©2021Gustavo Figueira Andrade; Clarisse Ismério; Maria Medianeira Padoin
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Capa: Dyego Marçal sobre as fotos de Eurico Salis, que cedeu gentilmente as
duas imagens.
Diagramação: Texto e Contexto Editora
Supervisão Editorial: Gustavo Andrade
H673
História de Bagé: novos olhares [livro eletrônico]/ Gustavo
Andrade; Maria Medianeira Padoin; Clarisse Ismério (Org.). Ponta
Grossa: Texto e Contexto, 2021.
490p.; il. E-book - PDF Interativo
ISBN e-book: 978-65-88461-38-9
DOI: 10.54176/RGTM8538
1. Rio Grande do Sul -História. 2. Bagé - História. 3. Bagé
– Patrimônio histórico. 4. Bagé – Memória. 5, Bagé – Colonização. I. Andrade, Gustavo (Org.); II. Padoin, Maria Medianeira
(Org.). III. Ismério, Clarisse (Org.). IV. T.
CDD: 981.65
Ficha Catalográfica Elaborada por Maria Luzia F. B. dos Santos CRB 9/986
Todos os direitos reservados aos organizadores.
*Os textos publicados neste livro são de responsabilidade dos autores.
Texto e Contexto
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CONSELHO EDITORIAL
Presidente:
Dra. Larissa de Cássia Ribeiro Antunes (UEPG)
Membros:
Dr. Fábio Augusto Steyer (UEPG)
Me. Anderson Pedro Laurindo (UTFPR)
Dra Marly Catarina Soares (UEPG)
Dra. Naira de Almeida Nascimento (UTFPR)
Dra Letícia Fraga (UEPG)
Dra. Anna Stegh Camati (UNIANDRADE)
Dr. Evanir Pavloski (UEPG)
Dra. Eunice de Morais (UEPG)
Dra. Joice Beatriz da Costa (UFFS)
Dra. Luana Teixeira Porto (URI)
Dr. César Augusto Queirós (UFAM)
Dr. Valdir Prigol (UFFS)
Dr. Ubirajara Araujo Moreira (UEPG)
Dr. Luís Augusto Fischer (UFRGS)
Dra. Clarisse Ismério (URCAMP)
Dr. Nei Alberto Salles Filho (UEPG)
Dr. Ana Flávia Braun Vieira (UEPG)
SOBRE OS ORGANIZADORES
Gustavo Figueira Andrade – Graduado em História
(Bacharelado) pela Universidade Federal de Pelotas.
Especialista em Ensino Técnico e Profissional (FASEG).
Mestre e Doutor em História pela Universidade Federal
de Santa Maria, nesta última etapa foi Bolsista CAPES/
FAPERGS, com período de Doutorado Sanduíche
(Edital CAPES PDSE 041/2018) na Universidade
Nacional de Mar del Plata. É membro do Grupo de
Pesquisa da UFSM/CNPq História Platina: política,
sociedade e instituições, do Instituto Histórico e
Geográfico de Pelotas e autor de livros.
Clarisse Ismério – Graduada em História pela
PUCRS em 1992 (licenciatura e bacharelado). Em
1995 concluiu o Mestrado e o Doutorado em 1999, no
Programa de Pós-Graduação em História, da PUCRS.
Em 1995 publicou pela Edipucrs o livro ``Mulher: a
Moral e o Imaginário 1889-1930”, que foi reeditado
pela Ediurcamp em 2018. Atualmente é coordenadora
do Curso de História da URCAMP, onde desenvolve
também atividade de professora e pesquisadora. Autora
de livros de educação patrimonial, Sarau Noturno (Chiado, 2016) e Pequenos
Detalhes de Bagé (Ediurcamp,2019). Desenvolveu em 2020 o projeto de pósdoutorado, sob orientação da Profa. Dra. Edla Eggert, no Programa de Pósgraduação em Educação, da PUCRS.
Maria Medianeira Padoin – Professora Titular
do Departamento De História da Universidade
Federal de Santa Maria; Professora do Programa de
Pós-Graduação em História e do Programa de PósGradução em Patrimônio Cultural(Profissional);
Doutora em História pela UFRGS e Mestre em
História Pela UFPR. Coordenadora do Grupo de
Pesquisa CNPq/UFSM História Platina: sociedade,
poder e instituições; Coordenadora do Comitê Acadêmico História, Regiões e
Fronteiras da AUGM (Associação das Universidades do Grupo Montevidéu);
Integra a Cátedra Unesco sediada na UFSM Fronteiras e Migrações. É membro
do Instituto Histórico de São Leopoldo.Possui livros, capítulos de livros,
artigos, trabalhos publicados, bem como coordena projetos de Extensão
pela UFSM. É representante da UFSM na Comissão de Educação, Cultura
e Comunicação do aspirante Geoparque Quarta Colônia junto à UNESCO.
SUMÁRIO
Sumário
6
Introdução....................................................................10
P arte I - P atrImônIo , C ultura
e
S oCIedade
Prefácio.........................................................................16
Preservação da memória documental de bagé.........24
Jorge Alberto Soares Cruz
Luciana Souza de Brito
Maria Medianeira Padoin
A trajetória da documentação
da família silva tavares: do acesso
privado ao público visando a difusão.......................38
Fernanda Kieling Pedrazzi
Gustavo Figueira Andrade
Tipologias e simbolismos do
acervo do cemitério patrimonial
da santa casa de caridade de bagé............................58
Clarisse Ismério
Vila santa thereza:
patrimônio, memória e audiovisual...........................80
Adriana Gonçalves Ferreira
A visualidade da phenix:
fotografia e imprensa ilustrada em bagé...............102
Luísa Kuhl Brasil
Práticas associativas negras em bagé:
imprensa, carnaval e clubes sociais.........................124
Tiago Rosa da Silva
Rafael Rosa da Silva
O instituto municipal de belas artes:
estado do conhecimento e perspectivas
para futuras abordagens...........................................146
Rafael Rodrigues da Silva
Luís Borges dos Santos Júnior
Alessandro Carvalho Bica
As primeiras décadas do século xx:
um balanço sobre a educação republicana
no município de bagé/rs............................................168
Alessandro Carvalho Bica
O “escrínio” de andradina de oliveira
e o protagonismo feminista na
cidade de bagé/rs (1898).............................................192
Clarisse Ismério
Edla Eggert
P arte II - e ConomIa , F ronteIra
e
P olítICa
Prefácio.......................................................................212
Ferrovia na província de São pedro:
o caso da estrada de ferro rio grande – bagé.......222
Maira Eveline Schmitz
A exploração da mão de obra
escrava na pecuária (campanha
Gaúcha, segunda metade do século xix).................242
Marcelo Santos Matheus
Os trabalhadores da charqueada industrial
nos dados da delegacia regional do
trabalho do rio grande do sul...............................260
Aristeu Elisandro Machado Lopes
Elites, família e riqueza na pecuária gaúcha:
o caso dos estancieiros e charqueadores
de bagé (c. 1850-1930)..........................................280
Jonas Moreira Vargas
A família delabary......................................................305
Claudio Antunes Boucinha
O caso dos valdenses: imigração e redes
de relação de uma comundiade italina
protestante a partir da fronteira sul....................332
Arthur Engster Varreira
Os alemães-russos de aceguá:
as migrações dos menonitas......................................350
Carlos Eduardo Piassini
Os “turcos” estão chegando:
os imigrantes sírios e libaneses em bagé.................366
Júlio Bittencourt-Francisco
Uma região em armas: a delimitação
de uma região conformada pela guerra
durante o século xix no espaço platino.................388
Gustavo Figueira Andrade
O general joão nunes da silva tavares e a
cidade de bagé: do contexto da proclamação
da república à revolução federalista.....................410
Gustavo Figueira Andrade
Aristeu Elisandro Machado Lopes
De bagé à europa: os espaços de
circulação de gaspar silveira martins....................432
Monica Rossato
O caudilho e a rainha da fronteira:
apontamentos sobre a relação entre
aparício saraiva e o município de bagé
durante as revoluções de 1896 e 1904.....................456
Pablo Rodrigues Dobke
Por uma história operária de bagé (rs):
associações, imprensa e militância (1889-1930).......474
André Vinicius Mossate Jobim
SUMÁRIO
introdução
10
SUMÁRIO
Introdução
A iniciativa desta obra e sua organização surgiram a partir
de reflexões do historiador Dr. Gustavo Figueira Andrade1 e das
historiadoras Dr.ª Maria Medianeira Padoin2 e Dr.ª Clarisse Ismério3,
que lhes permitiram identificar algumas lacunas na historiografia
sobre a produção do conhecimento acadêmico-científico e de sua
divulgação, acerca da região da Campanha Meridional, especificamente
sobre a cidade de Bagé.
Observaram, também, que apesar de nos últimos anos ter
havido um certo crescimento em relação ao número de pesquisas, no
âmbito acadêmico, que contemplam Bagé e a região da Campanha
Meridional, esses trabalhos ainda não tinham sido divulgados.
Foi com base nessa observação, portanto, que foi idealizada a
proposta de se organizar uma obra que reunisse parte desses estudos
que evidenciam o que vem sendo produzido de novos conhecimentos
e olhares sobre essa história local e regional e, ao mesmo tempo,
valorizasse as instituições bajeenses e as famílias que preservam seus
acervos e, consequentemente, a memória local.
Assim, a ideia da publicação desses escritos foi evoluindo até
que, finalmente, concretizou-se na edição deste livro que possibilitará
à comunidade bajeense (e não só) ter acesso aos resultados dessas
pesquisas, até então desconhecidos, e o retorno de sua atenção para
com a preservação de seu patrimônio histórico, cultural e documental.
1. Mestre e Doutor em História pela Universidade Federal de Santa Maria.
2. Doutora em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; professora Programa
de Pós-Graduação em História da UFSM e do Programa de Pós-Graduação em Patrimônio
Cultural da UFSM.
3. Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; coordenadora do curso de História da Universidade da Região da Campanha.
