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O CORAÇÃO DAS TREVAS

Romancista britânico de origem polaca, Joseph Conrad notabilizou-se como um dos melhores prosadores de língua inglesa, através das suas histórias, em que se conjuga a aventura romântica e a reflexão moral. Em O Coração das Trevas o escritor evoca o espírito da África Negra, e através do personagem de Kurtz, um misterioso negociante branco, mostra que no homem civilizado permanecem os impulsos mais selvagens e destrutivos. Além de reflectir o choque entre as duas culturas: os colonizados e os colonizadores europeus, esta Obra conduz o leitor às trevas da selva africana e simultaneamente do coração humano. NOTA BIOBIBLIOGRÁFICA JOSEPH CONRAD nasceu em Berdichev, em Ucrânia, em 1857. De origem polaca, o seu nome verdadeiro era Jósef Konrad Walecz Korzeniowski. O pai era um nacionalista polaco que, devido às suas actividades políticas, foi desterrado para a Ucrânia. Só aprendeu inglês aos vinte anos e a sua segunda língua foi o francês. Órfão aos onze anos, ficou sob a tutela do tio. Em 1874 partiu para Marselha onde se alistou na marinha. Em 1886 obteve o masters Certificate e a nacionalidade britânica. As suas experiências no Oriente foram tema de inspiração de muitos dos seus romances. Em 1890 abandonou a marinha para se dedicar inteiramente à literatura. Em 1895 publicou o seu primeiro romance, A Loucura de Almery. Em Um Vagabundo das Ilhas, do ano seguinte, debruça-se sobre as diferenças raciais. Casou-se nesta altura com Jessie George. Continuou a escrever, mas só com a publicação de Chance em 1913 viria a tornar-se famoso. Criticando o colonialismo e convencido de que até os elevados ideais têm em si a semente da corrupção, foi um mestre no esboço de personagens e manifesta grande domínio da linguagem e um singular vigor narrativo. Conrad morreu em Kent em 1924.

O CORAÇÃO DAS TREVAS JOSEPH CONRAD BIBLIOTECA VISÃO Romancista britânico de origem polaca, Joseph Conrad notabilizou-se como um dos melhores prosadores de língua inglesa, através das suas histórias, em que se conjuga a aventura romântica e a reflexão moral. Em O Coração das Trevas o escritor evoca o espírito da África Negra, e através do personagem de Kurtz, um misterioso negociante branco, mostra que no homem civilizado permanecem os impulsos mais selvagens e destrutivos. Além de reflectir o choque entre as duas culturas: os colonizados e os colonizadores europeus, esta Obra conduz o leitor às trevas da selva africana e simultaneamente do coração humano. NOTA BIOBIBLIOGRÁFICA JOSEPH CONRAD nasceu em Berdichev, em Ucrânia, em 1857. De origem polaca, o seu nome verdadeiro era Jósef Konrad Walecz Korzeniowski. O pai era um nacionalista polaco que, devido às suas actividades políticas, foi desterrado para a Ucrânia. Só aprendeu inglês aos vinte anos e a sua segunda língua foi o francês. Órfão aos onze anos, ficou sob a tutela do tio. Em 1874 partiu para Marselha onde se alistou na marinha. Em 1886 obteve o masters Certificate e a nacionalidade britânica. As suas experiências no Oriente foram tema de inspiração de muitos dos seus romances. Em 1890 abandonou a marinha para se dedicar inteiramente à literatura. Em 1895 publicou o seu primeiro romance, A Loucura de Almery. Em Um Vagabundo das Ilhas, do ano seguinte, debruça-se sobre as diferenças raciais. Casou-se nesta altura com Jessie George. Continuou a escrever, mas só com a publicação de Chance em 1913 viria a tornar-se famoso. Criticando o colonialismo e convencido de que até os elevados ideais têm em si a semente da corrupção, foi um mestre no esboço de personagens e manifesta grande domínio da linguagem e um singular vigor narrativo. Conrad morreu em Kent em 1924. Algumas obras mais conhecidas: O Preto de Narcissus, novela maritima (1897); Lord Jim (1900); O CoraÇão das Trevas (1902); Tufão (1903); O Agente Secreto (1907); Acaso (1913; Victory (1915); Histórias Inquietas (1898). Título original: Hearth of Darkness Autor: Joseph Conrad Edição cedida por Editorial Estampa 2000 BIBLIOTEX, S. L. para esta edição ABRIL/CONTROLJORNAL Publicação: Julho de 2000 1 A Nellie, chalupa de recreio, rodou à volta da âncora sem panejar as velas, e ficou imóvel. A maré enchia quase sem vento, e como seguíamos rio abaixo só nos restava fundear à espera da viragem. O estuário do Tamisa rasgava-se como a boca de um canal interminável. Céu e mar uniam-se ao largo, sem traço de separação, e as velas crestadas das barcaças, a subirem com a maré, pareciam imobilizar-se no espaço luminoso como fardos de lona muito tensa, vermelhos, onde luzia o verniz dos mastros. As margens baixas corriam para o mar e sobre elas carregava uma névoa diluída na planura. O ar estava sombrio acima de Gravesend, e mais longe parecia condensar-se numa treva desolada que pesava, imóvel, sobre a mais vasta e grandiosa cidade do mundo. O director da Companhia era nosso capitão e anfitrião. De costas, com os olhos postos no mar, a nós quatro inspirava simpatia. Em todo o rio nada havia mais náutico do que ele. Tinha ar de piloto de barra, o que entre marinheiros quer dizer confiança personificada. Era difícil admitirmos que a sua profissão deixasse de chamá-lo ali, ao luminoso estuário, e o não levasse longe, para enigmáticas sombras. Eu já disse noutro lado que a todos nos ligava o laço do mar. Em largos períodos de afastamento mantinha unidos os nossos corações, mas, além disso, garantia a tolerância mútua que devemos às nossas histórias - ou mesmo certezas. O advogado - o melhor dos camaradas - era homem com tantos anos e virtudes que lhe dávamos direito à única almofada e a estender-se no único tapete do convés. O contabilista já tinha à frente a caixa do dominó e divertia-se a fazer construções com pedras de osso. Marlow, esse estava à popa com as pernas cruzadas e encostado ao mastro da catita. Era um homem de rosto cavado, tez lívida e tronco hirto. com ar ascético de ídolo. 6 veio sentar-se connosco. Depois de algumas palavras despreocupadas, no iate houve um silêncio. Por qualquer razão que me não lembra, a partida de dominó ficou por jogar. Estávamos pensativos e apenas dispostos à contemplação. O dia acabava numa paz de radiações calmas e esplêndidas. O brilho da água era pacífico; sem nuvens, o céu, todo ele benigna e luminosa imensidão, e a própria névoa era uma gaze leve, nos pântanos do Essex, presa às encostas arborizadas do interior e estendida em pregas diáfanas pela costa baixa. Só a oeste, suspensa por cima das extensões visíveis, minuto a minuto a treva se ia fazendo mais opaca e como que enraivada contra o Sol prestes a tocar-lhe. Por fim, numa queda de curvatura imperceptível, o Sol desceu e, de branco-incandescente passou a vermelho-turvo, sem raios nem calor, como se fosse ficar apagado de repente e ferido de morte, ao tocar aquela escuridão caída em peso sobre a humanidade. Depois, o aspecto das águas alterou-se e a calmaria enfraqueceu de brilho e tornou-se mais profunda. Planíssimo ao entardecer, o velho rio descansava na bacia vasta, após muitos séculos de bons serviços prestados à raça que lhe povoa as margens, ampliado na serena dignidade pela estrada de água que leva aos mais ermos recantos da terra. Olhávamos a torrente venerável, não já tocados pela claridade vivida de um destes dias curtos que chegam e partem de vez, mas pela augusta luz de memórias infindáveis. A um homem que respeitosa e afeiçoadamente correu mares, como é costume dizer-se, nada mais fácil, de facto, que invocar no estuário do Tamisa o grandioso espírito do passado. Com um préstimo incansável, a corrente move-se de um lado para o outro e povoa-se com a memória dos muitos homens e navios que levou ao sossego do lar ou às batalhas do oceano. Conheceu e serviu todos esses homens, que hoje são orgulho da pátria, desde Sir Francis Drake a Sir John Franklin, todos nobres com ou sem título - os grandes cavaleiros-andantes do mar. Deu vida a todos esses navios cujos nomes ardem como jóias na noite do tempo, desde o Golden Hind que chegou com o bojo a transbordar de ouro, para receber Sua Majestade a Rainha e diluir-se numa epopeia gigantesca, ao Erebus e ao Terror, virados a outras conquistas - que não tiveram regresso. Conheceu navios e homens. Os que largaram de Deptford, Greenwich, entre aventureiros e colonos; navios reais e navios de homens de Bolsa; capitães, almirantes, os sombrios traficantes do comércio do Leste, 7 e os generais" - comissários das frotas das Índias Orientais. Caçadores de ouro ou conquistadores de glória, todos partiram deste rio com a espada em riste, quando não o facho, mensageiros do poder em terras do interior, estafetas de uma centelha de sagrado fogo. Na maré deste rio que grandezas não vogaram até ao mistério das terras desconhecidas!... Sonhos de homem, sementes de domínio, gérmenes de impérios. Já posto, o Sol desceu o crepúsculo até às águas e acenderam-se as luzes ao correr das margens. O farol de Chapman brilhou com toda a força, tripé levantado em pleno lodaçal. Luzes de navios andavam pela esteira navegável grande agitação de luzes para cima, para baixo. E mais a oeste, nos limites superiores do estuário, o lugar da cidade monstruosa, sinistramente marcado no céu, treva a germinar na luz do Sol, sinistro olhar debaixo de estrelas. - E tudo isto, aqui - disse Marlow, de repente - foi um dos lugares selvagens do mundo. Era o único, entre nós, que ainda corria os mares". E o pior que a seu respeito podia dizer-se é que não representava a classe. Marinheiro, sim, mas vagabundo também, enquanto a maior parte leva um género de vida, digamos que sedentário. Tinha espírito caseiro e arrastava consigo a casa - o navio; e a sua terra - o mar. Todos os barcos se parecem uns com os outros, e o mar é sempre igual. No imutável ambiente que os rodeia, as costas estrangeiras, as caras estrangeiras, a versátil imensidão da vida deslizam rápidas e não veladas por um sentido de mistério, mas certa ignorância desdenhosa; para o marinheiro, misterioso só o próprio mar que é amante de toda a vida e tão indevassável como o Destino. Quanto ao mais, depois das horas de trabalho basta um acidental passeio, uma pândega em terra, para o segredo de um continente inteiro ficar exposto, e, regra geral, achar que não vale o esforço de ser conhecido. As histórias dos marinheiros são objectivamente simples e com significado que cabe inteiro em meia casca de noz. Marlow, porém, não era típico (exceptuada a tendência para tagarelar); para ele, o significado de um episódio não estava no seu interior, como um caroço, mas fora, a envolver a história e a dar-Lhe realce, como o calor que provoca a névoa, como esses halos de vapor que o fantomático luar por vezes faz visíveis. A sua observação não surpreendeu ninguém. Era exactamente do género Marlow. E foi aceite em silêncio. 8 Nenhum de nós se deu ao trabalho, sequer, de murmurar; por fim disse-nos em voz lenta: - Pensava eu nos tempos remotos em que os Romanos chegaram aqui pela primeira vez, há cerca de mil e novecentos anos - já lá vão uns dias, portanto... Depois disso o rio iluminou-se Cavaleiros da Távola Redonda, não é como lhes chamam? Sim; mas lembra uma labareda a correr pela planície, o fulgor de um relâmpago entre nuvens. Vivemos nesse clarão - e saiba ele persistir enquanto o mundo girar! Mas ontem havia trevas, aqui. Imaginem a sensação do comandante de um bonito veleiro do Mediterrâneo - como se diz? - uma trirreme, que recebesse inesperadas ordens para rumar ao norte; a correr pelas Gálias, cheio de pressa; encarregado de um desses barcos que os legionários - uma porção de maravilhosos homens, ao que parece!construíam às centenas num mês ou dois, se acreditarmos naquilo que lemos. Imaginem esse comandante aqui - num verdadeiro fim de mundo, mar cor de chumbo, céu fuliginoso, numa espécie de navio todo desengonçado como uma concenina -, a galgar este rio carregado de provisões ou ordens, como quiserem. Bancos de areia, pântanos, florestas, homens selvagens - raríssimas coisas que um homem civilizado pode comer, e só água do Tamisa para tirar a sede. Nem uma gota de vinho de Falerno e nenhumas idas a terra. Aqui e além um acampamento militar perdido na selva, como agulha num palheiro - frio, névoa, tempestades, doenças, exílio e morte - morte escondida no ar, na água, no mato. Devem ter morrido como moscas. Oh, sim - ele conseguia. Conseguia muito bem, podem vocês acreditar, e sem pensar de mais no caso, pensar só mais tarde, talvez para se gabar do que teve, no seu tempo, de aguentar. Eram homens para encarar as trevas de frente. E talvez lhes não faltasse coragem por trazerem debaixo de olho uma promoção rápida no exército de Ravena, caso contassem com os bons amigos de Roma e sobrevivessem aos rigores do clima. Ou imaginem um jovem e honesto cidadão de toga -perito a jogar aos dados, não sei se estão a ver - aqui chegado na esteira de um administrador qualquer, de um cobrador de impostos ou mesmo mercador, para fazer fortuna. Desembarcar num pântano, marchar através de bosques e sentir que a selvajaria, a verdadeira selvajaria de um posto do interior, se fechou à volta dele toda a misteriosa e selvagem vida que põe florestas e matagais a vibrar, o coração dos homens não civilizados. Não são mistérios em que as pessoas possam iniciar-se. Só há que viver no meio do incompreensível e detestável também. 9 Mas fascinante e capaz de actuar em nós. Como sabem, a fascinação do abominável. Imagine-se a saudade crescente, o forte desejo de evasão, o impotente desagrado, a abdicação, o ódio. Fez uma pausa. - Notem - recomeçou, erguendo um braço a partir do cotovelo com a palma da mão virada para fora e as pernas cruzadas à frente, autêntico ar de buda vestido à europeia e a pregar sem flor de lótus -, notem que nenhum de nós sentiria o mesmo. O que nos salva é a eficiência - a devoção pela eficiência. Mas aquela gente não tinha lá grande préstimo, na verdade. Não era colonizadora: ao que suponho, o seu império era espremer e mais nada. Conquistadora era, e para isso há que ter força bruta - coisa que não devemos gabar, quando existe, pois não passa de mero acidente e resulta da fraqueza alheia. Deitavam a mão ao que podiam, só pelo gosto de possuir. Nada mais do que roubo violento, crime agravado pela sua grande escala e os homens a ceder-lhe como cegos - vulgar atitude dos que têm de enfrentar as trevas. A conquista da terra (na maior parte dos casos roubá-la aos de cor diferente ou nariz mais achatado) não será bonita coisa se olhada de muito perto. Só a ideia que ela implica consegue redimi-la. A ideia que a sustenta; não sentimental pretexto, mas ideia; e uma fé desinteressada nessa ideiaqualquer coisa que pode ser erguida e venerada, a que podemos oferecer um sacrifício... Calou-se. No rio deslizavam chamas, minúsculas chamas verdes, chamas vermelhas, chamas brancas que perseguiam, ultrapassavam, juntavam, cruzavam - acabando por separar-se devagar ou cheias de pressa. O tráfego da grande cidade que se estendia cada vez mais, pela noite fechada e sobre as ágúas do rio sem sono. E cheios de paciência olhávamos - pois não se podia fazer mais nada até a maré subir; só depois de um grande silêncio é que Marlow disse, hesitante: - Talvez se lembrem de que fui marinheiro de água-doce, durante algum tempo... - e logo nos soubemos destinados a ouvir, antes da maré encher, uma dessas histórias do Marlow, que não levavam a parte nenhuma. - Não quero maçar-vos muito com a minha experiência pessoal - começou, e com esta observação punha a claro o ponto fraco de tantos narradores, incapazes de escolher matéria de interesse para os seus ouvintes; - no entanto, se querem entender que efeito aquilo produziu em mim, têm de saber como fui lá parar, o que vi, como subi o rio até ao sítio 10 onde encontrei, pela primeira vez, o pobre daquele homem. Era no extremo da zona navegável, ponto culminante da minha experiência. Parecia irradiar uma espécie de luz sobre tudo o que havia à minha volta - até os meus pensamentos. Era bastante sombrio - e miserável - sem nada de extraordinário e muito pouco compreensível também. Sim, muito pouco compreensível. Apesar disso, parecia irradiar uma espécie de luz. Como estão lembrados, eu acabava de regressar a Londres depois de uma boa dose de oceanos Índicos e Pacíficos, de mares da China - um fartote de Oriente - seis anos ou quase; andava a gozar os rendimentos e não vos deixava trabalhar, invadia-vos a casa, exactamente como se tivesse a missão divina de vos civilizar. Durante algum tempo foi uma beleza, mas depois o descanso saturou-me. Desatei então a procurar um navio - que é, suponho eu, o trabalho mais duro deste mundo. Mas os navios é que não reparavam em mim. Comecei a fartar-me da brincadeira. Acontece que em miúdo eu tinha a paixão dos mapas. Ficava horas a olhar para a América do Sul, a África ou a Austrália, e divagava por todas as glórias da exploração. Naquele tempo o mundo ainda tinha muitos espaços em branco, e sempre que eu via algum deles particularmente convidativo (mas isso todos eram) punha-lhe o dedo em cima e dizia: quando eu for crescido hei-de lá ir. Lembra-me que o Pólo Norte era um desses lugares. Pois bem, ainda lá não estive nem vou tentar conhecê-lo. Foi-se-lhe o encanto. Outros espalhavam-se à volta do Equador e em toda a espécie de latitudes dos dois hemisférios. Estive nalguns e... olhem, o melhor é nem falar nisso. Mas no entanto havia um - o maior e mais em branco, digamos - que mais ansioso me fazia. Em boa verdade, naquela altura já não estava em branco. Desde os meus tempos de infância tinha-se enchido de rios e lagos e nomes. Deixara de ser espaço em branco, de maravilhoso mistério - nódoa branca feita para um rapaz sonhar glórias. Transformara-se em lugar de trevas. De especial tinha um rio, enormíssimo rio que podíamos ver no mapa e parecia uma cobra imensa desenrolada, com a cabeça no mar e o corpo em torcido repouso numa região ampla, rabo a perder-se nas profundezas do território. Quando eu olhei para esse mapa na montra de uma loja fascinou-me como a serpente que fascina um pássaro - um passarinho pateta. 11 Nessa altura ocorreu-me que uma importante empresa estava lá instalada. Companhia para o tráfico comercial do rio. Vamos a isto!, pensei comigo mesmo, que eles não podem fazer o tráfico sem um barco qualquer - sem barcos a vapor! - numa tão grande extensão de água doce. Por que não tentas arranjar o comando de um deles? A ideia não me saía da cabeça enquanto ia andando pela Fleet Street. Tinha-me fascinado. A tal Sociedade, como calculam, era uma empresa metropolitana; mas com uma porção de relações no Continente porque era mais barato e não desagradável de todo viver aqui, diziam elas. Custa-me confessar que desatei a maçá-las. O que já constituía, para mim, novidade. Como sabem, não é meu hábito obter coisas desta forma. Sempre segui caminhos próprios e com as minhas pernas. Nem me acreditava capaz de semelhante coisa, mas naquela altura - vejam lá vocês - andava com a ideia fisgada de arranjar um lugar, custasse o que custasse. Por isso as incomodei. Os homens disseram-me: Sim, sim, meu amigo!, mas não passaram daí. Por isso - acreditem se quiserem - tive de recorrer às mulheres. Eu, Charlie Marlow, pus as mulheres ao barulho - para arranjar emprego. Santo Deus! A ideia obcecava-me, não sei se compreendem. Eu tinha uma tia de querida e entusiástica alma. Respondeu-me por carta: Vai ser delicioso. Estou pronta a fazer tudo, tudo, por ti. É uma ideia formidável. Conheço a mulher de uma importantíssima pessoa da Direcção, e também conheço um homem com muita influência junto de, etc., etc." Se a minha fantasia era essa, estava disposta a mover céu e terra para me nomearem comandante de um vapor fluvial. Consegui a nomeação - pois claro; e muito depressa. Parece que a Companhia recebera a notícia que um dos seus capitães morrera numa escaramuça de indígenas. Como era a minha oportunidade, ainda mais ansioso fiquei. Só meses e meses depois, quando tentei recuperar os restos do cadáver, ouvi dizer que o princípio do litígio tinha sido um mal-entendido a respeito de galinhas. Sim, duas galinhas pretas. Fresleven como o tal sujeito se chamava, um dinamarquês - julgou-se prejudicado, não sei como, no negócio, saltou para terra e desatou à paulada no soba. Oh, não me surpreendeu nadinha ouvir isto, nem que o Fresleven era a criatura mais amável e pacata que alguma vez andara sobre duas pernas. Seria isso, sim senhor; mas vivia por aqueles sítios há um par de anos, entregue à nobre causa, sabem vocês, e provavelmente acabara por sentir necessidade de deixar bem vincada a sua autoridade. 12 Por isso espancou sem piedade o velho negro, à frente de um grande ajuntamento de homens da tribo que pareciam fulminados por um raio; até alguém - disseram-me que o filho do soba sentir um grande desespero com os berros do velho, fazer o gesto de atirar ao branco uma zagaia - e ela, claro está, com toda a facilidade se espetar entre as duas omoplatas. A população inteira fugiu para o mato, a esperar calamidades de toda a espécie, enquanto o vapor do Fresleven largou num grande pânico, ao que julgo conduzido pelo maquinista. Parece que ninguém se preocupou muito com os restos do dinamarquês até eu lá aparecer a calçar-lhe as pantufas. As coisas não podiam ficar assim; mas quando tive a sorte de encontrar o meu antecessor já o capim lhe crescera tanto entre as costelas que escondia os ossos. Não faltava nenhum. Ninguém tocara naquele ser sobrenatural depois de morto. E a aldeia estava deserta, com as cubatas abertas, negras, podres e todas desengonçadas dentro de cercados espalhados no chão. Caíra-lhes em cima uma calamidade, não haja dúvidas. Todos tinham desaparecido. Um terror louco dispersara pelo mato homens, mulheres e crianças que nunca mais voltaram. O que foi feito das galinhas, também não sei. Julgo que as afectaram à causa do progresso. Seja como for, a este glorioso caso devo a minha nomeação, mesmo antes de ter tido esperança no lugar. Andei numa correria para ter tudo pronto, e não eram passadas quarenta e oito horas quando atravessei a Mancha para ir apresentar-me aos meus patrões e assinar o contrato. Horas depois chegava a uma cidade que lembro sempre como um sepulcro caiado de branco. Mania minha, sem dúvida. Não foi difícil encontrar os escritórios da Companhia. Eram o que havia de maior na cidade, e o orgulho geral. Se eles iam explorar um império ultramarino e fazer negócios que nunca mais acabavam! Uma rua estreita e deserta que mergulhava em profunda sombra, edifícios altos, inúmeras janelas com persianas, um silêncio de morte, erva a crescer entre as pedras da calçada, à esquerda e à direita imponentes entradas de carros, portas imensas de dois batentes, sinistramente abertas. Esgueirei-me por uma destas gretas, subi a escada nua e bem varrida, árida como um deserto, e abri a primeira porta que encontrei. Duas mulheres, uma gorda e outra magra, estavam sentadas em cadeiras de palha a tricotar lã preta. 13 A magra levantou-se e veio direita a mim - sem interromper o trabalho,com o olhar baixo - e já me dispunha a sair-lhe do caminho, como se faz com uma sonâmbula, quando parou e me fixou no rosto. Trazia um vestido tão escorrido como um pano de guarda-chuva. Sem dizer uma palavra, rodou e entrou à minha frente na sala de espera. Disse-Lhe o meu nome e observei o que me rodeava. Ao centro, uma mesa de pinho, cadeiras vulgares encostadas às paredes, no extremo da sala um grande mapa brilhante, impresso com todas as cores do arco-íris. O vermelho abundava - sempre agradável de ver, pois sabemos que é onde há trabalho a sério -, azul em grande quantidade, pouco verde, manchas alaranjadas e um remendo cor de púrpura na Costa Oriental, a indicar o sítio onde amáveis pioneiros do progresso bebem amáveis garrafas de cerveja. Mas eu não ia para lá. Ia para o amarelo. Mesmo ao centro. E lá estava o rio - fascinante - mortífero - como uma cobra. Uff! Uma porta abriu-se e apareceu um secretário de cara branca estampada de compaixão e a apontar com um dedo descarnado para o santuário. Lá dentro a luz era fraca e o espaço atravancado com uma mesa pesada. De trás desse monumento chegava-me uma sugestão de gordura pálida, metida num fraque. O grande homem em pessoa. Calculo que media cerca de cinco pés vírgula seis de altura e desse à manivela a muitos milhões. Creio que me apertou a mão e num vago murmúrio mostrou regozijo pelo meu francês. Bon voyage. Quarenta e cinco segundos mais tarde já eu regressava à sala de espera, acompanhado pelo secretário passivo, desolado e simpático, que me deu a assinar um documento qualquer. Entre outras coisas julgo que prometi não revelar segredos comerciais. Claro está que não vou fazê-lo. Eu começava a sentir-me pouco à vontade. Como sabem, não estou habituado a cerimónias destas e pairava qualquer coisa no ar como um mau presságio. Exactamente como se me obrigassem a entrar numa espécie de conspiração - sei lá numa coisa desonesta; ao sair respirei fundo. Na outra sala, as duas mulheres continuavam a sua febril malha preta. Outras pessoas chegavam e a mais nova anunciava-as, num corrupio. A velha mantinha-se quieta na cadeira. Tinha os chinelos de pano apoiados numa escalfeta e um gato aninhado no colo. Usava uma coifa branca, engomada, e tinha uma verruga na cara, óculos com aros na ponta do nariz. Deitou-me um olhar por cima das lentes. E a indiferente e fugidia placidez desse olhar perturbou-me. 14 Nessa altura acabavam de ser introduzidos dois jovens com ar alegre mas apalermado, a quem lançou o mesmo olhar rápido e de sabedoria impávida. Parecia saber tudo a respeito deles e de mim. Uma sensação de supersticioso medo me invadiu. Era como que uma criatura cheia de mistério e fatalidade. Mais tarde, e muito longe dali, pensei com frequência nestas duas mulheres de guarda à porta das Trevas, a fazerem malha com lã preta, como se fosse um sudário do frio, uma delas a anunciar gente atrás de gente ao desconhecido, a outra a devassar rostos alegres e descontraídos com fatigados mas implacáveis olhos. Ave! Tricotadora velha de lã negra! Morituri te salutant. Entre os que olhou assim poucos voltaram a vê-la - contas por alto, nem metade. Faltava uma visita ao médico. Simples formalidade, garantiu-me o secretário com ar de quem seguia de perto os meus incómodos. Visto isso, um rapaz de chapéu caído para o sobrolho esquerdo, ao que julgo empregado - naquela casa devia haver empregados, embora o silêncio lembrasse uma cidade de mortos -, desceu a escada e levou-me com ele. Ia mal vestido e desleixado, com manchas de tinta nas mangas do casaco, gravata larga tufada por debaixo do queixo que lembrava um tacão de bota velha: Como era cedo demais para o médico, propus-lhe que tomássemos qualquer coisa e o seu bom humor despertou logo. Quando nos sentámos à frente dos vermutes, elogiou a actuação da Companhia, e fê-lo de uma tal forma que manifestei surpresa por ele não ir para lá. Ficou subitamente frio e macambúzio. "Não sou tão doido como pareço", dizia Platão aos seus discípulos, foi a sentenciosa resposta que me deu ao despejar o copo com um gesto decidido. E levantámo-nos. O velho médico tomou-me o pulso mas estava a pensar, evidentemente, noutra coisa. "Bom, bom para aquilo", resmungou e a seguir, com uma certa vivacidade, quis saber se eu o autorizava a tirar medidas à minha cabeça. Um tanto surpreendido respondi que sim, e então rapou de um compasso e tirou-me medidas da nuca e da testa e dos lados, apontando-as conscienciosamente. Era um homenzinho de barba mal feita, metido numa espécie de gabardina puída e com os pés calçados em chinelos, que me pareceu um inofensivo maluquinho. "No interesse da ciência, costumo pedir sempre para tirar as medidas cranianas dos que partem", explicou. - "E quando voltam, também?", perguntei. -"Oh! Nunca os vejo", observou, "aliás, as alterações são por dentro, não sei se sabe." 15 Sorriu, como se fosse um gracejo amável. "Com que então, vai para lá. Famoso. Direi mesmo que interessante." Deitou-me um olhar investigador e tomou mais uma nota. "Na sua família nunca houve casos de loucura?", perguntou no mais natural dos tons. Fiquei aborrecidíssimo. - "Também faz essa pergunta no interesse da ciência?" - "Talvez" respondeu, sem ligar à minha irritação, "à ciência interessa observar as alterações mentais dos indivíduos quando elas se dão, mas...", Cortei-lhe a palavra: "O senhor é alienista?" - "Todos os médicos deviam sê-lo... um pouco", respondeu-me aquele original, imperturbável. "Tenho uma teoriazinha; e vocês Messieurs que para lá vão deviam ajudar-me a prová-la. Seria a parte que me cabe entre as vantagens que a minha pátria colhe com a posse de uma colónia tão magnificamente dependente. Quanto à riqueza propriamente dita, deixo-a aos outros. Desculpe-me as perguntas, mas o senhor é o primeiro inglês que observo..." Apressei-me a garantir-lhe que não era nada típico. "Se o fosse", acrescentei, "não estaria aqui a conversar consigo. "Será profundo o que me diz, mas provavelmente errado", respondeu com um sorriso. "Evite irritações, ainda mais do que o sol. Adieu. Vocês, ingleses, como é que dizem? Good-bye. Isso mesmo. Good-bye. Adieu. Nos trópicos, acima de tudo deve manter-se a calma..." Levantou um dedo, como quem advertia... "Du calme, du calme. Adieu." Ainda faltava outra coisa - dizer adeus à minha excelente tia. Achei-a triunfante. Tomei com ela uma chávena de chá - o último chá decente por muitos dias - numa sala que dava a ideia, a mais favorável possível, do que são uns aposentos de senhora, e tivemos uma longa conversa ao pé da lareira. Durante as confidências bem claro ficou que tinha feito a minha descrição à mulher do alto dignitário, e Deus sabe a quantas mais pessoas, transformando-me em excepcional e bem dotada criatura - grande achado para a Companhia - homem como não aparece um todos os dias. Deus santíssimo! Eu que só ia tomar conta de um reles vapor fluvial de meia-tigela e com um apito de trazer por casa! Até parecia que estava em causa um desses trabalhadores com maiúscula - não sei se estão a ver Qualquer coisa como uma espécie de emissário da luz, qualquer coisa como um apóstolo de segunda. Naquele tempo era doença que andava na moda, quer em letra de forma, quer na linguagem falada, e a excelente senhora, que vivia no meio dessas aldrabices, perdera a cabeça. 