lançaram-se na câmara onde estávamos, e sem que nenhum dos familiares da casa resistisse nem
ousasse tanto lhes contradizer, arrebataram para mim, mesquinha, que do medo e pavor que houve
estava amortecida nas saias de minha mãe. Desta maneira estorvaram minhas bodas, como as de Atides
e Protesilao. Mas agora, senhora mãe, outra coisa muito mais cruel me refrescou, que cresce mais
minha desventura e desdita; é que sonhava que por força e contra minha vontade tiravam-me de minha
casa, de dentro de minha câmara e de minha cama; que ia por uns desertos e solidões, fora de caminho,
chamando o desventurado por mim marido. O qual, como estava embelezado e vestido com roupas de
bodas, ia atrás de mim; quando me afastaram de seus braços, eu fugia em pés alheios; como ele dava
vozes, queixando que lhe roubaram a seu formosa mulher, pedia socorro a todos. Nisto, um dos
ladrões que me levavam, zangado de suas vozes e importuno seguimento, arrebatou uma pedra diante
dos pés e feriu o coitado mancebo de meu marido, que logo morreu, com este sonho tão horrível e
mortal, espantada, despertei medrosa e espavorida.
Então a velha, suspirando à seus choros e penas, disse:
-Filha, esforce-se e tenha bom coração; por Deus, não se espante com vãs ficções de sonhos,
porque além de ter por certo que os sonhos de dia são falsos, até as visões ou sonhos da noite trazem
os fins e saídas contrários, porque chorar ou ser ferido, ou morto trazem o fim próspero e de muito
ganho, e, pelo contrário, rir ou comer coisas doces e saborosas, ou achar-se em prazeres com quem
bem quer, significa grande tristeza do coração ou enfermidade do corpo, ou outros danos e fadigas.
Mas eu quero consolaá-la e dizendo uma novela muito linda, para que esqueça esta pena e trabalho.
A qual logo começou nesta maneira:
Capítulo V
No qual a velha mãe dos ladrões, comovida de piedade das lágrimas da donzela que estava na cova presa,
contou-lhe uma fábula para ocupá-la que não chorasse.
-Havia em uma cidade um rei e uma rainha, tinham três filhas muito formosas: das quais, duas
as maiores, como eram formosas e bem dispostas, podiam ser elogiadas por louvores de homens; mas a
menor, era tanta sua formosura, que não bastam palavras humanas para poder exprimir, nem
suficientemente elogiar sua beleza. Muitos de outros reinos e cidades, aos quais a fama de sua
formosura ajuntavam, espantados com admiração de sua tão grande formosura, onde outra donzela não
podia chegar, pondo suas mãos à boca e os dedos estendidos, assim como à deusa Vênus, com suas
religiosas adorações, honravam-na e adoravam-na. Já a fama corria por todas as cidades e regiões
próximas; que esta era a deusa Vênus, a qual nasceu nas profundezas do mar e o rocio de suas ondas a
criou. E diziam deste modo que outra deusa Vênus, por influência das estrelas do céu, nascera outra
vez, não no mar, mas na terra, conversando com todas as pessoas, adornada de flor de virgindade.
Desta maneira sua opinião procedia de cada dia, que já a fama desta era derramada por todas as ilhas ao
redor, em muitas províncias da terra: muitos dos mortais vinham de locais distantes, assim pelo mar
como por terra, a ver este glorioso espetáculo que nascera no mundo; já ninguém queria navegar para
ver a deusa Vênus, que estava na cidade de Paphos, nem tampouco à ilha de Gnido, nem ao monte
Citerón, onde lhe costumavam sacrificar; seus templos eram já destruídos, seus sacrifícios esquecidos,
suas cerimônias menosprezadas, suas estátuas estavam sem honra nenhuma; seus altares sujos e
cobertos de cinza fria. A esta donzela suplicavam todos, e debaixo de rosto humano adoravam a
majestade de tão grande deusa; quando de amanhã se levantava, todos ofereciam sacrifícios e manjares,
como lhe sacrificavam à deusa Vênus. Pois, quando ia pela rua ou passava alguma praça, todo o povo
com flores e grinaldas de rosas suplicavam-lhe e honravam-lhe. Esta grande translação de honras
celestiais a uma moça mortal acendeu muito receosa de ira à verdadeira deusa Vênus, e com muita
irritação, balançando a cabeça e brigando consigo, disse desta maneira:
«Vêem aqui eu, que sou a primeira mãe da natureza de todas as coisas; eu, que sou princípio e
nascimento de todos os elementos; eu, que sou Vênus, criadora de todas as coisas que há no mundo,
sou tratada de tal maneira que na honra de minha majestade tenha que ter parte do meu ser uma
parceira, uma moça mortal; que meu nome, formado e posto no céu, tenha-se que profanar em sujeiras
terrestres? Tenho eu de sofrer que tenham em cada parte dúvida se tenho eu de ser adorada ou esta
donzela e que tenha que ter comunidade comigo, que uma moça mortal, tem que morrer, tenha meu
gesto que pensem que sou eu? Segundo isto, muito me julgou aquele pastor que por minha grande
formosura preferiu à tais deusas: cujo julgamento e justiça aprovou aquele grande Júpiter; mas esta,
quem quer que seja, que roubou e usurpou minha honra, não haverá prazer disso: eu lhe farei que se
arrependa disto e de sua ilícita formosura.»
Logo chamou o Cupido, aquele seu filho com asas, que é assaz temerário e ousado; o qual, com
seus maus costumes, menosprezava a autoridade pública, armado com setas e chamas de amor;
discorrendo de noite pelas casas alheias, corrompe os casamentos de todos, sem pena nenhuma comete
tantas maldades que coisa boa não faz. A este, como quero que de sua própria natureza ele seja
desavergonhado, abusado e destruidor; mais que isto lhe acendeu mais com suas palavras e levo-o
àquela cidade onde estava esta donzela, que se chamava Psique, mostrou-se-lhe, dizendo-lhe com muita
irritação, gemendo e quase chorando, toda aquela história da semelhança invejosa de sua formosura,
dizendo-lhe nesta maneira:
«Oh, filho! Eu rogo-lhe pelo amor que tem à sua mãe, pelas doces chagas de suas setas, pelos
saborosos jogos de seus amores, que você cumpra vingança a sua mãe: venha contra a formosura
rebelde e contumaz desta mulher; sobre todas as outras coisas, tem que fazer uma, a qual é que esta
donzela seja apaixonada, de muito ardente amor, de homem de pouco e baixo estado, ao qual a Fortuna
não deu dignidade de estado, nem patrimônio, nem saúde. E seja tão baixo que em todo mundo não
ache outro semelhante a sua miséria.»
Depois que Vênus falou isto, beijou e abraçou a seu filho, fosse a ribeira de um rio que estava
perto, onde com seus pés formosos pisou o rocio das ondas daquele rio, e logo se foi ao mar, aonde
todas as ninfas do mar serviram-lhe e fizeram o que ela queria, como se um dia antes o tivesse
mandado. Ali vieram as filhas de Nereu cantando, o deus Netuno, com sua áspera barba da água do
mar e com sua mulher Salacia; e Palemón, que é guiador do Delfin. Depois, as companhias dos
Tristões, saltando pelo mar: uns tocando trombetas; outros traçavam um pálio de seda para que o Sol,
seu inimigo, não lhe tocasse; outro põe o espelho diante dos olhos da senhora, desta maneira nadando
com seus carros pelo mar; todo este exército acompanhou Vênus até o mar oceano.
Enquanto isso, a donzela Psique, com sua formosura, só para si, nenhum fruto recebia dela.
Todos olhavam-na e todos elogiavam-na; mas, nenhum que fosse rei nem de sangue real, nem mesmo
sequer do povo, chegou a pedir, dizendo que queria casar com ela. Maravilhavam-se de ver sua divina
formosura, mas maravilhavam-se como quem vê uma estátua polidamente fabricada. As irmãs maiores,
porque eram moderadamente formosas, não eram tanto divulgadas pelos povos e foram desposadas
com dois reis, que as pediram em casamento, com os quais já estavam casadas e com boa ventura
apartadas em sua casa; mas, esta donzela Psique, estava em casa do pai, chorando sua solidão, e, sendo
virgem, era viúva; pela qual estava doente no corpo e com chagas no coração; aborrecia em si sua
formosura, como que todas as pessoas parecessem bem. O mesquinho pai desta desventurada filha,
suspeitando que alguma ira e ódio dos deuses celestiais houvesse contra ela, acertou de consultar o
oráculo antigo do deus Apolo, que estava na cidade de Milesia; com seus sacrifícios e oferendas,
suplicou àquele deus que desse casa e marido à triste de sua filha. Apolo, como era grego e de nação
jônia, por razão de que fundara aquela cidade de Milesia, entretanto, respondeu em latim estas palavras:
«Porá esta moça mortal adornada de toda vestimenta de pranto e luto, para enterrá-la, em uma pedra de
uma alta montanha e deixa-a ali. Não espere genro que seja nascido de linhagem mortal; mas, espera-o
feroz, cruel, e venenoso como serpente: o qual, voando com suas asas, fadiga todas as coisas sobre os
céus, e com suas setas e chamas domestica e enfraquece todas as coisas; ao qual, o mesmo deus Júpiter
teme, e todos os outros deuses se espantam, os rios e lagos do inferno lhe temem.»
O rei, que sempre foi próspero e favorecido, como ouviu este vaticínio à resposta de sua
pergunta, triste e da má vontade retornou para trás à sua casa. O qual disse e manifestou à sua mulher o
mandamento que o deus Apolo daria a sua desventurada sorte, pelo qual lamentaram e choraram alguns
dias. Nisto já se chegava o tempo que tinha que pôr com efeito o que Apolo mandava: de maneira que
começaram a aparelhar tudo o que a donzela havia mister para suas mortais bodas; acenderam a luz das
tochas negras com fuligem e cinza; os instrumentos músicos das bodas mudaram-se em choro e
amargura; cantar alegre em luto e choro, e a donzela que tinha que casar limpa as lágrimas com o véu de
alegria. De maneira que o triste fado desta casa fazia chorar a toda a cidade, a qual, como se acostumou
a fazer em choro público, mandou elevar todos os ofícios e que não houvesse julgamento nem tribunal.
O pai, pela necessidade que tinha de cumprir o que Apolo mandara, procurava levar a mesquinha de
Psique à pena que lhe profetizava: assim, acabada a solenidade daquele triste e amargo casamento, com
grandes choros veio todo o povo acompanhar a esta desventurada, que parecia que a levavam viva a
enterrar e que estas não eram suas bodas, mais suas exéquias. Os tristes do pai e da mãe, comovidos de
tanto mal, procuravam quanto podiam estender o negócio. A filha começou a dizer e a admoestar desta
maneira:
«Por que, senhores, atormentam sua velhice com tão contínuo chorar? Por que fatigam seu
espírito, que mais é meu que seu, com tantos uivos? Por que arrancam suas honradas penas? Por que
sujam essas caras que eu tenho de honrar, com lágrimas que pouco aproveitam? Por o que rompem em
seus olhos os meus? Por que apunhalam à seus santos peitos? Este será o prêmio e galardão claro e
ilustre de minha formosura. Vocês estão feridos mortalmente da inveja e sentem tarde o dano. Quando
as pessoas e os povos nos honravam e celebravam com divinas honras; quando todos a uma voz
chamavam a nova deusa Vênus, então, tinha-lhes que doer e chorar, então haviam já de ter-me por
morta: agora vejo e sinto que só este nome de Vênus foi causa de minha morte; levem-me já e deixemme já naquele penhasco, onde Apolo mandou: já eu queria acabar estas bodas tão ditosas, já desejo ver
aquele meu generoso marido. Por que tenho eu de conter aquele que é nascido para destruição de todo
o mundo?»
