O CORAÇÃO DAS TREVAS
JOSEPH CONRAD
BIBLIOTECA VISÃO
Romancista britânico de origem polaca, Joseph Conrad
notabilizou-se como um dos melhores prosadores de língua
inglesa, através das suas histórias, em que se conjuga a
aventura romântica e a reflexão moral.
Em O Coração das Trevas o escritor evoca o espírito da África
Negra, e através do personagem de Kurtz, um misterioso
negociante branco, mostra que no homem civilizado permanecem
os impulsos mais selvagens e destrutivos. Além de reflectir o
choque entre as duas culturas: os colonizados e os
colonizadores europeus, esta Obra conduz o leitor às trevas da
selva africana e simultaneamente do coração humano.
NOTA BIOBIBLIOGRÁFICA
JOSEPH CONRAD nasceu em Berdichev, em Ucrânia, em 1857. De
origem polaca, o seu nome verdadeiro era Jósef Konrad Walecz
Korzeniowski. O pai era um nacionalista polaco que, devido às
suas actividades políticas, foi desterrado para a Ucrânia. Só
aprendeu inglês aos vinte anos e a sua segunda língua foi o
francês. Órfão aos onze anos, ficou sob a tutela do tio. Em
1874 partiu para Marselha onde se alistou na marinha. Em 1886
obteve o masters Certificate e a nacionalidade britânica. As
suas experiências no Oriente foram tema de inspiração de
muitos dos seus romances. Em 1890 abandonou a marinha para se
dedicar inteiramente à literatura. Em 1895 publicou o seu
primeiro romance, A Loucura de Almery. Em Um Vagabundo das
Ilhas, do ano seguinte, debruça-se sobre as diferenças
raciais. Casou-se nesta altura com Jessie George. Continuou a
escrever, mas só com a publicação de Chance em 1913 viria a
tornar-se famoso. Criticando o colonialismo e convencido de
que até os elevados ideais têm em si a semente da corrupção,
foi um mestre no esboço de personagens e manifesta grande
domínio da linguagem e um singular vigor narrativo. Conrad
morreu em Kent em 1924.
Algumas obras mais conhecidas:
O Preto de Narcissus, novela maritima (1897);
Lord Jim (1900);
O CoraÇão das Trevas (1902);
Tufão (1903);
O Agente Secreto (1907);
Acaso (1913;
Victory (1915);
Histórias Inquietas (1898).
Título original: Hearth of Darkness
Autor: Joseph Conrad
Edição cedida por
Editorial Estampa
2000 BIBLIOTEX, S. L.
para esta edição
ABRIL/CONTROLJORNAL
Publicação: Julho de 2000
1
A Nellie, chalupa de recreio, rodou à volta da âncora sem
panejar as velas, e ficou imóvel. A maré enchia quase sem
vento, e como seguíamos rio abaixo só nos restava fundear à
espera da viragem.
O estuário do Tamisa rasgava-se como a boca de um canal
interminável. Céu e mar uniam-se ao largo, sem traço de
separação, e as velas crestadas das barcaças, a subirem com a
maré, pareciam imobilizar-se no espaço luminoso como fardos de
lona muito tensa, vermelhos, onde luzia o verniz dos mastros.
As margens baixas corriam para o mar e sobre elas carregava
uma névoa diluída na planura. O ar estava sombrio acima de
Gravesend, e mais longe parecia condensar-se numa treva
desolada que pesava, imóvel, sobre a mais vasta e grandiosa
cidade do mundo.
O director da Companhia era nosso capitão e anfitrião. De
costas, com os olhos postos no mar, a nós quatro inspirava
simpatia. Em todo o rio nada havia mais náutico do que ele.
Tinha ar de piloto de barra, o que entre marinheiros quer
dizer confiança personificada. Era difícil admitirmos que a
sua profissão deixasse de chamá-lo ali, ao luminoso estuário,
e o não levasse longe, para enigmáticas sombras.
Eu já disse noutro lado que a todos nos ligava o laço do
mar. Em largos períodos de afastamento mantinha unidos os
nossos corações, mas, além disso, garantia a tolerância mútua
que devemos às nossas histórias - ou mesmo certezas. O
advogado - o melhor dos camaradas - era homem com tantos anos
e virtudes que lhe dávamos direito à única almofada e a
estender-se no único tapete do convés. O contabilista já tinha
à frente a caixa do dominó e divertia-se a fazer construções
com pedras de osso. Marlow, esse estava à popa com as pernas
cruzadas e encostado ao mastro da catita. Era um homem de
rosto cavado, tez lívida e tronco hirto. com ar ascético de
ídolo.
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veio sentar-se connosco. Depois de algumas palavras
despreocupadas, no iate houve um silêncio. Por qualquer razão
que me não lembra, a partida de dominó ficou por jogar.
Estávamos pensativos e apenas dispostos à contemplação. O dia
acabava numa paz de radiações calmas e esplêndidas. O brilho
da água era pacífico; sem nuvens, o céu, todo ele benigna e
luminosa imensidão, e a própria névoa era uma gaze leve, nos
pântanos do Essex, presa às encostas arborizadas do interior e
estendida em pregas diáfanas pela costa baixa. Só a oeste,
suspensa por cima das extensões visíveis, minuto a minuto a
treva se ia fazendo mais opaca e como que enraivada contra o
Sol prestes a tocar-lhe.
Por fim, numa queda de curvatura imperceptível, o Sol desceu
e, de branco-incandescente passou a vermelho-turvo, sem raios
nem calor, como se fosse ficar apagado de repente e ferido de
morte, ao tocar aquela escuridão caída em peso sobre a
humanidade.
Depois, o aspecto das águas alterou-se e a calmaria
enfraqueceu de brilho e tornou-se mais profunda. Planíssimo ao
entardecer, o velho rio descansava na bacia vasta, após muitos
séculos de bons serviços prestados à raça que lhe povoa as
margens, ampliado na serena dignidade pela estrada de água que
leva aos mais ermos recantos da terra. Olhávamos a torrente
venerável, não já tocados pela claridade vivida de um destes
dias curtos que chegam e partem de vez, mas pela augusta luz
de memórias infindáveis. A um homem que respeitosa e
afeiçoadamente correu mares, como é costume dizer-se, nada
mais fácil, de facto, que invocar no estuário do Tamisa o
grandioso espírito do passado. Com um préstimo incansável, a
corrente move-se de um lado para o outro e povoa-se com a
memória dos muitos homens e navios que levou ao sossego do lar
ou às batalhas do oceano. Conheceu e serviu todos esses
homens, que hoje são orgulho da pátria, desde Sir Francis
Drake a Sir John Franklin, todos nobres com ou sem título - os
grandes cavaleiros-andantes do mar. Deu vida a todos esses
navios cujos nomes ardem como jóias na noite do tempo, desde o
Golden Hind que chegou com o bojo a transbordar de ouro, para
receber Sua Majestade a Rainha e diluir-se numa epopeia
gigantesca, ao Erebus e ao Terror, virados a outras conquistas
- que não tiveram regresso. Conheceu navios e homens. Os que
largaram de Deptford, Greenwich, entre aventureiros e colonos;
navios reais e navios de homens de Bolsa; capitães,
almirantes, os sombrios traficantes do comércio do Leste,
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e os generais" - comissários das frotas das Índias Orientais.
Caçadores de ouro ou conquistadores de glória, todos partiram
deste rio com a espada em riste, quando não o facho,
mensageiros do poder em terras do interior, estafetas de uma
centelha de sagrado fogo. Na maré deste rio que grandezas não
vogaram até ao mistério das terras desconhecidas!... Sonhos de
homem, sementes de domínio, gérmenes de impérios.
Já posto, o Sol desceu o crepúsculo até às águas e
acenderam-se as luzes ao correr das margens. O farol de
Chapman brilhou com toda a força, tripé levantado em pleno
lodaçal. Luzes de navios andavam pela esteira navegável grande agitação de luzes para cima, para baixo. E mais a
oeste, nos limites superiores do estuário, o lugar da cidade
monstruosa, sinistramente marcado no céu, treva a germinar na
luz do Sol, sinistro olhar debaixo de estrelas.
- E tudo isto, aqui - disse Marlow, de repente - foi um dos
lugares selvagens do mundo.
Era o único, entre nós, que ainda corria os mares". E o pior
que a seu respeito podia dizer-se é que não representava a
classe. Marinheiro, sim, mas vagabundo também, enquanto a
maior parte leva um género de vida, digamos que sedentário.
Tinha espírito caseiro e arrastava consigo a casa - o navio; e
a sua terra - o mar. Todos os barcos se parecem uns com os
outros, e o mar é sempre igual. No imutável ambiente que os
rodeia, as costas estrangeiras, as caras estrangeiras, a
versátil imensidão da vida deslizam rápidas e não veladas por
um sentido de mistério, mas certa ignorância desdenhosa; para
o marinheiro, misterioso só o próprio mar que é amante de toda
a vida e tão indevassável como o Destino. Quanto ao mais,
depois das horas de trabalho basta um acidental passeio, uma
pândega em terra, para o segredo de um continente inteiro
ficar exposto, e, regra geral, achar que não vale o esforço de
ser conhecido. As histórias dos marinheiros são objectivamente
simples e com significado que cabe inteiro em meia casca de
noz. Marlow, porém, não era típico (exceptuada a tendência
para tagarelar); para ele, o significado de um episódio não
estava no seu interior, como um caroço, mas fora, a envolver a
história e a dar-Lhe realce, como o calor que provoca a névoa,
como esses halos de vapor que o fantomático luar por vezes faz
visíveis.
A sua observação não surpreendeu ninguém. Era exactamente do
género Marlow. E foi aceite em silêncio.
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Nenhum de nós se deu ao trabalho, sequer, de murmurar; por fim
disse-nos em voz lenta:
- Pensava eu nos tempos remotos em que os Romanos chegaram
aqui pela primeira vez, há cerca de mil e novecentos anos - já
lá vão uns dias, portanto... Depois disso o rio iluminou-se Cavaleiros da Távola Redonda, não é como lhes chamam? Sim; mas
lembra uma labareda a correr pela planície, o fulgor de um
relâmpago entre nuvens. Vivemos nesse clarão - e saiba ele
persistir enquanto o mundo girar! Mas ontem havia trevas,
aqui. Imaginem a sensação do comandante de um bonito veleiro
do Mediterrâneo - como se diz? - uma trirreme, que recebesse
inesperadas ordens para rumar ao norte; a correr pelas Gálias,
cheio de pressa; encarregado de um desses barcos que os
legionários - uma porção de maravilhosos homens, ao que
parece!construíam às centenas num mês ou dois, se acreditarmos
naquilo que lemos. Imaginem esse comandante aqui - num
verdadeiro fim de mundo, mar cor de chumbo, céu fuliginoso,
numa espécie de navio todo desengonçado como uma concenina -,
a galgar este rio carregado de provisões ou ordens, como
quiserem. Bancos de areia, pântanos, florestas, homens
selvagens - raríssimas coisas que um homem civilizado pode
comer, e só água do Tamisa para tirar a sede. Nem uma gota de
vinho de Falerno e nenhumas idas a terra. Aqui e além um
acampamento militar perdido na selva, como agulha num palheiro
- frio, névoa, tempestades, doenças, exílio e morte - morte
escondida no ar, na água, no mato. Devem ter morrido como
moscas. Oh, sim - ele conseguia. Conseguia muito bem, podem
vocês acreditar, e sem pensar de mais no caso, pensar só mais
tarde, talvez para se gabar do que teve, no seu tempo, de
aguentar. Eram homens para encarar as trevas de frente. E
talvez lhes não faltasse coragem por trazerem debaixo de olho
uma promoção rápida no exército de Ravena, caso contassem com
os bons amigos de Roma e sobrevivessem aos rigores do clima.
Ou imaginem um jovem e honesto cidadão de toga -perito a jogar
aos dados, não sei se estão a ver - aqui chegado na esteira de
um administrador qualquer, de um cobrador de impostos ou mesmo
mercador, para fazer fortuna. Desembarcar num pântano, marchar
através de bosques e sentir que a selvajaria, a verdadeira
selvajaria de um posto do interior, se fechou à volta dele toda a misteriosa e selvagem vida que põe florestas e matagais
a vibrar, o coração dos homens não civilizados. Não são
mistérios em que as pessoas possam iniciar-se. Só há que viver
no meio do incompreensível e detestável também.
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Mas fascinante e capaz de actuar em nós. Como sabem, a
fascinação do abominável. Imagine-se a saudade crescente, o
forte desejo de evasão, o impotente desagrado, a abdicação, o
ódio.
Fez uma pausa.
- Notem - recomeçou, erguendo um braço a partir do cotovelo
com a palma da mão virada para fora e as pernas cruzadas à
frente, autêntico ar de buda vestido à europeia e a pregar sem
flor de lótus -, notem que nenhum de nós sentiria o mesmo. O
que nos salva é a eficiência - a devoção pela eficiência. Mas
aquela gente não tinha lá grande préstimo, na verdade. Não era
colonizadora: ao que suponho, o seu império era espremer e
mais nada. Conquistadora era, e para isso há que ter força
bruta - coisa que não devemos gabar, quando existe, pois não
passa de mero acidente e resulta da fraqueza alheia. Deitavam
a mão ao que podiam, só pelo gosto de possuir. Nada mais do
que roubo violento, crime agravado pela sua grande escala e os
homens a ceder-lhe como cegos - vulgar atitude dos que têm de
enfrentar as trevas. A conquista da terra (na maior parte dos
casos roubá-la aos de cor diferente ou nariz mais achatado)
não será bonita coisa se olhada de muito perto. Só a ideia que
ela implica consegue redimi-la. A ideia que a sustenta; não
sentimental pretexto, mas ideia; e uma fé desinteressada nessa
ideiaqualquer coisa que pode ser erguida e venerada, a que
podemos oferecer um sacrifício...
Calou-se. No rio deslizavam chamas, minúsculas chamas
verdes, chamas vermelhas, chamas brancas que perseguiam,
ultrapassavam, juntavam, cruzavam - acabando por separar-se
devagar ou cheias de pressa. O tráfego da grande cidade que se
estendia cada vez mais, pela noite fechada e sobre as ágúas do
rio sem sono. E cheios de paciência olhávamos - pois não se
podia fazer mais nada até a maré subir; só depois de um grande
silêncio é que Marlow disse, hesitante:
- Talvez se lembrem de que fui marinheiro de água-doce,
durante algum tempo... - e logo nos soubemos destinados a
ouvir, antes da maré encher, uma dessas histórias do Marlow,
que não levavam a parte nenhuma.
- Não quero maçar-vos muito com a minha experiência pessoal
- começou, e com esta observação punha a claro o ponto fraco
de tantos narradores, incapazes de escolher matéria de
interesse para os seus ouvintes; - no entanto, se querem
entender que efeito aquilo produziu em mim, têm de saber como
fui lá parar, o que vi, como subi o rio até ao sítio
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onde encontrei, pela primeira vez, o pobre daquele homem. Era
no extremo da zona navegável, ponto culminante da minha
experiência. Parecia irradiar uma espécie de luz sobre tudo o
que havia à minha volta - até os meus pensamentos. Era
bastante sombrio - e miserável - sem nada de extraordinário e muito pouco compreensível também. Sim, muito pouco
compreensível. Apesar disso, parecia irradiar uma espécie de
luz.
Como estão lembrados, eu acabava de regressar a Londres
depois de uma boa dose de oceanos Índicos e Pacíficos, de
mares da China - um fartote de Oriente - seis anos ou quase;
andava a gozar os rendimentos e não vos deixava trabalhar,
invadia-vos a casa, exactamente como se tivesse a missão
divina de vos civilizar. Durante algum tempo foi uma beleza,
mas depois o descanso saturou-me. Desatei então a procurar um
navio - que é, suponho eu, o trabalho mais duro deste mundo.
Mas os navios é que não reparavam em mim. Comecei a fartar-me
da brincadeira.
Acontece que em miúdo eu tinha a paixão dos mapas. Ficava
horas a olhar para a América do Sul, a África ou a Austrália,
e divagava por todas as glórias da exploração. Naquele tempo o
mundo ainda tinha muitos espaços em branco, e sempre que eu
via algum deles particularmente convidativo (mas isso todos
eram) punha-lhe o dedo em cima e dizia: quando eu for crescido
hei-de lá ir. Lembra-me que o Pólo Norte era um desses
lugares. Pois bem, ainda lá não estive nem vou tentar
conhecê-lo. Foi-se-lhe o encanto. Outros espalhavam-se à volta
do Equador e em toda a espécie de latitudes dos dois
hemisférios. Estive nalguns e... olhem, o melhor é nem falar
nisso. Mas no entanto havia um - o maior e mais em branco,
digamos - que mais ansioso me fazia.
Em boa verdade, naquela altura já não estava em branco.
Desde os meus tempos de infância tinha-se enchido de rios e
lagos e nomes. Deixara de ser espaço em branco, de maravilhoso
mistério - nódoa branca feita para um rapaz sonhar glórias.
Transformara-se em lugar de trevas. De especial tinha um rio,
enormíssimo rio que podíamos ver no mapa e parecia uma cobra
imensa desenrolada, com a cabeça no mar e o corpo em torcido
repouso numa região ampla, rabo a perder-se nas profundezas do
território. Quando eu olhei para esse mapa na montra de uma
loja fascinou-me como a serpente que fascina um pássaro - um
passarinho pateta.
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Nessa altura ocorreu-me que uma importante empresa estava lá
instalada. Companhia para o tráfico comercial do rio. Vamos a
isto!, pensei comigo mesmo, que eles não podem fazer o tráfico
sem um barco qualquer - sem barcos a vapor! - numa tão grande
extensão de água doce. Por que não tentas arranjar o comando
de um deles? A ideia não me saía da cabeça enquanto ia andando
pela Fleet Street. Tinha-me fascinado.
A tal Sociedade, como calculam, era uma empresa
metropolitana; mas com uma porção de relações no Continente
porque era mais barato e não desagradável de todo viver aqui,
diziam elas.
Custa-me confessar que desatei a maçá-las. O que já
constituía, para mim, novidade. Como sabem, não é meu hábito
obter coisas desta forma. Sempre segui caminhos próprios e com
as minhas pernas. Nem me acreditava capaz de semelhante coisa,
mas naquela altura - vejam lá vocês - andava com a ideia
fisgada de arranjar um lugar, custasse o que custasse. Por
isso as incomodei. Os homens disseram-me: Sim, sim, meu
amigo!, mas não passaram daí. Por isso - acreditem se quiserem
- tive de recorrer às mulheres. Eu, Charlie Marlow, pus as
mulheres ao barulho - para arranjar emprego. Santo Deus! A
ideia obcecava-me, não sei se compreendem. Eu tinha uma tia de
querida e entusiástica alma. Respondeu-me por carta: Vai ser
delicioso. Estou pronta a fazer tudo, tudo, por ti. É uma
ideia formidável. Conheço a mulher de uma importantíssima
pessoa da Direcção, e também conheço um homem com muita
influência junto de, etc., etc." Se a minha fantasia era essa,
estava disposta a mover céu e terra para me nomearem
comandante de um vapor fluvial.
Consegui a nomeação - pois claro; e muito depressa. Parece
que a Companhia recebera a notícia que um dos seus capitães
morrera numa escaramuça de indígenas. Como era a minha
oportunidade, ainda mais ansioso fiquei. Só meses e meses
depois, quando tentei recuperar os restos do cadáver, ouvi
dizer que o princípio do litígio tinha sido um mal-entendido a
respeito de galinhas. Sim, duas galinhas pretas. Fresleven
como o tal sujeito se chamava, um dinamarquês - julgou-se
prejudicado, não sei como, no negócio, saltou para terra e
desatou à paulada no soba. Oh, não me surpreendeu nadinha
ouvir isto, nem que o Fresleven era a criatura mais amável e
pacata que alguma vez andara sobre duas pernas. Seria isso,
sim senhor; mas vivia por aqueles sítios há um par de anos,
entregue à nobre causa, sabem vocês, e provavelmente acabara
por sentir necessidade de deixar bem vincada a sua autoridade.
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Por isso espancou sem piedade o velho negro, à frente de um
grande ajuntamento de homens da tribo que pareciam fulminados
por um raio; até alguém - disseram-me que o filho do soba sentir um grande desespero com os berros do velho, fazer o
gesto de atirar ao branco uma zagaia - e ela, claro está, com
toda a facilidade se espetar entre as duas omoplatas. A
população inteira fugiu para o mato, a esperar calamidades de
toda a espécie, enquanto o vapor do Fresleven largou num
grande pânico, ao que julgo conduzido pelo maquinista. Parece
que ninguém se preocupou muito com os restos do dinamarquês
até eu lá aparecer a calçar-lhe as pantufas. As coisas não
podiam ficar assim; mas quando tive a sorte de encontrar o meu
antecessor já o capim lhe crescera tanto entre as costelas que
escondia os ossos. Não faltava nenhum. Ninguém tocara naquele
ser sobrenatural depois de morto. E a aldeia estava deserta,
com as cubatas abertas, negras, podres e todas desengonçadas
dentro de cercados espalhados no chão. Caíra-lhes em cima uma
calamidade, não haja dúvidas. Todos tinham desaparecido. Um
terror louco dispersara pelo mato homens, mulheres e crianças
que nunca mais voltaram. O que foi feito das galinhas, também
não sei. Julgo que as afectaram à causa do progresso. Seja
como for, a este glorioso caso devo a minha nomeação, mesmo
antes de ter tido esperança no lugar.
Andei numa correria para ter tudo pronto, e não eram
passadas quarenta e oito horas quando atravessei a Mancha para
ir apresentar-me aos meus patrões e assinar o contrato. Horas
depois chegava a uma cidade que lembro sempre como um sepulcro
caiado de branco. Mania minha, sem dúvida. Não foi difícil
encontrar os escritórios da Companhia. Eram o que havia de
maior na cidade, e o orgulho geral. Se eles iam explorar um
império ultramarino e fazer negócios que nunca mais acabavam!
Uma rua estreita e deserta que mergulhava em profunda
sombra, edifícios altos, inúmeras janelas com persianas, um
silêncio de morte, erva a crescer entre as pedras da calçada,
à esquerda e à direita imponentes entradas de carros, portas
imensas de dois batentes, sinistramente abertas. Esgueirei-me
por uma destas gretas, subi a escada nua e bem varrida, árida
como um deserto, e abri a primeira porta que encontrei. Duas
mulheres, uma gorda e outra magra, estavam sentadas em
cadeiras de palha a tricotar lã preta.
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A magra levantou-se e veio direita a mim - sem interromper o
trabalho,com o olhar baixo - e já me dispunha a sair-lhe do
caminho, como se faz com uma sonâmbula, quando parou e me
fixou no rosto. Trazia um vestido tão escorrido como um pano
de guarda-chuva. Sem dizer uma palavra, rodou e entrou à minha
frente na sala de espera. Disse-Lhe o meu nome e observei o
que me rodeava. Ao centro, uma mesa de pinho, cadeiras
vulgares encostadas às paredes, no extremo da sala um grande
mapa brilhante, impresso com todas as cores do arco-íris. O
vermelho abundava - sempre agradável de ver, pois sabemos que
é onde há trabalho a sério -, azul em grande quantidade, pouco
verde, manchas alaranjadas e um remendo cor de púrpura na
Costa Oriental, a indicar o sítio onde amáveis pioneiros do
progresso bebem amáveis garrafas de cerveja. Mas eu não ia
para lá. Ia para o amarelo. Mesmo ao centro. E lá estava o rio
- fascinante - mortífero - como uma cobra. Uff! Uma porta
abriu-se e apareceu um secretário de cara branca estampada de
compaixão e a apontar com um dedo descarnado para o santuário.
Lá dentro a luz era fraca e o espaço atravancado com uma mesa
pesada. De trás desse monumento chegava-me uma sugestão de
gordura pálida, metida num fraque. O grande homem em pessoa.
Calculo que media cerca de cinco pés vírgula seis de altura e
desse à manivela a muitos milhões. Creio que me apertou a mão
e num vago murmúrio mostrou regozijo pelo meu francês. Bon
voyage.
Quarenta e cinco segundos mais tarde já eu regressava à sala
de espera, acompanhado pelo secretário passivo, desolado e
simpático, que me deu a assinar um documento qualquer. Entre
outras coisas julgo que prometi não revelar segredos
comerciais. Claro está que não vou fazê-lo.
Eu começava a sentir-me pouco à vontade. Como sabem, não
estou habituado a cerimónias destas e pairava qualquer coisa
no ar como um mau presságio. Exactamente como se me obrigassem
a entrar numa espécie de conspiração - sei lá numa coisa
desonesta; ao sair respirei fundo. Na outra sala, as duas
mulheres continuavam a sua febril malha preta. Outras pessoas
chegavam e a mais nova anunciava-as, num corrupio. A velha
mantinha-se quieta na cadeira. Tinha os chinelos de pano
apoiados numa escalfeta e um gato aninhado no colo. Usava uma
coifa branca, engomada, e tinha uma verruga na cara, óculos
com aros na ponta do nariz. Deitou-me um olhar por cima das
lentes. E a indiferente e fugidia placidez desse olhar
perturbou-me.
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Nessa altura acabavam de ser introduzidos dois jovens com ar
alegre mas apalermado, a quem lançou o mesmo olhar rápido e de
sabedoria impávida. Parecia saber tudo a respeito deles e de
mim. Uma sensação de supersticioso medo me invadiu. Era como
que uma criatura cheia de mistério e fatalidade. Mais tarde, e
muito longe dali, pensei com frequência nestas duas mulheres
de guarda à porta das Trevas, a fazerem malha com lã preta,
como se fosse um sudário do frio, uma delas a anunciar gente
atrás de gente ao desconhecido, a outra a devassar rostos
alegres e descontraídos com fatigados mas implacáveis olhos.
Ave! Tricotadora velha de lã negra! Morituri te salutant.
Entre os que olhou assim poucos voltaram a vê-la - contas por
alto, nem metade.
Faltava uma visita ao médico. Simples formalidade,
garantiu-me o secretário com ar de quem seguia de perto os
meus incómodos. Visto isso, um rapaz de chapéu caído para o
sobrolho esquerdo, ao que julgo empregado - naquela casa devia
haver empregados, embora o silêncio lembrasse uma cidade de
mortos -, desceu a escada e levou-me com ele. Ia mal vestido e
desleixado, com manchas de tinta nas mangas do casaco, gravata
larga tufada por debaixo do queixo que lembrava um tacão de
bota velha: Como era cedo demais para o médico, propus-lhe que
tomássemos qualquer coisa e o seu bom humor despertou logo.
Quando nos sentámos à frente dos vermutes, elogiou a actuação
da Companhia, e fê-lo de uma tal forma que manifestei surpresa
por ele não ir para lá. Ficou subitamente frio e macambúzio.
"Não sou tão doido como pareço", dizia Platão aos seus
discípulos, foi a sentenciosa resposta que me deu ao despejar
o copo com um gesto decidido.
E levantámo-nos.
O velho médico tomou-me o pulso mas estava a pensar,
evidentemente, noutra coisa. "Bom, bom para aquilo", resmungou
e a seguir, com uma certa vivacidade, quis saber se eu o
autorizava a tirar medidas à minha cabeça. Um tanto
surpreendido respondi que sim, e então rapou de um compasso e
tirou-me medidas da nuca e da testa e dos lados, apontando-as
conscienciosamente. Era um homenzinho de barba mal feita,
metido numa espécie de gabardina puída e com os pés calçados
em chinelos, que me pareceu um inofensivo maluquinho. "No
interesse da ciência, costumo pedir sempre para tirar as
medidas cranianas dos que partem", explicou. - "E quando
voltam, também?", perguntei. -"Oh! Nunca os vejo", observou,
"aliás, as alterações são por dentro, não sei se sabe."
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Sorriu, como se fosse um gracejo amável. "Com que então, vai
para lá. Famoso. Direi mesmo que interessante." Deitou-me um
olhar investigador e tomou mais uma nota. "Na sua família
nunca houve casos de loucura?", perguntou no mais natural dos
tons. Fiquei aborrecidíssimo. - "Também faz essa pergunta no
interesse da ciência?" - "Talvez" respondeu, sem ligar à minha
irritação, "à ciência interessa observar as alterações mentais
dos indivíduos quando elas se dão, mas...", Cortei-lhe a
palavra: "O senhor é alienista?" - "Todos os médicos deviam
sê-lo... um pouco", respondeu-me aquele original,
imperturbável. "Tenho uma teoriazinha; e vocês Messieurs que
para lá vão deviam ajudar-me a prová-la. Seria a parte que me
cabe entre as vantagens que a minha pátria colhe com a posse
de uma colónia tão magnificamente dependente. Quanto à riqueza
propriamente dita, deixo-a aos outros. Desculpe-me as
perguntas, mas o senhor é o primeiro inglês que observo..."
Apressei-me a garantir-lhe que não era nada típico. "Se o
fosse", acrescentei, "não estaria aqui a conversar consigo. "Será profundo o que me diz, mas provavelmente errado",
respondeu com um sorriso. "Evite irritações, ainda mais do que
o sol. Adieu. Vocês, ingleses, como é que dizem? Good-bye.
Isso mesmo. Good-bye. Adieu. Nos trópicos, acima de tudo deve
manter-se a calma..." Levantou um dedo, como quem advertia...
"Du calme, du calme. Adieu."