11
SUMÁRIO
Introdução
Cabe ressaltar que se trata de uma obra que pretende, por
um lado, dar continuidade ao trabalho precursor dos antepassados
que marcaram época e deixaram importantes registros4 sobre a
História de Bagé, a exemplo de Jorge Reis5, Eurico Salis6 e Tarcísio
Antônio Costa Taborda7, até os estudos mais recentes realizados
por pesquisadores locais como: Elizabeth Macedo de Fagundes8,
Mário Nogueira Lopes9, Yara Maria Botelho Vieira e Carlos Fonttes10,
Élida Garcia11, Cláudio Lemieszek12, Carlos Roberto Martins Brasil13,
Cândido Pires de Oliveira14, Eron Vaz Mattos15, Cássio Gomes,
Edgard Lucas16, , Ivan César dos Santos Pinheiro17, Diones Piazer
Franchi18, dentre outros.
4. Registro aqui minha homenagem in memoriam a historiadora, colega e amiga Elaine Maria
Tonini Bastianello, autora do livro: BASTINAELLO, Elaine M. T. A memória retida em
pedra: a história de Bagé inscrita nos monumentos funerários (1858-1950). Santa Maria: Ed. Pallotti, 2016.
5. REIS, Jorge. Homens do Passado. Bagé: URCAMP, 1983
6. SALIS, Eurico J. História de Bagé. Porto Alegre: Globo, 1955. p. 289.
7. TABORDA, Tarcísio. O Sítio de Bagé, 1893-1894. Revista Militar Brasileira. Separata. v.
XCIII, Ano LVI, n.1, jan./mar., 1970.
_______. A Igreja de São Sebastião de Bagé. S/E, Bagé, 1975.
TABORDA, Tarcísio. GARCIA, Élida Hernandes (Org.). Bagé de Ontem e de Hoje. Bagé:
Ed. Ediurcamp, 2015.
8. FAGUNDES, Elizabeth Macedo de. Inventário Cultural de Bagé: um passeio pela história. Bagé: Evangraf, 2005.
9. LOPES, Mario Nogueira. Bagé: fatos e personalidades. Porto Alegre: Evangraf, 2007.
10. FONTTES, Carlos; VIEIRA, Yara Maria Botelho. As estâncias contam história. Bagé.
Santa Maria: Pallotti, 2005.
11. GARCIA, Elida Hernandes. Escritores Bageenses. Bagé: Praça da Matriz, 2006.
12. LEMIESZEK, Cláudio de Leão. Bagé. Relatos de sua história. Porto Alegre: Martins
Livreiro, 2000. LEMIESZEK, Cláudio de Leão; GARCIA, Élida. Guia incompleto das
primazias de Bagé. Bagé: Ediurcamp, 2013.
13. BRASIL, Carlos Roberto Martins. Pioneiros açorianos: notas históricas e genealógicas.
Porto Alegre: Edigal; Renascença, 2009.
14. OLIVEIRA, Cândido Pires de. Alma, Terra e Sangue: fragmentos da história das Palmas.
2. ed. Bagé: S/E, 2011.
15. MATTOS, Eron Vaz. Aqui – Memorial em Olhos D’Agua. Edição do Autor, 2 ed. 2019.
16. LOPES, Cássio Gomes; LUCAS, Edgard Lopes. A Rainha da Fronteira. Fragmentos da
História de Bagé. Santa Maria: Ed. Pallotti, 2015.
17 PINHEIRO, Ivan César dos Santos. Uma breve história do forte Santa Tecla. 1. ed. Bagé:
LEB - Livraria e Editora Bajeense, 2015. v. 1. 92p
18. FRANCHI, Diones Piazer. O ensino de história através da tv e as mídias digitais.
Dissertação (Mestrado Profissional em História). Programa de Pós-Graduação em História
da Universidade Federal do Rio Grande, 2016.
12
SUMÁRIO
Introdução
É importante destacar que o considerável volume de obras
produzidas por esses autores revela o interesse dos bajeenses pela
sua história, pela preservação da memória e da identidade locais.
Além do mais, são trabalhos que constituem referências primordiais
para todos os que procuram realizar pesquisas históricas sobre a vida
cultural, política, social, econômica e política do município de Bagé.
Para a organização do livro, partiu-se da compreensão de que a
História é uma ciência capaz de criar uma orientação cultural da vida
prática humana, estabelecida por problemas e carências de orientação
no presente19. Portanto, não é estática no tempo; foram muitas as
transformações ocorridas e que levaram a renovações teóricometodológicas no âmbito historiográfico. Pode-se falar, também, de
um amadurecimento gradual de ideias que vinham sendo propostas,
anteriormente, novos enfoques de pesquisa histórica, pois, segundo
Christopher Hill, “cada geração formula novas perguntas ao passado
e encontra novas áreas de simpatia à medida que revive distintos
aspectos das experiências de suas predecessoras”20.
Ainda quanto à organização, procurou-se estruturar o livro
em duas partes, por temáticas gerais, sendo a primeira, Patrimônio,
Cultura e Sociedade, e a segunda, Fronteira, Economia e Política,
cada uma delas com um prefácio escrito por dois importantes nomes
bajeenses: Elizabeth Macedo de Fagundes e José Carlos Teixeira
Giorgis, respectivamente.
A obra conta, em sua capa, com fotografia cedida pelo
eminente fotógrafo bajeense Eurico Salis e será composta por
22 capítulos escritos por autores convidados, dentre os quais
historiadores, museólogos ou pesquisadores pertencentes a outras
áreas que possuam estudos que contemplem a cidade de Bagé.
Reunir os estudos em formato de livro propicia o registro e a
relevante contribuição para a historiografia sul-rio-grandense acerca
do estado da arte do quem vem sendo produzido sobre uma cidade e
uma sociedade que ocupou, durante boa parte dos séculos XIX e XX,
posição de vanguarda em diversas áreas do cenário cultural, político,
econômico e social do Rio Grande do Sul e do Brasil.
Esta obra, ao apresentar a diversidade de fontes que vêm sendo
utilizadas pelos pesquisadores, traz aportes para a compreensão
19. RÜSEN, Jörn. Teoria da História: uma teoria da história como ciência. Trad. de Estevão
de Rezende Martins. Curitiba: UFPR, 2015.
20. HILL, Christopher. O mundo de ponta cabeça. São Paulo: Companhia das Letras, 2001,
p.33.
13
SUMÁRIO
Introdução
de uma história que não é apenas local ou nacional, mas também
fortemente vinculada a um espaço fronteiriço platino21, e se
constitui num ponto de referência para os estudos que venham a ser
desenvolvidos e que abranjam esse espaço.
Por fim, este livro demonstra que, para além dos temas
apresentados, existe muito a ser pesquisado e produzido, temáticas
que ainda precisam de estudos que as enfoquem com mais
profundidade. Revela, por outro lado, o enorme potencial do Arquivo
Público Municipal e do Museu Dom Diogo de Souza, instituições
bajeenses que guardam e preservam uma rica variedade de fontes.
Que esta obra seja instigadora de muitas outras iniciativas e
parcerias que promovam pesquisas de qualidade sobre a História de
Bagé e que proporcione espaços para a participação e divulgação de
novos trabalhos. Tenham uma ótima leitura!
Gustavo Figueira Andrade.
Doutor em História pela Universidade Federal de Santa Maria.
21. PADOIN, Maria Medianeira. O federalismo no espaço fronteiriço platino. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1999.
14
SUMÁRIO
15
SUMÁRIO
Parte I
Patrimônio, Cultura e Sociedade
16
SUMÁRIO
Prefácio Parte I
Prefácio
Foi com grande honra que recebi o convite para apresentar
ao leitor esta primeira parte da coletânea de artigos pautados com
o título de Patrimônio, Cultura e Sociedade organizados pelos
Professores Dr. Gustavo Andrade, Dra. Maria Medianeira Padoin e
Dra. Clarisse Ismério. A multiplicidade de olhares é uma característica
importante desta coletânea. Os ensaios tratam de diversos temas
sobre a história de Bagé com contribuições significativas através de
novas abordagens. Os colaboradores, em seus artigos, promovem o
diálogo entre a história das instituições públicas e privadas de Bagé e
a importância e necessidade da preservação documental, debatendo
e estimulando novos saberes.
O desejo de eternizar momentos por meio de algum tipo de
registro sempre ocorreu, em todos os tempos e culturas. A cada
época, a humanidade produziu suas práticas sociais e conservou
suas experiências para transmiti-las a gerações futuras de
diferentes maneiras. Preservar a memória institucional é manter
uma organização sempre viva e com suas bases fortalecidas. Para
que essa memória seja preservada, é preciso conservar fotos,
documentos, objetos e organizar os registros dos fatos. A relação
entre história, memória e patrimônio documental fundamental
para a preservação da identidade do cidadão com suas referências,
além do direito da sociedade de acesso à informação.
Neste contexto, os professores Dr. Jorge Alberto Soares
Cruz, Dra Luciana Souza de Brito e Dra. Maria Medianeira Padoin
descrevem as ações produzidas no projeto História Memória e
Patrimônio I, coordenado pela Dra. Maria Padoin que foi aplicado em
Bagé, em 2017 e que teve como objetivo a difusão de conhecimento
e capacitação para os profissionais das instituições de guarda de
acervos.
17
SUMÁRIO
Prefácio Parte I
Seguindo no mesmo tema abordado, analisamos outro capítulo,
onde os Professores, Dra. Fernanda Pedrazzi e Dr. Gustavo Andrade
nos contam sobre o caminho e destino da documentação da família
Silva Tavares, preservada pelos descendentes há mais de 120 anos. No
ano de 2019 foi realizado um movimento para preservar o acervo da
família Silva Tavares dada a sua importância para a cidade de Bagé.
Os descendentes tiveram a consciência em buscarem nas instituições
públicas de ensino, suporte e informação para organizar o processo
de transferência do privado para o público. A iniciativa de doação de
Yara Maria Botelho Vieira dos documentos para o Arquivo Público
de Bagé foi uma opção por considerar que este espaço de memória
tem condições de inventariar e fazer a manutenção do patrimônio
documental da família.
No conjunto dos saberes e fazeres, a arte nos conta a história
através de diferentes expressões, na arte cemiterial, no teatro, na
imagem, no cinema, na música, na literatura e na poesia.
