E N T R E V I S T A
“Imagens selvagens”
“Wild images”
“Imágenes salvajes”
Entrevista com:
Ana Maria MauadI*
Maurício LissovskyII**
Entrevista concedida a:
Thaís BlankIII***
Isabella PoppeIV****
DOI: https://doi.org/10.1590/S2178-149420210111
Universidade Federal Fluminense – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
*Professora Titular do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense, Bolsista de produtividade do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro
(
[email protected])
https://orcid.org/0000-0001-8973-5238
I
II
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
**Professor Associado da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Bolsista de produtividade do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (
[email protected])
https://orcid.org/0000-0002-0734-790X
Fundação Getulio Vargas – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
***Professora Adjunta da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas (
[email protected])
https://orcid.org/0000-0002-1470-9999
III
Fundação Getulio Vargas – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
****Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais da Fundação Getulio Vargas
(
[email protected])
https://orcid.org/0000-0003-4970-9726
IV
Entrevista concedida em 13 de agosto de 2020, Rio de Janeiro.
Artigo recebido em 01 de setembro de 2020 e aprovado para publicação em 11 de novembro de 2020.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 34, nº 72, p.221-233, Janeiro-Abril 2021
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Thaís Blank e Isabella Poppe
N
o dia 13 de agosto de 2020 nos conectamos para realizar esta entrevista.
Pontualmente às 15 horas, nós, as entrevistadoras, e Ana Maria Mauad,
uma de nossas entrevistadas, encontrávamo-nos em uma plataforma de reuniões virtuais.
Mas onde estava Maurício Lissovsky? Mandamos mensagens, tentamos ligar, os minutos corriam e Lissovsky não dava notícias. Duas horas mais tarde, ele aparece na caixa de mensagens: “Passei o dia escrevendo e desligado do mundo. Esqueci. E agora?” Em trinta minutos
nos encontraríamos para dar início à conversa. A anedota em torno de Lissovsky permite-nos
expor o contexto de produção da entrevista. Estamos em plena pandemia da COVID-19, são
150 dias de confinamento, quantos dias mais ficaremos confinados? Ainda não sabemos...
Adaptados à nova rotina, muitos de nós retomam os trabalhos agora em ambiente completamente virtual: reuniões, aulas, bancas, compromissos que às vezes esquecemos,
mergulhados em nossa própria virtualidade. Tornamo-nos, finalmente, imagem?
Na conversa a seguir, Ana Maria Mauad e Maurício Lissovsky oferecem-nos essa e
outras provocações. A entrevista parte da trajetória individual dos pesquisadores para, com
base nela, entender a formação do próprio campo da Cultura Visual no Brasil, ou dos Estudos
Visuais, como prefere Lissovsky. Na entrevista, os pesquisadores abordam algumas das principais questões que cercam os estudos e a vida das imagens na contemporaneidade. Com afeto,
a conversa guia-nos por novas estradas do pensamento. A nós, cabe apenas agradecer pela
oportunidade de testemunhar essa conversa e desejar uma excelente leitura.
Entrevistadoras: Vocês dois fizeram graduação na área de História, mas deram às
imagens uma centralidade no trabalho que desenvolvem. Como a imagem — e, em especial, a fotografia — passou a ocupar o centro do pensamento de vocês?
Mauad: Eu cursei a faculdade de História entre 1979 e 1982 e comecei o mestrado em
1985. Nesse período, era professora do ensino fundamental, dava aula no supletivo e em várias escolas e queria continuar estudando e trabalhando. Fui fazer mestrado na Universidade
Federal Fluminense (UFF) e as linhas de pesquisa eram, por exemplo, História Social, História
Agrária, não tinha a configuração que hoje tem. E eu na verdade entrei com um projeto sobre
a história do ensino supletivo no Brasil, mas chegando lá mudei, comecei a trabalhar com a
memória da eletricidade, e foi quando reencontrei o Maurício. Ao contrário da graduação —
que foi um momento muito marcado pelo estruturalismo, o marxismo estruturalista e uma
história política de recorte mais sociológico —, o mestrado trouxe um conjunto de leituras
muito interessantes do ponto de vista da renovação historiográfica. Lembro que fui fazer um
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“Imagens selvagens”
seminário, naquela época dos seminários da Fundação Nacional de Artes (FUNARTE), e lá
fiz “Os sentidos da paixão”1. Fiquei fascinada com aquilo ali e decidi mudar o meu projeto.