Ainda faltava outra coisa - dizer adeus à minha excelente
tia. Achei-a triunfante. Tomei com ela uma chávena de chá - o
último chá decente por muitos dias - numa sala que dava a
ideia, a mais favorável possível, do que são uns aposentos de
senhora, e tivemos uma longa conversa ao pé da lareira.
Durante as confidências bem claro ficou que tinha feito a
minha descrição à mulher do alto dignitário, e Deus sabe a
quantas mais pessoas, transformando-me em excepcional e bem
dotada criatura - grande achado para a Companhia - homem como
não aparece um todos os dias. Deus santíssimo! Eu que só ia
tomar conta de um reles vapor fluvial de meia-tigela e com um
apito de trazer por casa! Até parecia que estava em causa um
desses trabalhadores com maiúscula - não sei se estão a ver
Qualquer coisa como uma espécie de emissário da luz, qualquer
coisa como um apóstolo de segunda. Naquele tempo era doença
que andava na moda, quer em letra de forma, quer na linguagem
falada, e a excelente senhora, que vivia no meio dessas
aldrabices, perdera a cabeça.
16
Falou-me em libertar milhões de ignorantes dos seus
horrorosos costumes,, ao ponto, palavra de honra, de eu
começar a sentir-me pouco à vontade. Atrevi-me a sugerir que o
objectivo da Companhia era ter lucros.
"Meu querido Charlie, estás a esquecer-te de que o obreiro
tem sempre a sua recompensa", respondeu com energia. Bem
estranha é a forma de as mulheres fugirem à realidade. Vivem
num universo muito seu, e nunca houve nem haverá nada que seja
possível comparar-lhe. Nele tudo é bonito demais e, se as
obrigassem a pô-lo de pé, cairia de pantanas antes de o dia
terminar. Bastariam algumas das realidades com que nós,
homens, andamos em contenda desde a criação do mundo, para
ruir tudo de cima a baixo.
Acabei por ser beijado, incitado a não me esquecer de usar
flanelas, a escrever com frequência, etc. - e saí. Na rua sei lá bem porquê - tive a estranha sensação de ser impostor.
Habituado, como estava, a ir para qualquer parte do mundo
numas simples vinte e quatro horas, e a fazê-lo menos
preocupado do que a maior parte das pessoas quando atravessa a
rua - tive um instante, não direi de hesitação, mas assustada
perplexidade ao enfrentar aquele acto tão banal. A melhor
forma de poder explicá-lo é dizer que senti durante um segundo
ou dois a sensação de ir para o centro da terra, e não para o
interior de um continente.
Parti num vapor francês que fazia escala por todos os
danados portos que eles lá têm, e, segundo percebi, só para
desembarcar tropa e funcionários da alfândega. Ia observando a
costa. É estar debruçado para um enigma, observar uma costa à
medida que desliza ao longo do navio. Lá estava ela - risonha,
macambúzia, convidativa, grandiosa, medíocre, insípida ou
selvagem, mas sempre calada e com ar de quem nos diz um
segredo: Vem cá e adivinha! Mas aquela, no entanto, quase não
tinha feições, era como que informe e cheia de monótona
gravidade. Orla de floresta colossal, de um verde tão escuro
que parecia negra, franjada de espuma branca e a correr
direita, como traçada a régua até longe, muito longe, num mar
azul de cintilação esfumada em névoas rastejantes. Era feroz,
o sol, e a terra parecia luzir e escorrer vapor. Aqui e além,
pequenas manchas cinzento-esbranquiçadas formavam cachos na
altura da rebentação, às vezes com uma bandeira a tremular por
cima. Implantações velhas de séculos e não maiores do que a
cabeça de um alfinete na extensão de terra virgem que lhes
servia de fundo.
17
E nós a arrastarmo-nos, a pararmos, a desembarcarmos
soldados; a prosseguirmos deixando em terra funcionários da
alfândega cuja missão era cobrar impostos naquela selvajaria
esquecida de Deus, dentro de um barracão com telhado de zinco
e um pau de bandeira solitário; voltávamos a desembarcar mais
soldados - ao que parece encarregados de proteger os
funcionários da alfândega. Alguns afogavam-se na rebentação,
ouvi dizer; verdade ou mentira, certo é que ninguém parecia
importar-se com isso. Atiravam com eles para lá e
prosseguíamos. A costa era sempre igual, como se não
andássemos, mas passávamos em localidades diversas - postos
comerciais - com nomes do género GranBassam, Pequeno Popo;
nomes que pareciam saídos de uma reles farsa qualquer,
representada em cenário sinistro. A minha ociosidade de
passageiro, o isolamento no meio de tantos homens com quem eu
não tinha pontos de contacto, o mar oleoso e lânguido, a
sombria uniformidade da costa, pareciam subtrair-me à
realidade das coisas, entregar-me a uma patética e absurda
fantasmagoria. De vez em quando a voz das ondas era um
verdadeiro prazer, como um falar de irmão. Continha qualquer
coisa de genuíno, uma razão de ser, um significado. De vez em
quando uma embarcação vinda de terra criava um momentâneo
contacto com a realidade. Eram pagaias conduzidas por negros.
Já de longe se lhes via o branco dos olhos. Gritavam,
cantavam; os corpos escorriam suor e os rostos pareciam
máscaras grotescas - eram assim, aqueles tipos, embora bem
lançados e musculosos, com vitalidade selvagem, uma energia de
movimentos intensa, tão natural e genuína como o rebentar das
ondas ao longo da costa. Não precisavam de justificar a sua
presença. Olhá-los era um grande consolo. Durante algum tempo
ainda tive a sensação de pertencer a um mundo de realidades
honestas, mas não durou muito. Não tardaria que qualquer coisa
aparecesse e soubesse afugentá-la. Certa vez, lembro-me de
termos passado por um navio de guerra fundeado junto da costa.
Nem uma cubata se via mas assim mesmo alvejava o mato. Parece
que os Franceses andavam ali com uma das suas guerras. A
bandeira caía mole como um farrapo; as longas peças de seis
polegadas espetavam todo aquele casco que a pesada e lodosa
ondulação preguiçosamente erguia e depois descia, fazendo
oscilar os mastros finos. Lá estava ele, incompreensível na
vazia imensidade da terra, do céu e da água, a alvejar um
continente. Pof, fazia um dos seis-polegadas; uma pequena
chama saltava e logo se apagava, sumida num fio de fumo
branco, e o projéctil silvava - sem acontecer nada.
18
Não podia acontecer nada. Naquela actuação, naquele
espectáculo, havia um laivo de loucura, um sinistro sentido do
cómico; e quando a bordo me garantiram que existia escondida,
não sei onde, uma concentração de indígenas - chamavam-Lhes
inimigos! - mesmo assim não ficou nada esclarecido.
Entregámos cartas (ouvi dizer que os homens morriam de
febres, à razão de três por dia naquele navio solitário) e
prosseguíamos. Tocámos noutros pontos com nomes de farsa, onde
a jovial dança da morte e do comércio segue o seu ritmo em
terrosa atmosfera de catacumba escaldante; e tudo isto ao
correr de uma costa informe e debruada por rebentações
perigosas, como se a própria natureza quisesse afugentar
intrusos; entradas e saídas de rios, torrentes de morte viva
com margens apodrecidas de lodo, águas engrossadas a lama que
invadiam retorcidos pântanos e pareciam voltar-se para nós,
como se no auge de um desespero impotente. Em nenhum lado
parámos o bastante para eu ter uma opinião abalizada, mas
senti crescer dentro de mim a sensação de vago e opressivo
espanto. Era como que uma peregrinação feita ao sabor de
sugestões de pesadelo.
Tinham passado mais de trinta dias quando vi a foz do grande
rio. Ancorámos em frente das instalações do Governo, mas o meu
trabalho só devia iniciar-se duzentas milhas a montante. Por
isso, logo que foi possível me dirigi a outro lugar, longe
dali trinta milhas.
Arranjei passagem num pequeno vapor de alto-mar. O capitão
era sueco e, ao saber-me da marinha, convidou-me a subir ao
convés. Era um jovem magro e louro, com mau humor e falta de
cabelo, andar arrastado. Quando largámos daquele molhe
miserável, a cabeça dele teve um gesto de desprezo dirigido à
terra. "Desembarcou ali?", perguntou. - "Desembarquei." "Que
malta aquela, do Governo! Não acha?", continuou num inglês
correcto e cheio de azedume. "É curioso o que alguns fazem por
meia dúzia de francos mensais. Gostava de saber o que lhes
acontece quando vão para o interior." Respondi que esperava
poder sabê-lo dentro de pouco tempo. "Pouco tem...!" exclamou.
Começou a arrastar os pés para o outro bordo, com o olhar
atento à posição da proa. "Não tenha assim tanta certeza",
prosseguiu. "No outro dia levei um homem que se enforcou a
meio do caminho. Também sueco." - "Santo Deus! Enforcou-se
porquê?", gritei. Continuou absorvido pela rota. - "Sabe-se
lá! Talvez farto de sol ou desta terra."
19
Por fim, o rio alargou. Vi uma encosta rochosa, montes de
terra removida na margem, numa colina casas, algumas com
telhados de zinco ondulado, no meio de um caos de escavações
ou suspensas da vertente. Um ruído contínuo de rápidos planava
acima desta cena de habitada devastação. Gente negra e nua, na
maior parte, andava como formigas de um lado para o outro.
Havia um cais acostável enfiado pelo rio adentro. Em certas
alturas, o sol ofuscante mergulhava tudo numa súbita
recrudescência de luz. "Ali está o posto da sua Companhia",
disse o sueco a apontar para três estruturas de madeira do
género barracão, na encosta rochosa. "Vou mandar descarregar
as suas coisas. Quatro volumes, não foi o que disse? Bom! Até
à vista!"
Fui esbarrar numa caldeira revirada no capim, e vi o
carreiro que galgava a colina. Fazia um desvio para evitar
pedreguLhos e um vagão de caminho-de-ferro que jazia de
costas, com as rodas voltadas para o ar. Faltava-lhe uma. Era
um objecto tão morto como a carcaça de um animal. Esbarrei
noutras peças de máquina, desmanteladas, num monte de carris
enferrujados. À esquerda, um maciço de árvores fazia uma
ilhota de sombra e quaisquer coisas negras se mexiam nela,
muito moles. Eu sentia-me encadeado e o caminho era íngreme.
Quando uma corneta tocou à direita, vi negros a correr. O chão
foi abalado por uma detonação violenta e surda, da encosta
saiu uma lufada de fumo, e mais nada. Nenhuma diferença se
notava na superfície da pedra. Andavam a construir um
caminho-de-ferro mas a encosta não interferia no traçado; o
trabalho que ali faziam resumia-se àqueles rebentamentos
inúteis.
Um leve tilintar, atrás de mim, fez-me voltar a cabeça. Pelo
carreiro avançavam seis negros em fila. Andavam erectos e com
lentidão, a baloiçar na cabeça pequenos cestos de terra;
aquele tilintar cadenciava a sua marcha. Tinham farrapos
negros à cintura, com pontas muito curtas que oscilavam atrás
como rabos. Podíamos contar costelas, e as articulações dos
braços e das pernas eram autênticos nós de corda; todos
traziam uma argola de ferro ao pescoço e estavam interligados
por uma corrente de elos oscilantes, que tilintavam a
compasso. Outro estampido na encosta fez-me lembrar aquele
navio de guerra que alvejava o continente. Era o mesmo género
de voz sinistra, embora a imaginação mais fértil não pudesse
chamar inimigos a estes homens. Apenas lhes chamava
condenados; e a lei, ultrajada, soubera atingi-los tanto como
as granadas - autêntico, insolúvel mistério do mar. Os peitos
magros arfavam ao mesmo tempo, as narinas violentamente
dilatadas vibravam e os olhos fixavam-se, petrificados, na
vertente da colina.
20
Apesar de terem passado a menos de seis polegadas de mim, a
completa e mortal indiferença de tão infelizes selvagens nem
um olhar me deitou. Atrás daquela matéria bruta ia um renegado
produto das novas forças do trabalho, com ar de quem passeava,
mas sem ocultar o seu desânimo ao agarrar a espingarda assim,
pelo meio. Vestia uma farda onde faltava um botão, e quando
viu um branco no caminho foi rápido a levar a arma ao ombro.
Simples prudência, pois à distância os brancos são tão
parecidos que não podia ver quem eu era. Depressa se
tranquilizou, no entanto, com um sorriso aberto, branco e
maldoso, uma olhadela aos homens que trazia à sua guarda,
pareceu aceitar-me como indivíduo que pertencia ao seu elevado
nível. Afinal de contas, eu também fazia parte da grande causa
que justificava a sua correcta e superior conduta.
Em vez de continuar a subir, dei uma volta e desci pela
esquerda. Eu queria deixar o bando agrilhoado sumir-se, para
depois galgar a colina. Como sabem, não sou de muitas
meiguices; já tive que ferir e defender-me. Várias vezes
resisti e ataquei - que é forma de resistir - sem atender ao
preço e para acatar exigências deste género de vida em que fiz
a asneira de me meter. Já vi o demónio da violência, e o
demónio da cupidez, e o demónio do desejo incendiado; mas por todas as estrelas do céu! - eram demónios fortes,
vigorosos, com olhar vermelho, que dominam e atiçam homens digo homens, reparem lá bem. Ao passo que durante o tempo que
estive na encosta, à luz ofuscante do sol daquela terra,
pressenti que iria conhecer o flácido e pretensioso demónio, o
demónio cegueta, louco de impiedade e ambição. Que insidioso
poderia também ser, só meses mais tarde e muitas milhas acima
eu viria a descobrir. Por um momento, o espanto tomava conta
de mim como se quisesse fazer-me um aviso. Acabei por descer a
colina obliquamente, em direcção às árvores que já tinha
assinalado.
Tive de evitar uma grande cova artificial que alguém
escavara na ribanceira e cuja função foi impossível descobrir.
Não era pedreira nem areeiro. Só uma cova. Associada, talvez,
ao filantrópico desejo de oferecer a condenados qualquer coisa
que os ocupasse. Não sei. Depois, quase caí num barranco muito
estreito, pouco mais do que ranhura na vertente. Verifiquei
que estava atirada para ali uma porção de canalizações de
esgoto que tinham sido importadas. Intacta, nem uma. Fora um
autêntico massacre. Acabei por chegar às árvores.
21
Desejava uns instantes de sombra, mas ao dar alguns passos
dentro dela pareceu-me que entrava no sombrio círculo de um
qualquer Inferno. Eram perto, os rápidos, e enchiam a sinistra
calma do bosque com um ruído contínuo, uniforme, tão intenso
como o de um galope; e aragem não havia nenhuma; nem uma
folha, sequer, fazia o seu som habitual e tão misterioso como se a violenta rotação do mundo tivesse ficado
repentinamente audível.
Deitadas ou sentadas entre as árvores, sombras negras
encostavam-se aos troncos e confundiam-se ou destacavam-se do
chão, meio apagadas na semiluz e em todas as atitudes de
sofrimento, abandono e desespero. Na encosta pedregosa, outro
rebentamento fez um leve tremor de terra debaixo dos meus pés.
O trabalho continuava. O trabalho! Naquele sítio é que se
recolhiam, para morrer, alguns homens que o faziam.
E morriam devagar - via-se bem. Não eram inimigos, nem
condenados, agora não eram nada além de sombras negras de
doença e fome que jaziam, numa confusão, dentro de obscuridade
esverdeada. Trazidos de todos os recantos da costa e a coberto
da maior legalidade dos contratos, perdidos num meio adverso e
alimentados de forma estranha ao seu regime, caíam doentes,
faziam-se inúteis, altura em que eram autorizados a procurar
de rastos o repouso. Aquelas formas moribundas faziám-se
livres como o ar, e quase tão leves como ele. Comecei a
distinguir-lhes o brilho dos olhos sob as árvores. E depois em
baixo, ao nível da minha mão, um rosto. Era um esqueleto negro
estendido, de ombro apoiado numa árvore e encovados olhos que
olhavam para cima, muito devagar, fixavam-se em mim enormes,
vazios, como se fossem um clarão cego e branco de órbitas
fundas que se iam apagando. Um negro parecia jovem - quase um
rapaz - mas vocês sabem como é difícil afirmá-lo. Só me
ocorreu oferecer-lhe, tirada do meu bolso, uma bolacha do
navio do meu amigo sueco. Vagarosos, os dedos fecharam-se e
agarraram-na - e não houve mais nenhum movimento, nenhum
olhar. Usava um fio de lã branca amarrado ao pescoço - porquê?
Onde o arranjara? Seria um distintivo - adereço - amuleto acto propiciatório? Teria uma ideia qualquer associada? Era
surpreendente ver-se aquele fio branco de além-mar a
rodear-lhe o pescoço negro.
Ao pé da mesma árvore sentavam-se mais duas trouxas de
ângulos agudos e pernas dobradas. Uma pousava o queixo nos
joelhos e fixava o vazio com um olhar insuportável que
intimidava; e o seu irmão espectral apoiava neles a testa,
22
como que vencido por uma grande fadiga; outras havia, por ali,
em toda a espécie de contorcidas posições e em colapso como se
vêem nalguns quadros de morticínio ou peste. Enquanto o horror
me paralisava, uma levantou-se, ficou apoiada nas mãos e nos
joelhos e foi ao rio beber de gatas. Bebeu da mão, sentada ao
sol, com as tibias cruzadas à frente, e passados instantes
deixou pender sobre o peito a cabeça revestida de carapinha.
Perdi toda a vontade de dar estes passeios à sombra e
dirigi-me apressadamente ao posto. Junto dos edifícios
encontrei um homem branco, de elegância tão inesperada que ao
princípio julguei ser uma visão. Vi que usava colarinho alto e
engomado, punhos brancos, um leve casaco de alpaca, calças de
uma brancura de neve, gravata clara e botas engraxadas. Sem
chapéu. Cabelo com risca, bem escovado e besuntado debaixo de
um guarda-sol com forro verde que a sua mão grande e branca
segurava. Tinha um ar desconcertante, e uma caneta posta atrás
da orelha.
Depois de apertar a mão deste milagre fiquei a saber que se
tratava do chefe da contabilidade da Companhia, e a escrita
era toda feita naquele posto. Tinha vindo cá fora por
momentos, disse ele, "tomar um pouco de fresco." A expressão
era encantadoramente estranha mas elucidava a sedentária vida
de um escriturário. Nem desta personagem falaria se a sua boca
não fosse a primeira a pronunciar o nome do homem que viria a
ligar-se indissoluvelmente à memória daquele tempo. O tipo,
além disso, meteu-me respeito. Sim; respeitei-lhe o colarinho,
os grandes punhos, o cabelo bem penteado. Realmente tinha o ar
de um manequim de cabeleireiro, e a enorme desmoralização da
colónia não conseguia tirar-lhe o gosto pela boa aparência.
Ora a isto chama-se personalidade. Os colarinhos engomados e
os peitilhos tesos eram provas de grande carácter. Vivendo ali
há perto de três anos, não evitei perguntar-lhe como podia
alimentar o hábito de vestir roupa tão branca. Cheio de
modéstia e com um rubor quase imperceptível respondeu: "Ensinei uma das mulheres indígenas do posto. Foi difícil. Não
mostrava o menor interesse pelo trabalho." Aquele homem, todo
dedicado aos livros e autor de uma escrita primorosa,
realizara na verdade qualquer coisa.
No posto, tudo o mais era um caos - cabeças, objectos,
casas. Um formigueiro de negros de pés chatos e empoeirados, a
ir e a vir; uma onda de produtos manufacturados, algodões
baratos, missangas e arame de cobre que chegava ao âmago das
trevas para devolver um pedaço de precioso marfim.
23
Tive de esperar dez dias no posto - uma eternidade. Vivi
numa barraca do cercado, e para esquecer o caos muitas vezes
me enfiei no escritório do contabilista. Tinha sido construído
com tábuas horizontais tão mal casadas que o enchiam de listas
finas do pescoço aos calcanhares, quando se debruçava à
secretária alta. Para haver luz não era preciso abrir a
persiana. E ainda por cima quente; com moscas de agressivo
zumbido que em vez de picarem esfaqueavam. Em geral, eu
sentava-me no chão enquanto ele se empoleirava, impecável (e
até um pouco perfumado), no banco alto e escrevia, escrevia.
De tempos a tempos levantava-se para fazer exercício. Quando
lhe metiam lá dentro um enfermo (um qualquer aspirante do
interior, impróprio para o serviço) é que manifestava uma
delicada contrariedade. "Os gemidos deste doente distraem-me",
dizia. "KE num clima destes, não dando atenção às coisas
dificilmente se evitam erros de escrita."
Um dia, sem levantar sequer a cabeça observou: - "Com
certeza, lá no interior vai conhecer o senhor Kurtz." E quando
perguntei "que senhor Kurtz", respondeu-me que um chefe de
posto, mas ao reparar no meu desapontamento perante a
informação, pousou a caneta e acrescentou numa voz calma: "Uma
pessoa muito notável." Outras perguntas levaram-no a explicar
que o senhor Kurtz, naquela altura, dirigia um importantíssimo
posto comercial, mesmo, mesmo ao fundo, da verdadeira região
do marfim. "Só ele manda mais marfim do que os outros todos
juntos..." E voltou à escrita. Nesse dia, o enfermo estava
doente demais para gemer. E as moscas zumbiam no meio de uma
calma absoluta.
De repente ouvimos um murmúrio crescente de vozes e um forte
ruído de pés. Chegava uma caravana. Uma violenta e
incompreensível algazarra explodiu do outro lado do tabique.
Os carregadores falavam todos ao mesmo tempo, e nomeio do
tumulto a lamentosa voz do contabilista repetiu, pela vigésima
vez num só dia, que ainda acabava por desistir daquilo...
Levantou-se devagar. "Que barulheira terrível", disse.
Atravessou silenciosamente a sala, deu uma olhadela ao doente
e voltou. "Este já não ouve nada." - "O quê! Morreu?",
perguntei alarmado. - "Não, ainda não", respondeu, cheio de
compostura. E depois, com um movimento de cabeça alusivo ao
ruído no cercado do posto: - "Quando temos que fazer
lançamentos correctos, chegamos a odiar estes selvagens - a
odiá-los de morte."
24
Por um instante mergulhou em pensamentos. "Quando vir o
senhor Kurtz", prosseguiu, "diga-lhe da minha parte que tudo,
por aqui" - olhou para a secretária - "corre de forma muito
satisfatória. Não gosto de lhe escrever - com mensageiros
destes nunca sabemos quem pode deitar a mão às nossas cartas
lá no posto principal." Durante um momento fixou-me com olhos
meigos e salientes. "Ele vai chegar longe, muito longe",
continuou. "Não passará muito tempo e será alguém na
Administração. Lá - na Europa, na Administração Central também pensam o mesmo." Recomeçou a trabalhar. O ruído
exterior já terminara, e quando saí parei na soleira da porta.
O aspirante repatriado jazia inerte e vermelhusco, ao som do
zumbido das moscas; e o outro, metido com os seus livros, por
certo fazia lançamentos rigorosos e muito rigorosos
transportes. Cinquenta pés mais abaixo viam-se as copas
imóveis do matagal da morte.
No dia seguinte saí finalmente do posto com uma caravana de
sessenta homens, para uma caminhada a pé de duzentas milhas.
Não vale a pena falar muito dela. Carreiros e mais
carreiros; uma rede de carreiros que os pés tinham traçado e
espalhado pela terra inabitada, no meio de capim alto, no meio
de capim queimado, no meio de mato, que subia e descia ravinas
frescas, subia e descia colinas pedregosas, abrasadas de
calor; solidão atrás de solidão, sem uma pessoa, sem uma
cubata. Há muito tempo que a população tinha fugido daquelas
paragens. Bem! Se um bando de misteriosos negros, com toda a
espécie de armas terríveis, de repente se lembrasse de ir
estrada fora, entre Deal e Gravesend, para deitar a mão aos
camponeses e forçá-los a carregar coisas pesadas, imagino que
nenhuma herdade ou casa dos arredores deixaria de se esvaziar
num abrir e fechar de olhos. Ali, a única diferença estava nas
casas, que tinham desaparecido. Atravessei várias povoações
abandonadas. Havia qualquer coisa de pateticamente infantil na
ruína das paredes de capim seco. Dia após dia fomos batendo o
chão com sessenta pares de pés descalços que seguiam atrás de
mim, todos carregados com sessenta libras. Acampar, cozinhar,
dormir, levantar o acampamento e desandar. De vez em quando um
carregador morto debaixo da carga ficava no capim alto, à
beira do caminho, mais a cabaça de água vazia e o bordão longo
ao seu lado. À volta e por cima de nós, um enorme silêncio. Na
calma de uma que outra noite talvez o eco enfraquecido
25
de um batuque ao longe, mais alto, mais baixo, vasto mas
indistinto eco, rumor agoirento mas apelativo, sugestivo e
bárbaro - e talvez de significado tão profundo como um som de
sinos em terra cristã. Noutra ocasião foi um homem branco de
farda desabotoada que acampava no caminho com uma escolta
armada de zanzibares magros, muito hospitaleiro e festivo para não dizer bêbado. Olhava pela conservação da estrada,
explicou ele. Não posso, no entanto, dizer que tenha visto
qualquer estrada ou conservação de estrada, a não ser que o
corpo de um negro de meia-idade encontrado três milhas adiante
com um orifício de bala na testa, possa considerar-se
melhoramento viário. Companheiro branco também eu levava um,
que nem era má criatura mas pesadíssimo de carnes e com o
exasperante costume de fanicar nas vertentes de maior calor, a
milhas de um pedaço de sombra ou água. Imaginem que aborrecido
segurar o nosso casaco como um guarda-sol, por cima da cabeça
de um homem à espera que ele voltasse a si. Um dia não pude
resistir e perguntei-lhe o que andava ali a fazer. "A ganhar
dinheiro, pois claro. Ou julgava outra coisa?", respondeu com
um ar de desprezo. Pouco depois apareceram-lhe febres e
tivemos de transportá-lo numa tipóia suspensa de uma vara.
Como pesava sessenta stones", os problemas com os carregadores
nunca mais acabavam. Faziam resistência, fugiam, escapavam-se
às escondidas, de noite, com o carregamento - um verdadeiro
motim. Por isso uma tarde discursei em inglês, com gestos que
nenhum dos sessenta pares de olhos perdeu, à minha frente, e
na manhã seguinte mandei a tipóia seguir antes de nós. Nem
mais! Passada uma hora dei com um verdadeiro naufrágio no mato
- o homem, a tipóia; gemidos, mantas, horrores. A pesada vara
partira-se e fizera-lhe uma ferida no pobre nariz. Estava
morto por que eu desse cabo de alguém, mas nem a sombra de um
carregador se via. Lembrei-me do velho médico: - À ciência
interessa observar as alterações mentais dos indivíduos quando
elas se dão." Com certeza eu já estava a fazer-me
cientificamente interessante. Mas a verdade é que nada daquilo
importava. No décimo quinto dia tive o grande rio à vista, e
entrei a coxear no Posto Central. Ficava num esteiro rodeado
de matagais e floresta, de um lado corrido por uma linda orla
de lodo malcheiroso, dos três outros por uma desconsertada
sebe de juncos. Um intervalo ao abandono servia de entrada, e
logo ao primeiro olhar podia ver-se que o encenador do
espectáculo era um mesquinho demónio.
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Entre as casas surgiram homens brancos, com varas compridas
nas mãos, e depois de darem alguns passos para me verem
sumiram-se não sei onde. Um deles, avantajada e irritável
criatura de bigode negro, mal soube quem eu era informou, com
volubilidade e muitas digressões, que o meu vapor se tinha
afundado no rio. Fiquei siderado. O quê, como, porquê? Oh, não
havia problema. "O chefe em pessoa estava lá. Tudo em ordem.
Toda a gente se portou às mil maravilhas!" Às mil maravilhas!
Deve ir procurar já o administrador", disse agitado. "Está à
espera!"
Não pude avaliar logo o real significado do naufrágio.
Suponho que o avalio agora, mas não tenho a certeza - certeza
nenhuma. O caso - quando penso nele - parece demasiadamente
estúpido para ser natural. No entanto... na altura não deixou
de ser um maldito contratempo. O vapor afundara-se. Dois dias
antes partira rio acima numa urgência súbita, com o
administrador a bordo e conduzido por um mestre de boa
vontade, mas não tinham decorrido três horas e o casco já
estava rebentado nas pedras e afundado ao pé da margem sul.
Com o barco perdido, eu perguntava a mim próprio o que ia
fazer. Para dizer a verdade, tirar do rio o meu comando foi o
cabo dos trabalhos. Logo no dia seguinte me entreguei à
tarefa. Apesar disso, quando trouxe os bocados para o posto,
as reparações demoraram vários meses.
O meu primeiro encontro com o administrador foi curioso. Nem
sentar me mandou, apesar do passeio de vinte e cinco milhas
daquela manhã. Era banal de aspecto, feições, maneiras e voz,
com estatura média e constituição normal. Os seus olhos, de um
trivial azul, talvez fossem impressionantemente frios, e não
haja dúvidas que sabia deixá-los cair sobre os interlocutores,
cortantes e pesados como um machado. Mas até nesses momentos o
resto da sua pessoa parecia negar tal intenção. Pelo
contrário, era vulgar só haver nela uma indefinível e sumida
expressão dos lábios, qualquer coisa de furtivo - um sorriso sorriso não, estou a lembrar-me, mas não sei explicar... A ser
sorriso era inconsciente, apesar de ficar mais nítido por um
instante, quando falava. No final das frases aparecia como um
selo posto nas palavras, para tornar de inatingível sentido as
expressões mais vulgares. Mas era um simples comerciante,
via-se bem, desde muito novo empregado naquelas terras - e
mais nada. Obedecido sem inspirar estima nem medo, e ainda
menos respeito. Só inquietava. Isso mesmo! Inquietava. Não uma
desconfiança bem nítida - mas verdadeira inquietação e mais
nada.
