Vizinhanças:
de correntes a redes. Entre fofocas, jardins, compras e outras formas de vizinhar...
Gabriel Binkowski
Alan Jorge
Lia Braga
Rafael Wolski
Simone Frichembruder
Stelamaris Tinoco
Vera Resende
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SILVEIRA, MFA., and SANTOS JUNIOR, HPOS., orgs. Residências terapêuticas: pesquisa e prática
nos processos de desinstitucionalização [online]. Campina Grande: EDUEPB, 2011. 320 p. ISBN 97885-7879-063-9. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.
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Vizinhanças: de correntes a redes.
Entre fofocas, jardins, compras
e outras formas de vizinhar...
Gabriel Binkowski
Alan Jorge
Lia Braga
Rafael Wolski
Simone Frichembruder
Stelamaris Tinoco
Vera Resende
Num painel produzido durante uma oficina de artesanato e
fuxico por moradores e cuidadores do Residencial Terapêutico
Morada São Pedro5, em Porto Alegre, vemos, em uma simples
figura, a complexa teia de imagens, forças, riscos, excitações,
5 Os Serviços Residenciais Morada São Pedro (SRTs MSP) são serviços da
Secretaria de Saúde do Estado do Rio Grande do Sul, localizados na cidade de
Porto Alegre e vinculados ao Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP). Foram
inaugurados em 30.12.2002, integrando o Projeto São Pedro Cidadão, ação
que incluía a regularização fundiária da Vila São Pedro e a vinda de moradores
egressos de internação prolongada no Hospital Psiquiátrico São Pedro. A criação
desses serviços faz parte do processo da Reforma Psiquiátrica no Rio Grande do
Sul e cumpre o estabelecido na Lei Federal nº 10.216/2001, Lei nº 10.708/2003,
Lei estadual nº 11.791/2002, Portarias GM nº 52 e 53/2004, Portaria nº 106/MS
de 11/02/2000, Portaria nº 1.220/2000, que os regulamentam.
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fantasias, impedimentos, palavras, enfim, tudo aquilo que vai brotando da vida de um residencial terapêutico para egressos de um
monumental hospital psiquiátrico. No caso, a imagem confeccionada nos apresenta uma casa preenchida por flores de fuxico, mais
precisamente, rosas multicoloridas – com forte presença do cor-derosa -, circundada por uma corrente amarela cujas pontas, abertas,
se dirigem para fora. Pendurados na corrente, podemos ver uma
série de bonequinhos, uns presos por durex, outros amarrados pelo
pescoço com linha de costura. Ainda, notamos algumas das palavras comumente repetidas no contexto da saúde mental, dentre as
quais podemos citar autonomia, respeito, cidadania, casa, tranquilidade, respeito pela vida e outras.
Múltiplos são os fluxos de leitura passíveis de serem seguidos
num painel como este. A começar pela corrente: a incansável busca
por cuidadores e moradores, por construir uma casa sólida, que
fique em pé, protegida, que produza não apenas redes ou relações,
mas correntes fortes, vigorosas, captando pessoas, vidas, afetos, serviços, olhares. Uma corrente que poderia servir também de captura,
de isolamento, posto que um residencial como esse, sobre o qual
falamos, aposta na singularidade possível em uma vida, mas também
se faz como um conjunto de casas, de vidas, relações, forças, desejos, esses últimos, aliás, palavras tão ditas, confundidas, alteradas,
até esvaziadas. Rosas, como as que preenchem a estrutura da casa,
nos levam tanto ao belo, ao cheiroso, ao amor, ao casal e também a
um ideal de vida “mar de rosas”, de família, de isolamento, algo que
nos grita uma imagem daquela família de classe média, com papaimamãe, escola e TV, como numa novela, o que podemos, muitas
vezes, insistir em cravar na vida de muitas dessas pessoas egressas
de um manicômio. Como nos lembra Foucault em seu seminário O
Poder Psiquiátrico (FOUCAULT, 2006), na aula de 28 de novembro
de 1973, a família é o ponto de engate entre os diferentes sistemas
disciplinares da sociedade e, portanto, funcionaria como uma cavidade dentro da qual teríamos o poder soberano operando (como
a função paterna, por exemplo). Não podemos também deixar de
pesquisa e prática nos processos de desinstitucionalização |
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lado a referência necessária de Foucault ao poder psi, função-psi, que
operaria como num esforço de refamiliarizar indivíduos desviantes
dessa ordem, necessária, por sua vez, a uma gestão de indivíduos que
se manteriam, fariam funcionar e reproduziriam os sistemas disciplinares do resto da sociedade (indo, dessa forma, da família para a
escola e, depois, para o trabalho/fábrica ou outros sistemas de reordenação, como o manicômio ou a prisão).
