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Perspectivas decoloniais do sínodo para a Amazônia

2020

Este ensaio pretende explorar a possibilidade de descolonizar a missão cristã, explicitando os eixos constitutivos do pensamento decolonial formulado pelo programa de investigação interdisciplinar modernidade/colonialidade, evidenciando alguns elementos-chave para um discurso crítico, e comparando esses enfoques com a produção documental da preparação e da realização do Sínodo dos Bispos para a região Pan-Amazônica. As balizas fincadas pelas conferências gerais do episcopado latino-americano e caribenho de Medellín (1968) até Aparecida (2007), já representam um certo caminho situado de descolonização da missão evangelizadora, com suas vertentes de libertação integral, opção pelos pobres, comunidades eclesiais de base, inculturação, discipulado missionário. Continuando com essa tradição, o sínodo para a Amazônia pleiteou um grande passo à frente, respondendo positivamente, profundamente e criativamente à possibilidade e à urgência de descolonizar a missão cristã, elaborando uma refle...

http://dx.doi.org/10.7213/cd.a8.n12.p58-76 Perspectivas decoloniais do sínodo para a Amazônia Decolonial perspectives of the synod for the Amazon Stefano Raschietti1 Resumo Este ensaio pretende explorar a possibilidade de descolonizar a missão cristã, explicitando os eixos constitutivos do pensamento decolonial formulado pelo programa de investigação interdisciplinar modernidade/colonialidade, evidenciando alguns elementos-chave para um discurso crítico, e comparando esses enfoques com a produção documental da preparação e da realização do Sínodo dos Bispos para a região Pan-Amazônica. As balizas fincadas pelas conferências gerais do episcopado latino-americano e caribenho de Medellín (1968) até Aparecida (2007), já representam um certo caminho situado de descolonização da missão evangelizadora, com suas vertentes de libertação integral, opção pelos pobres, comunidades eclesiais de base, inculturação, discipulado missionário. Continuando com essa tradição, o sínodo para a Amazônia pleiteou um grande passo à frente, respondendo positivamente, profundamente e criativamente à possibilidade e à urgência de descolonizar a missão cristã, elaborando uma reflexão em perspectiva decolonial, exigindo uma decidida conversão pastoral, cultural, ecológica, sinodal, e traçando linhas de ação de diálogo político, intercultural, interreligioso e interespiritual. Palavras-chave Missão. Amazônia. Sínodo. Interculturalidade. Decolonialidade. Abstract This essay intends to explore the possibility of decolonizing the Christian mission, explaining the constitutive axes of decolonial thinking formulated by the interdisciplinary research program modernity/coloniality, highlighting some key elements for a critical discourse, and comparing these approaches with the documentary production of the preparation and realization of the Synod of Bishops for the Pan-Amazon region. The goals set by the general conferences of the Latin American and Caribbean episcopate from Medellín (1968) to Aparecida (2007), already represent a certain path of decolonization of the evangelizing mission, with its aspects of integral liberation, option for the poor, base communities, inculturation, missionary discipleship. Continuing with this tradition, the synod for the Amazon called for a great step forward, responding positively, deeply and creatively to the possibility and urgency of decolonizing the Christian mission, elaborating a reflection in a decolonial perspective, demanding a decided pastoral, cultural, ecological, synodal conversion, and outlining lines of action for political, intercultural, inter-religious and interspiritual dialogue. Keywords Mission. Amazon. Synod. Interculturality. Decoloniality. 1 Doutorando em Teologia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Mestre em Teologia pela Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção (PUC-SP). Bacharel em Teologia pelo Istituto Teologico Saveriano (ITS). Missionário xaveriano. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) – código de financiamento 001. Contato: [email protected]. Revista Brasileira de Diálogo Ecumênico e Inter-religioso INTRODUÇÃO O Sínodo dos Bispos para a região Pan-Amazônica, realizado em Roma, de 6 a 27 de outubro de 2019, apresentou para o mundo uma realidade extremamente rica em biodiversidadade, multiétnica, pluricultural e plurirreligiosa, encruzilhada de desafios inderrogáveis para todo o planeta, ameaçada por grandes interesses econômicos, marcada por invasões, violências, etnocídios e explorações, “espelho de toda a humanidade que, em defesa da vida, exige mudanças estruturais e pessoais de todos os seres humanos, dos Estados e da Igreja” (DPSA 2). As reflexões e os debates deste evento tiveram o propósito de ir além do âmbito estritamente regional, por corresponder aos anseios de toda Igreja universal e do futuro da humanidade. Entendeu-se que era de importância vital escutar os povos indígenas e as comunidades da Amazônia, para aprender “como podemos colaborar na construção de um mundo capaz de romper com as estruturas que sacrificam a vida e com as mentalidades de colonização, para construir redes de solidariedade e interculturalidade. Sobretudo queremos saber: qual é a missão específica da Igreja, hoje, diante desta realidade?” (DPSA 4). A missão cristã, em sua ambivalência, sempre foi intrinsicamente parceira do projeto colonizador do Ocidente, na Amazônia como em qualquer outra parte do mundo. Com efeito, se, por um lado, os missionários provocaram importantes rupturas com as políticas das coroas e dos Estados em defesa dos povos indígenas, por outro, “o anúncio de Cristo era feito em conluio com os poderes que exploravam os recursos e oprimiam as populações” (DSA 15), o que fomentou posturas complacentes, cúmplices de uma intensa desterritorialização de povos inteiros destinados ao trabalho escravo. A partir desta constatação, o sínodo para a Amazônia quis ser simultaneamente um ponto de chegada e um ponto de partida da presença da Igreja nessa região. Ponto de chegada em reconhecer a sua trajetória histórica marcada por muitas entregas abnegadas, mas também por empreendimentos, abordagens e vínculos coloniais que exigem hoje uma radical mudança de rota e um pedido de perdão. Ponto de partida porque o sínodo era chamado a apontar novos caminhos e novas direções para a ação da Igreja, com novas práticas de libertação descolonizada, profética e missionária: “atualmente, a Igreja tem a oportunidade histórica de se diferenciar das novas potências colonizadoras, ouvindo os povos da Amazônia para poder exercer sua atividade profética com transparência” (DSA 15). A tarefa era de fato árdua, não só pelo desafio de traçar linhas