27
Não podem fazer ideia de como esta... esta... faculdade
resulta. Não tinha capacidade de organização, iniciativa ou
mesmo ordem. Era evidente em coisas como o estado deplorável
do posto. E também não era culto nem inteligente. Arranjara...
aquela posição - como? Talvez por nunca ter adoecido... Tinha
lá cumprido três períodos de três anos... Porque a saúde
triunfante é em si mesma uma força no meio de um descalabro
geral de compleições físicas. Quando ia a casa de licença
fazia um estardalhaço dos diabos - pomposo ao máximo.
Exuberância de marujo - mas com uma diferença -, toda ela
aparência. O que aliás se detectava uma vez por outra nas suas
conversas. Não criara nada, mantinha-se no deixa-andar da
rotina - e pronto. Mas era grande. Grande por essa pequena
coisa que é não sabermos dizer como poderia controlar-se um
tal homem. Nunca revelou o seu segredo. Talvez não houvesse
nada dentro dele. E semelhante suspeita fazia-nos calar - num
sítio onde não existia nenhuma espécie de vigilância exterior.
Certa vez, quando várias doenças tropicais abateram quase
todos os aspirantes do posto, ouviram-no dizer: "Os homens que
vêm para aqui não devem ter tripas." E selou o dito com aquele
peculiar sorriso que parecia uma porta entreaberta sobre as
trevas à sua guarda. Quando julgávamos ver qualquer coisa - já
lá estava o selo. Numa altura em que se aborreceu com
frequentes querelas sobre hierarquias, que os brancos tinham
às refeições, mandou fazer uma mesa redonda imensa que exigiu
nova sala para a albergar. Assim nasceu o refeitório do posto.
Onde ele se sentava era o lugar de honra e os restantes não
contavam. Sentia-se que uma das suas inabaláveis certezas era
esta. Não mostrava delicadeza nem indelicadeza. Calava-se. E
permitia que o seu moleque - jovem negro da costa,
superalimentado - nas suas barbas tratasse os brancos com
provocatória insolência.
Logo que me viu, falou. A minha viagem fora muito demorada.
Ele não podia esperar. Tivera de partir sem mim. Rio acima, os
postos precisavam de ser rendidos. Com tanta demora já não
sabia quem estava vivo ou morto, o que se andava a fazer por
lá - etc., etc. Não deu ouvidos ao que eu lhe explicava e
várias vezes repetiu, a brincar com um pau de lacre, que a
situação era "muito, muito grave". Dizia-se que um posto
importante estava em perigo e o seu chefe, o Sr. Kurtz,
doente. Ele esperava que não fosse verdade. O Sr. Kurtz era...
Eu sentia-me cansado e irritável. "Diabos levem o tal Kurtz",
pensei. Interrompi-o para dizer que tinha ouvido, na costa,
falar do Sr. Kurtz.
2829
"Ah! Lá em baixo falam dele!", murmurou com os seus botões.
E prosseguiu assegurando que o Sr. Kurtz era o melhor dos
chefes de posto, um homem excepcional e da maior importância
para a Companhia; por isso eu podia compreender a sua
impaciência. Sentia-se, disse ele, "muito, muito inquieto."
Realmente não parava de se mexer na cadeira, e ao exclamar:
"Ah! Sr. Kurtz!", partiu o pau de lacre, acidente que pareceu
tirar-lhe o uso da fala. Quis saber logo "quanto tempo eu ia
demorar a...". Voltei a interrompê-lo. Eu sentia fome, não sei
se percebem, e estar assim de pé fazia-me agressivo. - "Como é
que posso dizer-lho? Nem sequer o barco afundado eu vi! Alguns
meses, com certeza." Toda esta conversa me parecia muito
fútil. - "Alguns meses", repetiu. "Bem, digamos três meses até
podermos partir. Sim, devem chegar para o que há a fazer." Saí
da barraca (o administrador vivia sozinho numa barraca de
adobe, com uma espécie de varanda) a resmungar comigo mesmo a
opinião que tinha a seu respeito: um fala-barato idiota. Mais
tarde modifiquei-a, espantado pelo extremo rigor com que
soubera avaliar o tempo necessário para se fazer aquilo".
No dia seguinte atirei-me ao trabalho, digamos que voltando
as costas ao posto. Parecia-me a única forma de continuar
ligado às saudáveis realidades da vida. Mas é difícil uma
pessoa não olhar de vez em quando à sua volta; e então
reparava no posto, no disparatado vaivém dos homens no
cercado, à torreira do sol. Muitas vezes perguntei a mim mesmo
o que significaria tudo aquilo. Vagueavam por um lado e outro
a empunhar absurdos varapaus, como peregrinos sem fé que
circulassem, enfeitiçados, dentro de uma cerca apodrecida. A
palavra marfim, passava no ar segredada, suspirada. Parecia
que lhe faziam preces. Um cheiro a imbecil rapacidade bafejava
tudo como um cheiro a cadáver. Júpiter nos valha! Nunca na
vida eu vira coisa tão irreal. E à volta a silenciosa selva,
que apertava aquele pedaço de terra nua, parecia-me enorme e
tão impossível de vencer como o mal ou a verdade, que estava à
espera, com paciência, do fim daquela invasão fantástica.
Oh! Que meses! O melhor é nem pensar... Várias coisas
aconteceram. Uma noite incendiou-se repentinamente um barracão
de capim cheio de pano branco, algodões estampados, missangas
e sei lá o que mais, ao ponto de pensarmos que a terra se
tinha aberto para consumir toda a sua tralha num fogo
vingador. Estava eu a fumar cachimbo no maior sossego, ao pé
do meu vapor desmantelado, quando os vi a todos no meio de
luz, com os braços erguidos e a dar saltos grotescos, ao mesmo
tempo que um homem gorducho, de bigodes, correu até ao rio com
um balde na mão e me disse que "todos estavam a portar-se
esplêndida, esplendidamente." Tirou cerca de um litro de água
e continuou a sua correria. Reparei que o fundo do balde tinha
um furo.
Aproximei-me devagar. Não havia razão para ter pressas.
Bem vêem vocês que aquilo ardia como uma caixa de fósforos.
Logo ao princípio não tinha remédio. As labaredas subiram
muito altas, afugentaram toda a gente, iluminaram tudo - e
apagaram-se. O barracão não passava de um braseiro
furiosamente incandescente. Ali perto espancavam um negro.
Diziam, sabe-se lá porquê, que era o causador do incêndio;
certo é que ele dava horrorosos gritos. Durante vários dias
iria vê-lo com ar de muito doente, sentado num pedaço de
sombra a procurar refazer-se; acabou por se levantar,
desaparecer - e o mato por abrigá-lo, sem fazer nenhum ruído,
no seu seio. Nessa noite, quando me acerquei da fogueira vindo
do escuro, dei comigo atrás de dois homens que conversavam.
Pude ouvir pronunciar o nome "Kurtz", e as palavras "lucrar
com este lamentável desastre." Um deles era o administrador.
Dei-lhe as boas-noites.
"Já se viu uma coisa assim? É incrível", disse enquanto se
afastava. O outro ficou. Era um jovem aspirante de primeira
classe, muito atencioso e algo reservado, com barba em bico e
nariz aquilino. Não convivia com os outros aspirantes, que lhe
chamavam, por sua vez, espião do administrador. Até àquele
momento, pouco ou nada eu falara com ele. Começámos a
conversar e depois afastámo-nos, com ar de passeio, das ruínas
crepitantes. Convidou-me a ir até ao seu quarto, que ficava no
principal edifício do posto. Quando riscou um fósforo, reparei
que o jovem aristocrata não só tinha um estojo de prata com
utensílios de uso pessoal, como uma vela de estearina só para
ele. Naquela altura o administrador era o único homem a quem
podia reconhecer-se o direito de ter velas. As paredes de
barro estavam forradas com esteiras indígenas; e tinham
pendurada, como trofÉus, uma colecção de flechas, zagaias,
escudos e facas.
Ao que me tinham dito, a tarefa deste sujeito era orientar o
fabrico de tijolos - mas a verdade é que não havia em todo o
posto um caco de tijolo, e ele vivia ali há mais de um ano - à
espera. Parece que não podia fazer tijolos por lhe faltar
qualquer coisa, não sei o quê - talvez palha. Seja como for,
no local não existia essa tal coisa e não parecendo verosímil
que a enviassem da Europa, eu não via muito bem do que estaria
ele à espera. De algum acto de geração espontânea!
30
À espera, aliás, todos estavam - os dezasseis ou vinte
peregrinos do grupo - sei lá de quê; e palavra que não parecia
desagradável a situação, dada a forma como a encaravam; pude
observar que só lhes acontecia apanhar doenças. Iludiam o
tempo a ratar na pele uns dos outros e a fazer intrigas que
era uma loucura. No posto reinava um ar de conjura, mas claro
está que não acontecia nada. Era uma coisa tão irreal como o
resto - as pretensões filantrópicas da Companhia, as
conversas, a administração e o trabalho exibicionista. O único
sentimento real era a vontade que todos tinham de arranjar
trabalho num posto com acesso ao marfim para poderem arrecadar
a sua percentagem. Só por causa disto intrigavam, difamavam e
odiavam-se uns aos outros - mas quanto a mexer um dedo que
fosse - está quieto! Santo Deus !
Há qualquer coisa no mundo que aceita o ladrão de cavalos
mas não autoriza outros a olharem, sequer, para as rédeas. Por
isso, que o cavalo seja roubado. Sim senhor. Assunto arrumado.
Quem sabe mesmo se ele é capaz de montá-lo. No entanto, há
maneiras de olhar uma arreata que até ao santo mais caridoso
incitam a praticar violências.
Eu não fazia ideia nenhuma da razão que o levava a ser
amável, mas ao conversarmos desconfiei de repente que tivesse
uma fisgada - nem mais nem menos sondar-me. Aludia
constantemente à Europa, a pessoas que talvez eu conhecesse fazendo perguntas tendenciosas sobre as minhas relações na
cidade sepulcral, etc. Os seus olhos minúsculos brilhavam como
rodelas de mica - curiosos -, ainda que procurasse manter uma
ponta de superior desdém. Ao princípio admirei-me, mas logo se
fez imensa a curiosidade em ver o que desejava extrair de mim.
Não me era possível descobrir o que valia tanto na minha
pessoa. E era engraçado verificar como se enganava, pois a
verdade é que eu só tinha o corpo cheio de arrepios e o caso
do infeliz vapor metido na cabeça.
Era evidente que me tomava por um aldrabão dos mais
descarados. Acabou por zangar-se e bocejar como disfarce de
impulsiva e furiosa contrariedade. Levantei-me e reparei num
pequeno esboço a óleo encaixilhado, mulher de túnica e olhos
vendados que empunhava um facho aceso. O fundo era sombrio quase negro. Majestoso o gesto da mulher, sinistro o efeito do
archote no seu rosto.
31
Fiquei parado e ele manteve-se de pé, educadamente, a
segurar uma garrafa de champanhe das pequenas (prescrição
médica) com a vela espetada no gargalo. À minha pergunta
respondeu que era uma pintura do Sr. Kurtz - feita há pouco
mais de um ano, ali mesmo, no posto, enquanto esperava meio de
transporte que o levasse ao entreposto comercial. "Diga-me,
por favor, que Sr. Kurtz é esse", pedi. - "É o chefe do Posto
do Interior", respondeu repentinamente, sem olhar para mim. "Muito obrigado", disse eu a rir-me, "e o senhor é fabricante
de tijolos no Posto Central. Todos sabem isso." Calou-se
durante alguns momentos. - "Ele é um prodígio", acabou por
dizer.
"Um emissário da piedade, da ciência, do progresso, sabe o
diabo que mais. Nós", começou de repente a declamar,
"precisamos de orientação na causa que a Europa nos confiou,
digamos que uma inteligência superior, uma simpatia alargada,
uma sinceridade de propósitos." - "Quem o diz?" perguntei. "Uma data de gente", replicou. "Já houve quem o escrevesse; e
por isso ele, que é um ser excepcional, como já deve saber,
veio para cá." - "Por que haveria eu de sabê-lo?", interrompi,
realmente surpreendido. Não me deu atenção. - "Sim. Já é chefe
do melhor posto, no próximo ano vai ser administrador-adjunto
e daqui a mais dois anos... julgo que sabe o que ele vai ser
daqui a dois anos. O senhor pertence ao novo grupo - o grupo
da virtude. As pessoas que enviaram para aqui o Sr. Kurtz
foram as mesmas que o recomendaram muito especialmente a si.
Oh, não diga que não. Os meus olhos não se enganam." Fez-se
luz dentro de mim. As influentes relações da minha querida tia
produziam naquele rapaz um inesperado efeito. Quase explodi
numa gargalhada. - "Costuma ler a correspondência confidencial
da Companhia?", perguntei. Não soube o que me responder. Era
engraçadíssimo. "Deixará de poder fazê-lo quando o Sr. Kurtz
for administrador-geral", continuei num tom severo.
Com um sopro súbito apagou a vela e saímos. A Lua já tinha
nascido. Vultos negros vagueavam, distraídos, a despejar água
no braseiro que ainda crepitava, e os vapores subiam ao luar,
e o negro espancado gemia não sei onde. "Que barulheira aquele
bruto faz!", disse o infatigável homem dos bigodes, que
apareceu ao pé de nós. "É muito bem feito. Uma falta zás!castigo. Sem piedade, sem piedade. É a única maneira. De
futuro vai evitar todos os incêndios. Ainda agora eu dizia ao
administrador..." Mas ao ver o meu companheiro perdeu o
entusiasmo. "Ainda não se deitou!", disse-lhe com uma espécie
de servil amabilidade. "Aliás é bem natural. Perigo agitação."
32
E desapareceu. Dirigi-me para a margem do rio e o outro foi
atrás de mim. Soltou um injurioso murmúrio ao pé do meu
ouvido:"Caterva de imbecis - livra!"
Viam-se peregrinos aos grupos, a gesticular, a discutir.
Alguns ainda traziam os cacetes na mão. Acredito piamente que
os levassem para a cama. Para lá da sebe ficava a floresta
espectral ao luar, e acima dos ruídos surdos, dos sons
amortecidos que vinham do infeliz cercado, o silêncio da terra
acertava-nos em cheio nu coração - com o seu mistério, a sua
grande amplitude, a estranha realidade da sua vida oculta.
Perto, não sei onde, o negro espancado gemia em voz sumida e
deu um suspiro tão fundo que alterei o caminho para me afastar
dali. Foi nessa altura que senti uma mão enfiar-se debaixo do
meu braço. "Caro senhor, não quero ser mal compreendido;
especialmente por si, que há-de estar com o Sr. Kurtz muito
antes de ele me dar, a mim, esse prazer. Não gostaria nada que
ele fizesse uma ideia errada do meu carácter..." Deixei-o ir
por ali fora, àquele mefistófeles de papelão, e ao ouvi-lo
pareceu-me que um dedo espetado no seu corpo só encontraria um
pouco de lixo a fazer resistência. Está-se mesmo a ver que
dentro de pouco tempo projectava tornar-se adjunto do
administrador, e a chegada do tal Kurtz não os incomodava
pouco, aos dois. Falava com precipitação, mas não tentei
interrompê-lo. Encostei-me ao destroço do meu vapor, que tinha
sido içado para o talude da margem como o cadáver de um grande
animal do rio. Por Zeus! Entrava-me nas narinas um cheiro a
lodo, a primitivo lodo, e à minha frente havia uma nobre calma
de floresta primitiva e a enseada escura manchada de luz. Por
todo o lado a luz derramara uma fina camada de prata - no
capim hirsuto, na lama, na muralha de intrincada vegetação,
mais alta do que os muros dum templo, no grande rio que eu
podia ver por uma fenda escura que cintilava, cintilava e
corria na sua estrada larga sem fazer ruído. Enquanto o homem
tagarelava a respeito de si próprio, tudo se revelava grande,
expectante e mudo. E eu tentava descobrir se era amável ou
hostil a calmaria na face daquela imensidão que nos olhava.
Nós, que tínhamos ido ali parar, quem éramos? Alguma vez
dominaríamos aquela emudecida coisa, ou seria ela a
dominar-nos? Eu sentia que ela era enorme, estupidamente
enorme, incapaz de falar e talvez surda também. Dentro dela o
que haveria? Eu conseguira ver uma ponta de marfim que tinha
de lá saído, e ouvira dizer que o Sr. Kurtz lá estava. E mais
coisas ouv: - só Deus sabe! -, mas incapazes de retratá-lo
fielmente - como se me dissessem que um anjo ou um demónio lá
vivia.
33
Acreditava tanto nelas como vocês acreditam que Marte é
habitado. Em tempos conheci um fabricante de velas escocês
cegamente convencido de que havia pessoas em Marte. Se lhe
pedissem para dar uma ideia do aspecto e dos hábitos que esses
habitantes tinham, ficava com ar comprometido e resmungava
qualquer coisa como "andam de gatas". Apesar dos seus sessenta
anos prometia pancada a quem esboçasse o menor sorriso. Ora
eu, incapaz de me bater pelo Sr. Kurtz, por causa dele quase
menti. Sabem como odeio, detesto, não tolero mentiras; não por
ser melhor do que os outros mas simplesmente porque me
assustam. Têm um ar fúnebre, sabem a morte - exactamente
aquilo que mais odeio e detesto no mundo - o que mais quero
esquecer. Deixam-me infeliz e doente como se tivesse trincado
qualquer coisa podre. Ao que julgo, questão de feitio. Pois
bem, quando deixei aquele jovem louco acreditar em tudo o que
lhe apeteceu sobre as minhas influências na Europa, estive
muito perto de mentir. De repente transformei-me numa
aldrabice tão grande como o resto dos embruxados peregrinos. E
tudo isto, não sei se percebem, só por pensar que ajudava de
algum modo um Kurtz que eu nem sequer tinha visto. Para mim
não passava de um nome. Eu via tanto como vocês o homem que se
chamava assim. Vêem-no? Estão a ver-Lhe a história? Vêem
alguma coisa? Até parece que estou a tentar convencer vos de
um sonho - tentativa inútil porque o relato de um sonho não
transmite a sensação-sonho, aquele emaranhado de absurdos e
surpresas, o desespero na angústia de sermos aprisionados, a
sensação de sermos presas do inacreditável que é verdadeira
essência dos sonhos...
Fez um instante de silêncio.
... não, é impossível; é impossível transmitir a
sensação-vida de uma época que vivemos - aquilo que constrói
as suas verdades, o seu significado - a sua penetrante e
subtil essência. É impossível. Vivemos como sonhamos - sós...
Voltou a fazer uma pausa de reflexão e acrescentou:
- Claro que vocês, meus camaradas, estão a ver mais do que
eu via. Estão a ver-me, e conhecem-me...
Tão escura se fizera a noite que mal nos distinguíamos uns
aos outros. Um pouco afastado, como ele estava, há muito tempo
se reduzira a uma voz. Ninguém dizia uma palavra. Não sei se
os outros tinham adormecido, mas eu continuava acordado, ia
ouvindo, ouvia com a maior atenção as suas frases,
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a palavra que talvez explicasse o indefinível mal-estar
causado pelo seu relato, que se construía sozinho, ao que
parecia, alheio a lábios humanos, na densa atmosfera do rio.
... Sim - deixei-o ir por ali fora - continuou Marlow imaginar à vontade as forças que eu teria atrás de mim.
Deixei! E atrás de mim não havia nada! Nada, além do velho e
espatifado destroço do vapor a que eu me encostava enquanto o
ouvia falar fluentemente da necessidade que todos temos de
andar para diante. E quando a gente vem para aqui, compreende,
não é para ficar a olhar a Lua". O Sr. Kurtz era um génio
universal, mas até os génios trabalham melhor com ferramentas
adequadas - homens inteligentes,. Ele não fazia tijolos -
podia acaso fazê-los quando se atravessava no caminho uma
impossibilidade material - como aliás eu muito bem sabia? E se
executava o trabalho de secretário do administrador era porque
nenhum homem sensível rejeita sem motivos a confiança dos
superiores. Eu não via isso? Claro que via. E a mim, o que me
faltava? Bolas! Realmente faltavam-me rebites. Rebites. Para
andar com o trabalho - para vedar aquele rombo. Precisava de
rebites. Lá em baixo, na costa, havia caixotes de rebites caixotes - aos montes - rebentados, rachados! No cercado do
posto costeiro, as pessoas davam-lhes pontapés. Os rebites
tinham rolado até ao bosque da morte. Podíamos encher os
bolsos com eles, sem mais trabalho do que apanhá-los do chão e aqui nem um. Onde faziam falta. Havia as chapas necessárias,
mas nada para as fixar. E o mensageiro, um solitário negro,
todas as semanas largava para o posto costeiro com a mala do
correio ao ombro e um pau na mão. E várias vezes por semana
chegava da costa uma caravana com mercadorias - um horrível
pano branco cheio de goma, que só vê-lo era um susto,
missangas de vidro a tuta e meia cada quarta, malditos lenços
de algodão às pintas. Rebites é que nem um. Bastariam três
carregadores para trazer todos aqueles que o vapor precisava e
saberiam pô-lo a navegar.
Começava a entrar em confidências, mas a minha atitude
calada deve ter acabado por exasperá-lo, pois julgou
necessário dizer-me que não temia Deus nem o Diabo, quanto
mais um simples mortal. Respondi-lhe que podia compreendê-lo
muito bem, mas o que me faltava era uma certa quantidade de
rebites - os mesmos que faltariam ao Sr. Kurtz se ele
avaliasse a minha situação. Todas as semanas seguiam cartas
para a costa... "Meu caro senhor", disse num desabafo, "só
escrevo o que me ditam.
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Pedi-Lhe rebites. Há sempre maneiras... para um homem
inteligente." Mudou de atitude; fez-se muito frio e começou a
falar-me de um hipopótamo; admirava-se que eu dormisse no
vapor (não o largava dia e noite) sem ser incomodado. Havia
ali um velho hipopótamo com o mau hábito de vir de noite à
margem, vadiar pelos terrenos do posto. Os peregrinos
costumavam sair em massa para lhe descarregar em cima quantas
espingardas tivessem à mão. Alguns chegavam a fazer-lhe
esperas nocturnas. Mas toda a energia despendida se revelava
completamente inútil. "É um animal com feitiço", afirmou,
"como só os bichos desta terra têm. Não há homem cuja vida
tenha um feitiço destes - compreende?" Por momentos ficou de
pé; ao luar, com o delicado nariz aquilino meio torcido, os
olhos de mica cintilantes, sem pestanejar, e depois de uma
"boa-noite" seca afastou-se a passos largos. Pude ver que ia
perturbado e fortemente intrigado, o que me encheu de
esperança como não sentia há muito. Era um grande alívio ver
aquele sujeito pelas costas e voltar à minha influente amiga,
a esmurrada, torta e espatifada panela a vapor. Subi a bordo.
Havia tantas ressonâncias como se eu andasse numa valeta, a
dar pontapés numa dessas latas de biscoitos Huntley & Palmers;
o vapor não era de constituição muito sólida, e quanto a
formosuras muito poucas; mas o trabalho duro que lá fizera
bastava para Lhe ganhar afeição. Nenhum amigo influente me
prestaria melhor serviço. Dera-me oportunidade de viajar um
bocado - mostrar o que valia. Não, de trabalhar não gosto.
Prefiro ser calaceiro e pensar em todas as coisas belas que
poderia executar. De trabalhar não gosto - nenhum homem gosta
- embora goste daquilo que o trabalho dá - a oportunidade de
nos descobrirmos. Refiro-me à nossa própria realidade - para
nós e para os outros - que mais ninguém pode conhecer. Porque
eles apenas vêem o espectáculo sem nunca estarem certos do que
realmente significa.
Não fiquei surpreendido por encontrar uma pessoa sentada à
ré, no convés, com as pernas a baloiçar sobre a vasa. Eu, não
sei se estão a ver, dava-me bastante com os raros mecânicos do
posto que os outros peregrinos desprezavam, como é natural porque não tinham, suponho eu, polimento por aí além. Era o
contramestre - caldeireiro de profissão - um belo operário.
Homem seco, ossudo e de tez amarelada, com olhos muito
brilhantes. Tinha ar de homem aflito, e a cabeça pelada como a
palma da minha mão; mas parecia que o cabelo se agarrara ao
queixo durante a queda e prosperava no novo terreno,
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pois a barba descia-lhe até à cintura. Viúvo, com seis filhos
pequenos (para ali estar deixara-os a cargo de uma irmã), e
com uma paixão na vida que era os pombos-correios. Um
entusiasta e um entendido. Doido por aquelas aves. Às vezes,
depois do trabalho, saía da cubata para conversar sobre os
filhos e os pombos; e no trabalho, quando era preciso ficar de
rastos debaixo do vapor, embrulhava a barba numa espécie de
guardanapo branco que trazia sempre consigo para esse efeito.
Com uns atilhos para enfiar nas orelhas. À tardinha podia ser
visto na margem, agachado, a lavar com muito cuidado esse
invólucro e a estendê-lo solenemente a secar.
Dei-lhe uma palmada nas costas e em altos berros gritei:
"Vamos ter rebites!" Saltou e exclamou: - "Rebites! Não me
diga!", como se fosse impossível acreditar no que ouvia. E
depois, em voz baixa: "Com que então... o senhor!" Não sei por
que nos comportámos como doidos. Pousei o dedo numa asa do
nariz e acenei misteriosamente com a cabeça. "Parabéns!",
gritou, a estalar os dedos por cima da cabeça e levantando um
pé. Esbocei uma jiga. Cabriolámos os dois no convés de ferro.
Do interior do casco saiu um assustador tumulto que a floresta
virgem devolveu da outra margem ao posto adormecido, como um
trovão: Alguns peregrinos devem ter acordado sentados, dentro
das barracas. Um vulto escureceu a porta iluminada da casa do
administrador, mas passado um segundo, pouco mais ou menos,
tudo se apagou. Estávamos os dois imóveis e o silêncio
afugentado pelos nossos pés voltou aos mais ocultos recantos
da terra. Parada ao luar, a grande muralha de vegetação exuberante emaranhado de troncos, ramos, folhas, rebentos e
grinaldas - lembrava uma invasão violenta de silenciosa vida,
uma alta onda vegetal, prestes a desabar na enseada e a varrer
os homens insignificantes que éramos da sua insignificante
vida. Mas não, nem se mexia. Chegou-nos de longe o ruído
abafado de roncos e chapadas de água, como se um ictiossauro
tomasse banho na claridade do grande rio. "Vendo bem", disse o
caldeireiro num tom ajuizado, "porque não haveríamos de
conseguir os rebites? Sim, porque não? Eu não via motivo que
pudesse impedi-lo." - "Dentro de três semanas devem cá estar",
assegurei-lhe com ar de quem dizia uma confidência.
Mas não estavam. Em vez de rebites houve uma invasão, um
castigo, uma visita. Nas três semanas seguintes ela foi
aparecendo aos poucos, cada uma das suas secções precedida de
um burro montado por um branco de fato novo e sapatos
amarelos, a cumprimentar do alto os peregrinos comovidos,
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para a esquerda e para a direita. No encalço dos burros vinha
um conflituoso bando de negros lamurientos com os pés
magoados; uma porção de barracas, cadeiras de campanha, malas
de ferro, caixas brancas e trouxas castanhas foi atirada para
o chão do cercado, reforçando o mistério do caos daquele
posto. Chegaram cinco carregamentos, todos com o mesmo absurdo
ar de fuga depois de um saque de lojas e armazéns, ao ponto de
parecer que transportavam para a selva um espólio destinado a
divisão equitativa. Era uma inextricável mistura de coisas
honestas, em si, mas que a loucura humana soubera transformar
em furto.
A infeliz quadrilha cujos membros, imagino, se obrigavam ao
segredo, dava a si própria o nome de Exploração do Eldorado.
No entanto, todos falavam como flibusteiros reles - cinismo
sem audácia, cupidez sem afoiteza, crueldade sem coragem;
naquela corja não havia um átomo de provisão ou sério
propósito, ninguém percebia como estas coisas são
indispensáveis aos trabalhos do mundo. Era um bando que apenas
queria arrancar tesouros às entranhas da terra, sem intenção
mais nobre que a do gatuno arrombador de cofres. Ignoro quem
pagava as despesas da nobilíssima empresa; sei, sim, que o
chefe da quadrilha era tio do administrador.
Tinha ar de carniceiro de bairro pobre, com olhos lambidos
pela sombra de adormecidas manhas. Transportava ostensivamente
uma enorme pança sobre as perninhas curtas, e enquanto o bando
infestou o posto só falou com o sobrinho. Podíamos vê-los o
dia inteiro a passear, de cabeças juntas, numa conversa que
nunca mais acabava.
A falta de rebites acabou por me não afligir. A capacidade
das pessoas para aguentar tolices destas é mais limitada do
que pode julgar-se. "Quero lá saber!" - disse eu - resolvido a
deixar andar. Como fiquei com muito tempo para meditações, uma
vez por outra pensava o meu bocado em Kurtz. Não que me
interessasse por aí além. Não. Mas sentia curiosidade em ver
se este homem, que ali tinha aparecido com uma boa dose de
ideias morais, chegaria a subir até ao cimo, e uma vez lá como
iria trabalhar.