A busca por um ideal de casa limpa com armários organizados,
habitada por pessoas que sabem “gastar direito” o seu dinheiro,
sujeitos da razão, “incluídos” na cidade, permeia, muitas vezes,
os projetos terapêuticos individualizados, na tentativa, às vezes
obstinada, de refamiliarização dos usuários em seus Residenciais
conforme aborda Foucault (1999). A percepção dessas redes de práticas “substitutivas” ao manicômio, dos mecanismos disciplinares,
que atuam nos Residenciais Terapêuticos, tem nos apontado uma
possível brecha para algo que chamamos de respeito à diferença, um
dos principais pressupostos da Reforma Psiquiátrica.
Ao pensar nesse pressuposto, retomamos a imagem do painel;
ainda nem falamos dos próprios bonecos juntos à corrente, ora rede
de afetos, ora de serviços que confluam a vida para lá fora, para
uma cidade, aquele ideal “Vamos invadir a cidade!” que muitas
vezes esquece que alguém pode querer não invadir sua cidade, e sim
ficar próximo de seu portão, sentado com uma cuia de chimarrão
em mãos, delirando, de fato, sobre o próximo jogo de futebol da
dupla Gre-Nal (como na cena entre Jorginho e Cleusa narrada logo
abaixo). E nem precisamos citar o risco de “enforcarmos” pessoas
numa corrente como essa, como os bonequinhos do painel, com o
constante risco do sufocamento e da disciplina, seja a do manicômio, seja a da complicada vida das cidades, com seus imperativos,
demandas, produtos. E estar exposto a tais riscos e sufocamentos
só se dá para aqueles que habitam uma cidade de um outro jeito, na
amplitude de seus trânsitos, e não apenas como morador daquele
pedaço da cidade que chamamos de hospital psiquiátrico.
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Habitar a cidade de outros modos, como Belo, morador do
Residencial Terapêutico Morada Viamão6, caminhando no centro
da cidade, sendo cumprimentado por onde passa. Entra nos estabelecimentos comerciais, pega panfletos de propagandas, ofertas,
cartões de visita e redistribui nas ruas aleatoriamente. Às vezes, vai
ao centro, inclusive de madrugada, toma um café na funerária e circula em outros poucos pontos abertos. O plantonista da funerária
diz que gosta de recebê-lo, pois “batendo papo, a noite passa mais
rápido”. Em seu percurso diário, conversa com algumas pessoas,
entra em conflito com outras, mas, de maneira geral, é bem quisto.
Uma prova disso é a comunidade no Orkut em sua homenagem, a
qual conta com mais de 2.900 integrantes.
Belo experimenta devires no encontro com a rua, com a liberdade, com o caos urbano, que somente um corpo ainda por vir pode
experimentar. Corpo que parece viver com toda intensidade possível os encontros que o território da cidade propicia, ultrapassando
o possível no encontro entre corpos, produzindo agenciamentosloucos com o corpo-mulher, corpo-criança, corpo-café-oferecido,
corpo-som-ofertando, corpo-motorista, corpo-cobrador, corpopanfleto, corpo-diferente, corpo-diferença. Figura física que parece
carregar em si toda a fragilidade de um corpo moribundo, de corpo
por muitos anos institucionalizado, corpo egresso de manicômio,
contudo carrega a potência que só um corpo que fora aprisionado
carrega em si.
Entre encontros e desencontros, novas formas de habitar a
cidade foram se construindo. Assim como os residenciais, desenhados em riscos traçados por seus moradores, seus cuidadores, verbas,
tentativas de captura e, acima de tudo, suas vizinhanças. Mas, os
6 Os Serviços Residenciais Morada Viamão são serviços da Secretaria de Saúde do
Estado do Rio Grande do Sul, localizados na cidade de Viamão, região metropolitana de Porto Alegre. Foram reinaugurados em setembro de 2005, onde no
local existia o Residencial Morada Dom Bosco.
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residenciais, se possível e permitido, foram tentando deixar tais configurações de residenciais, permanecendo apenas como um tênue
desenho que vai ligando pessoas em suas casas, no meio de cidades,
com seus prazeres, perigos, feiuras, belezas, belezas misturadas com
feiuras, preços baratos e salgados, preços de salgadinhos, drogas,
prostitutas, jogos de futebol, pedras arremessadas contra janelas,
shoppings. Tudo que envolve a vida das cidades.
