - Assembleia Nacional ANANGOLA - Associação dos Naturais de Angola ANC - African National Congress ANGOP - Agência Angola Press AREC - Association des Ressortissants de l’Enclave de Cabinda ASSOMIZO - Association Mutuelle des Ressortissant du Zombo BI- Bilhete de Identidade BN - Biblioteca Nacional BRINDE - Brigada Nacional de Defesa do Estado CA - Centro Africano CD – Comité Director CEA - Centro de Estudos Africanos CEA - Centro de Estudos Angolanos CEI - Casa dos Estudantes do Império CIA - Central Intelligence Agency CIAM - Centro de Imprensa “Aníbal de Melo” CIDAC - Centro de Investigação e Documentação Amílcar Cabral CMA - Clube Marítimo Africano CNE - Comissão Nacional Eleitoral CONCP- Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas CVAAR – Corpo Voluntário Angolano de Assistência aos Refugiados DOR - Departamento de Orientação Revolucionária ELA - Exército de Libertação de Angola ELNA - Exército de Libertação Nacional de Angola EPLA – Exército Popular de Libertação de Angola EUA - Estados Unidos da América FDA – Fórum Democrático Angolano FDLA - Frente Democrática para a Libertação de Angola FLEC - Frente de Libertação para o Enclave de Cabinda FNL - Frente Nacional de Libertação FNLA - Frente Nacional de Libertação de Angola FNLC- Frente de Libertação Nacional do Congo FpD – Frente para a Democracia FRA - Frente de Resistência Angolana FRAIN – Frente Revolucionária Africana para a Independência Nacional FRELIMO - Frente para a Libertação de Moçambique FUA - Frente de Unidade Angolana GE - Grupos Especiais GRAE - Governo Revolucionário de Angola no Exílio GURN - Governo de Unidade e Reconciliação Nacional IANTT – Instituto Arquivo Nacional da Torre do Tombo JDDA - Junta de Defesa dos direitos de África JURA - Junta Revolucionária de Luanda LA - Liga Angolana LNA - Liga Nacional Africana MAC - Movimento Anti-colonial MBO – Mission des Bons Offices de l’OUA MDA - Movimento Democrático de Angola xv MDB - Movimento Democrático de Benguela MDH - Movimento Democrático do Huambo MDIA - Movimento para a Defesa dos Interesses de Angola MIA - Movimento para a Independência de Angola MINA - Movimento de Independência Nacional de Angola MLA - Movimento de Libertação de Angola MLEC - Mouvement de Libération de l´Enclave de Cabinda MLN - Movimento de Libertação de Nacional MLNA - Movimento de Libertação de Nacional Angola MNA-Movimento Nacional Angolano MNC - Mouvement National Congolais MPLA- Movimento Popular de Libertação de Angola MPLA/PT - Movimento Popular de Libertação de Angola/Partido do Trabalho NGUIZAKO - Nguizani yá Kongo NTOBAKO - Origine du Peuple Bakongo OCA - Organização Comunista de Angola OIT - Organização Internacional do Trabalho ONG - Organização Não-Governamental ONU - Organização das Nações Unidas OUA - Organização de Unidade Africana PAG - Programa de Acção do Governo PAJOCA - Partido da Aliança da Juventude, Operários e Camponeses de Angola PCA - Partido Comunista Angolano PCDA - Partido Cristão Democrático de Angola PDA- Partido Democrático de Angola PDP-ANA - Partido Democrático para o Progresso da Aliança Nacional Angolana PIDE/DGS - Polícia Internacional de Defesa do Estado/Direcção Geral de Segurança PLD - Partido Liberal Democrático PLUAA - Partido da Luta Unida dos Africanos de Angola PNDA - Partido Nacional Democrático de Angola PRC - Partido Republicano Colonial PRD - Partido Renovador Democrático PRS – Partido de Renovação Social PSDA - Partido Social Democrático de Angola RDA - República Democrática de Angola RENAMO - Resistência Nacional Moçambicana RPA - República Popular de Angola RUA - Resistência Unida de Angola SDN - Sociedade das Nações SWAPO - South West African People’s Organization. TE - Tropas Especiais UA - União Africana. UE – União Europeia UGEAN - União Geral dos Estudantes da África Negra sob Domínio Colonial Português UN - União Nacional UNATA- União dos Naturais de Angola UNITA- União Nacional Para Independência Total de Angola UNTA-União Nacional dos Trabalhadores Angolanos UPA - União da Populações de Angola UPNA - União das Populações do Norte de Angola URSS - União das Repúblicas Socialistas Soviéticas ZML - Zona Militar Leste xvi Introdução Pretende-se com este trabalho compreender, no que concerne ao estudo das relações raciais na sociedade angolana e ao longo do período compreendido entre 1950-1996, as razões que concorrem para que determinadas classificações assentes na noção de raça tenham sido um recurso fundamental nas lutas políticas, nomeadamente, em processos de inclusão e exclusão. De entre as múltiplas classificações, optámos por reter aquelas que assentam em propriedades rácicas enquanto características somáticas1. Esta opção por um sistema de classificação assente em propriedades rácicas/características somáticas, deve-se em certa medida a uma certa percepção de que, este sistema de classificação desempenhou um papel fundamental no respeitante ao funcionamento, estruturação e hierarquização das populações e, consequentemente, na organização – ao longo da sua história – da sociedade angolana. Tendo em conta o contexto em que emergem e se desenvolvem, podemos considerar essas classificações como um princípio de dominação. Um princípio dinâmico que assenta, ao longo dos diferentes períodos que caracterizam a história da dominação colonial, numa tensão permanente entre integração e desintegração dos diferentes espaços sociais endógenos. Acresce a este exercício contraditório, do princípio de integração no espaço social colonial e de desintegração do espaço social dominado, a delimitação de um quadro estrutural de relações económicas, culturais e políticas que concorrem para a emergência de contextos sociais (família, escola, exército, etc.) nos quais se torna possível a miscigenação biológica e/ou cultural entre grupos sociais. Com efeito, podemos por exemplo ler nas estatísticas coloniais classificações do tipo branco, pardo e negro; ou ainda branco, mestiço e negro que são resultado da agregação de indivíduos em função, sobretudo, da cor da pele. Sendo esta última, frequentemente, associada à noção de raça. Esta delimitação contabilística dos grupos vai-se tornando cada vez mais complexa à medida que o Estado colonial vai introduzindo, na construção dessas categorias estatísticas, novas categorias, de ordem jurídico-estatutária, como por exemplo: indígena e cidadão2. 1 É uma classificação que associa fenótipos, com relevância para a cor, a uma noção de raça. Ver Estatuto dos Indígenas das Províncias de Angola Guiné e Moçambique, em 1954. Decreto-Lei nº39.666 do Ministério do Ultramar, Diário do Governo, 1ª Série, nº 110, de 1954. 2 1 Portanto, a emergência destas classificações e o seu desenvolvimento enquanto categorias políticas e princípio organizador do mundo social, desenrola-se num contexto de dominação colonial. A consideração dessa génese impele-nos a interrogar, também, acerca das razões da sua permanência. Julgamos que essas classificações, objectivadas em relações sociais (em instituições diversas como o Estado, a família e a escola) e incorporadas pelas populações do espaço colonial, sob a forma de categorias práticas e cognitivas, produziram efeitos quer nas dinâmicas das lutas nacionalistas quer na construção da sociedade angolana independente3. Aliás, não é por acaso que, na sociedade angolana actual, determinadas classificações de ordem racial como mulato, cabrito, fronteiras perdidas, cafuzo, etc., façam ainda parte do léxico comum. Trata-se, quanto a nós, do resultado de processos de interiorização da própria dominação4. A constatação da perenidade, no todo ou em parte, de um sistema de classificação, produzido pelo estado colonial e efectivado no exercício da violência física e simbólica legítimas, até aqui delineada de um modo ainda um tanto ou quanto impressionista, vai servirnos como base heurística para a nossa proposta: Contribuir para a compreensão dos efeitos que determinadas classificações assentes em propriedades rácicas/características somáticas tiveram e têm na sociedade angolana, estudando-os do ponto de vista da construção do espaço político angolano e em contextos históricos específicos5. A escolha do arco temporal, entre 1950 e 1996 justifica-se porque no decurso de contextos históricos específicos, de entre os quais, momentos crise, as propriedades rácicas/características somáticas são repetidamente reavaliadas em articulação com a dinâmica do campo político angolano. As crises são oportunidade para uma ampla observação de práticas sociais (aqui, no caso de práticas políticas), muitas vezes pouco perceptíveis em contextos de 3 Reconhecendo, no entanto que esta se estruturou segundo outros princípios de dominação nomeadamente, socioeconómicos, políticos, linhageiros, etc. Contudo, as classificações raciais permanecem nos dias de hoje a pautar distinções sociais entre os indivíduos. Facto que pudemos constatar ao longo da nossa vivência em Angola. 4 O que nos remete para o conceito de habitus: “ Condicionamentos associados a uma classe particular de condições e existência produzem sistemas de disposições duráveis e transponíveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, ou seja, como princípios geradores de práticas e representações que podem ser objectivamente adaptadas ao seu fim, sem que isso suponha que se vise conscientemente fins ou que se vise o domínio expresso das operações necessárias para atingi-los; objectivamente “reguladas” e “regulares” sem que, por isso, sejam produto da obediência a regras. Tudo isto se apresenta como colectivamente orquestrado sem que isso seja produto da acção organizada de um chefe de orquestra.” Quanto aos limites da sua aplicação ver o mesmo autor (Bourdieu (1980: 89). 5 Reconhecemos que esta proposta está enquadrada pela complexidade histórica e sociológica do espaço social angolano, que não se reduz, obviamente, à construção de relações sociais com base em classificações que temos vindo a referenciar. Reis (2002: 3). 2 estabilidade. Assim, e como veremos mais adiante, o período compreendido entre 1950 e 1996 é atravessado por sucessivas crises. Crises que se traduzem por constantes reavaliações identitárias. Mas a justificação para esta baliza cronológica, encontramo-la também num conjunto de acontecimentos que marcam o período em estudo. É na década de cinquenta, que se assiste, no quadro das políticas de classificação por parte do Estado colonial, à consolidação estatutária das categorias indígena e cidadão; consolidação que encontra tradução jurídica com a última promulgação do Estatuto dos Indígenas das Províncias de Angola, Guiné e Moçambique6. É igualmente nesta década, que se começam a sentir um dos efeitos das políticas de reforço do povoamento branco em Angola, a saber, as tensões raciais entre colonizadores e colonizados7. Ainda nesta década, é desde já pertinente sublinhar a emergência de dois tipos de discursos que, na sua interdependência, concorrem para a construção do nacionalismo da modernidade8. Referimo-nos por um lado, aos movimentos cultural-literários, de entre os quais podemos destacamos no dealbar da década de cinquenta o Movimento dos Jovens Intelectuais de Angola e que tem como suportes institucionais a ANANGOLA - a Associação dos Naturais de Angola e a revista Mensagem9. Por outro lado, referenciamos a existência de um discurso político sustentado por organizações políticas, que embora incipientes, contestam não só o regime colonial como formulam propósitos em torno da questão identitária e, nomeadamente, da identidade nacional. 6 Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias de Angola Guiné e Moçambique, Decreto-Lei n.º 39.666 do Ministério do Ultramar, publicado no Diário do Governo, 1.ª Série, n.º 110, de 1954. 7 Foi portanto num contexto de tensão racial que o Estado colonial recorreu a uma nova ideologia: o lusotropicalismo. Relativamente ao nosso trabalho, o luso-tropicalismo leva-nos a perceber que as classificações assentes na noção de raça reflectem a complexidade conflitual da sociedade angolana, que não se reduz a uma luta de classificações em torno de brancos e negros ou indígenas e civilizados, mas pelo contrário, se organiza em torno de outras classificações tais como mestiço e negro, mestiço e branco; indígena e assimilado, ou, entre civilizados a priori e civilizados a posteriori (assimilado). Esta questão será desenvolvida nos capítulos seguintes. 8 Entendido aqui, grosso modo, como a veiculação de um conjunto de crenças e símbolos que exprimem a identificação de uma população com um território delimitado por fronteiras físicas, com um Estado e seu respectivo governo. Acerca do nacionalismo ver, entre outros, Hobsbawm (1998); Smith (1997); Cordelier (Coord) (1998) e Andrade, (1998). 9 Não confundir com a revista publicada em Portugal pela CEI – Casa dos Estudantes do Império. A Revista Mensagem era uma publicação da ANANGOLA entre 1951 e 1953. Nesta revista é possível encontrar escritos de Viriato da Cruz, Agostinho Neto e Mário de Andrade. Figuras que se destacariam no espaço nacionalista angolano e de que falaremos mais adiante. Ver Oliveira (1997:371-394). 3 É na interdependência entre estes dois pólos – cultural e político – que se geram um conjunto de representações identitárias (frequentemente em torno da valorização do “homem negro” e, por conseguinte, em torno da reavaliação das propriedades rácicas/características somáticas) que são também práticas de questionamento dos processos de dominação colonial e que, progressivamente, se materializam, sobretudo nos finais da década de cinquenta, no grupo político. A década de cinquenta assinala, em nosso entender, a passagem de uma cultura de contestação do arbitrário colonial para uma cultura de reivindicação territorial como projecto político10. A década de sessenta é assinalada pelo início da luta armada por parte de duas organizações nacionalistas (MPLA - Movimento Popular de Libertação de Angola e UPA União das Populações de Angola), cujas relações são estruturantes de uma configuração bipolar no espaço nacionalista angolano. Esta década caracteriza-se, sobretudo, por um duplo conflito: o que opõe colonizadores e colonizados e o que opõe a FNLA - Frente Nacional de Libertação de Angola (frente constituída, a partir de 1962, pela UPA e PDA - Partido Democrático de Angola) e o MPLA - Movimento Popular de Libertação de Angola11. E, como veremos mais adiante, se traduz também por uma luta de classificação/estigmatização, com recurso às propriedades rácicas/características somáticas. Assiste-se nessa mesma década, coincidindo com o desencadear da luta armada, ao reforço da ideologia luso-tropicalista, e, no plano jurídico, à abolição, durante a vigência do então Ministro do Ultramar Adriano Moreira, do Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias de Angola, Guiné e Moçambique12. É ainda na década de sessenta que se podem vislumbrar significativas mudanças económicas e sociais no espaço colonial: desenvolvimento do capitalismo de iniciativa estatal, reforço do povoamento branco, investimento em infra-estruturas, industrialização e urbanização aceleradas, alargamento do ensino às populações africanas, explosão demográfica, crescimento dos afluxos de capitais e, provavelmente, surgimento de uma incipiente burguesia africana. 10 Podemos assinalar algumas organizações políticas. PCA - Partido Comunista de Angola, MIA - Movimento para a Independência de Angola e UPA - União das Populações de Angola. Esta última surge menos ligada ao grupo cultural da ANANGOLA ou à Revista Mensagem. 11 Reis (2002). 12 Decreto-lei nº 43893, de 6 de Setembro de 1961. Léonard em Bethencourt e Chaudhuri (2000: 48). 4 Já no final desta década, emerge no espaço nacionalista angolano uma terceira força política, a UNITA - União Nacional Para Independência Total de Angola, criada e liderada por um ex-dirigente da FNLA, Jonas Malheiro Savimbi. A década de setenta tem um momento marcante, a proclamação no dia 11 de Novembro de1975, da independência de Angola num contexto de guerra civil que envolve as três principais organizações nacionalistas angolanas. Uma das consequências desta conflitualidade seria o início do declínio político-militar da FNLA e a afirmação da UNITA como principal organização político-militar rival do MPLA, o qual iria assumir o controlo do novo Estado independente. A década de oitenta é, por sua vez, marcada pelo envolvimento, cada vez maior, das potências mundiais e regionais no conflito político-militar angolano. Referimo-nos ao papel desempenhado pelos EUA, URSS, Cuba e África do Sul no conflito militar que opunha o MPLA e a UNITA. A década de noventa caracteriza-se pelo processo de abertura política e de institucionalização do multipartidarismo em Angola, num contexto internacional de desmoronamento da URSS, e do fim dos regimes ditos socialistas que vigoravam na Europa Central e do Leste. O que não impediu, contudo, que em Angola se vivesse um estado de permanente tensão entre a guerra e a paz. Mas a década de noventa adquire um especial significado para nós. Tal deve-se ao facto de em 1996 ter sido promulgado a Lei do Bilhete de Identidade, o qual inclui a raça como um dos elementos de identificação. Assim, duas décadas após a independência, foi publicado no Diário da República, a lei nº 17/1996 de 8 de Novembro que regulamenta as indicações a aparecer no Bilhete de Identidade. No artigo 4º desta lei, podemos ler quais os elementos de identificação do titular que são exigidos: nome completo, filiação, residência, naturalidade, profissão, altura, sexo, raça, estado civil, impressão digital, data de nascimento e fotografia13. Mas este simples reparo remete, em certa medida, para uma última, mas não menos importante, justificação da nossa escolha: a constatação de uma certa frequência na (re)utilização de uma classificação assente num ultrapassado e controverso conceito: o de raça. O que nos leva, na perscruta das razões desta prática classificatória, a formular duas questões. Uma respeitante à prática política e outra, embora relacionada com aquela, no âmbito das relações entre conhecimento científico e reflexividade social. 13 As categorias identificadoras são raça negra, raça branca e raça mista. 5 A primeira consiste na seguinte interrogação: a que se deve esta regularidade, na utilização por parte dos nacionalistas angolanos de um sistema de classificação assente na noção de raça que servira, juntamente com outras classificações produzidas ao longo do período colonial, para identificar, delimitar, controlar e até excluir grupos? A segunda questão reporta-se, não só a um provável mau uso da noção de raça mas, ao próprio conceito em si: como foi possível introduzir o elemento identificador racial no Bilhete de Identidade, numa época em que o conceito de raça fora cientificamente abolido? Esta segunda questão reenvia para um contexto de “imperialismo universal”14. O da produção discursiva europeia/ocidental sobre a raça. Torna-se portanto necessário caracterizar, ainda que de modo sucinto, a construção do conceito de raça enquanto elemento de classificações políticas, e factor explicativo de certas propostas científicas. Grosso modo, os séculos XVIII e XIX caracterizaram-se por uma divisão dos homens em raças, cujos critérios advêm do corpo (cor da pele, textura do cabelo, formato do rosto, dentes, olhos, crânios) dando fundamento às teorias que postulam a existência na comunidade humana, de estádios civilizacionais, culturais, psicológicos e morais diferenciados15. Podemos assim, considerar que as explicações acerca da diversidade humana assentaram, entre outros, nos seguintes pressupostos16: • existência real de raças humanas constatáveis a partir dos caracteres físicos imediatamente observáveis. • “coincidência”, realçada pela biologia, desses caracteres com características morais ou culturais. • hierarquização dos grupos classificados com base em valores universais oriundos da Europa (eurocentrismo). 14 Bourdieu (2001: 87). Até ao século XVI a expressão raça tinha como referente significados prévios associados quer à pecuária quer à linhagem e a ideia de pertença a uma linhagem, a uma linha de descendência que se estende muitas vezes a todo um grupo social hegemónico (raça nobre, etc.). A partir do século XVI, o horizonte semântico da noção raça alarga-se. E, se até então servira para definir um grupo restrito que se autodenominava como tal, o termo raça vai adquirindo o estatuto de conceito à medida que se constrói uma tipologia de povos e culturas estranhas ao mundo europeu e cristão. Fredricksson (2004:48-49). Todavia a palavra raça só adquire expressão científica com as ciências naturais, na classificação dos seres vivos, com a noção de espécie e suas variedades. Sacarrão (1989: 150). 16 Marques (1995: 42). 15 6 Ao físico François Bernier17 (1684) é atribuída a primeira tentativa de classificação das raças da humanidade, dividindo as populações mundiais em grupos que denominou por raças: Europeus, do Extremo Oriente, Pretos e Lapões18. Lineu19 caracterizou o homem europeu (branco) como vivo, claro, inventivo e governado por leis; o homem americano (vermelho) como tenaz, alegre, colérico e governado pelo hábito; o homem asiático (amarelo) como austero, avaro, altivo e governado por opiniões; o homem africano (negro) como indolente, fleumático e governado pelo capricho. Autores como Buffon20 e Blumenbach21 servem-se do conceito de raça para elaborar uma tipologia dos grupos humanos. O primeiro atribui graus variáveis de inferioridade aos grupos não europeus. Este autor apresentou uma classificação das diferentes raças humanas; segundo ele existiam as raças Lapónica, Tartárica, Sul-asiática, Europeia, Etiópica e Americana22. No seu entender: “as 23 diferenças de cor, de estatura, etc., são devido ao ambiente e que, fixando-se, são perpetuadas nas gerações” . Blumenbach considera que para além de critérios classificatórios como a religião, os costumes e a personalidade, a cor da pele permanece o principal diferenciador das populações. Assim, regista cinco raças humanas: caucasiana, mongólica, etíope, americana e malaia; sendo a caucasiana a mais bela, a mais nobre e a mais antiga das raças24. Outro cientista, Cuvier25, entende que a proporção e a feição física “mais bela” da raça branca coincide com a superioridade do “génio” e do gosto da mesma raça e com o facto de ela já ter subjugado grande parte do globo: “Não foi por acaso que os caucasianos ganharam 17 François Bernier (1625-1688), Viajante, antropólogo e médico francês. A sua obra Nouvelle division de la terre par les differentes especes our races quil’ habitent publicada em 1684 é considerada a primeira classificação moderna das raças humanas Encyclopaedia Universalis AD a Dieu (1990:400). 18 Cunha (1997: 51-52); Sacarrão (1989: 114-115). 19 Naturalista sueco (1707-1778). Autor do livro Systema naturae per regna tria naturae (1735). Sacarrão (1989: 115-116); Encyclopaedia Universalis corpus 13 (1992:863-864). 20 Naturalista francês (1707-1788) que teve a intuição da evolução das espécies e da transformação do universo. Autor da obra Histoire naturelle, générale et particulière, em 36 volumes (1749-67 e 1774-89) Encyclopaedia Universalis corpus 4 (1993:632-633). 21 Naturalista e médico alemão (1752-1840). Classificou a raças segundo o critério da cor da pele na sua obra De generis humani varietate nativa liber(1776). Dictionary of Scientific biography Vol. 1 (1980: 203-204). 22 Sacarrão (1989: 116). 23 Sacarrão (1989: 116). 24 Reis (2002: 8). Um dos critérios de classificação racial, utilizada por este cientista, foi a craneometria: Cunha (1997: 52) 25 Zoólogo e palentologista francês (1769-1832). Escreveu Discours sur les revolutions de la surface du globe (1815). Encyclopaedia Universalis corpus 6 (1993:977-979). 7 domínio sobre o mundo e operaram o mais rápido progresso nas ciências.” 26 . Este cientista apreendia as raças como hierarquia, obviamente, com os brancos no topo e os negros na base. O mesmo considerava que as diferenças de cultura e de qualidade mental eram produzidas pelas diferenças físicas.27 Por fim, um último exemplo, Artur Gobineau28 entende que a força de uma raça está na sua capacidade de absorver outras raças ou outros povos, tendo como fatal consequência a degenerescência das suas capacidades hereditárias provocadas pela mistura e mestiçagem.29 Este processo explicaria a morte das civilizações desaparecidas, ao mesmo tempo que anunciaria a decadência geral da humanidade. “A preocupação do Gobineau centra-se na degeneração. Celebra o vigor da raça dos senhores e afirma que “o antagonismo irreconciliável entre as diversas raças e culturas encontra-se claramente estabelecido pela história”30; apesar de tudo, para evitar desaparecer nas massas que governa “a família branca necessita de acrescentar ao poder do seu génio e coragem uma certa garantia do número31 e, consequentemente, perde parte da sua potência, salvo se reforçada com migrações posteriores de outras populações arianas”32. Todavia predominava, no século XIX, uma concepção fixista das espécies, a saber das raças, pois, ignorava-se ainda os mecanismos produtores de modificações ao nível das estruturas somáticas das populações33. Esta concepção seria posta em causa pela proposta do modelo evolucionista de Charles Darwin,34 que tornaram conhecidas as causas que regem a diversidade específica e racial. Com 26 Reis (2002: 8). Acerca de Cuvier ver também Banton (1979: 44-45). Banton (1979: 45). 28 Arthur Gobineau, diplomata e escritor francês (1816-1882), autor do Essai sur l’inegalité des races humaines (1853) Banton (1979:53); Encyclopaedia Universalis corpus 10 (1992:547-542). 29 Esta fatalidade civilizacional levou a que Gobineau, diplomata fosse considerado um pioneiro de teorias racistas tais como a higiene social, etc. Contudo, segundo Banton (1979: 53): “Este autor precisa de ser estudado porque tem sido, a maior parte das vezes, apresentado como poço envenenado donde brotou toda a teorização racista posterior, sem que se tenha prestado atenção aos seus antecedentes no pensamento do século XIX.” 30 Gobineau (1853:181), cit. por Banton (1979: 55). 31 Gobineau (1853:393), cit. por Banton (1979: 55). 32 Banton (1979: 55) Encontramos aqui um pensamento que se aproxima das ideias poligenistas. Com efeito, Esta construção do Outro que considera o nós como a medida dos outros, não era, contudo, consensual, como atestam os conflitos entre o dogma cristão da monogénese, (descendência unilinear que parte de Adão e Eva) e da poligénese ligada à diversidade das raças humanas e que postulava origens ou criações separadas das mesmas. Marques (1995: 41). Ver também Sacarrão (1989: 165). 33 Pereira (2001: 32-33). 34 Charles Darwin (1809-1882), naturalista britânico propôs uma teoria segundo a qual os organismos vivos evoluem gradualmente através da selecção natural. O seu livro On the Origin of Species by Means of Natural Selection, or the Preservation of Favoured Races in the Struggle for Life). Foi publicado em 1859. Dictionary of Scientific biography Vol. 3 (1981: 565-576). 27 8 efeito, grosso modo, Darwin considerava que a evolução das espécies vivas se processava pela selecção natural dos mais aptos, sendo úteis, neste processo, as variações apresentadas por certos indivíduos na medida em que elas lhe conferem vantagem na luta pela sobrevivência35. Um dos efeitos perversos da teoria da selecção natural é possibilitar uma leitura política ao aplicar-se ao estudo das sociedades humanas o princípio de sobrevivência dos mais aptos (darwinismo social). Efeito perverso que seria complementado pela “contribuição da genética que iria fundamentar a análise das populações apoiando-se, não nos caracteres físicos, mas sim nos caracteres transmissíveis pela hereditariedade”36. Torna-se assim, possível, a emergência de doutrinas que apelam para um racismo científico37. Tal como afirma um autor: “Na viragem do século XX, o conceito de raça está plenamente difundido por todos os campos do saber e do agir. (...) Será necessário chegar a 1945 para a humanidade se interrogar global e simultaneamente sobre a validade explicativa de um conceito e sobre a sua aplicação política”38. É a partir da circulação destas ideias que tipificam, em certa medida, um processo de racialização do mundo que se pode abordar em Angola, a questão das classificações “raciais” 39. Classificações indissociáveis, “Do lado mais sombrio do Iluminismo, que via no signo africano algo único, e até mesmo indestrutível, que o separava de todos os outros signos humanos. A melhor testemunha desta especificidade era o corpo negro, que supostamente não continha nenhuma forma de consciência, nem tinha nenhuma das características da razão ou da beleza. Consequentemente, ele não poderia ser considerado um corpo composto de carne como o meu, porque pertenceria unicamente à ordem da extensão material e do objecto condenado à morte e à destruição. A centralidade do corpo no cálculo da sujeição política explica a importância dada, ao longo do século XIX, pelas teorias da regeneração física, moral e política dos negros e, mais tarde, dos 35 Gaspar (2007: 64). Convém salientar que: “As inúmeras classificações das raças sempre passaram pelo estabelecimento de uma tipologia comportamental para cada raça e que supostamente as diferenciaria entre si. Tais diferenças seriam tão biologicamente profundas quanto a variação da pigmentação da pele”. Mota. (1997: 34) e Sacarrão (1989: 150-151). 37 Tal como o eugenismo, que sustenta a melhoria do património genético das espécies vivas, advoga o impedimento da procriação de indivíduos inadaptados ou daqueles em que se acredita serem portadores de genes nefastos, encorajando o cruzamento entre indivíduos mais dotados. Mais tarde o discurso pseudo-científico sobre a higiene social acompanhará a ascensão do nazismo na Alemanha e legitimará a eliminação de todo o ser considerado inferior. Marques (1995: 45). 38 Marques (1995: 45). 39 Segundo Banton (1979: 30) “Havia um processo social, que poderia ser denominado racialização, pelo qual se desenvolveu um modo de categorização, aplicado com hesitação nos trabalhos históricos europeus, e depois mais confiadamente, às populações do mundo”. Segundo Cabecinha (2002: 61) citando (Miles,1989/1995): “O termo ‘racialização’ começou a ser utilizado a partir da década de setenta para fazer referência a um processo político e ideológico pelo qual determinadas populações são identificadas mediante referência directa ou indirecta às suas características fenotípicas, isto é, este termo refere-se à utilização da ideia de ‘raça’ enquanto estruturador da percepção de determinada população”. 36 9 40 judeus” . Não se pode portanto conceber a construção do espaço colonial em Angola descurando um conceito de raça que fundamentou uma relação de dominação que partia do pressuposto de que o branco europeu era superior ao negro africano. O presente trabalho organiza-se em torno de sete capítulos divididos em duas partes. A primeira trata de questões de ordem teórica e metodológica que orientam o nosso trabalho, e a segunda parte remete para o que constitui a sua dimensão propriamente substantiva. Na primeira parte, abordamos um conjunto de questões relativas à construção do objecto de investigação e a estratégia metodológica seguida (Capítulo I). Inserimos ainda, nesta parte, alguns fragmentos historiográficos que concorrem para a compreensão da construção do espaço colonial em Angola. (Capítulo II) A segunda parte trata das questões substantivas da nossa tese, articulando e problematizando uma relação entre contextos de crise, dinâmicas do campo político angolano e propriedades rácicas/características somáticas nomeadamente no respeitante à utilização destas últimas como classificação política. Começámos por apresentar (Capitulo III, 1945 -1963) um conjunto de factores políticos e ideológicos, de ordem externa e interna, que do nosso ponto de vista concorrem para a compreensão da formação e dinâmica do espaço nacionalista angolano, a saber, guerra-fria, panafricanismo, não-alinhamento e criação da OUA -Organização de Unidade Africana. Sendo os de ordem interna, a política colonial e a caracterização do espaço social colonial. No capítulo IV (1956-1960) abordamos uma das questões nucleares da nossa dissertação: a reavaliação das propriedades rácicas/características somáticas. Neste período denominado de fase panfletária, adquire grande importância, na política de contestação anticolonial, o panfleto como instrumento de enunciação. O capítulo V (1960-1964) é constituído por dois pontos principais: o percurso de legitimidade da UPA/FNLA e o percurso de legitimidade do MPLA. Veremos igualmente como 40 Mbembe (2001: 179) http://www.scielo.br/pdf/eaa/v23n1/a07v23n1.pdf. Convem recordar que: “A cor da pele era nos séculos XVII e XVIII, o carácter mais significativo e por vezes exclusivo. Aliás, as apreciações sobre o negro africano foram sempre mais depreciativas e aviltantes do que os emitidos relativamente à generalidade dos outros povos não brancos, o que não deixa (em parte) talvez de representar como que uma justificação para a escravidão maciça de que foi alvo, e um fenómeno também de demarcação em relação em relação a cor da pele do Branco, sinal associado ao preconceito da superioridade racial.” Sacarrão (1989: 119). 10 o percurso de legitimação destas duas organizações é pontuado por sucessivas crises41. São crises que remetem não só para práticas políticas mas, também para lutas de classificação em torno das propriedades rácicas/características somáticas. Mas este período tem a particularidade de assinalar um irreversível processo de configuração e estruturação do campo político angolano O capítulo VI (1966-1975) assinala a emergência de uma terceira força político-militar. A UNITA- União Nacional para a Independência Total de Angola. Este capítulo abrange três pontos principais: o percurso de legitimidade de cada uma dos três movimentos nacionalistas armados; o regresso da questão racial no seio do MPLA num quadro de imobilismo político e militar; e a apropriação, num quadro de transição para a independência, pelas três organizações armadas nacionalistas da questão racial, nomeadamente no que respeita à utilização da categoria branco. O capítulo VII (1975-1996) engloba quatro pontos principais. Sendo que os dois primeiros abrangem um sub período que se estende de 1975 até sensivelmente 1991. No primeiro ponto apresentamos uma caracterização do percurso do MPLA desde a proclamação da independência até à sua consolidação como partido/Estado. No segundo ponto, daremos saliência ao processo de consolidação, como força políticomilitar, da UNITA no campo político angolano. Os terceiro e quarto pontos abrangem um sub período que vai de 1991 até 1996. No terceiro ponto é dado enfoque à nova divisão do trabalho político como consequência da introdução de um novo regime político assente no sistema multipartidário. No último ponto, tentamos descortinar as razões que concorrem para aprovação da denominada Lei do Bilhete de Identidade. Lei que tem a particularidade de incluir, como elemento de identificação do titular do Bilhete de Identidade, categorias raciais como negro, misto e branco. Por fim não poderíamos deixar de inserir neste trabalho um anexo constituído por dois corpus heurísticos fundamentais. Uma cronologia, dividida por capítulos que tem o seu início no capítulo IV e que se estende até ao capítulo VII. Sendo que a mesma tem a particularidade de sublinhar em itálico os momentos de utilização de categorias raciais. E, um corpus documental ordenado de forma diacrónica, de modo a reforçar a compreensão do nosso trabalho. Optamos 41 Convém sublinhar que não é somente pelo facto de cada uma das organizações ser um espaço de crise que o campo nacionalista se torna um espaço de crise, mas, é também devido à relação conflito/competição entre as duas organizações na luta pela hegemonia do mesmo espaço. 11 por escolher os documentos “mais representativos” dos capítulos abordados. Os documentos são provenientes não só do nosso arquivo pessoal mas de trabalhos realizados por outros pesquisadores. Reconhecendo uma certa arbitrariedade na escolha da documentação e na elaboração da cronologia procurou-se não fugir ao controlo heurístico pois, esse trabalho, apesar dos seus limites, é também um exercício de objectivação. 12 PRIMEIRA PARTE – PROBLEMÁTICA. ENQUADRAMENTO TEÓRICO E METODOLÓGICO. ESBOÇO HISTORIOGRÁFICO 13 14 Capítulo I. Problema, construção do objecto de investigação e estratégia metodológica 1. Do problema à pergunta de partida As classificações constituem conjuntos tendencialmente coerentes entre si, com lógicas internas de organização e de desenvolvimento,42 pois, a prática de classificar implica a produção de categorias (categorização). Ou seja, visa-se o carácter orgânico arrumado destes quadros mentais43. No entanto, classificar obedece sempre a um arbitrário artificial. Trata-se de um artificialismo que pretende impor uma certa ordem no que concerne a variabilidade dos seres vivos. “A realidade não comporta as unidades e categorias que o classificador inventa. Classificar é uma exigência 44 da mente, em parte inata, em parte (considerável) resultante da educação” . Classificar é portanto um acto social que se liga às nossas estruturas mentais. Daí a pertinência do estudo das condições sociais de produção das classificações45. Segundo um outro autor: “logo que se observa um conjunto complexo como o dos homens, sente-se a necessidade de proceder a classificações e reagrupamentos e de incluir na mesma categoria os indivíduos que 46 parecem mais semelhantes … Indo mais longe, pensar o mundo, as coisas, implica organizar, classificar, quer sejam animais plantas etc” Acontece, contudo, que quando se trata de classificar seres humanos, a classificação objectiva, como instrumento de ordenação da realidade torna-se subjectiva porque a finalidade não consiste em aperfeiçoar métodos de classificação de indivíduos que permitam eventualmente definir grupos relativamente homogéneos. Ou seja, o acto de ordenar e organizar os seres humanos assente em critérios de semelhança e diferença, tem por finalidade comparar, atribuir um valor, estabelecer uma hierarquia e, de preferência, excluir47. 42 Hespanha (2003: 824). Hespanha (2003: 824). 44 Sacarrão (1989: 111). 45 Entrevista concedida pela socióloga Maria do Céu Carmo Reis em 09/2008. A problemática das classificações, e a sua importância para o estudo da sociedade angolana, foi constantemente enfatizada por esta socióloga. A opção por esta perspectiva é devedora das inúmeras conversas que tivemos com a mesma. 46 Jacquard (1989: 73). 47 Jacquard (1989: 74). Será este o sentido que daremos quando nos estivermos a referir ao arbitrário classificatório. 43 15 Podemos assim considerar que a dominação colonial portuguesa não se furtou à produção de um conjunto de classificações que, embora ocultando estratégias muitas vezes contraditórias, assentaram igualmente na hierarquização e na exclusão. Com efeito o pensamento europeu dos séculos XVIII e XIX influenciou o modo de definir os negros por parte dos portugueses. Tal como nos outros países da Europa, a definição dos negros partia do pressuposto de que eram inferiores, correspondendo o negro africano ao último degrau das três fases do progresso da humanidade, ou seja, civilização para os brancos, barbárie para os amarelos e selvajaria para os negros. Tal Não impediu, contudo, a emergência de uma nova categoria racial: o pardo ou mestiço, produto da miscigenação biológica entre o europeu e o africano: “Nos primórdios da ocupação e colonização portuguesa em Angola, o cruzamento das 48 raças branca e negra foi algo que, se não incrementado, também não foi, politicamente travado acidental, a mestiçagem torna-se fenómeno usual e acessório necessário da colonização” 49 . Inevitável, mas . Todavia isso não impediu que a consciência de raça, presente desde os primeiros contactos com os portugueses, se traduzisse, numa prática classificatória que dividia as populações segundo a cor da pele50. Apresentamos um breve esboço classificatório, na diacronia, que exemplifica, em certa medida, um longo processo de “invenção das populações”51. Em 1754 o rei de Portugal D. José, através do Conselho Ultramarino decidira reforçar a proibição, de entrada no sertão daqueles que estavam a criar instabilidade no negócio de escravos. Estes foram classificados do seguinte modo: “brancos”, “mulatos” e “pretos calçados”52. O governador D. António de Lencastre, (1772-1779) nos mapas de população de Luanda que enviou à coroa, apresentou uma divisão da população dos três grupos somáticos em cinco classes53: Primeira classe: “Do número de Homens Brancos estabelecidos, ou assistentes na cidade de São Paulo da Assumpção e nos mais Portos de Mar de Reino de Angola”. 48 Vera Cruz (2005: 121). Vera Cruz (2005: 121), citando José Gonçalo de Santa Rita. 50 Dias (1998: 350-351). 51 Le Brás (2000). 52 Exposição e catálogo do Arquivo Histórico Nacional. “A evolução das fronteiras de Angola” (1997: 28). Note-se que a há uma divisão estatutária no seio dos classificados de negros. Num texto de 1773 é possível vislumbrar o seguinte registo da população: “pessoas brancas”, “pessoas pardas”, “pessoas pretas livres”. Mourão (2006: 51). 53 Couto (1972:110), (Arquivo Histórico Ultramarino - Angola, Cod. 472, 1757-1791). Citado Por Mourão (2006:51). 49 16 Segunda Classe. “Do número dos Homens Pardos Livres, residentes nos mesmos lugares”. Terceira Classe. “Do número dos Negros também livres e residentes nos mesmos lugares”. Quarta Classe. “Do número dos Homens Pardos escravos, que assistem com os seus Senhores, nos mesmos lugares”. Quinta Classe. “Do número dos Negros também escravos, que da mesma sorte assistirem com os seus 54 senhores” . No ano de 1778, durante a vigência do mesmo governador, encontramos uma forma curiosa de catalogação social: “filhos de pais brancos, filhos de pardos forros, filhos de pardos escravos, filhos de pretos forros, filhos de pretos escravos”. Trata-se de um classificação que apresenta uma distinção social em torno de dois grupos: os “forros” ou “livres” e os “escravos”, que tanto podiam ser mestiços como negros55. Mas outros critérios foram sendo introduzidos. Assim, e provavelmente em finais do século XVIII, um autor apresentou uma divisão da população: “em três castas diferentes, huma de Europeus, outra de Indígenas e a terceira formada da mistura das duas, primária, ou sucessiva: designadas pois estas castas pela apparência, podem chamar-se branca, negra, parda ou fusca». Sendo que: a primeira consta da maior parte dos Empregados públicos, civis e militares, de alguns negociantes, de que o Capitam General costumava levar da ilha dos Açores, e de degredados que servem para recrutar a tropa e para outros empregos de que se tornarão 56 dignos por sua aptidão e comportamento” . Num mapa estatístico de 1866, encontramos a seguinte designação: “filhos do país”, “naturais do reino e ilhas adjacentes”, “naturais das colónias portuguesas”. Para Mourão, emerge uma distinção que, entre “filhos do país” e “naturais do reino e ilhas adjacentes”, remete para uma certa visão autonomista, pelo menos 57 ao nível cultural” . É possível vislumbrar, num mapa da população de 1897, os termos “europeus” e “africanos”58. No levantamento estatístico de 1923 encontramos as designações “brancos”, “mistos” e “pretos”59. 54 Mourão (2006: 51). Para este autor, a relação raça/classe teve sempre importância nos vários contextos históricos; importância que se materializava em critérios de classificação. 55 Mourão (2006: 51). O mesmo considera que: “a condição de «livre» ou escravo dependia essencialmente do nascimento. Usualmente, os filhos de pais incógnitos, sendo as mães escravas, ou de condição social muito pobre eram, em geral, considerados escravos”. Mourão (2006: 50). 56 Mourão (2006: 51), citando Torres, (1825:331). 57 Este mapa aparece publicado no Boletim Oficial da Colónia, nº 7, 1867. Ver Mourão (2006:51). E, convém recordar que segundo Jill Dias, ser filho do país era sinónimo de pardo ou mulato. Dias (1998: 349). Eis um pequeno indicador de uma luta de classificações protagonizada por quem classifica classificações. 58 Após 1897, começam a surgir os primeiros Anuários Estatísticos. Sendo que, em 1900 institui-se a obrigatoriedade dos levantamentos decenais. Porem, os dados ainda não são consistentes. A título de exemplo o 17 No Anuário Estatístico de Angola referente ao ano de 1934, a “população civilizada” é dividida do seguinte modo: “euro-africanos” (nacionais e estrangeiros)», “europeus” (nacionais e estrangeiros)”, “população mista” e “assimilados”. Mourão considera que “o tratamento da população branca” baseado na distinção entre “euro-africanos (nacionais e estrangeiros)” e “europeus (nacionais e estrangeiros)” patente no censo de 1934 é extremamente significativo60. O significado de euro-africanos filhos de país não é unânime. Certos autores consideram a taxinomia euro-africano como sinónimo de mestiço, cabendo nela os cabritos (mistura de branco e mulato), os mulatos (mistura de branco e de negro) e os cafusos (mistura de mulato com negro)61. Encontramos, na tabela referente ao ano de 1934, a designação euroafricano que tem o sentido, segundo um autor de filhos do país, ou seja brancos nascidos na colónia62. O que significa que a designação euro-africano é, para Mourão, uma caracterização mais social do que racial, pois engloba brancos e, provavelmente, “já não tão brancos”, e mestiços: “A designação é ambígua: ora leva a crer que se trata de um grupo de «europeus», de “brancos” já nascidos na colónia, “filhos do país”, “naturais da província”; ora de um grupo que também abrange os “mestiços” de boa posição social. Acreditamos que ocorra esta última hipótese. A caracterização engloba duas variáveis: a racial e a social. Este tratamento dado à população “branca” (com exclusão dos não nascidos na colónia), aos “mestiços” com boa posição social e alguns “negros” igualmente com boa posição social revela significativa 63 apropriação do espaço “angolano”, dando-se importância ao critério do jus solis” . levantamento decenal de 1900, apresenta graves problemas praticamente metade da população mestiça não está registada. Em relação à população negra os dados assinalam 963.592 indivíduos, e que num mapa posterior a cifra é de 2.700.000 e, num outro quadro (o de 1935) a cifra passa a 4.777.636. Os censos de 1934 e 1940 são aqueles que apresentam os dados mais consistentes. Mourão (2006:50-51). 59 Mourão (2006: 51). Note se que a taxinomia misto iria constar no Bilhete de Identidade angolano a partir de 1996, como categoria racial. 60 A partir de 1940, são, os termos branco, mestiço e preto os mais usuais. O que segundo Mourão (2006: 52), tem profundo significado político de natureza nacionalista, ou, pelo menos regionalista. O mesmo acrescenta que de ponto vista racial as distinções variam contrapondo europeus», euro-africanos e africanos. Segundo o mesmo autor o termo europeu é substituído pela designação branco, que por sua vez se contrapõe ao mestiço, anteriormente designado por pardo ou fusco. 61 Mourão, (2006: 52) cit. Venâncio (1984: 78) 62 Ver tabela apresentada por Mourão (2006: 48), Mourão, apela para Lemos (1969: 196), que afirma: “embora muito longe de sua passada grandeza, este núcleo euro-africano do norte angolense, com mais de dois séculos de permanência continua ainda hoje, pelo número, pelas posições que ocupa e pela influência social que exerce. Com as sobreposições dos elementos novos do século XX, esta colônia de naturais da província contava em 1940 com vários efectivos”. Mourão (2006: 52-53), citando Lemos (1969: 196). 63 Mourão (2006: 53). 18 Mourão considera que: “O entrecruzar de elementos sociais e raciais resulta em leituras mais ou menos ambíguas e determina a necessidade de se aprofundar, em termos de processo a relação entre classe e raça” 64 . Desta panóplia de classificações, serão as categorias estatutárias e raciais como indígena, assimilado, que se vão impondo como sistema classificatório, à medida que se intensifica a consolidação do Estado colonial em Angola65. E, que, frequentemente produzirão dicotomias, como indígena/não indígena; indígena/assimilado, indígena/cidadão. Mas esta construção dicotómica deve-se em certa medida a um contexto particular que possibilitou a criação da figura do indígena. A abolição da escravatura, além de estimular o comércio clandestino de escravos abrira uma profunda crise de recrutamento e de utilização de força de trabalho. Acresce ainda que na sociedade portuguesa pairava uma profunda perturbação que se devia tanto aos interesses das potências europeias pelos domínios portugueses bem como às dificuldades impostas pelas populações africanas, que resistiam à ocupação dos seus territórios66. Contudo, este quadro de perturbação política e militar não impede a continuidade dos projectos de exploração das colónias. Projectos que assentam na obtenção de força de trabalho com um mínimo de custo de modo a permitir uma produção abundante, barata e lucrativa67. Com efeito: “A partir da década de 90, à medida que as teses do darwinismo social penetravam no pensamento colonial europeu, os coloniais portugueses redefiniram as bases da «política indígena» segundo padrões de realismo político, ao mesmo tempo que a legislação assegurava o predomínio das novas concepções, reforçando a distinção legal entre «civilizados» e «indígenas». Enquanto os primeiros se encontravam integrados ainda que teoricamente, no tecido social português, os segundos deviam ser conquistados, desarmados, taxados e forçados a trabalho assalariado, sob administração 64 Mourão (2006: 54) O mesmo considera “mestiço” uma categoria racial e social, a categoria “euro-africano”, social e a categoria “filhos do país” como política. Que nome se dá a este grupo, segundo as épocas? Filhos do país, crioulos, mistos, assimilados, afros portugueses, euro-africanos; brancos” nascidos em Angola? Torna-se portanto, necessário criar uma ciência das classificações, talvez uma classificologia/classificografia O que passa em certa medida, por classificar quem classifica. 65 As categorias, branco, negro e mestiço permanecem, sobretudo como categorias de foro estatístico e como categorias práticas sem contudo perderem a sua função hierárquica como veremos mais adiante. Aliás serão aquelas que irão permanecer até aos nossos dias. 66 Henriques (2002: 83). 67 Henriques (2002: 83). É também neste contexto que emerge a categoria rácico-profissional do liberto, antigo escravo a quem fora concedida a liberdade na condição de trabalhar dez anos ao serviço dos antigos senhores. Cunha (1953:17). Era portanto uma medida destinada a minorar os efeitos do fim da escravidão. Criam-se categorias em função das necessidades. Escravo, liberto ou serviçal e por fim indígena. Ver Almada (1932: 40); Cunha (1953: 17). Todavia a emergência da categoria indígena também deve-se também: “A necessidade de impor o imposto indígena (1906), à obrigatoriedade do plantio de certas culturas, como a do algodão (1907), ao Código do Trabalho Indígena (1928), ao Estatuto Indígena, ao Estatuto Rural (1962): tudo isso manteve até tardiamente a distinção entre população civilizada e população indígena; cidadão versus indígena. Mourão 2006: 53). 19 68 severa e paternal” . Por conseguinte, torna-se necessária uma reavaliação da representação do 69 africano . No entanto tal reavaliação mantém o mesmo pressuposto que outrora fundamentava a condição de escravo: a ideia de inferioridade do negro. Graças a esse pressuposto, torna-se possível fundamentar a ideologia da “missão civilizadora” que por sua vez iria legitimar uma outra ideologia: a do trabalho como acto civilizacional do negro70. A partir daqui cria-se um conjunto de categorias de foro jurídico que darão corpo ao processo de metamorfização do escravo africano – passando pela figura do serviçal – em trabalhador indígena71. A institucionalização jurídica da categoria indígena, vai assim possibilitar a continuação de uma prática classificatória que complementa a imposição de valores de dominação colonial fundamentando e legitimando, desse modo, uma estrutural diferença hierarquizante que remete para processos, frequentemente violentos, de exclusão72. Silva Cunha analisa a emergência desta categoria à luz do Direito Criminal e do Direito do Trabalho. Considera o mesmo que: “Só em 1894 se publicou legislação sobre a matéria». Neste ano, um Decreto de 20 de Fevereiro permitiu a substituição, relativamente aos indígenas, da pena de prisão pela de trabalho correccional. (…) Este decreto foi regulamentado posteriormente por outro datado de 20 de Setembro do mesmo ano. Nos termos do art. 10.º deste diploma deveriam considerar-se indígenas os nascidos no Ultramar, de pai e mãe indígenas que se não distinguissem pela sua instrução e costumes do comum da sua raça 73 . Porém, tornava-se 74 necessário clarificar a condição de indígena perante o resto da população . 68 Freudenthal (2001: 301). Henriques (2002:83-84). 70 Henriques (2002: 94). 71 Nesse caso, podemos afirmar que a criação do indígena assenta nos seguintes pilares: na ideia de raça concebida ao longo século XIX pelos europeus, nomeadamente no quadro do desenvolvimento da antropologia científica que acentua os fundamentos da inferiorização do outro; na ideologia do trabalho como forma de disciplinar os africanos; na necessidade de colmatar os constrangimentos provocados pela abolição do tráfico de escravatura. Ver Henriques (2002: 83). E também Vera Cruz (2005) 72 Segundo Alexandre, em Barreto e Mónica (1999: 261), no caso português, a legislação liberal consagrava a cidadania (assimilação uniformizadora) a todos as populações tanto das colónias como da metrópole. O que é interessante é que os escravos não estavam abrangidos por esta legislação. Mais, segundo o mesmo autor, grande parte dos nativos estava sujeita a leis de excepção. A ocupação efectiva, juntamente com a abolição do tráfico negreiro iria contribuir para que a assimilação se tornasse mais fechada. Significa isto que em termos práticos nunca existiu a assimilação uniformizadora. Foi sempre tendencial. 73 Cunha (1953: 16-17).Ver também Boletim Official Governo-geral da província de Angola Nº45 de 10 de Novembro de (1894: 630). 74 Para Messiant (2006: 69), com a mudança da doutrina da assimilação uniformizadora para a assimilação tendencial surge, em 1894, a distinção, assente na instrução e nos costumes, de duas categorias de africanos (ou de mestiços). Os primeiros são os indígenas e é sobre eles que incide o Regulamento e todos os textos que, posteriormente, irão definir os direitos e obrigações dos africanos, vivendo segundo os costumes tradicionais. Os 69 20 Para Conceição Neto, a primeira lei que claramente separa os indígenas do resto da população é a lei laboral de 1899, denominada “Código de Trabalho dos Indígenas”75. Este código “consagrava a prestação de trabalho como uma obrigação moral e legal do indígena”.76 E, Neto acrescenta: “a partir daí é necessário definir quem são os indígenas para se poder aplicar o código de trabalho, só que como não estava muito bem regulamentado dependia em certa medida da boa vontade das autoridades a definição de quem é indígena ou não é indígena, ou seja, se este último fosse cristão, bem vestido, 77 bem calçado e bem falante da língua portuguesa nunca seria indígena” . “Foi por não ser clara e explícita a definição de indígena” que, em 1913, o então governador-geral de Angola Norton de Matos decidiu: “são considerados indígenas os indivíduos dos dois sexos, de côr, naturais ou residentes na Província que não estejam nas condições do nº2 desta Portaria”, onde constava, por sua vez: “não são considerados indígenas «os naturais da província que saibam falar correctamente o portuguez ou exerçam alguma arte ou profissão liberal ou paguem contribuições e tenham hábitos 78 ou costumes europeus . A definição preconizada por Norton de Matos, fez com que se generalizasse ”a diferenciação entre a elite nativa, cujos elementos durante a República eram cada vez mais designados por «instruídos» ou «assimilados» e os restantes africanos, conhecidos por «indígenas». Para estes, Norton de Matos 79 criou o Departamento dos Negócios Indígenas” . A distinção entre indígena e não indígena seria clarificada com o Decreto de 16.473 de 6 de Fevereiro de 1929 que regulamentava o Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas onde se podia ler, no Art. 2º: “Para os efeitos do presente Estatuto são considerados indígenas os indivíduos da segundos são, desde a Lei Orgânica da Administração das Províncias Ultramarinas de 1914, os civilizados, ou então posteriormente, os assimilados. Contudo, ressalva a autora, que estas duas categorias serão vagamente definidas. 75 Entrevista com a historiadora Conceição Neto em 09/2001. 76 Freudenthal em Serrão e Marques (2001: 302). Ver também Cunha (1953: 18). 77 Entrevista com a historiadora Conceição Neto em Luanda, 09/2001. 78 Portaria Provincial nº 43 de 20 de Janeiro de 1913, publicada no boletim oficial de Angola nº 4, 25 de Janeiro de 1913 (1913:42). Rodrigues (2003: 24); ver Jornal Eco d’Africa, nº 10 de 1 de Fevereiro do mesmo ano. Convém salientar que ainda não havia, por parte das autoridades metropolitanas, um consenso para se definir estatuto de indígena. Optara-se portanto, por deixar “a definição do indígena para a legislação privativa de cada colónia. Muita embora, em 1914, tivesse havido uma proposta -que não passou disso - que consistia no seguinte: “Considera-se indígena, para os efeitos desta lei, o indivíduo de cor que não satisfizer cumulativamente às seguintes condições: 1º Falar o português ou qualquer das suas variedades dialectais ou ainda alguma outra língua culta. 2º Não praticar os usos e costumes caracterizados do meio indígena. 3º Exercer profissão, comércio ou indústria, ou possuir bens, de que se mantenha. O indígena que satisfaça, cumulativamente, às condições precedentes será considerado cidadão da República, e como tal isento de aplicação das leis e outras disposições exclusivamente adoptadas para indígenas, tendo garantido o pleno uso de todos os direitos civis e políticos concedidos na colónia aos portugueses originários da metrópole.” Cunha (1953: 33-34). 79 Rodrigues (2003: 24-25) ver também Messiant (1983: 83). 21 raça negra, ou dela descendentes que, pela sua ilustração e costumes, se não distingam do comum daquela raça, e 80 não indígenas, os indivíduos de qualquer raça que não estejam naquelas condições” . O Diploma Legislativo nº 237 de 26 de Maio de 1931 referente ao “recenseamento e a cobrança do imposto indígena” tinha a particularidade de ter introduzido a expressão assimilado para definir aqueles que não eram indígenas. Constava no seu artigo 1º o seguinte: “Por se distinguir do comum da raça negra é considerado assimilado aos europeus o indivíduo daquela raça ou dela descendente que reunir as seguintes condições: 1ª Ter abandonado inteiramente os usos e costumes da raça negra; 2ª Falar, ler e escrever correntemente a língua portuguesa; 3ª Adoptar a monogamia; 4ª Exercer profissão, arte ou ofício compatível com a civilização europeia, ou ter rendimentos por meio lícitos que sejam suficientes para prover os seus alimentos, compreendendo sustento, habitação e vestuário, para si e sua família”. 81 Antes de 1954, a passagem do indigenato para a cidadania não é codificada em Angola. Um certificado ou alvará de assimilação é concedido pelos administradores. Mas como o procedimento não é regulamentado pela lei, resulta que tudo é feito de forma arbitrária segundo os critérios pessoais dos funcionários: Esta “anomalia” seria colmatada em 1954 com o Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique82. Com o decreto-lei n.º 39.666 do Ministério do Ultramar, publicado no Diário do Governo, 1.ª Série, n.º 110, de 1954 a semântica dicotómica de distinção indígena e não indígena dá lugar à distinção entre indígena e cidadão: “Art. 2.°, Consideram-se indígenas das referidas Províncias os indivíduos de raça negra ou seus descendentes que, tendo nascido ou vivendo habitualmente nelas, não possuam ainda a ilustração e os hábitos individuais e sociais pressupostos para a integral aplicação do direito público e privado dos cidadãos portugueses”. 80 Colecção Oficial de legislação portuguesa publicada no ano de 1929 ( 1º semestre), Lisboa, Imprensa Nacional. “Regulamento do recenseamento e cobrança do imposto indígena” aprovado por Diploma Legislativo nº 237, de 26 de Maio de 1931.Ver também “A questão do Bilhete de Identidade” in Angola Revista mensal de doutrina, estudo e propaganda instrutiva, Ano XXIX, nº 162, Janeiro/Junho de 1961, pp. 11-15. Mas este diploma tem outra particularidade. A de relacionar de forma evidente a categoria indígena às categorias pretos e mestiços: “Faz-se incidir o indígena, como colecta individual, sobre todos os habitantes, pretos ou mestiços da colónia (…)”. Idem “Regulamento do recenseamento e cobrança do imposto indígena”. 82 Pélissier (1978b: 67). Aliás, no que diz respeito à aquisição da cidadania, a mesma poderia ser revogada por decisão do juiz de direito da respectiva comarca, mediante justificação promovida pela competente autoridade administrativa, com intervenção do Ministério Público. Ver o Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique. Decreto-Lei nº39.666 do Ministério do Ultramar, publicado no Diário do Governo, 1ª Série, nº 110, de 1954. 81 22 Segundo uma autora, o sistema legal português era uma combinação (muito pragmática) de segregação e assimilação, porque distingue duas categorias de não brancos: os indígenas, maioria que não atingiu o grau de civilizado, e susceptível de atingi-lo desde que tenha preenchido os requisitos consignados no Estatuto do Indigenato; os assimilados que gozariam do mesmo estatuto dos brancos, ou seja, o estatuto de civilizado, de não indígena e de cidadão83. Esboçamos aqui em breve síntese um conjunto de classificações que foram tomando forma de duas grandes classificações sócio-jurídicas. Uma que classificava segundo as características somáticas, com relevância para a cor: brancos, negros e mestiços e outra que distinguia somática e estatutariamente, segundo as épocas, os indígenas e não indígenas; indígenas e civilizados; indígenas e cidadãos ou até por vezes indígenas e assimilados. Todavia estas duas grandes classificações, além de partilharem o facto de serem categorias sóciojurídicas, apresentavam um elemento comum. Ambas assentavam na noção de raça. E, ambas passaram a constituir uma matriz estruturante das relações de dominação que se foram estabelecendo na sociedade angolana entre colonizadores e colonizados. Com efeito, julgamos que esta complexa rede de classificações obedeceu, em certa medida, a políticas de classificação num quadro de dominação colonial e que se traduziram, ao longo do tempo em “marcas identitárias”, que ainda permanecem até aos nossos dias. Realizaram e ainda realizam, por isso, a definição e auto definição dos grupos. E, presentemente em Angola, categorias como negro, branco e mestiço, continuam a serem modos de (re) produção, históricos, de processos de construção social. E, como tal, sujeitas a adquirir uma significativa importância nas lutas de classificação; lutas que, por sua vez, remetem para práticas de reavaliação, hierarquização e até de exclusão84. Sendo assim, a nossa proposta temática ganha, agora, maior pertinência, pois possibilitará – quanto a nós – vislumbrar, embora com rupturas, traços de continuidade, entre o Estado colonial e o Estado angolano, no respeitante à passagem de uma política colonial de classificações para uma política de classificações nacional. 83 Messiant (1989: 132). Balibar (1988: 19). Não são apenas as categorias raciais. As categorias etnia e nação, permanecem também como objecto de lutas de classificação e como tal sujeitas a reavaliações e hierarquizações. Aliás, ao longo da história, raça etnia e nação frequentemente se sobrepuseram e se entreajudaram na edificação de processos identitários. Balibar (1988:105). 84 23 1.1 O historiador no seu labirinto Quando, de início, nos interrogámos sobre as razões da permanência e reaparecimento institucional e jurídico de categorias assentes em propriedades rácicas/características somáticas, o número de problemas com que nos confrontámos foi nitidamente superior àqueles que sabíamos poder tratar no âmbito da nossa pesquisa. Estamos, assim, perante um conjunto de problemas referentes à prática da investigação histórica que, por sua vez, se manifestou num conjunto de preocupações respeitante à exequibilidade do nosso trabalho. A investigação histórica implica um lugar de produção. É em função desse lugar que se instauram métodos, que uma topografia de interesses se concretiza, que se organizam processos e questões a pôr aos documentos. Está por isso, submetida a constrangimentos de vária ordem85. De entre estes constrangimentos, podemos assinalar os efeitos das múltiplas instâncias de poder na prática da investigação histórica. Com efeito: “A história foi sempre fabricada para reforçar um poder, para apoiar uma reivindicação. Talvez tenha de facto sido para isso que ela serviu em primeiro lugar, a história. O passado foi sempre triturado, colhido em redes de discursos entrelaçadas para envolver o adversário ou para nos protegermos em combates em que o que está em jogo é o poder. (…) Há portanto, em certa medida, manipulação da memória, em função, é claro 86 de interesses. Presentemente em Angola, a escrita da História é ainda um processo de construção de uma ideologia/memória, sobretudo no que concerne a assegurar a passagem regular do passado ao futuro ou indicar aquele passado que era necessário reter para preparar o futuro; quer se tratasse da reacção, progresso ou revolução87. Sendo assim, a Historia funciona também como “invenção” da memória colectiva, pois procura uma recordação homogénea dos factos. (Re) cria, assim, o acontecimento – muitas vezes extraordinário – que se torna veículo de uma identidade. A produção histórica serve para assegurar a continuidade temporal da memória colectiva88. Torna-se portanto difícil, dissociar a produção historiográfica da instrumentalização da memória. É aquilo que podemos definir como a politização da memória.89. 85 Certeau (1977: 18-19). Duby (1989: 73). 87 Nora (1994: XVIII) 88 Mais do que um simples objecto da história, a memória parece ser uma das suas matrizes. Silva (2002: 426). 89 O conceito de politização é retirado de Bazenguissa- Ganga (1997: 16) que por sua vez o pediu emprestado a Bourdieu em Homo Academicus ( 1984: 243) que consiste no processo pelo qual o princípio de visão e divisão 86 24 Colonização, luta de libertação nacional, independência e guerra civil são momentos privilegiados onde se pode observar a memória como objecto de lutas e como tal, a sua utilização como instrumento de dominação. São contextos em que podemos descortinar uma estreita relação entre a prática da pesquisa histórica e a manipulação da memória. Apresentamos de seguida três tempos que exemplificam uma estreita relação entre a produção historiográfica e o exercício da politização da memória. O tempo colonial, em que descortinamos no processo de politização da memória enunciados assente no olhar etnocêntrico do dominante como: a noção de raça para fundamentar uma civilização superior, legitimando assim a ocupação militar; a noção de que o contacto com as culturas europeias fundamentavam a historicidade dos africanos, legitimando por sua vez a colonização. Por conseguinte, a memória, como instrumento de dominação, tornou-se também um meio de controlar a circulação dos bens e populações, nomeadamente, com recurso ao arquivamento mental da figura do escravo ou do indígena90, do assimilado, do ambundo, do ovimbundo ou dos bakongos91; para não falar do processo de desoralisação das sociedades africanas através da imposição da escrita. Esta acção de politização da memória contribuiu para que: “Até 1974, o processo de produção do conhecimento português, respeitante a África, se mantivesse profundamente dependente da ideologia colonial, nomeadamente no respeitante às restrições impostas pelo regime 92 ditatorial e colonialista português” . Temos de seguida um segundo momento de politização da memória, em que se produz uma contra-memória. Em que se constrói a memória da luta anti-colonial; memória de uma reivindicação territorial93. É o tempo nacionalista. política predomina em relação aos outros princípios. Aproximando pessoas bem distantes segundo critérios antigos e afastando pessoas que estão próximas umas das outras no que respeita aos juízos e escolhas de uma antiga existência. E, memória, definida por Nora (1994: XIX ): “La mémoire est la vie, toujours portée par des groupes vivant et a ce titre, elle est en évolution permanente, ouverte à la dialectique du souvenir et de l’amnésie, inconsciente de ses déformations successives, vulnérables à toutes les utilisations et manipulations, susceptible de longues latences et de soudaines revitalisations. 90 Basta estar atento à categoria indígena, que tinha por função controlar a mão-de-obra africana, materializada na famosa caderneta. 91 “Permanece ainda no imaginário angolano a cartografia étnica de Angola produzida por José Redinha. Esta última foi recentemente posta em causa por um sociólogo angolano. O que nos leva a pensar que um conflito étnico pode ser igualmente um conflito de memórias de etnias. Ver o Site angolaxyami.com/crónica /angolana/ huila 2010 “Sociólogo Paulo de Carvalho defende elaboração de uma nova carta étnica em Angola”. 92 Henriques (1997: 18). 93 25 Esta contra memória, sendo homogénea no tempo, a saber, o nacionalista não o é, nos lugares de enunciação. Ela apresenta-se heterogénea. A diversidade de organizações políticas implica diversas memórias94. Portanto, a memória tornou-se objecto de lutas. Não é por acaso que: “A re-escrita e a instrumentalização da história do nacionalismo, por vezes a sua falsificação, haviam sido, no contexto do confronto entre diversas organizações nacionalistas que travaram a luta como rivais – inimigas, muito precoces (e por parte de todas as organizações nacionalistas), e tinham incidido, além do mais, sobre os factos, sobre os próprios 95 acontecimentos e não apenas sobre a interpretação dos mesmos”. Uma prática de politização da memória que desemboca, em geral, no: “momento fundador da nação, de carga sempre altamente simbólica, que faz parte do património cultural de uma nação e do imaginário quase pessoal dos cidadãos e se presta especialmente a uma mitologização”96. O que nos remete para um terceiro tempo, de politização da memória, que é o da independência e guerra e civil. “O acesso à independência em Angola não foi, como em muitos outros sítios, um momento de consenso ou até de comunhão, mas de confronto militar generalizado entre essas organizações, (MPLA; FNLA; UNITA) pelo 97 que não existe em Angola um mito unanimista da independência” . No dia 11 de Novembro de 1975, decorreu uma dupla proclamação da independência. Por um lado a UNITA e a FNLA proclamaram a República Democrática de Angola e por outro, o MPLA proclamou em Luanda, capital, a República Popular de Angola. Temos portanto, no processo de politização da memória, dois lugares de enunciação da memória da independência. Acontece que o lugar de enunciação do MPLA é o espaço privilegiado de invenção da memória, ao contrário da UNITA e da FNLA cujo lugar de enunciação, Nova Lisboa, é o espaço constrangedor para o exercício da memória. Com efeito, o lugar de onde o MPLA proclama a declaração de independência – o palácio do Governador, situado na capital do país – é também lugar simbólico de apropriação e, 94 Aliás, no seio de cada organização nacionalista existiam vários lugares de enunciação politica. Tome-se como exemplo o caso do MPLA. O exterior, com o seu espaço institucional de produção e enunciação e o maquis (espaço da guerrilha) Podemos considerar que, no seio de cada organização política nacionalista, a questão da memória também era objecto de lutas. 95 Messiant em Actas do II Seminário Internacional sobre a História de Angola (2000: 807). A título de exemplo a luta pela invenção da memória respeitante ao início da luta de libertação: o 4 de Fevereiro para o MPLA e o 15 de Março para a FNLA. Ou então pela primazia, na luta de pela memória da antecedência no respeitante ao surgimento da primeira organização política armada. De que falaremos mais adiante. 96 Messiant em Actas do II Seminário Internacional sobre a História de Angola (2000: 807). 97 “Enquanto a lenda de uma França inteira resistente, ainda que mítica, servia a unidade nacional, em Angola a versão oficial da história do nacionalismo reflectia e servia a desunião nacional”. Messiant (2000: 807). O sublinhado é nosso. 26 na medida em que se apropriou do Estado, de (re) produção/institucionalização e legitimação da memória colectiva. Instância reconhecida e reconhecedora de produção de uma historiografia oficial; lugar, por excelência, de politização da memória98. Contudo, a verdade de Estado não impediu que a luta pela definição legítima da memória legítima continuasse99. Assim, paralelamente a uma memória oficial subsistia uma memória subterrânea100 – que contudo, não deixa de ser memória politizada – que aguardava a oportunidade para disputar, com a memória oficial, a legitimidade da “verdade” histórica. Esta oportunidade iria surgir com a abertura ao multipartidarismo. O que possibilitou o surgimento de outros espaços de politização da memória101. Coexiste, desse modo, com a “verdade” histórica oficial veiculada pelo Estado uma outra memória que prossegue o seu trabalho de subversão, invadindo o espaço público e que, num contexto de crise, vai adquirindo visibilidade. Trata-se de uma memória outrora clandestina e que, através dos meios de comunicação, (jornais e rádios privadas livros etc;) vai reivindicando o seu lugar, legítimo, na historiografia oficial102. O que faz com que o Estado: “associe à mudança 103 política uma revisão (auto) crítica do passado” . Porém, esta revisão comporta por vezes riscos porque: 98 Este processo de institucionalização da memória tinha a sua génese na criação do Centro de Estudos Angolanos situado em Argel, capital da Argélia, em 1964 e consubstanciada na feitura de, – entre outras obras ligadas à História, à Política e à Sociologia – um livro de História que em certa medida reflecte a função que a historiografia desempenha na (re) invenção da memória. 99 Apesar do conflito político-militar, entre a UNITA e o MPLA, ter tido um efeito inibidor de possíveis críticas aos diferentes centros de poder". Pois: “qualquer nova verdade histórica que surgisse poderia ser encarada como sinal de aproximação ao inimigo. Bittencourt (2000: 171). Aliás, a guerra civil também foi uma guerra de memória que se tornou memória da guerra. 100 Termo usado por Pollack (1989: 5). 101 O período que abrange 1991-1996 teve um breve momento de paz armada. Assim o regime multipartidário coexistiu com o estado de guerra civil. 102 Referimo-nos por exemplo, à historiografia oficial dos outros partidos políticos (caso da FNLA e da UNITA) , aos artigos escritos nos jornais privados como o Angolense, Folha 8. Acrescem ainda as obras e os artigos do historiador Carlos Pacheco (1997 e 2000). Todas elas não se furtam a uma politização da memória. Apresentam por vezes uma linguagem virulenta que: “Consiste muito mais na irrupção de ressentimentos acumulados no tempo de uma memória da dominação e de sofrimentos que jamais puderam exprimir-se publicamente. Mas, por outro lado, possibilita descortinar uma clivagem entre a ideologia oficial e a sociedade”. Pollack (1989: 5). O sublinhado é nosso. 103 Podemos exemplificar com os processos simbólicos de reabilitação dos dissidentes: o caso de Viriato da Cruz, antigo secretário-geral do MPLA, que seria reabilitado com a transladação do seu corpo da China, para Angola, onde tinha falecido com o estatuto de persona non grata decretado pelo MPLA; as honras de Estado prestadas a figuras outrora banidas da hagiografia nacional como foram o caso dos funerais de Gentil Viana, (Histórico e dissidente do MPLA) a presença de altos dignitários do Estado na Igreja do Carmo onde estava, em câmara ardente, o corpo de Joaquim Pinto de Andrade. Ou então de reconhecimento oficial do papel desempenhado por Holden Roberto, (líder histórico da FNLA e inimigo fidagal) recentemente falecido, na giesta da luta anticolonial. 27 “os dominantes não podem, jamais, controlar perfeitamente até onde levarão as reivindicações que se formam ao mesmo tempo em que caem os tabus conservados pela memória oficial anterior” 104 . Essa súbita multivisão da História, indissociavelmente ligada à nova linha política, não se traduziu, contudo, na alteração dos signos e símbolos que recordam o acto fundador da nação (bandeira, hinos e monumentos, nomes de ruas etc.). O Estado permanece como instância de legitimação e deslegitimação da História. Quem controla o Estado detém o poder de sancionar a reconversão da memória em historiografia oficial, nomeadamente, através das constantes práticas comemorativas, edificação de monumentos, nomenclatura das ruas etc. Podemos assim considerar que presentemente em Angola subsiste um tempo de história politizada em que prevalece uma “verdade” politizada oficial e uma “verdade” politizada informal105. Esta constante tensão entre lugar de produção e conteúdo histórico106 confrontam o investigador com dificuldades específicas tanto no que se refere à reconstituição da história “verdadeira” do nascimento do nacionalismo angolano e do seu desenvolvimento, como no tocante à sua exposição. A forte mobilização da história nas lutas de poder, torna necessário (em relação quer a situações nacionais pacificadas quer a manipulações históricas que vão num sentido unanimista) abandonar esse tempo da história politizada, embora seja extremamente difícil fazê-lo107. Estamos perante um limite heurístico que não pode, contudo, impedir o exercício de uma história inteligível. Por mais que a reconstrução do passado seja problemática e incompleta será sempre necessário criar uma História que se distinga da historiografia oficial, daquela escrita da História que tem por função a comemoração ou a celebração do património cultural, a saber, de uma escrita da História que apenas tem por objectivo a construção identitária108. Torna-se, por isso, imperativo praticar uma História Ciência, entendida como operação intelectual, cujo discurso escrito tenha por conteúdo a análise. Uma História que, de ponto de vista da construção do seu objecto tenha em conta que o que define a História não são objectos 104 Pollack (1989: 5). A expressão “tempo de história politizada” foi retirada de Messiant em Actas do II Seminário Internacional sobre a História de Angola (2000: 820). Recordamos que Angola vive um período de paz desde 4 de Abril de 2002. 106 Chartier e Leite Lopes (2002: 173). 107 Messiant em Actas do II Seminário Internacional sobre a História de Angola (2000: 820). 108 O que passa também por pensar a memória como espaço de prolongamento dos conflitos e de lutas sociais. Mbembe (1985: 485); como lugar de lutas de classificação. 105 28 que ela estuda, mas sim o olhar que o historiador tem sobre eles109. Levar a cabo esta tarefa implica, portanto, um diálogo interdisciplinar, nomeadamente, com as Ciências sociais110. A História e as Ciências sociais debruçam-se sobre o mesmo objecto – mundo social – possuem, por isso, os mesmos instrumentos teóricos, de observação, de construção e de análise111. Com efeito, tanto a História como as Ciências Sociais constroem o seu próprio objecto: “quando delimitando um conjunto de problemas solucionáveis, abandona as questões cuja abordagem se poderia fazer apenas no registo da filosofia, da religião ou da ideologia, e se situa a um nível de abstracção e generalidade que lhe permite elucidar regularidades, formular leis, construir modelos interpretativos” 112 . Todavia tal prática científica necessita de: “um conjunto coerente de conceitos e relações entre conceitos – as teorias –, uma linguagem conceptual adequada e tanto quanto possível exclusiva, instrumentos técnicos de recolha e tratamento de 113 informação, métodos de pesquisa” . Acontece que, para o historiador, esta estratégia de investigação científica114 – no que respeita à construção do seu objecto e ao método – perde consistência se não tiver em conta o papel que o documento desempenha no processo de investigação histórica115. É que se, por um lado, a análise do documento enquanto documento permite à memória colectiva recuperá-lo, por outro, possibilita ao historiador usá-lo cientificamente, isto é, com pleno conhecimento de causa116. Seria, com efeito, uma mais valia heurística combinar a utilização do aparelho conceptual das Ciência Sociais com o trabalho de selecção e apreensão das fontes, apuramento e a sequência dos factos… com a submissão à crítica histórica117, pois, “(…) independentemente do 109 http://www.acdijon.fr/pedago/histgeo/former/Pedago/tps_present/tempsp.htm. Poirier (2003:5). No caso de Angola podemos falar da necessidade de se distinguir entre problemas históricos e problemas políticos. O que apela para a necessidade do investigador ter uma postura de distinção entre a História e a memória. 110 É que a singularidade da história não é da ordem do método, mas da interrogação: a saber, daquela que se refere à mudança no tempo. Idem Poirrier (2003:5). 111 O que passa, quanto a nós, pela transferência do ensino da História e das Humanidades para as Ciências Sociais; ler Entrevista com Vitorino Magalhães Godinho no jornal Público de 2/5/2008, suplemento Ípsilon (14-16). Bourdieu considera que: “poderia até definir-se como etnocentrismo essa dificuldade corrente dos cientistas sociais para aceitarem e interpretarem resultados de áreas de saber que não a sua”. Silva e Pinto (1986: 16). 112 Silva e Pinto (1986: 12). 113 Silva e Pinto (1986: 12). 114 Expressão retirada de Silva e Pinto (1986: 10). 115 Esta articulação entre objecto método e fontes não só reforça o carácter científico da História como alarga o seu campo de intervenção á outras áreas de saber. Recordamos que a noção de documento refere-se à todo e qualquer vestígio do passado. 116 Le Goff (1984: 102). 117 Mas também submeter à crítica histórica categorias analíticas ou conceitos, que frequentemente são utilizados, na linguagem do investigador, nomeadamente aqueles que dizem respeito à divisão do mundo social. Trata-se de 29 interesse específico da investigação, mesmo que não incida sobre a historiografia e os factos, mas, numa perspectiva sociológica, sobre a compreensão das dinâmicas políticas e da sua articulação com os processos sociais: dada estreita imbricação existente entre historiografia e construção da história, não existe, nenhuma elaboração 118 convenientemente científica que prescindir de um trabalho de apuramento da verdade e da sequência dos factos” . Adquire assim importância a crítica dos documentos, aperfeiçoada pela maioria dos historiadores positivistas. Mesmo que a crítica dos documentos seja uma “estenografia”119 do exercício da História, nunca é demais recordar a sua importância no que toca à crítica externa e à crítica interna120. A crítica externa ou crítica da credibilidade tem por objectivo encontrar o documento original e determinar a sua verdade ou falsidade121. Merece por isso duas observações: • “um documento falso é também um documento histórico e que pode ser um testemunho precioso da época em que foi forjado e do período durante o qual foi considerado autêntico e como tal utilizado”122; • “um documento, nomeadamente um texto, pode sofrer, ao longo das épocas, manipulações aparentemente científicas que de facto obliteram o original”123; A crítica interna consiste em interpretar o significado dos documentos, avaliar a competência do seu autor, determinar a sua sinceridade, medir a exactidão do documento, controlá-lo através de outros testemunhos124. Todavia, este processo torna-se insuficiente se não se tiver em conta o estudo das condições da produção do documento. Quer se trate de documentos conscientes ou inconscientes (traços deixados pelos homens sem a mínima intenção de legar um testemunho à posteridade)125. impedir que, (sociologicamente) na construção científica do objecto, o investigador seja objectivado pelo objecto socialmente construído. 118 Messiant em Actas do II Seminário Internacional sobre a História de Angola (2000: 821-822). 119 Expressão usada por Bourdieu (1989: 29). 120 A este propósito ver Le Goff (1984: 221). 121 Le Goff (1984: 221). 122 Le Goff (1984: 221). 123 Le Goff (1984: 221). 124 Le Goff (1984: 221). 125 “A história tradicional dedicava-se a memorizar os monumentos do passado, a transformá-los em documentos e a fazer falar os vestígios, que em si não são verbais ou, em silêncio, dizem algo de diferente que o que de facto dizem. Todo o documento é um monumento que deve ser des-estruturado, desmontado. O historiador não deve ser apenas capaz de discernir o que é «falso», avaliar a credibilidade do documento, mas também desmistificá-lo. Os documentos só passam a ser fontes históricas, depois de estarem sujeitos a tratamentos destinados a transformar a sua função de mentira, em confissão de verdade”. Le Goff (1984: 221). 30 A nossa reflexão estende-se também aos silêncios e omissões. O que implica, questionar o documento, as suas lacunas, os esquecimentos, os hiatos, os espaços brancos da história.126 Devemos, portanto, fazer o inventário dos arquivos do silêncio, abordar a História a partir dos documentos e das ausências de documentos127. É que o facto histórico nunca é dado como tal. É construído. Nenhum documento é inocente. O documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou. É, em certa medida, fruto do estado de relações de forças num determinado espaço social128. Estamos pois, perante um quadro problemático claramente superior às nossas interrogações. Assim, perante tal constrangimento e no que concerne ao desenvolvimento e exequibilidade do nosso trabalho, apenas nos restou formular e delimitar de um modo mais realista as nossas interrogações. O que nos levou a optar pelo enfoque da dimensão política das lutas de classificação129. Começámos assim, por consultar a ainda incipiente historiografia angolana sobre o nacionalismo e colonialismo e cruzámos a informação obtida com informações recolhidas num conjunto de fontes primárias que tínhamos na nossa posse. Com efeito, através da consulta sistemática dos dados disponíveis, fomos descortinando referências significativas não só relativas a questões de ordem rácica como também aos efeitos dessas questões nas acções políticas. 126 Presentemente em Angola predomina esta ausência de questionamento do documento. Porque: “ Aprende-se nos primeiros níveis escolares que a história é a narração dos factos passados. Nesta definição não há lugar para diferentes interpretações ou cepticismos. A história que se ensina é a oficial consistindo o seu método em levar os alunos a decorar passagens para as reproduzirem nos exames orais e escritos. (…) a ser uma deficiência, não é uma particularidade do ensino em Angola. Tem que ver com o modelo em que se inspira, o português, que consiste por um lado no modo como facilmente se passa da história para a mistificação; sobretudo quando em jogo estão questões tidas como constituintes da consciência nacional portuguesa como as Descobertas. É também preciso considerar o facto que Angola é ainda uma jovem nação. É pois normal que a História e o ensino da história, tenham como principal motivação a exaltação do momento nacionalista através do qual o país se constituiu como independente. Esta preocupação com a narratividade da gesta nacionalista serve de lente por meio da qual toda a história é reescrita”. António Tomás em Semanário Angolense de 11 a 18 de Fevereiro de 2006. (2006:21). 127 Le Goff (1984: 220). 128 Trata-se de estar atento aos efeitos das intervenções ideológicas no questionamento dos documentos. É inegável que existe uma: “estreita articulação das teorias científicas com postulados ideológicos e visões do mundo (e portanto, através de complexas mediações – integradas no conjunto de condições sócio-institucionais da prática científica – com a conflitualidade de interesses entre diversos grupos sociais”. Silva e Pinto (1986: 18); o que nos remete, no caso de Angola, para a questão da autonomia do campo científico em relação ao campo político. 129 Seria irrealista alargar o nosso estudo a outras dimensões nomeadamente ao económico ou social ou cultural. Ou até às categorias étnicas. Estas abordagens implicam muitos meios que o investigador não comporta. Ainda por cima implicariam um alargamento interdisciplinar e como tal conceptual. Isto para não falar do alargamento temporal. 31 Assim, no período compreendido entre 1950 e 1996 é possível vislumbrar, nas fontes consultadas, uma certa regularidade de enunciados alusivos às propriedades rácicas/características somáticas. Enunciados, formulados por parte de agentes (individuais e/ou colectivos do espaço colonialista e nacionalista angolano. São enunciados que nos alertam para a existência de práticas e representações no seio desse mesmo espaço, que são indissociáveis de classificações assentes nas referidas propriedades130. Estas referências, que em certa medida pareciam condicionar tomadas de posição políticas, são sobretudo legíveis na documentação (colonial e nacionalista) onde o léxico é fértil em afirmações de ordem político-ideológica impregnadas por alusões raciais, tais como: “negros” “mestiços”, “filhos de colonos”, “assimilados”, “indígenas”, “pretificação do comité director”, “estatuto privilegiado dos mestiços”, etc131. Foi também possível, graças ao material consultado, vislumbrar tomadas de posição, por parte dos actores do campo nacionalista – os dominados do espaço colonial – em torno de classificações assentes em propriedades rácicas/características somáticas. Tomadas de posição que, no nosso entender, manifestam em certa medida, a aceitação desses mesmos princípios classificatórios que por sua vez passam a funcionar como princípio e produto de identificação no seio do espaço nacionalista132. É igualmente possível vislumbrar no seio do campo político angolano, nas lutas políticas, o recurso, – com maior ou menor frequência por parte de agentes individuais e colectivos – às propriedades rácicas/características somáticas. O que pressupõe, quanto a nós, uma variabilidade na utilização do referido recurso consoante o estado de relações de força no seio do campo político angolano. Por conseguinte, somos levados a formular uma outra conjectura decorrente da primeira, segundo a qual as propriedades rácicas/características somáticas, estão sujeitas a frequentes reavaliações133. Por último, esta iniciática abordagem do nosso trabalho permite-nos conjecturar o seguinte: se por um lado, o recurso às propriedades rácicas na luta política é produto de uma 130 Cf Reis (2002). Só para citar alguma literatura consultada: Tali I (2001); Moreira (1961); Uhuru (Boletim, FNLA: 1962); Estatuto Civil e Criminal dos Indígenas (1954); MPLA (Comunicado do Comité Provisório 1963). 132 Ver Reis (2003); Reis e Reis (1996). 133 Reis (2003). 131 32 longa história de lutas de classificação134; por outro, o campo de poder de uma sociedade, ao definir categorias sociais, dispondo-as hierarquicamente, lega consciente ou inconscientemente testemunhos capazes de influenciar o destino da história135. Uma vez chegados a este estado exploratório, julgamos ser possível e pertinente formular uma primeira interrogação para melhor delimitar o nosso objecto de estudo. Trata-se fundamentalmente de saber em que medida classificações assentes na noção de raça contribuíram para a estruturação do campo político angolano. Ou de um modo mais explícito: em que medida as propriedades rácicas/características somáticas condicionaram a dinâmica do campo político angolano e que papel desempenharam no referido campo em contextos de crise? 2. Objectivos, opção disciplinar e construção do objecto de investigação A este nível do nosso questionamento e uma vez formulada a nossa pergunta de partida, parece-nos fundamental reflectir sobre os objectivos, a opção disciplinar e a construção do objecto de investigação. É que esta reflexão seria incompleta se não tivermos em conta escolha da abordagem a partir da qual, a resposta a esta última poderá ser encontrada. 2.1 Objectivos Com a ajuda das precisões já efectuadas, podemos agora definir o(s) objectivo(s) da nossa tese, tendo presente que nos confrontamos com questões relativas às classificações raciais, aos processos da sua adopção/interiorização e à sua dimensão política. Trata-se de demonstrar, numa perspectiva sócio-histórica, que as classificações assentes em propriedades rácicas/características somáticas funcionam como recurso nas lutas políticas. Classificações que, por sua vez, passam a funcionar como elemento identitário. O campo político angolano, na sua dinâmica, é acompanhado de um discurso transversal às suas múltiplas forças políticas antagónicas, a saber, o discurso nacionalista. Todavia essa transversalidade não oculta uma dinâmica de relação de conflito e competição entre as principais forças políticas nacionalistas. 134 Embora não seja nosso propósito fazer aqui o estudo detalhado de tais lutas, podemos assinalar os vestígios deixados e que são perceptíveis nas instituições e nos actores, quer na sua dimensão objectiva, quer na sua dimensão subjectiva. A nossa opção é a desocultação destes vestígios, possibilitada pelas lutas políticas, em contextos de crise. 135 Este poder sobre a memória futura, o poder de perpetuação, merece a desconfiança do historiador. 33 Assim, essas forças políticas, ao competirem entre si no sentido de assegurarem o monopólio da definição legítima de construção da identidade nacional, utilizarão, como estratégia política, argumentos em torno de propriedades rácicas/características somáticas para efeitos de mobilização do maior número populacional tendo em conta a natureza sociológica da sociedade angolana136. Uma dinâmica que implica a construção de identificações, ou seja, (re)invenção de uma homogeneidade que passa simultaneamente por delimitar fronteiras e territórios – frequentemente somáticos – no sentido de definir um interior e um exterior. Julgamos que a construção de uma identidade nacional, gerada pelo campo político angolano, implicou também o recurso, com maior ou menor intensidade, a determinados elementos identitários de entre os quais a raça, com o intuito de construir e regular sentimentos de pertença. Como tal, não podemos compreender o processo de luta pelo monopólio da definição da identidade nacional sem incorporar, como objecto, o objectivo da luta pela definição da raça. Em Angola, definir uma identidade racial, ou seja, veicular o sentimento de pertença a uma raça, é parte integrante da acção política137. Compreender o campo político angolano como espaço de luta de classificação, – e como tal espaço de luta pela definição da identidade legítima – tendo em conta esta forma particular de luta de classificação que é a luta pela definição de quem é branco, negro ou mestiço. Eis o nosso propósito. 2.2 Opção disciplinar No estudo das relações raciais na sociedade angolana ganha centralidade a análise histórica. Assim, pensamos o problema numa perspectiva histórica na medida em que tais propriedades resultam de uma lenta construção social por parte de actores sociais individuais/colectivos, em diversos contextos históricos, através de processos de classificação/reavaliação sócio-rácica materializados em lutas que por sua vez contribuíram para a (re) construção das identidades no espaço sócio político angolano. 136 No respeitante à dinâmica interna de cada uma das organizações políticas veremos como em momentos de crise a questão racial, adquire importância nas lutas internas, no seio do MPLA quando o que está em jogo é o controlo dos centros de decisão e a mobilização do maior número. Ver Reis (2002) e Reis e Reis (1996). 137 E, convém recordar, uma herança do Estado colonial no seu processo de criação identificadora dos grupos sociais. 34 Será acima de tudo uma História do Presente, na sua dimensão política. Todavia, mais do que descrever factos imediatamente apreensíveis, pretendemos descobrir a teia de relações, as estratégias subjacentes a estas relações que, no domínio das lutas políticas, se apresentam frequentemente como um estado de relações de força. Estado de relações, mais visível em contextos de crise, em que determinadas categorias, politicamente instrumentalizáveis, se assumem como elementos identitários. Pretendemos elaborar uma História que articule a ruptura e a permanência. Que consiga criar uma tensão entre a história narrativa e a história problema, sem que uma ganhe dianteira em relação à outra. Dada a extensão e profundidade dos fenómenos numa perspectiva histórica de longa duração, escolhemos um tratamento histórico onde a análise diacrónica se combina com um enfoque sincrónico de relativa profundidade. É razão do apelo à perspectiva sociológica, sobretudo no domínio da sociologia política, porque é nesta última que encontrámos propostas teóricas – que posteriormente desenvolveremos – pertinentes no respeitante a uma questão nuclear na nossa análise: o fenómeno político abordado como espaço de relações de força, como tal, de lutas políticas, que por sua vez podem apresentar-se como lutas de classificação em torno das propriedades rácicas, e, assim, revestir a forma particular de lutas identitárias. Deste modo, tendo em consideração a pergunta de partida, encontrámos ganhos teóricos ao estabelecermos, do ponto de vista analítico, uma relação entre as classificações “raciais» e a sua possível instrumentalização política. Esta – boa – tensão entre história narrativa e história problema apela para uma aproximação à Sociologia, tendo como referência a teoria dos campos sociais de Pierre Bourdieu. Assim, a abordagem diacrónica terá como referência um aparelho conceptual tomado de empréstimo à Sociologia Política, de modo a concretizar o corte sincrónico por um lado e, por outro, impedir que o facto histórico seja apreendido de um modo atomístico. Convém sublinhar que, numa perspectiva científica, o facto histórico, se merece ser individualizado, tem de ser explicitado, explicado, contextualizado no tempo e no espaço, em suma conceptualizado. Somente assim a nossa investigação poderá determinar as circunstâncias concretas que possibilitaram a permanência em Angola, de classificações assentes na noção de raça. 35 2.3 A construção do objecto de investigação. A força dos conceitos Uma vez identificada a opção disciplinar, podemos passar à discussão do ângulo de abordagem a adoptar no estudo do objecto. A problematização da construção social das identidades será o nosso ponto de partida. No nosso entender, a identidade é pensada tendo em conta duas abordagens: a essencialista e a construtivista. A primeira trata a identidade como dado adquirido. O que torna mais fácil a classificação de um objecto pré-construído na medida em que são realidades notadas. Por sua vez, a perspectiva construtivista e relacional considera as identidades como espaços de relações, construídas, fluidas e múltiplas. Reconhecemos que estas duas abordagens não põem fim a uma certa banalização da categoria identidade, na medida em que segundo Brubaker: “as ciências sociais e humanas capitularam perante o termo identidade. A Identidade é uma palavra-chave do vocábulo da política contemporânea e deve ser tida em conta na análise social. Todavia, isto não significa que a identidade deva ser utilizada como categoria analítica ou tornar o conceito de identidade como algo que nos remete para algo que as 138 pessoas procuram, constroem e negoceiam” . No seu entender, a análise da política identitária apela para a necessidade de categorias desprovidas de ambiguidade. Interpretar as particularidades em termos de identidade é um limite tanto à imaginação política como à imaginação analítica, pois elimina toda uma série de possibilidades de se debruçar sobre a acção política na medida em que não ultrapassa, o mero recurso a determinadas noções que assentam numa pretensa identidade partilhada139. Porém, julgamos que para o nosso trabalho a categoria identidade é pertinente, na medida em que nos permite, na análise da dinâmica do campo político angolano, descortinar processos de identificação e diferenciação. Não nos vamos deter no debate teórico desta questão, nomeadamente em torno das posições assentes na Psicologia e Sociologia, pois presentemente parece haver um consenso de que a noção de identidade estabelece uma ligação entre o psicológico e o sociológico “visto que 140 receber uma identidade é um fenómeno que deriva da dialéctica entre o indivíduo e a sociedade” 138 . Todavia, não “Ranger sous le concept d’«identité» tout type d’affinité et d’affiliation, toute forme d’appartenance, tout sentiment de communité, de lien ou de cohésion, toute forme de autocompreension et d’auto-identification c´est s’engluer dans une terminologie émoussé, plate et indifférenciée”. Brubaker (2001: 66). 139 Brubaker (2001: 84) 140 Amâncio em Vala e Monteiro (1993: 390); Berger e Luckman (1985: 230). Muito embora esta dialéctica entre indivíduo e sociedade tenha sido objecto de diferentes conceptualizações. Assim por exemplo, na Sociologia, G. H. Mead, no âmbito da articulação entre o psicológico e o sociológico no tratamento do conceito de identidade. Considera que o eu emerge da interacção entre um elemento-sujeito criativo de ordem psicofisiológica e um 36 negando esta relação entre indivíduo e sociedade, convém reforçar que, tal como a Psicologia já o tinha feito, “a margem de intervenção individual na construção identitária não é realizável no quadro de uma 141 autonomia e criatividade absolutas” . O que significa que: “apesar de relativos, isto é, dependentes do lugar dos agentes de socialização familiar na estrutura de distribuição do conhecimento, os sistemas de classificação (…) são inexoravelmente vivenciados como absolutos. Por outras palavras, não são subjectivamente captados como classificações arbitrárias, construídas em função de uma localização social objectiva, mas, ao contrário, como 142 realidades substantivas inerentes à própria natureza das coisas” . Significa isto que, em certa medida, não se pode dissociar a análise da génese das estruturas mentais dos indivíduos biológicos da análise da génese das próprias estruturas sociais, na medida em que as primeiras são em parte o produto da incorporação das segundas143. E, por conseguinte: “o espaço social e os grupos que nele se distribuem são produto de lutas históricas nas quais os agentes se empenham em função das suas posições no espaço social e 144 das estruturas mentais através das quais apreendem este espaço” . Porque essas lutas históricas são também lutas de classificação, é possível estudar estas últimas do ponto de vista genético e político da sua formação, selecção e imposição145. No caso do estudo da sociedade angolana, o recurso a um ponto de vista teórico que articule lutas históricas e lutas de classificação não pode estar dissociada da análise dos processos de identificação e diferenciação com os processos de recomposições dos equilíbrios entre sistemas pré-coloniais e os efeitos da dominação colonial. É preciso, igualmente, ter em conta que as transformações verificadas no sistema económico e político após a independência se repercutiram (embora num curto espaço de tempo) nos esquemas de percepção e de avaliação dos grupos sociais relativamente à sua própria condição e à do outro. O que, em certa medida, influenciou a reorientação do modo como se estabeleceram afinidades, solidariedades e estratégias de acção. elemento-objecto que constitui a interiorização das atitudes dos outros, e se traduz, nas interacções sociais pela capacidade de assumir a posição do outro. Segundo ele, o eu, enquanto objecto para-si, é essencialmente uma estrutura social e nasce da experiência social. Amâncio em Vala e Monteiro (1993: 390-391); Mead (1963: 115) 141 Gros (1998:277). Como exemplifica Vala (1993: 910): "A teoria distingue o nível das relações intergrupais do nível das relações interindividuais. No nível intergrupal, o comportamento do indivíduo x não é explicado enquanto dependente do indivíduo y, mas enquanto dependente das relações entre o grupo a e o grupo b. Contudo este nível de análise das crenças e comportamentos individuais, supõe a saliência de uma dada dimensão da identidade social, e a identidade social (dimensão do autoconceito que decorre do reconhecimento da pertença a grupos ou categorias sociais) não é independente do processo psicológico de autocategorização. O conceito de identidade social, que oferece vias de explicação da dinâmica das representações sociais e dos comportamentos, é, assim, um conceito articulador de processos psicológicos e sociais." 142 Gros (1998:277). 143 Bourdieu (1987: 24). 144 Bourdieu (1987: 24). 145 Bourdieu e Wacquant (1992:22). 37 Estas considerações induzem-nos a pensar o processo de construção das identidades tanto em termos diacrónicos como sincrónicos. Vamos pois, por um lado, pensar um tal processo de um ponto de vista histórico e pluridimensional, e, por outro, vamos pensá-lo como processo social em que cada domínio de socialização é relevante no percurso dos actores. De entre esses domínios sublinhamos: i) as condições materiais de existência através das quais se concretiza a apropriação simbólica do mundo, (produção de afinidades e identificação das diferenciações sociais onde se gera a reprodução/naturalização de distinções com elevada eficácia estrutural tal como a definição de hierarquias sociais); ii) as relações sociais, desde a interacção às trocas afectivas até às redes de exercício de poder e autoridade; iii) os registos simbólico-discursivos com a difusão de construções jurídico-normativas, de ideologias, de mitologias que legitimam os fundamentos da organização social e as “qualidades» dos diferentes grupos sociais”146. A identidade é, pois, um processo dinâmico e não um dado objectivo e imutável147. Podemos inferir desta discussão que a compreensão dos fenómenos identitários como práticas de construção social exige que as Ciências Sociais façam uso de instrumentos teóricos que considerem tais fenómenos como relacionais, como conjuntos estruturados de elementos identitários, cuja definição pressupõe situações de acção e interacção. As situações que aqui nos interessam são as situações de conflito e/ou competição em que as lutas de classificação são parte integrante do jogo político148. Jogo este em que os sistemas de classificação (re) produzem categorias que mobilizam, em forma irreconhecível, as divisões da estrutura social; A acção política é também fundamentar uma determinada divisão do mundo social, através de um discurso que converte propriedades sociais em propriedades de ordem natural149. Como tal, a ideologia, sendo um sistema de classificação, pode contribuir para a (re) produção de identidades150. Umas breves considerações acerca da ideologia ganham por isso pertinência, na 146 Pinto (1999: 11-12). Procuramos uma abordagem que relacione sentimento de pertença com a acção social na sua dimensão política. 148 A identidade é também utilizada pelos líderes políticos para persuadir as pessoas a entenderem-se tendo em conta os seus interesses e as suas dificuldades, em certa medida, para persuadir (com determinados fins) certas pessoas que são idênticas entre elas e simultaneamente diferentes de outras pessoas, e para canalizar, com justificação, a acção colectiva para um certo rumo. Brubaker (2001: 69). 149 Ex: dos brancos, mestiços e negros. É aquilo que Bourdieu denomina de efeito ideológico que consiste na imposição de sistemas de classificação políticos sob a aparência legítimas de taxinomias filosóficas, religiosas, jurídicas, etc. Bourdieu (1989: 14). 150 Segundo Althusser (1980: 111) a ideologia assegura: “o reconhecimento mútuo entre os sujeitos e o Sujeito, e entre os próprios sujeitos e finalmente o reconhecimento do sujeito por ele próprio”. 147 38 nossa abordagem, na medida em que o nosso trabalho remete principalmente para a dimensão política das classificações151. Adquire importância, para a nossa abordagem, a perspectiva de Marx e Engels na medida em que partem do pressuposto de que a ideologia é uma construção imaginária destinada a encobrir a vida real. A abordagem destes dois filósofos tem como ponto de partida a crítica à religião. Segundo eles, o homem faz a religião e não é a religião que faz o homem152. É um primeiro esboço do paradigma da consciência invertida que iria criar o cenário para a concepção de ideologia153. Marx e Engels consideravam que as concepções da religião e da política tinham bases idealistas e, como tal, eram mal construídas. Tornava-se necessário explicar o mundo das ideias através de uma concepção materialista; a partir da prática material: ”a produção das ideias, representações, da consciência está a princípio directamente entrelaçada com a actividade material e o intercâmbio 154 material dos homens, à linguagem da vida material” . Melhor dito, pensar a ideologia como produção das ideias ligada à actividade material155. Para Marx e Engels, a ideologia não é prática do real mas sim representação do real. Pois, tem por função proteger os interesses da classe dirigente: “As ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes, ou seja da classe que é o poder material dominante da sociedade é, ao mesmo 156 tempo o seu poder espiritual dominante” . Significa isto que o que torna as ideias ideológicas é o facto de elas esconderem a verdadeira natureza das relações sociais e assim servirem para justificar a distribuição desigual, na sociedade, dos recursos sociais e económicos. A partir do conceito de divisão do trabalho, Marx e Engels reforçam a sua noção de ideologia. Segundo eles, há uma relação entre a divisão do trabalho material e divisão do trabalho mental: ”A classe que tem os meios de produção material à sua disposição, dispõe assim, ao mesmo tempo, dos meios para a produção espiritual, pelo que lhe estão assim, ao mesmo tempo, submetidas em média as 157 ideias daqueles a quem faltam os meios para a produção espiritual” . O que pressupõe que a classe 151 O termo ideologia foi utilizado pela primeira vez por Cabanis, Desttut de Tracy e pelos seus amigos para designar a ciência que tem por objecto o estudo da natureza e da origem das ideias. Althusser (1980: 69). 152 Marx e Engels (1976: 15-16); Ricoeur (1991: 96). 153 Ricoeur (1991: 96) 154 Marx e Engels (1982:13). 155 Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas pelo contrário, o seu ser é que determina a sua consciência. Marx e Engels (1976: 26). 156 Marx e Engels (1982:38). 157 Marx e Engels (1982:38). 39 dominante é a força material dominante e simultaneamente a força intelectual dominante. Ou seja, aqueles que não possuem os meios de produção mental estão sujeitos às ideias dominantes, as quais, não são mais do que a expressão ideal das relações materiais dominantes apreendidas e concebidas como ideias. Uma classe social dominante determina as ideias, numa determinada época histórica, em todas as suas dimensões e como tal, entre estas últimas regula, através dos pensadores como produtores de ideias158, a produção e distribuição das ideias do seu tempo que são obviamente as ideias dominantes: “A divisão do trabalho, que já atrás encontrámos como uma das principais forças da história até aos nossos dias, manifesta-se agora também na classe dominante como divisão do trabalho espiritual e material, pelo que no seio desta classe (os ideólogos conceptivos activos da mesma, os quais fazem da ilusão dessa classe sobre si própria a sua principal fonte de sustento), ao passo que outros têm uma atitude mais passiva e receptiva em relação a estas ideias e ilusões, pois que na realidade são eles os membros activos desta 159 classe têm menos tempo para criar ilusões e ideias sobre si próprios” . A ideologia está em oposição à realidade, à vida material, às condições materiais dessa vida real, àquilo que existe, que é verificável. Confirma-se o paradigma da inversão (ex: da câmara escura)160. Esta relação entre o domínio das representações e a realidade só pode ser entendida e explicada a partir das relações de produção ou seja da divisão do trabalho. Com efeito, encontramos em Marx e Engels uma concepção de ideologia como um sistema de representações ou ideias, as quais correspondem a formas de consciência que os homens têm161. Há uma visão negativa dos “fenómenos ideológicos”, na medida em que são associados a representações, ideias e pensamentos que são qualificados super-abundantemente como quimeras, dogmas, formas imaginárias, ilusão, sonho, arbitrários em oposição a realidade da vida material, condições materiais dessa vida real, aquilo que existe, que é verificável, o homem em carne e osso, etc.162 Como tal, tornava-se necessário eliminar a ideologia e para isso era necessário transformar as relações sociais existentes163. 158 Ou, dito de outra forma, produtores ideológicos. Marx e Engels (1982:39). 160 Marx e Engels (1976: 25). 161 Belo (1977: 10). 162 Belo (1977: 10). Por um lado a ideologia distorce a realidade e por outro ela opõe se à ciência. Ver também Marx e Engels (1976: 18-29); Boudon (1986: 30); Althusser (1977: 31). 