2
- Uma tarde, estava eu sentado no convés do meu vapor,
ouvi vozes que se aproximavam - tio e sobrinho a passearem na
margem. Voltei a deitar a cabeça no braço, já meio pegado no
sono, e ao meu ouvido ou quase, disse um deles assim: - "Sou
inofensivo como uma criança, mas não gosto de receber ordens.
Sou o administrador ou não sou? É incrível terem-me ordenado
que o mandasse para lá..." Percebi que estavam na praia, junto
à popa do vapor e por baixo da minha cabeça. Mas fiquei
imóvel; tanto sono eu sentia que nem pela cabeça me passou
mexer-me. "Que desagradável", grunhiu o tio. "Pediu à
Administração que o mandassem para lá, só para mostrar o que é
capaz de fazer", disse o outro. "Recebi instruções nesse
sentido. Veja-me a influência que o homem não deve ter. Não é
medonho?" Ambos concordavam que era medonho e fizeram bizarras
observações: - "Manda chover e fazer sol" - "um homem - o
Conselho de Administração" - "pela ponta do nariz", - bocados
de frases sem sentido que venceram a minha sonolência ao ponto
de eu já estar perfeitamente lúcido quando o tio disse: - "O
clima pode resolver a dificuldade a teu favor. Está lá
sozinho?" - "Está", respondeu o administrador; "mandou-me de
volta o adjunto com uma nota mais ou menos assim: Ponha este
pobre-diabo fora do território e não se incomode a enviar-me
outros da mesma espécie. Prefiro estar só do que ter ao meu
lado o género de homens que o senhor pode mandar-me. Isto foi
há mais de um ano. Imagina descaramento maior?" - "E depois,
mais nada?", perguntou o tio com voz rouca. - "Marfim",
explodiu o sobrinho. Às carradas - "de primeira qualidade aos montes - muito aborrecido, da parte dele." - "Acompanhado
de quê?", perguntou o vozeirão. - "Notas de remessa", foi o
tiro de resposta, "se me permitem a expressão. Depois,
silêncio. Tinham estado a falar do Kurtz.
Embora bem acordado, tão comodamente me senti estendido que
não me apeteceu mudar de posição. "E como veio de tão longe
esse marfim?", rosnou o velho, que parecia muito contrariado.
40
Explicou-lhe o outro que numa flotilha de canoas comandadas
por um mulato inglês da confiança de Kurtz; o Kurtz parecera
inclinado a sair de lá, uma vez que o posto estava rapado de
mercadorias e géneros, mas depois de andar trezentas milhas
decidira voltar, num repente, e fê-lo sozinho numa pagaia de
quatro homens deixando o mulato prosseguir rio abaixo com o
marfim. Os dois tipos espantavam-se por haver quem se
atrevesse a uma coisa destas. Não lhe encontravam motivo
sério. Pelo que me toca, parecia que descortinava o Kurtz pela
primeira vez. Uma autêntica iluminação: a piroga, quatro
pagaiadores selvagens e o branco solitário a voltar
repentinamente costas ao seu quartel-general, a toda a espécie
de auxílio, a qualquer ideia de regresso - sei lá; de cara
voltada para as profundezas da selva, do seu ermo e desolado
posto. Mas não lhe entendia o motivo. Talvez não passasse de
uma boa criatura agarrada ao trabalho por dedicação. O seu
nome - não sei se me entendem - não fora pronunciado uma única
vez. Era aquele homem,. E o mulato que dirigira a difícil
travessia - ao que percebi, com grande prudência e bom-senso invariavelmente mencionado como "aquele malandro". O malandro,
contara que o "homem estivera muito doente - e ainda se
encontrava pouco refeito..." Os dois afastaram-se e depois de
alguns passos começaram a andar de um lado para o outro. Ouvi:
- "Posto militar - médico - duzentas milhas agora
completamente só - demoras inevitáveis - nove meses - sem
notícias - estranhos rumores." Quando voltaram a aproximar-se,
dizia o administrador assim: - "Que eu saiba, só uma espécie
de mercador errante - a peste de um homem que anda a roubar
marfim aos indígenas." Agora de quem falavam? Aos poucos
entendi que seria de um homem do distrito do Kurtz, alguém que
o administrador não aprovava. "Enquanto não enforcarem um
desses sujeitos, para exemplo, não podemos livrar-nos da
concorrência desleal", disse ele. - "Pois com certeza",
grunhiu o tio, "manda-o enforcar! Por que não? Tudo - tudo é
possível nesta terra. É o que te digo. Aqui, aqui, ninguém
seria capaz de pôr a tua posição em perigo, compreendes? A
razão? Aguentas o clima - sobrevives a todos. O perigo está na
Europa; mas antes de eu partir tive o cuidado..."
Afastaram-se, a segredar, e depois levantaram as vozes. - "Não
tenho culpa desta invulgar série de atrasos. Fiz o que podia."
O gordo suspirou: - "Que pena!" - "E o absurdo pestilencial da
conversa dele!", continuou o administrador;
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"enquanto aqui esteve, maçou-me imenso. Cada posto devia ser
um farol na estrada que leva a melhores coisas, centro
comercial, é evidente, mas para humanizar, melhorar, instruir.
Pode conceber-se burrice tão grande! E quer aquilo chegar a
administrador! Não, lá isso..." Nesta altura engasgou-se, por
excesso de indignação, e levantei ligeiramente a cabeça.
Surpreendeu-me vê-los tão perto - mesmo por baixo de mim.
Podia cuspir-lhes no chapéu. Estavam a olhar para o chão,
absorvidos nos seus pensamentos. O administrador chicoteava a
perna com um raminho delgado. O seu judicioso tio levantou a
cabeça: - "Tens passado bem, desde que vieste da última vez?",
perguntou. O outro sobressaltou-se. - "Quem? Eu? Até parece
feitiço - até parece feitiço! Mas o resto - Santo Deus! Todos
doentes. E morrem tão depressa que nem tenho tempo de os
mandar daqui para fora - é incrível!", "Hum! Isso mesmo",
grunhiu o tio. "Ah! Meu rapaz, confia! É o que te digo,
confia." Vi-o estender a pata curta de um braço, num gesto que
abarcava floresta, enseada, a lama, o rio - como se em
vergonhosa bravata evocasse, perante o rosto do país
soalheiro, a morte secreta, o demónio oculto, um coração de
profundas trevas. Foi de tal modo impressionante que dei
comigo de pé e voltado para a orla da floresta, à espera de
uma resposta àquela espécie de negra exibição de confiança.
Vocês sabem como as pessoas às vezes têm ideias tolas. Mas o
grande silêncio enfrentava os dois vultos com paciência
sinistra, como se esperasse uma qualquer invasão fantástica.
Puseram-se os dois a rogar pragas em voz alta - de puro
medo, julgo eu - e voltaram ao posto sem ter dado, ao que
parecia, pela minha presença. O sol estava baixo; e lado a
lado, curvados para a frente, parecia que rebocavam ladeira
acima as suas próprias sombras desiguais e grotescas, que elas
os seguiam de rastos pelo capim alto sem fazer vergar uma só
folha.
Dias depois, a Expedição Eldorado sumiu-se na complacente
selva, que voltou a fechar-se como o mar à passagem do
mergulhador. Só muito mais tarde soubemos que os burros da
caravana tinham morrido todos. Mas ignoro tudo sobre a morte
dos restantes e menos valiosos animais. Talvez tenham
encontrado, aliás como todos nós, o destino que mereciam. Não
me informei. Nesta altura o meu grande entusiasmo era saber
que iria dentro em pouco conhecer o Kurtz. E quando digo
dentro em pouco é força de expressão. Exactamente dois meses
se passaram, desde que saímos da enseada até chegarmos às
margens do posto do Kurtz.
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Subir o rio era o mesmo que viajar para trás, até às
primeiras idades do mundo, quando a vegetação transbordava da
terra e as árvores reinavam. Uma torrente deserta, um grande
silêncio, a floresta impenetrável. O ar era quente, espesso,
muito pesado e mole. A luz solar não tinha alegria. Longos
troços de rio deserto perdiam-se por lonjuras de enorme
sombra. Nas margens de areia prateada, hipopótamos e
crocodilos tomavam lado a lado banhos de sol. As águas largas
corriam entre uma confusão de ilhas arborizadas; uma pessoa
perdia-se naquele rio como num deserto, e todo o dia tropeçava
em baixios, tentava encontrar um canal navegável e acabava por
julgar-se vítima de um feitiço, isolada para sempre do que até
ali conhecera - sei lá onde - muito longe - talvez noutra
vida. Em certos momentos, o passado vinha ter connosco, como
às vezes sucede quando não temos um instante de sossego; mas
aparecia sob a forma de um sonho ruidoso e agitado, que
viríamos a recordar, espantados, se aferido pela esmagadora
realidade daquele estranho mundo de plantas, água e silêncio.
Era uma vida de silêncio que não parecia ter nenhuma paz. O
silêncio de uma implacável força que tramava objectivos
impossíveis de penetrar. Que nos olhava com ar vingativo. Mais
tarde habituei-me; deixei de lhe prestar atenção; não tinha
tempo. Era preciso vigiar o canal; descobrir o sinal de
baixios ocultos, de pedras submersas, a maior parte das vezes
por inspiração; tive de aprender a cerrar os dentes com força
antes do coração me fugir do peito, quando não roçava por um
triz em troncos infernais, manhosamente escondidos e bem
capazes, com um rasgão, de dar cabo da vida à panela de lata
daquele vapor e mandar todos os peregrinos para o fundo; eu
tinha de estar sempre à espreita do que parecesse paus e lenha
seca, e de noite pudesse ser cortado em terra para a navegação
do dia seguinte. Quando se tem de atender a tudo isto, a meros
acidentes superficiais, fiquem a saber que a realidade - sim,
a realidade - se dilui. E a verdade mais profunda esconde-se
que sorte, que sorte! Mas assim mesmo eu sentia-a; muitas
vezes senti o mistério da sua calma a observar-me as
acrobacias, tal como vê os vossos truques, amigos, os que
vocês fazem no arame - por que preço? Não mais de meia coroa
cada um...
- Podias ser mais educado, Marlow - resmungou uma voz,
fazendo-me saber que havia outra pessoa acordada além de mim.
43
- Peço desculpa. Estava a esquecer-me da angústia que sobe
um pouco aquele preço. Mas que importa o preço, na verdade,
quando a coisa é bem feita? Os vossos são sempre bem feitos. E
os meus também não são maus de todo, até consegui que o vapor
não se afundasse na primeira viagem. Ainda continuo a
espantar-me. Imaginem um homem de olhos vendados, a guiar um
carro numa estrada péssima. Posso garantir-vos que eu suava e
me arrepiava bastante. No fim de contas, sempre que um
marinheiro amolga os fundilhos de uma coisa feita para
flutuar, faz um imperdoável pecado. Mesmo que os outros não
venham a saber de nada, ele é que não esquece as mossas, hem?
Um choque em pleno coração. Lembra-se delas, sonha com elas,
acorda de noite a pensar nelas - anos passados - todo ele
calores e frios. Não chego a pretender que o vapor tenha
flutuado durante toda a viagem. Mais de uma vez teve de passar
a vau, com vinte canibais a chapinharem e a darem-lhe
empurrões. Pelo caminho contratámos alguns desses sujeitos e
com eles fizemos a tripulação. Bons tipos - canibais - quando
para aí lhes dava. Homens com quem podíamos trabalhar, e muito
agradecido lhes fiquei. Além do mais não se comeram uns aos
outros nas minhas barbas; tinham trazido uma provisão de carne
de hipopótamo que apodreceu e fez o mistério da selva cheirar
mal ao meu nariz. Pff! Parece que ainda sinto... Ao todo, o
administrador e mais três ou quatro peregrinos com os seus
varapaus. Às vezes entrávamos em portos da margem, presos à
orla do desconhecido, e os brancos que saíam das cubatas
desmanteladas a correr e a gesticular de alegria, surpresa e
boas-vindas pareciam estranhíssimos - como se um poder mágico
os tivesse aprisionado ali. Durante alguns momentos a palavra
marfimN ressoava no ar - e depois voltávamos a entrar no
silêncio, em troços desertos, a contornar calmos recantos
entre muralhas altas do sinuoso caminho que repercutiam
surdamente as pancadas fortes da roda da popa. Árvores e mais
árvores, milhões de árvores imensas, maciças, que subiam a
grandes alturas; e aos seus pés, agarrado à margem, lá se
arrastava a contracorrente aquele vaporzinho enfarruscado,
como um preguiçoso escaravelho que arrastasse o ventre pelo
chão de um grande pórtico. Fazia-nos sentir muito pequenos,
muito perdidos, mas sem conseguir deprimir-nos. Afinal de
contas era pequeno, aquele escaravelho enfarruscado, mas lá se
arrastava - o que ele tinha realmente de fazer. Para onde os
peregrinos pensavam que fosse, não sei. Para um sítio onde
esperavam encontrar qualquer coisa, aposto!
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Para mim arrastava-se - pura e simplesmente em direcção a
Kurtz; embora muito devagar, quando a tubagem Lhe dava para
ter fugas. Troços de rio abriam-se e logo se fechavam atrás de
nós, como se a floresta avançasse lentamente para a água,
disposta a barrar-nos o caminho de regresso. Penetrávamos mais
e mais profundamente no coração das trevas. Que silêncio lá
havia! Às vezes, de noite, um batuque ultrapassava a cortina
de árvores, chegava ao rio e persistia muito fracamente, como
se planasse bem acima das nossas cabeças até a madrugada
romper. Se queria dizer guerra, paz ou prece não podíamos
dizê-lo. O alvorecer anunciava-se com a descida de uma gélida
quietude; os lenhadores dormiam, as suas fogueiras tinham o
fogo baixo; qualquer estalido nas ramagens nos assustava.
Éramos vagabundos numa terra pré-histórica, numa terra com ar
de planeta desconhecido. Podíamos imaginar-nos como primeiros
homens que tomassem posse de uma herança maldita a poder de
angústias profundas e desmesurado esforço. Mas de repente, na
luta para vencer uma curva tínhamos visões de paredes de
junco, pontiagudos telhados de capim, uma explosão de gritos,
um remoinho de membros pretos, um confuso bater de mãos, de
pontapés no solo, de corpos que se remexiam, de olhos fora das
órbitas sob a imóvel e pesada folhagem. Lento, o vapor
afadigava-se a percorrer um negro e incompreensível frémito. O
homem pré-histórico amaldiçoava-nos, fazia-nos um pedido ou
dava-nos boas-vindas? - Sabe-se lá! Entre nós e a compreensão
daquilo que nos cercava havia uma ruptura: deslizávamos como
fantasmas, secreta e maravilhosamente espantados como homens
em perfeito juízo perante um animado tumulto de manicómio. Não
compreendíamos por que estávamos longe demais e não podíamos
lembrar-nos de nada, porque viajávamos na noite das primeiras
idades, de idades que tinham passado sem deixar mais do que um
vestígio - mas nenhuma memória.
A terra não parecia terrestre. Habituámo-nos à forma
algemada de um monstro vencido, mas ali - ali podia ver-se
qualquer coisa monstruosa e livre. Não parecia terrestre e os
homens... não, desumanos não eram. Bem pior do que isso - era
a suspeita de não serem desumanos. Aos poucos se chegava a
tê-la. E eles gritavam, saltavam, rodopiavam e faziam caretas
que eram um horror; embora nos assustasse a sensação de terem
uma humanidade - igual à nossa -, a ideia de termos um
parentesco remoto com aquela selvagem e apaixonada refrega.
Feia. Muito feia, sim;
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mas fôssemos bastante homens e não deixaríamos de admitir
intimamente que existe em nós um traço de simpatia embora
diluído pela terrível franqueza daquele barulho, a obscura
suspeita de conter um significado que nós - tão afastados, já,
da noite das primitivas idades - podemos compreender. E porque
não? O espírito humano de tudo é capaz - porque dentro dele há
tudo, não só o passado como o futuro. E ali, ao fim e ao cabo
o que havia? Contentamento, dor, devoção, coragem, raiva - sei
lá! - mas principalmente verdade - verdade despida da sua
máscara de tempo. Deixemos o louco abrir a boca e tremer pois o homem compreende e pode ver sem pestanejar. Se for tão
homem, pelo menos, como os que havia em terra. Terá de ir com
instrumentos da sua própria verdade ao encontro daquela
verdade - com a sua força própria e inata. Princípios? Os
princípios de nada valem. Aquisições, roupa, vaidades - trapos
pelo ar, mal lhe dão uma sacudidela forte. Não; é preciso uma
fé deliberada. Aquele tumulto bárbaro exerceria em mim
qualquer apelo? Pois muito bem; oiço; admito que sim, mas
também tenho voz activa, não daquelas - valha-me Deus ou o
Diabo - que podem ser reduzidas ao silêncio. Claro que um
doido se defende sempre pelo terror ou com nobres sentimentos.
Vocês, aí, resmungam? Admiram-se por eu não ter saltado para
terra a berrar e a dançar? Pois não senhor-não saltei. Nobres
sentimentos!, dizem vocês. Para o diabo os nobres sentimentos!
Eu não tinha era tempo. Não tinha - digo-vos eu - mãos a medir
com a solda e as tiras de cobertor, ajudava a fazer ligaduras
para as fugas de vapor da tubagem. E tinha de olhar pelo leme
e contornar os troncos de árvores espetados no fundo, desse
por onde desse fazer andar aquela panela de lata. Nestas
coisas há uma verdade superficial capaz de salvar o homem
avisado. Mas, entretanto, eu também precisava de andar em cima
do selvagem que fazia de fogueiro. Era um exemplar
aperfeiçoado; sabia trabalhar com uma caldeira vertical. Eu
via-o de cima e, palavra de honra, tão edificante era olhá-lo
como um cão de calções e chapéu de plumas a dançar nas patas
de trás. Poucos meses de aprendizagem tinham bastado àquele
sujeito realmente esperto. Espreitava o manómetro e o nível da
caldeira com evidente empenho e audácia - além disso, era um
pobre-diabo, com os dentes limados, a carapinha rapada de
acordo com insólitos desenhos, três tatuagens decorativas em
cada face. Mais lógico seria estar em terra a bater palmas e
com os pés no chão do que entregar-se àquele trabalho árduo,
àquela estranha feitiçaria, e a aumentar conhecimentos.
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Era útil, porque o tinham instruído; mas só sabia aquilo - se
a água desaparecesse na coisa transparente, o mau espírito da
caldeira zangava-se, cheio de sede, capaz de terríveis
vinganças. Por isso, ia suando e alimentando a fornalha,
vigiando assustadamente o vidro (com um improvisado amuleto de
trapos amarrados ao braço e um pedaço de osso, do tamanho de
um relógio de bolso, directamente fixado ao lábio inferior)
enquanto as arborizadas margens passavam devagar e o ruído
furtivo do nosso vapor ia ficando para trás, intermináveis
milhas de silêncioque nos arrastavam em direcção a Kurtz. Como
os troncos espetados eram grossos, as águas pérfidas e pouco
fundas, dir-se-ia que a caldeira abrigava um diabo cheio de
azedume, e por isso nem eu nem o fogueiro tínhamos tempo para
aprofundar insidiosos pensamentos.
Cerca de cinquenta milhas abaixo do Posto do Interior demos
com uma cubata de caniços, um pau inclinado e melancólico onde
abanavam irreconhecíveis farrapos do que tinha sido uma
bandeira, e uma pilha de lenha bem arrumada. Era inesperado.
Na lenha encontrámos um pedaço de tábua lisa com palavras meio
sumidas, escritas a lápis. Quando as decifrámos, diziam: Lenha
para ti. Despacha-te. Aproxima-te com cautela. Tinha
assinatura mas ilegível - Kurtz não era - era um nome muito
mais comprido. Despacha-te. Para onde? Rio acima? "Aproxima-te
com cautela." Ignorámo-lo. O aviso não dizia respeito àquele
lugar, pois acharmo-lo, só isso, implicava aproximação. Alguma
coisa não estaria bem lá para cima. Mas o quê? - E até que
ponto? O problema era esse. Fizemos desfavoráveis comentários
à imbecilidade daquele estilo telegráfico. O mato em redor não
dizia nada, e além do mais não deixava ver muito longe. Na
porta da cubata havia uma cortina rota, de tecido vermelho,
que ia dando tristemente nas nossas caras. E a cabana não
tinha mobília, mas podia concluir-se que ainda há pouco ali
andara um homem branco. Restava uma mesa tosca - uma prancha
em cima de duas estacas - ; e um monte de lixo concentrado num
recanto escuro. Encontrei um livro ao pé da porta. Perdera a
capa, com o dedo tinham-lhe roçado as páginas até chegarem a
um estado de extrema e ensebada maciez, mas a lombada voltara
a ser amorosamente cosida com linha branca ainda limpa. Era um
extraordinário achado. Um Questionário sobre Alguns Problemas
de Navegação de um tal Tower, Towson - ou qualquer nome deste
género -, capitão da Marinha de Guerra britânica.
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O tema parecia de uma austeridade a toda a prova, com
diagramas elucidativos e repelentes tábuas numéricas, edição
de há uns sessenta anos. Antes de aquela espantosa antiguidade
me ficar desfeita nas mãos, tratei-a com a maior ternura. O
tal Towson, ou Tower, estudava muito a sério o ponto de
ruptura de amarras e cordame, e outras matérias do mesmo
género. Não era, não senhor, um livro muito cativante, mas à
primeira vista podia notar-se uma tão grande honestidade de
intenções, uma tão honesta preocupação em informar como se
executa um trabalho, que aquelas humildes páginas, pensadas há
tantos anos, faziam-se luminosas de uma luz que nada tinha de
profissional. Com a sua conversa de amarras e talhas, o
simplório daquele marinheiro fez-me diluir o mato e os
peregrinos numa deliciosa sensação que era encontrar qualquer
coisa de indiscutivelmente real. Achar ali um livro já era, de
si, bastante maravilhoso, e ainda mais espantoso as suas notas
a lápis feitas à margem e referentes ao texto. Eu nem podia
crer nos meus olhos! Escritas em cifra! Sim, pareciam cifra.
Imaginem um homem a carregar um livro daqueles para uma terra
esquecida e depois estudá-lo - fazer anotações - ainda por
cima em cifra! Que extravagante mistério!
Desde há momentos eu tinha a vaga percepção de um ruído que
me era incómodo. Quando levantei o olhar, a pilha de lenha
desaparecera e o administrador gritava por mim na margem do
rio, saudado por todos os peregrinos. Meti o livro no bolso.
Garanto-vos que arrancar-me à leitura foi como desabrigar-me
de uma velha e sólida amizade.
Lá voltei a pôr a maquineta coxa em movimento. "Aquilo deve
ter sido a peste do comerciante - o tal intruso", exclamou o
administrador, com um odioso olhar lançado para trás, ao sítio
que acabávamos de deixar. - "Deve ter sido um inglês", disse
eu. - "Se não tem cuidado, ainda arranja sarilhos", resmungou
o administrador, sombrio. Com fingida inocência repliquei-lhe
que todos, neste mundo, "estamos sujeitos a sarilhos."
Agora mais rápida, a corrente fazia o vapor dar como que o
último suspiro; a roda da popa batia, cheia de moleza, e dei
comigo na ponta dos pés, a espreitar as pancadas do barco,
pois a verdade é que a todo o momento eu esperava ver aquele
destroço desistir. Era como observar os derradeiros lampejos
de uma vida. Mas lá nos arrastávamos. De vez em quando eu
referenciava uma árvore, para avaliar que avanço ganhávamos em
direcção a Kurtz, mas regra geral perdia-a de vista antes de
ela ficar para trás.
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Excedia a paciência humana estar tanto tempo de olhos pregados
na mesma coisa. O administrador, esse, dava provas de uma
encantadora resignação. E eu irritava-me, enervava-me a
discutir comigo mesmo se devia ou não ser franco quando
falasse com o Kurtz; mas antes de chegar a uma conclusão
vinha-me à ideia que falar, calar-me ou qualquer outra espécie
de intervenção minha redundaria sempre em inutilidade. Que
importava alguém saber ou deixar de saber? Que importava saber
quem era aquele administrador? Por vezes temos iluminações
destas. Naquele caso, o essencial permanecia muito abaixo da
superfície, além do meu alcance e além do meu poder de
intervenção.
Ao entardecer do segundo dia, calculámos que faltassem umas
oito milhas para chegarmos ao posto de Kurtz. Eu quis
continuar, mas o administrador olhou-me com ar grave e disse
que uma navegação assim tão perigosa, e com o sol já tão
baixo, aconselhava a ficarmos ali até à manhã seguinte. Para
mais, fez ele notar, se respeitássemos o aviso de cautela que
nos tinha sido feito, só à luz do dia deveríamos aproximar-nos
- nunca ao lusco-fusco nem de noite. Era muito sensato. Oito
milhas da nossa navegação queriam dizer cerca de três horas, e
além disso a montante, no fim do troço, eu via ondas
suspeitas. Ainda assim o atraso me aborreceu muito mais do que
poderia prever-se e de uma forma que era absurda, também, se
pensarmos que uma noite somada a tantos meses não tinha
importância nenhuma. Como havia lenha a mais e a palavra de
ordem era cautela, puxei o barco para o meio da corrente. A
passagem era estreita, rectilínea, de margens altas como
trincheiras de uma linha férrea. Ainda o Sol não se tinha
posto, já o crepúsculo lhe escorregara para dentro. A corrente
deslizava uniforme e rápida embora pesasse nas margens uma
silenciosa quietude. Entrelaçadas com trepadeiras e toda a
espécie de pujante mato que crescia por baixo, poder-se-ia
imaginar que aquelas árvores vivas se tinham transformado em
pedra até aos mais finos ramos, às folhas mais pequenas. Mas
aquilo não seria dormir - parecia sobrenatural, como que um
estado de transe. Nem o mais leve som se ouvia. A gente olhou
espantada, e começou a desconfiar que tinha ensurdecido - até
baixar uma noite repentina que nos deixou bem cegos. Pelas
três da madrugada um peixe enorme deu um salto e o ruído
assustou-me tanto como um tiro de espingarda. Quando o Sol
nasceu havia uma névoa branca, muito quente e viscosa, que
ainda mais cegos nos deixava do que a noite.
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Não andava nem oscilava; para ali estava assim, à nossa volta,
como qualquer coisa sólida. Às oito ou às nove, talvez,
levantou-se como uma persiana. Tivemos a visão instantânea de
um mar de árvores na enorme selva intrincada, com a pequena e
abrasadora bola do Sol suspensa por cima - tudo na maior das
calmas - até na mesma persiana branca voltar a baixar
docemente, como se deslizasse em lubrificadas calhas. Ordenei
que largassem outra vez a amarra, que já tínhamos começado a
virar. Mas não deixara ainda de correr, com um ruído surdo,
quando um grito se ergueu lentamente no ar opaco, como que um
grande grito de infinita desolação. Depois parou. Um modulado
queixume de selvagens dissonâncias encheu-nos os ouvidos. Tão
inesperado que pôs os meus cabelos em pé debaixo da boina. Não
sei que impressão causou nos outros; a mim pareceu-me que o
próprio nevoeiro temera de repente e ao que parecia em todos
os lados ao mesmo tempo, num clamor que era tumultuoso e
fúnebre. Culminou numa precipitada explosão de gritos quase
intoleráveis de tão agudos, que cessaram de repente e nos
deixaram siderados em atitudes ridículas, atentos ao silêncio
excessivo e assustador que lhe seguiu. "Santo Deus! O que quer
isto dizer?...", balbuciou à minha ilharga um dos peregrinos homenzinho gordo de cabelo ruivo e suíças da mesma cor, que
usava botas de elástico e um pijama cor-de-rosa com as pernas
das calças enfiadas nas meias. Durante um minuto bem contado,
dois outros ficaram de boca aberta e depois correram para
dentro da pequena cabina, com olhares esgazeados e as mãos nas
Winchesters engatilhadas. Só conseguíamos ver a névoa do local
onde nos encontrávamos, assim mesmo de contornos tão esfumados
que pareciam prestes a dissolver-se, à volta uma faixa de água
turva, talvez com dois pés de largura - e mais nada, sei lá
onde ficava o resto do mundo, quer para os olhos, quer para os
ouvidos! Sei lá. Apagado, desaparecido; varrido sem deixar
murmúrio ou sombra.
Fui à proa e mandei virar a amarra a pique de estai, pronta
a soltar a âncora e pôr, se necessário, o barco a navegar.
"Acha que vão atacar-nos?", segredou-me uma voz apavorada. "Com este nevoeiro, vão abater-nos a todos", murmurou outra.
Os rostos estavam crispados de tensão, as mãos tremiam ao de
leve, os olhos esqueciam-se de pestanejar. Era muito curioso
ver-se o contraste entre as expressões dos brancos e dos
negros da tripulação, tão estranhos como nós a esta parte do
rio, apesar de não terem as suas cubatas a mais de oitocentas
milhas.
