ARTIGO
10.4025/psicolestud.v26i0.51119
DESAMPARO E AÇÕES ESPECÍFICAS DE CUIDADOS COM UM
ADOLESCENTE NA REDE PÚBLICA1
Andréa Máris Campos Guerra2, Orcid: http://orcid.org/0000-0001-5327-0694
Mônica Eulália da Silva Januzzi²,3, Orcid: http://orcid.org/0000-0003-0788-9968
Ilka Franco Ferrari4, Orcid: http://orcid.org/0000-0002-6367-3136
RESUMO. Este trabalho apresenta dados preliminares de pesquisa pós-doutoral que
investiga, a partir da psicanálise, a noção de ‘desamparo’ em jovens em situação de
vulnerabilidade, na busca por ‘ações específicas’ de cuidado na prática institucional em
dispositivos de políticas públicas. Partimos da interface entre psicanálise e direito, bem como
da supervisão de caso sob ação da Justiça Restaurativa. Analisamos, pela metodologia do
caso único, um caso de adolescente sob medida protetiva e socioeducativa, do qual são
extraídas duas observações orientadoras: a dimensão da transmissão e filiação e do
‘desamparo’ e da ‘ação específica’ na adolescência. Como resultado, sistematizamos quatro
lógicas de orientação para composição da ‘ação específica’: o sujeito e a dimensão simbólica,
o sujeito e o circuito pulsional, a implicação e a retificação no campo do Outro, e as inflexões
sobre a equipe. Concluímos que o desamparo é uma chave de leitura psicanalítica para a
noção de vulnerabilidade e que a supervisão institucional favorece a construção melhor
orientada para a ação específica de cuidados.
Palavras-chave: Desamparo; ação específica; adolescência.
HELPLESSNESS AND SPECIFIC CARE ACTIONS FOR AN
ADOLESCENT IN THE PUBLIC SYSTEM
ABSTRACT. This paper presents preliminary data from a postdoctoral research that
investigates, from psychoanalysis, the notion of helplessness in vulnerable young people, in the
search for specific care actions in clinical and institutional practice in public policy devices. We
start from the interface between Psychoanalysis and law, based on a case under supervision
for restorative justice action. The study analyzed a case of an adolescent under protective and
socio-educational measures, from which two observations are taken to guide the discussion:
the dimension of transmission and affiliation, and the helplessness and specific action in the
face of adolescence. As a result, we have gathered from institutional supervising four guiding
plans for its lecture: the subject and the symbolic dimension, the subject and the drive circuit,
the implication and rectification in the Other’s field, and the inflections on the team. We conclude
that helplessness is a psychoanalytic key for the notion of vulnerability and that institutional
supervision favors the construction better oriented towards specific care actions.
Keywords: Helplessness; specific action; adolescence.
Apoio e financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG).
2 Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte-MG, Brasil.
3 Email:
[email protected]
4 Pontifícia Universidade Católiga d de Minas Gerais (PUC-MINAS), Belo Horizonte-MG, Brasil.
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Adolescência: desamparo e intervenções
LA IMPOTENCIA Y LAS ACCIONES ESPECÍFICAS DEL CUIDADO CON
UN ADOLESCENTE EN LA RED PÚBLICA
RESUMEN. El documento presenta datos preliminares de la investigación postdoctoral
que investiga, desde el psicoanálisis, la noción de impotencia en los jóvenes
vulnerables, en busca de coordinadas que establezcan acciones específicas de
atención en la práctica clínica e institucional en dispositivos de políticas públicas.
Partimos de la interfaz entre el Psicoanálisis y la ley, basada en la supervisión de casos
bajo la acción de justicia restaurativa. El estudio de caso analizó un caso de
adolescente bajo medidas protectoras y socioeducativas, de las cuales se toman tres
observaciones para guiar la discusión: la dimensión de transmisión y afiliación;
impotencia y acción específica ante la adolescencia. Como resultado de la supervisión
institucional, hemos reunido cuatro planes de lectura guía para su composición: el
sujeto y la dimensión simbólica, el sujeto y el circuito de conducción, la implicación y
rectificación en el campo del Otro, y las inflexiones en el equipo. Concluimos que la
impotencia es una lectura psicoanalítica clave para la noción de vulnerabilidad y que
la supervisión institucional favorece una mejor construcción de la atención orientada a
la acción.
Palabras clave: Impotencia; acción específica; adolescencia.
Introdução
Este texto apresenta considerações teórico-práticas extraídas de trabalho
desenvolvido em nível de pós-doutorado, vinculado à pesquisa ‘Transmissão e Filiação’,
inscrita no Comitê de Ética em Pesquisa com o número CAAE: 96236718.3.0000.51495, e
com bases em recente pesquisa doutoral. Partiremos das noções freudiana e lacaniana de
‘desamparo’ e da concepção de ‘ação específica’, desenvolvida por Freud (1996a), para
discutir a situação de um adolescente em situação de desproteção, a fim de pensar lógicas
de intervenção a partir da psicanálise. Discutir-se-ão os conceitos mencionados, aplicandoos à análise de um caso, escolhido dentre um conjunto de cinco outros que compõem o
estudo completo de jovens sob cumprimento de medida socioprotetiva e socioeducativa6.
O caso foi construído a partir de supervisão institucional realizada com a equipe do
Projeto Ciranda, da Faculdade de Direito da UFMG, equipe que desde 2016 compõe um
dos Núcleos de Justiça Restaurativa Juvenil da comarca de Belo Horizonte. O trabalho
demonstra as contribuições da psicanálise ao processo restaurativo que, enquanto tal, visa
Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais, FAPEMIG, edital universal de 2017.
Os adolescentes e as crianças em situação de risco pessoal ou social estão sujeitos a um rol de medidas protetivas
previstas no artigo 101, da lei 8.069/90, o Estatuto da Criança e do Adolescente. São elas: a) encaminhamento aos pais
ou responsável, mediante termo de responsabilidade; b) orientação, apoio e acompanhamento temporários; c) matrícula
e frequência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; d) inclusão em programa comunitário ou
oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente; e) requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em
regime hospitalar ou ambulatorial; f) inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a
alcoólatras e toxicômanos. Já os adolescentes que cometem ato infracional sujeitam-se, conforme prevê o artigo 112 do
mesmo Estatuto, além das medidas protetivas acima arroladas previstas para as crianças, às seguintes medidas
socioeducativas: a) advertência; b) obrigação de reparar o dano; c) prestação de serviços à comunidade; d) liberdade
assistida; e) inserção em regime de semiliberdade; f) internação em estabelecimento educacional.