163 Belo (1977: 11). Esta concepção de ideologia foi sendo aplicada aos conceitos de infra-estrutura e superstrutura. “Marx concebe a estrutura de qualquer sociedade como constituída pelos níveis ou instâncias, articuladas por uma determinação específica: a infraestrutura ou base económica (unidade das forças produtivas e das relações de produção), e a superestrutura, que comporta em si mesma dois níveis ou instâncias: o jurídico-político (o direito e o Estado) e a ideologia (as diferentes ideologias, religiosas, moral, jurídica, política, etc.).” Althusser (1980: 25-26). 159 40 Na senda de Marx e Engels, Althusser, considera que a ideologia, é uma representação da relação imaginária dos indivíduos com as suas condições de existência: “ Não são as condições de existência reais, o seu mundo real, que «os homens» «se representam» na ideologia mas é a relação dos homens com estas condições de existência que lhes é representada na ideologia. É esta relação que está no centro de toda a representação ideológica, portanto imaginária, do mundo real. É nesta relação que está contida a «causa» que deve dar conta da deformação imaginária da representação ideológica do mundo real. (.....) Falando numa linguagem Marxista, se é verdade que a representação das condições de existência real dos indivíduos que ocupam postos de agentes da produção, da exploração, da repressão, da ideologização, da prática científica, releva em última instância das relações de produção e das relações derivadas das relações de produção, podemos dizer o seguinte: toda a ideologia representa, na sua deformação necessariamente imaginária, não as relações de produção existentes (e as outras relações que delas derivam), mas antes de mais a relação (imaginária) dos indivíduos com as relações de produção e com as relações que delas derivam. Na ideologia, o que é representado não é o sistema das relações reais que governam a existência dos indivíduos, mas a relação imaginária destes indivíduos com as relações reais em que vivem” 164 . No entanto, considera o mesmo que a ideologia goza de uma autonomia relativa porque a estrutura da ideologia é comandada pela sua problemática, conjunto de questões da estrutura social complexa a que o discurso ideológico (aparenta que) responde. A unidade e coerência de uma ideologia deve ser descortinada na unidade dessa problemática. É esta que é determinada pelas instâncias económicas e políticas de formação social165. Para Althusser a ideologia desempenha uma função histórico-social, na medida em que esta última é considerada: “um sistema (com a sua lógica e rigor próprios) de representações (imagens, mitos, ideias ou conceitos, conforme o caso), que tem uma existência e um papel histórico no seio de uma dada 166 sociedade” . Assim ela é uma parte: “orgânica de toda a totalidade social. É como se as sociedades humanas não pudessem sobreviver sem estas formações específicas, estes sistemas de representações (a vários níveis), as suas ideologias. As sociedades humanas segregam ideologia como o próprio elemento e atmosfera indispensáveis à sua respiração e vida históricas. Só uma concepção ideológica do mundo poderia ter imaginado sociedades sem 164 Althusser (1980: 81- 82). Belo (1977: 13); Alhusser (1977: 59); Nico Poulantzas prolongou a tese althussseriana da autonomia do nível ideológico, realçando a sua autonomia em relação ao económico e ao político. Segundo ele a ideologia, conjunto de representações, valores, crenças com coerência relativa, diz respeito, em última análise, ao “vivido humano” dos agentes da formação social. A sua função, contrária à da ciência, é ocultar as relações reais, reconstituindo num plano imaginário um discurso que serve de “horizonte” ao “vivido” dos agentes, inserindo-os assim na unidade relações sociais. Esta função de coesão foi assinalada por Gramsci, sob a metáfora da ideologia como cimento duma formação social. Belo (1977:13) 166 Althusser (1977: 238). Recordamos que não pretendemos problematizar a ideologia por oposição à ciência. O que podemos salientar é que, segundo Althusser, a ideologia, como sistema de representação, se distingue da ciência pelo facto de nela, a função prático-social ser mais importante que a função teórica (função como conhecimento) idem (1974: 238); ver também Ricoeur (1991:256-257). 165 41 ideologia e aceitado a ideia utópica de um mundo em que a ideologia (e não uma das suas formas históricas) viesse a 167 desaparecer sem deixar traço, para ser substituída pela ciência. A ideologia é um dado adquirido” . Althusser entende que a ideologia é essencialmente estruturante e não se esgota no domínio de uma classe dominante pois ela tem como função a reprodução das relações de produção quaisquer que sejam elas. Eis uma dimensão positiva da ideologia. Assim, ao contrário de Marx e Engels, Althusser entende que nenhuma sociedade, quer seja capitalista ou comunista, pode prescindir desta última, quer seja na arte, na moral ou na representação do mundo168. A ideologia existe sempre num aparelho e na sua prática ou práticas. Como tal tem uma existência material169. Uma outra função da ideologia, segundo Althusser, é que esta última interpela os indivíduos como sujeitos, ou seja “só existe ideologia pelo sujeito e para sujeitos”: “a categoria de sujeito só é constitutiva de toda a ideologia, na medida em que toda a ideologia tem por função (que a define) 170 «constituir» os indivíduos concretos em sujeitos” . Georges Duby, influenciado em certa medida por Althusser,171 considera que as ideologias apresentam as seguintes características: • Surgem como sistemas completos, sendo por isso globalizantes172; • A primeira função das ideologias é tranquilizar, como tal são, deformantes173; 167 Althusser (1977: 238) e Ricoeur (1991: 261). Althusser (1977: 239). 169 “ Designamos por aparelho ideológico de Estado um certo número de realidades que se apresentam ao observador imediato sob a forma de instituições distintas e especializadas. (....) podemos desde já considerar como aparelhos ideológicos de Estado as instituições seguintes (.....) AIE religioso (o sistema das diferentes igrejas), (......) AIE político (o sistema político de que fazem parte os diferentes partidos”. Althusser (1980: 43-44). O mesmo considera que nenhuma classe pode deter de forma duradoira o poder de Estado sem exercer ao mesmo tempo a sua hegemonia sobre e nos aparelhos ideológicos de Estado e que: “os Aparelhos Ideológicos de Estado podem ser não só o alvo mas também o local de luta de classes e por vezes formas renhidas de luta de classes.” Althusser (1980: 49). Há uma definição de ideologia na sua dimensão funcional ao associar a ideologia, na sua eficácia, à noção de aparelho ideológico como legitimadora dessa mesma função. 170 Althusser (1980: 94). O que nos remete para a questão da produção das identidades. Ainda a propósito da dimensão funcional da ideologia, interessante é a abordagem de Karl Manhheim que distingue entre ideologia e utopia. A primeira tem por função manter e justificar as estruturas sociais existentes, em benefício da classe dominante, enquanto a utopia (considerada irrealizável pela classe dominante) é o discurso revolucionário que propõe a transformação social. Belo (1977: 12-13). 171 Ver supra citado. 172 “Pretendendo oferecer da sociedade, do seu passado, presente e do seu futuro, uma representação de conjunto integrada na totalidade de uma visão do mundo”. Duby (1977: 175) 173 Porque a “visão societal que apresentam, nomeadamente da organização social, dissimula e deturpa determinados aspectos das relações sociais de modo a servirem interesses particulares,” sobretudo no que diz respeito à determinadas funções sociais e económicas Duby (1977: 176) 168 42 • As ideologias são concorrentes, na medida em que numa dada sociedade coexistem vários sistemas de representações174; • As ideologias são estabilizantes. São sistemas de representações que têm por objectivo preservar, muitas vezes, privilégios adquiridos pelas camadas sociais dominantes. Esta estabilidade deve-se ao facto de que as representações ideológicas “participam do peso inerente a todos os sistemas de valores, cuja armadura é composta de tradições”175; • As ideologias baseiam-se sempre numa visão da história. Como tal, estimulam a acção. Possuem, por isso, um carácter prático, contribuindo assim para o movimento da história. Neste processo, elas transformam-se porque existe uma relação íntima entre as relações vividas e a representação que as pessoas fazem delas176. Por outro, nos momentos de crise, as ideologias tendem a adaptar-se ou, então, quando estão confrontadas com ideologias antagónicas, podem endurecer, flexibilizar-se177; • Os sistemas ideológicos sofrem transformações quando o conjunto cultural que os envolve está sujeito a influência de culturas (dificilmente uma cultura está isolada) alógenas e circundantes178; 174 “Reflectem antagonismos devido muitas vezes a justaposição de etnias separadas mas que são sempre determinados pela disposição das relações de força. Numerosos caracteres comuns aproximam essas ideologias visto que as relações vividas, cuja imagem oferecem, são as mesmas e visto que se edificam no interior de um mesmo conjunto cultural e se exprimem na mesma linguagem. Normalmente, contudo, umas apresentam-se como imagens invertidas, das outras, a quem afrontam que concorrem uma com as outras. Duby (1977: 176). Quanto a nós, a mesma ideologia implica várias representações em torno dela ou então várias ideologias implicam uma mesma representação em torno delas.), Ex: a luta pela definição de quem é nacional ou racial. 175 Duby, (1977: 177-178), realça o carácter conservador das ideologias: “ O conservantismo apoia-se na própria hierarquia social. Os estratos dominantes, cujos interesses são servidos por modelos ideológicos mais bem armados do que os outros, dão-se geralmente ao luxo, e na medida exacta em que a sua superioridade material lhes parece mais certa, de encorajar as inovações no domínio da estética e da moda. Contudo, no mais íntimo deles mesmos, mostram-se muito atentos em se defenderem contra todas as mudanças menos superficiais que poderiam vir a pôr em questão o poder e as vantagens que detêm.” Nas sociedades agrárias a estabilidade apoia-se frequentemente no costume. Idem (1977: 175). 176 Isso faz com que as modificações nas relações vividas afectem – pouco ou muito – as representações que as pessoas fazem delas. Duby (1977: 178-179). 177 “Quando se acelera a evolução económica ou demográfica, ou então, sob o efeito dessa evolução, se operam mutações no interior das estruturas políticas, as ideologias devem adaptar-se, para melhor resistir ou para melhor vencer. Face às outras ideologias adversas, endurecem ou tornam-se flexíveis, afirmam-se ou dissimulam-se, mascaram-se com o véu de novas aparências. Quando se encontram em situação de força, conseguem integrar, em parte, no sistema que constituem as imagens ou modelos que do exterior as vinham ameaçar, dominá-las, submetêlas, empregá-las, na consolidação das suas posições Duby (1977: 179). 178 “Esta intrusão procede frequentemente de uma desigual relação de forças entre civilizações em confronto. Neste caso, a irrupção é por vezes brutal quando ela acompanha as transformações políticas que a invasão ou a colonização 43 Como historiador mediavalista, Duby não descura a componente estrutural dos sistemas ideológicos nomeadamente no que concerne à legitimar a divisão do mundo social através de funções sociais e económicas179. O sociólogo Pierre Bourdieu salienta a dimensão simbólica e a função política da [ideologia], na medida em que, segundo ele: “[as ideologias] cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação que cumprem a sua função política, contribuindo, assim, 180 para a domesticação dos dominados” . O mesmo considera que as ideologias servem interesses particulares, que tendem a apresentar-se como interesses universais, comuns ao conjunto do grupo: trata-se de legitimar uma ordem estabelecida por meio do estabelecimento de distinções (hierarquias) e para a legitimação das últimas; um efeito ideológico produzido pela cultura dominante, que dissimula a função da divisão na função da comunicação181. Sendo assim, a função ideológica (discurso dominante) do campo de produção ideológico é que tende a impor a apreensão da ordem estabelecida como natural (ortodoxia) por meio da imposição mascarada (ignorada como tal) de sistemas de classificação e de estruturas mentais objectivamente ajustadas às estruturas sociais182. Este sociólogo reforça a sua perspectiva relacional através da noção de campo de produção simbólica, na medida em que as ideologias são sempre determinadas e porque elas devem as suas características mais específicas não só aos interesses de classes ou das fracções provocam. Muito frequentemente, é insidiosa e resulta do fascínio exercido de longe por crenças e ideias ou modos de vidas sedutores. Mas a contribuição pode também ser deliberada, porque as ideologias procuram apoio em toda a parte. Duby (1977: 180). 179 O autor refere-se a divisão do mundo social mediaval cujos fundamentos eram tão eficazes que influenciaram a análise de certos historiadores. Duby (1977: 176). 180 Bourdieu (1989: 11). 181 “ A cultura que une (intermediário da comunicação) é também a cultura que separa (instrumento de distinção) e que legitima as distinções compelindo todas as culturas (designadas como subculturas) a definirem-se pela sua distância em relação à cultura dominante”. Bourdieu (1989: 10-11). 182 Discurso dominante que se adapta a definição de poder simbólico apresentada por Bourdieu: “O poder simbólico como poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a acção sobre o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que se pode obter pela força (física ou económica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário. Isto significa que o poder simbólico (…) se define numa relação determinada – e por meio desta - entre os que exercem o poder e os que lhe estão sujeitos, quer dizer, isto é, na própria estrutura do campo em que se produz e se reproduz a crença. O que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja a produção não é da competência das palavras Bourdieu (1989: 14-15). 44 que elas exprimem (função da sociodiceia), mas também aos interesses específicos daqueles que as produzem e à lógica específica do campo de produção183. Portanto, não se pode conceber a ideologia sem ter em conta: “Os sistemas ideológicos que os especialistas produzem para a luta pelo monopólio da produção ideológica legítima. (....) mais precisamente, por um 184 campo de produção e de circulação relativamente autónomo” . Não se pode, portanto, apreender as ideologias sem ter em conta a sua estrutura e as funções que elas exercem, quer dizer, as condições sociais da sua produção e da sua circulação; as funções que exercem tanto para os produtores ideológicos, como para aqueles que não possuem as competências para a produção ideológica185. É uma abordagem que possibilita uma reflexão acerca das ideologias, sem cair, por um lado, na tentação do marxismo ortodoxo que reduz os produtos ideológicos aos interesses de classe, mas, por outro, evita a tentação idealista, que consiste em pensar as produções ideológicas como totalidades auto-suficientes e auto geradas, passíveis de uma análise meramente interna. Paul Ricoeur, procura, de entre as várias propostas, construir um conceito de ideologia através de noções como integração ou identidade186. Considera, portanto, que a ideologia, embora apresente um carácter de distorção e legitimação, tem uma função integrativa, isto é, de preservar a identidade do grupo ao longo do tempo187na medida em que “A ideologia é a instituição social que assegura a identidade”188. O autor, exemplifica com a comunidade política como fenómeno histórico, a qual, segundo ele: “É um processo cumulativo que reclama alguma coisa do 183 Bourdieu (1989: 13). “As diferentes classes e fracções de classe estão envolvidas numa luta propriamente simbólica para imporem a definição do mundo social mais conforme aos seus interesses, e imporem o campo das tomadas de posições ideológicas reproduzindo em forma transfigurada o campo das posições sociais”183. “As tomadas de posição ideológica são estratégias que tendem a reforçar dentro da classe e fora da classe a crença na legitimidade da dominação da classe”. Idem (1989:10-11) 184 Bourdieu (1989: 12) O que implica uma História - não só da produção ideológica como da constituição de sub campo - dos produtores ideológicos. O sublinhado é nosso. 185 Bourdieu (1989: 13). No nosso caso esta apreensão tem de ter igualmente em conta o processo da divisão do trabalho político, que é uma dimensão da divisão do trabalho social; divisão que contém a desigual distribuição dos bens de “salvação política”, ou seja, da relação entre os que possuem e não possuem, os instrumentos da produção ideológica. 186 Para tal, vai recorrer a Clifford Geertz. 187 Ricoeur (1991: 364 e 426). 188 Ricoeur (1991: 431). Ricoeur apela para Erik Eriksson para justificar a função integrativa da ideologia: “Para Eriksson, a ideologia é a guardiã da identidade. Pois a instituição social que é a guardiã da identidade é aquilo que chamamos ideologia. E, Ricoeur continua a citar Eriksson: “De forma mais geral (...) um sistema ideológico é um corpo coerente de imagens, ideias e ideais partilhados que (....) fornece aos participantes uma orientação global coerente, ainda que sistematicamente simplificada, no espaço e no tempo em meios e fins 45 seu passado e antecipa alguma coisa do seu futuro. Um corpo político existe, não só no presente como no passado e 189 no futuro, e a sua função é ligar passado, presente e futuro” . Outro aspecto positivo da ideologia como integração, segundo Ricoeur, é que ela suporta a integração de um grupo tanto no espaço como no tempo. Ela funciona tanto na diacronia como na sincronia. E, no respeitante à diacronia: (.....) ”A memória dos acontecimentos de fundação de grupo é extremamente importante; a repetida representação dos acontecimentos da sua fundação é um 190 acto ideológico fundamental” . Em suma, Ricoeur considera que a ideologia, apesar de pressupor distorção, legitimação e integração, tem por função encenar um processo de identificação que espelha a ordem tanto no sentido positivo como negativo; ela preserva a identidade mas conserva o que existe e, como tal, é uma resistência.191. Desta abordagem “Ricoeuriana” vamos reter a função de legitimação e identificação. Sendo assim, a ideologia será também abordada, aqui no nosso trabalho, sobretudo como sistema de classificação política tendo em conta discursos e práticas de identificação produzidos pelo campo político angolano, nomeadamente, no que concerne a taxionomias raciais aplicadas na construção de grupos sociais. Ou seja, nas estratégias de (re) produção da identidade racial. Com efeito, em Angola, quem detém o monopólio do exercício da classificação legítima é o campo político192. Lugar privilegiado para legitimar processos de identificação, e por conseguinte de identização. É que prevalecem no campo político, – como espaço de relações de forças e como tal de lutas (de entre as quais as lutas de classificação) – práticas e discursos tanto de exclusão como de inclusão193. 189 Ricoeur (1991: 364). Porém, Ricoeur não se restringe a uma definição de ideologia meramente política: “ (...) A ideologia tem uma função mais vasta do que a política na medida em que é integrativa. Mas, quando a integração chega ao problema da função autorizada de modelos, a política torna-se o centro das atenções e a questão da identidade a moldura. O que está finalmente em causa no processo de integração (....) é o modo como podemos fazer a transição da noção geral de uma relação social para a noção de governantes e governados”. (Nós acrescentamos que no caso específico de Angola, acontece o inverso: é como fazer a transição do político para uma noção geral de uma relação social). 190 Ricoeur (1991:435). 191 É aí que ela esgota a sua função. Ao contrário, a utopia tem por função transformar. Ricoeur (1991:441). 192 É, portanto, a dimensão política da ideologia que nos importa reter. 193 Significa isto, que a nossa abordagem vai realçar sobretudo a componente relacional do conceito, nomeadamente, no respeitante a processos de identificação e identização 46 A referência ao político ganha, agora, pertinência para a nossa reflexão. Face a este nível de abordagem, recorremos a algumas questões, levantadas pela sociologia política, que nos ajudam a dar mais um passo na problematização do nosso objecto de estudo. Assim, começamos por focar a nossa atenção sobre os mecanismos do poder e da dominação, questão que constitui um dos eixos da investigação da sociologia política. O estudo deste (s) fenómeno (s), incide, em grande parte, sobre temáticas decorrentes da questão do poder político194. O estudo do poder político não é um espaço teórico homogéneo, mas sim caracterizado por posicionamentos diferenciados. O marxismo clássico fundamenta a sua argumentação na questão geral de saber quem detém globalmente o poder e, neste sentido ganham relevância as explicações sobre o poder político que buscam respostas no estudo da infra-estrutura económica. A análise do poder liga-se assim à das classes sociais e à caracterização sobretudo económica destas últimas195. O marxismo estruturalista, especificamente com Poulantzas, embora se sirva do conceito de classes sociais para abordar a questão do poder, aceita o princípio de uma autonomia relativa do espaço político. Para ele, o poder resulta da capacidade de uma classe realizar interesses e impor decisões, o que, consequentemente, acarreta oposições por parte de outras classes. É neste quadro que numa sociedade se assiste à emergência de relações de dominação, que se exprimem através da luta de classes196. Mas, centremos a nossa atenção sobre as propostas teóricas de Max Weber, que constituem, relativamente a esta questão, uma referência fundamental. Na sua análise, ele distingue entre os conceitos de poder e de dominação. Para este autor, o poder é definido como: 197 “a possibilidade de impor a sua própria vontade numa relação social contra toda a resistência” ; enquanto que a dominação é definida como: “a possibilidade de conseguir obediência a uma ordem de determinado conteúdo, entre 198 pessoas dadas” . Todavia, para que quem mande mantenha a sua posição de liderança é preciso que existam fundamentos que legitimem a dominação. Para Weber, as três fontes de legitimação são: 194 Lembramos que estas explicações são, contudo, em geral, atravessados pela questão da dicotomia micro versus macro, materializada, grosso modo, por duas abordagens fundamentais relativamente ao poder: i) como interacção entre grupos e indivíduos, ii) como um efeito das estruturas sociais globais. 195 Ver supra. 196 Poulantzas (1971: 119). 197 Weber (1983: 113). 198 Weber (1983:113). Aliás, para este autor, a dominação é relevante para a Sociologia quando se quer analisar modos de relação entre senhor ou senhores e o aparato de mando, e, entre estes e os dominados, assim como os princípios específicos da organização, quer dizer da distribuição dos poderes de mando. Weber (1983:705). 47 “a autoridade”, “a tradição” e o “carisma”. Fontes que, por sua vez, estão na base da sua construção dos tipos ideais de dominação a que ele respectivamente chama: a dominação racional, a tradicional e a carismática199. Bourdieu serve-se dos contributos de Marx e Weber, entre outros, para propor um estudo relacional do político, que ultrapasse as divisões micro/macro e indivíduo/sociedade. A sua análise das práticas políticas em termos de campo, habitus200 e capital permite pensá-las como fenómenos que se foram constituindo social e historicamente como políticos. Bourdieu considera que as sociedades, sobretudo as mais diferenciadas, são, constituídas por espaços de relações objectivas (microcosmos sociais) com lógicas e necessidades específicas e apresentando uma autonomia relativa201. Sendo assim, do ponto de vista analítico, o conceito de campo pode ser: “ definido como uma rede, ou uma configuração de relações objectivas entre posições. Estas posições são definidas objectivamente na sua existência e nas determinações que elas impõem ao seus ocupantes, agentes ou instituições, simultaneamente, pela sua situação actual e potencial na estrutura da distribuição das diferentes espécies de poder (ou de capital) cuja posse comanda o acesso aos ganhos específicos que estão em jogo no campo e pelas relações objectivas com as outras posições (dominação, subordinação, homologia, etc.)” 202 . Bourdieu compara o campo a um jogo203. Serve-se da metáfora do jogo para exprimir uma “primeira intuição” do seu entendimento de campo204. Como em qualquer jogo, o campo inclui não só o que está em jogo como também um investimento (illusio), ambos assentes na crença (doxa) de que vale a pena jogar o jogo. A colusão resultante está na base da competição e de conflitos entre jogadores com trunfos (capitais) hierarquicamente diferenciados205. O estado das relações de força, em cada momento, define a 199 Weber (1971: 219 e ss); Cruz (1989: 681 e ss). Não utilizaremos no nosso estudo o conceito de habitus definido por Bourdieu (1972:178-179) como um “sistema de disposições duráveis e transponíveis que integrando todas as experiências passadas, funciona em cada momento como uma matriz de percepções, apreciações e acções que torna possível a realização de tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas que permitem resolver os problemas da mesma forma e graças às correcções incessantes dos resultados obtidos, dialecticamente, produzidas por estes resultados”. 201 Bourdieu (1992: 73). 202 Bourdieu (1992: 72-73). Nesta medida, a lógica e as necessidades de cada campo são irredutíveis relativamente aos outros campos. Idem (1992: 73). 203 Embora, contrariamente ao jogo, ele não seja produto de uma criação deliberada e obedeça a regras, ou melhor, a regularidades não explícitas e codificadas (Bourdieu, 1992: 73). 204 Bourdieu (1992: 73 e ss). 205 "Da mesma maneira que a força relativa das cartas muda segundo os jogos também a hierarquia das diferentes espécies de capital (económico, cultural, social, simbólico) varia nos diferentes campos". Bourdieu (1992:74). 200 48 estrutura do campo. Todo e qualquer campo tem uma história social do seu nascimento (génese do campo) que constitui em certa medida o seu inconsciente histórico206. A partir do conceito de campo, torna-se possível pensar a construção do político na sociedade angolana, tendo em conta a sua especificidade não só relativamente à definição do que está em jogo, às crenças que o sustentam e aos princípios que o organizam, como também considerando as condições históricas e sociais da sua constituição. Por outro lado, pensar relacionalmente o fenómeno político servindo-nos do conceito de campo permite-nos abordá-lo como um campo de lutas por definições legítimas, isto é, como campo de conflitualidades, estas últimas entendidas dentro dos limites da crença fundamental que sustenta o interesse genérico da prática política. Permite ainda considerá-lo como um espaço de hierarquizações e consequentemente organizado em torno de classificações sociais, de entre as quais merecem, no nosso estudo, atenção analítica, as luta de classificações em torno das propriedades rácicas/características somáticas, que têm a particularidade de se processarem em contextos de crise. As crises apresentam um valor heurístico de grande importância, na medida em que são instrumentos de observação de práticas políticas (e não só), que possibilitam descortinar processos, dinâmicas, agentes, e estigmas muitas vezes dissimulados. Segundo Bastien a noção de crise foi importada, ao que parece, das ciências médicas, começando a generalizar-se no âmbito das análises do universo social nos séculos XVII e XVIII. Período em que se começa a aplicar a expressão crise económica207. A partir do século XIX a noção de crise é teorizada num duplo contexto: de grande progresso das ciências sociais, e de desenvolvimento do sistema capitalista. O qual por sua vez se caracterizava por crises cíclicas. A noção de crise estava frequentemente relacionada com movimentos periódicos da histórica económica208. Adquire nesta área disciplinar, grande relevância a abordagem marxista. A mesma propõe uma abordagem teórica segundo a qual a história do capitalismo é marcada pela frequente 206 "Pode imaginar-se que cada jogador dispõe de pilhas de fichas de diferentes cores tantas quantas as diferentes espécies de capital que detém, de modo que... a sua posição no espaço de jogo, e também as suas estratégias no jogo dependem simultaneamente do volume global das suas fichas e da estrutura do empilhamento de fichas (...). Mais precisamente do volume e da estrutura do seu capital num dado momento com as probabilidades que o jogo oferece...mas também da evolução no tempo do volume e da estrutura do seu capital (...) da trajectória social e das disposições (habitus) que se constituíram na relação prolongada com uma certa estrutura objectiva de possibilidades (...) Os jogadores podem jogar para aumentar e conservar o seu capital (...) mas podem também trabalhar para transformar parcial ou totalmente as regras imanentes do jogo. Bourdieu (1992: 74-75). Ver nota rodapé nº4. 207 Bastien (1989:12). 208 Barata (2002: 13). 49 e periódica produção de rupturas, desarticulações do equilíbrio global entre as esferas da produção e do consumo. Isto deve-se à fisionomia própria das relações de produção capitalistas, que se definem, num primeiro momento, pela interdependência contraditória entre as diversas unidades de produção (interdependência que se manifesta e resolve na troca de mercadorias regulada através da concorrência pela lei do valor) e, num segundo momento, pela separação e contradição entre produtores directos assalariados e os capitalistas detentores dos meios de produção e do produto resultante do trabalho daqueles209. Poulantzas, no seu contributo para o estudo da noção de crise, critica a perspectiva da abordagem puramente económica das crises porque considera que o político não é um simples reflexo ou expressão do económico. Para este autor, a noção de crise deve definir-se em função de objectos teóricos específicos, construídos no interior das diversas áreas disciplinares que compõem o vasto espaço das ciências sociais210. Os imperativos teóricos que norteiam a construção do nosso objecto remetem para uma perspectiva englobante do conceito de crise, ou seja, para uma abordagem multidisciplinar e multidimensional que não se pode dissociar das condições históricas da produção de qualquer crise. No caso da nossa investigação, constatamos que o campo político angolano é atravessado por múltiplas crises, para as quais convergiram uma série de factores de ordem militar (teatro de luta reduzido), económica (não assegurada a reprodução da vida material dos militantes), política (sem consenso relativamente à ocupação de posições - distribuição de lugares - tendo em conta a institucionalização do capital político adquirido) e simbólicoideológico (princípios de classificação como objecto de questionamento e de luta política). De igual modo, na Angola independente estes mesmos factores (militar, económico, político e simbólico-ideológico) iriam emergir como factores de convergência para que o novo Estado independente se tornasse um espaço de crise. 209 “Esta contradição, entre forças produtivas e a forma de troca que, como vimos, já se produziu diversas vezes no decorrer da história até aos nossos dias, sem todavia comprometer a sua base fundamental, traduziu-se necessariamente, em cada um dos casos, numa revolução, revestindo ao mesmo tempo diversas formas acessórias tais como todo um sem número de conflitos, choques de diferentes classes, contradições da consciência, luta ideológica, luta política, etc. Marx e Engels (1976: 76). 210 Poulantzas (1978: 22). Ernest Labrousse já tinha demonstrado que os ciclos económicos não coincidiam, necessariamente com os ciclos conjunturais ou sociais. Barata (2002: 13). 50 É nesta medida que o conceito de crise se apresenta como um instrumento analítico pertinente, sobretudo, para o exame dos diferentes acontecimentos independentes na sua dependência que convergiram para situações de crise no campo político angolano. Ao longo da nossa reflexão articulámos quatro problemas centrais, a saber: a identidade, a ideologia, o campo político e a crise. Para viabilizar esta articulação, considerámos ser pertinente reter as propriedades rácicas/características somáticas como um elemento ideológico/identitário. Trata-se, de problematizar estas propriedades como sistemas de classificação integradas em dinâmicas de construção identitária sustentadas tanto pelo Estado colonial como pelo campo político angolano Em Angola, a colonização implicou uma desestruturação das denominadas sociedades pré-coloniais. O resultado foi, obviamente, uma nova reconfiguração da cartografia social africana nomeadamente nos espaços afectos ao Estado colonial. A dominação colonial não se efectuou somente pela ocupação pura e simples dos territórios africanos, mas também através da elaboração de um sistema de classificação que fundamentou uma nova estrutura social, sobretudo nas “sociedades centrais”211. Sendo assim, o Estado colonial funcionou também como promotor identitário212, na medida em que, através de categorias identificadoras legitimou a imposição (com o seu efeito de adopção) de um sistema, de classificação em torno de propriedades rácicas/características somáticas213. Esta promoção identitária é também perceptível, se nos detivermos na dinâmica e funcionamento do espaço nacionalista angolano. Com efeito, o espaço nacionalista angolano, na a sua heterogeneidade, apresenta-se como um campo de lutas, não só político-militar, mas ideológico/ identitário, em que o que está em jogo é também a definição de quem é angolano. Lutas que ganham contornos mais dramáticos em situações de crise214. Situações que propiciam reavaliações em torno de taxionomias e categorizações. O que significa que, no caso angolano, as classificações em torno 211 O espaço colonial apresentava uma estrutura dualista: Uma sociedade central e urbanizada própria de uma economia moderna e uma sociedade periférica constituída por africanos fortemente dependentes do modo de produção capitalista. Heimer (1980: 18). 212 O Estado, como agente de identificação e categorização detém, o monopólio, para além do exercício da violência legítima, de poder nomear, identificar, categorizar e enunciar aquilo que é e quem é quem. Brubaker (2001: 75-76). Daí que classificações como negro, branco mestiço permaneçam na sociedade angolana com todas as consequências sociais inerentes. 213 Efeito de reconhecimento entre os sujeitos. 214 Reis (2002); Reis e Reis (1996). 51 das propriedades rácicas/características somáticas são veiculadas, principalmente, pelo campo político e, como tal, assumem a forma de classificações políticas215. Somos levados, portanto, a reter como conceito operatório o de ideologia identitária, no sentido de existirem práticas e discursos em torno de classificações políticas nas quais um dos efeitos é, o de (re)construírem processos de integração e exclusão. É neste sentido que identidade e ideologia são indissociáveis. A partir da problemática exposta, estamos pois, em condições de enfrentar o conjunto de problemas cruciais para uma análise do objecto em estudo, adoptando um ponto de vista que cruza o fenómeno ideológico/identitário com o fenómeno político. 2.4 Construção do modelo de análise Podemos, de novo, afinar a nossa pergunta de partida e formulá-la do seguinte modo: em que medida as propriedades rácicas/características somáticas como elemento ideológico/identitário condicionaram a dinâmica do campo político angolano e que papel desempenharam no referido campo em contextos de crise? Julgamos estar agora em condições de propor um modelo analítico, construído em torno da articulação dos conceitos de ideologia identitária, campo político e de crise. 2.4.1 Ideologia identitária Entende-se aqui por ideologia identitária um sistema de classificação, produzido e trabalhado, que contém um discurso identitário (crença num sentimento de pertença) que obedece a um duplo processo de integração (identificação) e de diferenciação (identização). Trata-se, por isso, de um sistema de classificação que (re)produz a inclusão e a exclusão e também distinções de classe e de estatuto. As diferenciações sociais fazem com que as construções ideológicas/identitárias sejam igualmente lutas de classificação que se processam em contextos societários historicamente determinados216. 215 O mesmo acontece com, o ideário nacionalista, que no entanto está bastante distante da dimensão identitária Encarregar-se-á porventura, o tempo de colmatar esta última? 216 52 A referência ao identitário é extraída de Pinto (1991: 217-231). O conceito de ideologia identitária é aqui definido como relação social, implicando, deste modo, simultaneamente dinâmicas de identificação e de identização. Por conseguinte, podemos considerar no conceito de ideologia identitária uma dupla dimensão na relação com o outro. A primeira, diz respeito à capacidade de inclusão em que os actores são capazes de se identificarem com conjuntos mais amplos. A segunda, diz respeito à capacidade de exclusão (delimitando em relação aos outros distancias e fronteiras). Um outro aspecto do conceito de ideologia identitária como relação social é a sua dimensão política como lutas de classificação. Ora, para melhor apreender as características desta dimensão torna-se pertinente cruzar o conceito de ideologia identitária com o conceito de campo político. 2.4.2 Campo político O conceito de campo político como utensílio teórico é um empréstimo contraído a Pierre Bourdieu. Para ele a noção de campo: “é, em certo sentido, uma estenografia conceptual de um modo de construção do objecto que vai comandar – ou orientar – todas as opções práticas de pesquisa (...) a saber verificar que o objecto em questão não está isolado de um conjunto de relações de que retira o essencial das suas propriedades”217. Trata-se pois, segundo ele, de pensar o social de modo relacional e não substancialista. Bourdieu, a partir desta ressalva epistemológica, propõe que o campo político seja: “entendido simultaneamente como campo de forças e como campo de lutas tendo em vista transformar a relação de forças, o que confere a este campo a sua estrutura num dado momento, (...) Os efeitos das necessidades externas fazem-se sentir nele por intermédio sobretudo da relação que os mandantes, em consequência da sua distância diferencial em relação aos instrumentos de produção política mantém com os seus mandatários e da relação que estes últimos, em consequência das suas atitudes mantém com as suas organizações (...) O campo político é o lugar em que se geram, na concorrência entre os agentes que nele se acham envolvidos, produtos políticos, problemas, 218 programas, análises, comentários, conceitos, acontecimentos” . Este conceito permite tratar a relação social do ponto de vista das práticas políticas tendo em conta os nossos objectivos. Por isso retemos do respectivo conceito três dimensões fundamentais: uma dimensão conflitual, uma dimensão institucional e uma dimensão discursiva. 217 218 Bourdieu (1989: 27). Bourdieu (1989: 163-164). 53 A dimensão conflito/competição recobre lutas pela apropriação de recursos políticos, tidos como relevantes em momentos escolhidos da luta política. A dimensão institucional diz respeito a configurações das relações de força em função da constituição e posterior desenvolvimento do campo político e dos momentos de conflitualidade, mais especificamente de crise. A dimensão discursiva abrange produtos políticos como lutas de classificação inscritas nos discursos e nos pontos de vista expressos pelos actores entrevistados. Trata-se também aqui de dar maior pertinência à dimensão conflitual alargando o campo dos seus atributos. Para isso vamos cruzar o conceito de campo político com o conceito de crise. 2.4.3 Crise Uma crise pode ser entendida como um momento de intersecção de uma série de acontecimentos independentes que acontecem em diferentes “regiões” de um espaço social; regiões com necessidades e temporalidades diferenciadas que caracterizam o referido espaço. A crise como conjunção de séries causais independentes implica a existência de “mundos” separados mas que participam do mesmo “universo” tanto no seu fundamento como no seu funcionamento. É esta independência na dependência que torna possível o acontecimento histórico219. A partir deste conceito podemos reter duas dimensões. A crise como convergência de factores e a crise como interdependência dos factores. No primeiro caso, focalizamos a nossa observação, a partir de duas características fundamentais desses factores: a política e a militar. 219 54 Bourdieu (1984: 210-211 e 226- 227). No segundo caso, recorremos aos atributos que conferem aos factores político-militares uma interdependência. Referimo-nos, por um lado às influências internacionais e regionais (Estados Unidos da América, União Soviética, Cuba, República do Congo, República Democrática do Congo, Zâmbia, África do Sul e Namíbia) na relação de competição/conflito entre MPLA/FNLA/UNITA, e, por outro, à própria dinâmica do campo político Angolano (MPLA/FNLA/UNITA) no respeitante à reavaliação dos recursos políticos, de entre os quais, as propriedades rácicas/características somáticas. Na construção do nosso objecto teórico a operacionalização proposta, com base na articulação dos três conceitos e na sobreposição das dimensões seleccionadas, constitui a matriz analítica através da qual procederemos à verificação das seguintes hipóteses que passamos a formular. 2.4.4 Hipótese Recordemos, antes de tudo, a nossa pergunta de partida: em que medida as propriedades rácicas/características somáticas como elemento ideológico/identitário condicionaram a dinâmica do campo político angolano e que papel desempenharam no referido campo em contextos de crise? 1. No seu processo de configuração e estruturação, o espaço nacionalista angolano começa por ser um lugar de produção discursiva em torno da reivindicação territorial. A produção discursiva será frequentemente complementada por um sistema de classificação assente em propriedades rácicas/características somáticas. Assim, classificações que outrora remetiam para processos de hierarquização e até de exclusão, dos colonizados no espaço colonial serão (re)apropriadas e reavaliadas de modo a denunciar o arbitrário colonial, e reivindicar a independência. Podemos assim considerar que as duas categorias, a saber raça e nação tiveram um papel fundamental na génese do espaço nacionalista angolano como lugar de produção discursiva e gerador de processos de inclusão e exclusão. 55 2. À medida que se vai estruturando e configurando, o campo político angolano vai adquirindo características de um espaço de crise onde se desenrolam lutas de classificação pelo monopólio dos recursos materiais e simbólicos, que possibilitam a imposição de múltiplas categorias, de entre as quais as classificações assentes em propriedades rácicas/características somáticas. Sendo assim, estas classificações começam a desempenhar um papel fundamental na luta pela hegemonia do espaço nacionalista, na medida em que se tornaram objectos de actos de percepção e apreciação, de conhecimento e reconhecimento, em que os militantes nacionalistas irão investir os seus interesses e os seus pressupostos. 3. No caso do subcampo MPLA, o papel das classificações assentes em propriedades rácicas/características somáticas nas lutas políticas torna-se uma regularidade sobretudo em contextos de crise, nomeadamente em processos de institucionalização do capital político. 4. A introdução das propriedades rácicas no BI é um acto de legitimação político- jurídica de uma categoria que exemplifica um modo de (re)apropriação de categorias raciais pelo campo político angolano, num contexto de crise e de lutas políticas. Como tal, essa consagração jurídico-politica das propriedades rácicas/características somáticas não obedece apenas a uma função identificadora dos indivíduos. A inclusão de categorias como negro, misto ou branco no Bilhete de Identidade, não pode ser dissociada de práticas políticas que remetem para processos de inclusão e exclusão. Figura 1 - Operacionalização dos conceitos de ideologia identitária, campo político e crise 56 Conceitos Dimensões Componentes Identificação/ Identização Ideologia identitária Indicadores Raça Etnia Inclusão/Exclusão Sistema de classificação política Região Nação Lutas de classificação Lutas pela apropriação de recursos Conflitual Lutas políticas Lutas militares Raça; etnia Recursos relevantes Região; ideologia Aparelho militar Anterioridade Campo Político Institucional Configuração das relações de forças N.º de deputados Controlo do Estado Reconhecimento internacional Coesão interna Normativa Estatutos; Lei/BI Raça; etnia Discursiva Lutas de classificação Região; ideologia Bases militares; luta armada; resultados dos confrontos Militares Convergência de factores Políticos Crise militares Controle da direcção política; cisões Relações com os dois Congos, África do Sul, Namíbia, Regionais Interdependência de factores Zambia Internacionais URSS, Cuba, EUA Organizacional MPLA/FNLA/UNITA 3. Estratégia metodológica 57 A perspectiva na construção do objecto de pesquisa que estivemos a explicitar está na base de uma estratégia metodológica que tem em conta: • o nosso campo de observação: o período compreendido entre 1950 e 1996; • a articulação de técnicas documentais e não documentais; • o enfoque interdisciplinar; A abordagem do período compreendido entre 1950 e 1996 incidiu na dinâmica do campo político angolano no que concerne, sobretudo, aos processos de reavaliação de propriedades rácicas características somáticas. Para o desenvolvimento do trabalho, usámos fundamentalmente técnicas documentais já que a distância cronológica (1950-1996) pedia um tipo de observação indirecta. Assim, depois de procedermos a um trabalho de selecção e apreensão das fontes possíveis, usámos o método hermenêutico na análise e interpretação dos documentos, assegurando assim a sua autenticidade e proveniência através da crítica externa e a sua credibilidade, recorrendo à crítica interna. Consideramos aqui o termo documento no sentido lato para incluir não só textos escritos de vária ordem, nomeadamente documentos oficiais, artigos de imprensa, obras literárias existentes em arquivos públicos ou privados mas também fontes não escritas, como narrativas orais, documentários e fotografias220. De entre as fontes manuscritas que seleccionámos, destacamos os materiais existentes em Portugal quer na Biblioteca Nacional quer no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, onde se encontra o Arquivo da PIDE-DGS, além do Centro de Investigação e Desenvolvimento Amílcar Cabral, (CIDAC). Em Angola adquiriu importância o Centro de Documentação da Assembleia Nacional. Ao longo dos anos conseguimos acumular um arquivo pessoal que inclui jornais da época em estudo, documentação oficial, cartas e entrevistas com os protagonistas da luta de libertação nacional. Foram igualmente consultadas fontes secundárias como teses, monografias, romances, ensaios etc. 220 Tal como afirmamos anteriormente (nota 27) a noção de documento refere-se a todo e qualquer vestígio do passado. Trata-se de atribuir à qualquer vestígio do passado o mesmo valor que as fontes escritas como tal sujeitos aos mesmos parâmetros da hermenêutica. 58 Porém, a nossa periodização de 1950 a1996 é igualmente muito próxima do presente. O que limitou o nosso acesso ao documento escrito221. Ora, isso fez com que valorizássemos as fontes orais cruzando-as com as fontes escritas222. O que nos possibilitou interagir com a nossa fonte já que existe contemporaneidade entre o entrevistador e a testemunha. Esta proximidade temporal com o presente estimulou-nos para o uso de técnicas não documentais, combinando a observação não participante e a participação-observação. No quadro da observação não participante recorremos à entrevista semi-directiva de forma a garantir ao entrevistado a margem de liberdade exigida pelo tratamento do tema em questão. A construção da amostra não probabilística e em bola de neve assegurou a escolha de um conjunto de elementos típicos do universo em estudo. No respeitante aos entrevistados, fizemos questão que fizessem parte – ou tivessem feito parte – do campo político (sobretudo organizações políticas). Não descurámos, porém, a entrevista aos observadores privilegiados: historiadores, sociólogos etc. A participação-observação constituiu uma técnica importante na medida em que, ao longo do nosso trabalho, foi um importante meio de observação de alguns aspectos do modo de funcionamento de espaços sociais (Assembleia Nacional, instituições religiosas, centros artísticos e literários, universidade, etc.) susceptíveis de produzir efeitos no campo político. A nossa observação estendeu-se aos espaços informais onde se pôde descortinar discursos acerca das raças (a rua, os musseques, os mercados informais etc;)223. Na construção do nosso objecto de estudo tivemos de recorrer a uma sucinta contextualização histórica, anterior à nossa proposta cronológica. Optámos, aqui no caso, por uma narrativa diacrónica. Neste trabalho, foi de primordial importância o recurso ao acervo documental de instituições de referência como a Biblioteca Nacional situada em Lisboa e o Arquivo Histórico Nacional de Angola, situado em Luanda. 221 A História, quanto mais próxima do presente, como tal memória dos vivos pode tornar-se um meio para ajustar contas políticas e, até pessoais. É aquilo que nós definimos como uma espécie de historiografia político-rancorosa 222 Não significa praticar uma história oral. 223 A isso podemos acrescentar os funerais, as festas, lugares privilegiados onde é possível constatar relações sociais profundamente marcadas por determinados sistemas classificatórios. 59 Capítulo II. Elementos históricos pertinentes para a compreensão da dominação colonial. Séculos XVI - XX 60 1. Africanos e portugueses. Das relações de cooperação às relações de conflito. Chegada e ocupação parcial Podemos considerar que o espaço territorial que presentemente delimita a actual Angola é, em certa medida, produto das recomposições internas das sociedades pré-coloniais e da influência da colonização portuguesa com os seus jogos de alianças, conquistas e ocupação. Com efeito a construção do espaço social colonial em Angola compreendeu diversas fases que, grosso modo, podemos assim caracterizar: cooperação/conflito, conflito/ocupação e ocupação/colonização sistemática. Quando no fim do século XV os europeus aportaram na Foz do Rio Zaire, é muito provável que tivessem se deparado com uma organização estatal poderosa, o reino do Kongo, e que apresentava as seguintes características224: • um exército centralizado na figura do Rei, mobilizado nos povos e nos escravos; • uma economia desenvolvida, com artesanato e uma circulação de produtos muito complexa, em que o dinheiro já existia: o nzimbo, cauri existente fundamentalmente na ilha de Luanda, apanhado por mulheres ao serviço do rei, que era de facto o banco emissor deste reino. Uma agricultura que fundamentava essa mesma economia; • uma emergente escrita comercial e rudimentar; • uma rede de transporte constituída por extensas caravanas de escravos (de centenas de kilómetros) de mercadorias dos centros de produção para os mercados; • uma bem sucedida indústria do ferro; Acresce, uma organização da vida social que se processava através da interrelação entre o nível simbólico e o nível político. Em que o simbólico está profundamente associado a processos de investidura onde adquirem importância os que representam as forças mágicas: terra, 224 Lopes e Pigafetta (1989: 123-124). Dizemos, provável, porque o testemunho data dos fins do século XVI. 61 chuva e fertilidade. O nível político traduz-se na constituição do grupo mediante a aliança entre a matrilinhagem e a filiação paterna, sendo que, esta última garante a investidura do filho225. Perante tal poderio político, simbólico e administrativo não é de estranhar que, os contactos entre kongueses e portugueses, sobretudo no que diz respeito ao poder central de Mbanza Kongo, tivessem começado por ser relações de Estado. Havia portanto um reconhecimento, mútuo, da parte de ambas as soberanias226. Viveu-se assim, num breve período, um ambiente político de paridade entre os dois Estados. O que proporcionou, às formações políticas desta região, uma nova dinâmica tanto nas actividades económicas227 como no fortalecimento das instituições políticas e militares228. Contudo: “A exportação de escravos conseguida quase imediatamente à descoberta do rio Zaire, inicialmente em benefício do feitor da ilha de S. Tomé, foi elemento de contradição nessa relação, pois sendo elemento motivador da parte dos mercadores que nela se envolveram, contrariava o objectivo missionário e provocava a reacção de alguns dos interesses locais, eles próprios não desconhecedores, porém, da realidade 229 esclavagista, mas confinada às próprias sociedades” . Daí que o tráfico de escravos tenha, em certa medida, contribuído para algum arrefecimento das relações entre os dois Estados. Com efeito, em Mbanza Kongo e Mpinda, existiam mercados importantes de escravos, resgatados no Alto Kwangu e no Alto Zaire, que eram vendidos aos europeus230. Além de que, os 225 Gonçalves (2005:196). O mesmo acrescenta um terceiro nível. O nível matrimonial. Os casamentos permitem alianças com grupos de linhagem patrilinear, criando assim novos laços de solidariedade e paradoxalmente novos conflitos. Idem. 226 Esta relação solidificou-se graças ao papel desempenhado por Portugal226 no que concerne à sua acção missionária no Kongo, nomeadamente: com conversão ao cristianismo de Mvemba-a-Nzinga, (que subiria ao trono em 1506) cujo nome de baptismo é D. Afonso I, “ Com ele principia o período mais brilhante, (….) da missão de cooperação portuguesa. É neste período que cristianismo e instrução conseguem ampla difusão Gonçalves (2005:88). 227 Permitindo transaccionar mais produtos agrícolas, (embora relativamente poucos, porque a terra pertencia ainda à colectividade e não conduzia à produção maciça de excedentes para o comércio), e produtos manufacturados em que se logrou uma autêntica revolução, com o aperfeiçoamento das técnicas de produção e com a entrada no comércio de produtos europeus, estabelecendo-se verdadeiras relações de complementaridade entre africanos e europeus nas trocas que efectuaram. Caley em Medina e Henriques (1996: 213). 228 Caley em Medina e Henriques (1996: 213); “A vigência da cooperação luso-conguesa, exemplar e sem precedentes na história da convivência entre europeus e africanos, prolongou-se por aproximadamente meio século, ou seja de finais do século XV até meados do século XVI. Foi no decurso deste período que (…) os dois povos estabeleceram uma comunicação sem qualquer tipo de constrangimento e aparentemente numa base de plena equidade. Mavinga (2002: 121). 229 Oliveira (1990: 15-16). 230 O rei Afonso I antevira o perigo do tráfico para o seu reino. “Neste sentido, os reis de Portugal e do Kongo publicaram vários regulamentos para controlar e regularizar os mercados”. Gonçalves (2005: 92). 62 escravos funcionavam frequentemente como moeda de troca para o pagamento dos produtos e assistência técnica (custo dos estudos em Portugal) adquiridos pelos kongueses, aos europeus231. Com a morte de Afonso I, sociedade konguesa entrou num período de sucessivas crises 232 que se traduziam, de ponto de vista político, por constantes lutas pelo poder contribuindo deste modo para a fragmentação do poder centralizado. Nos períodos de concentração do poder verificava-se uma hierarquização dos reis e dos seus dignitários acentuando a estratificação social. Enquanto que, nos períodos de poder relativamente difuso se verificava o retorno ao conjunto mais igualitário de linhagens, com o consequente reforço da autoridade tradicional dos chefes naturais das matrilinhagens233. Mas a morte de D. Afonso I reforçara igualmente um clima de tensão – já existente – entre kongueses e portugueses. Com efeito, se para muitos chefes kongueses o sistema político português constituía uma solução decisiva e vantajosa, para outros, a presença portuguesa, era um obstáculo à manutenção das estruturas tradicionais konguesas.234 Daí que as relações entre os dois Estados tenham começado a oscilar entre o conflito e a cooperação235. Esta ambiguidade relacional culminaria com a ruptura definitiva entre os dois Estados, selada na famosa batalha de Ambwila236. 231 “O rei D. Manuel chegou a intimar o seu Embaixador a assumir, em seu nome pessoal, a “cobrança” do serviço que a Corte de Portugal foi prestando aos Reis do Kongo pois que, a Simão da Silveira foi solicitado que acautelasse o carregamento dos navios com escravos, marfim, cobre, etc., sem falha, ainda que tivesse que fazer lembrar ao Rei do Kongo quão elevado era o custo dos estudos dos seus familiares em Portugal”. Mavinga (2003: 120). 232 Estas crises eram reforçadas não só pelo incremento do tráfico de escravos, como pela diminuição da acção evangelizadora e cultural; guerra civil. Gonçalves (2005: 96); acresce ainda a colonização holandesa entre 1641 e 1648; além da peste, trazida pelas embarcações portuguesas, que dizimou a população. Parreira (2003: 27). 233 Gonçalves (2005: 96). 234 Apesar das suas contradições externas, a sociedade konguesa gozava de uma certa autonomia. Esta ficou arruinada quando os portugueses expulsaram os holandeses da colónia de Angola e resolveram invadir o reino do Kongo, sob o pretexto de os seus dirigentes terem mantido alguma cumplicidade com os holandeses. Assim, o Ntotela Garcia II foi obrigado a negociar a paz com os portugueses e reforçar a submissão do reino. Mavinga (2003: 130). 235 A título de exemplo, quando os Jagas invadem o Reino do Kongo, o Ntotela Mpanzu-a- Nimi- Álvaro I a solicita o apoio dos portugueses, o que veio a acontecer com a resposta pronta do rei D. Sebastião que enviou, em auxílio do Ntotela 600 homens com armas de fogo, vindos de Lisboa e repondo o Ntotela que estava refugiado nas ilhas do rio Zaire. Porém, o Ntotela, Mpangu-a-Nimi a Lua Mvembe- D. Álvaro II iria expulsar os portugueses do Estado, rejeitando assim o contrato de vassalagem assinado pelo seu antecessor. O que levará os portugueses a abandonarem o Kongo e a instalarem-se na região do Ngola. Aliás, segundo um autor em meados da segunda metade do século XVII, a corte portuguesa já não mostrava interesse pelas hierarquias konguesas. Mavinga (2003: 129). 236 Ocorrida em 29 de Outubro de 1665. A batalha de Ambwila assinala a fragmentação definitiva da sociedade Kongo. O reino nunca mais conseguiu adquirir o poderio do tempo de Afonso I. Gonçalves (2005: 59); Idem (2005:132-133). Chegara-se assim, a um ponto em que os portugueses interferiam constantemente na indicação de quem deveria reinar de facto no Kongo. Parreira (2003:86-87). 63 Ao contrário das relações com a sociedade Konguesa (cooperação e depois conflito), com o reino do Ndongo o pressuposto foi o conflito237: “No século XVI nenhum Ngola recebeu de braços abertos as missões evangelizadoras, nenhum Ngola teve secretário para se corresponder com os soberanos portugueses, nenhum mereceu o tratamento de «meu irmão» tantas vezes utilizado pelo rei de Portugal e do Congo nas missivas trocadas. Nada foi semelhante ao Congo. Desde o início, o reino de Angola foi visto como reserva de escravos e de metais ricos, terreno de conquista, território a subjugar, para exploração dos seus recursos naturais e 238 humanos” . A partir da segunda metade do século XVI, a importância do Ndongo como zona de comércio, para os portugueses, é cada vez maior: “As fortes motivações para apoiar e encorajar a conquista do território dos Ngola, era por demais evidente, tendo em conta que o Brasil a construir depois de 239 quinhentos reclamava mão-de-obra abundante, que só a África poderia oferecer” . Tornava-se, por isso, imperioso, mais do que desenvolver um comércio vantajoso com as das autoridades do Ndongo, ocupar a região. Sendo assim, as relações entre o estado do Ndongo e a coroa portuguesa pautarse-iam pela lógica do confronto. Em 1571, a carta de doação de D. Sebastião era clara: “Aos que esta minha carta virem, faço saber que vendo e considerando eu quanto convém ao serviço de Nosso Senhor e também ao meu mandar sujeitar e conquistar o reino de Angola assim para se nele haver de celebrar o culto e ofícios divinos e acrescentar a nossa santa fé católica e promulgar o santo Evangelho como pelo muito proveito que se seguirá a meus reinos e senhorios e aos naturais deles de se o dito reino de Angola se sujeitar e conquistar houve por bem com parecer e deliberação dos do meu conselho e dos deputados da Mesa da Consciência e dois letrados teólogos e canonistas de mandar entender na conquista do dito reino por se assentar e determinar que pelas causas acima ditas conforme as bulas 240 apostólicas concedidas aos reis destes reinos meus antecessores tinha obrigação de o fazer assim” . Tratava-se de garantir, por um lado, a ocupação militar e a propagação da fé cristã e, por outro lado, a protecção dos comerciantes que se deslocavam ao sertão para obterem, a preços favoráveis, as mercadorias necessárias para o funcionamento das cidades costeiras. Estavam, assim, lançadas as bases para um modelo de ocupação territorial assente na edificação de uma série de presídios, 237 A formação do Estado do Ndongo terá ocorrido a partir do século XIV. O fundador do reino foi Ngola – Musuri que tinha como profissão ferreiro. A maioria dos soberanos era ferreiros e titularizados como Nogola. Os súbditos deste reino designavam-se por isso Ana-á-Ngolà, razão porque os portugueses, desde os fins do século XVI generalizaram nas fontes escritas este povo pelo designativo de “Ngola”. É da generalização do título Ngola ao povo e ao primeiro território conquistado pelos portugueses, que surge o nome Angola que se foi estendendo paulatinamente por todo o país. Coelho ( mimeo); ver também Miller (1995:55-70). 238 Amaral (1996: 33). 239 Silva em Medina e Henriques (1996: 222). Este interesse passava também pela cobiça dos minérios que se encontravam na região, nomeadamente, prata, ferro e cobre. Embora o intento de cristianizar estivesse patente. Amaral (1996: 14). 240 Delgado I (1946: 276). 64 acompanhado da fortificação dos espaços ocupados que, por sua vez, ficavam sob o controlo da administração portuguesa241. O avanço, embora penoso, dos portugueses, iria prosseguir praticamente ao longo do corredor do Kwanza. A conquista ao sul do rio Kwanza culminaria com a construção de um presídio em Caconda (após um tratado de paz assinado com a autoridade local)242. A partir daqui, o avanço português para o interior é praticamente estagnado. Um status territorial praticamente preservado até à primeira metade do século do XIX243. Sendo que, durante o mesmo período, para Luanda eram encaminhados escravos provenientes de zonas longínquas da África central, por intermédio dos reinos de Matamba e, sobretudo, de Cassange, adquiridos principalmente através do comércio com o império Lunda. Este último tributava em escravos numa vasta região, trocando-os depois por produtos importados através do Cassange. Mais a sul, é o povo ambundo que exerce a função de intermediário entre o litoral (Benguela) e o interior do continente244. “Estes circuitos, que funcionavam desde meados do século XVII, iriam prevalecer ao longo da primeira metade do Oitocentos”245. 1.1 Os limites do espaço português É portanto de considerar que: “Até ao século XIX e durante sensivelmente três séculos, a interacção entre as contradições e as tensões inerentes nas relações sociais africanas internas e o tráfico transatlântico parecem ter reestruturado, profundamente, as instituições sociais e políticas africanas, sobretudo nas zonas mais directa e intensamente envolvidas com a economia atlântica - nomeadamente o Luango, a bacia do Congo, e o interior mais distante a leste do rio Cuango, para além das regiões do médio Cuango e do planalto central nos Hinterlands de 246 Luanda e de Benguela” . Nem mesmo durante o século XVIII, na vigência do Governador Sousa 241 Henriques (1997:113); Silva e varii (1997: 18). Contudo não podemos deixar de salientar que a ocupação, militar, não se realizou sem resistência dos povos africanos. Assim, em 1589, o exército da Matamba derrota o exército português morrendo em combate Paulo Dias de Novais. Em 1590, Ngola Kiluanje forma uma coligação (Kongo, Ndongo e Matamba) e derrota os portugueses em Angoleme-a-Kitambo. Esta resistência ganharia consistência graças ao Estado da Matamba que funcionava como rectaguarda, dos Ambundos encabeçados pela Rainha Ginga. Mas a resistência beneficiara da conquista de Luanda, e de parte de Angola, pelos holandeses. Uma ocupação que duraria de 1641 até 1648. 242 Tendo sempre como pano de fundo a luta pelo acesso às rotas dos escravos, os portugueses conseguem alguns progressos também ao norte do rio Kwanza. Assim novos presídios são edificados: Dondo (1625); Kassange (1625); Golungo 1658), ao norte do Kwanza. Freudenthal e AA.VV (2006: 19). 243 Pélissier (1979: 90). 244 Alexandre (2000: 232). 245 Alexandre (2000: 232). 246 Dias em Alexandre e Dias (1998: 330). 65 Sousa Coutinho (1764-1772) – em que se tenta diversificar a economia247, fundar novos presídios no interior de Angola, ou seja, concretizar, uma política colonial – se consegue contornar esta realidade, uma ocupação territorial profundamente limitada em que apenas os benefícios da escravatura e do tráfico dão sentido à presença portuguesa ao longo do litoral248. Para contornar a escassez territorial, os portugueses acrescentavam às relações comerciais com os seus espaços africanos, relações de vassalagem. Assim, por intermédio dos seus “vassalos africanos”, os portugueses podiam manter relações de dominação/dependência com os africanos do interior249. Esta estratégia de conquista resultava quando as autoridades africanas acatavam as pretensões das autoridades coloniais. Estas podiam assim exercer um controlo indirecto sobre os territórios, onde o comércio se podia desenvolver e onde os investimentos eram seguros250. Pretendia-se, desse modo, colmatar os limites da dominação directa.251 No entanto a presença portuguesa, nomeadamente a sua sobrevivência em Angola, era também devida a uma complexa rede de interesses mútuos entre o governo colonial, as denominadas famílias afro-portuguesas do litoral e interior da colónia “e das autoridades políticas dos Estados africanos autónomos do sertão”252. O que nos remete para o papel desempenhado pelas denominadas famílias afro-portuguesas. Com efeito, desde o século XVII que existia um processo de miscegenação biológica e/ou cultural entre europeus e africanos, devido à pouca implantação colonial, que geograficamente se reduzia a Luanda e Benguela, com escassez de população branca portuguesa acrescida de desequilíbrio no ratio homens/ mulheres (mais homens que mulheres) na população branca253. Emerge assim um grupo social de mestiços que se vai reafirmando ao longo da história colonial, sobretudo, graças aos recursos económicos acumulados com o tráfico de escravos e aos 247 “Determinou o cultivo de terras pelos colonos que as detivessem; fomentou a exportação dos produtos locais, como as gomas e as resinas e o marfim; mandou prospectar as riquezas minerais e estabeleceu fundições de ferro; construiu hospitais; regulamentou as feiras e incentivou a produção agrícola e fomentou o povoamento urbano”. In Portugal Província de Angola: (1972: 15). 248 Pélissier (1979: 91). 249 Henriques (1997: 145), segundo a mesma deve-se: “a concepção de Estado absolutista enraizado em Portugal. Este primeiro facto associa-se ao atraso português em relação à lógica do capitalismo moderno. 250 Freudenthal Marques (2001: 267). 251 Tratava-se de colmatar a escassez de recursos militares e eliminar a concorrência dos comerciantes estrangeiros. Freudenthal em Marques (2001: 267). 252 Dias em Alexandre e Dias (1998: 366-367). 253 “Um conjunto diferente de circunstâncias históricas tinham forçado a Coroa portuguesa a seguir uma política de integração racial”. Dias (1982: 271). 66 postos ocupados na hierarquia militar254. Estes mestiços, culturais e/ou biológicos, recorriam também a estratégias matrimoniais (conscientes ou inconscientes) visando sobretudo “adiantar a raça” para facilitar a sua inserção nas instituições coloniais255. No século XIX, os elementos desse grupo social eram designados por filhos do país, africanos, angolenses e nativos256. Distinguiam-se da “indistinta massa de civilizados sob o domínio português e dos outros africanos designados de gentios”257. Este grupo, no seu conjunto, apresentava predominantemente raízes mais africanas do que europeias. No interior de Luanda, a sua língua franca era o Kimbundo. Todavia, os estratos mais elevados tinham igualmente por referência padrões europeizados, nomeadamente, na arquitectura, na decoração das suas moradias, no vestuário, nos transportes (luxuosas carruagens ou liteiras); nos actos sociais (frequência de teatros, praças de touros, organização de recepções frequentadas pelo Governador e idas ao palácio do mesmo)258. Contudo, não era um grupo social homogéneo. Podemos considerar três subgrupos distribuídos hierarquicamente: 1) No topo apresentava-se um grupo com características mais europeizantes, cuja ascendência provinha do século XVII. A estes juntavam-se por vezes, através do casamento, elementos oriundos de Portugal e do Brasil. A sua riqueza era sobretudo proveniente da posse de escravos, mas também da aquisição de terras (em Luanda e arredores; no Bengo e Dande). Também adquiriam bens através do comércio, cuja acumulação era feita mediante alianças familiares. Exerciam cargos no exército, igreja e 254 Segundo Pélissier (1978b:215): “O século XIX é, no espaço lusitano, o século dos mestiços. Eles ocupam postos importantes, na alta administração, igreja, exército, justiça, Câmaras municipais de Luanda e Benguela; também eram proprietários de plantações até a última década do mesmo século”. Sobre esta visão pan-angolana, ver Andrade (1997). 255 Este grupo constituía em 1850 menos de 1% da população da Angola e adoptava deliberadamente os hábitos dos brancos. Esta “táctica” obedecia às vantagens que lhes proporcionava o relacionamento com os portugueses (postos na administração política e militar, etc. (Dias: 1984: 56). 256 Este grupo é também objecto de lutas de classificação entre investigadores. Designados muitas vezes de euroafricanos, crioulos, assimilados. Ver entre outros Oliveira (1961); Dias (1984); Messiant (2006); (Rodrigues (2003); Bittencourt (1999). 257 A nova constituição imanada da revolução liberal de 1820 reconhecia aos habitantes africanos, considerados civilizados, direitos civis e políticos da metrópole. Assim usufruíam de direitos de cidadania, nomeadamente, isenção de trabalho forçado e direito de propriedade. Pelo contrário, os outros africanos, dependentes dos sobas avassalados, “estavam sujeitos a serviços forçados como o de carregador”. Rodrigues (2003: 18); Dias (1984: 66). 258 Rodrigues (2003: 19). 67 administração. Funções que, eram “a fonte do seu prestígio social e político no âmbito da sociedade africana”259. 2) O segundo “grupo resultava das ligações entre europeus, comerciantes e funcionários, e africanas, geralmente escravas”. Não possuíam a riqueza do primeiro grupo. Procuravam atingir um estatuto mais elevado, também, através do matrimónio260. 3) O último grupo era constituído por gente “fundamentalmente negra” e estava sedeado nos centros de administração e comércio do interior, sobretudo no Golungo Alto e Ambaca. Tinham fortes ligações com os sobados do interior “mas tentavam ligar-se às famílias do litoral”. Na base deste grupo existia um estrato inferior constituído por artífices, que eram na sua maioria ex-escravos emancipados261. À medida que a administração colonial se foi impondo os filhos do país foram sendo cada vez mais subalternizados em detrimento de um crescente poder económico e social dos colonos europeus262. Estes últimos entraram num gradual processo de definhamento social devido, sobretudo, ao fim do tráfico negreiro, ao incremento da chegada dos colonos europeus, e à consequente subida de tensões raciais263. As relações de conflito entre colonos e os filhos do país tornaram se inevitáveis. A partir da década de sessenta do século XIX, as relações fortemente competitivas entre os filhos do país e os europeus recentemente chegados da metrópole traduziam-se num crescendo da consciência da raça264. De ponto de vista cultural o processo de lusitanização tornara-se cada vez mais notório, nomeadamente no respeitante às críticas, cada vez mais frequentes à cultura local, por parte dos colonos265. O que provocou uma vigorosa resposta cultural por parte dos filhos do país266. Influenciados pelas correntes filosóficas europeias, nomeadamente o 259 Rodrigues (2003: 18); Dias (1984: 67). Rodrigues (2003: 19); Dias (1984: 66). 261 Rodrigues (2003: 19); Dias (1984: 66). 262 Ver Rodrigues (2003); Pélissier (1978b); Dias (1984); Dias (1998). 263 Dias (1984: 69-70). A reconversão para a agricultura foi mal sucedida devido à falta de capitais, provocando desse modo muitas falências devido aos empréstimos não solvidos para a compra de equipamentos. Com a subida do preço do café, os colonos começaram a apropriarem-se das terras por métodos violentos (tanto dos sobados como dos crioulos) Dias (1984: 69-70); Rodrigues (2003: 20-21); sobre o definhamento deste grupo ver também Dias (1998) Pélissier (1978b). 264 Dias (1984: 277); ( Dias (1982: 277). 265 Este clima negativo em relação aos filhos do país já era notório, quando, em 1845, um conjunto de orientações legislativas haviam imposto o português como língua oficial da colónia. Dias (1998: 518). 266 Dias (1998: 518). Este vigor protestatório deve-se também a uma política colonial de afastamento dos cargos administrativos e militares em detrimento dos candidatos oriundos da metrópole. Dias (1998:525); ver também Rodrigues (2003: 20-21); Pelissier (1978: 218). 260 68 romantismo, estes últimos começaram a tomar posições em torno da defesa e reafirmação de uma identidade africana267. Foi desta forma que determinados grupos, possuidores de algum capital cultural deram início, sensivelmente a partir da sexta década do século XIX, à divulgação da língua, provérbios, e folclore kimbundos268. De entre estes, podemos assinalar o médico Saturnino Sousa de Oliveira, co-autor com Manuel Alves de Castro Francina, dos Elementos Gramaticaes de Língua N’Bundu, publicado em Luanda em 1864269. Esta afirmação no plano cultural traduziu-se, por sua vez, em tomadas de posição política, através de abaixo-assinados, panfletos ou apelos judiciais, bem como na publicação de artigos na imprensa periódica270. Parecia que se esboçavam, sobretudo em Luanda e Benguela, ideais separatistas ou independentistas. Todavia: “Parece evidente que tais sonhos exprimiam, sobretudo, a mágoa e a angústia sentidas por muitos naturais da terra face a sua crescente rejeição, exclusão e marginalização 271 económica e política, expressas sobretudo na legislação colonial” . Além de que: “os filhos do país encontravam-se profundamente divididos, cultural e politicamente, de acordo com as suas origens e circunstâncias sociais”. Assim, se havia os que reclamavam a independência política de Portugal em nome dos ideais republicanos, subsistiam, igualmente, os que manifestavam convictamente a defesa do regime monárquico português272. Esta divisão reflectia, em certa medida, uma ambígua afirmação identitária. Muitos dos filhos do país manifestavam orgulho em relação a sua ascendência europeia e portuguesa e ao papel desempenhado pelos seus antepassados na conquista do território angolano273. Mesmo aqueles que faziam questão em afirmar a sua africanidade em oposição aos portugueses metropolitanos, faziam também questão em se distinguirem “claramente da massa da população africana, rural e gentia, que os rodeava”274. Significa isto que, a maioria parece ter optado por 267 Dias (1998: 518). Dias em Alexandre e Dias (1998: 518). 269 Este empenho na valorização das raízes culturais africanas teve um assinalável contributo dos europeus, como o advogado e comerciante Alfredo Trony, ou o missionário protestante suíço Héli Chatelain. Dias (1998: 518). Na década de 1890 Joaquim Dias Cordeiro da Matta reforça esta corrente cultural e identitária com a criação de uma literatura angolana própria. Pélissier (1978b: 220); Freudenthal em Marques (2001: 415-450). 270 Dias em Alexandre e Dias (1998: 519). Com efeito a partir da década de 1860, a imprensa escrita tornou-se o meio por excelência de manifestação de um descontentamento cada vez maior. Entre 1866 e 1890, fundaram-se em Angola mais de trinta jornais, na sua maioria efémeros. Dias em Alexandre e Dias (1998: 529). 271 Dias em Alexandre e Dias (1998: 540-541). 272 Dias em Alexandre e Dias (1998: 541). 273 “Muitos filhos do país subscreveram, em clima de crescente concorrência internacional, o ideal da «União LusoAfricana» contra as pretensões de nações europeias estrangeiras”. Dias em Alexandre e Dias (1998: 541). 274 Dias em Alexandre e Dias (1998: 542). 268 69 afirmar a sua identidade dentro do quadro metropolitano275. Daí que, nas duas últimas décadas do século XIX, a maioria dos filhos do país empenhava-se no triunfo dos republicanos em Portugal276. Convém, contudo, salientar, que o definhamento dos filhos do país é ainda um processo bastante lento pois, em finais do século XIX, subsiste ainda em Angola uma sociedade, geográfica e economicamente marginal, dominada por uma burguesia multirracial e sociedades africanas pouco pacificadas e integradas no espaço colonial277. Com efeito, a ocupação efectiva cingia-se praticamente à faixa costeira: “Até então conquista, povoamento e exploração, resultavam, acima de tudo, de esforços e execuções governamentais, com objectivos de natureza política, mas suscitando interesses limitados e escasso capital por parte da iniciativa privada”278. Era um período de incertezas, de dilatação e contracção de fronteiras, na medida em que “a superioridade numérica e a crescente autonomia política dos «Estados» e das sociedades africanas em redor da colónia portuguesa constituíam uma ameaça constante aos estabelecimentos comerciais, quer da costa quer do interior” 279 . E, no que se refere ao interior, o relatório do Governador-geral da época (1877) era claramente elucidativo, “… Diria a Vossa Excelência que a extensão da província para o interior é um mal sem proveito…pois os principais estabelecimentos parecem ilhas perdidas num oceano indígena sem limites… é preciso, 280 portanto, confessar tristemente que o nosso império no interior é imaginário” . 2. Uma conjuntura favorável à colonização É num contexto de produção ideológica colonial e de concorrência com as outras potências – com pretensões coloniais – que Portugal se prontifica a assegurar o seu domínio nos territórios africanos, muito particularmente em Angola281. 275 “Deste modo, os activistas de Luanda e dos centros urbano do interior concentravam esforços na eleição de conterrâneos seus como deputados por Angola ao parlamento de Lisboa”. Dias (1998: 542) 276 “Convencida de que a aplicação prática das ideias de fraternidade e igualdade na metrópole traria às elites angolanas uma maior autonomia económica e política”. Dias (1998: 541-542). 277 Messiant (2006: 60). 278 Marques (1998: 142). 279 Dias em Alexandre e Dias (1998: 410). 280 Pelissier (1986: 91-92). 281 Contudo, convém acrescentar um contexto mais amplo, quão fundamental para se entender o processo de aceleração de ocupação do continente, aqui no caso de Angola. Trata-se do próprio desenvolvimento do capitalismo e respectivo progresso técnico, que se repercutiu significativamente em três sectores: nos transportes e comunicações, onde é possível assinalar a crescente utilização da navegação a vapor e a instalação de cabos submarinos, reforçando deste modo a densidade da população europeia em África e tornando mais eficaz as comunicações entre Portugal e respectiva colónia; na saúde e na higiene, cujos progressos possibilitaram uma taxa de sobrevivência mais elevada da população europeia, nomeadamente nas regiões mais insalubres; por último, no 70 A ocupação do território merece ser vislumbrada, em primeiro lugar, à luz de uma matriz ideológica comum a toda a Europa: a missão civilizadora e a superioridade da “raça branca” ou da civilização “ocidental”282. Esta matriz ideológica que se ia afirmando em finais do século XIX, no âmbito europeu, era reforçada por um crescendo darwinismo social que se traduzia na crença do domínio do mundo da raça branca e sujeição e eliminação das raças inferiores283. Tal contexto ideológico de “imperialismo universal”, inserido num contexto, mais amplo, o de um cada vez maior interesse pelo continente africano, reforça por parte de Portugal, o desejo de colonizar os “seus territórios africanos”. Um desejo perceptível, a partir de três perspectivas: • o “alargamento das elites directamente envolvidas nos problemas coloniais, corporizado, desde a década de setenta, pela fundação da Sociedade de Geografia de Lisboa em 1876”284. A partir de agora o número de sócios da Sociedade de Geografia torna-se mais eclético: “oficiais do exército e da marinha funcionários, engenheiros e técnicos de obras públicas negociantes e industriais, proprietários, intelectuais de diversa origem. As colónias, antes lugar marginal, passam a ser lugar de honra”285; • quando a questão colonial mobiliza, não só as elites mas, múltiplos sectores da sociedade lusitana. Esta dinâmica deve-se em certa medida à “confluência entre os temas específicos da expansão ultramarina e os do nacionalismo antibritânico, de forte tradição popular ao longo do século XIX”286; sector militar, no qual o desenvolvimento das respectivas técnicas, nomeadamente na utilização de novas arma (espingardas de repetição), acentuou uma correlação de forças favorável às tropas europeias em detrimento dos africanos. Alexandre (2000: 235-236). 282 Guerra (1993: 20). 283 Alexandre (1993: 58) Tratava-se de uma doutrina que “transpunha para o estudo das sociedades humanas as noções de selecção natural, e de sobrevivência das espécies mais favorecidas que Darwin havia utilizado no campo da biologia. 284 Até então os que intervinham em questões coloniais eram sobretudo, os antigos detentores de cargos coloniais. 285 Alexandre (1993: 58). È neste contexto que se assiste entre as décadas de setenta e oitenta do século XIX a um incremento das grandes expedições científicas e militares de entre as quais podemos assinalar as viagens de Hermenegildo Capelo (1844-1917) e Roberto Ivens (1850-98); as viagens de Serpa Pinto (1846-1900). 286 (Alexandre (1993: 58-59). Recordemos o isolamento de Portugal na conferência de Berlim, Já antes a sentença de Berna e por fim o ultimato inglês pelo qual o governo de Londres exigiu a retirada de quaisquer forças militares portuguesas dos territórios dos macololos e dos mashonas (a leste de Moçambique), sob pena de corte de relações diplomáticas. Idem (1993:58-59). 71 • este interesse não é só perceptível no que concerne à expansão e ao enraizamento da ideologia. É visível também quando esta última altera a sua doutrina. Assim, em detrimento de uma política colonial que defendia que: “Quanto à «raça indígena», a administração, perdendo o seu carácter militar, passaria a tomar como base o «princípio da atracção», procurando incorporar os Africanos «na nação, não como povos sujeitos, mas como parte integrante dela» e contando «com a influência e acordo dos sobas sobre as povoações que lhes estão subordinadas”, optou-se por uma politica colonial, de “cariz racista, assente na conquista militar e na submissão dos africanos”287; Oliveira Martins torna-se na eminência parda de tal doutrina. Este criticava a política colonial do liberalismo português, a seu ver, “pouco branda e pouco compensadora, em nome das realidades práticas da vida”288. Entendia Oliveira Martins que só “sem escrúpulos, preconceitos e quimeras» se poderia fazer a exploração do ultramar”289. Este conjunto de pressupostos, iria influenciar as políticas coloniais sobretudo no que respeita ao domínio da mão-de-obra, justificando o trabalho forçado; à propriedade, sancionando, a apropriação da terra pelos colonos brancos; ao ensino, remetendo para formas rudimentares de aprendizagem os africanos, direccionando-os para o trabalho manual290. Todavia, a ocupação do território deve também ser vislumbrada à luz de um quadro competitivo entre as potências europeias, no que concerne às vantagens económicas do continente africano. Era um processo que estava gradualmente em marcha, desde o terceiro quartel do século XIX, devido à acção de comerciantes, exploradores e missionários, que se iam instalando no continente, aumentando desse modo a sua esfera de influência291. 287 Alexandre (1993: 59). Assim entre 1834 e a última década do mesmo século duas correntes predominavam, em matéria de política colonial. Os pragmáticos, constituídos por antigos detentores de cargos no ultramar, que se opunham às reformas em nome de um certo realismo, que defendiam os interesses dos estratos sociais dominantes nas possessões, e os universalistas, influenciados pelo espírito das luzes, que pretendiam transformar as sociedades esclavagistas. Esta segunda corrente iria predominar, não de forma absoluta, até ao final da década do século XIX. Idem (1993: 59). 288 Segundo Oliveira Martins: “Toda a história prova, porém, que só pela força se educam os povos bárbaros”. Martins (1978: 254). 289 Alexandre (1993: 59) ver também Martins (1978: 257). 290 Podemos assinalar os mais significativos defensores destas políticas coloniais: António Enes, Mouzinho de Albuquerque e Eduardo Costa. Alexandre (2000: 238). 291 Entre a década de sessenta e setenta do século XIX, dá-se uma expansão da actividade missionária católica estrangeira (missionários católicos da Congregação do Espírito Santo, quer no Congo quer no sul de Angola; a missão católica de S. Tiago em Lândana sob a direcção de um padre francês). Mas, também a chegada das primeiras missões protestantes nomeadamente da Inglaterra e do País de Gales como a Baptitst Missionary Society que se instalou em S. Salvador; os primeiros missionário evangélicos americanos que se instalaram no Bailundo e no Bié; as missões Metodistas que se instalaram em Luanda, Ndondo, Nhangue-a-Pepe e Pungo Andongo e posteriormente até Malanje, Caxito e Ndalatando, constituídas por europeus e americanos, de entre os quais podemos assinalar o 72 Vivia-se um período de frenética concorrência pelo controlo dos territórios, sobretudo devido à abundância de matérias-primas. Em Angola, tornava-se cada vez mais notória, uma crescente actividade comercial, que indiciava uma mudança da economia no território, sobretudo no que diz respeito às relações com os estados africanos292. O que se devia, em certa medida, ao comércio praticado in loco por comerciantes estrangeiros. Perante esta frenética corrida pelas riquezas do continente, não constitui surpresa, pois, que a questão da ocupação/delimitação das fronteiras africanas não fosse pacífica. E, como as potências europeias não se entendiam, foi necessário a realização de uma conferência em Berlim de 15 de Novembro de 1884 a 26 de Fevereiro de 1885, considerada como um marco para o início do colonialismo293. Assim, o continente é partilhado entre as potências europeias sem que se tenha em conta uma longa história, de afinidades sócio linguísticas, das populações autóctones. Doravante as políticas tendentes à construção de um Estado colonial moderno irão afirmar-se cada vez mais a partir da década seguinte, passando, em primeiro lugar pela constituição do próprio corpo territorial das diversas possessões, definindo fronteiras e ocupando o terreno294. O que podemos igualmente salientar é que a competição entre Portugal e as outras potências europeias reforçou a matriz ideológica colonial conferindo-lhe, porém, um cunho específico. Com efeito a crise desencadeada pelo ultimatum britânico, que culminara com o tratado anglo-luso de 11 de Junho de 1891, cujo o desfecho foi o abandono por parte de Portugal a filólogo suíço Heli Chatelain. Dias em Alexandre e Dias (1998: 495-496); no respeitante aos exploradores podemos assinalar para além dos portugueses supra assinalados, as viagens de David Livingstone (1852 a 1873 e H. M.Stanley (1874 a 1877). 292 Com efeito, à medida que se intensificava e diversificava o comércio com os europeus, os produtos, que estavam nas mãos dos chefes africanos começaram a ser comercializados por outras entidades independentes – nomeadamente os jovens – das autoridades centrais africanas, contribuindo assim deste modo para a desintegração das sociedades centralizadas africanas. Convém contudo salientar que esta fragmentação das sociedades africanas se desenrolou a um ritmo desigual. Dias (1998: 482-483). 293 Segundo Alexandre em Alexandre e Dias (1998: 112-113), a Conferência de Berlim marca definitivamente a emergência de um sistema multipolar nos assuntos da política africana”. No que respeita a Portugal, os resultados foram os seguintes: perdia parte do baixo Congo na medida em que a margem direita do rio era concedida ao Estado Livre do Congo então na posse do rei Leopoldo I da Bélgica. Contudo Portugal assegurava a margem esquerda do mesmo rio, e, a norte do Zaire assegurava a posse dos territórios de Cabinda e Molembo. Mas o sentimento das elites políticas foi de humilhação. 294 Alexandre (2000: 182-183). 73 qualquer pretensão de construir um império que fosse da costa à contracosta, unindo Angola e Moçambique, teve por consequência ideológica a exacerbação de um nacionalismo imperial295. O nacionalismo imperial consistia, grosso modo, num conjunto de pressupostos (como o mito da herança sagrada) que assentavam na ideia de que a posse de “toda e qualquer parcela do território ultramarino é um imperativo histórico”. Como tal, sendo estes domínios testemunhos da grandeza e dos feitos da nação, pertenciam por direito a Portugal296. “Doravante, o projecto colonial é o elemento central do nacionalismo português, remetendo-se a sua eventual contestação para a categoria 297 ético-jurídica da traição à pátria” . Tornava-se cada vez mais visível a finalidade fundamental da política, de dominação, colonial, a saber, a progressiva e lenta desintegração das estruturas materiais e simbólicas das populações indígenas, com vista a uma colonização sistemática298. 3. Resistência e ocupação total À medida que se definiam as fronteiras, os confrontos com os africanos aumentavam de intensidade299. Com efeito, o esquema das relações de vassalagem com os chefes africanos fora definitivamente posto de parte em detrimento de uma solução militar, pois: “recurso à força e a imposição mais rápida dos meios de controlo colonial, tornariam Portugal uma potência imperial activa e 300 responsável” . No início do século XX a prática de uma política cada vez mais militarizada por parte de Portugal tornava-se cada vez mais notória. Graças à modernização do seu equipamento militar, o estado das relações de forças político-militar, até então equilibrado, alterou-se substancialmente. O processo de ocupação tornara-se cada vez mais célere301. É neste âmbito que emerge a figura de Paiva Couceiro 295 Alexandre (2000: 153). Alexandre (2000:220). 297 Alexandre (2000: 222). 298 Os objectivos principais desta “guerra de conquista” passavam pelo castigo dos nativos que se rebelavam contra a soberania lusitana e por capturar os sobas e os revoltosos. Era uma guerra que opunha portugueses aos africanos que defendiam a preservação das suas estruturas políticas e sociais. Freudenthal em Marques (2001: 270). 299 Freudenthal em Marques (2001: 268). 300 Freudenthal em Marques (2001: 268-269). 301 Esta modernização foi acompanhada, a partir de 1895 pela integração no exército colonial, além de oficiais e soldados da metrópole, de cidadãos de 20 a 30 anos de idade residentes na colónia. A partir de 1901 “foi atribuída função às «companhias indígenas», (enquadradas por europeus) de infantaria, mais resistentes do que as europeias aos climas tropicais. Criaram-se companhias mistas que incluíam infantaria africana, enquanto que a artilharia era 296 74 corporizando a tendência belicista portuguesa. O seu mandato como governador-geral (19071909) marca a grande viragem na política de ocupação, “que passou de fortuita a planificada”. A estratégia de Paiva Couceiro assentava na ocupação das fronteiras e subjugação das regiões revoltosas, de modo a assegurar a prática do comércio e a colecta dos impostos302. Apesar dos portugueses disporem de um exército mais bem organizado, apetrechado e contarem ainda com o apoio de companhias indígenas, as sociedades autóctones conseguiram constituir uma pujante resistência que susteve durante trinta anos a conquista portuguesa303. Tal, contudo não impediu que fosse consumada uma política de salvaguarda das fronteiras acordadas internacionalmente e, por conseguinte, a desarticulação das estruturas tradicionais africanas, pondo fim às unidades políticas até então existentes304. À medida que Portugal estendia a sua ocupação pelo território angolano, a questão da administração colonial tornava-se uma questão central. Tornava-se necessário conciliar ocupação militar do território com o controlo dos recursos humanos e naturais – qual objectivo de uma exploração intensiva – bem como com a respectiva imposição da lei e da ordem. Garantir a posse do território implicava, por parte da coroa lusitana, um maior empenho na exploração dos recursos, através da implantação de novas estruturas económicas e administrativas. Tornava-se fundamental, por isso, incrementar a chegada de colonos, e adquirir o máximo de mão-de-obra africana, quão necessária para assegurar o crescimento económico.305 Assim, a ocupação militar foi sendo acompanhada pela implantação gradual da administração efectiva306. constituída apenas por soldados europeus. O exército colonial utilizava ainda forças irregulares, constituídas por colonos boers (recompensados com gado e outros despojos capturados às populações”. Freudenthal em Marques (2001: 269). 302 Pélissier (1986: 221). 303 Até aos anos vinte do século XX deparamo-nos perante um cenário de convulsões, de conquista e resistência que ocupa 22% do período de 1848-1878, 44% do período 1879 -1926 e 83% dos dois decénios fatais (1902-1920). Um mínimo de 35 operações secundárias ou campanhas importantes de 1848 a 1878, mais de 154 entre 1879 e 1926. Mais de 9000 militares envolvidos entre 1848 e 1878 e mais de 30800 entre 1879 e 1926. Pélissier (1987: 280). Na década de quarenta do século XX assiste-se ainda à revolta dos herreros. 304 Freudenthal em Marques (2001: 276) Esta desestruturação foi acentuada pela perda de vidas humanas e deportação ou eliminação física dos principais chefes africanos. Idem (2001: 276). 305 Processo acelerado a partir do início do século XX, com o definhar de sectores da economia africana, devido ao declínio da exportação da borracha a partir de 1910; e também devido as secas e epizzotias que acabaram com grande parte dos bovinos; o que levou a uma reorientação da mão-de-obra africana, direccionada a partir daí para o sector europeu da economia colonial. Freudenthal em Marques (2001: 277). 306 Freudenthal em Marques (2001: 276); Em 1899 é aprovado o Regulamento Geral do Trabalho que consagrava: a obrigatoriedade moral e legal do trabalho a todos os africanos adultos. Freudenthal em Marques (2001: 303). 75 No entanto, será a partir da implantação da República (5 de Outubro de 1910) que em Angola, “ainda por pacificar”, se realizará um grande esforço no sentido de reorganizar a administração, estimular o povoamento branco e impedir os excessos militaristas307. No respeitante à administração colonial, o debate girava em torno da opção entre as formas civis e militares de governo e o maior ou menor grau de autonomia a conceder aos territórios ultramarinos face a metrópole308. Tendo sido a opção principal, nos territórios recentemente conquistados, a administração militar – “muito combatida por permitir todas as violências e extorsões” – foi sendo substituída (não sem resistências) pela administração civil, durante a primeira República: “num processo que tem um dos seus marcos principais no famoso «Regulamento das circunscrições da província de 309 Angola» promulgado pelo então governador Norton de Matos em 1913” . No que respeita à autonomia do território, foram publicados os primeiros diplomas a garantir a autonomia colonial e as Bases Orgânicas Civis e Financeiras das Colónias, aprovadas em 1914, estabelecendo desse modo o princípio da descentralização. Mas a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) impediu que o processo de descentralização e, como tal de “ampla autonomia dos territórios ultramarinos se concretizasse”310. Este processo seria retomado pelo Decreto nº 80, de 14 de Dezembro de 1921, que, separando as funções administrativas das militares, transformava as capitanias-mores em circunscrições, que deveriam passar a constituir a célula de base da autoridade colonial, agindo como “organismos independentes”, embora fiscalizados, com amplas atribuições”311. Estamos portanto num contexto – o da I República – profundamente marcado pela figura de Norton de Matos,312 “portador de um vasto plano de modernização da sociedade colonial” cuja finalidade política era o reforço da soberania de Portugal em Angola313. Norton de 307 Alexandre (1993: 60); Pélissier (1979: 92). Alexandre (1993: 60). 309 Alexandre (1993: 60). De acordo com o regulamento, Angola passava a ser constituída por trinta e cinco circunscrições civis, vinte e cinco capitanias, onze concelhos e uma intendência. Dáskalos (2004: 33). 310 Alexandre (1993:60). 311 Alexandre em Bethencourt e Chadhuri, Vol 4 (2000: 200). 312 Para além de ter sido governador-geral de Angola (1912-1915) foi ministro das Colónias e da Guerra (19151917). Assumiu o cargo de alto-comissário do Governo de Angola entre 1921 e 1924. Dáskalos (2004: 32); ver também Malheiros (2003: 173-200). 313 Contudo este reforço da soberania, passava também por um controlo mais rigoroso das missões religiosas, sobretudo as estrangeiras bem como, pelo desenvolvimento das «missões civilizadoras laicas» nacionais. Alexandre (2000: 185). 308 76 Matos defendia uma política de substituição da administração militar pela administração civil314. Tratava-se de assegurar uma ocupação administrativa sistemática, contínua e constante. O que implicava acabar com as unidades políticas africanas e fomentar a ocupação portuguesa nas colónias através de uma colonização intensiva315. Era uma concepção que defendia a política de fixação das populações metropolitanas como meio de consolidar a administração colonial. Significa isto que: “ Segundo Norton, o povoamento era o elemento mais importante em que assentava a unidade nacional, pois a aplicação em África dos princípios nacionais obrigava a um povoamento com gente portuguesa que levasse consigo a concepção nacional de pátria. E, estes cidadãos não só formariam a Nação nessas 316 regiões, mas impediriam que influências estranhas se implantassem nesses mesmos locais” . Daí que fosse estimulada a fixação do funcionários de origem metropolitana, barrando, assim as possibilidades de ascensão social aos naturais da colónia e aos filhos do país317. Esta política colonial, de carácter segregacionista, era reforçada pela consagração de uma legislação específica para os indígenas a regulamentar num futuro «estatuto civil político e criminal»318. Seria, aliás, neste capítulo que a dominação colonial se iria também definir no respeitante ao estatuto dos africanos. Estes deixavam de ser parceiros, tornando-se meros subalternos ao serviço dos interesses do colonizador319. 3.1 O acelerado definhar dos filhos do país. Resistência e dominação. O exemplo do movimento associativo Será num quadro de fortes campanhas militares contra os africanos e de reforço do discurso da raça, que se processará o definhamento dos filhos do país320. Com efeito, os últimos anos do século XIX assinalam a aceleração do declínio das “casas grandes mestiças”. Sobretudo, devido à crise económica e à concorrência metropolitana na administração. Tornava-se cada vez mais insustentável manter um alto estilo de vida com meios cada vez mais reduzidos. Assim muitas famílias acabaram na indigência, outras foram 314 Alexandre (2000: 185). Alexandre (2000: 185). 316 Dáskalos (2004:33). 317 Sendo que os protestos destes últimos foram seriamente reprimidos. Norton chegou a ordenar o encerramento de associações e de jornais, e a deportação políticos, tanto europeus como de filhos do país. Alexandre em Barreto e Mónica (1999: 46). 318 Alexandre em Barreto e Mónica (1999: 46). 319 Freudenthal (2001: 262). 320 Alexandre em Vala (1999: 137); Freudenthal em Marques (2001: 447-450). 315 77 para Portugal, mais ou menos arruinadas, diminuindo desse modo a influência das grandes famílias na política local321. Este declínio, cada vez mais notório em finais do século XIX e princípios do século XX, iria ser proporcional ao crescente descontentamento deste grupo social, que começa a questionar a dominação colonial. Podemos considerar que, grosso modo, no espaço temporal compreendido entre o fim do século XIX e o advento da República, vive-se um processo que assinala a progressiva assimetria nas relações económicas e sociais entre colonizados e colonizadores e que se traduz, também, na degradação das condições de vida das elites letradas, a saber os denominados filhos do país. Como tal o advento da República é também pautado por um forte descontentamento deste grupo social. Descontentamento, que, por sua, vez se traduz em discursos de contestação da superioridade do homem branco e de valorização da raça negra. Não surpreende por isso que, no dito período, os discursos produzidos sejam pontuados por uma série de classificações que são a expressão de uma longa história de relações de força entre africanos e europeus: “preto”, “raça cruzada”, “indígena”, “gentios”, “raça crioula”, “mulato”, “naturais civilizados”, “branco boçal”, “nativos”, “europeus” e “serviçais”322. Estamos assim perante um momento de reavaliação de classificações assentes na noção de raça. E, como tal, vive-se um tempo de lutas de classificação. Com a instituição da República, os filhos do país alimentaram alguma esperança, na medida em que o regime republicano, portador dos ideais da revolução francesa, iria ter em conta que: “Considerados cidadãos pela Carta Constitucional, aos mestiços e negros «civilizados» fora reconhecido pela monarquia o direito a manifestação de opiniões políticas e ao voto que se havia traduzido na colónia pelo exercício 323 da actividade jornalística e pela participação em eleições municipais e de deputados às Cortes” . Expectativas no entanto goradas. Os conflitos raciais não abrandaram. As arbitrariedades e discriminações sobre os africanos acentuaram-se, pois os direitos preconizados pela Carta Constitucional haviam sido “restringidos, particularmente com a «aplicação das leis repressivas da liberdade de imprensa, que atingiam alguns publicistas mais ousados na última década do século” 321 324 . Pélissier (1978b: 220). Voz de Angola AA.VV. (1984. passim). No mesmo consta também a denúncia da injustiça social associada aos preconceitos raciais e a leis de excepção o atraso na instrução e a persistência da escravatura. Idem (1984); Freudenthal em Marques (2001: 438-439). 323 Freudenthal em Marques (2001: 439). 324 Freudenthal em Marques (2001: 439); Pélissier (1978b: 222). É neste período -1910- que é introduzido a caderneta para os indígenas. 322 78 Contudo, a actividade política não esmorecia. Era cada vez mais visível uma postura de reivindicação política que, por sua vez, se iria institucionalizar na criação de duas associações nativas325. A Liga Angolana, oficializada na vigência de Norton de Matos em 6 de Março de 1913326. E, posteriormente, o Grémio Africano autorizado a 20 de Março de 1913327, fruto de uma cisão com a Liga Angolana328. Convém assinalar que, estas duas associações nativas emergem num contexto de maior conflito entre angolenses e europeus devido, as crescentes chegadas destes últimos, as guerras de ocupação e as constantes revoltas dos denominados não civilizados329. O surgimento dessas duas associações, embora com o beneplácito do Governador Norton de Matos, não agradava aos colonos. Com efeito, os litígios por causa da usurpação das terras, do aumento do trabalho forçado e da subalternização dos funcionários nativos reforçavam com mais vigor os protestos dos angolenses da Liga330. Um desagrado acabaria por se estender às autoridades coloniais. Assim, e embora reiterando a sua lealdade a Portugal e ao governo republicano, a Liga Angolana tornara-se objecto de desconfiança por parte das autoridades coloniais.331. Aliás: “o Governo reconhecera em 1914 razões objectivas para a agitação dos nativistas de Malanje, pelo facto de «terem sido excluídos… quase todos os pretos e mulatos que concorreram aos logares administrativos”, além de uma provável 325 É o termo com que se começou generalizar no seio dos filhos do país a partir da década de vinte. Sobre a questão do movimento nativista, ler Andrade (1998: 110-113); Freudenthal em Marques (2001: 441-444). Daí que a partir de então optemos por denominar esse grupo social de elite nativa, tendo em conta que ela possuía algum capital cultural. 326 A Liga Angolana preconizava os seguintes objectivos: i) lutar pelos interesses gerais da Província; ii) desenvolver o ensino; iii) defender os direitos dos associados; iv) criar aulas educação físicas, etc.. 327 Os objectivos preconizados pelo Grémio Africano eram sobretudo instrutivos, educativos e recreativos “e atingirse iam promovendo conferências, prelecções ou palestras; estabelecendo um gabinete de leitura; organizando jogos, saraus, concertos e outras festas tendentes á educação e diversão dos sóciosetc”. Pélissier (1978b: 224); Rodrigues (2003: 28). 328 Freudenthal em Marques (2001: 441-442); A existência de duas associações em Angola reflectia em certa medida velhas as clivagens existentes na elite nativa, dividida por diferentes estatutos sociais, cor da pele e rivalidades pessoais”. Rodrigues (2003: 27). Acerca das associações angolenses ver também Pélissier (1978b); Rodrigues (2003). Para saber mais acerca do nativismo ver além de Freudenthal em Revista de estudos Afro-asiáticos (2001); ver também Venâncio (2000:). Aliás, já antes, em 1910, constituíram-se diversas organizações como a Junta de Defesa dos Direitos de África criada em Lisboa. Em Angola foi criada a Junta Revolucionária de Luanda posteriormente transformada em Partido Reformista de Angola e o Partido Republicano Colonial, criados sob os auspícios de republicanos da metrópole. Estes partidos tiveram uma duração efémera. Neles predominavam os colonos, secundarizando, assim, o papel dos angolenses. 329 Período conturbado, reforçado pela Primeira Guerra Mundial e pela agudização de tensões raciais. Rodrigues (2003: 25-26); Freudenthal em Marques (2001: 442). 330 Rodrigues (2003: 30). Angolense uma designação dos filhos do país. Andrade (1998:56). 331 Convém assinalar que, a Liga não contemplava no seu programa a autonomia da colónia, o que poderia provocar a animosidade das autoridades coloniais e dos colonos Rodrigues (2003. 29). 79 332 aspiração à autonomia” . Uma desconfiança que passou rapidamente à acusação de que, a Liga “acolhe no seu seio angolenses reivindicadores da independência e que pretendiam matar os colonos brancos”333. Sucederam-se algumas prisões e a suspensão de um jornal334. A Liga Angolana seria dissolvida em 21 de Fevereiro de 1922. Interrompendo, porventura, a emergência de um nacionalismo que só se manifestaria nos anos cinquenta335. Embora houvesse durante um breve momento um melhor relacionamento com o novo Alto-comissário (Rego Chaves)336, vigilância e repressão policial eram norma vigente. A partir de então, entrava-se num período de hibernação contestatária, mais propriamente, de resistência insonora. Durante aproximadamente uma geração, os nativos terão de se contentar com iniciativas muito limitadas, dado o quadro cada vez mais autoritário337. Chegara o tempo da denominada geração silenciosa ou geração silenciada338. O período da I República fora pontuado por tomadas de posição, por parte dos nativos, contra as autoridades coloniais. Nativos que, por sua vez, tiveram de “enfrentar a hostilidade dos europeus”339. É muito provável que estas tomadas de posição contra o arbitrário colonial não se tivessem sobreposto: “A consciência de elite que tinham de si próprios [os nativos] em contraposição à maioria da população africana, não integrada completamente na sociedade colonial e então designada pejorativamente de 340 «gentio» ou «preto boçal», (com quem não se identificavam socialmente)” . Todavia, esta distinção já não era uma fatalidade porque era um «defeito tido como provisório e a sua responsabilidade atribuída à colonização portuguesa»341. 332 Freudenthal em Marques (2001: 442-443). Trata-se de António Joaquim de Miranda, recebedor da Fazenda e destacado elemento da Liga, que criticara os moldes da cobrança do imposto da palhota e que fora desterrado para Cabinda. Rodrigues (2003: 31) 334 Elementos da Liga foram presos, no entanto devido a falta de provas foram libertados. Trata-se do jornal A Verdade. As pretensões separatistas foram prontamente desmentidas. Rodrigues (2003: 31). 335 Mesmo sem uma estrutura associativa, os nativos continuavam a manifestar o seu descontentamento contra as leis criadas por Norton de Matos. Rodrigues (2003: 41) 336 O mesmo optou por conceder maior liberdade aos nativos. Por ocasião do 15º aniversário da revolução republicana, amnistiou os desterrados e autorizou a reconstituição da Liga. Todavia, “o ressurgimento da liga seria um processo demorado e complexo”. Rodrigues (2003:40-41). 337 Pélissier (1978b: 237). 338 Silenciosa segundo Pélissier (1978b:235); silenciada segundo Rodrigues (2003). 339 Dias (1984: 90). 340 D’Almeida (2000: 647). 341 D’Almeida (2000: 653). 333 80 4. Ditadura militar e Estado Novo. A Consolidação do espaço colonial Em meados dos anos vinte a crise económico-financeira de Angola era por demais gravosa. O esforço de modernização realizado na vigência de Norton de Matos, sustentado mediante o contraimento de empréstimos, saldara-se por um forte endividamento da colónia342. A situação da económica da colónia piorou com o incremento da concorrência de produtos estrangeiros. O que levou ao aumento dos protestos dos comerciantes contra as concessões feitas ao capital estrangeiro343. Neste estado de crise ressurgiu o velho fantasma do temor de uma nova partilha dos territórios ultramarinos pelas potências europeias344. Um conjunto de factores que agravaria a já delicada situação da colónia, provocando o descrédito da política de descentralização colonial, abrindo assim caminho para soluções autoritárias e centralizadoras, contribuindo desse modo para a instauração da ditadura militar mediante o golpe de 28 de Maio de 1926 e, como tal, para a reafirmação da vocação imperial de Portugal345. Tomaram-se de imediato medidas relacionadas com a promulgação de um conjunto de leis “estruturantes” de modo a conferir maior consistência e eficácia à acção do aparelho do estado colonial346. Podemos enunciar algumas: • as novas Bases Orgânicas da Administração Colonial (decreto nº12.421, 2-101926). “Limitavam a autonomia dos governos coloniais, reforçando a superintendência e fiscalização do poder central”347; • O Estatuto Orgânico das Missões Católicas Portuguesas de África e Timor (decreto nº 12485, de 13-10-1926). Este decreto “dava finalmente campo livre á acção das congregações religiosas no ultramar”. Procurava “combater a influência das missões estrangeiras, nomeadamente as protestantes, consideradas 342 Estes empréstimos eram contraídos junto das empresas privadas, sobretudo estrangeiras. Numa conjuntura de inflação e de desvalorização da moeda local perante a libra o pagamento de tais dívidas acabava por sobrar para a colónia, reforçando deste modo o descontentamento daqueles que se opunham à política de Norton de Matos. Este acabaria por pedir a sua demissão em Junho de 1924. “Falhando embora na sua tentativa de modernização rápida da exploração colonial, o governo dos Altos-Comissários, e em especial o de Norton, marca um momento importante no arranque das novas estruturas administrativas. Alexandre em Barreto e Mónica (1999: 47). 343 Freudenthal (2001: 288). 344 “(…) temiam-se os projectos coloniais da Itália e sobretudo da Alemanha, cujas pressões poderiam conduzir a uma nova divisão do continente africano”. Alexandre (2000: 187). Acresce, o famoso relatório Ross que denunciava “formas de trabalho próximas da escravatura” em Angola, contribuindo assim para fragilizar a posição portuguesa em África. Alexandre (1993: 61). 345 Alexandre (1993: 61). Ver também Rosas (1994: 128-135). 346 Alexandre (2000: 187). 347 Alexandre (2000:187). 