operativas significativas, mas particularmente por delinear planos concretos de ação para a prática pastoral. O dado histórico inexorável e inequívoco diz que nunca houve missão cristã sem colonização ocidental e vice-versa. Um dos mitos do século XX foi a noção de que a definitiva eliminação das colônias do Terceiro Mundo representava um processo de descolonização e o começo de uma época “pós-colonial” também para a cristandade. Na realidade, o colonialismo histórico, brutal e genocida, que foi sucedido no século XIX por um imperialismo igualmente violento e opressor, se configurava agora com feições mais sutis, informais e sedutoras de um capitalismo global, Caminhos de Diálogo, Curitiba, ano 8, n. 12, p. 58-76, jan./jun. 2020 59 ISSN 2595-8208 Perspectivas decoloniais do sínodo para a Amazônia apto a manter e consolidar uma estrutura hierárquica eurocêntrica de classificação, submissão e exploração da população mundial, sem que houvesse por parte da ação missionária das igrejas uma séria postura de revisão de suas práticas indulgentes, paternalistas e assistencialistas. Será que agora estamos verdadeiramente decididos a promover um autêntico “processo libertador” da missão evangelizadora, ou estamos destinados como missionários a reproduzir a narrativa de sempre, de inevitável subserviência ao poder colonial de turno, repropondo a mesma relação do superior civilizado para o inferior selvagem? É possível uma autêntica descolonização da missão cristã que possa ir além de perspectivas românticas e de práticas benfeitoras, que ainda encobrem certos pressupostos exclusivistas? Até que ponto as articulações eclesiásticas estão dispostas a entrar numa decidida dinâmica de reforma, e a se colocar em séria discussão num âmbito de diálogo intercultural e inter-religioso? Essas subjacentes e importantes questões se situavam no centro de todo o debate do sínodo para a Amazônia, assim como no cerne da questão missiológica contemporânea. As respostas que surgiram e os caminhos de solução que foram apontados, são objeto de consideração desse ensaio, sob o enfoque de algumas categorias do pensamento decolonial latino-americano que aqui apresentamos, uma vez que tentamos detectar a relevância dos diversos elementos por meio dessa mediação socioanalítica. 1 OS EIXOS CONSTITUTIVOS DO PENSAMENTO DECOLONIAL No final dos anos 1990, alguns intelectuais latino-americanos de diversas universidades do continente e dos Estados Unidos, formaram um grupo de pesquisa interdisciplinar que se autodenominou Grupo Modernidade/Colonialidade (M/C).2 O programa de investigação deste coletivo gravitou em torno da categoria central da colonialidade como modelo hegemônico cognitivo que sobrevive ao colonialismo e ao imperialismo. Por sua vez, a decolonialidade configurava um processo que buscava transcender historicamente a colonialidade, com o intento de subverter o poder colonial que domina no mundo, mesmo o colonialismo ter sido extinto como evento histórico. A noção de colonialidade se referia a uma estrutura complexa de relações de poder centro-periferia em escala mundial, que tocavam não apenas as ordens econômica e política, mas também a natureza, o gênero, a sexualidade, a subjetividade e, sobretudo, o conhecimento (MIGNOLO, 2010, p. 12). Essa colonialidade figurava como inerente e imanente à modernidade 2 Entre eles: Aníbal Quijano, sociólogo da Universidad Nacional de São Marcos, Peru; Arthuro Escobar, antropólogo colombiano da University of North Carolina, Estados Unidos; Boaventura de Sousa Santos, sociólogo da Universidade de Coimbra, Portugal; Catherine Walsh, linguista da Universidad Andina Simón Bolívar, Equador; Edgardo Lander, sociólogo da Universidad Central de Venezuela; Enrique Dussel, filósofo argentino da Universidad Nacional Autonoma de México; Fernando Coronil, antropólogo venezuelano da University of New York, Estados Unidos; Immanuel Wallerstein, sociólogo da Yale University, Estados Unidos; Nelson Maldonado-Torres, filosofo porto-riquenho da University of California, Berkeley, Estados Unidos; Ramón Grosfoguel, sociólogo porto-riquenho da University of California, Berkeley, Estados Unidos; Santiago Castro-Gómez, filosofo da Pontificia Universidad Javeriana, Colômbia; Walter Mignolo, semiótico argentino da Duke University, Estados Unidos; Zulma Palermo, semiótica da Universidad Nacional de Salta, Argentina. Caminhos de Diálogo, Curitiba, ano 8, n. 12, p. 58-76, jan./jun. 2020 ISSN 2595-8208 60 Revista Brasileira de Diálogo Ecumênico e Inter-religioso enquanto tal, não como simples contingência histórica e menos ainda como “desvio” do projeto emancipador moderno. Pelo contrário, a colonialidade era a exterioridade constitutiva e não derivada da modernidade. Para esses teóricos “decoloniais”, não havia modernidade (colonização do tempo) sem colonialidade (colonização do espaço). Estávamos diante de uma totalidade espaço-temporal segundo a qual todas as civilizações não europeias eram geograficamente “periferias-atrasadas” em relação a um “centro-avançado” da história mundial. Ao definir um tempo (moderno versus atrasado) e um espaço (centro versus periferia), ao traçar umas metas na história e uns contornos nos mapas, se definia quem estava dentro e quem estava fora, quem era civilizado e quem era selvagem, quem éramos nós e quem eram os outros. Do vínculo modernidade/colonialidade, surgia o questionamento sobre a real natureza da modernidade, que seria resultante de um sistema geopolítico de relações de domínio que foram decisivas para o desenvolvimento de um sistema-mundo moderno resultado de múltiplas e complexas interações que deram vida ao capitalismo como sistema econômico, à evolução da ciência e da tecnologia, à secularização da vida social, à formação dos estados-nação, ao universalismo como princípio de partilha de visões, conhecimentos e valores entre povos e pessoas, e que historicamente tomou a forma de imposição por parte de uma modernidade eurocêntrica e de sua retórica salvacionista (MIGNOLO, 2009, p. 43). Dessa maneira, a articulação desse sistema mundial não gerou apenas um processo de “acumulação original”, mas também a formação de uma primeira cultura ou estrutura simbólica mundial que sancionava a classificação da população com base em um critério étnico-racial e a hegemonia de uma racionalidade que afirmava a superioridade do homem-barão europeu. Com efeito, se por um lado a modernidade se autodefinia como “emancipação pela razão”, por outro, externava uma práxis irracional contra toda cultura rotulada como não moderna, inferior, rude, bárbara, sempre sujeita a uma “imaturidade” culpável. Ao atribuir uma culpa à pretensa bestialidade dos nativos das colônias, a modernidade justificava sua agressão, muitas vezes como um a priori para criar as condições para um “diálogo”: a