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atender às necessidades individuais e coletivas, responsabilizar as partes do conflito penal
ou infracional, vítima, ofensor e membros da comunidade afetados, bem como promover
ainda a reintegração da vítima e do ofensor na comunidade (Arlé, 2018; Guerra et al., 2019).
Método
Do ponto de vista teórico, o estudo se sustenta na revisão de alguns aspectos
conceituais da noção de ‘desamparo’ que, em Freud (1996a), articula a experiência de
satisfação do pequeno vivente e que, em Lacan (1995), instaura o circuito demanda e
desejo na relação com o Outro. Na mesma via, o estudo também se apoia na noção de
‘ação específica’ (Freud, 1996a), que se distingue por incidir sobre o desamparo do sujeito,
apaziguando-o a partir da instauração de uma instância de alteridade.
O método do caso único em psicanálise (Miller, 2006) foi escolhido como operador
para este estudo, já que sua característica de exceção nos diz do sujeito sempre constituído
como aquele que escapa à regra das classificações e das generalizações. Neste método,
o caso, mesmo analisado entre outros, não produz seriação, mas extração de elementos
singulares que ensinam aos demais, tornando-o, assim, paradigmático.
No caso apresentado neste estudo, assim como nos demais, oriundo de supervisões
oferecidas ao Projeto Ciranda, observamos que o ato infracional, que gerou o
encaminhamento à Justiça (Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Autor de Ato
Infracional, CIA-BH7), se deu em decorrência de atos de violência e ameaça dirigidos a
membros da própria família do adolescente, em especial à mãe e aos irmãos. Levantaramse, assim, de saída, as seguintes questões: este ato evidencia algo da ordem do desamparo
articulado aos processos de transmissão e filiação? Como se dá aí a implicação do outro e
do sujeito? A noção de ação específica em Freud pode inspirar a lógica a partir da qual a
instituição pública intervém?
A fim de demonstrar as contribuições da psicanálise na construção de respostas a
essas questões, o presente estudo centrou-se na análise de caso e na reflexão sobre a
função da supervisão clínica e institucional que, ao promover meios que levam a ‘ações
específicas’ (Freud, 1996a) em resposta ao modo como os dispositivos públicos podem
operar ações de cuidado, funda uma condição de enfrentamento ao desamparo radical dos
sujeitos adolescentes junto às equipes que os acompanham. Na medida em que a
supervisão institucional visa ampliar as possibilidades de manobra em curso com o caso
(Campos & Alvarenga, 2015), supomos que possa favorecer a produção de chaves de
leitura capazes de orientar a produção da ‘ação específica’ de cuidados coletivos em rede,
fornecendo subsídios para avaliar seus efeitos, considerando o Outro institucional.
No processo de supervisão do caso – cujos relato e supervisão foram gravados e
ouvidos em áudio –, buscamos extrair os significantes do desamparo para o sujeito
adolescente como eixo orientador, identificando em seguida como o desamparo se
articulava pulsionalmente. Daí produziram-se quatro categorias operatórias, isto é,
coordenadas que permitiram que se traçassem ações específicas de cuidado que
emergiram na supervisão como orientação para o processo restaurativo que, enquanto tal,
consiste em conjunto ordenado de atos no qual vítima e ofensor, ou “[...] quaisquer outros
indivíduos ou membros da comunidade afetados por um crime ou ato infracional, participam
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Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Autor de Ato Infracional (CIA-BH) tem o objetivo de agilizar e dar
maior efetividade à responsabilização do adolescente autor de ato infracional, concentrando, em um mesmo espaço físico,
uma equipe interinstitucional composta por representantes da Subsecretaria de Atendimento às Medidas Socioeducativas
(SUASE), Polícias Civil e Militar, Tribunal de Justiça, Ministério Público, Defensoria Pública e Prefeitura Municipal.
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ativamente na resolução das questões oriundas do crime ou do ato infracional, com a ajuda
de um facilitador” (Arlé, 2018, p. 6). No caso em questão, cujo encaminhamento foi realizado
em execução de medida socioeducativa “[...] o processo de execução não fica suspenso e
o processo restaurativo conduzido pelo parceiro [entidade parceira] se dá paralelamente,
podendo seus resultados serem considerados pelo juiz na reavaliação das medidas” (Arlé,
2018, p. 23).
Nessa vertente, a pesquisa em psicanálise mantém o pesquisador aberto à surpresa
advinda do real veiculado pela palavra, pelos significantes presentes no discurso do sujeito.
Convoca a uma escuta que vai além das generalizações, das palavras enunciadas, mas
reconhece aí os aspectos da enunciação e os transforma em elementos transmissíveis à
leitura e à orientação de trabalho em outros casos (Januzzi & Ferrari, 2018; Januzzi, 2019).
Relato do caso João: “Na sua casa é tudo trocado”
João8 foi encaminhado ao CIA-BH em decorrência de um episódio de agressão e
ameaça dirigidos à irmã. Tudo começou quando ela toma a parte do suco que ele havia
reservado para beber à noite. Irritado, João pegou o que restou desse suco e jogou no prato
dela. A irmã, também irritada, se lança em direção a João, agredindo-o. Ele a segura pelos
braços na tentativa de contê-la, jogando-a em cima da cama. Em cima dela, tenta imobilizála e as agressões continuam. “Ô, véi, cê não vai me bater, cê não vai me bater”, dizia João.
A irmã consegue se soltar e chamar a polícia, que chegou no mesmo instante em que a
mãe vinha do trabalho. João disse à polícia que não agrediu a irmã, apenas a conteve.
Ainda assim, foi levado e seus atos equiparados a dois artigos do Código Penal: art. 129,
“[...] ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem [...]” e art.147, “[...] ameaçar
alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal
injusto e grave” (Decreto-lei nº 2.848, 1940, p. 51 e 59), sendo a medida socioeducativa de
privação de liberdade aplicada conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente, ECA.