16 Falou-me em libertar milhões de ignorantes dos seus horrorosos costumes,, ao ponto, palavra de honra, de eu começar a sentir-me pouco à vontade. Atrevi-me a sugerir que o objectivo da Companhia era ter lucros. "Meu querido Charlie, estás a esquecer-te de que o obreiro tem sempre a sua recompensa", respondeu com energia. Bem estranha é a forma de as mulheres fugirem à realidade. Vivem num universo muito seu, e nunca houve nem haverá nada que seja possível comparar-lhe. Nele tudo é bonito demais e, se as obrigassem a pô-lo de pé, cairia de pantanas antes de o dia terminar. Bastariam algumas das realidades com que nós, homens, andamos em contenda desde a criação do mundo, para ruir tudo de cima a baixo. Acabei por ser beijado, incitado a não me esquecer de usar flanelas, a escrever com frequência, etc. - e saí. Na rua sei lá bem porquê - tive a estranha sensação de ser impostor. Habituado, como estava, a ir para qualquer parte do mundo numas simples vinte e quatro horas, e a fazê-lo menos preocupado do que a maior parte das pessoas quando atravessa a rua - tive um instante, não direi de hesitação, mas assustada perplexidade ao enfrentar aquele acto tão banal. A melhor forma de poder explicá-lo é dizer que senti durante um segundo ou dois a sensação de ir para o centro da terra, e não para o interior de um continente. Parti num vapor francês que fazia escala por todos os danados portos que eles lá têm, e, segundo percebi, só para desembarcar tropa e funcionários da alfândega. Ia observando a costa. É estar debruçado para um enigma, observar uma costa à medida que desliza ao longo do navio. Lá estava ela - risonha, macambúzia, convidativa, grandiosa, medíocre, insípida ou selvagem, mas sempre calada e com ar de quem nos diz um segredo: Vem cá e adivinha! Mas aquela, no entanto, quase não tinha feições, era como que informe e cheia de monótona gravidade. Orla de floresta colossal, de um verde tão escuro que parecia negra, franjada de espuma branca e a correr direita, como traçada a régua até longe, muito longe, num mar azul de cintilação esfumada em névoas rastejantes. Era feroz, o sol, e a terra parecia luzir e escorrer vapor. Aqui e além, pequenas manchas cinzento-esbranquiçadas formavam cachos na altura da rebentação, às vezes com uma bandeira a tremular por cima. Implantações velhas de séculos e não maiores do que a cabeça de um alfinete na extensão de terra virgem que lhes servia de fundo. 17 E nós a arrastarmo-nos, a pararmos, a desembarcarmos soldados; a prosseguirmos deixando em terra funcionários da alfândega cuja missão era cobrar impostos naquela selvajaria esquecida de Deus, dentro de um barracão com telhado de zinco e um pau de bandeira solitário; voltávamos a desembarcar mais soldados - ao que parece encarregados de proteger os funcionários da alfândega. Alguns afogavam-se na rebentação, ouvi dizer; verdade ou mentira, certo é que ninguém parecia importar-se com isso. Atiravam com eles para lá e prosseguíamos. A costa era sempre igual, como se não andássemos, mas passávamos em localidades diversas - postos comerciais - com nomes do género GranBassam, Pequeno Popo; nomes que pareciam saídos de uma reles farsa qualquer, representada em cenário sinistro. A minha ociosidade de passageiro, o isolamento no meio de tantos homens com quem eu não tinha pontos de contacto, o mar oleoso e lânguido, a sombria uniformidade da costa, pareciam subtrair-me à realidade das coisas, entregar-me a uma patética e absurda fantasmagoria. De vez em quando a voz das ondas era um verdadeiro prazer, como um falar de irmão. Continha qualquer coisa de genuíno, uma razão de ser, um significado. De vez em quando uma embarcação vinda de terra criava um momentâneo contacto com a realidade. Eram pagaias conduzidas por negros. Já de longe se lhes via o branco dos olhos. Gritavam, cantavam; os corpos escorriam suor e os rostos pareciam máscaras grotescas - eram assim, aqueles tipos, embora bem lançados e musculosos, com vitalidade selvagem, uma energia de movimentos intensa, tão natural e genuína como o rebentar das ondas ao longo da costa. Não precisavam de justificar a sua presença. Olhá-los era um grande consolo. Durante algum tempo ainda tive a sensação de pertencer a um mundo de realidades honestas, mas não durou muito. Não tardaria que qualquer coisa aparecesse e soubesse afugentá-la. Certa vez, lembro-me de termos passado por um navio de guerra fundeado junto da costa. Nem uma cubata se via mas assim mesmo alvejava o mato. Parece que os Franceses andavam ali com uma das suas guerras. A bandeira caía mole como um farrapo; as longas peças de seis polegadas espetavam todo aquele casco que a pesada e lodosa ondulação preguiçosamente erguia e depois descia, fazendo oscilar os mastros finos. Lá estava ele, incompreensível na vazia imensidade da terra, do céu e da água, a alvejar um continente. Pof, fazia um dos seis-polegadas; uma pequena chama saltava e logo se apagava, sumida num fio de fumo branco, e o projéctil silvava - sem acontecer nada. 18 Não podia acontecer nada. Naquela actuação, naquele espectáculo, havia um laivo de loucura, um sinistro sentido do cómico; e quando a bordo me garantiram que existia escondida, não sei onde, uma concentração de indígenas - chamavam-Lhes inimigos! - mesmo assim não ficou nada esclarecido. Entregámos cartas (ouvi dizer que os homens morriam de febres, à razão de três por dia naquele navio solitário) e prosseguíamos. Tocámos noutros pontos com nomes de farsa, onde a jovial dança da morte e do comércio segue o seu ritmo em terrosa atmosfera de catacumba escaldante; e tudo isto ao correr de uma costa informe e debruada por rebentações perigosas, como se a própria natureza quisesse afugentar intrusos; entradas e saídas de rios, torrentes de morte viva com margens apodrecidas de lodo, águas engrossadas a lama que invadiam retorcidos pântanos e pareciam voltar-se para nós, como se no auge de um desespero impotente. Em nenhum lado parámos o bastante para eu ter uma opinião abalizada, mas senti crescer dentro de mim a sensação de vago e opressivo espanto. Era como que uma peregrinação feita ao sabor de sugestões de pesadelo. Tinham passado mais de trinta dias quando vi a foz do grande rio. Ancorámos em frente das instalações do Governo, mas o meu trabalho só devia iniciar-se duzentas milhas a montante. Por isso, logo que foi possível me dirigi a outro lugar, longe dali trinta milhas. Arranjei passagem num pequeno vapor de alto-mar. O capitão era sueco e, ao saber-me da marinha, convidou-me a subir ao convés. Era um jovem magro e louro, com mau humor e falta de cabelo, andar arrastado. Quando largámos daquele molhe miserável, a cabeça dele teve um gesto de desprezo dirigido à terra. "Desembarcou ali?", perguntou. - "Desembarquei." "Que malta aquela, do Governo! Não acha?", continuou num inglês correcto e cheio de azedume. "É curioso o que alguns fazem por meia dúzia de francos mensais. Gostava de saber o que lhes acontece quando vão para o interior." Respondi que esperava poder sabê-lo dentro de pouco tempo. "Pouco tem...!" exclamou. Começou a arrastar os pés para o outro bordo, com o olhar atento à posição da proa. "Não tenha assim tanta certeza", prosseguiu. "No outro dia levei um homem que se enforcou a meio do caminho. Também sueco." - "Santo Deus! Enforcou-se porquê?", gritei. Continuou absorvido pela rota. - "Sabe-se lá! Talvez farto de sol ou desta terra." 19 Por fim, o rio alargou. Vi uma encosta rochosa, montes de terra removida na margem, numa colina casas, algumas com telhados de zinco ondulado, no meio de um caos de escavações ou suspensas da vertente. Um ruído contínuo de rápidos planava acima desta cena de habitada devastação. Gente negra e nua, na maior parte, andava como formigas de um lado para o outro. Havia um cais acostável enfiado pelo rio adentro. Em certas alturas, o sol ofuscante mergulhava tudo numa súbita recrudescência de luz. "Ali está o posto da sua Companhia", disse o sueco a apontar para três estruturas de madeira do género barracão, na encosta rochosa. "Vou mandar descarregar as suas coisas. Quatro volumes, não foi o que disse? Bom! Até à vista!" Fui esbarrar numa caldeira revirada no capim, e vi o carreiro que galgava a colina. Fazia um desvio para evitar pedreguLhos e um vagão de caminho-de-ferro que jazia de costas, com as rodas voltadas para o ar. Faltava-lhe uma. Era um objecto tão morto como a carcaça de um animal. Esbarrei noutras peças de máquina, desmanteladas, num monte de carris enferrujados. À esquerda, um maciço de árvores fazia uma ilhota de sombra e quaisquer coisas negras se mexiam nela, muito moles. Eu sentia-me encadeado e o caminho era íngreme. Quando uma corneta tocou à direita, vi negros a correr. O chão foi abalado por uma detonação violenta e surda, da encosta saiu uma lufada de fumo, e mais nada. Nenhuma diferença se notava na superfície da pedra. Andavam a construir um caminho-de-ferro mas a encosta não interferia no traçado; o trabalho que ali faziam resumia-se àqueles rebentamentos inúteis. Um leve tilintar, atrás de mim, fez-me voltar a cabeça. Pelo carreiro avançavam seis negros em fila. Andavam erectos e com lentidão, a baloiçar na cabeça pequenos cestos de terra; aquele tilintar cadenciava a sua marcha. Tinham farrapos negros à cintura, com pontas muito curtas que oscilavam atrás como rabos. Podíamos contar costelas, e as articulações dos braços e das pernas eram autênticos nós de corda; todos traziam uma argola de ferro ao pescoço e estavam interligados por uma corrente de elos oscilantes, que tilintavam a compasso. Outro estampido na encosta fez-me lembrar aquele navio de guerra que alvejava o continente. Era o mesmo género de voz sinistra, embora a imaginação mais fértil não pudesse chamar inimigos a estes homens. Apenas lhes chamava condenados; e a lei, ultrajada, soubera atingi-los tanto como as granadas - autêntico, insolúvel mistério do mar. Os peitos magros arfavam ao mesmo tempo, as narinas violentamente dilatadas vibravam e os olhos fixavam-se, petrificados, na vertente da colina. 20 Apesar de terem passado a menos de seis polegadas de mim, a completa e mortal indiferença de tão infelizes selvagens nem um olhar me deitou. Atrás daquela matéria bruta ia um renegado produto das novas forças do trabalho, com ar de quem passeava, mas sem ocultar o seu desânimo ao agarrar a espingarda assim, pelo meio. Vestia uma farda onde faltava um botão, e quando viu um branco no caminho foi rápido a levar a arma ao ombro. Simples prudência, pois à distância os brancos são tão parecidos que não podia ver quem eu era. Depressa se tranquilizou, no entanto, com um sorriso aberto, branco e maldoso, uma olhadela aos homens que trazia à sua guarda, pareceu aceitar-me como indivíduo que pertencia ao seu elevado nível. Afinal de contas, eu também fazia parte da grande causa que justificava a sua correcta e superior conduta. Em vez de continuar a subir, dei uma volta e desci pela esquerda. Eu queria deixar o bando agrilhoado sumir-se, para depois galgar a colina. Como sabem, não sou de muitas meiguices; já tive que ferir e defender-me. Várias vezes resisti e ataquei - que é forma de resistir - sem atender ao preço e para acatar exigências deste género de vida em que fiz a asneira de me meter. Já vi o demónio da violência, e o demónio da cupidez, e o demónio do desejo incendiado; mas por todas as estrelas do céu! - eram demónios fortes, vigorosos, com olhar vermelho, que dominam e atiçam homens digo homens, reparem lá bem. Ao passo que durante o tempo que estive na encosta, à luz ofuscante do sol daquela terra, pressenti que iria conhecer o flácido e pretensioso demónio, o demónio cegueta, louco de impiedade e ambição. Que insidioso poderia também ser, só meses mais tarde e muitas milhas acima eu viria a descobrir. Por um momento, o espanto tomava conta de mim como se quisesse fazer-me um aviso. Acabei por descer a colina obliquamente, em direcção às árvores que já tinha assinalado. Tive de evitar uma grande cova artificial que alguém escavara na ribanceira e cuja função foi impossível descobrir. Não era pedreira nem areeiro. Só uma cova. Associada, talvez, ao filantrópico desejo de oferecer a condenados qualquer coisa que os ocupasse. Não sei. Depois, quase caí num barranco muito estreito, pouco mais do que ranhura na vertente. Verifiquei que estava atirada para ali uma porção de canalizações de esgoto que tinham sido importadas. Intacta, nem uma. Fora um autêntico massacre. Acabei por chegar às árvores. 21 Desejava uns instantes de sombra, mas ao dar alguns passos dentro dela pareceu-me que entrava no sombrio círculo de um qualquer Inferno. Eram perto, os rápidos, e enchiam a sinistra calma do bosque com um ruído contínuo, uniforme, tão intenso como o de um galope; e aragem não havia nenhuma; nem uma folha, sequer, fazia o seu som habitual e tão misterioso como se a violenta rotação do mundo tivesse ficado repentinamente audível. Deitadas ou sentadas entre as árvores, sombras negras encostavam-se aos troncos e confundiam-se ou destacavam-se do chão, meio apagadas na semiluz e em todas as atitudes de sofrimento, abandono e desespero. Na encosta pedregosa, outro rebentamento fez um leve tremor de terra debaixo dos meus pés. O trabalho continuava. O trabalho! Naquele sítio é que se recolhiam, para morrer, alguns homens que o faziam. E morriam devagar - via-se bem. Não eram inimigos, nem condenados, agora não eram nada além de sombras negras de doença e fome que jaziam, numa confusão, dentro de obscuridade esverdeada. Trazidos de todos os recantos da costa e a coberto da maior legalidade dos contratos, perdidos num meio adverso e alimentados de forma estranha ao seu regime, caíam doentes, faziam-se inúteis, altura em que eram autorizados a procurar de rastos o repouso. Aquelas formas moribundas faziám-se livres como o ar, e quase tão leves como ele. Comecei a distinguir-lhes o brilho dos olhos sob as árvores. E depois em baixo, ao nível da minha mão, um rosto. Era um esqueleto negro estendido, de ombro apoiado numa árvore e encovados olhos que olhavam para cima, muito devagar, fixavam-se em mim enormes, vazios, como se fossem um clarão cego e branco de órbitas fundas que se iam apagando. Um negro parecia jovem - quase um rapaz - mas vocês sabem como é difícil afirmá-lo. Só me ocorreu oferecer-lhe, tirada do meu bolso, uma bolacha do navio do meu amigo sueco. Vagarosos, os dedos fecharam-se e agarraram-na - e não houve mais nenhum movimento, nenhum olhar. Usava um fio de lã branca amarrado ao pescoço - porquê? Onde o arranjara? Seria um distintivo - adereço - amuleto acto propiciatório? Teria uma ideia qualquer associada? Era surpreendente ver-se aquele fio branco de além-mar a rodear-lhe o pescoço negro. Ao pé da mesma árvore sentavam-se mais duas trouxas de ângulos agudos e pernas dobradas. Uma pousava o queixo nos joelhos e fixava o vazio com um olhar insuportável que intimidava; e o seu irmão espectral apoiava neles a testa, 22 como que vencido por uma grande fadiga; outras havia, por ali, em toda a espécie de contorcidas posições e em colapso como se vêem nalguns quadros de morticínio ou peste. Enquanto o horror me paralisava, uma levantou-se, ficou apoiada nas mãos e nos joelhos e foi ao rio beber de gatas. Bebeu da mão, sentada ao sol, com as tibias cruzadas à frente, e passados instantes deixou pender sobre o peito a cabeça revestida de carapinha. Perdi toda a vontade de dar estes passeios à sombra e dirigi-me apressadamente ao posto. Junto dos edifícios encontrei um homem branco, de elegância tão inesperada que ao princípio julguei ser uma visão. Vi que usava colarinho alto e engomado, punhos brancos, um leve casaco de alpaca, calças de uma brancura de neve, gravata clara e botas engraxadas. Sem chapéu. Cabelo com risca, bem escovado e besuntado debaixo de um guarda-sol com forro verde que a sua mão grande e branca segurava. Tinha um ar desconcertante, e uma caneta posta atrás da orelha. Depois de apertar a mão deste milagre fiquei a saber que se tratava do chefe da contabilidade da Companhia, e a escrita era toda feita naquele posto. Tinha vindo cá fora por momentos, disse ele, "tomar um pouco de fresco." A expressão era encantadoramente estranha mas elucidava a sedentária vida de um escriturário. Nem desta personagem falaria se a sua boca não fosse a primeira a pronunciar o nome do homem que viria a ligar-se indissoluvelmente à memória daquele tempo. O tipo, além disso, meteu-me respeito. Sim; respeitei-lhe o colarinho, os grandes punhos, o cabelo bem penteado. Realmente tinha o ar de um manequim de cabeleireiro, e a enorme desmoralização da colónia não conseguia tirar-lhe o gosto pela boa aparência. Ora a isto chama-se personalidade. Os colarinhos engomados e os peitilhos tesos eram provas de grande carácter. Vivendo ali há perto de três anos, não evitei perguntar-lhe como podia alimentar o hábito de vestir roupa tão branca. Cheio de modéstia e com um rubor quase imperceptível respondeu: "Ensinei uma das mulheres indígenas do posto. Foi difícil. Não mostrava o menor interesse pelo trabalho." Aquele homem, todo dedicado aos livros e autor de uma escrita primorosa, realizara na verdade qualquer coisa. No posto, tudo o mais era um caos - cabeças, objectos, casas. Um formigueiro de negros de pés chatos e empoeirados, a ir e a vir; uma onda de produtos manufacturados, algodões baratos, missangas e arame de cobre que chegava ao âmago das trevas para devolver um pedaço de precioso marfim. 23 Tive de esperar dez dias no posto - uma eternidade. Vivi numa barraca do cercado, e para esquecer o caos muitas vezes me enfiei no escritório do contabilista. Tinha sido construído com tábuas horizontais tão mal casadas que o enchiam de listas finas do pescoço aos calcanhares, quando se debruçava à secretária alta. Para haver luz não era preciso abrir a persiana. E ainda por cima quente; com moscas de agressivo zumbido que em vez de picarem esfaqueavam. Em geral, eu sentava-me no chão enquanto ele se empoleirava, impecável (e até um pouco perfumado), no banco alto e escrevia, escrevia. De tempos a tempos levantava-se para fazer exercício. Quando lhe metiam lá dentro um enfermo (um qualquer aspirante do interior, impróprio para o serviço) é que manifestava uma delicada contrariedade. "Os gemidos deste doente distraem-me", dizia. "KE num clima destes, não dando atenção às coisas dificilmente se evitam erros de escrita." Um dia, sem levantar sequer a cabeça observou: - "Com certeza, lá no interior vai conhecer o senhor Kurtz." E quando perguntei "que senhor Kurtz", respondeu-me que um chefe de posto, mas ao reparar no meu desapontamento perante a informação, pousou a caneta e acrescentou numa voz calma: "Uma pessoa muito notável." Outras perguntas levaram-no a explicar que o senhor Kurtz, naquela altura, dirigia um importantíssimo posto comercial, mesmo, mesmo ao fundo, da verdadeira região do marfim. "Só ele manda mais marfim do que os outros todos juntos..." E voltou à escrita. Nesse dia, o enfermo estava doente demais para gemer. E as moscas zumbiam no meio de uma calma absoluta. De repente ouvimos um murmúrio crescente de vozes e um forte ruído de pés. Chegava uma caravana. Uma violenta e incompreensível algazarra explodiu do outro lado do tabique. Os carregadores falavam todos ao mesmo tempo, e nomeio do tumulto a lamentosa voz do contabilista repetiu, pela vigésima vez num só dia, que ainda acabava por desistir daquilo... Levantou-se devagar. "Que barulheira terrível", disse. Atravessou silenciosamente a sala, deu uma olhadela ao doente e voltou. "Este já não ouve nada." - "O quê! Morreu?", perguntei alarmado. - "Não, ainda não", respondeu, cheio de compostura. E depois, com um movimento de cabeça alusivo ao ruído no cercado do posto: - "Quando temos que fazer lançamentos correctos, chegamos a odiar estes selvagens - a odiá-los de morte." 24 Por um instante mergulhou em pensamentos. "Quando vir o senhor Kurtz", prosseguiu, "diga-lhe da minha parte que tudo, por aqui" - olhou para a secretária - "corre de forma muito satisfatória. Não gosto de lhe escrever - com mensageiros destes nunca sabemos quem pode deitar a mão às nossas cartas lá no posto principal." Durante um momento fixou-me com olhos meigos e salientes. "Ele vai chegar longe, muito longe", continuou. "Não passará muito tempo e será alguém na Administração. Lá - na Europa, na Administração Central também pensam o mesmo." Recomeçou a trabalhar. O ruído exterior já terminara, e quando saí parei na soleira da porta. O aspirante repatriado jazia inerte e vermelhusco, ao som do zumbido das moscas; e o outro, metido com os seus livros, por certo fazia lançamentos rigorosos e muito rigorosos transportes. Cinquenta pés mais abaixo viam-se as copas imóveis do matagal da morte. No dia seguinte saí finalmente do posto com uma caravana de sessenta homens, para uma caminhada a pé de duzentas milhas. Não vale a pena falar muito dela. Carreiros e mais carreiros; uma rede de carreiros que os pés tinham traçado e espalhado pela terra inabitada, no meio de capim alto, no meio de capim queimado, no meio de mato, que subia e descia ravinas frescas, subia e descia colinas pedregosas, abrasadas de calor; solidão atrás de solidão, sem uma pessoa, sem uma cubata. Há muito tempo que a população tinha fugido daquelas paragens. Bem! Se um bando de misteriosos negros, com toda a espécie de armas terríveis, de repente se lembrasse de ir estrada fora, entre Deal e Gravesend, para deitar a mão aos camponeses e forçá-los a carregar coisas pesadas, imagino que nenhuma herdade ou casa dos arredores deixaria de se esvaziar num abrir e fechar de olhos. Ali, a única diferença estava nas casas, que tinham desaparecido. Atravessei várias povoações abandonadas. Havia qualquer coisa de pateticamente infantil na ruína das paredes de capim seco. Dia após dia fomos batendo o chão com sessenta pares de pés descalços que seguiam atrás de mim, todos carregados com sessenta libras. Acampar, cozinhar, dormir, levantar o acampamento e desandar. De vez em quando um carregador morto debaixo da carga ficava no capim alto, à beira do caminho, mais a cabaça de água vazia e o bordão longo ao seu lado. À volta e por cima de nós, um enorme silêncio. Na calma de uma que outra noite talvez o eco enfraquecido 25 de um batuque ao longe, mais alto, mais baixo, vasto mas indistinto eco, rumor agoirento mas apelativo, sugestivo e bárbaro - e talvez de significado tão profundo como um som de sinos em terra cristã. Noutra ocasião foi um homem branco de farda desabotoada que acampava no caminho com uma escolta armada de zanzibares magros, muito hospitaleiro e festivo para não dizer bêbado. Olhava pela conservação da estrada, explicou ele. Não posso, no entanto, dizer que tenha visto qualquer estrada ou conservação de estrada, a não ser que o corpo de um negro de meia-idade encontrado três milhas adiante com um orifício de bala na testa, possa considerar-se melhoramento viário. Companheiro branco também eu levava um, que nem era má criatura mas pesadíssimo de carnes e com o exasperante costume de fanicar nas vertentes de maior calor, a milhas de um pedaço de sombra ou água. Imaginem que aborrecido segurar o nosso casaco como um guarda-sol, por cima da cabeça de um homem à espera que ele voltasse a si. Um dia não pude resistir e perguntei-lhe o que andava ali a fazer. "A ganhar dinheiro, pois claro. Ou julgava outra coisa?", respondeu com um ar de desprezo. Pouco depois apareceram-lhe febres e tivemos de transportá-lo numa tipóia suspensa de uma vara. Como pesava sessenta stones", os problemas com os carregadores nunca mais acabavam. Faziam resistência, fugiam, escapavam-se às escondidas, de noite, com o carregamento - um verdadeiro motim. Por isso uma tarde discursei em inglês, com gestos que nenhum dos sessenta pares de olhos perdeu, à minha frente, e na manhã seguinte mandei a tipóia seguir antes de nós. Nem mais! Passada uma hora dei com um verdadeiro naufrágio no mato - o homem, a tipóia; gemidos, mantas, horrores. A pesada vara partira-se e fizera-lhe uma ferida no pobre nariz. Estava morto por que eu desse cabo de alguém, mas nem a sombra de um carregador se via. Lembrei-me do velho médico: - À ciência interessa observar as alterações mentais dos indivíduos quando elas se dão." Com certeza eu já estava a fazer-me cientificamente interessante. Mas a verdade é que nada daquilo importava. No décimo quinto dia tive o grande rio à vista, e entrei a coxear no Posto Central. Ficava num esteiro rodeado de matagais e floresta, de um lado corrido por uma linda orla de lodo malcheiroso, dos três outros por uma desconsertada sebe de juncos. Um intervalo ao abandono servia de entrada, e logo ao primeiro olhar podia ver-se que o encenador do espectáculo era um mesquinho demónio. 