Acabou de falar isto, a donzela calou, como já vinha todo o povo para lhe acompanhar, lançouse em meio deles e foram em seu caminho àquele lugar onde estava um penhasco muito alto, em cima
daquele monte, em cima do qual puseram a donzela; ali deixaram-na, deixando deste modo com ela as
tochas das bodas, que diante dela levavam ardendo, apagadas com suas lágrimas; abaixadas as cabeças,
retornaram à suas casas. Os mesquinhos de seus pais, fatigados de tanta pena, fecharam-se em sua casa,
e fechadas as janelas, ficaram em trevas perpétuas. Estando Psique muito temerosa, chorando em cima
daquela penha, veio um manso vento boreal, e, como quem estende as saias, tomou em seu regaço;
assim, pouco a pouco, muito mansamente levou-a por aquele vale abaixo e a pôs em um prado muito
verde e formoso de flores e ervas, onde a deixou que parecia que não lhe colocara.
Quinto livro
Argumento
Neste quinto livro contêm os palácios de Psique e os amores que com ela teve o deus Cupido, e
de como lhe vieram visitar suas irmãs; da inveja que tiveram dela, por cuja causa, acreditando Psique o
que lhe diziam, feriu seu marido Cupido com uma chaga, pela qual caiu de uma cume de sua felicidade
e foi posta em tribulação. A qual, Vênus, como a inimizade, persegue muito cruelmente; finalmente,
depois de passar muitas penas, foi casada com seu marido Cupido, e as bodas celebradas no céu.
Capítulo I
Como a velha, prosseguindo em seu conto para consolar à donzela, conta como Psique foi levada à uns palácios
muito prósperos, os quais descreve com muita eloqüência, onde por muitas noites folgou com seu novo marido Cupido.
-Psique, estando deitada brandamente naquele formoso prado de flores e rosas, aliviou-se da
pena que em seu coração tinha e começou docemente a dormir. Depois que suficientemente descansou,
levantou-se alegre; viu ali perto uma floresta de muito grandes e formosas árvores; viu deste modo uma
fonte muito clara e aprazível; em meio daquela floresta, perto da fonte, estava uma casa real, a qual
parecia não ser edificada por mãos de homens, mas sim por mãos divinas: à entrada da casa estava um
palácio tão rico e formoso, que parecia morada de algum deus, porque o zaquizamí e cobertura era de
madeira de cedro e de marfim maravilhosamente lavrado; as colunas eram de ouro, e todas as paredes
cobertas de prata. Na qual estavam esculpidos bestas e animais que pareciam arremetiar aos que ali
entravam. Maravilhoso homem foi o que tanta arte sabia, penso que era meio deus, até acredito que
fosse deus o que com tanta sutilidade e arte fez da prata estas bestas feras. Pois o pavimento do palácio
todo era de pedras preciosas, de diversas cores, lavradas muito minúsculas como obra mosaica: de onde
se pode dizer uma vez e muitas que bem-aventurados são aqueles que pisam sobre ouro e pedras
preciosas; já as outras peças da casa, muito grandes, largas e preciosas, sem preço. Todas as paredes
forradas em ouro, tão resplandecente, que fazia dia e luz do mesmo modo, embora o Sol não quisesse.
Desta maneira resplandeciam as câmaras, os portais, corredores e as portas de toda a casa. Não menos
respondiam à majestade da casa todas as outras coisas que nela havia, por onde se podia muito bem
julgar que Júpiter fundasse este palácio para a conversação humana. Psique, convidada com a
formosura de tal lugar, chegou perto e com um pouco mais de ousadia entrou pela soleira de casa, e
como lhe agradava a formosura daquele edifício, entrou mais adiante, maravilhando-se do que via.
Dentro da casa viu muitos palácios e salas perfeitamente lavrados, cheios de grandes riquezas, que nada
havia no mundo que ali não estivesse. Mas, sobretudo, o que mais se poderia homem ali maravilhar,
demais das riquezas que havia, era a principal e maravilhosa que nenhuma fechadura nem guarda havia
ali, onde estava o tesouro de todo o mundo. Andando ela com grande prazer, vendo estas coisas, ouviu
uma voz sem corpo que dizia:
«Por que, senhora, você se espanta de tantas riquezas? Seu é tudo isto que aqui vê; portanto,
entre na câmara, ponha-se a descansar na cama; quando quiser demanda água para banhar, que nós,
cujas vozes ouve, somos suas servidoras e lhe serviremos em tudo o que mandar, e não demorará o
manjar que preparam para reforçar seu corpo.»
Quando isto ouviu Psique, sentiu que aquilo era provisão divina; descansando de sua fadiga,
dormiu um pouco, depois que despertou levantou-se e lavou-se; vendo que a mesa estava posta e
preparada para ela, sentou-se; logo veio muita cópia de diversos manjares, e, do mesmo modo, um
vinho que se chama néctar, de que os deuses usam: contudo não aparecia quem o trazia, e somente
parecia que vinha no ar; nem tampouco a senhora podia ver ninguém, mas somente ouvia as vozes que
falavam, só a estas vozes tinha por servidoras. Depois que comeu, entrou um músico e começou a
cantar, outro a tocar com uma viola, sem serem vistos; depois disto começou a soar um canto de muitas
vozes. Como que nenhum homem aparecesse, bem se manifestava que era coro de muitos cantores.
Acabado este prazer, já que era noite, Psique foi dormir, depois de passar um momento da noite
começou a dormir; logo despertou com grande medo e espanto, temendo em tanta solidão não
acontecesse nenhum dano à sua virgindade, do qual ela tanto maior mal temia, quanto mais estava
ignorante do que ali havia, sem ver nem conhecer ninguém. Estando neste medo, veio o marido não
conhecido, subindo na cama fez sua mulher à Psique; antes que fosse o dia partiu dali, logo aquelas
vozes vieram à câmara e começaram a cuidar da noiva, que já era proprietária. Desta maneira passou
algum tempo sem ver seu marido nem haver outro conhecimento. E, como é coisa natural, a novidade
e estranheza que antes tinha pela continuação, já se transformando em prazer, e o som da voz incerta já
lhe era distração e deleite daquela solidão. Enquanto isso, seu pai e mãe envelheciam em pranto e luto
contínuo. A fama deste negócio, como passara, chegara onde estavam as irmãs maiores casadas: as
quais, com muita tristeza, carregadas de luto deixaram suas casas e foram ver seus pais para lhes falar e
consolá-los. Aquela mesma noite o marido falou com sua mulher Psique: porque como não queria que
o visse, bem o sentia com os ouvidos, apalpava com as mãos, e disse-lhe desta maneira:
«Oh, senhora muito doce e muito amada mulher! A cruel fortuna ameaça-a com um perigo de
morte, do qual eu queria que se guardasse com muita cautela. Suas irmãs, turvadas pensando que você é
morta, têm que seguir suas pegadas e vir até aquele penhasco de onde você aqui veio; se você por
ventura ouvir suas vozes e prantos, não lhes responda nem olhe lá em maneira alguma; porque se o faz,
me dará muita dor, mas para você causará um maior mal que será quase a morte.»
Ela prometeu de fazer tudo o que o marido lhe mandasse e que não faria outra coisa; mas,
como a noite passou e o marido dela partiu, todo aquele dia a mesquinha consumiu em prantos e em
lágrimas, dizendo muitas vezes que agora conhecia que ela era morta e perdida por estar encerrada e
guardada em um cárcere honesto, separada de toda fala e conversação humana, que inclusive não podia
ajudar e responder sequer suas irmãs, que por sua causa choravam, nem somente as podia ver. Desta
maneira, aquele dia nem quis lavar-se, nem comer, nem recrear com coisa alguma, a não ser, chorar
com muitas lágrimas, foi dormir. Não passou muito tempo, que o marido veio mais cedo que outras
noites; deitando-se na cama, ela, embora chorando, abraçou-a, começou a repreender desta maneira:
«Oh minha senhora Psique! Isto é o que você me prometeu? O que posso eu, sendo seu
marido, esperar de si, quando o dia e toda a noite, até agora que está comigo, não deixa de chorar?
Anda já, faz o que quer e obedece a sua vontade, que demanda dano para si, porém, mais tarde,
arrepender-se-á, recordar-se-á do que admoestei.»
Então ela, com muitos rogos, dizendo que se não lhe outorgava o que queria que ela morreria,
tirou-lhe por força e contra sua vontade que fizesse o que desejava: que veja suas irmãs, console-as, fale
com elas; até tudo o que quiser lhes dar, tanto ouro como jóias e colares, que o dê. Mas, muitas vezes
admoestou-a e espantou-a que não consinta em mau conselho de suas irmãs, nem cuide de procurar
nem saber o gesto e figura de seu marido, porque, com esta sacrílega curiosidade, não caia de tanta
riqueza e bem-aventurança como tem: que, fazendo de outra maneira, jamais lhe veria nem tocaria. Ela
agradeceu ao marido, e, estando já mais alegre, disse:
«Por certo, senhor, você saberá que antes morrerei, senão tivesse que estar sem seu muito doce
casamento; porque eu, senhor, amo-o e muito fortemente, e a quem quer que seja, quero-o como a
minha alma, e não penso que o posso comparar ao deus Cupido; mas, além disto, senhor, rogo-lhe que
mande a seu servidor o vento boreal, que traga minhas irmãs aqui, assim como a mim me trouxe.»
E dizendo isto, deu-lhe muitos beijos, adulando-o com muitas palavras, abraçando-o com
adulações, e dizendo:
«Ai doce marido! Doce alma de sua Psique!»
E outras palavras, por onde o marido foi vencido, e prometeu fazer tudo o que ela quisesse.
Vindo já a alvorada, ele desapareceu de suas mãos.
As irmãs perguntaram por aquele penhasco, ou lugar, onde deixaram Psique; logo foram para lá
com muito pesar, de onde começaram a chorar e dar grandes vozes e uivos, feridos os peitos: tanto,
que às vozes que davam os Montes e penhascos ecoavam o que elas diziam, chamando por seu próprio
nome à mesquinha de sua irmã; tanto que até Psique, ouvindo as vozes que ecoavam por aquele vale
abaixo, saiu de casa tremendo, como sem juízo, e disse:
«Por que sem causa lhes afligem com tantas mesquinharias e prantos? Por que choram, se viva
estou? Deixem esses gritos e vozes; não parem de chorar, porque podem abraçar e falar por quem
choram.»
Então chamou o vento boreal e mandou-lhe que fizesse o que seu marido mandara. Ele, sem
mais demorar, obedecendo seu mandamento, trouxe logo suas irmãs muito mansamente, sem fadiga
nem perigo; quando chegaram, começaram abraçar e beijar umas as outras, as quais, com grande prazer
e gozo que houveram, tornaram de novo a chorar. Psique disse que entrassem em sua casa alegremente
e descansassem com ela de suas penas.