Na arte cemiterial... A Professora Dra. Clarisse Ismério
viaja no tempo e nos transporta à Idade Média mostrando porque
das localizações dos cemitérios em relação ao espaço urbano e
enfatiza que, com o passar do tempo, os cemitérios perderam o
aspecto “mórbido e desolador”, para se transformarem em locais de
“convivência e sociabilidade”, transformando-se em depositários da
cultura e da memória de uma comunidade. Ela nos leva a vagar pelos
caminhos e passagens do Cemitério da Santa Casa de Caridade de
Bagé e demora-se à frente do Mausoléu de Antônio de Souza Neto
e de João da Silva Tavares e ainda do Jazigo de Francisco Ilarregui e
diante deles, desnuda seus túmulos explicando cada simbologia, cada
alegoria, cada escultura que os adornam. Ela também nos mostra a
influência positivista na arte cemiterial e nos desvenda a presença de
imagens femininas que ornamentam muitos túmulos e mausoléus.
No teatro... A Dra. Clarisse ainda nos presenteia com a
descrição do seu Projeto Cultural, Sarau Noturno – do presencial
ao Virtual, que é fundamentado na metodologia da Educação
Patrimonial e no estímulo da memória social. E´ a arte cênica
contando história, é um teatro que usa como palco as veredas e
vielas do Cemitério e a arte cemiterial, como pano de fundo tentando
recuperar a memória da sociedade e promover o resgate da herança
cultural.
No cinema... A Professora Adriana Gonçalves Ferreira nos coloca
no tempo e no espaço da história de Santa Thereza, desde o surgimento
18
SUMÁRIO
Prefácio Parte I
da Charqueada de Santa Thereza, fundada em 1897, pelo imigrante
português, Antônio Nunes de Ribeiro Magalhães. Localizada em Bagé,
na região do pampa gaúcho, a Vila de Santa Thereza se transformou
no Centro Histórico Vila de Santa Thereza e a Prof. Adriana descreve
o papel da Associação pró Santa Thereza na luta pelo processo de
tombamento e restauração do patrimônio existente.
A produção de um audiovisual é mais uma ferramenta de
preservação da memória e do patrimônio e foi proposto e executado
pela Professora Adriana. Ela dedicou-se a realizar uma investigação
profunda do histórico da Vila de Santa Thereza do ponto de vista,
cultural, artístico, econômico e humano, através de pesquisas,
depoimentos e entrevistas com descendentes do fundador e dos
antigos colaboradores. Ela nos apresenta a Vila de Santa Thereza
através de um documentário no qual, ficará registrado o legado do
seu fundador até a sensibilidade de Ierecê Moglia para imortalizar
este sonho.
Na imagem... A Professora Dra. Luísa Kuhn Brasil nos faz
mergulhar na Revista Phenix, revista ilustrada, que circulou em Bagé
no ano de 1921 e em alguns meses de 1922. Ela nos faz compreender
de que forma a fotografia contribuiu para a construção da “imagem
do individuo no espaço público e as reações deste indivíduo no meio
social no qual ele se coloca”, dando margem a novas possibilidades de
transmissão da informação e de sua interpretação. A revista Phenix foi
o primeiro periódico desta modalidade que surgiu em Bagé. Segundo
a professora Luísa, a imprensa nas primeiras décadas do século XX,
no município, comportava “grandes jornais como O Dever e o Correio
do Sul, porém, não existia ainda um periódico que fosse dedicado a
publicar textos literários, poesias e fotografias sociais”.
O grupo que concebeu a revista era formado por “homens
integrantes das camadas media e alta da sociedade”. Os idealizadores
eram de diferentes áreas do conhecimento: eram médicos, arquitetos,
jornalistas e advogados, mas todos tinham algo em comum, interesse
nos aspectos culturais, intelectuais e “mundanos”.
Na literatura... Nos deparamos com este curioso e instigante
capítulo, onde as Professoras, Dra. Clarisse Ismério e Dra. Edla Eggert
nos contam a história e as idéias de Andradina de Oliveira, uma mulher
inspiradora de diversificados predicados que se impôs e ousou superar
as dificuldades colocadas à uma mulher, na sua época. A história de
Andradina, de acordo com as autoras, é a história de uma mulher
que no final do século XIX e começo do século XX, viúva, mãe de
19
SUMÁRIO
Prefácio Parte I
dois filhos, buscou o sustento de sua família na sua “intelectualidade
e surgiu como cronista, romancista, poeta e dramaturga.” Foi uma
representante do sexo feminino, que mesmo em terras tão distantes
das metrópoles culturais do país, acompanhou a chamada primeira
onda feminista que acontecia na Europa e Estados Unidos. Havia
neste momento, uma discussão do papel da mulher dentro do espaço
privado chamando a figura feminina de “a rainha do lar”, e a tendência
marcante das mulheres na ocupação do espaço público.
O período que Andradina viveu em Bagé ela criou seu próprio
jornal, O Escrínio que circulou de 1898 até 1910. O jornal guardou no
seu conteúdo a luta pela igualdade entre homens e mulheres, pela
valorização do ensino e pelo estímulo a capacitação do sexo feminino
para o mercado de trabalho.
Na música ... Entre notas e acordes despertava Bagé, em
1904, para o estudo e aprendizado da música. Bem absorvida pela
comunidade e sendo o quarto conservatório musical do país, foi
fácil sua histórica trajetória, tendo a instituição recebido diversos
nomes até a denominação atual de Instituto Musical de Belas Artes
Rita Jobim de Vasconcellos.
Os docentes, Prof. Dr. Rafael Rodrigues da Silva, Prof.
Luis Borges dos Santos e Prof. Dr. Alessandro Carvalho Bica, nos
apresentam a motivação, a evolução e a descrição dos envolvidos em
todo o processo que criou o IMBA. O trabalho também nos mostra
o alinhamento da criação do Instituto com as políticas estaduais
do Partido Republicano, que na época, administrava, tanto na
esfera estadual quanto municipal. E´ relatado, além do histórico da
instituição a biografia de alguns que se dedicaram ao longo dos anos
ao ensino da música em Bagé. Eles concluem o trabalho dizendo que
a história do IMBA nesses 100 anos de existência está “entrelaçada”
com a história de Bagé e intimamente ligado a disputas políticas
e ideológicas ao longo dos anos. Reforçam ainda, que considerar
neste ambiente, um “olhar” atento a esse grupo de pessoas, amantes
e incentivadoras da música, que lutaram durante décadas para a
manutenção e sobrevivência do IMBA podem nos transparecer muito
sobre a sociedade de Bagé.
Seguindo a leitura dos capítulos, eles nos fazem refletir sobre os
diferentes olhares e as distintas atitudes tomadas pelos personagens
da história, os Professores Tiago Rosa da Silva e Rafael Rosa da
Silva, nos oportunizam conhecer o surgimento das associações
negras no período pós-abolição em que a libertação escravagista
20
SUMÁRIO
Prefácio Parte I
teria apenas alavancado o preconceito contra a raça negra de forma
que eles continuaram a ser segregados e marginalizados diante da
sociedade branca e elitista do século XIX. Isto aconteceu em todo
o Brasil. Em Bagé não foi diferente. Não contavam com os mesmos
direitos sociais e econômicos que os brancos; não podiam usufruir
dos mesmos lugares e ambientes ainda que fossem públicos. A falta
de acesso à educação foi fundamental para manter esse grupo sem
oportunidades para melhorar sua vida. O descaso e o desmerecimento
os eliminavam de qualquer circunstância favorável de evolução
socioeconômica e humana, e isso se estendeu por décadas sem que
eles pudessem encontrar um caminho que os colocassem em frente
aos seus direitos, que, na verdade, deveriam ter sido normalizados
após a abolição.
Os autores ainda nos chamam a atenção que mesmo havendo
uma significativa presença negra, na cidade de Bagé no século XIX e
princípios do século XX, os escritores e historiadores locais relataram
a história da cidade pautado na liderança de homens brancos e
ignoraram as experiências negras na região, tanto no período préabolição quando no período pós-abolição. Também nos dão ciência
que mesmo com todas estas dificuldades havia uma comunidade
negra que buscou construir espaços próprios, através da Imprensa,
dos festejos carnavalescos e dos Clubes Sociais. Ao fazerem um
levantamento dos jornais da Imprensa Negra nos arquivos do Museu
Dom Diogo de Souza (Bagé), bem como no acervo do Museu José
Hipólito da Costa (Porto Alegre), eles encontraram 13 exemplares,
tendo o primeiro iniciado sua circulação do ano de 1913 e o ultimo,
no ano de 1952.
As Associações Negras para os festejos carnavalescos
começaram a serem encontradas a partir dos anos 30 e 40 e muitas
delas cumprem até hoje o seu papel. Como exemplo relatam a história
do Bloco Carnavalesco Os Zíngaros, do final da década de 30, que
não restringiu sua atuação somente ao período do carnaval e passou
a proporcionar lazer e recreação para seus sócios durante o ano todo.
Foi a partir de 1944 que foi fundado por onze trabalhadores negros
de Bagé a Sociedade Recreativa Os Zíngaros, presente ativamente
até os dias atuais.
Para concluir essa primeira parte da coletânea, o Professor
Alessandro Bica nos alcança mais uma pesquisa detalhada e
esclarecedora sobre a Educação em Bagé nas primeiras décadas do
século XX. Ele nos mostra as influências positivistas na escola e no
ensino público, e o quanto era significante esta interferência como
21
SUMÁRIO
Prefácio Parte I
estratégia exitosa do projeto político republicano. Ele analisa as
políticas públicas na área da educação nas administrações de Lúcio
Figueiredo Teixeira, José Octavio Gonçalves e Tupy Silveira, todos do
Partido Republicano, até meados dos anos 20. Nos relata a situação,
tanto da educação pública como da educação privada no Município
de Bagé, nestes três governos. O professor Bica termina seu capítulo,
minuciosamente exposto, abrindo o campo das possibilidades “de
novas e futuras leituras que possam ser construídas a partir dos dados
encontrados sobre estas Instituições Escolares nas primeiras décadas
do século”.
Finalizo este prefacio, com muita satisfação, por ter acrescido
na minha bagagem de conhecimento novas informações sobre a
história de Bagé e também por reconhecer que a interpretação
dos fatos, sempre baseados em conhecimento aprofundado nos
faz compreender a história através de um olhar mais dilatado e
questionador.