81 como desnacionalizadoras e potencialmente subversivas”. Garantia-se assim, “o apoio institucional da igreja para o exercício do controlo ideológico que o Estado, por si só, se via incapaz de fazer”348; • O Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas de Angola e Moçambique (decreto nº 12533, de 30-10-1926, reformulado pelo decreto nº 16473, de 6-21929. “Consagrava juridicamente uma distinção básica da prática colonial portuguesa moderna: a que separava civilizados e indígenas, ficando estes últimos, regidos, não pelo direito geral, mas pelos seus usos e costumes tradicionais, sob a tutela do Estado349; • Código de Trabalho dos Indígenas (decreto nº 16199, de 6-12-1928). Trata-se de uma nova regulamentação Código de trabalho de 1899. A inovação principal era a substituição da “obrigação legal de trabalhar” consagrada nos regulamentos anteriores para a “obrigação moral de trabalhar”. “Era um recuo táctico, perante as pressões da Sociedade das Nações e da Organização Internacional do Trabalho”350; Estas quatro leis promulgadas durante a ditadura militar iriam lançar as bases da política colonial das décadas seguintes. E, seria na vigência do regime do Estado Novo que essa política iria adquirir sistematicidade: “Marco simbólico de transição para esta nova fase está no o Acto Colonial- diploma publicado a 8 de Julho de 1930- sendo Salazar ministro interino das Colónias e que passa 351 a vigorar como lei constitucional na área colonial” . O Acto Colonial consubstancia, por sua vez, a constitucionalização de uma concepção imperial, no que respeita à vertente ideológica da política colonial352. 348 Alexandre (2000: 187). Alexandre (2000: 187-188). 350 Alexandre (2000: 188). 351 Alexandre (2000:188). O Acto Colonial marca o início de uma reestruturação do sistema de poderes colonial. Esta reestruturação seria completada, em 1933, pelos seguintes diplomas, na sequência do mesmo: a Carta Orgânica do Império Colonial Português e a Reforma Administrativa Ultramarina Ambas, imbuídas de um forte “sentido centralizador, restringindo fortemente a autonomia das colónias nomeadamente no respeitante aos poderes conferidos aos altos comissário”. Tratava-se de reforçar uma política de centralização administrativa que tinha tido o seu início nos primórdios da ditadura militar, em 1926. De agora em diante os altos-comissários eram substituídos por Governadores. Contudo, aos ministros das Colónias, eram conferidos poderes de ordem legislativa e executiva. Alexandre (2000: 189). 352 Este processo de constitucionalização legislativa abrange, por sua vez, a distinção entre civilizados e indígenas que tinha sido já codificada na legislação anterior, nomeadamente no Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas de Angola e Moçambique publicado em 1926 e reformulado em 1929. A partir de então o Estatuto 349 82 Com efeito esta espécie de constituição, direccionada para as colónias declarava no seu artigo 2º: “É da essência orgânica da Nação Portuguesa desempenhar a função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e de civilizar as populações indígenas que nelas se compreendam, exercendo também a influência moral que lhe é pelo Padroado do Oriente"353. Significa isto que, o Acto Colonial fundamentava juridicamente um conjunto de pressupostos, elaborados desde o século XIX de entre os quais podemos salientar o tema da defesa do império: ”por um imperativo categórico da história, pela sua acção ultramarina em descobertas e conquistas, e pela conjugação e harmonia dos esforços civilizadores das raças, o 354 património marítimo, territorial, político e espiritual abrangido na esfera do seu domínio ou influência” . Tal como acontecera no século XIX, esta ideologia imperial apresenta um forte carácter nacionalista. Isto deve-se, também a um quadro internacional: “onde se faziam sentir certas correntes de ideias mais ou menos desfavoráveis aos dogmas tradicionais da soberania colonial das metrópoles, revestindo-se, muitas vezes com razões de humanidade os desígnios do imperialismo. Estavam sobretudo em causa, embora não fossem expressamente nomeadas, as recentes iniciativas da Sociedade das Nações tendentes a ilegalizar o trabalho forçado nas colónias – vistas em Portugal como uma ingerência ilegítima e uma ameaça velada à própria existência do império, e como tal denunciadas numa campanha de imprensa em que se apelava à união nacional contra o perigo 355 externo” . Esta legitimidade histórica da soberania portuguesa sobre as colónias assentava, igualmente, num conjunto de fundamentos etnocêntricos e raciais. No que respeita aos princípios etnocêntricos, desenvolvia-se um discurso profundamente lusocêntrico. Por um lado, fazia-se a: “distinção entre o império português, vindo do fundo dos tempos e os das outras potências europeias, resultado acidental da conjuntura política de finais oitocentos”. Por outro, “salientava-se uma alegada aptidão especial do colono português, e a sua capacidade única para lidar com os indígenas, caracterizada por uma infinita tolerância e piedade pelo que lhe é inferior na gente do 356 sertão . Contudo este lusocêntrismo continuava a apoiar-se no velho argumento etnocêntrico da superioridade da civilização europeia e da raça branca357. A noção de raça branca em contraponto com a noção de raça negra continuava a ser influenciada pelo darwinismo social dos finais de Oitocentos, embora sob forma «mitigada»358. Segundo Armindo Monteiro, ministro das Colónias entre 1931 e 1935: “estaríamos perante raças Político, Civil e Criminal dos Indígenas de Angola e Moçambique adquiria “um carácter permanente, estrutural, consolidando o seu papel de pólo condutor da política ultramarina”. Alexandre em Barreto e Mónica 7 (1999: 44). 353 Alexandre em Barreto e Mónica (1999 : 43). 354 Alexandre (2000: 188). 355 Alexandre em Barreto e Mónica (1999: 43); ver o mesmo Alexandre (2000: 188) 356 Alexandre (2000: 189). 357 Alexandre (2000:189). 358 Alexandre em Vala (1999: 140). 83 inferiores, por essência e não por acidente histórico, sendo parte delas votadas a extinção, «por insusceptíveis de aperfeiçoamento», enquanto outras, capazes de «compreenderem a beleza de uma disciplina e de a ela se sujeitaram, ficariam, para povoar selva, dando à Pátria trabalhadores agrícolas e soldados que em África lhe são preciosos»” 359 . Assim, parte da fatalidade do Darwinismo social podia ser contornada se «parte das populações africanas» fossem enquadradas por Portugal – «um processo lento que, no entender do ministro Armindo Monteiro, principal arauto da mística do império, ocuparia várias gerações e duraria séculos» 360 . Assim, alguns africanos, embora despojados de quaisquer valores civilizacionais, poderiam atingir o grau civilizacional graças à ajuda de Portugal361. Todavia, torna-se necessário estender este alicerce ideológico, em torno da mística do império, a todos os quadrantes da vida social, de modo a solidificar a integração das colónias à metrópole. É neste sentido, que nos anos trinta e quarenta se desenvolve uma vigorosa campanha com o fim de fomentar um processo de identificação, do povo português, com os pressupostos da ideologia imperial. Sob o impulso do então ministro das colónias Armindo Monteiro, são promovidas um conjunto de iniciativas assentes numa lógica discursiva de incorporação massificada em torno da mística imperial. Este processo é materializado em acções que visam ter impacto na opinião pública, através, de Conferências de governadores coloniais, semanas coloniais, visita do Presidente da república às colónias a africanas, Congresso Colonial na Sociedade de Geografia, Exposição do Mundo Português, etc362. Perante tal cenário ideológico-identitário vai-se gerando um processo de naturalização da dominação que se reflectirá nas práticas quotidianas dos colonizadores. Sendo assim: “o colono parte do princípio de que a sua superioridade é sempre «naturalmente» reconhecida pelos «colonizados» que, desta maneira perdem a sua condição de «proprietários» do seu próprio território, para serem instalados num espaço mítico, que depende inteira e exclusivamente das decisões das autoridades portuguesas, entre as quais se deve contar a decisão do «colono» que é também o «colonizador». As operações de dominação criam uma sociedade onde as diferenças geram hierarquias somáticas, ou raciais, as quais por sua vez, decidem a organização das hierarquias 363 socioprofissionais” . Estavam assim criadas, nos anos trinta e quarenta, condições, políticas e ideológicas, legitimadoras de uma desigual divisão do mundo social em benefício de uma 359 Alexandre em Vala (1999:140). Alexandre (2000: 189). 361 Uma das formas de civilizar os africanos era através do trabalho (herança colonial dos finais do século XIX) Ideologia do trabalho assente no esforço manual, sobretudo na agricultura. Socializar o corpo para domesticar a mente 362 Alexandre (2000: 191); Revista dos Centenários (1940); inclusive nos programas de ensino. Rosas (1994: 286). 363 Henriques em Bethencourt e Chaudhuri, (2000:220). 360 84 população metropolitana. O que, reflectia em certa medida, uma hegemonia colonial no respeitante à ocupação de «todos os cargos que decidiam a organização das escolhas técnicas e políticas»364. Hegemonia cujo fundamento, é reforçado por categorias, jurídico-estatutárias, assentes na noção de raça: civilizado, indígena, assimilado, etc. 4.1 Uma resistência silenciosa. Fragmentos de reavaliação de propriedades rácicas/características somáticas No período do Estado Novo, a repressão sobre os nativos prosseguiu nomeadamente com prisão e deportação daqueles que outrora tinham encabeçado movimentos contestatários365. Apesar da crescente hegemonia da população metropolitana, nos aparelhos administrativos, e da degradação das condições de vida das populações africanas, subsistia ainda uma elite nativa, possuidora de algum capital cultural366. Seria por iniciativa desta última que o movimento associativo seria reactivado367. Assim nasceria a Liga Nacional Africana, autorizada por alvará do governo da colónia em 1930 e posteriormente, o Grémio Africano («associação composta de mestiços e brancos nascidos na colónia») passou a designar-se por Centro Africano, na sequência da legislação regulamentar das organizações sociais nas colónias que restringia a aplicação da designação «Grémio» aos organismos económicos368. Estas duas associações iriam corporizar a «eterna» divisão entre nativos tanto na cor como no posicionamento socio-económico369. O que não invalida que: “Embora mais censurada do que as suas antecessoras, a elite dos anos trinta esteve longe da imagem de passividade que lhe foi atribuída. É certo 364 Henriques em Bethencourt e Chaudhuri (2000:254). Wheler em Vidal e Andrade (2006: 81). 366 Daí que segundo um autor, no meio rural, haja a assinalar a escolarização de razoável número de nativos, graças sobretudo às igrejas protestantes. Como resultado desta “sanzalização” do ensino primário rural surgiu a figura do mundele wa dyala, figura que pretende caracterizar o “preto que virou branco pelo facto de ter aprendido a ler e escrever, a contar e falar a língua do branco tal-qualmente o colono, a vestir-se tal-qualmente o branco, uma coisa impensável antes”. Adão (2007: 83). 367 “Segundo a historiografia, o novo poder, tendo depurado os elementos mais activos e mantido o controlo sobre o movimento associativo, terá autorizado em 1930 a sua reconstituição, encarando-o como instrumento de enquadramento dos africanos, tanto mais que as actividades de assistência, recreio e instrução seriam, de ponto de vista político, inócuas”. Rodrigues (2003:53). 368 Rodrigues (2003: 55) Somente em 1947, o Centro Africano passaria a denominar-se com o nome de ANANGOLA- Associação dos Naturais de Angola. Ambas as associações iriam pautar-se por uma atitude de não confronto com as autoridades coloniais. 369 “Por conseguinte, a «filiação, moradas, vestuário, salões que frequentam, hierarquia burocrática, coloração epidérmica e outras coisas deste jaez» mantinham-se como critérios de pertença a um certo estrato socialmente distinto no seio da sociedade colonial”Rodrigues (2003: 55.) 365 85 que não tiveram lugar as acções espectaculares que marcaram o confronto entre a Liga Angolana e o governo republicano, mas cuja a ressonância se deveu, por vezes, mais à desproporcionada reacção das autoridades coloniais do que ao carácter presumivelmente violento de que se revestiria a iniciativa dos nativos. Ainda assim, apesar da censura e da ditadura política, a elite dos anos trinta revelou um grande dinamismo, visível até no confronto interno, 370 e empenhou-se em marcar a posição dos nativos em relação a todos os problemas da colónia” . Podemos considerar que, grosso modo, e à medida que a população metropolitana aumentava, se tornava cada vez mais notória uma percepção da sociedade angolana dividida entre brancos e negros. Como tal, a consciência racial ia também se apoderando desta elite371. Mas, esta consciência já não era formulada nos mesmos moldes daquela que era ditada pela ideologia identitária colonial372. Com efeito, em resposta às dicotomias impostas pelo Estado colonial: (civilizado/indígena ou assimilado /indígena; branco/mestiço; negro/mestiço; branco/negro) esta elite nativa propõe um quadro classificatório que parte do princípio de que a sociedade angolana, está dividida em dois grandes grupos raciais: brancos e negros. Esta ampla noção de raça negra abrangia tanto os mestiços como os denominados indígenas. “(…) A consciência racial em cristalização, gerada pelas divisões raciais em que assentava a sociedade colonial, levou os nativos a aproximarem-se também dos africanos legalmente considerados indígenas (…). Nesta década os estratos mais baixos dos nativos foram formulando uma nova representação de si próprios enquanto dominados e essa consciência permitiu a inclusão dos indígenas num grande grupo cujo denominador comum era a raça373. Assim “Enquanto a legislação forçava à separação entre assimilados e indígenas, pelo menos um grupo fazia o percurso inverso. Até ao início do século XX, para além de induzida pelas diferenças culturais, a elite dos nativos – tal como os europeus – encarava a maioria dos africanos, sobretudo, como mão-de-obra para fins produtivos, comerciais e militares374. “Na década de 30, o que parecia distinguí-los eram sobretudo as diferenças culturais ou de civilização que, na perspectiva dos elementos da LNA, eram superáveis ou negligenciáveis em razão da comunhão de condição racial e de naturalidade375. E, no que respeita aos mestiços: “(…) A integração dos mestiços no grupo dos negros implicava o alargamento da noção de negro a todos os seus descendentes independentemente dos antepassados brancos e do tom de pele. Assim, 370 Rodrigues (2003: 202). Sobretudo no que concerne à Liga Africana. 372 Não pretendemos afirmar que esta consciência abrangia toda a população colonizada, nem sequer toda a elite nativa. O que se pretende salientar é que a ideologia colonial se esbateu com práticas de resistência classificatória. Resistência, exemplificada através dos discursos produzidos por elementos da LNA. A contribuição do livro de Eugénia Rodrigues foi determinante para esta nossa abordagem. 373 Rodrigues (2003: 79). 374 Dias (1984: 79). 375 Rodrigues (2003:80). 371 86 decorrente da própria diferenciação sócioeconómica prevalecente, eram vulgares os apelos à solidariedade entre os diversos sectores da elite dos nativos, fundada precisamente numa alargada e inclusiva base racial”376 . Assim, a distinção entre nativo e branco boçal ou nativo e gentio, exercitada pelos filhos do país, começa a dar lugar a uma nova distinção entre negros (negros e mestiços) e brancos. Esta dicotomia que reflecte também uma dicotomia geográfica, (Europa=brancos/ África=negros), torna-se passível de ser convertida na dicotomia angolanos/metropolitanos… princípio semi-holístico de uma (re)classificação racial que possibilitará no plano político, a formulação de uma nova distinção, na década de cinquenta, entre colonos e colonizados, em que os colonizados serão todos os negros e mestiços e os colonos todos os brancos. 376 Rodrigues (2003: 78). Este alargamento, da noção de raça negra, a todos os africanos, não põe em causa a doxa colonial. Trata-se então de saber se tal dissimula desejos independentistas que não podiam ser expressos no contexto colonial e ditatorial. 87 88 SEGUNDA PARTE - DAS POLÍTICAS DE CLASSIFICAÇÃO ÀS CLASSIFICAÇÕES POLÍTICAS. A QUESTÃO RACIAL NO CAMPO POLÍTICO ANGOLANO. – (1950- 1996) 89 90 Capítulo III. Factores políticos e ideológicos que concorrem para a compreensão da formação e dinâmica do espaço nacionalista angolano. (1945-1963) 1. Esboço de uma conjuntura internacional. Guerra-fria, pan-africanismo e nãoalinhamento. Do fim da Segunda Guerra Mundial até à criação da Organização de Unidade Africana “Com efeito a guerra marcou uma etapa determinante na tomada de consciência política em África. Nesse despertar, os Estados Unidos e a URSS desempenharam indirectamente um papel importante. A guerra e sobretudo as negociações de paz erigiram esses dois países em grandes potências; ora, ambos, por razões ideológicas, políticas e estratégicas diferentes, se opunham firmemente à colonização. Participaram na difusão das ideias anti-colonialistas e suscitaram, nos povos colonizados, a esperança de serem encorajados e apoiados na sua marcha para a 377 liberdade” . Esta convergência de pontos de vista no respeitante ao fim da colonização possibilitou, em certa medida, a criação da Organização das Nações Unidas em 26 de Junho de 1945, consagrada pela Carta das Nações Unidas e que entraria em vigor a 24 de Outubro de 1945, após a ratificação dos EUA, URSS, França, Reino Unido e China, bem como pela maioria dos outros Estados signatários378. No artigo 73º da Carta das Nações Unidas, Capítulo XI, relativa aos territórios nãoautónomos constava o seguinte: “Os membros das Nações Unidas que assumiram ou assumam responsabilidades pela administração de territórios cujos povos ainda não se governem completamente a si mesmos reconhecem o princípio do primado dos interesses dos habitantes desses territórios e aceitam, como missão sagrada, a obrigação de promover no mais alto grau, dentro do sistema de paz e segurança internacionais estabelecido na presente Carta, o bem-estar dos habitantes desses territórios, e, para tal fim: a) Assegurar, com o devido respeito pela cultura dos povos interessados, o seu progresso político, económico, social e educacional, o seu tratamento equitativo e a sua protecção contra qualquer abuso; b) Promover o seu governo próprio, ter na devida conta as aspirações políticas dos povos e auxiliá-los no desenvolvimento progressivo das suas instituições políticas livres, de acordo com as circunstâncias peculiares a cada território e seus habitantes, e os diferentes graus do seu adiantamento; c) Consolidar a paz e a segurança internacionais; 377 M’bokolo (2007: 493). http://treaties.un.org/doc/Publication/CTC/uncharter-all-lang.pdf. Augusto ( 2004: 32-33); De Campos e AA.VV. (1999: 296-304). 378 91 d) Favorecer medidas construtivas de desenvolvimento, estimular pesquisas, cooperar entre si e, quando e onde for o caso, com organizações internacionais especializadas, tendo em vista a realização prática dos objectivos de ordem social, económica e científica enumerados neste artigo; e) Transmitir regularmente ao Secretário-Geral, para fins de informação, sujeitas às reservas impostas por considerações de segurança e de ordem constitucional, informações estatísticas ou de outro carácter técnico relativas às condições económicas, sociais e educacionais dos territórios pelos quais são respectivamente responsáveis e que não estejam compreendidos entre aqueles a que se referem os capítulos XII e XIII. Este pressuposto jurídico deu um forte contributo no sentido de acelerar o processo de descolonização, primeiro na Ásia e depois na África379. Este princípio jurídico da Carta da ONU, seria reforçado pela resolução 1514 (XV) da Assembleia-geral da ONU, de 14 de Dezembro de 1960 que iria estabelecer o direito à autodeterminação para os territórios e povos colonizados (não autónomos), na medida em que: “todos os povos têm um direito inalienável à plena liberdade, ao exercício da sua plena soberania e a integridade do seu território nacional. Neste sentido, “proclama solenemente a necessidade de por rapidamente e 380 incondicionalmente fim ao colonialismo sob todas a suas formas e em todas as suas manifestações” . Esta resolução iria praticamente consagrar juridicamente a independência acelerada dos países africanos. A partir de então, os movimentos nacionalistas angolanos iriam ter à sua disposição um espaço privilegiado de reivindicação política, juridicamente reconhecido, à luz do direito internacional381. 1.1 Guerra-fria A concordância entre os Estados Unidos da América (EUA) e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), no que concerne aos direitos das antigas colónias europeias serem independentes, nunca secundarizou uma relação de permanente competição entre estas duas superpotências. Com efeito, após a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos e a URSS, potências vitoriosas, edificaram um mundo bipolar em que cada uma procurava reforçar o seu campo de acção, nomeadamente, com o alargamento das respectivas zonas de influência em vários pontos do globo. As duas superpotências competiam entre si através de conflitos locais renunciando, 379 http://www.un.org/french/; http://www.fd.uc.pt/hrc/enciclopedia/onu/textos_onu/cnu.pdf; Castelo (107: 2007). http://www.un.org/french/. 381 Pereira e Quadros (1997: 540-541). 380 92 porém, ao confronto directo382. A África não fugiu à regra e os novos países independentes são frequentemente identificados e classificados em função de filiações político-ideológicas relativamente aos Estados Unidos e à URSS383. Contudo, na década de sessenta esta presença das duas superpotências em África ainda não era significativa384, muito embora os países ditos progressistas385 gozassem de um certo apoio por parte da URSS386. Por seu turno, os Estados Unidos começavam a manifestar um certo interesse pelo continente, apoiando ou substituindo as antigas potências europeias. No entanto esta potência privilegiava, ainda, estrategicamente o Sudoeste Asiático e a América Latina387. 1.2 Pan-africanismo, negritude e não-alinhamento A partir do fim da Segunda Guerra Mundial, em África, o nacionalismo ia adquirindo cada vez mais contornos de protesto, e de reivindicação territorial, assumindo formas de oposição à dominação política, económica, e cultural das potências europeias. É por oposição ao sistema colonial e à dominação estrangeira que a ideologia nacionalista se consolida em África. Trata-se de um nacionalismo sem nação. É, portanto, um processo de: “construção mental imposto à 388 realidade social para a estruturar e que procura agrupar elementos igualmente heterogéneos” . 382 Uma competição que se desenvolveu a par do conflito ideológico a saber: capitalismo versus socialismo ou mundo livre versus comunismo. 383 “São as consequências de um facto político exógeno em que as duas superpotências estiveram de acordo, com o resultado de que o partido armado ou a força armada eram a frequente única alternativa de ocupação do vazio local causado pela fim da colonização europeia. Moreira (1989: 94). O sublinhado é nosso. 384 A África foi até à década de 70 uma região de interesse limitado para os dois grandes. É somente a partir desta década que, no nosso entender, se pode falar de uma geoestratégia das superpotências. 385 É o caso de países como Argélia, Gana, Sudão, Somália Guiné e Congo Leopoldville (aquando da retirada dos belgas, até a queda de Patrice Lumumba). A URSS apoiava também uma política de ajuda [incipiente auxílio militar e formação de quadros] aos movimentos de libertação das colónias portuguesas. 386 No princípio da década de 60, o «bloco socialista» ficou dividido em dois (conflito sino-soviético), tendo a china rivalizado com os soviéticos em África, segundo o princípio de apoiar qualquer grupo que não fosse pró soviético. À título de curiosidade, a China foi o primeiro país a auxiliar o MPLA, tendo posteriormente apoiado a UNITA e mais tarde a FNLA, contrapondo a relação MPLA/URSS. 387 A sua presença foi notória no Congo Leopoldville, nomeadamente, no respeitante ao afastamento de Patrice Lumumba do poder. Este país auxiliava também à UPA-FNLA. Esse apoio era, no princípio dos anos sessenta, praticado sobretudo através das missões americanas diplomáticas e culturais que se sucediam no continente africano, como foi o exemplo da ACOA- American Commitée on África. Era, todavia, um comportamento ambíguo pois mantinham ligações de importância variável com o regime sul-africano e português. A importância da base das Lajes, o facto de Portugal ser membro da NATO e o temor de um governo comunista em Angola foram factores que pesaram na ambivalência da política externa americana. Ver Wrigth (1997); ver também DVD, “Cuba uma Odisseia em África”. Tahri (2007). 388 Hobsbawm (1985: 18-19). 93 É neste sentido que ganha significado o papel desempenhado pelo pan-africanismo como ideologia identitária e pela sua variante cultural, a negritude. Pan-africanismo e negritude podem ser considerados como inspiradores do nacionalismo africano. Ambos são, por isso, exemplos de respostas à dominação colonial, por parte das denominadas elites do chamado terceiro mundo389. Estes dois movimentos iriam influenciar, embora variáveis nas opções de luta, dinâmicas independentistas africanas390. “A negritude, considerada por alguns como a versão cultural do pan-africanismo”, foi um movimento que adquiriu grande expressividade no mundo africano de língua francesa391. Manifestou-se profundamente na literatura e na investigação histórica392. Grosso modo, a negritude assentava num mundo dominado pela idiossincrasia do homem branco, numa concepção de retorno às origens, na afirmação intelectual do homem negro, da valorização do seu passado histórico e da sua cultura tradicional como formas de tornar mais autêntica essa afirmação intelectual393. A negritude como projecto cultural reivindicou não só a existência de um conjunto de valores culturais e espirituais do mundo negro como também inscreveu, nomeadamente na poesia, a crítica à civilização ocidental, o triunfo da raça negra, a passagem do negro – objecto para o negro – sujeito394. Terá, porventura, tido influência em posturas político-culturais de actores do nacionalismo angolano. Contudo, seria posteriormente ultrapassada, soçobrando portanto a 389 Segundo Dieng O ideal Pan-africanista é uma herança conceptual oriunda de intelectuais ou homens políticos negro-americanos ou caribenhos, possuidores de um forte capital escolar e engajados na luta pela emancipação dos negros vítimas do tráfico negreiro. Este combate abrangeu o princípio do século XIX até às vésperas do fim da Segunda Guerra Mundial. Trata-se de um conceito importado para África. http://www.ukzn.ac.za/ccs/filesdieng.pdf 2010. 390 Embora a negritude se defina pela sua componente cultural ela não deixou de ser encaminhada para um programa político-social. Santos (1968: 53); ver também Laranjeira (1995: 85). 391 A designação da palavra negritude teria surgido pela primeira vez na revista Volontés. Laranjeira (1995: 57); Santos ( 1975: 7). Todavia Leopold Sédar Senghor chegou a considerar que a palavra negritude fora lançada por ele e Aimé Cesaire. Ver também Ferra (2004). 392 Terá um papel determinante na divulgação e afirmação da “negritude (na dimensão histórica e literária) a revista Presence Africaine fundada em 1947. Neves (1975:85). Este movimento cultural foi também pontuado por inúmeros congressos de escritores como por exemplo o «Primeiro Congresso Internacional dos Escritores e Artistas Negros» em Paris (Setembro de 1956) e o Segundo Congresso Internacional dos Escritores e Artistas Negros, em Roma (Março de 1959). Neves (1975: 100-108). 393 Podemos assinalar alguns africanos que marcaram profundamente a dinâmica da negritude. Léopold Sedar Senghor, escritor e primeiro Presidente do da República do Senegal independente, o historiador Cheik Anta Diop e Alioune Diop que dirigiu o primeiro número da revista Presence Africaine, entre outros. Santos (1968: 47-62); Santos (1975: 7-41); Neves (1975). 394 Laranjeira (1995: 92). Ver também Santos (1975: 20). 94 influência política do pan-africanismo político nomeadamente no que concerne à luta anticolonial395. Com efeito, o surgimento de um nacionalismo moderno e anti-colonial iria possibilitar o surgimento de novos estados independentes na África subsariana. É sobretudo neste aspecto que reside o contributo do pan-africanismo, na sua dimensão política. Será com Kwame Nkrumah396 que o pan-africanismo, como projecto político, atingiria a sua máxima expressão, na medida em que deixou de ser um problema de negros para se tornar num projecto político, mobilizador do continente africano397. Em 1945 no V Congresso Pan-africano, em Manchester, o pan-africanismo assume um carácter marcadamente político, nomeadamente com a reivindicação da independência e a organização de massas como forma de adquiri-la: “Estamos firmemente convencidos de que todos os povos têm o direito de se governarem a si próprios. Afirmamos o direito de todos os povos colonizados a decidirem por si próprios do seu próprio destino. Todas as colónias devem ser libertadas do controlo imperialista estrangeiro, tanto político como económico. Os povos das colónias devem ter o direito de eleger os seus próprios governos, governos livres de qualquer limitação imposta por uma potência estrangeira. Afirmamos aos povos colonizados que devem lutar por todos os meios ao seu alcance para atingir estes objectivos“ 398 . Sendo assim, para Nkrumah, o pan-africanismo adquirira uma função económica e política e por conseguinte histórica399. Económica porque, embora rico em recursos, o continente sofria ainda as agruras do colonialismo: desenvolvimento desigual entre os Estados e regiões e no seio de um mesmo Estado, concorrência ruinosa entre países produtores das mesmas matérias-primas, diferença entre as moedas, etc400. Politicamente a África estava ameaçada pelo neocolonialismo sendo seu instrumento, a balcanisação401. Historicamente, porque servindo-se dos exemplos da URSS e EUA, (e tentativa de uma Europa unida), considerava que o futuro residia nos grandes blocos continentais402. 395 A propósito da influência da negritude sobre alguns actores políticos angolanos ver entrevista de Mário de Andrade concedida a Michel Laban em Laban (1997) e entrevista do mesmo concedida a Christine Messiant em Andrade-Messiant (1999); Lara (1997). 396 Kwame Nkrumah (1909-1972), primeiro Presidente do Gana independente. 397 Antes da inflexão, praticada por Nkrumah, o pan-africanismo não abrangia o continente africano mas sim a «raça negra». No nosso entender, este último teve um papel fundamental na reconversão do pan-africanismo em corpo doutrinário assente na defesa da igualdade racial e na luta contra o colonialismo. 398 Benot (1981: 146). Ver também Venâncio (2000:69). 399 Mbokolo (1985: 355-356). 400 Mbokolo (1985: 356). 401 Mbokolo (1985. 356). 402 Mbokolo (1985. 356). 95 As suas ideias eram consideradas radicais, pois considerava que uma África unida só podia ser socialista403. Estas ideias iriam influenciar tomadas de posição dos movimentos nacionalistas angolanos404. O pan-africanismo politico sairia reforçado com a Conferência de Bandung na medida em que a formação de um bloco Afro-asiático abria a possibilidade de reunir, pela primeira vez, num país do terceiro mundo, ao mais alto nível e em grande número, líderes dos Estados mais desfavorecidos, empenhados em reflectir, fora dos centros dominantes, sobre modos de resolução de problemas que afectavam os seus países405. Com efeito Bandung lançara os alicerces para o Movimento dos Não Alinhados, através, da aprovação de princípios nucleares como a: “não-intervenção e não-ingerência nos assuntos internos dos outros países; renuncia a acordos de defesa colectiva destinados a servir os interesses particulares das grandes Potências, quaisquer que elas sejam; renuncia por toda a potência a exercer pressão sobre todas as outras; 406 Respeito pela soberania e integridade territorial de todas as nações” . Relativamente ao continente africano, a Conferência de Bandung assinalou uma viragem política407. Mais do que a busca de uma distância relativa às duas superpotências, esta Conferência assinala o fim da hegemonia das velhas potências europeias coloniais e, consagra, igualmente, o reconhecimento internacional do pan-africanismo político veiculado por Nkrumah ao retirar, da sua doutrina, a componente racial desta última ideologia identitária, convertendo desse modo, um princípio de afirmação racial e regional num conjunto de pressupostos universais. Todavia, separavam os países africanos profundas divergências políticas que punham em causa o projecto unificador veiculado pelo pan-africanismo, nomeadamente, no que concernia à aplicabilidade do não-alinhamento relativamente às superpotências. Países pobres e dependentes do sistema-mundo, dificilmente os novos Estados independentes conseguiriam uma real postura de não-alinhamento, sobretudo num quadro de luta hegemónica entre as 403 Mbokolo (1985: 356). Nota-se a influência dos países socialistas. Contudo esta influência não acontece após a Segunda Guerra Mundial. A aproximação ao sovietismo já tinha sido protagonizada por Du Bois a partir da sua visita à União soviética em 1923, aquando da III Internacional. Venâncio (2000: 69). 404 Nomeadamente a UNITA e a FNLA. 405 A Conferencia de Bandung (Indonésia) teve o seu início a 18 de Abril de 1955. 406 Santos (1968: 136-137). A Conferência de Bandung marca um momento decisivo no processo de descolonização. Um ano depois da realização da Conferência, a França votou a lei-quadro da descolonização da África de língua francesa; de 1959 a 1961 tornaram se independentes 24 novos Estados e no final de 1962 existiam em África 36 Estados independentes (86,8% do território africano correspondendo a 93% da população africana). Guerra (1993: 27-31). 407 Venâncio (2000: 74). Mas também porque confirmava a eliminação da componente racial do pan-africanismo. 96 superpotências. É tendo em conta estes constrangimentos que podemos situar a emergência de dois grupos antagónicos a partir de 1961. O grupo de Casablanca, formalizado em Janeiro de 1961 e o grupo de Monróvia formalizado em Maio do mesmo ano. O primeiro englobava o Gana, Guiné Konacry, Mali, Líbia, Egipto, Marrocos e a FNL/Frente Nacional de Libertação, (movimento armado independentista argelino) e identificava-se ideologicamente com o bloco socialista. O segundo grupo compreendia os Camarões, a Libéria, a Nigéria e o Togo identificados ideologicamente com os denominados países capitalistas408. Contudo, apesar de tais constrangimentos os Estados soberanos africanos conseguiram chegar a um consenso aquando da criação da Organização de Unidade Africana (OUA)409. A OUA, criada em 25 de Maio de 1963, em Adis Abeba, iria legitimar por sua vez as novas formas de lutas contra o colonialismo português ao sancionar o recurso à luta armada para liquidar os regimes coloniais sobreviventes410. Esta organização africana desempenhará um papel fundamental no que concerne ao reconhecimento jurídico dos movimentos independentistas angolanos. 2. Aspectos da política colonial. (1950-1961) As transformações operadas no pós Segunda Guerra Mundial, nomeadamente o novo cenário geopolítico bipolar, iriam reflectir-se na política colonial metropolitana. Uma nova ordem político-económica ameaçava as velhas relações coloniais411. Com efeito, desde o fim da Segunda Guerra Mundial que a legitimidade do colonialismo europeu era posta em causa. Cada vez mais se afirmava o princípio da autodeterminação dos povos; era o fim da crença na superioridade da civilização ocidental e na 408 Santos (1968: 281-288 e 325-330); Venâncio (2000: 75). Corresponde à actual Unidade Africana (UA). E, que quanto a nós consagra, em certa medida, a institucionalização do pan-fricanismo na sua dimensão política. 410 Na declaração da OUA consta, no artigo II nº1 alínea d), o seguinte: “Eliminar sob todas as suas formas o colonialismo da África. Para alcançar os objectivos do Artigo II consta um dos seguintes princípios:”Dedicação sem reservas à causa da emancipação total dos territórios africanos que ainda não são independentes”. Fernandes (1980:202). 411 Aliás a própria Europa sofrera mudanças. A Europa assegurara a sua reconstrução económica e caminhava a passos largos para a constituição de um espaço económico europeu unificado, de modo a constituir uma alternativa a hegemonia económica americana. Alexandre (1999: 355). 409 97 missão tutelar das nações europeias sobre as raças até aí geralmente tomadas como “atrasadas” ou “inferiores”412. As potências coloniais começaram por encetar pequenas reformas. Modernizaram o sistema de exploração, suprimindo as suas formas mais gritantes (como, por exemplo, o trabalho forçado que era prática comum durante a guerra na África negra) e outorgaram mais extensos direitos de representação política às populações locais413. No que concerne ao trabalho forçado, Portugal não fugiu a esta tendência. Em 1945, o ministro das Colónias deslocou-se ao ultramar com “a missão de eliminar da legislação e da prática administrativa os indícios mais evidentes de discriminação racial e de trabalho forçado”414. Todavia, a contestação ao regime colonial português caminhava para um processo sem retorno. Goa, Damão e Diu (três pequenos territórios situados na recém independente União Indiana), contestavam a soberania portuguesa. Uma situação que prenunciava uma futura estreita margem de manobra política, sobretudo quando se avizinhava a aceleração do processo de descolonização de África415. Assim, face ao aumento das pressões internacionais e temendo que acontecesse o mesmo com as suas colónias africanas, o governo de Lisboa começou por alterar os fundamentos jurídico-institucionais desses territórios. Tratava-se de contornar os preceitos da Carta das Nações Unidas no respeitante à autodeterminação. Em 1951, com a revisão da Constituição, foi substituída a ideia imperial, vigente entre as duas guerras, por uma concepção assimilacionista, passando as colónias e a metrópole a constituírem uma nação416. Assim, as designações de “império” e “colónias” foram banidas sendo substituídas pelas terminologias “províncias ultramarinas” e “ultramar”. Graças a esta engenharia jurídica Portugal torna-se doravante uma “nação pluricontinental”, composta por províncias europeias e ultramarinas, integradas harmoniosamente no todo nacional uno e indivisível. “Escudando-se no facto de nominalmente não 412 Alexandre (2000: 194). Acerca do contexto internacional ver também Léonard em Bethencourt e Chaudhuri (2000: 32-34). 413 Alexandre (2000: 194). 414 Alexandre (2000: 194). 415 Alexandre (2000: 195). 416 Alexandre (2000: 195). 98 possuir «colónias», o Estado Novo considera que não tem de prestar contas à comunidade internacional do que se 417 passa no interior das suas fronteiras. A tónica da política ultramarina seria, daí em diante, a «assimilação» . Contudo, esta concepção assimilacionista necessitava de ser alicerçada por um conjunto de medidas que abrangesse sobretudo a economia e o povoamento territorial. De ponto de vista económico, “a lógica mundial livrecambista reivindicou a liberdade de acesso às matérias-primas e aos mercados ultramarinos, fragilizando a ordem colonial definida desde o século XIX”418. Ora isso, implicou reestruturar a economia nacional no seio do espaço português, integrando o território metropolitano e o espaço ultramarino. Uma estratégia que obrigava a forte intervenção estatal com participação de capital estrangeiro419. E, como tal, assente em três vectores principais420: • integração das economias metropolitanas e ultramarinas tendo em conta a inserção internacional do conjunto nacional; • criação de meios, incluindo o abandono gradual dos direitos aduaneiros, para a livre circulação de produtos no espaço nacional; • aplicação do mesmo princípio à livre circulação dos capitais e das pessoas421; Contudo, esta política só teria a sua real concretização a partir da década de sessenta. Com efeito, até princípios desta década, Angola permanecia ainda essencialmente um reservatório de matérias-primas, produtos primários e um mercado de produtos semitransformados da economia metropolitana. Os sectores industriais eram praticamente inexistentes, os investimentos desencorajados e a penetração de capitais estrangeiros severamente regulados422. 417 Assimilação progressiva não só dos territórios no seio do império mas também no que respeita à situação jurídica dos indígenas. Castelo (2007: 108). 418 Leite em Barreto e Mónica 7 (1999: 355). 419 Sobretudo americano, dada as fragilidades, ainda, da economia europeia, ela mesmo dependente do Plano Marshal. Alexandre (1999: 355). 420 Leite em Barreto e Mónica 7 (1999: 356). 421 A concretização desses três vectores tornou necessária a criação do «Espaço Económico Português» assente em três eixos interventivos da política económica: regulação do circuito mercantil, o que passava por uma nova orientação do sistema tarifário entre a metrópole e os territórios ultramarinos: tratava-se de reduzir as pautas aduaneiras de modo a acelerar a livre circulação de produtos entre a colónia e a metrópole; execução de uma política de desenvolvimento industrial, o que passava pela reestruturação das relações económicas entre as colónias e a metrópole; e, implementação dos Planos de Fomento como instrumentos privilegiados de desenvolvimento económico nacional. Leite em Barreto e Mónica 7 (1999: 356). 422 Torres, (1983:1101) Em meados dos anos cinquenta as indústrias de Angola que absorviam mais força de trabalho eram a exploração mineira, a produção açucareira, pesca e derivados. Começavam a ganhar importância a exploração da madeira de Cabinda e Moxico. No que diz respeito às exportações, o café irá adquirir cada vez mais 99 Ao princípio económico que apelava para a livre circulação de capitais, juntou-se, por conseguinte, a livre circulação de pessoas; o que implicou, por parte do Estado metropolitano, uma política de encorajamento de fixação das populações metropolitana nas colónias, nomeadamente em Angola. O novo contexto internacional, nomeadamente o crescimento das economias coloniais, obrigara a uma nova atitude por parte das autoridades metropolitanas no que respeita ao povoamento branco. A partir de 1945, de forma gradual, começaram a ser levantados os limites à entrada de metropolitanos sem capital ou formação superior, em Angola e Moçambique423. A década entre 1950-1960 caracteriza-se, por um forte envolvimento do Estado português em matéria de povoamento424. É neste sentido que o Ministério das Colónias/do Ultramar começou a financiar de forma crescente o transporte de colonos sem recursos425. Tratava-se de pôr em prática a valorização de uma África lusitana. Ou seja, fazer de Angola uma colónia de povoamento. Surgem assim os colonatos (Cela e Cunene) exemplos de criação de um Fundo de desenvolvimento e povoamento com o adequado financiamento426. Este forte empenho estatal tinha por objectivo informar, transportar, proteger e subvencionar aqueles que no vocabulário oficial serão os colonos, ou seja aqueles cujo bilhete de passagem é pago pelo Estado mesmo que não sejam funcionários. Tratava-se de preparar as terras, construir as fazendas e enquadrar tecnicamente os colonos427. Convém contudo salientar que na década de cinquenta, Angola conta com 78.826 portugueses classificados de brancos, fruto sobretudo de uma emigração que não é subvencionada pela administração portuguesa428. Em 1960 a população classificada de branca cresce significativamente, 118,87%, passando assim para 172.529 habitantes na sua maioria a uma importância primordial. Muito embora os diamantes o milho, o algodão, entre outros, fossem também produtos exportáveis. Neto em Medina (2003: 22). 423 Castelo (2007: 376). Em 1947, a emigração para o estrangeiro esteve suspensa durante sete meses como forma de fomentar a ida de portugueses para as colónias Idem (2007: 127). 424 Pélissier (1978b: 42). 425 Pélissier (1978b: 40). 426 Pélissier (1978b: 40). 427 Pélissier (1978b: 40). Acerca do povoamento dirigido ver Castelo (2007). 428 No entanto a população branca continua a representar menos de 2% da população total de Angola. 60% é constituída por homens. Os portugueses nascidos na metrópole constituem 52,32% do total dos 78.826, enquanto os europeus nascidos no território angolano já representam 42,57%. A maioria dos classificados de brancos estão nas cidades e menos de 10% destes últimos são agricultores, sobretudo no sector do café, motor da economia e que atrai a emigração A politica de povoamento rural dirigida não surtira os efeitos desejados. Pélissier. (1978b: 38-43). 100 viver nas cidades429. Será neste quadro de povoamento branco que, à concepção assimilacionista seria acrescentada a doutrina do luso-tropicalismo inspirada em Gilberto Freire. Esta doutrina preconizava que as relações estabelecidas pelos portugueses com os povos das regiões tropicais seguiriam um modelo específico, fundado na compreensão e na adesão aos seus valores dando origem por interpenetração cultural e biológica a um todo integrado, uma verdadeira “civilização luso-tropical”430. Como afirma uma autora, o pensamento de Gilberto Freyre revela-se de grande utilidade para o fortalecimento da ideia de nação pluricontinental portuguesa» e para o programa de fixação de metropolitanos no ultramar. A mesma, socorrendo-se de uma comunicação de Alberto Lemos, chefe da Repartição Técnica de Estatística de Angola pode dar mais ênfase a sua afirmação: “ O luso tropicalismo de que Gilberto Freyre tem sido o cientista máximo e o melhor crítico e historiador é a única solução possível do continente sul-africano. Nenhuma construção será viável à base de extermínio ou da segregação das populações aborígenes. A integração destas na nossa etnia e na nossa civilização corresponde às exigências de Deus e da natureza [… «O português que é já, por si mesmo, o produto de tantas e tão variadas etnias, desde europeias, africanas, ameríndias, orientais - cadinho onde se fundem múltiplas aptidões, virtudes e mesmo defeitos - parece ser, pelo condicionalismo da sua história e da sua origem, o povo por excelência 431 para conduzir os destinos do continente sul-africano” . Porém, estas políticas encetadas pelo Estado colonial na década de cinquenta não se traduziram numa melhoria das condições de vida dos colonizados. Antes pelo contrário, as relações entre colonos e colonizados pautaram-se por um conjunto de arbitrários fomentados tanto pelo Estado colonial como pelas populações oriundas da metrópole: “Não obstante desde pelo menos o último quartel do século XIX se detectar no discurso político a ideia de que os portugueses, devido aos seus fundamentos étnicos, tinham uma capacidade especial para se relacionarem com os povos nativos de África, o certo é que a colonização portuguesa, como qualquer outra, assentou em barreiras raciais, gerou conflitos e promoveu a 432 discriminação” . Com efeito, o aumento significativo da população classificada de branca iria endurecer as relações raciais entre colonos e colonizados, na medida em que, se o aumento da imigração branca provocou um alargamento do mercado interno e a diversificação das actividades 429 Castelo (2007: 216). Alexandre (2000: 195). Este sociólogo brasileiro formulou uma teoria que pretendia dar base científica a uma alegada «vocação» de Portugal. Segundo esta teoria os portugueses tinham uma aptidão especial para se misturar biológica e cultural com os povos tropicais e isto era devido a um traço específico: a ausência do preconceito racial, que caracterizava os povos anglo-saxónicos. Alexandre (2000: 227). 431 Castelo (2007: 116). 432 Castelo (2007: 283). 430 101 económicas, ela traduziu-se por sua vez, numa maior concorrência em desfavor dos classificados de mestiços e negros angolanos que viam as suas oportunidades cada vez mais limitadas433: “por conseguinte, a imigração crescente dos anos 50 teve o efeito de aumentar o desfasamento entre as aspirações dos não -brancos integrados na sociedade central434, e as suas expectativas quanto às «chances» que lhes daria esta sociedade. E é de sublinhar que o «sistema politico local» que se articulou em Angola, nos anos 40 e 50, inclui todos os brancos, em virtude da cor da sua pele, mas apenas muito poucos não-brancos, e estes, geralmente em posições 435 marginais” . 3. Breve caracterização do espaço colonial. Uma sociedade em permanente tensão. (19501961) A constante discriminação sobre as populações, na sua gritante maioria classificadas, de indígenas e negras criou um ambiente de profunda tensão social. Sobretudo: quando existe violência na exploração da força de trabalho, nomeadamente no que respeita ao amplo recurso as mulheres e crianças em serviços sem remuneração nas obras públicas locais, a par do forçado angariamento de trabalhadores (formalizado por um compulsivo contrato cujo salário na época mal servia para cobrir despesas básicas, sendo que, o contratado, muitas vezes, regressava já endividado à terra de origem)436; quando se obriga a pagar o imposto indígena anual pago em dinheiro, como meio de forçar a população rural a entrar na economia monetária, com os seus bens ou a sua força de trabalho, (além de outros impostos aplicados à revelia da lei por autoridades pouco escrupulosas)437; quando se impõem culturas obrigatórias, de que o algodão se tornou exemplo maior, provocando fome e emigração, (nomeadamente na zona de Malanje onde a Cotonang tinha a concessão da produção algodoeira)438; quando as expropriações legais e ilegais de terras de cultivo ou de pasto são em benefício de colonos ou de empresas439; quando são cometidos abusos por funcionários administrativos e seus auxiliares (castigos corporais, ofensas graves) ou por comerciantes que roubavam impunemente, (fosse nos pesos e valores das 433 Medina (2003: 16- 22). Acerca do conceito de sociedade central ver Heimer (1980). 435 Heimer (1980: 21). 436 Neto em (Medina (2003: 23). 437 Neto em (Medina (2003: 23). 438 Neto em (Medina (2003: 23). 439 Neto em (Medina (2003: 23). 434 102 mercadorias, fosse a coberto de crédito ou de empréstimos que facilmente degeneravam na apropriação de terras e gado dos camponeses)440. Às arbitrariedades acima referidas juntavam-se os obstáculos no que concerne ao acesso ao ensino. Nas colónias, só muito tardiamente se começou a investir na escolarização dos africanos441. As condições de ensino para os classificados de indígenas eram praticamente inexistentes. Desde 1940, que as missões católicas administravam um ensino rudimentar de modo a impedir que “os africanos se transformem em doutores”442. Com efeito, a sociedade colonial apresentava um reduzido nível de instrução que, limitava o acesso à literatura, informação e propaganda escritas. As escassas oportunidades escolares, nomeadamente, básicas e técnico-profissionais: “era um dos grandes factores de ressentimento contra o domínio português, recorrente no enunciado de queixas dos nativos, que não se coibiam de apontar o contraste com a colónia belga” 443 . Nas cidades, o arbitrário não deixava de ser exercido. No emprego ou mesmo na rua, uma pessoa classificada de indígena estava sempre sujeita a um insulto gratuito, ou até ao espancamento, tal como acontecia com os criados (empregados domésticos) que viviam nos musseques444. Basta estarmos atentos a evolução urbana de Luanda. Esta última evoluiu de modo a reforçar dois núcleos: o dos colonos, predominantemente classificados de brancos e o dos africanos, lugar de dominados e servidores de brancos, espaços predominantemente escuro445. Como constata uma historiadora: “Esta oposição assenta no direito ao território africano que permite que os autóctones sejam rejeitados, obrigados a apinhar-se nos musseques, que entretanto iam caracterizando a estrutura 446 social e urbana das cidades, ou então empurrados para as periferias cada vez mais longínquas” . Assim, os 440 Neto em (Medina (2003: 23). Castelo (2007: 286). 442 Expressão do cardeal patriarca citado por Henriques em Bethencourt e Chaudhri (2000: 224). Um actor salienta a relação entre escolaridade e características somáticas: “A escola era para filho de branco, quer fosse brancos de segunda ou mestiços. Isso eu vivi porque eu fui o primeiro negro a ser admitido na escola primária nº 54, do Luau, creio eu, na Vila Teixeira de Sousa porque o meu pai se bateu por isso, senão iria parar a missão católica ou missão protestante. Que eu saiba isso passa-se em 1945 e até hoje mais nenhum negro daquela zona se formou depois em estudos universitários, que eu saiba”. Entrevista com Manuel Lima em 08/2007, ex-militante antigo comandante da guerrilha do MPLA. 443 Neto em Medina (2003: 20). 444 Adolfo Maria em Pimenta (2006: 33). 445 Henriques em Bethencourt e Chaudhri (2000:220). 446 Henriques em Bethencourt e Chaudhuri (2000: 222). Adelino Torres demonstra como o estado da habitação também é revelador da evolução económica de uma região e naturalmente da estratificação social dos habitantes. O que se traduz pela apropriação do espaço geográfico (residência na cidade ou arredores) mas igualmente pela capacidade de inserção dos indivíduos no espaço social através do tipo e qualidade dos materiais utilizados na 441 103 africanos foram sendo remetidos para lugares cada vez mais distantes dos espaços asfaltados, onde residiam os europeus447. Estes últimos eram expulsos dos espaços brancos mesmo quando eram proprietários das casas448. Tal como no ensino, no emprego a discriminação era gritante limitando assim as hipóteses de mobilidade social ascendente dos africanos. Em meados da década de cinquenta, a percentagem de classificados de negros e mestiços nos departamentos de Estado não chegava a 15% (excluindo os soldados e os serventuários)449 “Nos organismos de coordenação económica, nas actividades particulares e no Banco de Angola (apesar de se tratar de uma instituição oficial) a percentagem de empregados africanos era muito diminuta”450: “Em Luanda encontra-se um ou outro preto a trabalhar em escritórios ou armazéns particulares. Podemos, porém, correr de ponta a ponta a cidade que não descobrimos nenhum ao balcão de mercearias, de casas de modas ou cafés. Quanto aos mestiços, a percentagem dos que trabalham nos escritórios é já maior em relação aos pretos. Todavia ao balcão de casas comerciais existem ao todo uns seis, três dos quais são filhos ou parentes dos donos desses estabelecimentos. Outro sector que traduz bem as dificuldades com que os mestiços e pretos lutam para se empregar é o de motoristas. Na praça desta capital, exceptuando os poucos que trabalham nos Serviços Públicos e nalgumas grandes organizações particulares, não há nenhum preto a exercer a sua actividade, e mestiços apenas conseguimos encontrar 451 três” . O pessoal da estiva que, durante muito tempo era totalmente constituído por indígenas de Angola, foi sendo gradualmente substituído por indivíduos da metrópole, destinando ao desemprego e à miséria centenas de famílias que nessas actividades encontravam o seu rendimento452. E, no que concerne aos salários, a discrepância entre os classificados de indígenas construção de casas. O mesmo considera que em Angola, sobretudo nos anos quarenta e cinquenta a maior parte da população branca morava em casas edificadas com materiais «ricos» em betão (tijolo e cimento) enquanto que a quase totalidade da população africana, negra e mestiça residia em construções feitas a partir de materiais «pobres» (tijolos de lama secas ao sol e outros materiais). Torres (1986). 447 Henriques em Bethencourt e Chaudhuri (2000:256). 448 Henriques em Bethencourt e Chaudhuri (2000: 256). 449 Castelo (2007: 327). 450 Castelo (2007:327). 451 Lourenço Mendes da Conceição, citado por Castelo (2007: 327). “Mesmo nos lugares mais modestos, os naturais das colónias estavam a ser substituídos por metropolitanos. Em Angola, nos hotéis e restauração, por exemplo, apenas os antigos estabelecimentos, como o Hotel Paris, Hotel Central, o Grande Hotel de Luanda, o Café Gelo, a Cervejaria Biker, a Portugália, o Baleizão e pouco mais, mantinham ao seu serviço de mesa pessoal «negro». Nos estabelecimentos novos deste género, os brancos tomam os lugares que outrora eram ocupados pelos «negros» e os seus proprietários fazem gala em anunciar que o seu pessoal doméstico é todo europeu. Idem (2007: 327). 452 Castelo (2007: 327). “A necessidade de expulsar os africano do próprio espaço urbano conheceu a sua mais grave manifestação delirante nos anos cinquenta, quando se decidiu importar ardinas lisboetas, que deviam vender em 104 e europeus era, em geral, abismal453. No espaço público, a segregação era perfeitamente visível: (…) “Nos comboios as carruagens de 1ª e 2ª classe eram apenas para brancos e assimilados. Nos hotéis, restaurantes, cafés, bares, cinemas era raro ver-se um cliente negro. Há testemunhos que indicam que nas piscinas do Huambo e 454 de Malanje, nos anos 50, os negros e os mestiços eram impedidos de tomar banho” . As autoridades europeias não permitiam a circulação dos africanos nas zonas “brancas”, a não ser com autorização do empregador. As rusgas sistemáticas levadas a cabo pelas autoridades coloniais “arrastam” consigo dezenas ou centenas de africanos que são frequentemente recrutados à força para os trabalhos forçados ou de interesse público ou então agredidos pelas autoridades coloniais e pelos cidadãos455. Alfredo Margarido sublinha “a extrema tensão em que se vive numa cidade em que, na aparência, consagra a maior parte do seu tempo à administração e ao comércio”456. Tensão confirmada por Viriato da Cruz aquando do seu encontro com Mário Pinto de Andrade: “Um estado de tensão que se manifestava em todas as manifestações, num jogo de futebol, na rua: a tensão negro-branco, esta nítida demarcação que se tornava cada vez mais clara; que estava em crescendo; um crescendo de um movimento anti colonial, mas que passava também para uma forma racista- racial, talvez não racista mas racial - e de uma proliferação de organizações, de pessoas que queriam realmente organizar-se. Mas o elemento central era a tensão. E, do outro lado também, a organização da violência por parte do colonialismo. Ele [Viriato da Cruz] que 457 tinha pressentido aquilo que acabaria por se manifestar” . Este arbitrário na relação colono/colonizado estava inserido num quadro fortemente repressivo de ponto de vista dos direitos políticos fundamentais, nomeadamente no respeitante à proibição de liberdades associativas, sindicais, imprensa, literatura e claro, o direito de constituir organizações políticas (excepto o partido salazarista, União Nacional). Qualquer tomada de posição contra o regime ditatorial e colonial metropolitano estava sujeito, tal como acontecia na metrópole, à prisão arbitrária, tortura e até à morte, sobretudo a partir do momento em que a PIDE se instalou definitivamente em Angola no ano de 1956458. Esta tensão iria culminar, naquilo que Viriato tinha pressentido, numa explosão de violência entre colonizadores e Luanda os jornais diários, expulsando os africanos. Chegou-se ao ponto de equacionar a importação de engraxadores de Portugal. Henriques em Bethencourt e Chaudhuri (2000: 255). 453 Anuário Estatístico de Angola 1958 Ano XXIV (1959: 58-59). Ver anexos nº 7. 454 Castelo (2007: 286). No cinema Restauração, os africanos estavam proibidos de se instalarem no balcão e muitos proibidos simplesmente de entrar, sendo remetidos para o Nacional ou o São Paulo, localizados próximos dos musseques. Estas distinções eram reforçadas no quotidiano, em que não eram autorizados filmes onde houvesse africanos batendo em europeus ou brancos. Henriques em Bethencourt e Chaudhuri (2000: 257). 455 Idem (2000: 257). 456 Citado por Henriques em Bethencourt e Chaudhuri (2000: 257). 457 Andrade em Messiant (1999: 215). O sublinhado é nosso. 458 Acerca do processo de implementação da PIDE em Angola ver Medina (2003: 38-39); Mateus (2004:24-25). 105 colonizados e, traduzir-se-ia em sangrentas revoltas protagonizadas pelos colonizados, assinalando dessa forma o regresso dos confrontos armados entre europeus e africanos459. No ano de 1961, o regime metropolitano enfrenta uma série de dificuldades políticas. Pela primeira vez, ao longo dos seus trinta e sete anos de governo, António de Oliveira Salazar corre o risco de ser afastado do poder460. A pressão internacional sobre Portugal acentuava-se, tornando cada vez mais legítimas, internacionalmente, as tomadas de posição anticolonialistas461. Doravante a política definida para Angola vai assentar em cinco pontos: • militarização do aparelho colonial que se traduziria na rápida contra-ofensiva militar nas zona de insurreição em Angola462; • apelo, na metrópole, aos sentimentos nacionalistas463 e a assumpção do lusotropicalismo como matriz estruturante da ideologia colonial464; • promulgação de um vasto número de medidas legislativas (abolição do Estatuto do Indígena; das culturas obrigatórias e do trabalho forçado), no sentido de reforçar o sistema e suster as pressões internacionais465; • política de modernização da economia angolana assente num crescimento da indústria transformadora com base nas potencialidades do mercado interno e na expansão de outros sectores industriais e agrícolas apoiados no mercado externo466; 459 O levantamento na Baixa de Kassange, o ataque às prisões de Luanda no dia 4 de Fevereiro, a revolta do 15 de Março são datas que marcam o prelúdio de um confronto sistemático entre angolanos e portugueses. 460 O assalto ao paquete «Santa Maria», por Henrique Galvão (Janeiro), o golpe militar de Botelho Moniz, (dominado pelo regime salazarista), e a ocupação de Goa, Damão e Diu pela União Indiana (Dezembro). Castelo (2007:109) 461 Esta pressão atingiria um ponto crítico graças ao contínuo geográfico e as afinidades etnolinguísticas dos povos dos dois Congos recentemente independentes desde 1960, tornando assim possível o fortalecimento das «veleidades» anti coloniais em Angola. Alexandre (2000: 195). Com efeito, a partir do momento em que o número de países africanos independentes engrossa a Assembleia-geral da ONU, Portugal vê a sua margem de manobra diplomática cada vez mais reduzida. “Em 1960 17 países do continente africano haviam alcançado a independência o que contribuiu para fortalecer o poder de pressão do grupo afro - asiático no seio da ONU. Castelo (2007: 109) 462 Alexandre (2000: 196). De ponto de vista militar, “no início dos anos setenta, a guerra era uma realidade remota para a maioria da população branca em Angola. Omnipresente, na visibilidade militar portuguesa, ela nunca atingiu centros urbanos importantes”. Pinto em Bethencourt e Kirti Chaudhri (2000: 84). 463 Alexandre (2000: 196). 464 Sobretudo na fase final do regime, após o início da denominada guerra colonial, servindo nomeadamente de suporte ideológico das reformas encetadas na vigência do então ministro do Ultramar Adriano Moreira, em 1961. Alexandre (1999: 143). 465 Alexandre (2000: 196). 466 Um exemplo: a diminuição das importações de calçado e vestuário que reflecte o quanto este sector cresceu em Angola. Rosas (1994: 490). É também sensivelmente nesta década, que a metrópole toma medidas em que se revela a influência das estratégias de desenvolvimento do pós Segunda Guerra. Mundial: industrialização, substituição das 106 • política de alargamento de ensino aos naturais das colónias, nomeadamente aos africanos467; Não obstante as reformas introduzidas terem tido alguns efeitos na sociedade colonial, nomeadamente no que concerne a economia e ao ensino468, o governo metropolitano nunca conseguiu captar a seu favor a maioria da população colonizada angolana. Apenas restava protelar a inevitável independência, pela via militar. Todavia, o envolvimento militar de Portugal, em outras frentes coloniais iria criar as condições para o derrube do regime colonial liderado então por Marcelo Caetano, e, por conseguinte, acelerar o processo de independência de Angola: “A guerra prolongada e sem fim à vista fazia abrir brechas nas instituições que haviam sido os grandes pilares do sistema – a Igreja e as Forças Armadas. O resultado final é o movimento militar de 25 de Abril, com a 469 explosão popular que o acompanha e a rápida descolonização que se lhe segue” . 3.1 O arbitrário classificatório O incremento das tensões raciais não pode estar dissociado de um arbitrário classificatório que reflecte, em certa medida, uma desigual divisão social do trabalho alicerçada, por sua vez, numa hierarquização sócio-racial sustentada por dois grandes grupos de classificações político-jurídicas. Uma que classificava segundo os grupos somáticos, com os três grupos de brancos, negros e mestiços, e, outro que classificava segundo os grupos estatutários, os indígenas e não indígenas. Daí que uma autora considere que o sistema colonial português é, tal como os outros sistemas, um sistema de dominação racial, porque os brancos não precisam de preencher nenhuma condição económica ou cultural para ter o estatuto de civilizado, além de que estão protegidos por uma série de disposições discriminatórias. Mas ao contrário das outras colónias da África negra com forte povoamento branco, para os não brancos não se trata de um sistema racial com uma base legal direccionada, pois não é a cor da pele que determina o estatuto dos não brancos, além de que os mestiços não são reconhecidos como uma categoria estatutária distinta. É portanto um sistema aberto, dado que um indígena pode tornar-se assimilado. Mas que simultaneamente, sanciona e reforça a clivagem social na medida em que concede aos importações, intensificação da prospecção e exploração dos recursos minerais; O mesmo período é assinalado pelo reforço dos grandes investimentos em infra-estruturas já iniciado na década de cinquenta. Ver Torres (1983); Heimer (1980). 467 Ver Silva (1994: 103-130); Heimer (1980); Paulo (2000: 304-326). 468 Ver anexo nº 8 e Silva (1992-1994: 112-115). 469 Alexandre (2000:197). 107 assimilados direitos incomparáveis aos dos indígenas470. Quanto aos mestiços esta diferença estatutária aplica-se-lhes também, tal como acontece com os negros. No entanto os mestiços possuem uma diferença em relação aos negros que se traduz numa vantagem que só é válida no interior de cada categoria estatutária471. Pese embora, não ser “um sistema racial com uma base legal” direccionada, estas propriedades (raciais e estatuárias) não deixam de ter o efeito de tornar ainda mais visíveis processos de exclusão e inclusão que caracterizam a relação colonizador/colonizado, sobretudo no que respeita às opções, económicas, culturais e políticas472. Estas categorias fundamentadas pela lei e pela estatística consubstanciam-se em graus de distância, nomeadamente, em relação, ao capital económico e ao capital cultural (variante escolar) instituídos pelo Estado colonial473. Distância que é reforçada por um dado subjectivo e arbitrário que são as propriedades rácicas/características somáticas. Assim, a relação colonizador/colonizado torna-se passível de ser percepcionada a partir de categorias como indígena, civilizado, assimilado, branco, negro e mestiço. Criam-se assim, formas particulares de relações sociais assentes em princípios de distinção como por exemplo a distinção entre negros e brancos; assimilados e indígenas; civilizados e assimilados; negros e mestiços; brancos naturais e brancos metropolitanos474. 470 Messiant (1989: 132). Messiant (1989:132). Concordamos em parte com a autora, na medida em que se nos situarmos na categoria estatutária de indígena esta vantagem, em nossa opinião, não existe. A vantagem de um mestiço em relação ao negro passa quanto a nós por um conjunto de factores que vão desde aquele que classifica, o grau de distância/aproximação em relação a linhagem africana, reconhecimento pelo pai classificado de branco, capital económico, cultural e social, etc. 472 A esmagadora maioria da população africana continuava sem representação política. Estava excluída do sufrágio eleitoral. Alexandre (2000:197). 473 A título de exemplo, os classificados de indígenas estão mais distantes do capital económico e do capital escolar, limitados portanto a um quadro etnolinguístico ou religioso. A questão da etnia e da religião, embora relevante para se compreender a dinâmica do campo político angolano, merece quanto a nós uma abordagem específica e profunda, nomeadamente no respeitante à metodologia de investigação (entendimento das línguas bantas). Sendo um aspecto heuristicamente incontornável, só nos resta assumir tal lacuna como um dos limites do nosso trabalho. 474 Segundo Adolfo Maria “Os brancos de Angola eram preteridos nos empregos a favor dos brancos metropolitanos. Aliás eram considerados brancos de segunda. Eu próprio, na escola primária, recebi um carimbo de «euro-africano», pelo que não era branco como os outros, apesar de ser filho de transmontanos. (…) Para muitos brancos angolanos, a chegada contínua e maciça de colonos portugueses, que se acentuou na década de 1950, arrogantes e cheios de preconceitos raciais quer contra os negros e mestiços, quer contra os brancos nados e criados em Angola, representava uma afronta e uma humilhação. Existia um sentimento de alteridade: nós éramos angolanos, eles (os novos colonos) eram «matarroanos» e «bezugos», isto é, portugueses! Neste sentido, quando adolescentes, alguns de nós iam (brancos negros e mestiços) para o porto de Luanda «receber os novos colonos com insultos orgulhosamente lançados sobre os recém chegados! Víamos neles os instrumentos do sistema de dominação de que não gostávamos”. Adolfo Maria em Pimenta (2006:37-38). 471 108 Estas distinções, inseridas num quadro de dominação colonial, reflectem uma relação entre indivíduos categorizados e a sua respectiva distribuição no espaço colonial, na medida em que a taxionomia indicia o grau de distância em relação aos bens de reconhecimento social (sobretudo o capital económico e o capital cultural)475. Significa, que estas categorias funcionam não só como um arbitrário mas também como um capital, ou seja, possuem um valor no mercado de produção e circulação dos bens de reconhecimento social, nomeadamente, no respeitante ao capital económico e cultural. E, por conseguinte tornaram-se categorias práticas, estando por isso subordinadas a funções práticas e, como tal, orientadas para a produção de efeitos sociais476. E que se traduzem, frequentemente, em percepções de que a cor e estatuto social estão perfeitamente associados. São portanto efeitos devedores da prática de classificar e hierarquizar indivíduos tendo em conta não só indicadores económicos, culturais mas igualmente uma propriedade distintiva como por exemplo a cor da pele477:“Então a sociedade angolana que vai ser… imaginarmos a pirâmide, uma pirâmide racial. No topo da pirâmide os brancos e na base os negros. Entre o topo e as bases, digamos que a meio caminho os 50% de brancura temos os mestiços. De entre a base entre os negros e os mestiços temos os cafuzos 25% de brancura. De entre os mestiços e os brancos temos os cabritos com 75% de brancura; brancos 100% de brancura mas com intervenção de uma classificação especial: há brancos de primeira e há brancos de segunda. Até essa divisão que consagrada na própria constituição portuguesa, por exemplo, nenhum 478 presidente da República portuguesa podia ter nascido nas colónias portuguesas” . É neste sentido que as propriedades rácicas/características somáticas se tornam passíveis de serem objectos de representações mentais, quer dizer, de actos de percepção e apreciação, de conhecimento e de reconhecimento, em que os colonizados, na sua heterogeneidade, irão investir 475 Designação utilizada por Pierre Bourdieu: “As propriedades actuantes, tidas em consideração como princípios de construção do espaço social, são as espécies de poder ou de capital que ocorrem nos diferentes campos”. Bourdieu (1989: 134). 476 Bourdieu (1989: 112). Mesmo depois da abolição do indigenato é como assimilado ou como indígena que ainda se definem os colonizados Messiant (1989: 132). Além de que, classificações como mestiço, negro, e branco mantiveram o seu carácter prático ou seja sujeitas a funções práticas, mesmo durante a independência. 477 Um caso exemplar o daqueles emigrantes que, ocupavam lugar mais baixo da escala social na metrópole, deparam-se de repente em Angola perante pessoas que lhes são socialmente inferiores pelo simples facto de a sua cor da pele e o seu estatuto lhes concederem o «posto» de civilizadores. Ou seja, deixam de estar no último degrau da escala social pelo simples facto de serem brancos. Castelo (2007: 283-287). 478 Entrevista, com Manuel Lima antigo membro do MPLA, em 08/2007. Note-se o desdobramento da categoria mestiço em várias sub categorias e que variam hierarquicamente em função da categoria branco. Holden Roberto acrescenta a esta visão hierárquica da sociedade colonial a seguinte proposta classificatória, que combina as duas grandes classificações: “o branco nascido em Portugal; o branco nascido em Angola; o mestiço; o negro assimilado; o indígena. Nganga (2008:145). 109 os seus interesses e os seus pressupostos, não só na luta anti-colonial mas também no seio do espaço nacionalista angolano479. Importa doravante saber qual será o valor destas propriedades rácicas/características somáticas no mercado de produção e circulação de bens políticos. 479 Bourdieu (1989: 112). 110 Capítulo IV. Um momento de reavaliação das propriedades rácicas /características somáticas. O panfleto como lugar de enunciação. (1956-1960) 1. Da prática cultural à prática política Na década de cinquenta, Angola é marcada pela passagem de posições de compromisso com as autoridades coloniais para uma ruptura com as mesmas. É nesta década que actores sociais ligados a determinadas práticas culturais, como o ensaio, a poesia a música e o desporto, se pautam por práticas e representações identitárias que questionam os processos de dominação colonial480. Progressivamente, pelas exigências do contexto colonial, estes actores vão passando de práticas culturais para práticas políticas481. Torna-se, dever prioritário de intelectuais e homens de cultura o engajamento na luta contra o colonialismo português482. 480 Os suportes institucionais de tais práticas foram fundamentalmente a escola (o Liceu Salvador Correia), as associações africanas (a ANANGOLA - Associação dos Naturais de Angola e a Liga Nacional Africana], as publicações literárias {Revista Mensagem}, os conjuntos musicais {Ngola Rítmos com Liceu Vieira Dias à cabeça]. Mas também nos musseques, indivíduos com afinidades etnolinguísticas, regionais e religiosas haviam criado uma série de grupos desportivos e recreativos (como o Botafogo, o Atlético, o Espalha Brasa). No sul de Angola, os trabalhadores ferroviários de Nova Lisboa e do Lobito tentavam criar a Associação Africana do Sul de Angola, rapidamente encerrada pelas autoridades coloniais. Rocha I (2002: 79-87); Ver também Messiant (1989); Marcum (1978); Pélissier (1978b). 481 Todavia, neste processo, convém não esquecer o papel desempenhado pelas Associações legais constituídas fora de Angola, nomeadamente aquelas que se formaram em Portugal e no Congo Belga. Assim temos o CEI - Casa dos Estudantes do Império, O CEI de Coimbra, o CEA - Centro de Estudos Africanos e o Clube Marítimo Africano. Estas Associações que tinham um carácter sobretudo cultural e recreativo tinham em comum o facto de os seus membros estarem na origem de movimentos políticos clandestinos e também nos movimentos armados anticoloniais de todas as colónias portuguesas, nomeadamente, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné Bissau e São Tomé e Príncipe. No Congo Belga podemos assinalar a Assomizo - Association Mutuel des Ressortissant du Zombo que depois se designaria Alliazzo - Alliance des Ressortissants du Zombo). A propósito dessas associações ver, Mateus (1999); Zau (2005); Rocha I (2002); e Lara (1997) e Marcum (1969) e (1978). 482 Contudo, esta passagem do homem cultural, crítico do colonialismo, para o ideólogo do nacionalismo é extremamente complexa. Existem construções ideológicas, no plano dos discursos, que comprovam imbricações profundas entre práticas culturais e práticas políticas, sobretudo no respeitante à literatura, ao ensaio e a música. Mas é importante sublinhar que a “maturação” das ideias nacionalistas passa também por um processo político que se desenrolou num quadro religioso, nomeadamente no que concerne ao papel desempenhado pelas igrejas protestantes, (Igrejas Baptista, Metodista e Congregacionista). No que concerne as igrejas é igualmente importante salientar o papel desempenhado pelo tokoismo e, por conseguinte, de Simão Toko. Segundo Lara (1997: 11): “o nome de Simão Toco está inscrito entre os iniciadores do nacionalismo moderno como mobilizador da juventude dos anos cinquenta, sobretudo da juventude do Zombo, que teve um interessante papel cultural através de coros e outras acções políticas”. O tokoismo é uma doutrina religiosa veiculada por Simão Gonçalves Toko (1918-1984) que teve bastante influência em tomadas de posições anti-coloniais. Ver Santos (1965: 276-278); Paxe (2010); Acerca do papel das igrejas no quadro da luta anti-colonial ver Schubert (2000); Messiant (2006); e Henderson (1990). 111 A década de cinquenta é, portanto, marcada pela emergência de uma série de organizações políticas, com diversas origens, de contestação ao regime colonial. Esta diversidade era igualmente constatável nos seus discursos políticos. No entanto, estas organizações políticas eram convergentes, tanto na recusa do sistema colonial português como no desejo de independência483. É neste sentido que encontramos organizações políticas, como o PLUAA Partido da Luta Unida dos Africanos de Angola, formado em 1956, em Luanda484. O PCA Partido Comunista Angolano, cuja instituição ocorreu em 1955, a 12 de Novembro em Luanda485. O MIA - Movimento para a Independência de Angola, criado em 1957 ou em 1958, em Luanda486. O ELA - Exército de Libertação de Angola, criado provavelmente em 1952 ou 1953, Luanda487. A UPA - União das Populações de Angola, criada em 1958, em Leopoldville488. O MLA - Movimento de Libertação de Angola, criado em 1958, provavelmente em Luanda489. O MINA - Movimento de Independência Nacional de Angola, criado em 1959, 483 Outra característica dessas pequenas organizações políticas era o uso de panfletos para veicularem as suas mensagens anti-coloniais. Rocha I (2002: 134). Rocha I (2002: 134) considera esta fase como sendo o início do nacionalismo moderno angolano “marcada não só pela actividade de movimentos de cariz nacionalista marxista ou católico, mas também pela influência marcante dos grupos ligados à UPA”. Mas também porque o panfleto era o meio, por excelência, de contestação ao regime colonial e de reivindicação da independência. Daí que este autor apelide este período de fase panfletária. Idem 484 Sob a direcção de Viriato da Cruz, Ilídio Machado, António Jacinto e Mário António Fernandes de Oliveira. Pacheco (1997: 63); Segundo Rocha I (2002: 118) a ausência nos arquivos da PIDE/DGS de qualquer documento original sobre a Fundação do PLUAA é deveras perturbadora. O que põe em causa a real existência deste partido. 485 Fundadores: Viriato da Cruz, (Monamundo) Ilídio Machado, (Paulo Costa); Mário António Fernandes de Oliveira (José Nunes); António Jacinto (Carlos Duarte). Pacheco (1997: 64); MPLA (2008). 486 Por iniciativa de Andre Franco de Sousa. Constituído por Ilídio Machado, Higino Aires de Sousa e Almeida, Liceu Vieira Dias, Gabriel Leitão, Joaquim Figueiredo, Eduardo Correia Mendes, António Monteiro, António Rebelo de Macedo e Beto Van-Dúnem. Rocha I (2002: 121). Ver também Mbah (2005). 487 Pacheco (1997: 36); MPLA (2008: 89); Rocha I (2002: 127-128) considera que este grupo iniciou as suas actividades na mesma época que o MIA, e, também Mbah (2005:131) considera que este grupo: “est né, lui aussi, à la même époque que le MIA, c’est à dire vers la fin de 1957 ou au debut de l’ánnée de 1958”. Podemos assinalar algumas figuras: Joaquim de Figueiredo, Fernando Pascoal da Costa, António Pedro Benje. Idem. 488 Acerca da UPA ver Marcum (1978); Pélissier (1978b); Rocha I (2002); Mbah (2005). 489 Pacheco (1997: 37). Algumas figuras: Ilídio Machado, André Franco de Sousa, Segundo Rocha I (2002: 124): “Existe uma certa confusão à volta deste Movimento de Libertação de Angola (MLA) o qual, por vezes, parece ser um grupo individualizado ou parece confundir-se com o Exército de Libertação de Angola (ELA). O MPLA I (2008: 87) acrescenta neste movimento as seguintes figuras: o cónego Manuel das Neves, o cónego Franklin da Costa, o padre Alexandre do Nascimento, André Mingas, Higino Aires, entre outros. 112 em Luanda. O MLNA - Movimento de Libertação de Nacional Angola, Luanda 491 490 criado em 1959, em . À proliferação de organizações políticas em Angola, as autoridades coloniais responderam com uma vaga de repressão de grande envergadura492. A PIDE - Polícia Internacional e de Defesa do Estado, dá início em Março de 1959 a uma vaga de prisões de militantes nacionalistas. Estas detenções dariam origem ao denominado «processo dos cinquenta»493 Apesar da prisão da maioria dos nacionalistas, a luta clandestina iria ser retomada meses depois por alguns militantes que tinham escapado às prisões da PIDE. A UPA e o MINA iriam desempenhar um papel fundamental, no prosseguimento da luta anti colonial. Como afirma um autor: ”O exemplo, entretanto deixara raízes. Porque logo a seguir, nesse mesmo ano, o impulso seria recuperado pela luta unitária desencadeada pela UPA (já largamente inserida nos espaços urbanos dos eixos Luanda/Malanje/Benguela Bié) e o Movimento de Independência Nacional de Angola (MINA) ” 494 . Todavia, em 1960, os dirigentes do MINA seriam todos detidos tornando deste modo residual a actividade política dos nacionalistas angolanos no país495. Apenas a UPA conseguirá resistir à vaga de repressão: ”objectivamente, a UPA aparece nos anos 1959-1961, como o único grande movimento de massas, 490 Rocha I (2002: 153). Segundo Pacheco (1997: 82): o MINA despontou em Dezembro de 1959. Quanto à sua evolução, ela apresenta duas fases distintas. “Uma primeira, francamente unitarista com a UPA que dura, mais ou menos, até fins de Fevereiro de 1960 e uma segunda marcada pela admissão de Agostinho Neto (médico que viria ser o primeiro presidente da República de Angola) e Joaquim Pinto de Andrade, que obrigou a uma reorganização do Movimento e à sua consequente conversão em MPLA na segunda semana de Maio. 491 A partir de uma fusão do MLA com o MLN- Movimento de Libertação de Nacional, promovida por Ilídio Machado, contudo esta fusão não teve expressão nenhuma. Rocha I (2002: 122-124). O mesmo autor afirma que também houve uma tentativa de unidade do MIA com o MLA, promovida por Joaquim Figueiredo 492 Note-se que a maioria das organizações políticas foi criada em Luanda, que, por sua vez, se tornou o principal palco da actividade política clandestina até 1959. Ver Rocha I (2002). 493 Segundo Maria do Carmo Medina: O “Processo dos 50 é uma designação errada dos primeiros processos políticos que se iniciaram em 1959, em Luanda, contra os patriotas angolanos. É errada porque não eram 50, eram 60 e tantos”. A mesma considera: ”que pelo facto de haver três processos, esta é a minha impressão subjectiva, que a PIDE quis fazer racismo nestes processos. Porque maioritariamente no processo 1º, eram angolanos negros; no processo 2º eram angolanos mestiços e no processo 3º, eram sobretudo indivíduos brancos. Portanto eu estou convencida de que houve, digamos um certo maquiavelismo da PIDE em dividir presos, porque no fundo todos lutavam contra a situação injusta e de opressão que existia em Angola e queriam a independência, cada um, cada grupo na sua forma de luta da maneira como encontrou a forma de se juntar, de se unir e de se tornarem solidários para a luta; a PIDE resolveu compartimentar as pessoas para as separar”. Jaime e Barber (1999: 74-75). 494 Pacheco (1997: 38). 495 O MINA teria a partir de Maio de 1960 mudado de nome passando a denominar-se MPLA. Contudo este MPLA no interior seria completamente decapitado com a vaga de prisões de Junho de 1960. Podemos assinalar as prisões de duas figuras relevantes: Joaquim Pinto de Andrade e Agostinho Neto. Ver Rocha I (2002: 159) e Pacheco (1997: 49). 113 496 implantado não só nos musseques das cidades como também nas sanzalas do noroeste angolano” . Significa isto que as restantes organizações políticas que actuavam em Angola estavam ainda, numa fase embrionária, pouco estruturada e com escasso número de militantes. Segundo Joaquim Pinto de Andrade: ”A filiação nestas organizações era feita à base de afinidades naturais, de vária ordem: as afinidades etárias, gente da mesma geração, da mesma idade, reunia-se num grupo, gente mais jovem ou mais velha reunia-se noutro grupo; afinidades de classes sociais; proximidades de bairro; proximidades de emprego; o nível escolar; e até mesmo a confissão religiosa. Todos aqueles factores que juntam pessoas serviam para formar grupos políticos. Portanto, uma pessoa podia, por um lado, ter afinidades com um determinado grupo pela sua confissão religiosa e podia ter outro, pelo seu grupo etário ou pelo seu grupo social e, então, pertencia a um e a outro, pertencia a vários. (...) Mais ainda, os nomes, também, a composição, por imposição da clandestinidade, pelo grau de repressão policial e, também pela inexperiência organizativa, aconteceu que esses grupos não chegaram a ter uma acção visível publicamente, nunca tiveram manifestações públicas, nunca fizeram reivindicações de massa, nem greve, nem nada disso. Toda a sua acção se resumia a escrever panfletos e distribui-los, deixar nas repartições, atrasar-se na saída, deixar sair os outros todos e, no dia seguinte, aparecerem as mesas da repartição todas cheias de panfletos independentistas (....) as pessoas pertenciam a vários movimentos ao mesmo tempo, passavam de um para outro, segundo as necessidades, segundo as afinidades. Isto levou mesmo a que Salazar, uma vez, dissesse, em 1960, num discurso pronunciado na Assembleia Nacional, na sua vozinha flautada: «Eles não são muitos, mudam de nome para parecerem muitos» ” 497 . Somente a partir do exterior é que o espaço nacionalista angolano se iria configurar e estruturar, num processo que iria conduzir à criação do grupo político, com o seu programa, o seu porta-voz, as palavras de ordem, as ideias força, etc. Esta dinâmica irá consubstanciar-se em duas principais organizações políticas nacionalistas angolanas: a UPA/FNLA - Frente Nacional de Libertação de Angola e o MPLA - Movimento Popular de Libertação de Angola que, durante praticamente toda a década de sessenta, iriam disputar a hegemonia do espaço nacionalista angolano498. Feita a síntese contextualizante, estamos em condições de apresentar alguns exemplos panfletários (num total de vinte e um) cujos enunciados discursivos remetem, sobretudo, para processos de inclusão e exclusão (o com e o contra), num quadro de negação do sistema colonial 496 Rocha I (2002: 167). Jaime e Barber (1998: 80). 498 De que falaremos mais adiante. 497 114 e de afirmação da ideologia identitária nacionalista499. Os panfletos datam de 1956, 1958, 1959 e 1960500. Antes porém queríamos apresentar algumas considerações acerca da nossa abordagem. Muito embora não tenhamos a certeza de que esses exemplos possam esgotar o universo, da fase panfletária, a nossa pesquisa nos arquivos da Torre do Tombo e a consulta de vários transcritores de entre os quais, Edmundo Rocha, Maria do Carmo Medina, Lúcio Lara, entre outros, levam-nos a constatar que estes vinte e um panfletos dão-nos uma aproximação da produção discursiva real, porventura não na quantidade dos panfletos mas no conteúdo dos discursos. Os panfletos caracterizados foram localizados nos anexos das obras de Edmundo Rocha, Maria do Carmo Medina, Lúcio Lara e na «História do MPLA» produzido pelo próprio Movimento. Todavia, fizemos questão em confirmar (não todos) a existência dos panfletos nos Arquivos da Torre do Tombo. Não pomos contudo em causa a idoneidade tanto dos autores como a veracidade dos panfletos recolhidos pelos mesmos. A ordenação dos mesmos não foi por ordem cronológica sequencial. Os panfletos foram divididos em dois grupos, sendo um primeiro constituído por panfletos atribuídos a uma determinada organização política. Organização identificada claramente no texto. O segundo grupo corresponde a panfletos anónimos onde não se descortina o nome de qualquer organização política. Todavia fazemos questão em atribuir a autoria dos panfletos a certas organizações políticas às quais por sua vez fora atribuída por autores e investigadores que se debruçaram sobre a época em estudo. Por fim, não podemos deixar aqui um breve esclarecimento no que respeita à construção dos quadros que se apresentam. Os quadros têm por objectivo sintetizar e clarificar a caracterização dos discursos contidos nos documentos tendo em conta o nosso aparelho conceptual que, recordamos, assenta no conceito de ideologia identitária cujas dimensões remetem também para processos de inclusão e exclusão, tendo em conta a componente de sistemas de classificação política e ainda porque os discursos questionam sistemas de classificação produzidos pelo Estado colonial. 499 Daí que as categorias utilizadas assentem nesta rigidez fronteiriça tendo em conta princípios de inclusão e exclusão. Convém não esquecer que a luta política anti-colonial é também uma luta para mudar a visão do mundo social criada pelo Estado colonial. Ver anexos nº 9 e nº 10. 500 A datação dos panfletos obedeceu aos seguintes critérios: ao conteúdo do texto, a datação definida por um autor da obra onde está anexado o panfleto e também a datação definida pela PIDE. 115 No primeiro quadro sobre cada documento, referente às «classificações que remetem para processos de inclusão e exclusão», as categorias inseridas são retiradas do discurso panfletário; aliás, as designações constam nas nossas transcrições dos discursos produzidos. As designações contidas na tabela não obedecem a pressupostos dicotómicos por nós elaborados. As dicotomias são fruto do discurso produzido; muito embora as designações não estejam contidas na mesma frase ou mesmo parágrafo. No segundo quadro optámos pela categoria em si. Por vezes há coincidência entre esta última e a designação contida no discurso. O mesmo acontece com os outros quadros seguintes, referentes a cada discurso. A elaboração dos quadros é comandada pelo texto. Daí que por vezes o número de quadros varie conforme as características do discurso. 2. O panfleto como lugar de enunciação. Estratégias discursivas que remetem para processos de inclusão e exclusão na relação dominantes/dominados ou colonizadores/colonizados Podemos constatar, na maioria dos discursos produzidos, que noções como raça, nação e condição de dominado/colonizado se articulam e gravitam em torno de um eixo central que é a reivindicação independentista. A reivindicação independentista é complementada por discursos enunciadores de um forte sentimento de pertença que se traduz em designações como “nós”, “eles”, população de Angola, povo de Angola, angolanos, Africanos “nação” e até irmãos em oposição a designações como, “população europeia”, “brancos portugueses”, “indígenas de Portugal”, “europeus”, “eles”, etc. Procurava-se assim criar um processo de identificação entre uma população e um território (espaço físico) com fronteiras politicamente bem definidas. Este processo de identificação era reforçado por discursos de denúncia do arbitrário colonial, nas suas múltiplas vertentes, nomeadamente o arbitrário racial.501. Assim, através de noções como raça, nação e condição política (dominado/colonizado), faz-se uso de categorias, no exercício discursivo, que remetem para processos de inclusão e exclusão. Daí que os discursos apresentem, igualmente, uma visão da sociedade angolana 501 Todos os panfletos sem excepção veiculam uma ideologia identitária de nação. Todos os signatários dos panfletos manifestam o desejo de independência de Angola e excluir a potência colonial. Trata-se portanto de um nacionalismo anti-colonial. Smith (1997: 107). 116 dividida entre brancos e negros; angolanos e portugueses; europeus e africanos502; dominantes e dominados. Para tal, fazia-se uso de designações como “colonizado”, “Aborígene”, “angolano”, “africano”, “negro”, “preto”, “mestiço”, “indígena”, por oposição a “europeu”, “branco”, “português” e “colonizador”503. A noção de raça está sempre presente nos discursos, quer seja em princípios de inclusão/exclusão, reavaliação/valorização ou de mera identificação somática504. Com efeito, encontramos discursos de questionamento e reavaliação de um sistema de classificação, racial e estatutário, produzido e imposto pelo Estado colonial, como são os casos das categorias “preto”, “mestiço”, “indígena” e “assimilado"505. É possível igualmente constatar que as mesmas categorias raciais e estatutárias remetem para processos identificação no seio dos angolanos506. Todavia é possível descortinar discursos que inseriam, na condição de colonizado, aqueles que eram classificados de branco. O que significa que a distinção de raças no seio dos colonizados não impedia que se veiculasse um sentimento de pertença em torno de uma população colonizada («multirracial») que se revê num território chamado Angola, e, como tal, se autodesigna de angolanos507. Os discursos procuram, igualmente, demonstrar que Angola possui uma história, anterior à memória colonial e que fora brutalmente interrompida por meio milénio de colonização. Daí as referências ao Reino do Congo, à Rainha Njinga ou ao Ngola Kiluanje. São discursos que fundamentam uma Angola singular, com um destino próprio508. 502 O princípio de inclusão, e exclusão, é igualmente notório no respeitante à relação antinómica África/Europa sendo esta associada à antinomia Angola/Portugal. O que significa que ser angolano implica obrigatoriamente ser africano. 503 A variabilidade dos processos de inclusão e exclusão não impede que o princípio em si atravesse todos os discursos produzidos pelos panfletos. O que significa que o principio de inclusão/exclusão é, quanto a nós, uma matriz estruturante de qualquer processo de formação de um campo político. 504 É perfeitamente notório nos discursos um princípio de reavaliação/valorização da categoria negro. Era, quanto a nós, uma forma de eliminar o estigma que acarretava esta classificação. O que significa que a noção de raça permanece uma constante. Não está, portanto, em causa portanto o arbitrário da classificação em si. Estamos perante a amnésia da génese da classificação. 505 A maioria das estratégias discursivas, de aproximação entre os classificados de indígenas e assimilados, eram veiculadas através da noção de raça (negra). 506 Encontramos, na maioria dos discursos, as categorias preto e mestiço inseridas na categoria negro. 507 Contudo, na sua maioria, os discursos, apresentam uma visão da sociedade angolana dividida em duas raças: brancos e negros. Esta visão dicotómica implicou, em geral, a exclusão dos classificados de brancos de qualquer afinidade com os angolanos, dada a sua associação, por um lado, ao arbitrário colonial, mas também, por outro, devido a ausência de consanguinidade, tida por fundamental como marca identificadora. 508 Esta reinvenção de um passado remoto possibilita relacionar a história com o espaço físico, reforçando, assim, a fronteira entre o nacional e o estrangeiro. Esta etnogénese parte do pressuposto: “de que as nações existem desde 117 Por fim não podemos deixar de assinalar, nos discursos, a influência do contexto político da época, nomeadamente a nova conjuntura internacional e regional. Referimo-nos, por exemplo, a guerra-fria, aos processos de descolonização na Ásia e África, pontuados pela Conferência de Bandung; a influência do pan-africanismo político veiculado por Nkrumah e, claro, aos processos de independência em curso em países africanos, nomeadamente os dois Congos, territórios que fazem fronteira com Angola. 2.1 Documento (1). Manifesto “para um Amplo Movimento Popular de Libertação de Angola”. Provavelmente de 1956509. No discurso produzido, contido no manifesto para um «amplo movimento popular de libertação de Angola», começa-se por contextualizar historicamente (discurso marxisante) as etapas da colonização europeia, sendo esta última considerada como um processo que desembocou no «aniquilamento dos Estados africanos», na «conquista dos territórios africanos» e na «subjugação dos povos africanos»510, é a denominada fase capitalista: “Deste modo os capitalistas europeus transformaram toda a África em colónias e países dependentes”. Posteriormente, entrou- se na fase imperialista através do colonialismo e da escravização, com o: “ (…) alargamento das esferas de influência e dos domínios coloniais até abarcar todo o mundo: (…) isto é a transformação do capitalismo num sistema mundial de opressão colonial e de escravização financeira da imensa maioria da população do mundo por países imperialistas”. Esta situação dividiu o mundo em dois campos: o dos poucos países imperialistas, exploradores e opressores e o grosso ´«campo das colónias e dos países dependentes». Significa que:”diante desta frente imperialista Mundial as colónias e os países dependentes viram-se obrigados a criar a frente Mundial contra o imperialismo”. Esta grande frente que engloba países asiáticos e africanos teria tido a sua consagração na conferência de Bandung. A partir daí, passase do contexto internacional para a abordagem continental, nomeadamente, em África. Trata-se, portanto, de mobilizar todos os africanos contra o imperialismo: “Nenhum africano deve ficar tempos imemoriais e que os nacionalistas devem despertá-las dos seu longo sono, para que ocupem o seu lugar num mundo de nações”. Smith (1997: 35). 509 A autoria deste manifesto é atribuída a Viriato da Cruz (1928- 1973) Nacionalista angolano e primeiro secretáriogeral do MPLA entre 1960 e 1962. Viriato Destacou-se na prática literária, nomeadamente na poesia. Viriato Francisco Clemente da Cruz, nasceu em Porto Amboim, a sul de Luanda em 25 de Março. Afastado do MPLA em 1963, viria a integrar num curto espaço de tempo o FNLA/GRAE. Acabaria por viver na China a até a data do seu falecimento em 1973. Para saber sobre esta figura ver entre outros, Rocha (2008); Messiant (2003). 510 Lara (1997: 23); Laban e Messiant (2003). 118 indiferente perante a luta contra o imperialismo que se trave em qualquer parte do nosso continente por uma África 511 para os africanos” . A partir desta breve contextualização histórica no plano internacional e regional, a estratégia discursiva do manifesto centra-se no contexto angolano, nomeadamente no que respeita à dominação colonial portuguesa. No discurso, começa-se por criticar um longo arbitrário colonial: “Não obstante isso, gerações e gerações do povo angolano vêm arrastando uma vida triste, na miséria, na ignorância, na perseguição, no trabalho forçado, na exploração desumana do seu trabalho, desagregando lhes as famílias, morrendo prematuramente, sem assistência médica e farmacêutica. Num país rico e com três habitantes por quilómetro quadrado, a população indígena cresce, (…) num ritmo lento, a natalidade infantil indígena é baixa e a mortalidade 512 das crianças e dos trabalhadores indígenas é altíssima” . Considera-se que tais injustiças se devem, obviamente à «dominação imperialista e em particular, à «opressão colonialista que pesa, há séculos sobre o nosso povo»513. Neste discurso de questionamento/crítica da dominação colonial é notória a reavaliação da categoria indígena consignada pelo Estatuto Civil e Criminal dos Indígenas, nomeadamente, no que respeita à sua definição como categoria jurídica, qual obstáculo jurídico e racial no acesso à cidadania: “(…) Milhões de indígenas não são considerados cidadãos pelo governo colonialista português”514. Esta reavaliação estende-se à denúncia das condições sociais dos classificados de indígenas: “não têm direito à posse individual da terra angolana. (…) Toda a vida social indígena foi desorganizada. A cultura indígena é desprezada silenciada e aniquilada. Fazem silêncio sobre os povos indígenas, ou a deturpam e difamam. 515 Desconsideram as línguas indígenas e impedem o cultivo delas” . A memória de um passado, fundamentado na história da civilização egípcia, era um dos grandes argumentos para valorizar a cultura africana/negra. Há portanto uma reavaliação/negação de uma memória histórica concebida pelos europeus: “Falseiam grosseiramente os factos referentes à tradição histórica e cultural dos africanos. (….) Reduzem a zero a contribuição do homem negro para o desenvolvimento da cultura humana, esquecendo de propósito ter sido negra a primeira grande 516 civilização que se conhece, a civilização egípcia” . 511 Todas as expressões citadas neste parágrafo estão em Lara (1997: 23). Lara (1997: 23). 513 Lara (1997: 23). 514 Recordamos que eram considerados indígenas os indivíduos de raça negra e seus descendentes. Distinguiam-se juridicamente dos cidadãos. 515 Lara (1997: 23). 516 Lara (1997: 23). 512 119 No discurso, considera-se que a «luta revolucionária» é a melhor solução para pôr fim ao arbitrário colonial, mas só será bem sucedida através de um amplo movimento de libertação de Angola: “Esta luta, no entanto, só alcançará a vitória através de uma frente única de todas as forças antiimperialistas de Angola, sem ligar às cores políticas, à situação social dos indivíduos, às crenças religiosas e às tendências filosóficas dos indivíduos, através do mais amplo Movimento Popular de Libertação de Angola. O movimento será a soma das actividades de milhares e milhares de organizações”. Na medida, em que «o inimigo é o colonialismo»; mais concretamente: “todos os organismos e todos os indivíduos interessados na manutenção do actual Estado de coisas em Angola, e são todos quantos colaborem, de qualquer modo, consciente 517 ou inconscientemente, clara ou veladamente, com os primeiros” . A definição dos inimigos implica, por sua vez, a definição dos aliados: “São nossos aliados todos quantos lutem ao nosso lado, todos quantos nos dêem qualquer ajuda, temporária ou duradoura, condicional ou incondicional – ou todos quantos mantenham, pelo menos uma atitude de neutralidade favorável à luta do povo angolano”518. Significa isto que: “Os “europeus residentes em África que queiram continuar a viver neste continente, vendo respeitados os seus direitos justos, terão de manter, pelo menos, uma atitude de neutralidade 519 favorável à luta dos povos africanos pela sua liberdade” . Por último, é feito um apelo ao “povo negro de Angola” no sentido de lutar pela “sobrevivência da raça negra que os colonialistas querem assassinar”. O discurso é pautado por um conjunto de classificações que remetem para processos de inclusão e exclusão. Parte-se do pressuposto que a raça negra (ou o povo negro) é angolana/africana. Há também uma distinção entre europeus e africanos. Estamos perante um discurso de inclusão/exclusão assente no espaço geográfico e na população. Contudo não é uma exclusão radical, na medida em que: “Os povos coloniais oprimidos e as massas trabalhadoras exploradas da metrópole são aliados naturais na luta comum contra os exploradores de ambos. Levante-se a bandeira da solidariedade internacional dos trabalhadores de todos os países! Seja vivificada e fortalecida a nossa justa e indestrutível frente mundial contra os exploradores das metrópoles e das colónias, nossos inimigos comuns. 520 Lutemos pela coexistência e pela colaboração pacífica entre os povos” . É patente a valorização da raça negra. Porém é uma reavaliação, de inserção no universal, na medida em que inclui a raça negra como fazendo parte da luta contra o colonialismo, que é, também por sua vez, uma luta dos explorados contra os exploradores521. A 517 Lara (1997: 26). Lara (1997: 26). 519 Lara (1997: 29). 520 Lara (1997: 29). 521 No princípio do texto podemos encontrar a expressão “todas as raças”. Lara (1997: 26). 518 120 valorização da raça negra não explicita a definição de quem é angolano ou português em função da noção de raça. Contudo, é notória a permanência da noção de raça. Classificações que remetem para processos de inclusão e exclusão contidas no “Manifesto do MPLA” Negros Angola Africanos Povos coloniais oprimidos Inclusão Povo angolano Indígena Exclusão Portugueses Colonialistas portugueses Brancos Portugal Europeus Exploradores...* *...das metrópoles e colónias Categorias reavaliadas/valorizadas: raciais e estatutárias Negro Indígena 2.2 Documento (2). Panfleto do Grupo ELA de Angola “O nosso relatório para a conferência a realizar em Accra em Março do corrente ano”. Março de 1959. No discurso, começa-se por saudar de forma elogiosa “o Dr Kuwame NKrumah: o homem 522 digno da nossa veneração e de respeito, que felizmente Deus deu ao mundo Africano para a sua libertação” . O texto refere-se, igualmente, de forma elogiosa “aos ilustres representantes das repúblicas saídas das antigas colónias francesa”. O elogio aos representantes das antigas colónias estende-se também à antiga potência colonizadora: “Aproveitamos o ensejo da vossa presença (…), para lhes apresentar as nossas felicitações pela resolução tomada pelo nobre Povo Francês, na pessoa do Grande Homem 523 que é o general Charles De Gaule, de conceder-lhes a independência” . Contudo, no documento, ressalva- se que a independência só se concretizaria em 1960, na medida em que essas “repúblicas” iriam permanecer ainda num regime de autonomia. Os autores do panfleto lamentam este facto, porque limitava o auxílio aos nacionalistas angolanos: “embora lamentamos a detenção ainda nas mãos do governo francês das três chaves principais – assuntos externos, finanças e justiça – em que reside a possibilidade de poderem contribuir para a emancipação dos vossos irmãos da Raça ainda dominados por minorias de portugueses 524 em Angola, Moçambique, Guiné e S. Tomé ansiosos por se libertarem de tal jugo” . O discurso prossegue, a partir de então, com uma breve contextualização histórica cuja temporalidade tem o seu início com a Conferência de Berlim, ponto de partida para recordar o arbitrário colonial metropolitano: “Angola e outras colónias que, infelizmente, foram cair nas mãos de 522 Medina (2003: 185). Medina (2003: 185). 524 Medina (2003: 185). 523 121 525 verdadeiros vândalos como são os portugueses .” Sendo assim: “Portugal é a Nação que menos merece o alto encargo de civilizar outros Povos, por ser a mais atrazada e pobre, mas de uma pobreza geral em tudo na verdadeira acepção da palavra: mental, material, moral, económico, etc. Isto aliado a um sentimentalismo egoísta, na verdade, nada Portugal poderá fazer no sentido de encaminhar as populações autóctones para a senda do progresso e consequente emancipação, conforme os próprios dirigentes da Nação o declaram abertamente nos seus discursos e através da Imprensa. Nós que lidamos com essa Nação há cinco séculos, conhecemos melhor a índole dos 526 portugueses que em pleno século XX ainda pensam e administram as populações pelos métodos do século XV” . Os autores não se furtam a comparar o tipo de colonização belga, com a portuguesa, de modo acentuar a desvalorização desta última: “Há que ter presente na memória que a situação miserável das populações aborígenes de Angola, imposta pelo dominador, é muito diferente da dos congoleses sob domínio Belga que, apesar de tudo, gozam de um nível de vida bastante desafogado, liberdade e economia relativamente 527 humana” . Está assim subjacente, o reconhecimento de algum mérito na colonização europeia. Contudo Portugal não é parte integrante deste mérito colonizador. Era como se, se amaldiçoasse o facto de Angola ter sido colonizada pelos portugueses em vez dos outros Estados europeus. A estratégia discursiva apela para a necessidade do recurso a violência no sentido de adquirir a independência: “Daí conclui-se que a emancipação das populações aborígenes de Angola e outras 528 sob domínio dessa nação, só é possível efectivar-se com o derramamento de sangue” . O texto é também um apelo à solidariedade dos países africanos no sentido de auxiliarem a luta contra o arbitrário colonial português: ” (…) torna-se necessário e imprescindível uma colaboração conjunta, uma cooperação estreita e uma coordenação de esforços conjugados de todos os 529 africanos” ; No documento, realça-se a importância que os dois Congos (nomeadamente quando adquirirem a independência total) podem vir a ter, no sentido de expulsar os portugueses: “A actual situação geográfica de Angola e ainda o desejo dos portugueses de fazerem desaparecer todos os vestígios da existência de elementos aborígenes capaz de lhe embaraçar os seus planos de permanência em África, levam-nos a convicção de que qualquer movimento de levantamento prematuro nosso para escorraçar os portugueses de Angola, só poderia vingar, produzindo os efeitos desejados, depois da completa emancipação ou independência do Congo Belga e da República do Médio Congo. É nesse territórios onde se devem constituir os arsenais com material de guerra e de instrutores para o treino dos angolanos no manejo de toda a espécie de armas para a luta contra os 525 Medina (2003: 185). Medina (2003:186). 527 Medina (2003: 186). 528 Medina (2003: 186). 529 Medina (2003: 186). 526 122 530 portugueses em Angola” . Contudo, chama-se a atenção para o incremento da violência colonial devido à proclamação da República do Médio Congo: “Após a proclamação da República do Médio Congo (…) Todo o funcionalismo público preto, natural do Enclave de Cabinda ou de outras terras (….) foram 531 afastados para terras longínquas” . A influência do ideal pan-africanista político veiculado por NKrumah é notória: “Aqui fica exposta a nossa opinião, entretanto os nossos amigos dirão a forma que acharem mais conveniente para se chegar o mais rápido possível à consumação da independência de Angola e, consequentemente, a criação dos 532 Estados Unidos de África que seria a grande resposta para manter distante futuros imperialistas” . Todavia, ao panafricanismo político, é acrescentado uma certa dose de pan-negrismo com uma argumentação, geopolítica, de peso: “Não aceitaremos formar uma nação com brancos, como muitos colonos, aqui, pensam, para evitar a repetição da África do Sul” 533 . Há uma rejeição completa dos classificados de brancos no projecto nacionalista. Este pan-negrismo é igualmente notório no que concerne à imigração dos negros americanos para África: “É uma ideia divinal que deve ser acarinhada, estimulada e apoiada por toda a Imprensa do mundo Negro para que ela se torne uma realidade, dado o valor que ela representa, (….). A colaboração e a presença dos negros americanos em África, em grandes massas, viria acelerar a marcha da total emancipação de África”534. O ELA justifica da seguinte maneira a insistência ao apelo da imigração para África dos negros americanos: “A teimosia dos nossos irmãos americanos em permanecer na América do Norte, é absurda dada a desvantagem para eles de estarem em «menoria» perante uma maioria esmagadora de brancos que os hostiliza e absorvem, não podendo nunca tornar realizável o almejado sonho de colocar um Negro na Presidência da República 535 dos Estados Unidos da América do Norte” O pan-negrismo é . agora fundamentado por uma fraseologia imbuída de cristianismo/messianismo, na valorização da raça negra como sujeito universal: “As portas de Angola digo, de África, devem estar completamente abertas para receber todos os Negros do mundo, bem intencionados, é claro, que aqui queiram entrar para colaborar na grande obra de Redempção da África, continente que Deus Omnipotente na sua distribuição do Património do Universo doou à raça negra” 536 . O que significa 530 Medina (2003: 188). Medina (2003: 187). 532 Medina (2003: 190). 533 Medina (2003: 190). A questão dos classificados de brancos merece portanto ser também vista não só à luz da raça e da consanguinidade, mas também equacionada tendo em conta o temor de um regime, tipo apartheid sulafricano, em Angola. 534 Medina (2003: 190). 535 Medina (2003: 191). 536 Medina (2003: 191). 531 123 que a conjuntura, internacional e regional contribuíu para veicular uma identidade racial, nomeadamente, através da ideologia pan-africanista. É possível contudo descortinar, no discurso, os efeitos que as categorias de civilizado e indígena, impostas pelo arbitrário colonial, tiveram no seio dos angolanos, nomeadamente no respeitante às distinções no seio destes últimos: ”Entrou em acção em toda a Colónia as medidas repressivas do governo contra os nativos civilizados, ao mesmo tempo que procura assegurar-se dos sobas e regedores indígenas com dádivas e outros processos aliciantes e subversivos para levar o indígena a apoiar a causa de permanência de Portugal em África por toda a vida. Mas apesar de todas as dificuldades económicas para poder intensificar uma propaganda interna capaz de convencer os nossos irmãos atrasados a lutarem pelo nosso progresso, incutindo-lhes o espírito nacionalista, alguma coisa se vai fazendo, embora lento mas seguro para combater as mentiras subversivas do governo” 537 . Esta distinção valorativa entre “atrazados” e “civilizados” pode prenunciar, a curto prazo, lutas de classificação no seio do campo nacionalista angolano. Nomeadamente entre aqueles que foram classificados de civilizados e de indígenas. Inclusão Classificações que remetem para processos de inclusão e exclusão contidas no panfleto do ELA. Angolanos Negros Angola África Nós Aborígenes Exclusão Portugueses Brancos Portugal Europa/América do Norte Branco Português Dominador Categorias de identificação no seio dos angolanos: estatutárias e raciais Civilizado Indígena Categoria reavaliada/valorizada: racial Negro 2.3 Os panfletos do MIA Os documentos produzidos por esta organização política, em número de três, datam de fins da década de cinquenta. São documentos que não destoam dos anteriores. Raça e nação pontuam os discursos. 