Mas o contato que eu tinha com a fotografia era mais familiar, a minha avó guardava muitas
fotografias, que ficavam circulando na família. E eu tinha uma grande amiga na faculdade
que era fotógrafa, tinha um laboratório em casa, e eu comecei a me envolver com todo esse
procedimento. Então resolvi reformular meu projeto para “Os sentidos da paixão e a fotografia”. Eu estava fazendo o curso de metodologia com o Ciro Cardoso e apresentei a proposta
para ele, que me disse para esquecer a paixão e ficar com a fotografia. Ele me passou uma
bibliografia com muitos títulos sobre semiótica, então comecei a discutir a fotografia através
da semiótica, da fotografia como linguagem, bem na linha estruturalista. Era uma fotografia
caracterizada por possuir uma mensagem, produzida por determinada classe social. Por ter
esse caráter inovador para a época, eu entrei para fazer mestrado e acabei apresentando um
doutorado. Fui a primeira pessoa na UFF a fazer essa passagem do mestrado direto para o
doutorado. Defendi a minha dissertação, Sob o signo da imagem: a produção da fotografia e o
controle dos códigos de representação social, na cidade do Rio de Janeiro na primeira metade
do século XX — que virou uma tese de 600 páginas — com a hipótese de querer provar como
a sociedade brasileira tinha se aburguesado, através do cruzamento de duas fontes, que eram
séries fotográficas: uma privada, que era a fotografia da minha família libanesa por parte de
mãe, que chegou ao Rio de Janeiro no início do século XX; e as revistas ilustradas da época.
A intenção era justamente mostrar como esse comportamento se dava nesses dois âmbitos.
Eu não cheguei na pós-graduação para trabalhar com fotografia, foi no meio do curso que a
abracei enquanto objeto de estudo. Mas foi só depois que comecei a me aprofundar em toda
a discussão. Isso é uma característica da geração da qual faço parte, que é muito voltada para
a História Social. O que eu conhecia de fotografia naquele momento estava ligado ao Roland
Barthes, à Susan Sontag, que eram leituras complementares, mas o fundamento do meu
trabalho com fotografia foi a semiótica de viés estruturalista. Logo depois, em 1992, eu fiz o
concurso para a UFF e entrei para o Laboratório de História Oral e Iconografia, junto com o
Paulo Knauss. Nós começamos a fazer uma discussão mais substantiva sobre a relação entre
História e Imagem, mudando o nome do laboratório para História Oral e Imagem. Mas o meu
encontro com a fotografia foi muito ligado a essa renovação historiográfica dos anos 1980,
da História com novos objetos e novas abordagens.
Lissovsky: Eu e Ana temos a diferença de um ano na universidade, eu entrei em 1978
e ela em 1979. E isso é curioso porque nós somos personagens da transição, de quando a fotografia começa a interessar para a História. Acho que sou a última geração que do ponto de
vista institucional não tem lugar na História e a Ana é a primeira que tem. Se a gente lembrar
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Thaís Blank e Isabella Poppe
quem foi o pioneiro do campo, no caso da fotografia, foi o Boris Kossoy, que é um historiador
que sempre esteve no campo da comunicação. Mas a minha trajetória pessoal está, sobretudo, ligada ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil
(CPDOC). Eu tinha um interesse difuso na graduação pelos temas da cultura e da imagem,
mas também da política. Assim que me formei, ganhei uma bolsa para recém-formado, que
não existe mais, porque o CPDOC estava montando a exposição dos 50 Anos da Revolução
de 1932. Então eu me engajo na equipe dessa exposição chamada de Revolução de 32: a
Fotografia e a Política, que acho que foi o primeiro grande investimento que não usava a fotografia apenas como um registro acessório, mas como o próprio objeto e o problema. Eu, Anita
Brandão Murakami e Lucia Lobo, que era a chefe do projeto, publicamos um artigo chamado
“A fotografia como documento histórico: a experiência do CPDOC”, nos anos 1980, que é
resultado de nossas reflexões nessa exposição. Depois eu virei pesquisador e acabei focando
em documentação escrita e trabalhei com outro tema com o qual até hoje eu trabalho um
pouco, que é a arquitetura. Até voltar estritamente para a vida acadêmica, com o mestrado
na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ), em 1994,
eu tinha uma relação que passava pela fotografia, mas também pelo cinema, tinha feito Super-8 durante a faculdade. Mas só fui de fato ser um pesquisador do campo da imagem — e
da fotografia em particular — depois que voltei para a universidade. A minha metodologia
sempre foi mais voltada para o campo da estética, portanto, mais em diálogo com a História
da Arte, e o que eu trabalhava mais no início era uma discussão mais estrita em torno da ideia
de fonte. Quando fio para a Escola de Comunicação esse já não era o problema, mas de fato
operar nesse campo ampliado da imagem, com ênfase na fotografia, já numa perspectiva da
cultura. Nesse sentido, quando eu me consolido como um pesquisador do campo da imagem,
já é dentro desse debate dos Estudos Visuais e da Cultura Visual. O problema não é mais a
importância da fotografia para o historiador, o que eu acho que foi muito a nossa marca nos
anos 1980. O livro Escravos brasileiros do século XIX na fotografia de Christiano Jr. (1988) é
então o fechamento desse meu primeiro ciclo.