Obrigada por esta oportunidade! Boa leitura
Elizabeth Macedo de Fagundes
22
SUMÁRIO
Prefácio Parte I
23
SUMÁRIO
Prefácio Parte I
PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA
DOCUMENTAL DE BAGÉ
Jorge Alberto Soares 1
Luciana Souza Brito 2
Maria Medianeira Padoin 3
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SUMÁRIO
Preservação da memória documental de Bagé
Jorge Alberto Soares Cruz1
Luciana Souza de Brito2
Maria Medianeira Padoin3
Introdução
A proposta desta pesquisa tem por motivação apresentar
elementos que permitam resgatar ações que foram desenvolvidas
com vistas a preservação da memória documental da cidade de
Bagé. Nesse contexto, buscou-se de forma preliminar realizar um
levantamento acerca do quantitativo de instituições de custódia de
acervos presentes na cidade, tendo em vista uma consulta realizada
de forma on line.
A partir da consulta realizada, conseguiu-se perceber que a
memória documental da cidade de Bagé, constituída por documentos
textuais, iconográficos, sonoros, etc. está presente em diferentes
instituições de custódia (públicas e privadas).
Além disso, destaca-se que estas instituições de custódia
desempenham um importante papel na construção da memória e
identidade local. E, para tanto, faz-se necessário adotar critérios
específicos para gestão e preservação desses acervos, que tem na
área de Arquivologia uma base para o desenvolvimento de ações
que permitam sua preservação e manutenção a longo prazo.
1. Doutor em História e professor do curso de Arquivologia da Universidade Federal de Santa
Maria (UFSM).e do Programa de Pós-graduação em Patrimônio Cultural/UFSM.
2. Doutora em História e professora do curso de Arquivologia da Universidade Federal do Rio
Grande (FURG).
3. Doutora em História, professora do curso de História da Universidade Federal de Santa
Maria (UFSM).
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SUMÁRIO
Preservação da memória documental de Bagé
Nesse sentido, a realização de atividades de capacitação com
servidores e responsáveis pelas instituições de custódia dos acervos,
por meio de uma parceria destas com a UFSM, é uma forma de
promover ações com vistas ao melhor gerenciamento e salvaguarda
destes acervos, na medida em que disponibilizam um espaço para o
diálogo e a troca de experiências e conhecimento.
Assim, o projeto “História, Memória e Patrimônio I”,
coordenado pela Profª. Maria Medianeira Padoin, foi uma iniciativa
pioneira nesse sentido, pois agrupou diferentes profissionais da
área de História e Arquivologia, para que em conjunto, pudessem
promover palestras e cursos visando a disseminação de pesquisas
em andamento na Universidade Federal de Santa Maria - UFSM
com temáticas inerentes a região e município de Bagé, mas também
com a finalidade de dar orientações sobre como proceder no tocante
ao tratamento dos acervos documentais presentes nas diferentes
instituições de custódia de Bagé.
Diante do exposto, este artigo discorre sobre as ações
promovidas pelo projeto no município de Bagé, especificamente
aquelas inerentes à gestão e tratamento dos acervos documentais,
por meio da realização de palestras e cursos.
A cidade de Bagé e instituições de custódia de
acervos
A cidade de Bagé, conforme dados do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística - IBGE (2021), tem uma área territorial
de 4.090.360 km2, e uma população estimada em 121.335 pessoas.
Considerando esse território e população, o município apresenta
um quantitativo particularmente pequeno de instituições que têm
por função a custódia e a preservação de documentos e informações
sobre a história e a memória bajeense.
Entende-se que a valorização e a preservação da história e
da memória bajeense é importante para que se possa compreender
aspectos de estruturação e desenvolvimento da comunidade local.
Assim, faz-se necessário conceber as fontes documentais enquanto
um patrimônio coletivo de uma sociedade, que integra sua herança
fundamental e preciosa, tanto do passado quanto para o futuro, pois
são garantias da memória e da manutenção do sentido de existência/
identidade/ desta sociedade. Sendo assim, torna-se necessário a
integração entre as instituições que detêm acervos arquivísticos com
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SUMÁRIO
Preservação da memória documental de Bagé
os pesquisadores e os cidadãos comuns que precisam se identificar
com os acervos existentes.
Nesse contexto, é relevante destacar o quantitativo
atual de instituições com capacidade de rememorar a história
existentes na cidade de Bagé e que possuem como propósito a
custódia e manutenção de acervos (documentais, iconográficos,
bibliográficos, objetos museológicos, dentre outros). Estes locais
devem ser considerados como lugares de memória da população
e do município. Em relação a estes lugares de memória, O
Historiador francês Pierre Nora coloca:
Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento
que não há memórias espontâneas, que é preciso criar
arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar
celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas
(...). Criar museus, arquivos, cemitérios, coleções, festas
aniversários, tratados processos verbais, monumentos,
santuário, associações, são marcos testemunhas de uma
outra era, das ilusões de eternidade (NORA, 1993, p.13).
Sendo assim, a valorização destes espaços de memória e
o surgimento de novos temas de estudo na área de história têm
proporcionado o desenvolvimento de trabalhos científicos em
arquivos, centros de memória e centros de documentação4.
Após a realização de um levantamento na internet5, constatouse que as instituições que tem desenvolvido atividades de espaço
de guarda de memória no município de Bagé (de forma pública
e privada) são: Museu Dom Diogo de Souza, Museu da Gravura
Brasileira, Arquivo Público Municipal Tarcísio Taborda6, Biblioteca
Municipal Dr. Otávio Santos, Biblioteca Central da URCAMP.
Além dessas instituições tem-se também os acervos
documentais presentes em instituições públicas referentes à sua área
específica de atuação, como a Câmara de Vereadores Municipal, a
Prefeitura Municipal, a Justiça Federal, o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística, dentre outros, que no desempenho cotidiano
de suas ações produzem documentos, que após terem cumprido sua
4. Segundo Marilena Leite Paes (2002, p. 20) “a finalidade dos centros de documentação são
idênticos aos dos arquivos, ou seja constituem-se em base do conhecimento da história e
tem como função tornar disponíveis as informações contidas no acervo documental sob
sua guarda”.
5. Pesquisa realiada em Março de 2021.
6. O arquivo possui sua sede em um prédio que pertenceu a uma antiga cooperativa de Lãs o
que tem colaborado com uma melhor efetividade na preservação dos documentos, principalmente em relação a umidade do meio ambiente.
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SUMÁRIO
Preservação da memória documental de Bagé
função inicial e avaliados podem ser considerados como de guarda
permanente, e portanto, parte da memória bajeense por registrar
fatos, ações e situações que contribuem para o fazer historiográfico
preservando e valorizando a identidade do município. Neste sentido
a historiadora Arlete Farge (2009) afirma que é nos arquivos onde
podemos encontrar alguns momentos da vida de personagens comuns
que possuem o potencial de ligar o passado ao presente, através do
trabalho dos historiadores.
Ainda sobre os locais de custódia dos acervos documentais,
ressalta-se a fala de Maia e Cordeiro (2008, p. 64), em que
Historiadores e arquivistas de maneira geral estão convencidos de que os melhores lugares para a preservação
da memória, principalmente do documento histórico,
ou seja, de caráter permanente são os locais especializados, com arquitetura adequada e pessoal qualificado,
é o caso dos Arquivos, Centros de Documentação, Museus e Bibliotecas. Esses órgãos denominados de “documentação” possuem papéis e funções diferenciadas e
típicas de cada um.
Ao observar a realidade de Bagé, percebe-se que a custódia dos
acervos documentais que contêm importantes informações sobre
sua história e memória é realizada pelo conjunto de instituições
destacadas por Maia e Cordeiro (2008), com exceção dos Centros
de Documentação que não foram identificados no levantamento
realizado no município.
Ademais, enquanto aparatos culturais tais instituições (arquivos,
bibliotecas e museus) são essenciais para a preservação da memória
bajeense
Entretanto, os autores Varela e Barbosa (2013) destacam que estas
instituições têm uma função maior. Assim, para os referidos autores,
Arquivos, bibliotecas e museus são no imaginário da sociedade, aparatos com a missão de preservar, para todo
o sempre, a cultura acumulada pela humanidade, sendo, pois, templos de contemplação. E, verdadeiramente, o são, mas não só. Como canais de comunicação do
conhecimento, passado e presente, estas organizações
têm a obrigação de transcender esta imagem estática,
deixando transparecer, para seus usuários e visitantes, o
significado de seu conteúdo na construção da sociedade
contemporânea. (VARELA; BARBOSA, 2013, p. 339 grifo
nosso).
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SUMÁRIO
Preservação da memória documental de Bagé
Portanto, é com base nos documentos e informações presentes
nos arquivos, bibliotecas e museus que a história e memória bajeense
pode ser construída, interpretada e difundida.
Nesse sentido, é relevante evidenciar as ações que foram
desenvolvidas para contribuir na gestão e preservação dos acervos
documentais do município, em que se destaca a atividade desenvolvida
por meio de uma parceria entre a Universidade Federal de Santa
Maria (curso de História e Arquivologia), e algumas instituições de
custódia local.
Ações desenvolvidas por meio do projeto
“História, Memória e Patrimônio I”
Tendo em vista o desenvolvimento de ações que pudessem
promover a conscientização da importância da história local e a
gestão e preservação dos acervos documentais de Bagé, foi realizado
um projeto junto com o Arquivo Público Municipal, Museu dom
Diogo de Souza (de Bagé) e a Universidade da Região da Campanha
– URCAMP, em que foram organizados ações de extensão que
envolveram docentes dos cursos de História e Arquivologia da
Universidade Federal de Santa Maria – UFSM e alunos do Programa
de Pós-Graduação em História – PPGH da mesma instituição.
Nesse processo, tinha-se como propósito que esses profissionais,
a partir de sua formação e temas de pesquisas, pudessem contribuir
na capacitação continuada dos profissionais que atuavam na área
de patrimônio (públicos e privados) e da história, promovendo uma
atualização de conhecimentos para a gestão e preservação de acervos
e espaços de memória na cidade..
Diante deste cenário, foram feitas reuniões de trabalho o que
culminou com a realização de um ciclo de palestras e posteriormente
a realização de cursos, que envolveram atividades teóricas e práticas
destinadas aos colaboradores do Arquivo Municipal, do Museu Dom
Diogo de Souza7 e do Arquivo da Cidade de Dom Pedrito .