537 Medina (2003: 188). 124 2.3.1 Documento (3). Panfleto do MIA “Aos Angolanos”. Provavelmente de 1959 No documento intitulado “Aos angolanos” encontramos referências independentistas do território angolano com exemplos de outros países africanos: “A África entrou «Decisivamente» no caminho da Libertação. Diversos territórios africanos que se encontravam debaixo da exploração dos europeus (roças como a nossa Angola), estão alcançando a sua independência, como o Ghana e a Guiné, já totalmente livres, a 538 Nigéria, os Camarões, e o Togo cuja independência será proclamada em 1960, quer dizer daqui a 12 meses” . O MIA faz questão em afirmar fronteiras geográficas e raciais, tecendo considerações que apelam por uma nova hierarquização das propriedades rácicas/características somáticas no respeitante à condução dos destinos do país: “Devemos pensar o que significa para os Povos Negros a Independência. Quando dizemos liberdade e independência queremos dizer: - que os destinos daquelas terras são orientados pelos próprios negros, como em França, na Inglaterra ou em Portugal são orientados pelos próprios brancos. Nos territórios livres, os Comandantes Militares, os Juízes dos Tribunais, os Comandantes da Polícia, os directores de Serviços Públicos como Fazenda, Saúde, Instrução, Administração Civil, etc, todos eles são africanos, 539 filhos da terra”!!! . O(s) autore(s) apelam para um novo conceito de cidadania, uma nova hierarquia nos processos de mobilidade social e para uma distribuição equitativa (no respeitante a mestiços e negros) do capital escolar: “Quando dizemos liberdade e independência queremos dizer: - que não há mais dificuldade para conseguir um simples bilhete de identidade; os empregos são primeiros para os negros e não principalmente para os brancos como aqui em Angola, onde chegam aos montes, em todos os vapores, para tomarem nossos bens e direitos, para usurparem as nossas terras, como sucede e sucedeu na Lunda, Amboim, Congo, no Vale do Bengo, na Cela, no Cunene, ou melhor dizendo em toda a Angola. Lá os professores não terão a preocupação de ensinar só aos alunos brancos e perseguir os negros dando a estes notas baixas, chamando-lhes seus «pretos» e 540 outras coisas” . No texto, de fervoroso patriotismo, vislumbra-se cada vez mais a dicotomia classificatória “negros (pretos e mestiços)” /brancos: “Intensifiquemos a luta pela nossa libertação no ano que corre, Com Cautela, Mas sem Medo! Não Tenhamos Medo de Morrer por Angola! NEGRO de Angola (preto ou mestiço) forma o teu grupo de patriotas (…) até cobrirmos Angola inteira lutando pela liberdade do nosso Povo! 541 538 Lara (1997: 452). Lara (1997: 452). 540 Lara (1997: 452). 541 Lara (1997: 453). 539 125 O panfleto não deixa de apelar para uma memória de secular resistência à presença portuguesa: “ sigamos o exemplo da Nossa Mãe Rainha Njinga e Honremos a memória do nosso Rei Ngola 543 Kiluanji542! Encontramos no fim do discurso as palavras, “Liberdade Fraternidade e Prosperidade” . O panfleto não termina sem referir a situação de conflito no Congo (dito Belga), prenúncio da independência deste último: “Ultima Hora- Sem Luta Não Haverá independência no Congo (dito Belga) Acaba de Rebentar Uma Revolta porque os colonialistas de lá, ajudados por portugueses e gregos tentaram impedir que todos os congoleses soubesses o que se passou na conferência de Accra” 544 … Classificações que remetem para processos de inclusão e exclusão contidas no documento do MIA, intitulado “aos Angolanos”. África Negros Pretos Mestiços Nossa Angola Inclusão Europeus Brancos Portugal Colonialistas Exclusão Categorias de identificação no seio dos angolanos: raciais Preto Mestiço Negro Categorias reavaliadas/valorizadas: raciais Preto Mestiço 2.3.2 Documento (4). Panfleto do MIA “Aos Militares Angolanos”. Provavelmente de 1959 O panfleto “Aos militares Angolano” chama atenção para a situação de discriminação dos “soldados de Angola, pretos e mestiços”545. O discurso, em jeito de uma mea culpa, é um apelo a uma memória de cumplicidade com a colonização portuguesa, ao recordar que outrora os soldados angolanos haviam cometido: “a asneira e a traição de matarem os seus próprios irmãos de sangue e de raça, para defenderem os brancos 546 portugueses” 542 . Segundo Lara (1997: 453), as referências à Rainha Njinga e ao Ngola Kiluanji mostram a composição principal de pessoas de etnia kimbunda”. 543 As duas primeiras remetem-nos para a revolução francesa. 544 Lara (1997: 453). 545 Medina (2003: 294). 546 Medina (2003: 294). 126 A consequência desta traição foi a imposição do “grande castigo de uma vida de miséria e de escravatura”547. Sendo assim, considera(m) o(s) signatário(s): “Deus castigou-nos bem (…) O soldado negro não passa de um valente desgraçado que vive pobre e morrerá a defender o seu maior inimigo que é o 548 branco português” . A partir daqui a estratégia discursiva gira em torno das más condições de vida do “soldado negro de Angola” perante as boas condições de vida do “branco português”. Os autores dão a entender que a condição de “soldado negro” implica uma grande distância dos bens de reconhecimento económico, social e cultural549: “O soldado negro ganha 12 550 angolares por mês enquanto os brancos ganham contos de reis” . “Os negros deixam ficar a família abandonada, não têm um tostão para mandar para o sustento dos filhos e mulheres, durante anos seguidos, enquanto os brancos trazem as suas mulheres e filhos, moram em boas casas, têm 551 carro, boa roupa e bom sapato, mobília, rádio geleira e tudo” . “Os soldados negros não podem mandar os filhos para as escolas porque não têm dinheiro, nem há escolas para os seus filhos, visto que as escolas que há são para os “assimilados”e lá não recebem os seus filhos, que ficam na sanzala até o chefe do posto mandar agarrar para ir trabalhar onde o chefe quiser. Os soldados negros não podem, portanto dar um futuro aos seus filhos, quando os soldados brancos têm escolas para os filhos deles, liceus especiais na metrópole, e podem chegar até doutores, engenheiros e tudo quanto quizerem ” 552 . No discurso não se deixa de conjugar a categoria negro com o continente africano: “Irmão – soldado, a vossa inteligência tem que acompanhar o andamento do mundo negro que é a África onde 553 nascemos” . O uso da categoria indígena serve para chamar a atenção para a falta de união no seio dos “militares angolanos”554. Tratava-se de impedir os efeitos produzidos por categorias estatutárias como indígenas e assimilados, nomeadamente, no que respeita à percepção, por parte dos africanos mais desfavorecidos, de desigual divisão do mundo social: “Soldado miliciano (preto ou mestiço) com pouca diferença, ou mesmo nenhuma a vossa sorte é igual ao do nosso irmão «indígena». Vós também 547 Medina (2003: 294). Medina (2003: 294). 549 O que por sua vez, pressupõe uma associação (causa-efeito) entre a categoria branco e a proximidade relativa aos bens de reconhecimento económicos, sociais e culturais. 550 Medina (2003: 294). 551 Medina (2003: 294). 552 Medina (2003: 294). Repare-se como a categoria assimilado surge -entre aspas- para acentuar as condições nefastas do “soldado negro”. Talvez um questionamento desta classificação. 553 Medina (2003: 295). 554 Distinguiam-se deste modo unidades militares de europeus e assimilados em relação às unidades indígenas. Correia (2000: 144). 548 127 nunca terão as regalias e a boa vida que têm os brancos. As pequenas vantagens que vos dão, em comparação com os soldados «indígenas», é uma táctica para impedir a vossa união e amizade”555. Impedir tais efeitos implicava criar um espírito de coesão assente, na noção de raça, mas igualmente assente num questionamento da categoria indígena: “Mas para conseguirmos a Liberdade e a Independência, deve haver uma forte união, amizade e estima entre vós milicianos negros de Angola (pretos ou mestiços) e os soldados chamados “indígenas”556! “ (….) Soldados negros de Angola (pretos ou mestiços, milicianos ou indígenas) se algum dia vos mandarem disparar contra os vossos próprios irmãos de sangue e de raça, se algum dia vos mandarem lutar (prender, cercar assaltar ou atirar) contra os vossos irmãos negros (pretos ou mestiços) não devem aceitar! Nunca aceitem 557 fazer isso. O nosso maior inimigo é o branco português” . Estava assim, racialmente, definido, quem era o inimigo. O texto é, por sua vez, um apelo à revolta armada contra o colonialismo português: “Força de Angola! Soldados negros milicianos, indígenas e civis, formemos com ânimo uma frente unida e corajosa para combatermos e corrermos da nossa terra o nosso inimigo verdadeiro: Os Brancos Portugueses Colonialistas E 558 Imperialistas” . Deparamo-nos aqui com um discurso identitário de forte cunho nacionalista e racial na medida em que a definição de angolanos assenta na consanguinidade e na raça. É provável que a consanguinidade e a cor definam o ser angolano já que encontramos referências, a determinadas expressões como “nossos irmãos de raça e de sangue”. O acto de exclusão dos classificados de brancos é perfeitamente visível no fim do panfleto: “Lê com cuidado e depois passa a outro. Os brancos não devem saber”559. Este panfleto exemplifica processos de inclusão e exclusão assentes em propriedades rácicas características somáticas. O panfleto termina com a evocação dos reis Ngola Kiluange, Raínha Ginga e António de Manimulasa do reino do Congo. O que denota, quanto a nós, afinidades etnolinguísticas do(s) autor(es). É portanto uma narrativa identitária igualmente com fundamentos genealógicos e etnolinguísticos, Ambundo e Bakongo. 555 Medina (2003: 295). Medina (2003: 295). 557 Medina (2003: 295). 558 Medina (2003: 295). 559 Medina (2003: 295). 556 128 Classificações que remetem para processos de inclusão e exclusão contidas no documento do MIA “Aos Militares Angolanos”. Nação/Angola Negros Pretos Mestiços Negros de Angola África Inclusão Angolanos Portugueses colonialistas Exclusão Brancos Portugueses Nação/portuguesa Brancos Categorias de identificação no seio dos angolanos: raciais e estatutárias Preto Mestiço Indígena Assimilado Categorias reavaliadas/valorizadas: raciais Negro Preto Mestiço Categorias reavaliadas/negadas: raciais e estatutárias Indígena Assimilado 2.3.3 Documento (5). Panfleto do MIA “ Manifesto Africano”. Provavelmente de 1959 Os panfletários começam por manifestar indignação contra um despacho governamental que proibia o uso da expressão “enclave” referente a Cabinda. Criticava-se o modo arbitrário como Cabinda se tornara um protectorado de Portugal desde o tratado de Simulambuco560. Há aqui um questionamento do estatuto de Cabinda. Contudo, o que nos interessa salientar é que encontramos um duplo princípio de identificação assente na noção de raça e na noção de nação na medida em que encontramos designações como: “Angolano – sejas Negro (preto ou mestiço) ou Branco Progressista – Ajuda A Libertação 561 Da Tua Terra” . Estamos assim perante um princípio de inclusão assente na ideologia identitária nacionalista, perceptível na classificação angolano; classificação que inclui, na ideia de nação, uma população constituída por três raças, preto, mestiço e branco em oposição/exclusão aos portugueses ou colonialistas. É também vislumbrável uma diferenciação da categoria negro (que engloba, pretos e mestiços) relativamente à categoria branco. Esta última categoria acaba por gerar um outro princípio de inclusão/exclusão entre “brancos progressistas” e (o que supostamente pressupõe a existência de) brancos colonialistas562. É possível constatar uma reavaliação da categoria negro, na medida em que, à classificação colonial que distingue negros e mestiços se sobrepõe um conceito de negro que 560 Tratado assinado em 22 de Janeiro de 1885 entre portugueses e autoridades cabindesas, pelo qual Cabinda se tornaria um protectorado de Portugal. 561 Medina (2003: 293). 562 O sublinhado é nosso. 129 inclui os mestiços. O que nos leva a supor que a luta contra o arbitrário colonial não é apenas uma luta de classificação em torno do conceito de territorialidade Angola/Portugal mas também uma luta em torno da definição da categoria negro. Permanece, contudo, a noção de raça. Mas, a classificação racial adquire aqui, no caso, uma função meramente identificadora no seio dos angolanos/colonizados. Classificações que remetem para processos de inclusão e exclusão contidas no documento do MIA “O Manifesto Africano”. Angola/Cabinda Nós Africanos Angolanos Negros Pretos Mestiços Branco Progressista Inclusão Europeus Portugueses Branco Exclusão Portugal Categorias de identificação no seio dos angolanos: raciais Branco Preto Mestiço Negro Categorias de identificação no seio dos angolanos: territoriais (espaço físico) Angola Cabinda Branco Categorias reavaliadas/valorizadas: raciais Negro Mestiço Preto 2.4 Panfletos subscritos conjuntamente pelo MINA e pela UPA Sensivelmente datados da mesma época, encontramos dois panfletos intitulados: “Ao Povo de Angola” e “Garantias Insofismáveis Aos Angolanos De Independência”produzidos pelo MINA e pela UPA. Estes dois panfletos têm a particularidade de serem subscritos por duas organizações que iriam ter destinos distintos. Considera Carlos Pacheco que o MINA evoluiu em duas fases, uma primeira francamente unitarista com a UPA que dura até mais ou menos até fins de Fevereiro de 1960, e uma segunda marcada pela admissão de Agostinho Neto e Joaquim Pinto de Andrade que levou a uma reorganização do Movimento e à sua consequente passagem para o MPLA na segunda semana de Maio563. Quanto à UPA iria, posteriormente, juntar-se a um pequeno partido e constituir a FNLA. 563 Pacheco (1997: 83). Agostinho Neto iria tornar-se no presidente do MPLA. Quanto a Joaquim Pinto de Andrade embora preso, iria ser consagrado como presidente do honra do MPLA. 130 2.4.1 Documento (6). Panfleto subscrito pelo MINA e pela UPA “Ao povo de Angola”. Provavelmente de 1960 O(s) autor(es) não se coíbem em denunciar a violência colonial dando-lhe um cunho de dimensão histórica de violência universal: “Esses massacres, pelos seus métodos ultrapassa o propagado e o propagandeado massacre húngaro, o lamentável lançamento da Bomba atómica no Japão e a barbaridade do nazismo na Polónia e França. Um dia a História falará alto e claro nestes massacres de Angola mais do que nós o fazemos agora. (…) Eis a interrogação que precisa de resposta e que o próprio Continente Africano faz” 564 . O discurso contém uma definição de povo de Angola que engloba negros e mestiços, e populações regionais: “Negros de Angola (pretos e mestiços). O momento que atravessamos é de grandes trabalhos e lutas. Vamos trabalhar todos unidos e sem discernimento de terras, sem haver Catetenses ou Malanjinos, Bailundos ou Congueses, Luandenses ou Ambaquistas, mas unidos todos como angolanos, sem medo, para alcançarmos o nosso ideal – A Independência Total. Vamos Lutar contra a opressão do jugo colonialista e a nossa victória é certa. Que cada um de nós sinta a mesma dor daqueles que a sofram direitamente no seu próprio 565 corpo” . Encontramos, na produção discursiva, um princípio de identificação/inclusão na medida em que se procura esbater as distinções regionais e raciais no seio dos angolanos. O documento termina com “respeitosos cumprimentos a Lúcio Lara e Viriato da Cruz”. E, termina com três palavras de ordem: “Liberdade”, “prosperidade” e “Fraternidade”566. Classificações que remetem para processos de inclusão e exclusão contidas no documento do MINA e da UPA “Ao povo de Angola” Inclusão Negros de Angola Mestiços Pretos Pátria/Angola C. Regionais567 Povos Africanos Imperialistas Regime colonial português Exclusão Catetenses Categorias de identificação no seio dos angolanos: regionais Malanjinos Bailundos Congueses Luandenses Ambaquistas Categorias reavaliadas/valorizadas: raciais Negro Preto Mestiço 564 História do MPLA I (2008: 432) História do MPLA I (2008: 432). 566 História do MPLA I (2008: 432). As palavras Liberdade e fraternidade remetem-nos para a revolução francesa de 1789. 567 Catetenses, Malanjinos, Bailundos, Congueses, Luandenses, Ambaquistas 565 131 Categorias de identificação no seio dos angolanos: raciais Mestiço Preto 2.4.2 Documento (7). Panfleto subscrito pelo MINA e pela UPA “Garantias Insofismáveis Aos Angolanos De Independência”. Provavelmente datado de 1960 O panfleto, em alusão à chegada do novo governador-geral Silva Tavares, salienta-se as origens cabo-verdianas do mesmo: “Ele não é português mas é representante dos déspotas, que não merecem 568 a nossa consideração” . O texto pauta-se por um princípio de inclusão e exclusão assente na dicotomia angolanos/portugueses. “Quem lhe disse a ele que os angolanos são portugueses”569? A estratégia discursiva assenta na denúncia de uma longa história de arbitrário colonial; contestados são, igualmente, os princípios luso-tropicalistas veiculados pela ideologia colonial: “O padre apóstata, do reis ventura, (seja ventura de reis) no jornal «A província de Angola» diz uma série de dislates, um dos quais é dizer que os Congolenses (independentes a partir de 30 de Junho deste ano) nada têm a recear dos portugueses. Muito têm a recear, pois, sobretudo a proverbial aldrabice portuguesa. (…) O sr. reis ventura diz: «antes pelo contrário, podem contar com ajuda, compreensão e respeito de um povo que a história consagrou como pioneiro e mestre na fraterna convivência com as raças africanas. (…) Ora exactamente, irmãos angolanos, encontramos um mentiroso, estilo português, doido como os chefes dele. Caso os nossos irmãos congoleses podem contar com ajuda de esclavagistas? Em quê? Na escravatura de triste contrato? Nas mortandades provocadas para dizimar a juventude nos hospitais? Nas rusgas por causa do vinho palhete, a 275$00 a multa? Nos 7 milhões de escudos, a bem pouco revelados em Tânger pelo representante deles em progresso de Angola? Esse progresso algumas vezes nos atingiu? (…) A história consagrou-os como ladrões da marca perigosa, racistas, (…) que só vive com pretas, misturando o vosso sangue com o nosso, fazendo-se nossos conhecidos abandonando vossos filhos 570 mestiços como incógnitos, apenas para satisfazerem os vossos intentos” . O discurso é também direccionado aos angolanos prestes a serem incorporados no exército; salienta-se no mesmo, os efeitos perversos que podem advir em caso destes últimos se alistarem no exército português. É portanto um discurso que apela para uma ruptura total com os 568 Rocha I (2002: 322). Rocha I (2002: 322). 570 Rocha I (2002: 322). 569 132 portugueses: “Acautelai-vos, que haveis de levar máscaras brancas para num caso de conflito vos confundirem 571 que sois nossos inimigos e então morrereis em vez deles, ficando os cobardes ilesos” . O princípio de inclusão e exclusão alarga-se “aos irmãos colonizados, como nós; Caboverdianos, Santomenses, Guineenses, Moçambicanos, Indianos”. Todos eles se distinguem do “branco português”572. O discurso prossegue com um apelo “Aos Brancos Cuja Ideologia É Contrária A Dos Salazaristas”: “Até aqui temos falado mas sem fazer alusão directa aos homens brancos cuja ideologia é contrária a dos abutres salazaristas. Nós sabemos que vós tendes alma e como tal sabem e compreendem a nossa luta que embora diverja um pouco não deixa de ser vossa também”. Nosso plano de acção é de colaborar com todos os 573 homens de boa vontade. Assim, esperamos que nos interpreteis bem, sem quaisquer equívocos” . Esta alusão aos “brancos liberais” não se furta à construção antinómica entre colonizados/brancos liberais. Significa que permanece, quanto a nós, uma exclusão da categoria branco relativa à condição de colonizado. O panfleto termina com as palavras de ordem em alusão aos reis Ngola Kiluanje (?), Rainha Nginga e um apelo à Libertação dos presos políticos574. Numa espécie de Post-scriptum o texto apela para um boicote aos “carrosséis” (uma espécie de feira popular), porque “é onde frequentes vezes o negro é barbaramente vexado”. O apelo ao boicote justifica-se com as seguintes interrogações: “Até agora ainda não enxergastes que a vossa presença aí desenvolve o erário desse povo mercanterista sem literatura e sem civilização e mais retarda a 575 nossa evolução” ? Nota-se aqui a reavaliação/inversão da noção de civilização termo que outrora distinguia portugueses (civilizados) e africanos (bárbaros). Classificações que remetem para processos de inclusão e exclusão contidas no documento do MINA/UPA “Garantias Insofismáveis Aos Angolanos De Independência”, Angolanos Nós Negros Nossa Pátria Colonizados Inclusão Portugueses Vós Brancos liberais Brancos Portugal Colonizadores Exclusão Categoria reavaliada/valorizada: racial Negro 571 Rocha I 82002: 323). Rocha I (2002: 323). 573 Rocha I (2002: 323). 574 Rocha I (2002: 323). 575 Rocha I (2002: 323). 572 133 2.5 Documento (8). Panfleto do MLNA “Ameaça Psicológica”. Provavelmente de 1959 No discurso, em alusão a um festival, militar, aéreo organizado pelos portugueses, considera-se tal evento como uma prova de força, intimidadora, contra “Nós os africanos”576. O MLNA contesta a designação de “província ultramarinas” atribuída às colónias e manifesta uma reivindicação independentista fundamentada na constatação de uma longa história de arbitrário colonial: “O território de Angola pertence aos seus legítimos donos e não aos conquistadores 577 traficantes de estradas com todo o seu cortejo de crimes seculares (…) . No apelo dirigido aos democratas portugueses é notória a dissociação dos portugueses da noção de angolano: “Todos os portugueses democratas, conscientes, devem procurar redimir os crimes dos seus entes, e que em caso contrário terão que pagar caro, com juros de justa causa e de moras o sangue angolano que 578 têm derramado” . O MLNA não deixa de salientar que «o povo de Angola, luta pela sua independência total». Contudo, não deixa de igualmente de sublinhar, em contraponto, o papel desempenhado negativamente pela “cínica América, aliada à interesseira, Inglaterra» que fornecem armas aos portugueses”579. Nota-se aqui, a influência de uma conjuntura da guerra-fria. Provavelmente uma possível simpatia do(s) autor (es) do texto pelos denominados países socialistas. No documento enfatizam-se os inúmeros arbitrários coloniais, sublinhando o arbitrário racial exercido sobre os classificados de pretos:”É preciso acabar com a miséria, a crise do desemprego, a mortalidade infantil assustadora, (…) acabar com os chauffeurs que matam pretos com os carros, mesmo de propósito; acabar com os crimes nos hospitais onde os pretos morrem à porta do Banco sem assistência médica depois de longas horas de sofrimento; acabar com todo o pessoal racista dos hospitais (…); acabar com todas as entidades que dão e mandam dar palmatoadas aos pretos, a ponto de rebentar com a palma das mãos, inchar as 580 nádegas e deixar numa miséria a planta dos pés e o corpo” ; O texto contém uma proposta de reavaliação/negação das categorias raciais e estatutárias, consideradas como factor de divisão no seio dos angolanos: “acabar com as distinções do preto indígena, preto assimilado, mulatos e brancos de segunda classe, porque essas classificações são ardis colonialistas para nos atirarem uns contra os outros, porque eles sabem que essa união apressa o momento da retirada dos colonialistas. Sejamos prudentes e vigilantes não permitindo que o opressor estabeleça a confusão entre 576 Lara (1997: 455). Lara (1997: 455). 578 Lara (1997: 455). 579 Lara ( 1997: 455). 580 Lara (1997: 456). 577 134 581 nós” . O que significa que, de ponto de vista das identificações políticas: “Nos anos 50 do século XX, a ideia de Angola como país com identidade própria estava amplamente difundida nos meios instruídos mestiços e negros e nas associações que dirigiam (Liga Nacional Africana, Associação dos Naturais de Angola e outras) e na maioria da população urbana negra, sobretudo em Luanda. Em certos meios desportivos e culturais de Luanda (Clube Atlético de Luanda e Sociedade Cultural de Angola), a definição de Angolano englobava todos os indivíduos negros, mestiços e brancos naturais de Angola ou que pela sua vivência local se sentissem totalmente identificados com o país. Esta concepção é sobretudo urbana (a convivência na escola e, por vezes no bairro foi um 582 facto muito importante” . Esta reavaliação das classificações estatutárias e raciais não impede, contudo, que permaneça, mesmo que ponto de vista da mera identificação, no seio dos colonizados, a noção de raça583. No discurso informa-se que a designação MLNA é fruto da fusão do MLA com o MLN. O texto não termina sem denunciar as arbitrariedades da PIDE e sem apelar para uma acção de protesto junto do Governo-geral no sentido de «reclamar a liberdade dos angolanos presos arbitrariamente». Classificações que remetem para processos de inclusão e exclusão contidas no documento do MLNA. Povo de Angola Angolanos Inclusão Nós Africanos de Angola Pretos Angola Portugal Colonialistas Exclusão Colonialistas portugueses Categorias de identificação no seio dos angolanos: raciais e estatutárias Preto indígena Preto assimilado Mulato Branco de 2º classe Indígena Preto Categorias e estatutárias reavaliadas/negadas: raciais Preto indígena Preto assimilado Mulato Branco de 2ª classe 581 Lara (1997:456). O MLNA era uma organização política que era provavelmente constituída, na sua maioria por indivíduos classificados de brancos e mestiços. Contudo, em nossa opinião, é demasiado redundante reduzir tomadas de posição política relacionando-as com meras características somáticas. 582 Entrevista de Adolfo Maria a Pimenta (2006:30). O itálico é nosso. 583 Num outro panfleto MLNA esta reavaliação é ainda mais notória: “Lutemos Independentemente Da Cor E Da Raça Pela Libertação de Angola”. Lara (1997: 459). 135 2.6 Os panfletos da UPA A partir de 1959 a UPA começa a afirmar-se como a organização de referência no seio dos nacionalistas. A sua influência estende-se não só no seio dos refugiados e emigrantes angolanos residentes no Congo Leopoldville, mas também à faixa noroeste de Angola atingindo Luanda, Benguela, Lobito e Malanje. 2.6.1 Documento (9). Panfleto incompleto da UPA “Estímulo”. Provavelmente de fins de 1959 princípios de 1960 O panfleto é dirigido a todos os adeptos da associação da UPA, residentes em Angola, no Congo Belga e no Congo Francês. O texto refere-se a um conjunto de artigos publicados num jornal denominado “Kongo Dietu” (Nosso Congo)584. Em resposta, a UPA fez saber o seguinte: “Ficai a saber, como sempre vos recomendamos, que a UPA não é obra de brancos, não foi criada nem em Portugal nem em Luanda, mas sim foi fundada por todos nós filhos do Reino do Congo em Angola. Se tivermos adeptos das localidades marítimas, não será caso para admirar porque também eles Angolanos necessitam de ser independentes e 585 livres da escravidão dos portugueses 586 admitido qualquer branco” . Sabeis que nesta associação não foi ainda admitido nem poderá ser . É patente um processo de exclusão dos classificados de brancos, sendo estes últimos associados a Portugal. Encontramos no texto (independentista) um fundamento de nação genealógico e dinástico, na medida em que se recorda que a entidade fundadora da UPA é descendente do Reino de Congo. Classificações que remetem para processos de identificação e exclusão contidas no documento da UPA intitulado “Estímulo” Angola Negros de Angola Inclusão Pretos Exclusão Brancos Portugal Portugueses 584 De que não sabemos o conteúdo, provavelmente, o discurso não era favorável à UPA. Num panfleto da UPA intitulado “Principais recomendações a todos quantos queiram pertencer à Associação UPA” é feita a seguinte recomendação. “ Longe de ti o pensamento da existência de tribos considerando que um é natural de Luanda, um outro de S. Salvador, de Maquela, do Zaire, de Cabinda, visto que nós somos todos Angolanos, somos todos súbditos dos Portugueses que muito nos fazem sofrer e somos na realidade irmãos”. Rocha I (2002: 450). O que significa, que há na génese do grupo político um um constructo genealógico. Todavia há intenção de esbater as identizações regionais. 586 Rocha I (2002: 452). 585 136 Categorias de identificação no seio dos angolanos: territoriais (espaço físico) Reino do Congo Luanda Categorias reavaliadas/valorizadas: raciais Negro Preto 2.6.2 Documento (10). Nota da UPA “Ao chefe da povoação e seus súbditos residentes em Kinkombo - Kibenga”. A partir de Leopoldville, de Setembro de 1960 A nota, proveniente de Leopoldville, dirigida ao chefe da povoação e seus súbditos residentes em Kinkombo-Kibenga (autoridades tradicionais), começa por agradecer o envio de fundos, embora considere a quantia recolhida escassa. O discurso procura enfatizar a necessidade de reforçar os apoios monetários à causa libertadora: “Lembrai-vos sempre, irmãos que o dinheiro é a 587 melhor arma para a nossa libertação” ; A retórica apresenta um fundo religioso cristão: “Sabemos que ainda não conseguistes mais do que isso e por isso vão os nossos agradecimentos para todos os contribuintes bem como ao bom Deus que vos 588 inspirou sentimentos de tanta generosidade” . No discurso, enfatiza-se a unidade contra o inimigo principal: “Fomos inimigos em tempos idos, mas por agora o nosso maior inimigo em que havemos de pôr os nossos olhos são os portugueses. (….) A UPA deseja veementemente que nos unamos para juntos, combatermos os Portugueses (…). Sempre para frente e nunca 589 te deixes, povo de Angola, afastar por qualquer vendaval. . Nota-se, aqui, que a categoria branco não está explicitada no texto. É portanto uma distinção territorial, nomeadamente entre o povo de Angola e os portugueses. Classificações que remetem para processos de inclusão e exclusão contidas no documento da UPA dirigido “Ao chefe da povoação e seus súbditos residentes em Kinkombo-Kibenga” Inclusão Povo de Angola Portugueses Exclusão 587 Rocha I (2002: 476). Rocha I (2002: 476). 589 Rocha I (2002: 476). 588 137 2.6.3 Documento (11). Panfleto da UPA “aos membros da UPA e a todos os nossos irmãos de Angola”. A partir de Leopoldville. Provavelmente de fins de 1960 Através deste panfleto a UPA procura esclarecer, junto dos «membros» e dos «irmãos angolanos», acerca dos motivos das suas divergências em relação a uma organização política denominada NGWIZAKO, criada em 1960, cujo objectivo era a restauração do antigo reino do Kongo. A mesma não se opunha a negociações com os portugueses para atingir tal fim. O NGWIZAKO considerava que não era necessário o recurso à violência contra Portugal590. No discurso, a UPA salienta que é a única organização política “que há de conseguir libertar Angola das garras escravizantes dos portugueses”591. E, fundamenta esta afirmação com o facto de ser reconhecida, internacionalmente: “A UPA (…) é conhecida e oficialmente reconhecida em 592 muitos países da Europa e sobretudo em todos os países independentes de África” . A UPA reforça a sua distinção em relação ao NGWIZAKO do seguinte modo: “Desde o início da nossa organização política nunca trabalhamos hipocritamente, mas sempre dentro da verdade, por isso nada tememos, pois muito dos nossos inimigos maquinaram manobras diversas para derrubarem a nossa obra e nunca conseguiram. A UPA espalhada está e continuará a espalhar por todos os pontos de Angola onde viva um único negro593. Entra nas intenções do NGWIZAKO que nos separemos nós, gentes do Congo, das outras gentes de Angola, interessando-nos apenas reivindicações respeitantes à restauração do Reino do Congo, mas isso não pode corresponder aos nossos desejos humanos visto terem dito em adágio os nossos antepassados que não devemos rejeitar um indivíduo que queira construir a nosso lado ou por outra o conjunto dos dedos é que toca o batuque. (…) 594 por isso, já que nos entendemos com os nossos irmãos de Angola unamo-nos a eles até a libertação” . A UPA prossegue seu discurso de distinção, servindo-se do exemplo do ex-Congo Belga: “Por quanto os congoleses obtiveram a Independência e não foi nem um Rei nem qualquer outro potentado que a pediu, foi sim todo o povo que escolheu depois para seu dirigente máximo o senhor Kasavubu o qual fora 595 apresentado às autoridades” . Sendo assim, a UPA considera que de momento a questão do reino do Congo não se põe, mas fica em aberto: “Não pensemos agora na organização de reinos porque isso é uma 596 coisa bem segura e convenientemente guardada que não poderá ser arrancada” . A distinção em relação ao NGWIZACO é enfatizada do seguinte modo: “A UPA tem um único fim em vista – libertar a nossa terra do jugo –. (…) “Com a sua política separatista (NGWIZAKO) desejam 590 A sua sede localizava-se em Leopoldville. Pélissier (1978b: 276); Santos (1965: 344-345). Rocha I (2002: 477). 592 Rocha I (2002: 477). 593 Rocha I (2002: 477). 594 Rocha I (2002: 477-478). 595 Rocha I (2002: 478). 596 Rocha I (2002: 478). 591 138 ver separados os filhos de Angola Norte dos de Angola Sul para que os portugueses se aliem a uns e outros e continua a escravizar os outros; desejam continuar a ver o Congo sob a escravidão portuguesa para que a tribo Kivuzi continue a ocupar o trono e quem assim arma ciladas é o Martins Kiditu e outros membros daquela tribo 597 Kivuzi” . A UPA reitera o seu carácter de organização anti-colonial/portuguesa e nacional/indígena: “Mas a UPA (…) considera como únicos inimigos os portugueses e nunca qualquer indígena 598 da sua terra. (…) Pois que a UPA deseja libertar toda a terra de Angola conjuntamente com todos eles” . O discurso é revelador de um princípio de inclusão/exclusão veiculado não só na relação de oposição angolanos/portugueses mas, igualmente, veiculado a partir da organização política angolana em oposição a outra organização política angolana. Significa isto que, no seio dos Angolanos, a organização política adquire cada vez mais a forma de espaço identitário, que remete para um princípio de inclusão/exclusão relativamente tanto a Portugal como a outras organizações políticas angolanas. É de assinalar o facto do panfleto ser elaborado a partir de Leopoldville. O que significa, quanto a nós, que se caminha paulatinamente para um processo de estruturação da organização política, simbolizado pela sede, lugar de excelência de identificação do grupo político. Classificações que remetem para processos de inclusão e exclusão contidas no documento da UPA de dirigido a partir de Leopoldville Indígena Negro Inclusão Angola África Exclusão Europa Portugueses Categorias de identificação no seio dos angolanos: territoriais599 Reino do Congo Angola Categorias reavaliadas/valorizadas: estatutárias e raciais Indígena Negro 597 Rocha I (2002: 478). A referência à tribo Kivuzi está relacionada com disputas pelo trono do reino do Congo. Uma questão que originaria o surgimento da UPNA, antecessora da UPA. Ver Marcum I (1978) e Pélissier (1978b) 598 Rocha I (2002: 478). 599 No próprio Reino do Congo encontramos uma distinção em relação à tribo Kivuzi, o que nos remete para uma heterogeneidade no seio do grupo etnolinguístico Bakongo. 139 2.6.4 Documento (12). Panfleto da UPA “A Todos Os Nossos Irmãos Vindos de Angola Bem Como A Quantos Ainda Residem em Angola”. A partir de Leopoldville. Provavelmente de 1960 O panfleto dirigido, a partir de Leopolville, aos “nossos irmãos em Cristo» e conterrâneos amados” recorda que: «somos irmãos oriundos duma mesma terra de Angola sob domínio português»600. No seu discurso, a UPA faz questão em se demarcar das várias religiões de Angola. A UPA apresenta-se como uma organização política congregadora de todos os angolanos independentemente das suas crenças religiosas, na medida em que a sua única preocupação é a libertação do país: “Notai ainda como já deveis ter notado nas primeiras recomendações, que não se trata aqui de diferentes religiões mas unicamente dum assunto da libertação duma terra onde todos nós nascemos e, formando a UPA (União das Populações de Angola) nosso fim em vista é tornarmo-nos livres a nossa terra do jugo dos intrusos portugueses que nos roubaram as nossas propriedades fazendo de nós seus escravos. Tratamos dum assunto da nossa 601 terra e não das nossas religiões a que pertencemos indiferentemente” . Contudo, a UPA não se furta a um discurso nacionalista com forte cariz racial e religioso: ”Sabemos que a promessa do próprio Deus foi que toda a África deverá libertar-se das garras das nações europeias com todos os seus malévolos governos, por isso esta é também a nossa hora de nos sublevarmos para mostrarmos ao mundo que também nós não mais queremos ser governados por brancos, visto pertencer-nos esta terra, não é pertença dos brancos, foi-nos legada e destinada pelo 602 próprio Deus” . Deus é o fundamento da exclusão dos classificados de branco no processo de construção de um sentimento de pertença relativamente ao território angolano. Posteriormente, o discurso torna-se num verdadeiro apelo à revolta contra os portugueses. Para tal, o discurso socorre-se dos exemplos do ex-Congo Belga que adquirira a independência, através de acções de protesto contra a presença Belga. A UPA apela para a necessidade de contribuições monetárias no sentido de ajudar a causa libertadora. O dinheiro adquire assim uma enorme importância na luta anti-colonial: “É o dinheiro que é a arma da independência. Podemos não ter experiência suficiente e se tivermos dinheiro os experientes e peritos aparecerão para nos ajudarem porque tudo irá ser tratado a dinheiro. Por isso, sede generosos em dar donativos e contribuirdes com avultadas somas ou com pouco mas todos para conseguirmos a libertação da 603 nossa terra Angola” 600 . Rocha I (2002: 479). Rocha I (2002: 479). 602 Rocha I (2002: 479). 603 Rocha I (2002: 480). 601 140 O discurso produzido pela UPA é também de mobilização para a luta clandestina: “Lembrai-vos ainda que os portugueses tornaram-se como uma pacaça ferida, por isso trabalhai ocultamente e vivei 604 com eles como se tudo se passasse clandestinamente para evitardes qualquer malefício contra vós” . O discurso introduz uma nova categoria – «os indiferentes» – cuja ambiguidade é de assinalar: “Guardai segredo sem nunca nada dizerdes a qualquer branco e nem mesmo aqueles que vedes que estão ligados aos brancos e não querem, mas tranquilizai-os sempre -os indiferentes – porque mais tarde hão de aliar-se a 605 nós. É que eles não terão para onde seguir senão para o seio da UPA” . Encontramos, no discurso, uma referência à chegada de emissários vindos de Angola. O que denota alguma implantação deste movimento, em território angolano, apesar da forte vigilância da PIDE. É notório como se articulam, no discurso produzido pela UPA, a exclusão racial e geográfica; ambas dão sentido ao princípio do «nós» / «eles». Classificações que remetem para processos de inclusão e exclusão contidas no documento da UPA “A todos os nossos irmãos vindos de Angola...” Inclusão/ Angola África Nós Exclusão Portugueses Europa Brancos Dominados 2.6.5 Documento (13). Panfleto da UPA “Associados da UPA Regozijai-vos”. Datado de 1 de Junho de 1960 Este panfleto, cujo signatário é P.J.E. Kiasulamwa está redigido na língua Kikongo, anuncia a venda de cartões de associados da UPA de modo a garantir um fundo para o movimento na luta contra os portugueses606: “Fazemos isso para aumentarmos cada vez mais o nosso capital, visto que o dinheiro é a nossa melhor arma. (…) Irmãos meus, devemos ter grande empenho em possuirmos dinheiro porque só ele nos libertará de tanta escravidão”607. 604 Rocha I (2002: 480). Rocha I (2002: 480). 606 Convém salientar que, além do português, a UPA redigia panfletos nas seguintes línguas: kikongo, kimbundo e francês. Rocha I (2002: 165). 607 Rocha I (2002: 459). 605 141 (…)“Gentes de Angola tende esperança de vos libertares porque o dinheiro das vossas contribuições trabalhará para isso”608. Trata-se de um discurso imbuído de religiosidade: “Sabemos que Deus é o primeiro dos nossos 609 protectores; ele é o Senhor todo poderoso que nos está a indicar o caminho a seguir” . O signatário apela para a unidade e fraternidade na luta contra o «branco português»: “Desejo ainda recomendar-vos que não façais inimigos uns dos outros vivei como irmãos, o único inimigo e grande 610 inimigo deve ser apenas o branco português” . O mesmo apela para uma forte crença na UPA, crença reforçada através da exclusão do «branco português»: “Os membros da UPA devem acreditar apenas nas notícias dos dirigentes da UPA. Todas as instruções deverão estar carimbadas com o carimbo a óleo da UPA. A UPA não foi feita por brancos nem para 611 brancos, por isso confiai nela. UPA. Quer dizer União das Populações de Angola” . É importante assinalar, aqui, mais um passo na ruptura com a fase panfletária, nomeadamente, através de um discurso de apelo à forte crença no grupo político legitimado, simbolicamente pelos carimbos e insígnias, que por sua vez vão legitimando a existência do grupo como organização burocrática. Classificações que remetem para processos de inclusão e exclusão contidas no documento da UPA “Regozijaivos” Inclusão Gentes de Angola Populações de Angola Angola Países negros Exclusão Branco português Brancos Países europeus Categoria reavaliada/valorizada: racial Negro 608 Rocha I (2002: 460). Rocha I (2002: 460). 610 Rocha I (2002: 460). 611 Rocha I (2002: 460). 609 142 2.7 Os panfletos atribuídos a Agostinho Neto Em 1959, Agostinho Neto regressa a Angola após ter concluído o curso de medicina, onde se destacaria na actividade política clandestina612. Os dois panfletos traduzem em certa medida esta fase da vida política de Agostinho Neto. 2.7.1 Documento (14). Panfleto “Ao povo angolano. Há só um caminho para a resolução dos nossos problemas. A Independência do nosso país”. Angola é nossa”. Atribuído a Agostinho Neto613. Provavelmente de 1960 A estratégia discursiva assenta no pressuposto de que somente com a independência se poderá acabar com o arbitrário colonial: “Ninguém hoje tem a ilusão de procurar encontrar a solução dos nossos problemas económicos, políticos e sociais, fora da independência nacional. Angola é nossa terra e não dos portugueses. Somos nós os angolanos herdeiros das tradições africanas dos nossos povos, os únicos donos desta esbulhada terra”614. É um discurso que distingue, claramente de ponto de vista populacional, os angolanos dos portugueses. Agostinho Neto não se furta a apontar os múltiplos arbitrários da política colonial portuguesa de modo a acentuar os propósitos independentistas: “A independência é a condição primeira do nosso progresso. Enquanto que não formos independentes seremos sempre pobres, teremos de obedecer, à força do chicote e da palmatória, às leis que os colonialistas fazem sem nos ouvir; seremos sempre os negros ordinários cujo orgulho tem sido afogado em sangue e dor. (….) Enquanto não formos governados por representantes nossos, eleitos pelo povo, que garantam a defesa dos interesses da população nacional; (…). Por isso, a todos os angolanos honestos que sentem o vexame diário feito ao povo e a exploração infame mantida pela violência colonialista, só um caminho se apresenta para solução dos nossos problemas básicos: A 615 independência nacional” . A partir daqui, o autor apresenta os meios para a aquisição da independência, de entre os quais o recurso às armas: “Por isso, é cada vez mais necessário que nos preparemos todos os angolanos, 612 António Agostinho Neto, (1922-1979), nasceu a 17 de Setembro de 1922, em Kaxicane. Fez os estudos primários na Escola Evangélica e o ensino liceal em Luanda no Liceu Salvador Correia. Ingressou na Universidade de Coimbra para cursar medicina em 1947. Destacou-se no ensaio e na literatura, nomeadamente na poesia. Militou no MUD juvenil, tendo sido preso várias vezes. Regressou a Angola em 1959 retomando a actividade política. Em 1960 foi novamente preso. Em 1962, tendo fugido, juntou-se ao MPLA onde iria ocupar o cargo de presidente da organização. Foi igualmente o primeiro presidente de Angola, cargo que assumiu, juntamente com o cargo de presidente do MPLA, até à sua morte em 1979. MPLA I (2008). 613 O documento não faz referência a nenhuma organização política nacionalista angolana. 614 Rocha I (2002: 336). 615 Rocha I (2002: 336). 143 para uma luta mais enérgica e decidida contra o ocupante português. Temos de unir-nos cada vez mais, em todo o país, para salvar urgentemente a nossa terra da exploração dos assassinos colonialistas portugueses, mesmo que para 616 isso tenhamos de pegar em armas” . Porém, num plano mais imediato, Neto sugere que se passe para acções de reivindicações de justiça social e salvaguarda de exercício de cidadania, tendo em conta a situação dos presos políticos e a desigual divisão do mundo social entre brancos e negros: “Exijamos a libertação imediata de todos os presos políticos. Exijamos salários iguais para brancos e negros; exijamos o acesso às escolas para brancos e negros, exijamos condições de trabalho iguais. Exijamos a devolução 617 das terras que nos roubaram” . O discurso assenta também numa estratégia de reinvenção de um passado negro e africano: “Façamos reviver as nossas tradições, o orgulho da nossa raça e do nosso povo618. No final do discurso, reitera-se o propósito independentista: “Fomentemos a solidariedade de todos os homens do nosso povo, na luta pela libertação do país. A independência nacional é a vontade do povo angolano. Angola é nossa! É a nossa pátria! Libertemo-la 619 das mãos dos colonialistas. A luta pela nossa independência é obrigatória” . Estamos perante um discurso bastante marcado pela ideologia nacionalista. As classificações, que remetem para processos de inclusão e exclusão, enunciados no discurso, são fundamentadas pela história, cultura, espaço geográfico e, obviamente, pelo arbitrário – racial – colonial. As designações brancos e negro funcionam, aqui, mais como distinções no seio da sociedade (percepcionada como) angolana. Há, contudo, uma adopção das categorias produzidas pelo Estado colonial, tais como brancos e negros. Como tal, a noção de raça está interiorizada. Classificações que remetem para processos de inclusão e exclusão contidas no documento redigido por Agostinho Neto Nós Angolanos População nacional Negros Nossa Raça Inclusão Angola Exclusão Portugueses Colonialistas portugueses Colonos Categoria reavaliada/valorizada: racial Negro 616 Rocha I (2002: 336). Rocha I (2002: 337). 618 Rocha I (2002: 337). 619 Rocha I (2002: 337). 617 144 Brancos 2.7.2 Documento (15). Panfleto “Um Ano de Cadeia Sem julgamento”. Atribuído a Agostinho Neto. Datado de 29 de Março de 1960 Agostinho Neto começa por recordar a situação dos presos políticos: “Faz hoje, dia 29 de Março, um ano desde que os carrascos da PIDE levaram presos os nossos irmãos. Precisamente um ano passado nos 620 cárceres dos colonialistas portugueses” . No discurso, de carácter territorial, procede-se, igualmente, a uma reavaliação da definição de Angola, contestando a noção portuguesa da mesma. Esta reavaliação tem por fundamento uma longa história de Angola, com uma génese e uma geografia própria, que foi adulterada pelos portugueses: “E assim foi acontecendo nesta coisa pacífica Ngola, Ngola da Rainha Jinga e de Ngola Kiluanji, Ngola dos nossos avós e nosso património que os portugueses cinicamente chamam província de Portugal e mesmo a custa do nosso bendito sangue, procuram manter a ocupação portuguesa, como fazem os 621 franceses na Argélia” . O comunicado, – ao recordar que os presos estão detidos sem julgamento – contém um princípio de identificação com remissão para um princípio de inclusão/exclusão no seio dos presos políticos, nomeadamente, através do uso de designações como «irmãos» e «população europeia»: “Assim foi acontecendo irmãos, dizíamos nós, ficando presos mais. (…) Vieram presos de toda a parte de Ngola, nomeadamente, de Malanje, Lobito, de Benguela, Luanda, Noqui, Lunda, etc., etc. Também alguns elementos da população europeia que tiveram a coragem de manifestar compreensão activa pela nossa luta caíram sob as malhas da PIDE” 622 . A estratégia discursiva não deixa de apelar com veemência para a independência: “Mas a 623 nossa luta, irmãos, é justa, humana e intransigente e só terminará com a vitória final – A independência total” . A partir daqui, Agostinho Neto apresenta os fins da luta nacional: a saber: a Independência - “Pretendemos obter dentro do prazo mais curto a nossa independência”624; a inserção na comunidade africana - “Pretendemos fazer parte da comunidade africana”625; 620 Rocha I (2002:334). Rocha (2002: 334). Note-se o processo simbólico de delimitação fronteiriça do território simbolizado pela supressão da letra “A” que nos remete uma origem genealógica e kimbunda do espaço Angola. 622 Rocha (2002: 334). Os classificados de irmãos são: Mendes de Carvalho, Sebastião Gaspar, Pascoal da Costa, Garcia Contreiras, João Teixeira, Vieira Dias, Ilídio Machado, Higino, (ilegível) Martins, Armando Nobre Dias, Florentino Amorim, Noé, etc. Os elementos da população europeia são os seguintes: Dra Julieta Gandra, arquitecto Veloso, engº Calaans. Idem (2002: 334). 623 Rocha (2002: 334). 624 Rocha (2002: 334). 621 145 a igualdade no acesso aos bens materiais - “Queremos construir o nosso país, fazer dele um país progressivo onde (…) os bens materiais, não sejam apenas benefício dos brancos, mas postos em 626 benefício do povo angolano” ; a manutenção das tradições africanas e a negação da «assimilação» - “Queremos manter as nossas características africanas, viver as nossas tradições africanas - Recusamo-nos a ser assimilados pelos portugueses. Em Ngola Só há Ngolanos e ocupantes estrangeiros. Os Ngolanos são 627 cidadãos com os mesmos direitos e deveres perante o povo. Não faremos divisões entre nós” ; A negação de uma identidade portuguesa - “Queremos dizer ao governo português que não temos o menor desejo de ser portugueses. Desejamos sim que nos restitua a nossa soberania” 628 ; Agostinho Neto defende que de imediato seja assegurada a liberdade de imprensa, a liberdade de acção política, a liberdade de associação; incluindo o reconhecimento dos direitos que constam na Carta dos Direitos do Homem. Mas, também o direito de escolha e representação nas instituições políticas e administrativas: “Para já, queremos liberdade para utilizarmos a imprensa em serviço do nosso povo; liberdade para o nosso movimento agir legalmente; para nos associarmos (…) queremos reconhecidos aos Ngolanos os direitos essenciais que constam na Carta dos Direitos do Homem. Para já queremos representantes nossos, escolhidos por nós, na Assembleia Nacional, no Conselho Legislativo, nas Câmaras 629 Municipais, na Administração do nosso país” . Agostinho Neto não deixa de apelar para o fim do arbitrário colonial e racial nas suas múltiplas vertentes: “Queremos que o governo português nos faça devolver as terras roubadas; acabe com a escravidão do contrato; castigue os colonos que praticam a violência e o racismo contra nós, nos dê casas decentes 630 para vivermos; nos dê remunerações justas . O panfleto termina reiterando o apelo à independência, à libertação dos presos políticos e à legalização do «Movimento»631. O texto redigido por Agostinho Neto veicula um forte sentimento de pertença, a um território (Angola) alicerçado na história e na cultura, mas igualmente no arbitrário colonial. As aspas na designação «assimilada» denotam a negação desta classificação, considerada, pelo autor, como factor de divisão. É de sublinhar a proposta de nova designação do território 625 Rocha (2002: 335). Rocha (2002: 335). 627 Rocha (2002: 335). 628 Rocha (2002: 335). 629 Rocha (2002: 335). 630 Rocha (2002: 335). 631 Provavelmente o MINA. 626 146 Angolano retirando lhe a vogal «A» sendo designada por Ngola. O que nos remete para uma construção genealógica da identidade nacional a partir do grupo etnolinguístico Ambundo. Classificações que remetem para processos de inclusão e exclusão contidas no documento redigido por Agostinho Neto. Inclusão Ngola Povo angolano Irmãos Ngolanos África Nós Exclusão Portugal População europeia Colonialistas portugueses Portugueses Brancos Estrangeiros 2.8 Panfletos anónimos Os panfletos que iremos apresentar têm a particularidade de não terem as siglas das organizações políticas clandestinas. Como tal não se descortina o nome de uma organização política. Todavia procuramos atribuir a autoria dos panfletos a determinadas organizações políticas. 2.8.1- Documento (16). Panfleto“Manifesto africano”I. Provavelmente de 1958632 Neste manifesto, critica-se a natureza da campanha para a eleição do Presidente da república, nomeadamente, no respeitante ao desprezo a que estavam vetados os angolanos nos debates realizados: “ A campanha que acabou de desenvolver-se para eleição do presidente da Républica portuguesa, veio, mais uma vez, demonstrar-nos a perfídia e a má fé que contra nós existe por parte dos governantes portugueses (…) A última campanha eleitoral mostrou-nos que somos considerados animais, por quanto, existindo os nossos problemas – Humanos – chegaram a afirmar que o problema número um é o das estradas (na nossa terra), 633 para permitir a continuidade de brancos colonisadores” . 632 Medina (2003: 68). O MPLA atribui a autoria do panfleto ao MIA. MPLA I (2008: 83); Pacheco considera o mesmo (1997: 110). 633 Medina (2003: 283) 147 A estratégia discursiva passa por um questionamento da ordem colonial, fundamentado pela cultura e pela história: ”Não há raças inferiores634. Cada africano verdadeiro deve perguntar-se: Como ocuparam Angola os portugueses. Como pode Angola fazer parte integrante de Portugal? Já nos consultaram, a nós legítimos filhos de Angola? Será justo entrar alguém em casa de outrem e, oferecendo-lhe amizade e religião, vir 635 intitular-se dono da casa, afirmando que veio para ficar e de lá não sairá” ? É notório a distinção, entre angolanos e portugueses que se traduz na antinomia Angola /Portugal. Mas também encontramos categorias raciais, que remetem para processos de inclusão e exclusão como «Negros» e «africanos» em oposição aos «portugueses»636. É constatável, no discurso, uma proposta de ruptura, com a ordem colonial. Ideia de ruptura que tem o seu fundamento num passado de arbitrário exercido pelo Estado colonial, e que ainda continua no presente: “Basta! Já pagamos demasiado caro a miserável civilização que disseram trazer-nos. Já pagamos e continuamos a pagar com Sangue, Suor, Lágrimas, Cárcere, Deportações, Espancamentos, 637 Fome, Honra, Chacina e Solo Pátrio. Isto dura há 500 anos” . No discurso, independentista, é resgatada a memória da figura da rainha Ginga. Veicula-se assim uma filiação matriliniar e genealógica, do território angolano, reiterando uma etnogénese originária do grupo etnolinguístico Ambundo. O documento termina com as seguintes palavras de ordem. «Liberdade», «Fraternidade» e «Prosperidade»”638. As duas primeiras palavras remetem-nos para os ideais da revolução francesa de 1789. Estamos perante um cônstruo de nacionalismo influenciado pela modernidade europeia ocidental. Classificações que remetem para processos de inclusão e exclusão contidas no documento intitulado “Manifesto Africano” I. Inclusão Angola Negro Africano Exclusão Portugal Portugueses Brancos colonizadores Categoria reavaliada/valorizada: racial Negro 634 Note-se a noção de raça, apesar de o conceito não implicar um juízo qualificativo. Medina (2003: 283). 636 Medina (2003: 283). 637 Medina (2003: 283). 638 Medina (2003: 283). 635 148 2.8.2 Documento (17). Panfleto “Manifesto Africano”II. Provavelmente de 1 de Janeiro de 1959639 O discurso produzido, tem como referente a Conferência dos Povos Africanos que se tinha realizado em Accra, capital do Gana, em Dezembro de 1958. Trata-se portanto de um panfleto elaborado num contexto de pan-africanismo político. O espaço geográfico, veiculador de um sentimento de pertença, é o continente africano que se distingue dos colonialistas que, por sua vez, devem estar “fora de África”. No prosseguimento, do discurso, cita-se Kwane Nkrumah: “Queremos a libertação de toda a África. Os colonisadores aproveitaram-se da nossa divisão para ocuparem as nossas terras; vamos unir-nos agora para corrermos com os 640 colonisadores. Dentro dos próximos dez anos toda a África será livre! Este é o último aviso aos imperialistas” . Veiculada que está a distinção entre a África e os colonisadores/imperialistas, torna-se necessário definir quem são os africanos. Para tal, o discurso socorre-se de uma citação de Tom Mboya 641 , o então Presidente da Conferência: “Queremos a África a falar por si própria, pela boca dos seus filhos negros e não queremos os colonialistas a falarem 642 por ela” . No discurso salientam-se as decisões tomadas na conferência no que respeita à situação angolana, das quais podemos assinalar duas: “Prestar auxílio material ao povo da colónia de Angola na sua luta pela liberdade. Rejeitar a leviana tese portuguesa de que as colónias de África fazem parte integrante de Portugal da Europa”; “Recomendar o reconhecimento internacional imediato do Direito do Povo de Angola à sua 643 independência e auto-determinação” ; O manifesto, de circulação restrita, veicula um princípio independentista, para Angola, no quadro do continente africano e, apresenta também, uma definição de «Negros de Angola» que engloba «pretos e mestiços» que, por sua vez, se distinguem dos «colonizadores» (subentenda-se dos portugueses)644: “Negros de Angola (pretos e mestiços)! Entramos no ano decisivo para a nossa liberdade. Vamos aumentar a nossa união, os nossos esforços, a nossa luta para corrermos com os 645 colonizadores na nossa querida Angola” . No discurso, tal como no anterior, não deixa de se fazer alusão à «Mãe Rainha N’Jinga» mas, acrescenta a esta última, outra figura de referência do grupo etnolinguístico Ambundo, o 639 Segundo o MPLA (2008: 83) da autoria do MIA. Pacheco (1997: 110) considera o mesmo. Medina (2003: 284). Datamos o dia 1 de Janeiro devido a frase “hoje que começa um ano novo”. 641 Nacionalista Queniano assassinado em 1969. 642 Medina (2003: 284-285). 643 Medina (2003: 284). 644 Medina (2003: 284-285). 645 Medina (2003: 284). 640 149 «Grande Rei N´Gola Kiluanji». Cria-se assim uma ordem trinitária de concordância, que engloba um rei, uma rainha e um território, que dá sentido (mesmo que mitológico) a uma nação que se chama Angola. O panfleto tal como outros anteriores, termina com as palavras de ordem “Liberdade, Fraternidade e Prosperidade “646. Todavia, numa espécie de post scriptum, o discurso retoma a distinção entre a Europa e a África num princípio de inclusão/exclusão. São enunciados que apelam para uma temporalidade, quase centenária, de exercício da dominação colonial sobre o continente africano: “De 1884 a 1885 realizou-se a Conferência Africana de Berlim, concluo dos países europeus para partilharem a África entre si. Aludindo a esse facto histórico, proclamou (…) o jovem patriota do Kénia Tom M’Boya: «Visto que já lá vão mais de 72 anos desde que se concentraram em África as ganâncias das potências imperialistas, de Accra anunciamos que a essas mesmas potências deve ser dito clara, firme e definitivamente: - Fora de África!!!»” 647 . Classificações que remetem para processos de inclusão e exclusão contidas no documento intitulado ”Manifesto Africano ” II Inclusão África Angola Negros de Angola Pretos Mestiços Angolanos Negros Exclusão Europa Portugal Colonizadores Estrangeiros Colonialistas Categorias de identificação no seio dos angolanos: raciais Preto Mestiço Negro Categorias reavaliadas/valorizadas: raciais Preto Mestiço 2.8.3. Documento (18). Panfleto “ Manifesto Africano ”III. Provavelmente de fins de 1958 ou princípios de 1959648 Neste terceiro «Manifesto Africano» critica-se a presença portuguesa em Angola. Como tal, considera-se necessário que «Os Nativos Angolanos Devem Por Todos Os Meios Promover A 649 Desocupação Da Sua Terra Pelos Portugueses» 646 . A questão da autoria documento remete-nos mais uma vez para a UPA e o MINA. Medina (2003: 284-). 648 Quanto a nós, provavelmente do MIA. 647 150 Segue-se, no discurso, a apresentação dos motivos nefastos da presença portuguesa em Angola, nomeadamente: de ordem político-institucional - “a composição do Conselho Legislativo da colónia, sendo que 650 este último era composto por 24 europeus e 2 nativos” ; de ordem histórica, moral, material e instrutiva - “Após 500 anos do paternalismo português sobre Angola, os negros estão num nível de pobreza tal, de pobreza moral, pobreza material e pobreza 651 de instrução” ; Os enunciados do discurso são de reforço às críticas ao arbitrário colonial, nas suas múltiplas vertentes: na negação de uma história e uma cultura própria - “A Nossa Cultura, as nossas tradições 652 têm sido aniquiladas” ; Na imposição de um sistema classificatório - “Foram-Nos Impostas Classes (Indígenas E Assimilados) Para Mais Facilmente Nos Dominarem. Dividir Para Reinar»” 653 ; na negação do acesso ao capital escolar -“A Instrução Tem Nos Sido Recusada 654 Sistematicamente Sob Pretextos Absurdos” ; na discriminação quanto à inserção no mercado de trabalho - “Os Empregos Tem-Nos Sido Roubados, Retirados Os Poucos Que Nos Restavam Com O Fim De Nos Levarem Ao 655 Desespero” ; na espoliação fundiária: -“As Nossas Terras, As Nossas Riquezas Têm Sido Saqueadas”656; na negação da condição humana: -“Tiraram-Nos Tudo E Aproveitaram-Nos Ao Máximo Como Bestas De Carga ”657 ; A partir daqui o(s ) autor(es) apelam aos “Negros De Angola (pretos ou mestiços)” no sentido de lutarem pela independência. O que implica: a formação de uma organização 649 Medina (2003: 286). Medina (2003: 286). 651 Medina (2003: 286). 652 Medina (2003: 286). 653 Medina (2003: 286). 654 Medina (2003: 286). 655 Medina (2003: 286). 656 Medina (2003: 286). 657 Medina (2003: 286). 650 151 constituída por «Negros de Angola»658: “Negro de Angola organiza-te para a luta Forma o teu grupo – 659 quatro negros da tua inteira confiança – escolham o vosso chefe de grupo e paguem uma cota mensal” . Não podemos deixar de assinalar, no discurso, para além da crítica ao colonialismo no que concerne às condições materiais dos colonizados, um questionamento e negação das categorias indígena e assimilado. É também perfeitamente descortinável uma reavaliação da categoria negro, (que engloba pretos e mestiços) nomeadamente no que respeita à sua valorização660. Contudo há um aspecto curioso, constatável no discurso: a existência de “maus angolanos” e “péssimos africanos”661. A distinção dos negros relativamente aos “colonizadores portugueses” remete para a exclusão destes últimos. Encontramos também, no texto, um princípio geográfico de inclusão/exclusão aquando da distinção da «Angola Africana» de “portugueses europeus”662. O documento termina com a referência à “nossa Mãe Rainha NJinga” e com as palavras de ordem: “Liberdade, Fraternidade e Prosperidade”663. Classificações que remetem para processos de inclusão e exclusão contidas no terceiro documento intitulado “Manifesto Africano”III Inclusão África Nativos de Angola Negros de Angola Negros Mestiço Preto Angola Exclusão Europa Portugueses Portugal Portugueses europeus Colonizadores portugueses Categorias de identificação no seio dos angolanos: raciais e estatutárias Indígena Assimilado Preto Mestiço Categorias reavaliadas/valorizadas: raciais Negro Preto Mestiço Categorias reavaliadas/negadas: estatutárias e raciais Indígena Assimilado 658 Medina (2003: 287). Medina (2003: 287). 660 Medina (2003: 287). 661 Medina (2003: 287). Prenúncio de uma figura construída pelo campo politico: o traidor: “Cuidado com os vendilhões. Não duvides em aniquilar um traiçoeiro, um mau angolano, um péssimo africano”. 662 Medina (2003: 286) 663 O que nos leva a pensar na UPA e no MINA. 659 152 2.8.4. Documento (19). Panfleto “Aos africanos. O grito de luta pela liberdade”. Provavelmente de 1959664 O panfleto “Aos africanos” apela aos “Angolanos de consciência”, no sentido de se unirem de modo a tornarem a luta pela independência mais eficaz. Verifica-se no discurso produzido o uso dos exemplos do «eu», e do «nós» para dar mais ênfase a uma argumentação de espírito de grupo: “Angolanos de consciência (…) dispam o eu vistam o nós porque só quando assim pensarmos e não somente isto mas agimos com crueldade a nossa luta será 665 eficaz” . Argumentação reforçada pelos exemplos dos processos revolucionários em Cuba, Argélia, além do Congo Belga: “Só o nós triunfou, triunfa, em todas as frentes de libertação em todos os tempos. – Fidel Castro, o terror Cubano, não luta sozinho, é apoiado pela sua massa. Ferath Abbas, «o cabeça» Argelino, é também apoiado pela sua massa. Josepf Kasavubu, leader do movimento congolês, com quem temos ligação recebe o inteiro apoio do seu povo” 666 . A estratégia discursiva assenta na criação de um espírito de corpo uno e indivisível sem distinções de carácter regional no seio dos angolanos todavia, assenta igualmente, num princípio de inclusão/exclusão, entre pretos/brancos: “(…) ó Angolanos de consciência, lembrem-se que se nasceram em Luanda são como os pretos de Ganguelas, de Kissama, de Ambaca, de Catete, do Songo, do Kin’Zau, do Ambrizete, do Lucharães, dos Dembos e do irresistível reino do Congo. Ninguém vos convença o contrário e se algum branco bater-vos no ombro ou nas costas pretende-vos convencer que sois diferentes a nós, somente para 667 haver desintendimento entre nós” . Contudo, queremos salientar, na produção discursiva, um questionamento e reavaliação das categorias raciais e estatutárias indígenas e assimilados. Significa isto que, a luta contra a dominação colonial é também uma luta contra o arbitrário classificatório colonial: “Mas reparem, irmãos, essa designação de indígena empregam-na simplesmente como arma número um, para nos enfraquecer, pois se nós que lemos e escrevemos graças ao nosso esforço, chamam-nos assimilados (termo nojento que deve ser prontamente repudiado porque não corresponde a verdade porquanto vemos brancos vindos da terra deles em estado de completa selvajaria) com esse nome de assimilados querem que vós vos afasteis de nós e nós a vós, para facilmente dominarem-nos, (negros de Ngola) porque se vós vos afasteis de nós e nós de vós a nossa força v…(ilegível) fica dividida e por conseguinte enfraquecida, e quem só beneficia disso são eles que nos manobram como querem e lhes apetecem. O termo indígena quer dizer indígena quer dizer unicamente isto: Natural de uma 664 O MPLA (2008: 430) atribui a autoria do panfleto ao MIA. Contudo Rocha I (2002: 165) atribui à autoria do panfleto a UPA. Pacheco (1997: 83) atribui a autoria ao MINA. 665 MPLA (2008: 430). 666 MPLA (2008: 430). 667 MPLA (2008: 430). 153 terra. Portanto somos indígenas de Angola (preto e mulato) assim como eles indígenas de Portugal. Vós, irmãos que não sabeis ler nem escrever nunca vos julgueis diferentes dos que lêem, ainda que esses sejam Governadores, Presidentes, Administradores, etc. embora que vaidosos há mas…” 668 . Estamos perante um princípio de inclusão do indígena de Angola (pretos e mulatos) que exclui o “branco selvagem”. A categoria indígena é reavaliada e associada à categoria Angolano (preto e mulato) deixando de ser uma categoria estatutária, mas mantendo, contudo, a sua propriedade racial na medida em que engloba todos os angolanos classificados de pretos e mestiços. Há, portanto, um princípio nacionalidade que interrelaciona o jus solis, o jus sanguinis e o jus colorem. O panfleto, dirigido também aos angolanos que estão presos, não deixa de sublinhar uma longa história de arbitrário colonial no que respeita ao modo como se deu a conquista portuguesa de África, nomeadamente, o facto de os portugueses terem praticado uma política de dividir para reinar669: “Não estamos adormecidos na contemplação do passado, esse passado que tem duas fases: a) do cuanhama e cuamato com uma figura de destaque que deve ser mais do que nunca lembrada neste momento; não fora a traiçoeira, a sempre traiçoeira Táctica portuguesa que assim conseguira o que já se considerava invencível – Gungunhana b) em, que com as suas falsas ideias de comerciar os nossos antepassados, franquear as portas ao 670 invasor – fase que deve ser profundamente esquecida – e a prol de nós devemos as misérias que atravessamos” . A partir daqui, o(s) «panfletários» apelam aos «Angolanos de consciência» no sentido de lutarem até a «Independência Total». Um apelo, que tem por referência os outros países africanos nomeadamente: Congo Belga, Argélia, Niassalandia. Ao sublinhar que existe uma conjuntura favorável desde a Segunda Guerra Mundial para uma insurreição que só terminará com as independências: ” (…) A insurreição, começada depois da Segunda Guerra Mundial é a insurreição 671 definitiva e que essa só terá fim quando os povos de cor conseguirem a independência” . São assim refutadas as teses do então governador-geral Sá Viana Rebelo defensor de uma permanência, dos portugueses em Angola, por tempo indefinido de672. O discurso recorda o lema da independência do Brasil em 1822, «Independência Ou Morte»673. 668 MPLA (2008: 430). O sublinhado é nosso. 670 MPLA (2008: 430-432). 671 MPLA (2008: 431). 672 Segundo a qual “aqui estamos há quinhentos anos, sentimo-nos bem para mais quinhentos anos aqui permaneceremos”. MPLA (2008: 431). 673 MPLA (2008: 431). 669 154 Na produção discursiva não deixa de se salientar que o regime sul-africano não será um factor impeditivo do processo independentista: “ (….) Nem mesmo o «igniminioso» sistema Afrikander 674 poderá nos constranger à aceitação pacífica dos seus conceitos de aristocracia racial por Divino Direito” . Os autores não se furtam a apontar o uso da doutrina católica como instrumento de exercício da dominação colonial: “Sabe-se que Portugal e Espanha teem outra arma: a doutrina católica, para dominar o moral dos africanos” 675 . A estratégia discursiva culmina com uma tripla exclusão. A primeira no seio dos angolanos, a figura do traidor. E, as duas seguintes, a saber, branco e Portugal, ou seja, geográfico e racial: “Não te assustes, irmão, por causa de muitos de nós vendidos ao homem branco, para prejudicar-nos. A Providência já está pronta para dar-lhes o salário que merecem. É termos consciência do nosso 676 valor como donos de Angola e nunca aceitarmos que isto é um prolongamento de Portugal, Nunca!.. . Classificações que remetem para processos de inclusão e exclusão contidas no documento intitulado “Aos Africanos. O grito da luta pela liberdade” Inclusão* Nós Indígenas de Angola Negros de Ngola Angola Africanos Exclusão Eles Indígenas de Portugal Branco português Portugal Brancos África Preto Mulato Angolanos Colonizados Homem Negro Colonialista Homem Branco *Incluindo categorias regionais677. Categorias de identificação no seio dos angolanos: regionais Categorias regionais 678 Categorias de identificação no seio dos angolanos: raciais e estatutárias Assimilado Indígena Preto Mulato Categorias reavaliadas/valorizadas: raciais e estatutárias Negro Indígena Preto Mulato 674 MPLA (2008: 431). O que reforça a nossa constatação de que a questão dos classificados de brancos em Angola merece ser pensada tendo em conta a questão dos sistema do Apartheid na África do Sul. 675 MPLA (2008: 431). Todavia nunca pondo em causa o universalismo cristão. Deus ajuda os corajosos – os tímidos terão sempre sofrimentos aborrecidos. A terra pertenceu sempre aos fortes de espírito”. Idem (2008:431). 676 MPLA (2008: 431). 677 Luanda,Ganguelas, Kissama, Ambaca, Catete, Songo, Kin ‘Zau, Ambrizete, Lucharões, Dembos e Reino do Congo. 678 Luanda,Ganguelas, Kissama, Ambaca, Catete, Songo, Kin ‘Zau, Ambrizete, Lucharões, Dembos e Reino do Congo. 155 Categoria reavaliada/negada: estatutária e racial Assimilado 2.8.5 Documento (20). Panfleto “O Momento Aflito Que Atravessamos”. Provavelmente de 1957 ou 1958679 No seu início, a prática discursiva caracteriza-se por questionamento da ideia de superioridade da «civilização ocidental» em contraponto com a falta de capacidade de aprendizagem e assimilação dos “negros africanos”. No documento, recorda-se que as dificuldades de assimilação das “noções ensinadas na escola” se devem sobretudo ao facto de estas últimas serem ministradas numa língua diferente (subentenda-se uma língua europeia). Contudo, no discurso sublinha-se a espantosa capacidade de adaptação dos “negros levados para as Américas” em comparação com os germanos: “Mas ainda assim, é espantosa a adaptação rápida dos negros levados para as Américas, à civilização Ocidental, pois esses em cerca de 500 anos revelam uma assimilação completa e perfeita dessa mesma civilização; isto é espantoso se considerarmos que os germanos (povo europeu) que se pôs em contacto com a civilização Greco-Romana (resultante da fusão entre civilização grega e Romana) na 680 segunda metade do século V, só no século XVI manifestou os frutos deste contacto” . O argumento de negação da noção de superioridade europeia é reforçado com o papel do Egipto – considerado território africano – como sujeito «da história universal»: “centro mais importante das civilizações da Antiguidade e que influenciou as civilizações Grega e Romana”. Esta constatação é consubstanciada pelo argumento de autoridade, dos estudos de Cheik-AntaDiop, que alegadamente tinham provado que a civilização egípcia fora genuinamente negra. No discurso recorda-se igualmente o exemplo de outras civilizações brilhantes do continente africano, exemplificadas pelo Benin, Afra, Bacia do Congo cujo processo evolutivo fora interrompido quando: “a Europa a afastou do caminho do progresso independente, para satisfazer os seus 681 interesses comerciais 679 . São esses mesmos Interesses que hoje justificam a teimosia do Europeu em chamar e Alegadamente da autoria da UPA. Rocha I (2002: 165). Como o documento não faz referência ainda as independências nos outros países africanos, o sublinhar da mudança de colónia para províncias ultramarinas, a questão do BI, levam-nos a situar o documento entre 1957 e 1958. O que nos leva a considerar poder não ser da autoria da UPA. 680 Rocha I (2002: 453). 681 Rocha I (2002: 453). 156 considerar seu um território que tem habitantes nativos ou indígenas” 682 . Está assim fundamentado um princípio de inclusão/exclusão geográfica na relação entre o continente europeu e o continente africano. Esta relação dicotómica é reforçada pela categoria negro: “Todos sabem que a África é um 683 continente negro” (…) . Os «panfletários» criticam o arbitrário colonial, nomeadamente no que concerne à discriminação quanto ao acesso ao capital cultural na sua variante escolar, considerada fonte do atraso dos africanos: “Somos bastante atrasados só existem escolas onde a população branca justifica; para essas escolas só entram os filhos e como quem faz um favor os filhos dos assimilados, sendo interdita a entrada dos filhos dos não assimilados e, no entanto esses são os que têm os salários mais baixos e pagam os impostas mais 684 elevados” . Note-se como é percepcionada uma divisão hierárquica entre os classificados de brancos, assimilados e não assimilados. No discurso, contam-se os efeitos nefastos das classificações – indígena e assimilado – impostas pelo Estado colonial, nomeadamente no que concerne ao acesso dos bens de reconhecimento social (salários, escolaridade, propriedade), mas salienta-se, igualmente, como tais efeitos de divisão no seio dos angolanos se traduziram na violência física exercida por parte de angolanos sobre os seus compatriotas: “Criaram os grupos Assimilados e Indígenas apenas para nos dividir e sermos mais facilmente dominados. Hoje o «Assimilado» desconfia-se do seu irmão não «assimilado» e este desconfia-se daquele. A divisão e o ódio entre os próprios africanos são tão grandes que o Cipaio mesmo quando não o mandam, já sabe que tem de fazer rusgas, espancar nos seus irmãos, e levar os únicos tostões que 685 encontra na sua algibeira” . O(s) autores do comunicado não deixam, igualmente, de sublinhar que os efeitos nefastos da distinção entre assimilados e indígenas se estendem, em particular, à dificuldade em adquirir o Bilhete de Identidade. Sendo que o mesmo, depois de adquirido, poder ser revogado: “Qualquer de nós sabe com tanta dificuldade se obtém o Bilhete de Identidade e, mesmo depois disso, o que o possui pode ficar sem ele, se o Snr. Administrador achar que ele não deve ter” 686 . No nosso entender, os discursos, pelo modo como são questionadas estas classificações, demonstram que estas tiveram o efeito de dividir os angolanos. Divisão, que torna premonitória uma luta de classificações no seio do campo político angolano em torno de categorias como indígena e assimilado. 682 Rocha I (2002: 453). Rocha I (2002: 453). 684 Rocha I (2002: 453). 685 Rocha I (2002: 454). 686 Rocha I (2002: 454). 683 157 No texto insiste-se nas denúncias do arbitrário colonial, nomeadamente, nos bairros, nos campos e, nas relações comerciais com os europeus: “Se precisar de uma certa quantia, o único que lhe pode valer é o comerciante europeu, mas também já sabe que tem de pagar o dobro e muitas vezes o triplo; este 687 dobro ou triplo não é recebido em dinheiro mas em géneros transformando-se assim em quádruplo ou mais” . Os autor(es) apelam para um forte sentimento de pertença nacional e racial: “Todo aquele que seja angolano não só de nome mas também de coração, não deve ficar indiferente, porque é seu dever procurar ajudar a solucionar e a banir esses males, Custe O Que Custar. A Bem do Povo Angolano E Da Raça Negra” 688 . Classificações que remetem para processos de inclusão e exclusão contidas no documento “O momento aflito que atravessamos”. Inclusão Negros África Africano Raça Negra Povo Angolano Exclusão Brancos Europa Europeu População branca Colonialistas portugueses Categorias de identificação no seio dos angolanos: estatutárias e raciais Indígena Assimilado Categorias reavaliadas/valorizadas: raciais e estatutárias Negro Indígena Categoria reavaliada/negada: racial e estatutária Assimilado 2.8.6 Documento (21). Panfleto “Contra as prepotências Governamentais e imperialistas. Reforcemos a nossa unidade na luta pela liberdade”. Datado de 1959689 No discurso retrata-se um cenário dualista da sociedade colonial de ponto de vista racial, a saber, negro/brancos. Realça-se o arbitrário colonial, sobretudo na sua componente racial, nomeadamente no que respeita à violência efectiva exercida pelas autoridades coloniais: “A polícia à noite continuará a fazer o que quer, cometendo quantas barbaridades e abusos que lhe apetecer. A nós os negros (e só a nós), bate, prende, rapa o cabelo, revista as algibeiras, chama nomes, enquanto os brancos circulam livremente à qualquer hora (ainda que sejam ladrões e assassinos) armados de pistola, fazendo barulho nas ruas, 687 Rocha I (2002: 454). Rocha I (2002: 454). 689 Segundo o MPLA (2008: 83) é da autoria do MIA. 688 158 insultando os negros com quem se cruzam”690. “Eles Têm Uma Organização Diabólica (O Estado Português 691 Colonialista” . O arbitrário colonial/racial, no respeitante à condição económica e laboral, não deixa de ser apontado: “No panorama económico o negro não pode ganhar mais de 2000$00 e os que ultrapassam tal verba são pessoas que eles precisam exibir para propaganda”692. (…) Nos empregos, se aparece um candidato negro e outro branco, ao primeiro fazem inúmeras exigências, enquanto que ao outro admitem imediatamente bastando saber 693 ler e escrever” . A denúncia do arbitrário colonial é interrompida para apelar à união na luta contra o mesmo: ”Todos Temos Que Nos Unir porque a luta é de Todos694” No discurso, recorda-se uma conjuntura internacional favorável a tal opção: “Não Estamos Sozinhos!!! A união mundial dos Povos contra o 695 Imperialismo, libertou já mais de metade da população do Globo, incluindo Povos da Ásia e da causa Africana!! Na denúncia do arbitrário colonial/racial é salientada a dificuldade no acesso à escolaridade: “Nas escolas, os filhos dos negros só podem ser matriculados se os pais tiverem Bilhete de 696 Identidade. Porquê? Se os brancos, mesmo analfabetos, podem matricular os filhos em qualquer parte”? Considera-se que o arbitrário colonial é produto de uma longa história de dominação: “Irmãos! É preciso agir para aqueles nossos irmãos serem postos em liberdade e desmascarar as prepotências do 697 Estado Colonial que domina Angola Há 400 anos!!” Mais uma vez, a denúncia do arbitrário colonial é interrompida para lembrar uma conjuntura internacional favorável aos ideais independentistas: “Quantas mais vítimas eles fazem, mais se desacreditam perante a opinião pública internacional e quanto maior é o descrédito deles mais se aproxima a 698 nossa libertação que será a definitiva e verdadeira Restauração de Angola” . O texto finda com um apelo de luta contra a subjugação colonial inspirado no nacionalista Amílcar Barca699. “Lutem Até Alcançarem A Liberdade”. 690 Medina (2003: 288). Medina (2003: 288). 692 Medina (2003: 288). 693 Medina (2003: 288). 694 Medina (2003: 288). 695 Medina (2003: 288). 696 Medina (2003: 288). 697 Medina (2003: 288). 698 Medina (2003: 288). 699 Nacionalista Angolano, natural de Benguela referido em muitos panfletos. 691 159 Classificações que remetem para processos de inclusão e exclusão no documento intitulado “Contra as prepotências Governamentais e imperialistas. Reforcemos a nossa unidade na luta pela liberdade” Inclusão Nós os negros Negros Angola África Africanos de Angola Exclusão Eles Brancos Estado português colonialista Imperialismo Brancos colonialistas Categoria reavaliada/valorizada: racial Negro A extensa caracterização dos discursos conduziu a elaboração do conjunto dos quadros acima apresentados, a partir dos quais é legítimo considerar que em todos os discursos se veicula uma identidade nacional e continental porque: em todos os discursos se remete para processos de inclusão e exclusão; em todos os discursos se assume a condição de colonizado; em todos os discursos se assume a condição de angolano; em todos os discursos se assume uma africanidade; Podemos considerar que todos os discursos remetem para processos de inclusão e exclusão tendo em conta os seguintes princípio antinómicos: Inclusão Angola Angolanos Africanos África Colonizados Exclusão Portugal Portugueses Europeus Europa Colonizadores Outro aspecto comum a todos os discursos é o facto veicular-se um sentimento de pertença à uma raça. São discursos que remetem para processos de identificação, inclusão ou exclusão. Sendo que a categoria negro/preto é valorizada em todos os discursos. Em nenhum discurso a categoria mestiço remete para processos de exclusão. Contudo os quadros possibilitam descortinar diferenças nos discursos, sobretudo quando se trata de definir quem é angolano ou africano. 160 A maioria dos discursos veicula uma identidade nacional e continental assente numa identidade racial. Sendo que a categoria branco remete para processos de exclusão. Na maioria dos panfletos a categoria branco está associada aos portugueses, europeus e colonizadores. O que significa que, na sua maioria, os discursos remetem para processos de inclusão e exclusão tendo em conta os seguintes princípio antinómicos: Inclusão Angola Angolanos Africanos África Colonizados Negros (pretos e mestiços) Exclusão Portugal Portugueses Europeus Europa Colonizadores Brancos Todavia, encontramos pelo menos dois panfletos que, embora assentes na noção de raça, remetem para processos de inclusão da categoria branco associando esta última aos angolanos. O que significa que existem discursos que remetem para processos de inclusão e exclusão tendo em conta os seguintes princípio antinómicos: Inclusão Angola Angolanos África Colonizados Negros (pretos mestiços) Europa Colonizadores Colonizadores Africanos Exclusão Portugal Portugueses Europeus e Brancos Angolanos Brancos Colonizadores No que respeita aos processos de identificação no seio dos angolanos, podemos assinalar o uso das seguintes categorias raciais e estatutárias: civilizado ou assimilado; indígena; preto; mestiço; branco; que se podem traduzir nos seguintes princípios dicotómicos: Branco/Negro Branco/Mestiço Preto/Mestiço Indígena/assimilado Indígena/civilizado* *Neste caso trata-se de uma distinção valorativa na medida em que os indígenas são considerados «atrazados» Encontramos igualmente processos de identificação regionais e territoriais no seio dos angolanos que se podem traduzir nas seguintes dicotomias: Angola/Cabinda Reino do Congo/Luanda Reino do Congo/Angola Entre outras regiões 161 Quanto à reavaliação das categorias raciais e estatutárias, muito embora a categoria negro seja valorizada em todos os discursos, encontramos algumas diferenças: na maioria dos discursos a categoria mestiço é valorizada quando inserida na categoria negro; a categoria mulato quando inserida na categoria negro é valorizada. Todavia, é igualmente negada; a categoria assimilado é negada; a categoria indígena tanto pode ser negada como valorizada; a categoria branco é valorizada pelo menos em dois panfletos; Podemos resumir os processos de reavaliação com o seguinte quadro: Valorizado Negro Negado Assimilado Mestiço Preto Branco Indígena Mulato Indígena Mulato Em síntese: A partir dos vinte e um panfletos caracterizados, podemos tecer as seguintes considerações: é possível vislumbrar, em todos os discursos, uma reivindicação territorial no sentido de se pretender expulsar os governantes estrangeiros e substituir o velho território colonial por um novo território nacional. Nesta dinâmica, a raça adquire um papel fundamental sobretudo quando se trata de definir quem é o colonizador ou o colonizado; quem é o português ou o angolano; quem é o europeu ou o africano; 162 o uso de categorias raciais de inclusão como «negro», «preto» ou «mestiço», remete para fortes processos de exclusão, nomeadamente, quando se trata de excluir aqueles que não eram considerados angolanos ou africanos; esta ideia de distintas raças (população negra /população branca) estava associada a distintos espaços geográficos: Angola/África versus Portugal/Europa; esta construção de um sentimento de pertença, a um território e a uma raça – esta ideia racialista de nação – era reforçada pelo condição de dominado/colonizado em oposição ao dominador/colonizador; os discursos panfletários não podem ser dissociados de uma longa história de tensões raciais entre africanos e portugueses. Tensões, que se agudizaram com o incremento do afluxo de imigrantes portugueses em Angola, na década de cinquenta; a noção de raça é também perceptível, mesmo quando se trata apenas de distinguir grupos somáticos no seio dos angolanos. Daí as expressões, como «preto» ou «mestiço, «nossa raça», «sem distinções de cores, e sem distinção de raças». Este processo de identificação, no seio dos angolanos, estendia-se ao uso de classificações estatutárias/raciais através das categorias «indígena» e «assimilado»/«civilizado»; estamos em crer que, nos discursos, esta frequência no uso de classificações legitimadas pela jurisprudência colonial assentes em propriedades rácicas/características somáticas demonstra uma forte incorporação das mesmas no seio da sociedade angolana, nomeadamente no que diz respeito a distinções entre pretos e mestiços ou entre assimilados/civilizados indígenas. São, portanto, distinções, que remetem para processos de inclusão e exclusão no seio dos colonizados, que nem os discursos unitários contidos nos panfletos conseguem dissimular700: “Sim de certa forma tem razão… Teve impacto, na realidade, por exemplo: o negro não se identificava com o mestiço; o mestiço também não se identificava com o negro. Praticamente no período colonial, o mestiço era considerado o elemento mais próximo do negro mas o próprio mestiço aproximava-se mais do branco, que era normalmente dos pais. Naquele momento, quando você se encontrava com um mestiço em 99% o pai era português e a mãe era angolana, não era o 700 As contradições no seio da Liga nacional Angolana confirmam tais processos: “…Os incidentes que se deram ultimamente na Liga entre uma quadrilha de mulatos de mistura com alguns pretos inconscientes e imbecis que conseguiram arrebanhar, de um lado, os elementos da Direcção e os seus adeptos como eu e outros de outro lado, é a revelação da rivalidade de raças e terras que sempre reinou no espírito da mulatada de Luanda. Pacheco (1997: 80). Não podemos deixar de notar que às contradições raciais se juntavam às regionais. Quanto as contradições entre indígenas e assimilados ver supra documento 20, “O Momento Aflito Que Atravessamos”. 163 contrário. No passado, no emprego só havia promoção do elemento branco e do mestiço e o negro só 701 podia entrar se se tornasse assimilado” ; esta frequência, no apelo a classificações assentes em propriedades rácicas características somáticas, quer seja para excluir os classificados de branco ou colonizadores, quer seja para distinções no seio dos colonizados leva-nos a considerar que categorias como preto, mestiço ou até assimilado já foram (re)convertidas em crenças mobilizadoras da acção política tanto na luta anti-colonial como - embora ainda de um modo pouco explícito - na luta pela hegemonia de um espaço que cada vez mais se vai estruturando: o espaço nacionalista angolano; esta amnésia da génese (consciente ou inconsciente) do arbitrário – classificatório – da política de classificação colonial abre a possibilidade para formas de lutas de classificação no seio do espaço nacionalista angolano, em torno de taxinomias que remetem para fortes processos de inclusão e exclusão no seio dos nacionalistas. A partir de então, categorias como preto, mestiço, assimilado transformam-se em classificações políticas. Como tal, tornam-se politicamente valorizadas, dado o seu efeito mobilizador702. E, sendo assim, politicamente capitalizáveis. Trata-se agora de saber se a eficácia mobilizadora, destas classificações, se pode traduzir, em determinadas circunstâncias, numa espécie de capital político; Capítulo V. Crises, práticas políticas e lutas de classificação. A configuração do campo político angolano. (1960-1964) 701 Entrevista concedida por Carlinho Zassala, professor universitário membro de uma corrente interna da FNLA em 09/2007. 702 Efeito mobilizador testado, e, porventura com algum sucesso, aquando da rejeição dos classificados de braços/colonizadores. 164 1. Considerações acerca da nossa abordagem O início da década de sessenta é assinalado pela luta armada contra a dominação colonial portuguesa, protagonizada por duas organizações nacionalistas: MPLA - Movimento Popular de Libertação de Angola e a FNLA - Frente Nacional de Libertação de Angola. O que significa que a luta anti-colonial foi um factor decisivo para a configuração e estruturação do campo político angolano. Todavia, o campo político angolano não se estrutura apenas tendo em conta a luta anticolonial. Estrutura-se e configura-se igualmente através da relação competição/conflito, entre o MPLA e a FNLA, nomeadamente na luta pela hegemonia no/do respectivo espaço nacionalista angolano. Esta disputa, pela hegemonia do espaço nacionalista angolano, seria por sua vez influenciada pelo contexto sub-regional, a saber, o Congo Leopoldville e o Congo Brazzaville703. Estes dois países, que limitam Angola a norte, iriam contribuir para que as acções políticas destas duas organizações se traduzissem numa configuração bipolar do espaço nacionalista angolano704. Esta configuração bipolar, devedora da rivalidade entre as duas organizações nacionalistas armadas, torna o campo político angolano um espaço de crise para onde convergem uma série de factores: de ordem militar (teatro de luta reduzido), de ordem económica (não era assegurada a reprodução da vida material dos militantes), de ordem política (não havia consenso relativamente à ocupação de posições - distribuição de lugares - tendo em conta a institucionalização do capital político adquirido) e simbólico-ideológico (princípios de classificação que eram objecto de questionamento e de luta política, nomeadamente as classificações assentes em propriedades rácicas características somáticas). Ora, convém ainda salientar que, no seu percurso de legitimidade, cada uma destas duas organizações políticomilitares é igualmente atravessada por sucessivas crises internas. Crises em que também convergiram factores militares, económicos, políticos e simbólico-ideológicos. Tendo em conta os nossos objectivos heurísticos, daremos saliência aos processos de institucionalização do capital político em articulação com princípios de classificação que são 703 O Congo Leopodville ou República do Congo corresponde à actual República Democrática do Congo. A designação na época mais utilizada é Congo Leopoldville ou Congo Leo. Optámos por manter a nomenclatura da época. O mesmo critério se aplica à outra República do Congo que denominaremos de Congo Brazzaville. 704 Note-se que os dois países, recém independentes, vivem igualmente uma conjuntura de crise. 165 objecto de questionamento e de luta política, sobretudo aqueles que dizem respeito às classificações assentes em propriedades rácicas/características somáticas. Neste caso, estas últimas estão sujeitas a serem percepcionadas como recurso político, nomeadamente nos momentos de institucionalização do capital político. Antes porém, e a fim de possibilitar uma maior clarificação da nossa abordagem, apresentamos desde já algumas considerações acerca da noção de capital político, tendo em conta as características do campo político angolano. “O capital político é uma forma de capital simbólico, «crédito» firmado na crença e no reconhecimento ou, mais precisamente nas inúmeras operações de crédito pelas quais os agentes conferem a uma pessoa – ou a um 705 objecto – os próprios poderes que eles lhe reconhecem” . Significa isto que a capacidade de mobilização está profundamente relacionada com a posse de capital político. Bourdieu considera que existem duas espécies de capital político: o capital político a título pessoal e o capital político por delegação706. Estas duas espécies de capital político estão obviamente, não é demais repeti-lo, relacionadas com a capacidade de mobilização do maior número de indivíduos. E, como tal, podem combinar-se. Todavia, o capital político a título pessoal está ligado ao indivíduo. Este divide-se em dois tipos: o capital pessoal de notoriedade e o capital pessoal profético ou heróico. O primeiro: “é frequentemente produto da reconversão de um capital de notoriedade acumulado em outros domínios e, em particular, em profissões que, como as profissões liberais, permitem tempo livre e supõem um certo capital cultural ou como no caso dos advogados, um domínio profissional da eloquência. O capital de notoriedade é produto duma acumulação lenta e contínua, a qual leva em geral toda uma vida”707. O capital político a título pessoal “profético ou heróico” é: “produto de uma acção inaugural, realizada em situação de crise, no vazio e no silêncio deixados pelas instituições e os aparelhos: acção profética de doação de sentido, que fundamenta e se legitima ela própria, retrospectivamente, pela confirmação conferida pelo seu próprio sucesso à linguagem de crise e à acumulação inicial de força de mobilização que ele realizou”708. Por sua vez: “Ao contrário do capital pessoal que desaparece com a pessoa do seu portador (embora possa originar querelas de herança) o capital delegado da autoridade política é (…) produto da transferência limitada e provisória (apesar de renovável, por vezes vitaliciamente) de um capital detido e controlado pela instituição e só 705 Bourdieu (1989: 187-188). Bourdieu (1989: 190-194); Bourdieu (2000:16-17). 707 Bourdieu (1989: 191). 708 Bourdieu (1989: 191). 706 166 por ela: é o partido que, por meio da acção dos seus quadros e dos seus militantes, acumulou no decurso da história um capital simbólico de «reconhecimento» e de «fidelidade» e que a si mesmo se dotou, pela luta política e para ela, de uma organização permanente de membros permanentes capazes de mobilizar os militantes, os aderentes e os simpatizantes e de organizar o trabalho de propaganda necessário à obtenção dos votos e, por este meio, dos postos que permitem que se mantenham duradoiramente os membros permanentes. (…) Este aparelho de mobilização assenta ao mesmo tempo em estruturas objectivas, como a burocracia da organização propriamente dita, os postos que ela oferece, com todas as vantagens correlativas, nela própria”. Mas, assenta igualmente: “em atitudes, quer se trate da fidelidade ao partido, quer se trate dos princípios de incorporação de di-visão do mundo social que os dirigentes, os membros permanentes ou os militantes põem em prática no dia-a-dia e na sua acção propriamente política”709. O mesmo autor sublinha que: “A aquisição de um capital delegado obedece a uma investidura (acto propriamente mágico de instituição pelo qual o partido consagra oficialmente o candidato oficial a uma eleição e que marca a transmissão de um capital político). (…). A investidura: não pode ser senão a contrapartida de um longo investimento de tempo, de trabalho, de dedicação, de devoção à instituição. (…). Em resumo: a instituição investe 710 aqueles que investiram na instituição” . “A delegação do capital político pressupõe a objectivação desta espécie de capital em instituições permanentes, a sua materialização em máquinas políticas, em postos e instrumentos de mobilização e a sua reprodução contínua por mecanismos e estratégias. (…). Com efeito, quanto mais o capital político se institucionaliza em forma de postos a tomar, maiores são as vantagens em entrar no aparelho, ao contrário do que se passa nas fases iniciais ou nos tempos de crise – em 711 período revolucionário – em que os riscos são grandes e as vantagens reduzidas” . Convém, contudo, salientar que o campo político angolano está numa fase inicial e iniciática de institucionalização de aparelhos e de criação de mecanismos de delegação política sendo igualmente atravessado por sucessivas crises. Ou seja, as vantagens em entrar no aparelho ainda são reduzidas e os riscos de entrar no mesmo são maiores. Com efeito, a organização política ainda não adquiriu “um capital político acumulado no decurso das lutas passadas”712. A instituição ainda não tem força para ser reconhecida. Para suplantar este constrangimento o grupo político instituído necessita de indivíduos possuidores de um capital, qualquer que seja, desde que tenha a capacidade de mobilizar o maior número de militantes/militares e aderentes a causa. Com efeito, por estar ainda numa fase inicial 709 Bourdieu (1989 :191-192). Bourdieu (1989: 194-195). 711 Bourdieu (1989: 194-195). 712 Bourdieu (1989:190). Sobretudo, porque não possui ainda este factor fundamental de legitimidade e autoridade do grupo político que é o capital militar. E, tendo em conta o contexto de luta anti colonial, o capital militar é inerente à organização política. 710 167 e iniciática, o campo político é um mercado aberto, propício à entrada de outras formas de recursos, desde que possibilitem a mobilização do maior número e o reforço das posições no emergente campo político angolano713. É neste sentido que todo o capital adquirido no mundo social, adquirido fora do campo político, é passível de ser reconvertido em capital político desde que beneficie o grupo político constituído e instituído714. Tudo o que é politicamente mobilizável é capitalizável politicamente. Esta máxima aplica-se na luta anti-colonial715, na luta pela hegemonia do espaço nacionalista angolano (nomeadamente entre o MPLA e UPA/FNLA) e na luta pelo controlo da direcção em cada organização política nacionalista (tanto no seio do MPLA como no seio da UPA/FNLA). Nesta fase inicial e iniciática de institucionalização do grupo constituído – em contextos de crise – as múltiplas formas de capitais confundem-se. Assim, por exemplo, o capital político a título pessoal pode confundir-se com o capital de autoridade do grupo político. Daí que muitas vezes a investidura, ou seja, o acto de delegação do capital político, não seja controlado pelo grupo. Aqui não se aplica o lema de: “a instituição investe aqueles que investiram na instituição”, mas sim, a instituição investe aquele que investe na instituição para que a instituição tenha as condições de investir naqueles que investiram na instituição; o que investe na instituição investe igualmente a instituição. O capital político a título pessoal adquire, assim, um papel fundamental no processo de reconhecimento do grupo político. Sendo assim, as competências para o exercício da política não são determinadas pelo grupo. Tais direitos decorrem da trajectória do indivíduo, da origem social, do capital adquirido, nomeadamente do capital social (e de duas das suas formas específicas na sociedade angolana: capital sócio-rácico e etnolinguístico), do capital cultural (com particular incidência para o capital escolar e de participação em movimentos culturais associativos). Podemos acrescentar um capital político de notoriedade adquirido no quadro da repressão colonial (por exemplo o currículo prisional). Estes capitais tornam-se assim passíveis de serem convertidos em capital político, nomeadamente em capital político delegado. Mas, este 713 Como tal, vive-se ainda uma acumulação primitiva de capital político. Este processo de acumulação primitiva de capital político estende-se tanto aos postos dentro da organização política como aos indivíduos ligados a esses postos. 714 Daí o recurso a determinadas categorias como: a etnia, a cultura, a raça, e, por vezes até a religião. 715 Como pudemos constatar no capítulo anterior. 168 último é um capital não controlado pelo grupo e sim pelo indivíduo716. Feito este esclarecimento podemos prosseguir com a nossa abordagem. Será, portanto, neste quadro de crise e de fase inicial e iniciática de institucionalização do grupo constituído e como tal de institucionalização do capital político, que determinadas categorias raciais, provenientes do mundo social, serão percepcionadas como recursos políticos relevantes, sendo por isso objecto de lutas pela sua apropriação, abrindo assim a possibilidade de serem reconvertidas em capital político717. Sendo assim, as classificações assentes em propriedades rácicas/características somáticas tornam-se um exemplo de como categorias oriundas do mundo social colonial podem ser erigidos em princípios de acção política718. Podemos então enfatizar o nosso propósito quanto ao presente capítulo. Compreender o modo como o campo político se apropria: “de uma «lógica de dominação exercida em nome de um princípio simbólico conhecido e reconhecido pelo dominante e dominado, (…) uma propriedade distintiva cujo aspecto simbolicamente mais eficiente é essa propriedade corporal perfeitamente arbitrária e não predictiva que é a 719 cor da pele” . Não sendo nossa intenção fazer a história do movimento nacionalista angolano, a abordagem terá em conta o percurso de legitimação das duas organizações político-militares: MPLA e UPA/FNLA. Começaremos por destacar o processo de delegação política em cada uma delas. Processo que, quanto a nós, marca o início da configuração e estruturação do espaço nacionalista angolano funcionando como campo político720. Daremos igualmente saliência aos 716 Quanto a nós, o grupo limita-se a gerir esse capital de modo a garantir a existência e a reprodução do grupo instituído. Daí que as lutas políticas no seio de uma organização possam adquirir características de confronto entre duas espécies de capital político: o capital a título pessoal e o capital político delegado. Mas este confronto é também visível aquando da oposição entre dois grupos políticos distintos. O exemplo mais plausível é o confronto entre o MPLA e a UPA/FNLA. Esta rivalidade era percepcionada como uma luta entre Agostinho Neto e Holden Roberto, líder da UPA/FNLA. 717 Convém recordar que no espaço colonial funcionavam como um capital sócio-rácico ou seja, possuíam um valor no mercado de produção e circulação dos bens de reconhecimento social. Passam, a partir de agora, a funcionar como um bem de reconhecimento político sobretudo aquando de estratégias de mobilização. 718 Estamos diante de um exemplo de apreensão de uma lógica de dominação colonial (racial) pelo campo político. O que nos leva à seguinte constatação: “Em situações de dominação colonial e de ruptura com a dominação a questão torna-se mais complexa, pois estamos perante uma luta por novos sistemas de classificação, que encobre em geral, a incorporação da história (sobretudo colonial) na luta e na construção dos novos sistemas. A construção ideológica da ruptura com o colonialismo tende a fazer esquecer a história incorporada pelos agentes sociais em processo de ruptura”. Reis e Reis (1996: 704). 719 Bourdieu (1999: 1-2). 720 A delegação política é: ”um acto pelo qual o grupo se faz, dotando-se de um conjunto de coisas que fazem os grupos, quer dizer uma permanência e permanentes, um birô, em todos os sentidos do termo, e primeiro no sentido de modo de organização burocrática, com selo, sigla, assinatura, tampão oficial, etc. O grupo existe, quando se dota de um órgão permanente de representação dotado da plena potentia agendi e do sigillum authenticum, e, pois, capaz de se substituir (falar em nome de, é falar no seu lugar), ao grupo serial, feito de indivíduos separados e isolados, em 169 momentos de institucionalização do capital político, considerado por nós como forma privilegiada de concentração de capital político. Veremos igualmente que o percurso de legitimação, tanto do MPLA como da UPA/FNLA, é marcado por sucessivas crises721. Crises, em certa medida, ligadas a processos de objectivação e institucionalização do capital político. O presente capítulo é constituído por dois pontos principais: o percurso de legitimidade da UPA/FNLA e o percurso de legitimidade do MPLA. Todavia, as características do nosso trabalho impelem-nos a dar mais centralidade ao percurso de legitimidade do MPLA, nomeadamente no que concerne ao momento de crise vivido por este movimento. Não porque este último tenha um peso no campo político superior ao da UPA/FNLA, antes pelo contrário. Mas, porque os efeitos das lutas em torno das questões raciais no campo político angolano são mais notórios no seio do MPLA, no que diz respeito à relação entre as classificações assentes em propriedades rácicas/características somáticas e processos de institucionalização do capital político. 2. Da UPA à FNLA/GRAE renovação constante, não podendo agir e falar por eles próprios. Bourdieu (1987: 187). (…) Esta espécie de acto originário de constituição, no duplo sentido filosófico e político, que representa a delegação, é um acto de magia que permite fazer existir o que não era senão uma colecção plural de pessoas, uma série de indivíduos justapostos, sob forma de uma pessoa fictiva, um corporatio, um corpo místico incarnado num ou em corpos biológicos, corpus corporatum in corpore corporato”. Bourdieu (1987:190). O mesmo (1987: 187) considera haver um: “Segundo acto da delegação, muito mais escondido é o acto pelo qual a realidade assim constituída, o partido, a Igreja, vai mandatar um indivíduo”. E, que quanto nós corresponde à delegação do capital político, que é igualmente uma forma de concentração do mesmo. No respeitante ao nosso trabalho optámos por considerar a delegação política a partir da existência de uma sigla e de um órgão permanente (estatutos, da UPA e primeiro Comité Director do MPLA), só consideraremos como nova delegação política a partir da mudança de sigla (como por exemplo, passagem da UPA para FNLA). Consideramos os actos de investidura duma organização como delegação do capital político, na medida em que a sigla permanece como sendo a mesma. Ver igualmente Reis e Reis (1998) 721 Convém sublinhar que não é somente pelo facto de cada uma das organizações ser um espaço de crise que o espaço nacionalista se torna um espaço de crise, mas é também devido à relação conflito/competição entre as duas organizações na luta pela hegemonia do mesmo espaço. 170 A UPA tem a sua origem na UPNA - União das Populações do Norte de Angola, a qual, por sua vez, encontra as suas raízes nas dinâmicas ligadas a questões de sucessão dinástica que remetem para o antigo Reino do Congo722. Contudo, é importante sublinhar que a luta política pela sucessão do reino do Congo adquiriu contornos de luta religiosa entre Protestantes e Católicos. Com efeito, as autoridades coloniais apoiavam um rei católico, Dom António José da Gama. Por sua vez, os protestantes (Baptistas) preferiam Dom Manuel Kiditu que partilhava a confissão destes. Apesar do descontentamento dos protestantes, os portugueses impuseram o rei católico723. Não tendo conseguido impor o seu rei, os protestantes liderados por Manuel Barros Nekaca724 e José Eduardo Pinnock725 iniciaram contactos internacionais com o auxílio das missões Protestantes, chamando a atenção para a existência do reino do Congo sublinhando a sua especificidade relativamente a Angola. É neste contexto que surge a UPNA – União das Populações do Norte de Angola, que preconizava a restauração do antigo reino do Kongo726. Num contexto nacionalista e pan-africanista em que a soberania nacional se pautava pelo “Mapa de Berlim”, o carácter regionalista e dinástico da UPNA era não só perigoso como desfasado da nova realidade política africana. Em 1958, por proposta de Holden Roberto727, a UPNA passa a denominar-se UPA. Com efeito, na abertura da Primeira Conferência dos povos africanos em Accra, capital do Gana, (513 de Dezembro) Holden Roberto faz circular um manifesto redigido em nome da UPA, 722 O Reino do Congo dispunha de um reconhecimento formal por parte das autoridades coloniais. Segundo estas: “ Os indígenas (...) podem manter as suas instituições políticas tradicionais (Sobado, Regulado, Reino, etc.)”. Ver. Estatuto dos indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique, Decreto-lei n.º 3966 de 20 de Maio de 1954, artigos 7º e 8º. 723 O rei católico viria a falecer em condições misteriosas a 11 de Julho de 1957. Pélissier (1978b: 268); ver também Marcum (1969) 724 Manuel Barros Nekaka , (1914-?) tio materno de Holden Roberto, enfermeiro de profissão, nasceu a 18 de Julho de 1914 em São Salvador, foi estudante na BMS- Baptist Missionary Society, filho do catequista Baptista Miguel Nekaka. Pélissier (1978b: 265); Marcum (1969: 53). 725 Johny Eduardo Pinock primo de Holden Roberto nascido em S. Salvador em 1905. Estudou na BMS. Chefe de estação em Matadi, Congo Leopoldville. Marcum (1969: 56); Pélissier (1978b: 266). Também referido nas fontes como João Eduardo Pinock. Rocha I (2002: 445) Ou Johny Eduardo Pinnock. Rocha I (2002: 628). 726 O presidente seria Manuel Barros Nekaka, o secretário-geral Francisco Borralho Lulendo. Pélissier (1978b: 270); Marcum (1969: 63). 727 Álvaro Holden Roberto (1923-2006) ou Ruy Ventura ou ainda José Gilmore, nasceu em São Salvador (actual Mbanza Congo) em 12 de Janeiro de 1923. A sua formação (religiosa e escolar) deve-se às missões Baptistas. É considerado o arquitecto do aggiornamento da UPA. Acerca da passagem da UPNA para UPA ver Marcum (1969: 64-70); Pélissier (1978b: 270-271). 171 reclamando a independência de Angola728. Assim com a reconversão da UPNA em UPA passava-se de um movimento de pré-independência, cujo conceito de nação é basicamente regional e genealógico para um movimento em que nação tem um significado cívico e territorial na medida em que se pretende expulsar os governantes estrangeiros e substituir o estado colonial por um novo estado nação. Assim, tal reconversão criava do ponto de vista político uma dinâmica identitária mais ampla de modo a suplantar um conceito de etno-regional. 2.1 A constituição da UPA e a institucionalização, truncada, do capital político É no quadro da independência do Congo Belga e da subida de Patrice Lumumba ao poder que o processo de institucionalização da UPA se concretiza, com a segunda etapa do seu processo de institucionalização como grupo político, através da publicação dos seus estatutos (1 de Julho de 1960729) e a constituição de um Comité Director Provisório constituído por vinte personalidades. Punha-se, assim, fim a dois anos de existência praticamente clandestina730. No mesmo ano a UPA era formalmente legalizada com a instalação da sua sede em Leopoldville; obteria ainda autorização para editar o jornal A Voz da Nação Angolana, impresso em quatro línguas (português, francês kimbundo e kikongo). Também fora cedido à UPA um espaço radiofónico para efeitos de propaganda na rádio Leopoldville731. A isso tudo podemos somar a afirmação de Holden Roberto como líder de facto da UPA732. A UPA apresenta-se no início como uma organização política constituída sobretudo por elementos provenientes do grupo mobilizado etnolinguístico bakongo733, mais propriamente da região de S. Salvador734, com características urbanas, emigrada no Congo Leopoldville onde o colonialismo belga era acentuadamente racial. Sendo na sua maioria de formação Baptista, estes elementos mantinham ligações regulares com os espaços sociais de onde eram originários, 728 É quanto a nós um momento decisivo de delegação política, todavia ainda incompleto, pois a sigla existe mas o grupo não está instituído. Mas é igualmente um momento de concentração de capital político na pessoa. 729 Ver anexos nº13 730 Rocha I (2002: 444). 731 Pélissier (1978b. 279). 732 Com efeito a UPA começa a confundir-se com a figura de Holden Roberto na medida em que ele é o arquitecto do aggiornamento, o obreiro da primeira etapa de institucionalização do grupo. Como tal, ele fez o grupo e por isso o capital político do grupo está concentrado na sua pessoa. 733 O critério aqui aplicado de classificação dos grupos étnicos é linguístico. Ex: bakongo corresponde à língua kikongo. São restrições impostas pelas características do nosso do trabalho. 