Segundo Certeau (1994), “[...] a cidade se vê entregue a movimentos contraditórios que se compensam e se combinam fora do
poder panóptico.”
A cidade nos traz então diferentes possibilidades, contradições,
permitindo escapar das amarras do olhar panóptico, que tudo vê
e controla, tornando-se “[...] o tema dominante dos legendários
políticos, mas não é mais um campo de operações programadas e
controladas” (CERTEAU, 1994).
Mas que cidade é esta que oferecemos aos diferentes? Que promessas ela nos traz?
Para pensarmos nessa questão, abordaremos os residenciais e
seus “vizinhos”, situando-os no espaço da cidade.
O Residencial Terapêutico Morada São Pedro nasceu num terreno vizinho ao hospital psiquiátrico do qual saíram seus moradores.
Além disso, faz borda, e também se mistura com uma vila do município cotidianamente chamada de Vila Cachorro Sentado.
Temos, portanto, para dar sequência a este quase conto ao qual
nos propomos, inúmeras possíveis relações de vizinhança. Podemos
olhar para o residencial em separado da Vila, ligando-o ao Hospital
Psiquiátrico São Pedro, podemos falar de todas as relações de
vizinhança que se dão entre os moradores do residencial, entre o
residencial e a vila. De forma até mais intensa, é possível apagar a
diferença entre o residencial e a vila, comentando sobre a vizinhança
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com o hospital ou ainda todas as conflituosas relações de uma das
vilas do município de Porto Alegre.
Isso posto, apresentaremos esses residenciais não apenas como
serviços substitutivos, ou, como querem alguns, uma unidade de um
hospital psiquiátrico, ou, como pode olhar alguém de fora, as casinhas mais “arrumadinhas” da Vila Cachorro Sentado. Escrevemos
sobre as vizinhanças. E o que fica aberto com isso.
Escrever sobre as vizinhanças abre, entre outras possibilidades, um espaço para refletirmos sobre a arquitetura e o urbanismo
para além de sua funcionalidade. Como nos diz Baudrillard em O
Sistema Dos Objetos (BAUDRILLARD, 2000), que estruturas mentais se misturam a essas estruturas funcionais e as contradizem,
sobre que sistema cultural, infra ou transcultural funda-se a sua
cotidianidade vivida.
Loucura e pobreza desfilam lado a lado para o estranhamento de
nossos olhares etnocêntricos e ainda turvos de uma ótica manicomial. Uma vizinhança possível, com códigos, barganhas, errâncias
que deixam nossas matizes mais higienistas incomodadas.
Sob olhares surpresos de habituais consumidores de um shopping vizinho da vila, adentram os loucos no lugar dos “ricos” com
sua singularidade debaixo do braço e com poder aquisitivo para
consumir. Tal curioso fato se dá pelo direito adquirido desses expacientes de manicômio a serem detentores de benefícios e bolsas
de auxílio.
Mas voltamos aos “loucos com poder de compra” e sua relação
com os “pobres da vila”. E não precisamos levar estes conceitos até
as mais distantes abstrações para enxergarmos sua pregnância na
vida de um residencial. No caso a seguir, ocorrido com muito pouco
tempo de vida compartilhada entre o Morada São Pedro e a vila,
vivíamos numa época de medos mútuos. Enquanto os moradores do
residencial temiam seus vizinhos, os riscos de roubos, as chacotas,
os moradores da vila olhavam sempre de sobreaviso para seus novos
pesquisa e prática nos processos de desinstitucionalização |
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vizinhos: teriam eles a capacidade de desligar um fogão, de cuidar de
sua casa evitando possíveis problemas e até mesmo uma tragédia?
Nessa relação entre “loucos” e “pobres”, estas produções se
encontram e se entendem. Às vezes, atrapalhados por atitudes intervencionistas de quem exerce cuidado e tropeça na tutela policialesca,
como na cena a seguir:
Num desses dias iniciais de Residencial, Iara mantinha sua casa
extremamente chaveada, não apenas por receio, mas também por
preconceito e por manter-se sempre reservada – hábito que, diga-se
de passagem, mantém até os dias de hoje. No entanto, quando
um excesso de fumaça é visto saindo de sua casa, todos na vila já
o sabiam: “onde há fumaça, há fogo”! O caminhão de bombeiros
já chegara, fazendo todo o estardalhaço possível, vizinhos se aglutinavam de fronte à casa da moradora quando um bombeiro bate
apressadamente na porta. Iara, irritada e com pressa, abre e para a
surpresa do bombeiro, vai logo respondendo: “mas eu estou fritando
um bife. Tu não tens mais o que fazer da vida? Vai trabalhar!”, e
termina batendo com a porta na cara do bombeiro, cujo estarrecimento também se fazia presente na cara de todos os vizinhos que se
espreitavam para assistir ao possível incêndio.