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Claro está que muitíssimo perplexos, os brancos também
pareciam irritados contra aquele ruído que Lhes ofendia a
dignidade. Os negros mantinham-se atentos e com uma expressão
vigilante, como é natural, mas de rosto essencialmente calmo;
um ou dois até sorriam enquanto puxavam a amarra. Com frases
curtas e resmungadas, pareceu que uns tantos souberam resolver
a questão a contento de todos. O contramestre estava ao pé de
mim, jovem negro espadaúdo, severamente cingido em panos com
orla azul-escura, de narinas bravias e carapinha
artisticamente dividida em oleosos anéis. "Ah!", exclamei eu,
só para ser camarada. - "Agarra ele", berrou esse rapaz que
arregalava os olhos e rangia os dentes afiados - "agarra ele e
dá pra nós." - "Para vocês?, perguntei. Para fazerem o quê?" "Comer!", respondeu lacónico, e de cotovelo a pesar no
perfilado da borda, de olhos postos no nevoeiro, entregue a
uma digna e profunda atitude pensativa. Eu teria ficado
estarrecido de todo se não soubesse avaliar que fome aquela
gente sentia - fome que há um mês, pelo menos, não devia ter
parado de aumentar. Tinham um contrato de seis meses (não
creio que alguém, entre eles, tivesse esta clara noção de
tempo que adquirimos depois de incontáveis séculos. Pertenciam
ao alvorecer dos tempos - sem experiência herdada capaz de
explicar-lhes o que isso era) e, claro está, apesar de haver
um pedaço de papel escrito em conformidade com uma lei
burlesca, magicada para as bandas da foz do rio, não passava
pela cabeça de ninguém preocupar-se com a forma de os
sustentar. É certo que aqueles homens tinham trazido com eles
carne podre de hipopótamo, mas não daria para muito tempo,
mesmo que os peregrinos não tivessem deitado a maior parte
dela pela borda, no meio de um grande chinfrim dos espoliados.
Isto, que parecera um acto autoritário, não passara de um caso
de legítima defesa. Não é possível uma pessoa estar de vigia,
dormir e comer a respirar hipopótamo morto, sem recear que ao
mesmo tempo se desfaçam os laços que ainda a ligam à precária
existência. Aliás, todas as semanas eram entregues a cada um
três pedaços de arame de cobre, de nove polegadas de comprido,
com o argumento que seria eficaz moeda para comprarem
provisões nas aldeias ribeirinhas. Imaginem lá para que servia
aquilo! Ou não havia aldeias, ou seus habitantes eram hostis,
ou o administrador, tal como nós alimentado a conservas que um
bode acidental entremeava, não queria ver o vapor parado por
motivos mais ou menos fúteis. E assim, não engolindo os tais
arames ou não fazendo com eles anzóis para iludir peixes,
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não vejo que utilidade pudessem extrair de tão extravagante
salário. Devo dizer-vos que era pago com regularidade digna de
uma grande e respeitável Companhia. Quanto ao mais, a única
matéria comestível - comestível é um modo de dizer que vi na
sua posse, foram alguns bocados de uma droga que parecia massa
mal cozida, com uma cor suja a atirar para o alfazema, e que
eles guardavam dentro de folhas para mastigarem de vez em
quando, em tão pequenas porções que bem mais seriam para vista
do que sério propósito de alimentar. Em nome de todos os
atormentadores diabos da fome! Porque não se atiraram a nós eram trinta contra cinco - e ao menos não fizeram uma boa
refeição? Sempre que penso nisto me espanto. Eram
potentíssimos homens, sem grande capacidade para avaliar
consequências, com coragem, com força, apesar de andarem já de
pele menos luzidia e musculatura menos rija. O que estava em
jogo, percebi eu, era uma inibição, destes segredos dos homens
que desafiam o plausível. Eu olhava-os com interesse cada vez
maior - embora o não fizesse por pensar que pudessem comer-me
a cuno prazo, embora naquela altura eu começasse a notar - sob
nova luz, de facto - que os peregrinos estavam macilentos e
esperasse, sim, realmente esperasse que a minha pessoa não
fosse - como direi? - tão apetecível como a deles: um toque de
vaidade fantástica que se adaptava bem àquela sensação de
sonho que em mim prevaleceu dia a dia, durante todo o tempo.
De mistura talvez eu tivesse uma ponta de febre ou uma ponta
de qualquer outra coisa - partidas muito traquinas do mato,
preliminares bagatelas de outros ataques mais sérios que em
devido tempo apareciam. Sim; eu via-os como vemos qualquer
outro ser humano, interessado pelas tendências, motivações,
capacidades, fraquezas que revelam quando uma inexorável
necessidade física os põe à prova. Inibições! Que inibições
poderiam ter? Superstição, nojo, paciência, medo - ou qualquer
espécie de honra primitiva? Não há medo que resista à fome,
nem paciência que a satisfaça, e onde há fome deixa a
repugnância simplesmente de existir; quanto a superstições e
crendices, aquilo a que podemos chamar princípios, valem muito
menos do que uma folha ao vento. Vocês não sabem que diabólico
é, que exasperante tormento se faz, morrermos aos poucos de
fome; como isso nos dá ideias negras, fermenta em nós uma
sombria ferocidade? Pois bem, eu sei. Para combater
eficazmente a fome, uma pessoa recorre a todas as suas
energias.
52
Na verdade é mais fácil enfrentar a ruína, a desonra e a
perdição da nossa própria alma - do que uma dessas fomes
prolongadas. É triste, mas verdade. Além do mais, aqueles
tipos não tinham razão para sentir nenhuma espécie de
escrúpulos. Inibições! Mais depressa eu saberia esperá-las de
uma hiena que ronda cadáveres no campo de batalha. Ali, o
facto - o fascinante facto - estava à minha frente, o facto
estava bem à vista como a espuma sobre os abismos do mar, como
as ondas sobre insondáveis enigmas, mistério maior - quando
penso nele - do que a estranha, inexplicável sensação de dor
desesperada do clamor selvagem que nos atingia da margem,
atrás da cega brancura daquelas névoas.
Com voz baixa mas excitada, dois peregrinos discutiam a
margem de onde aquilo viera. "Esquerda." - "Não, não, como é
que sabes? Claro que a direita, direita." - "Isto é muito
sério", disse a voz do administrador atrás de mim; "eu ficaria
desolado se acontecesse qualquer coisa ao Sr. Kurtz antes de
lá chegarmos." Olhei para ele e não tive dúvidas de que estava
a ser sincero. Era um destes homens interessados em salvar
aparências. A sua inibição era essa. Mas quando me disse em
voz baixa qualquer coisa sobre a hipótese de continuarmos
imediatamente a viagem, nem me dei ao trabalho de responder.
Eu sabia e ele sabia que era impossível. Tentássemos levantar
a âncora, e ficaríamos literalmente no ar - no espaço. Não
podíamos dizer como íamos - a subir ou a descer a corrente, ou
atravessados - se íamos esbarrar numa ou noutra margem - e
neste caso em qual delas. Claro que nada fiz. Não estava
disposto a estampar-me. Não podia imaginar-se pior sítio para
um naufrágio. Rapidamente afogados ou não, a verdade é que a
morte não tardaria. "Autorizo-o a correr todos os riscos",
disse-me depois de um breve silêncio. - "Recuso-me a correr um
que seja", respondi laconicamente; o que aliás ele esperava,
apesar de surpreendido com o tom. - "Bem, vejo-me obrigado a
ceder ao seu critério. O senhor é o capitão", frisou com
acentuada delicadeza. Voltei-lhe as costas em sinal de
agradecimento e olhei para o nevoeiro. Quanto tempo duraria?
Como perspectiva era das mais desoladoras. Chegarmos ao pé de
Kurtz, que apanhava marfim naquele maldito mato, era um
cometimento tão cercado de perigos como chegar à princesa
adormecida no castelo fabuloso. "Parece-Lhe que vão
atacar-nos?", perguntou-me o administrador em tom
confidencial. Não me parecia que atacassem, por várias e
óbvias razões. Uma delas o nevoeiro cerrado. Largassem da
margem dentro de canoas e tão perdidos ficariam como nós,
53
se nos mexêssemos dali. Além disso, em qualquer das margens o
matagal me tinha parecido impenetrável - embora provido de
olhos, olhos que nos tinham visto. Como é natural, a floresta
ribeirinha era muito fechada, embora o mato que tinha atrás
fosse evidentemente penetrável. De qualquer modo, durante a
pequena aberta eu não vira canoas em nenhum ponto do rio - e
por certo também as não havia junto do vapor. O que tornava
inconcebível a ideia de um ataque era a característica do
ruído - os gritos que tínhamos ouvido. Não denunciavam aquela
ferocidade que pressagia a imediata intenção hostil. Por
inesperados, bárbaros e violentos que tivessem sido, ainda
assim me davam uma inevitável sensação de dor, por qualquer
motivo, a aparição do navio enchera aqueles selvagens de um
irreprimível desagrado. "Se algum perigo havia, só a
proximidade de paixões humanas à rédea solta", expliquei eu.
"Um desagrado extremo, só ele, chega para se. transformar em
violênciaembora degenere, na maior parte dos casos, em
apatia..."
Se vocês vissem o espanto dos peregrinos! Não se atreviam a
troçar nem a insultar-me; mas acredito que me julgassem doido
- de susto. Fiz-lhes uma conferência em forma. "Meus queridos
meninos, de nada vale afligir-nos. Estar alerta?" Como podem
calcular, eu vigiava os menores sinais do nevoeiro se
levantar, como um gato vigia o rato; mas de nada servem os
olhos quando estamos enterrados em muitas milhas de um monte
de algodão em rama. Também parece que engasga - quente,
sufocante. Embora causasse uma sensação esquisita, tudo o que
eu disse era absoluta verdade. O que viemos a tomar por ataque
não passara, realmente, de tentativa para nos afastar. O acto
estivera muito longe de ser agressivo - ou mesmo defensivo na
vulgar acepção do termo: fora empreendido sob um impulso de
desespero e na essência não ultrapassara a pura defesa.
Só veio a desenvolver-se, digamos assim, duas horas depois
do nevoeiro se levantar, e começou num sítio a cerca de milha
e meia a jusante do posto de Kurtz. Acabávamos de dobrar com
dificuldade uma volta do rio quando reparei numa ilhota,
simples montículo de uma terra ervosa verde-luminosa ao meio
da corrente. A única do género; mas de mais perto podia
concluir-se que era cabeça de um comprido banco de areia,
melhor dizendo uma cadeia de baixios estendidos pelo meio do
leito. Tinham uma cor desbotada, apenas imersos à flor da água
e parecidos com a espinha de um homem marcada sob a pele,
costas abaixo.
54
Tanto quanto eu podia ver, seria viável passar-lhe à esquerda
ou à direita. Como é natural, eu não conhecia nenhum dos
lados. As margens pareciam absolutamente iguais; mas o posto,
tinham-me dito, ficava na margem oeste, e por isso dirigi
instintivamente a proa para o canal desse lado.
Não tínhamos entrado bem nele e já o sentia muito mais
apertado do que parecera. À nossa esquerda ficava o alto banco
de areia comprido e contínuo, e à direita a alta margem a
pique, coberta por vegetação densa. Acima dos arbustos havia
cerradas fileiras de árvores. As ramagens pesadas pendiam
sobre as águas, e de onde em onde um grande tronco
projectava-se, rígido, sobre a corrente. A tarde ia adiantada
e a face da floresta pusera-se tristonha, com uma larga faixa
de sombra caída no rio. Navegávamos a contracorrente nesta
sombra como se imagina muito devagar. Aproximei-me bastante de
terra - pois o leito era mais fundo ao pé da margem, como
informava a vara de sondagem.
Um dos meus famintos e pacientes amigos sondava à proa,
mesmo por baixo de mim. Aquele vapor era uma autêntica chata
coberta. No convés tinha duas pequenas casas de madeira de
teca com portas e janelas. A cadeira ficava no extremo da proa
e as máquinas na popa. Sobre o conjunto havia uma cobertura
leve, apoiada em pilastras. A chaminé saía desta cobertura, e
um pequeno casinhoto feito com ripas servia, na parte
dianteira, de casa do leme. Tinha um catre, dois bancos de
campanha, a um canto uma Martini-Henry carregada, uma pequena
mesa e a roda do leme. Na dianteira havia uma porta larga e,
de cada lado, uma janela ampla com portadas. Claro está que
abertas, sempre, de par em par. Eu passava os dias empoleirado
na ponta da proa e em frente da porta. De noite dormia ou
tentava dormir no catre. Um negro atlético, que viera de
qualquer tribo da costa e fora educado pelo meu desgraçado
antecessor, era o timoneiro. Com que orgulho usava um par de
brincos de cobre! Da cintura aos tornozelos exibia um pano
azul e tinha de si próprio o mais alto dos conceitos. Era o
tolinho mais instável que alguma vez conheci. Se estava alguém
ao pé dele, governava com o ar mais fanfarrão do mundo; mas
sozinho ficava instantânea presa da mais patega atrapalhação,
e um minuto bastava para deixar o vapor aleijadinho fazer o
que bem lhe apetecia.
Olhava eu para baixo, para a vara de sondagem, e estava a
detestar vê-la mais fora do rio, a cada prumada, quando
reparei que o meu timoneiro interrompia o trabalho e se
estirava no convés sem o incómodo, sequer, de recolher a vara.
55
Mantinha-a agarrada, no entanto, a arrastar-se pela água. Pelo
seu lado, o fogueiro, que eu também podia ver por baixo de
mim, sentou-se inesperadamente junto da caldeira e meteu a
cabeça entre os ombros. Fiquei muito espantado mas tive de
concentrar logo a atenção no rio porque havia um tronco na
rota navegável. Paus, pauzinhos voavam à minha volta - às
nuvens: zuniam-me à frente do nariz, caíam por baixo de mim,
batiam nas traseiras da minha casa do leme. Entretanto, rio,
terra e floresta mantinham-se muito calmos - o mais calmos
possível. O único ruído que eu ouvia eram as pancadas surdas
da roda da popa e a saraivada daquelas coisinhas. Por um triz
evitámos o escolho. Júpiter me valha, que eram flechas!
Estávamos a ser alvejados! Entrei rapidamente na casa do leme
para fechar as portadas do lado da terra. O tarado do
timoneiro, com as mãos nas malaguetas do leme, levantava os
joelhos e batia com os pés no chão enquanto rangia os dentes
como um cavalo de freio curto. Diabos o levassem! Andávamos às
curvas, a dez pés da margem. Tive de inclinar-me para fora, a
fim de rodar a portada, e entre a folhagem vi um rosto ao
nível do meu, a fixar-me com ferocidade, e de repente, como um
véu que aos meus olhos se abrisse, distingui peitos, braços,
pernas nuas e um luzir de olhos no fundo da complicada sombra
- o mato a formigar de membros humanos que se moviam polidos,
cor de bronze. Os ramos abanavam, sacudiam-se e estalavam, as
flechas levantavam voo e a portada da janela lá se fechou.
"Governa a direito", disse eu ao timoneiro. Via-lhe a cabeça
imóvel, de rosto virado à proa; mas os olhos rolavam nas
órbitas, com ele a querer equilibrar-se, erguendo e pousando
delicadamente os pés, a espumar um pouco na boca. "Está
quieto!", disse eu, furioso. Era ordenar a uma árvore que não
abanasse ao vento. Saí de rompante. Por baixo de mim, no
convés de ferro, a confusão era enorme; ouviam-se exclamações.
Uma voz gritou: - "Não pode voltar para trás?" Na água havia
uma ruga em forma de V, junto da proa. "Não me digam! Mais um
tronco?" O tiroteio começou debaixo dos meus pés. Os
peregrinos tinham aberto fogo com as Winchesters mas não
passava de chumbadas à toa, para dentro do mato. O diabo de
uma lufada de fumo saiu pela chaminé e deslocou-se lentamente
para a proa. Roguei-lhe pragas. Agora já não distinguia a ruga
nem a ponta do tronco. Pus-me na porta para ver melhor, e as
setas apareciam às nuvens. Talvez estivessem envenenadas, mas
de aspecto não faziam mal a uma mosca. A selva começava a
gritar.
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Os nossos lenhadores iniciaram um clamor de guerra; mesmo ao
pé das minhas costas, um tiro de espingarda ensurdeceu-me.
Olhei de esguelha para a casa da pilotagem; ainda estava cheia
de barulho e fumo quando me atirei à roda do leme. O palerma
do negro largara tudo para abrir a porta e disparar a
Martini-Henry. Estava ali assim, de pé, com ar feroz, e
gritei-lhe que recuasse enquanto eu tentava corrigir com um
golpe rápido a curva que o vapor fazia. Mesmo que quisesse não
havia espaço para dar a volta, e a extremidade do tronco devia
estar muito perto da proa, no meio do maldito fumo; não havia
tempo a perder e, por isso, atirei com o barco para a margem direitinho à margem, onde eu sabia que o rio era fundo.
Lá fomos rompendo devagar, ao longo do arvoredo que caía por
cima de nós, num turbilhão de ramos quebrados e folhas que
voavam. Em baixo, o tiroteio acabara de repente, tal qual o
que eu tinha previsto quando os carregadores das espingardas
se esgotassem. Virei a cabeça para trás, como reacção ao silvo
brilhante que atravessou a casa do leme de uma janela à outra.
E olhando para além do louco timoneiro, que sacudia a
espingarda descarregada e berrava para a margem, vi formas
vagas a correrem dobradas, aos saltos, deslizantes, precisas,
incompletas, evanescentes. Nessa altura qualquer coisa enorme
surgiu no ar em frente da janela, a espingarda desapareceu
pela borda fora, o homem deu alguns passos rápidos para trás,
deitou-me um olhar de esguelha, inusitado, penetrante,
familiar, e caiu-me aos pés. Bateu duas vezes com a testa no
leme, e a ponta do que parecia uma comprida lança
precipitou-se com ele, até ficar partida num pequeno banco de
campanha. Dir-se-ia que arrancara aquilo das mãos de alguém
que estava na margem e com o esforço perdera o equilíbrio. O
fumo ténue espalhara-se; tínhamos escapado ao tronco de
árvore, e olhando na direcção da proa pude ver que uma centena
de jardas à frente era viável guinar e afastarmo-nos, evitar o
banco de terra; mas senti os pés muito quentes, molhados, e
olhei para baixo. O timoneiro rolara de costas e fixava-me com
um olhar espantado; com as duas mãos agarradas à lança. Era
uma vara de zagaia que tinha sido atirada ou espetada através
da janela e o atingira no flanco, logo abaixo das costelas; o
ferro sumira-se depois de abrir uma horrorosa ferida; os meus
sapatos estavam ensopados; debaixo do leme havia um charco de
sangue imóvel, com uma cintilação vermelho-escura, e os seus
olhos tinham um estranho fulgor. O tiroteio recomeçou.
57
Ele olhava-me numa aflição e agarrava na lança como num
objecto precioso, talvez com receio de que eu lha arrancasse.
Tive de fazer um esforço para desviar a vista do olhar dele e
atender ao leme. Com uma das mãos procurei o cabo do apito,
acima da minha cabeça, e puxei, puxei o mais depressa
possível. Os gritos de cólera e guerra foram instantaneamente
dominados. Do fundo da floresta chegou-nos um trémulo e
prolongado queixume de pavor e desespero, como o que podemos
imaginar ligado ao último voo e à última esperança na
superfície da terra. No mato reinava uma grande comoção: a
chuva de flechas terminara mas ainda houve algumas e muito
curtas descargas finais. No silêncio que se fez, só o bater
preguiçoso da roda da popa me chegava aos ouvidos. Estava eu a
rodar o leme todo para estibordo, quando o peregrino de pijama
cor-de-rosa apareceu suado e agitado na porta. "O
administrador manda dizer...", começou em tom oficial, mas
logo de seguida se interrompeu. "Santo Deus!", exclamou de
olhar posto no ferido.
Nós, os dois brancos, inclinámo-nos para esse ferido que nos
envolvia com um olhar lustroso e inquiridor. Deu-me a
impressão de que olhava para nós como se fosse fazer-nos uma
pergunta numa língua incompreensível, mas morreu sem soltar um
som, sem mexer um membro, sem contrair um músculo. Como
resposta a um sinal que não víamos, a um murmúrio que não
ouvíamos, no último instante contraiu tão fortemente o cenho
que à máscara da morte negra deu uma expressão
inacreditavelmente sombria, perplexa e ameaçadora. Mas o
interrogativo brilho do olhar apagou-se de repente para ser
apenas vítreo. "Pode ficar ao leme?", perguntei impaciente. O
peregrino pareceu hesitar mas agarrei-lhe num braço e percebeu
que teria de conduzir, estivesse ou não para aí virado.
Falando verdade, eu sentia uma urgência mórbida em mudar de
sapatos e peúgas. "Morreu", murmurou-me o sujeito, fortemente
impressionado. - "Não haja dúvidas", respondi, enquanto
desatava como um doido os atacadores. "E diga-se de passagem
que a esta hora também o Sr. Kurtz deve estar morto..." De
momento era a ideia que me dominava. Sentia-a como decepção
extrema, como se descobrisse repentinamente que andara a
esforçar-me por alcançar qualquer coisa desprovida de
substância. Não sentiria desgosto tão grande se não tivesse
feito aquela viagem só para falar com o Sr. Kurtz. Falar
com... Atirei um sapato pela borda fora e concluí que era
aquilo, afinal, o que mais me preocupava - falar com o Kurtz.
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Fiz uma estranha descoberta: imaginara-o sempre a falar em vez
de actuar. Não dizia a mim próprio: - Nunca hei-de chegar a
vê-lo ou nunca hei-de apertar-lhe a mão, dizia: nunca hei-de
ouvi-lo.
O homem apresentava-se como uma voz. Claro está que o meu
espírito também o dotava de acção. Pois não me tinham contado,
nos vários tons do ciúme e da admiração, que sozinho ele
apanhara, trocara, extorquira com aldrabices ou roubo mais
marfim do que os outros todos juntos?
A questão era essa. A questão estava em ele ser um homem de
qualidade, e entre todos os seus dotes predominar um, ligado
ao sentido de efectiva presença, que era o talento de falar,
eram as suas palavras - o perturbante dote da expressão, o
estonteante, o iluminante, mais exaltado e também mais
miserável, a palpitante corrente de luz ou o ilusório fluxo
extraído ao coração de uma indevassável treva.
O outro sapato voou em direcção ao diabólico deus do rio. E
eu pensava: - "Valha-me Júpiter, que isto acabou-se. Chegámos
tarde e ele foi-se - o talento foi-se por artes de uma zagaia,
uma flecha ou uma lança. Está visto que nunca mais ouvirei o
sujeito falar" -, e o meu desgosto continha uma surpreendente
extravagância emocional como a que eu já encontrara nos uivos
desgostosos dos selvagens metidos no seu mato. Eu não sentiria
desolação mais solitária se me despojassem de uma fé, ou nesta
vida eu falhasse o destino... Tu aí, quem quer que sejas,
porque dás esses suspiros? É absurdo? Seja absurdo. Santo
Deus! A um homem não será nunca permitido... Passem-me o
tabaco, vocês...
Houve uma pausa de profunda tranquilidade, depois o riscar
de um fósforo, e o magro rosto de Marlow surgiu gasto,
escaveirado, com rugas verticais e pálpebras baixas, um ar de
concentrada atenção; e enquanto chupava vigorosamente o
cachimbo parecia recuar ou avançar na noite, ao sabor da
ritmada palpitação da pequena chama. O fósforo apagou-se.
- Absurdo! - exclamou. - É o pior que nos sucede quando
contamos qualquer coisa... A todos, que aí estais, vos estou a
ver agarrados a dois bons esteios, como uma barcaça de duas
âncoras: o talho ao dobrar de uma esquina, um polícia na
outra, excelente apetite e temperatura normal - normal, oiçam
lá bem - do princípio ao fim do ano. E dizem-me vocês absurdo!
Raios partam o - absurdo! Absurdo! Meus queridos meninos! O
que podem vocês esperar de um homem que acaba de atirar pela
borda fora um par de sapatos novos? Só por nervosismo e mais
nada?
59
Quando penso nisso, admiro-me de não ter chorado. Em geral,
orgulho-me de ser forte. Mas sentia-me ferido à ideia de ter
deixado escapar o inestimável privilégio de ouvir o talentoso
Kurtz. No que me enganava, aliás. O privilégio esperava-me.
Oh, sim, cheguei a ouvi-lo até de mais. Mas também tinha as
minhas razões. Uma voz. Era pouco mais do que uma voz. E
ouvi-o - a ele - a éla - essa voz - outras vozes - todos eram
pouco mais do que vozes e a própria memória desses tempos
pairava à minha volta impalpável como a esmorecida vibração de
um qualquer interminável falatório estúpido, atroz, sórdido,
selvagem ou simplesmente medíocre e destituído do menor
sentido. Vozes, vozes - até mesmo a rapariga - agora...
Fez um prolongado silêncio.
- Com uma mentira enterrei-lhe o fantasma dos talentos recomeçou bruscamente. - O quê! Rapariga? Falei numa rapariga?
Oh, não tem nada a ver com isto - mesmo nada. Elas - quero
dizer as mulheres - estão fora disto - não devem ter nada com
isto. Devemos ajudá-las a manter-se no belo mundo que Lhes é
próprio, para o nosso não ficar pior. Sim, não devem ter nada
a ver com isto. Deviam ouvir o desenterrado corpo do Sr. Kurtz
dizer a minha prometida. Ficariam logo a perceber que ela não
tem nada a ver com isto. E a altíssima testa do Sr. Kurtz!
Diz-se que às vezes o cabelo continua a crescer nos mortos,
mas aquele exemplar - ah! - era impressionantemente calvo. A
selva passara-Lhe a mão pela cabeça e, vejam lá vocês, fez
dela uma bola - uma bola de marfim; tinha-lhe feito festas e zás - secara-a; tinha-o agarrado, amado, abraçado, tinha-se
metido nas suas veias, tinha-lhe consumido a carne e unido a
sua alma à dele através de inconcebíveis cerimónias de uma
diabólica iniciação. Transformara-se num mimado e adulado
favorito. Marfim? Com certeza. Aos montes, às carradas. A
velha barraca de lama estava como um ovo. Éramos obrigados a
pensar que em toda a região não ficara um só dente por cima ou
debaixo do solo. "Na maior parte fósseis", frisara o
administrador com ar de desprezo. Mas aquilo era tão fóssil
como eu; chamam fóssil a tudo o que é desenterrado. Parece que
os negros às vezes enterram dentes de elefante - mas dir-se-ia
que os tinham enterrado suficientemente fundo para evitar ao
talento do Sr. Kurtz aquele fadário: Atulhámos o vapor e ainda
tivemos que amontoá-lo no convés. Tanto quanto lhe foi dado
vê-lo, pôde vê-lo e gozá-lo, porque o sentido de fortuna
persistiu nele até ao fim. Ouvíamo-lo dizer: - "O meu marfim."
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Sim, sim, ouvi. "A minha prometida, o meu marfim, o meu posto,
o meu rio, o meu..." tudo lhe pertencia. Eu ficava de
respiração cortada, à espera que a selva desse uma gargalhada
prodigiosa capaz de abalar as estrelas tão sossegadas nos seus
lugares. Tudo Lhe pertencia - mas não passava de um pormenor.
A questão era saber a quem ele pertencia, quantos poderes da
treva o reclamavam como seu. Reflexão esta que nos deixava
todos arrepiados. Era impossível - nem sequer bom tentar
imaginá-lo. Ocupara um elevado lugar entre os demónios daquela
terra - no sentido literal. Mas vocês não podem compreendê-lo.
Acham que podem? - com um terreno sólido debaixo dos pés,
rodeados por vizinhos amáveis que estão dispostos a
aplaudir-vos ou a cair-vos em cima, a andarem comodamente do
talho até à Polícia no terror sagrado do escândalo, da
autoridade e dos manicómios - como podem vocês imaginar que
especial região de infância do mundo era aquela, e até que
ponto os pés à solta de um homem podem levá-lo na via da
solidão - solidão absoluta, sem polícias - na via do silêncio
- silêncio absoluto, onde nenhuma preventiva voz de vizinho
amável nos faz eco da opinião pública? Pequenas coisas que
marcam as grandes diferenças. Quando desaparecem, obrigam-nos
a cair fundo na nossa própria e inata virtude, na nossa
capacidade de ser fiéis. Claro está que uma pessoa pode ser
tão louca que se arrisque a ser extraviada - e mesmo tão
estúpida que não veja como é dominada pelas forças da treva.
Admito que nunca tenha havido um doido capaz de vender a alma
ao diabo: ou o doido não é bastante doido, ou o diabo bastante
diabo - qual das coisas não sei. Ou pode uma pessoa andar tão
ofuscada de exaltação que fica surda e cega ao que não forem
suspiros e vozes celestiais. Começa a terra a não ser mais do
que um lugar de passagem - e se isto é prejuízo ou lucro, não
pretendo dizê-lo. Com a maior parte das pessoas não é uma
coisa nem outra. Para nós a terra é um lugar onde se vive,
onde há que suportar visões, ruídos, odores também, valha-me
Júpiter! - respirar carnes podres de hipopótamo sem ficarmos
contaminados. E agora - não sei se vêem - é que entra em jogo
a força pessoal, a fé na nossa habilidade para abrir
disfarçadamente covas onde se enterram coisas - a dedicação,
não digo a nós próprios mas a uma tarefa árdua e obscura. O
que é bastante difícil. Note-se que não tento desculpar, ou
mesmo explicar - apenas tento prestar contas a mim próprio por
causa - por causa - do Sr. Kurtz - por causa da sombra do Sr.
Kurtz.