Entrevistadoras: A proposta desse dossiê da Revista Estudos Históricos é pensar
a Cultura Visual como um campo de pesquisa, refletindo sobre as potencialidades desse
campo e também sobre as suas limitações até mesmo enquanto disciplina. Como vocês
entendem o conceito de Cultura Visual?
Mauad: É interessante porque recentemente a UFF definiu que seria dado um semestre especial para os formandos, e eu fiquei encarregada de dar um curso de História
Visual. É um curso instrumental, criado com a reforma do currículo que aconteceu ao longo
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“Imagens selvagens”
dos anos 1990, mas na qual vamos fazendo ajustes, e essa disciplina foi proposta por mim
e pelo Paulo Knauss, meu parceiro de trabalho lá. Eu convidei o Francisco Santiago, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), para apresentar dois textos
que ele publicou: um nos Anais do Museu Paulista e outro na revista Tempo e Argumento.
Nesses artigos ele faz um balanço grande dos termos e das posições, e a gente veio discutindo justamente como reconhecemos a problemática da Cultura Visual dentro dos Estudos
Históricos. Como toda a grande narrativa histórica que se constrói, ela tem algumas balizas,
mas acho que o primeiro texto que vai apontar e fazer um balanço das posições em jogo é o
do Ulpiano Bezerra de Meneses, publicado em 2003, na Revista Brasileira de História. Esse
texto fazia realmente um grande balanço do uso das imagens nas Ciências Sociais, da cultura material, e trazia as discussões de História Visual, Cultura Visual, mas muito mais como
uma plataforma de observação da experiência social — e essa é uma expressão que eu
gosto de usar — do que propriamente um campo que se delimita. Então esse texto organiza
uma série de atividades e procedimentos de pesquisa que estavam acontecendo ao longo
dos anos 1990. Eu lembro que o Maurício já chamava a minha atenção sobre o fato de eu
trabalhar com a fotografia como mensagem, e percebi que eu realmente não precisava ficar
refém dessa visão. Isso foi uma libertação dentro das minhas amarras estruturalistas. E o
texto do Ulpiano traz também a bibliografia internacional para o debate, de autores como
o William John Thomas Mitchell e o Hans Belting. Em 2006, o Paulo Knauss, ao voltar de
um pós-doutorado em Berkeley, publica um texto na revista Arte e Cultura, em que ele faz
uma reflexão sobre duas tradições nos Estudos Visuais, a estadunidense e a alemã. Entre
2003 e 2006, durante o Encontro Nacional de História, em Londrina, é criado o grupo de
Cultura Visual, Imagem e História, que atualmente é coordenado pela Iara Schiavinatto, da
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Isso criou uma rede nacional de pesquisadores que trabalham com essa noção de “plataforma” dos estudos com imagem e que têm
uma abordagem histórica. Isso significa trabalhar a imagem como fonte, objeto e — mais
recentemente — sujeito da História. Foi de fato criado um espaço institucional para que
os historiadores se encontrassem, com grupos de trabalhos regionais formados por pesquisadores que trabalham com os mais diversos tipos de imagem, como grafite, história em
quadrinhos, cinema, fotografia etc. Os anos 2000 foram bastante profícuos na produção
de um conhecimento de qualidade, sobretudo por conta do incentivo à pós-graduação. Em
2008, teve um seminário no Instituto Goethe, em São Paulo, que inclusive trouxe o W. J. T
Mitchell e o Hans Belting. Foi um momento muito rico de interlocução. Então veio a “virada
visual”, a “virada icônica”, mas nós já estávamos fazendo isso, só que nesse momento é
que fomos identificando nossos interlocutores internacionais.