João e sua família foram convidados a participar do trabalho realizado pela equipe
do Projeto Ciranda, que tem como metodologia de trabalho a proposição de Círculos
Restaurativos. O trabalho se dá através de encontros frequentes, no intervalo de alguns
meses, em que são realizadas intervenções coletivas denominadas de ‘pré-círculo’, ‘círculo’
e ‘pós-círculo’. A aceitação voluntária do adolescente e sua família no processo restaurativo
se justifica sempre que seja identificado um potencial restaurativo no caso, mesmo que seja
aplicada uma medida socioeducativa em meio fechado. “Ainda assim, pode ser instaurado
um processo restaurativo, paralelo e complementar ao cumprimento da medida
socioeducativa” (Arlé, 2018, p. 11).
Durante o processo restaurativo, diversas técnicas e formas de abordar a questão
que circunscreve o ato são realizadas. Em uma delas, o adolescente é convidado a eleger
alguém que reconheça na família como um apoio. A família e seus membros são também
convidados a construírem um plano de ação em que cada um se compromete com algo,
assinando um termo de compromisso que possui valor legal. Nesse contexto, o caso chega
ao Núcleo de Psicanálise e Laço Social no Contemporâneo (PSILACS).
A cena do ato de João remontava a um contexto familiar onde as relações afetivas
eram atravessadas pelo objeto oral, a comida. Na casa de João, a comida era regulada de
variadas formas. As dificuldades materiais que a família enfrentava ditava uma delas. Havia
aquilo que precisava ser reservado para se comer ou beber no almoço e aquilo que era
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Nome fictício escolhido a fim de preservar a identidade do sujeito.
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para o jantar. Mas também havia outra forma de regular este recurso e, no dia do ocorrido,
João evidencia essa outra dimensão. Como fazia às vezes, naquele dia, deixou de tomar
parte do suco do almoço para reservá-lo para a noite. Quando a irmã tomou para si o que
era dele, algo de uma Outra cena emergiu, remetendo-o a uma situação de desamparo
frente ao lugar que ocupava para o Outro materno de maneira inconscientemente dirigida.
A mãe mantinha o sustento da casa e dizia cumprir sua função: “[...] colocar o arroz
e o feijão em casa e pronto” (mãe do adolescente). Esses alimentos, da ordem da
necessidade, eram de livre acesso a todos, ou seja, a João, à irmã e à mãe. Entretanto,
alimentos como biscoitos e iogurtes eram trancados no quarto da irmã, de modo que só ela
e a mãe poderiam ter acesso. Na casa de João, só havia portas no quarto da mãe e da
irmã; no dele, não. A irmã era “[...] a filha exemplo, que não dá trabalho” (mãe do
adolescente), enquanto João era aquele que comia tudo e não ajudava nas tarefas
domésticas. “É um à toa!”, dizia a mãe. Ele, então, aprendeu na internet sobre técnicas de
abrir cadeados. Aprendeu a abrir fechaduras e começou a entrar no quarto e roubar.
Quando a mãe chegava em casa cansada e João não tinha feito nada, ela levava a filha
para comer pizza e não levava o filho. Dizia que havia arroz e feijão em casa.
A verbalização dos conflitos mantinha-se no nível da punição e da recompensa,
encobrindo um circuito pulsional da oralidade que regulava o amor materno de modo
desigual. João recebia um amor dividido, regrado, às vezes mesmo inacessível, que se
contrapunha à parceria que se instaurava entre mãe e filha. Da mesma forma, o afeto que
João dirigia à mãe também era mediado pelo objeto comida, mas, ao contrário do amor
regrado que dela recebia, o jovem endereçava a ela tudo o que tinha. Com o dinheiro que
ganhou no tempo em que abriu um lava-jato com alguns colegas, gastou tudo com comida
que levava para a irmã, a mãe e a avó materna. Fazia isso como se estivesse se oferecendo
como objeto oral a ser incorporado pelo Outro, ou seja, como um objeto que falta ao Outro.
O pai de João foi preso quando o menino estava prestes a nascer. O motivo que o
levou para a prisão é assunto não comentado pela mãe e pela família. Sabe-se, que ele era
‘barra pesada’. A mãe se separou dele nesta mesma época e, algum tempo depois,
conheceu outro companheiro, com quem viveu por um tempo. Em ambos os
relacionamentos, a mãe vivenciou graves situações de violência.
Quando João tinha entre oito e nove anos, a mãe encontrou uma namorada que é
sua atual companheira. A irmã de João também é homossexual. Dois anos mais tarde,
todos se mudaram para a casa da namorada da mãe, o que fez com que ele perdesse seus
antigos amigos. Os novos colegas da escola provocavam-no constantemente em virtude
das particularidades de sua família, contribuindo para sua primeira evasão escolar. “Na sua
casa, é tudo trocado!”, diziam.
Inicialmente, a relação entre João e a namorada da mãe era boa. Ela preocupava-se
com ele por achar e dizia que o menino ficava ‘largado’ e que lhe faltava uma referência
masculina. Ela se coloca neste lugar, comprando-lhe roupas novas e cuecas boxer, que,
em seu entendimento, eram cuecas ‘de homem’. Contudo, a boa relação entre eles foi
ficando conflituosa, fazendo com que, quando João estava com 14 anos, sua mãe decidisse
voltar para sua antiga casa. Ela mantém a relação com a namorada, mas, em casas
separadas. Este é o momento apontado pela família como aquele em que João passou a
ser considerado um ‘garoto-problema’.
Nesta mesma época, o pai de João saiu da prisão. A essa altura, entretanto, o jovem
não tinha nenhum laço com ele. Mesmo assim, a mãe convoca o pai como referência de
masculinidade para o filho, entendendo que os dois deveriam morar juntos, e ela, com a
filha. Há um desconhecimento dos afetos e das identificações inconscientes que
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atravessam o caso, tomando-se na literalidade, e não na eficácia simbólica, a ideia de
‘referência masculina’. Assim, João vai morar com o pai, que passava o dia todo fora e
cobrava do filho a realização de todas as tarefas domésticas. Se não as fizesse, o pai batia
e ameaçava João, que chegou a pedir ajuda da mãe dizendo que o pai o fazia de escravo.