734 Actual Mbanza Congo. 172 circulando entre o Norte de Angola e Leopoldville. No entanto, a UPA até 1961 ainda não se afirmara como organização nacionalista armada de âmbito nacional735. Na retórica de contestação colonial, produzida pela UPA, é possível vislumbrar um discurso de valorização da raça negra e de associação da categoria branco ao arbitrário colonial736. Figura 2 - Signatários dos estatutos da UPA Nome Manuel Barros Nekaka António Francisco Maiembe Rosário André da Conceição Neto Holden Roberto Francisco Borralho Lulendo João Eduardo Pinock Alexandre Tati Martin Sumbu Origem geográfica S. Salvador Ambriz? Malanje S. Salvador S. Salvador S. Salvador Cabinda Maquela? Fonte: Rocha (441-444) ou ANTT/Proc. UPA 2126/59 Até 23 de Outubro a liderança do grupo pertencia a Manuel Barros Nekaka, um dos fundadores da UPNA mas o líder de facto era Holden Roberto, sobrinho de Nekaka737. Com efeito, todo o capital político da UPA se concentrava na sua pessoa, que era a face mais visível da organização. Todos os contactos e apoios internacionais eram mediados por ele. Holden Roberto tornara-se por isso uma figura de referência do nacionalismo angolano738. Assim, muito embora a UPA fosse formalmente dirigida por um bureau provisório, encabeçado por Barros Nekaka e o seu respectivo Comité Director Provisório, a realidade é que: “At the same time, whereas Barros Necaca and other veteran political personalities felt constrained by both family and party requirements not to abandon hard-won income producing jobs, Roberto was free to devote himself full time to the 735 Segundo Carlos Pacheco, a UPA estava inserida nos espaços urbanos dos eixos Luanda - Malanje, Benguela Bié. A própria revolta do 15 de Março ultrapassou o território denominado Bakongo. Pacheco (1997: 38); Pélissier (1978b). 736 Ver capítulo anterior. 737 O que nos remete para o papel das relações de parentesco na constituição e no percurso de legitimidade da UPA. Note-se que Johnny Eduardo Pinock é primo de Holden Roberto. Holden em Jaime e Barber (1999: 16). 738 No caso de Holden Roberto aplica-se o conceito de capital pessoal de notoriedade. Graças a sua a linhagem dinástica, pois é descendente da realeza Konguesa, e a um conjunto de relações sociais com figuras africanas proeminentes da época (Lumumba, Fannon, Nkrumah, Bourguiba) Holden adquirira rapidamente um capital de notoriedade que seria reforçado pelo seu papel principal no aggiornamnto da UPNA em UPA. Beneficia igualmente de um outro capital social e de rápida conversão em capital político, a identificação com o grupo etnolinguístico Bakongo. Identificação contudo relativa na medida em que Holden é de S. Salvador. 173 direction of party work. This advantage, along with his careful cultivation of Congolese political leaders, helped 739 materially to further Robert’os personal political fortune” . Estamos assim, no caso de Nekaka, diante de um caso de capital político institucionalizado, mas não objectivado. Não existe essa relação entre capital instituído e capital objectivado. O que é objectivado, quanto a nós, não são os postos mas sim os indivíduos independentemente dos postos. E, de entre estes indivíduos, o que possui maior volume de capital é Holden Roberto740. Figura 3 - Bureau provisório da UPA que funcionou até 23 de Outubro de 1960. Nome Origem Geográfica Funções Manuel Barros Nekaka Holden Roberto S. Salvador S. Salvador Presidente Fundador Adjunto de Barros Nekaka Secretário-geral Francisco Borralho S. Salvador Lulendo François Dombé Maquela do Zombo António Francisco Ambriz Maiembe Martin Sumbu Ambriz Rosário André da Malanje Conceição Neto João Eduardo Pinock S. Salvador. Fonte (Rocha: 2003:445) ou ANTT/Proc. UPA 2126/59 No entanto, a UPA iria viver o seu primeiro momento de crise política que seria por sua vez um momento de questionamento da liderança de Holden Roberto741. O que confere a esta crise uma característica típica do funcionamento de um campo político em fase inicial, isto é, a incompatibilidade entre duas espécies de capital político: o capital a título pessoal e o capital político delegado. Sem pretender entrar numa abordagem minuciosa, podemos considerar que, o contexto político vigente no Congo Leopoldville foi um elemento contributivo para esta primeira situação de crise. Com efeito, o contexto de crise que se vivia no Congo Leopoldville, com sucessivas 739 Marcum (1969 : 85). Não é por acaso que, nos momentos de crise da organização, todo o questionamento da mesma se torna um questionamento de Holden Roberto. 741 Para saber mais acerca desta crise ver ANTT/PIDE/DGS Processo: 2126/59 UPA. Ver também Mbah (2005); Marcum (1969); Pélissier (1978b). 740 174 mudanças de governo, reflectiu-se nos apoios concedidos por este país à UPA. Tal constrangimento, por sua vez, reflectiu-se em tomadas de posição no seio da UPA, nomeadamente, no que concerne às posições entre aqueles que preconizavam a luta armada e aqueles que preferiam optar por uma via mais pacífica. Para se tentar perceber os efeitos do contexto congolês na crise da UPA observe-se, ainda que sucintamente, a evolução política deste país. 2.1.1 O Congo Leopoldville. Esboço de evolução política. A 30 de Junho de 1960, data da independência do país, Joseph Kasavubu742 é eleito Presidente da República pelo parlamento congolês. O mesmo partilha o poder com Patrice Lumumba743 que assumira o cargo de primeiro-ministro, conferindo ao Estado congolês características de um regime semicentralizado e semifederal em que tanto o Presidente da República como o primeiro-ministro detinham o poder executivo744. Todavia, no período que se seguiu à independência, o Congo Léopoldville era um espaço de crise caracterizado pelo êxodo rural, hiperurbanização, clivagens étnicas, regionais e sociais, movimentos secessionistas745 e guerra civil746. O que reflectia, em certa medida, dinâmicas sociais e políticas anteriores à independência747. Podemos acrescentar ainda o facto de este país se ter tornado num palco privilegiado da guerra-fria e de lutas entre potências ocidentais pelo controlo das suas riquezas minerais (cobre e diamantes)748. Todo este conjunto de factores contribuiu, de certo modo, para que as relações entre Lumumba e Kasavubu nunca tivessem sido cordiais. Lumumba preconizava uma sociedade de tipo socialista e com alguma influência dos países do leste europeu, a saber a URSS. Kasavubu, por sua vez, representava uma corrente mais ligada aos interesses ocidentais, sobretudo americanos. Este período conturbado no relacionamento entre os dois líderes seria 742 Joseph Kasavubu (1910-1969) outras fontes referem como nado em 1917, nasceu em Tsela no Maiombe. Primeiro Presidente do Congo Leopoldville independente. 743 Patrice Lumumba (1925-1961). Nasceu em Onalua em Sakuru. Fez os seus estudos primários em escolas católicas e protestantes. foi primeiro-ministro de Maio até Setembro de 1960, mês em que foi destituído por Kasavubu. Em Janeiro de 1961, foi assassinado. Ver Kanyarwunga (2006); Kana K (2005); 744 Magalhães Ferreira (1998: 127). 745 Referimo-nos as secessões do Katanga e do Kasai, ocorridas sucessivamente em Julho. Kanyarwunga (2006: 479). 746 Ver Kanyarwunga (2006); Kana K (2005); Esta crise obrigaria a intervenção das tropas da ONU em 1961. 747 Dinâmicas ligadas às características da colonização belga. Ver Kana K. (2005); Kanyarwunga (2006). 748 Ver Kanyarwunga (2006); Kana K. (2005). 175 marcado pelo afastamento e posterior assassinato de Lumumba em 1961, pondo fim ao projecto lumumbista. A morte de Lumumba assinala a entrada definitiva do novo Estado independente nas esferas da Europa Ocidental e dos Estados Unidos da América749. Todavia, esta inserção foi gradual pois o clima de rebelião, guerra civil e de vazio do poder ainda iriam permanecer por algum tempo750. Fora para colmatar este vazio que em Agosto de 1961, e com o apoio dos capacetes azuis da ONU, que Cyrille Adoula751 foi indigitado como primeiro-ministro no quadro de um governo de unidade nacional. E, será durante a sua vigência que, em 1963, se porá fim à secessão no Katanga liderada por Moisés Tshombé752 acabando este último por exilar-se na Europa. Em Janeiro de 1964 surgem novas rebeliões na área do Kwuilu e na parte Leste do território. Em 30 de Junho de 1964 Tshombé substitui Adoula, no lugar de primeiro-ministro, que havia apresentado a sua demissão753. A continuação da guerra civil e a rivalidade entre o novo primeiro primeiro-ministro, Evaristo Kimba754 e o presidente, terão porventura contribuído para que Joseph Desiré Mobutu, através de um bem sucedido golpe de estado, assumisse a chefia absoluta do país em 1965, pondo fim ao clima de incerteza política755. 2.2 A primeira crise da UPA. Dissidência e recomposição A política do governo congolês respeitante à UPA merece ser entendida num quadro de afinidades historicamente construídas, que se apresentam sob a forma de construção de relações pessoais, de âmbito linhageiro e de redes sociais. Mas convém, contudo, salientar que em determinados momentos estas afinidades históricas não se consubstanciaram em relações privilegiadas. Com efeito, é de salientar que em determinados momentos o apoio, por parte do 749 Acerca do envolvimento dos Estados Unidos no Congo Leopoldville ver Wright (2001:65-69). DVD uma odisseia em África Tahri (2007). 750 Este período de instabilidade só terminaria em Dezembro de 1965, já com Mobuto no poder. 751 Cyrille Adoula (1925- 1978), nasceu em Leopoldville, foi co-fundador de um partido dissidente do MNC, o MNC – Kalonji. Foi Ministro do interior até Agosto de 1961, mês em que ocupou o cargo de primeiro-ministro. Terá desempenhado um papel fundamental no apoio a UPA/FNLA. 752 Moisés Tshombé (1919-1969). Nasceu em Musamba no Katanga. Primeiro-ministro entre 1964 e 1965. Morreu assassinado misteriosamente numa prisão da Argélia. 753 Benot I (1981: 519). Não há concordância relativamente a esta data, por exemplo para Guerra (1993:431) esta ocorrência teve lugar a 12 de Julho. Ver igualmente Gomes e Afonso 4 (2009: 93-94). 754 Que havia substituído Tshombé por decisão de Kasavubu em Outubro de 1965. Gomes e Afonso 5 (2009: 96). 755 Joseph Desiré Mobutu ou Mobutu Seseko Kuku Ngendu wa za banga (1930-1997), liderou este país até 1997. Acerca do protagonismo de Mobutu, ver: Kanyarwunga (2006); Kana K (2005); Guerra (1993: 82); Chomé (1975). 176 governo congolês relativamente à UPA, deixou praticamente de existir, pondo em causa a própria existência da mesma. Com a destituição e posterior assassinato de Patrice Lumumba, em Janeiro de 1961, a UPA iria ver os apoios do governo congolês drasticamente reduzidos756. A nova conjuntura governativa congolesa obrigaria Holden Roberto a ter de partir para os Estados Unidos757. Antes, porém, Holden iria passar pelo Gana e pela Tunísia em busca de apoio financeiro758. Entretanto, Joseph Kasavubu impusera as seguintes condições para garantir a existência da UPA em solo congolês: o afastamento de Holden Roberto da direcção do movimento e a renúncia, por parte da organização, à luta armada759. É num quadro de pressão do Presidente do Congo Leopolville que, por iniciativa de Manuel Barros Nekaka, é convocada uma reunião da UPA. A mesma realizou-se no dia 23 de Outubro de 1960 e não contou com a presença de Holden Roberto que havia sido encarregado de defender a questão angolana nas Nações Unidas760; muito embora ignorando provavelmente que na dita reunião se iria optar por uma nova orientação política, no respeitante à questão da independência de Angola, o que, obviamente implicava o seu afastamento da UPA761. Nesta reunião, a maioria dos dirigentes da UPA defendia uma nova política relativamente à independência de Angola, de modo a não ferir a susceptibilidade do governo congolês. Preconizava-se, assim, não uma independência imediata mas faseada, segundo o modelo de descolonização francês. Renunciava-se igualmente à luta armada como forma de expressão política762. Esta nova inflexão política, por parte dos dirigentes da UPA, traduziu-se no envio de uma delegação, como observadora, à conferência dos chefes de Estados africanos que se ia realizar em Dezembro de 1960 no Congo Brazzaville763. 756 O próprio Holden Roberto viu-se remetido para uma situação de clandestinidade, tendo estado refugiado em embaixadas estrangeiras sedeadas em Leopoldville, nomeadamente na Embaixada da Tunísia, um fiel apoiante da UPA. Marcum (1969: 96); Pélissier (1978b: 279). 757 Como delegado da UPA na XV sessão das Nações Unidas. Mbah (2005: 84). 758 Todavia o Governo ganês fez saber que: “The government of Ghana has given orders that we must not help you because you are in the pay of America”. Marcum (1969: 96). O que significa que a percepção de Holden ser comunista não abrangia todos os países africanos, provavelmente a diplomacia do MPLA tenha tido a sua influência na tomada de posição do governo ganês. Ver Mbah (2005: 67). No entanto Holden assegurara o apoio do governo tunisino. Pélissier (1978b: 279). 759 Mbah (2005 84). 760 Mbah (2005: 85). 761 Mbah (2005: 84). 762 Mbah (2005: 84-85). 763 A decisão de enviar esta delegação fora tomada imediatamente após reunião de 23 de Outubro em que se preconizara o afastamento de Holden da direcção da UPA. Mbah (2005: 85-88). 177 Neste encontro, entre dirigentes dos países africanos recentemente independentes, encontravam-se Leopold Sédar Senghor (presidente do Senegal), Félix Houphouet-Boigny (presidente da Costa do Marfim), Philibert Tsiranana (présidente do Madagáscar) e Fulbert Youlou (presidente do Congo Brazzaville). Estes líderes pautavam-se por um discurso idêntico ao dos representantes da UPA no respeitante ao problema colonial764. Acresce ainda que, durante a ausência de Holden Roberto, a UPA participara em Novembro de 1960 numa Conferência realizada com outras forças nacionalistas angolanas no quadro da criação de uma frente comum que englobava a UPA, o ALIAZO, o MPLA e a AREC765. Temendo provavelmente que esta decisão pusesse em causa a sua preponderância no espaço nacionalista angolano, Holden regressou a Leopoldville para reassumir a liderança da UPA766. Seguiram-se uma série de demissões no seio da UPA, nomeadamente de 17 membros do comité director, incluindo o seu tio Barros Nekaka, considerado no seio da organização como “presidente fundador”767. Quanto a Jean Pierre Mbala768 e ao seu grupo, estes acabariam por sair da UPA e constituírem uma nova organização política: O MDIA - Movimento para a Defesa dos Interesses de Angola, que preconizava a independência de Angola mediante o diálogo com as autoridades coloniais769. Contudo, o MDIA, tal como outras organizações nacionalistas não armadas, nunca iria adquirir grande expressão no espaço nacionalista angolano. 764 Mbah (2005: 85). AREC – Association des Ressortissants de l’Enclave de Cabinda. Esta última acabaria por não se associar à frente. A AREC iria mudar de nome passando a denominar-se MLEC – Mouvement de Libération de l´Enclave de Cabinda. Marcum (1969: 95). Recordamos que a questão de Cabinda não faz parte do nosso estudo. 766 As fontes são aqui contraditórias. Segundo Pélissier e Marcum, Holden regressou a Leopoldville em Dezembro de 1960, sendo que a cisão do grupo se dá no mesmo mês. Pélissier (1979: 132); Pélissier (1978b: 282-283); Por sua vez, Mbah propõe o mês de Janeiro como sendo a data de regresso de Holden a Leopoldville. O que significa que a cisão se deu no mês de Janeiro. Mbah (2005: 87-88); Quanto à PIDE, apresenta duas versões no que respeita à cisão: a primeira versão data a cisão no dia 24 de Fevereiro de 1961 AN/TT. Proc. Holden Roberto 1159/59, vol.2. Ver Rocha I (2002: 467-469). Uma segunda Fonte da PIDE considera que a cisão se deu em Janeiro de 1961. AN/TT.Proc. Viriato da Cruz 1153/51. Ver Rocha II (2002:267). 767 Todavia Barros Nekaka iria permanecer na UPA embora afastado da direcção. Marcum (1969: 98); Pélissier (1978b: 283). Manuel Barros Nekaka, embora advogasse igualmente a não-violência, não aceitara a destituição do seu sobrinho. Rocha I (468-469); Mbah (2005: 88). 768 Jean Pierre Mbala, nascido em 1929 ou 1930 na Maquela do Zombo encabeçava a corrente no seio da UPA que preconizava o afastamento de Holden Roberto e o diálogo directo com as autoridades coloniais. Obrigado a demitirse, Mbala acabaria por ser o arquitecto do MDIA, criado em Janeiro de 1961, mas cujo os estatutos só seriam publicados em Março do mesmo ano. O MDIA, segundo certos autores, era constituído por Bazombos (Classificados de sub grupo Bakongo da região da Maquela do Zombo). Marcum (1969: 98 e 139); Pélissier (1978b: 284); Mbah (2005: 81-88); Rocha II (2002: 267). 769 Ver anexos nº 15. 765 178 A partir de então, Holden Roberto podia consolidar a sua posição de liderança no seio da UPA. Tornava-se, portanto, necessário formalizar de jure a sua liderança. É neste sentido que, para acabar com a incerteza política no seio da UPA, é constituído um “Comité Central, Definitivo”, em Março de 1961. Assim, com Holden Roberto oficialmente na presidência da UPA, conseguira-se pela primeira vez conciliar o capital político a título pessoal com o capital político delegado. Mesmo que de ponto de vista meramente formal e num curto espaço de tempo. Figura 4 - Lista dos membros do Comité Central, Definitivo, Eleitos na Assembleia-geral de 11 de Março de 1961, nos termos do Artº 10 Cap IV – dos Estatutos da União das Populações de Angola de 1 de Julho de 1960 . Nome Origem geográfica Função John Eduardo Pinock S. Salvador Conselheiro Geral do Partido e Presidente Regional em Matadi Holden Roberto S. Salvador Presidente geral e Director Geral da Informação e das Relações Externas Rosário André da Conceição Malanje Vice-Presidente Geral João Baptista S. Salvador Secretário-geral Maurice Ndombele Maquela do Zombo Secretário-geral adjunto Aníbal da Silva Melo Lunda Director Político Sebastião Roberto S. Salvador Director Político Adjunto Antoine Villa Maquela do Zombo Secretário de Direcção das Relações Externas Francisco Borralho Lulendo S. Salvador Tesoureiro Geral (Interino) Luyeye Garcia Maquela do Zombo Tesoureiro Adjunto Alexandre Taty Cabinda Comissário de Contas Pierre Nanintela ? Comissário Adjunto de Contas e Presidente da secção de Ndjili Francisco Borralho Lulendo S. Salvador Inspector-geral, e Director do Movimento Feminino Philippe Kiaku Maquela do Zombo Inspector-geral, Adjunto e Presidente da secção de Matete J. Pinock Eduard S. Salvador Director Adjunto da Informação e da Imprensa José Manuel K. Peterson S. Salvador Secretário Administrativo Alphonse Masseko Maquela do Zombo Secretário Administrativo Adjunto António Narciso Necaca S. Salvador Secretário de Propaganda A designar Secretário Adjunto da Propaganda Simão Andrade Freitas S. Salvador Secretário do Movimento Feminino Eduardo Mankenda Vieira S. Salvador Secretário Adjunto do Movimento Feminino Fonte: Rocha I (2002: 487-489) ou ANTT/Proc. Holden Roberto 1139/59 vol. I;ANTT/Proc.UPA 2126/59 Apesar dos obstáculos impostos pelo Presidente Kasavubu, Holden conseguira retomar o controlo da UPA. É portanto muito provável que no seio do governo congolês houvesse correntes próximas das posições políticas preconizadas por Holden Roberto. Significa isto, que talvez terão pesado aqui, no quadro das afinidades historicamente construídas, seriam as relações de âmbito pessoal entre Holden e determinados membros do Governo congolês770. Todavia, o preço a pagar seria o gradual alinhamento da UPA com os interesses americanos e europeus 770 A título de exemplo, Adoula e Holden Roberto jogaram juntos no clube de futebol Daring Club de Leopoldville. Marcum (1969: 65). O mesmo Marcum (1969: 143) refere que Adoula era, em Março de 1961, ministro do interior. 179 ocidentais. E, assim, muito embora as relações entre o governo do Congo Leopoldville e a UPA/FNLA mereçam ser entendidas à luz de um espaço de afinidades construído e sedimentado ao longo de uma secular história, que nem a colonização portuguesa conseguiu interromper, convém reter que, tendo em conta o contexto da guerra fria, em que se jogam múltiplos interesses, internacionais e regionais, as relações entre o Congo Leopoldville e os movimentos nacionalistas angolanos obedeceram sempre a este imperativo categórico: o realismo da política. 2.2.1 A objectivação do capital militar e nova investidura ou a (des) salvadorização /(des)bakonguização da UPA Para que o percurso de legitimidade da UPA adquirisse credibilidade política tornava-se necessário que a mesma fosse objectivada como organização político-militar. Sendo assim, tornava-se urgente uma acção política pela via das armas. É neste sentido que seria concretizada a revolta do 15 de Março cuja principal consequência seria obrigar a um envolvimento contínuo do aparelho militar colonial em Angola. Assim, a UPA podia ser objectivada não apenas como organização política mas igualmente como organização militar771: “L’idée que la violence armée était 772 la seule alternative pour la liberation de l’Angola ne faisait plus de doute auprés des militants de l’UPA . Todavia, um problema subsistia: a maioria dos dirigentes da UPA era oriunda do Norte de Angola, sobretudo de S. Salvador, o que lhe retirava o carácter de movimento nacional, o que, por sua vez, limitava a sua capacidade de mobilização e expansão territorial. Foi para ultrapassar este constrangimento que o então líder da UPA entabulou negociações com jovens universitários oriundos do sul de Angola773, de entre os quais podemos destacar Jonas Malheiro Savimbi774 e o médico José João Lihauca775. Ambos serão admitidos na cúpula da UPA. O primeiro como 771 Note-se que praticamente um mês antes o MPLA iniciara, em certa medida, um processo de apropriação/reivindicação dos acontecimentos do 4 de Fevereiro que se haviam desenrolado em Luanda. Muito embora questionada a real paternidade da mesma, sendo até objecto de polémica entre políticos e investigadores o facto é que o “4 de Fevereiro” teve o efeito de dotar o MPLA de um notável capital político. Por vezes, “em política, o que parece é”. Frase alegadamente atribuída a Oliveira Salazar. 772 Mbah (2005: 273). Mbah (2005: 88). 774 Jonas Malheiro Savimbi (1934-2002) nasceu a 3 de Agosto de 1934 no Munhango, filho de Loth Malheiro Savimbi que era chefe de estação no caminho-de-ferro. Liderou a UNITA até à sua morte em combate, em 2002, no Moxico. Brighland (1988); Guerra (2002). ver pagina” 239, nota 1006. 775 José Liahuca (1929-1974), nascido em Elende Cuma, na Caala perto do Huambo, filho de Paulino Gonga e Ana Chinganove. Médico, integrou a UPA em 1961. Em 1964 saiu da mesma integrando a UNITA. Acabaria por exercer a sua profissão de médico em Ponta Negra (Congo Brazzaville) onde viria a falecer. Marcum (1969: 178); Rocha I (2002: 497). 773 180 secretário-geral, e o segundo como director do Bureau Político. Estava assim constituído um novo Comité Director mais adequado à realidade sociológica angolana. Tudo indicava que o período de incerteza chegara ao fim 776. Figura 5 - Comité Director remodelado, provavelmente em Novembro de 1961 Nome Origem Geográfica Estudos Funções Holden Roberto S. Salvador Presidente Rosário André da Conceição Neto Malanje 1º Vice-presidente Alexandre Tati Cabinda 2º Vice-presidente Jonas M. Savimbi Bié Superior Secretário-geral Francisco Paca ou Paka Secretário Administrativo José João Lihauca Huambo Superior Director do Bureau Politico Pedro Francisco de Almeida Sobrinho Kwanza Norte Superior Secretário Cultural João Eduardo Pinock São Salvador Secretário Encarregado dos Assuntos Especiais Francisco Borralho Lulendo São Salvador Secretário Encarregado dos Assuntos Sociais Fonte: (Rocha 2003:497); AN/TT Proc. Holden Roberto 1139/59 vol. 2; AN/TT Proc UPA 2126/59 2.3 Nova crise da UPA e nova delegação política. A constituição da FNLA e do GRAE Em 1962 a UPA não se furtaria a uma nova crise. Em princípios de Março de 1962 numa “Conferência de Imprensa proferida pelo Chefe do Estado-maior do Exército de Libertação Nacional de Angola, Marcos Kassanga”777 a UPA e o seu líder máximo Holden Roberto foram alvo de fortes críticas778. Kassanga responsabilizava a direcção da UPA pela morte de um oficial do Exército de Libertação Nacional de Angola de nome João Baptista Traves Pereira779. Holden Roberto era, 776 Sobretudo porque em Agosto de 1961 Cyrille Adoula fora nomeado primeiro-ministro do Congo Leopoldville. Graças a esta nomeação a UPA voltará a gozar de um grande apoio por parte do governo congolês. 777 Nascido em Vila Artur de Paiva actual Ganguelas em 20 de Março de 1937, estudou no Seminário da Caala, perto de Nova Lisboa, actual Huambo, estudou também numa escola privada em Sá da Bandeira, actual Lubango, onde militou numa provável UNATA - União dos Naturais de Angola, foi mobilizado para o exército português em 1957 como oficial miliciano de infantaria (Recrutamento Local). Ingressou na UPA em Fevereiro de 1961. Após a revolta do 15 de Março Holden ou o bureau executivo converteu, em Junho de 1961 a comissão militar em ELNA – Exército de Libertação Nacional de Angola, sendo Kassanga Chefe do Estado-maior do ELNA. O mesmo acabaria por ser afastado da UPA, acusado de alta traição. Marcum (1969: 157). 778 Lara (2006: 264-269). 779 Nascido em Sá da Bandeira a 3 de Fevereiro de 1933, era cabo no exército português. Segundo um autor, era dos raros Cuanhamas que tinha completado os estudos secundários. Ingressou na UPA em 1961. Quando o ELNA foi criado, João Baptista assumiu o posto de chefe das operações militares. Todavia, a instituição do ELNA só se 181 por sua vez, também acusado de conduzir uma guerra tribalista em múltiplas vertentes: “ A luta armada desencadeada no norte de Angola é sob todos os seus aspectos uma verdadeira luta fratricida. Um número aproximado a 8.000 angolanos foram selvaticamente massacrados pelos elementos tribalistas da UPA, estupidamente armados e indisciplinados ao extremo. Esse desumano massacre efectuado por angolanos contra angolanos nasce dum cego tribalismo que se apresenta em quatro aspectos: religioso, linguístico, étnico e ideológico. Tribalismo religioso, porque todos devem ser protestantes; tribalismo linguístico porque todos devem falar a língua “kikongo”; tribalismo étnico porque todos devem descender de S. Salvador; tribalismo de ideologia 780 política porque todos devem defender os interesses de Holden e a sua “UPA” falsamente assim denominada” . Em resposta, Holden Roberto, em conferência de imprensa, desmentiu a versão da morte de João Baptista Traves Pereira apresentada por Marcos Kassanga, recordando que: “certos indivíduos quizeram, sem a menor decência, explorar a morte do comandante Baptista e, assim dividir o povo, no momento em que havia sido cruelmente atingido pela perda do melhor dos seus filhos”. Holden recorda: “que o dito Kassanga (…) havia sido nomeado por decisão do Bureau Executivo da União das Populações de Angola, chefe do Estado-Maior do Exército de Libertação Nacional de Angola. Tal nomeação foi, por mim mesmo anunciada, 781 durante uma conferência de imprensa, dada a 7 de Junho de 1961, em Leopoldville” . Feita a definição da pertença do capital militar, torna-se necessário reforçar o grupo com um forte princípio de inclusão/exclusão, nomeadamente, com a construção da figura do herói/mártir em detrimento da figura do traidor: “Foi no decorrer duma das suas operações, exactamente a 6 de Fevereiro, que tombou, no campo de honra, no Bembe, após uma das mais rijas batalhas que tem travado o nosso Exército na sua luta de libertação nacional contra as forças de repressão portuguesas. A perda do comandante Babtista foi sentida por todos os angolanos. (…) Cumpre apenas recordar o prestígio e a influência de que o Comandante Baptista gozava junto dos combatentes. Por tal razão, assim que teve conhecimento da sua morte o Bureau Executivo da União das Populações de Angola órgão supremo da revolução angolana, o promoveu, «post 782 morten» ao posto de coronel” . “ Em todo o caso, o povo de Angola, unido no seio da União das Populações de Angola e, apoiando o Exército de Libertação Nacional, sua Organização militar prossegue na luta pela independência, sem se preocupar com as locubrações dum Cassanga, traidor à causa e consciente do mal que faz além de que não representa já senão a sua própria pessoa, porque demitido das suas funções, pelo Bureau Executivo da União das populações de Angola, 783 órgão Supremo da Revolução Angolana – o mesmo Bureau que o havia nomeado” . concretizaria em Agosto de 1962. Marcum (1969: 135). Temos aqui um exemplo de objectivação do capital militar sem institucionalização. 780 Lara (2006: 267). Ver anexos nº 17. 781 Rocha I (2002: 506). Kassanga aponta para 7 de Julho. Marcum (1969: 157) tem como fonte o Jornal Le Monde de 9 de Junho de 1961. Estamos inclinados que na comunicação de Kassanga haja uma gralha. 782 Rocha I (2002: 506). 783 Rocha I (2002: 506). 182 A conferência não termina sem um discurso de reforço de objectivação do capital militar: “O Exército de Libertação Nacional Angolano, organização Militar da União das Populações de Angola – ao Norte, Centro, Este e Sul – continua, desde 15 de Março de 1961, a travar duros combates, causando perdas, as 784 mais pesadas, às tropas de ocupação” . Note-se que esta crise, igualmente ligada a processos de institucionalização do capital político, é também uma crise de formação de um recente aparelho militar; e como tal de institucionalização do mesmo. Estamos perante uma disputa entre dois aparelhos recentemente constituídos – o aparelho militar e o aparelho político – pela condução da guerra. Não é por acaso que, segundo Kassanga, Holden Roberto: “designou-se Comandante em Chefe, no decurso duma Conferência de Imprensa que teve lugar no dia 7 de Julho de 1961, em Leopoldville, sem o consentimento das personalidades que constituíam o Estado-maior do ELNA” 785 . Dessa forma Holden Roberto submetia o aparelho militar ao aparelho político, o que significa que convertia o capital militar da UPA em capital pessoal pois reforçava o seu capital político com o posto mais alto da chefia militar. Esta segunda crise tornava novamente visível a discrepância entre o capital político a título pessoal e o capital de autoridade do grupo político. O que indiciava uma permanente tensão no seio da UPA. 2.3.1 A constituição do FNLA/GRAE ou duas novas delegações políticas As contradições no seio da UPA não impediram que esta protagonizasse um novo momento de delegação política através da constituição de uma frente comum786. Assim, juntamente com um pequeno partido angolano, o PDA - Partido Democrático de Angola a UPA constituí, a 27 de Março de 1962, a FNLA - Frente Nacional de Libertação de Angola787. 784 Rocha I (2002: 506). Lara (2008: 265). Ver também Marcum (1969: 157). Note-se que a crise acontece num contexto de forte ofensiva militar por parte do Estado colonial. 786 A questão da frente iria adquirir importância política, sobretudo no que diz respeito ao reconhecimento jurídico internacional, como veremos mais adiante. 787 O PDA – Partido Democrático de Angola é uma organização política emanada de organizações de solidariedade de base etno-regional como o Assomizo-Association Mutuelle des Ressortissants de Zombo ou o ALLIAZOAlliance des Ressortissants de Zombo cujos membros são originários da região da Maquela do Zombo, berço do tocoismo. O que nos remete para o papel desempenhado pelo Tocoismo no surgimento dos movimentos 785 183 Posteriormente, em 5 de Abril do mesmo ano, as duas formações políticas iriam constituir o GRAE - Governo Revolucionário de Angola no Exílio, presidido por Holden Roberto, que seria reconhecido de jure pela OUA788. Em Agosto de 1962 é constituído e proclamado o ELNA789 – Exército de Libertação Nacional de Angola cuja base central se situava em Kinkuzo790. José Kalundungo791 foi designado como Chefe do Estado-maior do ELNA. Estes sucessivos actos de investidura marcam, no nosso entender, um momento decisivo de reforço do capital político da FNLA e, sobretudo, de Holden Roberto792. nacionalistas no Norte de Angola. O Tocoismo é um movimento religioso e sincrético fundado por Simão Gonçalves Toco (1918-1984) nascido em Maquela do Zombo, que ao longo dos anos foi assumindo um carácter de desobediência civil. Lara (1997: 11); Pélissier (1978b: 276-277); Marcum (1969:76-83) e (233-236). Ver igualmente Paxe (2003) e Fernando em “Angola 40 anos” (s/data). 788 Analisaremos este processo de reconhecimento jurídico à luz da relação entre MPLA e o governo do Congo Leopoldville. 789 Segundo a FNLA a 26 de Agosto de 1962. http://www.fnla.net/historique/historia_da_fnla.htm;;) 790 A base de Kinkuzo fora cedida pelo governo congolês dirigido pelo então primeiro-ministro Adoula. A aldeia de Kinkuzo situava-se a 16 Km, sul, de Leopoldville. http://www.fnla.net/historique/historia_da_fnla.htm;;) 791 Originário da região do Bailundo e educado nas missões protestantes. Marcum (1969: 259). 792 Note-se que Holden acaba por ser líder de três organizações políticas: a UPA, a FNLA e o GRAE. 184 Figura 6 - Signatários da Frente Nacional de Libertação de Angola Nome/UPA Holden Roberto Nome/PDA Emanuel Kounzika Rosário André da Conceição Neto David Livramento Alexandre Taty Dombele Ferdinand Jonas M. Savimbi Lubaki Sebastien José Lihauca Domingos Vetokele Jonhy Eduardo Sanda Martin Pinock. J. Eduardo Dontoni Lulukilavo Antoine Vasco José António Fernando Pio Amaral Gourgel Kiatalua Norbert M’ Vila André Francisco Paca ou Paka Kumpesa Simon Fonte Chilcote: (1972: 105). Figura 7 - Lista dos membros do GRAE Nome Org. política Cargo Holden Roberto UPA Primeiro-ministro Emanuel Kounzika PDA 1º Vice - Primeiro-ministro Cónego Manuel das Neves UPA 2º Vice - Primeiro-ministro John Eduardo Pinock UPA Ministro do Interior Jonas Malheiro Savimbi UPA Ministro dos Negócios Estrangeiros Alexandre Taty UPA Ministro da Guerra André Rosário Neto UPA Ministro da Informação Emanuel Ziki PDA Ministro das Finanças Ferdinand Ndombele PDA Ministro dos Assuntos Sociais André M’Vila PDA Ministro da Educação Fernando Pio do Amaral Gourgel UPA Secretário de Estado da Guerra Johny Eduardo Pinock UPA Secretário de Estado de Negócios Estrangeiros António Matumona PDA Secretário de Estado de N. Estrangeiros Adj. Domingos Vetokele PDA Secretário de Estado da Informação Ndombele Maurice UPA Secretário de Estado das Finanças Fonte: FNLA http://www.fnla.net/historique/historia_da_fnla.htm; Matos e Afonso 3 (2009: 33) O nacionalismo da UPA/FNLA é anti-colonial. Porém, o seu modelo de grupo dominante nunca deixou de se confundir com um sistema simbólico reduzido a determinadas características: região, etnia ou raça793 e até religião794. Esse modelo, embora seja forjador de 793 Muito embora a UPA preconizasse oficialmente que: “Tout les hommes et les femmes habitant L’Angola quelles soient leur nationalité, leur race et leur religion auront les mêmes droits et seront respectés dans leurs personnes comme dans leurs biens ». Doc. UPA, Comité Director (1960 : 16) 185 práticas identificadoras, pode funcionar como um estigma dado o contexto nacionalista e panafricano. Se num dado momento esta dinâmica mobilizadora tem efeitos na consolidação rápida do grupo, este particularismo, que por sua vez limita a sua expansão territorial, põe em causa a universalidade tão necessária ao alargamento da mobilização do maior número795. Tal constrangimento torna-se notório, na utilização de categorias como etnia e região, aquando da caracterização desta organização político-militar796. Assim, o nacionalismo da UPA/FNLA é frequentemente percepcionado como uma organização que tem uma ideia de nação alicerçada na reconstrução do núcleo étnico ou regional em harmonia com as exigências do Estado moderno. São estas características de tensão permanente entre projecto etno-regional e projecto nacional que conduzem a que certos autores definam a UPA como um movimento etnonacionalista797. Com efeito, a mobilização político-militar deste grupo coincidiu com um espaço físico restringido praticamente ao grupo etnolinguístico Bakongo798. Ora, este espaço, restrito, de mobilização contribuiu em certa medida para o enfraquecimento dos apoios internos, externos e da redução do capital militar799. O que limitou, em certa medida, os efeitos da UPA/FNLA no campo político angolano. Não sendo, por isso, de estranhar o surgimento de sucessivas crises e dissidências ao longo do seu percurso de legitimidade político-militar. Com efeito, a FNLA/GRAE estaria a braços com duas novas crises na década de sessenta (1964 e 1965). A primeira originaria a dissidência de um grupo de militantes que em 1966 iriam criar a UNITA-União Nacional para a Independência Total de Angola. Seria a 794 Daí que quando se trata de fazer o inventário classificatório da UPA/FNLA encontremos expresões como: “grupo de São Salvador”, “tribalistas”, “racistas”, “protestantes” e “bakongos”. 795 Nomeadamente em relação aos apoios internacionais. 796 E também porque a ideia de nação é percepcionada como fundamento na reconstrução do núcleo reconstrução do núcleo étnico, em “harmonia” com as exigências do estado moderno. 797 Pélissier (1978b); Heimer (1980: 35-37). Na entrevista que fizemos a um alto dirigente da FNLA esta classificação é refutada: “ A UPA como qualquer movimento do mundo tem as suas raízes históricas. O facto de estarem na base da formação da UPA indivíduos ligados à etnia Bakongo, não significa que a UPA fosse, inicialmente, um movimento regional ou que tivesse por doutrina o etnonacionalismo. Nos primórdios da fundação apareceram indivíduos de outras etnias: Fernando Pio de Amaral Gourgel- natural do Golungo Alto, Jonas Savimbi e José Lihauka ambos do sul do país, incluindo eu que sou militante da UPA desde 1958”. Entrevista com Ngola Kabangu em 08/2001 à data secretário-geral da FNLA. Presentemente o mesmo é Presidente da FNLA. 798 Um membro de uma corrente interna da FNLA não refuta o facto de a FNLA ter sido formada por Bakongos. Contudo considera o mesmo: “ há sempre um grupo de indivíduos que estiveram na base dessa iniciativa [formação de uma organização política] e a partir dessa base a pessoa tenta pelo menos conotar o partido com base naquele que vem na base de iniciativa desse partido. Na realidade, as primeiras figuras que se movimentaram para se poder falar de libertação no seio da FNLA foram mesmo os bakongos; no seio da UNITA foram os ovimbundos; e no seio do MPLA foram justamente os brancos, os mulatos e os assimilados, principalmente em torno do Partido Comunista Angolano. Entrevista concedida por Carlinhos Zassala em 09/2007. 799 O que se devia também ao facto de o aparelho militar colonial ter conseguido limitar as acções da UPA/FNLA. 186 terceira organização político-militar a ser criada e a adquirir gradualmente um lugar de relevo no espaço nacionalista angolano. Mais uma vez o capital militar seria a chave para a consagração de uma organização política800. A segunda crise daria origem à dissidência de Alexandre Taty, que se entregaria às autoridades portuguesas com algumas centenas de guerrilheiros da UPA, a 30 de Junho de 1965 e que por sua vez estariam na origem das Tropas Especiais (TE)801. 3. O percurso de legitimidade do MPLA. Crise, capital político e questão racial A génese do MPLA permanece uma questão em aberto e objecto de polémica política e de controvérsia científica802. De qualquer forma, é o estudo do núcleo urbano angolano que nos permitirá compreender as condições de emergência desse movimento. Os elementos iniciais do MPLA são longinquamente descendentes de uma elite africana, por nós já referenciada, cuja decadência iniciada na segunda metade do século XIX é acompanhada da emergência, no seu seio, de uma cultura de protesto. Esta cultura é para alguns dos indivíduos implicados na génese do MPLA, uma referência constituída em herança histórica. Herança que se traduz na preocupação pela preservação do capital cultural, sobretudo na sua forma escolar803 e pela constatação do afunilamento das esperanças sociais resultantes de uma trajectória social intergeracional descendente804. A historiografia oficial data a fundação do MPLA a 10 Dezembro de 1956, em resultado da fusão do PLUAA com outros partidos nacionalistas805. Não é nossa intenção discutir aqui a 800 Gomes e Afonso 6 (2009: 45). Para saber mais sobre essas crises ver Marcum (1978). Mateus (2004:79). 802 A este propósito ver Pacheco (1997); Tali I (2001). 803 As dinâmicas de recomposição social levaram a um estreitamento das oportunidades de ascensão social e a consequente resistência em torno da manutenção de postos da função pública (integração na fracção subalterna da pequena burguesia) cujo acesso exigia um certo grau de capital escolar. A esse respeito Mário de Andrade Uma Entrevista (1997: 135) afirma: ” O grupo que frequentava a casa do meu pai tinha uma conversa sempre à volta desta promoção social através da burocracia.” 804 Trajectória social ascendente/descendente como referenciámos na primeira parte do nosso trabalho (capítulo II). Viriato da Cruz, primeiro secretário-geral do MPLA, no seu poema Sô Santo alude a uma tal condição: (...) Sô Santo teve riqueza/Dono de Musseques e mais Musseques...Lá vai descendo a calçada/que outrora subia” Freudenthal e al. (1994: 134-135). Aliás muitos actores do MPLA destacaram-se na literatura e no ensaio, como Mário Pinto de Andrade, Agostinho Neto e Viriato da Cruz. Ver capítulo anterior. 805 Na sua última versão oficial, o MPLA já não faz referência à fundação mas sim, à génese do MPLA que tem como ponto de partida o “manifesto para um amplo Movimento Popular de Libertação de Angola”, considerado: “o primeiro marco da História do MPLA. MPLA I (2008: 26-27). 801 187 questão da datação806e da designação precisa das organizações que deram origem ao MPLA807. O que nos importa salientar é que a sua formação passa pela reconstituição da história de pequenas organizações políticas que se foram constituindo clandestinamente com o objectivo de se oporem ao Estado português, colonialista e autoritário. De entre estas, podemos designar algumas para as quais existe suporte empírico: o MAC - Movimento Anti-Colonial, o PCA, o PLUAA, o MIA, MINA a FRAIN – Frente Revolucionária Africana para a Independência Nacional das Colónias Portuguesas criada em 1960 em substituição do MAC808. 3.1 A delegação política. A constituição do primeiro Comité director do MPLA A configuração do MPLA como campo tem, quanto a nós, um momento significativo aquando da constituição do seu primeiro Comité Director, qual processo decisivo de delegação política,809e de institucionalização do capital político. Figura 8 - Primeiro Comité Director do MPLA em Conakry, 1960 Nome Raça Mário de Andrade Viriato da Cruz Lúcio Lara Luís de Azevedo Matias Miguéis Eduardo M. Santos Hugo de Menezes Mestiço Mestiço Mestiço Negro Negro Mestiço Negro Origem Geográfica Kwanza N. Kwanza S. Huambo Bengo Kwanza Sul Kwanza N. São Tomé Estudos Funções Superiores Médios Superiores Secundários Secundários Superiores Superiores Pres. Rel. Ext. Secretário-geral Def. e Seg. Diversas Diversas Serviços Sociais Inf. e Cul. Fonte: Lara (1997: 364); Tali I (2001: 68)810 806 Uma questão quanto a nós pertinente pelos ganhos heurísticos que comporta é saber porque razão a questão da datação da fundação do MPLA é objecto de lutas políticas e científicas. 807 Versão contestada pelo historiador Carlos Pacheco (1997) para quem o MPLA teria sido formado no exílio, aquando da Conferência de Tunes, em 31 de Janeiro de 1960. Para este autor, o grande artífice na criação, concepção do manifesto, elaboração dos primeiros estatutos, assim como da primeira estrutura provisória do MPLA foi Viriato da Cruz (1997: 61). 808 Ver capítulo anterior. 809 Muito embora tenhamos plena consciência de outros indícios do processo de delegação política: a existência de uma sigla, um carimbo, uma sede, um grupo de signatários etc. 810 O critério racial é de Tali. 188 A partir de então torna-se necessário que o MPLA seja (re)conhecido como digno representante dos angolanos/colonizados, pois: “A simples «corrente» de ideias não se torna num movimento político senão quando as ideias propostas são reconhecidas no exterior do círculo dos profissionais”811. É preciso recordar que: “O campo político é pois o lugar de uma concorrência pelos profanos ou, melhor, pelo monopólio do direito de falar e de agir em nome de uma parte ou da totalidade dos 812 profanos” . Muito embora o grupo instituído seja constituído por indivíduos possuidores de competências que os tornam aptos para o exercício da política (Viriato da Cruz ou Mário de Andrade813), no sentido de se adaptarem às normas e regras do jogo político, acontece que as circunstâncias não favorecem uma relação privilegiada entre o MPLA e as “massas”, na medida em que este não possui os recursos materiais e simbólicos para a acção política. Com efeito, de nada vale o capital político institucionalizado se não for objectivado como tal814. O MPLA é assim um sub-campo político fechado pois não consegue mobilizar a população para a sua causa. Sobretudo, porque as suas redes sociais, que poderiam ser convertidas em capital político se encontram distantes, nomeadamente da cidade de Luanda e da região dominada pela população etnolinguística ambunda (ausência de capital etnolinguístico). Mas, existe um outro constrangimento, de ordem simbólico-ideológica: as características somáticas de alguns membros do Comité Director (classificados de mestiços ou brancos) constantemente questionados no que respeita à sua angolanidade e africanidade. Convém recordar que o arbitrário racial colonial é também recordado/percepcionado através dos traços fisionómicos dos indivíduos, como vimos no capítulo anterior815. Será este arbitrário racial, (in)corporado, que será utilizado como recurso político no processo de desvalorização do capital político do MPLA e que, por sua vez, terá efeitos em tomadas de posição no seio da própria organização. É neste sentido que podemos tentar compreender as razões do segundo momento de delegação do capital político, ou seja, os motivos que concorrem 811 Bourdieu (1989: 183). Bourdieu (1989: 185). 813 Mário Coelho Pinto de Andrade (1928-1990), natural do Golungo Alto, Kwanza Norte. Escritor e ensaísta. O protótipo do “intelectual emprestado à política”. Foi o primeiro presidente do MPLA, cargo que abdicaria a favor de Agostinho Neto Em 1963 demitiu-se do MPLA por não concordar com a criação da FDLA. Voltaria a integrar o movimento em 1964. A sua ruptura definitiva com o MPLA deu-se com a sua adesão em 1974 à denominada Revolta Activa, grupo dissidente do MPLA. Morreu no exílio em 1990 num hospital de Londres. Ver Andrade (1997); Andrade e Laban (1997). 814 Torna-se assim um capital truncado. 815 Nomeadamente no que respeita ao exercício da violência física e simbólica. 812 189 para a remodelação do Comité Director, em Maio de 1962, por proposta de Viriato da Cruz. É um processo que começa a esboçar-se no início de 1961. 3.2 Viriato da Cruz e a remodelação do Comité Director ou um segundo momento de delegação do capital político A partir das epístolas de Viriato da Cruz podemos compreender melhor como a questão racial foi adquirindo relevância política. De tal modo, que obrigou à remodelação do Comité Director em Maio de 1962. Pelo conteúdo discursivo de uma carta escrita por Viriato da Cruz, datada de 4 de Março de 1960, intitulada “Caros Amigos”, dirigida a Lúcio Lara e Amílcar Cabral, podemos inferir que o mesmo ainda não tinha a percepção da dimensão política da questão racial: “Mas discordo absolutamente que as considerações de cor e de raça sejam erigidas em princípios da nossa política (mesmo nacionalista) e do nosso trabalho. Não considero a chamada África negra como reserva rigorosamente só para negros, e muito menos admito que na luta organizada e popular pela libertação dos nossos países só haja lugar para negros. (…) Todos os africanos (de todas as cores) provavelmente anti colonialistas são bem vindos nas fileiras da luta pela liquidação do colonialismo nos nossos países. O mérito da participação nessa luta deve provir das qualidades de cada africano, considerado individualmente, sem considerações de cor da pele ou de árvore genealógica. A aplicação rigorosa deste princípio pelo método selectivo é que deverá decidir da composição étnica das nossas fileiras. (…). [À margem: Estou em absoluto de acordo que devemos excluir das n/ fileiras todas as tendências rácicas ou tribais. (…) Há brancos e mestiços cuja «africanidade» é também indiscutível. De acordo em que há que seleccionar rigorosam/ todos os elementos, atendendo sobretudo à posição anti-col., à participação na luta pela 816 libertação q. cada um assuma]” . Em Maio de 1961 é possível vislumbrar, por parte de Viriato da Cruz, uma nova percepção acerca da questão racial. A postura de inclusão racial começa a ser questionada tendo em conta o novo contexto da época. Esta nossa constatação é suportada empiricamente por três epístolas produzidas por Viriato da Cruz e também pelas “Actas de Reuniões do Comité Director do MPLA” 817. E que, quanto a nós, são um exemplo do pensar a questão racial tendo em conta as circunstâncias políticas. Torna-se assim possível descortinar o quão a questão racial vai 816 Lara (1997: 280). Ver anexos nº12. Ver cartas de Viriato da Cruz a José Carlos Horta de 5 de Maio de 1961 e 3 de Setembro de 1961 em Rocha II (2002: 100-106) e Cartas de Viriato da Cruz a Luís de Almeida, Carlos Rocha e Edmundo Rocha em Lara (2006: 171-173). Ver igualmente a “Actas de Reuniões do Comité Director de 21 de Maio de 1962” em Lara (2006: 362371). Ver também anexos nº 16 817 190 adquirindo importância no campo político angolano. Nomeadamente, no respeitante aos processos de delegação do capital político. Viriato apresenta um modelo de análise de influência marxista sobre a questão racial à luz da relação explorador/explorado, considerando que o fim dos problemas raciais, nacionais e de classe passam pelo fim da exploração do homem pelo homem: “Quanto ao problema racial dentro da UGEAN818: o problema racial existe em todos os sectores ligados à luta anti-colonial. Em todos os partidos africanos, esse problema está presente, com maior ou menor gravidade. É evidente que os conflitos entre nacionalidades e classes são determinados pelo regime de exploração e de opressão. O apelo à compreensão e à boa vontade entre indivíduos de raças, nacionalidades ou classes diferentes não resolve o fundo do problema. Só um longo processo de luta concreta pela liquidação da exploração do homem pelo homem vai acabar por resolver 819 radicalmente o problema racial” . Partindo das categorias branco, negro e mestiço, Viriato da Cruz considera que cada uma dessas categorias corresponde, de ponto de vista de atitude, a uma percepção negativa que se tem do outro: “Em África, existem conflitos inegáveis e sérios entre as comunidades negra, branca e mestiça. Não vale a pena iludir o problema (…) A quasi totalidade das gentes da comunidade negra não considera os brancos como nativos dos países da chamada África Negra. Essa mesma gente considera os mestiços como um produto de uma coexistência forçada dos brancos e negros. Para a maioria dos negros, os mestiços estão condenados a não aumentar de número, e a diluir-se ou na comunidade negra ou na comunidade branca Para a maioria dos negros, os brancos e os mestiços são incapazes de uma fidelidade completa aos interesses dos negros. Daí a desconfiança que essa maioria nutre em relação aos brancos e aos mestiços. Escusado é dizer que essa interpretação racista dos problemas nacionais e sociais corresponde, infelizmente, ao nível da consciência política da maioria das populações negras, mestiças e brancas. Em todas estas comunidades nós encontramos essa óptica racista de analisar os 820 problemas” . Viriato considera ainda que, tendo em conta o contexto de competição política, as classificações assentes em propriedades rácicas/características somáticas desempenham um papel fundamental nas lutas políticas: “Na luta política, os conflitos raciais costumam ser artificialmente aguçados. Tem-se notado uma actividade consciente tendente a afastar os negros dos partidos onde há massas mestiças ou brancas ou dirigentes destas duas etnias821. Muitos líderes negros, desejosos de afastar qualquer concorrência que 822 líderes mestiços e brancos lhes possam fazer, fomentam o racismo entre as massas” . 818 União Geral dos Estudantes da África Negra sob Domínio Colonial Português; provavelmente, criado entre 1960 e 1961. Rocha (2002: 228-236). 819 Rocha II (2002: 100). 820 Rocha II (2002: 100-101). 821 Viriato converte, aqui categorias raciais em categorias étnicas. Passagem do biológico para o social. 822 Rocha II (2002: 101). 191 Mas Viriato da Cruz considera haver razões que concorrem para o recurso às classificações assentes em propriedades rácicas/características somáticas nas lutas políticas, nomeadamente no que concerne aos seus efeitos no campo; o que faz com que adquiram grande eficácia política. De entre as razões sublinhadas por Viriato da Cruz podemos assinalar aquelas que nos remetem para uma relação entre a competição política e o arbitrário racial colonial incorporado: “A ambição de alguns leaders negros angolanos. Estes, para afastar toda a possível competição com naturais de Angola de outras raças, vêm desenvolvendo silenciosamente, e de maneira sistemática e não raro inescrupolosa, uma propaganda contra a presença de elementos não negros em organizações nacionalistas angolanas. A infelizmente falsa compreensão das massas negras sobre a natureza do colonialismo. É certo que a vulgar identificação, que as massas fazem, do colonialismo com o facto “raça não-negra, constitui terreno fértil para 823 todas as manobras de divisão do povo” . Viriato constata os efeitos políticos, negativos que podem ter as características somáticas incorporadas e visíveis, nos militantes do MPLA. Sobretudo porque podem limitar os efeitos do MPLA no espaço nacionalista angolano. Assim, o facto haver militantes classificados de não negros torna o MPLA, politicamente, vulnerável: “O MPLA tem sido acusado, às escondidas e por vezes abertamente, de ser uma organização em que dominam os não-negros e os intelectuais (subentenda-se, ainda neste caso, os “mestiços e brancos”, dado que a comunidade negra é, incontestavelmente a maior vítima da política obscurantista do colonialismo). Evidentemente que isso é falso. Mas as falsidades também produzem os seus 824 efeitos, efeitos muito nocivos. Nós temos sido vítimas dessas falsidades” . Como tal, Viriato considera ser necessário uma postura de realismo político no que concerne aos processos de investidura, de modo a que as características somáticas incorporadas e visíveis nos militantes do MPLA não ponham em causa o processo de acumulação de um capital de autoridade e legitimidade do grupo instituído. É neste sentido que, em nome do realismo político, apela para as “comunidades mestiças e brancas” – subentenda-se, em nome de uma longa história de exploração e humilhação da comunidade negra – no sentido de se secundarizarem no processo de luta anti-colonial: “ (…) os não negros só poderão dar uma contribuição positiva à solução desse problema, se adoptarem uma atitude abnegada, lúcida, superior e plena de bom tacto.825 Convinha, portanto, que os classificados de não negros: “continuassem engajados na luta com toda a alma, mas também com um espírito de desinteresse em relação à hierarquia das organizações políticas e outras em 823 Lara (2006: 172). Lara (2006: 172). 825 Carta de Viriato da Cruz a José Carlos Horta datada de 3/9/1961 Rocha (105: 2002). 824 192 relação às questões de representatividade (viagens, delegações, etc.), ao problema dos postos do Estado angolano 826 independente de amanhã, etc. . Esta convicção é enfatizada numa carta dirigida a Luís de Almeida, Carlos Rocha e Edmundo Rocha, em vésperas do Congresso da UGEAN827. Na dita epístola, Viriato da Cruz faz referência a composição da delegação angolana, nomeadamente no que respeita às características somáticas dos mesmos, mas, igualmente no respeitante às suas confissões religiosas: ”É meu parecer que devereis dar uma atenção muito reflectida, inteligente e plena de tacto à escolha dos estudantes que comporão a delegação de Angola ao Congresso da UGEAN. (…) No caso concreto do próximo congresso da UGEAN, é meu parecer que a Delegação de estudantes angolanos deveria ser constituída tanto quanto possível por negros. Considero decisivo – para o consolidamento da autoridade, para afirmação universal da representatividade e para o alargamento da audiência da futura união de estudantes de Angola – que a delegação angolana ao Congresso 828 constitutivo dessa união seja formada por negros, parte dos quais deve ser de Confissão protestante” . Deste modo e partindo de categorias produzidas pelo estado colonial, Viriato da Cruz propõe uma nova dicotomia: não negros/negros (inserindo nos não negros os brancos e os mestiços). Esta nova dicotomia é no seu entender a percepção dominante no contexto africano e angolano. Trata-se de impedir que “identidades” imputadas pelo arbitrário colonial tenham efeitos políticos. Na medida em que os portadores dessas propriedades raciais podem ser questionados e estigmatizados por outras forças políticas, sobretudo por aquelas que, por serem constituídas por indivíduos com características somáticas adequadas à “realidade africana”, podem imputar uma classificação negativa de modo a poder mobilizar o maior número (das percepções). Sendo assim, o sacrifício identitário829 seria recompensado a longo prazo com o fim dos problemas e dos conflitos raciais. Ao secundarizar o papel político dos mestiços e brancos, Viriato da Cruz procura impedir a possibilidade de emergência de um capital político construído a partir de uma característica somática – a cor da pele. Ou, mais precisamente, impedir a reconversão de um capital sócio-rácico (produzido no quadro da dominação colonial) em capital político. Trata-se de evitar que a noção de raça se torne o fundamento de uma nova divisão do trabalho político no 826 De que ele dá o exemplo: “ (….) há muito que venho pedindo a minha substituição do posto que ocupo dentro do n/movimento, In Carta de Viriato da Cruz à José Carlos Horta datada de 21/5/1961. Rocha II (103: 2002). 827 Lara (2006: 173). 828 Lara (2006: 172-173). Sublinhado no original. 829 No sentido de abdicarem de uma “Angolanidade”, em igualdade de circunstâncias, com os negros; ou seja, assumirem-se como minoria étnica. E, como minoria, terem um papel político “minoritário”. 193 seio do espaço nacionalista angolano e, como tal, tenha um papel estruturante no processo de configuração do mesmo campo político830. Viriato apresenta um cenário, político-racial, de constrangimento para a acção política de modo a tornar inevitável a remodelação do Comité Director:”Não é uma táctica ingénua. É uma táctica defensiva e não ofensiva. Estou convencido que não faço uma política racista. (...) São concessões que temos que fazer. (…) “Um Comité Director formado por mulatos não poderá dar palavra de ordem que seja aceite e que quando se vai para uma entrevista sem a companhia de malta negra as pessoas chateiam se” 831 . Figura 9 - Comité Director do MPLA saído da remodelação de Maio de 1962 . Nome Raça Estudos Funções Mário de Andrade * Matias Miguéis Graça da Silva Tavares João Vieira Lopes Desidério da Graça Hugo de Menezes Luís de Azevedo José Miguel João Gonçalves Benedito R. Domingos da Silva Deolinda Rodrigues Georges Manteya de Freitas José Bernardo Domingos Mestiço Negro Negro Mestiço Negro Negro Negro Negro Superiores Médios Superiores Superiores Superiores Superiores Secundários Médios Presidente Vice-Presidente 1º Secretário 2º Secretário 3º Secretário Relações Exteriores Relações Exteriores Negro Negra Médios Médios CVAAR CVAAR * Pertença simultânea ao conselho de Guerra do Movimento. Fonte: Lara (2006: 379 e 399) e Tali I (2001: 81); MPLA (2008: 206). 830 Ao contrário da sua anterior percepção e, como tal, da sua anterior postura, acima referenciada, que era sustentada por uma classificação embora racial mas de inclusão (sem recurso à exclusão), Viriato da Cruz procura, num contexto iniciático de configuração do campo político angolano, construir “uma realidade política,” que tenha em conta a "realidade política” (colonial e africana) e assim, impedir os efeitos de uma proposta política que, embora voluntariosa, limita os efeitos políticos do sub campo político MPLA no mais vasto campo político angolano. Na medida em que ele considera que o momento histórico não se adequa a uma construção política sem (re)avaliação e hierarquização raciais. Julgamos que os acontecimentos de 15 de Março de 1961, nomeadamente os excessos cometidos, terão tido influência na sua nova proposta dicotómica. Quanto à influência da UPA nesta questão, é exprimida do seguinte modo por Mário de Andrade: “A estratégia da UPA é explorar os pontos dos pretos casados com as brancas, os mulatos que estão a dirigir por trás”. Lara (2006: 366). 831 Frase atribuída a Viriato da Cruz. Lara (2006: 367). Viriato abdicaria do cargo de Secretário-geral da organização, não ocupando nenhum lugar no remodelado Comité Director. 194 A remodelação do Comité Director não alterara a correlação de forças entre o MPLA e a FNLA 832 . O impasse militar permanecia. Muito embora a remodelação tivesse sido aprovada, não fora consensual. Aliás, um certo mal-estar instalara-se no seio do movimento833. E, nem a presença de Agostinho Neto em Leopoldville, iria desanuviar o ambiente de tensão que se vivia no seio do MPLA. Antes pelo contrário, a situação iria agravar-se. 3.3 A chegada de Agostinho Neto ou o homem providencial Agostinho Neto evadira-se de Portugal a 30 de Junho de 1962 com o auxílio de Partido Comunista e chegara à Leopoldville, provavelmente, em finais de Julho do mesmo ano834. Segundo um nacionalista angolano: “a libertação de Agostinho Neto (…) foi um acontecimento importante para a direcção do MPLA – que tinha, entretanto algumas dificuldades de unidade, de coesão (…) Por consequência, a vinda de Neto – um homem novo em relação a esta direcção – iria dar um pouco mais de dinamismo. Foi o que nós pensamos” 835 . É, em certa medida, como homem providencial que Agostinho Neto profere a sua conferência de imprensa, em Leopoldville, na qualidade de Presidente de Honra836. No nosso entender, é um momento decisivo não só de exposição mas igualmente de conversão do capital de notoriedade em capital político, pois Agostinho Neto expõe publicamente os elementos de (re)conhecimento que constituem o seu capital de notoriedade adquirido ao longo da sua trajectória social e política. São elementos justificadores de competências – não só para o exercício da política – para a liderança política837: capital cultural: adesão às associações de estudantes e participação nas reuniões político-literárias; capital escolar: formação em medicina e especialização em medicina tropical; 832 A estratégia da frente comum com a FNLA continuava a não dar resultados. Marcum (1969: 299). Ver Lara (2006: 362-380). Um antigo membro do comité director do MPLA confirma: “Foi uma iniciativa do Viriato, nem todos alinharam nessa tese, eu pessoalmente mostrei o meu desagrado. Mas a proposta de Viriato de retirar todos os mestiços da Direcção foi aprovada com fraca maioria. Instalou-se um grande mal-estar”. Entrevista de João Vieira Lopes, antigo membro do Comité Director, a Rocha (2008: 193). 834 Antunes (1996: 327); Neto (1987: 164). 835 Andrade e Laban (1997: 178): “O que nos remete para a construção da figura do salvador. 836 A conferência é datada de 10 de Agosto de 1962. Lara (2006: 435-439). 837 Lara (2006: 435-437). Tal como o jogador que não necessita de fazer bluff, na medida em que os trunfos que ele possui lhe garantem a vitória antecipada no provável jogo da institucionalização do capital político. 833 195 capital político adquirido: no MUD; como membro do MAC; participação em manifestações contra o regime metropolitano; luta clandestina em Angola; prisões e deportações; resistência às humilhações infligidas pela PIDE838; capital de reconhecimento e autoridade internacional: solidariedade para com a sua pessoa por parte de diversos países incluindo a Europa; Este capital político de notável terá porventura originado um dos primeiros actos de delegação informal do capital político: a investidura de facto de Agostinho Neto como líder do Movimento: “Dei o lugar voluntariamente. Considerei sempre que o meu lugar era provisório, que eu era um presidente interino, porque já no momento em que tínhamos começado a nossa acção política – desde Conacry no ano de 60 –, Neto era internamente, o homem capaz de reunir organizações que deviam exprimir-se em nome do MPLA. Ele foi preso alguns meses mais tarde, em 1960. Era portanto natural que, de regresso da prisão, ele 839 retomasse a função que devia ser internamente. Portanto ele retomava a sua função no interior” . Todavia, apesar do notável currículo, havia quem não se revisse na figura de Agostinho Neto e demonstrava-o manifestando o seu desagrado pelo modo como assumira a liderança. João Vieira Lopes840 considera que na época, a entrega do poder nas mãos do Neto não fora uma medida correcta: “Correcto não foi, pois se alguns de nós já conheciam o trajecto cultural e político de Agostinho Neto em Portugal, a grande maioria não o conhecia, nem mesmo Viriato. Neto não só era completamente desconhecido entre os dirigentes e militantes no Congo mas também não tinha qualquer carisma. O Congo era um meio completamente estranho para Neto. Por outro lado, os seus métodos, os seus processos de luta eram 841 completamente estranhos ao que se ia passar ali no MPLA e no Congo” . 3.3.1 O início da crise no MPLA. O tempo da implosão É num quadro de imobilismo militar que se começa a esboçar, no seio do MPLA, um cenário de crise. Perante o advir de tal constrangimento, um grupo de jovens quadros do MPLA 838 Aqui no caso, não estamos num processo de conversão, mas sim de remissão para um provável processo de institucionalização do capital político adquirido fora do aparelho. 839 Andrade (197: 179). Esta construção do líder natural já tinha antecedentes. No Jornal Unidade Angolana de Dezembro de 1961 era possível ler o seguinte: “bien que président honoraire du MPLA, le Docteur Agostinho Neto, par la qualité de son oeuvre, para son caractère et son comportement exemplaire de nationaliste combattant et lucide, doit être placé au-dessus de tous les partis pour être considéré comme le leader incontestable du peuple angolais et le symbole de l’héroïque résistance de notre peuple aux forces d’oppression et d’humiliation. 840 João Baptista Vieira Lopes (1932-) nascido em Luanda a 8/5/1932, Médico, foi membro do segundo Comité Director do MPLA. Foi deputado eleito pela AD/coligação nas eleições legislativas de 1992. 841 Rocha (2008: 195). 196 encabeçados por Gentil Viana842, mobilizaram-se em torno da “Ideia força”. Com efeito, Gentil Viana apresentara uma proposta do “Plano de Acção do MPLA denominado “Ideia força” datada de 24 de Outubro de 1962843. Neste documento, muito crítico no que respeita à condução da guerra por parte da direcção do MPLA, Viana considerava que: ”A crise actual é mais uma crise de vontade, de alma revolucionária do que uma crise por falta de organismos devidamente eleitos ou nomeados”. O mesmo defendia a necessidade de se criarem as condições no sentido de: “Entrar em Angola com os líderes à cabeça – na arrancada inicial dum movimento revolucionário, a posição dos líderes não é na rectaguarda, como acontece com os generais de escola, no exército regular em detrimento dos chefes que se mantinham na retaguarda”. Considerava o mesmo que: “Na fase difícil que atravessamos – fase de desconfiança e intolerância entre os responsáveis directos pela condução da luta, só uma acção iniciada pelos militantes pode assegurar a formação do «grupo ligado por uma só uma ideia força» e evitar exclusivos injustos, lançados contra qualquer dos camaradas que até aqui comandaram a nossa acção nacionalista. É preciso evitar que as dissenções entre os dirigentes do Movimento se radicalizem entre a massa dos militantes” 844 . Todavia apesar do voluntarismo do “grupo ideia força”, a crise entrara num processo irreversível, tornara-se um facto consumado. Facto este perfeitamente constatável nas sucessivas tomadas de posição de determinados dirigentes e militantes do MPLA, nos meses que antecederam a Conferência Nacional do MPLA que se ia realizar em Dezembro de 1962. Destas tomadas de posição podemos assinalar as seguintes: • a “Carta de Viriato da Cruz ao MPLA”datada de 31 de Outubro de 1962, em que o mesmo apresenta as razões do seu afastamento do Congo Leopoldville tecendo fortes críticas a alguns membros de MPLA, de entre os quais Agostinho Neto e Mário de Andrade. Considera o mesmo que: “O MPLA está nas mãos de liquidacionistas”845; • a carta de demissão de Edmundo Rocha apresentada ao MPLA, datada de 31 de Outubro de 1962 onde constam as razões da sua tomada de posição: “a 842 Gentil Ferreira Viana, (1935-2008) nasceu em Luanda a 13 de Novembro de 1935, estudou em Portugal onde se licenciou em Direito. Ingressou no MPLA em 1961. Em 1963 demitiu-se do MPLA e foi viver para a China. Voltou a integrar o MPLA em 1971. Foi o principal arquitecto da denominada “Revolta Activa”, movimento de contestação à liderança de Agostinho Neto. Foi preso em 1976, sem julgamento e solto em 1978. Viveu exilado em Portugal onde exerceu advocacia, faleceu em 2008. Para saber mais, ver entrevista de Adolfo Maria em Pimenta (2006); ver igualmente o texto redigido por Adolfo Maria em homenagem a Gentil Viana, difundido por via elctrónica. 843 Lara (2006: 474-477). 844 Lara (2006: 474). Ver igualmente Reis e Reis (1996). Este grupo acabaria por apoiar Agostinho Neto, na Conferência Nacional. Entrevista concedida por Gentil Viana em 08/1982 a Maria do Céu Carmo Reis. Ver igualmente Reis e Reis (1996). 845 Lara (2006: 477-482). 197 gravidade de uma crise que grassa entre os principais dirigentes do MPLA” e a solidariedade para, provavelmente, com Viriato da Cruz que havia anunciado a sua partida do Congo Leopoldville846; • a Carta aberta de Viriato da Cruz aos militantes do MPLA e do EPLA, datada de 15 de Novembro de 1962 em que o signatário denuncia a teoria da inevitabilidade do neocolonialismo defendida por certos militantes, as manobras caluniosas e policiais de militantes recentes, com o fim de impor ao movimento uma direcção cujo núcleo é constituído por um grupo de pessoas que criaram relações íntimas no tempo em que eram estudantes em Portugal. O mesmo apela para realização de “um Congresso ou uma Conferência Nacional”847; • a carta de demissão de Matias Migueis de membro do Comité Director, datada de 28 de Novembro de 1962: “Minha contribuição, no quadro da direcção do MPLA, tem sido nula. Não responde às exigências da hora grave que vive o nosso país. Sinto-me eu próprio”848; • o Comunicado do Comité Director do MPLA, datado de 28 de Novembro de 1962, em resposta a carta de Viriato da Cruz de 15 de Novembro. No mesmo, consta a acusação ao primeiro secretário-geral do MPLA e outros militantes de terem divulgado a carta de Viriato. Considera-se, no mesmo comunicado, que o documento de Viriato da Cruz: “Traduz-se por uma actividade fraccional no seio do Movimento”. Na mesma consta também um aviso aos militantes do MPLA: “para os perigos em que se incorre ao conduzir a discussão dos problemas do MPLA fora dos organismos legalmente constituídos» e proíbe a circulação de 849 documentos que destruam o espírito unitário da Conferência nacional” • ; a carta circular de Graça Tavares, primeiro secretário-geral do MPLA, datada de 28 de Novembro de 1962, em resposta ao comunicado do MPLA difundido na mesma data. Na mesma consta que: “Pouco depois da chegada do Dr 846 Lara (2006: 482-483). Pensamos que a carta de Rocha se refere à carta com igual data de Viriato da Cruz. Porém, na carta de Viriato não consta nenhuma apresentação de demissão, mas apenas a sua saída do Congo Leopoldville. Todavia, na carta de Viriato consta uma alusão a uma carta elaborada anteriormente a mesma. Provavelmente nesta carta terá pedido a sua demissão. Porem, a dúvida subsiste. 847 Lara (2006: 491-492). 848 Lara (2006. 501). 849 Lara (2006: 501). 198 Agostinho Neto, “Presidente de Honra do MPLA”, nasceu uma crise profunda de ordem política entre os (dirigentes) principais responsáveis pelos destinos do MPLA, crise essa hoje do domínio público, mas cujas razões fundamentais houve sempre o cuidado de as guardar num círculo restrito”. O signatário manifesta a sua solidariedade com Viriato da Cruz850; São tomadas de posição por parte de militantes e dirigentes que contribuem para que este sub campo adquira uma configuração bipolar, um espaço de relações de forças corporizado em dois grupos: o denominado “grupo Viriato” e o denominado “grupo Neto”851. Assim, muito embora a crise não tivesse ainda atingido o estado de ruptura explosiva, entrara-se definitivamente num processo de concorrência, isto é, de luta política, pelo controlo da direcção do MPLA cujo primeiro momento decisivo iria ter um tempo e um lugar: a Conferência Nacional do MPLA de Dezembro de 1962. 3.4 A investidura de Agostinho Neto e o agravamento da crise Viriato da Cruz apresentava um capital de autoridade política materializado no reconhecimento de uma competência conferida pelo cargo de Secretário-geral do MPLA e pela produção ideológica (fora ele o autor do manifesto e, como tal, o autor da génese do grupo)852. Todavia, estes atributos não foram suficientes para impedir que Agostinho Neto assumisse o posto de Presidente do Movimento. Com efeito, o capital de notoriedade de Agostinho Neto era reforçado por um capital de reconhecimento social – incorporado e adquirido – perceptível pela maioria dos militantes do MPLA. Nomeadamente, no que respeita às afinidades académicas, religiosas e etnolinguísticas: “Na realidade, Neto beneficiou também de uma conjunção que lhe era favorável no seio do MPLA. Por um lado, predominavam no movimento dirigentes estudantis, antigos estudantes em Portugal como o próprio Neto, assim como jovens de origem (ki)mbundo. Acrescenta-se, por outro lado, a predominância de dirigentes de filiação protestante. Estes tiveram um papel fundamental no desenrolar dos trabalhos da I Conferência Nacional do MPLA, 850 Lara (2006: 505). Eufemismo de identificação, dos dois grupos rivais, na medida em que cada um deles era corporizado por Agostinho Neto e Viriato da Cruz. 852 “Viriato tinha muito prestígio, não só junto da juventude, mas de todos nós. Era ele quem orientava tudo, mesmo quando deixou de ser Secretário-geral. (…) Viriato era alguém profundamente dedicado aos problemas da luta nacionalista. (…) Todo aquele trabalho de organização do MPLA, desde Conacry até Leopoldville, foi obra de Viriato. Entrevista de João Vieira Lopes a Rocha (2008: 195-196). 851 199 853 em Dezembro de 1962” . Evento político que iria assinalar um novo acto de investidura que, por sua vez, iria consagrar a conversão do capital de notoriedade acumulado por Agostinho Neto em capital político institucionalizado no posto de presidente do MPLA. De ponto de vista político-institucional, e no que se refere aos postos garantidores do controlo da direcção política do movimento, o desfecho foi o seguinte: i) extinção do posto de Secretário-geral da organização e o afastamento de Viriato da Cruz da direcção política; ii) consagração de Agostinho Neto como Presidente do MPLA. De ponto de vista político-ideológico, é postulado o papel de comando do político e reconhecida a necessidade de militarização do MPLA como organização854. O que corresponde, quanto a nós, à criação do Comité-Político Militar, processo de institucionalização do capital político-militar do grupo855. Este órgão torna-se o principal condutor da guerra de libertação. Obviamente, com Neto à cabeça. Mas a Conferência assinalava, igualmente, o início de uma nova postura perante a questão racial no MPLA: “Neto havia posto em causa a teoria do recuo táctico dos mestiços e brancos dos 856 órgãos de direcção, defendida por Viriato da Cruz e pelo médico Eduardo dos Santos . E, segundo João Vieira Lopes: “os argumentos de Neto eram muito fortes, sobretudo no que respeita aos mestiços, fazendo com 857 que todos os mestiços alinhassem com Neto” . Figura 10 - Comité Director do MPLA saído da “Conferência Nacional” em Dezembro de 1962 Nome Agostinho Neto** Matias Miguéis** R. D. da Silva Manuel Lima** 853 Raça Negro Negro Negro Negro Estudos Superiores Médios Médios Superiores Funções Presidente 1º Vice-Presidente 2º Vice-Presidente Chefe Dep. da Guerra Tali I (2001: 82). Generalização de uma disciplina militar a todos os escalas dos organismos do MPLA, de acordo com o estabelecimento de uma síntese entre o político e o militar. Doc. MPLA. Conferência Nacional (1962: 25). 855 Este processo tinha tido um momento decisivo com a criação do EPLA – Exército Popular de Libertação de Angola, em meados de 1962. Ver “Lei da disciplina do EPLA” em Lara (2006:231). Muito embora em MPLA I (2008:219) conste que: “Na I conferência Nacional do MPLA nasceu oficialmente o Exército Popular de Libertação de Angola”. 856 Tali I (2001: 82). 857 Rocha (2008: 198). 854 200 Mário de Andrade ** Mestiço Superiores Chefe Dep. Rel. Ext. Lúcio Lara** Mestiço Superiores Chefe Dep. Org. e Quad. Aníbal de Melo Mestiço Médios Chefe Dep. Informação Deolinda Rodrigues Negra Médios Chefe Dep. Ass. Sociais Desidério da Graça** Negro Superiores Chefe Dep. Finanças Henrique Carreira Mestiço Superiores Chefe Dep. Segurança ** Membros de direito do Comité Político-Militar formado em resultado da Conferência Fonte: Tali I (2001: 81) e Lara (2006: 531). Figura 11 - Comité Político-Militar do MPLA saído da Conferência Nacional em Dezembro de 1962 Nome Raça Estudos Agostinho Neto Matias Miguéis Manuel Lima Mário de Andrade Lúcio Lara Desidério da Graça Negro Negro Negro Mestiço Mestiço Negro Superiores Médios Superiores Superiores Superiores Superiores Funções no Comité Director Presidente 1º Vice-Presidente Chefe Dep. da Guerra Chefe Dep. Rel. Ext. Chefe Dep. Org. e Quad. Chefe Dep. Finanças Fonte: Lara (2006: 525) e Tali I (2001: 81). Todavia, se de ponto de vista político-institucional o MPLA conseguira legitimar através da eleição a nova liderança e clarificar a política a seguir definindo o MPLA como “movimento de massas, revolucionário” e confirmando a recusa do reformismo colonial858, a realidade é que o MPLA não tinha posto fim à crise, antes pelo contrário, a luta política no seio do movimento iria entrar numa fase de confronto aberto e de ruptura definitiva entre Viriato da Cruz e Agostinho Neto. E, não é demais enfatizar, sempre com este pano de fundo: o imobilismo militar. Com efeito, um relatório ultra-secreto dos departamentos de Guerra e Segurança, divulgado provavelmente imediatamente a seguir à Conferência Nacional, confirmava um quadro negativo da realidade político-militar. Considerava o mesmo relatório que o MPLA não controlava nenhuma parcela de Angola, sendo que a mobilização política era nula. “As forças inimigas limparam todo o norte de Angola”; o MPLA não possuía nem armas e nem uma base militar no Congo. O que impedia a possibilidade de instalação de “maquis” organizados em 858 Lara (2006: 515-525). 201 Angola. No mesmo documento constava que: “A propaganda e a informação não correspondiam ao estado actual da luta, nem penetravam suficientemente no território nacional”. O relatório sublinhava que: “a propaganda inconsciente e inconsequente da UPA mantém as populações do norte sob o erro e o obscurantismo, sem consciência nacional nem espírito revolucionário. A participação dos mestiços continua a sofrer a incompreensão dirigida pela UPA e pressão de elementos racistas da massa populacional angolana”859. Significa que: “Quaisquer que sejam as interpretações que dela façam, os principais autores concordam em dizer que a crise no interior do 860 MPLA, fortemente agravada pelo meio congolês onde se desenvolve, é sobredeterminada pela questão da UPA” . O que nos remete, no respeitante à nossa abordagem, para o papel desempenhado pela UPA/FNLA para o governo do Congo Leopoldville, no respeitante ao agravamento da crise no MPLA. Julgamos, assim, ser o momento apropriado, antes de prosseguirmos a abordagem da evolução da crise no MPLA, de apresentar uma breve caracterização das relações entre o MPLA e a UPA-FNLA, e das relações que governo do Congo Leopoldville estabeleceu com o MPLA. 3.4.1 As relações MPLA/ FNLA As relações entre as duas organizações político-militares foram fundamentalmente de conflito/competição. Não obstante a questão da frente comum ter estado sempre na ordem do dia, sobretudo para o MPLA. O que se deve, em certa medida, ao estado de relações de força entre as duas organizações: “Quanto à questão da aliança com a FNLA, ela está na ordem do dia para todos no MPLA. A procura de uma unidade de acção com a UPA (e mais tarde com a FNLA) constitui desde sempre uma linha de força política do MPLA e vai sê-lo ainda mais com a perspectiva de uma selecção pela OUA dos movimentos que poderão 861 vir a receber ajuda” 859 . Doc. MPLA (1962). “Ultra-secreto: Para a consecução das directrizes traçadas pela Conferência Nacional, depois de analisada a realidade angolana – sob os aspectos militar e político -, estudadas as possibilidades do MPLA e as necessidades revolucionárias de luta pela independência, os Departamentos da Guerra e Segurança elaboraram um plano de estruturação dos meios disponíveis, plano que põem à apreciação do Comité Político-Militar”. (s/l) Dezembro, Mimeo arquivo pessoal. Muito embora a datação do documento seja posterior à realização da Conferência, julgamos que a sua elaboração tenha sido anterior à Conferência. Como tal, o seu conteúdo abarca provavelmente o período compreendido entre os meses de Outubro e Dezembro. 860 Laban e Messiant (2003: 241). 861 Laban e Messiant (2003: 243-244). Messiant prossegue: “Considerando as pressões mais ou menos amigáveis (dos argelinos por exemplo) para que as duas organizações se unissem, e os numerosos obstáculos colocados pela UPA ao desenvolvimento do MPLA, todo o empenho do Movimento (enquanto àUPA estava numa posição de força) era em levar Holden Roberto a uma aliança ou, pelo menos, a uma unidade de acção. Esta necessidade, numa altura em que o MPLA estava em crise, tornou-se ainda mais urgente com, por um lado, a formação da FNLA (que entre outros objectivos visava a evitar que Holden Roberto tivesse que se unir ao MPLA) e, por outro, o envio pela OUA de uma missão de conciliação entre as duas organizações. (…) Mas não há hipótese de que essa posição chegue a abalar a vontade hegemónica de Roberto e a sua recusa de qualquer tipo de associação. A política de unidade do MPLA está portanto condenada”. Idem. É também possível que os Estados Unidos tenham contribuído 202 Em Setembro de 1961, o MPLA transfere a sua direcção para Leopoldville, com o objectivo de utilizar esse país como rectaguarda político-militar, mas depara-se com um espaço monopolizado, política e militarmente, pela UPA. Não são portanto de estranhar as infrutíferas alianças entre as duas organizações nacionalistas, preconizadas desde a Conferência Pan-africana de Tunes, em Janeiro de 1960862. Este impasse político-militar levou a que um autor considerasse, na época, o MPLA como um “grupo de quadros à procura de tropas”863. Quanto à relação de competição/conflito entre as duas forças político-militares, é perfeitamente perceptível tanto no plano do confronto militar como no plano discursivo. No plano militar, os confrontos demonstram um estado de relações de forças favorável à UPA/FNLA em detrimento dos meios do MPLA. Assim, todas as tentativas do MPLA de conseguir penetrar no interior de Angola através da fronteira congolesa eram barradas pelas forças militares da UPA/FNLA864. Mas não é só no confronto militar que se desenrola a luta pela hegemonia do espaço nacionalista angolano. Esta luta entre os dois beligerantes é também notória na produção de discursos. No intuito de se legitimarem perante as massas ou perante as instâncias de reconhecimento internacional, as duas forças político-militares produzem discursos, que nos remetem para a acumulação de um capital político de autoridade, em torno da fundação/anterioridade e da desvalorização do outro através da classificação/estigmatização. para a agudização do antagonismo entre as duas organizações. Com efeito segundo Guerra (1994: 151) O Estados Unidos condicionavam a ajuda a UPA, através do Comité Norte-americano para África, na condição de que a UPA não se unisse com as forças do MPLA. 862 Segundo a versão do MPLA: em Outubro de 1960 constituiu-se uma efémera Frente Comum dos Partidos Políticos de Angola (FCPPA) englobando o MPLA, a UPA e o PDA; em Maio de 1961 foi feita, mais, uma tentativa de unificação das forças nacionalistas, mas a UPA não aderiu, tendo sido elaborado um projecto de acordo para a constituição da Frente de Libertação de Angola apenas entre o MPLA, ALIAZOe o AREC. A 5 de Dezembro de 1961, foi crida uma organização comum de juventude entre as duas organizações, o RDJA (Reunião Democrática da Juventude Angolana), de curta duração devido à oposição da direcção da UPA. Em 6 Junho de 1962, por proposta de Nkrumah, a UPA o PDA e o MPLA assinaram em conjunto com o presidente Ganês a “Formação de uma Aliança Militar e Criação dum Comando Unificado”. A propósito das tentativas de unificação entre as duas principais forças nacionalistas ver Lara (2006); Jornal Vitória ou Morte (1968); Rocha II (2002). 863 Pélissier (1969: 1209). Não subscrevermos inteiramente a afirmação do autor, pois a informação consultada sobre o MPLA permite deduzir a existência de uma política de recrutamentos com vista à luta de guerrilhas; política contudo, de efeito mínimo devido aos obstáculos impostos pelo governo do Congo Leopoldville: ausência de apoio logístico necessário (instauração de bases militares, livre circulação de homens e armas, etc.). 864 Em Novembro de 1961 um comunicado do MPLA acusa a UPA de ter abatido uma coluna do MPLA constituída por cerca de 20 elementos que tentavam penetrar na região dos Dembos. Lara (2006: 201-202). A 28 de Abril de 1963, perto do rio Loge, uma coluna militar do MPLA é interceptada pelas forças militares da FNLA tendo sido abatidos cerca de uma dezena de militares do MPLA, e alguns militares da FNLA. Lara (2008: 149). 203 A questão da fundação/anterioridade torna-se, tendo em conta o contexto, um trunfo político extremamente importante na luta pela hegemonia no/do campo nacionalista angolano na medida em que a dimensão do reconhecimento simbólico de cada uma das organizações pode variar em função do seu maior ou menor grau de anterioridade. É assim que as duas organizações utilizarão, na sua relação de conflito/competição, o argumento da anterioridade como forma de luta pela legitimação perante o outro, que é também uma forma de luta pelo monopólio do reconhecimento pelos outros. Na sua versão oficial, o MPLA proclamava ser a emanação de um agrupamento de forças nacionalistas que lutavam no interior do país pela independência de Angola e que tivera como acto constitutivo o manifesto de Dezembro de 1956. Quanto à versão da FNLA, numa exposição à Comissão dos Bons Ofícios da OUA, Holden Roberto afirmara que a UPA tinha sido fundada em 10 de Julho de 1954865, contradizendo assim a versão anterior e oficial da FNLA, segundo a qual: “Em 1954 criou-se clandestinamente no seio dos angolanos dos distritos setentrionais e dos exilados no Congo (Leopoldville), a União das Populações da Angola do Norte, que se iria tornar na UPA em 866 1958” . Esta luta pela anterioridade entre os dois movimentos é por conseguinte uma luta pelo espaço da história porque, num contexto de luta pela independência, se torna imperativo reforçar a criação de um modelo de unidade que se antecipe à constituição de uma lei comum. A fundação adquire assim um papel fundamental aquando da institucionalização de um aparelho gerador e criador de identidade, acrescido de um substrato político e ideológico, que poderemos definir como nacionalismo, cujo discurso pretende matizar uma identidade nacional867. Um outro argumento recorrente na retórica utilizada diz respeito, como afirmámos mais acima, às formas de classificação/estigmatização de que se servem as duas organizações políticas para cada uma definir, assim, uma identidade – negativa – a outra. 865 Documento FNLA (1963). Arquivo pessoal. Documento FNLA (1962). Arquivo pessoal. 867 Mas a fundação efectiva-se igualmente no espaço do mito, pois estamos perante um acontecimento – a luta de libertação nacional - que se apresenta como extraordinário. Nesta medida é possível, na luta de verdades pela verdade da luta, em determinadas circunstâncias a fusão entre o espaço da história e o espaço do mito. A primazia da anterioridade reforça a legitimidade “como distintivo da autoridade” 866 204 No caso da FNLA, muito embora Holden Roberto (ainda na qualidade de líder da UPA) em 1961 considerasse que: “não há questões raciais”868, a questão dos mestiços e assimilados serviu, com maior ou menor subtileza, para limitar os efeitos do MPLA no campo869: “A intolerância política-partidária atingia o rubro, com a manifestação de divergências profundas entre mim e Mário Pinto de Andrade. (…) A questão racial voltou a baila, levantada por nós, devido a supremacia e quase exclusividade de mestiços no seu seio; com o MPLA a ripostar acusando-nos de pretender o genocídio dos 870 mestiços” . A 12 Abril, de 1962 em Leopoldville, Emmanuel Kunzika871 o 1º vice-presidente do PDA, vice-presidente da FNLA e 1º vice-ministro do GRAE, afirmava o seguinte sobre a definição de quem é angolano e referindo-se aos “mulatos”: “São angolanos (...) e porque não? Mas com a condição que estes últimos não façam o jogo do morcego declarando-se, por um lado angolanos autênticos, e por outro, instrumentos dóceis nas mãos dos seus pais, para melhor subjugarem o povo angolano. Não são aliás, os únicos susceptíveis de agirem assim. Pretos existem, também, que parecem servir os interesses do povo, quando, 872 afinal se não ocupam senão dos seus próprios interesses” . Aqui no caso, estamos perante um princípio de classificação/estigmatização em que o princípio de exclusão não é tão evidente, (na medida em que o “porque não” abre a possibilidade de os classificados de mestiços serem angolanos e haver “pretos que parecem servir os seus interesses”). O discurso de estigmatização/exclusão é mais explícito no Boletim nº1 Uhuru Angola da FNLA de Novembro de 1962, onde se considera que: “a principal causa da fraqueza do MPLA deve-se ao estatuto privilegiado dos mestiços e dos assimilados concedido pelos colonialistas (instrução, isenção do trabalho forçado, acesso oficial à propriedade e profissões liberais, direitos cívicos, nível de vida superior à massa camponesa explorada)”. É ainda afirmado que esse 868 “Entre nós não há questões raciais – eu acentuo isso expressamente – nem tão pouco questões ou diferenças de religião. Todo aquele que deseje a liberdade de Angola e uma Angola africana é bem-vindo entre nós”. Entrevista ao “Deutshte de Munique 17 de Maio de 1961. AN/TT, PIDE/DGS, Proc. Holden Roberto 1139/59-s-12 1º vol. 869 Segundo Carlinhos Zassala: “No início a UPA/FNLA tinha uma certa hostilidade em relação ao homem branco, em relação ao mestiço, em relação ao assimilado, pelo facto de existir essa divisão durante a colonização”. Contudo o mesmo acrescenta: “(…) a partir do momento que os líderes começaram, pelo menos a politizar, a aparecer a ideologia correcta da luta: (“Nós não estamos a lutar contra os portugueses, mas estamos a lutar contra o colonialismo português”). Foi naquele momento que as pessoas começaram a corrigir. Mas no início foi mesmo uma grande confusão”. Entrevista com Carlinhos Zassala em 09/2007. 870 Holden Roberto em Nganga (2008: 133). 871 Emannuel Kunzika (1925-) nasceu em 14 de Junho de 1925 na aldeia de Kintoto perto da Maquela do Zombo. Este filho de plantadores de café emigrou com os seus país para o Congo Leopolville com a idade de 11 anos. Estudou na Escola do Exército de Salvação em Leopoldville. Prosseguiu os seus estudos no Ateneu Real e no Colégio Alberto I. Este profundo admirador de Simão Toko assegurou um lugar administrativo numa empresa comercial local. Continuou os seus estudos no Institut d'Études Politiques, tendo igualmente tirado um curso por correspondência na École de Science et Arts de Paris. Foi um dos criadores do ALLIAZO e do PDA. Marcum (1969: 88). 872 Doc. FNLA/1962) Arquivo pessoal. A comunicação de Kunzika exemplifica um momento de apropriação pelo campo político angolano de um sistema de classificação racial produzido pelo Estado colonial. Ver anexos nº 18. 205 “estatuto criou um fosso social e psicológico entre os mestiços e assimilados e a massa camponesa explorada”873. Quanto ao MPLA, todo o seu discurso de estigmatização será direccionado tanto para a UPA como para o seu líder Holden Roberto874. Assim, as classificações gravitarão em torno do carácter racista, tribalista e não nacional da UPA/FNLA, com alusões a “traição nacional”875: “Está provado que o presidente da UPA vê nos 30000 mestiços angolanos os seus principais inimigos e vê nos 300000 portugueses de Angola (que monopolizam efectivamente em suas mãos, o poder político, militar, económico e cultural da colónia) elementos com que ele pode chegar a um compromisso para liquidar aquele “principal perigo”. É claro o carácter frágil e suspeitoso do patriotismo do presidente da UPA. É evidente que não tendo hesitado em proclamar uma política com base racial, o presidente da UPA arrasta o seu partido para uma política de genocídio contra um grupo racial angolano, política que acabaria por desprestigiar totalmente a UPA e por prejudicar o 876 nacionalismo angolano” . No comunicado datado de Março de 1962, o Comité Director do MPLA produz um discurso de estigmatização da UPA através da desvalorização do seu líder relacionando a (in) competência política à ausência de capital cultural de Holden Roberto: “Sabendo haver em Angola, africanos com mais carácter, instrução e capacidade do que ele, inspirou e incitou a liquidação física de negros 877 assimilados instruídos” . O discurso prossegue de modo a reduzir a UPA ao local, ao residual, ao fragmentário e ao alógeno; atributos, esses, corporizados no seu líder Holden Roberto: “para conquistar o apoio dos dirigentes do movimento protestante mundial, procurou dividir os angolanos por razões de crença religiosa e ordenou medidas para impor a religião protestante nas regiões de Angola onde actuavam africanos enganados por ele”. Ele fomentava uma política de hegemonia dos povos do distrito do Congo sobre as outras regiões de Angola” 878 . Porque conhece mal a língua portuguesa, Holden Roberto, falho de senso das realidades, desenvolveu 879 uma campanha para impor a língua francesa na Angola independente” . A constituição da FNLA/GRAE e o seu provável reconhecimento internacional direccionou o discurso de estigmatização não apenas ao líder, mas ao novo grupo instituído. 873 UHURU (Boletim da FNLA/1962) arquivo pessoal. O sublinhado é nosso. No número seguinte podemos encontrar as seguintes considerações: ”[Agostinho] Neto speaks of “clas” and we very much agree, for the mestiçassimilado group, in our humble opinion,constitutes the prototypes of what will be an Angola national bourgeoisie if the revolution we want should fail (Marcum1978: 336) citando a revistaUhuru-Angola, nº 2 de Março de 1963. 874 O que confirma a nossa percepção de que capital político da UPA/FNLA está corporizado em Holden Roberto. Denegar o líder é denegar o grupo. 875 “O MPLA na ONU”, Fevereiro de 1962 em Lara (2006: 257-264). 876 Lara (2006: 263). 877 “Comunicado do Comité Director do MPLA” datado de 26 de Março de 1962, em Lara (2006: 281-284). 878 Lara (2006: 282). 879 Lara (2006: 282). 206 Talvez porque, quando se trata do reconhecimento jurídico internacional, todo o capital político é atribuído ao grupo instituído: “A UPA e o PDA, e por conseguinte a FNLA, são organizações de carácter tribal e regional que não possuem nem estruturas sólidas nem um programa susceptível de lhes assegurar o apoio das 880 massas angolanas” . Podemos considerar que na luta de classificações entre as duas formações políticomilitares, as estratégias de classificação/estigmatização assentam num lógica de atribuição identitária, que pode ser sintetizada desta maneira881: Figura 12 - Classificação através da Estigmatização MPLA FNLA FNLA Tribalistas, racistas, estrangeiros MPLA Assimilados, filhos de colonos, mestiços Trata-se de uma forma particular de luta de classificações, em que se empregam taxinomias que visam reduzir o outro ao particular em detrimento do universal, ao regional em detrimento do nacional, ao exógeno em detrimento do endógeno. Classificações cuja produção não pode ser dissociada da construção um espaço social colonial. Mas, as categorias usadas pela FNLA serão, até finais de 1963, mais eficazes de ponto de vista da mobilização política porque: “A organização de Holden Roberto beneficia, na altura, de duas vantagens políticas essenciais: goza de um forte apoio internacional e é sobretudo ela quem recebe o apoio das massas. Para um MPLA que chegou muito depois da insurreição e que tem na sua direcção e nos seus quadros muitos mestiços – a maior parte vindos da Europa –, conquistar estas massas é um imperativo para poder conduzir uma luta armada. Ora, a UPA – que se tornara FNLA, em Março de 1962, tentará impedir, a todos os níveis, essa ligação do MPLA com as massas: através do seu exército consegue impedir as primeiras tentativas do MPLA de enviar guerrilheiros para Angola; negará, desde os primeiros contactos, a unidade de acção com o Movimento; 880 Memorando do MPLA ao Comité de Coordenação, datado de 6 de Agosto de 1963, em Lara (2008: 278). Muito embora o MPLA não se furtasse de recordar que: “existe de facto no seio do MPLA uma pequenina percentagem de mulatos, como os há também na UPA e noutros partidos angolanos. Esta é uma verdade que ninguém de qualquer partido o poderá negar sem cair em terrível contradição. Mas os nossos poucos mulatos que se encontram no seio do MPLA valem tanto em matéria de patriotismo como os seus irmãos negros. Irmãos disse, porque são filhos das nossas irmãs de raça”. Carta Aberta do Rev. Domingos da Silva em Lara (2008: 191). O que denota quanto a nós um indício da apropriação e utilização pelo campo político, da questão racial segundo as circunstâncias. 881 207 882 desenvolve uma campanha de mobilização racial contra o MPLA tendo em conta a cor dos seus dirigentes” . E, ainda por cima, beneficia do apoio do governo congolês. Significa isto que o breve relato das relações entre o MPLA e FNLA merece ser contextualizado à luz do papel desempenhado pelo Congo Leopoldville, nomeadamente no que respeita ao estado de relações de forças no campo político angolano. 3.4.2 O papel do Congo Leopoldville A tendência para que este país tenha considerado mais a UPA/FNLA em detrimento do MPLA deve-se a um conjunto de factores relevantes de entre os quais podemos assinalar dois, que no nosso entender têm significativa importância. O primeiro releva de certas características do Congo que constituíram trunfos de que dispunha o país, quanto se analisa a sua participação no jogo de relações políticas regionais e internacionais: densidade populacional considerável, extensão territorial, matérias-primas (riquezas estratégicas) e um posicionamento político-ideológico favorável ao Ocidente883. São, pois, trunfos suficientemente importantes para que o Congo, por um lado, influencie os acontecimentos na região, como foi o caso da luta nacionalista em Angola e, por outro, seja considerado, no quadro da guerra fria, um aliado privilegiado dos Estados Unidos e da Europa ocidental na região. O segundo factor diz respeito às afinidades históricas884 entre populações do Congo Leopoldville e populações situadas na região do Norte de Angola nomeadamente, o grupo etnolinguístico Bakongo. São afinidades que se apresentam sob a forma de construção de relações pessoais, linhageiras e de redes sociais, etc. O que contribuiu, embora com oscilações, para que a UPA/FNLA fosse a principal beneficiada do apoio por parte do Governo Congolês, em detrimento do MPLA. Segundo Mário de Andrade: “A crise congolesa iniciada em Julho de 1960, arrastando com ela o desaparecimento de Lumumba e decomposição dos movimentos políticos, introduz o primeiro factor negativo na questão da ajuda aos movimentos de libertação. Na corrida ao apoio logístico, o MPLA é à partida um perdedor, 882 Laban e Messiant (2003:241). Excepto quando Lumumba era primeiro-ministro. 884 São afinidades históricas construídas antes da ocupação colonial, no quadro do antigo reino do Congo como se referiu. 883 208 pois há um trabalho no sentido de tornar impraticável a mobilidade dos seus quadros militares; enquanto que se vai 885 instalando, em torno de uma ampla publicidade a base militar de Kinkouzou, sob o exclusivo controle da UPA” . No decurso do ano de 1961, o governo congolês, embora política e materialmente mais favorável à UPA, tolera a presença do MPLA no seu território. Esta tolerância deve-se em certa medida ao facto de no MPLA existirem militantes com formação superior e estarem, por isso, em condições de contribuir para a supressão do vazio de quadros, sobretudo na área da saúde, resultante da partida de quadros belgas aquando da independência do Congo886. A partir de 1962, é possível notar um descontentamento, por parte do MPLA, face à política de favorecimento unilateral praticada pelo governo do Congo Leopoldville. Por exemplo, Mário de Andrade, em 1962, numa Conferência de Imprensa afirmava que: “a UPA era um movimento cuja clientela era recrutada no seio dos emigrantes angolanos e cujos dirigentes beneficiavam, dada a sua longa vivência no Congo, de apoios pessoais e de acessos facilitados aos Ministérios”887. E, apesar de Agostinho Neto, exprimir publicamente, o seu contentamento pela solidariedade e compreensão em relação à sua pessoa, por parte do governo congolês, o relatório ultra-secreto do MPLA considerava que: “As dificuldades impostas pela incompreensão das autoridades congolesas (...) completam o 888 quadro negro da realidade angolana ”. Em 1963 o MPLA manifesta directamente ao governo congolês a sua preocupação pela política unilateral da mesma: “A União das Populações de Angola (UPA) recusa sistematicamente qualquer troca de pontos de vista no sentido de encontrar as bases comuns para a colaboração na Luta. O MPLA considera que um dos factores essenciais desta divisão é justamente a ajuda unilateral que a UPA recebe da parte do Governo da República do Congo. Por outro lado, essa ajuda toma uma amplitude maior face às dificuldades criadas ao MPLA. (…) No entanto a nossa actividade político-militar é travada pelas autoridades congolesas de uma forma que 889 nos parece discriminatória” . Lúcio Lara890, em carta891 redigida a partir do Congo e dirigida aos 885 Andrade (1964). Não há, contudo, consenso relativamente a esta questão. Para Lara, Lumumba defendia uma integração do MPLA na UPA. Lara (1997: 372). Ver o ponto acima referente à delegação da UPA. 886 Sobretudo no respeitante aos médicos. Muitos membros e simpatizantes do MPLA eram médicos e o seu número suplantava o dos médicos de todo o espaço congolês. Serão estes médicos que estariam na origem do CVAAR, Corpo de Voluntários Angolanos de Assistência aos Refugiados, cujos estatutos seriam aprovados em 21 de Agosto de 1961. Em nosso entender a implantação da direcção do MPLA em Leopoldville não pode ser dissociada do papel desempenhado pelo CVAAR. O papel desempenhado da mesma em solo congolês funcionava, em certa medida, como moeda de troca para a tolerância do governo congolês relativamente à presença do MPLA. 887 Conferência de Imprensa em Bruxelas a 27 de Abril de 1962. Documento MPLA, 1962. Citação livre. 888 Doc. MPLA (1962) . Arquivo pessoal, já citado. 889 Carta da Direcção do MPLA as autoridades congolesas. Lara (2008: 99). 890 Lúcio Lara (Tchiweca) nasceu no Huambo a 9 de Abril de 1929. Fez os estudos primários e secindários no Huambo e em Sá da Bandeira, cursou os estudos superiores (Ciências) em Portugal. Em 1960, integrou o primeiro Comité Director do MPLA. Presentemente encontra-se afastado da vida política. A sua trajectória confunde-se com a história do MPLA. Ver Tali I (2001: 93). 209 “camaradas Agostinho Neto e Mário de Andrade”, acentua as preocupações do MPLA quanto à postura do governo congolês: ”Sabemos que o primeiro deste país está agora fazendo uma campanha junto dos 892 outros países africanos nomeadamente, Nigéria, Accra e outros que cá se encontram para reconhecerem H 893 único interlocutor válido” como . As preocupações dos dirigentes do MPLA que aqui transcrevemos encontram justificação em virtude do governo congolês ter reconhecido de jure o GRAE, a 29 de Junho, no decurso da reunião do Comité de Coordenação para a Libertação de África, em Dar-es- Salam, que se iria realizar de 25 de Junho a 4 de Julho de 1963894. Esta opção política, por parte do governo Congolês era contrária aos interesses do MPLA, que ainda por cima não só conhecia uma crise interna profunda como também encontrava dificuldades em estabelecer com a FNLA relações de entendimento político. Fora a questão do entendimento político que motivara a decisão, do Comité de Libertação Africano reunido em Dar-es-Salam, de enviar uma Comissão dos Bons Ofícios a Leopoldville com a intenção de reconciliar os dois movimentos nacionalistas. Esta medida colocava ao MPLA novos problemas, pois este passaria a estar sujeito a uma avaliação da Comissão, numa situação desfavorável. Situação agravada pelo facto de a 29 de Junho o Governo congolês ter reconhecido de jure o GRAE. Foi em certa medida para tentar impedir que o reconhecimento do GRAE pelo governo congolês alastrasse aos outros países africanos que a 8 Julho em Leopoldville, na semana que antecede a reunião da Missão dos Bons Ofícios fora constituída a FDLA - Frente Democrática para a Libertação de Angola, constituída, por sua vez pelo MPLA, MNA-Movimento Nacional Angolano, NGUIZAKO - Ngwizani-ya-Kongo e UNTA - União Nacional dos Trabalhadores Angolanos. Quanto a nós, a criação da FDLA obedecia a uma estratégia de equiparar-se a outra 891 Carta de Lúcio Lara, dirigida a Agostinho Neto e Mário de Andrade que se encontravam em Adis-Abeba. A carta é datada de 20 de Maio de 1963. Documento MPLA. Arquivo pessoal 892 H designa Holden Roberto. 893 Carta de Lúcio Lara, de 20 de Maio de 1963. Documento MPLA (1963). 894 Comité constituído aquando da criação da OUA com o fim de auxiliar materialmente os movimentos nacionalistas e independentistas. Procurava igualmente garantir a eficácia desta ajuda. Gomes e Afonso 4 (2009: 108). 210 Frente (FNLA)895, de modo a conseguir o reconhecimento internacional e impedir o desaparecimento do MPLA896. Porém, a criação da FDLA não surtira os efeitos desejados897. O Congo Leopoldville reiterara o seu reconhecimento de jure evocando dois motivos principais: i) o facto do GRAE constituir uma frente angolana organizada militarmente e ocupando efectivamente uma parte de Angola; ii) o facto de existirem desentendimentos comprovados no seio do MPLA. Para o governo Congolês, estes motivos constituíam razões suficientes para manter a sua irrevogável decisão de apoio ao GRAE898. Decisão que iria influenciar, no nosso entender, o relatório final da Comissão dos Bons Ofícios que continha um conjunto de considerações nada favoráveis ao MPLA. No dito relatório considerava-se que havia uma cisão no seio do MPLA e que um significativo número de pessoas que tinham recebido treino militar sob os auspícios do MPLA tinha integrado a FNLA ou abandonado o MPLA, sendo que aqueles que permaneceram no MPLA não estavam engajados em nenhuma actividade militar. Comparativamente à FNLA, a importância do MPLA era reduzida899. As considerações da Comissão iriam sustentar as recomendações finais do relatório de 19 de Julho de 1963, cujo conteúdo, não era nada abonatório relativamente aos interesses do MPLA. No mesmo consta que: i) toda a ajuda para a libertação de Angola deve ter como único intermediário o Congo Leopoldville; ii) a FNLA deve ser considerada a única Frente de Libertação de Angola; iii) o relatório geral da Comissão dos Bons Ofícios, entre outras decisões, convida o Conselho dos Ministros da OUA a recomendar o reconhecimento do GRAE, aquando da sua próxima reunião em Dakar, a todos os Estados africanos independentes. Esta medida é considerada pela Comissão, como uma acção não só eficaz e positiva contra Portugal, como também favorável à rápida libertação de Angola.900. E assim aconteceu: em Agosto de 1963 os 895 Mas a criação da FDLA merece ser equacionada à luz dos interesses na região por parte do governo do Congo Brazzaville, sobretudo no que concerne a Cabinda, aquando da vigência de Fulbert Youlu. Ver Marcum (1978: 8182). 896 Muito embora segundo Lara (2008: 173) o projecto existisse desde os fins de Maio de 1963. Projecto, esse, talvez inserido no sentido de retirar as bases etnolinguísticas que sustentavam a FNLA. 897 Por causa da criação da FDLA, uma figura de vulto do MPLA iria apresentar a sua demissão: Mário de Andrade. 898 “Comunication du Governement Congolais sur L’Angola“. Documento 12. Provavelmente de 15 de Julho de 1963. Arquivo pessoal. 899 Rapport General de la Mission des Bons offices de la Commission de Coordination pour la Libération de L’Afrique Auprès des nationalistes de L’Angola. Leopoldville, 19 Juillet de 1963. Ver igualmente Reis (2002). 900 “Rapport Général de la Mission des Bons Offices de la Commission de Coordination pour la Libération de L’Áfrique Auprès des Nationalistes de L’Angola“. Leopoldville 19 de Juillet de 1963 .Ver igualmente Lara (2008); Mbah (2005); Marcum (1978); Reis (2002). 211 ministros dos negócios estrangeiros dos países da OUA reunidos em Dakar acatavam as recomendações da Comissão dos Bons Ofícios reconhecendo o FNLA/GRAE901. Em Outubro de 1963, as autoridades governamentais congolesas decidem encerrar as delegações do MPLA no Congo Leopoldville, passando a organização nacionalista a ter como alternativa fixar-se no Congo Brazzaville, de modo a poder dar continuidade às suas actividades político-militares. O Congo Brazzaville passa, assim, a constituir a base de apoio prioritária do MPLA, na prossecução da luta armada em Angola. As relações de tensão entre o MPLA e o governo do Congo Leopoldville, não se limitam às questões relativas ao apoio material e político que este último, na sua condição de país hospedeiro dos movimentos nacionalistas, deveria conceder ao primeiro. O Congo Leopoldville, como espaço social, era um contexto desfavorável de ponto de vista dos fundamentos culturais e ideológicos que estão na origem da estranheza manifestada pelo meio político congolês em relação à presença de determinados angolanos, menos ligados ao norte de Angola. Segundo João Vieira Lopes: “ (…) tudo isso são factos da história. (…) Gerações completamente diferentes, modos de comportamento resultantes de uma formação social, cultural e política diferente, associando a isso um sentimento tribal que nós sentimos encontrar no zairense e influenciando fortemente os angolanos residentes no Zaire. É coisa que os angolanos que integravam o MPLA vindos quer do exterior de Portugal quer mesmo do interior não demonstravam possuir. Eu acho que isso pode ter contribuído para dificultar a implantação do MPLA no Zaire. Para além, está claro, da grande alegação que faziam de que o MPLA e, por conseguinte, todos os seus 902 militantes eram comunistas” . Mas não era só um contexto desfavorável para o MPLA de ponto de vista cultural e político-ideológico, era um contexto igualmente desfavorável de ponto de vista de fundamentos simbólicos que estão na origem da estranheza manifestada pelo meio político congolês em relação à presença de mestiços na direcção do MPLA. Essas manifestações de estranheza teriam influenciado a decisão de Viriato de Cruz relativamente à remodelação do Comité Director do MPLA, em Maio de 1962903. 901 Gomes e Afonso 4 (2008: 70-71); Marcum (1978: 97:99). Jaime e Barber (1998: 106). Ver igualmente as declarações de Daniel Chipenda e Calos Belli Belo igualmente em Jaime e Barber (1998: 114-153). 903 Entrevista, de 1982, concedida pelo médico Eduardo Macedo dos Santos. O Dr. Eduardo Santos (1921- 2001) foi responsável do CVAAR em Leopoldville. A sua trajectória está associada à formação do primeiro Comité Director do MPLA, em Conakry, em 1960. Ver igualmente entrevista de Carlos Belli Belo em Jaime e Barber (1998: 121). 902 212 3.5 O tempo da explosão. As classificações assentes em propriedades rácicas/características somáticas como exemplo de lutas de classificações no seio do MPLA Tal como afirmámos anteriormente, a eleição de Agostinho Neto como presidente do MPLA não tinha posto fim à crise. Antes pelo contrário. Confrontos físicos, demissões, expulsões, e perigo de fragmentação tornam-se características da dinâmica interna da crise904. É a bipolarização do grupo político que se iria traduzir em duas direcções políticas: o novo Comité Director proclamado pelo grupo Viriato e o Comité Director do MPLA liderado por Agostinho Neto905. Tendo em conta a nossa abordagem e de ponto de vista do discurso produzido, podemos considerar que a partir de 1963 a retórica produzida pelos actores individuais e colectivos envolvidos na crise reenvia, em certa medida para lutas em torno da institucionalização do capital político em articulação com princípios de classificação que, por sua vez, são objecto de questionamento e luta política – como tal utilizadas como classificações políticas – nomeadamente aquelas que dizem respeito às classificações assentes em propriedades rácicas/características somáticas. Estas lutas de classificação tiveram também consequências fora do sub-campo político do MPLA, sobretudo no respeitante aos grupos ou indivíduos classificados de brancos. A questão do lugar dos classificados de brancos, no espaço nacionalista angolano, não pode ser dissociado do contexto de crise vigente na época. 