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Lissovsky: Eu talvez nunca tenha usado a expressão “Cultura Visual” para identificar
o meu próprio trabalho. Sou inseguro em relação a esse termo, porque tenho dúvidas se
existe uma Cultura Visual, se é possível segmentar a cultura desse modo. Quando penso
na minha própria pesquisa, percebo que com frequência as imagens não se restringem a
sua materialidade, pois há imagens que são textos. Acabo usando com mais frequência o
termo “Estudos Visuais”, porque isso parece definir um certo campo disciplinar com alguma
afinidade em torno de metodologias, abordagens e problemas. E a expressão que Ana usou,
“História Visual”, como sendo uma especialidade no campo da História. A História Visual, por
sua vez, abre-se para várias perspectivas, não apenas em relação ao objeto, mas ao método
de pesquisa a ser utilizado. E ela acaba de alguma maneira ressoando movimentos que se
realizaram em campos afins, como na Antropologia Visual, que no Brasil teve uma vertente
dominante de realização de registros etnográficos que se distancia um pouco dos historiadores — com exceção dos que trabalham com História Oral. Mas existe todo um outro campo
que se volta para uma antropologia das imagens como agentes — ou como sujeitos, como
a Ana havia dito —, que a rigor foi uma descoberta dos antropólogos da cultura material.
Eles vão começar a operar com as imagens no modo como elas atravessam as próprias relações sociais que as constituem. Acredito que boa parte do que eu hoje faço com fotografia
está informado, por um lado, pelo tipo de análise proveniente do campo da iconografia e da
História da Arte e, por outro, dessa novidade dos anos 1990, em que as imagens passam
a valer também como objeto e não apenas como representação e como registro. Acho que
quando a gente se forma, nos anos 1980, a gente está diante desta questão, de que tipo
de registro é uma fotografia e, portanto, que tipo de crítica histórica deve ser feita e esse
documento para ele ser melhor interpretado. Como qualquer registro, a fotografia também
não é neutra e objetiva, ela participa de uma ordem de representações que também precisa
ser compreendida. Essa delimitação do problema começa a mudar ao longo dos anos 1990,
principalmente com os textos que destacam também a vida das imagens. Acho que os Estudos
Visuais ganham, assim, uma densidade maior, pois a gente passa a ter que olhar o movimento
que as imagens fazem. No caso da fotografia, ela se liberta de suas âncoras circunstancias
e passa a habitar dois outros mundos: o das imagens, no sentido amplo, das analogias, que
transcendem à fotografia; e o campo das instituições, dos percursos, das trajetórias, das inserções na vida social e familiar e nos usos da imprensa, da política etc. Esse desdobramento
marca a revisão que o campo vai ter durante esse período. E é a habilidade de conjugar essas
duas perspectivas que define o que poderíamos chamar de Estudos Visuais, sabendo que eles
estão influenciados também por uma revisão que ocorre dos Estudos Culturais, com a questão
da pós-colonialidade, da decolonialidade, dos estudos de gênero e das questões raciais. Tudo
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“Imagens selvagens”
aquilo que colocou em questão o olhar tal como era, isto é, eurocêntrico, antropocêntrico e
“brancocêntrico”, “machocêntrico”. Todas essas questões acabaram explodindo e os Estudos
Visuais são essa confluência.
Entrevistadoras: O termo “Cultura Visual” foi gestado no interior das discussões
promovidas pelos teóricos identificados com os Estudos Culturais, principalmente no universo anglo-saxão. Enquanto campo de estudos, a Cultura Visual é marcadamente interdisciplinar e eminentemente política. Como vocês veem o trabalho que desenvolvem em
relação às origens do campo?