Capítulo II
Como, prosseguindo a velha o conto, contou como as duas irmãs de Psique foram vê-la, ela deu-lhes suas jóias e
riquezas; enviou-as às suas terras, e como pelo caminho foram invejando dela com vontade de matá-la.
-Depois que assim lhes falou, mostrou a casa e as grandes riquezas dela; a muita família das que
lhe serviam ouvindo-as somente; depois mandou lavarem-se em um banheiro muito rico e formoso;
sentar à mesa, onde havia muitos manjares abundantemente, de tal maneira que a fartura e abundância
de tantas riquezas, mais celestiais que humanas, criaram inveja em seus corações contra ela. Finalmente,
que uma delas começou a perguntar-lhe, curiosamente, a importunar-lhe que o dissesse quem era o
senhor daquelas riquezas celestiais; quem era, ou que tal era seu marido. Mas, com todas estas coisas,
nunca Psique quebrou o mandamento de seu marido nem tirou de seu peito o segredo do que sabia: e
falando no negócio, fingiu que era um mancebo formoso e de boa disposição, que então lhe apontavam
as barbas, o qual andava lá ocupado em fazenda do campo e caçando animal de caça; porque em
algumas palavras das que falava não descobrisse o segredo, carregou-as de ouro, jóias e pedras
preciosas; chamado o vento, mandou-lhe que voltasse a levar de onde as trouxera: o qual fez, as boas
das irmãs, retornando à casa, foram ardendo com o fel da inveja que lhes crescia; uma à outra falava
sobre isso muitas coisas, entre as quais, alguém disse isto:
«Olhem agora que coisa é a fortuna cega, malvada e cruel. Parece-lhe como bem, que sejamos
todas as três filhas de um pai e mãe e que tenhamos diversos estados? Nós, que somos maiores,
sejamos escravas de maridos arrivistas; que vivamos como desterradas fora de nossa terra; apartadas
muito longe da casa e reino de nossos pais; esta nossa irmã, última de todas, que nasceu depois que
nossa mãe estava farta de parir, tenha que possuir tantas riquezas e ter um deus por marido? E até,
certo, ela não sabe bem usar de tanta multidão de riquezas como tem: não viu você, irmã, quantas
coisas estão naquela casa, quantos colares de ouro, quantas vestimentas resplandecem, quantas pedras
preciosas resplandecem? E além disto, quanto ouro rastreja na casa? Por certo, se ela tiver o marido
formoso, como disse, nenhuma mais bem-aventurada mulher vive hoje em todo mundo; por ventura
poderá ser que, procedendo a continuação e esforçando-se mais a afeição, sendo ele deus, também fará
dela deusa. Por certo assim é, que já ela presumia, tratava-se com muita altivez, que já pensa que é
deusa, porque tem as vozes por servidoras e manda aos ventos. Eu, mesquinha, o primeiro que posso
dizer é que fui casada com um marido mais velho que meu pai; além disto, mais calvo que uma cabaça e
mais fraco que um menino, guardando de contínuo a casa fechada com ferrolhos e cadeias.»
Quando disse isto, começou a outra e disse:
«Pois eu sofro outro marido gotoso, que tem os dedos tortos da gota, é encurvado, pelo qual
nunca tenho prazer; esfrego-lhe continuamente seus dedos endurecidos como pedra com remédios
fedidos, panos sujos e cataplasmas; que já tenho queimadas estas minhas mãos, que costumavam a ser
delicadas, que certo eu não represento ofício de mulher, mais antes uso de pessoa de médico, e até bem
fatigado. Mas você, irmã, parece-me que sofre isto com ânimo paciente; até melhor poderia dizer que é
serva, porque já livremente quero dizer o que sinto. Mas eu, de maneira nenhuma, posso já sofrer de
tanta bem-aventurança alcançou pessoa tão indigna: não se lembra quão soberba, com quanta
arrogância se houve conosco, que as coisas que nos mostrou com aquele louvor, como grande senhora,
manifestaram bem seu coração inchado? De tantas riquezas como ali tinha nos deu pouco, contra sua
vontade; pesando conosco, logo nos mandou sair dali com seus assobios ao vento. Pois não me tenha
por mulher, nem nunca eu viva, senão a faço lançar de tantas riquezas; finalmente, que se esta injúria
toca a si, como é razão, tomemos ambas um bom conselho; estas coisas que levamos não as
mostraremos aos nossos pais, nem a ninguém digamos coisa alguma de sua saúde; basta-nos o que nós
vimos, do qual nos pesa de havê-lo visto, e não comuniquemos a ninguém tanta felicidade dela, porque
não se podem chamar aqueles bem-aventurados de cujas riquezas nenhum sabe: ao menos ela saiba que
nós não somos suas escravas, mais suas irmãs maiores; agora deixemos isto e voltemos aos nossos
maridos e pobres casas, embora certo boas e honestas; depois instruídas, com maior acordo e conselho
tornaremos mais fortes para punir sua soberba.»
Este mau conselho pareceu muito bom às duas más irmãs; escondendo as jóias e dons que
Psique deu-lhes, retornaram desgrenhadas, como que vinham chorando; arranhando lágrimas, fingindo
de novo grandes prantos, desta maneira deixaram seus pais, sofrendo sua dor, e com muita ira, turvadas
da inveja, retornaram para suas casas, acertando pelo caminho traição, engano e até morte contra sua
irmã, que estava sem culpa.
Capítulo III
Como Cupido avisa sua mulher, Psique, que de maneira nenhuma descubram suas irmãs de quem está grávida,
nem as acredite quanto o disserem, porque se perderá.
-Enquanto isso, o marido de Psique, ao qual ela não conhecia, voltou admoestar outra vez com
aquelas suas palavras de noite, dizendo:
«Não vê quanto perigo ordena a fortuna? Pois se você, de longe, antes que venha, não se afasta
e provê, ela será consigo de perto. Aquelas lobas sem fé ordenam quanto podem contra si muito más
armadilhas, das quais a soma é esta: elas querem persuadir-lhe, que você veja minha cara, a qual, como
muitas vezes lhe disse, você não a verá jamais, se a vir. Assim se depois disto aquelas más bruxas vierem
armadas com seus malignos corações, que bem sei que virão, não fale com elas nem ponha as razões; se
por sua mocidade e pelo amor que lhes tem não lhe puder sofrer, ao menos de coisa que toque a seu
marido, nem as ouça, nem responda à elas; porque acrescentaremos nossa linhagem, que até este seu
ventre menino, outro menino traz já dentro, e se você encobrir este segredo, eu lhe digo que será
divino, e se o descobrir, a partir de agora lhe certifico que será mortal.»
Psique, quando isto ouviu, gozo-se muito e houve agradar com a divina geração. Alegrava-se
com a glória do que tinha que parir, gozando-se com a dignidade de ser mãe, com muita ânsia contava
os dias e meses quando entravam e quando saíam. E como era nova, no início da gravidez,
maravilhava-se de um ponto e toque tão sutil crescer em tão abundância seu ventre. Mas, aquelas fúrias
espantáveis e pestíferas, já desejavam lançar o veneno de serpentes; com esta pressa aceleravam seu
caminho pelo mar quanto podiam. Nisto, o marido voltou a admoestar Psique desta maneira:
«Já chega o último dia e a queda última, porque sua linhagem, seu sangue, sua inimizade já
tomou armas contra si; move-se sua realidade e compõe suas batalhas; faz tocar as trombetas, e
dizendo-o mais claro, as malvadas de suas irmãs, com a espada tirada querem degola-la. Oh, quantas
fadigas nos atormentam! Por isso você, muito doce senhora, tenha mercê de si e de mim; com grande
continência, calando o que lhe disse, libera a sua casa, marido e este nosso filho da queda da Fortuna
que lhe ameaça; à estas falsas e enganosas mulheres, as quais segundo o ódio mortal lhe têm, e o
vínculo da irmandade já está quebrantado e quebrado, não lhe convém chamar as irmãs, nem as veja
nem as ouça, porque elas virão tentar, em cima daquele penhasco, como as sereias do mar; farão soar
todos estes Montes e vales com suas vozes e prantos.»
Então Psique, chorando, disse-lhe:
«Bem sabe você, senhor, que eu não sou faladeira; já outro dia ensinou-me a fé que tinha que
guardar e o que tinha que calar; assim, que agora você não verá que eu mude da perseverança e firmeza
de meu ânimo; somente rogo-lhe que mande outra vez ao vento que faça seu ofício e que sirva no que
lhe mandar; em lugar de sua vista, pois me nega isso, ao menos consente que eu goze da vista de
minhas irmãs: isto, senhor, suplico-lhe por estes seus cabelos lindos e cheirosos; por este seu rosto,
semelhante ao meu; pelo amor que tenho, embora não o conheça de vista: assim conheça eu sua cara
neste menino que trago no ventre: que você, senhor, conceda aos meus rogos, fazendo que eu goze de
ver e falar com minhas irmãs; daqui adiante não procurarei mais de querer conhecer sua cara; não
procuro que as trevas da noite me tirem sua vista, pois eu tenho a você, que é minha luz.»
Com estas brandas palavras, abraçando a seu marido e chorando, limpava as lágrimas com seus
cabelos, tanto, que ele foi vencido e prometeu de fazer tudo o que ela queria; logo, antes que
amanhecesse, partiu-se dela como ele costumava. As irmãs, com seu mau propósito, em chegando, não
procuraram ver seus pais, a não ser, em saindo das naves, direito foram correndo quanto puderam
àquele penhasco, aonde, com o anseio que tinham, não esperaram que o vento as ajudasse, antes, com
temeridade e audácia, lançaram-se dali abaixo. Mas o vento, recordando-se do que seu senhor lhe
mandara, recebeu-as em suas asas contra sua vontade, e colocou-as muito mansamente no chão; elas,
sem nenhuma tardança, lançaram-se logo em casa; foram abraçar a que queriam perder, e mentindo o
nome de irmãs, encobriram com suas caras alegres o tesouro de seu escondido engano, e começaram a
lisonjear desta maneira:
-Irmã Psique, já não é menina como estava acostumada: já nos parece que é mãe. Quanto bem
pensa que nos traz neste seu ventre? Quanto gozo pensa que dará a toda sua casa? Oh, quão bemaventuradas somos nós, que temos linhagem em tantas riquezas! Que se o menino parecer com seus
pais, como é razão, certo ele será o deus Cupido, que nascerá.
