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Guerra, et al. Desamparo e Ações específicas

RESUMO. Este trabalho apresenta dados preliminares de pesquisa pós-doutoral que investiga, a partir da psicanálise, a noção de 'desamparo' em jovens em situação de vulnerabilidade, na busca por 'ações específicas' de cuidado na prática institucional em dispositivos de políticas públicas. Partimos da interface entre psicanálise e direito, bem como da supervisão de caso sob ação da Justiça Restaurativa. Analisamos, pela metodologia do caso único, um caso de adolescente sob medida protetiva e socioeducativa, do qual são extraídas duas observações orientadoras: a dimensão da transmissão e filiação e do 'desamparo' e da 'ação específica' na adolescência. Como resultado, sistematizamos quatro lógicas de orientação para composição da 'ação específica': o sujeito e a dimensão simbólica, o sujeito e o circuito pulsional, a implicação e a retificação no campo do Outro, e as inflexões sobre a equipe. Concluímos que o desamparo é uma chave de leitura psicanalítica para a noção de vulnerabilidade e que a supervisão institucional favorece a construção melhor orientada para a ação específica de cuidados. Palavras-chave: Desamparo; ação específica; adolescência.

ARTIGO 10.4025/psicolestud.v26i0.51119 DESAMPARO E AÇÕES ESPECÍFICAS DE CUIDADOS COM UM ADOLESCENTE NA REDE PÚBLICA1 Andréa Máris Campos Guerra2, Orcid: http://orcid.org/0000-0001-5327-0694 Mônica Eulália da Silva Januzzi²,3, Orcid: http://orcid.org/0000-0003-0788-9968 Ilka Franco Ferrari4, Orcid: http://orcid.org/0000-0002-6367-3136 RESUMO. Este trabalho apresenta dados preliminares de pesquisa pós-doutoral que investiga, a partir da psicanálise, a noção de ‘desamparo’ em jovens em situação de vulnerabilidade, na busca por ‘ações específicas’ de cuidado na prática institucional em dispositivos de políticas públicas. Partimos da interface entre psicanálise e direito, bem como da supervisão de caso sob ação da Justiça Restaurativa. Analisamos, pela metodologia do caso único, um caso de adolescente sob medida protetiva e socioeducativa, do qual são extraídas duas observações orientadoras: a dimensão da transmissão e filiação e do ‘desamparo’ e da ‘ação específica’ na adolescência. Como resultado, sistematizamos quatro lógicas de orientação para composição da ‘ação específica’: o sujeito e a dimensão simbólica, o sujeito e o circuito pulsional, a implicação e a retificação no campo do Outro, e as inflexões sobre a equipe. Concluímos que o desamparo é uma chave de leitura psicanalítica para a noção de vulnerabilidade e que a supervisão institucional favorece a construção melhor orientada para a ação específica de cuidados. Palavras-chave: Desamparo; ação específica; adolescência. HELPLESSNESS AND SPECIFIC CARE ACTIONS FOR AN ADOLESCENT IN THE PUBLIC SYSTEM ABSTRACT. This paper presents preliminary data from a postdoctoral research that investigates, from psychoanalysis, the notion of helplessness in vulnerable young people, in the search for specific care actions in clinical and institutional practice in public policy devices. We start from the interface between Psychoanalysis and law, based on a case under supervision for restorative justice action. The study analyzed a case of an adolescent under protective and socio-educational measures, from which two observations are taken to guide the discussion: the dimension of transmission and affiliation, and the helplessness and specific action in the face of adolescence. As a result, we have gathered from institutional supervising four guiding plans for its lecture: the subject and the symbolic dimension, the subject and the drive circuit, the implication and rectification in the Other’s field, and the inflections on the team. We conclude that helplessness is a psychoanalytic key for the notion of vulnerability and that institutional supervision favors the construction better oriented towards specific care actions. Keywords: Helplessness; specific action; adolescence. Apoio e financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG). 2 Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte-MG, Brasil. 3 Email: [email protected] 4 Pontifícia Universidade Católiga d de Minas Gerais (PUC-MINAS), Belo Horizonte-MG, Brasil. 1 2 Adolescência: desamparo e intervenções LA IMPOTENCIA Y LAS ACCIONES ESPECÍFICAS DEL CUIDADO CON UN ADOLESCENTE EN LA RED PÚBLICA RESUMEN. El documento presenta datos preliminares de la investigación postdoctoral que investiga, desde el psicoanálisis, la noción de impotencia en los jóvenes vulnerables, en busca de coordinadas que establezcan acciones específicas de atención en la práctica clínica e institucional en dispositivos de políticas públicas. Partimos de la interfaz entre el Psicoanálisis y la ley, basada en la supervisión de casos bajo la acción de justicia restaurativa. El estudio de caso analizó un caso de adolescente bajo medidas protectoras y socioeducativas, de las cuales se toman tres observaciones para guiar la discusión: la dimensión de transmisión y afiliación; impotencia y acción específica ante la adolescencia. Como resultado de la supervisión institucional, hemos reunido cuatro planes de lectura guía para su composición: el sujeto y la dimensión simbólica, el sujeto y el circuito de conducción, la implicación y rectificación en el campo del Otro, y las inflexiones en el equipo. Concluimos que la impotencia es una lectura psicoanalítica clave para la noción de vulnerabilidad y que la supervisión institucional favorece una mejor construcción de la atención orientada a la acción. Palabras clave: Impotencia; acción específica; adolescencia. Introdução Este texto apresenta considerações teórico-práticas extraídas de trabalho desenvolvido em nível de pós-doutorado, vinculado à pesquisa ‘Transmissão e Filiação’, inscrita no Comitê de Ética em Pesquisa com o número CAAE: 96236718.3.0000.51495, e com bases em recente pesquisa doutoral. Partiremos das noções freudiana e lacaniana de ‘desamparo’ e da concepção de ‘ação específica’, desenvolvida por Freud (1996a), para discutir a situação de um adolescente em situação de desproteção, a fim de pensar lógicas de intervenção a partir da psicanálise. Discutir-se-ão os conceitos mencionados, aplicandoos à análise de um caso, escolhido dentre um conjunto de cinco outros que compõem o estudo completo de jovens sob cumprimento de medida socioprotetiva e