Mauad: Em primeiro lugar, é importante dizer que a História não inventa nada. O
campo dos estudos históricos no Brasil é muito diversificado e avançado, mas lá fora é muito
conservador. O campo institucional da História é muito conservador. O Maurício foi muito
preciso ao identificar o que os anos 1990 vão fazer. Quando eu fui trabalhar com fotografia,
ela era fonte e representação associadas a uma ideologia e à produção de hegemonia, mas
esse aspecto da materialidade das imagens e de seus usos vem da Antropologia. Então o
historiador que quer trabalhar com isso mergulha na interdisciplinaridade. O que a gente fez
foi derrubar essas fronteiras. Eu me lembro que, em 1986, fui para uma Associação Nacional
de História (ANPUH) com um primeiro ensaio que fiz para usar a metodologia que estava
desenvolvendo no meu laboratório. Levei as fotos do quebra-quebra de ônibus que teve em
junho, e o encontro era em julho, e eles falaram que aquilo não era História, que eu estava
trabalhando com um acontecimento que não tinha nem esfriado, que aquilo era jornalismo,
me descascaram. Anos depois, a gente tem a História do Tempo Presente e a História Visual,
e é nos anos 1990 que a gente começa a fazer essas relações. Tem um trabalho publicado
em 1995 pela Annateresa Fabris em que ela traz justamente o circuito social da fotografia, os
usos e funções, a economia visual e como, por exemplo, o antropólogo interfere no espaço
onde faz a pesquisa quando leva uma câmera e passa a fazer parte daquelas trocas simbólicas. Os historiadores, quando começam a trabalhar com isso, fazem um trabalho à margem
da institucionalidade, mas hoje eu posso dizer que nós não somos mais periferia. Então essa
interdisciplinaridade, a criação desse “espaço ecumênico” foi muito importante para abrir os
trabalhos que hoje se apresentam no domínio da História.
Sobre a relação com os Estudos Culturais, boa parte dos cursos que eu dei na graduação nesse período, do final dos anos 1990 ao início dos anos 2000, tinha uma bibliografia dos
Estudos Culturais, até que eu comecei a ver uma bibliografia de Antropologia e me deparei
com a Elizabeth Edwards, que é historiadora de formação. São trajetórias que saíram de
disciplinas diferentes, mas confluíram para a História Visual. A Luciana Martins, da Birkbeck
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College, por exemplo, que é geógrafa, vai trabalhar com a ideia da fotografia e do filme dentro da história dessas imagens, de seus circuitos e funções e de uma imagem de Brasil que
é operada dentro de uma economia visual. Também tem o James Ryan, que trabalha com o
conceito de imaginação geográfica, e tudo isso conflui para um espaço comum de debate que
tem essa dimensão da imagem como agente muito presente. Aqui no Brasil a História acabou
sendo um espaço de muita criatividade, temos conseguido fazer trabalhos bem interessantes,
que observam a materialidade das imagens como suporte das relações sociais, resultante
dessas interações no espaço social. Não há só uma teoria, então, que esteja embasando
isso. Para quem trabalha com imagem, a História atualmente é um espaço necessariamente
transdisciplinar. Durante a minha trajetória — e também pelo contato com o Maurício —, fui
conseguindo de fato reconhecer e incorporar formas de abordar a fotografia de maneira muito
mais livre do que algumas premissas estruturalistas que estavam ali na base desse trabalho
dos anos 1980. Essas viradas, acompanhadas pela ideia de olhar a imagem como o nosso outro, é muito importante. Porque todas essas mudanças que envolvem os estudos subalternos
e os estudos culturais têm na base essa alteridade, esse outro que eu vejo e que me olha, esse
outro que tem agência, e não só é olhado, mas também retorna o olhar. Então isso é muito
importante não só academicamente, mas politicamente. A política de cotas nas universidades,
o reconhecimento da necessidade de se terem ações afirmativas identificando que esse é um
espaço excludente, também foram muito potentes, tanto é que estamos vivendo uma onda
reacionária por conta disso.
Lissovsky: Os Estudos Culturais surgem no campo das Letras e da Literatura. E tem
outra coisa acontecendo, principalmente na Europa, que é a nova História da Arte. O Didi-Huberman nunca fala em Cultura Visual porque ele vem justamente do que se convencionou
chamar de nova História da Arte, que é essencialmente a expansão da questão da arte para
a da visualidade. Essa é uma mudança que ocorre na Inglaterra, mas também na França,
influenciada pela psicanálise, por um lado, e também pelo marxismo e pela figura do Walter
Benjamin. Estudava-se muito o Benjamin na Comunicação, mas na História não. Em algum
momento, ocorreu um atravessamento da História da Arte tradicional pela Escola dos Annales
francesa, da História da Arte inglesa pela psicanálise, e dos alemães pelo Benjamin, confluindo para essa nova História da Arte.