3.5.1 A retórica do grupo Viriato 904 No respeitante aos confrontos físicos podemos assinalar os que se travaram a 7 Julho, em Leopoldville, entre os partidários das duas facções. Quanto às demissões, podemos assinalar algumas: Manuel Lima, Mário de Andrade, Gentil Viana, João Vieira Lopes, Manuel Videira. Os motivos destas demissões são diversos e denotam outras posições políticas, mais pessoais, do que a adesão a um dos dois grupos em confronto. Das expulsões podemos assinalar as de Graça Tavares, Matias Migueis e do próprio Viriato da Cruz. Ver Gomes e Afonso (2009), Lara (2008); Reis e Reis (1996). 905 A 5 Julho, Leopoldville uma proclamação assinada por Viriato da Cruz, Matias Migueis, José Bernardo Domingos e José Miguel na qual se retira toda a autoridade ao Comité Director eleito pela Conferência Nacional. É, igualmente anunciada a criação de um Comité para a Unidade e Cooperação mandatado para: a) “Dirigir todo o Movimento com o seu Executivo Supremo provisório;” b) “Liquidar todas as divisões no seio do MPLA;” c) “Unir o MPLA à FNLA, mantendo porém a autonomia do MPLA no seio da FNLA;” d) “Apoiar o GRAE e resolver o problema da participação do MPLA nos órgãos do GRAE;” e) “Convocar num prazo de três meses um Congresso do MPLA para a eleição de novos órgãos dirigentes;” Ver Reis e Reis (1996); Reis (2002). Em Lara (2008: 217221) encontramos duas proclamações do grupo Viriato. 213 Na retórica do grupo Viriato a utilização de categorias raciais permite associar estas últimas à traição: ”Não quero a troca de poderes para portugueses pintados de preto ou mulato. Não aceito dar o meu lugar aos enteados de Angola. Hoje duvido da honestidade de muito filho de colono, ele não é mais do que o produto do pai. Qual foi o ambiente que o modificou? De Portugal?... “906. Mas a relação com a traição possibilita questionar não só os dirigentes considerados mais claros mas igualmente toda a direcção do MPLA: “Não aceito as palavras mansas dos pretos vendidos ao imperialismo, que directa ou indirectamente receberam deles favores porque se os cães são reconhecidos aos seus donos como não o serão os homens. Eu nunca deixarei de lutar tanto contra os brancos colonialistas como contra os pretos, mulatos ou cabritos exclusivicionistas” 907 . A retórica em torno da questão racial possibilita assinalar a incapacidade, por parte do grupo Neto, de ruptura com a política colonial portuguesa: “Por outro lado, o grupo que usurpou a direcção do nosso Movimento marcha, desde há muito, em direcção dos desejos dos portugueses. Eles vêm repetindo que é preciso impedir que o Holden chegue ao poder e que quem deve chegar ao poder são eles; eles vêmse esmerando em dar lições de moral ao povo, condenando principalmente o “racismo” (como ousaram escrever 908 numa das resoluções da Conferência) que, segundo eles, o povo teria praticado durante a luta armada no norte” ; O uso de categorias raciais possibilita questionar e desacreditar o Comité Director emanado da Conferência Nacional de 1962, considerado como factor de descrédito e fragmentação do grupo instituído: “Depois da remodelação do C. Director, em Maio de 1962, ele qualificou essa remodelação como uma “vendilhagem” da direcção do Movimento aos negros. Uma das razões porque ele apoia servilmente o Neto é que ele (como aliás, uns tantos como ele) pensa que o Neto é a garantia de que o Movimento nunca será dirigido apenas por negros. Nem outra é a posição do Lara. Isto tudo mostrou aos olhos da opinião estrangeira um MPLA a desfazer-se aos bocados” 909 . As categorias raciais possibilitam questionar a seriedade e a coerência política de Agostinho Neto: “ (…) durante todas as sessões da Comissão os mestiços do Comité Director Neto foram deixados em casa. A essas sessões Neto só apareceu com dirigentes negros” 910 . Uma das formas de desvalorização do capital político instituído é o questionamento da relação entre competência para o exercício da política e posse de capital escolar: “Não vos tomeis de 906 Carta de Graça Tavares a Lúcio de 28 de Fevereiro de 1963 em Lara (2008: 65-66). Lara (2008: 66). 908 Carta de Viriato da Cruz de 13 de Março de 1963 dirigida a Matias Migueis em Lara (2008: 81). 909 Lara (2008: 41). 910 Reis (2002: 77); ver Também Reis e Reis (1996). 907 214 complexos de inferioridade diante de indivíduos com títulos. A política não se aprende nas universidades, mas 911 defendendo corajosamente os interesses do povo, defendendo a verdade, a justiça e a democracia” . Mas, convém recordar que é Agostinho Neto quem corporiza o capital político do grupo. O facto de Neto ser portador de um notável crédito político limita o efeito mobilizador das classificações raciais912. Sendo assim, a estratégia discursiva do grupo Viriato assentará na denegação da crença de que o grupo liderado por Neto é depositário. Dois argumentos servirão para pôr em causa o capital político de Agostinho Neto, a traição pura e simples e a ambição pessoal: “a verdade é que o grupinho, dirigido pelo Dr Neto tem acordos secretos com os colonialistas portugueses (…) os colonialistas portugueses resolveram ganhar para o seu lado alguns dirigentes angolanos, prometendo-lhes uma participação no poder político, no quadro da autonomia interna e dando-lhes garantias para que eles pudessem regressar a Angola no momento oportuno. Os colonialistas fizeram tais promessas e deram tais garantias ao Dr Neto e a alguns dos seus amigos. (…) É evidente que esse comportamento revela uma ambição exagerada, uma grande sede de poder de riqueza e de prestígio” 913 . 3.5.2 A retórica do grupo Neto No que diz respeito ao denominado grupo Neto, é possível constatar na produção discursiva o recurso às categorias raciais. Contudo, o uso destas obedece a uma estratégia de manutenção e consolidação do capital político instituído no decurso da Conferência Nacional. Mas, as categorias raciais servem igualmente para as associar à fidelidade política (tanto nacional, como racial): “Diz-se que deves odiar o MPLA porque é um movimento de mulatos. Que os mulatos são traidores. Calúnia dos inimigos da pátria! Traidores há em todos países e em todas raças. Pode haver traidores mulatos como há traidores pretos e como os há brancos. Além de terem nascido em Angola e de terem sangue africano nas veias, os mulatos de MPLA nunca quiseram passar por brancos nunca renegaram a sua pátria nunca 914 foram a favor de Salazar como muitos pretos conhecidos” . A estratégia de manutenção do capital instituído implica, igualmente, um discurso de valorização do capital escolar, sendo este último, considerado como atributo fundamental – de competência – para o exercício da política. Daí que no discurso produzido constatemos a denegação do estigma de “universitários”: “Diz-se que o MPLA é o inimigo do povo só porque tem doutores universitários e filósofos. Calúnias dos inimigos da pátria. Os doutores do MPLA saíram do Povo. 911 Lara (2008: 41); Tali I (2001: 84); Cruz (1964). Sendo que ele é percepcionado como negro. 913 Doc. Do Comité Director Provisório de 31 de Outubro de 1963. Arquivo pessoal. 914 Panfleto do MPLA datado de 20 de Março em Lara (2008: 98). 912 215 Estudaram para saber. Sabendo defendem melhor os interesses de Angola. Em todos os países do mundo, os representantes do Povo são gente que sabe, são gente que estudou. Para tratar com os outros países mais adiantados é preciso estudar, é preciso saber. Ainda bem que o MPLA tem doutores, universitários e filósofos nas suas fileiras. 915 Assim o povo angolano fica melhor defendido” . Todavia, a retórica do grupo Neto adquire força quando é o porta-voz que assume o exercício da classificação legítima. Assim, através de uma carta dirigida aos quadros dirigentes estagiários na Argélia redigida por Agostinho Neto, podemos vislumbrar um discurso de denegação da crença de que as classificações assentes em propriedades rácicas/características somáticas e o capital escolar descapitalizam o capital político instituído916. Neto desvaloriza, assim, a eficácia simbólica destas últimas através de um trabalho de objectivação da traição, e da ambição pessoal: “Começando por palavras de ordem esquerdistas, (como por exemplo o combate contra a tese da inevitabilidade do neocolonialismo, gratuitamente atribuído a nós) acabou este grupo fraccionista917 por se submeter à orientação da UPA propagando as suas frases racistas, incluindo os ataques aos mestiços e suas esposas brancas, repetindo um ódio estranho contra os universitários, e finalmente assobiando mal a ária do colaboracionismo que já o Holden cantava contra o MPLA desde há muito [mais] tempo. Esse grupo fraccionista procura hoje após a sua expulsão uma integração na corrente Holden e no seu “governo”, ao mesmo tempo que continua a sua acção para destruir totalmente o MPLA. E o que é triste é que tudo acontece porque Viriato da Cruz «foi o primeiro na escola, foi o primeiro no liceu, foi o primeiro na política e não pode ficar no quintal do Senhor 918 Neto» – conforme ele próprio explicou” . Neste discurso, que é também de descrédito do capital político de Viriato da Cruz, encontramos uma estratégia de responsabilização/culpabilização mediante um trabalho de objectivação não só da traição e da ambição pessoal, mas igualmente da covardia, da divisão do grupo e da falta de convicções: “De facto, desde há um ano, começaram a revelar-se as contendas enquistadas entre os dirigentes do Movimento, minando as relações entre estes, bem desde Conakry e mesmo desde Paris e Accra. O pessoalismo, a sede de poder, a ambição mal escondida, a presunção e ainda a falta de coragem para enfrentar directamente o inimigo, eram notórios em alguns. Os aspectos mais declarados destas competições intestinas foram revelados recentemente, com a actividade fraccionista de Viriato da Cruz mais tarde pela tentativa de golpe de força dirigido por este, ou ainda os planos de liquidação física dos dirigentes actuais do movimento. Os camaradas menos avisados, não notaram que quem hoje se submete incondicionalmente ao Holden, sob [a] frágil capa de “Unidade”, não foi capaz de se entender com os seus próprios camaradas de Conakry e guerreia com ódio aqueles entre os quais se encontrava; não foi capaz de falar de conciliação senão depois de terem sido abortados os 915 Lara (2008: 98). “Carta de Agostinho Neto aos camaradas da Argélia” de 27 de Agosto de 1963 em Lara (2008: 287-292). 917 Fraccionista é quanto a nós uma classificação estruturante do sub-campo político MPLA, pois remete para a heresia em detrimento da ortodoxia. 918 Lara (2008: 287). 916 216 planos de destruição do Movimento e da liquidação física dos seus antigos companheiros. Sejam quais forem os princípios ultra-revolucionários invocados toda esta prática exala desonestidade, e compreende-se como é difícil pactuar com ela” 919 . Mas o discurso produzido por Agostinho Neto retira também a sua eficácia pelo facto de o MPLA viver uma situação de crise. E, como tal, Neto produz um discurso de dramatização associado à perda e à orfandade: “os acontecimentos dos últimos meses e, especialmente, a recomendação da Comissão de Conciliação, assim como o reconhecimento do «governo» de Holden por alguns países, provocaram aos militantes do nosso Movimento as mais justificadas preocupações. Provocaram também alarme e desespero. E a tal ponto que todas as dificuldades internas do Movimento foram hipertrofiadas, e a conspiração imperialista contra o MPLA desprezada na análise apreciativa destes factos. Pensar na deserção, no recuo, na desistência é hoje 920 consequência da sensação de derrota irreversível que alguns experimentam” . Da dramatização passa-se para a salvação e o plebiscito de modo a garantir a coesão do grupo: “Nós estamos firmes no nosso posto, continuaremos a orientar a luta. Mas, porque somos um Movimento Democrático (…), teremos um confronto com os militantes dentro uma Reunião Alargada a realizar em breve e à qual podereis mandar o vosso representante e expor as vossas críticas, as vossas sugestões e mesmo as vossas inquietações (…). Rascunhada sobre o joelho com a pressa de apanhar o avião, esta carta não vos satisfará. Compreendei porém as insuficiências de quem se encontra mergulhado até ao pescoço nos problemas do nosso 921 país . O discurso produzido por Agostinho Neto reenvia-nos para a emergência da figura do salvador que em situação de crise se torna não só o porta-voz do grupo mas o porta-voz da crise do grupo, mas sempre dissociado da causa da crise do/no grupo922; o que torna o grupo devedor perante a sua pessoa. E, assim, Agostinho Neto reforça a sua autoridade no seio do Movimento. 3.5.3 Os efeitos da crise do MPLA na questão da inserção dos classificados de brancos no espaço nacionalista angolano. Entre a inclusão e a exclusão 919 Lara (2008: 289). Lara (2008: 287). 921 Reis e Reis (1996: 707); ver igualmente Lara (2008: 292). 922 Este distanciamento face à crise é exprimido do seguinte modo: “De facto, desde há um ano, começaram a revelar-se as contendas que viviam enquistadas entre os dirigentes do Movimento, minando as relações entre estes, bem desde Conakry e mesmo desde Paris e Accra”. Lara (2008: 288). 920 217 A questão dos classificados de brancos e do seu lugar no espaço nacionalista tornou-se igualmente num problema político de difícil solução923. À primeira vista, é inegável que estamos perante uma exclusão dos classificados de brancos do espaço nacionalista angolano. No caso do MPLA, podemos considerar que o contexto do Congo Leopoldville924, a luta pela hegemonia do espaço nacionalista com a UPA/FNLA e, obviamente, a situação de crise interna, não favoreciam uma política de integração de elementos classificados de brancos no seio deste Movimento, nomeadamente de grupos políticos como era o caso da FUA - Frente de Unidade Angolana. Muito embora o MPLA condenasse a intolerância racial, na prática, a questão da integração dos classificados de brancos revestiu-se de uma profunda ambiguidade. Com efeito, podemos vislumbrar, no texto referente à linha política do Movimento, um forte indicador desta ambiguidade. Por um lado, temos a condenação vigorosa do “tribalismo, regionalismo, sectarismo, a intolerância racial e religiosa”925; por outro, encontramos uma distinção entre “grupos políticos dirigidos por portugueses progressistas nascidos em Angola” e “movimentos nacionalistas angolanos”926. Esta ambiguidade, nomeadamente no que respeita ao princípio de inclusão/exclusão, daria azo a tomadas de posição por parte de alguns nacionalistas quer a título individual quer a título colectivo e, ainda, no âmbito da organização política. Dessas tomadas de posição, podemos distinguir aquelas que interpretam esta ambiguidade como um princípio de exclusão racial e aquelas que exprimem a sua compreensão perante a postura do Movimento, atendendo às circunstâncias da época. Menos ambígua foi a posição do MPLA perante a FUA. Aqui no caso, predominou o princípio da exclusão. Muito embora fosse uma exclusão com fundamento político, pois obedece à dinâmica de um campo político, em processo iniciático, num contexto de crise. Aliás como organização política, a FUA foi excluída pelas duas principais organizações político-militares do espaço nacionalista; tal não impediu que, após a sua dissolução como organização política, alguns dos seus membros integrassem o MPLA. 923 Com efeito convém recordar que a categoria branco era frequentemente associada ao arbitrário colonial. Ver Capítulo anterior. 924 Julgamos que nas percepções congolesas dos nacionalistas angolanos, ser mestiço ou branco era igual. Ambas as categorias estavam associadas ao arbitrário colonial/europeu. 925 Lara (2008:527). 926 Lara (2008: 528). 218 Assim, pensamos que a questão da inserção dos classificados de brancos no espaço nacionalista angolano merece também ser abordada tendo em conta o papel que a FUA desempenhou no referido espaço. 3.5.3.1 A “Carta Aberta ao Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), subscrita por Nacionalistas Angolanos de Raça Branca” e as cartas de Jorge Pires. Indignação e compreensão. Numa carta aberta ao MPLA, um grupo auto designado “Nacionalistas Angolanos de raça branca”, 927 provavelmente de alguns militantes da FUA, manifesta o seu descontentamento pelas “resoluções finais da 1ª Conferência Nacional do MPLA realizada, em Dezembro de 1962”928. De entre as resoluções, a que mais indignou os signatários foi a classificação: “portugueses progressistas nascidos em Angola”929. Classificação, que para os autores da referida carta os marginaliza do espaço nacionalista angolano pois a designação “portugueses progressistas nascidos em Angola” implica serem considerados não angolanos. A indignação face à utilização do termo português é acrescida pelo facto de equivaler a uma alusão à cor da pele, fenótipo que impede a inclusão do referido grupo no território circunscrito das tarefas necessárias à produção e circulação dos bens políticos930. É neste sentido que os signatários apelam para uma reformulação do conceito de angolano. Sendo assim, os mesmos consideram-se angolanos por jus solis. (argumentação jurídica): “(…)Verifica-se extremamente difícil: diríamos mesmo impossível definir um tipo nacional na presente conjuntura (a não ser no “jus solis”) que procurasse uma nacionalidade com base no “jus sanguinis)”.931 Ao argumento jurídico os signatários acrescentam o argumento do sacrifício patriótico assumido até às últimas consequências: “ (….) para além de um gritante acto de injustiça, seria desconhecer (….) as prisões e perseguições de toda a ordem de que têm sido vítimas aqueles que, embora de “raça branca, mas animados do mesmo espírito de 932 liberdade e descolonização (….) se têm dedicado ardorosamente à luta pela libertação da nossa pátria” ; 927 Rocha II (2002: 110-113); Tali I (2001: 454-456). “Carta aberta ao Movimento Popular de Libertação de Angola” em Rocha II (2002: 110-113); ver igualmente Tali I (454-456). 929 Note-se que a afirmação que consta no texto produzido pelo MPLA é: “Do mesmo modo, o MPLA encoraja a acção dos grupos políticos dirigidos por Portugueses progressistas nascidos em Angola que a exemplo de alguns, visam neutralizar o apoio que os colonos concedem às forças de repressão e se dispõem a bater-se pelos mesmos objectivos dos movimentos nacionalistas angolanos”. Lara (2006: 522). A frase é bastante polissémica, pois dá azo a múltiplas interpretações. 930 Rocha II (2002: 110-113) Ver igualmente Tali I (454-456). 931 Tali I (2001: 455). 932 Tali I (2001: 455-456). 928 219 julgamos estar subjacente no texto, uma nova proposta classificatória dicotómica: angolanos de raça branca/portugueses de raça branca. Estamos perante um discurso que é igualmente um exercício de rejeição de uma categorização identitária resultante do trabalho de construção da realidade política que, mais do que hierarquizar, exclui. Ao contrário dos signatários anteriores que assumem uma posição colectiva e se intitulam de “angolanos de raça branca”, Jorge Pires assume, numa posição a título individual, o facto de a sua cor ser associada ao arbitrário colonial933. Como tal, o mesmo compreende a postura do MPLA tendo em conta as circunstâncias políticas. Assim, para contornar o constrangimento do branco = colonizador, Jorge Pires apresenta uma proposta de duplo sacrifício de modo a garantir o seu lugar como indivíduo no seio dos angolanos. O primeiro, refere-se ao sacrifício identitário (do espírito) de modo a conquistar a sua identidade. O autor da carta assume-se como não angolano, embora deseje sê-lo: “Até vir para Moscovo soube de diversos problemas que tinham surgido, um deles era que os indivíduos brancos não podiam pertencer ao MPLA por motivos tácticos. (…) Eu sou branco, filho de portugueses, natural de Angola, sem que isso me dê de antemão o direito de me intitular angolano. (Ora o que eu quero não é mais do que conquistar o direito à 934 cidadania angolana)” . Todavia, para conseguir resgatar a “boa identidade”, o autor propõe um segundo sacrifício, o sacrifício do corpo: “E acho que nesta altura, a melhor maneira de a conquistar é com 935 as armas na mão . Desse modo, através do duplo sacrifício, o autor propõe um acto de doação de sentidos 936 de modo a que a sua cor não seja associada ao arbitrário colonial e por conseguinte lhe seja reconhecida a sua identidade de angolano: “Eu sei, perfeitamente que me vão apontar uma série de obstáculos, como por exemplo o da cor da pele e à reacção das massas angolanas ao verem um branco que se diz também angolano, mas que é da mesma cor dos colonialistas e filhos de colonialistas. A isto eu posso responder que não é após a independência que se vão habituar a ver brancos, filhos ou não de Angola que estão com eles de corpo 937 e espírito, porque só duma delas não é muito satisfatório” . Um outro aspecto interessante que importa aqui salientar é que o autor, ao contrário dos signatários anteriores, dos quais ele se demarca, deixa ao critério do sub campo político MPLA a 933 “Carta de Jorge Pires ao MPLA” de Janeiro de 1963 em Lara (2008: 42) e “Carta de Jorge Pires a Lúcio Lara de 2 de Março de 1963 em Lara (2008: 76-77). Ver anexos nº 19. 934 Lara (2008: 42). 935 Lara (2008: 42). 936 Expressão utilizada por Bourdieu (1989: 191). 937 Lara (2008: 42). 220 atribuição da sua identidade tanto política como nacional: “Sou filho de país portugueses e por consequência branco. Ora é devido a essa circunstância que eu lhe escrevo. (…). Mas o problema agora já não é só oferecer-me para o “maquis”, mas sim a minha condição de branco frente ao MPLA. Numa das resoluções referentes à linha política do MPLA que li no Vitória ou Morte, vem o seguinte: «Encorajar a acção de grupos políticos dirigidos por portugueses progressistas nascidos em Angola que visem neutralizar o apoio dispensado às forças de repressão pelos colonos, e a lutar pelos objectivos dos movimentos nacionalistas angolanos». A conclusão que se pode tirar é que isto é um encorajamento à FUA tal como ela está organizada. Ainda surge outro problema. Actualmente sou considerado como português o que não permite de modo algum ser militante do MPLA e por consequência também não me permite entrar no maquis. Sendo esse o meu maior desejo é natural que eu pergunte o que fazer? Qual a ideia do MPLA em relação ao elemento branco? Devo esperar que a situação em Angola mude, que a revolução evolua, que se faça um Front, para poder ir combater? Ou devo agregar-me a FUA sem pensar mais 938 em tal solução . É muito provável que a carta não tenha tido resposta. Todavia merece ser sublinhado, a interpretação que o autor da carta faz da frase, “grupos político dirigidos por portugueses progressistas nascidos em Angola”. Considera o mesmo que a frase não é dirigida aos classificados de brancos939. No seu entender, a dita frase é uma alusão à FUA e mais propriamente, às suas características organizacionais. O que nos leva a tecer algumas breves considerações acerca do lugar da FUA no espaço nacionalista angolano. 3.5.3.2 O lugar da FUA no espaço nacionalista angolano A FUA - Frente de Unidade Angolana, criada em Janeiro de 1961, defendia a: “autonomia política do território, como primeiro passo para uma futura independência de Angola”. A FUA era apenas uma organização política, não militar, que se constituíra numa frente porque: “ (…) naquela altura existiam vários movimentos, grupos e grupinhos, sem considerar o MPLA e a UPA, dispersos por todo o país, que, importantes ou não, interessava congregar para unir forças num objectivo que era comum a todos eles: a independência nacional. Ora, a FUA aspirava a unificar todos, sem excepção, numa frente 940 única, e daí a sua designação: Frente de Unidade Angolana” . No seu manifesto de 5 de Abril de 1961, em Benguela, a FUA apelava para o exercício duma pressão constante sobre a governação salazarista e condenava o recurso à violência por parte quer do regime colonial, quer dos movimentos nacionalistas. Esta frente chegara a apelar à mobilização de toda a população de Angola em torno dela de forma a lutar ordeira e 938 Lara (2008: 77). Como tal, retira o conteúdo racial a frase. 940 Dáskalos (2000: 84). A propósito da FUA ver igualmente entrevista de Adolfo Maria a Pimenta (2006). Ver igualmente Pimenta (2008). 939 221 pacificamente pela “autonomia a que todos os povos têm direito”941 Acontece que tais propósitos não eram compatíveis com os projectos políticos da UPA/FNLA e do MPLA. A partir de 1962 e já no exílio, em Paris, a FUA altera o seu projecto político de modo a torná-lo mais adequado aos desígnios políticos do MPLA. Segundo Pimenta: “a análise da composição sociológica da FUA no exílio revela diferenças assinaláveis em relação ao movimento que cerca de ano e meio antes tinha sido fundado em Benguela. Muito significativo de ponto de vista político foi o facto de todos os membros do movimento no exílio serem intelectuais. Do núcleo dirigente original apenas Sócrates Dáskalos foi para o exterior. Muitos desses intelectuais tinham uma formação marxista e alguns tinham mesmo pertencido a organizações comunistas (por exemplo Adolfo Maria). Esta transformação da composição social e política da FUA no exílio reflectiu-se na sua orientação e ideológica, no sentido em que o movimento esboçou uma aproximação ao nacionalismo africano, nomeadamente ao MPLA” 942 . É neste sentido que a FUA preconiza, no seu Programa mínimo: “como objectivos principais a luta – por todos os meios – contra o colonialismo português e 943 qualquer outra forma de imperialismo, no sentido de conquistar a independência de Angola” . O que significa que a FUA passou a aceitar o recurso à luta armada. Mas o novo rumo político da FUA nunca impediu que esta fosse encarada com desconfiança pelas organizações nacionalistas armadas, nomeadamente pelo MPLA944. Tal desconfiança deve-se, porventura, ao facto de a FUA nunca ter sido dissociada daquela “fua” que preconizava: uma independência por etapas e o diálogo com as autoridades coloniais. Daí que o MPLA tenha manifestado uma profunda desconfiança perante um “Movimento de brancos bons”, com fraco poder de mobilização política: “A prontidão com que a repressão salazarista agiu leva à conclusão de que a FUA nunca deve ter existido como organização, sendo de duvidar que os diferentes grupos tenham tido qualquer acção clandestina que ultrapasse o aliciamento de novos aderentes ou a recolha de abaixo-assinados de protesto. Apesar disso é necessário ter em conta que a FUA é expressão de razões objectivas, inquietudes e ambição dentre da população branca de Angola há muito radicada e que este elemento estático pesará em todas as oportunidades que a luta oferecer. (…) O MPLA deve encarar desde já uma conduta definitiva relativamente à FUA e que diga respeito ao futuro da população branca de Angola. Da exposição feita e dos factos que cada dia se vão amontoando, impõe-se como primeira precaução, que a FUA seja 941 Pimenta (2008: 235). Pimenta (2008: 245). 943 Pimenta (2008: 246). 944 E igualmente pelo FNLA/GRAE que considerava a FUA de: “organização de portugueses com interesses suspeitos sobre Angola”. Pimenta (2008: 251). Segundo Rocha II (2002: 96) a UPA considerava a FUA como: “ (…) organização (…) constituída por brancos que não simpatizam com Salazar, mas que para Angola apenas pretendem a autonomia interna, a que se poderá seguira independência por escalões. Mais claramente: o neocolonialismo, em que a minoria parda ou branca, mais privilegiada e organizada, continua a torpedear os interesses de milhões de negros. Aliás, a revolta do 15 de Março tornara difícil a aproximação entre os classificados de brancos e a UPA/FNLA. 942 222 encarada como “brancos bons” que querem assegurar o seu futuro em Angola e que aproveitando-se das condições de luta pela independência comandada do exterior, está tentada a fazer um jogo de oportunismo para manter a 945 supremacia da sua influência durante a luta e na Angola independente . Outro factor dissuasor de uma aproximação entre o MPLA e a FUA foi o contexto de crise em que vivia o MPLA. Como vimos acima, as classificações assentes em propriedades rácicas/características somáticas haviam sido convertidas em recurso político. Assim, à mínima suspeita de aproximação à FUA era imediatamente pretexto de denegação por parte do outro, nomeadamente do grupo Viriato: “eles vêm declarando que a FUA é um “movimento nacionalista formado por brancos negros e mulatos” (como o Neto declarou numa Conferência de imprensa que deu em Paris, em 30 de Janeiro último”946. “Presentemente como politização se está martelando aos ouvidos dos camaradas do EPLA a necessidade de uma colaboração com a FUA que dizem pretender ajudar o MPLA como se aos colonos e aos filhos destes interessasse uma verdadeira independência de Angola” 947 . Mas, o que dividiu a FUA não foram nem as considerações do grupo Viriato em relação a mesma nem a questão dos “portugueses progressistas nascidos em Angola”. Foi sobretudo porque o dualismo vigente no seio do MPLA se traduziu em tomadas de posição no seio da FUA, acabando esta por ficar dividida em dois grupos: “ (…). A crise que se instalara no MPLA reflectiu-se no interior da FUA. Face à crise do MPLA, uma parte dos «fuistas» considerava Viriato da Cruz como o elemento mais credível para dirigir o movimento, enquanto para outros Agostinho Neto era visto como o presidente mais adequado para o MPLA. Eu e o João Mendes apoiávamos o Agostinho Neto por afinidades ideológicas: nós éramos os comunistas da FUA, tínhamos tido relações com o PCP, tal como Agostinho Neto e, ao fim e ao cabo, para nós, naquela época a URSS era tida como o farol que iluminava o caminho para a liberdade dos povos!" 948 . O que significa que a postura do MPLA perante “os portugueses nascidos em Angola” não fora 945 “Relatório ao departamento de Segurança do MPLA de Março de 1963 em Lara (2008: 106- 107). A partir destas considerações podemos afirmar que a nova FUA não mais se livrarà do estigma da FUA de Benguela. E, como tal uma aliança do MPLA com esta última era uma aliança com o estigma. 946 Carta de Viriato da Cruz a Matias Migueis de 11 de Março de 1963 em Lara (2008: 81). 947 Carta de Matias Migueis a Viriato da Cruz em Lara (2008: 166). Estas declarações proferidas pelo “grupo Viriato” obrigaram o MPLA a um rápido desmentido: “Para restabelecer completamente a verdade, o Comité Director do MPLA opõe um desmentido categórico à caluniosa declaração do Sr. Migueis, aparecida na imprensa nomeadamente com a FUA. Além disso o MPLA nunca teve contactos com homens de negócios portugueses. Nós repetimos que a difamação, a mentira e a desonestidade não servem a causa angolana”. “Comunicado do MPLA sobre as provocações do grupo Viriato”, de 9 de Julho de 1963, em Lara (2008: 237). 948 Pimenta (2006: 66); Segundo Adolfo Maria esta divisão no seio da FUA reflectia clivagens ideológicas em torno do conflito sino-soviético. Conversa telefónica do doutorando com Adolfo Maria em 26/5/09. 223 entendida da mesma maneira pelos militantes da FUA. Para alguns era apenas uma concessão feita pelo MPLA tendo em conta as circunstâncias do momento949. Muito embora a questão da FUA reflicta dinâmicas de exclusão através da utilização da categoria branco, é preciso ter em conta que o capital político da FUA era pouco significativo, sendo o seu efeito no emergente campo político angolano bastante limitado950. Aliás, todas as organizações nacionalistas que não possuíam recursos militares estavam condenadas a extinção ou a desempenhar um papel residual. E como tal, sujeitas às condições ditadas quer pela UPA/FNLA quer pelo MPLA951. Ora quanto à FUA, num contexto de crise sem fim à vista: “O 952 MPLA, na época, só tinha a perder em ser associado a uma organização de “nacionalistas angolanos brancos” . Somente com o fim da crise é que os classificados de brancos foram sendo integrados no MPLA953. 3.6 O fim da crise no MPLA A Conferência de Quadros do MPLA realizada em Brazzaville, entre os dias 3 e 10 de Janeiro de 1964, marca de ponto de vista político-insitucional a consolidação interna do MPLA. Mas, assinala igualmente a consagração definitiva de Agostinho Neto como presidente do MPLA954. 949 Adolfo Maria em conversa telefónica com o doutorando 06/2009. O mesmo confirma que a FUA estava completamente à margem dos acontecimentos em Leopoldville. E, porventura, ignorando as considerações do grupo Viriato no respeitante à FUA. 950 No nosso entender a direcção do MPLA não tolerava inserção de um grupo político instituído no seu seio. Poderia tolerar sim a integração individual, o que viria de facto a acontecer de forma gradual. 951 E mesmo nos casos da criação da FNLA e da efémera FDLA, ditadas mais pela necessidade do reconhecimento internacional e pela necessidade de mobilização do maior número populacional, as regras foram ditadas pelas duas forças políticas armadas. 952 Maria da Conceição Neto em Lara (2008: 6). 953 Em 1964 a FUA acabaria por oficialmente dissolver-se sendo que alguns dos seus militantes iriam gradualmente integrar o MPLA. Dizemos gradual porque: “entretanto chegou a Argel Henrique Abranches – um branco estudioso de etnologia – que, face ao insucesso em se integrar no MPLA, naquele momento, teve a ideia de formar um centro de estudos sobre Angola, capaz de valorizar a cultura da nossa terra. (…). Em 1964 foi, finalmente, instituído um centro de estudos e de documentação do nacionalismo angolano, que tomou a designação formal de Centro de Estudos Angolanos (CEA). O CEA começou por prestar alguns serviços ao MPLA, passando de seguida para uma colaboração intensiva, até que por iniciativa de Agostinho Neto o CEA acabaria por ser enquadrado politicamente pelo MPLA, culminando assim com a sua integração no movimento. Esta integração culminaria no quadro da militância a partir de finais de 1960 Adolfo Maria em Pimenta (2006: 66 e 84) 954 “Relatório Geral da Conferência de Quadros”, de 10 de Janeiro de 1964, em Lara (2008: 409-435). 224 Todavia, o desfecho da crise não pode ser compreendido sem ter em conta o papel desempenhado pelo Congo Brazzaville – não só como rectaguarda militar – para o reconhecimento internacional e jurídico do MPLA. 3.6.1 O Congo Brazzaville A ex-colónia francesa adquiriu a independência a 15 de Agosto de 1960, sendo seu primeiro presidente o Abade Fulbert Youlu955. Até 1963 o país situara-se na órbita da França. Talvez pela influência da mesma, o Congo Brazzaville assumira uma posição flexível nas suas relações diplomáticas com Portugal. O que confere sentido à seguinte afirmação: “Dentro da relatividade do panorama político africano, o Congo Brazzaville era um país moderado. Veja-se como por exemplo actuava quanto às forças francesas estacionadas no país ou o modo como processa as suas relações com o bureau 956 regional da Organização Mundial de Saúde, apesar de este ter sido dirigido por um português” . Esta política, relativamente a Angola, sofrerá uma nova inflexão a partir de Agosto de 1963: “De facto, o destino do MPLA no Congo decidiu-se em três dias que iriam revolucionar a história do CongoBrazzaville e oferecer àquele movimento uma nova e acolhedora terra de exílio: a 13, 14 e 15 de Agosto de 1963, o regime do Padre Fulbert Youlou foi derrubado, instituindo-se um regime «revolucionário» que ofereceu acolhimento «militante» a muitos exilados africanos e, em particular, àqueles que travavam lutas armadas contra o 957 colonialismo” . Com efeito fora instituído um Conselho Nacional da Revolução, que iria assegurar a fase transitória até à realização de eleições que, por sua vez, iriam consagrar Massamba Debat958 como Presidente do Congo Brazzaville, no quadro de um regime de tipo socialista e direccionado para relações privilegiadas com a China, União Soviética e Coreia do Norte959. Esta viragem iria favorecer o MPLA. Assim, graças ao apoio do novo governo do Congo Brazzaville, o MPLA possuía finalmente uma rectaguarda segura para a abertura de uma frente político-militar que viria a ser conhecida como a frente de Cabinda ou 2ª Região Político-Militar960. Convém recordar que o 955 Fulbert Youlou, 1917/1972. Nasceu em Brazzaville. Primeiro Presidente do Congo Brazzaville de 15 de Agosto de 1960 a 15 de Agosto de 1963. 956 Carvalho (1964: 235). 957 Tali I (2001: 89). 958 As eleições foram simultaneamente legislativas e presidenciais e realizaram-se em Dezembro de 1963. Alphonse Massamba-Débat, (1921-1977). Nasceu em Nkolo, foi presidente do Congo Brazzaville de Dezembro de 1963 até Agosto de 1968. Foi julgado e fuzilado em 1977. Para saber mais sobre este país ver o magnífico trabalho de Bazenguissa-Ganga (1997:437). 959 Bazenguissa-Ganga (1997: 98-99). 960 Provavelmente em Abril de 1964. MPLA I (2008: 332). 225 critério fundamental para o reconhecimento internacional era a “implantação militar no terreno”961. Mas, seria no terreno da diplomacia que o governo do Congo Brazzaville iria dar o seu contributo para o reconhecimento internacional do MPLA. Aquando da realização da Conferência dos chefes de Estado de 34 países africanos no Cairo, de 17 a 21 de Julho de 1964, um dos pontos da ordem do dia era a apreciação do relatório do Comité de Libertação de África e o exame da situação nas colónias portuguesas962. A intervenção do presidente do Congo Brazzaville Massamba-Debat, em favor do MPLA963, muito embora não tivesse demovido a OUA de continuar a apoiar o FNLA/GRAE, levou a que se criasse um novo comité encarregado de inquirir em profundidade acerca da situação militar em Angola964. Este novo comité seria constituído por três países: Gana, República Árabe Unida e Congo Brazzaville965. O mesmo tinha por missão principal retomar o antigo mandato da Missão dos Bons Ofícios no sentido de encontrar as vias e os meios para uma reconciliação entre o MPLA e a FNLA/GRAE e os mecanismos para a criação de uma frente militar. Todavia, tinha também por objectivo indagar acerca da situação político-militar de cada organização966. A Comissão deslocou-se a Brazzaville e constatou-se que: “O MPLA possui uma organização política, militar e administrativa; os militantes do MPLA estão animados de um sentimento nacional e patriótico muito desenvolvido, mas carecem de meios materiais necessários para conduzir até ao fim o seu objectivo de libertação total de Angola; os dirigentes do MPLA, tendo em conta a importância do problema e os limites do seu potencial militar, contentam-se, pelo momento, com uma acção restrita que não esteja em desproporção com os meios que possuem, mas que poderia a vir a ser alargada à medida que eles obtivessem o material militar 967 necessário” . Este relatório da denominada “Comissão dos Três” teve como consequência a tomada das seguintes medidas por parte do Comité de Coordenação para a Libertação de África, reunida em Dar-es-Salam nos dias 24 e 25 de Novembro: “Adopta as conclusões do relatório do comité dos três e decide submetê-las à aprovação do próximo Conselho de Ministros da OUA, em Nairobi; Decide, com vista ao 961 Tali I (2001: 89). Gomes e Afonso 5 (2009: 52); Mbah (2005: 330). 963 “Que faire de ces nombreux militants du MPLA qui se trouvent sur notre territoire et qui demandent à lutter et ont besoin de notre aide ? le moment n’est-il pas venu de se pencher sur ce grave dilemme ? Car il s’agit après tout de combattants qui désirent se joindre à la lutte nationale“. Mbah (2005: 330) citando a revista Jeune Afrique Nº195 de 3 de Agosto de 1964, pp 19-20. 964 Mbah (2005: 330); Marcum (1978: 141). 965 Lara (2008: 644); Mbah (2005: 332); Marcum (1978: 141). 966 Relatório do Comité de Conciliação, Novembro de 1964, em Lara (2008: 692-694). 967 Lara (2008: 694); Mbah (2005: 565-566). 962 226 reforço da luta de Libertação em Angola, prestar entretanto, para além da assistência concedida ao GRAE, uma ajuda técnica e material à frente de luta aberta pelo MPLA no enclave de Cabinda em Angola” 968 . A esta primeira etapa de reconhecimento seguir-se ia a grande vitória diplomática com o reconhecimento pelo Comité de Libertação da OUA em 1965969. 3.6.2 A consagração de Agostinho Neto ou o corpo político reificado num médico É na dita Conferência que se confirma a criação de novas estruturas cuja função era criar as condições de legitimação e objectivação do capital político delegado em instituições permanentes: “as novas estruturas deverão resolver o problema da representatividade dos órgãos superiores e 970 dinamismo necessário à administração” . De ponto de vista militar o EPLA modificou a sua estrutura, passando a funcionar com destacamento de guerrilheiros971. Inicia-se igualmente o processo de institucionalização da fides política em oposição à figura do traidor: “A Conferência constatou com entusiasmo que a Unidade do nosso Movimento saiu fortalecida das duras provas que sofreu. (…). “O MPLA depurado continua uno. A traição, a deserção ou o abandono de alguns 972 dirigentes e militantes reafirmaram a determinação dos elementos mais fiéis à luta do nosso povo” . As sucessivas demissões de militantes como Gentil Viana, Mário de Andrade ou João Vieira Lopes terão porventura contribuído para uma desconfiança em relação a determinados militantes possuidores de capital escolar, classificados de intelectuais e associados não à traição, mas à covardia e à deserção973. É neste sentido, que a responsabilidade da crise é também 968 Lara (2008: 699); Mbah (2005: 567). Tali I (2001: 333); MPLA I (2008: 333). Este sucesso da diplomacia congolesa em conjunto com o MPLA devese igualmente a dois factores, prejudiciais para o FNLA/GRAE: o primeiro diz respeito à demissão, de Jonas Savimbi, em Julho de 1964 do GRAE, o que coincidira com o desenrolar da Conferência da OUA. O segundo factor prende-se com o facto de Moisés Tchombé ter assumido a chefia do Governo Central do Congo Leopoldville, em Junho/Julho de 1964. Gomes e Afonso 5 (2009: 53). Durante a vigência de Tschombé, o FNLA/GRAE viu o seu capital militar reduzido, pois o novo governante era um profundo aliado de Portugal. Gomes e Afonso 5 (2009: 94). Idem 6 (2009: 96). Ver igualmente Marcum (1978:141-149). 970 Lara (2008: 427). 971 Lara (2008:421). 972 Lara (2008: 423) figura que iria adquirir consistência quando a 2 1 Abril, de 1964, um comunicado do GRAE anuncia a integração do MPLA/ Viriato na Organização. Rocha II (2002: 322). 973 Segundo Tali I (2008: 89): “A «traição» de Viriato da Cruz (a sua aliança à FNLA) e o abandono do movimento pelos quadros e pelos «intelectuais» juntos às velhas contradições (…) marcariam de então em diante as relações de poder no interior do MPLA e, em particular, a relação entre os «intelectuais» e a direcção política”. Estamos perante categorias estruturantes do campo político como por exemplo a traição, a fidelidade a deserção, mas surgem igualmente novas práticas políticas como a reabilitação através do mecanismo redentor que é a autocrítica. Com efeito, muitos militantes que tinham abandonado o MPLA foram reabilitados mediante a autocrítica, como foi o caso 969 227 imputada aos «intelectuais»974: “A ideia de duma pretensa divisão do MPLA em tendências, mais se acentuou no exterior quando certos militantes, sobretudo intelectuais, desorientados ou tomados de pânico pelos atentados sucessivos contra a integridade do MPLA, abandonaram a organização, preferindo procurar empregos fora dos Congos. Propagando a falsa ideia de três tendências no MPLA, esses elementos encontraram os argumentos de que 975 carecem para justificar a sua defecção” . São criados mecanismos de aplicação da disciplina tendo em conta a antinomia sanção/recompensa: “A Conferência de quadros, tendo em consideração o contexto em que prossegue a nossa luta e a necessidade de aplicar rigidamente os princípios disciplinares adoptados decide: Que as sanções a aplicar pelo MPLA sejam as seguintes: repreensão; censura; afastamento temporário ou definitivo do exercício de funções; prisão; suspensão da qualidade de membro do MPLA; exclusão de membro do MPLA; (…) Que o desempenho de 976 tarefas muito delicadas seja premiado, conforme a sua natureza por: louvor; condecoração . São introduzidas classificações relativamente às práticas de adesão ao MPLA977: “O combate ao espírito filantrópico da nossa organização, pela mobilização dos militantes dispostos a todos os sacrifícios. Aparece como fundamental, por isso, estabelecer imediatamente e cumprir na prática, uma divisão dos 978 membros do Movimento nas seguintes categorias a) Aderente b) Militante” . São igualmente adoptadas classificações relativamente às práticas político-militares quotidianas numa lógica de consolidação identitária de representação do grupo pelo grupo, mas, igualmente numa lógica de submissão às hierarquias consignadas pelo grupo: ”O Combatente trata os seus companheiros da maneira seguinte: “dirigindo-se directamente aos comandantes: camarada comandante; referindo-se a um dos chefes, dirá “o nosso camarada comandante; dirigindo-se directamente ao Comissário Político dirá o camarada comissário”; quando se refere ao Comissário Político dirá o nosso camarada comissário; dirigindo979 se a um combatente do mesmo posto dirá: “o camarada” . O fim da crise assinala também uma nova etapa no processo de objectivação e institucionalização do capital político. Com efeito, a consagração de Agostinho Neto é também a investidura do seu capital político a título pessoal. Significa isto que o capital político do grupo iria inscrever-se no corpo de Agostinho Neto combinando assim o capital político a título pessoal de Mário Pinto de Andrade em 1964. Lara (2008: 661); conversa telefónica com Maria do Céu Carmo Reis. Novembro de 2007. 974 A questão dos intelectuais surgirá em outras crises. Ver Tali I (2001). É igualmente um exemplo de recurso político de conteúdo variável. A figura do intelectual pode ser valorizada ou desvalorizada segundo as circunstâncias da luta política. Convém recordar que questão dos intelectuais não faz parte da nossa abordagem 975 Lara (2008: 422). Note-se como o par intelectual/defecção se opõe também ao par militante/fidelidade. 976 Lara (2008: 426-427). 977 MPLA (1964: 12). 978 Lara (2008: 418-419). 979 Lara (2008: 438). Estas classificações são introduzidas após o termo da Conferência. Muito embora estejam inseridas no âmbito dos princípios gerais que regem a disciplina interna do MPLA aprovado na Conferência de Quadros. 228 e o capital político delegado. Sendo que, o capital político delegado a Agostinho Neto só adquire valor no mercado dos bens de salvação política porque investido pelo capital politico a título pessoal. É que, ainda por cima, ao capital político de notoriedade de Agostinho Neto juntara-se, a partir de então, o capital político profético ou carismático, na medida em que: “Agostinho Neto podia já invocar uma legitimidade simultaneamente «nacional» e internacional: por um lado, perante o abandono da luta por muitos quadros, salvara, pessoalmente, o movimento da infalível fagocitose pela FNLA/GRAE; por outro lado, seria ele quem iniciaria verdadeiramente a acção armada do MPLA contra o colonialismo e quem anularia, portanto, a desvantagem deste movimento perante a FNLA. O seu reconhecimento pela OUA chegava, portanto, 980 como a coroação desse esforço. A autoridade de Neto, assim fortalecida, seria desde então incontestável” . 3.7 O estado latente da questão racial Na Conferência de Quadros de Janeiro de 1964 formalizou-se a abolição das distinções raciais nas práticas políticas: “Convida-se insistentemente a todos os angolanos sem distinção de sexo, idade, raça, crença religiosa, origem étnica, condição social e de fortuna, lugar de domicílio, confissão filosófica, a concentrarem os seus esforços, no sentido de imprimirem à luta uma intensidade, elevação e ritmo que assegure a 981 conquista da nossa Independência Nacional no mais curto de espaço de tempo” . Com efeito, a institucionalização do capital político corporizado em Agostinho Neto (percepcionado como negro) desvalorizara o papel das propriedades rácicas/características somáticas como recurso nas lutas políticas na medida em que: “Se se conseguiu encontrar uma solução coerente com o anti-racismo – princípio fundamental – do MPLA foi graças à chegada de Neto à direcção do Movimento, isto é, de um negro, e por isso mesmo em posição de defender o direito igual dos mestiços a serem dirigentes – ficando por assim dizer, sob a sua autoridade e a sua protecção. Portanto a chegada de Agostinho Neto transformou profundamente os dados do problema racial no MPLA” 982 . Doravante, do ponto de vista ideológico-identitário, o nacionalismo do MPLA na sua dinâmica de expansão, podia apresentar-se como: cívico e territorial; anti-colonial e multirracial; “humanista e cristão”983 e proclamar assim um ideário de nação total e abrangente na busca de uma dimensão universal. É de salientar que o MPLA era igualmente constituído por indivíduos 980 Tali I (2001:89). Lara (2008: 429). 982 Messiant in Laban (2003: 243). Itálico no original. Não só no seio do MPLA como no mais amplo espaço do nacionalista angolano. 983 Messiant (1994: 162). 981 229 que, embora envolvidos na génese e consolidação desta conceptualização ideológico-identitária, tinham uma formação marxiana e marxista984. Graças a esta representação da “realidade política”, o MPLA iria alargar as suas bases de apoio não só junto da maioria do denominado grupo etnolinguístico ambundo – grupo que passa a funcionar como grupo mobilizado em torno do MPLA e do seu presidente Agostinho Neto – como, igualmente estender a sua influência à faixas populacionais do denominado grupo etnolinguístico bakongo. Mas o MPLA iria igualmente, conseguir uma forte adesão da maioria das populações “urbanas” de Luanda e Benguela. Todavia, se com o fim da crise as classificações assentes em propriedades rácicas/características somáticas são formalmente abolidas como recursos nas lutas políticas, podemos inferir que em certa medida estas classificações permanecem em estado latente, prontas a serem apropriadas em novos contextos de crise985. Em síntese: A luta anti-colonial foi um factor decisivo para a configuração e estruturação do campo político angolano. Mas o campo político angolano estrutura-se e configura-se igualmente através da relação competição/conflito, entre o MPLA e a FNLA. 984 Está ainda incompleto o estudo dos actores políticos em Angola nas suas relações com as filiações ideológicas. Por vezes tem-se recorrido à filiação política de tipo organizacional para se caracterizar certos agentes. É o caso de Viriato da Cruz considerado marxista por estar na origem da criação do Partido Comunista Angolano ou então Agostinho Neto, pelo facto de ter estado ligado ao Partido Comunista Português. Quanto a nós, uma tal questão pede investigações ligadas, por exemplo, à construção social do marxismo e, de um modo mais abrangente, do campo ideológico nacionalista em Angola, assim como o estudo da circulação internacional das ideias revolucionárias. Merece, contudo, destaque um artigo pioneiro, acerca dessa questão, de Christine Messiant em Laban e Messiant (2003). 985 Com efeito um indicador dessa latência é vislumbrável pela seguinte afirmação que consta nas actas das sessões da Conferência: “ Quanto ao racismo é preciso acabar com isso dentro do Movº. É preciso acabar com a superioridade dos mulatos e dos pretos assimilados pensarem que os mulatos são privilegiados. (…) Quanto ao racismo, (que é tão complicado como o próprio homem. Os maus hábitos duma existência não se mudam num dia e isso depende da sua vontade. Exercício pessoal para podermos suportar a convivência de pessoas que por instinto nos pareçam incompatíveis com a nossa maneira de ser”. Lara (2008: 403-404). 230 A dinâmica do campo político angolano merece ser compreendida à luz do contexto sub-regional, nomeadamente no que concerne à influência que tiveram os dois Congos nas acções políticas destas duas organizações. A relação de conflito/competição, entre os dois protagonistas da luta armada anticolonial, confere ao campo político angolano as características de um espaço de crise. Foi possível constatar, através do percurso de legitimidade política destas duas organizações, que cada uma dessas organizações é atravessada por sucessivas crises. O que confere, a cada uma das mesmas, as características de um espaço de crise. Estas sucessivas crises estão, em certa medida, ligadas a processos de institucionalização do capital político. Quanto ao capital político, vimos que as lutas políticas são também um confronto entre as duas espécies de capital político, o capital delegado e o capital a título pessoal sendo que, frequentemente, o capital político de autoridade e reconhecimento do grupo instituído estão submetidos ao peso específico do capital político a titulo pessoal. No respeitante à questão racial, foi possível constatar a conversão das classificações assentes em propriedades rácicas/características somáticas em classificações políticas. Constatação vislumbrável não só nas lutas políticas entre o MPLA e a UPA/FNLA, mas sobretudo no seio do MPLA, onde adquirem grande relevância nas lutas políticas pelo controlo da direcção do Movimento. Estamos assim perante um conjunto de elementos que indiciam, por um lado, dinâmicas de continuidade no respeitante ao recurso a um sistema de classificação que contém um princípio, de inclusão/exclusão, fundamentado na noção de raça. Indiciam, por outro lado, dinâmicas de ruptura no respeitante à (re)avaliação, (re)hierarquização e à consequente recomposição estatutária de grupos com base em categorias raciais. Mas a ruptura estabelece-se igualmente no respeitante ao monopólio de um sistema de classificação racial. Assim, se estas classificações eram monopolizadas pelo Estado e pela sociedade colonial, a partir de então e à medida que o campo político angolano se estrutura e configura, estas categorias começam igualmente a serem apropriadas por esse mesmo campo político angolano. O que é um indicador de que, doravante, serão as circunstâncias políticas que determinarão a raça e não o contrário. 231 O período compreendido entre 1960-1964 assinala um momento de transformação de um sistema de classificação racial, (re)produzido no quadro da política colonial e que se havia disseminado no espaço social colonial – tanto no seio dos colonizados como dos colonizadores – em classificação integrante do mais vasto sistema de classificação, política. Processo de (re)conversão que, por sua vez, confirma, num tempo de ruptura com a ordem colonial, a existência de um universo autónomo com características e regras próprias. Sendo estas, já não ditadas pelo mundo social mas sim por este mesmo universo que se denomina campo político angolano. 232 Capítulo VI. O período tripolar e o regresso da questão racial. (1966-1975) 1. Introdução O ano de 1966 assinala a extensão do conflito militar, até então confinado no Norte de Angola, para o Leste do país. Esta região tornar-se-á doravante, e sobretudo a partir de 1968, o principal teatro do conflito militar entre a guerrilha nacionalista angolana e o exército português. 233 Esta expansão territorial da luta armada é protagonizada, de modo variável, pelo MPLA, pela FNLA/GRAE e pela UNITA - União Nacional para a Independência Total de Angola que se constituíra na terceira força político-militar desde 1966986. A expansão no Leste possibilitara à guerrilha nacionalista contornar as dificuldades sentidas no Norte de Angola onde o exército português havia dado início às operações militares de grande envergadura. Tal devia-se ao facto de o exército luso ter adquirido uma maior capacidade militar de combate contra a guerrilha, pois conseguira não só aumentar as suas unidades de combate como melhorar o equipamento das mesmas.987 Esta situação militar, favorável, era reforçada pela pressão económica que Portugal exercia sobre o Congo Kinshasa, nomeadamente quando se tratava de negar a este país o acesso ao caminho-de-ferro de Benguela, tão indispensável para o escoamento do seu principal produto de exportação: o cobre. Tal forma de pressão obrigava o governo congolês a limitar o apoio aos guerrilheiros nacionalistas da FNLA. Podemos assim considerar que, a partir de 1968, no Norte de Angola, o exército português tinha conseguido, se não extinguir, pelo menos reduzir significativamente os efeitos da guerrilha na região988. Pelo contrário, no Leste de Angola, o exército português e apesar de alguns resultados apreciáveis, ainda não conseguira deter o avanço da guerrilha na região989. 986 Sendo que, no Norte de Angola, a actividade militar se restringia a FNLA e ao MPLA. Referimo-nos, por exemplo, as operações “Nova luz” (1968) e “Robusta” (1969) ambas realizadas no Norte de Angola. A primeira consistia em desalojar as forças militares do MPLA que estavam sitiadas na região. A segunda consistia sobretudo na deportação e aldeamento das populações locais em grande escala de modo a retirar o apoio das populações aos movimentos de libertação. Gomes e Afonso 7 (2009: 47-49) Idem 10 (2009: 37-39). Mas a estratégia do exército colonial passava igualmente pela destruição das terras de cultivo das populações através do recurso a desfolhantes químicos, de modo a cortar a ligação entre estes últimos e a guerrilha, com forte impacto na saúde e alimentação das populações Gomes e Afonso 10 (2009: 74-75); Gomes a Afonso 11 (2009: 23-24). O uso de herbicidas e desfolhantes deu-se tanto no Norte de Angola como no Leste. Idem 10 (2009: 74-75). A primeira experiência de guerra química fora feita em 1966 no Norte de Angola, na zona de Nambuangongo em que foram empregues desfolhantes químicos. Idem 7 (2009: 47-49). 988 Gomes em “Balanço da guerra“ Angola 40 anos de Guerra”(s/data: 38). Obviamente que a eterna falta de unidade entre o MPLA e a FNLA, agravara ainda mais o nefasto o quadro militar da guerrilha nacionalista na região. 989 A título de exemplo: “com a abertura da “Frente Leste», a área abrangida pelas operações passará dos cerca de 200.000 km2 anteriores, apenas no Norte do território, para uma área muito maior, de cerca de 500.000 km2”. David Martelo em Gomes e Afonso 9 (2009:6). Em Fevereiro de 1970 a situação militar atingira um tal estado de gravidade que as autoridades coloniais consideravam que: “a situação político-subversiva em Angola é grave e tudo indica que venha a piorar a curto prazo”. Gomes a Afonso 11 (2009: 16-17). Ver igualmente Joaquim Chito Rodrigues em Moreira e varii (2000:111); Nunes (2002: 6) 987 234 A partir de 1970, o comando militar português iria reformular a estratégia militar de modo a alterar correlação de forças com o braço armado nacionalista990. Estratégia que passava pela concentração de um maior número de forças em armas no leste de Angola. Foi assim criada em 1971 a ZML (Zona Militar Leste): “com um Comando Conjunto, dos três Ramos das Forças Armadas e 991 em que foram descentralizadas e atribuídas responsabilidades operacionais e de Governo civil” . Em termos operacionais, nova estratégia de luta contra a guerrilha caracterizou-se por operações prolongadas de forças especiais e helicópteros numa acção conjugada com a PIDE/DGS. O principal objectivo era impedir a constituição e fixação de bases da guerrilha em solo angolano992. Outro mecanismo, de contenção do inimigo, foi o recurso à acção psicológica de modo a captar as populações para os novos aldeamentos e também a aliciar os guerrilheiros nacionalistas no sentido de combaterem a favor da causa colonial993. Esta acção era acompanhada por uma política de “recrutamento local de voluntários”; o que possibilitou a criação de “forças auxiliares” do exército português994. 990 Neste processo de reformulação da estratégia político militar podemos salientar dois dos seus principais promotores. O General Costa Gomes que havia assumido o cargo de comandante em chefe das forças armadas em Angola em Abril de 1970 e, no plano da aplicabilidade da mesma, José Manuel Bettencourt Rodrigues. Antunes (1996: 113-122); Gomes e Afonso 11 (2009: 28); Nunes (2002:51-52). 991 Rodrigues em Moreira e AA.VV. (2000: 115). A propósito da guerra no Leste ver igualmente Antunes (1995); Nunes (2002). Ver anexos nº 22 e nº 23. 992 Também conhecido por conceito Siroco. Fora posto em prática pela primeira vez, no Leste, em 1969. Mas, somente a partir de 1970 é que se intensificou. A constituição do agrupamento Siroco correspondia a um conceito de emprego de forças especiais desenvolvido pelo Centro de Instrução de Comandos (CIC) de Angola e em especial pelo seu comandante, o tenente-coronel Gilberto Santos e Castro, a partir da experiência dos Comandos de caça muito utilizado pelos franceses na Argélia. Tratava-se de um conceito de desenvolvimento de acções de caça em ambiente de contraguerrilha com apoio de meios aéreos: aviões de reconhecimento e ligação, helicópteros de transporte táctico de modo a garantir uma maior mobilidade nas acções contra a guerrilha. A PIDE/DGS tinha um papel fundamental nas acções de recolha e análise de informações tácticas. Gomes e Afonso 10 (2009: 76-77); Idem 11 (2009: 62). Nunes (2002:45-49). Aliás, a PIDE/DGS iria desempenhar um papel crucial, não só no que respeita ao desmantelamento de grupos de guerrilha situados nas regiões libertadas mas igualmente no respeitante ao desmantelamento de grupos que se podiam constituir em guerrilha urbana. Gomes e Afonso 10 (2009: 42). 993 Tali I (2001: 133-134); Gomes e Afonso 11 (2009: 76-78). Ver igualmente de modo mais detalhado a questão da acção psicológica os mesmos Gomes e Afonso 12 (2009: 64-70). 994 Referimo-nos por exemplo a criação de GE - Grupos Especiais, TE -Tropas Especiais e Flechas que participavam nas operações integrados nas forças militares portuguesas. Gomes e Afonso 11 (2009: 76-78). Ver igualmente Correia (1996: 29); ver o mesmo Correia em Moreira e AA.VV. (2000: 153); Nunes (2002:63-70). Trata-se, quanto a nós, de uma estratégia de desracialização/africanização do carácter da guerra dando lhe assim um cariz de confronto entre angolanos independentistas e angolanos integracionistas. Baralhava-se assim o jogo político das identidades. 235 Mas Portugal soube tirar partido da relação conflito/competição entre os três movimentos armados nacionalistas, tendo chegado ao ponto de ter conseguido um acordo com uma das organizações armadas: a UNITA995. Mas os constrangimentos da guerrilha nacionalista no Leste não se ficavam por aí. Deviam-se igualmente a um contexto regional pouco favorável para o desenvolvimento da guerrilha nacionalista. Com efeito, a Zâmbia, que adquirira a independência em 23 de Novembro de 1964, desempenhava um papel fundamental para a expansão da guerrilha desde 1966, ano em que este país, situado junto à fronteira leste angolana, começou a funcionar efectivamente como terceira retaguarda geo-militar dos movimentos nacionalistas armados. Todavia, a Zâmbia iria igualmente contribuir para os limites da expansão da guerrilha nacionalista armada. E, mais uma vez, entra aqui a questão do caminho-de-ferro de Benguela. Com efeito o novo Estado independente, geograficamente encravado e sem acesso ao mar, dependia do Caminho-de-ferro de Benguela e do porto do Lobito para escoar o seu produtos, sobretudo o cobre, como se disse, principal produto de exportação deste país. Sendo assim, os guerrilheiros podiam usar o território zambiano como ponto de partida para a actividade militar, mas, na condição de não atacarem ou sabotarem a linha do caminho-de-ferro de Benguela. Acontece que tal condicionante limitava substancialmente um dos principais efeitos pretendidos pela guerrilha no respeitante à luta de libertação nacional: abalar profundamente a estrutura económica colonial996. Não é demais sublinhar que a dimensão regional do conflito armado entre portugueses e nacionalistas armados também se manifestou no aproveitamento por Portugal de alguns refugiados, que se haviam estabelecido em Angola,997como forma de pressão sobre governos vizinhos que apoiavam os movimentos de libertação, 995 “ O Leste convertera-se na zona de guerra de todos contra todos, o que, a longo prazo, só beneficiava a potência colonial”. Josep Sánchez Cervelló em Gomes e Afonso 8 (2009: 102). Ver igualmente Daniel Chipenda em Antunes (1996: 851). 996 Daí que um autor considerasse que: “A sua política externa foi filha do compromisso entre a necessidade económica e os princípios independentistas”. O sublinhado é nosso. Antunes (1996: 611). Acerca do papel da Zâmbia na região ver o mesmo Antunes (1996: 611-622); Tali I (2001:119-120); ver Gomes e Afonso (2009) Volumes 7, 8, 10,11,12 e 13. Mas havia um outro factor de interdependência regional que afectava negativamente os movimentos nacionalistas: o papel desempenhado pela África do Sul. Adquirira significativa importância o apoio logístico ao exército português sobretudo no que concerne a utilização uso de meios aéreos para combater os guerrilheiros. Gomes e Afonso 11 (2009: 72-75); Nunes (2002: 72-74). 997 Nomeadamente aqueles que eram oriundos do Congo Kinshasa (os antigos gendarmes catangueses) ou oriundos da Zâmbia. Sendo os primeiros intitulados Fieis e os segundos de Leais. Estes, como forças auxiliares, cooperavam com o Exército Português. Os primeiros iriam adquirir significativa importância quer em termos quantitativos e 236 Desta breve síntese da evolução do estado de relações de forças entre a guerrilha nacionalista e o exército português podemos considerar que, em Angola no plano militar, aquando do golpe do 25 de Abril de 1974, a guerrilha nacionalista nunca ultrapassara a escassez de implantação territorial. Dos três teatros de guerra (Angola, Moçambique e Guiné), Angola apresentava-se, militarmente, como a colónia mais bem sucedida. A luta armada nacionalista nunca ultrapassara o estádio de: “uma guerra de guerrilhas típica, que percorreu as sucessivas fases que os compêndios assinalam, sem nunca ter chegado à ultima fase, que é aquela em que os guerrilheiros estão prontos a 998 organizar-se em unidades de tipo regular” . O presente capítulo compreende três pontos principais: o percurso de legitimidade de cada um dos três movimentos nacionalistas armados; o regresso da questão racial ao seio do MPLA num quadro de imobilismo político-militar; o modo como as três organizações armadas nacionalistas, num quadro de transição para a independência se apropriaram da questão racial, no respeitante ao uso da categoria branco, num contexto de competição tripolar mas igualmente de tensão e de confrontos raciais, no espaço social colonial. No que diz respeito ao primeiro ponto apresentaremos uma sintética descrição da trajectória de cada uma das organizações nacionalistas armadas, até à assinatura do acordo de cessar-fogo com as autoridades coloniais, de modo a situar melhor o novo contexto tripolar do espaço nacionalista angolano. Contexto profundamente marcado não só pela luta armada anticolonial, mas igualmente por uma relação de conflito/competição entre as três organizações nacionalistas armadas999. Quanto ao segundo ponto, daremos saliência a dois momentos em que a questão racial adquiriu grande relevância nas lutas políticas. Referimo-nos à denominada “crise racial de 1972” que se materializaria na divulgação por parte de um grupo de militantes do MPLA de um manifesto intitulado “Manifestação Político-militar dos Militantes na II Região”1000. No mesmo é possível vislumbrar a recorrência, na produção discursiva, de propriedades rácicas/características somáticas no exercício de questionamento da direcção do MPLA. O segundo momento assinala, qualitativos na luta contra a guerrilha, nomeadamente no Leste de Angola. Correia em Moreira e AAA.VV. (2000:147-157); ver igualmente Furtado RTP/DVD (2009) intitulado “Africanizar a guerra”. 998 Correia (1996: 28). 999 E, mais uma vez, voltamos a salientar que no seu percurso de legitimidade cada uma destas organizações será igualmente atravessada por dificuldades internas. Dificuldades de ordem militar, económica e política as quais, por sua vez, iriam contribuir para que a quantidade e qualidade das suas acções militares, se tivessem distribuído de forma equitativa tanto no tempo como no espaço. 1000 Ver anexos nº 24. 237 quanto a nós, o desfecho formal da crise racial no MPLA. Desfecho que teria a sua consagração com uma resolução, aprovada na Conferência Inter-regional realizada no Moxico em 1974, intitulada “o problema da comunidade branca”. Esta resolução iria, através da inserção da categoria branco no princípio da nacionalidade, definir os critérios de inclusão e de exclusão daqueles que eram classificados de brancos, tanto no MPLA como no mais amplo espaço social de uma Angola independente. No respeitante ao terceiro ponto, a nossa abordagem terá em conta o modo como o campo político angolano, a saber, as três organizações armadas nacionalistas, se apropriou da questão racial no espaço colonial, num contexto de transição para a independência, apelando para o princípio da nacionalidade1001. Todavia, tal princípio será complementado por um emergente princípio, este, gerado pelo próprio campo político angolano, assente numa ordem trinitária e relacional: a mobilização, a fidelidade e a traição. Ordem que, por sua vez, se torna fundamento de um outro princípio estruturante: a inclusão/exclusão. 2. Dinâmicas das organizações armadas nacionalistas e evolução da luta anti-colonial. (1966-1974 ) O período compreendido entre 1966 e 1974 continua a caracterizar-se pela luta armada, contra a dominação colonial portuguesa então protagonizada, como se disse, por três organizações nacionalistas: MPLA, a FNLA UNITA. O que significa que a luta anti-colonial continua a ter um papel decisivo no processo de configuração e estruturação do campo político angolano. Todavia, o campo político angolano irá igualmente continuar a estruturar-se e a configurar-se através da relação competição/conflito – desta vez a três – na eterna luta pela hegemonia no/do respectivo espaço nacionalista1002. Assim, tal como no início da década de sessenta, o vasto campo político angolano permanece um espaço de crise. Crise em muito devedora, por um lado, da eficácia do exército colonial e, por outro, da permanente conflitualidade entre as três organizações nacionalistas armadas. 1001 Sendo que aqui no caso a nossa abordagem terá em conta apenas a categoria branco. Esta opção justifica-se sobretudo porque tal categoria está fortemente inserida nas estratégias de mobilização política das três organizações nacionalistas armadas. Em nosso entender a categoria mestiço não terá o mesmo peso político que a categoria branco. A utilização desta categoria não se traduz num efeito de grupo. Reconhecemos contudo que esta opção limita a profundidade e extensão do nosso trabalho. 1002 A 2 de Dezembro de 1967 já haviam ocorrido combates entre a UNITA e o MPLA na região de Léua. No Leste o MPLA chegara a criar um destacamento específico para aniquilar a UNITA, o denominado Esquadrão Anti-Noka. Gomes e Afonso 8 (2009: 87). Ver igualmente Oliveira Marques em Antunes (1996: 999). 238 Este duplo constrangimento terá em certa medida contribuído para que no plano militar as organizações nacionalistas armadas se apresentassem, aquando da assinatura do cessar-fogo com as autoridades coloniais, bastante enfraquecidas militarmente. Porém, e apesar de uma guerrilha de baixa intensidade que se reflectira num sinuoso percurso político-militar, cada uma das três organizações nacionalistas armadas acumulara um capital político suficiente para adquirir o estatuto de incontornável no quadro de uma solução política e independentista para Angola. 2.1 O percurso de legitimidade da UNITA. Ou a terceira força A UNITA, terceira força armada do espaço nacionalista angolano, é oficialmente constituída a 13 de Março de 1966, durante um congresso realizado no interior de Angola, na região do Moxico, mais precisamente no Muangai. Foi elaborado no mesmo congresso o “Ideário da UNITA”, conhecido como “O Projecto dos Conjurados do 13 de Março”1003. No dito Congresso elegeu-se um comité central provisório tendo sido igualmente, por “unanimidade e aclamação”, eleito presidente da UNITA, o antigo militante da FNLA/GRAE, Jonas Savimbi1004. Segundo Tony da Costa Fernandes: na sua génese, a UNITA era constituída por aqueles que estavam mal representados nos outros dois movimentos, o MPLA e a UPNA/UPA/FNLA: “Éramos originários de Cabinda, Cunene, Huambo, do Bié e de Malanje, muito poucos de Luanda”1005. Esta diversidade sócio-cultural, que está na origem da composição política da UNITA, não impede 1003 Somente a partir de Setembro é que se constitui um comité central definitivo, do qual podemos destacar os seguintes elementos: Jonas Savimbi presidente; Smart Chata, Kaniumbu Muliata, Salomon K. Njolomba (vice presidentes); Kaposo Muliata (finanças) Musole M. Mutapi; Davis Musunga (assuntos laborais). Marcum (1978: 167). 1004 Deparamo-nos com um problema de fontes acerca da presença de Savimbi no Congresso realizado no Muangai. Na sua versão, Samuel Chiwale, considera que:” O Dr. Savimbi entrou em Angola vindo da Zâmbia em princípios de Março de 1966. Chegou a Muangai, passando por Lungué-Bungo e Lucusse. (…). O cenário do Congresso foi simples: o Dr. Savimbi sentado ao lado de uma grande tenda; acompanhavam-no, diante dele, alguns membros mais destacados, acomodados em cadeiras feitas de caules de árvores”. Chiwale (2008: 94-95). Em Antunes (1996: 97) Savimbi afirma que: “ Eu entrei em Angola em Outubro de 1966 e fiquei até 1967”. Na revista Jeune Afrique Hors Série, totalmente dedicado à UNITA, de (Abril de 1996: 88) encontramos o seguinte texto: “C’est le 13 mars 1966, alors que Jonas Savimbi est encore em Republique de Chine, que s’est tenu le congrés constitutif de L’UNITA”. Josep Sanchez Cervelló em Gomes e Afonso 7 (2009: 104) considera que aquando do Congresso constitutivo da UNITA Savimbi encontrava-se ainda na China, tendo entrado em Angola em Outubro de 1966. 10 05 Loanda (1997: 65). 239 que, na memória da génese e no percurso de legitimidade, se confundisse a UNITA com a trajectória política e pessoal do seu líder Jonas Malheiro Savimbi1006. A ideologia identitária veiculada pela UNITA assenta no modelo do Estado-nação. A população e o território nacional – espaço físico com fronteiras definidas – coincidem com a área de exercício do poder. E, o Estado, responsável pelo processo administrativo, é corporizado por um governo e sua respectiva política. É portanto, neste quadro ideológico-identitário que a UNITA considera estar inserida. Trata-se de incorporar na construção do Estado-nação um conjunto de símbolos e crenças que participam de configurações identitárias em torno da ideia de pertença a uma única comunidade política1007. A esta ideologia identitária, a UNITA acrescenta uma doutrina que preconiza uma “autêntica africanidade” assente em valores da negritude diferenciando-se dos “assimilados” do MPLA e dos “tribalistas” da FNLA1008. Mas, a UNITA, procurou afirmar-se igualmente como um movimento de guerrilha de base camponesa, através de uma prática revolucionária frequentemente expressa em termos de símbolos maoistas1009. 10 06 Jonas Malheiro Savimbi (1934-2002), Nasceu no Munhango, Bié, A sua formação educacional deveu-se muito às missões congregacionistas e católicas. É considerado o mais guerrilheiro dos três líderes nacionalistas. Em 1960 manteve contactos com o MPLA, optaria no entanto por aderir a UPA em 1961 onde assumiria o cargo de Secretário dos Negócios Estrangeiros do GRAE. Em Julho de 1964 abandona a FNLA/GRAE, tendo se fixado temporariamente em Brazzaville, onde esteve na iminência de ingressar no MPLA. A partir daí encetou um percurso singular que o levaria a criar um organização política e militar à sua imagem. O mesmo Tony da Costa Fernandes considera que: “Foi Savimbi que teve a ideia de uma nova organização política, e acreditávamos que a UNITA pudesse ser uma formação com expressão nacional, porque nós tínhamos uma concepção diferente da dos outros”. Loanda (1997: 65). 10 07 O que implica que a UNITA seja reconhecida e incorporada num duplo espaço: o da história e do mito. Para tal necessita contornar a legitimidade/anterioridade – monopolizada pela FNLA e pelo MPLA – através da legitimidade da luta armada no interior e da africanidade/angolanidade. 1008 Revista Jeune Afrique Hors série – Angola (Abril de 1996: 91-92). No que diz respeito à distinção perante o MPLA estamos perante uma nova posição no que concerne à questão racial. Assim, Savimbi que em anos anteriores rejeitava o MPLA por ser um movimento liderado por mestiços, distingue-se agora do MPLA por ser um movimento de “assimilados” Estamos perante um discurso de ruptura com uma categoria de exclusão, produto do arbitrário racial/colonial incorporado. Mas o discurso é igualmente de continuidade, na medida em que se socorre de uma categoria representativa do arbitrário colonial a categoria assimilado. Quanto à categoria mestiço, Savimbi justifica, retrospectivamente, numa entrevista a sua anterior desconfiança em relação aos classificados de mestiços: “Pode parecer racismo e não será a forma como pensamos hoje [...] Contudo era muito difícil, naquela altura, para os africanos, compreender por que é que os mestiços estavam a liderar um movimento de libertação contra os portugueses. Para nós não se tornava nada claro que os mestiços sofressem em Angola, eles eram uns privilegiados”. Bridgland (1987: 50). 10 09 Daí que os primeiros quadros da UNITA se tivessem formado onde se acredita ser possível a aquisição de saberes necessários para levar a cabo uma estratégia de luta mais adequada às características do espaço social angolano: a China. A revolução chinesa exemplificava o lugar ideal de lutas travadas e bem sucedidas no plano político-militar. Savimbi manifesta esta preferência pela China da seguinte maneira: “A revolução de Outubro, apesar da sua contribuição à luta mundial, não dá no presente os princípios de luta do povo colonial ou semi-colonial onde as principais forças são os camponeses”. Savimbi (1978:143). 240 Numa perspectiva político-militar, a UNITA veicula uma forte distinção relativamente aos outros dois movimentos nacionalistas armados: “Eu penso que os vínculos mais importantes de diferenciação que se pode considerar no passado, [são] os métodos de luta. Os dirigentes da UNITA desmembraramse da FNLA porque partiam do princípio de que os dirigentes que conduziam a luta armada tinham que se fixar no 1010 interior de Angola” . Uma distinção que iria adquirir forte carga simbólica, pelo facto de a UNITA ter organizado o seu primeiro congresso dentro do território angolano antes da independência1011. Todavia a UNITA é ainda, no plano militar, uma organização incipiente1012. No ano de 1966 a UNITA havia realizado três acções militares, contra posições militares portuguesas, com resultados ínfimos1013. Em 1967, devido ao ataque contra linha do caminho-de-ferro de Benguela, a UNITA viu o seu apoio por parte do governo Zambiano bastante reduzido, chegando ao ponto de Savimbi ter permanecido preso no dito país durante dez dias; tendo sido posteriormente expulso para o Egipto1014. A partir daí, a UNITA, e até à realização do seu segundo congresso que iria assinalar o regresso do líder providencial, entrou num estado de crise político-militar que iria pôr em risco a coesão do grupo político recentemente constituído: “Quando lá cheguei havia divisões na UNITA e desentendimentos entre comandantes. A minha ausência prolongada tinha feito com que houvesse fragmentação e o meu primeiro trabalho consistiu em unir toda a gente, as facções militares. Trabalhamos 1015 duramente até congregar outra vez todos os esforços e recomeçar o combate” . Do segundo congresso realizado em 1969, entre 24 e 30 de Agosto, iria emanar um efectivo programa político, com objectivos internos e externos definidos. Foram igualmente 1010 Entrevista com Alcides Sakala, dirigente da UNITA, em 08/2007. Gomes e Afonso 10 (2009: 85). 10 12 As actividades militares da UNITA em Angola desenrolaram-se, inicialmente, no distrito do Moxico com o apoio das populações locais. No entanto o MPLA e a FNLA disputavam também essa área em nome de uma legitimidade/anterioridade, tanto na génese como na luta armada. 1013 Em Setembro de 1966 atacou os postos de Kalungula; a 4 de Dezembro atacou o posto de Kassamba e a 25 de Dezembro atacou a vila de Teixeira de Sousa operação na qual foi morto o chefe de posto local da PIDE. Embora mal sucedido o ataque a Teixeira de Sousa adquirira o estatuto de data mítica. Marcum (1978: 160-169). 1014 Guerra (2002:53). Antunes (1996: 97). 1015 Savimbi em Antunes (1996: 98). A UNITA chegara ao ponto de ter sofrido uma série de deserções de alguns militantes de entre os quais podemos salientar o major Tiago Sachilombo, que em Fevereiro de 1969 fora aliciado pela PIDE e desertara com centenas de guerrilheiros entregando-se às autoridades portuguesas e, no mesmo ano, Samuel Chavala Muanangola que se entregara à FNLA. Deparamo-nos com mais um exemplo duma figura estruturante da organização política: o traidor. Savimbi (1979:21-22); Josep Sánchez Cervelló em Gomes e Afonso 10 (2009:102). 1011 241 criadas estruturas orgânicas típicas de um partido político. Assim, foi eleito um comité central constituído por 30 elementos dos quais 12 formaram o bureau político1016. Todavia, importa aqui sublinhar que de nada valem aqui os mecanismos de delegação política. A investidura, mera formalidade jurídica, tem apenas por função reforçar o capital a título pessoal de Jonas Savimbi. O chefe corporiza não só o capital político delegado como o capital político a título pessoal1017. Estamos perante um caso de institucionalização do grupo político pelo indivíduo e corporizado pelo mesmo desde a génese até à estruturação do grupo político-militar1018. No entanto a UNITA continuava a não ter grande expressão militar. Sendo que as suas, raras, actividades de guerrilha se restringiam praticamente à zona do Lungué-Bungo. A decisão chinesa de suspender o auxílio militar, a ausência de um apoio efectivo por parte do governo zambiano, a concorrência do MPLA no leste de Angola, e a pressão da tropa portuguesa eram factores contributivos para a sua reduzida margem de manobra político-militar. A UNITA, praticamente isolada no Leste de Angola, ainda lutava pela sua sobrevivência1019. Talvez, por uma questão de sobrevivência política, a UNITA tivesse necessidade de fazer acordos com as autoridades coloniais1020. A primeira plataforma de entendimento, que se assemelhava mais a uma espécie de imposto revolucionário, acontecera com os madeireiros portugueses1021. Estes para poderem extrair a madeira pagavam à UNITA em víveres e medicamentos ou em dinheiro os produtos que os guerrilheiros obtinham na floresta1022. Posteriormente, este entendimento foi assumindo as características de um verdadeiro acordo de cessar-fogo quando se estendeu às autoridades militares coloniais. Grosso modo, o entendimento 1016 Bridgland (1988: 97); Guerra (1993:166), considera que o comité central era constituído por 31 membros. Ver também Josep Sánchez Cervelló em Gomes e Afonso 10 (2009:102-103). 1017 E, à medida que o grupo instituído se estrutura e configura, o chefe concentra na sua pessoa não só o capital político mas igualmente o capital militar. 1018 Daí que tenhamos optado por não apresentar a lista dos membros do “bureau político” como indício de capital político delegado. 1019 O que explica em certa medida o facto de a UNITA não conseguir afirmar-se como efectiva organização política de âmbito nacional. Com efeito, a UNITA era constituída por uns escassos 1300 guerrilheiros, e dispunha de um armamento bastante reduzido, sendo que a escassez populacional das suas zonas de actuação impedia o recrutamento de novos militantes. Gomes e Afonso 12 (2009:99) Todavia há quem considere que a UNITA realizava um notável trabalho de mobilização das populações nas suas zonas de actuação, não só no Moxico mas igualmente no Bié região de onde Savimbi era originário. Socorro Folques em Antunes (1996: 698). Ferrrand d’Almeida em Antunes (1996: 745). 1020 Gomes e Afonso 12 (2009: 99). 1021 “A extorsão de «impostos de guerra» dos proprietários brancos de plantações, e de outros empresários brancos, era também prática corrente da FNLA, em parte dos distritos no norte”. Heimer (1980:115). 1022 Gomes e Afonso 12 (2009: 49). 242 entre a UNITA e os militares portugueses consistia no seguinte: à UNITA era assegurada a livre circulação, numa extensa área situada nos rios Lungué-Bungue, ao sul do caminho-de-ferro de Benguela, área onde as tropas portuguesas não podiam penetrar. Por seu turno, a UNITA combateria o MPLA e fornecia informações militares acerca do mesmo. O acordo implicava, também, o fornecimento por parte das autoridades portuguesas de material e de logística1023. Esta relação entre a UNITA e o exército português nunca deixou de funcionar como um estigma para a organização nacionalista1024. O que fez com que nas lutas políticas de classificações no seio dos nacionalistas, a UNITA fosse classificada de traidora. Epíteto corporizado pelo seu líder1025. Em Setembro de 1973, depois de praticamente dois anos de tréguas com o exército português, a UNITA voltou a dar início às actividades militares. A partir daí as autoridades militares portuguesas da ZML começaram a planear as operações militares de grande envergadura. Foi o caso da denominada “Operação Castor” executada Em Janeiro de 19741026. A UNITA tornava-se assim o movimento militar que, à chegada do golpe de Estado revolucionário do 25 de Abril, obrigava ao empenhamento de maior número de efectivos do exército português e que mais baixas vinha, provocando1027. Mas mesmo naquele tempo dispunha apenas de algumas centenas de homens armados, e de um equipamento militar bastante reduzido1028. 1023 O nome de código Operação Madeira deriva do facto de o contacto entre a UNITA e o exército português se ter estabelecido através dos madeireiros portugueses que trabalhavam nas regiões florestais ocupadas pela UNITA. Os acordos duraram até 1973. Josep Sanchez Cervelló em Gomes e Afonso 7 (2009: 25). Manuel Catarino em Gomes e Afonso, Separata XII (2009: 12); Nunes (2002:82-83). 1024 Com efeito, a correspondência entre a UNITA e as autoridades portuguesas viria a ser publicada na revista Áfrique-Ásie com o título “La Longue Trahison de l’UNITA” no nº 61 de 3 de Julho de 1974 num artigo não assinado mas da autoria de Aquino Bragança. Joseph Sanchez Cervelló em Gomes e Afonso 7 (2009: 25). Ver os mesmos Gomes e Afonso 12 (2009: 75-76) Gomes e Afonso 13 (2009: 51 e 54)) ver igualmente a posição da UNITA acerca da Operação Madeira a posteriori em Savimbi (1979: 37-39) e Chiwale (2008:141-146). 1025 Savimbi refuta a posteriori tal epíteto justificando que: “A UNITA ficou assim entre três fogos: as tropas portuguesas, o MPLA e a FNLA. O general Bethencourt Rodrigues e os outros militares portugueses acharam que a UNITA não representava grande perigo e que o MPLA e a FNLA é que eram um perigo”. O mesmo confirma a relação (acima supracitada embora não se refira ao dinheiro) com os madeireiros e que os mesmos serviram de intermediários nas tréguas com as tropas portuguesas. E no respeitante ao acordo com o exército português, Savimbi reconhece que aceitou o pacto de não agressão mútua: “Se o objectivo deles era não nos atacarem e nós não os atacarmos a eles, porque é que não havíamos de aceitar? Nós aceitamos. Mas nunca o Governo nem qualquer militar nos pediu para atacarmos o MPLA. (…). Era necessária esta arte da sobrevivência. Aprendi-a com homens como Mao e Nasser se você não pode combater, você negoceia”. Savimbi em Antunes (1996: 98-99). 1026 Este retomar do conflito deveu-se, em certa medida, à chegada de um novo comandante-em-chefe da ZML, Abel Hipólito Raposo que defendia o fim do cessar-fogo pois considerava a UNITA ao mesmo nível que os outros movimentos armados. Vasconcelos Raposo em Antunes (1996: 598); Costa Gomes em Antunes (1996:120); Correia (1991: 39-40). 1027 Correia (1991: 76). 1028 Heimer (1980: 39-40). 243 Em Junho de 1974 a UNITA assinaria um acordo de cessar-fogo com as autoridades militares portuguesas. Ao antecipar-se às outras duas forças rivais, a UNITA ganhara tempo no trabalho de mobilização da população1029. O que justifica em certa medida o facto de em finais de 1974, a UNITA ter conseguido uma forte adesão de jovens das zonas do centro e sul, permitindo-lhe assim dispor de cerca de 4000 homens, muito embora não possuísse ainda o apetrechamento militar necessário para enfrentar os seus rivais da FNLA e do MPLA1030. 2.2 O percurso de legitimidade da FNLA Em finais dos anos sessenta, a actividade político-militar militar da FNLA chegara a uma estagnação quase total. Com efeito, a FNLA ainda não conseguira ultrapassar as sequelas das crises e dissidências de 1964 e 1965. Muito embora mantivesse alguma actividade armada no Norte de Angola junto à fronteira com o Congo Kinshasa1031, onde se destacara igualmente pelo confronto com o rival MPLA, a ausência de uma efectiva implantação no interior de Angola teve consequências no seu capital de reconhecimento internacional como legítimo representante da luta anti-colonial1032. Somente a partir de 1968 é que a FNLA inicia as suas primeiras actividades de carácter militar no Leste, a partir de fronteira congolesa com a Vila de Teixeira de Sousa, sem contudo conseguir uma real implantação militar na região1033. A mobilização político-militar permanecia restringida praticamente a um território composto sobretudo por uma população inserida no grupo etnolinguístico Bakongo1034. 1029 Quanto a nós esse trabalho de mobilização tivera o seu desenvolvimento aquando do cessar-fogo com o exército português no âmbito da Operação Madeira. 1030 Tali II (2001: 43). 1031 A actual República Democrática do Congo teve várias designações. Já fora República do Congo, passou a ser Congo Kinshasa e por último a partir de 1971 passou a denominar-se de República do Zaire. 1032 Em 1968 o Comité Especial da OUA recomendava que todos os países se recusassem a reconhecer o GRAE. Gomes e Afonso 9 (2009: 54). A 21 a 23 de Junho de 1971 a OUA retirara o seu reconhecimento ao GRAE. Muito embora a Nigéria conseguira fazer aprovar uma resolução que autorizava os países que o desejassem a continuar a apoiar o GRAE. Gomes e Afonso 12 (2009: 57). 1033 Gomes e Afonso 9 (2009: 45); Nunes (2002: 16). A 20 de Janeiro de 1969 guerrilheiros do ELNA atacaram uma brigada de trabalhadores do Caminho-de-ferro de Benguela na região de Cafungo, Moxico, resultando a morte de 15 trabalhadores e 32 feridos e dois desaparecidos. Gomes e Afonso 10 (2009:19). 1034 O que facilitava, nas lutas classificação política, a sua inserção num quadro étnico e regional, retirando-lhe deste modo o carácter de organização nacional. 244 Mas os constrangimentos político-militares da FNLA eram acentuados por um conjunto de factores de ordem internacional e regional que, na sua interdependência, contribuíam para uma fraca actividade militar, limitando assim os efeitos da mesma no campo político angolano. Um destes factores foi o contexto de guerra-fria que se reflectiu na variabilidade, quer em termos qualitativos como quantitativos, dos apoios externos concedidos à FNLA. Podemos assim considerar que a FNLA fora em parte uma vítima da nova ordem internacional emanada após o fim da Segunda Guerra Mundial. O que se deve, em certa medida, ao modo como o governo norte-americano encarou, no quadro da rivalidade com a URSS, a questão angolana: “A instalação do quadro da guerra-fria contribuiu para tornar mais difíceis as opções de Washington, obrigado a ter em conta dos seus aliados europeus. Em termos muito genéricos, a administração norteamericana oscilou entre duas tendências: a de favorecer a conservação dos sistemas coloniais, para evitar um vazio que a União Soviética poderia vir a preencher; e a dar o seu apoio a formas moderadas de nacionalismo cortando o caminho à penetração comunista (um perigo que variava de região para região, tendo muito maior peso na Ásia do 1035 que em África” . Assim, e apesar de defender o princípio do direito à autodeterminação dos povos colonizados, tornara-se prioritário para o governo de Washington “moderar” o nacionalismo da FNLA de modo a garantir um bom relacionamento com o governo de Lisboa. Sendo assim um envolvimento em grande escala na causa independentista angolana não fazia parte das prioridades do governo norte-americano1036. Esta política foi consubstanciada de forma mais evidente a partir da tomada de posse de Richard Nixon1037. Num quadro de guerra-fria Portugal, como membro da NATO, era um aliado fundamental na luta contra o “comunismo soviético”. Esta aliança era reforçada pela necessidade que os EUA tinham de utilizar a base militar das Lajes situada numa das ilhas dos Açores para defender os seus interesses no Médio Oriente, cuja situação militar se tinha agravado com a dimensão regional do conflito israelo-palestiniano1038. Mas essa privilegiada relação com Portugal também era sustentada por interesses económicos. Com efeito, os Estados Unidos faziam parte dos países beneficiados, tal como os 1035 Manuel (2006:42). Considera um autor que : “Ainsi au cours de cette première période, les EUA jouent deux cartes : l’une, celle de l’équilibre des forces au niveau mondial en ménageant leur allié, le Portugal, l’autre celle du régionalisme, en aidant secrètement, l’un des mouvements de libération, favorable à leurs intérêts“. Gonidec (1993: 49). 1036 Convém ainda recordar que a escalada da guerra do Vietname obrigara os EUA a uma forte concentração de meios logísticos e financeiros no Sudoeste Asiático. Wright (2000:108-109). 1037 Wright (2000:110-117). 1038 O conflito israelo-palestiniano adquirira proporções regionais devido à intervenção dos países árabes como por exemplo o Egipto, a Síria e a Jordânia. Wright (2000:112-113). 245 outros países ocidentais, da política de abertura por parte do regime português à entrada de capital estrangeiro. Esta política possibilitou aos Estados Unidos investir em Angola em múltiplos sectores da economia colonial: o petróleo, as minas e a agricultura. Sendo que o primeiro adquirira o estatuto de sector chave para os interesses económicos americanos1039. Este exercício de realismo político por parte de Washington terá condicionado a dimensão dos apoios do governo zairense à FNLA a qual, obviamente, estava condicionada tanto pelo quadro da guerra-fria como pelos interesses norte americanos em Angola1040. Todavia, num quadro estritamente regional, convém recordar que Portugal dispunha ainda de dois trunfos fundamentais: os refugiados do Katanga e o caminho-de-ferro de Benguela. Os refugiados katangueses sedeados em Angola, gozavam da protecção das autoridades coloniais, e podiam a qualquer momento funcionar como elemento desestabilizador do regime presidido por Mobutu, caso as autoridades coloniais assim o entendessem; quanto ao caminhode-ferro de Benguela, tal como foi assinalado, tornara-se cada vez mais vital para a economia zairense. Essa fragilidade de ordem político-militar e económica contribuiu, em certa medida, para o estabelecimento de relações directas entre Kinshasa e Lisboa1041. Um entendimento que se reflectiu na, fraca, capacidade militar da FNLA1042. Esta relação de dependência relativamente ao governo do Zaire ir-se-ia tornar mais notória quando em 1972 soldados do ELNA, incluindo o seu Estado-maior, se amotinaram, na base de Kinkuzu, contra a direcção da FNLA1043. A revolta, que só fora contida graças à 1039 Referimo-nos por exemplo às actividades da Cabinda Gulf Company, filial da Gulf Oil Corporation, que começara a explorar petróleo em Cabinda em 1968. Wright (2000:114-116); (Mbah (2005: 420-426). 1040 Segundo Heimer (1980: 37) o governo de Mobutu nunca permitiu que a FNLA perturbasse a presença portuguesa em Angola nem deixou crescer a FNLA ao ponto de se tornar uma ameaça ao governo zairense como acontecia com os palestinianos no Líbano. O mesmo considera que: “Como é evidente, esta política foi acordada, e tornada possível, pelo principal mentor internacional de Mobutu, os Estados Unidos”. 1041 Através da Embaixada de Espanha no Zaire onde em Setembro de 1971 passou a ser acreditado o diplomata português António Monteiro, como encarregado de Negócios. Também se estabeleceram contactos directos entre as mais altas autoridades coloniais e a cúpula do poder zairense. As relações entre Portugal e o Congo Kinshasa permitiram também que este último país aumentasse o seu abastecimento pois abriu-se ao comércio com Angola e África do Sul. Esta abertura por parte do governo do Zaire permitiu que Portugal estivesse ao corrente do que sucedia no Zaire. O que tornou possível ter um controlo indirecto, da actividade da FNLA. António Monteiro em Antunes (1996: 638-640). Sobre a situação militar no Norte de Angola ver Josep Sánchez Cervelló em Gomes e Afonso 12 (2009:92). 1042 Em 1971 a actividade política e militar da FNLA cessara praticamente no Norte e no Leste. Josep Sánchez Cervelló em Gomes e Afonso 12 (2009:97). Ver igualmente António Monteiro em Antunes (1996:635-640). 1043 Após a revolta de Kinkuzo, a FNLA anunciou a reorganização das suas forças militares. Foi assim criado um Comando Supremo em substituição do Estado-maior Central, sendo igualmente criados três estados-maiores nas 246 intervenção do exército zairense, demonstrara o quão frágil era a posição de Holden Roberto no seio da FNLA1044. Kinkuzo assinala quanto a nós, um momento crucial de desvalorização, do capital político a título pessoal, de Holden Roberto, percepcionado, cada vez mais, como dependente do capital político do governo congolês, para não dizer de Mobutu1045. De um modo retrospectivo Holden Roberto dá a entender que a aliança com Mobutu fora sobretudo ditada mais pelas circunstâncias geopolíticas do que por um quadro de afinidades historicamente construídas; nem mesmo o facto de ter sido, alegadamente, casado com uma irmã do mesmo parece ser razão suficiente para um tipo de relacionamento em que a afinidade suplante a necessidade1046: “ para mim, a aliança com Mobutu foi sempre uma nevrálgica questão táctica, o ponto estratégico foi a manutenção da guerra em Angola contra o colonialismo português. Podem inventar o que quiserem, mas quando olho para trás e observo a importância geoestratégica do Congo, permaneço com a consciência tranquila. (…) esta «relação pecaminosa» foi a única opção possível contra o colonialismo português e a manutenção da guerra em Angola. O nosso objectivo político-militar foi sempre conquistar uma fracção do território nacional alargado de forma a instalarmos o GRAE e não ficarmos dependentes do cenário político congolês e da sua estabilidade” 1047 . Convém salientar que apesar das “boas relações” com Portugal o governo de Mobutu garantira sempre um apoio mínimo à FNLA. Com efeito, assegurar a existência da FNLA era um trunfo político no quadro da diplomacia internacional e regional. Ao apoiar a FNLA o governo de Mobutu mantinha a pressão sobre Portugal e demonstrava perante os países membros da OUA o seu engajamento na luta anti-colonial1048. Mas este empenho do governo da República do Zaire, na causa nacionalista angolana, merece ser também apreendido no quadro de uma nova relação triangular: China/Zaire /FNLA; relação que terá efeitos tanto na luta armada como no lugar que a FNLA irá ocupar no espaço frentes de guerra. Gomes e Afonso 13 (2009:23). Todavia, segundo Mbah (2005: 441), somente em 1973 é que o governo zairense decidiu reorganizar as suas tropas e as da FNLA em simultâneo. 1044 Para saber a versão de Holden Roberto acerca da revolta de Kinkuzo ver Nganga (2009: 229-232). Daí que nas estratégias de estigmatização, da FNLA, o MPLA recorria a uma nova designação. Às expressões “tribalistas” e “racistas” foram complementadas com a designação de “movimento de fantoches”. Tali II (2001: 104). 1046 Holden Roberto era cunhado de Mobutu. Guerra (2009: 87). Põe-se aqui quanto nós a questão do tipo de relação que o campo político estabelece com as relações linhageiras ou de parentesco, nomeadamente no que respeita aos efeitos destas últimas no dito campo e vice-versa. 1047 Holden Roberto em Nganga (2008: 195). 1048 O desaparecimento da FNLA teria como consequência a marginalização deste país num quadro regional e africano. Interessava portanto a este país ser reconhecido como um Estado engajado na luta de libertação de Angola. Não é, pois, de estranhar o empenho de Mobutu no fracassado acordo, posterior, entre o MPLA e a FNLA de Dezembro de 1972. Este empenho garantia ao Zaire um lugar cimeiro no contexto regional africano. E, provavelmente, um papel relevante no quadro de uma solução independentista para Angola. 1045 247 nacionalista angolano. Com efeito, graças ao substancial auxílio chinês, sobretudo a partir de 1973, tanto em equipamento militar como em instrutores militares, a FNLA iria por fim sair de um estado de letargia político-militar1049. Assim graças ao apoio da China, a luta armada iria ganhar assim um novo impulso, sobretudo a partir de 1974 ano em que a FNLA se afirmaria como a principal força militar angolana. Estava, por isso, em condições de desencadear uma nova ofensiva no Norte, pois já contava com algumas unidades organizadas em moldes mais clássicos do que simples grupos de guerrilha1050. Assim e embora se tenha transformado de ponto de vista militar numa extensão das forças armadas da República do Zaire, de entre as três organizações nacionalistas armadas, a FNLA era, em 1974, aquela que dispunha das condições necessárias para assumir o primeiro plano de ponto de vista militar1051. Foi nessa qualidade que se apresentou, quando assinou um cessar-fogo, a 15 de Outubro de 1974, com o exército português. 2.3 O percurso de legitimidade do MPLA 1049 No nosso entender o apoio chinês à FNLA merece ser perspectivada tanto à luz do conflito sino-soviético, bem como no quadro da rivalidade entre os EUA e a URSS. Há como que um efeito de dominó. Paralelamente ao clima de guerra-fria, existia o conflito sino-soviético. A China e a URSS disputavam de ponto de vista ideológico a definição legítima do socialismo. Sendo assim, o conflito sino-soviético possibilitara uma aproximação entre Pequim e Washington, segundo o velho princípio de que “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”. Este entendimento permitiu à China substituir a República de Taiwan (que por sua vez fora expulsa) da Assembleia da ONU como representante de todo o povo chinês. Além de ter conseguido igualmente ser admitida como o quinto membro do Conselho de Segurança da ONU. Tal mudança deveu-se, em certa medida, ao apoio norte-americano. O clima de aproximação entre os dois Estados teria a sua consagração quando Richard Nixon, o então presidente norte-americano, foi visitar a China, a 21 de Fevereiro de 1972, tendo aí permanecido durante nove dias. Esta détente entre os EUA e a China terá porventura influenciado uma aproximação entre a República do Zaire e esta última que se traduziria na visita do presidente deste país africano à China. Segundo Holden, a dita visita iria preparar a chegada, ao mesmo país, de uma delegação da FNLA liderada pelo mesmo em Novembro do mesmo ano, confirmando assim o engajamento da China na causa nacionalista angolana. Ao praticar um bem sucedido jogo duplo os EUA conseguiam, de forma indirecta, enfraquecer a URSS e ao mesmo tempo garantir o apoio a FNLA sem melindrar as autoridades portuguesas. Com efeito, o apoio chinês tanto ao Zaire como à FNLA dificilmente se concretizaria sem um acordo tácito ou implícito entre a China e os EUA. Reconhecemos, no entanto, que estas considerações carecem de substancialidade empírica. Como tal, situamo-nos no plano das conjecturas. Para saber mais sobre as influências externas na dinâmica do espaço nacionalista angolano, nomeadamente da URSS, EUA e China além de outros países ver Josep Sánchez Cervelló em Gomes e Afonso 12 (2009:89-90); Holden Roberto em Nganga (2008: 254-255); Marcum (1978:221-240); acerca do papel dos EUA em Angola, Wright (2000); Milhazes (2009), acerca do papel da URSS. 1050 Correia (1991: 76). 1051 Em 4 de Junho de 1974 o Diário de Luanda anunciava que a FNLA tinha recebido o primeiro contingente de instrutores chineses. O mesmo Diário considerava a FNLA como o movimento de libertação com maior efectivo armado. Segundo Mbah (2005: 441) juntos, o exército zairense e o ELNA, constituíam um exército de 17000 a 20000 homens. Ver Heimer (1980: 36-37). 248 Desde 1964 que o MPLA tinha conseguido uma residual implantação militar na denominada Frente Norte1052. Fora graças à abertura da II Região político-militar que o MPLA fora reconhecido pela OUA como legítima representante do povo angolano. E, será sensivelmente a partir deste período, que o MPLA iria adquirir de forma mais sistemática apoios externos, nomeadamente da URSS e da maioria dos restantes países do denominado bloco socialista1053. No entanto a implantação militar na denominada Frente Norte era mais aparente do que real. Com efeito, na I Região aberta desde 1961, as actividades militares do MPLA restringiamse praticamente às zonas dos Dembos e Nambuangongo onde a guerrilha iria praticamente lutar pela sobrevivência até 1974. Constantemente assediada quer pelo exército português quer pela FNLA, que impediam o almejado abastecimento da região, os escassos guerrilheiros que atingiam esta região político-militar nunca foram suficientes para colmatar as necessidades, de armamento e outras condições materiais, de uma guerrilha sitiada por todos os lados desde os primórdios da sua existência1054. Quanto a Cabinda, II Região Político-militar, o MPLA estava circunscrito a uma guerrilha de fronteiras pois nunca conseguira ultrapassar as dificuldades naturais da densa barreira florestal do Mayombe, praticamente sub-povoada, nem tão pouco contar com o apoio das populações locais, mais inclinadas aos apelos das organizações políticas armadas que 1052 O MPLA tinha delimitado as suas zonas de actuação em regiões político-militares. Estas regiões estavam inseridas em dois espaços igualmente delimitados pelo MPLA: a Frente Norte e a Frente Leste. A Frente Norte compreendia I Região político-militar e a II Região político-militar. A I Região abarcava os então distritos de Luanda, Kuanza Norte, Uije e Zaire. A II Região abrangia o distrito de Cabinda. A partir de 1966 o MPLA abriu a denominada Frente Leste que por sua vez seria constituída pela III Região político-militar que englobava o Moxico e Kuando Kubango; em 1969 era aberta a IV Região político-militar que compreendia os distritos da Lunda e Malanje; em 1970 dá-se a abertura da V Região político-militar constituída pelos distritos do Bié, Huambo, Kuanza Sul e Benguela. Uma última região estava em vias de ser aberta a VI Região político-militar que compreendia os distritos da Huila e Moçâmedes. Adolfo Maria em Pimenta (2006: 87); Tali I (2001: 121). 1053 Costa Pinto (2000: 83). 1054 Tali I (2001: 170). Com efeito o MPLA tentara sempre reabastecer esta zona. Em Julho de 1966 uma primeira expedição comandada por Jacob Caetano vulgo “Monstro Imortal” denominada Destacamento Cienfuegos, (em memória de Camilo Cienfuegos, herói da revolução cubana), saiu do Congo Brazzaville e atravessou o Congo Kinshasa tendo atingido a região situada na área dos Dembos-Nambuangongo. A coluna atingiu a I Região mas em número reduzido. Em Março de 1967, um segundo destacamento denominado Destacamento Kamy, (em homenagem a um guerrilheiro morto em Cabinda), seria praticamente dizimado pela fome e pelas tropas da FNLA, tendo apenas sobrevivido 27 guerrilheiros. Pouco tempo depois, em Julho de 1967, uma nova expedição denominada Esquadrão Ferraz Bomboko partiu de Dolisie (Congo Brazzaville). O mesmo foi interceptado pelas autoridades do Congo Kinshasa tendo sido presos, desarmados e expulsos para Brazzaville todos os 152 integrantes da expedição. A mesma expedição seria reconstituída em Dezembro 1969 e transferida para Frente Leste, na III Região político-militar de modo a reatar a operação. Todavia a expedição conheceria um novo fracasso, em Dezembro de 1970, em Malanje, num confronto com o exército português. Tali I (2001:109-110). 249 veiculavam o nacionalismo “cabindês”1055. Sendo assim, para além de ter contribuído para o reconhecimento internacional do MPLA, a II Região funcionou mais como uma escola de treino e formação de quadros para a luta de guerrilha que se iria expandir para o Leste de Angola1056. Com efeito, a abertura da Frente Leste apresentava inúmeras vantagens, de entre as quais o sair do gueto cabindense e a possibilidade de abastecer a I Região sem ter que atravessar o Congo Kinshasa. Assim, a partir da Zâmbia, o MPLA podia, através da abertura de novas regiões político-militares, abrir um corredor militar de modo a conseguir a almejada ligação entre a Frente Leste e a Frente Norte1057. Mas a abertura da Frente Leste possibilitava também que o MPLA, ao alargar a sua base territorial, reforçasse o seu carácter de organização política armada de âmbito nacional. O que tornava ainda mais consistente o seu estatuto de sujeito do direito internacional. Assim, a mencionada abertura possibilitara que a guerrilha do MPLA, durante o período compreendido entre 1966 e 1970, conseguisse, não obstante as dificuldades levantadas pelo exército português,1058 uma notável progressão tanto no noroeste como no sul do país1059. Mas em 1971 a guerrilha do MPLA começou a perder terreno face à virulência da contra-ofensiva desencadeada pelo exército português cujo aumento de eficácia se foi tornando proporcional ao definhamento das operações militares deste movimento1060. Esta periclitante situação militar iria agravar-se em 1972 com o acordo selado entre a UNITA e o exército 1055 Como era o caso da FLEC- Frente de Libertação do Enclave de Cabinda. “Foi aos elementos provenientes desse «laboratório vivo» (na expressão que se impôs no interior do próprio Movimento) que o MPLA recorreu em 1966 para abrir aquela que iria ser a denominada Frente Leste”. Tali I (2001: 110). 1057 A abertura da Frente Leste para além de abrir uma nova frente de combate obedecia à abertura de um corredor: Rota Agostinho Neto: eixo pelo qual o MPLA pretendia ligar a III Região, no Leste, à I Região. Gomes e Afonso 7 (2009: 26). 1058 Com efeito a partir de 1969, a guerrilha começou a sentir as primeiras dificuldades na sua progressão devido à forte reacção das forças armadas portuguesas que tinham intensificado as acções militares, dificultando desse modo a territorialização das regiões político-militares nomeadamente no que respeita tanto à consolidação das bases da guerrilha como à mobilização das populações locais. Este primeiro sintoma de constrangimento político-militar tem a sua expressão através de uma manifestação de descontentamento no interior do MPLA, na Frente Leste. Segundo Tali I (2001: 135), a revolta estalou em Dezembro de 1969 e é a primeira grande manifestação de descontentamento no interior do MPLA na Frente Leste. A revolta estalara na sequência do fuzilamento de um dirigente originário do Leste. No entanto a revolta fora contida pela direcção do MPLA com a desmobilização dos revoltosos e o castigo do seu mentor que fora despromovido e mantido na fronteira zambiana. Esta manifestação é conhecida como a “revolta de Jibóia” nome de guerra do seu promotor (Barreiro Freitas, também conhecido por Katuwa Mitwé). Tali classifica Jibóia como sendo de origem mbunda, um subgrupo situado no Leste de Angola na fronteira com a Zâmbia. 1059 Nunes (2002: 12). Em 1970 o MPLA podia vangloriar-se de ter em sua posse cinco regiões político-militares sendo que a 6ª região político-militar estava em vias de ser aberta Tali I (2001: 121). 1060 Sensivelmente, na mesma altura o MPLA sofria um duro revés nas cidades: a desarticulação das suas células clandestinas em Luanda nomeadamente nos musseques quando a PIDE deteve mais de meia centena de pessoas em Fevereiro de 1970. Gomes e Afonso 11 (2009:103) 1056 250 português1061. Estavam assim criadas as condições para um estado de crise generalizado, no seio do movimento, que se iria prolongar até 1974. Da expectativa de luta armada generalizada passava-se para a realidade de um estado de crise generalizada. Estado de crise que se iria traduzir, tanto na Frente Norte como na Frente Leste, em sucessivas manifestações de descontentamento no seio do MPLA. Estas foram adquirindo formas de contestações, e revoltas contra a direcção política. Sendo que estas desembocaram frequentemente em processos de ruptura, tanto com a direcção como com o próprio movimento. Referimo-nos por exemplo à crise racial na II Região1062; à denominada Revolta do Leste1063 liderada por Daniel Chipenda1064; e ao surgimento da tendência Revolta Activa igualmente na II Região1065. Um dos efeitos políticos das duas revoltas foi a realização do Congresso de Lusaka (Zâmbia), em Agosto de 1974, que reuniu as duas tendências juntamente com a ala liderada por Agostinho Neto ( “ala presidencialista”). O congresso iria saldar-se por um fracasso, tendo a “ala presidencialista”, liderada por Agostinho Neto abandonado o mesmo. Posteriormente, a 3 de 1061 A isso podemos acrescentar o facto de a URSS ter deixado de prestar auxílio ao MPLA. Tali I(2001:137). De que abordaremos de forma detalhada. 