26 Entre as casas surgiram homens brancos, com varas compridas nas mãos, e depois de darem alguns passos para me verem sumiram-se não sei onde. Um deles, avantajada e irritável criatura de bigode negro, mal soube quem eu era informou, com volubilidade e muitas digressões, que o meu vapor se tinha afundado no rio. Fiquei siderado. O quê, como, porquê? Oh, não havia problema. "O chefe em pessoa estava lá. Tudo em ordem. Toda a gente se portou às mil maravilhas!" Às mil maravilhas! Deve ir procurar já o administrador", disse agitado. "Está à espera!" Não pude avaliar logo o real significado do naufrágio. Suponho que o avalio agora, mas não tenho a certeza - certeza nenhuma. O caso - quando penso nele - parece demasiadamente estúpido para ser natural. No entanto... na altura não deixou de ser um maldito contratempo. O vapor afundara-se. Dois dias antes partira rio acima numa urgência súbita, com o administrador a bordo e conduzido por um mestre de boa vontade, mas não tinham decorrido três horas e o casco já estava rebentado nas pedras e afundado ao pé da margem sul. Com o barco perdido, eu perguntava a mim próprio o que ia fazer. Para dizer a verdade, tirar do rio o meu comando foi o cabo dos trabalhos. Logo no dia seguinte me entreguei à tarefa. Apesar disso, quando trouxe os bocados para o posto, as reparações demoraram vários meses. O meu primeiro encontro com o administrador foi curioso. Nem sentar me mandou, apesar do passeio de vinte e cinco milhas daquela manhã. Era banal de aspecto, feições, maneiras e voz, com estatura média e constituição normal. Os seus olhos, de um trivial azul, talvez fossem impressionantemente frios, e não haja dúvidas que sabia deixá-los cair sobre os interlocutores, cortantes e pesados como um machado. Mas até nesses momentos o resto da sua pessoa parecia negar tal intenção. Pelo contrário, era vulgar só haver nela uma indefinível e sumida expressão dos lábios, qualquer coisa de furtivo - um sorriso sorriso não, estou a lembrar-me, mas não sei explicar... A ser sorriso era inconsciente, apesar de ficar mais nítido por um instante, quando falava. No final das frases aparecia como um selo posto nas palavras, para tornar de inatingível sentido as expressões mais vulgares. Mas era um simples comerciante, via-se bem, desde muito novo empregado naquelas terras - e mais nada. Obedecido sem inspirar estima nem medo, e ainda menos respeito. Só inquietava. Isso mesmo! Inquietava. Não uma desconfiança bem nítida - mas verdadeira inquietação e mais nada. 27 Não podem fazer ideia de como esta... esta... faculdade resulta. Não tinha capacidade de organização, iniciativa ou mesmo ordem. Era evidente em coisas como o estado deplorável do posto. E também não era culto nem inteligente. Arranjara... aquela posição - como? Talvez por nunca ter adoecido... Tinha lá cumprido três períodos de três anos... Porque a saúde triunfante é em si mesma uma força no meio de um descalabro geral de compleições físicas. Quando ia a casa de licença fazia um estardalhaço dos diabos - pomposo ao máximo. Exuberância de marujo - mas com uma diferença -, toda ela aparência. O que aliás se detectava uma vez por outra nas suas conversas. Não criara nada, mantinha-se no deixa-andar da rotina - e pronto. Mas era grande. Grande por essa pequena coisa que é não sabermos dizer como poderia controlar-se um tal homem. Nunca revelou o seu segredo. Talvez não houvesse nada dentro dele. E semelhante suspeita fazia-nos calar - num sítio onde não existia nenhuma espécie de vigilância exterior. Certa vez, quando várias doenças tropicais abateram quase todos os aspirantes do posto, ouviram-no dizer: "Os homens que vêm para aqui não devem ter tripas." E selou o dito com aquele peculiar sorriso que parecia uma porta entreaberta sobre as trevas à sua guarda. Quando julgávamos ver qualquer coisa - já lá estava o selo. Numa altura em que se aborreceu com frequentes querelas sobre hierarquias, que os brancos tinham às refeições, mandou fazer uma mesa redonda imensa que exigiu nova sala para a albergar. Assim nasceu o refeitório do posto. Onde ele se sentava era o lugar de honra e os restantes não contavam. Sentia-se que uma das suas inabaláveis certezas era esta. Não mostrava delicadeza nem indelicadeza. Calava-se. E permitia que o seu moleque - jovem negro da costa, superalimentado - nas suas barbas tratasse os brancos com provocatória insolência. Logo que me viu, falou. A minha viagem fora muito demorada. Ele não podia esperar. Tivera de partir sem mim. Rio acima, os postos precisavam de ser rendidos. Com tanta demora já não sabia quem estava vivo ou morto, o que se andava a fazer por lá - etc., etc. Não deu ouvidos ao que eu lhe explicava e várias vezes repetiu, a brincar com um pau de lacre, que a situação era "muito, muito grave". Dizia-se que um posto importante estava em perigo e o seu chefe, o Sr. Kurtz, doente. Ele esperava que não fosse verdade. O Sr. Kurtz era... Eu sentia-me cansado e irritável. "Diabos levem o tal Kurtz", pensei. Interrompi-o para dizer que tinha ouvido, na costa, falar do Sr. Kurtz. 2829 "Ah! Lá em baixo falam dele!", murmurou com os seus botões. E prosseguiu assegurando que o Sr. Kurtz era o melhor dos chefes de posto, um homem excepcional e da maior importância para a Companhia; por isso eu podia compreender a sua impaciência. Sentia-se, disse ele, "muito, muito inquieto." Realmente não parava de se mexer na cadeira, e ao exclamar: "Ah! Sr. Kurtz!", partiu o pau de lacre, acidente que pareceu tirar-lhe o uso da fala. Quis saber logo "quanto tempo eu ia demorar a...". Voltei a interrompê-lo. Eu sentia fome, não sei se percebem, e estar assim de pé fazia-me agressivo. - "Como é que posso dizer-lho? Nem sequer o barco afundado eu vi! Alguns meses, com certeza." Toda esta conversa me parecia muito fútil. - "Alguns meses", repetiu. "Bem, digamos três meses até podermos partir. Sim, devem chegar para o que há a fazer." Saí da barraca (o administrador vivia sozinho numa barraca de adobe, com uma espécie de varanda) a resmungar comigo mesmo a opinião que tinha a seu respeito: um fala-barato idiota. Mais tarde modifiquei-a, espantado pelo extremo rigor com que soubera avaliar o tempo necessário para se fazer aquilo". No dia seguinte atirei-me ao trabalho, digamos que voltando as costas ao posto. Parecia-me a única forma de continuar ligado às saudáveis realidades da vida. Mas é difícil uma pessoa não olhar de vez em quando à sua volta; e então reparava no posto, no disparatado vaivém dos homens no cercado, à torreira do sol. Muitas vezes perguntei a mim mesmo o que significaria tudo aquilo. Vagueavam por um lado e outro a empunhar absurdos varapaus, como peregrinos sem fé que circulassem, enfeitiçados, dentro de uma cerca apodrecida. A palavra marfim, passava no ar segredada, suspirada. Parecia que lhe faziam preces. Um cheiro a imbecil rapacidade bafejava tudo como um cheiro a cadáver. Júpiter nos valha! Nunca na vida eu vira coisa tão irreal. E à volta a silenciosa selva, que apertava aquele pedaço de terra nua, parecia-me enorme e tão impossível de vencer como o mal ou a verdade, que estava à espera, com paciência, do fim daquela invasão fantástica. Oh! Que meses! O melhor é nem pensar... Várias coisas aconteceram. Uma noite incendiou-se repentinamente um barracão de capim cheio de pano branco, algodões estampados, missangas e sei lá o que mais, ao ponto de pensarmos que a terra se tinha aberto para consumir toda a sua tralha num fogo vingador. Estava eu a fumar cachimbo no maior sossego, ao pé do meu vapor desmantelado, quando os vi a todos no meio de luz, com os braços erguidos e a dar saltos grotescos, ao mesmo tempo que um homem gorducho, de bigodes, correu até ao rio com um balde na mão e me disse que "todos estavam a portar-se esplêndida, esplendidamente." Tirou cerca de um litro de água e continuou a sua correria. Reparei que o fundo do balde tinha um furo. Aproximei-me devagar. Não havia razão para ter pressas. Bem vêem vocês que aquilo ardia como uma caixa de fósforos. Logo ao princípio não tinha remédio. As labaredas subiram muito altas, afugentaram toda a gente, iluminaram tudo - e apagaram-se. O barracão não passava de um braseiro furiosamente incandescente. Ali perto espancavam um negro. Diziam, sabe-se lá porquê, que era o causador do incêndio; certo é que ele dava horrorosos gritos. Durante vários dias iria vê-lo com ar de muito doente, sentado num pedaço de sombra a procurar refazer-se; acabou por se levantar, desaparecer - e o mato por abrigá-lo, sem fazer nenhum ruído, no seu seio. Nessa noite, quando me acerquei da fogueira vindo do escuro, dei comigo atrás de dois homens que conversavam. Pude ouvir pronunciar o nome "Kurtz", e as palavras "lucrar com este lamentável desastre." Um deles era o administrador. Dei-lhe as boas-noites. "Já se viu uma coisa assim? É incrível", disse enquanto se afastava. O outro ficou. Era um jovem aspirante de primeira classe, muito atencioso e algo reservado, com barba em bico e nariz aquilino. Não convivia com os outros aspirantes, que lhe chamavam, por sua vez, espião do administrador. Até àquele momento, pouco ou nada eu falara com ele. Começámos a conversar e depois afastámo-nos, com ar de passeio, das ruínas crepitantes. Convidou-me a ir até ao seu quarto, que ficava no principal edifício do posto. Quando riscou um fósforo, reparei que o jovem aristocrata não só tinha um estojo de prata com utensílios de uso pessoal, como uma vela de estearina só para ele. Naquela altura o administrador era o único homem a quem podia reconhecer-se o direito de ter velas. As paredes de barro estavam forradas com esteiras indígenas; e tinham pendurada, como trofÉus, uma colecção de flechas, zagaias, escudos e facas. Ao que me tinham dito, a tarefa deste sujeito era orientar o fabrico de tijolos - mas a verdade é que não havia em todo o posto um caco de tijolo, e ele vivia ali há mais de um ano - à espera. Parece que não podia fazer tijolos por lhe faltar qualquer coisa, não sei o quê - talvez palha. Seja como for, no local não existia essa tal coisa e não parecendo verosímil que a enviassem da Europa, eu não via muito bem do que estaria ele à espera. De algum acto de geração espontânea! 30 À espera, aliás, todos estavam - os dezasseis ou vinte peregrinos do grupo - sei lá de quê; e palavra que não parecia desagradável a situação, dada a forma como a encaravam; pude observar que só lhes acontecia apanhar doenças. Iludiam o tempo a ratar na pele uns dos outros e a fazer intrigas que era uma loucura. No posto reinava um ar de conjura, mas claro está que não acontecia nada. Era uma coisa tão irreal como o resto - as pretensões filantrópicas da Companhia, as conversas, a administração e o trabalho exibicionista. O único sentimento real era a vontade que todos tinham de arranjar trabalho num posto com acesso ao marfim para poderem arrecadar a sua percentagem. Só por causa disto intrigavam, difamavam e odiavam-se uns aos outros - mas quanto a mexer um dedo que fosse - está quieto! Santo Deus ! Há qualquer coisa no mundo que aceita o ladrão de cavalos mas não autoriza outros a olharem, sequer, para as rédeas. Por isso, que o cavalo seja roubado. Sim senhor. Assunto arrumado. Quem sabe mesmo se ele é capaz de montá-lo. No entanto, há maneiras de olhar uma arreata que até ao santo mais caridoso incitam a praticar violências. Eu não fazia ideia nenhuma da razão que o levava a ser amável, mas ao conversarmos desconfiei de repente que tivesse uma fisgada - nem mais nem menos sondar-me. Aludia constantemente à Europa, a pessoas que talvez eu conhecesse fazendo perguntas tendenciosas sobre as minhas relações na cidade sepulcral, etc. Os seus olhos minúsculos brilhavam como rodelas de mica - curiosos -, ainda que procurasse manter uma ponta de superior desdém. Ao princípio admirei-me, mas logo se fez imensa a curiosidade em ver o que desejava extrair de mim. Não me era possível descobrir o que valia tanto na minha pessoa. E era engraçado verificar como se enganava, pois a verdade é que eu só tinha o corpo cheio de arrepios e o caso do infeliz vapor metido na cabeça. Era evidente que me tomava por um aldrabão dos mais descarados. Acabou por zangar-se e bocejar como disfarce de impulsiva e furiosa contrariedade. Levantei-me e reparei num pequeno esboço a óleo encaixilhado, mulher de túnica e olhos vendados que empunhava um facho aceso. O fundo era sombrio quase negro. Majestoso o gesto da mulher, sinistro o efeito do archote no seu rosto. 31 Fiquei parado e ele manteve-se de pé, educadamente, a segurar uma garrafa de champanhe das pequenas (prescrição médica) com a vela espetada no gargalo. À minha pergunta respondeu que era uma pintura do Sr. Kurtz - feita há pouco mais de um ano, ali mesmo, no posto, enquanto esperava meio de transporte que o levasse ao entreposto comercial. "Diga-me, por favor, que Sr. Kurtz é esse", pedi. - "É o chefe do Posto do Interior", respondeu repentinamente, sem olhar para mim. "Muito obrigado", disse eu a rir-me, "e o senhor é fabricante de tijolos no Posto Central. Todos sabem isso." Calou-se durante alguns momentos. - "Ele é um prodígio", acabou por dizer. "Um emissário da piedade, da ciência, do progresso, sabe o diabo que mais. Nós", começou de repente a declamar, "precisamos de orientação na causa que a Europa nos confiou, digamos que uma inteligência superior, uma simpatia alargada, uma sinceridade de propósitos." - "Quem o diz?" perguntei. "Uma data de gente", replicou. "Já houve quem o escrevesse; e por isso ele, que é um ser excepcional, como já deve saber, veio para cá." - "Por que haveria eu de sabê-lo?", interrompi, realmente surpreendido. Não me deu atenção. - "Sim. Já é chefe do melhor posto, no próximo ano vai ser administrador-adjunto e daqui a mais dois anos... julgo que sabe o que ele vai ser daqui a dois anos. O senhor pertence ao novo grupo - o grupo da virtude. As pessoas que enviaram para aqui o Sr. Kurtz foram as mesmas que o recomendaram muito especialmente a si. Oh, não diga que não. Os meus olhos não se enganam." Fez-se luz dentro de mim. As influentes relações da minha querida tia produziam naquele rapaz um inesperado efeito. Quase explodi numa gargalhada. - "Costuma ler a correspondência confidencial da Companhia?", perguntei. Não soube o que me responder. Era engraçadíssimo. "Deixará de poder fazê-lo quando o Sr. Kurtz for administrador-geral", continuei num tom severo. Com um sopro súbito apagou a vela e saímos. A Lua já tinha nascido. Vultos negros vagueavam, distraídos, a despejar água no braseiro que ainda crepitava, e os vapores subiam ao luar, e o negro espancado gemia não sei onde. "Que barulheira aquele bruto faz!", disse o infatigável homem dos bigodes, que apareceu ao pé de nós. "É muito bem feito. Uma falta zás!castigo. Sem piedade, sem piedade. É a única maneira. De futuro vai evitar todos os incêndios. Ainda agora eu dizia ao administrador..." Mas ao ver o meu companheiro perdeu o entusiasmo. "Ainda não se deitou!", disse-lhe com uma espécie de servil amabilidade. "Aliás é bem natural. Perigo agitação." 32 E desapareceu. Dirigi-me para a margem do rio e o outro foi atrás de mim. Soltou um injurioso murmúrio ao pé do meu ouvido:"Caterva de imbecis - livra!" Viam-se peregrinos aos grupos, a gesticular, a discutir. Alguns ainda traziam os cacetes na mão. Acredito piamente que os levassem para a cama. Para lá da sebe ficava a floresta espectral ao luar, e acima dos ruídos surdos, dos sons amortecidos que vinham do infeliz cercado, o silêncio da terra acertava-nos em cheio nu coração - com o seu mistério, a sua grande amplitude, a estranha realidade da sua vida oculta. Perto, não sei onde, o negro espancado gemia em voz sumida e deu um suspiro tão fundo que alterei o caminho para me afastar dali. Foi nessa altura que senti uma mão enfiar-se debaixo do meu braço. "Caro senhor, não quero ser mal compreendido; especialmente por si, que há-de estar com o Sr. Kurtz muito antes de ele me dar, a mim, esse prazer. Não gostaria nada que ele fizesse uma ideia errada do meu carácter..." Deixei-o ir por ali fora, àquele mefistófeles de papelão, e ao ouvi-lo pareceu-me que um dedo espetado no seu corpo só encontraria um pouco de lixo a fazer resistência. Está-se mesmo a ver que dentro de pouco tempo projectava tornar-se adjunto do administrador, e a chegada do tal Kurtz não os incomodava pouco, aos dois. Falava com precipitação, mas não tentei interrompê-lo. Encostei-me ao destroço do meu vapor, que tinha sido içado para o talude da margem como o cadáver de um grande animal do rio. Por Zeus! Entrava-me nas narinas um cheiro a lodo, a primitivo lodo, e à minha frente havia uma nobre calma de floresta primitiva e a enseada escura manchada de luz. Por todo o lado a luz derramara uma fina camada de prata - no capim hirsuto, na lama, na muralha de intrincada vegetação, mais alta do que os muros dum templo, no grande rio que eu podia ver por uma fenda escura que cintilava, cintilava e corria na sua estrada larga sem fazer ruído. Enquanto o homem tagarelava a respeito de si próprio, tudo se revelava grande, expectante e mudo. E eu tentava descobrir se era amável ou hostil a calmaria na face daquela imensidão que nos olhava. Nós, que tínhamos ido ali parar, quem éramos? Alguma vez dominaríamos aquela emudecida coisa, ou seria ela a dominar-nos? Eu sentia que ela era enorme, estupidamente enorme, incapaz de falar e talvez surda também. Dentro dela o que haveria? Eu conseguira ver uma ponta de marfim que tinha de lá saído, e ouvira dizer que o Sr. Kurtz lá estava. E mais coisas ouv: - só Deus sabe! -, mas incapazes de retratá-lo fielmente - como se me dissessem que um anjo ou um demónio lá vivia. 33 Acreditava tanto nelas como vocês acreditam que Marte é habitado. Em tempos conheci um fabricante de velas escocês cegamente convencido de que havia pessoas em Marte. Se lhe pedissem para dar uma ideia do aspecto e dos hábitos que esses habitantes tinham, ficava com ar comprometido e resmungava qualquer coisa como "andam de gatas". Apesar dos seus sessenta anos prometia pancada a quem esboçasse o menor sorriso. Ora eu, incapaz de me bater pelo Sr. Kurtz, por causa dele quase menti. Sabem como odeio, detesto, não tolero mentiras; não por ser melhor do que os outros mas simplesmente porque me assustam. Têm um ar fúnebre, sabem a morte - exactamente aquilo que mais odeio e detesto no mundo - o que mais quero esquecer. Deixam-me infeliz e doente como se tivesse trincado qualquer coisa podre. Ao que julgo, questão de feitio. Pois bem, quando deixei aquele jovem louco acreditar em tudo o que lhe apeteceu sobre as minhas influências na Europa, estive muito perto de mentir. De repente transformei-me numa aldrabice tão grande como o resto dos embruxados peregrinos. E tudo isto, não sei se percebem, só por pensar que ajudava de algum modo um Kurtz que eu nem sequer tinha visto. Para mim não passava de um nome. Eu via tanto como vocês o homem que se chamava assim. Vêem-no? Estão a ver-Lhe a história? Vêem alguma coisa? Até parece que estou a tentar convencer vos de um sonho - tentativa inútil porque o relato de um sonho não transmite a sensação-sonho, aquele emaranhado de absurdos e surpresas, o desespero na angústia de sermos aprisionados, a sensação de sermos presas do inacreditável que é verdadeira essência dos sonhos... Fez um instante de silêncio. ... não, é impossível; é impossível transmitir a sensação-vida de uma época que vivemos - aquilo que constrói as suas verdades, o seu significado - a sua penetrante e subtil essência. É impossível. Vivemos como sonhamos - sós... Voltou a fazer uma pausa de reflexão e acrescentou: - Claro que vocês, meus camaradas, estão a ver mais do que eu via. Estão a ver-me, e conhecem-me... Tão escura se fizera a noite que mal nos distinguíamos uns aos outros. Um pouco afastado, como ele estava, há muito tempo se reduzira a uma voz. Ninguém dizia uma palavra. Não sei se os outros tinham adormecido, mas eu continuava acordado, ia ouvindo, ouvia com a maior atenção as suas frases, 34 a palavra que talvez explicasse o indefinível mal-estar causado pelo seu relato, que se construía sozinho, ao que parecia, alheio a lábios humanos, na densa atmosfera do rio. ... Sim - deixei-o ir por ali fora - continuou Marlow imaginar à vontade as forças que eu teria atrás de mim. Deixei! E atrás de mim não havia nada! Nada, além do velho e espatifado destroço do vapor a que eu me encostava enquanto o ouvia falar fluentemente da necessidade que todos temos de andar para diante. E quando a gente vem para aqui, compreende, não é para ficar a olhar a Lua". O Sr. Kurtz era um génio universal, mas até os génios trabalham melhor com ferramentas adequadas - homens inteligentes,. Ele não fazia tijolos - podia acaso fazê-los quando se atravessava no caminho uma impossibilidade material - como aliás eu muito bem sabia? E se executava o trabalho de secretário do administrador era porque nenhum homem sensível rejeita sem motivos a confiança dos superiores. Eu não via isso? Claro que via. E a mim, o que me faltava? Bolas! Realmente faltavam-me rebites. Rebites. Para andar com o trabalho - para vedar aquele rombo. Precisava de rebites. Lá em baixo, na costa, havia caixotes de rebites caixotes - aos montes - rebentados, rachados! No cercado do posto costeiro, as pessoas davam-lhes pontapés. Os rebites tinham rolado até ao bosque da morte. Podíamos encher os bolsos com eles, sem mais trabalho do que apanhá-los do chão e aqui nem um. Onde faziam falta. Havia as chapas necessárias, mas nada para as fixar. E o mensageiro, um solitário negro, todas as semanas largava para o posto costeiro com a mala do correio ao ombro e um pau na mão. E várias vezes por semana chegava da costa uma caravana com mercadorias - um horrível pano branco cheio de goma, que só vê-lo era um susto, missangas de vidro a tuta e meia cada quarta, malditos lenços de algodão às pintas. Rebites é que nem um. Bastariam três carregadores para trazer todos aqueles que o vapor precisava e saberiam pô-lo a navegar. Começava a entrar em confidências, mas a minha atitude calada deve ter acabado por exasperá-lo, pois julgou necessário dizer-me que não temia Deus nem o Diabo, quanto mais um simples mortal. Respondi-lhe que podia compreendê-lo muito bem, mas o que me faltava era uma certa quantidade de rebites - os mesmos que faltariam ao Sr. Kurtz se ele avaliasse a minha situação. Todas as semanas seguiam cartas para a costa... "Meu caro senhor", disse num desabafo, "só escrevo o que me ditam. 35 Pedi-Lhe rebites. Há sempre maneiras... para um homem inteligente." Mudou de atitude; fez-se muito frio e começou a falar-me de um hipopótamo; admirava-se que eu dormisse no vapor (não o largava dia e noite) sem ser incomodado. Havia ali um velho hipopótamo com o mau hábito de vir de noite à margem, vadiar pelos terrenos do posto. Os peregrinos costumavam sair em massa para lhe descarregar em cima quantas espingardas tivessem à mão. Alguns chegavam a fazer-lhe esperas nocturnas. Mas toda a energia despendida se revelava completamente inútil. "É um animal com feitiço", afirmou, "como só os bichos desta terra têm. Não há homem cuja vida tenha um feitiço destes - compreende?" Por momentos ficou de pé; ao luar, com o delicado nariz aquilino meio torcido, os olhos de mica cintilantes, sem pestanejar, e depois de uma "boa-noite" seca afastou-se a passos largos. Pude ver que ia perturbado e fortemente intrigado, o que me encheu de esperança como não sentia há muito. Era um grande alívio ver aquele sujeito pelas costas e voltar à minha influente amiga, a esmurrada, torta e espatifada panela a vapor. Subi a bordo. Havia tantas ressonâncias como se eu andasse numa valeta, a dar pontapés numa dessas latas de biscoitos Huntley & Palmers; o vapor não era de constituição muito sólida, e quanto a formosuras muito poucas; mas o trabalho duro que lá fizera bastava para Lhe ganhar afeição. Nenhum amigo influente me prestaria melhor serviço. Dera-me oportunidade de viajar um bocado - mostrar o que valia. Não, de trabalhar não gosto. Prefiro ser calaceiro e pensar em todas as coisas belas que poderia executar. De trabalhar não gosto - nenhum homem gosta - embora goste daquilo que o trabalho dá - a oportunidade de nos descobrirmos. Refiro-me à nossa própria realidade - para nós e para os outros - que mais ninguém pode conhecer. Porque eles apenas vêem o espectáculo sem nunca estarem certos do que realmente significa. Não fiquei surpreendido por encontrar uma pessoa sentada à ré, no convés, com as pernas a baloiçar sobre a vasa. Eu, não sei se estão a ver, dava-me bastante com os raros mecânicos do posto que os outros peregrinos desprezavam, como é natural porque não tinham, suponho eu, polimento por aí além. Era o contramestre - caldeireiro de profissão - um belo operário. Homem seco, ossudo e de tez amarelada, com olhos muito brilhantes. Tinha ar de homem aflito, e a cabeça pelada como a palma da minha mão; mas parecia que o cabelo se agarrara ao queixo durante a queda e prosperava no novo terreno, 36 pois a barba descia-lhe até à cintura. Viúvo, com seis filhos pequenos (para ali estar deixara-os a cargo de uma irmã), e com uma paixão na vida que era os pombos-correios. Um entusiasta e um entendido. Doido por aquelas aves. Às vezes, depois do trabalho, saía da cubata para conversar sobre os filhos e os pombos; e no trabalho, quando era preciso ficar de rastos debaixo do vapor, embrulhava a barba numa espécie de guardanapo branco que trazia sempre consigo para esse efeito. Com uns atilhos para enfiar nas orelhas. À tardinha podia ser visto na margem, agachado, a lavar com muito cuidado esse invólucro e a estendê-lo solenemente a secar. Dei-lhe uma palmada nas costas e em altos berros gritei: "Vamos ter rebites!" Saltou e exclamou: - "Rebites! Não me diga!", como se fosse impossível acreditar no que ouvia. E depois, em voz baixa: "Com que então... o senhor!" Não sei por que nos comportámos como doidos. Pousei o dedo numa asa do nariz e acenei misteriosamente com a cabeça. "Parabéns!", gritou, a estalar os dedos por cima da cabeça e levantando um pé. Esbocei uma jiga. Cabriolámos os dois no convés de ferro. Do interior do casco saiu um assustador tumulto que a floresta virgem devolveu da outra margem ao posto adormecido, como um trovão: Alguns peregrinos devem ter acordado sentados, dentro das barracas. Um vulto escureceu a porta iluminada da casa do administrador, mas passado um segundo, pouco mais ou menos, tudo se apagou. Estávamos os dois imóveis e o silêncio afugentado pelos nossos pés voltou aos mais ocultos recantos da terra. Parada ao luar, a grande muralha de vegetação exuberante emaranhado de troncos, ramos, folhas, rebentos e grinaldas - lembrava uma invasão violenta de silenciosa vida, uma alta onda vegetal, prestes a desabar na enseada e a varrer os homens insignificantes que éramos da sua insignificante vida. Mas não, nem se mexia. Chegou-nos de longe o ruído abafado de roncos e chapadas de água, como se um ictiossauro tomasse banho na claridade do grande rio. "Vendo bem", disse o caldeireiro num tom ajuizado, "porque não haveríamos de conseguir os rebites? Sim, porque não? Eu não via motivo que pudesse impedi-lo." - "Dentro de três semanas devem cá estar", assegurei-lhe com ar de quem dizia uma confidência. Mas não estavam. Em vez de rebites houve uma invasão, um castigo, uma visita. Nas três semanas seguintes ela foi aparecendo aos poucos, cada uma das suas secções precedida de um burro montado por um branco de fato novo e sapatos amarelos, a cumprimentar do alto os peregrinos comovidos, 37 para a esquerda e para a direita. No encalço dos burros vinha um conflituoso bando de negros lamurientos com os pés magoados; uma porção de barracas, cadeiras de campanha, malas de ferro, caixas brancas e trouxas castanhas foi atirada para o chão do cercado, reforçando o mistério do caos daquele posto. Chegaram cinco carregamentos, todos com o mesmo absurdo ar de fuga depois de um saque de lojas e armazéns, ao ponto de parecer que transportavam para a selva um espólio destinado a divisão equitativa. Era uma inextricável mistura de coisas honestas, em si, mas que a loucura humana soubera transformar em furto. A infeliz quadrilha cujos membros, imagino, se obrigavam ao segredo, dava a si própria o nome de Exploração do Eldorado. No entanto, todos falavam como flibusteiros reles - cinismo sem audácia, cupidez sem afoiteza, crueldade sem coragem; naquela corja não havia um átomo de provisão ou sério propósito, ninguém percebia como estas coisas são indispensáveis aos trabalhos do mundo. Era um bando que apenas queria arrancar tesouros às entranhas da terra, sem intenção mais nobre que a do gatuno arrombador de cofres. Ignoro quem pagava as despesas da nobilíssima empresa; sei, sim, que o chefe da quadrilha era tio do administrador. Tinha ar de carniceiro de bairro pobre, com olhos lambidos pela sombra de adormecidas manhas. Transportava ostensivamente uma enorme pança sobre as perninhas curtas, e enquanto o bando infestou o posto só falou com o sobrinho. Podíamos vê-los o dia inteiro a passear, de cabeças juntas, numa conversa que nunca mais acabava. A falta de rebites acabou por me não afligir. A capacidade das pessoas para aguentar tolices destas é mais limitada do que pode julgar-se. "Quero lá saber!" - disse eu - resolvido a deixar andar. Como fiquei com muito tempo para meditações, uma vez por outra pensava o meu bocado em Kurtz. Não que me interessasse por aí além. Não. Mas sentia curiosidade em ver se este homem, que ali tinha aparecido com uma boa dose de ideias morais, chegaria a subir até ao cimo, e uma vez lá como iria trabalhar. 