Esse pacote cria o que se poderia dizer ser o correspondente aos Estudos Visuais no
âmbito da História da Arte. Um autor como o Hans Belting, por exemplo, vem desse campo e
não dos Estudos Culturais. Digo isso com alguma convicção por ser exatamente essa a minha
matriz, foram esses os autores que li, o que originalmente mexeu com a minha maneira de
pensar a imagem. O que eles essencialmente irão fazer é esse movimento de dizer que isso
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o que aprenderam a fazer como historiadores da arte pode se voltar também para o campo
da imagem, do fotojornalismo, da fotografia, da imagem publicitária. Então esse campo da
imagem se abre. Eu fui para uma ANPUH em Minas Gerais, nos anos 1980, convidado para
uma mesa voltada para fontes não convencionais, que eram o cinema, a fotografia e a história oral. Nós éramos os “não convencionais”. Mas o que eu queria marcar é que também
existiu essa outra mudança no campo da História da Arte e que terá uma enorme influência
nos estudos da imagem.
Entrevistadoras: Vocês dois têm uma pareceria que já vem de longa data, tanto
no diálogo entre os trabalhos quanto em artigos publicados juntos, como o “Orgulho da
tortura”, da Revista Zum. Como essa parceria se iniciou exatamente e como ela foi se
desenvolvendo ao longo do tempo?
Mauad: Eu fico bem emocionada de falar sobre isso. Eu conheci o Maurício em 1980,
a gente era estudante ainda. Mas eu acho que a gente se aproxima de fato para trabalhar em
2011, no curso “Novos Clássicos: Teoria e Crítica da Fotografia na Atualidade”, que demos
juntos na ECO/UFRJ. Essa convivência, para mim, transformou as minhas leituras e referências
e me deu coragem para fazer novas experiências com as imagens. Além disso, tem o nosso
arquivo comum, que fica no National Science and Media Museum, na Inglaterra. Foi graças a
essa referência do Maurício que eu consegui fazer essa pesquisa com fontes lá no arquivo do
jornal Daily Herald sobre o Brasil e a América Latina, que eu copiei todo. Agora nós temos um
novo ciclo de parceria com esse material, que acho que vai render bastante coisa.
Lissovsky: Essa história das vidas paralelas é bem curiosa no nosso caso. A Ana tem
uma relevância no campo da História muito grande, cumprindo um papel de liderança. E tem
uma vocação admirável para isso. Quando a gente era jovem, eu tinha uma visão de que
ela era muito certinha e eu nunca fui esse personagem. Eu me formei como historiador no
CPDOC, onde tive um respaldo institucional durante sete anos e estou sempre retornando
para lá. Ainda carrego comigo problemas e questões que apareceram nesses primeiros anos
da vida, os meus projetos agora em grande parte são um retorno às coisas que deixei soltas
nos anos 1980. Quando finalmente terminei o meu doutorado, que fiz tardiamente, e passei
a ser um professor da pós-graduação, é que tivemos a oportunidade de ter um intercâmbio
intelectual e institucional entre a gente. E de sermos mutuamente influentes, pois eu estava
querendo trabalhar menos abstrata e teoricamente e voltar a me aproximar dos arquivos e
acho que Ana estava querendo ouvir um pouco mais dessas referências vindas de outro campo. Acho que essa foi a primeira motivação do encontro. E Ana me aproximou também da
literatura do campo da História, da qual eu estava afastado. Nós levamos um tempo ainda até
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Thaís Blank e Isabella Poppe
sair dessa situação de dividir cursos, participar de bancas, dividir orientandos, para começar
a escrever e ter um projeto juntos. O próximo artigo inclusive já está pronto. Se ainda existir
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), meu novo projeto
será muito influenciado por esse encontro, que reflete um movimento mais geral do campo
da fotografia. Mas, em relação aos métodos, às perspectivas e aos problemas, nós temos
abordagens diferentes. O artigo que estamos escrevendo juntos em torno desse arquivo do
National Science and Media Museum não é uma pesquisa sobre um objeto ou uma época,
é pegar o acervo e olhar para ele, ver que histórias esse arquivo pode contar. Para mim, foi
claramente uma necessidade de reencontrar um tipo de olhar que eu achei que tinha perdido,
mas que ao mesmo tempo me interessa e me sensibiliza. Nós não sabemos se esse arquivo
do Daily Herald é incrível, mas a questão é ele despertar o nosso olhar e nos permitir pensar a
partir dessa questão do movimento das imagens. É interessante partir de uma fotografia que
já atravessou duas vezes o oceano. Ela foi para os Estados Unidos e de lá para a Inglaterra.