socioeducativa6. O caso foi construído a partir de supervisão institucional realizada com a equipe do Projeto Ciranda, da Faculdade de Direito da UFMG, equipe que desde 2016 compõe um dos Núcleos de Justiça Restaurativa Juvenil da comarca de Belo Horizonte. O trabalho demonstra as contribuições da psicanálise ao processo restaurativo que, enquanto tal, visa Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais, FAPEMIG, edital universal de 2017. Os adolescentes e as crianças em situação de risco pessoal ou social estão sujeitos a um rol de medidas protetivas previstas no artigo 101, da lei 8.069/90, o Estatuto da Criança e do Adolescente. São elas: a) encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade; b) orientação, apoio e acompanhamento temporários; c) matrícula e frequência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; d) inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente; e) requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; f) inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos. Já os adolescentes que cometem ato infracional sujeitam-se, conforme prevê o artigo 112 do mesmo Estatuto, além das medidas protetivas acima arroladas previstas para as crianças, às seguintes medidas socioeducativas: a) advertência; b) obrigação de reparar o dano; c) prestação de serviços à comunidade; d) liberdade assistida; e) inserção em regime de semiliberdade; f) internação em estabelecimento educacional. 5 6 Psicol. estud., v. 26, e51119, 2021 Guerra et al. 3 atender às necessidades individuais e coletivas, responsabilizar as partes do conflito penal ou infracional, vítima, ofensor e membros da comunidade afetados, bem como promover ainda a reintegração da vítima e do ofensor na comunidade (Arlé, 2018; Guerra et al., 2019). Método Do ponto de vista teórico, o estudo se sustenta na revisão de alguns aspectos conceituais da noção de ‘desamparo’ que, em Freud (1996a), articula a experiência de satisfação do pequeno vivente e que, em Lacan (1995), instaura o circuito demanda e desejo na relação com o Outro. Na mesma via, o estudo também se apoia na noção de ‘ação específica’ (Freud, 1996a), que se distingue por incidir sobre o desamparo do sujeito, apaziguando-o a partir da instauração de uma instância de alteridade. O método do caso único em psicanálise (Miller, 2006) foi escolhido como operador para este estudo, já que sua característica de exceção nos diz do sujeito sempre constituído como aquele que escapa à regra das classificações e das generalizações. Neste método, o caso, mesmo analisado entre outros, não produz seriação, mas extração de elementos singulares que ensinam aos demais, tornando-o, assim, paradigmático. No caso apresentado neste estudo, assim como nos demais, oriundo de supervisões oferecidas ao Projeto Ciranda, observamos que o ato infracional, que gerou o encaminhamento à Justiça (Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Autor de Ato Infracional, CIA-BH7), se deu em decorrência de atos de violência e ameaça dirigidos a membros da própria família do adolescente, em especial à mãe e aos irmãos. Levantaramse, assim, de saída, as seguintes questões: este ato evidencia algo da ordem do desamparo articulado aos processos de transmissão e filiação? Como se dá aí a implicação do outro e do sujeito? A noção de ação específica em Freud pode inspirar a lógica a partir da qual a instituição pública intervém? A fim de demonstrar as contribuições da psicanálise na construção de respostas a essas questões, o presente estudo centrou-se na análise de caso e na reflexão sobre a função da supervisão clínica e institucional que, ao promover meios que levam a ‘ações específicas’ (Freud, 1996a) em resposta ao modo como os dispositivos públicos podem operar ações de cuidado, funda uma condição de enfrentamento ao desamparo radical dos sujeitos adolescentes junto às equipes que os acompanham. Na medida em que a supervisão institucional visa ampliar as possibilidades de manobra em curso com o caso (Campos & Alvarenga, 2015), supomos que possa favorecer a produção de chaves de leitura capazes de orientar a produção da ‘ação específica’ de cuidados coletivos em rede, fornecendo subsídios para avaliar seus efeitos, considerando o Outro institucional. No processo de supervisão do caso – cujos relato e supervisão foram gravados e ouvidos em áudio –, buscamos extrair os significantes do desamparo para o sujeito adolescente como eixo orientador, identificando em seguida como o desamparo se articulava pulsionalmente. Daí produziram-se quatro categorias operatórias, isto é, coordenadas que permitiram que se traçassem ações específicas de cuidado que emergiram na supervisão como orientação para o processo restaurativo que, enquanto tal, consiste em conjunto ordenado de atos no qual vítima e ofensor, ou “[...] quaisquer outros indivíduos ou membros da comunidade afetados por um crime ou ato infracional, participam 7O Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Autor de Ato Infracional (CIA-BH) tem o objetivo de agilizar e dar maior efetividade à responsabilização do adolescente autor de ato infracional, concentrando, em um mesmo espaço físico, uma equipe interinstitucional composta por representantes da Subsecretaria de Atendimento às Medidas Socioeducativas (SUASE), Polícias Civil e Militar, Tribunal de Justiça, Ministério Público, Defensoria Pública e Prefeitura Municipal. Psicol. estud., v. 26, e51119, 2021 4 Adolescência: desamparo e intervenções ativamente na resolução das questões oriundas do crime ou do ato infracional, com a ajuda de um facilitador” (Arlé, 2018, p. 6). No caso em questão, cujo encaminhamento foi realizado em execução de medida socioeducativa “[...] o processo de execução não fica suspenso e o processo restaurativo conduzido pelo parceiro [entidade parceira] se dá paralelamente, podendo seus resultados serem considerados pelo juiz na reavaliação das medidas” (Arlé, 2018, p. 23). Nessa vertente, a pesquisa em psicanálise mantém o pesquisador aberto à surpresa advinda do real veiculado pela palavra, pelos significantes presentes no discurso do sujeito. Convoca a uma escuta que vai além das generalizações, das palavras enunciadas, mas reconhece aí os aspectos da enunciação e os transforma em elementos transmissíveis à leitura e à orientação de trabalho em outros casos (Januzzi & Ferrari, 2018; Januzzi, 2019). Relato do caso João: “Na sua casa é tudo trocado” João8 foi encaminhado ao CIA-BH em decorrência de um episódio de agressão e ameaça dirigidos à irmã. Tudo começou quando ela toma a parte do suco que ele havia reservado para beber à noite. Irritado, João pegou o que restou desse suco e jogou no prato dela. A irmã, também irritada, se lança em direção a João, agredindo-o. Ele a segura pelos braços na tentativa de contê-la, jogando-a em cima da cama. Em cima dela, tenta imobilizála e as agressões continuam. “Ô, véi, cê não vai me bater, cê não vai me bater”, dizia João. A irmã consegue se soltar e chamar a polícia, que chegou no mesmo instante em que a mãe vinha do trabalho. João disse à polícia que não agrediu a irmã, apenas a conteve. Ainda assim, foi levado e seus atos equiparados a dois artigos do Código Penal: art. 129, “[...] ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem [...]” e art.147, “[...] ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave” (Decreto-lei nº 2.848, 1940, p. 51 e 59), sendo a medida socioeducativa de privação de liberdade aplicada conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente, ECA. João e sua família foram convidados a participar do trabalho realizado pela equipe do Projeto Ciranda, que tem como metodologia de trabalho a proposição de Círculos Restaurativos. O trabalho se dá através de encontros frequentes, no intervalo de alguns meses, em que são realizadas intervenções coletivas denominadas de ‘pré-círculo’, ‘círculo’ e ‘pós-círculo’. A aceitação voluntária do adolescente e sua família no processo restaurativo se justifica sempre que seja identificado um potencial restaurativo no caso, mesmo que seja aplicada uma medida socioeducativa em meio fechado. “Ainda assim, pode ser instaurado um processo restaurativo, paralelo e complementar ao cumprimento da medida socioeducativa” (Arlé, 2018, p. 11). Durante o processo restaurativo, diversas técnicas e formas de abordar a questão que circunscreve o ato são realizadas. Em uma delas, o adolescente é convidado a eleger alguém que reconheça na família como um apoio. A família e seus membros são também convidados a construírem um plano de ação em que cada um se compromete com algo, assinando um termo de compromisso que possui valor legal. Nesse contexto, o caso chega ao Núcleo de Psicanálise e Laço Social no Contemporâneo (PSILACS). A cena do ato de João remontava a um contexto familiar onde as relações afetivas eram atravessadas pelo objeto oral, a comida. Na casa de João, a comida era regulada de variadas formas. As dificuldades materiais que a família enfrentava ditava uma delas. Havia aquilo que precisava ser reservado para se comer ou beber no almoço e aquilo que era 8 Nome fictício escolhido a fim de preservar a identidade do sujeito. Psicol. estud., v. 26, e51119, 2021 Guerra et al. 5 para o jantar. Mas também havia outra forma de regular este recurso e, no dia do ocorrido, João evidencia essa outra dimensão. Como fazia às vezes, naquele dia, deixou de tomar parte do suco do almoço para reservá-lo para a noite. Quando a irmã tomou para si o que era dele, algo de uma Outra cena emergiu, remetendo-o a uma situação de desamparo frente ao lugar que ocupava para o Outro materno de maneira inconscientemente dirigida. A mãe mantinha o sustento da casa e dizia cumprir sua função: “[...] colocar o arroz e o feijão em casa e pronto” (mãe do adolescente). Esses alimentos, da ordem da necessidade, eram de livre acesso a todos, ou seja, a João, à irmã e à mãe. Entretanto, alimentos como biscoitos e iogurtes eram trancados no quarto da irmã, de modo que só ela e a mãe poderiam ter acesso. Na casa de João, só havia portas no quarto da mãe e da irmã; no dele, não. A irmã era “[...] a filha exemplo, que não dá trabalho” (mãe do adolescente), enquanto João era aquele que comia tudo e não ajudava nas tarefas domésticas. “É um à toa!”, dizia a mãe. Ele, então, aprendeu na internet sobre técnicas de abrir cadeados. Aprendeu a abrir fechaduras e começou a entrar no quarto e roubar. Quando a mãe chegava em casa cansada e João não tinha feito nada, ela levava a filha para comer pizza e não levava o filho. Dizia que havia arroz e feijão em casa. A verbalização dos conflitos mantinha-se no nível da punição e da recompensa, encobrindo um circuito pulsional da oralidade que regulava o amor materno de modo desigual. João recebia um amor dividido, regrado, às vezes mesmo inacessível, que se contrapunha à parceria que se instaurava entre mãe e filha. Da mesma forma, o afeto que João dirigia à mãe também era mediado pelo objeto comida, mas, ao contrário do amor regrado que dela recebia, o jovem endereçava a ela tudo o que tinha. Com o dinheiro que ganhou no tempo em que abriu um lava-jato com alguns colegas, gastou tudo com comida que levava para a irmã, a mãe e a avó materna. Fazia isso como se estivesse se oferecendo como objeto oral a ser incorporado pelo Outro, ou seja, como um objeto que falta ao Outro. O pai de João foi preso quando o menino estava prestes a nascer. O motivo que o levou para a prisão é assunto não comentado pela mãe e pela família. Sabe-se, que ele era ‘barra pesada’. A mãe se separou dele nesta mesma época e, algum tempo depois, conheceu outro companheiro, com quem viveu por um tempo. Em ambos os relacionamentos, a mãe vivenciou graves situações de violência. Quando João tinha entre oito e nove anos, a mãe encontrou uma namorada que é sua atual companheira. A irmã de João também é homossexual. Dois anos mais tarde, todos se mudaram para a casa da namorada da mãe, o que fez com que ele perdesse seus antigos amigos. Os novos colegas da escola provocavam-no constantemente em virtude das particularidades de sua família, contribuindo para sua primeira evasão escolar. “Na sua casa, é tudo trocado!”, diziam. Inicialmente, a relação entre João e a namorada da mãe era boa. Ela preocupava-se com ele por achar e dizia que o menino ficava ‘largado’ e que lhe faltava uma referência masculina. Ela se coloca neste lugar, comprando-lhe roupas novas e cuecas boxer, que, em seu entendimento, eram cuecas ‘de homem’. Contudo, a boa relação entre eles foi ficando conflituosa, fazendo com que, quando João estava com 14 anos, sua mãe decidisse voltar para sua antiga casa. Ela mantém a relação com a namorada, mas, em casas separadas. Este é o momento apontado pela família como aquele em que João passou a ser considerado um ‘garoto-problema’. Nesta mesma época, o pai de João saiu da prisão. A essa