Especificamente no que se refere ao ciclo de palestras, buscouse demonstrar os resultados de pesquisas vinculadas ao PPGH em
que foram utilizados acervos da região, bem como aqueles trabalhos
desenvolvidos com temáticas que envolveram este espaço fronteiriço,
procurando dar um retorno para a comunidade, e ao mesmo tempo
7. Vinculado à URCAMP.
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SUMÁRIO
Preservação da memória documental de Bagé
demonstrando a relevância da preservação dos mais diversos acervos
e da importância de uma política de investimento na área de cultura,
identidade, memória e patrimônio (CRUZ, BRITO, PADOIN, 2018).
Sendo assim, no Ciclo de Palestras os Professores Jorge Alberto
Soares Cruz (UFSM/PPGH) e Luciana Souza de Brito (UFSM/PPGH
e FURG) abordaram o tema referente à “Preservação da memória
documental e a pesquisa em História”. A coordenadora do Projeto, a
Professora Maria Medianeira Padoin e o Doutorando Carlos Piassini
(UFSM/PPGH) realizaram a palestra intitulada: “A Revolução
Farroupilha e a Imigração: uma contextualização histórica do espaço
platino”. Na sequência o Historiador Bageense e doutorando em
História, Gustavo Andrade (UFSM/PPGH) e o doutorando Pablo
Dobke (UFSM/PPGH) abordaram o tema “Revolução Federalista”.
Encerrando o ciclo de Palestras, as doutorandas Monica Rossato e
Naiani Machado da Silva abordaram o tema referente ao senador do
império “Gaspar Silveira Martins”.
As ações realizadas no âmbito do projeto “História, Memória
e Patrimônio I”, sob coordenação da Profa. Dra. Maria Medianeira
Padoin da UFSM8, foram realizadas com o apoio da Fundação Áttila
Taborda/Universidade da Região da Campanha/ Museu Dom Diogo
de Souza e PROIPPEX (Pró-reitoria de Inovação
Pós-graduação Pesquisa e Extensão da URCAMP/Bagé).
Também participam na organização dos eventos propostos por este
projeto a Prefeitura Municipal de Bagé, e Arquivo Público Municipal
da mesma cidade.
Estas instituições foram responsáveis pela organização junto
com a UFSM além de participarem do curso e ciclo de palestras. O
local de realização das etapas do curso e ciclo de palestras foram
realizados nas dependências do Museu Dom Diogo de Souza (que é
administrado pela Fundação e vinculado à URCAMP de Bagé).
O projeto foi concebido tendo etapas de trabalho integradas,
as quais centraram-se no desenvolvimento de um curso e ciclo de
palestras em três módulos, que integraram um curso de capacitação
para, os colaboradores que atuam no Arquivo Municipal e nas
Secretarias do Município, bem como colaboradores que atuam no
Museu Dom Diogo de Souza, e pessoas da comunidade que trabalham
ou se interessam pela área de preservação da identidade, memória e
do patrimônio documental.
8. Tendo como vice-coordenador o Professor Me. Jorge Alberto Soares Cruz do Departamento de Arquivologia da UFSM.
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SUMÁRIO
Preservação da memória documental de Bagé
Os Ciclos de Palestras, foram realizados em 2017, em parceria
com tais órgãos/instituições e também com a URCAMP e Fundação
Atila Taborda, de forma aberta ao público, incentivando a participação
de professores, alunos tanto do ensino básico como superior, além
de interessados em geral, tendo sido utilizadas as dependências do
Museu Dom Diogo de Souza para a realização do mesmo.
As atividades estruturaram-se da seguinte forma: na primeira
semana de agosto de 2017 foi realizado o primeiro módulo do curso,
intitulado: “O Passado e o Presente nos Arquivos Municipais: O
papel dos arquivos municipais na construção e preservação de uma
memória e identidade regional”. Este módulo foi ministrado pelos
Professores Maria Medianeira Padoin (UFSM), Jorge Alberto Cruz
(UFSM) e Luciana Souza Brito (FURG). O tema do módulo levou
em consideração a realidade brasileira, sendo que o Brasil possui na
atualidade 5.570 municípios os quais devem atender as demandas da
Lei nº. 12.527/2011 - Lei de Acesso à Informação (LAI). No contexto
desta Lei, o Conselho Nacional de Arquivos (CONARQ) e o Arquivo
Nacional tem incentivando prefeitos e presidentes de Câmaras de
Vereadores para que sejam criados arquivos municipais, com a função
de custodiar e disponibilizar informações ao cidadão, favorecendo
o exercício pleno da cidadania e a preservação da memória, da
identidade e do patrimônio documental dos municípios. Diante
deste cenário podemos afirmar que o município de Bagé, por ter
um arquivo municipal, possui uma realidade um pouco diferente da
maioria dos municípios brasileiros.
A Lei 12527\2011 preconiza o acesso à informação objetivando
harmonizar e aprimorar o atendimento aos cidadãos e pesquisadores,
o qual buscam nos acervos documentais municipais informações de
que necessitam evitando o obscurantismo de informações públicas.
Ademais, não podemos esquecer que é nos municípios onde ocorre
a maior contato entre os cidadãos e o poder público o que facilita
a reivindicação e a elaboração de políticas públicas que favoreçam
a maioria da população. Sendo assim, o direito às informações é
um preceito estabelecido na constituição de 1988 e que pode ser
equiparado ao direito à alimentação, segurança, saúde, moradia e à
educação. Sendo assim, uma população bem informada possui maior
capacidade de discernir e reivindicar seus direitos junto aos gestores
e órgãos públicos.
Para a organização dos acervos documentais no âmbito da
cidade de Bagé, tendo como base a legislação vigente, devemos
considerar alguns preceitos no campo da teoria Arquivística. Neste
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SUMÁRIO
Preservação da memória documental de Bagé
cenário torna-se pertinente abordar conceitos que envolvam as sete
funções arquivísticas propostas por Rousseau e Couture (1998),
que podem ser identificadas como: criação e produção, aquisição,
avaliação, descrição, referência e difusão, preservação. A seguir
conceitua-se cada uma das funções arquivísticas para um melhor
entendimento do tema.
A função de criação e produção objetiva o controle da criação
dos documentos e informações na sua origem, pois a partir desta
função há uma significativa contribuição da eficiência administrativa
que visa evitar a duplicação de documentos e de informações. A
aquisição, segunda função apresentada por Rousseau e Couture
(1998) pode ser definida como a entrada de documentos nos arquivos
que pode ser por doação, transferência ou recolhimento. Neste
sentido o Dicionário de Terminologia Arquivística (DTA) resume
a aquisição como “ação formal em que se funda a transmissão de
propriedade de documentos e arquivos” (CAMARGO; BELLOTTO,
1996, p. 4).
A classificação, atividade essencial para a gestão de acervos
documentais, refere-se a “Organização dos documentos de um arquivo ou
coleção, de acordo com um plano de classificação, código de classificação
ou quadro de arranjo” (ARQUIVO NACIONAL, 2005, p. 48).
Já a avaliação é entendida como um processo que compreende
a análise de documentos onde é atribuída a destinação final, apoiado
em valores que lhes são atribuídos de acordo com uma tabela de
temporalidade de documentos (eliminação ou guarda permanente).
A partir desta função muitos documentos, devido sua importância
histórica, patrimonial e administrativa, passam a formar o patrimônio
documental de uma pessoa ou instituição.
A função de descrição corresponde ao conjunto de
procedimentos que leva em conta os elementos formais e de conteúdo
dos documentos que proporcionam a elaboração de instrumentos
que auxiliarão os pesquisadores nas consultas aos acervos (ARQUIVO
NACIONAL, 2005). Após a realização da descrição de documentos
as funções de referência e difusão serão ferramentas que auxiliarão
na divulgação de documentos e informações existentes no acervo do
arquivo ou centro de documentação.
Por fim, a função de preservação compreende um conjunto
de medidas de ordem estratégica, política e operacional com vistas
a manutenção da integridade dos conjuntos documentais, entre
as quais encontram-se atividades de conservação preventiva dos
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SUMÁRIO
Preservação da memória documental de Bagé
acervos, o que transforma o arquivo em um lugar de história e de
memórias coletivas e individuais, preservando vestígios e fatos de
elementos identitários e culturais, algumas vezes esquecidos, de
diferentes grupos humanos.
Assim, no âmbito do desenvolvimento do curso, buscouse promover uma discussão teórica e metodológica acerca da
importância dos arquivos municipais na construção e preservação
da cultura, memória e identidade regional. Sendo assim, foram
desenvolvidas atividades com o uso de material expositivo e
mediações com a comunidade.
A abertura deste módulo coube a Profa. Maria Medianeira
Padoin (UFSM/PPGH) sendo o mesmo ministrado pelos: Prof. Jorge
Alberto Soares Cruz e Profa. Luciana Souza de Brito, os quais na época
de realização das atividades estavam regularmente matriculados
como alunos do Programa de Pós-Graduação em História da UFSM
em nível de doutoramento.
O segundo módulo do curso, intitulado “Estratégias de
Preservação de documentos digitais e higienização de documentos
textuais”, ocorreu no dia 15 de setembro de 2017. Assim, no período
da manhã foram discutidas estratégias de preservação de documentos
digitais, sob responsabilidade do Prof. Jorge Alberto Soares Cruz
(UFSM/PPGH).
No período da tarde realizou-se ações teórico práticas
de higienização mecânica de documentos textuais e volumes
encadernados, sendo ministrada pela Profa. Dra. Luciana Souza de
Brito (UFSM/PPGH e FURG). A higienização mecânica é aplicada
com o objetivo de retirar as partículas de poeira, incrustações, e
outros depósitos da superfície do acervo, atividade que promove a
conservação dos documentos a longo prazo, pois sujidades são um
agente de degradação de acervos documentais em qualquer suporte.
Nesse contexto, para o desenvolvimento desta atividade a
Direção do Museu Dom Diogo de Souza disponibilizou um ambiente
equipado com mesas de trabalho com capacidade para comportar
a quantidade de participantes inscritos para desenvolvimento das
ações práticas.
Destaca-se ainda que os recursos materiais necessários à atividade
prática, tais como trinchas, pós de borracha ralada e equipamentos de
proteção individual (luvas, máscara, jaleco), foram disponibilizados
pela equipe do projeto de extensão. Já os documentos utilizados na
atividade foram levados pelos próprios participantes do curso.