Com este amor e afeição fingido começam pouco a pouco a ganhar a vontade de sua irmã. Ela
as mandou sentar em suas cadeiras para que descansassem, e logo as fez lavar no banheiro; depois de
lavadas sentaram-se à mesa, onde lhes deram manjares reais em abundância; logo veio a música e
começaram a cantar, a tocar muito brandamente: o qual, embora não viam quem o fazia, era tão muito
doce a música que parecia coisa celestial; mas, com tudo isto não se amansava a maldade das falsas
mulheres, nem puderam tomar espaço, nem folga com tudo aquilo: antes, procuravam armar seu laço
de enganos que traziam pensado. E começaram dissimuladas a colocar palavras, perguntando-lhe que
tal era seu marido e de que nação, ou lei vinha. Psique, com sua babeira, esquecendo o que seu marido
recomendou-lhe, começou a fingir uma nova razão, dizendo que seu marido era de uma grande
província; que era mercador, que tratava de grandes mercadorias; que era homem de mais de meia
idade, que já lhe começava dar pena. Não demorou muito nesta fala, que logo as carregou de jóias e
ricos dons, e mandou ao vento que as levasse: depois que o vento as pôs naquele penhasco, retornaram
à casa brigando entre si desta maneira:
«O que podemos dizer de uma tão grande mentira como nos disse aquela louca? Uma vez nos
disse que era seu marido um mancebo, que então o apontavam as barbas; agora diz que é de mais de
meia idade e já tem pena: quem pode ser aquele que em tão pouco espaço de tempo lhe veio a velhice?
Certo, irmã, você achará que esta má fêmea nos minta, ou ela não conhece quem é seu marido; algo me
diz que nos convém que joguemos estas riquezas; se, por ventura, não conhece seu marido, certo por
isso se casou ela, traz algum deus em seu ventre; assim fosse o que nunca Deus queria, que esta ouvisse
ser mãe de menino divino: logo me enforcaria com uma corda; assim voltemos aos nossos pais e
calemos isto, encobrindo-o com a melhor cor que pudermos.»
Desta maneira, inflamadas da inveja, retornaram à casa e falaram com seus pais, embora a
contra gosto.
Capítulo IV
Como vindas as irmãs visitar Psique lhe aconselham que trabalhe para ver quem é aquele com quem tem acesso,
fingindo-lhe que seja um dragão: ela, convencida do conselho, vê-lhe dormindo, e indignado Cupido nunca mais a viu.
-Aquela noite, sem poder dormir, turvadas da pena e fadiga que tinham, logo como amanhecia
correram quanto puderam até o penhasco, de onde, com a ajuda do vento acostumado, voaram até à
casa de Psique; com umas poucas lágrimas que, por força e apertando os olhos, tiraram, começaram a
falar com sua irmã desta maneira:
«Você pensa que é bem-aventurada, está muito segura e sem nenhum cuidado, não sabendo
quanto mau e perigo tem. Mas nós, que com maior cuidado velamos sobre o que se cumpre, muito
somos fatigadas com seu dano: porque tem que saber que achamos por verdade que este seu marido
que retorna contigo é uma serpente grande e venenosa; o qual, com a dor e pena que de seu mal temos,
não lhe podemos encobrir; agora nos recorda do que o deus Apolo respondeu quando o consultaram
sobre seu casamento, dizendo que você foi assinalada para se casar com uma cruel besta. E muitos dos
vizinhos destas linhagens que andam a caçar por estas montanhas, outros lavradores, dizem que viram
este dragão quando à tarde voltam de procurar de comer, que se põe a nadar por este rio para passar
para cá; todos afirmam que se quer engordar com estes presentes e manjares que lhe dá, quando esta
sua gravidez estiver no final e você estiver bem cheia, para gozar de mais fartura que se tem que tragar;
assim que nisto está agora sua estimativa e julgamento. Se por ventura quer mais, ou acreditar em suas
irmãs, que por sua saúde andam solícitas e que viva com nós segura de perigo fugindo da morte, ou se
quiser possivelmente ser enterrada nas vísceras desta cruel besta. Porque se as vozes sozinhas que neste
campo ouvem, ou o escondido prazer e perigoso dormir, juntando-se com este dragão lhe deleitam, seja
como você quer, que nós com isto cumprimos, e já fizemos ofício de boas irmãs.»
Então, a mesquinha da Psique, como era moça e de nobre condição, acreditou o que lhe
disseram, com palavras tão espantáveis saiu fora de si: pelo qual lhe esqueceu as advertências de seu
marido e de todas as promessas que lhe fez, lança-se no profundo de sua desdita e desventura;
tremendo, a cor amarela, não podendo quase falar, cortando as palavras e meio falando, como melhor
pôde, disse desta maneira:
«Vocês, senhoras irmãs, fazem ofício de piedade e virtude como é razão: acredito eu muito bem
que aqueles que tais coisas lhes disseram não fingiram mentira, porque eu até hoje nunca pude ver a
cara de meu marido, nem soube de onde é. Somente o ouço falar de noite, com isto passo e sofro do
marido incerto e que foge da luz; desta maneira consinto que digam que tenho uma grande besta por
marido; que me espanta dizendo que não o posso ver: sempre me ameaça que me virá grande mal se
instar em querer ver sua cara. E porque assim é, se agora podem socorrer ao perigo de sua irmã com
alguma ajuda e favor saudável, façam-me socorrer, porque senão o fazem poderei muito bem dizer que
a negligência seguinte corrompe o benefício da providência passada.»
Quando as duas más mulheres acharam o coração e vontade de Psique descoberto para receber
o que disserem, deixados os enganos secretos, começaram com as espadas descobertas publicamente a
combater o pensamento temeroso da simples mulher, uma delas disse desta maneira:
«Porque o vínculo de nossa irmandade nos compele por sua saúde a tirar diante dos olhos
qualquer perigo, mostraremo-lhe um caminho que há dias pensamos, o qual só tirará porto de saúde, e
é este: Você tem que esconder secretamente na parte da cama onde revista deitar uma navalha bem
aguda, que na palma da mão se aguçou, porá um candelabro cheio de azeite bem aparelhado e aceso
debaixo de alguma cobertura ao canto da sala: com todo este arranjo, muito bem dissimulado, quando
vir aquela serpente e subir na cama como acostumou, desde que você veja que ele começa a dormir e
com o grande sono começa a respirar, salta da cama e descalça ao passo, saca o candelabro debaixo de
onde está escondido, tira o candelabro oportunidade para a façanha que quer fazer; com aquela navalha,
elevada primeiro a mão direita com o maior esforço que puder, dá em o nó da nuca daquela serpente
venenosa, corte-lhe a cabeça: não pense que lhe faltará nossa ajuda, porque logo que você com sua
morte trouxer vida para si, estaremos esperando-a com muita ânsia, para lhe levar daqui com todos
estes seus servidores e riquezas que aqui tem, lhe casaremos como desejamos com homem humano,
sendo você mulher humana.»
Com estas palavras acenderam tanto as vísceras de sua irmã, que deixaram quase tudo ardendo.
E elas, temendo do mau conselho que davam à outra não viesse algum grande mal por isso, partiramse, e com o vento acostumado se foram até em cima do penhasco, de onde fugiram o mais rápido que
puderam, entrando em suas naves, foram às suas terras.
Psique ficou sozinha: embora ficando fatigada daquelas fúrias não estava sozinha, mas chorando
flutuava seu coração como o mar quando anda com tormenta; como ela deliberara com vontade muito
obstinada o conselho que lhe deram, pensando como tinha que fazer aquele negócio, mas ainda
titubeava e estava incerta do conselho, pensando no mal que lhe podia vir; desta maneira já o queria
fazer, já o queria dilatar, agora ousava, agora temia, já desconfiava, já se zangava. Enfim, o que mais lhe
fatigava era que em um mesmo corpo aborrecia à serpente e amava a seu marido. Quando já era tarde
que a noite vinha, ela começou a equipar-se com muita pressa, àquela sua má façanha; sendo de noite
veio o marido à cama, o qual, depois de burla-se com ela, começou a dormir com grande sono. Então,
Psique, como era delicada do corpo e do ânimo, mas, ajudando-lhe a crueldade de seu fado se esforçou;
tirando o candelabro debaixo de onde estava, tomou a navalha na mão; sua ousadia venceu e mudou a
fraqueza de seu gênero. Como ela iluminasse com o candelabro e aparecesse todo o segredo da cama,
visto uma besta, a mais mansa e muito doce de todas as feras: digo que era aquele formoso deus do
amor que se chama Cupido, o qual estava deitado muito belamente; com sua vista alegrando-se, a luz da
vela cresceu, a sacrílega e aguda navalha resplandeceu.
Quando Psique viu-o, espantada e posta fora de si, desfalecida, com a cor amarela, tremendo,
cortou-se e caiu sobre os joelhos; quis esconder a navalha em seu seio e fizera, salvo pelo temor de tão
grande mau como queria fazer, caiu-lhe a navalha da mão. Estando assim fatigada e desfalecida, quanto
mais olhava a cara divina do Cupido tão mais recreava com sua formosura. Via-lhe os cabelos como
fios de ouro, cheios de aroma divino; o pescoço, branco como o leite; a cara, branca e vermelha como
rosas tintas, os cabelos de ouro pendurando por toda parte, que resplandeciam como o Sol e venciam à
luz do candelabro. Tinha deste modo nos ombros pétalas das cores de rosas e flores; como que as asas
fixas, mas as outras plumas debaixo das asas tenras e delicadas estavam tremendo muito garbosamente;
todo o corpo do outro estava formoso e sem plumas, como convinha ao filho da deusa Vênus, que o
pariu sem arrepender-se por isso. Estava ante os pés da cama o arco e as setas, que são armas do deus
do amor; o qual, tudo olhava Psique, não se cansava de olhá-lo, maravilhando-se das armas de seu
marido; tirou da aljava uma seta, tentando com o dedo, ver se era aguda como diziam, cortou-lhe um
pouco a seta, de maneira que começaram a sair umas gotas de sangue da cor de rosas, desta maneira,
Psique, não sabendo, caiu e foi presa de amor do deus do amor: então, com muito maior ardor de
amor, abaixou-se sobre ele e começou a beija-lo com tão grande prazer, que temia não despertasse tão
disposto.
Estando ela neste agradar, ferida do amor, o candelabro que tinha na mão, ou por não ser fiel,
ou de inveja mortal, ou que por ventura ela também quis tocar o corpo do Cupido, ou possivelmente
beijá-lo, lançou de si uma gota de azeite fervendo e caiu sobre o ombro direito do Cupido. Oh,
candelabro ousado, temerário e vil servidor do amor! Você queima ao deus de todo o fogo; porque para
isto você não foi mister, mas sim algum apaixonado achou-o primeiro para gozar na escuridão da noite
do que bem queria. Desta maneira o deus Cupido, queimado, saltou da cama; reconhecendo que seu
segredo era descoberto, discretamente, desapareceu e fugiu dos olhos da desventurada de sua mulher.
Psique arrebatou com ambas as mãos a perna direita do Cupido, que se levantava, assim, foi
dependurada pelos seus pés, pelas nuvens do céu, até que caiu no chão. Mas, o deus do amor não a quis
desamparar caída em terra; veio voando a sentar-se em um cipreste que estava ali perto, de onde com
irritação, gravemente, começou a repreendê-la dizendo desta maneira:
«Oh, Psique, mulher simples: eu, não recordando dos mandamentos de minha mãe Vênus, a
qual me mandara que se apaixonasse por um homem muito miserável sob linhagem, a quis bem e fui
seu apaixonado; mas, isto que fiz bem sei que fizera levianamente! Eu mesmo, que sou atirador para os
outros, feri-me com minhas setas e tomei por mulher. Parece que o fiz por lhe parecer serpente e
porque você perdeu a cabeça, que traz os olhos que bem lhe quiseram. Não sabe você quantas vezes lhe
dizia que se guardasse disso, e benignamente, avisava-lhe para que se separasse disso. Mas, aquelas boas
mulheres suas conselheiras rapidamente pagar-me-ão o conselho que lhe deram; e a si, com minha
ausência, fugindo-lhe, castigar-lhe-ei.»