2 - Uma tarde, estava eu sentado no convés do meu vapor, ouvi vozes que se aproximavam - tio e sobrinho a passearem na margem. Voltei a deitar a cabeça no braço, já meio pegado no sono, e ao meu ouvido ou quase, disse um deles assim: - "Sou inofensivo como uma criança, mas não gosto de receber ordens. Sou o administrador ou não sou? É incrível terem-me ordenado que o mandasse para lá..." Percebi que estavam na praia, junto à popa do vapor e por baixo da minha cabeça. Mas fiquei imóvel; tanto sono eu sentia que nem pela cabeça me passou mexer-me. "Que desagradável", grunhiu o tio. "Pediu à Administração que o mandassem para lá, só para mostrar o que é capaz de fazer", disse o outro. "Recebi instruções nesse sentido. Veja-me a influência que o homem não deve ter. Não é medonho?" Ambos concordavam que era medonho e fizeram bizarras observações: - "Manda chover e fazer sol" - "um homem - o Conselho de Administração" - "pela ponta do nariz", - bocados de frases sem sentido que venceram a minha sonolência ao ponto de eu já estar perfeitamente lúcido quando o tio disse: - "O clima pode resolver a dificuldade a teu favor. Está lá sozinho?" - "Está", respondeu o administrador; "mandou-me de volta o adjunto com uma nota mais ou menos assim: Ponha este pobre-diabo fora do território e não se incomode a enviar-me outros da mesma espécie. Prefiro estar só do que ter ao meu lado o género de homens que o senhor pode mandar-me. Isto foi há mais de um ano. Imagina descaramento maior?" - "E depois, mais nada?", perguntou o tio com voz rouca. - "Marfim", explodiu o sobrinho. Às carradas - "de primeira qualidade aos montes - muito aborrecido, da parte dele." - "Acompanhado de quê?", perguntou o vozeirão. - "Notas de remessa", foi o tiro de resposta, "se me permitem a expressão. Depois, silêncio. Tinham estado a falar do Kurtz. Embora bem acordado, tão comodamente me senti estendido que não me apeteceu mudar de posição. "E como veio de tão longe esse marfim?", rosnou o velho, que parecia muito contrariado. 40 Explicou-lhe o outro que numa flotilha de canoas comandadas por um mulato inglês da confiança de Kurtz; o Kurtz parecera inclinado a sair de lá, uma vez que o posto estava rapado de mercadorias e géneros, mas depois de andar trezentas milhas decidira voltar, num repente, e fê-lo sozinho numa pagaia de quatro homens deixando o mulato prosseguir rio abaixo com o marfim. Os dois tipos espantavam-se por haver quem se atrevesse a uma coisa destas. Não lhe encontravam motivo sério. Pelo que me toca, parecia que descortinava o Kurtz pela primeira vez. Uma autêntica iluminação: a piroga, quatro pagaiadores selvagens e o branco solitário a voltar repentinamente costas ao seu quartel-general, a toda a espécie de auxílio, a qualquer ideia de regresso - sei lá; de cara voltada para as profundezas da selva, do seu ermo e desolado posto. Mas não lhe entendia o motivo. Talvez não passasse de uma boa criatura agarrada ao trabalho por dedicação. O seu nome - não sei se me entendem - não fora pronunciado uma única vez. Era aquele homem,. E o mulato que dirigira a difícil travessia - ao que percebi, com grande prudência e bom-senso invariavelmente mencionado como "aquele malandro". O malandro, contara que o "homem estivera muito doente - e ainda se encontrava pouco refeito..." Os dois afastaram-se e depois de alguns passos começaram a andar de um lado para o outro. Ouvi: - "Posto militar - médico - duzentas milhas agora completamente só - demoras inevitáveis - nove meses - sem notícias - estranhos rumores." Quando voltaram a aproximar-se, dizia o administrador assim: - "Que eu saiba, só uma espécie de mercador errante - a peste de um homem que anda a roubar marfim aos indígenas." Agora de quem falavam? Aos poucos entendi que seria de um homem do distrito do Kurtz, alguém que o administrador não aprovava. "Enquanto não enforcarem um desses sujeitos, para exemplo, não podemos livrar-nos da concorrência desleal", disse ele. - "Pois com certeza", grunhiu o tio, "manda-o enforcar! Por que não? Tudo - tudo é possível nesta terra. É o que te digo. Aqui, aqui, ninguém seria capaz de pôr a tua posição em perigo, compreendes? A razão? Aguentas o clima - sobrevives a todos. O perigo está na Europa; mas antes de eu partir tive o cuidado..." Afastaram-se, a segredar, e depois levantaram as vozes. - "Não tenho culpa desta invulgar série de atrasos. Fiz o que podia." O gordo suspirou: - "Que pena!" - "E o absurdo pestilencial da conversa dele!", continuou o administrador; 41 "enquanto aqui esteve, maçou-me imenso. Cada posto devia ser um farol na estrada que leva a melhores coisas, centro comercial, é evidente, mas para humanizar, melhorar, instruir. Pode conceber-se burrice tão grande! E quer aquilo chegar a administrador! Não, lá isso..." Nesta altura engasgou-se, por excesso de indignação, e levantei ligeiramente a cabeça. Surpreendeu-me vê-los tão perto - mesmo por baixo de mim. Podia cuspir-lhes no chapéu. Estavam a olhar para o chão, absorvidos nos seus pensamentos. O administrador chicoteava a perna com um raminho delgado. O seu judicioso tio levantou a cabeça: - "Tens passado bem, desde que vieste da última vez?", perguntou. O outro sobressaltou-se. - "Quem? Eu? Até parece feitiço - até parece feitiço! Mas o resto - Santo Deus! Todos doentes. E morrem tão depressa que nem tenho tempo de os mandar daqui para fora - é incrível!", "Hum! Isso mesmo", grunhiu o tio. "Ah! Meu rapaz, confia! É o que te digo, confia." Vi-o estender a pata curta de um braço, num gesto que abarcava floresta, enseada, a lama, o rio - como se em vergonhosa bravata evocasse, perante o rosto do país soalheiro, a morte secreta, o demónio oculto, um coração de profundas trevas. Foi de tal modo impressionante que dei comigo de pé e voltado para a orla da floresta, à espera de uma resposta àquela espécie de negra exibição de confiança. Vocês sabem como as pessoas às vezes têm ideias tolas. Mas o grande silêncio enfrentava os dois vultos com paciência sinistra, como se esperasse uma qualquer invasão fantástica. Puseram-se os dois a rogar pragas em voz alta - de puro medo, julgo eu - e voltaram ao posto sem ter dado, ao que parecia, pela minha presença. O sol estava baixo; e lado a lado, curvados para a frente, parecia que rebocavam ladeira acima as suas próprias sombras desiguais e grotescas, que elas os seguiam de rastos pelo capim alto sem fazer vergar uma só folha. Dias depois, a Expedição Eldorado sumiu-se na complacente selva, que voltou a fechar-se como o mar à passagem do mergulhador. Só muito mais tarde soubemos que os burros da caravana tinham morrido todos. Mas ignoro tudo sobre a morte dos restantes e menos valiosos animais. Talvez tenham encontrado, aliás como todos nós, o destino que mereciam. Não me informei. Nesta altura o meu grande entusiasmo era saber que iria dentro em pouco conhecer o Kurtz. E quando digo dentro em pouco é força de expressão. Exactamente dois meses se passaram, desde que saímos da enseada até chegarmos às margens do posto do Kurtz. 42 Subir o rio era o mesmo que viajar para trás, até às primeiras idades do mundo, quando a vegetação transbordava da terra e as árvores reinavam. Uma torrente deserta, um grande silêncio, a floresta impenetrável. O ar era quente, espesso, muito pesado e mole. A luz solar não tinha alegria. Longos troços de rio deserto perdiam-se por lonjuras de enorme sombra. Nas margens de areia prateada, hipopótamos e crocodilos tomavam lado a lado banhos de sol. As águas largas corriam entre uma confusão de ilhas arborizadas; uma pessoa perdia-se naquele rio como num deserto, e todo o dia tropeçava em baixios, tentava encontrar um canal navegável e acabava por julgar-se vítima de um feitiço, isolada para sempre do que até ali conhecera - sei lá onde - muito longe - talvez noutra vida. Em certos momentos, o passado vinha ter connosco, como às vezes sucede quando não temos um instante de sossego; mas aparecia sob a forma de um sonho ruidoso e agitado, que viríamos a recordar, espantados, se aferido pela esmagadora realidade daquele estranho mundo de plantas, água e silêncio. Era uma vida de silêncio que não parecia ter nenhuma paz. O silêncio de uma implacável força que tramava objectivos impossíveis de penetrar. Que nos olhava com ar vingativo. Mais tarde habituei-me; deixei de lhe prestar atenção; não tinha tempo. Era preciso vigiar o canal; descobrir o sinal de baixios ocultos, de pedras submersas, a maior parte das vezes por inspiração; tive de aprender a cerrar os dentes com força antes do coração me fugir do peito, quando não roçava por um triz em troncos infernais, manhosamente escondidos e bem capazes, com um rasgão, de dar cabo da vida à panela de lata daquele vapor e mandar todos os peregrinos para o fundo; eu tinha de estar sempre à espreita do que parecesse paus e lenha seca, e de noite pudesse ser cortado em terra para a navegação do dia seguinte. Quando se tem de atender a tudo isto, a meros acidentes superficiais, fiquem a saber que a realidade - sim, a realidade - se dilui. E a verdade mais profunda esconde-se que sorte, que sorte! Mas assim mesmo eu sentia-a; muitas vezes senti o mistério da sua calma a observar-me as acrobacias, tal como vê os vossos truques, amigos, os que vocês fazem no arame - por que preço? Não mais de meia coroa cada um... - Podias ser mais educado, Marlow - resmungou uma voz, fazendo-me saber que havia outra pessoa acordada além de mim. 43 - Peço desculpa. Estava a esquecer-me da angústia que sobe um pouco aquele preço. Mas que importa o preço, na verdade, quando a coisa é bem feita? Os vossos são sempre bem feitos. E os meus também não são maus de todo, até consegui que o vapor não se afundasse na primeira viagem. Ainda continuo a espantar-me. Imaginem um homem de olhos vendados, a guiar um carro numa estrada péssima. Posso garantir-vos que eu suava e me arrepiava bastante. No fim de contas, sempre que um marinheiro amolga os fundilhos de uma coisa feita para flutuar, faz um imperdoável pecado. Mesmo que os outros não venham a saber de nada, ele é que não esquece as mossas, hem? Um choque em pleno coração. Lembra-se delas, sonha com elas, acorda de noite a pensar nelas - anos passados - todo ele calores e frios. Não chego a pretender que o vapor tenha flutuado durante toda a viagem. Mais de uma vez teve de passar a vau, com vinte canibais a chapinharem e a darem-lhe empurrões. Pelo caminho contratámos alguns desses sujeitos e com eles fizemos a tripulação. Bons tipos - canibais - quando para aí lhes dava. Homens com quem podíamos trabalhar, e muito agradecido lhes fiquei. Além do mais não se comeram uns aos outros nas minhas barbas; tinham trazido uma provisão de carne de hipopótamo que apodreceu e fez o mistério da selva cheirar mal ao meu nariz. Pff! Parece que ainda sinto... Ao todo, o administrador e mais três ou quatro peregrinos com os seus varapaus. Às vezes entrávamos em portos da margem, presos à orla do desconhecido, e os brancos que saíam das cubatas desmanteladas a correr e a gesticular de alegria, surpresa e boas-vindas pareciam estranhíssimos - como se um poder mágico os tivesse aprisionado ali. Durante alguns momentos a palavra marfimN ressoava no ar - e depois voltávamos a entrar no silêncio, em troços desertos, a contornar calmos recantos entre muralhas altas do sinuoso caminho que repercutiam surdamente as pancadas fortes da roda da popa. Árvores e mais árvores, milhões de árvores imensas, maciças, que subiam a grandes alturas; e aos seus pés, agarrado à margem, lá se arrastava a contracorrente aquele vaporzinho enfarruscado, como um preguiçoso escaravelho que arrastasse o ventre pelo chão de um grande pórtico. Fazia-nos sentir muito pequenos, muito perdidos, mas sem conseguir deprimir-nos. Afinal de contas era pequeno, aquele escaravelho enfarruscado, mas lá se arrastava - o que ele tinha realmente de fazer. Para onde os peregrinos pensavam que fosse, não sei. Para um sítio onde esperavam encontrar qualquer coisa, aposto! 44 Para mim arrastava-se - pura e simplesmente em direcção a Kurtz; embora muito devagar, quando a tubagem Lhe dava para ter fugas. Troços de rio abriam-se e logo se fechavam atrás de nós, como se a floresta avançasse lentamente para a água, disposta a barrar-nos o caminho de regresso. Penetrávamos mais e mais profundamente no coração das trevas. Que silêncio lá havia! Às vezes, de noite, um batuque ultrapassava a cortina de árvores, chegava ao rio e persistia muito fracamente, como se planasse bem acima das nossas cabeças até a madrugada romper. Se queria dizer guerra, paz ou prece não podíamos dizê-lo. O alvorecer anunciava-se com a descida de uma gélida quietude; os lenhadores dormiam, as suas fogueiras tinham o fogo baixo; qualquer estalido nas ramagens nos assustava. Éramos vagabundos numa terra pré-histórica, numa terra com ar de planeta desconhecido. Podíamos imaginar-nos como primeiros homens que tomassem posse de uma herança maldita a poder de angústias profundas e desmesurado esforço. Mas de repente, na luta para vencer uma curva tínhamos visões de paredes de junco, pontiagudos telhados de capim, uma explosão de gritos, um remoinho de membros pretos, um confuso bater de mãos, de pontapés no solo, de corpos que se remexiam, de olhos fora das órbitas sob a imóvel e pesada folhagem. Lento, o vapor afadigava-se a percorrer um negro e incompreensível frémito. O homem pré-histórico amaldiçoava-nos, fazia-nos um pedido ou dava-nos boas-vindas? - Sabe-se lá! Entre nós e a compreensão daquilo que nos cercava havia uma ruptura: deslizávamos como fantasmas, secreta e maravilhosamente espantados como homens em perfeito juízo perante um animado tumulto de manicómio. Não compreendíamos por que estávamos longe demais e não podíamos lembrar-nos de nada, porque viajávamos na noite das primeiras idades, de idades que tinham passado sem deixar mais do que um vestígio - mas nenhuma memória. A terra não parecia terrestre. Habituámo-nos à forma algemada de um monstro vencido, mas ali - ali podia ver-se qualquer coisa monstruosa e livre. Não parecia terrestre e os homens... não, desumanos não eram. Bem pior do que isso - era a suspeita de não serem desumanos. Aos poucos se chegava a tê-la. E eles gritavam, saltavam, rodopiavam e faziam caretas que eram um horror; embora nos assustasse a sensação de terem uma humanidade - igual à nossa -, a ideia de termos um parentesco remoto com aquela selvagem e apaixonada refrega. Feia. Muito feia, sim; 45 mas fôssemos bastante homens e não deixaríamos de admitir intimamente que existe em nós um traço de simpatia embora diluído pela terrível franqueza daquele barulho, a obscura suspeita de conter um significado que nós - tão afastados, já, da noite das primitivas idades - podemos compreender. E porque não? O espírito humano de tudo é capaz - porque dentro dele há tudo, não só o passado como o futuro. E ali, ao fim e ao cabo o que havia? Contentamento, dor, devoção, coragem, raiva - sei lá! - mas principalmente verdade - verdade despida da sua máscara de tempo. Deixemos o louco abrir a boca e tremer pois o homem compreende e pode ver sem pestanejar. Se for tão homem, pelo menos, como os que havia em terra. Terá de ir com instrumentos da sua própria verdade ao encontro daquela verdade - com a sua força própria e inata. Princípios? Os princípios de nada valem. Aquisições, roupa, vaidades - trapos pelo ar, mal lhe dão uma sacudidela forte. Não; é preciso uma fé deliberada. Aquele tumulto bárbaro exerceria em mim qualquer apelo? Pois muito bem; oiço; admito que sim, mas também tenho voz activa, não daquelas - valha-me Deus ou o Diabo - que podem ser reduzidas ao silêncio. Claro que um doido se defende sempre pelo terror ou com nobres sentimentos. Vocês, aí, resmungam? Admiram-se por eu não ter saltado para terra a berrar e a dançar? Pois não senhor-não saltei. Nobres sentimentos!, dizem vocês. Para o diabo os nobres sentimentos! Eu não tinha era tempo. Não tinha - digo-vos eu - mãos a medir com a solda e as tiras de cobertor, ajudava a fazer ligaduras para as fugas de vapor da tubagem. E tinha de olhar pelo leme e contornar os troncos de árvores espetados no fundo, desse por onde desse fazer andar aquela panela de lata. Nestas coisas há uma verdade superficial capaz de salvar o homem avisado. Mas, entretanto, eu também precisava de andar em cima do selvagem que fazia de fogueiro. Era um exemplar aperfeiçoado; sabia trabalhar com uma caldeira vertical. Eu via-o de cima e, palavra de honra, tão edificante era olhá-lo como um cão de calções e chapéu de plumas a dançar nas patas de trás. Poucos meses de aprendizagem tinham bastado àquele sujeito realmente esperto. Espreitava o manómetro e o nível da caldeira com evidente empenho e audácia - além disso, era um pobre-diabo, com os dentes limados, a carapinha rapada de acordo com insólitos desenhos, três tatuagens decorativas em cada face. Mais lógico seria estar em terra a bater palmas e com os pés no chão do que entregar-se àquele trabalho árduo, àquela estranha feitiçaria, e a aumentar conhecimentos. 46 Era útil, porque o tinham instruído; mas só sabia aquilo - se a água desaparecesse na coisa transparente, o mau espírito da caldeira zangava-se, cheio de sede, capaz de terríveis vinganças. Por isso, ia suando e alimentando a fornalha, vigiando assustadamente o vidro (com um improvisado amuleto de trapos amarrados ao braço e um pedaço de osso, do tamanho de um relógio de bolso, directamente fixado ao lábio inferior) enquanto as arborizadas margens passavam devagar e o ruído furtivo do nosso vapor ia ficando para trás, intermináveis milhas de silêncioque nos arrastavam em direcção a Kurtz. Como os troncos espetados eram grossos, as águas pérfidas e pouco fundas, dir-se-ia que a caldeira abrigava um diabo cheio de azedume, e por isso nem eu nem o fogueiro tínhamos tempo para aprofundar insidiosos pensamentos. Cerca de cinquenta milhas abaixo do Posto do Interior demos com uma cubata de caniços, um pau inclinado e melancólico onde abanavam irreconhecíveis farrapos do que tinha sido uma bandeira, e uma pilha de lenha bem arrumada. Era inesperado. Na lenha encontrámos um pedaço de tábua lisa com palavras meio sumidas, escritas a lápis. Quando as decifrámos, diziam: Lenha para ti. Despacha-te. Aproxima-te com cautela. Tinha assinatura mas ilegível - Kurtz não era - era um nome muito mais comprido. Despacha-te. Para onde? Rio acima? "Aproxima-te com cautela." Ignorámo-lo. O aviso não dizia respeito àquele lugar, pois acharmo-lo, só isso, implicava aproximação. Alguma coisa não estaria bem lá para cima. Mas o quê? - E até que ponto? O problema era esse. Fizemos desfavoráveis comentários à imbecilidade daquele estilo telegráfico. O mato em redor não dizia nada, e além do mais não deixava ver muito longe. Na porta da cubata havia uma cortina rota, de tecido vermelho, que ia dando tristemente nas nossas caras. E a cabana não tinha mobília, mas podia concluir-se que ainda há pouco ali andara um homem branco. Restava uma mesa tosca - uma prancha em cima de duas estacas - ; e um monte de lixo concentrado num recanto escuro. Encontrei um livro ao pé da porta. Perdera a capa, com o dedo tinham-lhe roçado as páginas até chegarem a um estado de extrema e ensebada maciez, mas a lombada voltara a ser amorosamente cosida com linha branca ainda limpa. Era um extraordinário achado. Um Questionário sobre Alguns Problemas de Navegação de um tal Tower, Towson - ou qualquer nome deste género -, capitão da Marinha de Guerra britânica. 47 O tema parecia de uma austeridade a toda a prova, com diagramas elucidativos e repelentes tábuas numéricas, edição de há uns sessenta anos. Antes de aquela espantosa antiguidade me ficar desfeita nas mãos, tratei-a com a maior ternura. O tal Towson, ou Tower, estudava muito a sério o ponto de ruptura de amarras e cordame, e outras matérias do mesmo género. Não era, não senhor, um livro muito cativante, mas à primeira vista podia notar-se uma tão grande honestidade de intenções, uma tão honesta preocupação em informar como se executa um trabalho, que aquelas humildes páginas, pensadas há tantos anos, faziam-se luminosas de uma luz que nada tinha de profissional. Com a sua conversa de amarras e talhas, o simplório daquele marinheiro fez-me diluir o mato e os peregrinos numa deliciosa sensação que era encontrar qualquer coisa de indiscutivelmente real. Achar ali um livro já era, de si, bastante maravilhoso, e ainda mais espantoso as suas notas a lápis feitas à margem e referentes ao texto. Eu nem podia crer nos meus olhos! Escritas em cifra! Sim, pareciam cifra. Imaginem um homem a carregar um livro daqueles para uma terra esquecida e depois estudá-lo - fazer anotações - ainda por cima em cifra! Que extravagante mistério! Desde há momentos eu tinha a vaga percepção de um ruído que me era incómodo. Quando levantei o olhar, a pilha de lenha desaparecera e o administrador gritava por mim na margem do rio, saudado por todos os peregrinos. Meti o livro no bolso. Garanto-vos que arrancar-me à leitura foi como desabrigar-me de uma velha e sólida amizade. Lá voltei a pôr a maquineta coxa em movimento. "Aquilo deve ter sido a peste do comerciante - o tal intruso", exclamou o administrador, com um odioso olhar lançado para trás, ao sítio que acabávamos de deixar. - "Deve ter sido um inglês", disse eu. - "Se não tem cuidado, ainda arranja sarilhos", resmungou o administrador, sombrio. Com fingida inocência repliquei-lhe que todos, neste mundo, "estamos sujeitos a sarilhos." Agora mais rápida, a corrente fazia o vapor dar como que o último suspiro; a roda da popa batia, cheia de moleza, e dei comigo na ponta dos pés, a espreitar as pancadas do barco, pois a verdade é que a todo o momento eu esperava ver aquele destroço desistir. Era como observar os derradeiros lampejos de uma vida. Mas lá nos arrastávamos. De vez em quando eu referenciava uma árvore, para avaliar que avanço ganhávamos em direcção a Kurtz, mas regra geral perdia-a de vista antes de ela ficar para trás. 48 Excedia a paciência humana estar tanto tempo de olhos pregados na mesma coisa. O administrador, esse, dava provas de uma encantadora resignação. E eu irritava-me, enervava-me a discutir comigo mesmo se devia ou não ser franco quando falasse com o Kurtz; mas antes de chegar a uma conclusão vinha-me à ideia que falar, calar-me ou qualquer outra espécie de intervenção minha redundaria sempre em inutilidade. Que importava alguém saber ou deixar de saber? Que importava saber quem era aquele administrador? Por vezes temos iluminações destas. Naquele caso, o essencial permanecia muito abaixo da superfície, além do meu alcance e além do meu poder de intervenção. Ao entardecer do segundo dia, calculámos que faltassem umas oito milhas para chegarmos ao posto de Kurtz. Eu quis continuar, mas o administrador olhou-me com ar grave e disse que uma navegação assim tão perigosa, e com o sol já tão baixo, aconselhava a ficarmos ali até à manhã seguinte. Para mais, fez ele notar, se respeitássemos o aviso de cautela que nos tinha sido feito, só à luz do dia deveríamos aproximar-nos - nunca ao lusco-fusco nem de noite. Era muito sensato. Oito milhas da nossa navegação queriam dizer cerca de três horas, e além disso a montante, no fim do troço, eu via ondas suspeitas. Ainda assim o atraso me aborreceu muito mais do que poderia prever-se e de uma forma que era absurda, também, se pensarmos que uma noite somada a tantos meses não tinha importância nenhuma. Como havia lenha a mais e a palavra de ordem era cautela, puxei o barco para o meio da corrente. A passagem era estreita, rectilínea, de margens altas como trincheiras de uma linha férrea. Ainda o Sol não se tinha posto, já o crepúsculo lhe escorregara para dentro. A corrente deslizava uniforme e rápida embora pesasse nas margens uma silenciosa quietude. Entrelaçadas com trepadeiras e toda a espécie de pujante mato que crescia por baixo, poder-se-ia imaginar que aquelas árvores vivas se tinham transformado em pedra até aos mais finos ramos, às folhas mais pequenas. Mas aquilo não seria dormir - parecia sobrenatural, como que um estado de transe. Nem o mais leve som se ouvia. A gente olhou espantada, e começou a desconfiar que tinha ensurdecido - até baixar uma noite repentina que nos deixou bem cegos. Pelas três da madrugada um peixe enorme deu um salto e o ruído assustou-me tanto como um tiro de espingarda. Quando o Sol nasceu havia uma névoa branca, muito quente e viscosa, que ainda mais cegos nos deixava do que a noite. 