1063 A Revolta de Chipenda iria assinalar um momento de ruptura com a direcção liderada por Agostinho Neto e originar uma facção no seio do MPLA denominada Revolta do Leste que acabaria por não conseguir impor-se no seio do movimento, fracassando desse modo a sua tentativa de substituir a direcção do MPLA liderada por Agostinho Neto. Esta revolta remete para o modo como foram utilizados em princípios de acção política, categorias como, etnia, e região. Trata-se, quanto a nós, de um exemplar exercício ideológico-identitário inserido na lógica da dinâmica de um sub campo político, que, como espaço de lutas de classificação, obedece ao duplo processo de inclusão e exclusão. Para saber mais sobre esta crise e os limites da perspectiva etno-regional da mesma ver Tali I (2001: 119-168). 1064 Tali I (2001: 152-153). Daniel Júlio Chipenda (1931-1997) filho do Reverendo Jessé Chipenda pastor da igreja congregacional de Benguela que havia sido preso pela PIDE em 1968 e que viria a falecer na cadeia em Outubro de 1969. Ingressou no MPLA em 1962. Integrou o primeiro grupo que entrou no Leste. Entrou em dissidência com a direcção do MPLA em 1973, tendo criado uma tendência denominada Revolta do Leste. Acabaria por ingressar na FNLA o que iria assinalar o declínio do seu capital político. Para saber mais acerca da trajectória de Chipenda e da sua versão acerca da Revolta do Leste ver entrevistas do próprio em Jaime e Barber (1998: 134-153); Antunes (1996: 845-852). 1065 O segundo momento de contestação e ruptura, na Frente Norte, com a direcção do movimento, encontra expressão num documento publicado em 11 de Maio de 1974, intitulado “o Apelo dos 19”. “Apelo” que assinala e oficializa o surgimento da denominada Revolta Activa. O surgimento da Revolta Activa marca, em nosso entender, um momento de reavaliação do capital político complementada com uma tentativa de institucionalização do capital político delegado de modo a controlar o capital de notoriedade a título pessoal corporizado em Agostinho Neto. Daí o uso de designações como “presidencialismo absoluto” para classificar a gestão do MPLA por parte de Agostinho Neto. A mesma acabaria por dissolver-se acabando uma parte dos seus elementos por serem reintegrados no MPLA, mediante o mecanismo redentor da autocrítica; outros foram presos ou viveram em regime de clandestinidade. Sendo o exílio um dos epílogos deste processo político no seio do MPLA. Para saber mais sobre a Revolta Activa ver Tali I (2001); ver igualmente Adolfo Maria em Pimenta (2006). 1062 251 Setembro de 1974, as três facções assinaram um acordo assente no documento preparatório do fracassado Congresso de Lusaka. Mais uma vez, o acordo não vingou1066. Podemos reter dois momentos que assinalam um processo de ruptura definitiva entre a “ala presidencialista” e as duas revoltas: a ausência/exclusão das mesmas dos trabalhos da Conferência Inter-regional de Militantes realizada no Moxico em Setembro de 1974; e, um segundo de momento de exclusão, este simbólico e decisivo. Pois foi em nome do MPLA, como seu máximo e legítimo representante, que Agostinho Neto assinaria o cessar-fogo com as autoridades militares portugueses no dia 21 de Outubro de 19741067. Dois momentos que, por sua vez, simbolizam a vitória da “ala presidencialista” corporizada por Agostinho Neto; dois momentos que assinalam o princípio do fim de um estado de crise generalizado em que o MPLA se encontrava desde 19721068. Todavia importa aqui sublinhar que a Conferência Inter-regional do Moxico, sendo um ponto de partida para o fim do estado de crise generalizado é ponto de chegada no respeitante ao fim da crise racial. Com efeito, foi no Congresso do Moxico que se encontrou uma solução de compromisso que poria formalmente fim ao problema racial que, desde 1972, permanecia uma questão em aberto. Contudo, para se compreender o modo como se encontrou uma solução para a questão racial no MPLA, torna-se necessário regressar a um passado, historicamente bastante recente, no ano da denominada “crise de 1972”, na Frente Norte em que a questão racial adquirira uma proporção como nunca se vira desde a crise de 1962-1964. 3. 1972-1974. O regresso da questão racial no MPLA. A “crise de 1972” e a Conferência Inter-regional dos Militantes do Moxico. Antes de prosseguirmos o trabalho, e em ordem a clarificar a nossa linha de acção, será conveniente apresentar um breve esclarecimento acerca do modo como abordaremos a questão 1066 Neste acordo previa-se a existência de um presidente: Agostinho Neto e dois Vice-presidentes: Daniel Chipenda e Joaquim Pinto de Andrade pela Revolta Activa e um comité central constituído por 39 membros. Adolfo Maria em Pimenta (2006:120-121); Tali I (200-204). 1067 Segundo Adolfo Maria em Pimenta (2006:122): “este acto representou um momento chave na evolução dos acontecimentos, uma vez que, a partir da assinatura das tréguas com as autoridades portuguesas, a direcção de Agostinho Neto obteve a desejada legitimidade internacional no processo conducente aos acordos para a independência tornando-se parceira dos outros dois movimentos nacionalistas armados, a UNITA e a FNLA (que já tinham assinado o cessar-fogo)”. 1068 Tali I (229-230). 252 racial no MPLA tendo em conta o estado generalizado de crise que se vive neste sub campo no período compreendido entre 1972-1974. Consideramos que o período compreendido entre 1972 e 1974 pode ser perspectivado como um tempo e um lugar para onde convergem um conjunto de factores que tornam o MPLA um espaço de crise generalizada. Todavia, ao contrário da primeira crise no MPLA que tem um tempo e um território definido, esta crise é mais complexa na medida em que os seus sintomas se manifestam em territórios diferenciados e em tempos variáveis1069. Os sintomas, na sua variabilidade territorial e temporal, participam num universo comum que se designa por MPLA1070. Mas isso não impede que o sub campo MPLA possa ser também abordado como um espaço de várias crises. A esta variabilidade temporal e territorial podemos acrescentar um outro elemento que acentua o grau de complexidade dessa crise. Trata-se da diversidade no respeitante ao exercício de questionamento. Assim, as diversas formas de contestação à direcção do MPLA podem ser apreendidas como um questionamento não só variável no território e no tempo mas igualmente como um questionamento diferenciado nem que seja pelos diversos recursos políticos utilizados (etnia, raça, região). A título de exemplo, podemos apontar dois territórios distintos no quadro da crise generalizada vivida pelo movimento: a Frente Leste e a Frente Norte. Sendo que na Frente Norte podemos considerar a existência de duas crises distintas inseridas num quadro de crise generalizada: a crise racial de 1972, e a crise da Revolta Activa em 1974. Estas duas crises distinguem-se não só por acontecerem em tempos distintos mas porque de ponto de vista das lutas de classificação são também diferenciadas1071. É neste sentido que destacaremos, no ano de 1972, um momento que indicia um forte sintoma de crise racial no MPLA num quadro de crise generalizada: a apresentação de um texto intitulado “Manifestação Político-Militar dos Militantes na II Região”. 1069 Há uma outra diferença que convém salientar relativamente à crise de 1962-1964. A crise militar do MPLA não significa que o mesmo não seja reconhecido como organização armada. Aqui no caso o MPLA é percepcionado como uma organização armada em crise. No caso da crise de 1962-1964 o MPLA era uma organização em crise pelo facto de não ser uma organização armada. 1070 Como afirma um autor: “Embora se encontrassem nas antípodas uma da outra, a Frente Leste e a Frente Norte faziam parte de um único processo, gerido por uma única estrutura política. Deste modo, a crise na Frente Leste teve forçosamente, repercussões na Frente Norte a que se somaram à decadência generalizada de todo o processo da luta de libertação nacional”. Tali I (2001: 173). 1071 Mas que contudo não deixam de ser parte integrante de um questionamento generalizado da direcção do MPLA. 253 Quanto à Conferência Inter-regional dos militantes do MPLA realizada no Moxico, a retenção deste momento deve-se ao facto de ter sido na dita Conferência que se encerrou o “debate racial”, que fora (re)aberto pela “Manifestação Político-Militar dos Militantes na II Região”. Debate que gravitou sobretudo em torno dos critérios que iriam definir o lugar daqueles que eram classificados de brancos numa Angola independente. E, como tal, o lugar deles no MPLA. Porém a Conferência adquire também pertinência porque é um momento que marca não só o fim formal da crise racial, mas porque o fim da mesma assinala o princípio do fim de um estado de crise generalizada no MPLA. 3.1 Alguns elementos que possibilitam situar a “Manifestação Político-Militar dos Militantes na II Região”. No dia 14 de Março de 1972 Lúcio Lara, representante do MPLA em Brazzaville, foi sequestrado nas instalações do MPLA por um grupo de quadros militares que em 1971 ali haviam chegado da I Região em busca de meios materiais e logísticos1072. As razões apresentadas pelos sequestradores eram de que pretendiam protestar contra “certas atitudes daquele dirigente para com os militantes acerca dos problemas do material que servia para a defesa do escritório”1073. Começava assim a denominada “crise de 1972”1074. Posteriormente, os contestatários redigiram e apresentaram um manifesto, intitulado “Manifestação político-militar dos Militantes na II Região”, pedindo: “a realização imediata duma reunião alargada com a participação de todos os combatentes (GUERRILHEIROS) na II Região, assim como os diversos organismos do Movimento”1075. Os contestatários consideravam que: “Esta manifestação, tem por fim melhorar a situação política do nosso Movimento para se evitar os distúrbios 1072 Tali I (2001: 174). A versão oficial do MPLA é a seguinte: “a 14 de Março de 1972, cerca de 43 guerrilheiros do grupo sob comando de Jacob Caetano João “Monstro Imortal” e Joaquim Domingos “Valódia” amotinaram-se e raptaram o camarada Lúcio Lara, representante do MPLA em Brazzaville, na ausência do Presidente do Movimento, Agostinho Neto, que se encontrava em Dar-es-Salam”. MPLA II (2008: 93). 1073 Segundo a versão de Lúcio Lara: “soubera-se na véspera que certos homens originários de Nambuangongo (I Região) tencionavam roubar as armas que se encontravam guardadas no escritório do MPLA com o fim de fomentar um acto de força contra a direcção do movimento. Lara tomara a precaução de esconder as armas, o que originou a ira dos amotinados”. Tali I (2001: 174). Acerca da versão dos revoltosos ver igualmente o documento “Manifestação Político-Militar dos Miltantes na II Região em IANTT/PIDE/DGS António Agostinho Neto Processo 88 vol.1 pasta 9. Segundo Adolfo Maria em Pimenta (2006: 100), Lara seria libertado graças à intervenção das autoridades congolesas. 1074 Designação de Tali I (2001: 174). 1075 “Manifestação Político-Militar dos Miltantes na II Região” em IANTT/PIDE/DGS António Agostinho Neto Processo 88 Vol. 1 pasta 9. O que se convocou foi uma assembleia-geral a realizar em Dolisie (Congo Brazzaville), de 9 a 16 de Abril de 1972. Tali I (2001: 174). 254 frequentes, no seio do MPLA; só pois desta maneira, que encontraremos uma plataforma, para a solução dos 1076 problemas relacionados [em] outras regiões em particular e da luta em geral” . Na origem da contestação estavam, essencialmente, os chefes militares originários da I Região que haviam chegado a Brazzaville em 1971 depois de atravessarem o território zairense em busca de auxílio material e de armamentos com o intuito de reforçar a dita região, que por sua vez corria risco de desaparecer devido aos sucessivos ataques praticados pelo exército colonial1077. Durante a sua estadia no Congo Brazzaville os mesmos tomaram consciência da gravidade e dimensão dos problemas de todos os géneros que afligiam o MPLA, de entre os quais, a constatação de que o impasse militar não se restringia somente à I Região mas que abrangia igualmente a II Região1078. Mas os futuros manifestantes iriam constatar, tanto na II Região como no Congo Brazzaville, uma organização política, cuja estrutura e população era bastante heterogénea de ponto de vista sócio-cultural e somático. Assim, enquanto na I Região predominava uma população/MPLA de origem ambunda, na denominada II Região predominava uma população bakongo oriunda do Norte de Angola e de Cabinda a que se haviam juntado guerrilheiros, oriundos de Nambuangongo/Dembos e alguns militantes vindos da Frente Leste. A esta população podemos acrescentar elementos que, pelas suas características somáticas, eram frequentemente classificados de mestiços ou brancos. Quanto à sua localização territorial, esta, distribuía-se por Dolisie, Ponta Negra, Brazzaville e em bases situadas ao longo da fronteira de Cabinda1079. No respeitante às estruturas do MPLA, o aparelho político que coordenava a II Região estava situado em Brazzaville, sede da direcção do MPLA; sendo que na gestão políticoburocrática do movimento havia uma efectiva participação de “quadros mestiços e brancos”. Aliás, alguns destes elementos ocupavam cargos na direcção do MPLA enquanto outros ocupavam cargos específicos ligados à gestão quotidiana do movimento, como as finanças, a imprensa e a propaganda1080. 1076 Idem “Manifestação Político-Militar dos Militantes na II Região”. Ver anexos, nº 24. Tali I (2001: 177). 1078 Tali I (2001: 170). 1079 Tali I (2001: 171). 1080 O representante do MPLA em Brazzaville era Lúcio Lara, classificado frequentemente de mestiço. Os serviços de imprensa e propaganda eram pensados e coordenados por Adolfo Maria e a respectiva esposa Helena Maria ambos classificados de brancos. Tali I (2001: 172). 1077 255 Tali considera ainda que, grosso modo, existia em Brazzaville uma concentração de quadros mestiços. Alguns deles eram funcionários dos serviços públicos congoleses, que mantinham com o movimento de libertação laços mais afectivos que estruturais, mas que tinham importância na sua vida e no Congo e participavam nos acontecimentos que a assinalavam. Considera o mesmo que se formou a longo prazo uma comunidade que partilhava em comum o “sonho do regresso à pátria”. Para a maioria das pessoas que compunham esta “comunidade”, o MPLA era a sua principal referência identitária relativamente a Angola1081. Porém considera o mesmo que: “Esta mescla de quadros de todas as origens e raças não era todavia, sinónimo de qualquer unidade de tipo de vida. Com efeito, mesmo não sendo um tipo de vida institucionalizado, o facto é que o quotidiano dos militantes de diversas raças e condições sociais não era o mesmo nem era compartilhado no âmbito de uma comunidade unida. Pelo contrário, os militantes negros e não negros, embora convivendo, viviam em cenários sociais mais ou menos diferentes. E, especialmente, frequentavam meios congoleses diferentes. Os meios oficiais, e mais ou menos da elite social congolesa, eram frequentados pelos quadros e intelectuais mestiços e brancos ou por alguns raros dirigentes negros do MPLA ao passo que de uma maneira geral, e embora com excepções havia de facto um MPLA «popular» que vivia no meio popular congolês e não tinha contacto com os meios oficiais congoleses a não ser no âmbito de acontecimentos específicos e portanto raros. Por esse facto, eram inexistentes os contactos desse MPLA «popular» do Congo com a elite congolesa”1082. Não concordamos de todo com esta constatação pois o autor fundamenta-se na sua vivência pessoal. Sendo esta vivência uma componente relevante do trabalho analítico ela solicita, contudo, abordagens sóciodemográficas que a fundamentem. Este reparo é, contudo, acompanhado da seguinte ressalva: o carácter racial das manifestações de descontentamento é indissociável das características, de vária ordem, de uma população afecta ao MPLA na II Região e nomeadamente em Brazzaville. População, cuja heterogeneidade remete para relações histórica e sociologicamente complexas. Mas, por outro lado, estas manifestações de descontentamento dos “militantes na II Região” merecem também ser apreendidas no quadro da lógica do funcionamento de um sub campo que se vai configurando e estruturando como tal. Ou seja, o MPLA atingira um estádio em que a luta política se tornara semelhante à “ revolta religiosa contra o monopólio» dos clérigos “ 1083: “Le champ politique se trouvait décrit comme une espèce de jeu à part où, en fonction d’enjeux spécifiques qui s’y définissent et le définissent, des différences se font ou se défont (par exemple entre les fractions, les factions ou les courants d’un même parti, ou entre des partis idéologiquement proches. Loin d’être «purement 1081 Tali I (1972). Tali I (2001: 173). 1083 Bourdieu (1989:169). 1082 256 personnelles», ces distinctions sont à base sociale mais la base sociale n’est pas là ou l’on croit qu’elle est, c'est-àdire dans l’espace social global, elle est à l’ínterieur du microcosme politique “ 1084 . Por fim, não podemos deixar de sublinhar um aspecto que consideramos relevante no respeitante à dimensão racial de um estado de crise generalizado no seio do MPLA. É que a mesma merece ser apreendida no quadro interventor do Estado colonial, com especial saliência para o papel desempenhado pela PIDE/DGS. Num ofício da PIDE/DGS, datado de 1972, podemos reter as seguintes linhas1085: “tem a nossa Embaixada em Kinshasa procurado aproveitar os conflitos internos surgidos daquele movimento antiportuguês, nomeadamente o que opõe a maioria dos elementos naturais do Norte de Angola (que compõe a chamada “II Região Militar”) aos mestiços mais bem colocados na hierarquia da organização, com destaque para Lúcio Lara”. Afigura-se no entanto, de toda a conveniência a nossa representação em Kinshasa, continuar a fomentar a perturbação em Brazzaville, não só pelo enfraquecimento que tal facto não pode deixar de provocar ao nível directivo do movimento (com os correspondentes reflexos nas frentes militares), como por parecer que a divisão assim mantida contribuirá para tornar mais remotas as hipóteses de uma próxima e efectiva reconciliação do GRAE e do MPLA” 1086 . O que denota que, para as autoridades coloniais, a raça adquirira um lugar fulcral na sua estratégia de combate às organizações nacionalistas armadas, aqui no caso, ao MPLA1087. 3.2 Caracterização da “Manifestação Político-Militar dos Militantes na II Região” Na estratégia discursiva dos manifestantes é possível reter um princípio de responsabilização/culpabilização dirigido tanto aos militantes como aos dirigentes. Assim, designações como “liberalismo” e “oportunismo” servem para assinalar a falta de empenho de certos militantes do MPLA. Estas acusações de alheamento aos problemas do movimento estendiam-se aos dirigentes que não tinham em conta o “sofrimento das massas populares”. Os “manifestantes” não se furtam a tecer fortes críticas ao comando militar da II Região igualmente responsabilizado pelo estado de impasse militar pois, segundo os mesmos, o comando 1084 Bourdieu (2000 : 23). O documento está a anexado à “Manifestação político-militar dos militantes na II Região”. Trata-se de um ofício datado de Dezembro de 1972, proveniente do Ministério do Ultramar dirigido ao governador-geral de Angola. IANTT/PIDE/DGS. António Agostinho Neto. Proc.88 Vol1 pasta 9, pp-221-428. 1086 IAN/TT António Agostinho Neto. Proc. 88 Vol1 pasta 9. Considera a PIDE que o documento: “é precisamente representativo da tensão, que aproveitando aquelas dissidências se procurou criar em Brazzaville”. 1087 Mas denota igualmente uma cada vez maior capacidade da PIDE/DGS de infiltração nas cúpulas das organizações político-militares nacionalistas. 1085 257 permanecia na base da rectaguarda congolesa: “Porque é que o comando da II Região não vai para o interior; analizando isto no contexto da lei militar, vimos que o soldado não pode ir a guerra sem um Comando. O exemplo de um bom Comando é de encorajar os soldados a avançar e, em certos casos o Comando deve estar na vanguarda. Fora disso, significa chamar os soldados, para as linhas da rectaguarda. O que é grave” 1088 . Os contestatários chegam ao ponto de não só questionar a direcção mas igualmente o presidente Agostinho Neto: “Os manifestantes exprimem com profundo sentimento, a grave atitude do camarada presidente do MPLA, que oculta os direitos e deveres em poder exprimir os seus sentimentos, pelo contrário ameaça-os porque porque ele pensa que este ou aquele militante só irá expor problemas pessoais de calça ou camisa, segundo ele. Todas as vezes que o camarada presidente convoca uma reunião de militantes os aspectos desta reunião parecem aos militantes ser um «mitings» porque só tem a palavra o presidente e os militantes são obrigados a escutá-lo no fim vão as palavras de ordem. Este método, não parece aos militantes como sendo um princípio correcto”. (…). Sendo assim, nós imputamos a responsabilidade da actual situação ao presidente do 1089 MPLA, que soube confiar bastante a vida do nosso glorioso Movimento a elementos tecnocratas e burocratas” . Mas o cerne do discurso produzido pelos “manifestantes” está com efeito na utilização das propriedades rácicas/característica somáticas de modo a fundamentarem uma discriminação racial no seio do MPLA tanto no que concerne aos lugares ocupados nas estruturas da organização como em outros aspectos da vida quotidiana do Movimento. Faz-se assim novamente uso de categorias como negro, mestiço e branco, de modo a justificar uma antinomia entre privilegiados e sacrificados. Trata-se, quanto a nós, de uma estratégia de responsabilização/culpabilização que, por sua vez, fundamentará uma outra – estratégia discursiva – assente no princípio da inclusão/exclusão. Assim, as propriedades rácicas/características somáticas terão por função não só responsabilizar e culpabilizar os causadores do estado de crise do movimento mas igualmente definir os critérios que regem as competências para o exercício da política. Categorias como branco, mestiço e negro terão por função determinar quem tem ou não tem as habilitações 1088 Todavia ressalvam, os manifestantes que: “Frequentes vezes certos dirigentes, tomam como sendo atitudes tribais ou regionais, a todos os combatentes que vêm da I Região, quando exigem a solução dos problemas relacionados a Região em referência. (….). Nós concluímos que, estas posições são também processos de sabotagem, e nós estamos determinados (….), porquanto em todas as regiões do MPLA, encontram-se espalhados combatentes da I Região, combatendo duramente e por vezes dando as suas vidas sem ter em conta, a questão de origem regional ou tribal. IAN/TT António Agostinho Neto Proc. 88 Vol. I pasta 9. No nosso entender a negação da classificação tribal e regional, deve-se em certa medida à diversidade da composição etno-regional do movimento. Ao refutar esta taxinomia os “manifestantes” alargam o seu espaço de mobilização. 1089 Idem IANTT/PIDE/DGS Proc.88. Os mesmos chegaram a dirigir um ultimato ao líder máximo do MPLA: “ (…) e previne-se o camarada presidente do Movimento que, a não consideração destes factos aqui demonstrados, todas as consequências caberão à sua responsabilidade; e lembre-se que, em qualquer sociedade, o Povo é o criador da HISTÓRIA. 258 somáticas adequadas para o bom funcionamento de um “Movimento que se quer genuinamente angolano”1090. Começa-se por estabelecer uma dupla relação – somática – de causa efeito no que concerne à gestão do matrimónio por parte do Movimento: privilegiado = mestiço sacrificado = negro: “O MPLA, dispõe-se de muitos quadros angolanos formados nos países socialistas; (…). Mas acontece que estes quadros trazem consigo compromissos, quer dizer que eles regressam casados com estrangeiras e, propõe à direcção do Movimento a estabilidade da sua família para poder engajar-se melhor na luta. Estes militantes não são acolhidos, porque teria se casado sem permissão da Direcção do Movimento, por outro lado, odeiam-no por ter casado com uma branca. Enquanto verifica-se que os mestiços que vêm da França, Argel e de diversos pontos da Europa, mesmo casados sem autorização do Movimento, são acolhidos imediatamente e [sem] mais preocupação. Estas atitudes parecem aos militantes injustas, na medida em que se vai reduzindo os direitos dos filhos puros de Angola”. A questão do matrimónio e a sua somatização possibilita aos “manifestantes”, através da categoria mestiço, formularem um questionamento que remete para a responsabilização/acusação no respeitante a práticas de racismo no seio do movimento: “Mas a isso segue a seguinte pergunta: Quantos são os mestiços que se encontram no MPLA, casados com pretas 1091 angolanas? Da nossa parte, aqui tendes a nossa pergunta e sirva de resposta” . A distinção entre intelectuais mestiços e os “puros filhos angolanos” possibilita, através do recurso à categoria mestiço, apontar uma hierarquização somática no seio do movimento associando esta última categoria à eterna questão dos privilégios dos intelectuais: “Existe mais privilégios para os intelectuais mestiços em busca ou em visita dos seus familiares, em França, Argel, etc, etc.. São aceites em constituir famílias com estrangeiros, direitos esses que os puros filhos angolanos não os têm. Isto também é grave”. O discurso assente no princípio de responsabilização/culpabilização permite accionar um duplo mecanismo de antinomia: mestiços versus angolanos; cobardes versus mártires. Graças a essa dupla antinomia abre-se assim caminho para o acesso ao princípio estruturante do sub campo: a identização/exclusão: “porque se encontram em minoria os mestiços nas zonas de combate com armas na mão? Se os deveres são iguais, porque é que não há igualdade? São apenas os angolanos obrigados a ir em frente do canhão, enquanto que estes ocupam os postos da rectaguarda sobretudo o centro dos mestiços em Brazzaville. Este aspecto visa precisamente para conservar a suas vidas, para apenas amanhã serem chamados nas 1090 Estamos perante um exemplo de apropriação, pelo sub campo, de ressentimentos raciais produzidos pela sociedade colonial. A coisificação do indivíduo funciona também como estratégia política. 1091 Idem IANTT/PIDE/DGS Proc.88. 259 cadeiras dos Ministérios; porque na verdade eles não estão dispostos a dar as suas vidas pela causa da Pátria, esperando que tudo se faça pelo sacrifício de alguém. Esta posição é oportunista”. A antinomia mestiço versus negro permite sublinhar uma desigual distribuição respeitante às condições logísticas dos pioneiros do MPLA de modo a reforçar o carácter negativo, num exercício de coisificação, da categoria mestiço: “Por outro lado, os filhos mestiços só esperam a ida para o Internato depois da construção do melhor Internato, por ser mais cómodo e de boas condições; ao passo que há pioneiros que vivem até aqui nas condições difíceis cujo seu comportamento tem mostrado como sendo o de maior exemplo, de pertencer a um Povo sofredor e revolucionário. Para isso segue a seguinte pergunta: Qual é a diferença que existe entre o pioneiro mestiço e o pioneiro preto angolano”. No respeitante à categoria branco, o apelo à história apresenta-se como um argumento de peso no âmbito da estratégia discursiva de responsabilização/culpabilização: “E quando se fala do racismo no MPLA; esta questão é a mais clara e simples. Desde quando o nosso povo conheceu o racismo? É exactamente desde a chegada doutra raça em Angola que começou por inferiorizar a raça encontrada. Também hoje isso acontece no MPLA”. Exemplificado com casos individuais, no âmbito das competências para o exercício da gestão quotidiana do MPLA, a relação entre portugueses e a categoria branco volta a ser parte integrante de um discurso de identização, que remete para processos de exclusão: “A segurança do nosso Movimento não é vista como um problema fundamental. (…). A integração de elementos portugueses no MPLA: - todos os desertores angolanos que se desertam pela Frente da II Região, à chegada, são entrevistados por um português. O que é grave. (…) A administração das finanças por um português. Com certeza não há mais hoje no MPLA, elementos fiéis capazes de assegurar esta tarefa, senão estes? Ou então é necessário, uma especialidade para este Departamento? Se assim for, porque é que até hoje não há elementos para isso? Também é uma das formas de sabotagem; declaramos pois que isto é também gravíssimo”. A relação de postos e privilégios com as propriedades rácicas/características somáticas é enfatizada pelos contestatários de modo a justificar o estatuto privilegiado dos classificados de mestiços e brancos em detrimento dos classificados de negros. Assim, os “manifestantes” atingem o objectivo de identificar para incluir e identizar para excluir. Todavia, no respeitante à prática de identizar para excluir, os manifestantes apresentam, em função das características somáticas dos visados, dois níveis de exclusão: interna e externa. A primeira corresponde à exigência de exclusão no interior do MPLA, a saber, dos postos e privilégios para os classificados de mestiços; e a segunda refere-se à exclusão do MPLA daqueles que eram classificados de brancos e como tal considerados estrangeiros/portugueses: “O Povo angolano conhece os seus genuínos filhos a quem o Direito lhes pertence porque lhes fora dado pelo seu Povo; infelizmente, 260 não gozamos destes direitos. No Quadro da administração, os principais Departamento do Movimento assim como algumas secções de trabalho, não são ocupados pelos próprios angolanos; os angolanos são nomeados em segundo ou terceiro lugar; quem são os chefes? São exactamente os mestiços e certo número de portugueses que dirigem e 1092 controlam pelas actividades dos organismos do Movimento . Os angolanos escolhidos a trabalhar nestes organismos com mais capacidade que tenha, estão sob a orientação destes; isto significa, a perca aos bocados dos nossos direitos. Nós, militantes, filhos de origem da camada mais explorada, pedimos a substituição imediata de todos os mestiços, ao nível da direcção do Movimento, assim como em outros departamentos que constituam a segurança e a vida do Movimento e da luta”. (…) “Por outro lado, pede-se a retirada para fora do nosso Movimento, de todos os portugueses considerados como militantes. Estes devem enquadrar-se activamente nas organizações revolucionárias portuguesas a fim de cerrarmos fileiras para pôr fim ao fascismo em Portugal e ao colonialismo nos territórios ocupados. É o MPLA e o seu povo, os responsáveis pela administração no seu país; é o povo angolano, sob a direcção dos seus próprios filhos que irão conhecer o seu próprio destino”. 3.2.1 Efeitos e limites da “Manifestação político-militar dos Militantes na II Região” no subcampo político MPLA As medidas tomadas na Assembleia-geral realizada em Dolisie, em Abril de 1972, tornam possível constatar a eficácia política das categorias raciais mas igualmente os seus limites: “A assembleia exprime a necessidade dos mestiços e intelectuais em geral de participarem de modo mais efectivo nas frentes de combate no interior do paiz, evitando atitudes oportunistas que os retenham na rectaguarda sem razões válidas. Assim muito embora se considere que os mestiços beneficiam em geral maiores facilidades económicas e de educação, a assembleia considera que estes angolanos têm o dever e o direito de participar inteiramente na luta de libertação nacional. Notou-se porém a sua fraca presença nas frentes de combate ou no Internato 4 de Fevereiro. Por vezes gozam de privilégios dentro da Organização. No que respeita aos indivíduos de côr branca, a assembleia é de opinião que estes nunca devem exercer funções directivas nem ter acesso aos 1093 documentos ou problemas confidenciais e vitais para a nossa organização” . De ponto de vista dos efeitos produzidos no sub campo MPLA a “Manifestação político-militar dos Militantes na II Região” demonstrava mais uma vez que em momentos de crise as propriedades rácicas/características somáticas voltavam a adquirir relevância nas lutas políticas nomeadamente no que respeita ao accionamento de mecanismos que assentam num princípio estruturante do funcionamento do sub campo MPLA: a inclusão/exclusão. Todavia, o 1092 Repare-se que tanto à categoria branco e como a categoria negro é-lhes atribuída uma identidade nacional. Pelo contrário a categoria mestiço não está associada a nenhuma identidade nacional como se fosse uma categoria ligada a orfandade. 1093 Tali I (2001: 340). 261 levantamento da questão racial não iria atingir a dimensão desejada pelos autores da “manifestação”. Ao contrário do que os contestatários pretendiam aqueles que eram classificados de mestiços, como por exemplo, Lúcio Lara ou Iko Carreira mantiveram os seus lugares no movimento1094. Agostinho Neto iria empenhar o seu capital político de modo a conservar estes dois elementos na direcção do MPLA: “a custa de uma ameaça política, a sua demissão”1095. No que diz respeito aos classificados de brancos, houve com efeito uma periferização dos mesmos. Contudo, esta periferização não significou a sua exclusão do MPLA, tal como pretendiam os manifestantes1096. Mas, é inegável que o lugar dos assim classificados na luta de libertação nacional permanecia uma questão em aberto. E, terá que se esperar pela realização da Conferência Inter-regional dos Militantes do Moxico, – outro lugar, e momento, de delegação do capital político – para que se pudesse encontrar uma solução. Solução essa que passava obrigatoriamente pela definição, do lugar dos classificados de brancos, não só no seio do MPLA como no mais vasto espaço social de uma Angola independente. 3.3 A Conferência Inter-Regional do Moxico ou o fim – relativo – da crise racial no seio do MPLA De 12 a 20 de Setembro de 1974 realizou-se no Moxico a Conferência Inter-Regional dos Militantes do MPLA. Muito embora não fosse formalmente um congresso, a Conferência possuía poderes deliberativos1097. É muito provável que o estado de crise generalizado tenha condicionado a ordem de trabalhos, nomeadamente no que respeita às questões levantadas e resoluções tomadas1098. 1094 Tali I (2001: 179). Tali I (2001:179). 1096 A título de exemplo, Adolfo Maria e a sua mulher Helena Maria haviam sido afastados do programa radiofónico “Angola combatente” e proibidos de participarem em reuniões de militantes, tendo passado a fazer actividade só no Centro de Estudos. Mas aquando do denominado Movimento de Reajustamento na Frente Norte, Adolfo Maria iria participar no mesmo movimento por iniciativa de Agostinho Neto. Segundo o mesmo, Agostinho Neto confiava bastante nele. Agostinho Neto mais uma vez empenhara o seu capital político pessoal. Adolfo Maria em Pimenta (2006:100 e 106). 1097 Para saber mais sobre a Conferência Inter-Regional dos Militantes do MPLA no Moxico ver MPLA II (2008: 121- 136 e 365-413); Tali I (2001: 207-230). 1098 Tali I (2001:218). 1095 262 No respeitante às resoluções tomadas, podemos salientar aquelas que possibilitaram a criação de novas estruturas de reprodução do capital político instituído, nomeadamente, o Comité Central e o Bureau Político1099. Mas a Conferência do Moxico seria igualmente uma excelente oportunidade para fechar um capítulo que fora reaberto em 1972; e, cujo ponto final passava indubitavelmente pela definição do lugar que os brancos deviam ocupar no seio do MPLA. Muito embora os estatutos do MPLA preconizassem que: “O MPLA (…) é uma organização política constituída por angolanos sem distinção de sexo, raça, idade, origem étnica, crença religiosa, lugar de 1100 nascimento ou de domicílio , a realidade é que o lugar dos classificados de brancos no seio do MPLA ainda não fora definido1101. Segundo Tali: “Grosso modo predominavam duas correntes no seio do MPLA. Uma que se opunha a qualquer concessão automática da nacionalidade angolana aos brancos nascidos em Angola, por seculares que fossem as suas raízes no país. Só tinham direito a nacionalidade angolana as pessoas de raça negra ali nascidas. A outra corrente regia-se pelos princípios estatuários do movimento e consideravam que não se devia confundir a luta contra o regime colonial com a luta contra uma determinada raça, mesmo que esta fosse a do colonizador. Esta posição baseava-se a sua argumentação na presença e participação activa de activistas brancos na luta de libertação na sua globalidade (clandestinidade, prisão e guerrilha, etc)”1102. A solução adoptada foi conjugar o princípio do jus solis com o princípio de fidelidade política: “Direito de nacionalidade reconhecido a todos os que nasceram em Angola e a todo o estrangeiro que participou na luta de libertação nacional”; acrescentava-se o direito de naturalização para os estrangeiros que satisfaçam as condições previstas pela lei1103. A Conferência do Moxico assinala quanto a nós um momento de viragem no percurso de legitimidade do MPLA. Não só porque marca o princípio do fim de um estado generalizado de crise, e, aqui no caso o fim da crise racial, mas porque a partir de então o MPLA estava em condições de disputar a apropriação do espaço social colonial com a UNITA e a FNLA; disputa que iria passar obrigatoriamente pela apropriação da questão racial. E, neste processo de 1099 O Comité Director foi extinto pondo fim a mais de uma década de funcionamento como instância suprema da direcção política do MPLA. MPLA II (2008: 396-397). 1100 MPLA II (2008: 393) 1101 “As divergências político-ideológicas, até então evitadas e proteladas, tanto no plano das individualidades como das diversas «escolas de guerrilha», encontraram nesta questão racial o seu primeiro tema de confronto, e o voluntarismo exibido nos estatutos foi profundamente atacado, até onde menos se esperava, no plano das mais altas personalidades”Tali II (2001:226). 1102 Tali I (2001: 226-227). 1103 Tali I (2001:226-227). Quanto aos outros estrangeiros era-lhes garantida o direito de permanência no país mediante a sujeição às leis e desde que não atentem, por actos comprovados contra a luta de libertação e a dignidade do Povo angolano. Esta resolução aprovada no fim da Conferência intitula-se “o problema da comunidade branca”. A designação “comunidade branca” pode adquirir aqui significado étnico. Ver igualmente MPLA II (365-392). 263 apropriação, as três organizações nacionalistas armadas, embora divergentes, irão convergir em dois pontos fundamentais: na opção de impor a Portugal o princípio da legitimidade revolucionária; e no modo como, através da utilização da categoria branco, se iriam apropriar da questão racial. 4. A apropriação do espaço social colonial por parte do campo político angolano num quadro de transição para a independência. A legitimidade das armas. (1974-1975) A partir do 25 de Abril e até à independência, a luta anti-colonial vai deixando de ser o factor contributivo para a configuração e estruturação do campo político angolano. Com efeito, o vazio deixado pela luta armada contra a dominação colonial vai sendo preenchido pela estruturante relação de conflito/competição entre as três organizações nacionalistas armadas. Relação de conflito/competição que confere ao campo político angolano características de um lugar de lutas pela hegemonia do espaço nacionalista e pela apropriação do espaço social colonial 1104. No entanto, tal relação de conflito/competição não impediu que, de forma quer implícita quer explícita, as três organizações nacionalistas armadas se entendessem quanto ao principal imperativo estruturante do espaço nacionalista angolano: um percurso político, legitimado por treze anos de luta armada1105. Assim, a regra ditada para um acordo político entre as organizações nacionalistas armadas e Portugal não deixava quaisquer dúvidas no respeitante ao principal critério de legitimidade destas últimas: o capital militar1106. Este princípio de 1104 Podemos reter três momentos simbólicos de apropriação do espaço social colonial: a chegada das organizações nacionalistas armadas a Luanda em Novembro de 1974; a assinatura do Acordo de Alvor; e a aquisição oficial da independência no dia 11 de Novembro de 1975. 1105 Em Maio de 1974, Mário Soares, então ministro dos negócios estrangeiros português afirmava: ”Temos de desfazer equívocos. Portugal só reconhecerá os grupos que pegaram em armas. Que lutaram contra o Exército Colonial. Não negociaremos com mais ninguém a independência do território angolano”. Marques. J.Rocha (2002: 92). 1106 O 25 de Abril de 1974 possibilitou a emergência de inúmeras organizações políticas em Angola. Muitas dessas organizações eram constituídas por indivíduos frequentemente classificados de brancos, muito embora houvesse aquelas que tinham uma composição multirracial. Estas forças políticas apresentavam distintos “modelos de descolonização”. Algumas organizações, como a Frente de Resistência Angolana - FRA e a Resistência Unida de Angola - RUA, defendiam a reintrodução de uma discriminação racial legal pelo menos durante um período considerável e preconizavam que tal medida seria um pré-requisito para o crescimento económico, ou mesmo para uma consolidação económica, necessária depois de uma saída do “espaço português”. Considerava-se como óbvia uma integração política no “bastião branco” da África Austral. Outras organizações políticas preconizavam uma participação, juntamente com as organizações nacionalistas armadas, no processo de descolonização de Angola como o Partido Cristão Democrático de Angola - PCDA e a ressurgida FUA. Mas existiam igualmente aquelas forças políticas que se tinham oposto ao regime ditatorial português. Ideologicamente próximas do MPLA, 264 legitimidade revolucionária seria aceite, embora com algumas resistências, por parte de alguns elementos que compunham o governo português1107. Este princípio seria concretizado no dia 15 de Janeiro de 1975 com a assinatura do Acordo de Alvor entre os três movimentos e as autoridades portuguesas. Foram, assim, estabelecidos, pelos representantes dos três movimentos de libertação (FNLA, MPLA e UNITA) e pelo governo português, os termos em que devia processar-se a independência de Angola e o ordenamento institucional que devia vigorar durante o período de transição até ao momento da transferência do poder1108. No acordo de Alvor podemos destacar as seguintes premissas: o reconhecimento por parte do Estado português dos três movimentos de libertação como únicos e legítimos representantes do povo angolano; o reconhecimento do direito do povo angolano à independência; a independência e soberania plena de Angola proclamadas no dia 11 de Novembro de 1975; a constituição de um governo de transição representado pelas autoridades portuguesas e pelos três movimentos de libertação1109. A partir de então toda e qualquer formação política (re)emergente estava definitivamente excluída de um espaço de lutas, reduzido a três actores: MPLA, FNLA e a UNITA1110. 4.1 Mobilização do maior número, fidelidade e traição ou o modo como o campo político angolano se apropriou da questão racial. O exemplo da categoria branco No seu processo de apropriação do espaço social colonial, as três organizações nacionalistas armadas tiveram porventura o ensejo de constatar, nomeadamente nas cidades, um universo social que, nas suas múltiplas dimensões, sofrera significativas transformações. Com efeito, a política de modernização económica e as reformas legislativas encetadas a partir de apresentavam-se como Movimentos Democráticos. Todavia, independentemente dos seus rumos ideológicos todas essas forças políticas possuíam dois principais constrangimentos: a ausência de capital militar e uma fraca mobilização das populações. Para saber mais sobre estas organizações políticas ver Heimer (1980), nomeadamente no que respeita aos vários modelos de descolonização em Angola. Ver igualmente Pimenta (2008); Tali II (2001); Correia (1991). 1107 Pimenta (2008: 372) citando o jornal Província de Angola de 10 de Agosto de 1974 afirma que: “Spínola consciente da fraqueza militar propôs um plano de descolonização de Angola que consistia na realização de um cessar fogo com as guerrilhas nacionalistas e a constituição de um governo provisório de coligação que representasse todos os movimentos de libertação, em paralelo com os agrupamentos étnicos mais expressivos do Estado de Angola incluindo a «etnia branca». Tanto o MPLA como a FNLA recusaram tal plano”. 1108 Correia (1996: 25). 1109 Correia (1996: 271-280). 1110 “As formações políticas nascentes não tinham a partir de então, outra alternativa a não ser desaparecer por auto afundamento. Ou desaparecer por fusão com um dos três movimentos de libertação, conforme a suas afinidades ideológicas, como grupo ou a título individual”. Tali II (2001: 39). 265 1961 pelo governo metropolitano tiveram o condão de produzir múltiplas transformações que se reflectiram na paisagem social colonial. Todavia, e tal como pudemos verificar no capítulo IV, não obstante as reformas introduzidas terem tido alguns efeitos na sociedade colonial, o governo metropolitano nunca conseguira captar a seu favor a maioria da população colonizada angolana que continuava subjugada por uma ordem colonial cujo carácter arbitrário, pautado por um sistema político autoritário, era reforçado por um princípio de exclusão social com forte componente racial. Tal permanência da componente racial do arbitrário colonial explica em certa medida o carácter violento dos confrontos raciais, imediatamente após o 25 de Abril de 1974 sobretudo nas cidades, entre aqueles que se consideravam brancos e os que se consideravam negros1111. Sendo assim e em resposta às práticas quotidianas que legitimavam o arbitrário colonial através da coisificação/subjugação da categoria negro, o sentimento de revolta perante o arbitrário colonial, foi coisificado na categoria branco que, por sua vez era percepcionado como o símbolo da dominação colonial. As reformas coloniais não tinham conseguido derrubar uma imaginária fronteira somática que se traduzira numa real (di)visão do mundo social colonial entre brancos e negros. E, provavelmente as organizações nacionalistas armadas não perderam a oportunidade política de capitalizar a seu favor tal (di)visão, de modo a acelerar o processo de apropriação do espaço social colonial. Todavia, por mais paradoxal que seja, é importante sublinhar que estas, mais do que explorar o mero sentimento de revolta das populações contra o arbitrário racial colonial, optaram por uma estratégia que consistia na mobilização do maior número1112. Para tal, as três organizações nacionalistas armadas começaram por atribuir à categoria branco um significado 1111 Sendo que, grosso modo, tanto uns como outros se encontravam distantes dos bens de reconhecimento da sociedade colonial. Acontece que aqueles que eram classificados de brancos tinham apesar de tudo a sua cor como distintivo social perante aqueles que eram classificados de negros. Acerca da violência racial ver, entre outros, Pimenta (2008); Heimer (1980); Tali II (2001); Cahen (1989); Correia (1991); Marques. J. Rocha (2002); Freitas (1975). 1112 Segundo Heimer (1980: 73), “os três movimentos seguiram uma estratégia idêntica na medida em que tentaram, por um lado, «segurar» as suas bases sociais tradicionais, enquanto por outro, tentavam mobilizar simpatias e apoios mais amplos. Estas duas metas não eram fáceis de conciliar, e levaram os movimentos a adoptar tácticas nitidamente distintas. Nas suas declarações públicas, transparecia a intenção de não se tornarem inaceitáveis para nenhum dos segmentos populacionais. Em função disto, formularam as suas doutrinas políticas, pelo menos durante certo tempo, de uma forma cuidadosamente «codificada», de modo a não chocar seriamente nenhuma parte importante do futuro eleitorado, quer se tratasse de classe, de raça ou de grupo étnico. Em particular, condenavam, unanimemente, a discriminação racial e étnica. Uma das consequências foi que os brancos de Angola, tendo perdido a sua proeminência política, eram naquela fase considerados, antes de tudo, como um grupo de eleitores potenciais, e tratados com cuidado notável, pelos três movimentos”. Convém recordar que estes, de ponto de vista estatístico, se apresentavam em número considerável, o que reforçava a sua importância no âmbito das estratégias de mobilização das organizações nacionalistas armadas 266 étno-somático de modo a possibilitar o efeito de grupo. Daí o uso de designações como “brancos” ou “comunidade branca”. Este exercício de classificação legítima foi complementado por um discurso que procurava associar a categoria branco ao princípio da nacionalidade angolana. A UNITA preconizava um conceito de nacionalidade angolana que ia para além do jus solis reforçando assim o efeito de grupo politicamente mobilizável. Esta posição seria assumida publicamente pelo seu líder máximo em Agosto de 1974: “Nós, desde o princípio, marcamos a nossa posição. Consideramos angolanos, não só aqueles que cá nasceram mas também aqueles que cá se radicaram. E, ainda aqueles outros que quiserem adoptar Angola como Pátria. Esse princípio mantém-se válido. A unidade de todos os angolanos, quer pretos, quer brancos, quer mestiços, será a unidade do povo angolano. Angola não poderá, nunca mais, construir-se contra pretos, contra brancos, contra mestiços. Por isso, a UNITA acha que esta manifestação de solidariedade, que desponta em Luanda e no sul de Angola, deve ter aspecto essencialmente humano e que não venham apenas os europeus, mas venham pretos e mestiços unir-se a volta do ideário da UNITA, 1113 porque – repetimos – só nós poderemos construir a paz e construir a independência” . A FNLA e o MPLA tinham uma estratégia de mobilização similar à da UNITA. Ambas se apresentavam como organizações anti-racistas e eram defensoras do princípio do jus solis no respeitante à atribuição da nacionalidade. A FNLA, na sua estratégia de mobilização do maior número, procurava denegar o estigma de organização racista fruto em certa medida dos efeitos da revolta do 15 de Março de 1961. Mas introduziu, de modo subtil, no respeitante à concessão da nacionalidade, o princípio da fidelidade: “O angolano nunca foi racista, pelo menos aqueles que militam na FNLA e são a maioria do povo. (…) eu afirmo-lhe com a maior das convicções que ninguém, ninguém em Angola ou no mundo poderá provar ter havido declaração minha ou de qualquer dirigente da FNLA contra os brancos de Angola ou qualquer minoria racial ali existente. Nunca a FNLA proclamou o racismo como sua linha de rumo. (…). Angolano é aquele que, sem diferença de qualquer tipo e salvo pedido contrário, tenha nascido em Angola. Mas também se pode acordar a nacionalidade angolana aqueles que, vivendo em Angola, aceitando e submetendo-se a soberania angolana e a constituição do País e dispondo-se a perder a nacionalidade anterior, assim o desejem e como tais sejam aceites 1114 pelas instituições jurídicas nacionais” . Quanto ao MPLA, como se viu acima, resolvera o problema, conjugando o princípio do jus solis, com o princípio da fides política. 1113 Entrevista de Savimbi ao Jornal Província de Angola no mês de Agosto de 1974 em Marques. J. Rocha (2002:153-154). 1114 Holden Roberto em entrevista concedida ao semanário Notícia em Setembro de 1974. Holden Roberto em Nganga (2008: 278-279). Um militante de FNLA comprova esse anti-racismo ao recordar as palavras de uma melodia cantada por Teta Lando, famoso músico e compositor angolano que na época era conotado com a FNLA: Angolano segue em frente teu caminho é só um/ se você é branco isso não interessa a ninguém/ se você é mulato 267 O que podemos reter destas afirmações é que a UNITA optara por uma estratégia de pura mobilização do maior número. Quanto ao MPLA e a FNLA, muito embora tivessem optado por uma estratégia de mobilização similar à da UNITA, tinham rejeitado a concessão automática da nacionalidade aos que não tinham nascido em Angola, sujeitando deste modo o critério de aquisição da nacionalidade não só ao local de nascimento mas igualmente à fidelidade1115. O Acordo de Alvor assinado a 15 de Janeiro de 1975 acabaria por confirmar em certa medida, as “teses” defendidas pela FNLA e pelo MPLA. Pois, MPLA, UNITA, FNLA e Portugal haviam subscrito em comum um conceito de nacionalidade assente num duplo princípio: o do jus solis e da boa fides: Capítulo VII da nacionalidade angolana. Artigo 45º “O Estado Português e os três movimentos de libertação, FNLA, MPLA e UNITA comprometem-se a agir concertadamente para eliminar todas as sequelas do colonialismo. A este propósito, a FNLA, o MPLA e a UNITA reafirmam a sua política de não discriminação segundo a qual a qualidade de angolano se define pelo nascimento em Angola ou pelo domicílio desde que os domiciliados em Angola se identifiquem com as aspirações da Nação Angolana através de uma opção consciente. Artigo 46º “A FNLA, o MPLA e a UNITA assumem desde já o compromisso de considerar cidadãos angolanos todos os indivíduos nascidos em Angola, desde que não declarem, nos termos e prazos a definir, que desejam conservar a sua actual nacionalidade, ou optar por outra. Artigo 47º Aos indivíduos não nascidos em Angola e radicados neste país é garantida a faculdade de requererem a cidadania angolana, de acordo com as regras da nacionalidade angolana que forem estabelecidas na Lei fundamental. Artigo 48º Acordos especiais, a estudar ao nível de uma comissão paritária mista, regularão as modalidades da concessão da cidadania angolana aos cidadãos portugueses domiciliados em Angola, e o estatuto de cidadãos portugueses residentes em Angola e dos cidadãos angolanos residentes em Portugal 1116 . isso não interessa a ninguém/ se você é negro isso não interessa a ninguém/. Entrevista com Carlinhos Zassala em 09/2007. Este músico faleceu recentemente. 1115 O que se deve, talvez, ao facto de estarem preparados para o confronto militar. Com efeito, das três organizações nacionalistas a UNITA era aquela que estava menos interessada na guerra, pois era a mais fraca de ponto vista militar e, como tal, menos apta para apelar para os mecanismos de fidelidade. Messiant (1994: 168). O sublinhado é nosso. 1116 Correia (1996: 277-278). 268 Este modo de actuação dos três movimentos possibilitou, em certa medida, não só acelerar o processo de independência mas igualmente permitir que o estado de anomia racial se diluísse no quadro da relação de competição entre as três organizações nacionalistas armadas. Mas se a questão racial fora, formalmente, resolvida a quatro no acordo de Alvor através da definição da natureza da nacionalidade angolana, a sua efectiva aplicabilidade iria revestir-se de uma enorme complexidade. Com efeito, à medida que no horizonte se avizinhava a guerra, os mecanismos de mobilização que haviam sido activados na lógica de uma campanha eleitoral foram dando lugar a uma lógica, comum, de aparelhos militares. Sendo assim, o campo começou a estruturar-se em torno de dois princípios fundamentais: a fidelidade/recompensa e a traição/punição. No que diz respeito à categoria branco, podemos reter dois notórios momentos de exercício e exorcização destes princípios1117. O primeiro, o da fidelidade/recompensa, praticado pelo MPLA e o segundo, o da traição/punição, praticado pela UNITA. No dia 3 de Março de 1975, num discurso solene perante a imprensa que fora especialmente convocada para o efeito, Agostinho Neto anunciou a integração de três “movimentos democráticos” no MPLA, o MDA - Movimento Democrático de Angola, MDH Movimento Democrático do Huambo e MDB - Movimento Democrático de Benguela . No seu discurso, Agostinho Neto, debruçou-se sobre a questão racial: ”Penso que é de ressaltar um outro aspecto importante do problema, deste problema que nos traz aqui diante da imprensa. É que a maioria dos membros dos Movimentos Democráticos é branca. (…). E sempre nos quiseram opor a nós, MPLA, contra a comunidade branca em Angola. Embora nós, desde o início da nossa luta, fôssemos anti-racistas, embora nós admitíssemos sempre nas nossas fileiras elementos de todas as etnias em Angola, nós a certa altura e por efeito da propaganda dos nossos inimigos, quase que fomos considerados como racistas no nosso país. (…) esses camaradas terão acesso não somente aos organismos de base, aos grupos de acção, aos organismos regionais, mas também terão acesso ao 1118 próprio Comité Central do nosso Movimento” . 1117 O MPLA tinha, na época, uma noção “bem definida” de quem devia ser excluído ou de quem merecia ser incluído, a saber, quem eram os traidores e quem eram os fiéis: “A população branca portuguesa que estava cá e os que tinham nascido cá, o grande capital, estava com a FNLA; aqueles que tinham muito dinheiro, são da FNLA, tinham ido a Kinshasa fazer conversas com Mobutu. A grande maioria dos portugueses que estavam cá, os pequenos desempregados, os pequenos comerciantes, esses, estavam com a UNITA. Porque a UNITA fazia um esforço, dizia que iria apoiar; portanto estes estavam com a UNITA. Havia uma franja muito pequena, gente mais liberal que se revia no MPLA. Muitos jovens de raça branca (embora os pais fossem FNLA… simpatizassem com a FNLA), esses simpatizavam mais com o MPLA. Entrevista com Lopo do Nascimento antigo primeiro-ministro e ex-secretário geral do MPLA, em 08/08. 1118 Tali II (2001:61-62) citando Agostinho Neto. Na mesma cerimónia encontramos um processo de tripla interiorização por parte daqueles que juram fidelidade: o do significado étnico da categoria branco, a da 269 Por sua vez a UNITA, pela voz do seu líder, fez questão em evidenciar o princípio da traição/punição. Jonas Savimbi, num comício proferido na povoação do Cuma, província do Huambo, em Julho de 1975 apelara para a unidade nacional, ao mesmo tempo que deixara um severo aviso aos portugueses em fuga: ”Nós queremos a paz mas não a paz dos famintos. Os problemas que o nosso país atravessou e atravessa são graves, mas todos de possível solução, desde que os filhos de Angola tomem consciência da validade que possam vir a usufruir e que não aceitem a propaganda falsa que os leve a enveredar por 1119 combates fratricidas” . O mesmo, dirigindo-se aos “portugueses que querem abandonar Angola, por processos ilegais”, alerta: “Foi anunciado que partiram 2500 camiões em direcção ao Zaire, com destino a Portugal. Mas agora fala-se na hipótese de atravessarem a Zâmbia. Como a UNITA está entre as fronteiras da Zâmbia com as de Angola, eles não passarão, pois a UNITA não os deixará passar e nem levarão os carros ou os camiões que foram comprados com o dinheiro de Angola. E, como sigo para o Zaire, pedirei ao Governo do Zaire para que não os deixe sair de Angola com destino à Europa. O combate da UNITA para fazer com que os brancos portugueses sejam considerados angolanos não foi fácil e nós sentimo-nos traídos pelo facto desses, que nós defendemos, estarem a fugir só por ouvirem uns tiros. Portanto, os brancos que querem lutar para o progresso e o futuro deste país devem persuadir os seus compatriotas para ficarem aqui pois, o comício aqui no Cuma é mais do que um desafio aos brancos que aqui ficarem e saber se estão dispostos – na realidade – a ficar e lutar ao nosso 1120 lado” . Estes dois momentos pontuam, em nosso entender, um exemplo de uma dinâmica de apropriação do espaço social colonial, a saber, da questão racial, por parte de um campo político militarizado que se vai estruturando através de uma ordem trinitária: a mobilização, a fidelidade e a traição. Sendo assim qualquer recurso político, por mais mobilizável que seja, dilui-se neste, cada vez mais estruturante, princípio assente na mobilização, fidelidade e traição. Esta relacional ordem trinitária seria aplicada, pelas três organizações nacionalistas armadas a todos os angolanos independentemente da sua etnia, ou da sua raça. Como tal, o êxodo populacional daqueles que eram classificados de brancos ou portugueses merece igualmente ser entendido à luz de um princípio estruturante assente nesta ordem trinitária. Sobretudo quando esta, responsabilização/culpabilização e o do arrependimento/redenção: “Gostava de dizer quanto nos é grato a possibilidade de ter tido esta reunião e isso nos dá força, principalmente nós que estávamos numa posição relativamente difícil, uma vez que reconhecendo que fazemos parte integrante da população de Angola, sem dúvida fazíamos parte de uma etnia que tinha, até aqui gozado de uma situação de tal maneira escandalosamente vantajosa que sofríamos um pouco da situação em que, por acidente histórico, estávamos integrados. Esta possibilidade que temos agora de participar, sem qualquer ambiguidade como Angolanos, ao lado de todos os angolanos, desfaz totalmente todas as reservas que pudesse haver, ou ainda haja da parte de uma população que, mesmo sem querer, não pode deixar, muitas vezes, de confundir uma determinada exploração que sofreu com o grupo que, principalmente simbolizou essa exploração”. Idem citando David Bernardino do MDH. 1119 Marques. J. Rocha (2002: 389) 1120 Marques. J. Rocha (2002:390). 270 consubstanciada numa lógica tripartida, de efectivo e real aparelho militar, se traduz num efectivo e real confronto armado protagonizado pelas três organizações armadas nacionalistas. A partir de então, e salvo algumas interrupções pontuais, o firmamento de uma Angola independente será uma longa guerra civil. Capítulo VII. O tempo da “Dipanda” 1121. A bipolaridade do campo. Do estado latente da questão racial à lei do Bilhete de Identidade. (1975- 1996) 1. Introdução A construção do nosso problema de investigação implica algumas considerações referentes ao período que vai de 11 de Novembro de 1975 até 1996, objecto do presente capítulo. Às zero horas do dia 11 de Novembro de 1975, Agostinho Neto proclama solenemente “em nome do Povo angolano” e como porta-voz do “Comité Central do MPLA”, “perante a África e o mundo, a independência de Angola” que passou denominar-se RPA - Répública Popular de Angola. Enquanto isso a UNITA e a FNLA proclamavam em conjunto, no Huambo, a República Democrática de Angola1122. Estava assim consumada a última etapa, simbólica, de apropriação do espaço colonial em Angola. 1121 Dipanda. Nome pelo qual se designa o dia da independência em Angola. Provavelmente um termo importado da República do Democrática do Congo. Segundo o historiador Elias Mbokolo: “A designação independência foi traduzida em língua língala para o termo Dipanda. O língala é uma língua franca, banta, originária da República Democrática do Congo e que se disseminou em Angola devido ao regresso de muitos refugiados que se encontravam naquele país. Revista l’Histoire nº 350, de Fevereiro (2010:43). 1122 Guerra (2002:299). A proclamação feita no Huambo não adquiriu o mesmo significado que a proclamação feita em Luanda. Nenhum país reconheceu o dito governo. Savimbi nem sequer estava presente na cerimónia. Dos que estavam presentes constam Nzau Puna, José Ndele e Jerónimo Wanga. Chiwale (2008: 214); Savimbi (1979:59-64); Marcum (1978:276). Segundo um autor, a proclamação da independência em Luanda dera ao MPLA uma substancial vantagem, na medida em que fora na capital que simbolicamente Portugal arriara a bandeira. Tali II (2001:139). M. Rocha faz referência também a uma cerimónia de contornos desconhecidos em Ambriz, local onde Hoden Roberto teria proclamado a sua independência de Angola. M. Rocha (2002: 448). 271 Todavia este momento simbólico de ruptura com uma velha ordem é igualmente prenúncio, salvo algumas interrupções, de permanência e prosseguimento de uma longa guerra civil. Guerra que iria contribuir, ao longo do mesmo período, para um endémico estado de crise económica e social1123. Assim na nossa abordagem podemos identificar, como uma das características fundamentais da nova República, um estado de permanente tensão entre a guerra e a paz. Uma situação que se deve, sobretudo, à relação de conflito/competição entre dois protagonistas: a UNITA e o MPLA1124. Com efeito, e sobretudo a partir de 1978, o campo político angolano vai gradualmente adquirindo uma configuração bipolar. Um processo cada vez mais notório na década de oitenta1125. Mas essa configuração bipolar é profundamente condicionada por uma convergência de factores de ordem internacional e regional, pois até 1991: “Os reflexos em Angola do conflito lesteoeste, do patamar mitigado e contido nos limites dos apoios aos movimentos de libertação e à potência colonial, que era aquele em que se situava até ao Alvor, passou ao nível mais elevado das intervenções armadas por delegações, mas mantendo a coerência dos apoios anteriores” 1126 . Contudo este envolvimento das grandes potências, que se traduziria numa escalada de guerra, envolvia não apenas os movimentos nacionais mas igualmente outros países, nomeadamente a África do Sul, o Zaire e Cuba. Significa isto que: “As superpotências continuaram a preferir não se empenharem de uma forma demasiado visível, optando pelas guerras por delegação e assim fazendo com que, em parte, a expressão do conflito leste-oeste, se confundisse, quer com a 1127 componente do conflito regional, quer com a componente de guerra civil” . Angola tornara-se assim um exemplar laboratório do conflito leste-oeste que se desenrolava através de um complexo jogo de alianças que envolvia não só países africanos, mas, igualmente Estados extra-africanos1128. Muito embora se possa reconhecer o papel dos factores externos nas dinâmicas políticas endógenas, convém salientar que as tomadas de posição política necessitam de ser 1123 Ver a propósito da economia angolana, entre outros, Ferreira (1999); e Messiant, I e II (2008); Vidal em Vidal e Andrade (2006). 1124 Dizemos, sobretudo, porque o conflito militar tinha um outro protagonista. A FLEC, que reivindicava a independência do Cabinda. A sua actividade militar restringia-se a esta região. 1125 Ver anexos nº25 e nº 26. 1126 Correia (1996:33). 1127 Correia (1996:43). 1128 Mas Angola tornara-se também um exemplar espaço de luta de classificações. Luta pela imposição do imperialismo universal que consiste para uma determinada sociedade em universalizar a sua própria particularidade, instituindo-a tacitamente em modelo universal (democracia liberal e, na tradição marxista, toda a revolução possível). Bourdieu (2001: 87). 272 percepcionadas pelas populações1129. Não se pode pensar que a guerra civil angolana é o resultado de uma intervenção interesseira, projectada em forças exógenas; ela é também resultado de condições sociológicas, históricas e culturais que sustentam o combate político com homens, meios e energia. Pensar, por isso, que a guerra civil é imposta aos angolanos por um conjunto de países, ricos e poderosos, é esquecer que o combate político, para prosseguir – aqui no caso, no terreno militar –, necessita de uma crença mobilizadora em nome da qual o sacrifício é aceite. Assim, o campo político angolano irá estruturar-se e configurar-se numa relação de competição/conflito – entre o MPLA e a UNITA – que é, por sua vez, também expressão de uma luta entre duas crenças, que se traduzem em reivindicações políticas e em projectos societários distintos1130. Sendo assim, o quadro bipolar de competição mundial entre os dois blocos não impediu a emergência de projectos políticos, autónomos e singulares, endógenos. Feita esta constatação, podemo-nos debruçar sobre uma outra e, esta diz respeito ao nosso trabalho em curso. Trata-se do facto de, praticamente até 1992, a questão racial não ter adquirido grande relevância nas lutas políticas, a saber, nas estratégias de mobilização encetadas pelas duas principais forças político-militares angolanas. Para tal terão contribuído os alinhamentos políticos e ideológicos que as duas forças políticas angolanas armadas protagonizaram, tendo em conta a necessidade de garantir os apoios materiais e logísticos das grandes superpotências, de modo a satisfazerem o seu combate político1131. Contudo, em nosso entender, este estado latente da questão racial1132 deve-se também ao facto de o campo político continuar a funcionar numa lógica de aparelho de modo a responder 1129 Como foi o caso da luta contra uma ordem colonial opressora. www.homme-moderne. Org/societe/sócio/laddi/par60-76.html. Lahori Addi (2003). 1131 Mas também, porque o “imperialismo universal” veiculado pelas duas superpotências não era compatível com uma ideologia que veiculasse uma identidade racial. 1132 Dizemos latente porque as características somáticas dos militantes do MPLA viabilizam em certa medida a permanência destas classificações nem que seja para efeitos de identização. E, como tal sempre prontas para serem utilizadas como recursos políticos em contextos de conflitualidade interna (o gole do 27 de Maio exemplifica essa ressurgência racial, mas sem a relevância das crises anteriores). Contudo mesmo no mais vasto campo político angolano é possível encontrar indícios que nos confirmam que em qualquer momento estas classificações podem emergir num quadro de lutas de classificação. Em 1982 Savimbi considerava que: “Dissemos que várias vezes que o Angolano é o preto, o mulato ou o branco (…) A maioria do Povo de Angola é negra e é justo que deva controlar o poder político. Iremos continuar a atacar frontalmente a maneira desproporcionada como os mulatos controlam o poder no seio do MPLA. Nós contestamos essa posição. Porque é que o MPLA educa o povo Angolano no complexo de inferioridade? Com a maioria negra no controlo do poder em Angola, ninguém ficará excluído; os mulatos terão o seu lugar no exercício do poder político, pois não têm outra pátria”. Savimbi in UNITA (2009:49)”. Ver também “Michel” (2010). Daí considerarmos a questão racial em estado latente. 1130 273 rapidamente às exigências estratégicas inscritas do campo1133. Trata-se de uma dinâmica que caracteriza o campo político angolano, na medida em que o estado de permanente tensão entre a guerra e a paz obriga a que as duas principais organizações nacionalista armadas, a saber, o MPLA e a UNITA, tendam não apenas a funcionar numa lógica de aparelho1134 mas sobretudo a reforçar esta dinâmica, pois estão predispostas para o confronto militar real. Assim, cada organização necessita de apelar para um modelo organizacional de tipo militar e militarizado1135. Cada um dos dois protagonistas do campo político angolano partilhará esta similitude: realizar a acção política em forma de espírito de corpo. Assim, tanto o MPLA como a UNITA: “aparelhos ou (instituições totais) ordenados com vista a luta, real ou representada, e firmados na disciplina que permite fazer agir um conjunto de militantes) «como um só homem», com vista a uma causa comum, encontram as condições dos seu funcionamento na luta permanente que tem lugar no campo político angolano e que pode ser reactivada ou intensificada sem restrições” 1136 . Sendo assim, esta “dinâmica intensiva de aparelhização” irá igualmente assegurar uma ordem interna no seio de cada uma das organizações políticas armadas, pois é também um processo que: ”consiste em basear a autoridade na situação de guerra com que 1133 Bourdieu (1989: 196). Bourdieu manifesta-se contra a noção de aparelho pois remete para uma máquina infernal programada para atingir determinados fins. Para ele há uma diferença entre um campo e um aparelho. Num campo há lutas e portanto existe história. No entanto, Bourdieu considera que em determinadas condições históricas, um campo pode funcionar como um aparelho, quando o dominante consegue esmagar e anular a resistência e as reacções do dominado, quando todas as movimentações se processam exclusivamente de cima para baixo, a luta e a dialéctica que são parte integrante do campo tendem a desaparecer. Assim, os aparelhos representam um caso limite, algo que se pode considerar no domínio do patológico, dos campos. Todavia é um limite que nunca é realmente atingido mesmo nos regimes ditos totalitários. Contudo, este autor considera que: “os partidos estão tanto mais condenados a funcionarem segundo a lógica do aparelho de modo a responder instantaneamente às exigências estratégicas inscritas na lógica do campo político quanto mais desprovidos culturalmente e mais presos aos valores da fidelidade, logo, mais dados à delegação incondicional e duradoura estão os seus mandantes; e também quanto mais antigos e mais ricos eles são em capital político objectivado, quanto mais fortemente determinados estão nas suas estratégias pela preocupação de defender as suas conquistas; ou ainda quanto mais, expressamente ordenados para a luta, quanto mais organizados eles estão segundo o modelo militar de aparelho de mobilização; Bourdieu (1992:78-79); Bourdieu (1989:196-197). Iremos reter sobretudo os valores de fidelidade e o modelo militar, na medida em que consideramos estas duas componentes essenciais para a aquisição de um capital político, objectivado tendo em conta uma situação real de guerra. Situação que relega para um plano secundário a importância do o capital económico e do capital cultural. Trata-se aqui no caso de pensar o universo político como campo que contudo não deixa de funcionar numa lógica de aparelho. Esta dinâmica adquire grande intensidade pelo facto de se viver um clima de guerra efectivo. O que implica a activação dos mecanismos de comando e obediência com fundamento no princípio da fidelidade/inclusão. Princípio que remete para um outro, o da traição/exclusão. Sendo que a exclusão assume, aqui no caso, formas violentas. Daí que optemos por abordar o campo político angolano como um espaço de “dinâmica intensiva de aparelhização”. Convém, contudo, sublinhar que não pretendemos considerar, na nossa abordagem, a noção de aparelho, em oposição à noção de campo, pois a distinção entre estes dois conceitos permanece uma questão em aberto. 1135 Em nosso entender este modelo já se havia imposto, embora ainda de forma incipiente, antes da independência, no quadro da luta anticolonial. 1136 Bourdieu (1989: 200). Citação livre. 1134 274 se defronta a organização e que pode ser produzida por um trabalho sobre a representação da situação, a fim de produzir e reproduzir continuamente o medo de ser contra, fundamento último de todas as disciplinas militantes ou 1137 militares” . O que faz com que, embora prevaleça o princípio da mobilização, ordem- comando/obediência, fidelidade/traição se assumam como princípios estruturantes do campo. É neste sentido que podemos considerar que, até 1991, e à medida que se intensifica a guerra entre as duas principais organizações políticas armadas angolanas, a questão racial adquire pouca ou nenhuma relevância política1138. Será portanto necessário aguardar por um contexto de nova divisão do trabalho político, de afrouxamento dos aparelhos militares dos dois principais protagonistas do campo político angolano, para que se possa assistir no espaço social angolano e no campo político angolano, ao ressurgir das classificações raciais1139. Um regresso racial pontuado, jurídica e institucionalmente, pela proposta e posterior aprovação, em 1996, de uma lei referente à criação de um novo Bilhete de Identidade. Onde iria constar, de entre os vários elementos de identificação do titular, a raça. O presente capítulo abarca um período que se estende de 1975 até 1996. Neste lapso de tempo abordaremos quatro pontos principais. Sendo que os dois primeiros irão abranger um subperíodo que se estende de 1975 até, sensivelmente, 1991. No primeiro ponto apresentaremos uma caracterização do percurso do MPLA desde a proclamação da independência até à sua consolidação como partido/Estado. Ao longo deste processo, Angola iria conhecer um momento de paz relativa, sobretudo entre 1976 e 1978, ano em que se começaram a fazer sentir os efeitos da guerrilha da UNITA e da intervenção sulafricana no território angolano. Paradoxalmente, o processo de consolidação do MPLA/Estado 1137 Bourdieu (1989: 202). Assim: toda a oposição interior, dado que está condenada a aparecer como concluio com o inimigo, reforça a militarização por ela combatida ao reforçar a unanimidade do nós ameaçado que predispõe à obediência militar. Idem (1989: 202). 1138 Uma observadora privilegiada confirma: “Acontece, parece-me a mim que 74-75 foi uma reviravolta tão grande no país com a migração massiva, portanto o abandono massivo da maior parte dos portugueses, portanto da maior parte da população branca de Angola, embora também fosse outra população não branca, e o facto de rapidamente termos passado para a guerra civil onde negros e negros se opunham, brancos e brancos se opunham, mestiços e mestiços se opunham, portanto, essa reviravolta, de 74, 75, 76, 77, tal como eu a vivi pelo menos e como hoje a analiso permitiu desfazer uma data de barreiras de desconfiança de grupos diferentes quer no campo meramente social – socio-económico, quer no campo racial, religioso, etc., e eu acho que isso foi um enorme salto em frente que Angola conseguiu dar nessa altura, se calhar não porque fôssemos melhores que os outros mas porque nos vimos envolvidos num conflito que passava por uma divisão política e que se sobrepôs a todas as outras divisões que havia entre nós”. Entrevista concedida pela historiadora Maria da Conceição Neto em Luanda, 09/2001. 1139 Classificações cuja ressurgência acontece, igualmente, num contexto de uma estruturante crise económica e social. 275 vai adquirir maior consubstancialidade à medida que se intensifica a guerra. Significa isto que será num quadro de bipolarização do campo que o MPLA se vai consolidar no aparelho de Estado. No segundo ponto, daremos saliência ao processo de consolidação da UNITA como força político-militar, no campo político angolano. Com efeito, a afirmação político-militar da UNITA possibilitou que a mesma se tornasse na principal alternativa ao MPLA/Estado, contribuindo desse modo para uma configuração bipolar do campo político. Um novo cenário que deve em muito ao seu líder Jonas Savimbi que em finais da década de oitenta atingira uma notável projecção nacional e internacional. No terceiro ponto é dado enfoque à nova divisão do trabalho político como consequência da introdução de um novo regime assente no sistema multipartidário. A nossa abordagem terá em conta uma perspectiva que articula efeitos das eleições multipartidárias e efectivo estado de relações de força no campo político angolano. Por fim, no último ponto, começaremos por apresentar um subsídio contextual embora fragmentário, de modo a situar a proposta e a aprovação da “Lei do Bilhete de Identidade”. Neste ponto e com base na análise das diversos materiais recolhidos – entrevistas e actas das reuniões da Assembleia – tentaremos apreender o modo como o campo político se (re)apropriou da questão racial. Apropriação exemplificada pela promulgação da lei do Bilhete de Identidade. 2. A consolidação do MPLA/Estado em tempo de guerra. 1975-1991 Nos poucos meses que se seguiram à independência, o MPLA, deu início a uma contraofensiva militar que lhe permitiu adquirir o controlo de praticamente todo o país. Em Dezembro de 1975 a ofensiva militar contra a FNLA permitiu que o MPLA ocupasse praticamente todos os pontos importantes do norte do país. Em Fevereiro de 1976 o Norte de Angola estava praticamente pacificado. Em Março do mesmo ano o governo de Luanda conseguira assegurar o controlo administrativo na maior parte dos pontos-chave do território1140. Heimer (1980: 87); MPLA II (2008: 252). Esta vitoriosa contra-ofensiva militar traduziu-se também na retirada das tropas sul-africanas em Março de 1976 em direcção à Namíbia. Anstee (1997: 34-35); 1140 George (2005: 293). 276 2.1 - As condicionantes externas Graças ao auxílio das tropas cubanas e do apoio logístico e financeiro da União soviética1141, o MPLA conseguira uma vitória militar não apenas sobre as outras duas forças nacionalistas armadas mas conseguira igualmente forçar a retirada das forças militares zairenses e sul-africanas que tinham marcado presença no território, em auxílio da UNITA e da FNLA1142. Quanto à sorte das duas organizações, o destino de cada uma delas foi distinto. A FNLA que fora apoiada pelo Zaire viu o seu lugar de principal rival militar do MPLA ser gradualmente substituído pela UNITA, sobretudo a partir de 19781143. Com os sucessivos reveses militares, a FNLA vira o seu capital político e militar cada vez diminuído1144. O seu definhamento iria acelerar-se a partir do momento em que o regime liderado por Mobutu estabeleceu relações com o governo de Luanda, em 19781145. 1141 Ao contrário do que se pensa, o auxílio soviético não foi automático. Por um conjunto de razões, as relações entre Moscovo e o MPLA nunca foram pacíficas. Somente após a chegada de tropas cubanas a Angola por iniciativa do governo de Cuba é que o engajamento soviético se tornou significativo. Significa isto que a decisão de Cuba em apoiar o MPLA fora uma decisão à revelia do governo soviético. Tudo indica que a URSS não vira esta iniciativa com bons olhos. O que reforça a nossa convicção, de que o contexto de guerra-fria nunca impediu a autonomia de projectos dos países que intervieram em Angola como Cuba e África do Sul. Para saber mais sobre o papel dos soviéticos e cubanos em Angola ver Gleijeses em “Angola 40 anos” (s/data); Gleijeses (2002); Milhazes (2009); George (2005). Ver DVD “Cuba uma Odisseia Africana” Tahri (2007). A respeito das relações entre a URSS e o MPLA no período da luta anticolonial até 1977 ver também Tali II (2001). 1142 Uma destacada figura do MPLA confirma esta nossa afirmação, todavia o mesmo realça sobretudo o papel desempenhado pela Argéla e Jugoslávia: “Foi com a ajuda externa que o MPLA ganhou força militar senão tinha sido liquidada pela FNLA. Aí jogou um papel importante (até agora fala-se muito na União Soviética e em Cuba), eu acho que quem jogou um papel importante sem estar presente naquilo foi a Argélia. Foi o Boumediene (na época Presidente da República da Argélia) que conseguiu juntar os fios e permitir que a União soviética se acalmasse e ajudasse o MPLA. Foi a Argélia que mandou as primeiras armas, os primeiros tanques que desembarcaram (aliás Argélia e Jugoslávia), mas os primeiros foram os argelinos”. Entrevista com Lopo do Nascimento em 08/08. O sublinhado é nosso. 1143 Heimer (1980: 86). 1144 Confrontado com as razões de tão rápido definhamento, um militante da FNLA considera que tal se deve a duas ordens de factores: internos e externos. A interna: “Hoje em dia todos grandes comandantes que estiveram no ELNA, reconhecem que os massacres dos oficiais na base Kinkuzo fragilizou bastante a direcção militar da FNLA, que era o ELNA, porque os oficiais superiores do ELNA praticamente foram mortos. Esses que se tinham preparado nas academias militares foram mortos por intrigas, que hoje em dia não se consegue explicar, de maneira que em 1974, quando houve aquela abertura negocial com o governo português, praticamente a cabeça do ELNA estava cortada. É assim que precipitadamente se fez recurso aos oficiais superiores do exército zairense (MOBUTU) que desconheciam o terreno, não conhecia a realidade angolana. Isto foi uma das causas internas do fracasso da FNLA”. Factores externos: “O apoio das grandes potências. O apoio socialista foi muito mais célere que a ajuda capitalista”. Entrevista com Dr. Carlinhos Zassala em 09/2007. 1145 O que se deveu ao facto de o governo de Luanda ter conseguido cooptar os refugiados katangueses. Estes tinham adquirido significativa importância na geoestratégia do governo de Luanda. Para pressionar a República do Zaire, o governo de Angola começou a promover uma política de desestabilização da República do Zaire ao apoiar a FNLCFrente de Libertação Nacional do Congo, organização político-militar constituída por antigos rebeldes e refugiados 277 A UNITA, após um breve período de letargia político-militar, iria ressurgir como movimento de guerrilha em finais da década de setenta, graças ao apoio do governo sul-africano. Mas seria em meados da década de oitenta, com o apoio dos Estados Unidos da América, que a UNITA se iria afirmar como a principal alternativa político-militar, relativamente ao MPLA1146. No entanto, se o papel dos soviéticos e cubanos fora fundamental para o triunfo militar do MPLA, outras condicionantes de ordem externa iriam contribuir para a consolidação do MPLA/Estado. Com efeito, em 1976 o Congresso norte-americano aprovara uma emenda que proibia o envolvimento dos Estados Unidos em Angola, nomeadamente no respeitante ao apoio financeiro e militar aos movimentos subversivos1147. Esta lei iria assinalar o fim do engajamento oficial, dos Estados Unidos no conflito angolano em contraste com um maior envolvimento político e militar da URSS e de Cuba1148. Mas a hegemonia político-militar do MPLA no território angolano seria complementada por um contexto diplomático, favorável, que iria proporcionar condições para a legitimidade política e jurídica da recém nascida República Popular de Angola1149. katangueses entre os quais, se incluíam os antigos “fieis”. Estes, temendo uma vitória da FNLA optaram por se aliarem ao MPLA. O que possibilitou ao governo de Luanda fomentar duas invasões naquele país que, por sua vez, estava a braços com uma forte crise económica. Uma primeira invasão foi protagonizada em Março de 1977. Todavia, graças à intervenção multinacional militar promovida pela França, a invasão foi travada. Uma segunda invasão aconteceu em Maio de 1978 e, mais uma vez, graças à intervenção dos países ocidentais a invasão fracassou. No entanto, esta pressão militar criou as condições para que Agostinho Neto concluísse com Mobutu um pacto de não agressão. O que implicou o fim do apoio do governo zairota à FNLA e à FLEC. Por sua vez, o governo de Luanda comprometia-se a não apoiar os rebeldes do FLNC. O pacto seria formalizado em Julho de 1978 com a assinatura de um acordo de reconciliação e normalização das relações entre os dois Estados africanos. A partir de então as actividades militares da FNLA iriam cessar definitivamente. Wright (2000:163-167); Guerra (2002: 302);; George (2005: 293-294). O fim definitivo da FNLA como força militar foi simbolicamente marcado pela expulsão de Holden Roberto do Zaire em 1979 por ordem de Mobuto. Holden em Nganga (2008:195). A partir do mesmo ano o governo do MPLA, no âmbito de uma política de amnistia, começou a integrar muitos elementos da FNLA no Partido/Estado. Messiant (2008: 69); Presidente José Eduardo dos Santos em entrevista ao “Washington Post” em José Eduardo dos Santos (1985: 208-209). 1146 De que falaremos mais adiante. 1147 Correia (1996:39 e 193) Conhecida como a Emenda Clark, nome do Senador que a propôs, fora aprovada em 19 de Dezembro de 1975 no Senado e em 27 de Janeiro de 1976 na Câmara dos Representantes. A lei seria promulgada pelo então Presidente Gerald Ford a 29 de Junho do mesmo ano. Para saber mais sobre esta lei ver Wright (2000:154). 1148 Cerca de 35.000 cubanos em 1976. Sendo que no mesmo ano, a ajuda soviética cifrava-se em meio bilião de dólares. George (2005: 303). Ver anexo 26. 1149 Esta legitimidade era igualmente reforçada pela fragilidade da aliança FNLA/UNITA cuja proclamação da RDA não tivera o efeito desejado, pois, como se disse, a RDA proclamada em Angola não fora reconhecida por nenhum país. Além de que a coligação se desfez no próprio dia da independência quando os soldados da UNITA expulsaram as tropas da FNLA do Huambo. Savimbi (1979: 59-64); Chiwale (2008:213-215). 278 No plano restritamente africano, o MPLA conseguira uma vitória diplomática com o reconhecimento da República Popular de Angola a 11 de Fevereiro de 1976 pela maioria dos Estados africanos da OUA tendo-se tornado o 47º membro desta organização1150. Mas a vitória diplomática do MPLA não se ficara por aí. O reconhecimento por parte da maioria dos países da OUA, da República Popular de Angola estendeu-se à ONU onde, mais uma vez, o efeito África do Sul acelerou o processo de viabilização de admissão da jovem República como membro da Assembleia da ONU, no dia 22 de Novembro de 1976 1151. Com o afastamento definitivo da FNLA do teatro militar e a derrota parcial da UNITA, o MPLA, que se iria converter em partido marxista-leninista, estava em condições de instituir uma ordem política não só na maior parte do território angolano mas igualmente no seio da própria organização. Ordem que teria que ser garantida através de uma dinâmica intensiva de aparelhização1152. 2.2. A consolidação do MPLA/Estado Embora, em termos formais, a constituição do novo Estado independente estabelecesse a primazia do partido e, desse modo, também o papel decisor nuclear dos seus órgãos dirigentes (o Comité Central e o Bureau Político) o novo sistema político revelou desde o início uma forte tendência para o presidencialismo1153. Depois da morte de Agostinho Neto, esta tendência 1150 MPLA II (2008: 259). Este reconhecimento pela maioria dos países africanos deveu-se, em certa medida, ao facto de o envolvimento da África do Sul ao lado da FNLA e da UNITA ter tido o condão de unir os países africanos em torno da luta antiapartheid. Com efeito, apesar das suas divergências, os africanos partilhavam o sentimento comum de rejeição do sistema político sul-africano assente em pressupostos raciais. O MPLA tivera de resto a habilidade de arrastar, algemados, para a cimeira da OUA, mercenários portugueses e militares do exército regular sul-africano, capturados no decurso dos combates. Um gesto de forte impacto que facilitou a admissão de Angola na OUA. Tali II (2001: 137). 1151 Correia (1996: 194). Silva (2002: 254). 1152 “Por detrás da fachada de uma unidade política organizacional proclamada, conhecida pelo nome de «centralismo democrático» o MPLA ainda não tinha uma filosofia ou ideologia política uniformes. Pelo contrário, o MPLA oferecia uma notável variedade de pontos de vista: as diferenças iam das questões de palavras aos conflitos acerca das opções fundamentais”. Citação livre. Bourdieu (1989: 196). A propósito dessas diferenças ver Tali II (2002). 1153 “A sua posição preeminente introduziu o factor «presidencial» na política partidária e na política nacional. Embora a tomada de decisões fosse uma prerrogativa do Congresso, do Comité Central e do Bureau Político, Neto era claramente a força dominante, liderando quer o trabalho do partido, quer o dos órgãos do Estado. Tinha de ter o apoio dos seus colegas, mas era, de facto, o primeiro entre iguais. Hodges (2002:79-80). 279 manteve-se com o seu sucessor, José Eduardo dos Santos1154; e acentuou-se à medida que a guerra, contra UNITA e a África do Sul, se intensificou1155. Todavia, o MPLA/Estado não deixa de funcionar como um poderoso instrumento ideológico-identitário na construção de uma representação da sociedade angolana estruturada em torno do projecto de entrada na modernidade, no quadro de uma economia de direcção central e planificada1156, da unidade do estado nação (materializada em palavras de ordem como, por exemplo “Angola de Cabinda ao Cunene”1157 e da “construção do homem novo”1158. O que significa que, com a instituição de um regime de partido único, o MPLA irá tutelar o modo como as populações devem representar o mundo e representarem-se a si próprios1159. Este processo centralizador e de homogeneização da sociedade ganhou um forte alento após a tentativa de um golpe de Estado, de 27 de Maio de 1977, que teve o efeito de reforçar o carácter unipessoal e centralizador, mas igualmente autoritário do regime1160. O golpe de 27 de Maio remete para o modo como foram utilizados em princípios de acção política categorias puramente ideológicas, fundamentadas no marxismo-leninismo1161. Muito embora haja quem considere a utilização de categorias raciais nas estratégias de 1154 José Eduardo dos Santos nasceu a 28 de Agosto de 1943 em Luanda, filho de Eduardo Avelino dos Santos, pedreiro reformado, e de Jacinta José Paulino, doméstica. Ingressa no MPLA em 1961; licenciou-se em Engenharia na antiga União Soviética (Baku, capital do actual Azerbeijão) em 1969. Com a proclamação da independência é nomeado ministro das Relações Exteriores; sucedeu a Agostinho Neto na presidência de Angola, que havia falecido na antiga União Soviética no dia 10 de Setembro de 1979, em 20 de Setembro do mesmo ano. Biografia em José Eduardo dos Santos (1985: 9-11). Ver igualmente os dois volumes do MPLA (2008). 1155 Hodges (2002: 80). 1156 Ferreira (1999: 14). 1157 MPLA II (2008: 459). 1158 MPLA II (2008: 456). 1159 “Os Órgãos do Estado na República Popular de Angola guiar-se-ão pelas directrizes superiores do MPLA, mantendo-se assegurada a primazia das estruturas do Movimento sobre as do Estado”. MPLA II (2008: 452). Artigo 2º da constituição: ao MPLA (…), cabe a direcção política, económica e social da nação. MPLA (2008: 461). Razão pela qual utilizamos a designação de MPLA/Estado. Muito embora esta classificação mereça ser questionada e até reavaliada. A propósito desta designação ver Messiant (2008:55). 1160 Com efeito, após o fracasso do golpe de Estado, o regime protagonizou uma sangrenta repressão que afectou não apenas os militantes do topo até à base do MPLA, mas a própria sociedade angolana. As purgas internas tinham tido o seu início em 1976 com as prisões dos antigos militantes da “Revolta Activa” e de membros da Organização Comunista de Angola. Todavia não tinham atingido as proporções da violenta repressão que se sucedeu após o golpe de 1977. Tali II (2001); Adolfo Maria em Pimenta (2006:151-153); “Michel” (2007); Fragoso (2009); Cabrita Mateus (2007); Botelho (2007). Ver igualmente o site da Associação 27 de Maio (2010); ver o mesmo “Michel” (2010); Existe uma opinião discordante por parte de elementos afectos ao regime ao então regime vigente, como é o caso de Carreira (1996). 1161 Ver as treze teses de Nito Alves no site da “Associação 27 de Maio” (2010); Pacheco (1997). Nito Alves nome pelo qual ficou conhecido Bernardo Alves Baptista o alegado líder do golpe de 27 de Maio. 280 mobilização política1162. Porém, no nosso entender, a resposta, violenta, do MPLA/Estado denota que a amplitude popular do golpe ultrapassara a mera mobilização racial1163. A mobilização afecta aos alegados golpistas abrangera múltiplos sectores da sociedade angolana1164. Uma das consequências imediatas desta crise foi, provavelmente, acelerar o processo de criação de um “Partido orientado pelo “Marxismo-Leninismo”1165. Este alinhamento ideológico levou a que o MPLA alterasse a sua designação, passando a denominar-se MPLA-PT Partido do Trabalho, no Congresso realizado em Dezembro de 1977, que assinalaria a adesão de jure ao marxismo-leninismo e ao “socialismo científico”1166. Esta assumpção do marxismo-leninismo foi acompanhada de um reforço dos critérios, cada vez mais selectivos, de filiação no partido1167. Todavia, o paradoxo também dita a sua lei. Assim, por exemplo, quando se tratou de escolher os delegados para o Congresso de Dezembro de 1977: “A trajectória ideológica de cada um 1162 Messiant I (2008: 52), considera que: “esta oposição, liderada por Nito Alves, aquilo que se designa por corrente «nitista» no seio do MPLA, mobilizou nas cidades e sobretudo em Luanda uma importante base popular. Esta oposição, onde cabiam divergências entre fracções de elites sociais e políticas, apresentava um forte acento racial (anti mestiço), um pró sovietismo integral e a defesa do “poder popular” dirigido pelo partido. Segundo Bridgland (1988: 304) apareceram panfletos clandestinos, que atacavam, em termos racistas, os portugueses brancos que trabalhavam como cooperantes para o governo angolano. MPLA- Informação do Bureau Político sobre a tentativa de golpe de estado de 27 de Maio de 1977. MPLA/República Popular de Angola 12/7/ 1977. Ver igualmente Tali II (2001:181-227); “Michel” (2010). 1163 Um historiador angolano foi confrontado com a seguinte pergunta o “27 de Maio foi uma crise racial”? A resposta foi a seguinte: “Julgo que não, talvez tenha sido explorada como crise racial. Havia muitos mestiços no movimento como o Charrula, Sita Vales. O 27 de Maio não foi uma crise racial, mas uma crise de crescimento do próprio MPLA. Porque a sua juventude… aquilo que se chama de esquerdistas, de quererem a revolução já, de um dia para outro, esses indivíduos é que queriam apressar a revolução angolana então enveredaram pelo esquerdismo, mas que tenha sido racial… mas não obstante algumas fontes contradizerem-se que… e sobretudo a fonte do poder explorar muito esse aspecto racial; (“racista porque o Nito Alves dizia que “os brancos e mulatos deviam varrer as ruas”) e então isso pode sugerir uma leitura racial, foi esta utilizada sobretudo pelo poder”. Entrevista com o historiador e docente universitário Fernando Gambôa a 09/2007. 1164 Todavia reconhecemos que a história do golpe do 27 de Maio ainda está por contar. As abordagens acerca da mesma, mais apaixonadas do que reflexivas denotam no entanto uma profunda divisão no seio tanto do MPLA, como de uma grande parte da sociedade angolana. 1165 O processo de adesão tinha tido o seu início oficial em 1976. MPLA II (2008:267); Tali II (2001:230-231). 1166 Relatório do Comité Central ao 1º Congresso do MPLA (1978: 26-27). 1167 De entre estes critérios constavam a aplicação dos “princípios do marxismo-leninismo”, a posse de “qualidades políticas e morais revolucionárias irrepreensíveis e a não adopção de ideia religiosa”. Estatutos e programa do Partido do Trabalho/MPLA 1977 (1977) Gentilmente cedidos por Wanda Lara. A propósito deste processo ver Tali II (2001:230-243). Muito embora, à rigidez dos critérios de adesão se possa também associar a massificação das purgas e, como tal, um maior distanciamento do MPLA em relação às suas bases populares, (O número de membros do partido caíra de 110.000 para 31000): “Em paralelo à purga, foi lançado um movimento de rectificação de forma “a depurar organização dos elementos nocivos” estabelecendo rígidos critérios para a filiação no partido, degenerando nos primeiros sinais de “elitismo” partidário expresso no slogan de então – “não é do partido quem quer, mas quem merece”.. Vidal em Vidal e Andrade (2006: 15). Relatório do Comité Central ao 1º Congresso do MPLA 1978 (1978: 26-27). 281 pesou menos, portanto, e o Congresso recebeu uma massa de pessoas designadas segundo um critério comum: a 1168 fidelidade ao MPLA e a Neto” . Podemos, contudo, considerar que o Congresso de 1977 assinala a institucionalização de um processo de consolidação de um regime, corporizado pelo MPLA, que reforça a sua omnipresença no seio da sociedade. Partido que, por sua vez domina todas as vias de promoção social, além de decidir e controlar o lugar que cada um deve ocupar, tanto no seu seio como no Estado1169. Assim para quem não quer estar excluído do jogo do processo de acumulação de capital político torna-se portanto necessário entrar no partido, e, para aquele que já lá está, obviamente subir na hierarquia; os critérios, para tal, não são raciais nem étnicos, nem religiosos1170. Basta fazer prova de fidelidade ao partido e/ou ao presidente, independentemente do seu passado de traidor1171. Como tal, o fortalecimento de posições na hierarquia do MPLA/Estado, ou seja, a posse de capital político objectivado – principal critério de diferenciação no seio do MPLA – está obviamente sujeito a outros critérios, mas a fidelidade é o garante fundamental de acesso ou acumulação de capital político1172. Esta percepção de que o capital político se adquire no partido reforça a percepção de que aquele é o princípio diferenciador, cuja desigual distribuição dará, provavelmente, origem a diferenças comprovadas não só pelos postos, mas igualmente pelos privilégios que estes 1168 Tali II (2001:237). O que torna, quanto a nós, a fidelidade como um dos principais índice da bolsa de valores do capital político objectivado. 1169 Messiant 2 (2008: 255). 1170 O que significa que os rígidos critérios de filiação podiam ser contornados. Assim, a título de exemplo, a exclusão dos militantes assumidamente pertencentes a confissões religiosas (cristãs) dera origem a determinadas práticas distintas. Aqueles que eram profundamente religiosos (sobretudo protestantes) irão abandonar o partido, por vezes sem problemas pois opõem-se ao comunismo ateu. Outros, pelo contrário, esquecerão sem sentimento de culpa a sua religião e tornar-se-ão ateus convictos; outros ainda, no seio destes últimos – nomeadamente alguns dirigentes do partido – recusarão abandonar o partido e farão questão em declarar que não são cristãos, todavia mantendo as suas convicções religiosas e, por vezes de forma visível. Messiant I (2008: 310); O que reforça, quanto a nós, o a importância do critério de fidelidade para aquisição e acumulação do capital político. 1171 Messiant II (2008: 255). Um exemplo. A integração dos antigos dirigentes da FNLA (os “clementinos”) que haviam aceite a política de clemência oferecida pelo partido/Estado. O que possibilitou a muitos desses novos membros o acesso a postos de elevado nível no seio do Comité Central e do governo. Com efeito, aqui o mecanismo mobilização/fidelidade terá obviamente efeitos no seio da adesão de uma população classificada como bakongo, sobretudo a partir de 1992. 1172 Segundo um autor, Lenine definira quais seriam os critérios para a escolha dos colaboradores.. A selecção deveria ser feita segundo: 1) a fidelidade; 2) a posição política; 3) conhecimento técnico; 4) capacidade em matéria de administração. Há igualmente similitudes com o pressuposto estalinista de que se trata de seleccionar os funcionários de maneira a que os postos sejam ocupados por homens que saberão compreender as directivas, considerar essas directivas como sendo as suas próprias directivas e transformá-las em realidade. No caso contrário, a política perde o seu sentido e transforma-se em meros discursos. Voslensky (1980: 71 e 100). 282 acarretam. A esta forma de acumulação de capital político, que se poderia chamar de “patrimonialização”, estende-se aos principais recursos do Estado (sobretudo o petróleo) e possibilita o desenvolvimento de uma espécie de capital social de tipo político que se reproduz através de uma rede de relações – de tipo clientelista – familiares, linhageiras; contribuindo desse modo para a constituição de um verdadeira nomenclatura de privilégios. Sendo que esta vai levando até às últimas consequências a apropriação dos bens públicos e colectivos1173. Todavia, não é demais enfatizar, que esta acumulação continua subjugada ao princípio nuclear de diferenciação do subcampo: o capital político1174. Podemos assim considerar que estão criadas as condições que possibilitam a constituição e reprodução de uma nomenclatura de privilégios a partir de posições ocupadas no Partido e, por conseguinte, no aparelho de Estado1175. Configura se assim uma complexa rede de relações que se consubstanciam em postos, privilégios e ideários1176. Essa dinâmica, consubstanciada pelo MPLA/Estado, é acompanhada por um sistema de classificação, produzido e trabalhado, que comporta um discurso identitário que veicula um sentimento de pertença, não só a um território, mas também a um partido, (re)produzindo assim rígidos critérios de inclusão e exclusão1177. Adquire grande eficácia simbólica o recurso aos instrumentos conceptuais provenientes do marxismo-leninismo. 1173 “Uma complexa estrutura institucional de privilégios sociais e materiais inerente aos escalões superiores da estrutura hierárquica Estatal/Partidária/Militar (estas esferas desde cedo que se justapuseram a nível do topo), foi colocada em prática, desde logo esbatendo a distinção entre dimensão pública e privada e impondo uma grande diferenciação social entre as elites no poder e a maioria da população, (…). A justaposição das estruturas partidárias e estatais e a centralização política e económica, típicas de um modelo Marxista, serviram na perfeição as necessidades de um modelo patrimonial distributivo”. Vidal em Vidal e Andrade (2007:13). 1174 Reconhecemos que para a elaboração de um índice do capital político não basta reter apenas a posição na hierarquia do aparelho partidário/estatal, mas outros elementos como um passado de luta armada anticolonial e de luta contra os “imperialistas e seus fantoches”. A isso podemos acrescentar as competências técnicas para o exercício de funções administrativas e burocráticas tanto do partido como do Estado e seus apêndices. 1175 “A Nomenclatura consiste na lista dos postos mais importantes; as candidaturas são previamente examinadas, recomendadas e sancionadas por um comité do Partido. Quer da cidade, quer do distrito, quer da região, etc. É necessário o acordo do comité do Partido, para que as pessoas admitidas a comparticipar na Nomenclatura possa ser libertadas das suas funções. A Nomenclatura compreende as pessoas que ocupam os postos chaves”. Voslensky (1980: 20). 1176 Serão sobretudo as receitas do petróleo que possibilitarão consolidar e reforçar uma nomenclatura de privilégios. Mas esta consolidação deve-se em certa medida a crescente corrupção que vai atingindo um crescente número de responsáveis e indivíduos no partido e no Estado uma vez que estes gozam de uma impunidade conferida pelos seus postos. Enquanto isso as dificuldades e penúrias aumentam para a maioria da população que reage às dificuldades e desigualdades ora com o silêncio, medo e a submissão; ora com a desobediência as leis e no aproveitamento das oportunidades (desvios, roubos, candonga). Messiant (1998: 258); acerca da evolução da economia angolana ver igualmente Ferreira (1993: 1360-1386), Idem (1995: 11-26) Idem (1999). 1177 Uma rigidez que se traduz, frequentemente num afunilamento dos critérios de inclusão e no alargamento dos critérios de exclusão. 283 Designações como “socialismo científico”1178, “centralismo democrático”1179, “poder popular”1180 exemplificam a edificação de um sistema de classificação que assegura o monopólio da classificação legítima que, por sua vez, possibilita ao MPLA/Estado fundamentar e assegurar o controlo da manipulação legítima do discurso e da acção política1181. Graças a esta relação de equivalência perfeita entre o representante e os supostos representados, “o MPLA é o povo e o povo é o MPLA”1182; o partido monopolista pode simplesmente substituir-se ao povo, o qual fala e age através dele1183. E, desse modo assegurar o seu monopólio através duma dupla legitimidade: “a científica e revolucionária”1184. Mas este sistema de classificação remete igualmente para um princípio estruturante não só do funcionamento do subcampo mas igualmente de todo o espaço social, sob a vigência do MPLA: a fidelidade/traição. Assim, por exemplo, “camaradas/inimigos”, “revolucionários/ reaccionários”, “patriotas/fantoches”, são antinomias que contribuem para definir aqueles que estão ou não inseridos no espaço MPLA, ou seja aqueles que estão contemplados pela ideologia identitária de nação1185. Trata-se de um princípio de inclusão/exclusão que possibilita, por sua vez, assegurar uma ordem no espaço social angolano, mas igualmente assegurar uma ordem interna. Pois possibilita, não só excluir aqueles que não se revêem no MPLA, mas igualmente excluir aqueles que sendo do MPLA são considerados “nocivos”. Porém, este sistema de classificação, possibilita igualmente o reforço da mobilização, sobretudo e à medida que a guerra se intensifica, não só contra a UNITA como contra os “racistas sul-africanos”1186. 1178 José Eduardo dos Santos (1985:14). Relatório do Comité Central ao 1º Congresso do MPLA (1978: 29). 1180 Estatutos do e Programa do MPLA (1977). 1181 Bourdieu (2000:100). 1182 Tali II (2001: n 22 p 92). 11 83 Bourdieu (2000:101). Trata-se, quanto a nós, de um trabalho ideológico-identitário que impede o recurso às propriedades rácicas/características somáticas ou até o recurso às categorias étnicas e religiosas no exercício da prática política. A tese de que as classificações predominantemente ideológicas eram mais importantes do que as classificações raciais é defendida por informadores privilegiados: “Eu creio que houve um momento em que estas questões eram menos importantes nos primeiros anos da independência, em que as palavras de ordem do MPLA, em torno do anti-racismo, anti-tribalismo, e anti-regionalismo mobilizavam muita gente que, nelas acreditando ou não, seguiam-nas com mais ou menos empenhamento. Sentia-se na rua, nas relações entre as pessoas, pouca tensão entre as raças. Entrevista com o escritor Artur Pestana “Pepetela”, em 09/2001. 1184 Bourdieu (2000: 100). 1185 Ver Santos José Eduardo dos Santos (1985) onde abundam estas expressões. 1186 Ver Santos José Eduardo dos Santos (1985: 42-53). 1179 284 Assim o novo regime instituído, através de um presidente, um partido e uma ideologia “pode absorver a «sociedade civil» no Partido/Estado, os dominados nos dominantes, realizando sob a forma de uma 1187 ditadura realmente disfarçada em ditadura do proletariado, o sonho da burguesia sem proletariado” . Porém, a nova conjuntura internacional1188, a pressão militar exercida pela UNITA e o fracasso da economia planificada e de direcção centralizada iriam contribuir para uma notável viragem ideológica, com substituição do “marxismo-leninismo” pelo “socialismo democrático”. Em 1990: “O III Congresso do MPLA-Partido do Trabalho ratificou a opção pelo sistema político multipartidário, pelo sistema de economia mista baseada nas leis de mercado e pela transformação do carácter e orientação do 1189 Partido” . A 6 de Maio de 1991 o Presidente da República José Eduardo dos Santos promulgou as leis do Sistema Político Multipartidário, publicadas no Diário da República de 11 do mesmo mês: Lei Constitucional, (alteração parcial da Constituição), Lei dos Partidos Políticos, Lei das Associações, Lei do Direito de Manifestação, Lei do Estado de Sítio e da Emergência, Lei da Nacionalidade, Lei do Plano e do Orçamento Geral do Estado para 19911190. José Eduardo dos Santos pôde assim apresentar-se, no dia 31 de Maio de 1991 em Bicesse, na qualidade de porta-voz legítimo do grupo constituído e instituído em instância legítima – de grande eficácia simbólica – o MPLA/Estado. Mas, esta “felina” viragem ideológica demonstrara, acima de tudo, que o MPLA se adaptara rapidamente a uma nova conjuntura política. O que pode querer dizer que, no seio do partido e apesar do monolitismo político vigente, havia sempre “alguém” com “coragem”, “profundidade” e “pragmatismo” que pensara em alargar a clientela política» do MPLA1191. “Alguém” que se apercebera de que para não ser excluído do jogo político, o MPLA não se poderia limitar a “virtudes tão exclusivistas”, pois necessitava de trazer para a sua causa o maior número possível de “refractários”. Havia, 1187 Bourdieu (2000:100-101). Referimo-nos à desagregação do sistema sovietizado, simbolizado pela “queda do muro de Berlim”, de que falaremos mais adiante. 1189 MPLA/PT. Discurso do Presidente José Eduardo dos Santos (1990), Paralelamente, promoveu-se a aceleração da liberalização económica e da economia do país, de acordo com o Programa de Acção do Governo (PAG), lançado em Agosto de 1990. Guedes e vari (2003: 238). 1190 Guedes e AA.VV. (2003: 240); Carlos Albuquerque (2002:40). O MPLA apresentou a sua candidatura a membro da Internacional Socialista em 1991. Idem (2002: 42). Onofre dos Santos (2005: 40). 1191 “A transformação do carácter do Partido de classe em Partido de massas, ampliando a composição social para o recrutamento dos seus membros”. O que implicou a abertura do partido à entrada de camponeses, que “constituem a maioria da população”, “crentes” ou até “outros cidadãos que exerçam actividade económica individual”. MPLA/PT, Linhas Mestras dos Projectos de Teses ao III Congresso (1990). MPLA/PT, “Resolução Geral do III Congresso do MPLA (1990)”. Ver também MPLA/PT. “Discurso do Presidente José Eduardo dos Santos no enceramento do II Congresso” (1990). 1188 285 portanto, “alguém” que tinha a perfeita noção de que “a lógica da real politik era a condição do acesso à realidade política”1192. 3. Consolidação da UNITA em tempo de guerra. Ou a investidura do dom Em 1976, derrotada militarmente, a UNITA iria dar início a um processo de reactivação das suas estruturas político-militares. Para tal iria contar com o apoio de dois países: a África do Sul e, sobretudo a partir de 1985, os Estados Unidos da América. Mas seria a África do Sul o primeiro país a garantir, a partir de finais da década de setenta, um efectivo apoio à UNITA. 3.1. As condicionantes externas O envolvimento sul-africano em Angola obedecia a uma “estratégia nacional total” delineada pelo governo sul-africano no sentido de responder à “ameaça total” que representavam os movimentos de contestação ao apartheid1193. No domínio da política externa a estratégia sul-africana procurava aplicar a teoria da desestabilização segmentarisada, que consistia empreendimentos das subversões nos países vizinhos em 1194 encorajar sistematicamente os . O que passava, obviamente, pelo apoio aos movimentos subversivos1195. Tratava-se de pressionar os governos dos países vizinhos a abdicarem do apoio aos movimentos que se opunham ao apartheid como a SWAPO na Namíbia e o ANC-Congresso Nacional Africano na África do Sul. O fundamento ideológico deste plano traduzia-se numa ideia força: a luta contra o avanço do comunismo soviético1196. 1192 Bourdieu (1989 : 185). Campos (1996: 246); Jeune Afrique (Economie) (Abril de 1996: 148). 1194 No plano interno o objectivo era identificar e desmantelar as redes de influência susceptíveis de fomentarem uma agitação política generalizada, nomeadamente nos towship. Jeune Afrique (Economie) (Abril de 1996: 148). Campos (1996: 250-278). No caso de Angola, o apoio a UNITA estava também associado ao objectivo de criar uma zona tampão no sul de Angola de modo a impedir as acções da SWAPO na Namíbia. Campos (1996: 280). 1195 Em Moçambique, por exemplo, o governo sul-africano apoiava a RENAMO - Resistência Nacional Moçambicana que se opunha ao governo moçambicano dirigido pela FRELIMO - Frente para a Libertação de Moçambique. 1196 Campos (1996: 250-251). 