Resquício de imersões manicomiais que conformam a todos,
esses vizinhos ficam mais distanciados. Distância imposta por quem
media a conversa e olha a partir de seu locus moral, lente única para
ler o mundo, que insiste em determinar destinos e homogeneizar
comportamentos, como o que observamos no olhar dos vizinhos ao
Residencial onde mora Iara.
Quando os moradores do residencial entram na rede de trocas
da vila, temos o risco de que trabalhadores não vejam aí nada mais
que exploração, usurpação e perigo. Perde-se o olhar sobre os significados das relações e a constituição de pertencimento ao território
onde a troca tem a ver com certa identificação – à existência num
espaço psicogeográfico.
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Neste câmbio e ajuste cultural em que essas pessoas estão envolvidas, estabelecer práticas de vizinhança, códigos que organizem a
convivência, faz-se por meio de muitas trocas, internas e externas.
Troca-se açúcar, erva-mate, serviços, olhares, cuidados, vigilância,
tiros, drogas, objetos, favores, lugares e saberes. Troca-se a vida de
lugar dentro de si cotidianamente para dar conta do imprevisto.
Trocam-se preconceitos.
Ana trabalha com a venda de cosméticos de porta-a-porta,
trazidos pelo “baiano”, comerciante da cidade. Também vendia
pastéis aos taxistas do shopping, porém, ao percorrer a vila e chegar ao local, muitas crianças, instigadas pelos concorrentes, pediam
dinheiro e mexiam com ela e sua companheira. Refere que “as pessoas têm muitos preconceitos com quem morou no São Pedro”,
por isso sempre omite essa informação. Ao mesmo tempo no lugar
onde mora, mantém uma relação de distanciamento com os demais
moradores, referindo-se a eles como pessoas pobres, culturalmente
inferiores, loucos.
Por esse motivo, afirma que não vê a hora de morar em outro
lugar, assim como o prédio da PUC (Pontifícia Universidade
Católica) onde estudou e “está localizado em um local arejado, lindo,
onde circulam pessoas educadas que a deixam calma, tranquila”.
Desde a Nau dos Loucos ao olhar higienista e excludente da
medicina sobre a loucura, esta tem se situado no campo dos indesejáveis. Estes mesmos que no contexto que descrevemos se instalam,
se misturam esgueirando-se do olhar da saúde pública, quase epidêmico para a absorção de singularidades; uma alteridade por demais
estranha, mas que se coloca no urbano.
Trabalhadores e moradores tecem novas relações, experimentam possibilidades diferentes de diálogo com o espaço urbano e com
seus espaços subjetivos, trânsitos múltiplos entre o dentro e o fora
dos muros, dos muros de concreto e dos muros subjetivos, subjetividades resistentes à erosão do que está instituído. Trabalhadores que
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se encontram também em processo de acomodação/incomodação,
acomodam o novo e se incomodam com o estranhamento, com o
que se mostra tão diferente. Sobrevivem todos e inventam formas
de organização dentro destes territórios, cavando pertencimentos,
laços, novas miradas sobre a vida, enfim, participando algumas vezes
nesta cena de vizinhança, sendo parte do “vizinhar”.
No Residencial Morada Viamão, por exemplo, vive-se um
momento diferenciado com alguns moradores que buscam outros
locais de moradia, inaugurando novas formas de morar na cidade em
diferentes pontos. Tal cenário requer dos trabalhadores a aprendizagem de novos modos de atenção. A necessidade de apoio e cuidado
a alguns usuários da saúde mental levou à criação de outras práticas
e olhares de atenção em saúde. Assim, os trabalhadores tiverem de
desenvolver uma circulação para realizar tais acompanhamentos,
para auxiliar na constituição de novas redes.
Edson, um ex-morador desse residencial, é uma das pessoas que
inauguram esta nova tendência: a busca de uma nova vizinhança.