altura, entretanto, o jovem não tinha nenhum laço com ele. Mesmo assim, a mãe convoca o pai como referência de masculinidade para o filho, entendendo que os dois deveriam morar juntos, e ela, com a filha. Há um desconhecimento dos afetos e das identificações inconscientes que Psicol. estud., v. 26, e51119, 2021 6 Adolescência: desamparo e intervenções atravessam o caso, tomando-se na literalidade, e não na eficácia simbólica, a ideia de ‘referência masculina’. Assim, João vai morar com o pai, que passava o dia todo fora e cobrava do filho a realização de todas as tarefas domésticas. Se não as fizesse, o pai batia e ameaçava João, que chegou a pedir ajuda da mãe dizendo que o pai o fazia de escravo. A mãe foi buscá-lo, mas, diante da ameaça do pai de agredi-la, João interveio dizendo que estava tudo bem e pedindo que ela fosse embora. Dois dias depois, retorna sozinho para a casa da mãe: “Não, meu pai é mó folgado, ué. Ficava botando [...] é […] eu pra fazer as coisas todas em casa. Depois levava mulher pra casa. Eu tinha que dormir no sofá, quando ele levava mulher pra casa”. Segundo as mulheres de sua família, a avó materna, a mãe e a irmã, João era a pessoa mais carinhosa da família, e isso era desconcertante. A avó dizia que: “[...] quando chega em casa, ele faz bagunça demais, ele bate no portão, ele chega gritando, me abraça, me aperta”. A irmã diz: “Ah, não, eu entendo, mas ele é chato demais, ninguém aguenta o João”. Ele abraça a mãe, mas ela, não suportando muito, empurra-o. De acordo com a avó materna, a afetividade é algo de “[...] que a gente não fala. Minha filha, coitada, nem sabe muito bem disso”. A avó foi subtraída de sua infância ao ser abandonada pelos pais. Casou-se cedo, e pelas mãos do marido, o avô de João, sofreu diversas violências. Ele batia nela e em todas as mulheres da família, incluindo filhas e netas. Quando a equipe do projeto intervém perguntando em um dos círculos sobre um momento em que outra pessoa da família fez algo que fizesse a pessoa se sentir ‘família’, a irmã de João tomou a palavra. Lembrou-se de que, quando era bem pequena, um tio materno, ao flagrar agressão do avô a ela, interveio, abraçou-a, tirou a menina dali e disse: “[...] você nunca mais vai bater nela”. Este tio também era muito importante para João. Foi ele que o garoto escolheu quando a equipe pediu que elegesse alguém que funcionasse como apoio para ele. Na casa desse tio, João se oferecia para ajudar nas tarefas domésticas. Como se vê, a agressividade é um elemento muito presente naquilo que liga as relações históricas de parentesco de João, demarcando, principalmente, as relações entre os homens e as mulheres da família. Porém, por mais que pese sobre ele a dimensão simbólica da herança masculina na linhagem parental, na verdade, João parece subvertê-la adotando para si uma posição masculina diferenciada neste contexto. Recusa a referência de masculinidade impositiva da companheira da mãe, a violência que o pai endereçava a sua mãe, assim como a agressividade do avô com a avó e as mulheres da família. João é um garoto que toca o corpo das mulheres de sua família para abraçar, beijar, apertar, conter [...] Não por acaso, a cena que levou o Poder Judiciário a encaminhar João ao Projeto Ciranda é justamente a reedição da Outra cena inconsciente tensionada e não resolvida de violência de um homem contra uma mulher – ainda que, de fato, se tratasse de uma defesa de João contra a agressividade da irmã. O elemento masculino que João encarna simbolicamente o implica inconscientemente como homem violento na cena recalcada do trauma familiar. Discussão teórica 1. Transmissão e filiação A ideia de ‘desestrutura’ familiar está no cerne de explicações morais e reducionistas que justificam aquilo que não vai bem na sociedade. Quando se trata de adolescentes autores de atos infracionais, as diferentes formas de parentesco aos quais possam estar Psicol. estud., v. 26, e51119, 2021 Guerra et al. 7 ligados e os fatores preponderantes da produção de vulnerabilidade surgem como elementos que fundamentam tal discurso (Guerra et al., 2018). Mas a perspectiva que a psicanálise permite vislumbrar indica que a imagem por demais idealizada, moralizada e disciplinada de família encobre a inexistência de um único modelo de organização familiar para os seres falantes, bem como oculta o fato de que a transmissão se dá por diferentes vias com efeitos pulsionais. No horizonte da perversão, escreve Laurent (2007), Lacan situa a mulher/mãe fálica e no horizonte da neurose, o drama familiar, assim como João dá testemunho. A família conjugal, segundo o autor, não tem como função sustentar o lugar de sucesso de uma organização parental nuclear, mas de existir como resíduo. Exemplo disso é a mãe dos cuidados que trazem “[...] a marca de um interesse particularizado, nem que seja por intermédio de suas próprias faltas” (Lacan, 2003a, p. 13). O pai tem em seu nome o vetor da encarnação da lei do desejo, na medida em que, ao desejar uma tal mulher, conjuga a lei, a proibição e o desejo. A criança, em Lacan, é o objeto capturado não no ideal dos pais freudianos, mas no gozo destes e no seu próprio, e é assim que a família humana se estrutura. A busca por se completar com uma família é o drama do sujeito neurótico. As vias pelas quais o circuito pulsional se faz valer surgem a partir dos três complexos familiares estruturantes (Lacan, 2003b): o do desmame, o de intrusão e o de Édipo. A noção de estrutura se refere, pois, à ideia de um conjunto de elementos sujeitos a inúmeras combinações operadas, desde que um destes elementos seja o vazio (falta-a-ser), fazendo com que estas variações não resultem em uma totalidade harmônica, plena e completa. O caso de João e as particularidades de sua família nos permitem evidenciar que aquilo que se transmite e em que se filia para os humanos é da ordem do simbólico, ultrapassando o viés biológico ou social. Partimos, assim, do pressuposto de que os processos de transmissão e filiação presentes no caso e o modo como a dimensão do desamparo se apresenta, resultando da noção estrutural e estruturante de família, permitem identificar possíveis ‘ações específicas’ de cuidado para o sujeito. 