A mãe foi buscá-lo, mas, diante da ameaça do pai de agredi-la, João interveio dizendo que
estava tudo bem e pedindo que ela fosse embora. Dois dias depois, retorna sozinho para a
casa da mãe: “Não, meu pai é mó folgado, ué. Ficava botando [...] é […] eu pra fazer as
coisas todas em casa. Depois levava mulher pra casa. Eu tinha que dormir no sofá, quando
ele levava mulher pra casa”.
Segundo as mulheres de sua família, a avó materna, a mãe e a irmã, João era a
pessoa mais carinhosa da família, e isso era desconcertante. A avó dizia que: “[...] quando
chega em casa, ele faz bagunça demais, ele bate no portão, ele chega gritando, me abraça,
me aperta”. A irmã diz: “Ah, não, eu entendo, mas ele é chato demais, ninguém aguenta o
João”. Ele abraça a mãe, mas ela, não suportando muito, empurra-o. De acordo com a avó
materna, a afetividade é algo de “[...] que a gente não fala. Minha filha, coitada, nem sabe
muito bem disso”.
A avó foi subtraída de sua infância ao ser abandonada pelos pais. Casou-se cedo, e
pelas mãos do marido, o avô de João, sofreu diversas violências. Ele batia nela e em todas
as mulheres da família, incluindo filhas e netas. Quando a equipe do projeto intervém
perguntando em um dos círculos sobre um momento em que outra pessoa da família fez
algo que fizesse a pessoa se sentir ‘família’, a irmã de João tomou a palavra. Lembrou-se
de que, quando era bem pequena, um tio materno, ao flagrar agressão do avô a ela,
interveio, abraçou-a, tirou a menina dali e disse: “[...] você nunca mais vai bater nela”.
Este tio também era muito importante para João. Foi ele que o garoto escolheu
quando a equipe pediu que elegesse alguém que funcionasse como apoio para ele. Na
casa desse tio, João se oferecia para ajudar nas tarefas domésticas. Como se vê, a
agressividade é um elemento muito presente naquilo que liga as relações históricas de
parentesco de João, demarcando, principalmente, as relações entre os homens e as
mulheres da família. Porém, por mais que pese sobre ele a dimensão simbólica da herança
masculina na linhagem parental, na verdade, João parece subvertê-la adotando para si uma
posição masculina diferenciada neste contexto. Recusa a referência de masculinidade
impositiva da companheira da mãe, a violência que o pai endereçava a sua mãe, assim
como a agressividade do avô com a avó e as mulheres da família. João é um garoto que
toca o corpo das mulheres de sua família para abraçar, beijar, apertar, conter [...]
Não por acaso, a cena que levou o Poder Judiciário a encaminhar João ao Projeto
Ciranda é justamente a reedição da Outra cena inconsciente tensionada e não resolvida de
violência de um homem contra uma mulher – ainda que, de fato, se tratasse de uma defesa
de João contra a agressividade da irmã. O elemento masculino que João encarna
simbolicamente o implica inconscientemente como homem violento na cena recalcada do
trauma familiar.
Discussão teórica
1. Transmissão e filiação
A ideia de ‘desestrutura’ familiar está no cerne de explicações morais e reducionistas
que justificam aquilo que não vai bem na sociedade. Quando se trata de adolescentes
autores de atos infracionais, as diferentes formas de parentesco aos quais possam estar
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ligados e os fatores preponderantes da produção de vulnerabilidade surgem como
elementos que fundamentam tal discurso (Guerra et al., 2018). Mas a perspectiva que a
psicanálise permite vislumbrar indica que a imagem por demais idealizada, moralizada e
disciplinada de família encobre a inexistência de um único modelo de organização familiar
para os seres falantes, bem como oculta o fato de que a transmissão se dá por diferentes
vias com efeitos pulsionais.
No horizonte da perversão, escreve Laurent (2007), Lacan situa a mulher/mãe fálica
e no horizonte da neurose, o drama familiar, assim como João dá testemunho. A família
conjugal, segundo o autor, não tem como função sustentar o lugar de sucesso de uma
organização parental nuclear, mas de existir como resíduo. Exemplo disso é a mãe dos
cuidados que trazem “[...] a marca de um interesse particularizado, nem que seja por
intermédio de suas próprias faltas” (Lacan, 2003a, p. 13). O pai tem em seu nome o vetor
da encarnação da lei do desejo, na medida em que, ao desejar uma tal mulher, conjuga a
lei, a proibição e o desejo. A criança, em Lacan, é o objeto capturado não no ideal dos pais
freudianos, mas no gozo destes e no seu próprio, e é assim que a família humana se
estrutura. A busca por se completar com uma família é o drama do sujeito neurótico.
As vias pelas quais o circuito pulsional se faz valer surgem a partir dos três complexos
familiares estruturantes (Lacan, 2003b): o do desmame, o de intrusão e o de Édipo. A noção
de estrutura se refere, pois, à ideia de um conjunto de elementos sujeitos a inúmeras
combinações operadas, desde que um destes elementos seja o vazio (falta-a-ser), fazendo
com que estas variações não resultem em uma totalidade harmônica, plena e completa.
O caso de João e as particularidades de sua família nos permitem evidenciar que
aquilo que se transmite e em que se filia para os humanos é da ordem do simbólico,
ultrapassando o viés biológico ou social. Partimos, assim, do pressuposto de que os
processos de transmissão e filiação presentes no caso e o modo como a dimensão do
desamparo se apresenta, resultando da noção estrutural e estruturante de família, permitem
identificar possíveis ‘ações específicas’ de cuidado para o sujeito.
2. Desamparo, ação específica e adolescência
Ao eleger as noções freudianas de ‘desamparo’ e ‘ação específica’ como balizas
teóricas que fundamentam esta pesquisa, fazem-se necessárias algumas distinções. O
desamparo ao qual nos referimos é o que advém dos perigos pulsionais do sujeito, sendo,
portanto, diferente da vulnerabilidade social, situada aqui a partir de questões referentes a
violações de direitos sociais e humanos. Na materialidade da vida dos sujeitos, ambas as
situações são amalgamadas na dimensão simbólica, dando-lhe expressão sob os
contornos do abandono, dos maus tratos e da negligência.