Optou pela escolha de outro espaço onde reside sozinho, não mais
dividindo com outras cinco pessoas como quando vivia no residencial. Vindo do Dom Bosco, onde vivia em uma unidade com mais
de 100 pessoas, onde comia na mesma hora, em pratos de plástico e
colher, onde suas escolhas eram limitadas, optou por seguir adiante
ainda, queria um espaço só dele.
O espaço escolhido: uma peça em um cortiço na Vila Gaúcha,
conhecida na cidade pelo tráfico e pela violência. Nas primeiras
semanas de Edson em sua nova morada, sua TV é roubada, gerando
muita angústia nele e na equipe do Morada Viamão. A primeira
hipótese levantada na reunião de equipe foi de Edson retornar ao
residencial onde mais pessoas o acompanham, um lugar supostamente mais seguro. Contudo, essa hipótese foi descartada pelo
próprio Edson e o mesmo trouxe outra alternativa. Conforme sugestão de uma vizinha, colocar a TV dentro de um suporte gradeado,
tal qual esta vizinha tinha em sua casa, era uma forma de prevenir
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o roubo. A dificuldade de pensar outras alternativas para além da
tutela e do controle é um desafio que precisa ser exercitado e discutido cotidianamente e como tarefa infindável.
Mas, ao pensarmos na cidade, temos de supor que a arquitetura
também ocupa sua função de vizinhança e da configuração do próprio ‘vizinhar’.
Ao tratamento da loucura no século XIX, corresponde uma
estética e uma iconografia que ainda subsistem nas construções
posteriores: a divisão por pavilhões, os espaços internos (átrios) destinados ao “tomar sol”, os refeitórios coletivos, os espaços amplos.
Os prédios construídos posteriormente conservam a proposta que
ensejou a construção do manicômio: a existência de um espaço tranquilo e ordenado, especialmente projetado para abrigar a loucura,
retirado da agitação da cidade, provido de vastas sombras e conforme
uma expressão da época, construído segundo as “regras da boa arte”.
Importante esse cuidado ao pensarmos que os ornamentos já foram
considerados capazes de produzir uma sensação de plenitude e de
repouso ao olhar e à mente. O manicômio ornamentado revela as
boas intenções dos alienistas.
Na vila Cachorro Sentado, tudo é incerto e fragmentado, como
os abrigos que a compõem. O trabalho com fragmentos, presente na
experiência diária da maioria dos moradores, estende-se na construção e manutenção de abrigos/casas, que são estruturas sempre em
incompletude. A efemeridade dos materiais determina os ciclos de
construção, reforma e demolição das casas e a ocupação dos espaços.
Nestes, é tênue o limite entre o interior e o exterior. Há uma forte
e constante intervenção sobre o espaço público: ultrapassagem de
fronteiras, ocupação desenfreada. O morador constrói o abrigo da
sua subjetividade.
Entre formas antagônicas (agônicas) de ocupar o espaço, encontramos o Residencial Terapêutico Morada São Pedro, um conjunto
de casas construídas conforme modelos arquitetônicos cartesianos,
pesquisa e prática nos processos de desinstitucionalização |
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estética que corresponde a expectativas de normalização oriundas
de um poder externo que pretendeu incidir sobre toda a vila, mas
que somente alcançou algum êxito no que concerne às casas do
Residencial. Somente os loucos mantêm a estética do projeto inicial,
suas casas não sofreram alterações: permanecem amarelas, de um
único andar, protegidas por grades padronizadas.
Todavia, tais faltas de alteração não são tão plenas: as mudanças
foram se dando meio nas bordas, nos cantinhos. Após receberem
suas casas, com um mobiliário de utilidades e de qualidade para as
tarefas do cotidiano, as trocas, escambos e comércios foram acontecendo. Se pensarmos a subjetividade como resistência (PALOMBINI,
2007), encontramos o intenso poder de uma vizinhança como a da
vila Cachorro Sentado e do comércio da região: jamais deixaram de
se dar as trocas de móveis, as compras de usados, compras à prestação no shopping center vizinho ao residencial e, por sua vez, até
mesmo os roubos atestam como as trocas jamais cessam de se fazer
presentes numa cidade, posto que uma cidade tem por condição
para seus moradores os perigos que nela habitam.
O traçado da cidade moderna, presente no projeto arquitetônico
do residencial Morada São Pedro assim como em qualquer outro
bairro, condomínio, casa residencial ou comercial, principalmente
quando com construções destinadas ao uso de extratos populares,
tende para a rigidez e ordenação, para o racional e ideal. A presença humana, porém, com suas experiências e relações, transforma
os espaços, colorindo de vida e de inesperado as janelas, que antes
de receberem cortinas já foram todas iguais, os jardins, que antes
de crescerem as roseiras e os maracujazeiros já foram todos iguais.