guerra, então, seria justa e necessária para iniciar uma argumentação e um processo de civilizatório com essas populações “atrasadas” (DUSSEL, 1993). A crítica epistémica do programa de investigação M/C não somente buscou problematizar a modernidade, suas narrativas e suas estruturas de poder através de uma análise de des-colonização, e portanto de des-construção, mas apontou também um projeto ético e político de-colonial,3 com o objetivo de visibilizar a multiplicidade de conhecimentos, formas de ser e aspirações dos povos, que pudesse dar vida a uma pluriversalidade no lugar de uma universalidade, a uma interculturalidade como convivência e intercâmbio entre os saberes e as 3 A escolha do termo decolonialidade e seu adjetivo decolonial, no lugar de descolonialidade/descolonial (sem o “s”), não representa, segundo Catherine Walsh, a promoção de um anglicismo, mas a sinalização de uma postura continua de “identificar, tornar visível e incentivar „lugares‟ de exterioridade e construções alternativas”, ao invés de somente des-armar, des-fazer, des-construir ou reverter o colonial (WALSH, 2009, p. 14-15). Caminhos de Diálogo, Curitiba, ano 8, n. 12, p. 58-76, jan./jun. 2020 61 ISSN 2595-8208 Perspectivas decoloniais do sínodo para a Amazônia weltanschauungen, a um cosmopolitismo crítico e alternativo à globalização neoliberal, à transformação da modernidade no horizonte de outro mundo possível, no qual pudessem caber muitos outros mundos. Esse deslocamento na maneira de compreender a modernidade procurou resgatar não apenas as diferenças culturais, mas também as diferenças coloniais negadas pela colonialidade do poder a partir do século XVI: vozes silenciadas, memórias fraturadas, histórias contadas só pelo lado que suprimiam outras memórias e outras histórias. Daí que não somente a colonialidade, mas também a decolonialidade tornava-se constitutiva da modernidade: se a colonialidade é constitutiva da modernidade, uma vez que a retórica salvacionista da modernidade já pressupõe a lógica opressiva e condenatória da colonialidade (daí os damnés de Fanon), essa lógica opressiva produz uma energia de descontentamento, desconfiança e desapego entre aqueles que reagem à violência imperial. Essa energia se traduz em projetos descoloniais que, em última instância, também são constitutivos da modernidade. (MIGNOLO, 2007, p. 26). O pensamento decolonial retrata, em suma, um pensamento crítico plural assentado sobre as histórias marcadas pela violência colonial, que pretende resgatar o potencial da alteridade negada apontando para a diversidade como projeto universal. Essa abordagem não quer fazer da diferença colonial um “objeto de estudo”, e sim um pensar a partir da dor da diferença colonial, revelando uma descontinuidade na história da modernidade e introduzindo uma perspectiva oposta, por parte de quem acredita que “a colonialidade originou olhares de raiva, necessidade de libertação, reação à arrogância e cegueira, tanto pela crueldade de alguns quanto pela bondade de outros” (MIGNOLO, 2003, p. 32). Bondade e crueldade tem a mesma origem epistêmica derivada da colonialidade do poder. 2 ELEMENTOS DECOLONIAIS PARA UM DISCURSO CRÍTICO SOBRE A MISSÃO CRISTÃ Dessa brevíssima explanação sobre o pensamento decolonial, podemos evidenciar alguns elementos-chave que podem se tornar ferramentas úteis para um discurso crítico sobre a missão cristã contemporânea: (a) a irrupção “do outro” como sujeito; (b) o processo de desprendimento e abertura; (c) o contexto geopolítico da fronteira; (d) as perspectivas para um projeto decolonial global. 2.1 A irrupção do “outro” como sujeito O “outro”, como categoria, é uma invenção eurocêntrica, uma entidade criada pelo “mesmo” num processo de construção de si mesmo. O “outro”, então, é tudo o que não é “eu”. Mignolo chama os polos desta criação de humanitas (o sujeito moderno) e de anthropos (a alteridade colonial). A “irrupção dos outros” acontece quando o anthropos desobedece aos padrões de poder construídos artificialmente para ele, denuncia a suposta ontologia de tais Caminhos de Diálogo, Curitiba, ano 8, n. 12, p. 58-76, jan./jun. 2020 ISSN 2595-8208 62 Revista Brasileira de Diálogo Ecumênico e Inter-religioso categorias, se recusa a reivindicar cidadania na humanitas, reconstroi a própria dignidade a partir do anthropos, ou seja, do “bárbaro”, do “pobre”, do “oprimido”, afirmando a própria identidade fronteiriça e esvaziando a pretensão de totalidade da humanitas (MIGNOLO, 2015, p. 166). Dessa maneira, o “outro”, continuando habitar na fronteira onde se encontra e onde foi colocado, nela insiste em permanecer e dela questiona a razão moderna se mantendo em diálogo/confronto com a modernidade através da afirmação da própria diferença. A colonialidade da irrupção dos “outros” parte de cotidianos de sofrimentos, de injustiças, de desumanização, de negação, de experiência encarnada, histórica, contextual, carregada de vozes vivas, de memórias vividas. Na classificação humanitas/anthropos, a modernidade aparece claramente como a negação da relacionalidade ao impor uma representação unívoca do real, circunscrita no tempo e no espaço. O pensamento decolonial, ao contrário, tende a promover uma ampla, profunda e plural relacionalidade temporal e espacial, escutando vozes, ouvindo histórias, resgatando dignidade e esperança, promovendo re-existências, desmascarando o mito sacrifical da modernidade, ressuscitando a diferença colonial como elemento essencial para um mundo onde possam caber muitos mundos. 2.2 O processo de desprendimento e abertura Para que essa diferença possa emergir para o debate epistêmico, o desprendimento é o primeiro passo rumo a um pensamento decolonial. Consiste em “desaprender”, abandonar as formas de conhecer que configuram subjetividades nos moldes da retórica da superioridade ocidental, desapegar das ficções de verdade e de estética naturalizadas pela matriz colonial do poder. O segundo passo é a abertura a um pensamento-outro, “sentar-se em círculo para aprender” (Upanishad) a partir de outras racionalidades, de outras cosmovisões e de outras maneiras de ser, de saber e de fazer. Portanto, a opção teórica decolonial propõe uma dupla operação: por um lado, despir-se das arrogâncias ocidentais que colonizam o conhecimento; por outro, dispor-se a uma nova maneira de pensar a partir de uma pluralidade de pontos de enunciação geo-historicamente situados. Dessa forma, teremos uma descolonização epistemológica como reação ao pensamento ocidental e sua reivindicação universal, através de uma valorização de conhecimentos rechaçados pela hegemonia eurocêntrica. Em suma, trata-se de aprender a desaprender (desprendimento) para reaprender de outra maneira (abertura). O que exatamente se pretende com esta manifestação não é promover uma nova abstração ou uma nova