2. Desamparo, ação específica e adolescência Ao eleger as noções freudianas de ‘desamparo’ e ‘ação específica’ como balizas teóricas que fundamentam esta pesquisa, fazem-se necessárias algumas distinções. O desamparo ao qual nos referimos é o que advém dos perigos pulsionais do sujeito, sendo, portanto, diferente da vulnerabilidade social, situada aqui a partir de questões referentes a violações de direitos sociais e humanos. Na materialidade da vida dos sujeitos, ambas as situações são amalgamadas na dimensão simbólica, dando-lhe expressão sob os contornos do abandono, dos maus tratos e da negligência. Na origem de tal dialética, o circuito pulsional da oralidade parece se destacar nas relações afetivas de parentesco de João. Esse mesmo circuito é também a via privilegiada que Freud (1996a) destacou na primeira vez em que abordou o termo ‘desamparo’ em sua obra. É pela via da experiência de satisfação, na alimentação pelo seio materno, a primeira à qual o pequeno vivente é submetido, que Freud reconhece o momento inicial da constituição psíquica, o mesmo que também engendra um ‘estado infantil’ que denominou de ‘desamparo’. O alimento, primeira experiência de satisfação dos seres humanos, tornase um objeto privilegiado no qual se engendram as relações libidinais, promovendo modos pelos quais circulam as necessidades, mas também o amor. É por esta via que é dirigido a João o amor materno que lhe cabe na estrutura de sua família; um amor regrado, dividido, empobrecido de afeto, negado, e que responde ao que é da ordem da necessidade: “[...] o Psicol. estud., v. 26, e51119, 2021 8 Adolescência: desamparo e intervenções arroz e o feijão, e pronto!”. As vulnerabilidades sociais que convocavam a mãe a trabalhar o dia todo para sustentar a casa e a herança simbólica que a situa na série das mulheres vítimas da violência masculina em sua família, agem de modo a delinear as particularidades resultantes de suas dificuldades com os afetos. O termo Hilflosigkeit (‘desamparo’) perpassa quase toda a obra freudiana, e sua equivalência a um ‘estado infantil’ permanece em quase todas as passagens, com grande regularidade teórica. Ligado à Outra cena do inconsciente, o desamparo pode ser reconhecido em diferentes momentos e de diferentes modos na vida do sujeito, por situações de repetição pulsional nas quais se atualizam experiências psíquicas ameaçadoras. No caso de João, os perigos que este ‘estado infantil’ impõe ao sujeito podem ser sentidos quando a parte do amor materno que precisa guardar para que não lhe falte (o suco do almoço) é tomado por sua irmã. Não se pode deixar de mencionar que, ainda que, no discurso da mãe, João seja ‘um à toa’, ele também é o carinhoso da família, o que esbarra na dimensão traumática que a figura masculina guarda em sua realidade psíquica e na borda transgeracional daquela família. A mãe não sabe responder a isso, e, do lado de João, emerge um desamparo radical em relação à demanda que dirige a ela, pois ali só encontra o necessário. A mãe, por seu turno, também dá notícias de seu desamparo e dos efeitos generalizados que, neste caso, se fazem sentir sobre as relações de violência, sobre o feminino, a conjugalidade, a maternidade e seus afetos (Januzzi, 2018). A abolição deste estado requer uma ‘ação específica’, segunda distinção que devemos fazer. Não se trata de uma ação qualquer, mas daquela que vem do mundo externo através da atenção de um “[...] outro experiente” (Freud, 1996a, p. 370). Ao funcionar como instância de alteridade, permite que seja estabelecida, secundariamente, a importante função da comunicação, operação que funda, na linguagem, as particularidades do laço social dos seres falantes. O outro experiente vem apaziguar o estado inicial de ameaça psíquica no pequeno vivente humano, já que “[...] o organismo humano é, a princípio, incapaz de promover essa ação específica. Ela se efetua por ‘ajuda alheia’, quando a atenção de uma pessoa experiente é voltada para um estado infantil por descarga através da via de alteração interna” (Freud, 1996a, p. 370, grifo do autor). Encarnada na presença que este Outro veicula, a ‘ação específica’ responde a demandas que se originam de estímulos internos, endógenos, apaziguando, assim, o estado inicial de ameaça psíquica. Desses estímulos internos, que se originam no corpo, o organismo não pode fugir, nem os evitar. A condição para que cessem encontra-se exclusivamente amparada pela presença no mundo externo deste outro experiente. Isso requer um esforço do organismo de sair de sua tendência original à inércia, para tolerar um acúmulo de energia suficiente que possa empreender e desencadear, na direção do outro, uma ‘ação específica’ de cuidado, a exemplo do choro do bebê. Trata-se, na verdade, de um mecanismo econômico primordial, cuja função é a de manter as funções impostas pelo que Freud (1996a) denominou de exigências da vida. É no campo do Outro que o sujeito busca o objeto da satisfação de seu desejo, deparando-se com a frustração de jamais encontrá-lo. É também aí que se situa a relação de dependência do sujeito, pois seu desejo está conformado à demanda do Outro. O Outro articula a dimensão do desejo, mas só pode dar ao sujeito objetos substitutos para sua realização. Sabemos que o Outro simbólico é encarnado pelos outrinhos concretos do mundo, pelas pessoas e instituições. E, por outro lado, sabemos que o Outro sempre se constituiu como ficção, semblante para o sujeito que, no simbólico, apoia-se nas insígnias necessárias à sua sustentação na ordem social. Psicol. estud., v. 26, e51119, 2021 Guerra et al. 9 João demonstra dificuldades em lidar com seu desejo. É como se aquilo que identifica do desejo materno lhe fosse sintomaticamente desamparador, inadequado, descabido. De fato, na atualidade, o Outro mostra sua inconsistência, não mais velada pelos aparatos e discursos da cultura, carecendo de insígnias que dotem de sentido e orientação o vetor do desejo na travessia pubertária. As consequências desses aspectos se verificam no caso, e a supervisão se mostra, assim, relevante para seu desembaraçar. Esta destituição simbólica do Outro não significa o anúncio trágico da dissolução do laço social, mas uma fragilidade particularizada que se instaura nas relações do sujeito com o Outro produzindo efeitos significativos, sobretudo, na puberdade. Para romper com a autoridade dos pais e flertar com a necessidade de um Outro na experiência de satisfação, que deixa de ser autoerótica, o adolescente precisa passar pelo Outro simbólico. Duas consequências fundamentais se produzem deste trabalho: do lado do sujeito, ele é convocado a se situar na partilha dos sexos, o que o situa