Até mesmo as ruas, onde agora se esparramam moitas de “pingo
d`ouro” (plantadas para impedir que os carroceiros construíssem
estábulos onde deveria haver uma calçada) se modificaram à força
das relações. Foram essas mesmas relações, nem sempre tranquilas,
que resultaram na substituição de carcaças de automóveis e outros
entulhos por balanços, gangorras e traves para marcar alguns gols,
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| Residências Terapêuticas
ou seja, uma praça. Um espaço de lazer profundamente respeitado,
construído em uma das bordas de um espaço de segregação socioeconômica. De forma análoga, os roubos e outras formas de violência
também se passavam no hospital psiquiátrico.
Passados alguns anos, os moradores encontram cada vez mais
necessidades de compras, mais utilidades e, especialmente, luxos
já presentes em todas as classes sociais, como é visto em inúmeras
casas, de máquinas de pão passando por aparelhos de DVDs às tão
fundamentais (e subjetivamente fundantes) camisas de futebol.
Em algumas residências, a rejeição à estética desviante, interpretada apenas como parte da miséria presente na vila, gera um fenômeno
de idealização do interior das casas conforme modelos tradicionais
burgueses oriundos do século XIX. Manter a casa impecável sinaliza que seu morador esteve muito tempo no hospital psiquiátrico,
mas que ainda é de outra estirpe. Não é um “maloqueiro”. O típico
interior burguês, composto por móveis (com função mais simbólica
do que prática), acumulação e confinamento, é interpretado como
atestado de reabilitação psicossocial. Cozinha, sala de estar, dormitórios e banheiro correspondem a diversas funções e remetem a
uma concepção de indivíduo como sendo uma reunião equilibrada
de faculdades distintas.
Baudrillard (2000) nos fala da casa, da residência, como uma
unidade conformada antes por critérios simbólicos do que espaciais.
Neste sentido, a casa se faz terapêutica quando proporciona ao sujeito
mutilado pela conformação dos ambientes institucionais a possibilidade de buscar suas próprias conformações simbólicas. Semelhantes
em muitos aspectos às casas das nossas infâncias, estruturas complexas de interioridade onde os objetos descortinam diante de nossos
olhos são uma configuração simbólica chamada residência.
A descontinuidade do projeto de urbanização da vila Cachorro
Sentado, retomando o assunto, deu-se tanto no que competiu à vontade política das gestões do estado do Rio Grande do Sul, quanto
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à própria disponibilidade dos moradores que foram contemplados
no primeiro lote de construções. Estes optaram por não manter a
homogeneidade estética da proposta ao colorirem de “puxadinhos”
e montes de entulho o espaço circundante às suas casas.
Ao transformar os becos em ruas arejadas, onde se alinham casas
idênticas, percebe-se a valorização da permanência e da rigidez, atributos que, somados aos ornamentos anteriormente citados, acabam
por caracterizar as “normas da boa arte” presentes na concepção do
manicômio. No Residencial, todavia, essa mesma tendência normalizadora poderia chamar-se, em uma acepção mais aproximada das
questões do design nascido no modernismo, “normas da boa forma”.
De maneira homóloga, o hospício pretendeu criar um ambiente
terapêutico ideal, capaz de, por meio de sua organização, solidez e
ornamentação, apaziguar a fúria dos loucos.
As formas de organizações arquitetônicas do Residencial
Morada São Pedro pretendem interferir sobre estabilidades, que nós
chamamos de relativas, mas que são vistas pelo senso comum como
inexistentes ou frágeis, de uma forma tão profunda que as reconstituiria identitariamente.
Por fora, as casas são idênticas, mas seus interiores guardam
histórias de vida, de morte, de passados ricos e saborosos para a
imaginação. Histórias para além da institucionalização. O manicômio correspondeu à necessidade social de ocultar o diferente; o
residencial terapêutico, por sua vez, ao proporcionar a circulação
do diferente, o cotidiano do “vizinhar”, cria, por meio da partilha de
espaços públicos e de áreas comuns, relações tão ricas que rompem
com o poder das definições identitárias. Dona Socorro, desautorizada deste vizinhar por décadas na internação psiquiátrica, dá
conselhos à vizinha da casa em frente sobre como aquecer a moradia
no inverno. Dona Dalva, indisfarçavelmente delirante, é atendida no
mercadinho com a saudável e usual indiferença que caracteriza a
maioria dos comerciantes. A naturalidade dessas relações é a via de
acesso para que inúmeros relatos - breves como o de Dona Dalva
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| Residências Terapêuticas
sobre os meninos que comiam cachorros ou longos e romanceados
como as aventuras de Dona Anitinha como prostituta no Paraná circulem no campo social.