49 Não andava nem oscilava; para ali estava assim, à nossa volta, como qualquer coisa sólida. Às oito ou às nove, talvez, levantou-se como uma persiana. Tivemos a visão instantânea de um mar de árvores na enorme selva intrincada, com a pequena e abrasadora bola do Sol suspensa por cima - tudo na maior das calmas - até na mesma persiana branca voltar a baixar docemente, como se deslizasse em lubrificadas calhas. Ordenei que largassem outra vez a amarra, que já tínhamos começado a virar. Mas não deixara ainda de correr, com um ruído surdo, quando um grito se ergueu lentamente no ar opaco, como que um grande grito de infinita desolação. Depois parou. Um modulado queixume de selvagens dissonâncias encheu-nos os ouvidos. Tão inesperado que pôs os meus cabelos em pé debaixo da boina. Não sei que impressão causou nos outros; a mim pareceu-me que o próprio nevoeiro temera de repente e ao que parecia em todos os lados ao mesmo tempo, num clamor que era tumultuoso e fúnebre. Culminou numa precipitada explosão de gritos quase intoleráveis de tão agudos, que cessaram de repente e nos deixaram siderados em atitudes ridículas, atentos ao silêncio excessivo e assustador que lhe seguiu. "Santo Deus! O que quer isto dizer?...", balbuciou à minha ilharga um dos peregrinos homenzinho gordo de cabelo ruivo e suíças da mesma cor, que usava botas de elástico e um pijama cor-de-rosa com as pernas das calças enfiadas nas meias. Durante um minuto bem contado, dois outros ficaram de boca aberta e depois correram para dentro da pequena cabina, com olhares esgazeados e as mãos nas Winchesters engatilhadas. Só conseguíamos ver a névoa do local onde nos encontrávamos, assim mesmo de contornos tão esfumados que pareciam prestes a dissolver-se, à volta uma faixa de água turva, talvez com dois pés de largura - e mais nada, sei lá onde ficava o resto do mundo, quer para os olhos, quer para os ouvidos! Sei lá. Apagado, desaparecido; varrido sem deixar murmúrio ou sombra. Fui à proa e mandei virar a amarra a pique de estai, pronta a soltar a âncora e pôr, se necessário, o barco a navegar. "Acha que vão atacar-nos?", segredou-me uma voz apavorada. "Com este nevoeiro, vão abater-nos a todos", murmurou outra. Os rostos estavam crispados de tensão, as mãos tremiam ao de leve, os olhos esqueciam-se de pestanejar. Era muito curioso ver-se o contraste entre as expressões dos brancos e dos negros da tripulação, tão estranhos como nós a esta parte do rio, apesar de não terem as suas cubatas a mais de oitocentas milhas. 50 Claro está que muitíssimo perplexos, os brancos também pareciam irritados contra aquele ruído que Lhes ofendia a dignidade. Os negros mantinham-se atentos e com uma expressão vigilante, como é natural, mas de rosto essencialmente calmo; um ou dois até sorriam enquanto puxavam a amarra. Com frases curtas e resmungadas, pareceu que uns tantos souberam resolver a questão a contento de todos. O contramestre estava ao pé de mim, jovem negro espadaúdo, severamente cingido em panos com orla azul-escura, de narinas bravias e carapinha artisticamente dividida em oleosos anéis. "Ah!", exclamei eu, só para ser camarada. - "Agarra ele", berrou esse rapaz que arregalava os olhos e rangia os dentes afiados - "agarra ele e dá pra nós." - "Para vocês?, perguntei. Para fazerem o quê?" "Comer!", respondeu lacónico, e de cotovelo a pesar no perfilado da borda, de olhos postos no nevoeiro, entregue a uma digna e profunda atitude pensativa. Eu teria ficado estarrecido de todo se não soubesse avaliar que fome aquela gente sentia - fome que há um mês, pelo menos, não devia ter parado de aumentar. Tinham um contrato de seis meses (não creio que alguém, entre eles, tivesse esta clara noção de tempo que adquirimos depois de incontáveis séculos. Pertenciam ao alvorecer dos tempos - sem experiência herdada capaz de explicar-lhes o que isso era) e, claro está, apesar de haver um pedaço de papel escrito em conformidade com uma lei burlesca, magicada para as bandas da foz do rio, não passava pela cabeça de ninguém preocupar-se com a forma de os sustentar. É certo que aqueles homens tinham trazido com eles carne podre de hipopótamo, mas não daria para muito tempo, mesmo que os peregrinos não tivessem deitado a maior parte dela pela borda, no meio de um grande chinfrim dos espoliados. Isto, que parecera um acto autoritário, não passara de um caso de legítima defesa. Não é possível uma pessoa estar de vigia, dormir e comer a respirar hipopótamo morto, sem recear que ao mesmo tempo se desfaçam os laços que ainda a ligam à precária existência. Aliás, todas as semanas eram entregues a cada um três pedaços de arame de cobre, de nove polegadas de comprido, com o argumento que seria eficaz moeda para comprarem provisões nas aldeias ribeirinhas. Imaginem lá para que servia aquilo! Ou não havia aldeias, ou seus habitantes eram hostis, ou o administrador, tal como nós alimentado a conservas que um bode acidental entremeava, não queria ver o vapor parado por motivos mais ou menos fúteis. E assim, não engolindo os tais arames ou não fazendo com eles anzóis para iludir peixes, 51 não vejo que utilidade pudessem extrair de tão extravagante salário. Devo dizer-vos que era pago com regularidade digna de uma grande e respeitável Companhia. Quanto ao mais, a única matéria comestível - comestível é um modo de dizer que vi na sua posse, foram alguns bocados de uma droga que parecia massa mal cozida, com uma cor suja a atirar para o alfazema, e que eles guardavam dentro de folhas para mastigarem de vez em quando, em tão pequenas porções que bem mais seriam para vista do que sério propósito de alimentar. Em nome de todos os atormentadores diabos da fome! Porque não se atiraram a nós eram trinta contra cinco - e ao menos não fizeram uma boa refeição? Sempre que penso nisto me espanto. Eram potentíssimos homens, sem grande capacidade para avaliar consequências, com coragem, com força, apesar de andarem já de pele menos luzidia e musculatura menos rija. O que estava em jogo, percebi eu, era uma inibição, destes segredos dos homens que desafiam o plausível. Eu olhava-os com interesse cada vez maior - embora o não fizesse por pensar que pudessem comer-me a cuno prazo, embora naquela altura eu começasse a notar - sob nova luz, de facto - que os peregrinos estavam macilentos e esperasse, sim, realmente esperasse que a minha pessoa não fosse - como direi? - tão apetecível como a deles: um toque de vaidade fantástica que se adaptava bem àquela sensação de sonho que em mim prevaleceu dia a dia, durante todo o tempo. De mistura talvez eu tivesse uma ponta de febre ou uma ponta de qualquer outra coisa - partidas muito traquinas do mato, preliminares bagatelas de outros ataques mais sérios que em devido tempo apareciam. Sim; eu via-os como vemos qualquer outro ser humano, interessado pelas tendências, motivações, capacidades, fraquezas que revelam quando uma inexorável necessidade física os põe à prova. Inibições! Que inibições poderiam ter? Superstição, nojo, paciência, medo - ou qualquer espécie de honra primitiva? Não há medo que resista à fome, nem paciência que a satisfaça, e onde há fome deixa a repugnância simplesmente de existir; quanto a superstições e crendices, aquilo a que podemos chamar princípios, valem muito menos do que uma folha ao vento. Vocês não sabem que diabólico é, que exasperante tormento se faz, morrermos aos poucos de fome; como isso nos dá ideias negras, fermenta em nós uma sombria ferocidade? Pois bem, eu sei. Para combater eficazmente a fome, uma pessoa recorre a todas as suas energias. 52 Na verdade é mais fácil enfrentar a ruína, a desonra e a perdição da nossa própria alma - do que uma dessas fomes prolongadas. É triste, mas verdade. Além do mais, aqueles tipos não tinham razão para sentir nenhuma espécie de escrúpulos. Inibições! Mais depressa eu saberia esperá-las de uma hiena que ronda cadáveres no campo de batalha. Ali, o facto - o fascinante facto - estava à minha frente, o facto estava bem à vista como a espuma sobre os abismos do mar, como as ondas sobre insondáveis enigmas, mistério maior - quando penso nele - do que a estranha, inexplicável sensação de dor desesperada do clamor selvagem que nos atingia da margem, atrás da cega brancura daquelas névoas. Com voz baixa mas excitada, dois peregrinos discutiam a margem de onde aquilo viera. "Esquerda." - "Não, não, como é que sabes? Claro que a direita, direita." - "Isto é muito sério", disse a voz do administrador atrás de mim; "eu ficaria desolado se acontecesse qualquer coisa ao Sr. Kurtz antes de lá chegarmos." Olhei para ele e não tive dúvidas de que estava a ser sincero. Era um destes homens interessados em salvar aparências. A sua inibição era essa. Mas quando me disse em voz baixa qualquer coisa sobre a hipótese de continuarmos imediatamente a viagem, nem me dei ao trabalho de responder. Eu sabia e ele sabia que era impossível. Tentássemos levantar a âncora, e ficaríamos literalmente no ar - no espaço. Não podíamos dizer como íamos - a subir ou a descer a corrente, ou atravessados - se íamos esbarrar numa ou noutra margem - e neste caso em qual delas. Claro que nada fiz. Não estava disposto a estampar-me. Não podia imaginar-se pior sítio para um naufrágio. Rapidamente afogados ou não, a verdade é que a morte não tardaria. "Autorizo-o a correr todos os riscos", disse-me depois de um breve silêncio. - "Recuso-me a correr um que seja", respondi laconicamente; o que aliás ele esperava, apesar de surpreendido com o tom. - "Bem, vejo-me obrigado a ceder ao seu critério. O senhor é o capitão", frisou com acentuada delicadeza. Voltei-lhe as costas em sinal de agradecimento e olhei para o nevoeiro. Quanto tempo duraria? Como perspectiva era das mais desoladoras. Chegarmos ao pé de Kurtz, que apanhava marfim naquele maldito mato, era um cometimento tão cercado de perigos como chegar à princesa adormecida no castelo fabuloso. "Parece-Lhe que vão atacar-nos?", perguntou-me o administrador em tom confidencial. Não me parecia que atacassem, por várias e óbvias razões. Uma delas o nevoeiro cerrado. Largassem da margem dentro de canoas e tão perdidos ficariam como nós, 53 se nos mexêssemos dali. Além disso, em qualquer das margens o matagal me tinha parecido impenetrável - embora provido de olhos, olhos que nos tinham visto. Como é natural, a floresta ribeirinha era muito fechada, embora o mato que tinha atrás fosse evidentemente penetrável. De qualquer modo, durante a pequena aberta eu não vira canoas em nenhum ponto do rio - e por certo também as não havia junto do vapor. O que tornava inconcebível a ideia de um ataque era a característica do ruído - os gritos que tínhamos ouvido. Não denunciavam aquela ferocidade que pressagia a imediata intenção hostil. Por inesperados, bárbaros e violentos que tivessem sido, ainda assim me davam uma inevitável sensação de dor, por qualquer motivo, a aparição do navio enchera aqueles selvagens de um irreprimível desagrado. "Se algum perigo havia, só a proximidade de paixões humanas à rédea solta", expliquei eu. "Um desagrado extremo, só ele, chega para se. transformar em violênciaembora degenere, na maior parte dos casos, em apatia..." Se vocês vissem o espanto dos peregrinos! Não se atreviam a troçar nem a insultar-me; mas acredito que me julgassem doido - de susto. Fiz-lhes uma conferência em forma. "Meus queridos meninos, de nada vale afligir-nos. Estar alerta?" Como podem calcular, eu vigiava os menores sinais do nevoeiro se levantar, como um gato vigia o rato; mas de nada servem os olhos quando estamos enterrados em muitas milhas de um monte de algodão em rama. Também parece que engasga - quente, sufocante. Embora causasse uma sensação esquisita, tudo o que eu disse era absoluta verdade. O que viemos a tomar por ataque não passara, realmente, de tentativa para nos afastar. O acto estivera muito longe de ser agressivo - ou mesmo defensivo na vulgar acepção do termo: fora empreendido sob um impulso de desespero e na essência não ultrapassara a pura defesa. Só veio a desenvolver-se, digamos assim, duas horas depois do nevoeiro se levantar, e começou num sítio a cerca de milha e meia a jusante do posto de Kurtz. Acabávamos de dobrar com dificuldade uma volta do rio quando reparei numa ilhota, simples montículo de uma terra ervosa verde-luminosa ao meio da corrente. A única do género; mas de mais perto podia concluir-se que era cabeça de um comprido banco de areia, melhor dizendo uma cadeia de baixios estendidos pelo meio do leito. Tinham uma cor desbotada, apenas imersos à flor da água e parecidos com a espinha de um homem marcada sob a pele, costas abaixo. 54 Tanto quanto eu podia ver, seria viável passar-lhe à esquerda ou à direita. Como é natural, eu não conhecia nenhum dos lados. As margens pareciam absolutamente iguais; mas o posto, tinham-me dito, ficava na margem oeste, e por isso dirigi instintivamente a proa para o canal desse lado. Não tínhamos entrado bem nele e já o sentia muito mais apertado do que parecera. À nossa esquerda ficava o alto banco de areia comprido e contínuo, e à direita a alta margem a pique, coberta por vegetação densa. Acima dos arbustos havia cerradas fileiras de árvores. As ramagens pesadas pendiam sobre as águas, e de onde em onde um grande tronco projectava-se, rígido, sobre a corrente. A tarde ia adiantada e a face da floresta pusera-se tristonha, com uma larga faixa de sombra caída no rio. Navegávamos a contracorrente nesta sombra como se imagina muito devagar. Aproximei-me bastante de terra - pois o leito era mais fundo ao pé da margem, como informava a vara de sondagem. Um dos meus famintos e pacientes amigos sondava à proa, mesmo por baixo de mim. Aquele vapor era uma autêntica chata coberta. No convés tinha duas pequenas casas de madeira de teca com portas e janelas. A cadeira ficava no extremo da proa e as máquinas na popa. Sobre o conjunto havia uma cobertura leve, apoiada em pilastras. A chaminé saía desta cobertura, e um pequeno casinhoto feito com ripas servia, na parte dianteira, de casa do leme. Tinha um catre, dois bancos de campanha, a um canto uma Martini-Henry carregada, uma pequena mesa e a roda do leme. Na dianteira havia uma porta larga e, de cada lado, uma janela ampla com portadas. Claro está que abertas, sempre, de par em par. Eu passava os dias empoleirado na ponta da proa e em frente da porta. De noite dormia ou tentava dormir no catre. Um negro atlético, que viera de qualquer tribo da costa e fora educado pelo meu desgraçado antecessor, era o timoneiro. Com que orgulho usava um par de brincos de cobre! Da cintura aos tornozelos exibia um pano azul e tinha de si próprio o mais alto dos conceitos. Era o tolinho mais instável que alguma vez conheci. Se estava alguém ao pé dele, governava com o ar mais fanfarrão do mundo; mas sozinho ficava instantânea presa da mais patega atrapalhação, e um minuto bastava para deixar o vapor aleijadinho fazer o que bem lhe apetecia. Olhava eu para baixo, para a vara de sondagem, e estava a detestar vê-la mais fora do rio, a cada prumada, quando reparei que o meu timoneiro interrompia o trabalho e se estirava no convés sem o incómodo, sequer, de recolher a vara. 55 Mantinha-a agarrada, no entanto, a arrastar-se pela água. Pelo seu lado, o fogueiro, que eu também podia ver por baixo de mim, sentou-se inesperadamente junto da caldeira e meteu a cabeça entre os ombros. Fiquei muito espantado mas tive de concentrar logo a atenção no rio porque havia um tronco na rota navegável. Paus, pauzinhos voavam à minha volta - às nuvens: zuniam-me à frente do nariz, caíam por baixo de mim, batiam nas traseiras da minha casa do leme. Entretanto, rio, terra e floresta mantinham-se muito calmos - o mais calmos possível. O único ruído que eu ouvia eram as pancadas surdas da roda da popa e a saraivada daquelas coisinhas. Por um triz evitámos o escolho. Júpiter me valha, que eram flechas! Estávamos a ser alvejados! Entrei rapidamente na casa do leme para fechar as portadas do lado da terra. O tarado do timoneiro, com as mãos nas malaguetas do leme, levantava os joelhos e batia com os pés no chão enquanto rangia os dentes como um cavalo de freio curto. Diabos o levassem! Andávamos às curvas, a dez pés da margem. Tive de inclinar-me para fora, a fim de rodar a portada, e entre a folhagem vi um rosto ao nível do meu, a fixar-me com ferocidade, e de repente, como um véu que aos meus olhos se abrisse, distingui peitos, braços, pernas nuas e um luzir de olhos no fundo da complicada sombra - o mato a formigar de membros humanos que se moviam polidos, cor de bronze. Os ramos abanavam, sacudiam-se e estalavam, as flechas levantavam voo e a portada da janela lá se fechou. "Governa a direito", disse eu ao timoneiro. Via-lhe a cabeça imóvel, de rosto virado à proa; mas os olhos rolavam nas órbitas, com ele a querer equilibrar-se, erguendo e pousando delicadamente os pés, a espumar um pouco na boca. "Está quieto!", disse eu, furioso. Era ordenar a uma árvore que não abanasse ao vento. Saí de rompante. Por baixo de mim, no convés de ferro, a confusão era enorme; ouviam-se exclamações. Uma voz gritou: - "Não pode voltar para trás?" Na água havia uma ruga em forma de V, junto da proa. "Não me digam! Mais um tronco?" O tiroteio começou debaixo dos meus pés. Os peregrinos tinham aberto fogo com as Winchesters mas não passava de chumbadas à toa, para dentro do mato. O diabo de uma lufada de fumo saiu pela chaminé e deslocou-se lentamente para a proa. Roguei-lhe pragas. Agora já não distinguia a ruga nem a ponta do tronco. Pus-me na porta para ver melhor, e as setas apareciam às nuvens. Talvez estivessem envenenadas, mas de aspecto não faziam mal a uma mosca. A selva começava a gritar. 56 Os nossos lenhadores iniciaram um clamor de guerra; mesmo ao pé das minhas costas, um tiro de espingarda ensurdeceu-me. Olhei de esguelha para a casa da pilotagem; ainda estava cheia de barulho e fumo quando me atirei à roda do leme. O palerma do negro largara tudo para abrir a porta e disparar a Martini-Henry. Estava ali assim, de pé, com ar feroz, e gritei-lhe que recuasse enquanto eu tentava corrigir com um golpe rápido a curva que o vapor fazia. Mesmo que quisesse não havia espaço para dar a volta, e a extremidade do tronco devia estar muito perto da proa, no meio do maldito fumo; não havia tempo a perder e, por isso, atirei com o barco para a margem direitinho à margem, onde eu sabia que o rio era fundo. Lá fomos rompendo devagar, ao longo do arvoredo que caía por cima de nós, num turbilhão de ramos quebrados e folhas que voavam. Em baixo, o tiroteio acabara de repente, tal qual o que eu tinha previsto quando os carregadores das espingardas se esgotassem. Virei a cabeça para trás, como reacção ao silvo brilhante que atravessou a casa do leme de uma janela à outra. E olhando para além do louco timoneiro, que sacudia a espingarda descarregada e berrava para a margem, vi formas vagas a correrem dobradas, aos saltos, deslizantes, precisas, incompletas, evanescentes. Nessa altura qualquer coisa enorme surgiu no ar em frente da janela, a espingarda desapareceu pela borda fora, o homem deu alguns passos rápidos para trás, deitou-me um olhar de esguelha, inusitado, penetrante, familiar, e caiu-me aos pés. Bateu duas vezes com a testa no leme, e a ponta do que parecia uma comprida lança precipitou-se com ele, até ficar partida num pequeno banco de campanha. Dir-se-ia que arrancara aquilo das mãos de alguém que estava na margem e com o esforço perdera o equilíbrio. O fumo ténue espalhara-se; tínhamos escapado ao tronco de árvore, e olhando na direcção da proa pude ver que uma centena de jardas à frente era viável guinar e afastarmo-nos, evitar o banco de terra; mas senti os pés muito quentes, molhados, e olhei para baixo. O timoneiro rolara de costas e fixava-me com um olhar espantado; com as duas mãos agarradas à lança. Era uma vara de zagaia que tinha sido atirada ou espetada através da janela e o atingira no flanco, logo abaixo das costelas; o ferro sumira-se depois de abrir uma horrorosa ferida; os meus sapatos estavam ensopados; debaixo do leme havia um charco de sangue imóvel, com uma cintilação vermelho-escura, e os seus olhos tinham um estranho fulgor. O tiroteio recomeçou. 57 Ele olhava-me numa aflição e agarrava na lança como num objecto precioso, talvez com receio de que eu lha arrancasse. Tive de fazer um esforço para desviar a vista do olhar dele e atender ao leme. Com uma das mãos procurei o cabo do apito, acima da minha cabeça, e puxei, puxei o mais depressa possível. Os gritos de cólera e guerra foram instantaneamente dominados. Do fundo da floresta chegou-nos um trémulo e prolongado queixume de pavor e desespero, como o que podemos imaginar ligado ao último voo e à última esperança na superfície da terra. No mato reinava uma grande comoção: a chuva de flechas terminara mas ainda houve algumas e muito curtas descargas finais. No silêncio que se fez, só o bater preguiçoso da roda da popa me chegava aos ouvidos. Estava eu a rodar o leme todo para estibordo, quando o peregrino de pijama cor-de-rosa apareceu suado e agitado na porta. "O administrador manda dizer...", começou em tom oficial, mas logo de seguida se interrompeu. "Santo Deus!", exclamou de olhar posto no ferido. Nós, os dois brancos, inclinámo-nos para esse ferido que nos envolvia com um olhar lustroso e inquiridor. Deu-me a impressão de que olhava para nós como se fosse fazer-nos uma pergunta numa língua incompreensível, mas morreu sem soltar um som, sem mexer um membro, sem contrair um músculo. Como resposta a um sinal que não víamos, a um murmúrio que não ouvíamos, no último instante contraiu tão fortemente o cenho que à máscara da morte negra deu uma expressão inacreditavelmente sombria, perplexa e ameaçadora. Mas o interrogativo brilho do olhar apagou-se de repente para ser apenas vítreo. "Pode ficar ao leme?", perguntei impaciente. O peregrino pareceu hesitar mas agarrei-lhe num braço e percebeu que teria de conduzir, estivesse ou não para aí virado. Falando verdade, eu sentia uma urgência mórbida em mudar de sapatos e peúgas. "Morreu", murmurou-me o sujeito, fortemente impressionado. - "Não haja dúvidas", respondi, enquanto desatava como um doido os atacadores. "E diga-se de passagem que a esta hora também o Sr. Kurtz deve estar morto..." De momento era a ideia que me dominava. Sentia-a como decepção extrema, como se descobrisse repentinamente que andara a esforçar-me por alcançar qualquer coisa desprovida de substância. Não sentiria desgosto tão grande se não tivesse feito aquela viagem só para falar com o Sr. Kurtz. Falar com... Atirei um sapato pela borda fora e concluí que era aquilo, afinal, o que mais me preocupava - falar com o Kurtz. 58 Fiz uma estranha descoberta: imaginara-o sempre a falar em vez de actuar. Não dizia a mim próprio: - Nunca hei-de chegar a vê-lo ou nunca hei-de apertar-lhe a mão, dizia: nunca hei-de ouvi-lo. O homem apresentava-se como uma voz. Claro está que o meu espírito também o dotava de acção. Pois não me tinham contado, nos vários tons do ciúme e da admiração, que sozinho ele apanhara, trocara, extorquira com aldrabices ou roubo mais marfim do que os outros todos juntos? A questão era essa. A questão estava em ele ser um homem de qualidade, e entre todos os seus dotes predominar um, ligado ao sentido de efectiva presença, que era o talento de falar, eram as suas palavras - o perturbante dote da expressão, o estonteante, o iluminante, mais exaltado e também mais miserável, a palpitante corrente de luz ou o ilusório fluxo extraído ao coração de uma indevassável treva. O outro sapato voou em direcção ao diabólico deus do rio. E eu pensava: - "Valha-me Júpiter, que isto acabou-se. Chegámos tarde e ele foi-se - o talento foi-se por artes de uma zagaia, uma flecha ou uma lança. Está visto que nunca mais ouvirei o sujeito falar" -, e o meu desgosto continha uma surpreendente extravagância emocional como a que eu já encontrara nos uivos desgostosos dos selvagens metidos no seu mato. Eu não sentiria desolação mais solitária se me despojassem de uma fé, ou nesta vida eu falhasse o destino... Tu aí, quem quer que sejas, porque dás esses suspiros? É absurdo? Seja absurdo. Santo Deus! A um homem não será nunca permitido... Passem-me o tabaco, vocês... Houve uma pausa de profunda tranquilidade, depois o riscar de um fósforo, e o magro rosto de Marlow surgiu gasto, escaveirado, com rugas verticais e pálpebras baixas, um ar de concentrada atenção; e enquanto chupava vigorosamente o cachimbo parecia recuar ou avançar na noite, ao sabor da ritmada palpitação da pequena chama. O fósforo apagou-se. - Absurdo! - exclamou. - É o pior que nos sucede quando contamos qualquer coisa... A todos, que aí estais, vos estou a ver agarrados a dois bons esteios, como uma barcaça de duas âncoras: o talho ao dobrar de uma esquina, um polícia na outra, excelente apetite e temperatura normal - normal, oiçam lá bem - do princípio ao fim do ano. E dizem-me vocês absurdo! Raios partam o - absurdo! Absurdo! Meus queridos meninos! O que podem vocês esperar de um homem que acaba de atirar pela borda fora um par de sapatos novos? Só por nervosismo e mais nada? 59 Quando penso nisso, admiro-me de não ter chorado. Em geral, orgulho-me de ser forte. Mas sentia-me ferido à ideia de ter deixado escapar o inestimável privilégio de ouvir o talentoso Kurtz. No que me enganava, aliás. O privilégio esperava-me. Oh, sim, cheguei a ouvi-lo até de mais. Mas também tinha as minhas razões. Uma voz. Era pouco mais do que uma voz. E ouvi-o - a ele - a éla - essa voz - outras vozes - todos eram pouco mais do que vozes e a própria memória desses tempos pairava à minha volta impalpável como a esmorecida vibração de um qualquer interminável falatório estúpido, atroz, sórdido, selvagem ou simplesmente medíocre e destituído do menor sentido. Vozes, vozes - até mesmo a rapariga - agora... Fez um prolongado silêncio. - Com uma mentira enterrei-lhe o fantasma dos talentos recomeçou bruscamente. - O quê! Rapariga? Falei numa rapariga? Oh, não tem nada a ver com isto - mesmo nada. Elas - quero dizer as mulheres - estão fora disto - não devem ter nada com isto. Devemos ajudá-las a manter-se no belo mundo que Lhes é próprio, para o nosso não ficar pior. Sim, não devem ter nada a ver com isto. Deviam ouvir o desenterrado corpo do Sr. Kurtz dizer a minha prometida. Ficariam logo a perceber que ela não tem nada a ver com isto. E a altíssima testa do Sr. Kurtz! Diz-se que às vezes o cabelo continua a crescer nos mortos, mas aquele exemplar - ah! - era impressionantemente calvo. A selva passara-Lhe a mão pela cabeça e, vejam lá vocês, fez dela uma bola - uma bola de marfim; tinha-lhe feito festas e zás - secara-a; tinha-o agarrado, amado, abraçado, tinha-se metido nas suas veias, tinha-lhe consumido a carne e unido a sua alma à dele através de inconcebíveis cerimónias de uma diabólica iniciação. Transformara-se num mimado e adulado favorito. Marfim? Com certeza. Aos montes, às carradas. A velha barraca de lama estava como um ovo. Éramos obrigados a pensar que em toda a região não ficara um só dente por cima ou debaixo do solo. "Na maior parte fósseis", frisara o administrador com ar de desprezo. Mas aquilo era tão fóssil como eu; chamam fóssil a tudo o que é desenterrado. Parece que os negros às vezes enterram dentes de elefante - mas dir-se-ia que os tinham enterrado suficientemente fundo para evitar ao talento do Sr. Kurtz aquele fadário: Atulhámos o vapor e ainda tivemos que amontoá-lo no convés. Tanto quanto lhe foi dado vê-lo, pôde vê-lo e gozá-lo, porque o sentido de fortuna persistiu nele até ao fim. Ouvíamo-lo dizer: - "O meu marfim." 