no real que a puberdade instaura. E, do lado do Outro, se estabelecem, no simbólico, as coordenadas que definem e reeditam o que se transmite às novas gerações. Diante disso, cada sujeito adolescente precisa encontrar meios para empreender a separação do Outro parental que resultará em abrir mão de uma posição infantil, sustentada pelo ideal dos pais. A questão se complica muito quando esta ordem se inverte e é o Outro parental que se separa do sujeito antes de seu trabalho pubertário. Nesses casos, o sujeito fica em dificuldades com seu desejo, e é assim que o Outro se mostra sintomaticamente desamparador. Seja em suas vertentes parental, social ou institucional, os efeitos que surgem desta relação com o Outro podem ser ainda mais devastadores. O desamparo deixa de se exercer em sua funcionalidade estrutural, ou seja, constitutiva, e se instaura para o sujeito como um abandono radical que responde não a uma ‘ação específica’, de cuidados, que articularia demanda e desejo, mas a uma ação que leva o sujeito a prescindir do Outro. Apesar das transformações da ordem social atual, a clínica psicanalítica do sujeito adolescente constata que este é um momento da vida do sujeito em que as atuações tendem a encontrar vias privilegiadas de se estabelecerem. A via de João marca o lugar conflituoso que lhe cabe nas relações familiares pelo circuito da oralidade. É com seu próprio alimento que ele agride a irmã, sendo exatamente este o objeto que regula o afeto, regradamente recebido. Em outro momento, João oferece à mãe, à irmã, à avó, enfim, às mulheres da família, esse mesmo objeto. O significante do desamparo para João é da ordem da oralidade, da comida. Em ‘O ego e o id’, Freud (1996b, p. 48) fala da relação do desamparo com o surgimento do superego, diante da queda do narcisismo da infância. O superego perpetua a existência dos fatores a que deve sua origem como “[...] representante de nossas relações, com nossas relações com nossos pais. Quando éramos criancinhas, conhecemos essas naturezas mais elevadas, admiramo-las e tememo-las e, posteriormente, colocamolas em nós mesmos”. Porém, adverte Freud, não se trata apenas da reprodução das antigas escolhas objetais do id, e sim de uma formação reativa que deve se opor a estas escolhas. Não se trata necessariamente de ser como o pai, mas da proibição de ser como ele. Os conflitos entre o ego e o superego refletem o contraste entre o que é real e o que é psíquico, entre o mundo externo e o interno e denotam, sobretudo, o recurso que se produz no sujeito diante do desamparo advindo da abdicação do amor objetal dos pais. Ocorre que, no caso de João, o resultado da perda do narcisismo infantil revela o horror que marcou o lugar de sua mãe nas relações objetais com os homens de sua vida. Esta mesma violência é, agora, reconhecida e encarnada em João. Deste lugar, o jovem é convocado a responder por uma Psicol. estud., v. 26, e51119, 2021 10 Adolescência: desamparo e intervenções herança que parece recusar, pois subverte a série dos homens violentos no interior da família, como fizera o tio materno. O desamparo se insere para o sujeito nas relações de objeto e, por isso, pode produzir angústia, tal como escreve Freud (1996c, p. 136), como “[...] produto do desamparo mental [...]” quando anuncia a perda de objeto. No caso, trata-se da mãe como objeto primordial, aquela que articula a angústia de castração na fase fálica. Este estado de desamparo é assim reconhecido como uma “[...] situação traumática” (Freud, 1996c, p. 161), de modo que, em face da situação de perigo, é a angústia que alerta sobre a possibilidade de se reviver o trauma da perda do objeto. É nessa situação que o sinal de angústia é emitido. Neste momento em que Freud define a situação traumática, não distingue mais os perigos internos dos externos. O perigo externo ao ser internalizado, corresponde a uma situação de desamparo significativa para o ego. No limite dos recursos simbólicos do sujeito, é o ato que emerge como solução. Na impossibilidade de construir um sintoma que possa ser não só endereçado, mas, sobretudo, acolhido pelo Outro, o desamparo a que João denota com seu ato resulta do que se articula das relações com a falta de objeto na economia pulsional. Uma desregulação pulsional permanente e devastadora: Quer o ego esteja sofrendo de uma dor que não para ou experimentando um acúmulo de necessidades pulsionais que não pode obter satisfação, a situação econômica é a mesma, e o desamparo motor do ego encontra expressão no desamparo psíquico (Freud, 1996c, p. 163). O ser ‘um à toa’, que tão intensamente surge no discurso da mãe, parece responder a algo sintomático, já que parece dirigido a ela. Lembremos que, na casa do tio e de sua esposa, isso não se repete. Lá, João ajuda nas tarefas mesmo sem ser solicitado a fazêlo. Uma ‘ação específica’ demandada à mãe parece se inscrever no espectro sintomático de João, apesar de não se fazer como questão enunciada para ela. E, em outra perspectiva, a atuação que conduz a família ao processo restaurativo revela também as próprias dificuldades da mãe com o desejo e com seus objetos. Principais resultados: A supervisão se destaca como dispositivo clínico-institucional de organização, chave de leitura com vistas à retificação e à recomposição do espectro de respostas possíveis dentro da singularidade de cada caso. Aqui, destacamos quatro de seus eixos. A. O sujeito e a dimensão simbólica: Todo ser falante se encontra na situação originária de desamparo exatamente por falar e, ao fazê-lo, deparar-se com um impossível, traumático, de significar, que exige uma ação específica. Pois bem, essa ação parte exatamente de um enquadre simbólico e interpretativo da situação, que favorece sua apreensão a partir da dinâmica inconsciente, articulada pelas condições materiais concretas. Ao discutir uma das intervenções realizadas no círculo do processo restaurativo o facilitador comenta que ‘foi muito forte’ porque, supreendentemente, todos eles se emocionaram muito. Diante do pedido que cada um dos sujeitos levasse um objeto que representasse a si e a família, observou-se o seguinte: O João, ele levou o […] um celular que tinham arranjado pra ele. Porque ele falou que o celular representava pra ele […] que ele ainda queria o novo, mas que aquele celular representava pra ele uma nova fase. [...] A avó e a mãe levaram Bíblia; o G. [primo] levou uma foto da família; e o mais Psicol. estud., v. 