formulação de um conhecimento teórico, um falar sobre o “outro”, mas a um sentipensar, um corazonar, um tocar com as mãos “as pegadas da ferida colonial de onde se tece o pensamento descolonial”, um experienciar vivencialmente caminhos passando por “portas que conduzem a outro tipo de verdades, cujo fundamento não é o ser, mas a colonialidade do ser” (MIGNOLO, 2007, p. 29). Os teóricos decoloniais acusam o cristianismo de mudar o conteúdo, mas não os termos do discurso (MIGNOLO, 2010, p. 24): assim a “cristianização” no século XVI se tornava Caminhos de Diálogo, Curitiba, ano 8, n. 12, p. 58-76, jan./jun. 2020 63 ISSN 2595-8208 Perspectivas decoloniais do sínodo para a Amazônia “civilização” no século XIX, “desenvolvimento”, “libertação”, “evangelização” no século XX. Sempre despontava de alguma maneira uma direção hegemônica: dos missionários para os pagãos, bárbaros, atrasados, pobres, afastados. Desprendimento e abertura significaria aqui se despir de uma postura docente para enveredar decididamente pelo caminho da reciprocidade simétrica intercultural, inter-religiosa, interespiritual. 2.3 O contexto geopolítico da fronteira Pensar a partir da alteridade colonial aponta para uma subversão epistêmica e política que só é possível se nos situarmos geograficamente e geopoliticamente na margem, ou na exterioridade da hegemonia de um pensamento eurocentrado. A fronteira, como anota Carlos Alberto Motta Cunha (2018), é um campo semântico interessante e também, por sua natureza, ambivalente. É feita ao mesmo tempo para separar e juntar, confrontar e encontrar, dividir e unificar, marginalizar e resgatar, delimitar e transgredir, identificar e diferenciar: “é nas fronteiras que se mede toda a terrível inquietude que atravessa a história da humanidade” (CASSANO, 1996, p. 53). Habitar a fronteira é uma opção ética e uma práxis histórica concreta que permite de transpor os limites da totalidade propondo uma superação e uma abertura para uma novidade subversiva. Fazer da fronteira um lugar onde morar, propicia uma desobediência epistêmica, política e mestiça dos sujeitos que ali se encontram marcados pela ferida colonial. Gloria Anzaldúa (1987) define a fronteira como uma ferida aberta, uma lesão que não tem cura, um corte que não dá para costurar, um tecido vivo dilacerado do qual jorra o sangue da vida: sabedorias, misturas religiosas e multiculturais, novas subjetividades, novas relações, novas cosmovisões. Deixar sangrar é perpetuar a multiplicidade do ser. A imagem da fronteira como ferida aberta diz sobre a impossibilidade de ocultá-la. 2.4 As perspectivas decoloniais para um projeto global Os caminhos abertos pela irrupção do “outro”, pelo desprendimento, pela desobediência política e epistémica, pelo habitar a fronteira, apontam para um “ter que viver em um mundo que é como é, trabalhar não para mudar o mundo, mas para construir um outro a partir das ruínas do mundo em que vivemos” (MIGNOLO, 2015, p. 393). O horizonte descrito pelos projetos decoloniais é sensivelmente diferente da otimística perspectiva do progresso e do desenvolvimento, como também dos bons propósitos voluntaristas eurocentrados de um mundo melhor. O termo apocalíptico “ruinas” utilizado por Mignolo, não quer indicar o aniquilamento de uma civilização, ou o desejo de seu malogrado fim, mas a redução crítica da glória do Ocidente, o desmantelamento da soberba dos arcos do triunfo, a “provincialização” da Europa (CHAKRABARTY, 2004, p. 15), mesmo que certas categorias, idiomas, ferramentas conceituais e semânticas possam servir ainda, de alguma forma, como mediação (eis as ruinas). Os projetos decoloniais identificam-se com aquilo que Boaventura de Sousa Santos chama de sociologias das emergências, as lutas populares e subalternas que buscam potencialidades e Caminhos de Diálogo, Curitiba, ano 8, n. 12, p. 58-76, jan./jun. 2020 ISSN 2595-8208 64 Revista Brasileira de Diálogo Ecumênico e Inter-religioso possibilidades para uma transformação social anticapitalista, anticolonialista e antipatriarcal, entretanto que as sociologias das ausências têm a tarefa de tornar possível a passagem da vitimização à resistência como momento de denuncia da realidade de exclusão (SANTOS, 2019, p. 53). A epistemologia zulu do ubuntu (“eu sou porque tu és”), os conceitos quéchua de kawsay (“bem viver”) e de Pachamama (“Mãe Terra”), as noções hindu e gandhianas de swaraj (“autodeterminação”) e de ahimsa (“não violência”), são exemplos que “devem ser vistos como um contributo para a renovação e para a diversificação das narrativas e dos repertórios das utopias concretas de um outro mundo possível” (SANTOS, 2019, p. 33): histórias locais com vocação necessariamente global – uma vez que a colonialidade do poder atinge dimensões planetárias – articuladas pela ecologia dos saberes e pela tradução intercultural num movimento cosmopolita (SANTOS, 2019, p. 59), pluriverso e subversivo, decolonizado epistemologicamente e desmercantilizado politicamente. 3 APONTAMENTOS E CAMINHOS DECOLONIAIS DO SÍNODO PARA A AMAZÔNIA Podemos já facilmente entrever, nesses elementos-chaves do pensamento decolonial, aspectos familiares à caminhada eclesial e à reflexão teológica latino-americana. Particularmente, as balizas fincadas pelas conferências gerais do episcopado do continente de Medellín (1968) até Aparecida (2007), representam claramente um caminho de descolonização da missão evangelizadora, com suas perspectivas decoloniais inscritas nas vertentes da libertação integral, da opção pelos pobres, das comunidades de base, da inculturação, da conversão pastoral. Também a reflexão missionária especializada, iniciada pouco antes de Medellín pelo Departamento de Missões do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM) junto aos organismos missionários dos diversos países do Continente, contribuiu consideravelmente com pesquisas, debates, eventos e provocações, a abrir novas perspectivas e novos horizontes de compromissos, particularmente no que diz respeito ao diálogo da Igreja com as culturas indígenas e afro-americanas, como também à sua cooperação com a missão além-fronteiras. Enfim, a própria Igreja na Amazônia, especialmente no Brasil, conta com uma caminhada profética significativa desde o encontro de Santarém (1972), no qual surgiu a explicita exigência de pensar e concretizar “uma Igreja com rosto amazônico”. Em 1997, no encontro de Manaus, os bispos brasileiros produziram o documento A Igreja se faz carne e arma sua tenda na Amazônia, destacando o rosto amazônico de uma Igreja discípula da Palavra, testemunha do diálogo, servidora e defensora da vida, irmã da criação. Em 2007, mais uma vez em Manaus, poucos meses após Aparecida, os regionais Norte 1, Norte 2 e Noroeste da Conferência Nacional dos Bispos dos Brasil lançaram o documento Discípulos missionários