61
Este fantasma iniciado e aparecido nos confins do Sei Lá Onde
honrou-me com surpreendentes confidências antes de se evaporar
para sempre. Isto porque podia falar comigo em inglês. O Kurtz
original fizera uma parte da sua educação na Inglaterra, e como ele próprio teve a bondade de me dizer - simpatizava com
aquilo que devia simpatizar. Nascera de mãe meio inglesa e pai
meio francês. Toda a Europa contribuíra para fazer o Kurtz; e
desde logo eu soube com muitos pormenores que a Sociedade
Internacional para a Supressão dos Costumes Selvagens o
encarregara de fazer um relatório para sua orientação futura.
E ele escrevera-o. Vi-o. Li-o. Era eloquente, vibrava de
eloquência mas parece-me que excessivamente sublime. Dezassete
páginas de letra apertada, que teve tempo de encher! Mas
talvez o tenha feito antes de os seus nervos desafinarem digamos - e ter-lhe dado para presidir a certas danças da
meia-noite que terminavam com indescritíveis ritos e Lhe eram
- tanto quanto a minha relutância apurou do que várias vezes
ouvi contar - dedicadas - compreendem? - a ele, Sr. Kurtz. Mas
era um bom naco de prosa. Embora à luz de posteriores
conhecimentos o parágrafo inicial me pareça agora bem
significativo. Começava com o argumento de que nós, brancos,
tão desenvolvidos como estávamos, por certo parecíamos [aos
selvagens] fazer parte das criaturas sobrenaturais - e nos
aproximávamos deles com um poder quase divino", etc., etc.
Pelo simples exercício da nossa vontade, podíamos exercer esse
quase ilimitado poder em nome do bem, etc., etc. A partir
daqui caía em plena exaltação e conseguiu arrastar-me com ele.
Perorava magnificamente embora seja difícil reproduzi-lo, como
devem calcular. Deu-me a impressão de uma augusta Benevolência
a dominar uma Imensidade exótica. Fez-me vibrar de entusiasmo.
Era o ilimitado poder da eloquência - das palavras - de nobres
e incendiadas palavras. Não dava sugestões de ordem prática
que interrompessem a corrente mágica das frases, a não ser que
uma nota de rodapé na última página, evidentemente rabiscada
muito mais tarde e com pulso pouco firme, pudesse
considerar-se exposição de um método. Simplicíssima, como era,
e no final de um comovente apelo a toda a espécie de
sentimentos altruístas ofuscava-nos, luminosa e terrífica,
como um raio num céu sem nuvens: - "Exterminai todas as
bestas!" Curioso é reparar que aparentemente se esquecia do
notável post-scriptum; pois mais tarde, e já senhor de si,
várias vezes insistiu comigo para eu olhar pelo seu panfleto,
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(assim Lhe chamava), como se estivesse certo da salutar
influência que iria ter na sua carreira. Tirei informações
completas sobre estas coisas e também me vi obrigado, pela
forma como tudo aquilo correu, a cuidar da sua memória. Fiz o
bastante para ter agora irrecusável direito de o votar, se
quisesse, ao repouso eterno do caixote do lixo do progresso,
entre dejectos de toda a espécie e os gatos mortos - em
sentido figurado - da civilização. Mas não fui capaz, estão a
perceber? Ele não deve ser esquecido. Tenha sido o que
quiserem, mas vulgar é que não. Possuía o poder de seduzir ou
amedrontar almas simplórias que em sua honra bailavam das mais
enfeitiçadas danças; também podia encher as acanhadas almas
dos peregrinos com amargas desconfianças: amigo dedicado tinha
pelo menos um, e neste mundo conquistara uma alma que não era
simplória, não senhor, nem maculada pelo egoísmo. Não; não
posso esquecê-lo, embora não esteja em condições de afirmar
que em rigor ele tenha merecido a vida daquele homem que
perdemos para o alcançar. Senti a perda do meu falecido
timoneiro - comecei a senti-la ainda o seu corpo jazia na casa
do leme. Talvez vos pareça razoavelmente estranho este pesar
por um selvagem que só era mais um grão de areia no Sara dos
negros. Pois sim, mas reparem que tinha servido para qualquer
coisa, tinha governado o barco; durante meses tive-o atrás de
mim - uma ajuda, um instrumento. Era uma espécie de
associação. Governava o leme por mim - eu olhava por ele,
irritava-me com as suas deficiências, e assim criámos um
subtil pacto que só entendi quando repentinamente se desfez.
Ainda tenho gravado na memória o olhar íntimo e profundo que
me deitou ao cair ferido -, como que a reivindicar o afastado
parentesco que se afirmava num supremo instante.
Pobre louco! Tivesse ao menos deixado aquela janela em paz!
Mas não as cortava, lá isso... Tal como o Kurtz - era a árvore
sacudida pelo vento. Mal calcei um par de pantufas secas
tirei-o dali para fora, depois de lhe arrancar a seta do
flanco, operação que executei de olhos bem fechados, devo
confessar. Os calcanhares saltaram-Lhe por cima da soleira da
porta; ia de ombros descarregados no meu peito; eu puxava-o às
arrecuas, num desespero. Oh! Mas era pesado, pesado; suponho
que o mais pesado homem deste mundo. Deitei-o pela borda fora,
sem cerimónia nenhuma. A corrente agarrou-o como se fosse um
monte de capim e vi o corpo girar duas vezes sobre si próprio,
antes de ser engolido para sempre. Todos os peregrinos e o
administrador se tinham reunido debaixo da coberta do convés,
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ao pé da casa do leme, palravam entre si como um bando de
pegas excitadas e murmuravam, escandalizados pelo meu
desembaraço cruel. Não posso entender o interesse que sentiam
em conservar aquele corpo. Para o embalsamar, quem sabe. Mas
também ouvi outro murmúrio no convés de baixo, e esse bastante
sinistro. Aparentemente com mais razão, os meus amigos
lenhadores escandalizavam-se - embora eu pense que uma tal
razão, em si, seja inadmissível. Claro que sim! Ninguém me
tirava da cabeça que o meu timoneiro, a ser comido, só pelos
peixes. Enquanto vivo fora um timoneiro de segunda mas, depois
de morto, transformara-se em tentação de primeira e em motivo,
talvez, de alarmantes incidentes. Além do mais, eu estava
ansioso por comandar o leme, visto o homem do pijama
cor-de-rosa se ter revelado uma grande nulidade na tarefa.
E foi o que fiz, mal se consumou o funeral sumário. Íamos a
meio-vapor e mesmo ao meio da corrente, eu atento àquilo que
se conversava à minha volta. Já tinham desistido do Kurtz, já
tinham desistido do posto; o Kurtz morrera e o posto devia ter
ardido - etc. - etc. O peregrino ruivo mostrara-se eufórico só
de imaginar que o pobre Kurtz estava devidamente vingado.
"Digam lá se não fizemos uma gloriosa matança ali no mato!
Hem, não vos parece? Digam lá!" Pode afirmar-se que dançava, o
velhacote daquele sanguinário! Ele, que ao ver o homem ferido,
quase desmaiara! Não me pude conter: - "O que você fez foi uma
senhora fumarada, isso é que fez." Pelo modo como o cimo dos
ramos se agitava e voava, eu tinha visto que os tiros saíam
quase todos muito altos. Uma pessoa só acerta se faz pontaria
e dispara de coronha apoiada no ombro; mas aqueles sujeitos
eram todos de fogo à anca e olhos fechados. A retirada,
insistia eu - e com razão - só foi devida aos estridentes
silvos do apito do vapor. Por causa deles é que se tinham
esquecido do Kurtz e começado a uivar-me os seus indignados
protestos.
O administrador estava de pé, junto da roda do leme e a
falar confidencialmente sobre a necessidade de nos afastarmos
um bom troço, rio abaixo, antes de cair a noite, quando vi a
silhueta de uma construção a certa distância, num ponto
desbastado da margem. "O que é aquilo?", perguntei. Bateu
palmas, maravilhado. - "O posto!", gritou. Guinei logo para
lá, mantendo a máquina a meio-vapor.
Pelo binóculo eu via a encosta de uma colina onde as árvores
rareavam e bem limpa de todo o mato rasteiro.
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Meio enterrado no capim alto, surgia um comprido edifício em
ruínas; os buracos do telhado cónico eram verdadeiras brechas
negras; como fundo tinha selva e arvoredos. Não existia
vedação nem sebe de nenhuma espécie, mas era evidente que
tinha havido ali qualquer coisa, porque ao pé da casa ficara
meia dúzia de delgados postes em linha, grosseirarriente
aplainados e de pontas enfeitadas com bolas esculpidas. O
travejamento desaparecera, ou o que quer que fosse que os
ligara. E a floresta, claro que envolvia tudo. A margem estava
limpa, e à beira da água vi um branco debaixo de um chapéu
parecido com uma roda de carro, com o braço todo esticado a
fazer sinais persistentes. Examinada de alto a baixo, a orla
da floresta, quase tive a certeza de ver movimentos - formas
humanas a mexerem-se num ou noutro ponto. Avancei com
prudência, de máquinas paradas e deixando o vapor descair. O
homem da praia começou aos gritos, a incitar-nos a atracar.
"Fomos alvejados", berrou o administrador. - "Bem sei - bem
sei. Mas não há novidade", gritou o outro com o maior
entusiasmo possível. "Venham. Não há novidade. Estou muito
satisfeito!" De aspecto lembrava uma coisa que eu já tinha
visto qualquer coisa estranha que eu já vira em qualquer
parte. E enquanto ia fazendo as manobras de encosto eu
perguntava a mim próprio: - "Este tipo com quem se parece?" De
repente descobri. Lembrava-me um arlequim. O seu fato fora
talhado num tecido vulgar, talvez pano cru, mas estava todo
coberrto de garridos remendos azuis, vermelhos e amarelos -
remendos nas costas, remendos à frente, remendos nos
cotovelos, nos joeLhos; à volta da blusa trazia um cinto
colorido e no fundo das calças dobras escarlates; a luz do Sol
fazia-o alegre ao máximo e ao mesmo tempo maravilhosamente
asseado, porque deixava perceber a cuidadosa aplicação
daqueles remendos cosidos. Um rosto imberbe, infantil e
loiríssimo, por assim dizer sem feições, nariz a pelar,
pequenos olhos azuis, sorrisos e carrancas a alternarem-se na
fisionomia aberta como sol e sombra em prados varridos pelo
vento. "Tome cuidado, capitão!", gritou; "a noite passada
encalhou aqui um tronco." "O quê! Mais um tronco!" Confesso
que praguejei vergonhosamente. Como remate daquele passeio
encantado, pouco faltou para fazer um rombo no meu
aleijadinho! Na margem, o arlequim virava para mim a batata
pelada. "É inglês?", perguntou todo sorrisos. - "E você?",
gritei da roda do leme. Desapareceram-lhe os sorrisos e
sacudiu a cabeça como se receasse desapontar-me.
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Logo a seguir resplandeceu. - "Não faça caso", gritou a
encorajar - "me.Chegamos a tempo?", perguntei. - "Ele está lá
em cima", respondeu com um movimento de cabeça a indicar o
alto da colina, e depois ficou subitamente triste. Tinha o
rosto como um céu de Outono, agora encoberto, logo a seguir
todo limpo.
Quando o administrador e uma escolta de peregrinos armados
até aos dentes se dirigiram à casa, o sujeito subiu a bordo.
"Olhe que não gosto nada disto. Os indígenas andam por aí no
mato", disse eu. Garantiu-me, convicto, que não havia
novidade. - "É gente inofensiva", acrescentou; "e saiba que me
sinto muito satisfeito por terem aparecido. Tenho perdido o
tempo todo a mantê-los afastados." - "Mas disse que não havia
novidade!", exclamei. - "Oh! Não o fazem por mal", respondeu;
e como o olhasse espantado, corrigiu: "Não é bem assim." E
depois, com vivacidade: "Palavra de honra que a sua casa do
leme anda a precisar de limpeza!" Logo a seguir aconselhou-me
a manter a pressão da caldeira suficientemente alta para o
apito funcionar em caso de perigo. "Uma boa apitadela vale
mais do que todas as vossas espingardas juntas. É gente
inofensiva", repetiu. Tagarelava tanto, que eu quase ficava
afundado nas suas palavras. Parecia querer desforrar-se dos
períodos de silêncio e deu-me a entender, com um sorriso que o
caso era exactamente esse. - "Não costuma falar com o Sr.
Kurtz?", perguntei. - "Com um homem daqueles não se conversa a gente escuta-o!", exclamou com severa exaltação. "Mas
agora..." Agitou o braço e caiu, enquanto o diabo esfrega um
olho, nos abismos do abatimento. Logo recomposto, com um salto
agarrou as minhas duas mãos, apertou-as demoradamente e
gaguejou: - "Irmão marinheiro... honra... prazer...
encantado... apresento-me... russo... filho de um
arcipreste... Governo de Tambov... O quê! Tabaco! Tabaco
inglês! Ah! Que é mesmo de irmão! Se fumo? Há marinheiro que
não fume?" O cachimbo acalmou-o e aos poucos descobri que
tinha fugido do colégio, embarcara num navio russo; voltara a
fugir; durante algum tempo servira em navios ingleses; e agora
reconciliara-se com o arcipreste. Insistia muito nisto.
"Quando uma pessoa é nova tem de ver coisas, ganhar
experiência, ideias; alargar horizontes." - "Aqui!", atalhei.
- "Nunca se sabe! Encontrei aqui o Sr. Kurtz", declarou com
uma voz infantilmente solene e melindrada. Por isso calei-me.
Parece que tinha convencido uma casa comercial holandesa, da
costa, a entregar-lhe provisões, mercadorias, e de ânimo leve
partira para o interior sem ligar ao facto mais do que uma
criança liga àquilo que pode acontecer-lhe.
66
Durante dois anos vagueara sozinho pelo rio, isolado de tudo
e todos. "Não sou tão novo como pareço. Já tenho vinte e cinco
anos. Ao princípio, o velho Van Shuyten quis mandar-me para o
diabo", contou muito divertido, "mas não o larguei e falei
tanto, tanto, que acabou por ter medo que o seu cão favorito
adoecesse e lá me entregou algumas bugigangas e armas,
dizendo-me que tinha esperança em não mais voltar a pôr-me a
vista em cima. Bom velhote, esse holandês Van Shuyten! Como há
um ano lhe mandei uma pequena porção de marfim, quando eu
voltar não vai poder chamar-me ladrão. Espero que a tenha
recebido. Do resto nem quero saber. Deixei alguma lenha
guardada para vocês. Era a minha antiga casa. Viram-na?"
Dei-lhe o livro de Towson. Fez menção de me beijar, mas
dominou-se. "Era o único livro que me restava, e julgava-o
perdido", explicou a olhar para ele extasiado. "Como sabe, a
um homem que anda sozinho acontecem muitos percalços. Umas
vezes as canoas viram-se - outras vezes uma pessoa tem de
pôr-se depressa ao largo se esta gente se zanga." Folheou-o. "Fez-Lhe anotações em russo?", perguntei. Sim, tinha feito.
"Pensei que estivessem escritas em cifra", disse eu. Riu-se e
depois ficou sério. - "Foi uma trabalheira manter esta gente
sossegada." - "Quiseram matá-lo?", perguntei. - "Oh, não!",
exclamou, fazendo o esforço de ficar por aí. - "Porque nos
atacaram?", quis eu saber. Hesitou e depois, timidamente: "Não querem que ele se vá embora." - "Não querem?", perguntei
curioso. Disse que sim com um abanar de cabeça, cheio de
sabedoria e mistério. "É o que Lhe digo", exclamou, fixando-me
com os olhinhos azuis muito redondos.
3
Olhei para ele, confundido de espanto. Tinha-o à frente,
furta-cores como se tivesse fugido a um grupo de saltimbancos
entusiástico e fabuloso. A sua verdadeira existência era
improvável, inexplicável, de nos deixar perplexos. Era um
problema insolúvel. Não concebíamos que pudesse ter existido,
que pudesse ter chegado tão longe, que pudesse ter-se
arranjado para ficar ali - por que não tinha desaparecido
instantaneamente. "Fui um pouco mais para a frente", disse
ele, "ainda mais para a frente - ao ponto de já não saber como
voltar para trás. Tanto fazia. Eu tinha tempo. Sei
desenvencilhar-me. Leve depressa o Sr. Kurtz - depressa - é o
que lhe digo." A sedução da mocidade envolvia-lhe os farrapos
coloridos, a miséria a solidão, a aridez intrínseca da sua
estéril vadiagem. Durante meses - anos - tivera a vida por um
fio; e ali se encontrava ele cheio de coragem, espantosamente
vivo e ao que parecia indestrutível, só por virtude da sua
tenra idade e de irreflectida audácia. Eu sentia-me seduzido
até qualquer coisa próxima da admiração - como que uma inveja.
Ele fora impelido por um encanto, protegido por um encanto. Do
mato talvez não quisesse mais do que um espaço para respirar e
meter-se por ele adentro. Precisava de existir, caminhar para
diante e com o maior perigo possível, o máximo de privações.
Se alguma vez o espírito de aventura totalmente puro,
desinteressado e quimérico possuiu um ser humano, fê-lo com
este remendado jovem. Quase invejei a posse dessa clara e
modesta chama. Parecia que lhe tinha consumido todo o
pensamento próprio ao ponto de esquecermos, enquanto falava,
que ele - aquele homem ali, à nossa frente - tinha passado
realmente por aquilo. Ainda assim lhe não invejei a dedicação
a Kurtz. Essa não era reflectida. Fora ter com ele e ele
aceitara-a com uma espécie de fatalismo ardente. Devo dizer
que chegou, sob todos os aspectos, a parecer-me a coisa mais
perigosa que lhe tinha sucedido.
Inevitavelmente os dois se tinham aproximado até roçarem os
costados, como dois navios em plena calmaria.
68
Julgo que Kurtz precisava de auditório, pois numa ocasião em
que acamparam na floresta falaram toda a noite ou falou Kurtz,
mais provavelmente. "Falámos de tudo", disse, muito encantado
ao recordá-lo. "Até me esqueci de uma coisa que se chama
dormir. A noite não me pareceu ter mais de uma hora. De tudo!
De tudo... De amor também." - "Ah! Falou-Lhe de amor", disse
eu muito divertido. - "Não é o que está a pensar!", exclamou
quase apaixonado. "De uma forma geral. Fez-me ver coisas coisas."
Levantou os braços. Nessa altura estávamos no convés e o
capataz dos meus lenhadores, estendido perto sem fazer nada,
pousou nele o pesado e faiscante olhar. Não sei porquê olhei à
volta e garanto que antes daquilo nunca, nunca a terra, o rio,
a selva, a própria cúpula do céu incendiado me pareceram tão
sombrios e desesperados, tão impenetráveis ao pensamento
humano, tão implacáveis para com a fraqueza humana. "Como é
óbvio, daí para cá tem estado sempre com ele...", disse eu.
elo contrário. Ao que parece, era uma convivência
interrompida por motivos vários. Cheio de orgulho, informou-me
que tinha conseguido tratar de Kurtz durante duas doenças
(referia-se a isto naquele tom que se utiliza para falar de um
facto arriscado), "as Kurtz tinha o hábito de vaguear sozinho
e longe, nas profundezas da floresta. Muitas vezes, quando eu
vinha a este posto, acontecia esperar dias e dias até ele
regressar", explicou. " que valia a pena esperar - às vezes!"" ele o que fazia? Explorações... ou quê?", perguntei. - Claro
que explorava. Tinha descoberto imensas aldeias e também um
lago - não sabia exactamente em que direcção e era perigoso
fazer perguntas de mais - embora a maior parte das expedições
fossem feitas por causa do marfim." - "Mas nesse tempo ele não
devia ter mercadorias para trocar!", objectei. - "Ainda agora
lhe sobra uma grande quantidade de cartuchos", respondeu a
olhar para outro lado. - "Falando claro, devastava a região",
disse eu. Concordou com um aceno de cabeça. - "Tinha ajuda, é
claro!" Murmurou qualquer coisa sobre as aldeias à volta do
lago. - "O Kurtz levava a tribo com ele, não levava?", sugeri.
Embaraçou-se um pouco. - "Adoravam-no", respondeu. Foi tão
extraordinário o tom das suas palavras, que lhe deitei um
investigador olhar. Era curioso ver-lhe aquele misto de
entusiasmo e relutância quando falava do Kurtz. Esse homem
preenchia-lhe a vida. Ocupava-lhe os pensamentos,
comandava-lhe as emoções. "Que outra coisa esperava?",
explodiu; "bem vê que lhes surgia com o trovão e o raio -,
69
nunca tinham visto semelhante coisa - e de tal forma terrível!
Podia ser terrível ao máximo. "Não deve julgar o Sr. Kurtz
como um homem banal. Não, não, não! Olhe - só para Lhe dar uma
ideia - nada me custa contar-lhe que um dia também a mim me
quis dar um tiro - mas não o condeno." "Um tiro, a si?",
exclamei. "Porquê?" - "Bem, eu possuía uma pequena porção de
marfim que o soba da aldeia mais próxima da minha casa me
tinha dado. Eu costumava caçar para eles, não sei se percebe.
Pois olhe, quis o marfim e acabou-se. Declarou que me dava um
tiro se eu não entregasse o marfim e não me pusesse a mexer
daqui; sim, porque ele podia fazê-lo, metera-se-lhe na cabeça
fazê-lo e nada deste mundo o impediria de matar quem muito bem
ele quisesse. E era verdade. Dei-lhe o marfim. Eu queria lá
saber! Mas não me pus a mexer. Não, não. Não podia deixá-lo. É
claro que durante algum tempo foi preciso cautela. Até
voltarmos a ser amigos. Adoeceu pela segunda vez. E depois
tive de sair do seu caminho; mas não me importei. A maior
parte do tempo ele vivia nas aldeias do lago. Quando veio para
baixo, para a beira-rio, umas vezes recebia-me bem, mas outras
mais valia eu ter cautela. Era um homem que sofria imenso.
Odiava isto, mas a verdade é que não podia ir-se embora.
Sempre que eu tinha oportunidade pedia-lhe para tentar sair
enquanto era tempo; oferecia-me para o acompanhar. Dizia que
sim, mas depois ficava; ia para outra caçada ao marfim;
desaparecia durante semanas; no meio desta gente esquecia-se
de si próprio - esquecia-se de si próprioveja lá bem." "Então é doido!", disse eu. Fez um protesto indignado. O Sr.
Kurtz não podia ser doido. Se ainda há dois dias eu o tivesse
ouvido falar, não me atreveria a dizer semelhante coisa...
Enquanto conversávamos, agarrei nos meus binóculos e olhei
para a margem, percorri a orla da floresta nos lados da casa e
atrás dela. Saber que havia gente naquele mato tão silencioso,
tão calmo - tão silencioso e calmo como a arruinada casa da
colina - inquietava-me. Na face da natureza não havia rasto da
história espantosa que ele me sugeria mais do que contava
entre desoladas exclamações, completada por encolhimentos de
ombros, frases interrompidas, alusões que terminavam em
suspiros profundos. O matagal continuara imóvel como uma
máscara - opressiva como a porta fechada de uma prisão - a
olhar-nos com o seu ar de sabedoria oculta, paciente espera,
inacessível silêncio. Aquele russo explicava-me que o Sr.
Kurtz só há pouco tempo descera até ao rio, trazendo com ele
todos os homens da tribo do lago.
70
Estivera alguns meses ausente - a deixar que o adorassem,
julgo eu - e depois surgira inesperadamente, ao que parece
decidido a fazer um morticínio do outro lado ou a jusante do
rio. É evidente que o seu apetite por mais marfim suplantara como direi? - aspirações menos materialistas. Mas ficou de
repente pior da saúde. "Ouvi dizer que estava de cama,
abandonado e vim até cá acima - entregar-me à sorte", disse o
russo. "Oh! Ele está mal, tão mal!" Dirigi o binóculo para a
casa. Não dava sinais de vida, só era um telhado em ruínas,
uma parede comprida e barrenta a espreitar por cima do capim e
três pequenos quadrados de abertura das janelas mas nem dois,
sequer, do mesmo tamanho; tão perto que parecia possível
tocar-lhe. A um brusco movimento das minhas mãos, um dos
postes que restavam na sebe desaparecida saltou para o campo
do binóculo. Lembram-se de vos dizer que algumas pretensões de
ornamentação me tinham impressionado de longe, bem visíveis
entre as ruínas do lugar? Poisa uma visão mais próxima, o
primeiro resultado obrigou-me a sacudir a cabeça para trás,
como se fosse ameaçado por um soco. Depois passei o binóculo
de poste em poste, cuidadosamente, para ver como me tinha
enganado. As bolas não eram ornamentais mas simbólicas;
expressivas e perturbadoras, desconcertantes e sugestivas alimento para reflexão e também para os abutres, se alguns
houvesse a olhar do céu cá para baixo; e também para as
formigas, se industriosas o bastante para treparem ao alto do
poste. Ainda teriam impressionado mais, aquelas cabeças
espetadas em postes, se estivessem de rosto voltado para a
casa. Só uma, a primeira que descobri, estava virada para mim.
Não fiquei tão chocado como se pode pensar. O meu gesto de
recuo nada mais fora do que movimento de surpresa. Eu cuidava
que ia ver uma bola de madeira - imaginem lá. Voltei
deliberadamente a focar a primeira - e lá estava ela, negra,
seca, chupada, de olhos fechados - uma cabeça que parecia
dormir no alto do poste e ao mesmo tempo sorrir de lábios
contraídos, com uma fileira de dentes brancos à mostra e no
meio daquele sono eterno a sorrir, sempre, ao seu perpétuo e
divertido sonho.
Não estou a revelar segredos comerciais. Tempos depois, o
administrador veio realmente a dizer-me que os métodos do Sr.
Kurtz tinham arruinado o distrito. Não tenho opinião sobre o
assunto, mas desejo fazer-vos perceber que não havia vantagem
nenhuma em estarem ali aquelas cabeças.
71
Só demonstravam que o Sr. Kurtz não sabia recuar quando se
tratava de satisfazer os seus variados apetites, e alguma
coisa Lhe fazia falta - uma pequena coisa que em vão
procurávamos na sua magnífica eloquência nos momentos em que
era necessária. Se ele reconhecia tal carência, não sei. Mais
tarde julgo que sim - quando tudo aquilo estava quase a
terminar. Mas a selva acabou por denunciá-lo e vingar-se
terrivelmente dele e da invasão fantástica. Julgo que lhe
segredou coisas a seu próprio respeito que ele ignorava,
coisas de que não suspeitara até ao momento em que pediu
conselho à grande solidão - e o segredo veio a revelar-se de
fascinação irresistível. Ecoou muito fundo, porque o Sr. Kurtz
estava oco... Baixei o binóculo e a cabeça que surgia tão
próxima, ao ponto de parecer que podíamos falar com ela,
saltou para longe, para uma inacessível distância.
O admirador do Sr. Kurtz tinha ficado um tanto cabisbaixo.
Com voz atabalhoada e turva começou por garantir-me que não se
atrevera a deitar abaixo aqueles símbolos - passe a expressão.
Não temia os indígenas; nada fariam sem o Sr. Kurtz lhes dar
ordem para isso. Gozava de um extraordinário ascendente sobre
eles. Tinham os acampamentos por ali à volta, e os sobas todos
os dias vinham vê-lo. A rastejar... "Nada quero saber sobre as
cerimónias de aproximação do Sr. Kurtz", bradei. Curioso eu
ter sentido que estes pormenores me iriam ser bem mais
toleráveis do que a visão das cabeças a secarem nos postes,
por baixo das janelas do Sr. Kurtz. Apesar de não passarem de
espectáculo bárbaro, parecia que eu estava a ser empurrado
para um sítio escuro, a transbordar de subtis horrores, onde
ao menos a selvajaria pura e sem mais complicações dava o real
conforto de uma coisa que tinha direito a existir - sem dúvida
nenhuma - à luz do Sol. O rapaz olhou-me surpreendido. Por
certo ignorava que o Sr. Kurtz não me surgia, a mim, como
ídolo. Esquecia-se de que eu nunca lhe tinha ouvido os
esplêndidos monólogos - como é? - sobre amor, justiça, conduta
do homem - sei lá o que mais. Fosse preciso rastejar à frente
do Sr. Kurtz, e lá estaria ele a cumprir o rito como o mais
selvagem deles todos. Eu não fazia ideia do preço que nos
pedia, tinha dito ele; eram de rebeldes, aquelas cabeças.
Ofendi-o ao máximo com a minha gargalhada. Rebeldes! Que mais
outra classificação eu teria de ouvir? Já tinham sido
inimigos, condenados, trabalhadores - e aqueles eram rebeldes.
As suas cabeças rebeldes pareciam-me bem subjugadas no alto
dos postes. "Não faz ideia até que ponto uma vida destas
massacra um homem como Kurtz", exclamou o último discípulo de
Kurtz. - "Bem! E a si?", disse eu.
72
- "Eu! Eu! Eu sou um homem vulgar. Não tenho grandes ideias.
Não quero nada de ninguém. Como pode comparar-me ao...?" A
emoção era demasiado forte para ele falar, e de repente ficou
sem forças. "Não compreendo", gemeu. "Fiz tudo quanto podia
para lhe poupar a vida, e basta. Não andei metido em nada. Não
tenho nenhum talento. Há meses que se não vê aqui uma gota de
remédio nem de comida para doentes. Estava vergonhosamente
abandonado: Um homem como ele, com ideias daquelas. Que
vergonha! Que vergonha! Há dez noites - que - não durmo..." A
sua voz esvaía-se na calma do entardecer. Enquanto falávamos,
as sombras esguias da floresta tinham escorregado pelo monte e
chegado muito abaixo do barracão em ruínas, ultrapassando a
fileira simbólica de postes. Por ali tudo escurecera, ao passo
que nós estávamos ao sol e o rio, contíguo à clareira, ainda
refulgia com um calmo e ofuscante esplendor que terminava
acima e abaixo numa sinistra faixa muito sombria. Não se via
vivalma na margem. No mato nem uma folha mexia.