Na origem de tal dialética, o circuito pulsional da oralidade parece se destacar nas
relações afetivas de parentesco de João. Esse mesmo circuito é também a via privilegiada
que Freud (1996a) destacou na primeira vez em que abordou o termo ‘desamparo’ em sua
obra. É pela via da experiência de satisfação, na alimentação pelo seio materno, a primeira
à qual o pequeno vivente é submetido, que Freud reconhece o momento inicial da
constituição psíquica, o mesmo que também engendra um ‘estado infantil’ que denominou
de ‘desamparo’. O alimento, primeira experiência de satisfação dos seres humanos, tornase um objeto privilegiado no qual se engendram as relações libidinais, promovendo modos
pelos quais circulam as necessidades, mas também o amor. É por esta via que é dirigido a
João o amor materno que lhe cabe na estrutura de sua família; um amor regrado, dividido,
empobrecido de afeto, negado, e que responde ao que é da ordem da necessidade: “[...] o
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Adolescência: desamparo e intervenções
arroz e o feijão, e pronto!”. As vulnerabilidades sociais que convocavam a mãe a trabalhar
o dia todo para sustentar a casa e a herança simbólica que a situa na série das mulheres
vítimas da violência masculina em sua família, agem de modo a delinear as particularidades
resultantes de suas dificuldades com os afetos.
O termo Hilflosigkeit (‘desamparo’) perpassa quase toda a obra freudiana, e sua
equivalência a um ‘estado infantil’ permanece em quase todas as passagens, com grande
regularidade teórica. Ligado à Outra cena do inconsciente, o desamparo pode ser
reconhecido em diferentes momentos e de diferentes modos na vida do sujeito, por
situações de repetição pulsional nas quais se atualizam experiências psíquicas
ameaçadoras.
No caso de João, os perigos que este ‘estado infantil’ impõe ao sujeito podem ser
sentidos quando a parte do amor materno que precisa guardar para que não lhe falte (o
suco do almoço) é tomado por sua irmã. Não se pode deixar de mencionar que, ainda que,
no discurso da mãe, João seja ‘um à toa’, ele também é o carinhoso da família, o que
esbarra na dimensão traumática que a figura masculina guarda em sua realidade psíquica
e na borda transgeracional daquela família. A mãe não sabe responder a isso, e, do lado
de João, emerge um desamparo radical em relação à demanda que dirige a ela, pois ali só
encontra o necessário. A mãe, por seu turno, também dá notícias de seu desamparo e dos
efeitos generalizados que, neste caso, se fazem sentir sobre as relações de violência, sobre
o feminino, a conjugalidade, a maternidade e seus afetos (Januzzi, 2018). A abolição deste
estado requer uma ‘ação específica’, segunda distinção que devemos fazer. Não se trata
de uma ação qualquer, mas daquela que vem do mundo externo através da atenção de um
“[...] outro experiente” (Freud, 1996a, p. 370). Ao funcionar como instância de alteridade,
permite que seja estabelecida, secundariamente, a importante função da comunicação,
operação que funda, na linguagem, as particularidades do laço social dos seres falantes.
O outro experiente vem apaziguar o estado inicial de ameaça psíquica no pequeno
vivente humano, já que “[...] o organismo humano é, a princípio, incapaz de promover essa
ação específica. Ela se efetua por ‘ajuda alheia’, quando a atenção de uma pessoa
experiente é voltada para um estado infantil por descarga através da via de alteração
interna” (Freud, 1996a, p. 370, grifo do autor). Encarnada na presença que este Outro
veicula, a ‘ação específica’ responde a demandas que se originam de estímulos internos,
endógenos, apaziguando, assim, o estado inicial de ameaça psíquica. Desses estímulos
internos, que se originam no corpo, o organismo não pode fugir, nem os evitar. A condição
para que cessem encontra-se exclusivamente amparada pela presença no mundo externo
deste outro experiente. Isso requer um esforço do organismo de sair de sua tendência
original à inércia, para tolerar um acúmulo de energia suficiente que possa empreender e
desencadear, na direção do outro, uma ‘ação específica’ de cuidado, a exemplo do choro
do bebê. Trata-se, na verdade, de um mecanismo econômico primordial, cuja função é a
de manter as funções impostas pelo que Freud (1996a) denominou de exigências da vida.
É no campo do Outro que o sujeito busca o objeto da satisfação de seu desejo,
deparando-se com a frustração de jamais encontrá-lo. É também aí que se situa a relação
de dependência do sujeito, pois seu desejo está conformado à demanda do Outro. O Outro
articula a dimensão do desejo, mas só pode dar ao sujeito objetos substitutos para sua
realização. Sabemos que o Outro simbólico é encarnado pelos outrinhos concretos do
mundo, pelas pessoas e instituições. E, por outro lado, sabemos que o Outro sempre se
constituiu como ficção, semblante para o sujeito que, no simbólico, apoia-se nas insígnias
necessárias à sua sustentação na ordem social.
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João demonstra dificuldades em lidar com seu desejo. É como se aquilo que
identifica do desejo materno lhe fosse sintomaticamente desamparador, inadequado,
descabido. De fato, na atualidade, o Outro mostra sua inconsistência, não mais velada
pelos aparatos e discursos da cultura, carecendo de insígnias que dotem de sentido e
orientação o vetor do desejo na travessia pubertária. As consequências desses aspectos
se verificam no caso, e a supervisão se mostra, assim, relevante para seu desembaraçar.
Esta destituição simbólica do Outro não significa o anúncio trágico da dissolução do laço
social, mas uma fragilidade particularizada que se instaura nas relações do sujeito com o
Outro produzindo efeitos significativos, sobretudo, na puberdade. Para romper com a
autoridade dos pais e flertar com a necessidade de um Outro na experiência de satisfação,
que deixa de ser autoerótica, o adolescente precisa passar pelo Outro simbólico. Duas
consequências fundamentais se produzem deste trabalho: do lado do sujeito, ele é
convocado a se situar na partilha dos sexos, o que o situa no real que a puberdade instaura.