A cidade faz-se assim um espaço fértil de trocas. Trocam-se hostilidades, estranhezas. Contudo também se trocam afetos que não
passam somente pela via da violência e da tragédia, como querem
nos convencer os discursos higienistas. Como podemos presenciar
novamente com Edson semanas após o roubo de sua TV. Quando
vagou outra peça no mesmo cortiço, esta fora indicada para outro
morador que viria do hospital psiquiátrico São Pedro como possibilidade de moradia. No dia em que foram limpar a peça para
mudança, um grupo de pessoas do cortiço auxiliava, criando um
espaço de acolhimento e possibilidade de novas redes de relações.
Além de Edson, do morador que estava prestes a sair do hospital e de
um trabalhador da equipe do residencial, também, estava envolvida
nesta arrumação uma menina vizinha de Edson. Entre conversas
descontraídas, na falta de materiais como vassoura e pá de lixo, a
menina prontificou-se a pedir para sua mãe estes instrumentos, o
que possibilitou a continuidade da limpeza e da mudança.
Derrida (2003), em sua conferência Da Hospitalidade, coloca
em questão a noção de estrangeiro, tão cara e necessária aos dias
de hoje. Quando os movimentos de desterritorialização e intenso
fluxo de capital se unem a movimentos migratórios infindáveis e
violentos, não cessam os cambiamentos incessantes das formas de
viver, dobradas e transformadas numa velocidade incrível. Vemos
aí o aparecimento de riscos, hostilidades e bolsões de diferença. O
estrangeiro se coloca como aquilo que é encarado como de outra
ordem e, por sua vez, evocaria a questão da hospitalidade daquele
que recebe, ou não, daquele que induz sempre a uma certa relação de
violência, a primeira violência, comenta o filósofo francês, aquela de
pedir ao estrangeiro que compreenda, que fale nossa língua.
Por língua, podemos experimentar como Deleuze e Parnet
(1998) nos propõem um tal de uso minoritário da língua, qual seja,
pesquisa e prática nos processos de desinstitucionalização |
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essa gagueira de linguagem, esse mau uso que um estrangeiro faz da
língua e, voltando a Derrida, deparamo-nos com o fato de o estrangeiro ter um certo contrato de hospitalidade, uma necessidade de
compreensão de uma língua para, a partir disso, responder a determinadas configurações jurídicas de uma sociedade. A partir daí, ele
seria um sujeito, sujeito de direito.
Todavia, num residencial, quem é estrangeiro? De forma simplificada – e a simplificação costuma ser a mãe de homogeneizações, de
absolutismo, totalitarismo, vide o hospital psiquiátrico -, podemos
pensar naquela ideia romântica de loucos habitando uma cidade,
carregando um não-dito, a verdade, o manifesto da verdade em sua
voz, alethéia. Ainda, vemos a comparação de residenciais com estas
caravanas nômades que vêm, habitam, vivem, vão, deixam pedaços,
coisas. Não precisamos chegar por estas linhas. No caso do residencial ao qual nos referimos, o estrangeirismo se dá por muitas partes
– e o risco de violências e capturas também, melhor, o risco de correntes e enforcamentos.
Capturas e sufocamentos tão intensos que envolvem e encadeiam
até mesmo o discurso dos próprios moradores dos residenciais.
Numa noite de quarta-feira de decisão de futebol, Cleusa, moradora do Morada São Pedro, ouvia os gritos de um de seus vizinhos,
Jorginho, com quem mantém uma velha rixa pessoal – aliás, em que
vizinhança ela não existe? Com o histórico de uma vida de passagem
por instituições, Cleusa acabou aprendendo a fazer uso de médicos,
técnicos ou mesmo de guardar para chegar até seus objetivos. Nessa
noite de quarta-feira, Jorginho gritava por horas a fio, na expectativa
de que o Sport Club Internacional, seu clube do coração, marcasse
um gol nos derradeiros minutos de um jogo pelas quartas-de-final
da Copa do Brasil. Gol este aguardado por quase metade do estado,
da cidade, e cuja espera fazia Jorginho gritar em mortal desespero a
cada lance sem êxito de seu time. Quase no fim da partida, alguns
guardas são chamados até a residência de Jorginho e, acompanhados
por Cleusa, averiguam o que estaria se passando: “Ele está em surto”,
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afirmava a moradora e ‘rival’ de Jorginho. Este, por sua vez, apenas
pode gritar: “Eu tô esperando o gol!”.