De repente, à esquina da casa um grupo de homens apareceu
como se saísse da terra. Atravessava mergulhado em capim até à
cintura, num troço compacto, e rodeava uma maca improvisada.
Da paisagem solitária instantaneamente se ergueu um grito
agudo que riscou o ar como uma flecha aguda, direita ao
coração da terra; e como por encanto uma torrente de seres
humanos - de seres humanos nus - que empunhavam zagaias, arcos
e escudos, com olhares ferozes e selvagens movimentos, foi
derramada na clareira pela sombria e pensativa floresta. Por
instantes, o matagal tremeu e o capim ondulou, até ficar tudo
parado numa atenta imobilidade.
"Não diga ele agora o que lhes deve dizer, e estamos todos
arrumados", lamentou-se ao meu lado o russo. O monte de homens
também estacou, petrificado a meio caminho do vapor. Vi o
homem da maca sentar-se, acima dos ombros que o transportavam,
magríssimo e com um braço levantado. - "Esperemos que uma
criatura tão bem falante, quando se trata de amor em sentido
lato, descubra uma boa razão para nos poupar", declarei. Eu
sentia-me amargamente ressentido com o perigo absurdo da nossa
situação, como se fosse desonroso estarmos à mercê daquele
fantasma atroz. Eu não ouvia nenhum som, mas via pelo binóculo
o braço magricela estendido em atitude de comando, o maxílar
inferior a mexer-se, os sombrios e cavados olhos daquela
aparição brilharem na cabeça ossuda que abanava,
73
grotescamente sacudida. Kurtz - Kurtz - quer dizer curto em
alemão - não quer? Pois bem, o nome era tão exacto como tudo o
mais na sua vida - e na sua morte. Parecia medir, pelo menos,
sete pés de comprido. A manta caíra e o corpo emergia, atroz e
lastimável como à saída de uma mortalha. Via-se a gaiola das
costelas a ofegar e os ossos do braço a fazerem gestos.
Parecia uma animada imagem da morte esculpida em marfim velho
e de mão estendida, numa ameaça, para aquele ajuntamento de
homens moldados em bronze muito escuro e luzidio. Vi-o de boca
muito aberta - tomar um aspecto extraordinariamente voraz,
como se quisesse engolir todo o ar, toda a terra, todos os
homens à sua frente. Chegou até mim uma voz profunda mas
sumida. Por certo gritava. De repente caiu de cóstas. A maca
estremeceu, quando os carregadores recomeçaram a andar,
vacilantes, e quase ao mesmo tempo notei que a multidão de
selvagens desaparecia sem um movimento de retirada
perceptível, como se a floresta, que tinha expelido tão de
repente aquelas criaturas, as reabsorvesse como um ar de
prolongada aspiração.
Alguns peregrinos que seguiam atrás da maca levavam-lhe as
armas - duas caçadeiras, uma carabina de grande calibre e
outra ligeira, de repetição - os trovões de um miserável
Júpiter. Curvado para ele, o administrador murmurava qualquer
coisa enquanto o acompanhava ao lado da sua cabeça. Foram
deitá-lo numa das pequenas cabinas - só um quarto com espaço
para a cama e um ou dois bancos de campanha, não sei se estão
a ver. Tinham-lhe trazido a correspondência atrasada, e a cama
cobrira-se com uma porção de sobrescritos rasgados e cartas
abertas. A sua mão remexia com dificuldade em toda aquela
papelada. Impressionou-me o fogo do seu olhar e a languidez
serena da sua expressão. Não seria tanto o esgotamento da
doença. Não parecia sofrer. Dir-se-ia uma calma e apaziguada
sombra que naquele momento já tivesse a sua conta de emoções.
Dobrou uma das cartas, olhou-me frontalmente e disse: "Estou contente." Alguém lhe escrevera a meu respeito. As
recomendações especiais voltavam à baila. Espantou-me o volume
da voz que lhe saía sem esforço, quase sem o incómodo de mexer
os lábios. A voz. A voz Era grave, profunda, vibrante, e
julgaríamos aquele homem incapaz de dizer um segredo. Mas como
vão ouvir daqui a pouco, tinha forças que bastavam - sem
dúvida fictícias - para dar cabo de nós.
O administrador apareceu silenciosamente na porta; logo a
seguir saí e puxei o reposteiro. Os peregrinos estavam
embasbacados com o russo, nesse momento a olhar para terra.
74
Segui-lhe o olhar.
À distância podiam ver-se formas humanas escuras a correrem
indistintamente na orla sombria da floresta, e perto do rio
duas figuras de bronze apoiadas em enormes lanças, com as
cabeças fantasticamente cobertas de pele mosqueada, muito
hirtas e marciais ao sol, na sua postura de estátuas. Uma
selvagem e grandiosa aparição feminina começou a mover-se de
um lado para o outro na margem luminosa.
Passeava com um ar seguro, envolta em panos listrados e
franjados a pisar a terra com soberba, a tilintar e a
rebrilhar ornamentos bárbaros. Tinha a cabeça erguida e
cabelos penteados em forma de elmo; tinha polainas de latão
até aos joelhos, pulseiras de arame de cobre até aos
cotovelos, um sinal escarlate em cada face bronzeada, inúmeros
colares de contas de vidro no pescoço; coisas estranhas,
amuletos, pedras de feitiço penduradas à volta do corpo, a
cintilarem e a estremecerem a cada passo. Devia trazer em cima
dela o valor de muitas presas de elefante. Era selvagem e
soberba, com bravios e magníficos olhos; com algo de majestoso
e fatal no andar decidido. E no repentino silêncio que desceu
àquela terra enlutada, a selva imensa, corpo colossal de
misteriosa e fecunda vida, parecia contemplá-la, pensativa,
como se visse nela a imagem da sua própria alma tenebrosa e
apaixonada.
Veio até à frente do vapor, pôs-se imóvel e olhou para nós.
A sua sombra esguia chegava à beira da água. Tinha no rosto a
trágica e bravia expressão de uma dor que, embora surda, se
misturava ao medo de uma qualquer e mal assumida decisão.
Ficou a observar-nos sem um movimento e com ar, como a selva,
de quem congeminava impenetráveis decisões. Decorreu todo um
minuto e só então se resolveu a dar um passo em frente. Houve
um leve tilintar, um reflexo de metal amarelo, uma ondulação
de panos franjados, e parou como se a coragem lhe faltasse. O
russo resmungou ao meu lado. Atrás de mim os peregrinos
murmuraram. Fixava-nos a todos como se tivesse a vida presa à
inflexível tensão do seu olhar. De repente abriu os braços nus
e levantou-os, rígidos, acima da cabeça, como se tivesse um
incontrolável desejo de tocar o céu, e ao mesmo tempo a sua
sombra ágil se levantou da terra e rastejou pelo rio,
envolvendo o vapor num escuro abraço. Um formidável silêncio
ficou suspenso por sobre o cenário.
75
Voltou-se lentamente, andou ao longo da margem e meteu-se à
esquerda pelo arvoredo. Houve uma isolada cintilação do seu
olhar na penumbra do matagal, antes de desaparecer.
"Se lhe desse para subir a bordo, talvez eu não resistisse a
dar-lhe um tiro", disse nervosamente o homem dos remendos.
"Nos últimos quinze dias perdi o tempo a arriscar a vida
para a manter afastada da casa. Uma vez entrou e que
lamentável cena fez por causa destes farrapos miseráveis que
apanhei no armazém para remendar o meu fato! Eu andava numa
verdadeira indecência. Julgo que a razão era essa, pois falou
com o Kurtz durante uma hora, muito furiosa, e de vez em
quando apontava para mim. Não compreendo o dialecto desta
tribo.
Por sorte minha, o Kurtz estava nesse dia doente de mais
para lhe ligar, senão teria arranjado um sarilho. Não
entendo... Não - é de mais para mim. Olhe, agora está tudo
acabado..." Nesse momento ouvi a profunda voz de Kurtz atrás
da cortina: - "Salvar-me! Salvar o marfim, quer você dizer.
Não me venha com histórias... Salvar-me! O quê! Eu é que o
salvei."
"Aparece-me a estragar os planos. Doente! Doente! Não estou
tão doente como você gostaria que eu estivesse. Mas não faz
mal. Hei-de pôr em prática as minhas ideias - e regressar.
Hei-de mostrar-lhe o que é possível fazer. O senhor, mais as
suas concepções tacanhas - quer atravessar-se no meu caminho.
Mas hei-de voltar. Eu..." O administrador saiu. Deu-me a honra
de agarrar num dos meus braços e levar-me com ele. "Está
muito, muito em baixo."
Julgou necessário suspirar, embora se esquecesse de parecer
convincentemente penalizado. "Temos feito tudo o que é
possível - não temos? Mas não há que disfarçar as realidades:
o Sr.
Kurtz tem sido mais prejudicial do que benéfico à Companhia.
Não percebeu que a oportunidade de uma acção mais vigorosa
ainda não chegou. Cautela, cautela - é o meu princípio. Ainda
não podemos deixar de ter cautela. Este distrito fica-nos
vedado por uns tempos. Lamentável! No seu conjunto, o comércio
vai sofrer. Não nego que a quantidade de marfim é grande embora fóssil na sua maior parte. Devemos salvá-la a todo o
custo - mas veja-me que situação precária e porquê? Porque o
método é insensato." - "Chama-lhe método insensato?", disse eu
a olhar para terra. - "Sem dúvida!", exclamou cheio de calor.
"Não acha?..." - "Uma total ausência de métodos", murmurei
momentos depois. - "Isso mesmo", exultou ele. "Eu já o tinha
previsto. Revela uma completa falta de critério. É meu dever
fazê-lo notar a quem de direito."
76
- "Oh sim!", disse eu, "aquele sujeito fabricante de tijolos
como se chama?" - "pode redigir-lhe um relatório legível."
Durante instantes mostrou-se atrapalhado. Parece-me que eu
nunca tinha respirado uma atmosfera tão má como aquela, e
virei-me mentalmente para Kurtz, a fim de me confortar - digo
bem, confortar. "Apesar de tudo, acho que o Sr. Kurtz é um
homem notável", disse eu, enfático. Estremeceu, envolveu-me
num olhar gelado e respondeu, muito calmo: - "Era",
voltando-me as costas. A minha hora de boas-graças terminara;
acabava de misturar-me a Kurtz como partidário de métodos cujo
tempo ainda não tinha chegado: eu era insensato! Ah! Mas já
não me parecia mau eu próprio escolher os meus pesadelos.
Na realidade eu voltara-me para a selva e não para o Sr.
Kurtz, que até considerava, desde já, bem enterrado. E por um
momento eu próprio me julguei também metido numa vasta
sepultura cheia de indizíveis segredos. Sentia um peso
intolerável a oprimir-me o peito, um cheiro a terra húmida, a
invisível presença de uma corrupção vitoriosa, as trevas de
uma noite impenetrável... O russo bateu-me no ombro. Ouvi-o
gaguejar e balbuciar qualquer coisa como "irmão marinheiro -
impossível calar - conhecimento de coisas que afectariam a
reputação do Sr. Kurtz." Esperei. Era evidente que não
considerava o Sr. Kurtz um homem de pés para a cova; julgo que
o Sr. Kurtz, para ele, era imortal. - "Bem!", acabei por
dizer. "Desembuche. Até sucede que sou amigo do Kurtz - num
certo sentido."
Com muitos rodeios fez-me notar que teria guardado aquele
caso só para ele, sem olhar a consequência se não fôssemos
todos "da mesma profissão". Suspeitava que existia contra ele
uma activa má-vontade da parte dos brancos que..." - "Tem
razão", disse eu, a lembrar-me da conversa que uma vez ouvira
por acaso. "O administrador pensa que você devia ser
enforcado." Ao princípio, a preocupação que mostrou com a
notícia divertiu-me. - "O melhor é pôr-me a andar pela
calada", respondeu com ar muito sério. "Agora já não posso
fazer mais nada pelo Kurtz, e pouco tempo eles precisam para
arranjar um pretexto. O que pode impedi-los? O posto militar
fica a cem milhas!" - "Palavra que talvez seja melhor ir-se
embora", disse eu, "caso tenha amigos entre os selvagens da
região." - "Tenho imensos", declarou. "São gente inofensiva e
não quero nada, como sabe." Pôs-se a morder o lábio, e depois:
"Não desejo nenhum mal a estes brancos, mas também penso,
claro está, na reputação do Sr. Kurtz. Só por o senhor ser um
irmão marinheiro é que..."
77
- "Muito bem", atalhei momentos depois.
"Comigo, a reputação do Sr. Kurtz está garantida." Mal eu
sabia até que ponto isso era verdade!
Baixando a voz informou-me que o ataque ao vapor fora
ordenado pelo Kurtz. "Várias vezes se horrorizou com a ideia
de o tirarem daqui. Para mais... Mas olhe, nada percebo desses
assuntos. Sou um homem banal. Ele julgava que aquilo iria
afugentá-lo, a si - que o faria retirar-se ao acreditá-lo
morto. Eu não podia impedi-lo. Oh, o mês passado vivi maus
momentos.
- "Muito bem, disse eu, mas agora ele vai passando melhor."
- "Si-i-im", murmurou, ao que parecia pouco convicto.
"Obrigado", acrescentei.
"Vou ficar de olhos abertos." - "Mas caluda - hem?",
implorou com ansiedade. "Seria péssimo para a reputação dele
se alguém, aqui..." Prometi-Lhe uma discrição total, com a
maior seriedade. "Não muito longe tenho à minha espera uma
canoa com três pretos. Vou-me embora. Pode dar-me alguns
cartuchos de Martini-Henry?" Claro que podia e dei-lhos com a
discrição que se impunha. Piscou-me um olho ao servir-se de um
punhado de tabaco. "Entre marinheiros - como sabe - bom tabaco
inglês!" À porta da casa do leme voltou-se.
"Por acaso não tem um par de sapatos que possa ceder-me?"
Levantou uma perna. "Veja só." Trazia as solas amarradas com
fios aos pés descalços, como se fossem sandálias. Lá
desencantei um par usado e olhou para ele com muita admiração,
antes de o encaixar debaixo do braço esquerdo. Um dos seus
bolsos (vermelho-vivo) estava inchado de cartuchos e no outro
(azul-escuro) espreitava o Questionário etc., etc., de Towson.
Parecia acreditar que estava excelentemente equipado para o
seu novo encontro com a selva. "Ah! Nunca, nunca encontrarei
outro homem assim. Havia de ouvi-lo recitar poesia - para mais
versos dele, segundo me disse. Versos!" À recordação de tais
delícias revirava os olhos. "Oh! Como alargou os horizontes da
minha inteligência!" - "Até mais ver!, disse eu." Deu-me um
aperto de mão e desapareceu na noite. Às vezes pergunto a mim
mesmo se realmente o vi - se é possível que eu tenha
encontrado um fenómeno destes!
Quando acordei, pouco depois da meia-noite, o seu aviso
acudiu-me ao espírito, aliado a uma sensação de perigo que
parecia suficientemente real na escuridão estrelada para me
obrigar a levantar do catre e dar uma olhadela ali à volta. Na
colina ardia uma grande fogueira que iluminava caprichosamente
a boleada esquina da casa do posto.
78
Com um piquete de pretos dos nossos, armados para o efeito, um
dos aspirantes estava de guarda ao marfim; mas bem no fundo da
floresta um vacilante cintilar vermelho parecia que mergulhava
e saía do solo entre confusas imagens de colunas na treva
densa, denunciando a posição exacta do acampamento onde os
adoradores do Sr. Kurtz levavam a cabo a sua preocupada
vigília. O bater monótono de um grande tambor enchia o ar de
percussões surdas e persistentes vibrações. Era o murmúrio
contido de muitos homens que entoavam para si próprios uma
qualquer fórmula mágica perante a negra e plana muralha de
árvores, como o zumbido de abelhas saído de um cortiço, que
actuava com o estranho efeito de um narcótico sobre os meus
sentidos meio despertos. Suponho que passei pelo sono,
encostado ao balaústre da borda, até se dar uma súbita
explosão de gritos, a ruptura de uma cólera misteriosamente
contida que me acordou em sobressalto. Foi tudo muito rápido,
e apenas restou de tudo aquilo um surdo zumbido com efeitos
semelhantes aos de um audível e tranquilizador silêncio. Olhei
casualmente para a pequena cabina. Tinha a luz acesa, mas o
Sr. Kurtz já lá não estava.
Julgo que teria gritado se acreditasse logo nos meus olhos.
Mas ao princípio não acreditei - de tal forma impossível
aquilo me parecia. Na verdade, um calafrio sem nome deixou-me
desorientado ao máximo, puro e abstracto terror alheio às
formas concretas do perigo físico. O que fez tão poderosa a
emoção foi o choque - como explicar? - o choque moral que
apanhei, como se algo monstruoso, intolerável ao espírito e
odioso para a alma, tivesse penetrado inesperadamente em mim.
Claro que tudo se passou numa simples fracção de segundo e
logo caí na vulgar e normal sensação que é o perigo de morte,
a possibilidade de sermos subitamente atacados ou massacrados,
qualquer coisa deste género que eu sentia iminente e acabou
por parecer bem-vinda e reconfortante. Acalmou-me tanto que
não dei o alarme.
Não mais afastado que três pés, um aspirante abotoado até ao
pescoço dentro de um gabão dormia numa cadeira de bordo. Não
tinha acordado com os gritos; ressonava baixinho; deixei-o
entregue aos sonhos e saltei para terra. Mas não traí o Sr.
Kurtz - já estava dito que nunca poderia fazê-lo - já estava
escrito que eu seria leal ao pesadelo da minha própria
escolha. Ansiava por ficar a sós com aquela sombra - e ainda
hoje não explico por que estava tão cioso de não compartilhar
com ninguém o peculiar negrume de uma tal experiência.
79
Mal pisei a margem vi um rasto - longo rasto no capim.
Lembra-me a exultação com que a mim próprio disse: - "Não pode
andar - vai de gatas - apanhei-o." O capim estava molhado de
orvalho. Avancei rapidamente e com os punhos fechados. Julgo
que tinha a vaga intenção de apanhá-lo e dar-lhe uma sova. Não
sei. Eu estava cheio de ideias imbecis. A velha tricotadora
com o gato atravessou-se na minha memória, embora fosse a
pessoa menos indicada para me surgir sentada no lado de lá
desta história. Via uma fileira de peregrinos, de Winchesters
à anca, a crivarem o ar com os seus chumbos. Julguei que nunca
mais voltaria ao vapor, imaginei-me só e desarmado nas
florestas, até à velhice. Coisas muito tontas - sabem como é.
Lembro-me de confundir o batuque com as pancadas do meu
coração e ficar satisfeito com a calma regularidade que ele
mostrava.
Segui o rasto - e parei à escuta. A noite estava muito
clara, espaço azul-escuro a cintilar de orvalho e luz de
estrelas, com vultos negros imóveis, num grande silêncio.
Julguei que vi um movimento qualquer à minha frente. Naquela
noite tudo me despertava uma estranha confiança. Abandonei
deliberadamente o rasto e corri um largo semicírculo (palavra
que eu até ia a rir, sozinho) de forma a ficar de frente para
aquilo que se mexia, para o movimento que ainda há pouco eu
vira - se é que o tinha realmente visto. Eu queria apanhar o
Kurtz pelo outro lado, como os miúdos fazem quando brincam.
E apanhei-o. Se ele me não tivesse pressentido, eu tinha-Lhe
caído mesmo em cima. Mas pôs-se de pé a tempo. Levantou-se,
pouco firme, alto, pálido, indistinto como um vapor exalado
pela terra, e teve um leve cambalear enevoado e silencioso à
minha frente; ao mesmo tempo as fogueiras palpitavam nas
minhas costas, entre as árvores, e um murmúrio de muitas vozes
chegava da floresta. Fui obrigado a interceptar-lhe o caminho
com destreza e só depois, cara a cara, pude recuperar a calma
e avaliar o perigo na sua verdadeira dimensão. Estava longe de
ter acabado, o Kurtz. Suponhamos que desatava aos gritos! Mal
conseguia ter-se de pé, mas a sua voz ainda estava cheia de
vigor. "Vá-se embora - esconda-se", disse-me com a sua voz
profunda. Era horrível. Olhei para trás. A fogueira mais
próxima piscava a cerca de trinta jardas. Um vulto negro
levantou-se, deu passadas com as suas grandes pernas negras,
balançou os negros braços à luz do braseiro. Tinha cornos pareciam-me cornos de antílope - na cabeça. Com certeza algum
feiticeiro, algum adivinho - com ar bem diabólico.
80
- "Sabe o que está a fazer?", segredei-lhe. "Perfeitamente",
respondeu, alteando a voz com esta palavra isolada que aos
meus ouvidos soou distante e sonora, como um apelo feito por
um porta-voz. Se começa a fazer barulho estamos perdidos,
pensei. Claro que não era caso para se resolver a murro, mesmo
que pusesse de parte a muito natural aversão em bater naquela
sombra - naquela errante e torturada coisa. "O senhor vai
perder-se", acrescentei - "perder-se por completo." Às vezes a
gente tem um rasgo de inspiração, como sabem. Disse-lhe o que
tinha a dizer, embora pensasse que ele não podia ficar mais
irremediavelmente perdido do que já estava naquele instante,
em que os alicerces da nossa amizade iam ser cavados - para
durarem - até ao fim - além do fim.
"Eu tinha imensos projectos", murmurou, hesitante.Sim, disse
eu, "mas se tenta gritar, parto-Lhe a cabeça com..."
Perto não havia nem pau nem pedra. "Estrangulo-o de uma vez
para sempre", corrigi. - "Eu já estava no limiar de grandes
coisas", insistiu numa voz ansiosa, com um tom de desejo que
me gelou o sangue. "E agora, por causa daquele estúpido
patife..." - "De qualquer forma tem êxito garantido na
Europa", afirmei muito firme. Compreendam que eu não queria
estrangulá-lo, aliás, seria muito pouco útil quanto a
resultados práticos. Eu queria quebrar o encanto - o mudo e
pesado encanto da selva, que parecia puxá-lo ao seu implacável
seio para despertar nele vergonhosos e brutais instintos já
esquecidos, memórias de não sei que aplacadas e monstruosas
paixões. Só uma coisa destas poderia tê-lo arrastado para a
orla da floresta, o mato, o flamejar das fogueiras, a pulsação
dos tambores, o zumbido daquela cantilena mágica, estava eu
convencido; só uma coisa destas pudera seduzir-lhe a alma sem
lei para além dos limites de uma permitida ambição. E não
vêem, vocês? O horror do caso não estaria em levar uma
bordoada na cabeça - se bem que este perigo também eu o
sentisse com muita nitidez - mas nessa coisa que era lidar com
uma criatura a quem não podíamos apelar, nobre ou vil fosse
aquilo que estivesse em causa. Tal como os negros, eu teria de
invocá-lo - a ele - à sua inacreditável e orguLhosa
degradação. Nada havia acima ou abaixo dele, e eu sabia-o.
Mandara passear todo e qualquer contacto com o mundo.
Diabo de homem! Até o próprio mundo mandara passear, depois
de o fazer em cacos. Ele estava só, e à frente dele eu não
sabia se estava preso à terra ou se flutuava no ar!
81
Tenho estado a repetir o que dissemos - as frases que
pronunciámos - mas para quê? Eram vulgaríssimas palavras de
todos os dias - os sons familiares e vagos que trocamos em
cada um dos dias da nossa vida. Mas que importa? Para o meu
espírito tinham atrás delas a aterrorizante sugestão de
palavras ouvidas em sonhos, de frases pronunciadas em
pesadelos. A alma! Se algum dia alguém lutou com uma alma,
esse alguém sou eu. E notem que eu estava longe de discutir
com um louco. Acreditem vocês ou não, tinha uma inteligência
claríssima - concentrada sobre si própria, essa é que é a
verdade, com uma intensidade assustadora de tão clara; e a
minha única oportunidade era aquela - além de matá-lo ali
mesmo, bem entendido. O que não seria lá muito bom, pelo
inevitável barulho que faria. Doida, sim, a sua alma. Sozinha
na selva, olhara para dentro de si mesma e posso dizer vos que
ficara - Deus do céu! - doida de todo. Pelo mal dos meus
pecados, suponho eu, tive de passar pela prova de olhar para
dentro dela. Nenhuma eloquência poderia ser mais funesta à
nossa confiança no Homem do que a sua última explosão de
sinceridade. Também lutava consigo próprio. Vi-o - ouvi-o. Vi
o inconcebível mistério de uma alma que não tinha conhecido
freio nem fé, nem medo, mas assim mesmo lutava cegamente
consigo própria. Dominei os nervos até ao fim, mas quando o
apanhei estendido no colchão limpei o suor da testa e as
minhas pernas tremeram por baixo de mim, como se tivesse
levado às costas meia tonelada, colina abaixo. No entanto, eu
só Lhe tinha servido de apoio, com o seu braço ossudo a dar-me
a volta ao pescoço - e não pesava muito mais do que uma
criança.
No dia seguinte, quando largámos ao meio-dia, a multidão,
cuja presença atrás da cortina de árvores nunca me deixara de
ser perceptível, voltou a transbordar da floresta, a encher a
clareira capinada e a cobrir a encosta com uma massa despida,
ofegante e trémula de corpos de bronze. Naveguei um pouco para
montante, e depois dei a volta ao sabor da corrente, enquanto
dois mil pares de olhos seguiam as evoluções do temível
demónio do rio que batia ruidosamente e chapinhava com uma
assustadora cauda, a expelir fumo negro para o ar Ao longo do
rio, na primeira fila, três homens sujos da cabeça aos pés com
barro vermelho muito vivo andavam, sem parar, de um lado para
o outro. Quando ficámos de novo à sua frente, voltaram-se para
o rio e bateram com os pés no chão, sacudiram as cabeças
enfeitadas com cornos e baloiçaram os corpos escarlates;
agitaram um molho de penas pretas na direcção do demónio do
rio, e uma sarnosa pele de cabrito com o rabo pendente -,
82
qualquer coisa ainda que lembrava uma cabeça ressequida; de
vez em quando gritavam ao mesmo tempo uma torrente de palavras
fantásticas que não se pareciam com nenhumas que existissem na
linguagem humana; e o cavo murmúrio da multidão, subitamente
entrecortado, lembrava o responso de uma qualquer ladainha
satânica.
Transportámos Kurtz para a casa do leme, que era mais
arejada. Deitado no catre, olhava fixamente pela janela
aberta. Houve uma agitação na massa de corpos humanos e a
mulher de faces cor de bronze e penteado em forma de elmo
irrompeu até chegar mesmo à beira da água. Estendia os braços,
gritava qualquer coisa que a multidão selvagem repetia num
formidável coro de rápidos, articulados e ofegantes sons.
"Compreende aquilo?", perguntei.
Continuou a olhar para fora, por cima de mim, com olhos
ávidos e furiosos, com uma expressão onde a melancolia se
misturava ao ódio. Não respondeu mas vi um sorriso, um
indefinido sorriso aparecer nos seus lábios descorados que
apertaram, por um momento, convulsivamente.
"Se compreendo?", disse com voz lenta, a arfar como se as
palavras Lhe fossem arrancadas por uma força sobrenatural.
Puxei a corda do apito. Fi-lo porque já via os peregrinos
raparem das espingardas, no convés, e prepararem-se para uma
grande festança. O berro inesperado provocou um movimento de
primário terror na massa compacta dos corpos. "Não! Não os
assuste!", gritou-me alguém do convés, com uma voz
desconsolada. Mas puxei e tornei a puxar a corda. Os selvagens
dispersaram, a correr, saltavam, agachavam-se, fugiam para
todos os lados, esquivavam-se ao esvoaçante terror daquele
som. Os três homens encarnados tinham caído ao comprido e
escondiam a face na terra como se os tivessem morto a tiro. Só
a bárbara e soberba mulher não recuou nenhum passo e estendia
para nós os braços nus, muito trágica, por sobre o rio
cintilante e triste.
Foi nessa altura que aqueles imbecis começaram a sua
brincadeira estúpida no convés de baixo, mas não consegui ver
mais nada por causa do fumo.
A corrente escura afastava-se com rapidez do coração das
trevas e levava-nos para baixo, em direcção ao mar, a
velocidade dupla da nossa subida; e a vida de Kurtz também
corria veloz em refluxo, refluxo do seu coração no mar
inexorável do tempo.
83
O administrador estava muito calmo, já sem ter ansiedades
vitais, e englobava-nos aos dois num olhar único de
compreensão e satisfação: o negócio resultara tão bem como
seria para desejar. Vi aproximar-se a hora em que o derradeiro
apoiante do método insensato, seria eu. Os peregrinos
olhavam-me com má vontade. Pode bem dizer-se que me incluíam
entre os mortos. É estranha a forma como aceitei esta
imprevista associação, a escolha do pesadelo que me era
imposto naquela tenebrosa terra, invadida por fantasmas
mesquinhos e vorazes.