na Amazônia, reconfirmando os compromissos de Santarém e dando ênfase ao desafio urbano em franca expansão. Por fim, em 2012, aos celebrar os 40 anos do primeiro encontro, bispos e Caminhos de Diálogo, Curitiba, ano 8, n. 12, p. 58-76, jan./jun. 2020 65 ISSN 2595-8208 Perspectivas decoloniais do sínodo para a Amazônia agentes de pastorais se encontraram novamente na mesma cidade, para afirmar a necessidade impelente de apresentar o Evangelho como alternativa diante de uma sociedade de consumo e da economia de mercado. Com o advento do pontificado de Francisco (2013), a fundação da Rede Pan-Amazônica (REPAM, 2014), que reuniu entidades como o CELAM, as conferências episcopais dos nove países que constituem a Amazônia, o Secretariado da América Latina e Caribe da Cáritas (SELACC), a Confederação Latino-Americana e Caribenha de Religiosos e Religiosas (CLAR), e a publicação da encíclica Laudato si’, deram o impulso decisivo para que o papa convocasse o sínodo para a Amazônia, com o tema Amazônia: novos caminhos para a Igreja e por uma a ecologia integral. Essa caminhada de quase 50 anos confluiu no processo de preparação e realização do sínodo que contou com inúmeros encontros, debates, seminários (IL 1). As análises e as propostas que emergiram foram contempladas em sínteses, ensaios e contribuições que ajudaram a compor um documento preparatório (2018), com um questionário final elaborado para promover um processo de escuta, e em seguida, produzir um Instrumentum laboris (2019). O sínodo, por sua vez, aprovou seu Documento final com cinco capítulos e 120 parágrafos. Finalmente, em fevereiro de 2020, Francisco publicou a exortação apostólica pós-sinodal Querida Amazônia (2020) como complemento, e não como justaposição, ao Documento final do sínodo (QA 2). Muitos elementos que apareceram nestes textos vêm de longe; outros se perderam no caminho. Foram objetos de reações de todo tipo, desde aplausos até acusações de heresia. Os assensos e os dissensos que causaram, foram consequências do interesse, da provocação e da subversão que o sínodo para a Amazônia provocou na Igreja universal. Isso já é por si constitui um aspecto decolonialmente relevante em relação a um paradigma colonial continuamente reproposto pela eclesiologia autocentrada da Cúria Romana. 3.1 A irrupção do “outro” como sujeito A caminhada eclesial latino-americana desde Medellín começou a se questionar diante da “irrupção do pobre” no cenário sociopolítico e eclesial, com seu anseio de libertação. Mas os pobres de Medellín não tinham rostos latino-americanos (SUESS, 1998, p. 866). A situação de camponeses e indígenas eram descritas e analisadas não a partir de um enfoque antropológico, mas a partir de categorias como marginalização, analfabetismo e opressão, sob a ótica de uma cultura universal ocidental, não sem um certo sentido de superioridade com o qual se pretendia purificar e incorporar tais as culturas (DM 5): “o problema de ajudar os pobres em sua luta para que cheguem a superar a pobreza é algo muito diverso da luta para ajudar o distinto a ser respeitado como distinto”, afirmou certa vez Xavier Albó (TEIXEIRA, 1991, p. 104). Aos poucos a superação do enfoque classista do sujeito subalterno, com a “assunção” da cultura do “outro”, foi reconhecida em Puebla (DP 400) e ganhou mais destaque ainda em Santo Caminhos de Diálogo, Curitiba, ano 8, n. 12, p. 58-76, jan./jun. 2020 ISSN 2595-8208 66 Revista Brasileira de Diálogo Ecumênico e Inter-religioso Domingo na perspectiva da “evangelização inculturada”. Essas “irrupções” tanto dos pobres como dos outros, porém, ficaram a meio caminho entre paternalismo e cidadania plena nos documentos das conferências gerais, sendo os pobres considerados mais como objetos de compaixão de uma Igreja samaritana (DAp 26) do que autênticos sujeitos da evangelização integral (DAp 257, 398). Além do mais, chama à atenção nesses documentos a falta de autocrítica histórica, fundamentada e articulada, sobre a evangelização colonizadora, e um decidido e significativo pedido de perdão pelo conluio entre a conquista espiritual e a conquista colonial, como fizeram João Paulo II e Francisco (QA 19). Todavia, nos documentos do processo sinodal para a Amazônia se admite sem meios termos que o anúncio de Cristo se realizou em conivência com os poderes que exploravam recursos e oprimiam as populações. No momento atual, a Igreja tem a oportunidade histórica de se diferenciar das novas potências colonizadoras, escutando os povos amazônicos para poder exercer com transparência sua atividade profética. (DSA 15). Aparece assim uma atenção mais esmerada com a alteridade, com “os povos indígenas, ribeirinhos, camponeses e afrodescendentes (quilombolas), as demais Igrejas cristãs e confissões religiosas, organizações da sociedade civil, movimentos sociais populares, o Estado, enfim todas as pessoas de boa vontade que buscam a defesa da vida, a integridade da criação, a paz e o bem comum” (DSA 23), reconhecidos agora como interlocutores. Contudo, Francisco, em sua Querida Amazônia, convida a ir ainda mais além, dando um toque original à questão do reconhecimento: A Amazónia deveria ser também um local de diálogo social, especialmente entre os diferentes povos nativos, para encontrar formas de comunhão e luta conjunta. Os demais, somos chamados a participar como “convidados”, procurando com o máximo respeito encontrar vias de encontro que enriqueçam a Amazónia. Mas, se queremos dialogar, devemos começar pelos últimos. Estes não são apenas um interlocutor que é preciso convencer, nem mais um que está sentado a uma mesa de iguais. Mas são os principais interlocutores, dos quais primeiro devemos aprender, a quem temos de escutar por um dever de justiça e a quem devemos pedir autorização para poder apresentar as nossas propostas. A sua palavra, as suas esperanças, os seus receios deveriam ser a voz mais forte em qualquer mesa de diálogo sobre a Amazónia. E a grande questão é: Como imaginam eles o “bem viver” para si e seus descendentes? (QA 26). A irrupção do “outro” e do pobre como sujeitos se manifesta exatamente na inversão dos papéis, em que a Igreja mais que falar “escuta”, mais que ensinar “aprende”: é uma inversão não só de conteúdos, mas de termos, como amam enfatizar os teóricos decoloniais. Com efeito, Francisco continua: O diálogo não se deve limitar a privilegiar a opção preferencial pela defesa dos pobres, marginalizados e excluídos, mas há de também respeitá-los como Caminhos de Diálogo, Curitiba, ano 8, n. 12, p. 58-76, jan./jun. 2020 67 ISSN 2595-8208 Perspectivas decoloniais do sínodo para a Amazônia protagonistas. Trata-se de reconhecer o outro e apreciá-lo “como outro”, com a sua sensibilidade, as suas opções mais íntimas, o seu modo de viver e trabalhar. (QA 27). Enveredar por este caminho decolonial implica para a prática e a teologia da missão uma radical mudança de orientação e motivação: de uma concepção de missão como “expansão”, para uma compreensão de missão como um genuíno e profundo “encontro” com os outros (BEVANS, 2016, p. 41). Ao contrário de visualizar os pobres e os “outros” a serem catequizadas como “objetos” ou “alvos” de conversão, agora o desafio é de reconhecê-los simetricamente e dignamente como interlocutores, aos quais corresponde um estatuto de mediação da salvação (DAp 257). 