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SUMÁRIO
Preservação da memória documental de Bagé
Diante do exposto, entende-se as ações realizadas no âmbito
do projeto de extensão, configuraram-se como uma oportunidade
de relacionamento entre a teoria e a prática profissional, pois
promoveram a interdisciplinaridade entre diferentes áreas do
conhecimento (Arquivologia e História), junto a comunidade de
Bagé, especificamente no que tange ao desenvolvimento de ações
com vistas à discussão e preservação do patrimônio histórico cultural
presente na cidade e custodiado por diferentes instituições.
Buscou-se com esse projeto contribuir na gestão e nas políticas
públicas para a gestão e a preservação da memória, identidade e
do patrimônio histórico e cultural da cidade de Bagé, criando um
espaço de atuação para alunos e professores para divulgarem os
resultados de suas pesquisas construídos na Universidade Pública e
também na integração e aprendizado com a comunidade e os seus
representantes (CRUZ, BRITO, PADOIN, 2018).
Considerações finais
Este texto teve como objetivos publicizar ações que foram
desenvolvidas no município de Bagé, no contexto do projeto
“História, Memória e Patrimônio I”, coordenado pela Profa. Maria
Medianeira Padoin, do Departamento de História da UFSM, com vicecoordenação do professor Jorge Alberto Soares Cruz, do Departamento
de Arquivologia da mesma instituição. No contexto do projeto
elaborou-se ações que visavam a valorização do patrimônio histórico
e documental da cidade de Bagé. Neste cenário, professores dos
cursos de História e Arquivologia da UFSM e de alunos do Programa
de Pós-graduação em História UFSM tiveram uma importância
fundamental no processo para valorizar e preservar a memória e a
identidade regional, através da divulgação do patrimônio histórico e
documental Bageense.
Nesse contexto, constata-se a necessidade da elaboração de
políticas públicas que visem a criação, manutenção e organização
dos arquivos municipais, que são locais de memória e história dos
municípios. Estes locais possibilitam aos pesquisadores o acesso às
fontes documentais, que muitas vezes são fragmentos de informações
que obrigam os pesquisadores a trabalharem como arqueólogos
reconstruindo a história, a partir de partículas de informações
encontradas nos acervos documentais. Assim, ao observar a realidade
da cidade de Bagé percebe-se que um primeiro passo já foi dado, pois a
mesma dispõe de um arquivo municipal implementado formalmente,
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SUMÁRIO
Preservação da memória documental de Bagé
o qual custodia diferentes acervos documentais, públicos e privados.
Nesse sentido, faz-se necessário a manutenção constante das rotinas
de preservação e conservação do acervo, mas fundamentalmente
ações de gestão e tratamento do mesmo visando a aplicação das sete
funções arquivísticas definidas por Rousseau e Couture (1998), para
que os documentos possam estar acessíveis à consulta dos cidadãos.
Além disso, o acesso à informação é um direito estabelecido na
Carta Constitucional de 1988 e regulamentado pela Lei de Acesso à
Informação (LAI) Lei 12.527\2011, e que para ser cumprido necessita que
os acervos documentais estejam devidamente classificados, avaliados e
descritos visando o acesso rápido à informação neles contida.
Diante do exposto, a temática das palestras e dos cursos
estavam alicerçadas nas afinidades existentes entre documento,
memória, identidade, preservação e informação relacionados às
funções arquivísticas e a produção documental, buscando fornecer aos
participantes da atividade subsídios para o tratamento dos documentos
presentes nas diferentes instituições de custódia da cidade, mas
principalmente promovendo uma sensibilização para a necessidade de
uma gestão adequada dos arquivos no município de Bagé.
A disseminação das ações realizadas no âmbito do projeto, a
partir dessa publicação é uma forma de manter o registro daquilo
que foi realizado, mas principalmente, de fomentar que essas
ações iniciais venham a ter uma continuidade, pois um primeiro
passo já foi dado. Sendo assim, ressalta-se que a construção e
disseminação do conhecimento produzido nas pesquisas realizadas
com temáticas que envolvem Bagé no âmbito da UFSM é uma forma
de dar um retorno à sociedade das ações que são elaboradas por
esta instituição pública. Além disso, a UFSM também se coloca à
disposição da comunidade quando desenvolve ações de extensão,
como o projeto “História, Memória e Patrimônio I”, colaborando
para a modificação de uma realidade local a partir da contribuição de
professores e alunos de seu quadro, atuando de forma significativa
para cumprir as suas funções de ensino, pesquisa e extensão.
Referências
ARQUIVO NACIONAL. Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005.
CAMARGO, Ana Maria de Almeida; BELLOTTO, Heloisa. Dicionário de
Terminologia Arquivistica. Associação dos Arquivistas Brasileiros, 1996.
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SUMÁRIO
Preservação da memória documental de Bagé
CRUZ, Jorge Alberto Soares.; BRITO, Luciana Souza de; PADOIN, Maria
Medianeira. História e Memória de Bagé: Intersecções entre o Programa de
Pós-Graduação em História da UFSM, o Arquivo Público Municipal e Museu
Dom Diogo de Souza. In: Revista do CEPA. v. 37, n. 49, 2018. p. 34-52. Disponível em: < https://online.unisc.br/seer/index.php/cepa/article/view/12703
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INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Cidades e Estados. Bagé. 2021. Disponível em: < https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/rs/bage.html >. Acesso em: 20 fev. 2021.
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Arquivos, Bibliotecas e Museus: realidades de Portugal e Brasil, Salvador:
EDUFBA, 2013. p. 339-374.
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SUMÁRIO
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SUMÁRIO
A TRAJETÓRIA DA DOCUMENTAÇÃO
DA FAMÍLIA SILVA TAVARES:
DO ACESSO PRIVADO AO
PÚBLICO VISANDO A DIFUSÃO
Fernanda Kieling Pedrazzi 1
Gustavo Figueira Andrade 2
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SUMÁRIO
A trajetória da documentação da família Silva Tavares:
do acesso privado ao público visando a difusão
1
2
Introdução
Um dos objetos possíveis da arquivística, quando esta é tomada
como ciência, é o arquivo, ou seja, “os conjuntos documentais
produzidos /recebidos /acumulados pelas entidades públicas ou
privadas no exercício de suas funções” (BELLOTTO, 2002, p. 5).
Nesta perspectiva, há duas categorias básicas de arquivos: os públicos
e os privados. Dentre estes últimos, os de direito privado, para
além das entidades, “há também os arquivos familiares e pessoais”
(BELLOTTO, 2002, p. 28).
O acervo documental privado pertencente à família Silva
Tavares está há mais de 120 anos preservado por seus descendentes,
composto por uma diversidade de materiais que datam do desde
o século XVIII. O acervo contém relatos de momentos decisivos e
complexos da história do Brasil e do Rio Grande do Sul, tais como,
a Revolução Farroupilha (1835-1845), Guerra de 1851, contra Oribe e
Rosas, as campanhas de intervenção no Uruguai de 1864, a Guerra
do Paraguai (1864-1870), passando pela Revolução Federalista (18911896)3, a pacificação e o Partido Federalista no pós-conflito. Os
arquivos de família “são riquíssimos repositórios da memória (...)
‘moram’ testemunhos das vivências das famílias, dos contextos
sociais nos quais se incluíram, dos episódios políticos aos quais
assistiram, das terras onde viveram” (ROSA; NÓVOA, 2014, p. 10).
1. Doutora em Letras pela Universidade Federal de Santa Maria.
2. Doutor em História pela Universidade Federal de Santa Maria.
3 Sobre uma nova cronologia acerca da Revolução Federalista ver: ANDRADE, Gustavo.
Fronteira e territorialização: uma cartografia da Revolução Federalista (1891-1896) a partir
das redes de relações de poder da família Silva Tavares na região platina. Tese (Doutorado
em História). Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa
Maria, 2021.
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SUMÁRIO
A trajetória da documentação da família Silva Tavares:
do acesso privado ao público visando a difusão
No ano de 2019 foi realizado um movimento que desejava,
antes de tudo, a preservação da memória da documentação da
tradicional família Silva Tavares dada a sua importância para a cidade
de Bagé (RS). Esta ação teve a participação de docentes e discentes
de universidades gaúchas. Considera-se que a documentação em
questão é parte do patrimônio cultural da cidade e evidencia-se a
importância dela para a região da campanha e de seus personagens
durante mais de um século de história. Sua manutenção neste espaço
geográfico era visto, naquele momento crucial, como fundamental
para que pudesse seguir sendo uma referência da história e da
memória do Rio Grande do Sul e brasileira.
Há uma “convicção de que a preservação e o estudo dos
arquivos de família tem muito a beneficiar do estreitar das relações
entre as universidades, as instituições que tutelam os arquivos e
os proprietários” (ROSA; NÓVOA, 2014, p. 13). A estes últimos é
imputado um papel fundamental quanto ao presente e futuro deste
patrimônio, já que “as histórias de família e as tradições orais são
preciosas fontes para a reconstituição de episódios da história dos
arquivos e para o preenchimento de lacunas que os registros escritos
não conseguem colmatar” (ROSA; NÓVOA, 2014, p. 13).
A nova trajetória do acervo, a partir da doação de parte dos
documentos para uma instituição pública local, a saber, o Arquivo
Público Municipal Tarcísio Taborda de Bagé, na fronteira sul do Brasil,
especificamente os documentos que estavam em posse de Yara Maria
Botelho Vieira, a descendente da família que teve a iniciativa de doar,
buscava a preservação e a garantia de memória, com acessibilidade
ampla e irrestrita ao material. Não é somente sobre conservar os
registros, é também sobre como se comprometer com a “partilha de
traços do passado que não dizem apenas respeito às famílias mas a
todos nós” (ROSA; NÓVOA, 2014. p. 14). Partilhar, portanto, é dar a
chance de conhecer o nosso passado como coletividade. Afinal, os
arquivos “contam histórias, documentam pessoas e identidades, e são
fontes relevantes de informação para pesquisa. São a nossa memória
gravada e formam uma parte importante da nossa cultura e história
oficial e não oficial” (LEME, 2014, p. 17).