60 Sim, sim, ouvi. "A minha prometida, o meu marfim, o meu posto, o meu rio, o meu..." tudo lhe pertencia. Eu ficava de respiração cortada, à espera que a selva desse uma gargalhada prodigiosa capaz de abalar as estrelas tão sossegadas nos seus lugares. Tudo Lhe pertencia - mas não passava de um pormenor. A questão era saber a quem ele pertencia, quantos poderes da treva o reclamavam como seu. Reflexão esta que nos deixava todos arrepiados. Era impossível - nem sequer bom tentar imaginá-lo. Ocupara um elevado lugar entre os demónios daquela terra - no sentido literal. Mas vocês não podem compreendê-lo. Acham que podem? - com um terreno sólido debaixo dos pés, rodeados por vizinhos amáveis que estão dispostos a aplaudir-vos ou a cair-vos em cima, a andarem comodamente do talho até à Polícia no terror sagrado do escândalo, da autoridade e dos manicómios - como podem vocês imaginar que especial região de infância do mundo era aquela, e até que ponto os pés à solta de um homem podem levá-lo na via da solidão - solidão absoluta, sem polícias - na via do silêncio - silêncio absoluto, onde nenhuma preventiva voz de vizinho amável nos faz eco da opinião pública? Pequenas coisas que marcam as grandes diferenças. Quando desaparecem, obrigam-nos a cair fundo na nossa própria e inata virtude, na nossa capacidade de ser fiéis. Claro está que uma pessoa pode ser tão louca que se arrisque a ser extraviada - e mesmo tão estúpida que não veja como é dominada pelas forças da treva. Admito que nunca tenha havido um doido capaz de vender a alma ao diabo: ou o doido não é bastante doido, ou o diabo bastante diabo - qual das coisas não sei. Ou pode uma pessoa andar tão ofuscada de exaltação que fica surda e cega ao que não forem suspiros e vozes celestiais. Começa a terra a não ser mais do que um lugar de passagem - e se isto é prejuízo ou lucro, não pretendo dizê-lo. Com a maior parte das pessoas não é uma coisa nem outra. Para nós a terra é um lugar onde se vive, onde há que suportar visões, ruídos, odores também, valha-me Júpiter! - respirar carnes podres de hipopótamo sem ficarmos contaminados. E agora - não sei se vêem - é que entra em jogo a força pessoal, a fé na nossa habilidade para abrir disfarçadamente covas onde se enterram coisas - a dedicação, não digo a nós próprios mas a uma tarefa árdua e obscura. O que é bastante difícil. Note-se que não tento desculpar, ou mesmo explicar - apenas tento prestar contas a mim próprio por causa - por causa - do Sr. Kurtz - por causa da sombra do Sr. Kurtz. 61 Este fantasma iniciado e aparecido nos confins do Sei Lá Onde honrou-me com surpreendentes confidências antes de se evaporar para sempre. Isto porque podia falar comigo em inglês. O Kurtz original fizera uma parte da sua educação na Inglaterra, e como ele próprio teve a bondade de me dizer - simpatizava com aquilo que devia simpatizar. Nascera de mãe meio inglesa e pai meio francês. Toda a Europa contribuíra para fazer o Kurtz; e desde logo eu soube com muitos pormenores que a Sociedade Internacional para a Supressão dos Costumes Selvagens o encarregara de fazer um relatório para sua orientação futura. E ele escrevera-o. Vi-o. Li-o. Era eloquente, vibrava de eloquência mas parece-me que excessivamente sublime. Dezassete páginas de letra apertada, que teve tempo de encher! Mas talvez o tenha feito antes de os seus nervos desafinarem digamos - e ter-lhe dado para presidir a certas danças da meia-noite que terminavam com indescritíveis ritos e Lhe eram - tanto quanto a minha relutância apurou do que várias vezes ouvi contar - dedicadas - compreendem? - a ele, Sr. Kurtz. Mas era um bom naco de prosa. Embora à luz de posteriores conhecimentos o parágrafo inicial me pareça agora bem significativo. Começava com o argumento de que nós, brancos, tão desenvolvidos como estávamos, por certo parecíamos [aos selvagens] fazer parte das criaturas sobrenaturais - e nos aproximávamos deles com um poder quase divino", etc., etc. Pelo simples exercício da nossa vontade, podíamos exercer esse quase ilimitado poder em nome do bem, etc., etc. A partir daqui caía em plena exaltação e conseguiu arrastar-me com ele. Perorava magnificamente embora seja difícil reproduzi-lo, como devem calcular. Deu-me a impressão de uma augusta Benevolência a dominar uma Imensidade exótica. Fez-me vibrar de entusiasmo. Era o ilimitado poder da eloquência - das palavras - de nobres e incendiadas palavras. Não dava sugestões de ordem prática que interrompessem a corrente mágica das frases, a não ser que uma nota de rodapé na última página, evidentemente rabiscada muito mais tarde e com pulso pouco firme, pudesse considerar-se exposição de um método. Simplicíssima, como era, e no final de um comovente apelo a toda a espécie de sentimentos altruístas ofuscava-nos, luminosa e terrífica, como um raio num céu sem nuvens: - "Exterminai todas as bestas!" Curioso é reparar que aparentemente se esquecia do notável post-scriptum; pois mais tarde, e já senhor de si, várias vezes insistiu comigo para eu olhar pelo seu panfleto, 62 (assim Lhe chamava), como se estivesse certo da salutar influência que iria ter na sua carreira. Tirei informações completas sobre estas coisas e também me vi obrigado, pela forma como tudo aquilo correu, a cuidar da sua memória. Fiz o bastante para ter agora irrecusável direito de o votar, se quisesse, ao repouso eterno do caixote do lixo do progresso, entre dejectos de toda a espécie e os gatos mortos - em sentido figurado - da civilização. Mas não fui capaz, estão a perceber? Ele não deve ser esquecido. Tenha sido o que quiserem, mas vulgar é que não. Possuía o poder de seduzir ou amedrontar almas simplórias que em sua honra bailavam das mais enfeitiçadas danças; também podia encher as acanhadas almas dos peregrinos com amargas desconfianças: amigo dedicado tinha pelo menos um, e neste mundo conquistara uma alma que não era simplória, não senhor, nem maculada pelo egoísmo. Não; não posso esquecê-lo, embora não esteja em condições de afirmar que em rigor ele tenha merecido a vida daquele homem que perdemos para o alcançar. Senti a perda do meu falecido timoneiro - comecei a senti-la ainda o seu corpo jazia na casa do leme. Talvez vos pareça razoavelmente estranho este pesar por um selvagem que só era mais um grão de areia no Sara dos negros. Pois sim, mas reparem que tinha servido para qualquer coisa, tinha governado o barco; durante meses tive-o atrás de mim - uma ajuda, um instrumento. Era uma espécie de associação. Governava o leme por mim - eu olhava por ele, irritava-me com as suas deficiências, e assim criámos um subtil pacto que só entendi quando repentinamente se desfez. Ainda tenho gravado na memória o olhar íntimo e profundo que me deitou ao cair ferido -, como que a reivindicar o afastado parentesco que se afirmava num supremo instante. Pobre louco! Tivesse ao menos deixado aquela janela em paz! Mas não as cortava, lá isso... Tal como o Kurtz - era a árvore sacudida pelo vento. Mal calcei um par de pantufas secas tirei-o dali para fora, depois de lhe arrancar a seta do flanco, operação que executei de olhos bem fechados, devo confessar. Os calcanhares saltaram-Lhe por cima da soleira da porta; ia de ombros descarregados no meu peito; eu puxava-o às arrecuas, num desespero. Oh! Mas era pesado, pesado; suponho que o mais pesado homem deste mundo. Deitei-o pela borda fora, sem cerimónia nenhuma. A corrente agarrou-o como se fosse um monte de capim e vi o corpo girar duas vezes sobre si próprio, antes de ser engolido para sempre. Todos os peregrinos e o administrador se tinham reunido debaixo da coberta do convés, 63 ao pé da casa do leme, palravam entre si como um bando de pegas excitadas e murmuravam, escandalizados pelo meu desembaraço cruel. Não posso entender o interesse que sentiam em conservar aquele corpo. Para o embalsamar, quem sabe. Mas também ouvi outro murmúrio no convés de baixo, e esse bastante sinistro. Aparentemente com mais razão, os meus amigos lenhadores escandalizavam-se - embora eu pense que uma tal razão, em si, seja inadmissível. Claro que sim! Ninguém me tirava da cabeça que o meu timoneiro, a ser comido, só pelos peixes. Enquanto vivo fora um timoneiro de segunda mas, depois de morto, transformara-se em tentação de primeira e em motivo, talvez, de alarmantes incidentes. Além do mais, eu estava ansioso por comandar o leme, visto o homem do pijama cor-de-rosa se ter revelado uma grande nulidade na tarefa. E foi o que fiz, mal se consumou o funeral sumário. Íamos a meio-vapor e mesmo ao meio da corrente, eu atento àquilo que se conversava à minha volta. Já tinham desistido do Kurtz, já tinham desistido do posto; o Kurtz morrera e o posto devia ter ardido - etc. - etc. O peregrino ruivo mostrara-se eufórico só de imaginar que o pobre Kurtz estava devidamente vingado. "Digam lá se não fizemos uma gloriosa matança ali no mato! Hem, não vos parece? Digam lá!" Pode afirmar-se que dançava, o velhacote daquele sanguinário! Ele, que ao ver o homem ferido, quase desmaiara! Não me pude conter: - "O que você fez foi uma senhora fumarada, isso é que fez." Pelo modo como o cimo dos ramos se agitava e voava, eu tinha visto que os tiros saíam quase todos muito altos. Uma pessoa só acerta se faz pontaria e dispara de coronha apoiada no ombro; mas aqueles sujeitos eram todos de fogo à anca e olhos fechados. A retirada, insistia eu - e com razão - só foi devida aos estridentes silvos do apito do vapor. Por causa deles é que se tinham esquecido do Kurtz e começado a uivar-me os seus indignados protestos. O administrador estava de pé, junto da roda do leme e a falar confidencialmente sobre a necessidade de nos afastarmos um bom troço, rio abaixo, antes de cair a noite, quando vi a silhueta de uma construção a certa distância, num ponto desbastado da margem. "O que é aquilo?", perguntei. Bateu palmas, maravilhado. - "O posto!", gritou. Guinei logo para lá, mantendo a máquina a meio-vapor. Pelo binóculo eu via a encosta de uma colina onde as árvores rareavam e bem limpa de todo o mato rasteiro. 64 Meio enterrado no capim alto, surgia um comprido edifício em ruínas; os buracos do telhado cónico eram verdadeiras brechas negras; como fundo tinha selva e arvoredos. Não existia vedação nem sebe de nenhuma espécie, mas era evidente que tinha havido ali qualquer coisa, porque ao pé da casa ficara meia dúzia de delgados postes em linha, grosseirarriente aplainados e de pontas enfeitadas com bolas esculpidas. O travejamento desaparecera, ou o que quer que fosse que os ligara. E a floresta, claro que envolvia tudo. A margem estava limpa, e à beira da água vi um branco debaixo de um chapéu parecido com uma roda de carro, com o braço todo esticado a fazer sinais persistentes. Examinada de alto a baixo, a orla da floresta, quase tive a certeza de ver movimentos - formas humanas a mexerem-se num ou noutro ponto. Avancei com prudência, de máquinas paradas e deixando o vapor descair. O homem da praia começou aos gritos, a incitar-nos a atracar. "Fomos alvejados", berrou o administrador. - "Bem sei - bem sei. Mas não há novidade", gritou o outro com o maior entusiasmo possível. "Venham. Não há novidade. Estou muito satisfeito!" De aspecto lembrava uma coisa que eu já tinha visto qualquer coisa estranha que eu já vira em qualquer parte. E enquanto ia fazendo as manobras de encosto eu perguntava a mim próprio: - "Este tipo com quem se parece?" De repente descobri. Lembrava-me um arlequim. O seu fato fora talhado num tecido vulgar, talvez pano cru, mas estava todo coberrto de garridos remendos azuis, vermelhos e amarelos - remendos nas costas, remendos à frente, remendos nos cotovelos, nos joeLhos; à volta da blusa trazia um cinto colorido e no fundo das calças dobras escarlates; a luz do Sol fazia-o alegre ao máximo e ao mesmo tempo maravilhosamente asseado, porque deixava perceber a cuidadosa aplicação daqueles remendos cosidos. Um rosto imberbe, infantil e loiríssimo, por assim dizer sem feições, nariz a pelar, pequenos olhos azuis, sorrisos e carrancas a alternarem-se na fisionomia aberta como sol e sombra em prados varridos pelo vento. "Tome cuidado, capitão!", gritou; "a noite passada encalhou aqui um tronco." "O quê! Mais um tronco!" Confesso que praguejei vergonhosamente. Como remate daquele passeio encantado, pouco faltou para fazer um rombo no meu aleijadinho! Na margem, o arlequim virava para mim a batata pelada. "É inglês?", perguntou todo sorrisos. - "E você?", gritei da roda do leme. Desapareceram-lhe os sorrisos e sacudiu a cabeça como se receasse desapontar-me. 65 Logo a seguir resplandeceu. - "Não faça caso", gritou a encorajar - "me.Chegamos a tempo?", perguntei. - "Ele está lá em cima", respondeu com um movimento de cabeça a indicar o alto da colina, e depois ficou subitamente triste. Tinha o rosto como um céu de Outono, agora encoberto, logo a seguir todo limpo. Quando o administrador e uma escolta de peregrinos armados até aos dentes se dirigiram à casa, o sujeito subiu a bordo. "Olhe que não gosto nada disto. Os indígenas andam por aí no mato", disse eu. Garantiu-me, convicto, que não havia novidade. - "É gente inofensiva", acrescentou; "e saiba que me sinto muito satisfeito por terem aparecido. Tenho perdido o tempo todo a mantê-los afastados." - "Mas disse que não havia novidade!", exclamei. - "Oh! Não o fazem por mal", respondeu; e como o olhasse espantado, corrigiu: "Não é bem assim." E depois, com vivacidade: "Palavra de honra que a sua casa do leme anda a precisar de limpeza!" Logo a seguir aconselhou-me a manter a pressão da caldeira suficientemente alta para o apito funcionar em caso de perigo. "Uma boa apitadela vale mais do que todas as vossas espingardas juntas. É gente inofensiva", repetiu. Tagarelava tanto, que eu quase ficava afundado nas suas palavras. Parecia querer desforrar-se dos períodos de silêncio e deu-me a entender, com um sorriso que o caso era exactamente esse. - "Não costuma falar com o Sr. Kurtz?", perguntei. - "Com um homem daqueles não se conversa a gente escuta-o!", exclamou com severa exaltação. "Mas agora..." Agitou o braço e caiu, enquanto o diabo esfrega um olho, nos abismos do abatimento. Logo recomposto, com um salto agarrou as minhas duas mãos, apertou-as demoradamente e gaguejou: - "Irmão marinheiro... honra... prazer... encantado... apresento-me... russo... filho de um arcipreste... Governo de Tambov... O quê! Tabaco! Tabaco inglês! Ah! Que é mesmo de irmão! Se fumo? Há marinheiro que não fume?" O cachimbo acalmou-o e aos poucos descobri que tinha fugido do colégio, embarcara num navio russo; voltara a fugir; durante algum tempo servira em navios ingleses; e agora reconciliara-se com o arcipreste. Insistia muito nisto. "Quando uma pessoa é nova tem de ver coisas, ganhar experiência, ideias; alargar horizontes." - "Aqui!", atalhei. - "Nunca se sabe! Encontrei aqui o Sr. Kurtz", declarou com uma voz infantilmente solene e melindrada. Por isso calei-me. Parece que tinha convencido uma casa comercial holandesa, da costa, a entregar-lhe provisões, mercadorias, e de ânimo leve partira para o interior sem ligar ao facto mais do que uma criança liga àquilo que pode acontecer-lhe. 66 Durante dois anos vagueara sozinho pelo rio, isolado de tudo e todos. "Não sou tão novo como pareço. Já tenho vinte e cinco anos. Ao princípio, o velho Van Shuyten quis mandar-me para o diabo", contou muito divertido, "mas não o larguei e falei tanto, tanto, que acabou por ter medo que o seu cão favorito adoecesse e lá me entregou algumas bugigangas e armas, dizendo-me que tinha esperança em não mais voltar a pôr-me a vista em cima. Bom velhote, esse holandês Van Shuyten! Como há um ano lhe mandei uma pequena porção de marfim, quando eu voltar não vai poder chamar-me ladrão. Espero que a tenha recebido. Do resto nem quero saber. Deixei alguma lenha guardada para vocês. Era a minha antiga casa. Viram-na?" Dei-lhe o livro de Towson. Fez menção de me beijar, mas dominou-se. "Era o único livro que me restava, e julgava-o perdido", explicou a olhar para ele extasiado. "Como sabe, a um homem que anda sozinho acontecem muitos percalços. Umas vezes as canoas viram-se - outras vezes uma pessoa tem de pôr-se depressa ao largo se esta gente se zanga." Folheou-o. "Fez-Lhe anotações em russo?", perguntei. Sim, tinha feito. "Pensei que estivessem escritas em cifra", disse eu. Riu-se e depois ficou sério. - "Foi uma trabalheira manter esta gente sossegada." - "Quiseram matá-lo?", perguntei. - "Oh, não!", exclamou, fazendo o esforço de ficar por aí. - "Porque nos atacaram?", quis eu saber. Hesitou e depois, timidamente: "Não querem que ele se vá embora." - "Não querem?", perguntei curioso. Disse que sim com um abanar de cabeça, cheio de sabedoria e mistério. "É o que Lhe digo", exclamou, fixando-me com os olhinhos azuis muito redondos. 3 Olhei para ele, confundido de espanto. Tinha-o à frente, furta-cores como se tivesse fugido a um grupo de saltimbancos entusiástico e fabuloso. A sua verdadeira existência era improvável, inexplicável, de nos deixar perplexos. Era um problema insolúvel. Não concebíamos que pudesse ter existido, que pudesse ter chegado tão longe, que pudesse ter-se arranjado para ficar ali - por que não tinha desaparecido instantaneamente. "Fui um pouco mais para a frente", disse ele, "ainda mais para a frente - ao ponto de já não saber como voltar para trás. Tanto fazia. Eu tinha tempo. Sei desenvencilhar-me. Leve depressa o Sr. Kurtz - depressa - é o que lhe digo." A sedução da mocidade envolvia-lhe os farrapos coloridos, a miséria a solidão, a aridez intrínseca da sua estéril vadiagem. Durante meses - anos - tivera a vida por um fio; e ali se encontrava ele cheio de coragem, espantosamente vivo e ao que parecia indestrutível, só por virtude da sua tenra idade e de irreflectida audácia. Eu sentia-me seduzido até qualquer coisa próxima da admiração - como que uma inveja. Ele fora impelido por um encanto, protegido por um encanto. Do mato talvez não quisesse mais do que um espaço para respirar e meter-se por ele adentro. Precisava de existir, caminhar para diante e com o maior perigo possível, o máximo de privações. Se alguma vez o espírito de aventura totalmente puro, desinteressado e quimérico possuiu um ser humano, fê-lo com este remendado jovem. Quase invejei a posse dessa clara e modesta chama. Parecia que lhe tinha consumido todo o pensamento próprio ao ponto de esquecermos, enquanto falava, que ele - aquele homem ali, à nossa frente - tinha passado realmente por aquilo. Ainda assim lhe não invejei a dedicação a Kurtz. Essa não era reflectida. Fora ter com ele e ele aceitara-a com uma espécie de fatalismo ardente. Devo dizer que chegou, sob todos os aspectos, a parecer-me a coisa mais perigosa que lhe tinha sucedido. Inevitavelmente os dois se tinham aproximado até roçarem os costados, como dois navios em plena calmaria. 68 Julgo que Kurtz precisava de auditório, pois numa ocasião em que acamparam na floresta falaram toda a noite ou falou Kurtz, mais provavelmente. "Falámos de tudo", disse, muito encantado ao recordá-lo. "Até me esqueci de uma coisa que se chama dormir. A noite não me pareceu ter mais de uma hora. De tudo! De tudo... De amor também." - "Ah! Falou-Lhe de amor", disse eu muito divertido. - "Não é o que está a pensar!", exclamou quase apaixonado. "De uma forma geral. Fez-me ver coisas coisas." Levantou os braços. Nessa altura estávamos no convés e o capataz dos meus lenhadores, estendido perto sem fazer nada, pousou nele o pesado e faiscante olhar. Não sei porquê olhei à volta e garanto que antes daquilo nunca, nunca a terra, o rio, a selva, a própria cúpula do céu incendiado me pareceram tão sombrios e desesperados, tão impenetráveis ao pensamento humano, tão implacáveis para com a fraqueza humana. "Como é óbvio, daí para cá tem estado sempre com ele...", disse eu. elo contrário. Ao que parece, era uma convivência interrompida por motivos vários. Cheio de orgulho, informou-me que tinha conseguido tratar de Kurtz durante duas doenças (referia-se a isto naquele tom que se utiliza para falar de um facto arriscado), "as Kurtz tinha o hábito de vaguear sozinho e longe, nas profundezas da floresta. Muitas vezes, quando eu vinha a este posto, acontecia esperar dias e dias até ele regressar", explicou. " que valia a pena esperar - às vezes!"" ele o que fazia? Explorações... ou quê?", perguntei. - Claro que explorava. Tinha descoberto imensas aldeias e também um lago - não sabia exactamente em que direcção e era perigoso fazer perguntas de mais - embora a maior parte das expedições fossem feitas por causa do marfim." - "Mas nesse tempo ele não devia ter mercadorias para trocar!", objectei. - "Ainda agora lhe sobra uma grande quantidade de cartuchos", respondeu a olhar para outro lado. - "Falando claro, devastava a região", disse eu. Concordou com um aceno de cabeça. - "Tinha ajuda, é claro!" Murmurou qualquer coisa sobre as aldeias à volta do lago. - "O Kurtz levava a tribo com ele, não levava?", sugeri. Embaraçou-se um pouco. - "Adoravam-no", respondeu. Foi tão extraordinário o tom das suas palavras, que lhe deitei um investigador olhar. Era curioso ver-lhe aquele misto de entusiasmo e relutância quando falava do Kurtz. Esse homem preenchia-lhe a vida. Ocupava-lhe os pensamentos, comandava-lhe as emoções. "Que outra coisa esperava?", explodiu; "bem vê que lhes surgia com o trovão e o raio -, 69 nunca tinham visto semelhante coisa - e de tal forma terrível! Podia ser terrível ao máximo. "Não deve julgar o Sr. Kurtz como um homem banal. Não, não, não! Olhe - só para Lhe dar uma ideia - nada me custa contar-lhe que um dia também a mim me quis dar um tiro - mas não o condeno." "Um tiro, a si?", exclamei. "Porquê?" - "Bem, eu possuía uma pequena porção de marfim que o soba da aldeia mais próxima da minha casa me tinha dado. Eu costumava caçar para eles, não sei se percebe. Pois olhe, quis o marfim e acabou-se. Declarou que me dava um tiro se eu não entregasse o marfim e não me pusesse a mexer daqui; sim, porque ele podia fazê-lo, metera-se-lhe na cabeça fazê-lo e nada deste mundo o impediria de matar quem muito bem ele quisesse. E era verdade. Dei-lhe o marfim. Eu queria lá saber! Mas não me pus a mexer. Não, não. Não podia deixá-lo. É claro que durante algum tempo foi preciso cautela. Até voltarmos a ser amigos. Adoeceu pela segunda vez. E depois tive de sair do seu caminho; mas não me importei. A maior parte do tempo ele vivia nas aldeias do lago. Quando veio para baixo, para a beira-rio, umas vezes recebia-me bem, mas outras mais valia eu ter cautela. Era um homem que sofria imenso. Odiava isto, mas a verdade é que não podia ir-se embora. Sempre que eu tinha oportunidade pedia-lhe para tentar sair enquanto era tempo; oferecia-me para o acompanhar. Dizia que sim, mas depois ficava; ia para outra caçada ao marfim; desaparecia durante semanas; no meio desta gente esquecia-se de si próprio - esquecia-se de si próprioveja lá bem." "Então é doido!", disse eu. Fez um protesto indignado. O Sr. Kurtz não podia ser doido. Se ainda há dois dias eu o tivesse ouvido falar, não me atreveria a dizer semelhante coisa... Enquanto conversávamos, agarrei nos meus binóculos e olhei para a margem, percorri a orla da floresta nos lados da casa e atrás dela. Saber que havia gente naquele mato tão silencioso, tão calmo - tão silencioso e calmo como a arruinada casa da colina - inquietava-me. Na face da natureza não havia rasto da história espantosa que ele me sugeria mais do que contava entre desoladas exclamações, completada por encolhimentos de ombros, frases interrompidas, alusões que terminavam em suspiros profundos. O matagal continuara imóvel como uma máscara - opressiva como a porta fechada de uma prisão - a olhar-nos com o seu ar de sabedoria oculta, paciente espera, inacessível silêncio. Aquele russo explicava-me que o Sr. Kurtz só há pouco tempo descera até ao rio, trazendo com ele todos os homens da tribo do lago. 70 Estivera alguns meses ausente - a deixar que o adorassem, julgo eu - e depois surgira inesperadamente, ao que parece decidido a fazer um morticínio do outro lado ou a jusante do rio. É evidente que o seu apetite por mais marfim suplantara como direi? - aspirações menos materialistas. Mas ficou de repente pior da saúde. "Ouvi dizer que estava de cama, abandonado e vim até cá acima - entregar-me à sorte", disse o russo. "Oh! Ele está mal, tão mal!" Dirigi o binóculo para a casa. Não dava sinais de vida, só era um telhado em ruínas, uma parede comprida e barrenta a espreitar por cima do capim e três pequenos quadrados de abertura das janelas mas nem dois, sequer, do mesmo tamanho; tão perto que parecia possível tocar-lhe. A um brusco movimento das minhas mãos, um dos postes que restavam na sebe desaparecida saltou para o campo do binóculo. Lembram-se de vos dizer que algumas pretensões de ornamentação me tinham impressionado de longe, bem visíveis entre as ruínas do lugar? Poisa uma visão mais próxima, o primeiro resultado obrigou-me a sacudir a cabeça para trás, como se fosse ameaçado por um soco. Depois passei o binóculo de poste em poste, cuidadosamente, para ver como me tinha enganado. As bolas não eram ornamentais mas simbólicas; expressivas e perturbadoras, desconcertantes e sugestivas alimento para reflexão e também para os abutres, se alguns houvesse a olhar do céu cá para baixo; e também para as formigas, se industriosas o bastante para treparem ao alto do poste. Ainda teriam impressionado mais, aquelas cabeças espetadas em postes, se estivessem de rosto voltado para a casa. Só uma, a primeira que descobri, estava virada para mim. Não fiquei tão chocado como se pode pensar. O meu gesto de recuo nada mais fora do que movimento de surpresa. Eu cuidava que ia ver uma bola de madeira - imaginem lá. Voltei deliberadamente a focar a primeira - e lá estava ela, negra, seca, chupada, de olhos fechados - uma cabeça que parecia dormir no alto do poste e ao mesmo tempo sorrir de lábios contraídos, com uma fileira de dentes brancos à mostra e no meio daquele sono eterno a sorrir, sempre, ao seu perpétuo e divertido sonho. Não estou a revelar segredos comerciais. Tempos depois, o administrador veio realmente a dizer-me que os métodos do Sr. Kurtz tinham arruinado o distrito. Não tenho opinião sobre o assunto, mas desejo fazer-vos perceber que não havia vantagem nenhuma em estarem ali aquelas cabeças. 