3.2 O processo de desprendimento e abertura Dessa maneira, o tema da conversão no lugar de ser dirigidos aos “outros”, é algo que investe a Igreja missionária em cheio, como fil rouge de toda a preparação e a realização do evento sinodal. É a Igreja que deve se converter ao ouvir o clamor da terra e dos pobres (DSA 17): ela é chamada a uma conversão pastoral, cultural, ecológica e sinodal (DSA 19), em suas dimensões pessoal, social e estrutural (DSA 74). Trata-se, antes de tudo, de uma conversão do estilo de vida pessoal (DPSA 53), libertando-nos da obsessão do consumo (DPSA 74), com uma vida simples e sóbria (DSA 17), porque “não haverá uma ecologia sã e sustentável, capaz de transformar seja o que for, se não mudarem as pessoas, se não forem incentivadas a adotar outro estilo de vida, menos voraz, mais sereno, mais respeitador, menos ansioso, mais fraterno” (QA 58). Mas também esse processo não se esgota numa conversão individual: “uma mudança profunda do coração, que se expressa em mudanças de hábitos pessoais, é tão necessária quanto uma mudança estrutural que esteja embutida em hábitos sociais, em leis e em programas econômicos convencionados.” (DPSA 54). Essa conversão começa pela escuta: deixar-se interpelar seriamente pelas periferias geográficas e existências não é nada fácil (IL 3). A Igreja deve escutar os pobres porque “ao ouvir a dor, o silêncio se faz necessidade, para poder ouvir a voz do Espírito de Deus” (IL 144). Com efeito, a celebração do sínodo conseguiu destacar a integração da voz da Amazônia com a voz e o sentimento dos pastores participantes: “foi uma nova experiência de escuta para discernir a voz do Espírito Santo que conduz a Igreja a novos caminhos de presença, evangelização e diálogo intercultural na Amazônia.” (DSA 4). Nessa escuta, “a Igreja é chamada a aprofundar sua identidade em correspondência às realidades de seu próprio território e a crescer em sua espiritualidade escutando a sabedoria de seus povos” (DPSA 66), e também “no seu processo de escuta do clamor do território e do grito dos povos, deve fazer memória dos seus passos” (DSA 15). Essa escuta é caraterística de uma espiritualidade que sustenta a ação pastoral (DSA 38). Caminhos de Diálogo, Curitiba, ano 8, n. 12, p. 58-76, jan./jun. 2020 ISSN 2595-8208 68 Revista Brasileira de Diálogo Ecumênico e Inter-religioso A conversão integral conclamada pelo sínodo para a Amazônia é uma conversão que aponta para uma aprendizagem fundamental, porque “os povos amazônicos originários têm muito a ensinar-nos” (IL 29). Com efeito: O processo de conversão ao qual a Igreja é chamada implica desaprender, aprender e reaprender. Este caminho exige uma visão crítica e autocrítica que nos permita identificar aquilo que devemos desaprender, o que prejudica a Casa Comum e seus povos. Temos necessidade de percorrer um caminho interior para reconhecer as atitudes e mentalidades que nos impedem de nos conectarmos conosco mesmos, com os outros e com a natureza; [os povos indígenas] nos ensinam a reconhecer-nos como parte do bioma e corresponsáveis de seu cuidado pelo presente e pelo futuro. Portanto, devemos reaprender a entretecer laços que assumam todas as dimensões da vida e a assumir uma ascese pessoal e comunitária que nos permita “amadurecer numa sobriedade feliz” (LS 225). (IL 102, grifos do autor). Esse apelo a desaprender, aprender e reaprender, típico da linguagem do grupo M/C, é associada à superação de qualquer tendência a modelos colonizadores que causaram tantos danos no passado (DSA 81). Hoje a Igreja é chamada a “desmascarar as novas formas de colonialismo presentes na Amazônia e a identificar as novas ideologias que justificam o ecocídio amazônico, para analisá-las criticamente.” (IL 104). Essa (des)aprendizagem se estrutura como um “diálogo de saberes, o desafio de dar novas respostas buscando, modelos de desenvolvimento justo e solidário” (DSA 65). Afinal, aprender do outro (DSA 41) é “deixar-se evangelizar” (EG 198). Trata-se de uma fundamental disposição à abertura que necessita de “uma conversão à experiência sinodal [... para] fortalecer uma cultura de diálogo, de escuta recíproca, de discernimento espiritual, de consenso e comunhão para encontrar espaços e caminhos de decisão conjunta e responder aos desafios pastorais”. (DSA 88). Uma Igreja com rosto amazônico, procura ser uma Igreja “em saída” (EG 20-23), “que deixa atrás de si uma tradição colonial monocultural, clericalista e impositiva, que sabe discernir e assumir sem medo as diversificadas expressões culturais dos povos” (IL 110), e que nos alerta para o risco de “pronunciar uma palavra única [ou] propor uma solução que tenha um valor universal” (EG 184). Essa Igreja aprendeu, por via negativa, o segredo da evangelização daqueles que se comportaram como senhores da fé e donos da verdade na casa dos outros. 3.3 O contexto geopolítico da fronteira Toda a caminhada de preparação e realização do sínodo para a Amazônia representou um processo profundamente, criticamente e geopoliticamente situado. Paradoxalmente, a reta final desse percurso foi finalizada em Roma, pela importância planetária da pauta humanitária que estava em jogo, como também, e sobretudo, pelas implicações pastorais, eclesiológicas e estruturais referentes à reforma da Igreja como um todo. Coerentemente com um pensamento fronteiriço decolonial, o debate sobre a periferia pan-amazônica não devia ser circunscrito Caminhos de Diálogo, Curitiba, ano 8, n. 12, p. 58-76, jan./jun. 2020 69 ISSN 2595-8208 Perspectivas decoloniais do sínodo para a Amazônia somente a uma reflexão contextual regional, mas precisava colocar em questão o discurso autocentrado da cristandade ocidental enquanto tal. Além do mais, devia obrigar a Igreja a uma decidida tomada de posição diante da “linha abissal” que separa o mundo moderno do mundo colonial (SANTOS, 2010, p. 36). O Documento final do sínodo apresenta claramente a necessidade de um posicionamento nesse sentido como uma exigência primordial de fé: Para os cristãos, o interesse e a preocupação com a promoção e o respeito dos direitos humanos, tanto individuais como coletivos, não é algo opcional. O ser humano é criado à imagem e semelhança de Deus criador e sua dignidade é inviolável. Por isso, a defesa e a promoção dos direitos humanos não é