Dizendo isto, levantou-se com suas asas e voou alto para o céu.
Psique, quando arremessou em terra e quanto podia com a vista, olhava como seu marido
voava, aflito seu coração com muitos choros e angústias. Depois que seu marido desapareceu voando
pelas alturas do céu, ela, desesperada, estando na ribeira de um rio, lançou-se de cabeça dentro; mas o
rio se tornou manso por honra e serviço do deus do amor, cuja mulher era ela, o qual acostumou a
inflamar de amor às mesmas águas e às ninfas delas. Assim, que temendo de si mesmo, tomou-a com as
ondas, sem lhe fazer mal, colocou-a sobre as flores e ervas de sua ribeira. Acaso o deus Pan, que é deus
das montanhas, situava-se em um monte alto perto do rio: no qual tocando com uma flauta e
ensinando a tocar à ninfa Canha. Estavam deste modo, ao redor dele, uma manada de cabras, que
andavam pastando as árvores e matas que estavam sobre o rio. Quando o deus peludo viu Psique tão
deprimida e assim ferida de dor, que já ele bem sabia sua desdita e pena, chamou-a, começou a adulá-la
e consolar com brandas palavras, dizendo desta maneira:
«Donzela sabida e formosa: como sou pastor e rústico, mas, por ser velho sou instruído de
muitos experimentos; de maneira que, embora conjeturo aquilo que os prudentes varões chamam
adivinhação, eu conheço deste seu andar titubeando com os pés, da cor amarela de sua cara, de seus
grandes suspiros e lágrimas dos olhos; bem acredito certo que você anda fatigada e morta de grande
dor; porque assim é, você escute-me e não torne a lançar-se dentro do rio, nem se mate com nenhum
outro gênero de morte; estorva de si o luto e deixa de chorar. Antes procura aplacar com preces ao
deus Cupido, que é maior dos deuses; trabalha por merecer seu amor com serviços e adulações, porque
é mancebo delicado e muito agradável.»
Capítulo V
Como Psique, muito triste, foi se consolar com as irmãs da desventurada fortuna em que caíra por seu conselho;
elas, ambiciosas de casar com o deus Cupido, foram despenhadas em pena de sua maldade; e como sabendo a deusa Vênus
este acontecimento, trabalhou por vingar-se do Cupido.
Quando acabou de dizer isto, o deus pastor, Psique, sem lhe responder palavra nenhuma, a não
ser somente adorando sua deidade, começou a andar seu caminho; antes que andasse muito, entrou por
um atalho que atravessava, pelo qual indo, chegou a uma cidade aonde era o reino do marido de uma
daquelas suas duas irmãs: quando a rainha sua irmã soube que estava ali, mandou-a entrar; depois que
ambas se abraçaram, perguntou-lhe o que era a causa de sua vinda. Psique respondeu:
«Não recorda você, senhora irmã, o conselho que me deram ambas, que matasse àquela grande
besta que retornava a mim de noite em nome de meu marido antes que me tragasse e comesse, para o
qual me deu uma navalha? O qual, como eu queria fazer, tomei um candelabro; assim que olhei seu
gesto e cara vejo uma coisa divina e maravilhosa: ao filho da deusa Vênus, digo, ao deus Cupido, que é
deus do amor, que estava belamente dormindo; como eu estava incitada de tão maravilhosa vista,
turvada de tão grande prazer, não me cansei de ver aquele formoso gesto, a caso fortuito e péssimo
fervendo o azeite do candelabro, que tinha na mão, caiu uma gota fervendo em seu ombro; com aquela
grande dor despertou, como me viu armada com ferro e fogo, disse-me: «Como fez tão grande maldade
e traição? Toma logo todo o seu e vai para sua casa.» Além disto disse: «Eu tomarei a sua irmã em seu
lugar; casar-me-ei com ela, dando-lhe penhor e dote.» Dizendo isto, mandou ao vento boreal que me
ventilasse fora dos términos de sua casa.»
Não acabara Psique de falar estas palavras, quando a irmã, estimulada e incitada de mortal
inveja, composta de uma mentira para enganar a seu marido, dizendo que soubera da morte de seus
pais, meteu-se em uma nave e começou a andar até que chegou àquele penhasco grande, no qual subiu,
como que outro vento àquela hora ventava; mas ela, com aquela ânsia e com cega esperança disse:
«Oh Cupido! Receba-me, que sou digna de ser sua mulher, e você, vento boreal, recebe à sua
senhora.»
Com estas palavras deu um salto grande do penhasco abaixo; mas, ela nem viva, nem morta
pôde chegar ao lugar que desejava, porque por aqueles penhascos e pedras fez-se aos pedaços, como ela
merecia; assim morreu, fazendo-se manjar das aves e bestas daquele monte. Depois desta não demorou
muito a pena e vingança da outra sua irmã; porque, indo Psique por seu caminho mais adiante, chegou
a outra cidade, na qual morava a outra sua irmã, segundo o que dissemos; a qual, deste modo com
engano de sua irmandade, fez nem mais nem menos como a outra: que querendo o casamento que não
lhe cumpria, fosse quanto mais disposta pôde àquele penhasco, de onde caiu e morreu, como fez a
outra. Enquanto isso, Psique, andando muito angustiada em busca de seu marido Cupido, cercava
todos os povos e cidades; mas ele, ferido da chaga que lhe fez a gota de azeite do candelabro, estava
jogado doente e gemendo na cama de sua mãe. Então, uma ave branca que se chama gaivota, que
nadava com suas asas sobre as ondas do mar, mergulhou perto do fundo do mar Oceano; achou ali à
deusa Vênus, que se lavava e nadava naquela água; à qual chegou e disse-lhe como «seu filho Cupido
estava mal de uma grave chaga de fogo que lhe dava muita dor, chorando, em muita dúvida de sua
saúde, pela qual toda a gente e família de Vênus era infamada e vituperada; pelos povos e cidades de
toda a terra; dizendo que ele se ocupou e afastou-se com uma mulher serrana e montanhesa; deste
modo afastou-se, andando, no mar nadando, a seu prazer; por isso, já não há entre as pessoas prazer
nenhum, nem graça, nem formosura; mas, todas as coisas estão rústicas, grosseiras e sem adorno; já
ninguém se casa, nem ninguém tem amizade com mulher, nem amor de filhos; a não ser, tudo ao
contrário, sujo e feio, para todos irritante.»
Quando aquela ave faladeira disse estas coisas à Vênus, repreendendo seu filho Cupido, Vênus,
com muita ira, exclamou fortemente:
-Parece que já aquele bom de meu filho tem alguma amiga; dá-me tanto prazer, que me serve
com mais amor que nenhuma, que me saiba o nome daquela que enganou este moço de pouca idade:
agora seja alguma das ninfas, ou do número das deusas, ou agora seja das musas, ou do ministério de
meu agradecimento.»
Aquela ave faladeira não calou o que sabia, dizendo:
«Certo, senhora; não sei como se chama; penso, embora me lembro, que seu filho morreu por
uma moça chamada Psique.»
Então, Vênus, indignada, começou a dar vozes, dizendo:
«Certamente, ele deve amar àquela Psique que pensava ter meu gosto e era invejosa de meu
nome: pelo que mais tenho irritação neste negócio é que me fez sua cúmplice, porque eu lhe mostrei e
ensinei por onde conhecesse aquela moça mortal.»
Desta maneira, brigando e gritando, rapidamente saiu do mar e foi logo à sua câmara, aonde
achou seu filho mal, conforme o ouvira, e da porta começou a dar vozes, dizendo desta maneira:
«Honesta coisa é, que cumpre muito a nossa honra e a sua boa fama o que fizeram! Parece-lhe
boa coisa menosprezar e ter em pouco os mandamentos de sua mãe, que mais é sua senhora, dando-me
pena com os sujos amores de minha inimizade; a qual nesta sua pequena idade juntou contigo com seus
atrevidos e temerários pensamentos? Pensa você que tenho eu de sofrer por amor à nora que seja
minha inimiga? Mas, você, mentiroso e corrompedor de bons costumes, presume que só é engendrado
para os amores; que eu, por ser já mulher de idade, não poderei parir outro Cupido? Pois, quero agora
que saiba: eu poderei engendrar outro muito melhor que você; embora, porque mais sinta a injúria,
adotarei por filho algum de meus escravos e servidores; dar-lhe-ei asas, chamas de amor, com o arco e
as setas; tudo que dava a você, não para estas coisas em que você anda, que até bem sabe você que dos
bens de seu pai nada lhe dei para esta negociação; mas você, como desde moço foi mau criado, tem as
mãos agudas, muitas vezes, sem reverência nenhuma, tocou aos seus maiores e até a mim, que sou sua
mãe. A mim mesma digo que, como parricida, cada dia me descobre e muitas vezes me fere; agora me
menospreza como se fosse viúva, inclusive não teme seu padrasto, o deus Marte, muito forte e tão
grande guerreador. Que não posso eu dizer isto que você muitas vezes, por me dar pena, acostumou a
lhe dar mulheres? Mas, eu farei que se arrependa deste jogo; que você sinta bem estas azedas e amargas
bodas que fez; como isto que digo é muito, porque este burlará de mim. Pois, o que farei agora, ou de
que maneira castigarei a este velhaco? Não sei se peço favor de minha inimiga Temperança, a qual eu
ofendi muitas vezes, pela luxúria e vício deste; como quer que assim seja, eu delibero de falar com esta
dona, embora seja rústica e severa; pena recebo nisso, mas, não é de desprezar o prazer de tanta
vingança; por isso, eu quero falar-lhe, que não há nenhuma outra que melhor castigue este mentiroso;
tire-lhe as setas e o arco; dispa-lhe de todos os seus fogos de amores; não somente fará isto, mas a sua
pessoa mesma resistirá com fortes remédios. Então, pensarei eu que minha injúria está satisfeita quando
lhe raspar a cabeça aqueles cabelos de cor de ouro, que muitas vezes lhe embelezei com estas minhas
mãos; quando lhe tosquiar aquelas asas que eu em minha saia lubrifiquei com algas e almíscar muitas
vezes.»
Depois que Vênus disse todas estas palavras, saiu muito zangada, dizendo palavras de irritação;
mas, a deusa Ceres e Juno, como a viram zangada, foram acompanhá-la e perguntaram-lhe o que era a
causa, porque trazia o gesto tão turbado, e os olhos, que resplandeciam de tanta formosura, trazia tão
revoltos, mostrando sua irritação. Ela respondeu:
«A bom tempo vêm para me perguntar a causa desta irritação que trago, embora não por minha
vontade, mas sim, porque outro me deu isso; portanto, eu rogo-lhes que com todas suas forças
busquem àquela fugitiva de Psique, onde quer que a encontrem, porque eu bem sei que vocês bem
sabem toda a história do que aconteceu em minha casa, deste filho que não ouso dizer que é meu.»