26, e51119, 2021 Guerra et al. 11 bonito, foi a irmã. Ela levou um jogo de brinquedo de chá. Um jogo de louça de chá, de brinquedo, assim, pequenininho. Aí ela foi e pegou. Primeiro ela pegou esse jogo… aí ela começou assim: ‘Esse jogo aqui, o João me deu quando ele era mais novo – ele nem deve lembrar – mas ele deve lembrar que foi ele que quebrou. Aí eu já falei: ‘putz’ (Risos) (Facilitador). A irmã seguiu com a fala pegando uma xicarazinha do joguinho que estava quebrada e disse: “Isso daqui, eu quero que ele saiba que essa parte aqui é ele e que essa outra parte sou eu. E que a gente separado num serve pra nada, mas a gente junto, a gente pode fazer alguma coisa”. A intervenção da irmã acerca do joguinho de xícaras torna-se um operador simbólico que localiza o circuito significante e de afetos, bem como o valor atribuído a cada sujeito/objeto nesse circuito, o que torna essa indicação um elemento orientador para a ação específica de cuidados. Isso implica considerar a dimensão simbólica e não dita até então, mas determinante dos movimentos de violação no contexto da família. Além disso, a experiência recalcada da avó retorna sobre o corpo do adolescente, atravessando a relação transgeracional desta com sua própria mãe e com os homens violentos da família. Vocês estão trabalhando o recalcado da avó [com o avô violento], que hoje se atualiza na relação com ele [adolescente]. E, ao mesmo tempo, a dor da mãe. É como se ele carregasse uma carga genética, só que ela é simbólica [...], que é a dor da avó – porque imagina o abraço dele, mostrando um afeto carinhoso e pedindo o quê? O que que ele pede? Adoção (Comentário da psicanalista coordenadora da Supervisão). Como adotar um homem no contexto dessa família tão violada pela encarnação da figura masculina agressiva? Como fazer circularem os afetos nessa família tão retensiva e defensiva? A delimitação simbólica do real em jogo permite um enquadre lógico para o cálculo da ação específica a que Freud (1996a) se referiu, impossível de se fazer sem a experiência singular de cada membro. Sob esse aspecto, podemos pensar que é universal considerar a singularidade de cada caso. E, quando o caso se constitui, ao lado de outros como uma série, é indispensável localizar o nome do que é seriado para composição de ações articuladas a grupos populacionais com problemas parecidos. B. O sujeito e o circuito pulsional Todo ser falante possui um corpo, e sua regência, ainda que atravessada pelos significantes, será sempre pulsional, marcada pela busca de satisfação. Assim, todo corpo se aloja na falta do Outro como objeto que o satisfaz: oral, anal, fálico [...] esse arranjo ganha corpo nas profissões que escolhemos, nas parcerias amorosas que fazemos, mas também na repetição dos modos de sofrimento que encontramos na realidade. O circuito pulsional impulsiona cada corpo em diferentes direções moldadas diante das condições objetivas, econômicas e sociais de sua inserção. Essa composição endereça um corpo para modos diversificados de afetos e laços, sendo codeterminante de sua conduta objetiva. Localizar como o sujeito se faz objeto para atender ao que supõe ser a demanda do Outro, que, invertida, localiza seu desejo, é essencial em qualquer construção clínica para orientar a ação específica de cuidados. Pois é justamente aí que o sujeito repete seu movimento, na busca por sua decifração ou por sua reescrita. No caso, ainda que se destaquem significantes que definem o adolescente como violento, folgado ou preguiçoso, o que orienta seu gozo é o circuito da comida retida. O quê que o Outro demanda da criança? [...] o inconsciente vai aparecer nas coisas materiais. Por isso que esse circuito da comida é relevante nesse caso. [...]. É pela via da comida que os afetos são explicitados. Então, quando a mãe tranca a comida e partilha com a irmã, ela fala: ‘nós somos uma Psicol. estud., v. 26, e51119, 2021 12 Adolescência: desamparo e intervenções família; você não’. Quando ele faz o bolo e entrega pra todo mundo, pro G. [primo], pra avó […] ele fala assim: ‘mas eu quero pertencer […] é minha também’ [...] É como se ele estivesse dizendo: ‘a minha família são vocês todos’, ‘quero satisfazê-los com meu ser’ (Fala da psicanalista). Há, portanto, uma orientação a partir da localização do sujeito como objeto no circuito pulsional, destacado pela supervisão, que orienta a construção do caso e da ação específica. C. Implicação e retificação no campo do Outro Localizar, no significante e no objeto, os vértices de um caso, como desenvolvemos anteriormente, é central e basilar. Porém, outros elementos se tornam essenciais ao trabalho assim orientado. Vejamos: a ação de cuidados implica o Outro, que aciona o sujeito num cenário em que se espera que ambos se modifiquem. No discurso corrente, que às vezes atravessa as próprias políticas públicas, nasce uma tendência discursiva, que inflete diretamente na prática, de criminalizar as situações de pobreza e individualizar o problema econômico estrutural, como se o adolescente fosse responsável de maneira isolada por produzir as condições de violências e de violações em que se encontra. Na supervisão, destaca-se uma orientação ao trabalho na qual se busca não apenas a implicação do sujeito, mas também sua retificação subjetiva. Mas a retificação implica também um tratamento do Outro, especialmente nesses casos em que há uma relação fragilizada ou hostilizada. E nem sempre essa retificação é possível. Em psicanálise, a particularidade desse trabalho de localização e retificação reside no fato de partir da dimensão inconsciente. A retificação implica o trabalho do inconsciente a partir da materialidade concreta. E não basta ler e interpretar a realidade a partir de um enquadre lógico-simbólico. A interpretação é a chave de leitura da experiência que visa o gozo. Assim, é indispensável a escrita do contexto, incluindo a maneira como o objeto retorna sobre a situação que se espera modificar, pois a cena que atualiza o trauma irá se repetir exatamente no cotidiano das violências e violações que reiteradamente compõem as relações. No caso, vemos que a irmã de João se torna um elemento articulador da retificação, enquanto a avó e a mãe, de maneira transgeracional, repetem as situações de retenção de afeto e de vivência de violências. Nesse sentido, a supervisão abre uma condição de leitura e instala modos de intervenção de ações específicas que visam à transformação