apenas um dever político ou uma tarefa social, mas também, e sobretudo, uma exigência de fé. Talvez não possamos modificar imediatamente o modelo de um desenvolvimento destrutivo e extrativista imperante, mas é necessário saber e deixar claro: Onde nos situamos? Ao lado de quem estamos? Que perspectiva assumimos? (DSA 70). A partir de um olhar situado na colonialidade amazônica, o sínodo procurou desmascarar o caráter “amigável” do progresso tecnocrático, revelando sua índole voraz e predatória “que tende a espremer a realidade até o esgotamento de todos os recursos naturais disponíveis” (DSA 71). Como já fez Francisco na encíclica Laudato si’, denunciando “um sistema de relações comerciais e de propriedade estruturalmente perverso” (LS 52), a Igreja na Amazônia também “se compromete a ser aliada dos povos amazônicos para denunciar os ataques contra a vida das comunidades indígenas, os projetos que afetam o meio ambiente, a falta de demarcação de seus territórios, bem como o modelo econômico de desenvolvimento predatório e ecocida.” (DSA 46). “A colonização não para”, lamenta o papa: “embora em muitos lugares se transforme, disfarce e dissimule, todavia, não perde a sua prepotência contra a vida dos pobres e a fragilidade do meio ambiente” (QA 16). No entanto, essa terra ferida “é uma terra de florestas e águas, de pântanos e várzeas, savanas e serras, mas sobretudo uma terra de inúmeros povos, muitos deles milenares, habitantes ancestrais do território, povos de antigos perfumes que continuam a perfumar o continente contra todo desespero.” (DSA 41). O Instrumentum laboris afirma que a Amazônia “não é somente um ubi (um espaço geográfico), mas também um quid, ou seja, um lugar de sentido para a fé ou a experiência de Deus na história”, um lugar teológico “peculiar fonte de revelação”, onde se manifestam as “carícias de Deus” (LS 84) que se encarna na história (DSA 19). A Amazônia é um lugar onde se aprende (IL 21; DSA 43), “espaço precioso da convivência humana” (DAp 471), espaço sagrado, fonte de vida e sabedoria (DSA 80), que “tem sido apresentada como um enorme vazio que deve ser preenchido”, numa perspectiva que ignora os povos como se não existissem, “como se as terras onde habitam não lhes pertencessem [...] como intrusos ou usurpadores [...] como um obstáculo de que nos temos de livrar” (QA 12). Agora esses povos Caminhos de Diálogo, Curitiba, ano 8, n. 12, p. 58-76, jan./jun. 2020 ISSN 2595-8208 70 Revista Brasileira de Diálogo Ecumênico e Inter-religioso expressaram claramente que querem que a Igreja os acompanhe, que caminhe com eles e que não lhes imponha um modo particular de ser, um modo específico de desenvolvimento que pouco tem a ver com as suas culturas, tradições e espiritualidades. Eles sabem como cuidar da Amazônia, como amá-la e protegê-la; o que eles precisam é que a Igreja os apoie. (DSA 74). A Igreja habita essa fronteira, “montando sua tenda, seu „tapiri‟” (IL 30), navegando rio adentro e “promovendo um estilo de vida em harmonia com o território e, ao mesmo tempo, com o „bem viver‟ dos que ali habitam” (DSA 75), procurando delinear seu rosto amazônico. 3.4 As perspectivas decoloniais para a evangelização Francisco alimenta decididamente a esperança que “sempre é possível superar as diferentes mentalidades de colonização para construir redes de solidariedade e desenvolvimento” (QA 17). O objetivo é promover a Amazónia: “isto, porém, não implica colonizá-la culturalmente, mas fazer de modo que ela própria tire fora o melhor de si mesma” (QA 28). O Documento final do sínodo enfatiza que a “evangelização [...] não é um processo de destruição, mas de consolidação e fortalecimento desses valores [do mundo indígena]; uma contribuição para o crescimento das „sementes do Verbo‟ (DP 401, cf. GS 57) presentes nas culturas.” (DSA 54). A perspectiva da interculturalidade entra com determinação nos documentos do magistério latino-americano. O Instrumentum laboris, retomando o Documento de Aparecida, lembrava que os novos caminhos que a Igreja pretende desbravar na Amazônia se baseiam “em relações interculturais onde a diversidade não significa ameaça, não justifica hierarquias de um poder sobre outros, mas sim diálogo a partir de visões culturais diferentes, de celebração, de inter-relacionamento e de reavivamento da esperança” (DAp 97). Por sua vez, o sínodo propõe “caminhos para uma Igreja intercultural”, que se aproxima “de igual para igual”, rejeitando explicitamente um estilo colonial e optando por “um anúncio inculturado que gera processos de interculturalidade” (DSA 55). Querida Amazônia, que recorre só duas vezes ao termo “intercultural”, todavia afirma que a fronteira pode transformar-se numa ponte, porque identidade e diálogo não são inimigos, mesmo apresentando uma tensão delicada. De um lado, devemos admitir que o isolamento de um indigenismo fechado, empobrece. Por outro, como não é fácil proteger-se da invasão cultural, é preciso cuidar dos valores culturais dos grupos indígenas: “se não progredirmos nesta direção de corresponsabilidade pela diversidade que embeleza a nossa humanidade, não se pode pretender que os grupos do interior da floresta se abram ingenuamente à „civilização‟.” (QA 37). Por isso, a tarefa evangelizadora da Igreja, que não deve ser confundida com proselitismo, deve “incluir processos claros de inculturação de nossos métodos e esquemas missionários” (DSA 56). O Instrumentum laboris afirmava que “inculturação e interculturalidade não se opõem, mas se completam.” Assim como Jesus se encarnou em uma Caminhos de Diálogo, Curitiba, ano 8, n. 12, p. 58-76, jan./jun. 2020 71 ISSN 2595-8208 Perspectivas decoloniais do sínodo para a Amazônia determinada cultura (inculturação), seus discípulos missionários saíram ao encontro de pessoas de outras culturas (interculturalidade) dando vida a novos caminhos do Espírito (IL 108). A convergência do diálogo com as culturas amazônicas, que mais promete abrir para um intercâmbio construtivo e para um projeto decolonial, se desdobra no horizonte do “bem viver”, que encontra o seu correlativo bíblico nas bem-aventuranças: Trata-se de viver em harmonia consigo mesmo, com a natureza, com os seres humanos e com o ser supremo, pois existe uma intercomunicação entre todo o cosmos, onde não há exclusão nem excluídos, e onde podemos criar um projeto de vida plena para todos. Tal compreensão da vida é caracterizada pela interligação e harmonia das relações entre água, território e natureza, vida comunitária e cultura, Deus e as várias forças espirituais. Para eles, “bem viver” significa compreender a centralidade do caráter relacional transcendente dos seres humanos e da criação, e implica um “bem fazer”. (DSA 9). Esse horizonte tem um alcance universal necessário, no qual “a Amazônia representa um pars pro toto, um