1193 286 No caso angolano, as intervenções militares frequentes consistiam, por um lado, em atacar as bases da SWAPO - South West African People’s Organization que estavam sedeadas em Angola1197; e, por outro lado, em reforçar o apoio militar à UNITA com o intuito de desestabilizar e enfraquecer o regime de Luanda, impedindo assim este último de apoiar a SWAPO1198. Mas será devido ao envolvimento dos Estados Unidos da América na questão angolana, que a UNITA se iria afirmar como a principal força político-militar, alternativa ao MPLA. Este empenhamento tornou-se notório com a ascensão de Ronald Reagan à presidência dos Estados Unidos em 19811199. A partir de então, a política externa norte americana em Angola iria também estar inserida na estratégia de minar todas as regiões e territórios influenciadas pela URSS1200. Com a revogação da Emenda Clark, em Julho de 1985, o apoio norte-americano à UNITA adquiriu maior intensidade1201. O que contribuiu para que a guerra civil angolana começasse a adquirir contornos de conflito regional e de guerra convencional nacional protagonizada não só por países distintos1202, África do Sul e Cuba, como ainda por dois exércitos nacionais1203. Mas a política dos EUA em Angola não se restringia ao plano militar. Havia também uma dimensão diplomática cujo objectivo era encontrar uma solução política que garantisse a estabilidade na região da África Austral. O que, obviamente, implicava salvaguardar o papel da As forças militares sul-africanas chegaram ao ponto de ocupar a província do Cunene durante anos. Hodges (2002:28). 1198 Hodges (2002: 28). As operações militares sul-africanas em Angola cifraram-se em 4 na década de setenta, sendo que entre 1980 e 1988 tinham se realizado 20 operações de carácter militar. George (2005: 300-301). 1199 Guerra (2002: 142). Correia (1996). 1200 Wright (2000: 201). A presença das tropas cubanas em Angola considerada pelos EUA como um atentado à sua segurança nacional será o primeiro grande pretexto para um primeiro apoio oficial à UNITA. Muito embora este auxílio fosse prestado ainda de forma velada. Idem (2000:216-218). 1201 A 10 de Julho de 1985, a Câmara dos Representantes votou, um mês após resolução semelhante por parte do Senado, a revogação da Emenda Clark, pondo assim termo à proibição, de uma década de ajuda militar dos Estados Unidos aos movimentos resistentes angolanos”. Bridgland (1988:524). Ver também Wright (2000:235-249). Guerra (2002:309). 1202 Começava assim a tornar-se cada vez mais notório a existência de um eixo EUA/Africa do Sul /UNITA em oposição ao eixo Moscovo/Havana/Luanda. 1203 O que se devia ao grande número de armamento fornecido pelas duas grandes potências mas também ao crescendo de tropas cubanas que na primeira metade da década de oitenta atingira cerca de 50.000 homens. Hodges (2002: 28); George (2000:303). Sendo que a ajuda soviética se cifrava em 1985 no valor de dois biliões de dólares. Idem (2000:303). Em 1986 a Administração Reagan concedeu à UNITA 15 milhões de dólares dos financiamentos em operações secretas da CIA (Central Intelligence Agencie). Nesta ajuda estavam incluídos mísseis antiaéreos TOW e Stingers, armas antitanques, canhões de 106 milímetro sem recuo; munições e combustíveis. Wright (2000: 248). 1197 287 África do Sul na região considerado um bastião da defesa do ocidente contra a hegemonia comunista1204. É neste sentido que se pode entender a fórmula implementada por Chester Crocker1205 para a África Austral denominada de Constructive Engagement (Envolvimento Construtivo),1206 a qual que se materializaria na denominada política de linkage. Consistia, esta, em ligar ao cumprimento das resoluções tomadas pelas Nações Unidas relativamente ao reconhecimento da independência da Namíbia à retirada das tropas cubanas de Angola1207. A estratégia diplomática americana acabaria por se consubstanciar no Acordo de Nova Iorque quando África do Sul, Angola e Cuba assinaram formalmente, a 22 de Dezembro de 1989, um tratado relativo à retirada sul-africana e à implementação da resolução 435. No mesmo dia, Angola e Cuba assinariam um tratado bilateral acerca da retirada das tropas cubanas1208. Para Wright, a administração Reagan tinha atingido dois dos seus principais objectivos em Angola: os cubanos estavam a retirar de Angola e o MPLA tinha começado a desmantelar o sistema de economia planificada1209. Porém, o envolvimento político e militar dos EUA em Angola não tinha terminado. A fase seguinte seria de pressão dos Estados Unidos sobre o governo angolano para que aceitasse a reconciliação nacional com a UNITA. Este fim seria atingido graças a um novo contexto geopolítico mundial: o colapso dos regimes “socialistas” na Europa do Leste e a respectiva desintegração da União soviética em Agosto de 19911210. 1204 Estabilidade entendida como estando a região livre da ameaça do expansionismo soviético/cubano. Mas também estando a mesma sob o controlo dos Estados Unidos. A este propósito ver Wright (2000:201-202). 1205 Na época secretário de estado adjunto para os assuntos africanos. Wright (2000:201). 1206 “A proposta de Chester Crocker era de cooperação com a África do Sul no sentido de libertarem a África Austral das chamadas “ameaças”, que mais não representavam do que extensões do alegado expansionismo soviético. Wright (2000:201-202). 1207 Em 1978 a resolução nº 435 do Conselho de segurança da ONU de 29 de Setembro estipulava a retirada da administração sul-africana da Namíbia e a entrega da sua soberanias ao povo namibiano. Esta resolução reconhecia a SWAPO como legítimo representante do povo namibiano. George (2005: 294). Site da ONU. A propósito de linkage ver Wright (2000:201-205); Guerra (2002:143). Messiant 1 (2008:181). 1208 Wright (2000:268). 1209 Wright (2000:268). Não concordamos de todo com esta afirmação pois o processo de desmantelamento da economia planificada tinha tido o seu início em 1987, muito embora tenha sido com a publicação da Revisão Parcial da Lei Constitucional de Maio de 1991 que se procederá, finalmente, a ruptura formal do sistema económico baseado na direcção centralizada e planificada substituindo-o pelo princípio de uma economia de mercado. Enes Ferreira (1999:105-106). Guedes e AA.VV (2003:236-237). 1210 Wright (2000: 268). Simbolicamente assinalado pela “queda do muro de Berlim” em 1989. As mudanças operadas tinham tido o seu, visível, início com a subida de Mikhael Gorbachov ao poder, em Março de 1985, numa conjuntura de crise económica e social que afectava a URSS. Uma crise que apelava para a necessidade de suster o declínio do “império” através de uma política de relançamento, de reestruturação – perestroika - assente num triplo 288 Graças a esta nova conjuntura mundial os EUA estavam em condições de alcançar o seu principal objectivo: assegurar as condições para uma reconciliação nacional1211. Reconciliação, que passava indubitavelmente pelo estabelecimento de um sistema político multipartidário, à imagem e semelhança das denominadas democracias ocidentais1212. Estavam assim abertas as condições políticas para um processo negocial entre a UNITA e o MPLA que culminaria nos Acordos de Paz, assinados em Bicesse, Portugal, no dia 31 de Maio de 19911213. Se até aos acordos de Bicesse a luta pelo poder político se circunscrevera ao quadro geral da procura de hegemonia por parte das duas superpotências, a partir de então as novas guerras civis subsequentes (1992-1994; 1999-2002), iriam adquirir características de um conflito à escala nacional1214. Todavia tal, não impede que o realismo da política internacional tenha tido uma “palavra” a dizer. O novo contexto unipolar e de hegemonia norte americana a isso obrigava. 3.2 Da “longa marcha” à investidura do dom Tendo sido obrigada a retirar dos seus bastiões no Planalto Central em 1976, a UNITA deu início à sua “longa marcha”1215 até às distantes regiões do sudeste de Angola, onde iria encetar um processo de reactivação da sua estrutura político-militar contando para isso, com o auxílio da África do Sul, a partir de 19781216. objectivo. Reduzir as despesas militares através de uma nova política externa; aumentar a produtividade através de uma mobilização intensiva de recursos materiais e tecnológicos; e revivificar a sociedade através de um projecto de justiça social fundado sobre uma linguagem de verdade (glagnost). Rego (1999:67). 1211 Wright (2000: 289-291). 1212 Havia também a percepção por parte da diplomacia norte americana de que uma vitória militar da UNITA era impossível. Wright (2000: 203). 1213 A propósito do processo negocial entre o MPLA e a UNITA até a assinatura dos Acordos de Bicesse ver Correia (1996: 46-47); Wright (2000: 279-300). 1214 Paulo de Carvalho em “Angola a Festa e o Luto” (2000: 94) pp 88-99. “Mais l’intervention internationale aux côtés des deux belligérants a permis la constitution de deux appareils foncièrement indépendants de leurs base de soutien et dont la logique est l’établissement d’une hégémonie sur l’État et la société n’étant prés ni à une paix qui ne soit aussi une victoire sur l’autre ni à une démocratie qui signifierait que le pouvoir, gagné ou maintenu, ne serait pas sans partage. Messiant 1 (2008:207). 1215 Uma referência emprestada à China e que faz parte da mitologia revolucionária do séc. XX. Chiwale (2008:221). 1216 Para evitar a estigmatização que acarretava tal apoio, Savimbi iria socorrer-se, em nome do realismo da política, e da justeza da causa (sendo que os fins justos justificam os meios) de dois fundamentos: a sobrevivência e a história. “Se estiveres a afogar-te num rio infestado de crocodilos e tiveres ido ao fundo pela terceira vez, não perguntes quem te puxa para a margem até te sentires em segurança”. Bridgland (1988: 157). “Ninguém pode dizernos com sinceridade que seria melhor sermos massacrados pelos Cubanos do que aceitar a ajuda da África do Sul 289 Em princípios da década de oitenta a UNITA conseguira implantar-se em grande parte das zonas rurais do centro e do sudoeste do país e começara a estender as suas acções militares no Norte de Angola1217. Graças aos apoios concedidos pelos EUA e África do Sul conseguiu não apenas fixar-se na região do Sudeste de Angola como administrar um vasto território, à semelhança de um Estado omnipresente, e tutelar a vida económica, social e cultural das populações. Pôde assim a UNITA a partir da Jamba1218, principal centro militar e administrativo situado na região do Sudeste por ela ocupada, expandir-se para outras partes do território angolano e assim reforçar o seu estatuto de organização político-militar nacional1219. Essa dinâmica é realizável porque conseguira um apoio significativo das populações, nomeadamente daquelas que estavam situadas no sul e sudeste do país1220. Com efeito, a Jamba tornara-se um verdadeiro pólo de atracção para as populações que, cada vez mais afectadas pela guerra, procuravam abrigo em alternativa ao espaço MPLA/Estado. Ao garantir a segurança da população, a UNITA recebia em troca o apoio e adesão da mesma1221. Uma adesão frequentemente recompensada, não só com a segurança, mas, com a escolarização, os cuidados de saúde, a promoção social pela via militar e, até, à atribuição de bolsas de estudos para formação de quadros1222. Mas é, também, provável que tal apoio populacional tenha sido reforçado devido a práticas de exclusão exercidas, por parte do MPLA/Estado, nomeadamente sobre os camponeses1223; mas também sobre populações citadinas1224. (…). Queremos viver e queremos a nossa independência. Não estamos interessados em que nos prometam o título de revolucionários póstumos. (…). Lenine assinou o tratado de Brest-Litvosk (que entregava a Ucrânia, a Finlândia, as províncias Bálticas, o Cáucaso, a Rússia Branca e a Polónia aos Alemães); Estaline assinou o Pacto Soviético-Nazi (em que a Alemanha e a União Soviética dividiam entre si a Europa Central); Samora Machel, o acordo de Nkomati; Eduardo dos Santos, o acordo de Lusaka. Hoje, os homens de Luanda jantam com os Sul-Africanos e, juntos, perseguem a SWAPO no Cunene. Quem, por conseguinte, pode esperar vir dar-nos lições”? Idem (1988: 542). 1217 Ver anexo 25. 1218 Região situada ao extremo sudeste junto a fronteira com a Zâmbia. Verdadeiro santuário protegido pela força aérea sul-africana. Messiant 1 (2008:139). 1219 Em meados da década de oitenta a UNITA atingira a fronteira da República do Zaire, sendo que este país começou a servir de rectaguarda para as suas actividades militares no Norte do País. Hodges (2002: 27-28); ver igualmente Bridgland (1988). 1220 Messiant 1 (2008: 48). 1221 Com efeito, o apoio sul-africano permite levar a guerra sem custos materiais para a população. Messiant 1 (139). 1222 Messiant1 (2008: 140). 1223 Um exemplo: Os critérios de selecção para a filiação no MPLA privilegiavam aqueles que tinha a capacidade de estudar e divulgar os princípios do socialismo. “Estatutos e programa do Partido do Trabalho/MPLA “1977. Tais critérios educacionais acabaram por discriminar os camponeses, dada a sua limitada instrução (a maioria eram iletrados). Após o movimento de rectificação eles apenas representavam 1,9% dos membros do partido. A esta criteriosa selecção acrescenta-se o facto de que 74% da população viver nas áreas rurais. Além de que o petróleo 290 A UNITA, tal como o MPLA, não deixa de funcionar como um poderoso instrumento ideológico-identitário na construção de uma representação da sociedade angolana estruturada em torno do projecto de entrada na modernidade da unidade do Estado nação. Mas este projecto será acompanhado, provavelmente até ao apoio norte-americano, de um sistema de classificação assente num discurso revolucionário imbuído de signos maoístas1225. Em princípios da década de oitenta, a UNITA começa a preconizar a realização de eleições multipartidárias, e: “para desfazer a imagem marxista que algumas pessoas tinham do movimento, a UNITA adoptou também novos nomes para o seu Comité Central e Bureau Político. Eles transformaram-se, 1226 respectivamente, em Comité Executivo e Comité Nacional” . Contudo é importante referir que, na sua dimensão prática, o maoísmo permanece e apresenta-se como fundamento de uma organização que nunca deixou de funcionar numa lógica militarizada de modo a assegurar não só o combate contra o MPLA, mas igualmente a garantir o controlo das populações sujeitas ao seu aparelho administrativo e militar; este funcionamento assegura também uma ordem interna, no seio da própria organização1227. Mas esta funcionalidade se, por um lado, assegura a eficácia do combate político, por outro, desemboca numa permanente tentação totalitária. A UNITA desenvolvera, no território sob sua administração, uma sociedade militarizada regida por um tipo de disciplina em que a ordem e obediência assentavam num comando de cima tornou a mão-de-obra agrícola dispensável. Assim, o partido era o principal fornecedor dos bens e serviços, aos quais os camponeses não tinham acesso. Importa também reter que a produção agrícola havia decaído significativamente devido à guerra e ao modelo de “gestão socialista”. São constrangimentos que acentuaram o fosso entre estes e o MPLA. Este elitismo económico e social terá porventura aberto caminho para uma forte adesão da população rural à UNITA. Vidal (2006: 15); ver igualmente Messiant 1 (2008: 55). Mas este distanciamento do mundo rural por parte do MPLA estendeu-se provavelmente às denominadas “autoridades tradicionais”. O que também terá reforçado a base “rural” de apoio da UNITA. 1224 Referimo-nos às populações que viviam nas cidades como Nova Lisboa (actual Huambo) e que abandonaram as mesmas devido aos excessos praticados pelas forças afectas ao MPLA; excessos confirmados por um militante do MPLA: “Ali onde realmente, houve excessos nossos na repressão [confessa Ndalu]. Senão tínhamos ficado com os quadros da UNITA… Mas, como houve uma repressão, os ovimbundos pensaram, deixa cá ver estes gajos vão-nos matar, vão dizer que estivemos com os sul-africanos”. Não eram da UNITA mas ficaram com a UNITA. Havia quadros ovimbundos que não eram da UNITA. O pessoal ainda estava a ver como é que ia ser a coisa, então ali tiveram que se definir”. Nogueira Pinto (2008: 76). 1225 Designações típicas de uma organização revolucionária como “camarada presidente”; “social imperialismo” “regime pequeno burguês”; “governo fantoche do MPLA”. Savimbi (1979: 206-210). 1226 Bridgland (1988:517). Doc. UNITA, Identidade de uma Angola Livre (1985). 1227 Daí que optemos por definir mais esta assumpção como maoísmo metodológico. 291 para baixo, típicas das organizações militares, cujas relações de autoritarismo/totalitarismo assentam no princípio da fidelidade não só ao partido como ao chefe1228. Trata-se, portanto, de uma dinâmica de intensiva aparelhização corporizada por um chefe que impõe, no seio da organização e no seu espaço administrativo, não só o culto da personalidade, mas igualmente um constante exercício de unanimismo. Sendo este último, sustentado por uma violência típica de uma sociedade /militar que assenta num exército cada vez mais hipertrofiado e plenipotenciário e numa polícia política omnipresente (BRINDE - Brigada Nacional de Defesa do Estado). O resultado: prisões arbitrárias, purgas, julgamentos sumários, em nome de conjuras, quer fictícias ou reais. Um arbitrário que assenta igualmente num poder, pessoal e omnipresente, com legitimidade para julgar e condenar de um modo punitivo qualquer militante desde a base até ao topo da mais alta hierarquia da UNITA1229. Modo de punir, que exemplifica um modo de apropriação, pelo político, de “valores tradicionais africanos”, quando se trata de excluir inimigos reais ou imaginários 1230. Todavia esta dupla assumpção, do “maoísmo metodológico” e da democracia multipartidária, talvez uma conjugação de uma necessidade táctica e doutrinária, não impede que a UNITA se mantenha fiel a um princípio ideológico-identitário que a diferencia relativamente ao MPLA: “Os princípios ideológicos veiculados pela UNITA eram diferentes dos do MPLA. Se para este a revolução partia dos centros urbanos para a periferia, a nossa perspectiva era contrária, ou seja, devia se partir do campo para a cidade por não termos em Angola, dado o baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas, uma classe operária na real acepção da palavra” 1228 1231 . Trata-se de tentar veicular uma ideologia que: “responda Messiant (2008: 48). No respeitante à fidelidade ao chefe, o programa da UNITA de 1984, no capítulo referente aos membros, na secção dos deveres consta o seguinte: “Ser leal ao Movimento e ao seu Presidente. UNITAIdentidade para Angola livre (1985: 115). Há aqui uma diferença relativamente ao MPLA, pois este, no capítulo dos deveres, preconiza nos seus estatutos de 1977 a fidelidade “ao partido e ao povo”. 1229 Messiant (2008: 140). Mas esta omnipresença de Savimbi estende-se igualmente às relações conjugais dos militantes: “Também te queria informar que eu sei que as tuas mulheres te abandonaram, mas não te preocupes que eu hei-de arranjar-te uma outra”. Chiwale (2008: 272). A propósito dessa violência ver Guerra (2002); Loanda (1995:63-71); Anstee (1997:190). 1230 “Organizou-se um julgamento onde participaram anciãos, oficiais e quadros dos mais elevados escalões do partido: os inocentes foram libertados e os culpados condenados à pena capital, ou seja a morte na fogueira, conforme rezam os costumes africanos.” Chiwale (2008: 270). Ver igualmente Messiant 1 (2008: 140). 1231 Chiwale (2005: 250). Alcides Sakala confirma: “a UNITA é uma força que, talvez bebendo um pouco da experiência chinesa, tem como base social os camponeses que foram praticamente esquecidos pelas outras organizações políticas de então. O MPLA assentava numa visão marxista da sociedade, via no operariado como o ponto de partida; um pouco na visão marxista-leninista, naquela altura. E os dirigentes que vieram a fundar a UNITA sabiam que havia um grupo importante de angolanos, de norte a sul, que os camponeses são cerca de 90% que estavam praticamente ostracizados, estavam praticamente esquecidos neste processo de revolução então… havia que conciliar esta visão da modernidade que a UNITA defende, como se pode ver nos seus programas, mas também 292 cabalmente às condições práticas, naturais, objectivas e subjectivas de Angola, para que o nosso socialismo sirva as 1232 populações de Angola” . Mas neste projecto de sociedade “original” não pode deixar de estar subjacente uma lógica inerente a qualquer organização política, a saber: “a produção das ideias, acerca do mundo social 1233 achar-se sempre subordinada de facto à lógica do poder, que é a da mobilização do maior número” . Como tal: “A força das ideias que [o porta-voz da. Organização·] propõe, mede-se, (…), pela força de mobilização que elas 1234 encerram, pela força do grupo que as reconhece” . Uma força que possibilita igualmente tirar proveito do maior número possível de signos e símbolos que estruturam os múltiplos espaços sociais em Angola: poder das “autoridades tradicionais”, ou da religião cristã. Certamente, uma apropriação em benefício da organização, mas, sobretudo em benefício do seu líder que corporiza todo o capital político da organização. Toda a história da UNITA se resume à história do seu líder1235. O que se deve em certa medida a um percurso, singular, e indissociável de uma acumulação de capital político. Sendo esta reforçada por: “toda a aprendizagem necessária para adquirir o corpus de saberes específicos (teorias, problemáticas, conceitos, tradições históricas,) produzidos e acumulados por um trabalho político profissionalizado que passa pelo domínio de uma certa linguagem e de uma certa retórica 1236 política”. . Mas esta trajectória de acumulação de capital político remete igualmente para a realização de feitos heróicos1237 e desemboca “naturalmente” na investidura do dom: poder simbólico adquirido ao longo de seu percurso social e político que, obviamente, passa também por um percurso de conversão de outras espécies de capitais adquiridos, em outros universos sociais, que o habilitam não só para prática política como também para a liderança1238. A, saber: tem que se partir da defesa dos interesses de uma classe que era a mais sacrificada”. Entrevista com Alcides Sakala, dirigente da UNITA, em 08/2007. 1232 Savimbi (1979: 96). Este socialismo veiculado é igualmente reforçado por um discurso de influências da negritude cultural veiculado por Senghor. Idem (93-95). Ver também UNITA - Identidade para Angola livre (1985: 25-26). Uma distinção reforçada em termos práticos pela inclusão dos elementos representativos das confissões religiosas (a igreja católica e protestante) e das “autoridades tradicionais” na vida política da UNITA como órgãos de consulta. Savimbi (1979: 209). Ver igualmente Bridgland (1988: 290). 1233 Bourdieu (1989: 175). 1234 Bourdieu (1989: 185). 1235 Jeune Afrique economie (1996: 104). 1236 Bourdieu (1989:169). “Savimbi era um grande orador. Alguém claramente dotado para usar da palavra em público”. Palla e Soares (2003: 180). Savimbi publicou três obras que se podem inserir no quadro do pensamento político que remetem não só para o capital político, mas para o capital militar. O já citado A resistência em busca de uma nova nação; “Cartilha do guerrilheiro; Quo Vadis Angola. Doc. UNITA 40 anos por Angola (2006: 34). 1237 Exílio, liderança na luta armada anticolonial, liderança na luta armada contra o regime “comunista” do MPLA. 1238 Uma trajectória que, porventura, lhe tenha incutido um espírito de missão, uma visão messiânica de um papel na história que o poderia levar ao posto mais elevado do país; a noção de que poderia conduzir o seu povo “à terra prometida”. Anstee (1997:207). 293 • capital escolar: licenciatura em Ciências Políticas na Suiça1239; • capital cultural (variante linguística): capacidade de se exprimir em várias línguas, europeias e africanas. Sendo que o domínio das línguas bantas, faladas em Angola, possibilita o reforço do capital etnolinguístico; capital que se deve também a uma (con)vivência com os signos e símbolos de poder tradicional africano1240; • capital político objectivado pelo posto de presidente da UNITA e pelo posto de Alto-comando das FALA e respectiva promoção a General de Quatro Estrelas1241; Toda esta acumulação/aquisição do capital político possibilita a (re)produção de uma reconstituição/representação, em jeito de narrativa mítica, de uma trajectória individual, em forma de sociodiceia1242. Assim, a esta acumulação de um capital político de notável, a narrativa mítica acrescenta, num contexto de real crise do campo, a saber, a guerra civil, um conjunto de elementos “épicos” que conjugam com aquela espécie de capital político um capital pessoal heróico ou profético; acto de narração do dom, que é, por sua vez, investidura do dom, cuja 1239 Brindgland (1988:74). Publicou igualmente um livro de poesia intitulado “Quando a terra voltar a sorrir um dia”. UNITA (2005:34). 1240 “Exprimia-se fluentemente em várias línguas de entre as quais oito das dez línguas nacionais, o que lhe facilitava o relacionamento com as autoridades tradicionais”. Palla e Soares (2003:44). Esta convivência tem um momento marcante com a “entrada na floresta do ritual” para sujeitar-se à circuncisão e adquirir a entrada no grupo etnolinguístico ovimbundo. Jeune Afrique (1996:107): “Com o seu grosso anel de ouro e o seu bastão de chefe, impunha respeito e manifestava sobriedade e dignidade”. Palla e Soares (2003: 43). Os seus detractores consideram que: “assumiu certos aspectos obscuros da cultura africana, a magia, o feitichismo. Eis a razão do uso da bengala, do ceptro, dos anéis, sinais com que ele quer dar uma imagem invulnerável de um super-homem”. Guerra (2002: 166). Trata-se quanto a nós de um processo de apropriação por parte de um sub campo que se estrutura em torno do capital político a título pessoal. Este processo estendeu-se à (con)vivência com os símbolos de poder religiosos; Savimbi é filho de um pastor protestante e estudou numa escola católica: liceu dos Irmãos Maristas. Brindgland (1988: 29 e 35). 1241 Guerra (2002:176); UNITA (2005:36). Talvez o único capital político de reconhecimento da UNITA, o capital de força física, materializado por um exército poderoso que não só ocupa como administra um vasto território nacional. 1242 A narrativa mítica deve-se obviamente ao facto de Savimbi deter e controlar a produção ideológica da organização, a saber, concentrar na sua pessoa o monopólio da manipulação do discurso e da acção política. Sendo assim, relativamente ao MPLA, encontramos outra diferença. Enquanto que na UNITA é Savimbi que detém o monopólio da produção ideológica, no caso do MPLA, o presidente delega esta função a um aparelho de produção ideológica; o que possibilita uma relativa autonomia perante o chefe e, por conseguinte, uma certa valorização do capital delegado. 294 simbólica epifania se consubstancia em epítetos como “Dr Savimbi”; “chefe africano”, “estratega militar” “líder carismático” e até “combatente da liberdade”1243. Trata-se, contudo, e apesar da eficácia política que ela contém, de um acto meramente simbólico, pois a efectiva e real investidura teria de culminar com a apropriação do Estado angolano, simbólica, mas efectiva epifania, que se consubstancia no cargo de presidente da república. Será com esta expectativa que a UNITA e o seu líder se apresentarão, no ano de 1992, às primeiras eleições multipartidárias em Angola. Entramos na II República1244. 4. A II República ou a nova divisão do trabalho político. (1992-1996) O processo de abertura política tivera um momento decisivo com a aprovação a 11 de Maio de 1991 da Lei dos Partidos Políticos consagrando assim de jure a nova divisão do trabalho político, a saber o multipartidarismo1245. Este novo quadro abrira espaço para a emergência de partidos políticos que procuravam apresentar-se como alternativa à configuração bipolar, delineada pelas duas forças políticomilitares, legitimada pelos acordos de Bicesse e que, em certa medida, conduzira à marginalização de facto de outros sectores da vida política angolana1246. 1243 “Et dans cette image de l’organisation, celle de son dirigeant, Jonas Savimbi, occupe une place centrale : chef charismatique et grand stratège militaire, à la foi chef africain et «docteur» de l’Université (occidental), il représenterait en cela aussi «une clef pour l’Afrique». Messiant I (2008 : 135-136); ver também UNITA (2005:35). A autora faz alusão à biografia hagiográfica produzida pelo jornalista Fred Brindgland (1988). (que temos vindo a citar). È, um exemplo de reconstituição de uma trajectória, através de uma narrativa mítica. Espelha, em certa medida, o quão se torna difícil encontrar uma narrativa rigorosa e imparcial sobre a UNITA e o seu chefe. A maioria dos escritos, não só jornalísticos como académicos, oscila sempre entre a hagiografia ou culto da personalidade, e a diabolização. Aí se vê a força e singularidade do campo político. Contudo, faça-se justiça a Christine Messiant. 12 44 Entendemos por II República o período iniciado com as eleições de 1992 e que corresponde à instituição de um novo regime político: o multipartidarismo. 1245 Angola. Constituição, Lei Eleitoral e Legislação Complementar (1994; 164-181). 1246 O acordo de Bicesse, compreendia um conjunto de documentos que iam do acordo de cessar-fogo ao protocolo de Estoril, incluindo a questão da realização das eleições multipartidárias. Este seria assinado pelo presidente da República Popular de Angola, José Eduardo dos Santos e Jonas Malheiro Savimbi, na qualidade de presidente da UNITA. O que interessa aqui salientar, no quadro da nossa abordagem sobre a bipolarização político-militar em Angola, são alguns dos propósitos enunciados por Messiant a este respeito: a ausência de conhecimento da realidade angolana por parte da troika de observadores (Portugal, EUA e URSS) que se traduzia na rigidez dos calendários relativamente aos passos político-militares a realizar antes das eleições (menos de ano e meio); o papel subalterno das Nações Unidas, nomeadamente no respeitante aos meios humanos e financeiros sabendo que para acções similares a ONU dispusera de recursos substancialmente superiores. Mas acima de tudo esta autora critica a ausência de um quadro preciso para uma política de transição que reforçasse o quadro multipartidário, em detrimento do excessivo protagonismo das duas forças político-militares. Messiant 1 (2008:87-89); Idem 1 (186-88); Idem 1 (201237); Idem 1 (239-240); ver também Anstee (1997). 295 Mas o novo clima político possibilitara também o surgimento, à luz do dia, de organizações fora do quadro político-partidário1247. Associações cívicas, organizações das igrejas, meios de comunicação social privados, sindicatos profissionais independentes, e ONGs, indiciavam uma dinâmica de emergência de “uma sociedade civil”1248. O processo de abertura política iria ganhar um novo alento com a aprovação por parte do MPLA/Estado, da Lei Eleitoral, publicada no Diário da República de 16 de Abril de 19921249; seguir-se ia, com o objectivo de implementar os acordos de Bicesse, a aprovação da Lei de Revisão da Constitucional, em 25 de Agosto de 19921250. Por fim, as primeiras eleições realizaram-se nos dias 29 e 30 de Setembro de 1992. A elas concorreram 11 candidatos presidenciais e 18 partidos políticos; mais de 91% dos eleitores inscritos participaram na votação. As mesmas foram acompanhadas por de 800 observadores, representando as Nações Unidas, ONGs, governos estrangeiros como os EUA, Rússia, Portugal, França, Bélgica, Canadá e Alemanha, a UE - União Europeia e a OUA - Organização de Unidade Africana entre outros1251. No cumprimento da Lei Eleitoral, a televisão e a rádio abriram tempos de antena para os candidatos presidenciais e para os partidos. No entanto, a maioria dos partidos nem sequer chegou a preenchê-los1252. O que demonstra, em certa medida, que os partidos emergentes se apresentavam de ponto de vista estrutural e organizacional bastante debilitados1253. E, como tal, não estavam em condições de se apresentarem como alternativa válida às duas forças políticas armadas. Excepto o caso da histórica FNLA ou do PRS - Partido de Renovação Social, a maioria destes partidos não apresentavam uma base de “sustentação popular”1254. 12 47 Vidal em Vidal e Andrade (2006: 25); ver também Hodges (2002:83). À medida que o clima de abertura se implantava as contestações iam aumentando. As contestações não eram todavia apenas de ordem política. As mesmas eram também ordem económica e manifestavam-se por vezes através de violentas greves. Vidal em Vidal e Andrade (2006: 25). 12 48 A propósito da sociedade civil ver Messiant 1 e 2 (2008) e também Vidal e Andrade (2008). 1249 Guedes e AA.VV. (2003: 241). 1250 Angola, Constituição, Lei eleitoral e legislação complementar (1994; 13-14). A Lei continha algumas alterações de entre as quais podemos salientar, a alteração da designação de República Popular de Angola para República de Angola e a alteração da denominação de Assembleia do Povo para Assembleia Nacional. 1251 Onofre dos Santos (2005:141-144). 1252 No primeiro dia, dos dez tempos de antena previstos, apenas a FDA, a UNITA, o MPLA e o PRS preencheram os seus. Albuquerque (2002: 186). 1253 Acerca das dificuldades dos pequenos partidos ocuparem o seu lugar no campo político ver Messiant 1 (2008: 114-116);idem (2008: 216-219), Ver também Lira “angola 40 anos” (s/data: 133-137). 1254 “Gravitando em torno de interesses de pequenos clãs familiares e de grupos de amigos, os partidos entretanto emergentes, não tinham qualquer base de sustentação popular, dispondo apenas de alguma capacidade de 296 Os resultados finais das eleições foram anunciados a 17 de Outubro de 1992. Nas presidenciais, nenhum dos candidatos obteve maioria absoluta: José Eduardo dos Santos obteve 49,57 % de votos e Jonas Savimbi 40,07 %1255. Deveria, pois, realizar-se uma segunda volta no prazo de seis semanas. O que não viria a acontecer. Nas eleições legislativas o MPLA obteve a maioria absoluta com 53,74% de votos, enquanto a UNITA apareceu como a segunda força parlamentar com 34,10 %de votos. Ao nível provincial o MPLA adquirira treze maiorias absolutas e a UNITA quatro. A leitura dos resultados eleitorais das legislativas organizadas por províncias permitenos tirar algumas ilações. Assim, confirma-se: • a bipolarização entre a UNITA e o MPLA, praticamente em todas as províncias, com excepção da Lunda Norte, da Lunda Sul e do Zaire. Nas duas Lundas emerge o PRS a rivalizar com o MPLA (o qual no entanto ganhou com maioria absoluta); • a “ovibundização” da UNITA que assegura a maioria absoluta nas províncias de Benguela, Huambo, e Bié; • a implantação do MPLA nos seus “feudos” tradicionais, nomeadamente em Malanje, Luanda e Bengo; • a relativização da importância do factor étnico nos resultados eleitorais, dado que a UNITA ganha também, com maioria absoluta, no Cuando Cubango, região de línguas Ocindonga e Gangela; a vitória do MPLA que se estende as regiões de Língua Kikongo, como o Uige, e a outras províncias como o Cunene e Namibe; • a provável importância da implantação político-militar durante a guerra como factor de adesão eleitoral; • a singularidade do caso de Cabinda onde se verificou um boicote às eleições de mais de 80%1256; intervenção, proporcionada por figuras à margem do regime, como Joaquim pinto de Andrade, e por jornalistas e intelectuais não alinhados com o poder instituído”. Albuquerque (2002: 185);; Anstee (1997:179). 1255 Onofre dos Santos (2005:199-208). Podemos considerar que o capital político a título pessoal vingou na UNITA. Enquanto que o capital delegado vingou no MPLA, embora predominasse o capital a título pessoal. 1256 Note-se que em Cabinda a estimativa de potenciais eleitores cifrava-se em cerca de 84.000. Os eleitores registados foram apenas de 16.79; os votos expressos foram de 9379. Jornal Jango 20 de Novembro de 1992, p12. 297 • a vitória da FNLA por um escasso ponto, relativamente ao MPLA na província do Zaire; Figura 13 - Resultados, por províncias nas eleições legislativas em Angola, 1992 Eleitores registados Votos expressos Total brancos e nulos % MPLA % UNITA % Outros % Bengo 91.921 73.727 14 71 18 Benguela 567.825 460.362 11 38 54 Bié 354.537 253.521 14 14 77 Cabinda 16.079 9379 4 74 15 C. Cubango 133.161 118.856 6 21 72 Cuanza Nte. 137.962 106.508 12 87 6 Cuanza Sul 369.150 273.438 18 74 20 Cunene 148.528 98.707 11 80 4 Huambo 467.811 359.257 11 15 74 Huila 509.167 355.603 15 64 26 Luanda 854.981 694.486 7 71 19 Lunda Nte. 141.545 106.443 20 67 7 PRS 16 Lunda Sul 87.451 65.107 21 55 4 PRS 33 Malange 327.337 216.538 18 79 11 Moxico 137.798 110.689 11 59 24 Namibe 84.918 60.716 18 67 18 Uige 318.289 226.628 19 54 30 Zaire 80.166 61.662 14 32 25 FNLA 33 Quadro elaborado a partir de: Santos (2005:199-209); e Comissão Nacional Eleitoral de Angola (2010). As percentagens estão arredondadas. http: //www.cne/estatística1992.cfm. A 19 de Outubro as Nações Unidas consideraram que as eleições em Angola foram “genericamente livres e justas e solicitaram a realização urgente da segunda volta das presidenciais”1257. No entanto os dois beligerantes, entre acusações e contra-acusações, estavam prestes a retomar as hostilidades. O MPLA não abdicara da sua legitimidade representativa e, por sua vez, a UNITA, que já estava mobilizada para a guerra, retomava um processo de legitimação pela via das armas. Os confrontos tiveram o seu início com a luta pelo controlo das cidades, nomeadamente Luanda e 1257 298 Comerford (2005:XV); Anstee (1997: 318). Huambo1258. E, mais uma vez, a acção política das duas forças político-militares volta a estar submetida à lógica dos aparelhos militares. Apesar da complexidade da nova situação e da sua dimensão paradoxal, podemos considerar que, pelo menos no plano formal, se instituíra em Angola uma nova ordem. A 26 de Novembro de 1992 tomaram posse na Assembleia Nacional 150 dos 220 deputados eleitos nas eleições de Setembro/Outubro1259. Por fim, a 12 de Março de 1993, 28 de Maio de 1993 e 4 de Junho de 1993 são publicados nos respectivos Diários da República, o Regimento Interno da Assembleia Nacional, a Lei Orgânica do Estatuto dos Deputados e a Lei Orgânica do Estatuto da Assembleia Nacional1260. Esta nova ordem sairia reforçada quando os confrontos, entre MPLA e a UNITA, foram pontualmente interrompidos, graças ao acordo de paz assinado em Lusaka em fins de Novembro de 1994. Esta paz relativa iria durar até 1998, ano em que se reiniciou a guerra1261. 4.1 Estado das relações de força no campo político angolano em 1996 Em 1996, Angola apresenta um quadro singular. O multipartidarismo coexiste com uma situação de tensão entre a guerra e a paz em que o maior partido da oposição é simultaneamente oposição parlamentar e significativa oposição militar1262. O processo eleitoral permitiu uma nova 12 58 Em Luanda os confrontos tiveram o seu início em 31 de Outubro de 1992, e culminaram com a vitória do MPLA, graças ao armamento de civis pelo governo: nesta batalha morreram Salupeto Pena, Jeremias Chitunda e Alicerces Mango, figuras proeminentes da cúpula da UNITA. Messiant (2004: 20) considera que: “Os acontecimentos que se seguiram foram e continuam a ser controversos mas provas documentais e orais permitem que sejam assim descritos: enquanto se discutiam as condições para a realização da segunda volta, a UNITA montava a sua máquina de guerra por todo o país; o governo denunciou uma tentativa por parte da UNITA de tomar o poder na capital, e organizou um “golpe preventivo” em Luanda e em várias capitais provinciais. Como a UNITA detinha armas legais e ilegais em Luanda, deram-se violentos confrontos e milhares de pessoas terão morrido em três dias”. Messiant em Meijer (2004: 20). No que respeita às outras regiões do país a UNITA ocupara rapidamente cinco capitais provinciais: Caxito, Huambo, Mbanza Congo, Ndalatando e Uige. Em meados de Novembro, 57 dos municípios estavam nas mãos da UNITA. Hodges (2002:32); Vines (1995: 29-30). 1259 Somente a partir de 11 Abril de 1997 é que a maioria dos deputados da UNITA ingressou na Assembleia. Até esta data os deputados presentes no parlamento oscilaram entre os 6 e 10. 1260 Reis (2002:93). 1261 Das várias medidas do protocolo de Lusaka podemos assinalar: o restabelecimento do cessar-fogo, a conclusão da formação das Forças Armadas Angolanas, “incluindo a desmobilização”; e a constituição de um Governo de Unidade e Reconciliação Nacional - GURN (que só tomaria posse a 11 de Abril de 1997). Note-se que tanto José Eduardo dos Santos (presente na cerimónia) e Jonas Savimbi (ausente) não subscreveram o acordo. Os signatários foram Faustino Muteka, por parte do MPLA e Eugénio Manuvakola por parte da UNITA. O que era prenúncio de uma paz bastante relativa. 1262 Embora tivesse subscrito o Protocolo de Lusaka, a UNITA ainda não tinha desmobilizado o seu exército em 1996. Hodges (2002: 33-34); Vines (1995: 32-33). 299 divisão do trabalho político, com a entrada de novos partidos na Assembleia Nacional. No entanto, os resultados eleitorais e o número de deputados na Assembleia confirmam o cenário bipolar em torno do MPLA e da UNITA. Figura 14 - Partidos e número de deputados representados na Assembleia Nacional MPLA UNITA PRS FNLA PLD PRD AD PSDA PAJOCA FDA PDP-ANA PNDA 129 70 6 5 3 1 1 1 1 1 1 1 Quadro elaborado a partir de Marques 1993 (138-139); Comissão Nacional Eleitoral de Angola (2010). A leitura do quadro permite confirmar o que já dissemos: o MPLA tem a maioria absoluta com 129 deputados e a UNITA, com 70 deputados, é o segundo partido mais votado. Ou seja, as eleições confirmaram a configuração bipolar do campo. Mas esta configuração não é simétrica pois, do ponto de vista do capital político e militar, as duas organizações tinham atingido objectivos distintos. O MPLA conseguira uma confortável maioria absoluta, reforçando assim a sua legitimidade no respeitante ao controlo do aparelho de Estado. Esta legitimidade fora reforçada quando o Estado norte-americano presidido pelo democrata Bill Clinton decidiu reconhecer o governo de Angola em Maio de 19931263. De ponto de vista militar, o MPLA tinha revertido a correlação de forças a seu favor. Em 1994, tinha conseguido expulsar a UNITA das cidades que ela tinha ocupado nos anos de 1992 e 19931264. Assim, este reforço do capital político e militar possibilitou ao MPLA conduzir sozinho um processo de recuperação autoritária do multipartidarismo1265. A UNITA vive um período de crise interna, apesar de ter conseguido eleger 70 deputados para a Assembleia Nacional1266. Com efeito, desde 1989 que a coesão interna da UNITA sofrera os primeiros abalos. No início de 1992, dois dissidentes da organização e antigos membros da direcção da UNITA, Nzau Puna e Tony da Costa Fernandes tinham acusado a UNITA de assassinar outros dirigentes por ordem de Savimbi. Estas duas deserções tiveram 1263 Silva (2002: 145). Vines (1995:27-39). 1265 Ao longo do nosso trabalho de campo em 2001 de forma irónica considerava-se que o regime de partido único fora substituído pelo regime do “partido sozinho”. 1266 Segundo Vines (1995: 33). A direcção da UNITA estava em crise e estava dividia entre aqueles que defendiam o protocolo de Lusaka e os que preconizavam a continuação das hostilidades. Os deputados da UNITA só tomariam posse na Assembleia Nacional no dia 11 de Abril de 1997. Ver também entrevista de Savimbi em Jeune Afrique (economie), hors série (1996: 40-59). 1264 300 provavelmente efeitos na desvalorização do capital político da UNITA e do seu chefe. Mas também o capital militar da organização sofrera alguns abalos, não só devido à retoma da iniciativa militar por parte das tropas governamentais, a partir segundo semestre de 19941267, mas também porque alguns generais de peso na hierarquia militar haviam aderido ao governo dirigido pelo MPLA. Provavelmente, a participação de figuras como Adriano Mackenzie, ou Geraldo Sapichengo Nunda, terá contribuído para uma diminuição do capital militar da UNITA1268. Um outro factor, este de ordem externa, iria contribuir para uma diminuição do capital de reconhecimento da UNITA. Em Setembro de 1993, o Conselho de Segurança das Nações Unidas declarou um embargo de armas à UNITA1269. Seria portanto num clima de revés político e militar que a UNITA assinaria o Protocolo de Lusaka. Todavia, em 1996, ainda tem a maior parte da sua estrutura militar intacta e está ainda em condições de prosseguir a guerra. Tal devese ao facto de ter assegurado o controlo administrativo e militar das ricas regiões diamantíferas, situadas nas províncias da Lunda Norte e Lunda Sul1270. No entanto a UNITA nunca mais teria capacidade militar para reverter a correlação de forças a seu favor e assim levar a cabo o seu principal objectivo político: a apropriação do Estado. Quanto aos outros partidos, estruturalmente fracos, pelas suas características, acabam por funcionar no sentido de animar um sistema político mutilado. A FNLA não parece ter colhido o fruto da sua história, nomeadamente no respeitante a um passado de luta armada e às afinidades etnolinguísticas. Ao contrário do que se esperava, o factor étnico e regional não jogou a seu favor, pois, conseguiu eleger apenas 5 deputados. Um número bastante reduzido para um partido que, devido a sua história de luta anticolonial, se apresentara como uma das grandes alternativas às duas principais forças políticas. O PRS - Partido Renovador Social conseguiu, surpreendentemente, eleger 6 deputados. A maioria dos seus votos concentrou-se nas duas Lundas. O que pode remeter para um apelo a sentimentos etno-regionais1271. 1267 Simbolicamente marcado pela reconquista do Huambo por parte das tropas governamentais no início de Novembro de 1994. Correia (1996: 86); Guerra (2002:319); Vines (1995: 33). 1268 Semanário Expresso de 7 de Janeiro de 1995. 1269 Human Rights Watch (1999:134); Silva (2002: 297-302). 1270 Hodges (2002: 221-244). 1271 “Houve, por exemplo nas Lundas uma divisão entre o MPLA (…) e o PRS este sim é mais ou menos regionalista, apelando ao factor étnico, aí sim, jogou e funcionou em boa parte. Entrevista com Artur Pestana “Pepetela” em 09/2001 301 O PLD - Partido Liberal Democrático é liderado por uma mulher e assume-se como Liberal. E, tem a particularidade de ter conseguido três lugares no parlamento. Uma outra particularidade é o facto de os três elementos que compõem a sua bancada serem todas do sexo feminino. À soma dos deputados destes três partidos podemos acrescentar o número de sete deputados presentes na Assembleia e que correspondem ao único deputado que cada um dos restantes sete partidos conseguiu eleger. Uma última constatação: a representação multipartidária na Assembleia Nacional é do ponto de vista formal um forte indicador de uma nova ordem, político-jurídica, instituída: o multipartidarismo. Nova ordem que adquire um significado especial nesse acto de magia social que é a investidura da figura do deputado. Acto simbólico de alargamento do campo mas que, todavia, não consegue ocultar o efectivo e real estado de relações de forças do campo político angolano. Será, portanto, tendo em conta este efectivo e real estado de relações de forças que nos debruçaremos acerca da denominada Lei do Bilhete de Identidade. 5. A Lei do Bilhete de Identidade. Ou a reificação jurídica do estigma (?) A abertura política não travara o processo de degradação económica e social que estava em curso desde a independência. O que significa que a aprovação da Lei do Bilhete de Identidade é indissociável do contexto de crise que se vivia no país. 5.1 Esboço contextual. (1992-1996) Entre 1992 e até 1996 a crise económica e social, em Angola, assumira proporções gravosas1272. A inflação galopante era apenas um dos múltiplos indicadores de um endémico estado de crise económica que se reflectira, não só no agravamento das condições de vida da maioria da população angolana mas, também, num significativo aumento da criminalidade1273: 1272 Esta nossa contextualização abrange sobretudo o espaço social sob tutela do governo do MPLA. Mais especificamente Luanda onde funciona o novo Parlamento. Mas tal delimitação deve-se sobretudo ao facto de que embora se possa considerar o papel da UNITA nesta dinâmica, pois mantém em funcionamento a sua máquina militar, a realidade é que este contexto está obviamente inserido no quadro de um aparelho de Estado que é ocupado pelo MPLA. 1273 Tali (1997: 88); Rocha (2001: 34-35). Rocha (1999: 15-20). Acerca da criminalidade ver também Albuquerque (2002: 144-147). 302 “Anos de declínio económico e de muito pouco investimento, nos sectores sociais, a par de um rápido crescimento populacional de deslocações da população e da urbanização, empurraram milhões de angolanos para os limites da sobrevivência. No extremo oposto, o desmantelamento do antigo sistema socialista, a partir do final da década de 1980, e a sua substituição por uma forma desregrada de capitalismo, distorcida pelo clientelismo, criaram oportunidades de enriquecimento a uma escala inimaginável para uma pequena elite politicamente bem 1274 colocada” . Este estado de anomia agravou-se ainda mais com o recomeço do conflito militar (fins de 1992 até Novembro de 1994) entre o MPLA e a UNITA1275. À crise económica juntou-se um clima de revolta social fruto em certa medida de um conjunto de expectativas, frustradas, que as populações tinham criado aquando das eleições. Estes ressentimentos das populações abarcavam igualmente militantes e simpatizantes do MPLA. Entre Abril e Maio de 1996, os riscos de uma revolta social eram cada vez mais iminentes1276. Para tentar conter os protestos cada vez mais constantes das populações, o governo reactivará os mecanismos de repressão, contra os “agitadores”1277. O pretexto: o conluio destes com uma determinada força política, a saber, a UNITA1278. No entanto a pressão social atingira uma tal intensidade que o presidente da República fora forçado a demitir o então primeiroministro Marcolino Moco que havia sido indigitado para o cargo em finais de 1992. O que indiciava uma provável situação de crise interna que atingira as cúpulas do MPLA1279. Mas ao contexto de profunda tensão social iria associar-se um novo fenómeno sóciodemográfico bastante heterogéneo. Com efeito, desde os Acordos de Bicesse e da abertura política que se assistira a entrada no país de uma população europeia e asiática. Esta nova população iria engrossar universos sociais onde havia, de facto, num quadro de profundas desigualdades, “coincidência” entre bens 1274 Hodges (2002:42). Um outro autor apresenta o seguinte quadro em Angola no ano de 1992: “A abertura política em 1992, surge numa altura profundamente marcada pela crise socio-económica; inflação galopante, aumento de crimes, banditismo, flagelo do quotidiano marcado por uma luta tremenda de sobrevivência. Nzatuzola (1997: 54). A isso tudo podemos acrescentar uma galopante corrupção que se estende da base social ao topo da nomenclatura. Tali (1997: 96). É óbvio que esta dinâmica é em muito devedora à situação de guerra civil que assolou o país. 1275 Um conflito que atingira proporções dantescas não só no que concerne ao número de vítimas das populações (centenas de milhar) mas igualmente a destruição de várias cidades Hodges (2002: 32-33); Meijer (2004: 21). 1276 Messiant 2 (2008:286); Tali (1997: 95). 1277 Para justificar a repressão sobre os revoltosos, o governo desenterrou uma velha lei de 1978 sobre os crimes contra a segurança do Estado (lei nº7/78). Hodges (2002: 120). 1278 Tali (1997: 98). “Em Junho de 1996, com uma taxa de inflação de quase 3000 por cento ao ano e uma série de greves feitas por funcionários do governo, este temia graves levantamentos da população em Luanda, iniciando então um policiamento agressivo e utilizando a sua Polícia de Intervenção Rápida”. Human Rights Watch (1999: 65). 1279 Tali (1997: 88-95); Messiant 2 (2008: 286). 303 de reconhecimento social e características somáticas, reavivando assim memórias de um arbitrário colonial aparentemente adormecido. Tais mudanças morfológicas da população urbana, sobretudo em Luanda, prestaram-se a um reavivar das tensões raciais: “Bom, em 91-92, com a fase da abertura e da mudança sucede uma outra coisa. E aqui já não estou a falar como historiadora mas como observadora interessada. Dá-se o regresso de muita gente que tinha ido embora de Angola e uma boa parte desta gente era não negra, dá-se um afluxo de gente europeia e até não europeia, também asiática que nunca tinha havido aqui, mas europeia, nomeadamente portuguesa, e eu volto a ver em Luanda, espaços cada vez mais claros e mais claros porque eram frequentados por uma boa parte de estrangeiros mas também por um certo número de angolanos com algumas possibilidades económicas, nem que seja para ir tomar um café, porque é preciso dinheiro para isso e não é pouco. E evidentemente a parte negra destes frequentadores destes espaços cada vez era menor, mesmo que ela fosse crescendo ela era proporcionalmente menor por causa dessas novas correntes de chegada de gente mais clara quer fossem angolanos que tinham ido embora, quer fossem gente que nunca cá tinha estado. Donde as questões da cor da pele voltaram a ser muito, muito, visíveis associadas a questões de à vontade económico e muito... usadas quando se queria chatear alguém, quer dizer, voltamos a preocuparmo-nos muito em saber quantos 1280 mais claros ou mais escuros estão no sector C” . Mas este ressurgimento das propriedades rácicas/características somáticas merece também ser perspectivado tendo em conta uma nova lógica de funcionamento do campo político angolano. Com efeito, a entrada na II República caracterizara-se por uma relativa liberdade de expressão, que iria contribuir para o reavivar de submersas construções identitárias1281. Construções que outrora estavam submetidas aos imperativos de uma dinâmica intensiva de aparelhização no quadro do combate militar1282. Adquire assim grande importância, na luta política, a produção ideológico-identitária. A categoria raça não irá fugir a esta regra1283. Em 1992, em plena campanha eleitoral e como tal de mobilização do maior número de votantes, a UNITA através do seu líder exemplificava um discurso de reificação do velho estigma da relação entre privilégios e a categoria mestiço: “Angola primeiro, os angolanos primeiro. A UNITA nunca poderá maltratar os mestiços pois eles são sangue do nosso sangue. Mas o governo de Angola deveria ser o reflexo da vontade do povo. Os mestiços deviam identificar-se com o nosso combate. Se nós devíamos aceitar 1280 Entrevista concedida pela historiadora Maria Conceição Neto na qualidade de observadora interessada em 09/2001. 1281 Um autor considera que: “O processo de democratização da sociedade angolana iniciado em 1992 teve, pelo menos o mérito, de trazer ao debate estes problemas artificialmente adormecidos e silenciados”. Pinto em Vidal e Andrade (2006: 119). 1282 O contexto de paz relativa e de liberdade da palavra irá obviamente reactivar a mobilização das massas nas estratégias de inclusão e exclusão. 1283 No que respeita ao uso de categorias etno-regionais ver, entre outros, Messiant 1 (2008); Tali (1997) e o mesmo Tali em Vidal e Andrade (2006:175-205). 304 que o mestiço, porque teve mais oportunidades, seja o detentor do poder, nós estaríamos a perpetuar a obra colonial portuguesa” 1284 . Um outro momento de (re)produção ideológico-identitária será protagonizado pelo subcampo político representado na Assembleia Nacional. Em nome de uma legitimidade conferida pelo plebiscito, sectores do MPLA tomarão a iniciativa de fazer aprovar no parlamento a menção raça no Bilhete de Identidade. As razões de tal iniciativa ainda são pouco esclarecedoras. No entanto esta última acontece num contexto de crise económica e social e num quadro de nova divisão do trabalho político que possibilitara a produção ideológico-identitária1285. Mas a adopção desta acontece também num quadro de lutas internas que se desenrolam no seio do próprio MPLA; lutas que frequentemente gravitam em torno de postos e privilégios1286. Será portanto num contexto de crise económica social mas igualmente de luta inter e intra partidária que a denominada lei do Bilhete de Identidade será debatida e aprovada pela Assembleia Nacional no dia 26 de Junho de 1996. Trata-se agora de tentar saber se essa consagração jurídico-política, das propriedades rácicas/características somáticas pretende fundamentar um sistema de classificação em que categorias como negro, misto ou branco adquirem somente uma mera função identificadora. Ou se, pelo contrário, e tendo em conta uma conjuntura de crise, remetem para uma divisão social em que determinadas classificações, arbitrariamente atribuídas, sejam identificadas como qualidades sociais. 5.2. O debate na Assembleia Nacional sobre a lei do BI visto pela Acta da Assembleia Nacional Antes de nos debruçarmos sobre o debate, convém apresentar alguns esclarecimentos. A discussão do projecto de Lei sobre o Bilhete de Identidade foi aprovada como Ordem do Dia por 96 votos a favor, 17 votos contra e 5 abstenções. O que significa que estavam presentes 118 1284 Africano (1995: 25). Nomeadamente na luta inter partidária. 1286 Considera Messiant que sectores do poder, envolvidos em lutas internas exacerbadas por interesses económicos, vão com cada vez mais insistência e com o manifesto aval do Presidente da República utilizar a questão racial para desviar os ressentimento contra o poder, retomando assim a velha questão do lugar dos mestiços e brancos na sociedade angolana eternamente posta em causa por sectores do MPLA mas também pela UNITA e a FNLA. Messiant 2 (2008: 285-287); Ver igualmente Tali (1997). 1285 305 deputados, num total de 156 deputados1287. Dos restantes 38, constam 17 ausências justificadas e 12 injustificadas. O que perfaz no total de ausências 29 deputados1288. Todavia ainda há 9 deputados que não tendo marcado presença na Assembleia não constam das listas, ora referentes às ausências justificadas ora às ausências injustificadas. E, acresce que, pelo que consta da acta, a lei foi aprovada apenas por 111 votos a favor, nenhum voto contra e nenhuma abstenção1289. Da proposta de lei apresentada pelo governo não constava o elemento de identificação raça. Isto foi-nos confirmado por um deputado da maioria: “Quanto à lei do BI, o projecto de lei apresentado pelo governo, ministério da Justiça, não tinha esta clausula e foi por proposta de um deputado da maioria que o debate surgiu e irrompeu, ele teve a adesão de muitos membros da bancada da maioria e de muitos votos da oposição. E durante o debate na Assembleia, o Ministro da Justiça que nem sequer é uma figura do MPLA, foi dos que mais defendeu que essa menção à raça no BI não fazia sentido, era uma 1290 coisa anacrónica” . O mesmo nos foi afirmado por uma outra fonte: “ O que me foi dito, é que era preciso mudar o BI. Então foi feito uma lei que ao ser discutida na Assembleia, mereceu por parte de um deputado do MPLA - a mim foi me dito que era o Xiribimbi, actualmente Governador do Namibe, depois mais tarde já me disseram que não foi ele. De qualquer modo havia uma tendência no MPLA que defendia que era preciso estar especificado a raça para efeitos estatísticos. Isso deu aso a uma certa discussão, houve pessoas que não 1291 concordavam, mas a lei acabou por ser aprovada” . A apresentação da Lei do Bilhete de Identidade Nacional foi feita pelo então ministro da Justiça Paulo Tchipilica. Na dita apresentação, este sublinha as razões do projecto. De entre as quais, podemos assinalar a facilidade de falsificação do vigente Bilhete de Identidade e daí a necessidade da sua informatização. Pelo conteúdo da acta é possível constatar considerações jurídicas e técnicas, justificativas do projecto, que vão desde a terminologia para definir a nomenclatura à própria estrutura do Bilhete de Identidade, nomeadamente os critérios de leitura codificada do mesmo. Todavia, aquilo que nos interessa salientar é a discussão em torno do artigo 4º no respeitante “aos elementos de identificação do titular” que devem constar no Bilhete de 1287 Os outros restantes deputados da UNITA só iriam tomar posse a 11 de Abril de 1997. Os deputados João Maiomona e António João Maichicungo e Jaime António Chimguimbo constam tanto da lista das presenças como das ausências. Ver anexos, nº 30 1289 Seria interessante encontrar as razões de tais discrepâncias, mas para tal precisaríamos de mais informações que não tivemos a possibilidade de recolher. Numa entrevista feita por nós um deputado afirma ter votado contra, provavelmente não contra a lei, mas contra a aprovação da mesma como Ordem do Dia. Entrevista concedida por Costa Andrade “Ndunduma” em 08 /2001. 12 90 Entrevista com o então deputado do MPLA João de Melo em 08/2001. 12 91 Entrevista com Artur Pestana “Pepetela” em 09/2001. 1288 306 identidade, nomeadamente aquela que diz respeito à proposta de inclusão da categoria raça como “elemento de identificação do titular”. Podemos considerar a existência de duas correntes, que são independentes das suas filiações partidárias: os que estão a favor da inclusão da categoria raça e os que manifestam a sua discordância com tal medida. 5.2.1. A raça no BI entre a inclusão e a exclusão Os discursos que, seguidamente, vamos caracterizar foram, pois, produzidos pelos deputados durante o debate parlamentar que se desenrolou na Assembleia Nacional, e que é possível acompanhar pela acta da Sessão de 26 de Junho de 1996: • O argumento predominante dos defensores da inclusão, é o da função identificadora do BI1292. Deparamo-nos portanto aqui com um discurso que remete para um princípio de identização com a função identificadora; O primeiro deputado a intervir, do MPLA, começa por justificar a necessidade da inclusão da categoria raça no BI pela relação entre o valor do mesmo e o maior número de elementos de identificação. Muito embora comporte alguma ironia, os exemplos dados pelo mesmo, são de defesa de inclusão das três categorias raciais no BI: a branca, a mestiça e a preta: “Ora não entendo porque aqui não há de vir a raça, o senhor Ministro disse que as catorzinhas1293 é que tem lá no artigo 7º... que há umas catorzinhas que dizem então o sexo e tal... mas é preciso que fique lá bem assente e até eu propunha que as velhas do lanche... do branco sujo, o mulato escovado ou o preto kilombo kiassa, devia também constar, é essencial, [.....] que esteja bem definido, a raça de um indivíduo assim como o sexo, [....] há muita menina que anda de cabelo rapado e muito rapaz que até tem caracóis e trancinhas, e isto dá uma certa confusão 1294 principalmente para mim que tenho que virar a cabeça e as vezes não merecia porque é um rapaz” . A cor da pele justifica para o deputado a inclusão do elemento raça: “E, sobre a cor vou terminar por dizer que na minha certidão de idade, baptizado (…), consta, baptizei um indivíduo (….) de cor parda calculem que eu até [sou pardo] não é isso que até que me tenha pesado porque o meu comportamento tem sido sempre dum indivíduo incolor, insípido e as vezes um pouco doloroso, muito obrigado” 1295 . 1292 A sigla BI será também utilizada, por nós para designar, o Bilhete de Identidade. Eufemismo para designar as mulheres que já atingiram a puberdade. Com ressalva, podemos considerar uma faixa que vai dos 14 anos até 18 anos. 1294 Acta nº1 de 26 de Junho (1996: 18). 1295 Acta nº1 de 26 de Junho (1996: 18-19). 1293 307 Alinhando no mesmo diapasão, outro deputado do MPLA acrescenta ao argumento identificativo «razões de Estado» e de ordem «política e sociológica»: “Eu corroboro o que ele referiu a este aspecto e gostaria apenas referir de que, se mais não houvesse, bastariam os fundamentos de natureza estatística e de gestão estatal e política-sociológica para que este elemento raça estivesse explícito no Bilhete de Identidade, independentemente de o mesmo apresentar como foi referido pela Sua Excelência o Ministro da Justiça um campo informático para o efeito e mesmo este campo informático para o efeito, também costumava ser comum em alguns países apresentar lei, pode não ser no Bilhete de Identidade, na lei sobre estatística ou em outra qualquer que descodifique os tais dígitos, a sociedade tem que saber o que é que estes dígitos significam e nesta lei do Bilhete de Identidade nós não temos artigo nenhum que venha a descodificar o campo reservado para a numeração do Bilhete de Identidade e como foi referenciado vai ao fim e ao cabo aglutinar uma série de elementos de informação que constam ou não do Bilhete de Identidade. Outra questão se prende com a própria entidade [por: identidade], tem haver com a necessidade de estabelecer neste Diploma um articulado que manda repor em relação aos demais elementos de identificação todos os elementos que o Bilhete de Identidade consagra, isto é, depois da independência em 1975, não sei se por força da lei ou foi apenas por uma razão meramente política, alguns elementos de identificação foram suprimidas entre os quais por exemplo o da raça, hoje no registo não sei se pôr a raça e tal como o deputado Mac-Mahon, eu fui baptizado numa missão católica e consta a minha raça, mas o meu filho que também já foi baptizado já não consta, porque nasceu agora na década de 80, então com a introdução desse novo Bilhete de Identidade e se for aceite a incorporação e como está subjacente no bilhete o elemento raça é importante que também fique claro no bilhete a necessidade de repor em todos os documentos de identificação em que venham colher elementos pessoais de identificação o elemento raça e todos os demais elementos que constam do Bilhete de 1296 Identidade” . Um outro deputado do MPLA assume a defesa da inclusão da referida categoria de um modo que torna notório o quanto a noção de raça, associada às características somáticas está interiorizada e naturalizada nas práticas quotidianas: “eu [sou] apologista que de facto deve constar o problema da raça no Bilhete de Identidade, deve figurar a questão da raça no Bilhete de Identidade agora se há outros porquês, isto já é um problema posterior, nós podemos analisar, mas sou desta opinião, muito obrigado 1297 senhor Presidente tenho dito” . O deputado do PDP-ANA (Partido Democrático para o Progresso da Aliança Nacional Angolana) apresenta um argumento similar: “eu penso que a questão da raça é fundamental (…), a raça 1298 deve constar neste projecto do Bilhete de Identidade, por várias razões que não me interessa aqui focar” O deputado do PSDA- (Partido Social Democrático de Angola) . manifesta a sua concordância argumentando com a função de identificação, e refutando quaisquer intenções de 12 96 Acta nº 1 de 26 de Junho (1996: 19). Acta nº 1 de 26 de Junho (1996: 22). 1298 Acta nº 1 de 26 de Junho (1996: 23). 1297 308 arbitrário racial. Para tal, socorre-se de exemplos de outros países. O mesmo reforça a sua argumentação com um princípio de identização/inclusão através do recurso à categoria nação: “Quando se levanta a questão das raças nós não podemos levar essa palavra em outros sentidos, porque o que me parece é que nós queremos levá-lo num outro sentido (o racismo), eu penso que o sentido não é esse, portanto, nós de antemão sabemos que o nosso país é multisectorial (temos negros, mestiços e temos brancos), se for introduzida a questão de raças nós podemos achar ofensivo, mas essa é uma forma de controlo, eu estive em Cuba e vi o Bilhete de Identidade do cidadão cubano está lá escrito raça, se é de raça negra é de raça negra, há um outro camarada também que levantou a questão dos Estados Unidos também eu estive lá e vi o Bilhete de Identidade desta forma, mas quer dizer, nós temos que ter aquela consciência que somos todos angolanos de Cabinda ao Cunene, ninguém é 1299 ofendido tenho dito obrigado” . Um outro deputado do MPLA parte do pressuposto de que a cor do indivíduo define a sua raça (princípio do jus coloris). O mesmo considera que a inclusão da raça no BI obrigará os indivíduos a assumirem-se tal como eles são na «realidade»: brancos pretos e mestiços. Uma assumpção que adquire força de lei com a inclusão da raça no BI: “A questão das cores ou raças, são muitas raças, podem entrar sim senhor, porque são só três não pode haver complexos, se sou mulato, sou mesmo mulato, se sou branco, sou branco, se sou preto sou mesmo, é assim, não há complexos, porque amanhã um indivíduo vai dizer olha você é branco mas ele é preto e não vai aceitar, a culpa será da Assembleia que concordou, não é nada disso vamos colocar as coisas no seu lugar”1300. Uma deputada do MPLA, relacionando raça e cor, defende a inclusão desta categoria no BI pois, considera a existência de “várias raças” em Angola: “a inclusão da raça é indispensável. Senhor Presidente, insisto também que seja incluída, pois que identifica na realidade a cor do cidadão. Sabe-se que Angola é 1301 um país multirracial, logo a sua importância” . Uma outra deputada domesmo partido, é exemplo do quão a noção de raça está interiorizada, ao definir quais são as taxinomias que devem constar no Bilhete de Identidade: “Eu (…) acho que devíamos ter três tipos: raça branca, mestiça e negra” 1302 . 12 99 Acta nº 1 de 26 de Junho (1996: 25). A afirmação do deputado está correcta. Pudemos confirmar através de uma fonte fidedigna que o elemento raça consta no BI cubano. Sendo que as categorias identificadoras são: raça branca, raça negra, raça mestiça. No entanto há uma diferença Trata-se do facto de a atribuição da “identidade racial” ser uma opção não de Estado, ou seja não são os funcionários da repartição que “atribuem a raça”, mas, sim o indivíduo que preenche o formulário é que determina a sua categoria. Acontece o mesmo nos Estados Unidos. Mas neste país há outra diferença: a categoria raça tem um significado étnico e geográfico (black american, indian native, asian pacific, hispanic, white etnic). Petruccelli (2002:533-561). No caso angolano é o funcionário da repartição que irá definir a raça a atribuir. António Tomàs quando a “raça rasteira o Brasil” jornal Angolense 13 a 20 de Outubro de 2007. (2007: 28). Esta constatação fora confirmada por nós em 2003, quando tratamos do processo de aquisição do Bilhete de Identidade. 1300 Acta nº 1 de 26 de Junho (1996: 27). 1301 Acta nº 1 de 26 de Junho (1996: 27). 1302 Acta nº 1 de 26 de Junho (1996:29). 309 Outro deputado do MPLA justifica a inclusão da raça no BI sustentando-se na história. Todavia, o mesmo esquece o carácter arbitrário de um sistema de classificação produzido pelo sistema colonial, pois retém apenas a função identificadora: “são de apoiar que a expressão raça conste do bilhete de identidade, no mesmo artigo 4º. “Queria acrescentar que (…) constava noutro bilhete, o bilhete que o colono nos deu noutros tempos, constavam sinais particulares, falava-se de olhos castanhos, cabelo carapinha, creio ser alguma coisa assim. Portanto, deste bilhete, sugiro [que] deve constar, essas características ou esses sinais 1303 particulares “ . Um deputado do partido da maioria, socorrendo-se do argumento de função identificadora do BI propõe não só a inclusão da categoria raça mas também da categoria tribo (eufemismo para definir o grupo etnolinguístico). Outra curiosidade: o mesmo exclui as taxinomias branco e mestiço da noção de grupo etnolinguístico. Deparamo-nos aqui perante uma definição de etnia assente no critério racial: “tenho a pedir uma informação relativamente a um elemento que, eu, considero muito importante de identificação [da] pessoa, é claro, não abrange todo o cidadão Angolano, nem todas as classes mas é respeitante à raça negra, existe é a questão de tribo. Tribo (…) eu penso que é uma questão importante (…) acho que é uma forma de identificação. (….) E então, se nós formos pela filosofia de que a Identificação não é para mal, é simplesmente para completar a Identificação de um indivíduo, tribo também devia 1304 constar. Essa é a sugestão” • . Para os que se opõem à inclusão da categoria raça no BI, a fundamentação centra-se na (in)definição do conceito de raça, e na dificuldade em classificar grupos sociais em função das características somáticas, nomeadamente da cor da pele; Um deputado do MPLA realça o carácter subjectivo da definição de raça socorrendo-se de um exemplo: os Estados Unidos da América. Mas o mesmo reforça a sua argumentação com a incompatibilidade entre categorizações práticas e a proposta trinitária de categorização jurídica. E, será com auxílio de uma figura de estilo, a ironia, que o deputado sustentará a sua intervenção: “Em relação a introdução da raça no Bilhete de Identidade, eu não estou de acordo, porque a noção de raça hoje é uma coisa um bocado.... Neste momento não é assim é assim tão taxativa, tão definida, como nós estamos a pensar e para exemplo disso basta só lembrar que nos Estados Unidos, quem não é branco é negro e, eu preferia que em vez de raça que se quer por, se pusesse cor e nessa altura, então, punha-se as várias cores, os vários matizes que 13 03 1304 Acta nº 1 de 26 de Junho (1996: 30). Acta nº 1 de 26 de Junho (1996: 30. 310 constituem a nossa população e para terminar, eu queria apenas também dizer que esta questão das raças é de tal maneira indefinida, porque eu queria ler com a devida vénia do meu colega, as raças mais ou menos conhecidas aqui no nosso país, negro, fulo, cafuzo, fronteiras perdidas um...quer dizer os que estão juntos dos negros, mulato, cabrito, fronteiras perdidas dois os que estão perto dos brancos, kilombo kiassa, albino mukotó, esbranquiçado, 1305 branco do caraças e conforme os casos...” . O deputado do PAJOCA (Partido da Aliança da Juventude, Operários e Camponeses de Angola) manifesta a sua discordância da inclusão da raça no BI tendo em conta o carácter subjectivo dessa noção; carácter subjectivo que se traduz na dificuldade em classificar grupos1306. O mesmo considera que a identificação cromática não resolve o problema da subjectividade classificatória. Mas, para contrapor o fundamento da inclusão da categoria raça, o deputado socorre-se de um argumento da de peso. A jurisprudência, a saber, o carácter anticonstitucional da lei: “eu também não concordo que este elemento seja inserido no Bilhete de Identidade novo, na medida em que hoje falar de raça ou de etnia é difícil encontrarmos esta separação, (....) há uma animosidade sem precedentes de raças, seja americano, como africanos asiáticos, etc. etc. e alem disso se optar pela identificação da cor também levaria o problema que já foi lido ai, portanto, num número indeterminado de cor da pele que os cidadãos tem, portanto, eu penso que se evite este problema porque nada mais adianta constar no BI a raça, aliás a própria constituição no artigo 18º, diz nos que «os cidadãos perante a lei são iguais, tem os mesmos 1307 direitos e deveres» não sei qual seria o fundamento para a distinção” . Por fim, o ministro da Justiça, em jeito de síntese, tomou a palavra e debruçou-se acerca das múltiplas questões levantadas pelos deputados. Iremos salientar as considerações, do mesmo, relativamente à categoria raça. É possível descortinar no discurso produzido pelo ministro a convicção de que a inclusão da categoria raça no BI, “à luz da modernidade vigente”, não se coaduna com a função identificadora do BI. O ministro exemplifica com os casos da África do Sul e da Namíbia1308. O mesmo não deixa de reforçar o seu argumento com o facto de a categoria raça estar inserida na leitura codificada do BI e como tal não necessitar de estar explícita no Bilhete de identidade. Todavia, sublinha que as suas convicções e o “anacronismo” da inserção da categoria raça no BI não podem suplantar a razão de estado que é a soberania parlamentar: “O conceito moderno de raça, mesmo a sensibilidade que hoje se verifica a nível internacional e as últimas recomendações até da própria Nações Unidas, apontam no sentido de omitirem, vamos lá designações ou identificação desta ordem e desta natureza. Não 13 05 1306 13 07 1308 Acta nº 1 de 26 de Junho (1996: 21-22). O deputado acrescenta que etnia e raça são noções que se confundem. Acta nº 1 de 26 de Junho (1996: 23 – 24). Países que tinham instituído o apartheid, com fundamento nas propriedades rácicas/características somáticas. 311 vou especificar mas gostaria de dar alguns exemplos: mesmo aqui no nosso lado quer seja na África do Sul e na Namíbia, no Bilhete de Identidade do cidadão nacional não consta o elemento raça. Por outro lado, representaria quanto a mim um sinal inovador, tudo que é inovador é sempre de aplaudir, mas se nós formos a identificar ou analisar o anterior diploma e sobretudo o Bilhete de Identidade que cada um de nós tutela neste momento, representaria de algum modo alguma regressão, algum retrocesso. Vale isto por dizer que, o antigo bilhete de Identidade já estava mais próximo do entendimento que hoje se tem a nível internacional do que aquela proposta que hoje se pretende fazer consignar no Bilhete de Identidade. (…) mas a Assembleia Nacional é soberana, se assim for votado na sua maioria nada teremos efectivamente a opor e nem haverá dificuldade de ordem técnica de se poder 1309 fazer inserir, porque já prevenimos justamente os técnicos desse sentido” . Em síntese, podemos dizer que para os apoiantes da inclusão da categoria raça no BI, a argumentação gira em torno da identificação dos cidadãos e do controlo dos grupos. Para os oponentes, o debate centra-se na (in)definição da noção de raça e na desvalorização da função identificadora desta categoria no BI. As razões apresentadas pelos defensores da inclusão da raça no BI não nos permitem inferir, taxativamente, que a aprovação da lei remete para uma divisão social em que determinadas classificações, arbitrariamente atribuídas, são identificadas como qualidades sociais, a saber, consagram uma prática de identização que remete para práticas de exclusão. O que não impede contudo de subsistir a dúvida. E isso por um conjunto de razões que passamos desde já a expor: Com efeito, a longa história das classificações assentes em propriedades rácicas/características somáticas demonstrou que estas remeteram sempre para processos de hierarquização e exclusão. No respeitante à componente jurídica, o carácter arbitrário e subjectivo da inclusão do elemento raça no Bilhete de Identidade é sublinhado por um jurista angolano: “Consideramos a qualificação inconstitucional, pois, não respeita a objectividade jurídica, científica e igualdade como critério da justiça. Existem filhos de comunidades endógenas diferentes e que são culturalmente mestiços, ora o critério que qualifica o cidadão como “mistiço1310, negro ou branco” é polissémico e não unívoco, portanto, viola o artigo 18.º da 1309 1310 Acta nº 1 de 26 de Junho (1996: 32). Há aqui uma gralha. O autor refere-se à designação de misto. Recordamos que o BI contempla as raças negras, brancas e mistas. 312 Lei Constitucional Angolana ex vi (n.º 1 do artigo 153.º da Lei Constitucional). A igualdade é um princípio 1311 estruturante do Estado de Direito” . Mas o carácter arbitrário e subjectivo da lei é também notório quando se trata de definir os critérios raciais. Ou seja quando se trata de definir quem é misto, branco ou negro. E, aqui encontramos uma conjugação entre a subjectividade e o arbitrário. Pois ao contrário de outros países em que o critério racial é uma opção dos indivíduos1312, no caso angolano, os critérios não foram definidos; e, como tal, o funcionário do Estado é que determina quem é branco negro e misto, com toda a carga subjectiva que isto comporta: “o que presentemente ocorre nas repartições da identificação civil é uma bizarrice assistem – se a actos classificatórios realizados de modo arbitrário pelos ”1313 funcionários do Ministério da Justiça, pois são eles que catalogam os cidadãos de acordo com a cor da pele . Sendo assim, e dentro do quadro das suposições, é perfeitamente compreensível a opinião daqueles que consideram que a intenção subjacente à aprovação da Lei do Bilhete de Identidade tivessem por função excluir: Ao fazer esta proposta - do BI- o MPLA não foi totalmente ingénuo, não era só uma questão de estatística. Isto vem numa linha que é quase inevitável, antes eu achava que não, mas hoje começo a convencer-me de que é quase inevitável, realmente hoje em África, na África é negra quem não é negro é uma 1314 minoria e tem que começar á pensar que é uma minoria e tem que haver leis que defendam essas minorias . “Restam poucas dúvidas de que na génese desta iniciativa política - através da sua aprovação na Assembleia Nacional - esteve a intenção de excluir”,(…) se não for a intenção de excluir, não é fácil encontrar outra razão (…)Com isto pretende-se apenas levar as minorias a terem consciência de que são, de facto, minorias e devem permanecer no seu canto” 1315 . Por fim uma última nota. Apesar destas opiniões reforçarem a nossa impressão de que por detrás desta lei existe uma intenção política que remete para um processo de hierarquização e exclusão, elas por si só não são dados suficientes que nos levam a constatar que aqueles que aprovaram a Lei do Bilhete de Identidade tivessem por intenção excluir1316. Temos que dar o 1311 João Pinto “Cultura e a razão de Estado. A Identidade do Estado Angolano e o nacionalismo constitucional. http//wwwcaaai/org/anexos/78.pdf 2010. 1312 Menos arbitrário, mas permanece o carácter subjectivo. 1313 Semanário Folha 8 (2001: 15). Esta “bizarria” foi confirmada ao longo do nosso trabalho de campo em Angola. Indivíduos classificados de negros que passaram a ser mistos; classificados de mistos que passaram a ser classificados de negros e até classificados brancos que passaram a ser classificados de negros. 1314 Entrevista com Artur Pestana “Pepetela” em 09/2001. 1315 Justino Pinto de Andrade em Ricardo Bordalo, da Agência Lusa Agência LUSA - Agência de Notícias de Portugal, S.A.2008-02-05 09:50:01. O mesmo considera Paulo de Carvalho: “Se fizesse sentido essa justificação, então esses elementos poderiam ficar apenas na folha de registo e não de acesso público. (…) A intenção é de excluir.” Idem (2008) 1316 Um membro da Frente para Democracia considera que a lei do BI não tem relevância para a questão racial pois esta questão põe-se presentemente noutros termos, a saber, em termos de estrutura política: “A questão da raça, para 313 benefício da dúvida aos que entendem que o uso destas categorias obedece apenas a uma mera função estatística e identificadora. O que não impede, contudo, que possamos constatar que os discursos produzidos pelos deputados na Assembleia Nacional e pelos actores sociais se pautarem por posições diferenciadas, mas que participam de uma característica comum: o de serem discursos políticos e nesta medida serem discursos realistas de reificação da categoria raça. E, que tendo em conta as circunstâncias, com fortes possibilidades de serem discursos, que remetem provavelmente para uma reificação do estigma. Conclusão alguns estudos, pode ser importante, mas no caso do BI não tem grande significado. As pessoas podem ver quem está e quem não está… mas não sei se se conseguiu praticar alguma discriminação. Digamos que num dado momento do nosso processo histórico a selecção era feita a base da raça (no tempo colonial) e actualmente a selecção é política. Portanto num dado momento, quem é negro não tem acesso à riqueza, não tem acesso ao poder político; num outro momento quem não é do partido que está no poder é que não tem esses acessos, como tal, não entra na estrutura de oportunidades. Há uma estrutura de oportunidades que está muito filtrada pela política. E depois, é dentro dessa estrutura de oportunidades, é dentro dessa primeira discriminação política que se fazem as outras discriminações: na base da raça, na base da etnia pois a partirde de uma certa altura os interesses conjugam-se com esses elementos. Os interesses têm que se consubstanciar na fidúcia, na confiança e a confiança está mais ligada ao sentimento de pertença; ou é a família, ou é a etnia ou é a raça e é por aí que depois há a segunda discriminação, mas a primeira é claramente política. Entrevista com Filomeno Vieira Lopes dirigente do então FpD, em 09/2007. 314 O nosso ponto de partida começou com um objectivo geral: compreender, no que concerne ao estudo das relações raciais na sociedade angolana e ao longo do período compreendido entre 1950-1996, as razões que concorrem para que determinadas classificações assentes na noção de raça tenham sido um recurso fundamental nas lutas políticas, nomeadamente, em processos de inclusão exclusão. Seleccionámos um conjunto de classificações assentes em propriedades rácicas tidas como características somáticas, nomeadamente aquelas que tiveram recorrência nos discursos produzidos pelos actores do campo político angolano. Sendo assim, optámos por seleccionar dois grandes grupos de classificações um primeiro grupo com um vertente racial e somática: branco, negro, mestiço e um outro grupo com uma vertente racial e estatutária indígena, civilizado ou assimilado. Foi possível constatar que, na sua génese, estas classificações não podem ser dissociadas do processo racialização do mundo que se estendeu ao continente africano e, como tal, em Angola. Foi também possível constatar que funcionaram como um princípio organizador do Estado e da sociedade colonial. Princípio dinâmico, que assentou numa tensão permanente entre integração e desintegração dos diferentes espaços sociais com dinâmicas societais endógenas. Será, portanto, num quadro de arbitrariedade que o Estado colonial irá organizar o controle das populações autóctones, contabilizando-as estatisticamente e classificando-as hierarquicamente do ponto de vista das propriedades rácicas/características somáticas e tendo em conta, sobretudo, a cor da pele. Todavia, estas duas grandes classificações, além de partilharem o facto de serem categorias assentes em propriedades rácicas/características somáticas, apresentam outro elemento comum: ambas passaram a constituir uma matriz estruturante das relações que se foram estabelecendo na sociedade angolana entre colonizadores e colonizados, mas também uma matriz estruturante das relações no seio dos próprios colonizados. O que significa que estas classificações foram sendo incorporadas e interiorizadas de tal forma que as populações começaram a definir-se segundo esta categorias, realizando assim a definição e auto definição dos grupos. Criaram-se assim, formas particulares de relações sociais assentes em classificações como branco, negro, mestiço, indígena, assimilado ou civilizado. Categorias, que foram adquirindo uma significativa importância, nomeadamente aquando da produção discursiva no respeitante à denúncia do arbitrário colonial, pois estas classificações reflectiam, em certa 315 medida, a relação de dominação colonial que se consubstanciava na antinomia colono/colonizado. Como tal, estas classificações irão integrar parte do discurso nacionalista e anticolonial. O que nos remete para a primeira hipótese que passamos desde já a recordar: No seu processo de configuração e estruturação, o espaço nacionalista angolano começa por ser um lugar de produção discursiva em torno da reivindicação territorial. A produção discursiva será frequentemente complementada por um sistema de classificação assente em propriedades rácicas/características somáticas. Assim, classificações que outrora remetiam para processos de hierarquização e até de exclusão, dos colonizados no espaço colonial serão (re)apropriadas e reavaliadas de modo a denunciar o arbitrário colonial e reivindicar a independência. Podemos assim considerar que as duas categorias, a saber raça e nação tiveram um papel fundamental na génese do espaço nacionalista angolano, como lugar de produção discursiva e gerador de processos de inclusão e exclusão. Os discursos produzidos a partir da década de cinquenta assinalam a primeira etapa de um processo de configuração e estruturação do espaço nacionalista angolano que vai adquirindo as características de um lugar privilegiado de luta contra o arbitrário colonial. Nesta fase os discursos de reivindicação independentista são sustentados por duas categorias principais: nação e raça. Sendo assim, estas duas categorias tiveram por função contribuir para uma ruptura com a ordem colonial vigente. Muito embora subsista uma linha de continuidade, não só devido à recorrência destas classificações mas, também, pela função que desempenham, a de remeter para processos de inclusão e exclusão. Sendo assim a confirma-se a nossa primeira hipótese. Mas, no que respeita às classificações raciais, convém recordar que estas tiveram também o efeito de criar clivagens não só na relação entre colonizadores e colonizados, mas igualmente no seio dos colonizados; clivagens que reflectem, em certa medida, a eficácia de um sistema de classificação que, foi interiorizado e naturalizado1317. O que faz com que antinomias como indígena/assimilado, mestiço/negro, branco/negro, que distinguiam grupos sociais no seio dos colonizados, sejam também passíveis de serem utilizadas em lutas de classificação no seio do espaço nacionalista angolano. É o que nos remete para a segunda hipótese: À medida que se vai estruturando e configurando, o campo político angolano vai adquirindo características de um espaço de crise onde se desenrolam lutas de classificação pelo monopólio dos recursos 1317 Todavia como vimos nos capítulos anteriores, as categorias indígena e assimilado serão frequentemente negadas como categoria, sobretudo a taxinomia assimilado. Esta última adquirira um duplo sentido. Por um lado estava associada a um estatuto de privilégio, mas por outro era associada à perca de uma identidade africana. 316 materiais e simbólicos, que possibilitam a imposição de múltiplas categorias, de entre as quais as classificações assentes em propriedades rácicas/características somáticas. Sendo assim, estas classificações começam a desempenhar um papel fundamental na luta pela hegemonia do espaço nacionalista, na medida em que estas se tornaram objectos de actos de percepção e apreciação, de conhecimento e de reconhecimento em que os militantes nacionalistas irão investir os seus interesses e os seus pressupostos. No respeitante à questão racial, foi possível constatar a conversão das classificações assentes em propriedades rácicas/características somáticas em classificações políticas. Constatação vislumbrável não só nas lutas políticas entre o MPLA e a UPA/FNLA, mas sobretudo no seio do MPLA, onde adquirem grande relevância nas lutas políticas pelo controlo da direcção do Movimento. À medida que se estrutura e configura, o espaço nacionalista angolano vai adquirindo as características de um campo de forças e, como tal, torna-se um lugar de lutas – não só militares – de classificação pelo monopólio dos recursos materiais e simbólicos que possibilitam a imposição de múltiplas categorias, de entre as quais as classificações assentes em propriedades rácicas/características somáticas. Há como que uma transferência das antinomias produzidas pelo arbitrário colonial para o espaço nacionalista angolano. Estas clivagens vão, em certa medida, contribuir para o processo de estruturação e configuração do campo político angolano como espaço de lutas de classificação, pois categorias como branco, mestiço, negro, indígena ou assimilado começam a desempenhar um papel fundamental, como recursos políticos, na luta pela hegemonia do espaço nacionalista entre os dois protagonistas principais: MPLA e UPA/FNLA1318. Trata-se de uma relação de conflito/competição que confere ao campo político angolano características de um espaço de crise. Parece confirmar-se a nossa segunda hipótese. Quanto a terceira hipótese: No caso do subcampo MPLA, o papel das classificações assentes em propriedades rácicas/características somáticas nas lutas políticas torna-se uma regularidade sobretudo em contextos de crise, nomeadamente em processos de institucionalização do capital político. Ao longo do seu percurso de legitimidade cada uma das organizações nacionalistas armadas é atravessada por várias crises, sendo que estas são frequentemente ligadas a processos 1318 Recorde-se que a partir da década de setenta as categorias indígena e assimilado começam a desaparecer do léxico político. O que terá provavelmente influído a abolição destas categorias estatutárias em 1961. Doravante as categorias que irão prevalecer no léxico político serão as categorias branco, mestiço e assimilado. 317 de institucionalização do capital político. No caso do MPLA a utilização das classificações assentes em propriedades rácicas/características somáticas nas lutas políticas começa a assumir uma certa regularidade, sobretudo em contextos de crise, nomeadamente em processos de institucionalização do capital político. Antes de nos debruçarmos sobre a hipótese seguinte, adquire pertinência sublinhar um aspecto relevante e que apenas se tornou notório ao longo do nosso trabalho. E que, convém sublinhar, não fazia parte nem do nosso objectivo, nem das nossas interrogações. Consiste este no facto de, ao longo do período compreendido sensivelmente entre 1976 e 1992, a questão racial não ter adquirido grande relevância nas lutas políticas. O que implica, da nossa parte, um breve comentário a tal incongruência. No processo de estruturação e configuração do campo político angolano, o período compreendido entre 1960-1964 assinala um momento de conversão de um sistema de classificação racial em sistema de classificação integrante do mais vasto sistema de classificação política. Assim, se estas classificações eram outrora e sobretudo monopolizadas pelo Estado e pela sociedade colonial, a partir de então, e à medida que o campo político angolano se estrutura e configura, as categorias raciais começam igualmente a ser geridas pelo campo político angolano. É um primeiro indício de que começam a ser as circunstâncias políticas que determinam a questão racial e não o contrário. Como tal, os critérios de classificação vão deixando de ser ditadas pelo mundo social mas sim pelo campo político angolano. Assim, qualquer categoria, oriunda do mundo social, está sujeita à lógica de funcionamento de um campo, que embora fazendo parte do mais amplo espaço social, não deixa de funcionar de um modo próprio. Tal dinâmica de apropriação e incorporação destas categorias ganha novo alento à medida que o campo político se vai apropriando do espaço colonial, num contexto de transição para a independência. Mas esta submissão, das propriedades rácicas características/somáticas aos ditames do campo, iria ser mais notória quando a questão racial ficou em estado latente praticamente ao longo do período compreendido entre 1976 até 1992. Tal deve-se ao facto de, durante este período, o campo político continuar a funcionar numa lógica de aparelho. Trata-se de uma dinâmica característica do campo político angolano como universo autónomo, a saber: “como campo de forças e como campo das lutas que têm em vista transformar a relação de forças, que confere a este campo a sua estrutura em dado momento”1319. Ora, “a sua estrutura, em 1319 Bourdieu (1989: 163-164). 318 dado momento”, é o funcionar não só numa lógica de aparelho, mas sobretudo o reforçar esta dinâmica. Pois o estado de guerra generalizado que se vive no país apela para um modelo organizacional militar e militarizado que leva a que a acção política se realize em forma de espírito e de corpo. Sendo assim, esta dinâmica intensiva de aparelhização irá igualmente assegurar uma ordem interna no seio de cada uma das organizações políticas armadas pois, cada uma destas organizações irá “reproduzir o medo de ser contra fundamento último de todas as disciplinas militantes ou militares”. O que faz com que comando/obediência, fidelidade/traição se tornem princípios estruturantes do campo. E, como tal, principais fundamentos do princípio de inclusão/exclusão, cuja aplicabilidade se estende a todos os angolanos independentemente da sua etnia, ou da sua raça. Será portanto necessário aguardar por um contexto de nova divisão do trabalho político, de afrouxamento dos aparelhos militares dos dois principais protagonistas do campo político angolano, para que se possa assistir no espaço social angolano e no campo político angolano ao ressurgir das classificações raciais. Um regresso do racial, num contexto de crise social e política, pontuado, pela criação da Lei do Bilhete de Identidade. O que nos remete para a hipótese seguinte; porventura a mais inconclusiva do nosso trabalho: A introdução das propriedades rácicas no BI é um acto de legitimação político-jurídica de uma categoria que exemplifica um modo de (re)apropriação de categorias raciais pelo campo político angolano, num contexto de crise e de lutas políticas. Como tal, essa consagração político-jurídica das propriedades rácicas/características somáticas não obedece apenas a uma função identificadora dos indivíduos. A inclusão de categorias como negro, misto ou branco no Bilhete de Identidade não pode ser dissociada de práticas políticas que remetem para processos de inclusão e exclusão. A questão do Bilhete de Identidade emerge num contexto de crise. Um contexto que possibilita o recurso às categorias raciais aquando de lutas políticas. É nesta medida que as propriedades rácicas/características se tornam passíveis de servir estratégias interessadas de manipulação, a partir da percepção que as populações têm dessas propriedades e dos seus portadores. Com efeito reconhecer juridicamente uma identidade de raça é, em certa medida, reificar uma identidade veiculada por um arbitrário colonial; é reificar um incorporado processo de inclusão/exclusão. O que nos leva a pensar que a inserção da categoria raça no BI, visa sobretudo a delimitação e a reestruturação de grupos sociais em termos de uma nova 319 reorganização de identidades, sustentada, por sua vez, na ideia de diferenciações baseadas em termos de maiorias e minorias raciais. Um processo veiculatório sustentado pela existência de indivíduos portadores desta propriedade visível e distintiva que é a cor da pele. No entanto não podemos deixar de considerar que muitos daqueles que aprovaram a lei tinham a convicção de que estas categorias tinham apenas a função de identificar os indivíduos. Ou seja, de que se podia instituir uma categoria retirando-lhe o carácter arbitrário da hierarquização e exclusão. Trata-se, em certa medida, de um dos efeitos do arbitrário classificatório colonial. Fazer crer que estas classificações tinham uma função meramente identificadora. O que não invalida a constatação de que, provavelmente, por causa desta propriedade distintiva tenha prevalecido no debate da Assembleia Nacional uma lógica discursiva que apelava constantemente para relações entre raça e identidade. O que nos remete para uma consideração final, sendo que esta diz respeito à problemática das identidades raciais em Angola. E, que de certo modo remete para o uso do conceito de ideologia identitária. A categoria raça tem desempenhado um papel relevante nas lutas políticas e nas estratégias de mobilização, tornando-se por vezes um capital político nas lutas pelo controlo dos centros de decisão. Todavia, o facto de se incorporarem (tanto nos discursos como nas práticas do dia a dia) determinados sistemas classificatórios – que por sua vez produzem efeitos – que se reflecte na constituição de grupos, não significa que se possa tomar como um dado adquirido a existência de identidades raciais em Angola, Com efeito o debate na Assembleia Nacional exemplifica um acto de amnésia da génese relativamente a uma longa história de imposição identitária, sustentada por um conjunto de classificações que comportavam consigo o peso de uma subjectividade sustentada pelo arbitrário classificatório. É portanto, a partir desta relação entre o subjectivo e o arbitrário classificatório que se torna possível pensar a questão racial em Angola sem partir do pressuposto essencialista da constatação de identidade(s) racial(is). Para tal, iremos começar por nos debruçar sobre cada uma das três principais categorias práticas raciais. • 320 A categoria branco. É uma categoria, naturalmente, associada ao arbitrário colonial. Pois foi em torno da ideia de superioridade da raça branca que se forjaram um conjunto de classificações que remetiam para processos de exclusão em Angola. Como tal, esta categoria não deixa de ser produto de um arbitrário classificatório. Porém, esta categoria não deixou de se caracterizar por um forte grau de subjectividade, na medida em que não deixou de ter múltiplos significados. A categoria branco tanto podia significar a população colonizadora europeia estabelecida no território angolano durante a ocupação colonial portuguesa, como podia remeter para os indivíduos que tinham adoptado o estilo de vida europeu ou ocidentalizado, independentemente da sua cor, ou então para aqueles que tinham adquirido um determinado estatuto social ou jurídico no quadro da sociedade colonial1320. Contudo reconhecemos que esta categoria foi estigmatizada ao ponto de a mesma ter desencadeado processos de coisificação dos indivíduos portadores desta propriedade distintiva. E, como, pudemos constatar nos capítulos anteriores, a categoria branco remeteu para fortes processos de exclusão, aquando das lutas políticas no seio do espaço nacionalista, nomeadamente em processos de institucionalização do capital político. Todavia esta dinâmica não pode ser interpretada como um mera reacção aos efeitos do arbitrário racial colonial e que pressupõe uma mera inversão das práticas raciais coloniais. Com efeito, a questão dos classificados de brancos não pode estar dissociada da lógica de um campo que se estrutura e configura como tal, ou seja, com normas e regras de funcionamento próprios e que como vimos se tornaram inerentes ao campo. Mas há um outro aspecto a salientar. O arbitrário classificatório efectivou-se também na produção de uma antinomia entre branco natural/branco metropolitano. Esta antinomia terá porventura contribuído para que muitos dos classificados de branco participassem no processo de reivindicação territorial, não como grupo somático mas como fazendo parte de uma ampla população que se considerava vítima do arbitrário colonial. • 1320 A categoria mestiço. Pimenta (2008: 59-63). 321 No respeitante à categoria mestiço é possível constatar que, em Angola, esta categoria nunca se traduziu na constituição de um grupo homogéneo que se identificasse como tal1321. A invenção desta categoria teve como consequência o surgimento de novas identificações somáticas que acentuaram ainda mais a impossibilidade de este alegado grupo social se pensar como tal. Referimo-nos a designações como cabrito, cafuzo etc, que já foram referenciadas em capítulo anteriores. Como tal, a definição dos classificados de mestiços revestiu-se sempre de uma forte ambiguidade1322. Contudo, à semelhança da categoria branco, a categoria mestiço também está sujeita aos imperativos do campo político angolano. Todavia com variabilidades, segundo as épocas e circunstâncias. Como vimos, na década de cinquenta predominava, na “fase panfletária” um critério que distinguia a categoria negro/angolano (“pretos e mestiços”), da categoria branco/português.1323 Posteriormente, na década de sessenta, esta categoria foi remetida juntamente com a categoria branco para processos de exclusão. Mas, mesmo no próprio campo político, as dificuldades em classificar este grupo eram notórias. Assim, por exemplo Lúcio Lara ou Paulo Jorge, dois militantes e dirigentes do MPLA, podiam ser considerados mestiços ou brancos conforme a pessoa que os classificava e, provavelmente o lugar que esta ocupava no campo1324. Mas há um outro critério de subjectividade que exemplifica o modo como o campo político se apropriou de uma categoria em nome da manipulação legítima das percepções sobre as propriedades rácicas/características somáticas. É a sua exclusão da categoria etnia. Ou melhor dizendo, a exclusão desta categoria do grupo etnolinguístico alegadamente devido à cor. Como vimos mais acima, considerava um deputado que a categoria etnia era incompatível com a categoria mestiço: tenho a pedir uma informação relativamente a um elemento que, eu, considero muito importante de identificação [da] pessoa, é claro, não abrange todo o cidadão Angolano, nem todas as classes mas é respeitante à raça negra, existe é a questão de tribo”. Se 1321 Ver o capítulo I “Do problema à pergunta de partida”. Esta ambiguidade é perfeitamente notória se atentarmos que no recenseamento de 1950 constavam 29.648 mestiços e que este número quase duplicou passando a constar no recenseamento de 1960 53.392 mestiços. Pélissier (1978: 53). 1323 Muito embora na categoria negro esteja subjacente uma distinção entre pretos e mestiços, premonitória do modo como o campo político se irá apropriar destas duas últimas. 1324 ”Toutefois, on doit noter que le numéro deux du régime, jusqu'à la chute du mur de Berlin, fut Lúcio Lara, un blanc, et que Paulo Jorge, un autre blanc, est resté dix ans à la tête du Ministère des Affaires Etrangères. Africano (1995: 20). Tali I (2001 : 68 ) considera Lúcio Lara “mestiço”. Para Anstee (242-243). Paulo Jorge era “um mestiço”. 1322 322 no respeitante à categoria branco e com ressalva, podemos aceitar esta incompatibilidade, no respeitante à categoria mestiço é preciso ter em conta que as sociedades africanas são linhageiras como tal é a linhagem que define os critérios de filiação a um determinado grupo etnolinguístico, e não a cor. Sendo assim, a categoria mestiço pode ser compatível com a categoria etnia1325. • A categoria negro. A categoria negro será porventura o exemplo somático mais visível, do arbitrário classificatório, pelas consequências que daí advieram (violência simbólica e efectiva). Contudo, não se consegue subtrair a lógica subjectivante do arbitrário classificatório. Um primeiro exemplo e que em certa medida está na senda do boletim anteriormente citado na nota anterior. No Anuário Estatístico de 19591326 a população civilizada é caracterizada segundo o tipo somático, sexo, idade, estado civil, instrução, nacionalidade e religião. Ou seja, quem tinha adquirido o estatuto de civilizado deixava de fazer parte de um grupo etnolinguístico1327. Outro exemplo: também é sabido que nos cruzamentos biológicos muitos classificados de mestiços estavam condenados a “atrasar raça” e como tal, podiam ser estatisticamente classificados de negros; mas esse processo de escurecimento não implicava obrigatoriamente uma filiação linhageira. O que significa que o ser negro não determinava obrigatoriamente, fazer parte de um grupo etnolinguístico, a saber, ser considerado “genuinamente africano” como veremos mais adiante1328. Por fim, um último exemplo de subjectividade de pratica classificatória, e, que engloba o conjunto das três categorias arbitrariamente construídas. Referimo-nos à Lei do Bilhete de Identidade, precisando melhor, aos efeitos que esta lei teve nos critérios de definição de quem é negro, misto ou branco. 1325 A ressalva da categoria branco não é devida à cor é apenas devido ao critério do jus sanguinis e unilinear. Aquando da nossa estadia numa província de Angola, no quadro de um seminário sobre autoridades tradicionais, pudemos constatar que uma das autoridades tradicionais apresentava uma característica peculiar. Tinha olhos azuis. Um outro exemplo: no Anuário Estatístico de 1958 (1959:21) encontramos um quadro estatístico intitulado: “População não civilizada, preta e mestiça, segundo o sexo, por idade, religião e grupos étnicos”. O que significa que os classificados de mestiços, quando considerados indígenas tinham uma filiação étnica. 1326 Anuário estatístico Ano XXV 1959 (1960:20). 1327 O que, em princípio, pode significar duas coisas. Primeiro, um assimilado deixava de fazer parte de um grupo etnolinguístico e segundo um indígena estava obrigatoriamente remetido para um quadro etnolinguístico. 1328 Daí que Paulo de Carvalho, um sociólogo angolano, considere o seguinte: “Por outro lado, penso que o problema do racismo entre nós é mais uma maquinação de algumas pessoas (fundamentalmente com familiares mais claros, por absurdo que possa parecer), que procuram com isso tirar dividendos no acesso ao poder e ao emprego”. Entrevista de Paulo de Carvalho ao Semanário Angolense de 27 a 5 de Outubro (2003: 16-17). 323 Como vimos no último capítulo, práticas classificatórias exercidas pelos funcionários do Ministério da Justiça foram consideradas como uma “bizarrice”. Uma das consequências desta “bizarrice” é o facto de, por exemplo, ser um cafuzo social, ser juridicamente negro e, porventura, ser até considerado um mestiço político. O que significa que quando o campo político devolve estas classificações ao mundo social, devolve-as a um espaço social complexo, dinâmico, com múltiplas percepções relativamente não só ao conjunto destas três categorias mas relativamente a cada uma delas. Não foi portanto de estranhar, perante tal fracasso de atribuição identitária, a posterior abolição da categoria raça como elemento de identificação do titular1329. O que pode também significar que uma súbita memória da génese da noção de raça no período de dominação colonial terá, provavelmente, contribuído para a abolição do elemento raça como categoria político-jurídica. Pelos vistos, a inclusão da categoria raça no BI, não conseguira dissimular o carácter simultaneamente arbitrário e regulador da ordem das classificações raciais. Esta tentativa de exercício classificatório, no respeitante à constituição de grupos, era tão subjectiva e arbitrária que a escolha dos critérios definidores de quem é misto, branco ou negro, deixara de ser portanto uma “ilusão bem fundamentada”1330. Assim, quando se parte do pressuposto de que Angola é um país multirracial convém não esquecer que a subjectividade e o arbitrário não remete apenas para a dificuldade em classificar os negros, brancos e mestiços. Mas está, acima de tudo, na dificuldade em classificar grupos sociais recorrendo a estas categorias e que convém recordar são produto de um outro arbitrário classificatório e subjectivo que se chama raça. Porém, o campo político é um universo que não se coíbe de produzir novos arbitrários classificatórios, quer se trate de definir grupos para incluir, quer se trate de definir grupos para excluir. Angola é um espaço social que possibilita a construção de configurações identitárias que não assentam, apenas, em classificações ligadas à propriedades rácicas/características somáticas. Assim, categorias, como região, etnia1331 ou até crioulo que já tinham emergido na década de noventa1332 têm estado a afirmar-se cada vez mais no léxico classificatório, demonstrando deste 1329 Tal como consta no Diário da República de Angola de 30 de Junho de 2009, I Série – Nº. 120, Lei nº. 4/09 de 30 de Junho e promulgada pela Assembleia Nacional no dia 16 de Junho de 2009. 1330 Bourdieu (1989: 121). 1331 Dois dos nossos entrevistados consideraram que as identidades mais fortes em Angola Angola são as identidades regionais. Entrevistas com Filomeno Vieira Lopes e Manuel Lima. 1332 É interessante a velocidade com que o termo crioulo (ora confundido com caluanda, ora com mulato ora com assimilado de outras eras) saltou do mundo dos linguistas para a discussão política e os comentários jornalísticos. Deixo 324 modo que a ausência de classificações raciais não significa o fim do trabalho arbitrário – com a sua devida carga subjectiva1333 – como parte integrante do trabalho de classificação política1334. Quer isto dizer que quando se atribui, por exemplo, uma identidade racial a um conjunto de indivíduos convém nunca esquecer o carácter subjectivo e arbitrário de uma longa história de trabalho classificatório. Foi portanto com a intenção de evitar que o nosso trabalho fosse condicionado pelo subjectivo e arbitrário classificatório que optámos pela proposição do conceito de ideologia identitária, em detrimento do conceito de identidade tout court. Restringirmo-nos apenas ao conceito de identidade seria, em certa medida, deixar que uma longa história de arbitrário classificatório se sobrepusesse a este exercício de livre arbítrio: o pensamento analítico e reflexivo. a outros a tarefa de esclarecer os significados (no tempo e no espaço) de tal palavra, hoje usada indiscriminadamente”. Artigo terminado em 16/04/93. Maria da Conceição Neto em Correio da Semana gentilmente cedido pela autora. 1333 Assim e a título de exemplo os critérios de filiação étnico-regiona,l dos membros do governo angolano, propostos por um Jornal denotam mais uma vez a conjugação do subjectivo e do arbitrário quando se trata de definir quem é crioulo, kimbundo, bakongo ou umbundo. Ver Semanário Angolense de 27 de Fevereiro (2010:8-11). 1334 Numa entrevista concedida ao Jornal Folha 8 o secretário-geral da UNITA Kamalata Numa da UNITA apresenta a seguinte divisão do mundo social angolano “Angola está constituída por várias nações. Angola não tem uma única nação, inclusivamente há uma nação que, à passagem por aqui do colonialismo português, essa nação se reafirmou, (…). Falo da Nação Crioula”. As várias nações entendidas como: “E quando falo dos umbundos, estou a falar de outras nações, por exemplo, os kwanhamas, tchkwés, os cabindas”. http://www.angola24horas.com (2010). 325 Fontes e Bibliografia 326 Fontes de Arquivo Arquivo IAN/TT PIDE/DGS Proc. 2126/59 UPA. Proc. UPA 2668/54, Doc.189. Proc. Holden Roberto 1139/60 vol. I. Proc. Holden Roberto 1139/59-s-12 1º vol. Proc. Holden Roberto 1159/59 vol. 2. Proc. Viriato Francisco Clemente da Cruz, Holden Roberto, Emmanuel Kounzika 89/63 vol.1 Proc. Viriato da Cruz 1153/51. Proc. António Agostinho Neto 88 Vol 1 pasta 9 (Doc. “Manifestação Polítco-Militar dos Militantes na II Região). Proc. UNITA, 11.24 A/27. Arquivo Pessoal ANDRADE, Mário de (1964), “La Crise du Nationalisme Angolais”. Révolution Africaine, 27, Juin, 1964, p. 12-14, mimeo ANDRADE, Mário de (1965), “Qu’est ce que le Luso-Tropicalisme”. 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