Então é uma dupla viagem, o que significa que ela já chega ao arquivo atravessada por muitos
olhares e isso adensa o problema. Por que se escolheu essa imagem para representar certo
acontecimento? A gente já viu que as legendas contam narrativas próprias, que inclusive existem para valorizar essas imagens na imprensa estrangeira e que às vezes não correspondem
aos seus contextos originais. Mas o fato de esse arquivo já ser adensado por esses olhares
nacionais e internacionais o torna peculiar. É diferente de você tratar de um arquivo brasileiro
cujos critérios de seleção dos acontecimentos são mais evidentes, ainda que sempre possa
ter coisas inesperadas. Mas ele é também um pretexto que a gente encontrou para trabalhar
junto neste projeto que chamamos de “O Brasil que inglês viu”, pelo fato de ser um arquivo
de fotografias brasileiras em um jornal britânico.
Entrevistadoras: Diante da atual conjuntura — de um lado a pandemia e de outro
a conjuntura política — como vocês enxergam os principais desafios de se trabalhar com
as imagens? Levando em consideração que as imagens são, como vocês disseram, agentes da História, de que forma elas podem nos ajudar a atravessar esse período histórico?
Mauad: A primeira questão agora está meio em suspenso. Esse isolamento colocou
a gente numa espécie de encruzilhada muito interessante e que nos dá a possibilidade de
pensar, sobretudo, na ideia do acesso remoto aos arquivos de imagens. Inclusive, sobre esse
material do Daily Herald, eu entrei em contato para pedir a cópia de uma das fotos, mas eles
estão com o acesso ao arquivo impossibilitado porque ele está fechado, então não consegui
a cópia. Mas aqui no Brasil — mesmo antes da pandemia — a gente enfrentava já algumas
questões, como a dificuldade de acesso aos arquivos, o alto custo de se trabalhar com ima-
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“Imagens selvagens”
gens — mesmo publicando em material acadêmico — e a forma como determinados arquivos
estavam entesourando a fotografia, que passou a ser vintage por conta do seu aspecto analógico. O roubo das fotografias na Biblioteca Nacional, nos anos 2000, inclusive virou tema
de um livro da Rosangela Rennó. Eu fico bastante mobilizada com essa questão do valor de
troca da fotografia, de transformá-la em uma mercadoria. Só que veio a pandemia, e criamos
um outro universo para poder pensar um pouco essas relações e talvez os desdobramentos
disso no futuro da pesquisa, ou seja, criar algumas pontes para facilitar o trabalho. E isso
passa também pela forma como as associações se organizam e pressionam. Mas é difícil trabalhar com imagens e é preciso desenvolver algumas estratégias quando, por exemplo, não
conseguimos a autorização para publicá-las. Isso são questões que a gente tem que enfrentar,
entendendo que a fotografia, quando utilizada em um trabalho acadêmico, é um documento
como outro qualquer.
Sobre essa outra questão, de como as imagens estão vendo este nosso tempo presente, do ponto de vista político estou esperando a guerra das imagens. O momento em
que essas imagens se tornem insuportáveis. Elas já estão insuportáveis, mas vão se tornar
ainda mais. Essa contenção tem a ver com o isolamento e nossa restrição de mobilização.
Eu acho que se não fosse isso já teríamos um monte de emas e de bonecos nas ruas, as
imagens já estariam assumindo outros corpos. A gente ainda está muito nessa guerra de
memes. O que eu espero das imagens, na verdade, é que elas se tornem selvagens, que
ganhem as ruas, como aqueles animais que invadiram as ruas logo no início da pandemia
na Europa. Eu queria muito que as imagens se tornassem corpos revoltados, porque estou
me sentindo muito vilipendiada por essas imagens grotescas. Então a minha expectativa era
que essas imagens tomassem o espaço das ruas e assumissem corpos viventes, colocando
essa potência para fora.