E, do lado do Outro, se estabelecem, no simbólico, as coordenadas que definem e reeditam
o que se transmite às novas gerações.
Diante disso, cada sujeito adolescente precisa encontrar meios para empreender a
separação do Outro parental que resultará em abrir mão de uma posição infantil, sustentada
pelo ideal dos pais. A questão se complica muito quando esta ordem se inverte e é o Outro
parental que se separa do sujeito antes de seu trabalho pubertário. Nesses casos, o sujeito
fica em dificuldades com seu desejo, e é assim que o Outro se mostra sintomaticamente
desamparador. Seja em suas vertentes parental, social ou institucional, os efeitos que
surgem desta relação com o Outro podem ser ainda mais devastadores. O desamparo
deixa de se exercer em sua funcionalidade estrutural, ou seja, constitutiva, e se instaura
para o sujeito como um abandono radical que responde não a uma ‘ação específica’, de
cuidados, que articularia demanda e desejo, mas a uma ação que leva o sujeito a prescindir
do Outro.
Apesar das transformações da ordem social atual, a clínica psicanalítica do sujeito
adolescente constata que este é um momento da vida do sujeito em que as atuações
tendem a encontrar vias privilegiadas de se estabelecerem. A via de João marca o lugar
conflituoso que lhe cabe nas relações familiares pelo circuito da oralidade. É com seu
próprio alimento que ele agride a irmã, sendo exatamente este o objeto que regula o afeto,
regradamente recebido. Em outro momento, João oferece à mãe, à irmã, à avó, enfim, às
mulheres da família, esse mesmo objeto. O significante do desamparo para João é da
ordem da oralidade, da comida.
Em ‘O ego e o id’, Freud (1996b, p. 48) fala da relação do desamparo com o
surgimento do superego, diante da queda do narcisismo da infância. O superego perpetua
a existência dos fatores a que deve sua origem como “[...] representante de nossas
relações, com nossas relações com nossos pais. Quando éramos criancinhas, conhecemos
essas naturezas mais elevadas, admiramo-las e tememo-las e, posteriormente, colocamolas em nós mesmos”. Porém, adverte Freud, não se trata apenas da reprodução das antigas
escolhas objetais do id, e sim de uma formação reativa que deve se opor a estas escolhas.
Não se trata necessariamente de ser como o pai, mas da proibição de ser como ele. Os
conflitos entre o ego e o superego refletem o contraste entre o que é real e o que é psíquico,
entre o mundo externo e o interno e denotam, sobretudo, o recurso que se produz no sujeito
diante do desamparo advindo da abdicação do amor objetal dos pais. Ocorre que, no caso
de João, o resultado da perda do narcisismo infantil revela o horror que marcou o lugar de
sua mãe nas relações objetais com os homens de sua vida. Esta mesma violência é, agora,
reconhecida e encarnada em João. Deste lugar, o jovem é convocado a responder por uma
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Adolescência: desamparo e intervenções
herança que parece recusar, pois subverte a série dos homens violentos no interior da
família, como fizera o tio materno.
O desamparo se insere para o sujeito nas relações de objeto e, por isso, pode
produzir angústia, tal como escreve Freud (1996c, p. 136), como “[...] produto do desamparo
mental [...]” quando anuncia a perda de objeto. No caso, trata-se da mãe como objeto
primordial, aquela que articula a angústia de castração na fase fálica. Este estado de
desamparo é assim reconhecido como uma “[...] situação traumática” (Freud, 1996c, p.
161), de modo que, em face da situação de perigo, é a angústia que alerta sobre a
possibilidade de se reviver o trauma da perda do objeto. É nessa situação que o sinal de
angústia é emitido. Neste momento em que Freud define a situação traumática, não
distingue mais os perigos internos dos externos. O perigo externo ao ser internalizado,
corresponde a uma situação de desamparo significativa para o ego. No limite dos recursos
simbólicos do sujeito, é o ato que emerge como solução. Na impossibilidade de construir
um sintoma que possa ser não só endereçado, mas, sobretudo, acolhido pelo Outro, o
desamparo a que João denota com seu ato resulta do que se articula das relações com a
falta de objeto na economia pulsional. Uma desregulação pulsional permanente e
devastadora:
Quer o ego esteja sofrendo de uma dor que não para ou experimentando um acúmulo de
necessidades pulsionais que não pode obter satisfação, a situação econômica é a mesma, e o
desamparo motor do ego encontra expressão no desamparo psíquico (Freud, 1996c, p. 163).
O ser ‘um à toa’, que tão intensamente surge no discurso da mãe, parece responder
a algo sintomático, já que parece dirigido a ela. Lembremos que, na casa do tio e de sua
esposa, isso não se repete. Lá, João ajuda nas tarefas mesmo sem ser solicitado a fazêlo. Uma ‘ação específica’ demandada à mãe parece se inscrever no espectro sintomático
de João, apesar de não se fazer como questão enunciada para ela. E, em outra perspectiva,
a atuação que conduz a família ao processo restaurativo revela também as próprias
dificuldades da mãe com o desejo e com seus objetos.
Principais resultados:
A supervisão se destaca como dispositivo clínico-institucional de organização, chave
de leitura com vistas à retificação e à recomposição do espectro de respostas possíveis
dentro da singularidade de cada caso. Aqui, destacamos quatro de seus eixos.
A. O sujeito e a dimensão simbólica:
Todo ser falante se encontra na situação originária de desamparo exatamente por
falar e, ao fazê-lo, deparar-se com um impossível, traumático, de significar, que exige uma
ação específica. Pois bem, essa ação parte exatamente de um enquadre simbólico e
interpretativo da situação, que favorece sua apreensão a partir da dinâmica inconsciente,
articulada pelas condições materiais concretas. Ao discutir uma das intervenções realizadas
no círculo do processo restaurativo o facilitador comenta que ‘foi muito forte’ porque,
supreendentemente, todos eles se emocionaram muito. Diante do pedido que cada um dos
sujeitos levasse um objeto que representasse a si e a família, observou-se o seguinte:
O João, ele levou o […] um celular que tinham arranjado pra ele. Porque ele falou que o celular
representava pra ele […] que ele ainda queria o novo, mas que aquele celular representava pra ele
uma nova fase. [...] A avó e a mãe levaram Bíblia; o G. [primo] levou uma foto da família; e o mais
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bonito, foi a irmã. Ela levou um jogo de brinquedo de chá. Um jogo de louça de chá, de brinquedo,
assim, pequenininho. Aí ela foi e pegou. Primeiro ela pegou esse jogo… aí ela começou assim: ‘Esse
jogo aqui, o João me deu quando ele era mais novo – ele nem deve lembrar – mas ele deve lembrar
que foi ele que quebrou. Aí eu já falei: ‘putz’ (Risos) (Facilitador).