Este artigo retoma a importância dos arquivos e dos
acervos privados, em especial os familiares, e relata o processo de
acompanhamento realizado por membros de universidades a partir
da manipulação da documentação quando esta fora preparada
para doação, constituindo de registro do levantamento da mesma,
unindo, em um mesmo propósito, os idealizadores desta ação, que
40
SUMÁRIO
A trajetória da documentação da família Silva Tavares:
do acesso privado ao público visando a difusão
eram seus proprietários, bem como o ente público a receber o acervo
e colaboradores voluntários vinculados a instituições de ensino.
Uma breve história da família Silva Tavares 4
A família Silva Tavares descende de portugueses vindos da Ilha
Terceira dos Açores (Portugal) e habitava a região de Rio Grande no
final do século XVIII. Posteriormente passou para a cidade de Herval
e Bagé (porção meridional do território brasileiro), já em meados do
século XIX (RHEINGANTZ, 1993; OLIVEIRA, 2016; ANDRADE, 2017).
Um dos grandes nomes desta família foi João da Silva Tavares,
o Visconde do Serro Alegre, e dedicou-se à pecuária, política e
também à guerra, especialmente durante a Revolução Farroupilha
(1835-1845) (OLIVEIRA, 2016). Dentre seus 19 filhos, cinco deles
dedicaram-se à política desde o nível local até o nacional, como,
por exemplo, os casos de Joaquim da Silva Tavares, Presidente da
Província do Rio Grande do Sul, em 1888 e Francisco da Silva Tavares,
foi Deputado Provincial e pela Assembleia Geral do Império.
No âmbito da política local e estadual também destacaramse José Bonifácio da Silva Tavares, Presidente da Câmara Municipal
de Vereadores de Bagé, em 1886, e seu irmão José Facundo da Silva
Tavares, vereador em 1864 (O BAGEENSE, 12/08/1864, p.2; UNIÃO
LIBERAL, 26/09/1886, p.1). No aspecto militar, principalmente através
da Guarda Nacional, um dos maiores expoentes foi João Nunes da
Silva Tavares (Joca Tavares), teve destacada atuação durante a Guerra
do Paraguai (1864-1870), recebeu a patente de Brigadeiro Honorário
do Exército Brasileiro e o título de Barão do Itaqui (ANDRADE, 2017).
A família Silva Tavares participou ativamente do processo de
transição da Monarquia para a República, em 1889. Dois membros
desta família ocuparam o cargo de governador do estado do Rio
Grande do Sul, Dr. Francisco, em 1890, e João Nunes da Silva Tavares
(Joca Tavares), em 1892 (PEREIRA,1901; TAVARES, 2004; ANDRADE,
2017). Neste período conturbado dos primeiros anos da República,
vários dos membros desta família foram articuladores e fundadores
do Partido Federalista, em 1892, na cidade de Bagé; e revolucionários
durante a Revolução Federalista, da qual o general Joca Tavares foi
o Comandante em Chefe das Forças do Exército Libertador durante
boa parte do conflito (ANDRADE, 2017).
4. Informações encontradas na Dissertação de Mestrado “A trajetória política do General João
Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares): família, comunicação e fronteira” de Gustavo Figueira Andrade, 2017.
41
SUMÁRIO
A trajetória da documentação da família Silva Tavares:
do acesso privado ao público visando a difusão
Arquivos privados: uma riqueza particular
que pode/deve ser difundida
“Um arquivo de família é tanto arquivo como o arquivo de
uma instituição pública, pois a instituição família, no decurso de sua
existência, produz ou recebe documentação que conserva a título de
prova ou informação, tal como qualquer organismo” (LEME, 2014,
p. 18). Assim sendo, é perfeitamente compreensível que ao longo
de gerações uma família não só reúna como também faça dispersar
documentos uma vez que, a medida que os anos passam, também
passam pessoas e histórias. O fato de haver um grande número de
filhos, algo comum em algumas famílias do passado, só faz dificultar
a reunião de um conjunto completo de família com uma só pessoa e
em um só local.
Os anos passam e os documentos são distribuídos entre os muitos
descendentes, muitas vezes por serem entendidos como monumentos,
objetos comparáveis como aqueles de museus, e não entendidos
como orgânicos, ou seja, objetos de arquivos. Toda a complexidade do
arquivo criado a partir de atividades desempenhadas por uma família
dificulta ainda mais a ideia de fundo de arquivo de família, ou seja, de
um conjunto uno, coeso e completo. Fundo é um “conjunto orgânico
de documentos de arquivo de uma única proveniência. É a mais ampla
unidade arquivística” (LEME, 2014, p. 22).
Apesar de ser um arquivo como qualquer outro, os arquivos de
família se caracterizam de modo diferente. Como são de pessoas e
das famílias, “a primeira responsabilidade na sua conservação é delas.
Para complicar, as pessoas e famílias não são em geral arquivistas,
não sabem como organizar os montes de papéis que têm em casa
ou receberam” (ROSA, 2014, p. 34). Portanto, uma das primeiras
dificuldades é justamente saber como conservar os documentos sem
afetá-los negativamente, sem prejudicar o seu estado físico e ainda
permitindo que tenham a vida o mais longa possível.
Além das provas de existência (como certidões de nascimento
e morte, documento de identidade, entre outros) e de bens, ainda
há aqueles documentos que guardamos por vontade própria. “Os
documentos obrigatórios e as recordações pessoais (...) devem assim
separar-se de algum modo dos livros e objetos que fomos recebendo
ou recolhendo, mas que não foram ‘produzidos’ por nós ou em
função compulsória da nossa existência” (ROSA, 2014, p. 36). Para
isso é preciso levar em conta algo próprio do mundo dos arquivos, a
42
SUMÁRIO
A trajetória da documentação da família Silva Tavares:
do acesso privado ao público visando a difusão
organicidade e a ordem original, ou seja, a identificação das relações
internas entre documentos e a forma como foram ligados por
aqueles que os produziram, seja na forma como foram guardados os
documentos, seja por quem os produziu. Por exemplo, um conjunto
de cartas recebidas por determinada pessoa em determinado período
e que foram mantidas juntas em uma caixa, e, ao mesmo tempo,
separadas das demais tipologias.
Portanto, mesmo em se tratando de documentos pessoais, ao
lançar um olhar mais técnico, é possível levantar algumas informações
sobre eles como a data e o local da produção, o tipo de documento
em questão (se é uma carta, um diário ou um livro de atas, etc.),
as pessoas envolvidas e qual é o assunto daquele documento. Neste
caso, é possível fazer uma descrição do que contém. Os estudos
de genealogia se apoiam firmemente em documentos de família
pois só através deles é que se pode recompor toda uma linhagem
da qual se fazem necessários registros públicos e privados. De
outro lado, acontece com alguma frequência que documentos de
trabalho passam a integrar arquivos de famílias por serem levados
para casa por aqueles profissionais que os produziram. Logicamente
hoje entende-se como equivocada tal prática mas nem por isso ela
deixou de acontecer através dos anos. Para isso é preciso classificar os
documentos quando se encontram em meio a documentos de família,
separando aqueles que dizem mais respeito a alguma instituição do
que propriamente à família.
Nos dias de hoje já existem profissionais arquivistas que se
dedicam a organizar arquivos familiares por terem experiência
específica nesta atividade. Também há aqueles que ainda se valem
desta organização para escreverem a história da família pois, como já
foi mencionado, é grande o interesse pela recuperação de informações
que são privadas porém com interesse público, para a coletividade.
“A preservação de um arquivo de família pressupõe em primeiro
lugar a consciência de um valor material” dos registros (CORREIA,
2014, p. 63). Seus herdeiros têm interesse legítimo mas isso “depende
de acções deliberadas, decisões e compromissos que representam um
determinado plano de preservação, cujas premissas e determinações
podem, e devem, ser igualmente documentadas e passadas de geração
em geração” (CORREIA, 2014, p. 63). Assim, mesmo a decisão de doar
uma documentação familiar deve ser registrada e divulgada entre os
familiares pois a decisão de um membro de mudar a trajetória da
guarda dos documentos afeta a cadeia de herdeiros que seguem as
gerações daquele membro.
43
SUMÁRIO
A trajetória da documentação da família Silva Tavares:
do acesso privado ao público visando a difusão
A decisão de mudar a guarda de documentos de família do
privado para o público, por exemplo, ou seja, de concretizar uma
doação, leva em conta as preocupações com a memória. Os riscos
ambientais que envolvem alta umidade e temperatura, incidência de
sujidades, a necessidade de um controle de pragas bem como evitar
exposição prolongada à luz são fatores que muitas vezes movem uma
família a buscar condições melhores de armazenamento que podem
ser encontradas em arquivos. Uma família nem sempre terá um
mobiliário adequado, livre de traças ou roedores (agentes biológicos).
É bom lembrar que os suportes de informação, como o papel mas
também os tantos outros, podem sofrer danos irreversíveis.
A degradação é acelerada ainda com o mau manuseio, com o
uso de materiais de baixa qualidade para acondicionamento e/ou
armazenamento e a falta de higienização periódica. Entende-se que
“os arquivos de família e os arquivos pessoais podem ser considerados
património cultural e, desta forma, terem um valor histórico e
documental que extravasa o interesse pela memória familiar” e
por isso o zelo é dever dos proprietários que precisam pensar em
identificá-lo e divulgá-lo de modo a permitir que seja valorizado
(FERNANDES, 2014, p. 78). Nesse caso, a ideia de compartilhar a
informação através da doação para uma instituição pública pode ser
uma alternativa importante já que se entende que neste local terá
não apenas melhores condições de armazenagem como também os
recursos para difundir os documentos. Não apenas haverá os meios
e o conhecimento para tratar os arquivos como também poderão ser
fonte para estudos que resultarão em pesquisas publicadas. Porém,
“esta decisão deve ser tomada pela família. Estes devem sentir-se
confiantes e determinados, pois no caso de doação, por exemplo, são
decisões irreversíveis” (FERNANDES, 2014, p. 89).
É possível fazer uma combinação ou contrato entre as duas
partes, ou seja, o proprietário e a instituição que receberá o acervo.
Para isso é preciso conhecer os documentos e registrar o que será
doado. “Apesar de perder totalmente a propriedade do fundo
documental, poderá estabelecer um acordo com a entidade a quem
vai doar, quer do usufruto, quer direitos especiais de consulta do dito
acervo” (FERNANDES, 2014, p. 91).