O Kurtz falava. Uma voz! Uma voz! De profundidade mantida
mesmo até ao fim. Que sobreviveu às forças para ocultar nas
magníficas pregas da eloquência as trevas do seu coração. E
como lutou, lutou! O deserto do seu fatigado pensamento
envenenava-se agora com imagens de sombra - imagens de riqueza
e fama que se revolviam, deferentes, em redor de um
inextinguível talento para se exprimir com nobreza e elevação.
A minha prometida, o meu posto, a minha carreira, as minhas
ideias - eram tema de ocasionais exibições de sentimentos
elevados. A sombra do Kurtz original não largava a cabeceira
daquela contrafacção vazia que tinha por destino uma sepultura
modelada em terra de primevas idades. Mas quer o diabólico
amor, quer o ódio sobrenatural dos mistérios em que ele
penetrava lutavam pela posse daquela alma saciada em
primitivas emoções, sequiosas de enganosa fama, de falsas
distinções, de toda a aparência de poder e êxito.
Às vezes era risivelmente pueril. Gostaria de ter reis a
recebê-lo em estações de caminho-de-ferro, quando regressasse
daquela pavorosa Terra de Ninguém onde pretendia consumar
grandiosas coisas. "Saibamos mostrar-lhes que em nós existe
qualquer coisa realmente aproveitável, e não terá limites o
reconhecimento que irão dispensar às nossas capacidades",
dizia ele. "Claro que temos sempre que levar em conta os
motivosos motivos justos."
Os longos troços do rio eram como que um único troço sempre
igual, as voltas monótonas idênticas, a deslizarem pelo vapor
com a sua multidão de árvores seculares que olhavam, muito
pacientes aquele sujo fragmento de outro mundo, o precursor de
mudança, conquista, comércio, massacre e bênçãos. Eu olhava
para a frente - e pilotava. "Fechem-me as portadas", disse um
dia Kurtz, de repente; "não suporto ver isto." Fiz-lhe a
vontade. Houve um silêncio.
8485
"Ah! Seja como for, hei-de arrancar-te o coração!", gritou
ele à selva invisível. Ì Tivemos uma avaria - como eu esperava
- e fomos obrigados a fundear para reparações na ponta de uma
ilha. Esta paragem foi o primeiro abalo na confiança de Kurtz.
Certa manhã entregou-me um maço de papéis e uma fotografia tudo amarrado com um atacador de sapatos. "Guarde-me isto",
disse ele.
"O malvado daquele doido" (referia-se ao administrador) "é
capaz de mexer nas minhas malas quando me apanhar distraído."
À tarde fui vê-lo. Estava deitado de costas, com os olhos
fechados; retirei-me sem fazer barulho e ainda o ouvi murmurar
isto: - "Viver honestamente, morrer, morrer..." Pus-me à
escuta. Mas ficou por ali. Estaria a ensaiar algum discurso,
enquanto dormia, ou era um fragmento de frase para qualquer
artigo de jornal? Tinha escrito em jornais e pensava voltar a
fazê-lo para divulgar as minhas ideias. É um dever!
Vivia numa treva indevassável. Eu olhava-o como quem está
deitado no fundo de um abismo onde o Sol nunca brilha.
Mas não tinha muito tempo para lhe dedicar, pois ajudava o
maquinista a desmontar os cilindros cheios de fugas, a
endireitar a haste do êmbolo que vergara, e a fazer mais
trabalhos deste género. Passava os dias numa infernal confusão
de ferrugens, limalhas, porcas, parafusos, chaves, manelos e
brocas - coisas que abomino por não haver meio de me entender
com elas. Ia fazendo funcionar a pequena forja que tínhamos,
felizmente, a bordo; fossava como um escravo no monte de
sucata - a não ser quando as sezões eram fortes de mais para
eu me ter nas pernas.
Uma noite entrei na cabina, de vela na mão, e surpreendi-me
quando o ouvi falar com voz ligeiramente trémula: - "Estou
deitado aqui, nas trevas, à espera da morte." A luz não se
encontrava a mais de um pé dos seus olhos. Esforcei-me por
murmurar: - "Que disparate!" e debrucei-me para ele, pregado
ao chão.
Eu nunca tinha visto, nem espero tornar a ver, coisa
parecida com a transformação que se dera nos seus traços. Não,
emocionado eu não estava. Estava fascinado. Como se um véu se
tivesse rasgado. No marfim daquele rosto vi uma expressão de
orgulho sombrio, indomável poder, de abjecto terror - de um
desespero intenso e sem esperança. Naquele supremo instante,
de integral conhecimento, estaria ele a reviver a vida em todo
o pormenor, com os seus desejos, tentações e renúncias? Deu um
grito sussurrado a uma imagem qualquer, a uma visão qualquer gritou duas vezes, um grito que não passava de sopro...
"O horror! O horror!" Apaguei a vela e saí da cabina. Os
peregrinos jantavam no refeitório. Fui sentar-me no meu lugar,
à frente do administrador, e ele levantou os olhos numa
interrogação que consegui ignorar. Estava recostado, sereno,
com aquele sorriso especial que selava as inexprimíveis
profundezas da sua mediocridade. Sobre o candeeiro, a toalha,
as mãos e os rostos caía um chuveiro de pequenas moscas. De
repente, o moleque do administrador mostrou à porta a
insolente cabeça negra e disse num tom de desprezo insultuoso:
- "Siô Kurtz - moleu." Todos os peregrinos se levantaram para
ir ver. Não me mexi e continuei o meu jantar. Creio que me
chamaram brutalmente insensível. Apesar disso, não comi muito.
Ao pé de mim havia um candeeiro - uma luz, percebem? - e lá
fora era tudo uma pavorosa, uma pavorosa escuridão. Eu não
queria voltar a aproximar-me do homem notável que tinha
proferido uma sentença daquelas sobre as aventuras da sua alma
na terra. A voz desaparecera. Teria havido mais qualquer outra
coisa? Claro que vi, no dia seguinte, os peregrinos a
sepultarem um corpo numa cova lamacenta.
A seguir pouco faltou para me sepultarem, a mim.
No entanto, como vêem, não foI dessa vez que fui fazer
companhia ao Kurtz. Não senhor. Fiquei para sonhar o pesadelo
até ao fim e demonstrar, uma vez mais, como lhe era fiel.
Destino. O meu destino! Que engraçada, esta vida - este
misterioso consenso de impiedosa lógica ao serviço de um
propósito fútil. O mais que podemos esperar é ter algum
conhecimento de nós próprios - que infelizmente chega tarde uma data de sofrimentos que nunca mais acabam. Travei uma
batalha com a morte. O menos excitante combate que pode
imaginar-se. Travado no meio de uma impalpável penumbra, sem
sítio para firmarmos os pés, sem nada à volta, sem
espectadores; sem barulho, sem glória, sem o grande desejo de
vitória, sem o grande medo da derrota, numa atmosfera doentia
de morno cepticismo, sem demasiada fé na nossa razão e ainda
menos na razão do adversário. Se isto é forma de sabedoria
suprema, a vida ainda é maior enigma do que alguns pensam. Por
uma unha negra não foi a última oportunidade de eu emitir
opinião, mas reconheço, humilhado, que provavelmente não teria
nada a dizer. Esta a razão de eu afirmar que o Kurtz era um
homem notável.
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Tinha qualquer coisa para dizer. E disse-a. Desde que eu
próprio dei uma espreitadela para além do limiar, compreendo
melhor o significado do seu olhar parado, incapaz de ver a
chama da vela, mas suficientemente agudo para devassar todos
os corações que batem nas trevas. Tinha chegado a conclusões fizera um juízo. O horror!, Era um homem notável. Afinal de
contas, aquilo exprimia qualquer coisa como uma crença; tinha
candura, tinha convicção, tinha uma vibrante nota de revolta
no seu murmúrio, tinha a aterrorizante face de uma entrevista
- verdade - estranha mistura de desejo e ódio. E o que mais
recordo não é a minha extremidade - visão cinzenta sem forma
mas cheia de dor física e de um negligente desprezo pelo
apagar de todas as coisas inclusive a própria dor. Não! A
extremidade dele é que julgo ter vivido. Isso mesmo. Deu o
derradeiro passo, ultrapassou os limites enquanto aos meus pés
hesitantes foi consentido um recuo. E talvez aqui esteja a
verdadeira diferença; talvez todo o saber, toda a verdade e
toda a sinceridade se concentrem nesse inapreciável instante
em que transpomos o limiar do invisível. Talvez! Gosto de
pensar que as minhas conclusões não passaram de uma palavra de
negligente desprezo. Melhor - muito melhor - o grito dele. Era
uma afirmação, uma vitória moral paga por inúmeras derrotas,
terrores abomináveis, abomináveis satisfações. Mas era uma
vitória! Por isso permaneci fiel a Kurtz até ao último
instante, ou para além dele, quando voltei a ouvir, tanto
tempo depois, já não a voz mas o eco da sua eloquência
magnífica que me chegou de uma alma tão transparentemente pura
como uma falésia de cristal.
Não, à cova não me levaram, mas houve um lapso de tempo que
recordo nebulosamente e me estremece de espanto como se fosse
a passagem num inconcebível universo sem esperança nem desejo.
Só vim a reencontrar-me na cidade sepulcral, ao incomodar-me
com o espectáculo de pessoas apressadas que andavam pelas ruas
para extorquir dinheiro umas às outras, devorar infames
cozinhados, engolir cerveja insalubre, sonhar sonhos
insignificantes e patetas. Atravancavam-me os pensamentos.
Eram intrusos cuja experiência de vida me parecia uma
irritante pretensão, já que não podiam, não senhor, conhecer
as coisas que eu conhecia. As suas atitudes, simples atitudes
de gente banal que tratava da vida com uma convicção de
perfeita segurança, ofendiam-me tanto como a suficiência
ultrajante da loucura ao pé de um perigo que ela não pode
compreender. Eu não sentia especial desejo de os ensinar,
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mas tinha alguma dificuldade em conter-me para não rir nas
suas caras cheias de estúpida importância. Quero crer que
nesse tempo eu não passava muito bem. Cambaleava pelas ruas tinha vários assuntos a tratar - sorria desagradavelmente a
pessoas muito respeitáveis. Confesso que o meu comportamento
era indesculpável, mas nessa altura eu raramente andava com a
temperatura normal. As tentativas da minha querida tia para me
restabelecer ultrapassavam todas as marcas. Não era recobrar
forças o que eu precisava, mas acalmar a imaginação.
Conservava em meu poder o maço de papéis que o Kurtz me
entregara, sem saber ao certo o que fazer com eles. A mãe dele
tinha falecido há pouco tempo, ao que me disseram acompanhada
na doença pela Prometida. Certo dia, um homem de cara rapada,
com aspecto de funcionário público e óculos com aro de ouro,
procurou-me e fez perguntas, começando por dar-lhes um
carácter suavemente intimidante, sobre aquilo que ele gostava
de chamar determinados "documentos". Não me surpreendeu, uma
vez que eu já tinha tido duas pegas com o administrador sobre
aquele assunto. Eu tinha-me recusado a entregar um papel do
maço, que fosse, e com o homem dos óculos sucedeu exactamente
o mesmo. Começou por fazer-me obscuras ameaças e acabou, cheio
de calor, por argumentar que a Companhia tinha direito a todas
as informações sobre os seus territórios", pequenas que
fossem. E disse que "os conhecimentos do Sr. Kurtz sobre
regiões inexploradas seriam necessariamente extensos e
singulares - devido aos seus grandes talentos e às deploráveis
circunstâncias em que se encontrara; por isso..."
Assegurei-lhe que os conhecimentos do Sr. Kurtz, embora
vastos, não recaíam sobre problemas de comércio ou
administração. Invocou, então, a palavra ciência,. Que
incalculável perda seria se, etc., etc. Ofereci-Lhe o
Relatório para a Supressão dos Costumes Selvagens depois de
rasgar o post-scriptum. Aceitou-o com o maior interesse, mas
acabou por fungar, cheio de desdém. "Tínhamos o direito de
esperar mais", declarou. - "Não espere mais nada", respondi;
"só há cartas particulares." Retirou-se, com uma ameaça
qualquer de procedimento legal, e nunca mais lhe pus a vista
em cima; mas dois dias depois apareceu-me outro sujeito que se
dizia primo do Kurtz e estava ansioso por ouvir todos os
pormenores sobre os últimos momentos do seu querido parente.
Durante a conversa deu-me a entender que o Kurtz tinha sido,
acima de tudo, um grande músico. Dispunha do que é necessário
para ter um êxito imenso, disse aquele homem,
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segundo creio organista, com cabelos escorridos e brancos que
caíam na gola ensebada do casaco. Não havia motivo para
duvidar da sua afirmação; ainda hoje não sou capaz de dizer
qual era a profissão do Kurtz, se acaso teve alguma - e qual o
maior dos seus talentos. Tomei-o por um pintor que escrevia
para os jornais, ou antes, por um jornalista que sabia pintar
- e nem mesmo o primo (que se fartou de cheirar rapé durante a
conversa) soube dizer - exactamente - o que ele fora. Um génio
universal - neste ponto concordei com o velhote, que ao
dizê-lo deu uma assoadela ruidosa com um grande lenço de
algodão e se retirou, tomado de excitação senil, levando
consigo algumas cartas familiares e notas sem importância. Por
fim apareceu um jornalista ansioso por saber coisas sobre a
sorte do seu querido colega,. Informou-me que a verdadeira
esfera de acção de Kurtz deveria ter sido a política do lado
do povo". Tinha sobrancelhas direitas e farfalhudas, cabelo
grosso rapado, um monóculo de fita larga, e foi ao ponto, num
ataque de sinceridade, de confessar que opinião tinha sobre
Kurtz e dizer-me que ele não era capaz, realmente, de escrever
grande coisa "mas, Santo Deus!" como era bom a falar!
Electrizava grandes assembleias. Era um convencido - percebe?
- e um convicto. Podia convencer-se a si próprio daquilo que
queria. "Teria dado um esplêndido chefe num partido
extremista." - Que partido?", perguntei. - "Um qualquer",
respondeu. "Era um - um - extremista." Eu não achava? Claro
que achava. E eu fazia ideia do que o induzira "a ir para lá"?
perguntou com um súbito impulso de curiosidade. Sim, fazia, e
pus-lhe imediatamente nas mãos o famoso Relatório para ele
publicar, caso achasse oportuno fazê-lo. Deu-Lhe uma olhadela
apressada, sempre a resmungar, considerou-o cem condições" e
fugiu com o produto do saque.
Acabaram por me deixar em paz quando fiquei apenas com um
maço de cartas e o retrato da rapariga. A sua beleza
impressionava-me - quero dizer que era belíssima de expressão.
Bem sei que até a luz do Sol pode dizer mentiras, mas não era
visível que nenhum jogo de luz ou pose pudesse dar-lhe ao
rosto um ar de tão delicada ingenuidade. Parecia pronta a
ouvir-nos sem reservas mentais, sem suspeitas, sem pensamentos
reservados. Acabei por resolver que iria eu próprio
devolver-lhe o retrato e as cartas. Curiosidade? Sim, mas
sentimentos de outra espécie, talvez. Todo o espólio de Kurtz
me passara pelas mãos: - alma, corpo, o posto, os planos, o
marfim, a carreira. Só restavam a sua memória, a sua Prometida
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- e de certo modo eu queria restituir aquilo ao passado - eu
próprio entregar tudo quanto me restava dele ao esquecimento
que era palavra última do nosso destino comum. Não estou a
defender-me. Eu não tinha uma percepção clara do que realmente
se passava em mim. Talvez fosse um impulso de inconsciente
lealdade ou satisfação de uma destas exigências irónicas que
espreitam nos actos da vida humana. Sei lá. Não posso dizê-lo.
Mas fui.
Pensava eu que a sua memória era igual à memória de outros
mortos que se acumulam na vida de nós todos - vaga impressão
no cérebro, feita por sombras que o afloraram durante uma
rápida e suprema passagem; mas à frente do portão alto e
solene, entre largas casas de uma rua tão silenciosa e
respeitável como a álea bem tratada de um cemitério, voltei a
vê-lo na maca, de boca voraz aberta, como se quisesse engolir
o mundo e toda a sua humanidade. Tive-o à minha frente vivo;
mais vivo do que alguma vez estivera - insaciável sombra de
magnífica aparência, de pavorosa realidade, mais negra sombra
do que a sombra da noite e nobremente envolta nas pregas de
uma sumptuosa eloquência. Pareceu-me que a visão entrara
comigo na casa - a maca, os carregadores-fantasmas, a selvagem
multidão dos obedientes adoradores, a escuridão da floresta, o
cintilar do rio entre curvas sombrias, o bater do tambor tão
regular e surdo como o bater de um coração - coração de uma
dominadora treva. Para a selva foi um momento de triunfo, uma
corrida invasora e vingativa que a meu ver eu só teria de
repetir se quisesse salvar outra alma. E a memória do que eu
ouvira muito longe dali ao clarão das fogueiras, com cornudas
sombras a mexerem-se no seio da floresta paciente em frases
truncadas, voltou a ocorrer-me com a sua sinistra e
assustadora simplicidade. Recordei que abjectas instâncias,
que abjectas ameaças ele fizera, a colossal escala dos seus
desejos baixos, a mediocridade, o tormento, a angustiada
tempestade da sua alma. E por fim julguei rever o modo
entediado e petulante que um dia teve para dizer: - "Agora,
este lote de marfim é realmente meu. A Companhia não o pagou.
Eu próprio fui buscá-lo com enormes riscos pessoais, embora
receie que eles pretendam reclamá-lo como seu. Hum! Que caso
difícil. Pensa que eu deva - resistir? Hem! Não quero o que
não seja justo..." Nada queria que não fosse justo - que não
fosse justo. Toquei a sineta à frente de uma porta de mogno do
primeiro andar, e enquanto estive à espera pareceu-me que
olhava para mim próprio através do painel envernizado -
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olhava-me com um imenso e desafogado olhar fixo que abarcava,
condenava, odiava o universo inteiro. Julguei ouvir o
murmurado grito - "O horror! O horror!" Caía a noite. Tive de
esperar numa sala de visitas ampla, com três janelas altas que
iam do chão ao tecto e pareciam três luminosas e drapejadas
colunas. As pernas e os espaldares dourados faziam brilhar as
suas curvas subtis. A larga chaminé de mármore tinha uma
brancura fria e monumental. Havia a um canto um maciço piano
de cauda com reflexos negros nas superfícies planas, como um
polido e sombrio sarcófago. Uma porta alta abriu-se fechou-se. E pus-me de pé.
Aproximou-se toda de negro, pálida de cara, a flutuar no
crepúsculo. Vestia de luto. Passara mais de um ano sobre a
morte dele, mais de um ano sobre a notícia da morte dele, mas
dir-se-ia que o recordava e chorava para sempre. Agarrou-me em
ambas as mãos e murmurou: - "Eu já tinha ouvido dizer que o
senhor viria." Reparei que não era muito nova - quero dizer
rapariga. Tinha uma amadurecida aptidão para ser fiel,
convicta e sofredora. A sala parecia agora mais escura, como
se toda a luz triste daquela enevoada tarde tivesse procurado
a sua testa para se refugiar. Aquele cabelo louro, aquele
rosto pálido, aquelas sobrancelhas bem traçadas pareciam
rodear-se de um halo cor de cinza onde os seus olhos escuros
me fitavam. Tinha um olhar inocente, profundo, confiante e
leal. Erguia a face triste como se tivesse orgulho nessa
tristeza, como se dissesse "eu - só eu, sei chorá-lo como ele
merece." Com as nossas mãos ainda apertadas, subiu-lhe ao
rosto um ar pavorosamente desolado, só possível nos seres que
se não deixam transformar em joguete do Tempo. Para ela, Kurtz
só morrera na véspera. E, valha-me Júpiter!, tão forte era na
sua convicção que a mim me pareceu, também, que ele só morrera
na véspera - que digo eu? - naquele mesmo instante. Vi-os aos
dois no mesmo instante de tempo - a morte dele e o desgosto
dela vi-lhe o desgosto no próprio instante em que ele morria.
Compreendem? Via-os ao mesmo tempo - ouvia-os ao mesmo tempo.
"Sobrevivi", disse-me ela com um forte estrangulamento na voz,
enquanto os meus fatigados ouvidos pareciam ouvir, misturado à
sua entoação de pesar sem esperança, o decisivo murmúrio com
que ele tinha pronunciado a sua condenação eterna. Perguntei a
mim mesmo o que estava eu a fazer ali, com aquele pânico no
coração, como se me tivesse metido num lugar de cruéis e
absurdos mistérios interditos ao ser humano.
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Apontou-me uma cadeira. Sentámo-nos. Pousei delicadamente o
maço de papéis numa pequena mesa e ela pôs-lhe a mão em
cima... "O senhor conhecia-o bem", murmurou depois de um
instante de silêncio triste.
- "Naquelas terras a intimidade é rápida" - respondi. "Conheci-o tão bem como um homem pode conhecer outro."
- "E admirava-o" - disse ela. - "Era impossível conhecê-lo
sem o admirar, não era?"
- "Foi um homem notável" - acrescentei, embaraçado. E
perante a implorativa fixidez do seu olhar, que parecia
esperar mais palavras dos meus lábios, continuei: - "Era
impossível que não..."
- "O amássemos" - concluiu ardorosamente, enquanto eu
permanecia mudo e confundido. - "Como é verdade! Como é
verdade! Mas pensar que mais ninguém o conhecia como eu! Eu
tinha toda a sua nobre confiança. Conhecia-o melhor do que
ninguém."
- "Conheceu-o melhor do que ninguém" - repeti. E talvez
fosse verdade. Mas a cada palavra a sala ia ficando mais
escura, e só a testa dela, lisa e branca permanecia iluminada
pela inextinguível luz da fé e do amor.
- "Foi amigo dele" - continuou. - "Amigo dele" - repetiu em
voz um pouco mais alta. - "Foi com certeza amigo, uma vez que
ele lhe entregou isto e pediu que me procurasse. Sinto que
posso falar consigo - e olhe, tenho mesmo que falar. Quero que
o senhor - o senhor, que ouviu as suas últimas palavras saiba que fui digna dele... Não se trata de orgulho... Ou
antes, sinto orgulho em saber que o compreendi melhor do que
qualquer outra pessoa neste mundo - ele próprio mo disse. E
depois de lhe morrer a mãe, nunca mais tive ninguém - ninguém
para - para..."
Eu ouvia. A treva adensava-se. Eu já nem sabia se ele me
tinha dado o tal maço. Suspeito de que tivesse pretendido
deixar-me na posse de outros papéis, depois da sua morte, os
que eu vira o administrador examinar à luz do candeeiro. A
Prometida falava, aliviando a dor com a certeza da minha
simpatia; falava como um homem sequioso bebe. Fiquei a saber
que a família dela reprovara o seu noivado com o Kurtz. Não
era suficientemente rico, ou qualquer outra coisa do mesmo
género. E na verdade ignoro se ele não teria sido sempre, vida
fora, o mesmo pobretanas. Tinha-me dado algumas razões para eu
intuir que a sua impaciência, devido a uma relativa pobreza, é
que o levara àquelas paragens.
"... Ouvindo-o falar uma vez, quem não seria seu amigo?"
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ia a Prometida dizendo. - "Atraía os homens através do que
eles tinham de melhor dentro de si." - Fixava-me com um olhar
intenso. - "É a dádiva dos grandes" - continuou, e o som da
sua voz contida parecia acompanhado por todos os outros sons,
repletos de mistério, desolação e desgosto, como eu nunca
ouvira - o rumor do rio, o sussurrar das árvores sacudidas
pelo vento, os murmúrios das multidões, a leve vibração de
palavras incompreensíveis gritadas de longe, o segredar de uma
voz que nos falasse para lá da porta das eternas trevas. "Mas o senhor ouviu-o! O senhor sabe!" - exclamou.
- "Sim, eu sei" - respondi com qualquer coisa no coração que
parecia um desespero e de cabeça baixa perante a fé que
existia nela, perante uma grande ilusão salvadora que
cintilava como um sobrenatural clarão nas trevas, nas
gloriosas trevas a que eu não conseguia furtá-la, nem a mim
próprio furtar-me.
- "Que grande falta me faz... nos faz!" - corrigiu com
generosidade encantadora, acrescentando num murmúrio: - "Ao
mundo." - Com as últimas cintilações do crepúsculo eu podia
ver-lhe o brilho dos olhos cheios de lágrimas - de lágrimas
que não corriam. - Fui muito feliz - "tive muita sorte - fui
muito orgulhosa" - continuou. - "Demasiada sorte. Por um breve
instante muito feliz. E agora sou infeliz para - toda a vida."
Levantou-se; os seus cabelos louros pareciam captar toda a
luz remanescente numa cintilação dourada. Também me levantei.
- "E de tudo isto" - prosseguiu em tom desolado - "de tudo o
que ele prometia, de toda a sua grandeza, da sua generosa
inteligência, do seu nobre coração, nada resta - nada, além de
uma memória. Nós os dois..."
- "Vamos recordá-lo sempre" - apressei-me a dizer.
- "Não!" - exclamou. - "É impossível que tudo se tenha
perdido - que uma vida como a dele se tenha sacrificado sem
deixar nada atrás - além de tristeza. Sabe como os seus
projectos eram vastos. Eu também os conhecia - talvez não
pudesse compreendê-los - mas outros compreenderiam. Alguma
coisa deve ter ficado. As suas palavras não morreram, pelo
menos."
- "As palavras hão-de ficar para sempre" - disse eu.
- "E o seu exemplo" - acrescentou, quase que a segredá-lo a
si própria. - "Os homens punham os olhos nele - a bondade
brilhava em todos os seus actos. O seu exemplo..."
- Tem razão" - interrompi. - "O seu exemplo também. Sim, o
seu exemplo. Estava a esquecê-lo." - "Mas eu não. Não posso -
não posso esquecê-lo... ainda.
Não posso acreditar que nunca mais hei-de vê-lo, que mais
ninguém voltará a vê-lo, nunca, nunca, nunca mais."
Abriu os braços, como se fosse atrás de uma imagem que se
afastava, estendeu-os e juntou as mãos pálidas que ficaram
negras em contraluz na estreita e mortiça faixa de claridade
da janela. Não voltar a vê-lo! Pelo meu lado via-o com muita
nitidez. Toda a vida hei-de ver aquele eloquente fantasma, e a
ela também. Sombra trágica e familiar, parecida nesse ponto
com outra igualmente trágica, revestida de ineficazes
amuletos, que estendia os braços escuros e nus à cintilação do
rio infernal, do rio das trevas. Disse ela então, de repente e
com voz muito sumida: - "Morreu como viveu."
- "O seu fim" - respondi-lhe com uma surda irritação que me
excitava - "em tudo foi digno da vida que viveu."
- "E eu tão longe dele" - murmurou.
A minha irritação desvaneceu-se atrás de uma sensação de
infinita piedade.
- "Tudo o que era possível fazer..." - disse eu entre
dentes.
- "Ah! Mas eu acreditava nele, mais do que qualquer outra
pessoa neste mundo - mais do que a sua própria mãe, mais do
que - ele próprio. Precisava de mim! De mim! Eu teria guardado
como um tesouro todos os suspiros, todas as palavras, todas as
frases, todos os olhares."
Senti como que uma mão de gelo pousada no peito.
- "Não!" - interrompi numa voz abafada.
- "Desculpe. Eu - eu tenho-o chorado tanto - em silêncio em
silêncio... Esteve junto dele - até ao fim? Costumo pensar na
sua solidão. Ninguém ao seu lado para o compreender como eu
teria compreendido. Nem sequer ouvir..."
- "Mesmo até ao fim" - respondi com voz trémula. - "Ouvi-Lhe
as últimas palavras..." - Calei-me apavorado.
- "Repita-as" - murmurou num tom de partir o coração. - "Eu
quero - eu quero - qualquer coisa - para - para viver com
ela."
Estive a ponto de lhe gritar: - "Não as ouve?"
À nossa volta a escuridão repetia-as como um incansável
segredo, um segredo que parecia avolumar-se, numa ameaça, como
o primeiro segredo de um vento que começa a levantar-se. "O
horror! O horror!" - "A sua última palavra - para eu viver com
ela" - insistiu. - "Não compreende que eu o amava - amava amava?"
Consegui dominar-me e falar pausadamente:
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- A última palavra que ele disse foi - o seu nome.
Ouvi um suspiro leve e o meu coração deixou de bater,
mortalmente parado por um exultante e terrível grito, pelo
grito de um inconcebível triunfo e de uma indescritível dor.
Eu sabia - eu tinha a certeza!,... Ela sabia. Ela tinha a
certeza. Ouvi-a chorar, com o rosto escondido nas mãos.
Parecia que antes de eu sair aquela casa ia desmoronar-se, o
céu ia cair-me na cabeça. Mas nada disso aconteceu. O céu não
cai por tão pouco. Teria caído, pergunto a mim próprio, se eu
tivesse feito ao Kurtz a justiça que lhe era devida? Ele não
tinha dito que só queria justiça? Mas não pude. Não pude
contar-lhe nada. Seria tenebroso de mais - tenebroso ao
máximo...
Marlow deixou de falar e foi sentar-se afastado, ausente e
silencioso, na posição de um buda que medita. Durante algum
tempo ficámos imóveis. "Já perdemos o começo da vazante",
disse o director da Companhia de repente. Levantei a cabeça. O
horizonte tinha um banco de nuvens negras atravessado, e o
calmo caminho das águas, que leva aos confins da terra, corria
escuro sob um céu sombrio - dir-se-ia que a levar-nos ao
coração de infinitas trevas.