Então elas, sabendo bem as coisas que passaram, desejando amansar a ira de Vênus, começaram
a falar desta maneira:
«Que tão grande delito pôde fazer seu filho que você, senhora, esteja contra ele, zangada com
tão grande teimosia e inflexibilidade; aquela que ele muito ama, você deseje destruir? Porque lhe
rogamos que olhe bem se for crime para este, que lhe parecesse bem uma donzela. Não sabe que é
homem? Se esqueceu já quantos anos tem seu filho? Porque é mancebo e formoso, você pensa que é
ainda moço? Você é sua mãe e mulher de juízo; sempre experimentou os prazeres e jogos de seu luxo;
você culpa-o; repreende suas artes, vícios e amores; quer encerrar a tenda pública dos prazeres das
mulheres?»
Desta maneira elas queriam satisfazer ao deus Cupido, embora estava ausente, por medo de
suas setas. Mas, Vênus, vendo que elas tratavam sua injúria burlando-se dela, deixando-as com a palavra
na boca, quanto mais rapidamente pôde tomou seu caminho para o mar, de onde saíra.
Sexto livro
Argumento
Depois de procurar com muita fatiga ao Cupido; depois do que lhe avisou Ceres, do mau
acolher que achou em Juno, Psique, de sua própria vontade ofereceu-se à Vênus; logo escreve a
ascensão de Vênus ao céu e como pediu ajuda aos deuses; quão soberba tratava à Psique, mandandolhe que separasse de um montão grande de todas as sementes cada linhagem de grãos por sua parte, que
lhe trouxesse o Velocino de Ouro; do licor, do lago infernal, trouxesse-lhe um jarro cheio; deste modo
trouxesse uma bolsa cheia de formosura de Prosérpina; todas as quais feitas com ajuda dos deuses;
Psique casou com seu Cupido no conselho dos deuses. E suas bodas foram celebradas no céu, do qual
matrimônio nasceu o Deleite.
Capítulo I
Como Psique, muito machucada, chorando, foi ao templo de Ceres e ao de Juno a lhes demandar socorro de sua
fadiga, nenhuma lhe deu para não zangar Vênus.
-Enquanto isso, Psique discorria, andava por diversas partes e caminhos; procurando de dia e de
noite, com muita ânsia e trabalho, se poderia achar rastro de seu marido; tão mais lhe crescia o desejo
de achá-lo, quanto era a pena que trazia em buscá-lo; deliberava consigo que senão pudesse com suas
adulações, como sua mulher amansar, que ao menos como serva, com seus rogos e orações o aplacaria.
Indo nisto pensando viu um templo em cima de tão alto monte, e disse:
«Onde sei eu agora se por ventura meu senhor mora neste templo?»
Logo endireitou o passo para lá, o qual como que já desfalecia pelos grandes e contínuos
trabalhos; mas, a esperança de achar seu marido a aliviava. Assim, havendo já subido e passado todos
aqueles Montes, chegou ao templo e entrou; onde viu muitas espigas de trigo e cevada; foices e outros
instrumentos para segar; mas, tudo estava pelo chão, sem nenhuma ordem, confuso, como costumam
fazer os colhedores quando o trabalho lhes cai das mãos. Psique, como viu todas estas coisas
derramadas, começou a separar cada coisa por sua parte, compô-las e embelezando tudo; pensando,
com razão, que de nenhum deus se devem menosprezar as cerimônias, antes, procurar sempre ter
propícia sua misericórdia. Estando Psique embelezando e compondo estas coisas entrou a deusa Ceres,
quando a viu, começou de longe a dar grandes vozes, dizendo:
«Oh, Psique desventurada! A deusa Vênus anda por todo mundo com maior anseio,
procurando rastro de si; com quanta fúria pode, deseja e busca trazer-lhe para a morte; com toda a
força de sua deidade procura haver vingança e você agora está aqui cuidando de minhas coisas. Como
você pode pensar outra coisa, a não ser o que cumpre à sua saúde?»
Então, Psique lançou-se a seus pés, começou a regar com suas lágrimas e varrer a terra com
seus cabelos; suplicando e pedindo-lhe perdão com muitos rogos e preces, dizendo:
«Rogo-lhe, senhora, pela sua mão direita, mão semeadora dos pães; pelas cerimônias alegres das
sementeiras; pelos segredos das cestas de pão; pelos carros que trazem os dragões, seus servos; pelas
aradas e campos da Sicília; pelo carro de Plutão que arrebatou à Prosérpina; pela descendência de suas
bodas; pelo regresso, quando retornou com as tochas ardendo de procurar a sua filha; pelo sacrifício da
cidade eleusínias; pelas outras coisas e sacrifícios que se fazem em silêncio; que socorra a triste alma de
sua serva Psique; consinta-me que entre estes montões de espigas possa esconder-me alguns poucos
dias, até que a cruel ira de tão grande deusa, como é Vênus, por espaço de algum tempo se amanse, ou
até que ao menos minhas forças, cansadas de tão contínuo trabalho, com um pouco de repouso se
restituam.»
Ceres respondeu-lhe:
«Certamente, comovi a compaixão por ver suas lágrimas e o que me roga; desejo ajuda-la; mas,
não quero incorrer em desgraça daquela boa mulher de minha cunhada, com a qual tenho antiga
amizade. Assim, você, parte logo depois de minha casa, e recebe em graça que não foi presa por mim,
nem retida.»
Quando isto ouviu Psique, contra o que ela pensava, afligida por dobrada pena e irritação
tomou seu caminho, retornando para trás; viu um formoso templo, que estava em uma selva de árvores
muito grandes, em um vale, o qual era edificado muito polidamente; como se ela tivesse por sorte,
nenhuma via duvidosa, ou de melhor esperança, jamais deixar de provar; que andava procurando
socorro de qualquer deus que achasse; chegou à porta do templo e viu muito ricos dotes de roupas e
vestimentas penduradas nos postes e ramos das árvores, com letras de ouro que declaravam a causa por
que eram ali oferecidas e o nome da deusa a quem ofereciam. Então, Psique, os joelhos fincados,
abraçando com suas mãos o altar e limpando as lágrimas de seus olhos, começou a dizer desta maneira:
«Oh, você, Juno, mulher e irmã do grande Júpiter! Ou você está no antigo templo da ilha de
Samos, a qual se glorifica porque você nasceu ali e se criou; ou está nas cadeiras da alta cidade de
Cartago, a qual lhe adora como donzela que foi levada ao céu em cima de um leão; ou se por ventura
está na ribeira do rio Inaco, o qual lhe faz comemoração; que é casada com Júpiter e rainha das deusas;
ou você está nas cidades magníficas dos gregos, aonde todo Oriente honra-lhe como deusa dos
casamentos e todo Ocidente chama-a de Lucina; ou onde quer que esteja, rogo-lhe que socorra minhas
extremas necessidades; a mim, que estou fatigada de tantos trabalhos passados, rogo-lhe liberar-me de
tão grande perigo que está sobre mim; porque eu bem sei, que de sua própria vontade costuma socorrer
quão fecundadas estão em perigo de parir.»
Acabando de dizer isto, logo apareceu-lhe a deusa Juno, com toda sua majestade, e disse:
«Por Deus, que eu queria dar meu favor e tudo o que pudesse à suas rogativas, mas contra a
vontade de Vênus, minha nora, a qual sempre amei em lugar de minha filha, não o poderia fazer,
porque a vergonha resiste. Além disto, as leis proibem que ninguém possa receber aos escravos
fugitivos contra a vontade de seus senhores.»
Capítulo II
Como cansada de procurar remédio para achar seu marido Cupido, Psique, acertou de apresentar-se diante de
Vênus por lhe demandar mercê, porque Mercúrio a pregoara, e como Vênus a recebeu.
Com este naufrágio da fortuna, espantada, Psique vendo do mesmo modo, que já não podia
alcançar a seu marido, que andava voando, desespera-se por toda sua saúde, começou a aconselhar-se
com seu pensamento nesta maneira: Que remédio se pode já procurar, nem tentar para minhas penas e
trabalhos aos quais o favor e ajuda das deusas, embora elas o queriam, não pôde aproveitar? Porque
assim é, aonde poderia eu fugir, estando cercada de tantos laços? Que casas, ou em que subterrâneos
poderia esconder-me dos olhos inevitáveis da grande deusa Vênus? Porque não pode fugir, toma
coração de homem e fortemente, resiste à quebrada e perdida esperança, ofereço-lhe de sua própria
vontade à sua senhora; com esta obediência, embora seja tarde, amansará seu ímpeto e sanha. Sabe
você se por ventura achará ali, na casa da mãe, ao que muitos dias faz que anda a procurar? Desta
maneira equipada para o duvidoso serviço e certo fim, pensava consigo o princípio de sua futura
súplica. Neste meio tempo, Vênus, zangada de andar procurando Psique pela terra, achou de subir ao
céu; mandando equipar seu carro, o qual Vulcano, seu marido, muito sutil e polidamente fabricara, darlhe-ia em penhor de seu casamento, feito as rodas à maneira da Lua, muito rico e precioso; com dano
de tanto ouro e de muitas outras aves, que estavam perto da câmara de Vênus, saíram quatro pombas
muito brancas, pintados os pescoços, e puseram para levar o carro; recebida a senhora em cima do
carro, começaram a voar alegremente; depois atrás do carro de Vênus começaram a voar muitos
pássaros e aves, que cantavam muito docemente, fazendo saber quando vinha Vênus. As nuvens deram
lugar, os céus se abriram e o mais alto deles recebeu-a alegremente; as aves foram cantando; com ela
não temiam as águias e falcões que encontravam. Desta maneira, Vênus, chega ao palácio real de
Júpiter; com muita ousadia e atrevimento, pediu ao Júpiter que mandasse ao deus Mercúrio lhe ajudasse
com sua voz, que havia mister para certo negócio. Júpiter, outorgou-o e mandou que assim se fizesse.
Então ela, alegremente, acompanhada por Mercúrio, partiu-se do céu, a qual desta maneira falou com
Mercúrio:
«Irmão de Arcádia, você sabe bem que sua irmã Vênus nunca fez coisa alguma sem sua ajuda e
presença; agora você não ignora quanto tempo há que eu não posso achar àquela minha serva, que anda
escondendo-se de mim; assim já não tenho outro remédio; mas, sim você, publicamente, pregoe que
darei grande prêmio a quem a descobrir. Portanto, rogo-lhe que faça rapidamente o que digo. Em seu
pregão dá os sinais e indícios, por onde rapidamente, se possa conhecer. Porque se algum incorrer em
crime de encobri-la ilicitamente, não se possa defender alegando ignorância.»
Dizendo isto, deu-lhe um memorial no qual se continha o nome de Psique e as outras coisas
que tinha que pregoar. Feito isto, logo se foi à sua casa. Não esqueceu Mercúrio o que Vênus lhe
mandou fazer; logo se foi por todas as cidades e lugares, pregoando desta maneira: Se algum tomar ou
mostrar onde está Psique, filha do rei e serva de Vênus, que anda desaparecida, venha-se à Mercúrio,
pregoeiro, que está depois do templo de Vênus; ali receberá por galardão de seu indício, da mesma
deusa Vênus, sete beijos muito suaves e outro muito mais doce. Desta maneira pregoando Mercúrio,
todos os que o ouviam, com cobiça de tanto prêmio, enfeitaram-se para procurá-la. Tal coisa, ouvida
por Psique, tirou-lhe toda tardança de apresentar-se diante de Vênus; chegando ela às portas de sua
senhora, saía dela uma donzela de Vênus, de nome Costume, a qual, quando viu Psique, começou a dar
grandes vozes, dizendo:
«Você, dona, má escrava, até que já sente que têm senhora: até sobre toda a maldade de suas
más manhas, finge agora que não sabe quanto trabalho passamos buscando-a. Mas bem está, porque
caiu em minhas mãos; faz conta que caiu no cárcere do inferno, onde não poderá sair, rapidamente,
receberá as penas de sua contumácia e rebeldia.»