paradigma, uma esperança para o mundo” (IL 37), para estabelecemos “um acordo para viver juntos, de um pacto social e cultural” (EG 239). Nesse projeto a Igreja quer ser “aliada”, expressão assumida e reafirmada com firmeza pelo Documento final (DSA 4), a serviço da vida plena (DSA 48), inaugurando um jeito sinodal de ser, elemento fundamental para um salto de qualidade de uma missão colonizadora a uma missão em perspectiva decolonial: Para caminhar juntos, a Igreja precisa hoje de uma conversão à experiência sinodal. É necessário fortalecer uma cultura de diálogo, de escuta recíproca, de discernimento espiritual, de consenso e comunhão para encontrar espaços e caminhos de decisão conjunta e responder aos desafios pastorais. Assim, se fomentará a corresponsabilidade na vida da Igreja num espírito de serviço. Urge caminhar, propor e assumir as responsabilidades para superar o clericalismo e as imposições arbitrárias. A sinodalidade é uma dimensão constitutiva da Igreja. Não se pode ser Igreja sem reconhecer um efetivo exercício do sensus fidei de todo o povo de Deus. (DSA 88). Essa “conversão sinodal” implicava uma reforma estrutural da Igreja, particularmente em sua dimensão ministerial, a fim de caracterizar de maneira arrojada um verdadeiro rosto amazônico. Essa era umas das expectativas mais aguardada que, obviamente, devia passar pelo crivo do magistério pontifício. Inúmeras vozes se levantaram reivindicando uma mudança na configuração e na compreensão do ministério ordenado para que muitas comunidades dispersas no território amazônico pudessem ter acesso à eucaristia (DSA 111). Infelizmente, papa Francisco, sob violentas pressões da Cúria Romana, não teve as condições, os elementos ou a ousadia de afirmar algo de diferente da disciplina e da teologia tradicional a respeito, o que resultou em asserções totalmente desconectadas da caminhada sinodal até então realizada. O sonho eclesial franciscano ficou pela metade: mas conseguiu igualmente colocar alguns marcos nas metas alcançadas a partir dos quais projetar passos promissores. Caminhos de Diálogo, Curitiba, ano 8, n. 12, p. 58-76, jan./jun. 2020 ISSN 2595-8208 72 Revista Brasileira de Diálogo Ecumênico e Inter-religioso CONSIDERAÇÕES FINAIS Durante a Conferência de Medellín (1968), o jovem bispo mexicano dom Samuel Ruiz García, de San Cristóbal de las Casas, Chiapas, proferiu uma das sete conferências programadas sobre A evangelização na América Latina, dedicando um destaque apaixonado à situação dos povos indígenas, marginalizados social, política, econômica, cultural e pastoralmente, aos quais não se reconhecia o direito de receber a mensagem cristã dentro de suas próprias culturas. Ruiz denunciou a falta de conhecimento e de planejamento por parte da Igreja da América Latina, que fazia do indígena um objeto de assistência e não um sujeito de libertação. Na época, a questão indígena não estava na pauta das urgências de Medellín, e por isso não era considerada importante. Então o prelado mexicano dirigiu à assembleia essas contundentes palavras: Pode-se dizer com toda energia que é necessário saber distinguir em nossa pastoral o que é urgente e o que é transcendente – mesmo que seja menos urgente. Sem essa postura, séculos continuarão se acumulando sobre este problema vergonhoso que poderia muito bem ser chamado de fracasso metodológico da ação evangelizadora da Igreja na América Latina. (RUIZ, 1969, p. 160). Este apelo ficou ignorado e representou umas das mais graves falhas de Medellín: somente cinco vezes o Documento final menciona os indígenas, nunca os afro-americanos, os ciganos ou outros povos. Mas após a II Conferencia do Episcopado do continente, os organismos missionários se articularam, aprofundaram as temáticas que já tinham sido tratadas no Encontro de Melgar, Colômbia, poucos meses antes de Medellín, e avançaram na reflexão até introduzir a questão do “outro” e da “cultura” dentro da pauta pastoral e da reflexão teológica latino-americana. Já Puebla (1979) “assumia” a problemática da diversidade cultural e Santo Domingo (1992) consagrava o paradigma da inculturação, mesmo na ambivalência entre a afirmação de uma hipotética “cultura cristã” não situada, e a proposta de uma “evangelização inculturada” em analogia com o mistério da encarnação (SD 243b). Aparecida (2007), por sua vez, resgatava a palavra “missão” como paradigma-síntese de toda uma caminhada libertadora, apontando para uma necessária conversão eclesial em termos de desacomodação (DAp 362), de saída (DAp 363) e de reformas espirituais, pastorais e institucionais (DAp 367). Todavia, temas como a descolonização e a interculturalidade, que já tinha chegado a maturação no debate acadêmico, político e missionário, apareceram só en passant. De alguma forma, o sínodo para a Amazônia representa um grande passo à frente, em linha com a tradição latino-americana, quase se tratasse, e em parte correspondendo, à celebração de uma VI conferência dos bispos latino-americanos e caribenhos, em seu processo de preparação, realização e recepção. Esse evento respondeu positivamente à possibilidade e à urgência de descolonizar a missão cristã, elaborando uma reflexão missionária em perspectiva Caminhos de Diálogo, Curitiba, ano 8, n. 12, p. 58-76, jan./jun. 2020 73 ISSN 2595-8208 Perspectivas decoloniais do sínodo para a Amazônia decolonial, traçando linhas de ação de compromisso intercultural para a ação missionária tais como: a) desmascarar a cumplicidade da missão com as relações coloniais na história e no presente; b) desenvolver ferramentas que ajudem a detectar e a se defender contra a hegemonia de cosmovisões dominantes; c) colocar-se a serviço dos povos subalternos como aliados de suas causas libertadoras, hóspedes em sua casa, no diálogo intercultural com eles. Não se trata de querer negociar, ou confundir, verdades de fé com circunstâncias históricas, e sim se dispor a testemunhar o próprio âmago do Evangelho na proximidade às realidades humanas, no diálogo político, intercultural, inter-religioso e interespiritual, na reciprocidade e na reconciliação, na promoção de sociedades mais justas e fraternas, na tensão esperançosa para uma comunhão pluriversal plena. Envolver-se na perspectiva decolonial, intercultural e pluriversal significa assumir riscos e abrir-se para o inesperado. Isso não quer dizer optar pelo relativismo, mas pela profunda humildade e pela necessária aprendizagem: “com a modéstia do provisório e do inacabado, é urgente aprender, talvez por muito tempo, a arte da pluralidade dos discursos e de sua polifonia” (ARNOLD, 2014, p. 43). O sujeito da missão deverá se considerar hóspede na casa do outro, no seguimento de Jesus discípulo e na força do Evangelho servidor vulnerável. REFERÊNCIAS ANZALDÚA, Gloria. 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