Jorginho, de tão inserido nos fluxos de existência de seu território existencial, uma cidade-estado-país com fanáticos torcedores
de futebol, teve o risco de ser considerado “em surto”, justamente
por alguém que, como ele, já vivera este estrangeiro que é o estar em
surto, estar no fora e ser posto no locus onde o fora deveria ficar: o
lugar do perigoso e sem lógica, levado pela polícia.
Essas relações e vida que viemos até aqui traçando, esboçando,
acontecem onde a vida tem potência de invenção, de criação de
novos territórios existenciais. Exige troca, partilhamento, parceria
“[...] por um cuidado com a vida, intersecção entre saúde, educação
e movimento social [...]” (FAGUNDES, 2009), germinando sempre
em nosso convívio.
Portanto, deparamo-nos com um conjunto de desafios como
estar em processo de invenção permanente de si mesmo, usuários
e serviços. Assim como a intervenção em dois campos indissociáveis, práticas de saúde e as práticas de gestão que são construídas
cotidianamente num residencial terapêutico segundo alguns princípios de trabalho que articulam um certo modo de fazer, de construir
roteiros a partir de caminhos encontrados. Não é suficiente, pois,
neste território, necessitamos de arranjos permanentes de processos
de trabalho.
E, para quem, como os trabalhadores, está em ato frente à
intensidade destas produções, a vida não é fácil nestas paragens.
Cotidianamente, inventam-se e reinventam-se modos de lidar com
a diversidade, com alteridades tão díspares. A necessidade de remexer possibilidades subjetivas de conviver se atualiza constantemente
exigindo reflexão, partilha e o alargamento de nosso olhar. A ebulição destes vizinhares e múltiplas caminhadas forja novas formas de
existência/resistência que deem conta de acomodar a enorme sensação de estar sempre no olho do furacão, de sentir-se a descoberto.
pesquisa e prática nos processos de desinstitucionalização |
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Acreditar nesses projetos, como os de nossos residenciais, significa
construir o sonho e arriscar-se a inúmeros arranhões, deixar-se
sacudir pela vida e ver o que acontece.
Para nos despedirmos destas vizinhanças, faz-se necessário
marcar a imprevisibilidade e o movimento incessante das trocas,
relações e mutações que configuram o tecido social. Em meio a capturas, há resistências, produção ininterrupta de subjetividade, algo
que devemos salientar quando o exercício de desinstitucionalização
da Reforma Psiquiátrica se vê ocorrendo na sociedade, especialmente com aqueles ex-pacientes que já circulam por aí, não ficam
mais restritos a olhares de controle manicomiais. A vida não deixa
de ser sempre outra, trocar, cambiar, expor-se até a outras formas de
controle. Como ensaiamos em todo esse escrito, vizinhar.
Referências
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2000.
CERTEAU, M. A Invenção do Cotidiano: artes de fazer. Petrópolis:
Vozes, 1994.
DELEUZE, G.; PARNET, C. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998.
DERRIDA, J. Anne Dufourmantelle Convida Jacques Derrida a Falar
da Hospitalidade. São Paulo: Escuta, 2003.
FAGUNDES, S. Aula Proferida na Residência Integrada e Curso
de Especialização em Saúde Mental Coletiva. Porto Alegre, 2009.
(Comunicação oral).
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FOUCAULT, M. O Poder Psiquiátrico: curso dado no Collège de France
(1973-4). São Paulo: Martins Fontes, 2006.
______. Em Defesa da Sociedade: curso no Collège de France (1975-6).
São Paulo: Martins Fontes, 1999.
PALOMBINI AL. Vertigens de uma Psicanálise a Céu Aberto: a cidade,
contribuições do acompanhamento terapêutico à clínica na reforma
psiquiátrica. 2007. 247f. Tese (Doutorado em Medicina Social). Rio de
Janeiro: Universidade Estadual do Rio de Janeiro: Instituto de Medicina
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extAction=lnk&exprSearch=449190&indexSearch=ID>. Acessado em: 26
de jun 2009.
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