71 Só demonstravam que o Sr. Kurtz não sabia recuar quando se tratava de satisfazer os seus variados apetites, e alguma coisa Lhe fazia falta - uma pequena coisa que em vão procurávamos na sua magnífica eloquência nos momentos em que era necessária. Se ele reconhecia tal carência, não sei. Mais tarde julgo que sim - quando tudo aquilo estava quase a terminar. Mas a selva acabou por denunciá-lo e vingar-se terrivelmente dele e da invasão fantástica. Julgo que lhe segredou coisas a seu próprio respeito que ele ignorava, coisas de que não suspeitara até ao momento em que pediu conselho à grande solidão - e o segredo veio a revelar-se de fascinação irresistível. Ecoou muito fundo, porque o Sr. Kurtz estava oco... Baixei o binóculo e a cabeça que surgia tão próxima, ao ponto de parecer que podíamos falar com ela, saltou para longe, para uma inacessível distância. O admirador do Sr. Kurtz tinha ficado um tanto cabisbaixo. Com voz atabalhoada e turva começou por garantir-me que não se atrevera a deitar abaixo aqueles símbolos - passe a expressão. Não temia os indígenas; nada fariam sem o Sr. Kurtz lhes dar ordem para isso. Gozava de um extraordinário ascendente sobre eles. Tinham os acampamentos por ali à volta, e os sobas todos os dias vinham vê-lo. A rastejar... "Nada quero saber sobre as cerimónias de aproximação do Sr. Kurtz", bradei. Curioso eu ter sentido que estes pormenores me iriam ser bem mais toleráveis do que a visão das cabeças a secarem nos postes, por baixo das janelas do Sr. Kurtz. Apesar de não passarem de espectáculo bárbaro, parecia que eu estava a ser empurrado para um sítio escuro, a transbordar de subtis horrores, onde ao menos a selvajaria pura e sem mais complicações dava o real conforto de uma coisa que tinha direito a existir - sem dúvida nenhuma - à luz do Sol. O rapaz olhou-me surpreendido. Por certo ignorava que o Sr. Kurtz não me surgia, a mim, como ídolo. Esquecia-se de que eu nunca lhe tinha ouvido os esplêndidos monólogos - como é? - sobre amor, justiça, conduta do homem - sei lá o que mais. Fosse preciso rastejar à frente do Sr. Kurtz, e lá estaria ele a cumprir o rito como o mais selvagem deles todos. Eu não fazia ideia do preço que nos pedia, tinha dito ele; eram de rebeldes, aquelas cabeças. Ofendi-o ao máximo com a minha gargalhada. Rebeldes! Que mais outra classificação eu teria de ouvir? Já tinham sido inimigos, condenados, trabalhadores - e aqueles eram rebeldes. As suas cabeças rebeldes pareciam-me bem subjugadas no alto dos postes. "Não faz ideia até que ponto uma vida destas massacra um homem como Kurtz", exclamou o último discípulo de Kurtz. - "Bem! E a si?", disse eu. 72 - "Eu! Eu! Eu sou um homem vulgar. Não tenho grandes ideias. Não quero nada de ninguém. Como pode comparar-me ao...?" A emoção era demasiado forte para ele falar, e de repente ficou sem forças. "Não compreendo", gemeu. "Fiz tudo quanto podia para lhe poupar a vida, e basta. Não andei metido em nada. Não tenho nenhum talento. Há meses que se não vê aqui uma gota de remédio nem de comida para doentes. Estava vergonhosamente abandonado: Um homem como ele, com ideias daquelas. Que vergonha! Que vergonha! Há dez noites - que - não durmo..." A sua voz esvaía-se na calma do entardecer. Enquanto falávamos, as sombras esguias da floresta tinham escorregado pelo monte e chegado muito abaixo do barracão em ruínas, ultrapassando a fileira simbólica de postes. Por ali tudo escurecera, ao passo que nós estávamos ao sol e o rio, contíguo à clareira, ainda refulgia com um calmo e ofuscante esplendor que terminava acima e abaixo numa sinistra faixa muito sombria. Não se via vivalma na margem. No mato nem uma folha mexia. De repente, à esquina da casa um grupo de homens apareceu como se saísse da terra. Atravessava mergulhado em capim até à cintura, num troço compacto, e rodeava uma maca improvisada. Da paisagem solitária instantaneamente se ergueu um grito agudo que riscou o ar como uma flecha aguda, direita ao coração da terra; e como por encanto uma torrente de seres humanos - de seres humanos nus - que empunhavam zagaias, arcos e escudos, com olhares ferozes e selvagens movimentos, foi derramada na clareira pela sombria e pensativa floresta. Por instantes, o matagal tremeu e o capim ondulou, até ficar tudo parado numa atenta imobilidade. "Não diga ele agora o que lhes deve dizer, e estamos todos arrumados", lamentou-se ao meu lado o russo. O monte de homens também estacou, petrificado a meio caminho do vapor. Vi o homem da maca sentar-se, acima dos ombros que o transportavam, magríssimo e com um braço levantado. - "Esperemos que uma criatura tão bem falante, quando se trata de amor em sentido lato, descubra uma boa razão para nos poupar", declarei. Eu sentia-me amargamente ressentido com o perigo absurdo da nossa situação, como se fosse desonroso estarmos à mercê daquele fantasma atroz. Eu não ouvia nenhum som, mas via pelo binóculo o braço magricela estendido em atitude de comando, o maxílar inferior a mexer-se, os sombrios e cavados olhos daquela aparição brilharem na cabeça ossuda que abanava, 73 grotescamente sacudida. Kurtz - Kurtz - quer dizer curto em alemão - não quer? Pois bem, o nome era tão exacto como tudo o mais na sua vida - e na sua morte. Parecia medir, pelo menos, sete pés de comprido. A manta caíra e o corpo emergia, atroz e lastimável como à saída de uma mortalha. Via-se a gaiola das costelas a ofegar e os ossos do braço a fazerem gestos. Parecia uma animada imagem da morte esculpida em marfim velho e de mão estendida, numa ameaça, para aquele ajuntamento de homens moldados em bronze muito escuro e luzidio. Vi-o de boca muito aberta - tomar um aspecto extraordinariamente voraz, como se quisesse engolir todo o ar, toda a terra, todos os homens à sua frente. Chegou até mim uma voz profunda mas sumida. Por certo gritava. De repente caiu de cóstas. A maca estremeceu, quando os carregadores recomeçaram a andar, vacilantes, e quase ao mesmo tempo notei que a multidão de selvagens desaparecia sem um movimento de retirada perceptível, como se a floresta, que tinha expelido tão de repente aquelas criaturas, as reabsorvesse como um ar de prolongada aspiração. Alguns peregrinos que seguiam atrás da maca levavam-lhe as armas - duas caçadeiras, uma carabina de grande calibre e outra ligeira, de repetição - os trovões de um miserável Júpiter. Curvado para ele, o administrador murmurava qualquer coisa enquanto o acompanhava ao lado da sua cabeça. Foram deitá-lo numa das pequenas cabinas - só um quarto com espaço para a cama e um ou dois bancos de campanha, não sei se estão a ver. Tinham-lhe trazido a correspondência atrasada, e a cama cobrira-se com uma porção de sobrescritos rasgados e cartas abertas. A sua mão remexia com dificuldade em toda aquela papelada. Impressionou-me o fogo do seu olhar e a languidez serena da sua expressão. Não seria tanto o esgotamento da doença. Não parecia sofrer. Dir-se-ia uma calma e apaziguada sombra que naquele momento já tivesse a sua conta de emoções. Dobrou uma das cartas, olhou-me frontalmente e disse: "Estou contente." Alguém lhe escrevera a meu respeito. As recomendações especiais voltavam à baila. Espantou-me o volume da voz que lhe saía sem esforço, quase sem o incómodo de mexer os lábios. A voz. A voz Era grave, profunda, vibrante, e julgaríamos aquele homem incapaz de dizer um segredo. Mas como vão ouvir daqui a pouco, tinha forças que bastavam - sem dúvida fictícias - para dar cabo de nós. O administrador apareceu silenciosamente na porta; logo a seguir saí e puxei o reposteiro. Os peregrinos estavam embasbacados com o russo, nesse momento a olhar para terra. 74 Segui-lhe o olhar. À distância podiam ver-se formas humanas escuras a correrem indistintamente na orla sombria da floresta, e perto do rio duas figuras de bronze apoiadas em enormes lanças, com as cabeças fantasticamente cobertas de pele mosqueada, muito hirtas e marciais ao sol, na sua postura de estátuas. Uma selvagem e grandiosa aparição feminina começou a mover-se de um lado para o outro na margem luminosa. Passeava com um ar seguro, envolta em panos listrados e franjados a pisar a terra com soberba, a tilintar e a rebrilhar ornamentos bárbaros. Tinha a cabeça erguida e cabelos penteados em forma de elmo; tinha polainas de latão até aos joelhos, pulseiras de arame de cobre até aos cotovelos, um sinal escarlate em cada face bronzeada, inúmeros colares de contas de vidro no pescoço; coisas estranhas, amuletos, pedras de feitiço penduradas à volta do corpo, a cintilarem e a estremecerem a cada passo. Devia trazer em cima dela o valor de muitas presas de elefante. Era selvagem e soberba, com bravios e magníficos olhos; com algo de majestoso e fatal no andar decidido. E no repentino silêncio que desceu àquela terra enlutada, a selva imensa, corpo colossal de misteriosa e fecunda vida, parecia contemplá-la, pensativa, como se visse nela a imagem da sua própria alma tenebrosa e apaixonada. Veio até à frente do vapor, pôs-se imóvel e olhou para nós. A sua sombra esguia chegava à beira da água. Tinha no rosto a trágica e bravia expressão de uma dor que, embora surda, se misturava ao medo de uma qualquer e mal assumida decisão. Ficou a observar-nos sem um movimento e com ar, como a selva, de quem congeminava impenetráveis decisões. Decorreu todo um minuto e só então se resolveu a dar um passo em frente. Houve um leve tilintar, um reflexo de metal amarelo, uma ondulação de panos franjados, e parou como se a coragem lhe faltasse. O russo resmungou ao meu lado. Atrás de mim os peregrinos murmuraram. Fixava-nos a todos como se tivesse a vida presa à inflexível tensão do seu olhar. De repente abriu os braços nus e levantou-os, rígidos, acima da cabeça, como se tivesse um incontrolável desejo de tocar o céu, e ao mesmo tempo a sua sombra ágil se levantou da terra e rastejou pelo rio, envolvendo o vapor num escuro abraço. Um formidável silêncio ficou suspenso por sobre o cenário. 75 Voltou-se lentamente, andou ao longo da margem e meteu-se à esquerda pelo arvoredo. Houve uma isolada cintilação do seu olhar na penumbra do matagal, antes de desaparecer. "Se lhe desse para subir a bordo, talvez eu não resistisse a dar-lhe um tiro", disse nervosamente o homem dos remendos. "Nos últimos quinze dias perdi o tempo a arriscar a vida para a manter afastada da casa. Uma vez entrou e que lamentável cena fez por causa destes farrapos miseráveis que apanhei no armazém para remendar o meu fato! Eu andava numa verdadeira indecência. Julgo que a razão era essa, pois falou com o Kurtz durante uma hora, muito furiosa, e de vez em quando apontava para mim. Não compreendo o dialecto desta tribo. Por sorte minha, o Kurtz estava nesse dia doente de mais para lhe ligar, senão teria arranjado um sarilho. Não entendo... Não - é de mais para mim. Olhe, agora está tudo acabado..." Nesse momento ouvi a profunda voz de Kurtz atrás da cortina: - "Salvar-me! Salvar o marfim, quer você dizer. Não me venha com histórias... Salvar-me! O quê! Eu é que o salvei." "Aparece-me a estragar os planos. Doente! Doente! Não estou tão doente como você gostaria que eu estivesse. Mas não faz mal. Hei-de pôr em prática as minhas ideias - e regressar. Hei-de mostrar-lhe o que é possível fazer. O senhor, mais as suas concepções tacanhas - quer atravessar-se no meu caminho. Mas hei-de voltar. Eu..." O administrador saiu. Deu-me a honra de agarrar num dos meus braços e levar-me com ele. "Está muito, muito em baixo." Julgou necessário suspirar, embora se esquecesse de parecer convincentemente penalizado. "Temos feito tudo o que é possível - não temos? Mas não há que disfarçar as realidades: o Sr. Kurtz tem sido mais prejudicial do que benéfico à Companhia. Não percebeu que a oportunidade de uma acção mais vigorosa ainda não chegou. Cautela, cautela - é o meu princípio. Ainda não podemos deixar de ter cautela. Este distrito fica-nos vedado por uns tempos. Lamentável! No seu conjunto, o comércio vai sofrer. Não nego que a quantidade de marfim é grande embora fóssil na sua maior parte. Devemos salvá-la a todo o custo - mas veja-me que situação precária e porquê? Porque o método é insensato." - "Chama-lhe método insensato?", disse eu a olhar para terra. - "Sem dúvida!", exclamou cheio de calor. "Não acha?..." - "Uma total ausência de métodos", murmurei momentos depois. - "Isso mesmo", exultou ele. "Eu já o tinha previsto. Revela uma completa falta de critério. É meu dever fazê-lo notar a quem de direito." 76 - "Oh sim!", disse eu, "aquele sujeito fabricante de tijolos como se chama?" - "pode redigir-lhe um relatório legível." Durante instantes mostrou-se atrapalhado. Parece-me que eu nunca tinha respirado uma atmosfera tão má como aquela, e virei-me mentalmente para Kurtz, a fim de me confortar - digo bem, confortar. "Apesar de tudo, acho que o Sr. Kurtz é um homem notável", disse eu, enfático. Estremeceu, envolveu-me num olhar gelado e respondeu, muito calmo: - "Era", voltando-me as costas. A minha hora de boas-graças terminara; acabava de misturar-me a Kurtz como partidário de métodos cujo tempo ainda não tinha chegado: eu era insensato! Ah! Mas já não me parecia mau eu próprio escolher os meus pesadelos. Na realidade eu voltara-me para a selva e não para o Sr. Kurtz, que até considerava, desde já, bem enterrado. E por um momento eu próprio me julguei também metido numa vasta sepultura cheia de indizíveis segredos. Sentia um peso intolerável a oprimir-me o peito, um cheiro a terra húmida, a invisível presença de uma corrupção vitoriosa, as trevas de uma noite impenetrável... O russo bateu-me no ombro. Ouvi-o gaguejar e balbuciar qualquer coisa como "irmão marinheiro - impossível calar - conhecimento de coisas que afectariam a reputação do Sr. Kurtz." Esperei. Era evidente que não considerava o Sr. Kurtz um homem de pés para a cova; julgo que o Sr. Kurtz, para ele, era imortal. - "Bem!", acabei por dizer. "Desembuche. Até sucede que sou amigo do Kurtz - num certo sentido." Com muitos rodeios fez-me notar que teria guardado aquele caso só para ele, sem olhar a consequência se não fôssemos todos "da mesma profissão". Suspeitava que existia contra ele uma activa má-vontade da parte dos brancos que..." - "Tem razão", disse eu, a lembrar-me da conversa que uma vez ouvira por acaso. "O administrador pensa que você devia ser enforcado." Ao princípio, a preocupação que mostrou com a notícia divertiu-me. - "O melhor é pôr-me a andar pela calada", respondeu com ar muito sério. "Agora já não posso fazer mais nada pelo Kurtz, e pouco tempo eles precisam para arranjar um pretexto. O que pode impedi-los? O posto militar fica a cem milhas!" - "Palavra que talvez seja melhor ir-se embora", disse eu, "caso tenha amigos entre os selvagens da região." - "Tenho imensos", declarou. "São gente inofensiva e não quero nada, como sabe." Pôs-se a morder o lábio, e depois: "Não desejo nenhum mal a estes brancos, mas também penso, claro está, na reputação do Sr. Kurtz. Só por o senhor ser um irmão marinheiro é que..." 77 - "Muito bem", atalhei momentos depois. "Comigo, a reputação do Sr. Kurtz está garantida." Mal eu sabia até que ponto isso era verdade! Baixando a voz informou-me que o ataque ao vapor fora ordenado pelo Kurtz. "Várias vezes se horrorizou com a ideia de o tirarem daqui. Para mais... Mas olhe, nada percebo desses assuntos. Sou um homem banal. Ele julgava que aquilo iria afugentá-lo, a si - que o faria retirar-se ao acreditá-lo morto. Eu não podia impedi-lo. Oh, o mês passado vivi maus momentos. - "Muito bem, disse eu, mas agora ele vai passando melhor." - "Si-i-im", murmurou, ao que parecia pouco convicto. "Obrigado", acrescentei. "Vou ficar de olhos abertos." - "Mas caluda - hem?", implorou com ansiedade. "Seria péssimo para a reputação dele se alguém, aqui..." Prometi-Lhe uma discrição total, com a maior seriedade. "Não muito longe tenho à minha espera uma canoa com três pretos. Vou-me embora. Pode dar-me alguns cartuchos de Martini-Henry?" Claro que podia e dei-lhos com a discrição que se impunha. Piscou-me um olho ao servir-se de um punhado de tabaco. "Entre marinheiros - como sabe - bom tabaco inglês!" À porta da casa do leme voltou-se. "Por acaso não tem um par de sapatos que possa ceder-me?" Levantou uma perna. "Veja só." Trazia as solas amarradas com fios aos pés descalços, como se fossem sandálias. Lá desencantei um par usado e olhou para ele com muita admiração, antes de o encaixar debaixo do braço esquerdo. Um dos seus bolsos (vermelho-vivo) estava inchado de cartuchos e no outro (azul-escuro) espreitava o Questionário etc., etc., de Towson. Parecia acreditar que estava excelentemente equipado para o seu novo encontro com a selva. "Ah! Nunca, nunca encontrarei outro homem assim. Havia de ouvi-lo recitar poesia - para mais versos dele, segundo me disse. Versos!" À recordação de tais delícias revirava os olhos. "Oh! Como alargou os horizontes da minha inteligência!" - "Até mais ver!, disse eu." Deu-me um aperto de mão e desapareceu na noite. Às vezes pergunto a mim mesmo se realmente o vi - se é possível que eu tenha encontrado um fenómeno destes! Quando acordei, pouco depois da meia-noite, o seu aviso acudiu-me ao espírito, aliado a uma sensação de perigo que parecia suficientemente real na escuridão estrelada para me obrigar a levantar do catre e dar uma olhadela ali à volta. Na colina ardia uma grande fogueira que iluminava caprichosamente a boleada esquina da casa do posto. 78 Com um piquete de pretos dos nossos, armados para o efeito, um dos aspirantes estava de guarda ao marfim; mas bem no fundo da floresta um vacilante cintilar vermelho parecia que mergulhava e saía do solo entre confusas imagens de colunas na treva densa, denunciando a posição exacta do acampamento onde os adoradores do Sr. Kurtz levavam a cabo a sua preocupada vigília. O bater monótono de um grande tambor enchia o ar de percussões surdas e persistentes vibrações. Era o murmúrio contido de muitos homens que entoavam para si próprios uma qualquer fórmula mágica perante a negra e plana muralha de árvores, como o zumbido de abelhas saído de um cortiço, que actuava com o estranho efeito de um narcótico sobre os meus sentidos meio despertos. Suponho que passei pelo sono, encostado ao balaústre da borda, até se dar uma súbita explosão de gritos, a ruptura de uma cólera misteriosamente contida que me acordou em sobressalto. Foi tudo muito rápido, e apenas restou de tudo aquilo um surdo zumbido com efeitos semelhantes aos de um audível e tranquilizador silêncio. Olhei casualmente para a pequena cabina. Tinha a luz acesa, mas o Sr. Kurtz já lá não estava. Julgo que teria gritado se acreditasse logo nos meus olhos. Mas ao princípio não acreditei - de tal forma impossível aquilo me parecia. Na verdade, um calafrio sem nome deixou-me desorientado ao máximo, puro e abstracto terror alheio às formas concretas do perigo físico. O que fez tão poderosa a emoção foi o choque - como explicar? - o choque moral que apanhei, como se algo monstruoso, intolerável ao espírito e odioso para a alma, tivesse penetrado inesperadamente em mim. Claro que tudo se passou numa simples fracção de segundo e logo caí na vulgar e normal sensação que é o perigo de morte, a possibilidade de sermos subitamente atacados ou massacrados, qualquer coisa deste género que eu sentia iminente e acabou por parecer bem-vinda e reconfortante. Acalmou-me tanto que não dei o alarme. Não mais afastado que três pés, um aspirante abotoado até ao pescoço dentro de um gabão dormia numa cadeira de bordo. Não tinha acordado com os gritos; ressonava baixinho; deixei-o entregue aos sonhos e saltei para terra. Mas não traí o Sr. Kurtz - já estava dito que nunca poderia fazê-lo - já estava escrito que eu seria leal ao pesadelo da minha própria escolha. Ansiava por ficar a sós com aquela sombra - e ainda hoje não explico por que estava tão cioso de não compartilhar com ninguém o peculiar negrume de uma tal experiência. 79 Mal pisei a margem vi um rasto - longo rasto no capim. Lembra-me a exultação com que a mim próprio disse: - "Não pode andar - vai de gatas - apanhei-o." O capim estava molhado de orvalho. Avancei rapidamente e com os punhos fechados. Julgo que tinha a vaga intenção de apanhá-lo e dar-lhe uma sova. Não sei. Eu estava cheio de ideias imbecis. A velha tricotadora com o gato atravessou-se na minha memória, embora fosse a pessoa menos indicada para me surgir sentada no lado de lá desta história. Via uma fileira de peregrinos, de Winchesters à anca, a crivarem o ar com os seus chumbos. Julguei que nunca mais voltaria ao vapor, imaginei-me só e desarmado nas florestas, até à velhice. Coisas muito tontas - sabem como é. Lembro-me de confundir o batuque com as pancadas do meu coração e ficar satisfeito com a calma regularidade que ele mostrava. Segui o rasto - e parei à escuta. A noite estava muito clara, espaço azul-escuro a cintilar de orvalho e luz de estrelas, com vultos negros imóveis, num grande silêncio. Julguei que vi um movimento qualquer à minha frente. Naquela noite tudo me despertava uma estranha confiança. Abandonei deliberadamente o rasto e corri um largo semicírculo (palavra que eu até ia a rir, sozinho) de forma a ficar de frente para aquilo que se mexia, para o movimento que ainda há pouco eu vira - se é que o tinha realmente visto. Eu queria apanhar o Kurtz pelo outro lado, como os miúdos fazem quando brincam. E apanhei-o. Se ele me não tivesse pressentido, eu tinha-Lhe caído mesmo em cima. Mas pôs-se de pé a tempo. Levantou-se, pouco firme, alto, pálido, indistinto como um vapor exalado pela terra, e teve um leve cambalear enevoado e silencioso à minha frente; ao mesmo tempo as fogueiras palpitavam nas minhas costas, entre as árvores, e um murmúrio de muitas vozes chegava da floresta. Fui obrigado a interceptar-lhe o caminho com destreza e só depois, cara a cara, pude recuperar a calma e avaliar o perigo na sua verdadeira dimensão. Estava longe de ter acabado, o Kurtz. Suponhamos que desatava aos gritos! Mal conseguia ter-se de pé, mas a sua voz ainda estava cheia de vigor. "Vá-se embora - esconda-se", disse-me com a sua voz profunda. Era horrível. Olhei para trás. A fogueira mais próxima piscava a cerca de trinta jardas. Um vulto negro levantou-se, deu passadas com as suas grandes pernas negras, balançou os negros braços à luz do braseiro. Tinha cornos pareciam-me cornos de antílope - na cabeça. Com certeza algum feiticeiro, algum adivinho - com ar bem diabólico. 80 - "Sabe o que está a fazer?", segredei-lhe. "Perfeitamente", respondeu, alteando a voz com esta palavra isolada que aos meus ouvidos soou distante e sonora, como um apelo feito por um porta-voz. Se começa a fazer barulho estamos perdidos, pensei. Claro que não era caso para se resolver a murro, mesmo que pusesse de parte a muito natural aversão em bater naquela sombra - naquela errante e torturada coisa. "O senhor vai perder-se", acrescentei - "perder-se por completo." Às vezes a gente tem um rasgo de inspiração, como sabem. Disse-lhe o que tinha a dizer, embora pensasse que ele não podia ficar mais irremediavelmente perdido do que já estava naquele instante, em que os alicerces da nossa amizade iam ser cavados - para durarem - até ao fim - além do fim. "Eu tinha imensos projectos", murmurou, hesitante.Sim, disse eu, "mas se tenta gritar, parto-Lhe a cabeça com..." Perto não havia nem pau nem pedra. "Estrangulo-o de uma vez para sempre", corrigi. - "Eu já estava no limiar de grandes coisas", insistiu numa voz ansiosa, com um tom de desejo que me gelou o sangue. "E agora, por causa daquele estúpido patife..." - "De qualquer forma tem êxito garantido na Europa", afirmei muito firme. Compreendam que eu não queria estrangulá-lo, aliás, seria muito pouco útil quanto a resultados práticos. Eu queria quebrar o encanto - o mudo e pesado encanto da selva, que parecia puxá-lo ao seu implacável seio para despertar nele vergonhosos e brutais instintos já esquecidos, memórias de não sei que aplacadas e monstruosas paixões. Só uma coisa destas poderia tê-lo arrastado para a orla da floresta, o mato, o flamejar das fogueiras, a pulsação dos tambores, o zumbido daquela cantilena mágica, estava eu convencido; só uma coisa destas pudera seduzir-lhe a alma sem lei para além dos limites de uma permitida ambição. E não vêem, vocês? O horror do caso não estaria em levar uma bordoada na cabeça - se bem que este perigo também eu o sentisse com muita nitidez - mas nessa coisa que era lidar com uma criatura a quem não podíamos apelar, nobre ou vil fosse aquilo que estivesse em causa. Tal como os negros, eu teria de invocá-lo - a ele - à sua inacreditável e orguLhosa degradação. Nada havia acima ou abaixo dele, e eu sabia-o. Mandara passear todo e qualquer contacto com o mundo. Diabo de homem! Até o próprio mundo mandara passear, depois de o fazer em cacos. Ele estava só, e à frente dele eu não sabia se estava preso à terra ou se flutuava no ar! 81 Tenho estado a repetir o que dissemos - as frases que pronunciámos - mas para quê? Eram vulgaríssimas palavras de todos os dias - os sons familiares e vagos que trocamos em cada um dos dias da nossa vida. Mas que importa? Para o meu espírito tinham atrás delas a aterrorizante sugestão de palavras ouvidas em sonhos, de frases pronunciadas em pesadelos. A alma! Se algum dia alguém lutou com uma alma, esse alguém sou eu. E notem que eu estava longe de discutir com um louco. Acreditem vocês ou não, tinha uma inteligência claríssima - concentrada sobre si própria, essa é que é a verdade, com uma intensidade assustadora de tão clara; e a minha única oportunidade era aquela - além de matá-lo ali mesmo, bem entendido. O que não seria lá muito bom, pelo inevitável barulho que faria. Doida, sim, a sua alma. Sozinha na selva, olhara para dentro de si mesma e posso dizer vos que ficara - Deus do céu! - doida de todo. Pelo mal dos meus pecados, suponho eu, tive de passar pela prova de olhar para dentro dela. Nenhuma eloquência poderia ser mais funesta à nossa confiança no Homem do que a sua última explosão de sinceridade. Também lutava consigo próprio. Vi-o - ouvi-o. Vi o inconcebível mistério de uma alma que não tinha conhecido freio nem fé, nem medo, mas assim mesmo lutava cegamente consigo própria. Dominei os nervos até ao fim, mas quando o apanhei estendido no colchão limpei o suor da testa e as minhas pernas tremeram por baixo de mim, como se tivesse levado às costas meia tonelada, colina abaixo. No entanto, eu só Lhe tinha servido de apoio, com o seu braço ossudo a dar-me a volta ao pescoço - e não pesava muito mais do que uma criança. No dia seguinte, quando largámos ao meio-dia, a multidão, cuja presença atrás da cortina de árvores nunca me deixara de ser perceptível, voltou a transbordar da floresta, a encher a clareira capinada e a cobrir a encosta com uma massa despida, ofegante e trémula de corpos de bronze. Naveguei um pouco para montante, e depois dei a volta ao sabor da corrente, enquanto dois mil pares de olhos seguiam as evoluções do temível demónio do rio que batia ruidosamente e chapinhava com uma assustadora cauda, a expelir fumo negro para o ar Ao longo do rio, na primeira fila, três homens sujos da cabeça aos pés com barro vermelho muito vivo andavam, sem parar, de um lado para o outro. Quando ficámos de novo à sua frente, voltaram-se para o rio e bateram com os pés no chão, sacudiram as cabeças enfeitadas com cornos e baloiçaram os corpos escarlates; agitaram um molho de penas pretas na direcção do demónio do rio, e uma sarnosa pele de cabrito com o rabo pendente -, 82 qualquer coisa ainda que lembrava uma cabeça ressequida; de vez em quando gritavam ao mesmo tempo uma torrente de palavras fantásticas que não se pareciam com nenhumas que existissem na linguagem humana; e o cavo murmúrio da multidão, subitamente entrecortado, lembrava o responso de uma qualquer ladainha satânica. Transportámos Kurtz para a casa do leme, que era mais arejada. Deitado no catre, olhava fixamente pela janela aberta. Houve uma agitação na massa de corpos humanos e a mulher de faces cor de bronze e penteado em forma de elmo irrompeu até chegar mesmo à beira da água. Estendia os braços, gritava qualquer coisa que a multidão selvagem repetia num formidável coro de rápidos, articulados e ofegantes sons. "Compreende aquilo?", perguntei. Continuou a olhar para fora, por cima de mim, com olhos ávidos e furiosos, com uma expressão onde a melancolia se misturava ao ódio. Não respondeu mas vi um sorriso, um indefinido sorriso aparecer nos seus lábios descorados que apertaram, por um momento, convulsivamente. "Se compreendo?", disse com voz lenta, a arfar como se as palavras Lhe fossem arrancadas por uma força sobrenatural. Puxei a corda do apito. Fi-lo porque já via os peregrinos raparem das espingardas, no convés, e prepararem-se para uma grande festança. O berro inesperado provocou um movimento de primário terror na massa compacta dos corpos. "Não! Não os assuste!", gritou-me alguém do convés, com uma voz desconsolada. Mas puxei e tornei a puxar a corda. Os selvagens dispersaram, a correr, saltavam, agachavam-se, fugiam para todos os lados, esquivavam-se ao esvoaçante terror daquele som. Os três homens encarnados tinham caído ao comprido e escondiam a face na terra como se os tivessem morto a tiro. Só a bárbara e soberba mulher não recuou nenhum passo e estendia para nós os braços nus, muito trágica, por sobre o rio cintilante e triste. Foi nessa altura que aqueles imbecis começaram a sua brincadeira estúpida no convés de baixo, mas não consegui ver mais nada por causa do fumo. A corrente escura afastava-se com rapidez do coração das trevas e levava-nos para baixo, em direcção ao mar, a velocidade dupla da nossa subida; e a vida de Kurtz também corria veloz em refluxo, refluxo do seu coração no mar inexorável do tempo. 