implicada de cada elemento da cena da repetição, atualizada nas experiências que visam à proteção social. No caso, o plano de ação proposto à família pela equipe da Justiça Restaurativa confere materialidade a um trabalho no plano simbólico e afetivo. A avó demanda mais almoços em família; a irmã diz que não abraça João, mas cozinha para ele; João pede privacidade e equidade, solicitando uma porta para seu quarto, já que todas as mulheres já possuem a sua; e mãe, filho e filha estabelecem uma rotina de atividades juntos nas segundas-feiras. Essa materialidade corporificada em 30 pontos a serem judicialmente obedecidos torna-se nonsense, sem sentido, se não acontece paralelamente a um trabalho de retificação. Afinal, como os membros de uma família precisam de um mediador judicial para combinarem de almoçar juntos? Como percebe em supervisão o facilitador pela ‘ação específica’, através dos ciclos restaurativos, “[...] é preciso falar sem explicar tudo, para eles [sujeitos do processo restaurativo] pensarem e se colocarem”. Psicol. estud., v. 26, e51119, 2021 Guerra et al. 13 Inflexões sobre a equipe Podemos dizer que a supervisão também opera como medida de avaliação qualitativa do trabalho realizado (Figueiredo, 2017). Ela implica uma análise dos efeitos e do destacamento do quantum de gozo recomposto a partir da cena primária, matriz da repetição pulsional. De saída, partimos de uma noção de reincidência, que retoma a de cronicidade como sendo “[...] uma adesão a um programa de vida imposto, decidido fora de qualquer decisão subjetiva” (Viganò, 1999, p. 50), sendo seu risco o de se passar da exclusão à segregação, engendrada pela alienação a comunidades de gozo que não partilham vivências de corpo, nem espaços ou discursos comuns. Assim, a equipe manifestou-se de forma a questionar a maneira como o trabalho foi conduzido, com afirmações como: “Faltou tempo de trabalho, de elaboração”; “A metodologia é curta”; e, ainda, a análise de que, enquanto a irmã se implicou, não se viu retificação ou implicação com a mãe, e mesmo a avó conseguiu se engajar apenas parcialmente no processo de mudança. João e a mãe, em especial, mantiveram uma estrutura especular e alienante: “A mãe falou que não cumpria a parte dela, porque não via o João cumprindo a dele” (‘Facilitador’). Também se manteve a tensão entre João e a namorada da mãe. No encontro pós-círculo estiveram presentes apenas a mãe e o filho, pois a avó estava com vergonha de não estarem cumprindo o plano estabelecido, e o tio, referência de João, não aguentava mais a irresponsabilidade deste. Mesmo assim, foi possível retomar o ponto da retificação e foi trabalhada a responsabilização – “Você faz sua parte (mãe), e ele (João), a dele” (‘Facilitador’), pois cada um apontava a falta de responsabilidade do outro para justificar o não cumprimento do que lhe competia. A equipe pôde, assim, reconstituir-se em torno do caso, avaliar a posteriori o trabalho realizado e sistematizar seu plano de leitura e ação para novas intervenções. As formalizações obtidas e coletivizadas através da supervisão implicam a equipe diante dos limites impostos pelo sistema, deslocando a posição de impotência para a de invenção. É um momento de construção do caso, no qual sua escrita formaliza, como pontos de capitonagem, os impasses, assim enunciados, permitindo a construção de estratégias possíveis, ainda que contingentes na qualidade de ações específicas capazes de fazer frente ao desamparo radical. Considerações Finais A supervisão revela que as ‘ações específicas’ referentes ao caso podem se nutrir exatamente de seus limites, oriundos das diferentes situações de desamparo, originário na estrutura, radical na adolescência e generalizado em nossa época. Haver-se com esse limite implica tomar o impossível de tudo dizer como ponto de partida e não como ponto a superar. O impossível, no caso, radica sobre o desejo das mulheres – especialmente da mãe – em relação aos homens, redundando no anulamento da escrita de afeto no corpo do adolescente. Ele está estruturalmente excluído do circuito feminino desejante e, portanto, simbólico, dessa família de homens violentos. Tomar esse impossível como ponto de partida implica em considerar uma ação específica frente ao desamparo radical desse jovem e do desamparo generalizado de sua família e de sua época. A responsabilidade subjetiva, nesse caso, implicaria a retificação de cada um no circuito que os articula a partir do Outro masculino violento. Essa visada talvez fosse muito mais operatória que a ilusão de recomposição de um quadro de felicidade, trazendo a Psicol. estud., v. 26, e51119, 2021 14 Adolescência: desamparo e intervenções possibilidade de uso do corpo masculino por João e do tratamento da dor sofrida pelas mulheres. Concluímos, assim, que o desamparo pode ser uma chave de leitura psicanalítica para a noção de vulnerabilidade e que nos limites daquilo que a interface entre psicanálise e direito podem aqui restaurar, encontra-se o que visa a Justiça Restaurativa e a ética da psicanálise. Reparar um dano, restaurar os laços possíveis, e reintegrar vítima e ofensor à comunidade implicam na constatação de um real estabelecido sobre o fato de que nem tudo é simbolizável, reparável. Mas, é preciso estar alertado deste resíduo que se impõe sobre o trabalho dos facilitadores e também, sobre o que é possível para o sujeito responder. Ao possibilitar uma construção melhor orientada para ação específica de cuidados em dispositivos públicos de atenção e proteção ao adolescente, a supervisão clínica e institucional, dirigida a diferentes facilitadores, psicólogos, advogados, assistentes sociais, isto é, operadores do campo do direito, favorece a construção de uma prática que, ainda que atravessada pelo campo público, possa ser orientada pela dimensão do singular que sustenta a narrativa de cada ato e de cada história. Referências Arlé, D. G. G. (2018). A Justiça Restaurativa Juvenil na Comarca de Belo Horizonte – Minas Gerais. In F. G. Jayme & M. Carvalho. Justiça Restaurativa na prática: no compasso do Ciranda (p. 4-30). Belo Horizonte, MG: Del Rey. Campos, S., & Alvarenga, E. (2015). Pontuações sobre a supervisão. Recuperado de: http://minascomlacan.com.br/pontuacoes-sobre-a-supervisao-por-elisa-alvarenga-esergio-de-campos/ Decreto-lei nº 2.848. (1940, 7 de dezembro). Brasília, DF: Senado Federal. 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