Lissovsky: O que Ana disse é extremamente relevante. Eu não vou falar muito sobre o
tema da pesquisa, porque acho que a pesquisa é o que a gente faz e vai continuar fazendo. É
um pequeno território, que talvez nós que estamos nisso há muito tempo tenhamos uma liberdade de continuar fazendo. É um luxo e uma trincheira. Me lembro de um professor-orientador
que, quando perguntávamos “O que a gente vai fazer?”, ele dizia que resistir era continuar
fazendo o que a gente sempre fez. É claro que a nossa agenda de pesquisa é atravessada pelo
contemporâneo. A atenção que damos a certas imagens e o tipo de pergunta que fazemos a
elas são atravessados pelos enigmas e os impasses do contemporâneo. Essa História diletante, como é a história positivista, nos diz pouco; e no tipo de História que a gente faz com as
imagens, elas são sempre nossas contemporâneas, estão sempre vivas. Então, quanto a isso,
eu não tenho dúvida de que vamos continuar fazendo o que a gente faz, porque acho que a
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Thaís Blank e Isabella Poppe
atualidade das imagens não se perde jamais, ao contrário, elas são frequentemente reavivadas pela experiência do contemporâneo.
A outra coisa é essa ansiedade em torno do tempo da rua. Nós tivemos a ilusão, em
algum momento, de que mergulhávamos num mundo de imagens, mas descobrimos que esse
mundo em que mergulhávamos era o das narrativas. A eficácia dessas imagens enquanto agentes políticos, formadores de opinião e de consciência, tem a ver largamente com o tipo de discursos ao qual estão associadas, pois elas têm vida própria, mas não têm autonomia plena em relação aos discursos. Então acho que a gente se meteu em um nó pelo fato de que existe um novo
estado das imagens e um novo ambiente para as narrativas, e a gente ainda não sabe como lidar
com ele. Vamos ter que reaprender, e talvez esse não seja mais um problema da minha geração.
Mas ainda podemos sair na rua fantasiados de emas. O gesto político mais importante de ser
feito talvez seja esse de reencarnar as imagens, por isso essa ideia do “bloco das emas” sintetiza
um problema que é estético e político. Esse é o desafio que está colocado para a nossa geração
no campo da intervenção no espaço público. Talvez tenhamos dado liberdade demais a essas
imagens, que estão muito soltas. No início da década de 1920, já haviam alertado para o fato
de que ninguém controla imagens à solta, não sabemos para onde elas vão. E talvez tenhamos
nos tornado reféns da ideia de que a tal guerra de que a Ana falou se dê apenas no campo das
imagens. Acho que isso pode ser um engano. E colocar novamente os corpos em cena é um
conselho bastante útil, acho que essa deve ser a agenda, de reencarnar novamente as imagens
na rua. Porque eu acho que existe esse desafio de rematerializar a experiência de mundo. Nós
de fato vamos aceitar combater nesse território? Me parece um território já perdido. Existe um
desejo nas pessoas de virar imagem e nesse mundo em que estamos vivendo, com essa nova
direita, uma das coisas que ela alicerça é essa oferta de tornar as pessoas imagens. O acesso ao
consumo lhe oferece elementos suficientes para você virar imagem.
Conflitos de interesse: nada a declarar.
Fonte de financiamento: nenhuma.
Contribuições dos autores: Blank, T.: Administração do Projeto, Conceituação, Edição.
Poppe, I.: Escrita, Edição, Revisão.
Nota
1 Curso livre promovido pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da FUNARTE.
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“Imagens selvagens”
Referências Bibliográficas
AZEVEDO, P. C.; LISSOVSKY, M. (orgs.). Escravos brasileiros do século XIX na fotografia de Christiano Jr. São
Paulo: Ex Libris, 1988. (Textos de Jacob Gorender, Manuela Carneiro da Cunha e Muniz Sodré).
LISSOVSKY, M.; MAUAD, A. Orgulho da tortura. Zum, São Paulo, p. 88 - 95, 1 out. 2019.
MAUAD, A. Sob o signo da imagem: a produção da fotografia e o controle dos códigos de representação
social, na cidade do Rio de Janeiro na primeira metade do século XX. 1990. Tese (Mestrado em História) –
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1990.
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