Dizendo isto, arremeteu a ela, com grande audácia, com as mãos, puxou-lhe os cabelos e
começou a levá-la diante Vênus; com o que Psique não resistia à ida. Assim, logo que Vênus a viu
começou a rir como revistam fazer todos os que estão com muita ira, e meneando a cabeça,
arranhando-se na orelha, começou a dizer:
«Basta, que já esteja contente de falar com sua sogra; por certo, antes acredito eu que o fez para
ver seu marido, que está à morte das chagas de suas mãos; mas, está segura que eu a receberei como
convém a boa nora.»
Quando disse isto, mandou chamar suas criadas, Costume e a Tristeza, às quais, como vieram,
mandou que açoitassem à Psique. Elas, seguindo o mandamento de sua senhora, deram tantos de
açoites à coitada Psique, que a afligiram e atormentaram; assim, voltaram a apresentar outra vez diante
de sua senhora. Quando Vênus a viu começou outra vez a rir, e disse:
«E até vê como no mexerico de seu ventre inchado comove-nos a misericórdia? Pensa fazer-me
avó bem ditosa com o que sair desta sua gravidez? Ditosa eu, que na flor de minha juventude chamarme-ão avó e o filho de uma mortal velhaca ouvirá que lhe chame neto de Vênus. Mas, néscia eu sou
nisto, porque muito posso eu dizer que meu filho é casado, porque estas bodas não são entre pessoas
iguais; além disto, fizeram em um monte sem testemunhas e não consentindo seu pai, pelo qual estas
bodas não se podem dizer legitimamente feitas; e por isto, se eu consentir que você tenha que parir, ao
menos, nascerá de si um bastardo.»
Dizendo isto, arremeteu com ela e rompeu-lhe a touca, travando-lhe os cabelos e dando-lhe
cabeçadas, que a afligiu gravemente; logo tomou trigo, cevada, milho, sementes de adormideiras, grãosde-bico, lentilhas e favas; tudo misturado e feito em um grande monte, disse à Psique:
«Você parece-me tão disforme e velhaca mortal, que com nada postergue seus apaixonados, a
não ser com os muitos serviços que lhes faz. Pois, eu quero agora experimentar sua diligência. Afasta
todos os grãos destas sementes que estão juntas neste montão, e cada semente destas, muito bem
dispostas e separa-as por si, tem-me isso que dar antes da noite.»
Dito isto, ela foi jantar às bodas de seus deuses. Psique, embargada com a grandeza daquele
mandamento, estava discretamente como uma morta, que nunca elevava a mão a começar tão grande
obra para nunca acabar. Então, aquela pequena formiga do campo, havendo afronta de tão grande
trabalho e dificuldade, como era o da mulher do grande deus do amor, amaldiçoando a crueldade de
sua sogra Vênus, discorreu rapidamente por esses campos, chamou, rogou a todas as batalhas e
multidões de formigas dizendo-lhes:
«Oh, sutis filhas e criadas da terra, mãe de todas as coisas, haja misericórdia, pena e socorram
com muita velocidade a uma moça mortal formosa, mulher do deus do Amor, que está em muito
perigo!»
Então, como ondas de água, vinham infinitas formigas caindo umas sobre as outras, e com
muita diligência cada uma, grão a grão, apartaram todo o monte. Depois de afastados e divididos todos
os gêneros de grãos de cada montão sobre si, rapidamente, foram-se dali. Logo, ao começo da noite,
Vênus, voltando de sua festa, farta de vinho e muito cheirosa, repleta toda a cabeça e corpo de rosas
resplandecentes, vista a diligência do grande trabalho, disse:
«Oh má! Não é sua, nem de suas mãos esta obra, mas, sim daquele a quem você por seu mal e
por ele fez.»
Dizendo isto, deu-lhe um pedaço de pão, para que comesse e fosse deitar. Enquanto isso, o
Cupido estava sozinho e encerrado em uma câmara, a qual estava mais para dentro de casa; na qual
estava ali encerrado assim, para que a ferida não se danificasse, se algum mau desejo lhe viesse; como
para que não falasse com sua amada Psique. Desta maneira, dentro de uma casa e debaixo de um
coberto, afastados os apaixonados, com muita fadiga passaram aquela noite negra e muito obscura.
Capítulo III
No qual trata como a velha, procedendo em seu muito longo conto, narra os trabalhos que Vênus deu à Psique,
para lhe dar ocasião de se desesperar e morrer. E como, por comiseração dos deuses, Vênus a perdoou, e com muito prazer
celebraram-se as bodas no céu.
Depois que amanheceu, mandou Vênus chamar a Psique e disse desta maneira:
«Vê você, aquela floresta, por onde passa aquele rio, que tem aquelas grandes árvores ao redor,
debaixo do qual está uma fonte perto? E vê aquelas ovelhas resplandecentes e de cor de ouro que
andam por ali pastando sem que ninguém as guarde? Pois, vai logo lá, traga-me a flor de seu precioso
velocino de qualquer maneira que o possa fazer.»
Psique, com muito gosto foi para lá, não com pensamento de fazer o que Vênus lhe mandara,
mas sim, para dar fim à seus males, lançando-se de um penhasco daqueles dentro do rio. Quando
Psique chegou ao rio, uma cana verde, que é mãe da música suave, meneada por um doce ar por
inspiração divina, falou desta maneira:
«Psique, você que sofreste tantas tribulações, não queira sujar minhas santas águas com sua
misérrima morte, nem tampouco, chegue a estas espantosas ovelhas, porque tomando o calor e ardor
do Sol revistam ser muito raivosas; com os chifres agudos e as frentes de pedra, até mordendo com os
dentes venenosos, matam a muitos homens. Mas, depois que passar o ardor do meio-dia, as ovelhas
repousarão à frescura do rio, poderá esconder-se debaixo daquele alto plátano, que bebe da água deste
rio que eu bebo. Quando você vir que as ovelhas, posposta toda sua ferocidade, começam a dormir,
sacudirá os ramos e folhas daquele monte que está perto delas e ali achará as jubas de ouro que se
pegam por aquelas matas quando as ovelhas passam.»
Desta maneira a cana, por sua virtude e humanidade, ensinava à pobre Psique de como se
remediar. Ela, quando isto ouviu, não foi negligente em cumpri-lo. Mas, fazendo e guardando tudo o
que ela disse, furtou o ouro com a lã daqueles Montes; pegou, trouxe e jogou-o no regaço de Vênus.
Contudo, nunca mereceu perto de sua senhora seu galardão segundo seu trabalho, antes, torcendo as
sobrancelhas com uma risada falsa, disse desta maneira:
«Tampouco acredito eu agora, nisto que você fez, não faltou quem lhe ajudasse falsamente.
Entretanto, eu quero experimentar se por ventura você o faz com seu esforço e prudência, ou com
ajuda de outro; portanto, olhe bem aquela altura daquele monte, aonde estão aqueles penhascos muito
altos, de onde sai um bebedouro muito negro; desce por aquele vale, onde faz aquelas lacunas negras e
turvas; e dali saem alguns arroios infernais. Dali, da altura onde sai aquela fonte, traga-me este copo
cheio de rocio daquela água.»
Dizendo isto, deu-lhe um copo de cristal, ameaçando-a com palavras ásperas senão cumprisse o
que lhe mandava. Psique, quando isto ouviu, rapidamente, se foi para aquele monte, para subir em cima
dele e dali deitar-se, para dar fim à sua amarga vida. Porém, quando chegou ao redor daquele monte,
viu uma mortal e grandiosa dificuldade para chegar nele, porque estava ali um penhasco muito alto que
parecia que chegava ao céu, tão liso, que não havia quem por ele pudesse subir; acima daquele saía um
bebedouro negro e espantável, o qual, saindo de sua nação, corria por aqueles penhascos abaixo e vinha
por um canal estreito cercado de muitas árvores; do qual vinha um vale grande, que estava cercado de
uma parte e de outra de grandes penhascos; aonde moravam dragões muito espantáveis, com os
pescoços elevados e os olhos tão abertos, para velar, que jamais os fechavam, nem pestanejavam, de tal
maneira, que, perpetuamente, estavam em vigília; quando ela chegou ali, as mesmas águas falaram-lhe,
dizendo-lhe muitas vezes:
«Psique, afaste-se daí, olhe muito bem o que faz. E guarde-se de fazer o que quer; foge logo, se
não, prova que morrerá.»
Quando Psique viu a impossibilidade que tinha de chegar àquele lugar, tornou-se como uma
pedra; e, embora estava presente com o corpo, estava ausente com o sentido. De tal maneira, que com
grande medo do perigo estava tão morta, que carecia do último consolo e distração das lágrimas. Mas,
não pôde esconder-se aos olhos da Providência, tanta fadiga e confusão da inocente Psique, a qual,
estando nesta fadiga, aquela ave real de Júpiter que se chama águia, abertas as asas, veio voando,
subitamente, recordando do serviço que antigamente fez Cupido à Júpiter, quando por sua diligência
arrebatou ao Ganimedes, o troiano, para seu corpo, querendo dar ajuda e pagar o benefício recebido,
em ajudar aos trabalhos de Psique, mulher de Cupido, deixou de voar pelo céu, chegou a presença de
Psique e disse-lhe desta maneira:
«Como você é tão simples e néscia de tais coisas, que espera poder furtar nem somente tocar
uma só gota desta fonte não menos cruel que muito santo? Você nunca ouviu alguma vez que estas
águas estígeas são espantáveis aos deuses e até mesmo à Júpiter? Além disto, os mortais, juram pelos
deuses, mas os deuses costumam jurar pela majestade do lago Estige; mas, dê-me este copo que traz.»
O qual lhe deu e a águia o arrebatou da mão muito disposto; voando entre as bocas, dentes
cruéis e as línguas de três ordens daqueles dragões; foi à água e encheu o copo, consentindo a mesma
água; até lhe admoestando, que rapidamente se fosse, antes que os dragões a matassem. A águia,
fingindo que por mandato da deusa Vênus e para seu serviço viera por aquela água, pela qual causa
mais facilmente chegou a encher o copo e sair livre com ela; desta maneira, retornou com muito prazer
e deu o copo à Psique, cheio de água; a qual levou logo à deusa Vênus. Contudo, nunca pôde aplacar,
nem amansar a crueldade de Vênus; antes ela, com sua risada mortal, como costumava, falou
ameaçando-a com maiores e piores torturas, dizendo:
«Já você me parece uma maga e grande feiticeira, porque muito bem obtemperou meus
mandamentos e fez o que eu mandei; todavia, você, luz de meus olhos, ainda retira outra coisa que tem
que fazer. Toma esta bolsa, a qual lhe dou; vai aos palácios do inferno, dará esta bolsa à Prosérpina,
dizendo-lhe: Vênus roga-lhe que lhe dê aqui um pouco de sua formosura, que baste sequer para um dia,
porque tudo quão formoso ela tinha o perdeu e consumou curando a seu filho Cupido, que está muito
mal; volta disposta com ela, porque tenho necessidade de lavar a cara com isto para entrar no teatro e
festa dos deuses.»