83 O administrador estava muito calmo, já sem ter ansiedades vitais, e englobava-nos aos dois num olhar único de compreensão e satisfação: o negócio resultara tão bem como seria para desejar. Vi aproximar-se a hora em que o derradeiro apoiante do método insensato, seria eu. Os peregrinos olhavam-me com má vontade. Pode bem dizer-se que me incluíam entre os mortos. É estranha a forma como aceitei esta imprevista associação, a escolha do pesadelo que me era imposto naquela tenebrosa terra, invadida por fantasmas mesquinhos e vorazes. O Kurtz falava. Uma voz! Uma voz! De profundidade mantida mesmo até ao fim. Que sobreviveu às forças para ocultar nas magníficas pregas da eloquência as trevas do seu coração. E como lutou, lutou! O deserto do seu fatigado pensamento envenenava-se agora com imagens de sombra - imagens de riqueza e fama que se revolviam, deferentes, em redor de um inextinguível talento para se exprimir com nobreza e elevação. A minha prometida, o meu posto, a minha carreira, as minhas ideias - eram tema de ocasionais exibições de sentimentos elevados. A sombra do Kurtz original não largava a cabeceira daquela contrafacção vazia que tinha por destino uma sepultura modelada em terra de primevas idades. Mas quer o diabólico amor, quer o ódio sobrenatural dos mistérios em que ele penetrava lutavam pela posse daquela alma saciada em primitivas emoções, sequiosas de enganosa fama, de falsas distinções, de toda a aparência de poder e êxito. Às vezes era risivelmente pueril. Gostaria de ter reis a recebê-lo em estações de caminho-de-ferro, quando regressasse daquela pavorosa Terra de Ninguém onde pretendia consumar grandiosas coisas. "Saibamos mostrar-lhes que em nós existe qualquer coisa realmente aproveitável, e não terá limites o reconhecimento que irão dispensar às nossas capacidades", dizia ele. "Claro que temos sempre que levar em conta os motivosos motivos justos." Os longos troços do rio eram como que um único troço sempre igual, as voltas monótonas idênticas, a deslizarem pelo vapor com a sua multidão de árvores seculares que olhavam, muito pacientes aquele sujo fragmento de outro mundo, o precursor de mudança, conquista, comércio, massacre e bênçãos. Eu olhava para a frente - e pilotava. "Fechem-me as portadas", disse um dia Kurtz, de repente; "não suporto ver isto." Fiz-lhe a vontade. Houve um silêncio. 8485 "Ah! Seja como for, hei-de arrancar-te o coração!", gritou ele à selva invisível. Ì Tivemos uma avaria - como eu esperava - e fomos obrigados a fundear para reparações na ponta de uma ilha. Esta paragem foi o primeiro abalo na confiança de Kurtz. Certa manhã entregou-me um maço de papéis e uma fotografia tudo amarrado com um atacador de sapatos. "Guarde-me isto", disse ele. "O malvado daquele doido" (referia-se ao administrador) "é capaz de mexer nas minhas malas quando me apanhar distraído." À tarde fui vê-lo. Estava deitado de costas, com os olhos fechados; retirei-me sem fazer barulho e ainda o ouvi murmurar isto: - "Viver honestamente, morrer, morrer..." Pus-me à escuta. Mas ficou por ali. Estaria a ensaiar algum discurso, enquanto dormia, ou era um fragmento de frase para qualquer artigo de jornal? Tinha escrito em jornais e pensava voltar a fazê-lo para divulgar as minhas ideias. É um dever! Vivia numa treva indevassável. Eu olhava-o como quem está deitado no fundo de um abismo onde o Sol nunca brilha. Mas não tinha muito tempo para lhe dedicar, pois ajudava o maquinista a desmontar os cilindros cheios de fugas, a endireitar a haste do êmbolo que vergara, e a fazer mais trabalhos deste género. Passava os dias numa infernal confusão de ferrugens, limalhas, porcas, parafusos, chaves, manelos e brocas - coisas que abomino por não haver meio de me entender com elas. Ia fazendo funcionar a pequena forja que tínhamos, felizmente, a bordo; fossava como um escravo no monte de sucata - a não ser quando as sezões eram fortes de mais para eu me ter nas pernas. Uma noite entrei na cabina, de vela na mão, e surpreendi-me quando o ouvi falar com voz ligeiramente trémula: - "Estou deitado aqui, nas trevas, à espera da morte." A luz não se encontrava a mais de um pé dos seus olhos. Esforcei-me por murmurar: - "Que disparate!" e debrucei-me para ele, pregado ao chão. Eu nunca tinha visto, nem espero tornar a ver, coisa parecida com a transformação que se dera nos seus traços. Não, emocionado eu não estava. Estava fascinado. Como se um véu se tivesse rasgado. No marfim daquele rosto vi uma expressão de orgulho sombrio, indomável poder, de abjecto terror - de um desespero intenso e sem esperança. Naquele supremo instante, de integral conhecimento, estaria ele a reviver a vida em todo o pormenor, com os seus desejos, tentações e renúncias? Deu um grito sussurrado a uma imagem qualquer, a uma visão qualquer gritou duas vezes, um grito que não passava de sopro... "O horror! O horror!" Apaguei a vela e saí da cabina. Os peregrinos jantavam no refeitório. Fui sentar-me no meu lugar, à frente do administrador, e ele levantou os olhos numa interrogação que consegui ignorar. Estava recostado, sereno, com aquele sorriso especial que selava as inexprimíveis profundezas da sua mediocridade. Sobre o candeeiro, a toalha, as mãos e os rostos caía um chuveiro de pequenas moscas. De repente, o moleque do administrador mostrou à porta a insolente cabeça negra e disse num tom de desprezo insultuoso: - "Siô Kurtz - moleu." Todos os peregrinos se levantaram para ir ver. Não me mexi e continuei o meu jantar. Creio que me chamaram brutalmente insensível. Apesar disso, não comi muito. Ao pé de mim havia um candeeiro - uma luz, percebem? - e lá fora era tudo uma pavorosa, uma pavorosa escuridão. Eu não queria voltar a aproximar-me do homem notável que tinha proferido uma sentença daquelas sobre as aventuras da sua alma na terra. A voz desaparecera. Teria havido mais qualquer outra coisa? Claro que vi, no dia seguinte, os peregrinos a sepultarem um corpo numa cova lamacenta. A seguir pouco faltou para me sepultarem, a mim. No entanto, como vêem, não foI dessa vez que fui fazer companhia ao Kurtz. Não senhor. Fiquei para sonhar o pesadelo até ao fim e demonstrar, uma vez mais, como lhe era fiel. Destino. O meu destino! Que engraçada, esta vida - este misterioso consenso de impiedosa lógica ao serviço de um propósito fútil. O mais que podemos esperar é ter algum conhecimento de nós próprios - que infelizmente chega tarde uma data de sofrimentos que nunca mais acabam. Travei uma batalha com a morte. O menos excitante combate que pode imaginar-se. Travado no meio de uma impalpável penumbra, sem sítio para firmarmos os pés, sem nada à volta, sem espectadores; sem barulho, sem glória, sem o grande desejo de vitória, sem o grande medo da derrota, numa atmosfera doentia de morno cepticismo, sem demasiada fé na nossa razão e ainda menos na razão do adversário. Se isto é forma de sabedoria suprema, a vida ainda é maior enigma do que alguns pensam. Por uma unha negra não foi a última oportunidade de eu emitir opinião, mas reconheço, humilhado, que provavelmente não teria nada a dizer. Esta a razão de eu afirmar que o Kurtz era um homem notável. 86 Tinha qualquer coisa para dizer. E disse-a. Desde que eu próprio dei uma espreitadela para além do limiar, compreendo melhor o significado do seu olhar parado, incapaz de ver a chama da vela, mas suficientemente agudo para devassar todos os corações que batem nas trevas. Tinha chegado a conclusões fizera um juízo. O horror!, Era um homem notável. Afinal de contas, aquilo exprimia qualquer coisa como uma crença; tinha candura, tinha convicção, tinha uma vibrante nota de revolta no seu murmúrio, tinha a aterrorizante face de uma entrevista - verdade - estranha mistura de desejo e ódio. E o que mais recordo não é a minha extremidade - visão cinzenta sem forma mas cheia de dor física e de um negligente desprezo pelo apagar de todas as coisas inclusive a própria dor. Não! A extremidade dele é que julgo ter vivido. Isso mesmo. Deu o derradeiro passo, ultrapassou os limites enquanto aos meus pés hesitantes foi consentido um recuo. E talvez aqui esteja a verdadeira diferença; talvez todo o saber, toda a verdade e toda a sinceridade se concentrem nesse inapreciável instante em que transpomos o limiar do invisível. Talvez! Gosto de pensar que as minhas conclusões não passaram de uma palavra de negligente desprezo. Melhor - muito melhor - o grito dele. Era uma afirmação, uma vitória moral paga por inúmeras derrotas, terrores abomináveis, abomináveis satisfações. Mas era uma vitória! Por isso permaneci fiel a Kurtz até ao último instante, ou para além dele, quando voltei a ouvir, tanto tempo depois, já não a voz mas o eco da sua eloquência magnífica que me chegou de uma alma tão transparentemente pura como uma falésia de cristal. Não, à cova não me levaram, mas houve um lapso de tempo que recordo nebulosamente e me estremece de espanto como se fosse a passagem num inconcebível universo sem esperança nem desejo. Só vim a reencontrar-me na cidade sepulcral, ao incomodar-me com o espectáculo de pessoas apressadas que andavam pelas ruas para extorquir dinheiro umas às outras, devorar infames cozinhados, engolir cerveja insalubre, sonhar sonhos insignificantes e patetas. Atravancavam-me os pensamentos. Eram intrusos cuja experiência de vida me parecia uma irritante pretensão, já que não podiam, não senhor, conhecer as coisas que eu conhecia. As suas atitudes, simples atitudes de gente banal que tratava da vida com uma convicção de perfeita segurança, ofendiam-me tanto como a suficiência ultrajante da loucura ao pé de um perigo que ela não pode compreender. Eu não sentia especial desejo de os ensinar, 87 mas tinha alguma dificuldade em conter-me para não rir nas suas caras cheias de estúpida importância. Quero crer que nesse tempo eu não passava muito bem. Cambaleava pelas ruas tinha vários assuntos a tratar - sorria desagradavelmente a pessoas muito respeitáveis. Confesso que o meu comportamento era indesculpável, mas nessa altura eu raramente andava com a temperatura normal. As tentativas da minha querida tia para me restabelecer ultrapassavam todas as marcas. Não era recobrar forças o que eu precisava, mas acalmar a imaginação. Conservava em meu poder o maço de papéis que o Kurtz me entregara, sem saber ao certo o que fazer com eles. A mãe dele tinha falecido há pouco tempo, ao que me disseram acompanhada na doença pela Prometida. Certo dia, um homem de cara rapada, com aspecto de funcionário público e óculos com aro de ouro, procurou-me e fez perguntas, começando por dar-lhes um carácter suavemente intimidante, sobre aquilo que ele gostava de chamar determinados "documentos". Não me surpreendeu, uma vez que eu já tinha tido duas pegas com o administrador sobre aquele assunto. Eu tinha-me recusado a entregar um papel do maço, que fosse, e com o homem dos óculos sucedeu exactamente o mesmo. Começou por fazer-me obscuras ameaças e acabou, cheio de calor, por argumentar que a Companhia tinha direito a todas as informações sobre os seus territórios", pequenas que fossem. E disse que "os conhecimentos do Sr. Kurtz sobre regiões inexploradas seriam necessariamente extensos e singulares - devido aos seus grandes talentos e às deploráveis circunstâncias em que se encontrara; por isso..." Assegurei-lhe que os conhecimentos do Sr. Kurtz, embora vastos, não recaíam sobre problemas de comércio ou administração. Invocou, então, a palavra ciência,. Que incalculável perda seria se, etc., etc. Ofereci-Lhe o Relatório para a Supressão dos Costumes Selvagens depois de rasgar o post-scriptum. Aceitou-o com o maior interesse, mas acabou por fungar, cheio de desdém. "Tínhamos o direito de esperar mais", declarou. - "Não espere mais nada", respondi; "só há cartas particulares." Retirou-se, com uma ameaça qualquer de procedimento legal, e nunca mais lhe pus a vista em cima; mas dois dias depois apareceu-me outro sujeito que se dizia primo do Kurtz e estava ansioso por ouvir todos os pormenores sobre os últimos momentos do seu querido parente. Durante a conversa deu-me a entender que o Kurtz tinha sido, acima de tudo, um grande músico. Dispunha do que é necessário para ter um êxito imenso, disse aquele homem, 88 segundo creio organista, com cabelos escorridos e brancos que caíam na gola ensebada do casaco. Não havia motivo para duvidar da sua afirmação; ainda hoje não sou capaz de dizer qual era a profissão do Kurtz, se acaso teve alguma - e qual o maior dos seus talentos. Tomei-o por um pintor que escrevia para os jornais, ou antes, por um jornalista que sabia pintar - e nem mesmo o primo (que se fartou de cheirar rapé durante a conversa) soube dizer - exactamente - o que ele fora. Um génio universal - neste ponto concordei com o velhote, que ao dizê-lo deu uma assoadela ruidosa com um grande lenço de algodão e se retirou, tomado de excitação senil, levando consigo algumas cartas familiares e notas sem importância. Por fim apareceu um jornalista ansioso por saber coisas sobre a sorte do seu querido colega,. Informou-me que a verdadeira esfera de acção de Kurtz deveria ter sido a política do lado do povo". Tinha sobrancelhas direitas e farfalhudas, cabelo grosso rapado, um monóculo de fita larga, e foi ao ponto, num ataque de sinceridade, de confessar que opinião tinha sobre Kurtz e dizer-me que ele não era capaz, realmente, de escrever grande coisa "mas, Santo Deus!" como era bom a falar! Electrizava grandes assembleias. Era um convencido - percebe? - e um convicto. Podia convencer-se a si próprio daquilo que queria. "Teria dado um esplêndido chefe num partido extremista." - Que partido?", perguntei. - "Um qualquer", respondeu. "Era um - um - extremista." Eu não achava? Claro que achava. E eu fazia ideia do que o induzira "a ir para lá"? perguntou com um súbito impulso de curiosidade. Sim, fazia, e pus-lhe imediatamente nas mãos o famoso Relatório para ele publicar, caso achasse oportuno fazê-lo. Deu-Lhe uma olhadela apressada, sempre a resmungar, considerou-o cem condições" e fugiu com o produto do saque. Acabaram por me deixar em paz quando fiquei apenas com um maço de cartas e o retrato da rapariga. A sua beleza impressionava-me - quero dizer que era belíssima de expressão. Bem sei que até a luz do Sol pode dizer mentiras, mas não era visível que nenhum jogo de luz ou pose pudesse dar-lhe ao rosto um ar de tão delicada ingenuidade. Parecia pronta a ouvir-nos sem reservas mentais, sem suspeitas, sem pensamentos reservados. Acabei por resolver que iria eu próprio devolver-lhe o retrato e as cartas. Curiosidade? Sim, mas sentimentos de outra espécie, talvez. Todo o espólio de Kurtz me passara pelas mãos: - alma, corpo, o posto, os planos, o marfim, a carreira. Só restavam a sua memória, a sua Prometida 89 - e de certo modo eu queria restituir aquilo ao passado - eu próprio entregar tudo quanto me restava dele ao esquecimento que era palavra última do nosso destino comum. Não estou a defender-me. Eu não tinha uma percepção clara do que realmente se passava em mim. Talvez fosse um impulso de inconsciente lealdade ou satisfação de uma destas exigências irónicas que espreitam nos actos da vida humana. Sei lá. Não posso dizê-lo. Mas fui. Pensava eu que a sua memória era igual à memória de outros mortos que se acumulam na vida de nós todos - vaga impressão no cérebro, feita por sombras que o afloraram durante uma rápida e suprema passagem; mas à frente do portão alto e solene, entre largas casas de uma rua tão silenciosa e respeitável como a álea bem tratada de um cemitério, voltei a vê-lo na maca, de boca voraz aberta, como se quisesse engolir o mundo e toda a sua humanidade. Tive-o à minha frente vivo; mais vivo do que alguma vez estivera - insaciável sombra de magnífica aparência, de pavorosa realidade, mais negra sombra do que a sombra da noite e nobremente envolta nas pregas de uma sumptuosa eloquência. Pareceu-me que a visão entrara comigo na casa - a maca, os carregadores-fantasmas, a selvagem multidão dos obedientes adoradores, a escuridão da floresta, o cintilar do rio entre curvas sombrias, o bater do tambor tão regular e surdo como o bater de um coração - coração de uma dominadora treva. Para a selva foi um momento de triunfo, uma corrida invasora e vingativa que a meu ver eu só teria de repetir se quisesse salvar outra alma. E a memória do que eu ouvira muito longe dali ao clarão das fogueiras, com cornudas sombras a mexerem-se no seio da floresta paciente em frases truncadas, voltou a ocorrer-me com a sua sinistra e assustadora simplicidade. Recordei que abjectas instâncias, que abjectas ameaças ele fizera, a colossal escala dos seus desejos baixos, a mediocridade, o tormento, a angustiada tempestade da sua alma. E por fim julguei rever o modo entediado e petulante que um dia teve para dizer: - "Agora, este lote de marfim é realmente meu. A Companhia não o pagou. Eu próprio fui buscá-lo com enormes riscos pessoais, embora receie que eles pretendam reclamá-lo como seu. Hum! Que caso difícil. Pensa que eu deva - resistir? Hem! Não quero o que não seja justo..." Nada queria que não fosse justo - que não fosse justo. Toquei a sineta à frente de uma porta de mogno do primeiro andar, e enquanto estive à espera pareceu-me que olhava para mim próprio através do painel envernizado - 90 olhava-me com um imenso e desafogado olhar fixo que abarcava, condenava, odiava o universo inteiro. Julguei ouvir o murmurado grito - "O horror! O horror!" Caía a noite. Tive de esperar numa sala de visitas ampla, com três janelas altas que iam do chão ao tecto e pareciam três luminosas e drapejadas colunas. As pernas e os espaldares dourados faziam brilhar as suas curvas subtis. A larga chaminé de mármore tinha uma brancura fria e monumental. Havia a um canto um maciço piano de cauda com reflexos negros nas superfícies planas, como um polido e sombrio sarcófago. Uma porta alta abriu-se fechou-se. E pus-me de pé. Aproximou-se toda de negro, pálida de cara, a flutuar no crepúsculo. Vestia de luto. Passara mais de um ano sobre a morte dele, mais de um ano sobre a notícia da morte dele, mas dir-se-ia que o recordava e chorava para sempre. Agarrou-me em ambas as mãos e murmurou: - "Eu já tinha ouvido dizer que o senhor viria." Reparei que não era muito nova - quero dizer rapariga. Tinha uma amadurecida aptidão para ser fiel, convicta e sofredora. A sala parecia agora mais escura, como se toda a luz triste daquela enevoada tarde tivesse procurado a sua testa para se refugiar. Aquele cabelo louro, aquele rosto pálido, aquelas sobrancelhas bem traçadas pareciam rodear-se de um halo cor de cinza onde os seus olhos escuros me fitavam. Tinha um olhar inocente, profundo, confiante e leal. Erguia a face triste como se tivesse orgulho nessa tristeza, como se dissesse "eu - só eu, sei chorá-lo como ele merece." Com as nossas mãos ainda apertadas, subiu-lhe ao rosto um ar pavorosamente desolado, só possível nos seres que se não deixam transformar em joguete do Tempo. Para ela, Kurtz só morrera na véspera. E, valha-me Júpiter!, tão forte era na sua convicção que a mim me pareceu, também, que ele só morrera na véspera - que digo eu? - naquele mesmo instante. Vi-os aos dois no mesmo instante de tempo - a morte dele e o desgosto dela vi-lhe o desgosto no próprio instante em que ele morria. Compreendem? Via-os ao mesmo tempo - ouvia-os ao mesmo tempo. "Sobrevivi", disse-me ela com um forte estrangulamento na voz, enquanto os meus fatigados ouvidos pareciam ouvir, misturado à sua entoação de pesar sem esperança, o decisivo murmúrio com que ele tinha pronunciado a sua condenação eterna. Perguntei a mim mesmo o que estava eu a fazer ali, com aquele pânico no coração, como se me tivesse metido num lugar de cruéis e absurdos mistérios interditos ao ser humano. 91 Apontou-me uma cadeira. Sentámo-nos. Pousei delicadamente o maço de papéis numa pequena mesa e ela pôs-lhe a mão em cima... "O senhor conhecia-o bem", murmurou depois de um instante de silêncio triste. - "Naquelas terras a intimidade é rápida" - respondi. "Conheci-o tão bem como um homem pode conhecer outro." - "E admirava-o" - disse ela. - "Era impossível conhecê-lo sem o admirar, não era?" - "Foi um homem notável" - acrescentei, embaraçado. E perante a implorativa fixidez do seu olhar, que parecia esperar mais palavras dos meus lábios, continuei: - "Era impossível que não..." - "O amássemos" - concluiu ardorosamente, enquanto eu permanecia mudo e confundido. - "Como é verdade! Como é verdade! Mas pensar que mais ninguém o conhecia como eu! Eu tinha toda a sua nobre confiança. Conhecia-o melhor do que ninguém." - "Conheceu-o melhor do que ninguém" - repeti. E talvez fosse verdade. Mas a cada palavra a sala ia ficando mais escura, e só a testa dela, lisa e branca permanecia iluminada pela inextinguível luz da fé e do amor. - "Foi amigo dele" - continuou. - "Amigo dele" - repetiu em voz um pouco mais alta. - "Foi com certeza amigo, uma vez que ele lhe entregou isto e pediu que me procurasse. Sinto que posso falar consigo - e olhe, tenho mesmo que falar. Quero que o senhor - o senhor, que ouviu as suas últimas palavras saiba que fui digna dele... Não se trata de orgulho... Ou antes, sinto orgulho em saber que o compreendi melhor do que qualquer outra pessoa neste mundo - ele próprio mo disse. E depois de lhe morrer a mãe, nunca mais tive ninguém - ninguém para - para..." Eu ouvia. A treva adensava-se. Eu já nem sabia se ele me tinha dado o tal maço. Suspeito de que tivesse pretendido deixar-me na posse de outros papéis, depois da sua morte, os que eu vira o administrador examinar à luz do candeeiro. A Prometida falava, aliviando a dor com a certeza da minha simpatia; falava como um homem sequioso bebe. Fiquei a saber que a família dela reprovara o seu noivado com o Kurtz. Não era suficientemente rico, ou qualquer outra coisa do mesmo género. E na verdade ignoro se ele não teria sido sempre, vida fora, o mesmo pobretanas. Tinha-me dado algumas razões para eu intuir que a sua impaciência, devido a uma relativa pobreza, é que o levara àquelas paragens. "... Ouvindo-o falar uma vez, quem não seria seu amigo?" 9293 ia a Prometida dizendo. - "Atraía os homens através do que eles tinham de melhor dentro de si." - Fixava-me com um olhar intenso. - "É a dádiva dos grandes" - continuou, e o som da sua voz contida parecia acompanhado por todos os outros sons, repletos de mistério, desolação e desgosto, como eu nunca ouvira - o rumor do rio, o sussurrar das árvores sacudidas pelo vento, os murmúrios das multidões, a leve vibração de palavras incompreensíveis gritadas de longe, o segredar de uma voz que nos falasse para lá da porta das eternas trevas. "Mas o senhor ouviu-o! O senhor sabe!" - exclamou. - "Sim, eu sei" - respondi com qualquer coisa no coração que parecia um desespero e de cabeça baixa perante a fé que existia nela, perante uma grande ilusão salvadora que cintilava como um sobrenatural clarão nas trevas, nas gloriosas trevas a que eu não conseguia furtá-la, nem a mim próprio furtar-me. - "Que grande falta me faz... nos faz!" - corrigiu com generosidade encantadora, acrescentando num murmúrio: - "Ao mundo." - Com as últimas cintilações do crepúsculo eu podia ver-lhe o brilho dos olhos cheios de lágrimas - de lágrimas que não corriam. - Fui muito feliz - "tive muita sorte - fui muito orgulhosa" - continuou. - "Demasiada sorte. Por um breve instante muito feliz. E agora sou infeliz para - toda a vida." Levantou-se; os seus cabelos louros pareciam captar toda a luz remanescente numa cintilação dourada. Também me levantei. - "E de tudo isto" - prosseguiu em tom desolado - "de tudo o que ele prometia, de toda a sua grandeza, da sua generosa inteligência, do seu nobre coração, nada resta - nada, além de uma memória. Nós os dois..." - "Vamos recordá-lo sempre" - apressei-me a dizer. - "Não!" - exclamou. - "É impossível que tudo se tenha perdido - que uma vida como a dele se tenha sacrificado sem deixar nada atrás - além de tristeza. Sabe como os seus projectos eram vastos. Eu também os conhecia - talvez não pudesse compreendê-los - mas outros compreenderiam. Alguma coisa deve ter ficado. As suas palavras não morreram, pelo menos." - "As palavras hão-de ficar para sempre" - disse eu. - "E o seu exemplo" - acrescentou, quase que a segredá-lo a si própria. - "Os homens punham os olhos nele - a bondade brilhava em todos os seus actos. O seu exemplo..." - Tem razão" - interrompi. - "O seu exemplo também. Sim, o seu exemplo. Estava a esquecê-lo." - "Mas eu não. Não posso - não posso esquecê-lo... ainda. Não posso acreditar que nunca mais hei-de vê-lo, que mais ninguém voltará a vê-lo, nunca, nunca, nunca mais." Abriu os braços, como se fosse atrás de uma imagem que se afastava, estendeu-os e juntou as mãos pálidas que ficaram negras em contraluz na estreita e mortiça faixa de claridade da janela. Não voltar a vê-lo! Pelo meu lado via-o com muita nitidez. Toda a vida hei-de ver aquele eloquente fantasma, e a ela também. Sombra trágica e familiar, parecida nesse ponto com outra igualmente trágica, revestida de ineficazes amuletos, que estendia os braços escuros e nus à cintilação do rio infernal, do rio das trevas. Disse ela então, de repente e com voz muito sumida: - "Morreu como viveu." - "O seu fim" - respondi-lhe com uma surda irritação que me excitava - "em tudo foi digno da vida que viveu." - "E eu tão longe dele" - murmurou. A minha irritação desvaneceu-se atrás de uma sensação de infinita piedade. - "Tudo o que era possível fazer..." - disse eu entre dentes. - "Ah! Mas eu acreditava nele, mais do que qualquer outra pessoa neste mundo - mais do que a sua própria mãe, mais do que - ele próprio. Precisava de mim! De mim! Eu teria guardado como um tesouro todos os suspiros, todas as palavras, todas as frases, todos os olhares." Senti como que uma mão de gelo pousada no peito. - "Não!" - interrompi numa voz abafada. - "Desculpe. Eu - eu tenho-o chorado tanto - em silêncio em silêncio... Esteve junto dele - até ao fim? Costumo pensar na sua solidão. Ninguém ao seu lado para o compreender como eu teria compreendido. Nem sequer ouvir..." - "Mesmo até ao fim" - respondi com voz trémula. - "Ouvi-Lhe as últimas palavras..." - Calei-me apavorado. - "Repita-as" - murmurou num tom de partir o coração. - "Eu quero - eu quero - qualquer coisa - para - para viver com ela." Estive a ponto de lhe gritar: - "Não as ouve?" À nossa volta a escuridão repetia-as como um incansável segredo, um segredo que parecia avolumar-se, numa ameaça, como o primeiro segredo de um vento que começa a levantar-se. "O horror! O horror!" - "A sua última palavra - para eu viver com ela" - insistiu. - "Não compreende que eu o amava - amava amava?" Consegui dominar-me e falar pausadamente: 94 - A última palavra que ele disse foi - o seu nome. Ouvi um suspiro leve e o meu coração deixou de bater, mortalmente parado por um exultante e terrível grito, pelo grito de um inconcebível triunfo e de uma indescritível dor. Eu sabia - eu tinha a certeza!,... Ela sabia. Ela tinha a certeza. Ouvi-a chorar, com o rosto escondido nas mãos. Parecia que antes de eu sair aquela casa ia desmoronar-se, o céu ia cair-me na cabeça. Mas nada disso aconteceu. O céu não cai por tão pouco. Teria caído, pergunto a mim próprio, se eu tivesse feito ao Kurtz a justiça que lhe era devida? Ele não tinha dito que só queria justiça? Mas não pude. Não pude contar-lhe nada. Seria tenebroso de mais - tenebroso ao máximo... Marlow deixou de falar e foi sentar-se afastado, ausente e silencioso, na posição de um buda que medita. Durante algum tempo ficámos imóveis. "Já perdemos o começo da vazante", disse o director da Companhia de repente. Levantei a cabeça. O horizonte tinha um banco de nuvens negras atravessado, e o calmo caminho das águas, que leva aos confins da terra, corria escuro sob um céu sombrio - dir-se-ia que a levar-nos ao coração de infinitas trevas.