A irmã seguiu com a fala pegando uma xicarazinha do joguinho que estava quebrada
e disse: “Isso daqui, eu quero que ele saiba que essa parte aqui é ele e que essa outra
parte sou eu. E que a gente separado num serve pra nada, mas a gente junto, a gente pode
fazer alguma coisa”. A intervenção da irmã acerca do joguinho de xícaras torna-se um
operador simbólico que localiza o circuito significante e de afetos, bem como o valor
atribuído a cada sujeito/objeto nesse circuito, o que torna essa indicação um elemento
orientador para a ação específica de cuidados. Isso implica considerar a dimensão
simbólica e não dita até então, mas determinante dos movimentos de violação no contexto
da família. Além disso, a experiência recalcada da avó retorna sobre o corpo do
adolescente, atravessando a relação transgeracional desta com sua própria mãe e com os
homens violentos da família.
Vocês estão trabalhando o recalcado da avó [com o avô violento], que hoje se atualiza na relação
com ele [adolescente]. E, ao mesmo tempo, a dor da mãe. É como se ele carregasse uma carga
genética, só que ela é simbólica [...], que é a dor da avó – porque imagina o abraço dele, mostrando
um afeto carinhoso e pedindo o quê? O que que ele pede? Adoção (Comentário da psicanalista
coordenadora da Supervisão).
Como adotar um homem no contexto dessa família tão violada pela encarnação da
figura masculina agressiva? Como fazer circularem os afetos nessa família tão retensiva e
defensiva? A delimitação simbólica do real em jogo permite um enquadre lógico para o
cálculo da ação específica a que Freud (1996a) se referiu, impossível de se fazer sem a
experiência singular de cada membro. Sob esse aspecto, podemos pensar que é universal
considerar a singularidade de cada caso. E, quando o caso se constitui, ao lado de outros
como uma série, é indispensável localizar o nome do que é seriado para composição de
ações articuladas a grupos populacionais com problemas parecidos.
B. O sujeito e o circuito pulsional
Todo ser falante possui um corpo, e sua regência, ainda que atravessada pelos
significantes, será sempre pulsional, marcada pela busca de satisfação. Assim, todo corpo
se aloja na falta do Outro como objeto que o satisfaz: oral, anal, fálico [...] esse arranjo
ganha corpo nas profissões que escolhemos, nas parcerias amorosas que fazemos, mas
também na repetição dos modos de sofrimento que encontramos na realidade. O circuito
pulsional impulsiona cada corpo em diferentes direções moldadas diante das condições
objetivas, econômicas e sociais de sua inserção. Essa composição endereça um corpo para
modos diversificados de afetos e laços, sendo codeterminante de sua conduta objetiva.
Localizar como o sujeito se faz objeto para atender ao que supõe ser a demanda do
Outro, que, invertida, localiza seu desejo, é essencial em qualquer construção clínica para
orientar a ação específica de cuidados. Pois é justamente aí que o sujeito repete seu
movimento, na busca por sua decifração ou por sua reescrita. No caso, ainda que se
destaquem significantes que definem o adolescente como violento, folgado ou preguiçoso,
o que orienta seu gozo é o circuito da comida retida.
O quê que o Outro demanda da criança? [...] o inconsciente vai aparecer nas coisas materiais. Por
isso que esse circuito da comida é relevante nesse caso. [...]. É pela via da comida que os afetos são
explicitados. Então, quando a mãe tranca a comida e partilha com a irmã, ela fala: ‘nós somos uma
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Adolescência: desamparo e intervenções
família; você não’. Quando ele faz o bolo e entrega pra todo mundo, pro G. [primo], pra avó […] ele
fala assim: ‘mas eu quero pertencer […] é minha também’ [...] É como se ele estivesse dizendo: ‘a
minha família são vocês todos’, ‘quero satisfazê-los com meu ser’ (Fala da psicanalista).
Há, portanto, uma orientação a partir da localização do sujeito como objeto no circuito
pulsional, destacado pela supervisão, que orienta a construção do caso e da ação
específica.
C. Implicação e retificação no campo do Outro
Localizar, no significante e no objeto, os vértices de um caso, como desenvolvemos
anteriormente, é central e basilar. Porém, outros elementos se tornam essenciais ao
trabalho assim orientado. Vejamos: a ação de cuidados implica o Outro, que aciona o sujeito
num cenário em que se espera que ambos se modifiquem. No discurso corrente, que às
vezes atravessa as próprias políticas públicas, nasce uma tendência discursiva, que inflete
diretamente na prática, de criminalizar as situações de pobreza e individualizar o problema
econômico estrutural, como se o adolescente fosse responsável de maneira isolada por
produzir as condições de violências e de violações em que se encontra.
Na supervisão, destaca-se uma orientação ao trabalho na qual se busca não apenas
a implicação do sujeito, mas também sua retificação subjetiva. Mas a retificação implica
também um tratamento do Outro, especialmente nesses casos em que há uma relação
fragilizada ou hostilizada. E nem sempre essa retificação é possível. Em psicanálise, a
particularidade desse trabalho de localização e retificação reside no fato de partir da
dimensão inconsciente. A retificação implica o trabalho do inconsciente a partir da
materialidade concreta. E não basta ler e interpretar a realidade a partir de um enquadre
lógico-simbólico. A interpretação é a chave de leitura da experiência que visa o gozo. Assim,
é indispensável a escrita do contexto, incluindo a maneira como o objeto retorna sobre a
situação que se espera modificar, pois a cena que atualiza o trauma irá se repetir
exatamente no cotidiano das violências e violações que reiteradamente compõem as
relações. No caso, vemos que a irmã de João se torna um elemento articulador da
retificação, enquanto a avó e a mãe, de maneira transgeracional, repetem as situações de
retenção de afeto e de vivência de violências. Nesse sentido, a supervisão abre uma
condição de leitura e instala modos de intervenção de ações específicas que visam à
transformação implicada de cada elemento da cena da repetição, atualizada nas
experiências que visam à proteção social.