Então, Psique, abertamente, sentiu seu último fim e que era compelida, rapidamente, à morte
que lhe preparava. Que maravilha pensava, porque era compelida a que, de sua própria vontade, e por
seus próprios pés entrasse no inferno, onde estavam as almas dos mortos? Com este pensamento, não
demorou muito, que se foi a uma torre muita alta para retornar dali abaixo, porque desta maneira ela
pensava descer muito disposta e, diretamente, aos infernos. Todavia, a torre falou desta maneira: «por
que, coitada de si, quer se matar, jogando-se daqui abaixo, porque já este é o perigo e trabalho que tem
que passar? Porque se uma vez sua alma separar-se de seu corpo, bem poderá ir de certo ao inferno.
Porém, acredite-me, que de maneira nenhuma poderá voltar a sair dali. Não está muito longe daqui uma
nobre cidade de Achaya, que se chama Lacedemonia; perto desta cidade procura um monte que se
chama Tenaro, o qual está afastado em lugares remotos. Neste monte está uma porta do inferno, pela
boca daquela cova mostra-se um caminho sem caminhantes, por onde se você entrar, em passando a
soleira da porta, pelo canal da cova direita, poderá ir até os palácios do rei Plutão; mas, não entenda que
tem que levar as mãos vazias, porque lhe convém levar em cada uma das mãos uma sopa de pão
molhada em melado, e na boca tem que levar duas moedas; depois que já tiver andado boa parte
daquele caminho da morte achará um asno preso carregado de lenha; com ele um cavaleiro, também
preso, o qual lhe rogará que lhe dê certos antros para jogar na carga que lhe cai; porém, você passe
calada, sem lhe falar palavra; depois, quando chegar ao rio morto onde está Caronte, ele pedirá o
pedágio, porque assim passa ele em seu barco do outro lado para os mortos que ali chegam; porque tem
que saber que até ali entre os mortos há avareza, que nem Caronte, nem aquele grande rei Plutão fazem
coisa alguma de graça; se algum pobre morre cumpre-lhe buscar dinheiro para o caminho, porque
senão os levar na mão não passarão dali. A este velho dará em nome do frete uma moeda daquelas que
levar; mas, tem que ser ele mesmo, tome-a com sua mão de sua boca. Depois que houver passado este
rio morto achará outro velho morto e podre que anda nadando sobre as águas daquele rio, e elevando
as mãos lhe rogará que o receba dentro do barco; todavia, você não tenha piedade, que não lhe
convém. Passado o rio e andando um pouco adiante achará umas velhas tecedeiras, tecendo um tecido,
as quais lhe rogarão que lhes toque as mãos; porém, não o faça, porque não convém lhes tocar de
maneira nenhuma. Tem que saber que todas estas coisas e outras muitas nascem das armadilhas de
Vênus, que queria que lhe pudessem tirar das mãos uma daquelas sopas, a qual seria muito grave dano,
porque se uma delas perdesse, jamais voltaria a esta vida. Ademais, saiba que está um pouco adiante um
cão grandioso, que tem três cabeças, o qual é muito espantável; ladrando com aquelas bocas abertas
espanta aos mortos, aos quais já nenhum mal pode fazer; e sempre vela ante a porta do obscuro palácio
de Prosérpina, guardando a casa vazia de Plutão. Quando aqui chegar, com uma sopa que lhe lance o
freará e poderá logo passar facilmente; entrará aonde está Prosérpina, a qual a receberá benigna e
alegremente; mandar-lhe-á sentar e dará muito bem de comer. Todavia, sente-se no chão e come
daquele pão negro que lhe derem; pede logo depois, da parte daquilo Vênus, por quem vem, e recebido
o que lhe derem na bolsa, quando retornar, amansará a raiva daquele cão com a outra sopa. Quando
chegar ao barqueiro avarento, dar-lhe-á a outra moeda que guardou na boca; passando aquele rio
retornará pelas mesmas pisadas por onde entrou, e assim verá esta claridade celestial. Sobretudo, as
coisas disponho-lhe que guarde uma; que de maneira nenhuma trate de abrir, nem olhar o que traz na
bolsa, nem procure ver o tesouro escondido da divina formosura.»
Desta maneira aquela torre, havendo afronta de Psique, declarou-lhe o que lhe era mister de
adivinhar. Não demorou Psique, que logo se foi ao monte Tenaro; tomadas aquelas moedas e aquelas
sopas como lhe mandou a torre, entrou por aquela boca do inferno; passando aquele, discretamente,
cavaleiro coxo; pagou ao Caronte seu frete por que lhe passasse; menosprezado deste modo o desejo
daquele velho morto que nadava; também, não atendendo os enganosos rogos dos velhos tecedores;
amansando a raiva daquele temeroso cão com o manjar daquela sopa, chegou, passando tudo isto, aos
palácios de Prosérpina; porém, não quis aceitar o assentamento que Prosérpina lhe mandava dar, nem
quis comer daquele manjar que lhe ofereciam; mas, humildemente, sentou-se ante seus pés, e contente
com um pedaço de pão baço, expô-lhe a empreitada que trazia de Vênus; e logo, Prosérpina encheu-lhe
a bolsa secretamente do que pedia; a qual logo partiu, aplacado o ladrar e a braveza do cão infernal com
o engano da outra sopa que ficava; dando a outra moeda ao Caronte, o barqueiro, por que a passasse,
voltou do inferno mais esforçada do que entrou. Depois de adorada a clara luz do dia, que voltou a ver,
como queria cumprir isto, acabava o serviço que Vênus mandara, vindo-lhe ao pensamento uma
temerária curiosidade, dizendo:
«Bem sou eu néscia trazendo comigo a divina formosura que não tome dela sequer um pouco
para mim, para que possa agradar àquele meu formoso apaixonado.»
Quando isto disse, abriu a bolsa, dentro da qual nada havia, nem formosura alguma, salvo um
sonho infernal e profundo, o qual destampado, cobriu à Psique de uma névoa de sonho grosso, que
todos seus membros tomou e possuiu; no mesmo caminho por onde vinha, caiu dormindo como uma
coisa morta. Mas, Cupido, já que convalescia de sua chaga, não podendo tolerar, nem sofrer a longa
ausência de sua amiga, estando já bem disposto, as asas restauradas, porque havia dias que folgava, saiu
por uma janela pequena de sua câmara, onde estava encerrado; foi disposto a socorrer sua mulher
Psique; separando dela o sono, arrojado outra vez dentro na bolsa, tocou, levemente, à Psique com uma
de suas setas e despertou-a dizendo-lhe:
«Até você, mesquinha de si, não castiga, que por pouco fosse morta por semelhante curiosidade
que a que fez comigo? Mas, vê agora com a empreitada que minha mãe lhe mandou, enquanto isso, eu
proverei em outro que for mister.»
Dito isto, levantou-se com suas asas e voou. Psique levou o que trazia de Prosérpina e deu à
Vênus; enquanto isso, Cupido, que andava muito fatigado do grande amor, a cara amarela, temendo a
severidade não acostumada de sua mãe, retornou-se à arena de seu peito; com suas ligeiras asas voou ao
céu e suplicou ao grande Júpiter que lhe ajudasse; e contou-lhe toda sua causa. Então Júpiter pegou-lhe
pela barba, trazendo-lhe a cara com as mãos começou a beija-lo, dizendo:
«Como quero você, senhor filho, nunca me guardou a honra que se deve aos pais por
mandamento dos deuses; mas, até este mesmo peito, no qual se encerram e dispõem todas as leis dos
elementos; às vezes das estrelas, muitas vezes o feriu com contínuos golpes do amor; sujou com muitos
laços de terrestre luxúria; aleijou minha honra e fama com adultérios torpes; sujos contra as leis,
especialmente, contra a lei Julia, e à pública disciplina; transformando minha cara e formosura em
serpentes, em fogos, em bestas, em aves e em qualquer outro ganho. Contudo, recordando-me de
minha mansidão e de que você cresceu entre estas minhas mãos, eu farei tudo o que você quer, e você
saiba guardar-se de outros que desejam o que você deseja. Isto seja como uma condição: que se você
souber de alguma donzela formosa na terra, que por este benefício que de mim recebe deve me pagar
com ela a recompensa.»
Depois que isto falou, mandou a Mercúrio que chamasse a todos os deuses ao conselho; e se
algum deles faltasse, que pagasse dez mil talentos de pena. Por tal medo todos vieram e encheu o
palácio onde estava Júpiter, o qual, situado na cadeira alta, começou a dizer desta maneira:
«Oh, deuses, escritos no branco das musas! Vocês todos sabem como este mancebo que eu criei
em minhas mãos procurei refrear os ímpetos e movimentos ardentes de sua primeira juventude. Mas, já
basta, que ele é infamado entre todos de adultérios e de outras corrupções, pelo qual é bem que se tire
toda ocasião, e para isto me parece que sua licença de juventude deve-se atar com laço de matrimônio.
Ele escolheu uma donzela, a qual privou de sua virgindade: tenha-a, possua-a e sempre use de seus
amores.»
E dizendo isto, voltou a cara à Vênus e disse-lhe:
«Você, filha, não se entristeça por isso; não tema a sua linhagem nem ao estado do matrimônio
mortal, porque eu farei que estas bodas não sejam desiguais, mas legítimas ou ordenadas como o direito
o manda.»
Logo mandou a Mercúrio que tomasse à Psique e a subisse ao céu, a qual Júpiter deu a beber do
vinho aos deuses, dizendo-lhe:
«Toma, Psique, bebe isto e será imortal; Cupido nunca se separará de si; estas suas bodas
durarão para sempre.»
Dito isto, não demorou muito quando veio o jantar muito abundante, como à tais bodas
convinha. Estava sentado à mesa Cupido no primeiro lugar e Psique em seu regaço. Na outra parte
estava Júpiter com Juno, sua mulher, e depois, por ordem, todos os outros deuses. O vinho de alfajor,
que é um vinho dos deuses, subministrando Ganimedes ao Júpiter, como corpo dele, e aos outros, o
deus Baco. Vulcano, cozinhava o jantar; as ninfas, enchiam de flores, rosas e outros aromas a sala onde
jantavam; as musas cantavam muito docemente; Apolo cantava com sua viola; Vênus entrou na suave
música e dançou belamente. Desta maneira era o convite ordenado: que o coro das musas cantasse e o
sátiro tocasse a gaita de fole e o deus Pan tangesse um tamboril. Desta maneira veio Psique em mãos do
deus Cupido.
Estando já Psique em tempo de parir, nasceu-lhes uma filha, a qual chamamos Prazer.
Desta maneira aquela idosa louca e leviana contava este conto à donzela cativa; mas eu, como
estava ali perto, ouvia tudo, doía-me que não tinha tinta, papel para escrever e anotar tão formosa
novela.»
Capítulo IV