No caso, o plano de ação proposto à família pela equipe da Justiça Restaurativa
confere materialidade a um trabalho no plano simbólico e afetivo. A avó demanda mais
almoços em família; a irmã diz que não abraça João, mas cozinha para ele; João pede
privacidade e equidade, solicitando uma porta para seu quarto, já que todas as mulheres já
possuem a sua; e mãe, filho e filha estabelecem uma rotina de atividades juntos nas
segundas-feiras. Essa materialidade corporificada em 30 pontos a serem judicialmente
obedecidos torna-se nonsense, sem sentido, se não acontece paralelamente a um trabalho
de retificação. Afinal, como os membros de uma família precisam de um mediador judicial
para combinarem de almoçar juntos? Como percebe em supervisão o facilitador pela ‘ação
específica’, através dos ciclos restaurativos, “[...] é preciso falar sem explicar tudo, para eles
[sujeitos do processo restaurativo] pensarem e se colocarem”.
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Inflexões sobre a equipe
Podemos dizer que a supervisão também opera como medida de avaliação
qualitativa do trabalho realizado (Figueiredo, 2017). Ela implica uma análise dos efeitos e
do destacamento do quantum de gozo recomposto a partir da cena primária, matriz da
repetição pulsional. De saída, partimos de uma noção de reincidência, que retoma a de
cronicidade como sendo “[...] uma adesão a um programa de vida imposto, decidido fora de
qualquer decisão subjetiva” (Viganò, 1999, p. 50), sendo seu risco o de se passar da
exclusão à segregação, engendrada pela alienação a comunidades de gozo que não
partilham vivências de corpo, nem espaços ou discursos comuns.
Assim, a equipe manifestou-se de forma a questionar a maneira como o trabalho foi
conduzido, com afirmações como: “Faltou tempo de trabalho, de elaboração”; “A
metodologia é curta”; e, ainda, a análise de que, enquanto a irmã se implicou, não se viu
retificação ou implicação com a mãe, e mesmo a avó conseguiu se engajar apenas
parcialmente no processo de mudança. João e a mãe, em especial, mantiveram uma
estrutura especular e alienante: “A mãe falou que não cumpria a parte dela, porque não via
o João cumprindo a dele” (‘Facilitador’). Também se manteve a tensão entre João e a
namorada da mãe.
No encontro pós-círculo estiveram presentes apenas a mãe e o filho, pois a avó
estava com vergonha de não estarem cumprindo o plano estabelecido, e o tio, referência
de João, não aguentava mais a irresponsabilidade deste. Mesmo assim, foi possível
retomar o ponto da retificação e foi trabalhada a responsabilização – “Você faz sua parte
(mãe), e ele (João), a dele” (‘Facilitador’), pois cada um apontava a falta de
responsabilidade do outro para justificar o não cumprimento do que lhe competia. A equipe
pôde, assim, reconstituir-se em torno do caso, avaliar a posteriori o trabalho realizado e
sistematizar seu plano de leitura e ação para novas intervenções. As formalizações obtidas
e coletivizadas através da supervisão implicam a equipe diante dos limites impostos pelo
sistema, deslocando a posição de impotência para a de invenção. É um momento de
construção do caso, no qual sua escrita formaliza, como pontos de capitonagem, os
impasses, assim enunciados, permitindo a construção de estratégias possíveis, ainda que
contingentes na qualidade de ações específicas capazes de fazer frente ao desamparo
radical.
Considerações Finais
A supervisão revela que as ‘ações específicas’ referentes ao caso podem se nutrir
exatamente de seus limites, oriundos das diferentes situações de desamparo, originário na
estrutura, radical na adolescência e generalizado em nossa época. Haver-se com esse
limite implica tomar o impossível de tudo dizer como ponto de partida e não como ponto a
superar. O impossível, no caso, radica sobre o desejo das mulheres – especialmente da
mãe – em relação aos homens, redundando no anulamento da escrita de afeto no corpo do
adolescente. Ele está estruturalmente excluído do circuito feminino desejante e, portanto,
simbólico, dessa família de homens violentos. Tomar esse impossível como ponto de
partida implica em considerar uma ação específica frente ao desamparo radical desse
jovem e do desamparo generalizado de sua família e de sua época.
A responsabilidade subjetiva, nesse caso, implicaria a retificação de cada um no
circuito que os articula a partir do Outro masculino violento. Essa visada talvez fosse muito
mais operatória que a ilusão de recomposição de um quadro de felicidade, trazendo a
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Adolescência: desamparo e intervenções
possibilidade de uso do corpo masculino por João e do tratamento da dor sofrida pelas
mulheres. Concluímos, assim, que o desamparo pode ser uma chave de leitura psicanalítica
para a noção de vulnerabilidade e que nos limites daquilo que a interface entre psicanálise
e direito podem aqui restaurar, encontra-se o que visa a Justiça Restaurativa e a ética da
psicanálise. Reparar um dano, restaurar os laços possíveis, e reintegrar vítima e ofensor à
comunidade implicam na constatação de um real estabelecido sobre o fato de que nem
tudo é simbolizável, reparável. Mas, é preciso estar alertado deste resíduo que se impõe
sobre o trabalho dos facilitadores e também, sobre o que é possível para o sujeito
responder.
Ao possibilitar uma construção melhor orientada para ação específica de cuidados
em dispositivos públicos de atenção e proteção ao adolescente, a supervisão clínica e
institucional, dirigida a diferentes facilitadores, psicólogos, advogados, assistentes sociais,
isto é, operadores do campo do direito, favorece a construção de uma prática que, ainda
que atravessada pelo campo público, possa ser orientada pela dimensão do singular que
sustenta a narrativa de cada ato e de cada história.
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Recebido em 26/11/2019
Aceito em 24/06/2020
Psicol. estud., v. 26, e51119, 2021