“A função cultural dos arquivos familiares começa a cumprirse plenamente a partir do momento em que os seus proprietários
decidem optar pela divulgação de seus conteúdos”, isto é, assim que o
conteúdo for conhecido e disponível (SOUSA, 2014, p. 97). A doação
de um acervo de família para um arquivo público está nessa direção e
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SUMÁRIO
A trajetória da documentação da família Silva Tavares:
do acesso privado ao público visando a difusão
terá o assessoramento de um arquivista, profissional capaz de tratar o
acervo e difundi-lo entre os públicos de interesse e públicos potenciais.
A família é que geralmente entrega a documentação para a
instituição, devendo haver um extremo cuidado nesse processo.
“Em alguns casos, a retirada do acervo obriga a equipe técnica a
entrar no espaço da intimidade de uma família: em outras palavras,
é do lar dos titulares que sai sua própria história, registrada em sua
documentação” (RIBAS, 2017, p. 103). Assim, ao dar fim ao tempo
de uma documentação no espaço familiar pode haver alguma dor
ou sentimento de perda. “Para além da persona pública, ali estão
os registros de uma história pessoal, sejam como partes da vida de
titulares (RIBAS, 2017, p. 103).
O acervo documental em questão
O acervo documental da Família Silva Tavares que foi analisado
estava composto5, no momento de seu levantamento, no primeiro
semestre de 2019, por centenas de cartas, telegramas, bilhetes,
diplomas, fotografias, cadernetas, processos judiciais, cartões de visita,
cópias de documentos, anotações diversas, documentos cifrados,
confidenciais, enviados e recebidos de diversas autoridades políticas,
civis, militares, tanto brasileiras quanto estrangeiras. Não é raro sentir
certo desconforto em concluir uma doação pois “os doadores vivem o
dilema da necessidade de manutenção de uma memória que merece
ser preservada em uma instituição de referência, contraposta ao papel
afetivo que os documentos se revestem” (RIBAS, 2017, p. 103).
Dentre as autoridades que podiam ser encontradas como
remetentes ou como destinatários dos documentos, estavam nomes
de destaque como: General Manoel Luís Osório; Luís Alves de Lima
e Silva, o Duque de Caxias; Irineu Evangelista de Sousa, o Barão de
Mauá; José Antônio Correia da Câmara, Visconde de Pelotas; Gaspar
Silveira Martins; Gumercindo Saraiva; Aparício Saraiva; Almirante
Luís Felipe de Saldanha da Gama; Marechal Floriano da Silva Peixoto;
Prudente José de Morais, Presidente da República do Brasil (18941898); Maximo Santos, Presidente do Uruguai (1882-1886); dentre
outros personagens. Além disso, contava com jornais da época, numa
pequena coleção reunida e bem preservada.
5. No primeiro semestre de 2019 foi produzido um Controle de Condições Gerais do Acervo
da Família Silva Tavares, onde estava registrada a descrição dos tipos documentais encontrados de modo a acompanhar o documento encaminhado para o Arquivo público a que se
destinava o acervo.
45
SUMÁRIO
A trajetória da documentação da família Silva Tavares:
do acesso privado ao público visando a difusão
Desde a produção documental dos Silva Tavares de todo o acervo
possível de ser encontrado, muitos dos descendentes estiveram com
a posse dos documentos provenientes dos membros mais antigos
da família, atuando como verdadeiros guardiões da memória6,
defendendo a preservação desta documentação. São destacados aqui
Umbelina Tavares da Silva Tavares, Carlos Alberto da Silva Tavares
(Bebeto), Branca Moglia Tavares, Yara Tavares, Yara Maria Tavares
de Junqueira Botelho, Yara Maria Botelho Vieira, José Maria Tavares
de Junqueira Botelho e Tarcísio Antônio Costa Taborda.
Imagem 1 – Pesquisador manuseando documento original da família Silva Tavares
Fonte – Acervo pessoal de Fernanda Kieling Pedrazzi.
Ao longo dos anos, pesquisadores e historiadores (Imagem
1) tiveram contato com a documentação da família Silva Tavares,
atuando na preservação e oportunizando o conhecimento de parte
desta história, contando, através de suas narrativas, importantes
acontecimentos da história a partir do que estava escrito nesses
materiais, tais como Tarcísio Antônio Costa Taborda, Gustavo
Figueira Andrade, Élida Hernandes Garcia e todas outras pessoas que
voluntariamente, e imbuídos de grande interesse e responsabilidade,
tornaram possível o trabalho desenvolvido na documentação que
estava prestes a ser doada.
6. Informações repassadas por D. Yara Maria Botelho Vieira, em março de 2019.
46
SUMÁRIO
A trajetória da documentação da família Silva Tavares:
do acesso privado ao público visando a difusão
Com o objetivo de levantar o patrimônio documental reunido
pela família Silva Tavares de Bagé (RS), foi necessário criar um
Projeto de Extensão (Imagem 2) na Universidade Federal de Santa
Maria (UFSM), com sede no centro do Estado do Rio Grande do Sul
denominado “Levantamento do Patrimônio Histórico Documental da
Família Silva Tavares de Bagé-RS” (registro no Gabinete de Projetos
do Centro de Ciências Sociais e Humanas nº 050992), que esteve
vinculado ao “Programa: Patrimônio Histórico, Gestão Documental,
Memória, Preservação” (registrado no mesmo Gabinete sob o nº
039598), coordenado pela professora Dr. Maria Medianeira Padoin.
Imagem 2 – Cópia do registro do Projeto de Extensão na UFSM
Fonte – Projetos UFSM. Disponível em: ufsm.br Acesso em: 04 abr. 2019.
Este Projeto congregou forças para que pudesse fazer o registro
do levantamento documental. Estiveram envolvidos no referido
Projeto de Extensão servidores e demais membros da comunidade
acadêmica da UFSM e UNIPAMPA, atuando de forma conjunta
para realizar atividades de avaliação e identificação de documentos
pertencentes ao arquivo privado da Família Silva Tavares. Afinal,
tratando-se de arquivos familiares cuja acumulação documental tenha mais do que cem anos (e cujo interesse
histórico e cultural seja comprovado), é muito importante que os proprietários tenham consciência de que,
entre a (possível) perda total da informação ou possibilidade de esta ser estudada e conservada, há que optar por esta última. É importante tomar consciência de
que serve de muito pouco ser-se o único conhecedor e
observador de um documento. (FERREIRA, 2014, p. 98)
47
SUMÁRIO
A trajetória da documentação da família Silva Tavares:
do acesso privado ao público visando a difusão
Os descendentes da família Silva Tavares tiveram a consciência
e buscaram nas instituições públicas de ensino apoio e conhecimento
para organizar o processo de transição entre o privado e o público.
O resultado do trabalho com o acervo
No período em que o Projeto de Extensão esteve ativo, 13 de
fevereiro a 30 de abril de 2019, pouco mais de dois meses e meio, foram
realizadas as tarefas de planejamento, acompanhamento das condições
de guarda, acesso e proteção do acervo, garantindo integridade do
conjunto que é a herança desta doação para esta geração e gerações
futuras. Também foi feito um relatório para a instituição que abrigou o
Projeto de modo a prestar contas do que foi realizado.
Participaram Historiadores, Arquivistas, Bibliotecários e outros
membros da área de Comunicação com o intuito de congregar um
grupo interdisciplinar ao objetivo do mesmo, qual era: “Levantar o
patrimônio documental reunido pela família Silva Tavares de Bagé
(RS) colaborando para a preservação, valorização e divulgação do
patrimônio histórico de Bagé”. Entre os membros desta equipe
(Imagem 3), constituída por docentes e então discentes membros
do Programa de Pós-Graduação em História e do Programa de PósGraduação em Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Santa
Maria, citamos: Gustavo F. Andrade, Adriana Gonçalves Ferreira,
Vera Lúcia Scotto Leite e os professores Maria Medianeira Padoin,
Fernanda Kieling Pedrazzi e Jorge Alberto Soares Cruz. Pertencente à
Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), fizeram parte do grupo
de trabalho as bibliotecárias Vanessa Abreu Dias e Dayse Pestana.
Imagem 3
Grupo de extensionistas da UFSM e UNIPAMPA em atividade na casa de D. Yara
Fonte – Acervo pessoal de Fernanda Kieling Pedrazzi.
48
SUMÁRIO
A trajetória da documentação da família Silva Tavares:
do acesso privado ao público visando a difusão
Quanto às atividades de avaliação e identificação de documentos,
durante o levantamento documental do grupo que atuou no projeto de
pesquisa, e que estava na residência da D. Yara Maria Botelho Vieira,
foi possível identificar que em geral a documentação está em boas
condições, no entanto, existem documentos que ainda possuem grampos
metálicos e outras presilhas, que podem vir a oxidar e deteriorar os
documentos. Existem também documentos que já estão deteriorados,
com amassados, rasgos ou partes faltantes, e que necessitam ser
restaurados. De todo modo as condições novas de guarda deverão
considerar as sugestões técnicas emanadas do Conselho Nacional de
Arquivos7 com a finalidade de evitar mais danos à documentação da
Família Silva Tavares, dentre elas aquelas disponíveis no documento
“Recomendações para construção de arquivos”, disponível no site do
Conselho Nacional de Arquivos (o Conarq).
Foi avaliado que se fazia necessária uma higienização e
desinfecção de todo o acervo documental, tendo em vista terem sido
identificadas algumas traças, o que poderia vir a comprometer sua
preservação (Imagens 4 e 5).
Imagem 4 – Registro fotográfico de documento da Família Silva Tavares
Fonte – Acervo pessoal de Fernanda Kieling Pedrazzi.
7. Ver “Recomendações para construção de arquivos”. Disponível em: http://conarq.arquivonacional.gov.br/images/publicacoes_textos/recomendaes_para_construo_de_arquivos.
pdf Acesso em: 13 mar. 2019.
49
SUMÁRIO
A trajetória da documentação da família Silva Tavares:
do acesso privado ao público visando a difusão
Recomenda-se que “chegando à instituição de guarda, a
higienização do acervo deve ser a mais imediata possível, mesmo que
em um primeiro momento seja necessário o emprego de embalagens
mais simples, visando o início do mapeamento documental e proteção
contra luz e poeira” (RIBAS, 2017, p. 104).
Por fim, cabe ressaltar que parte da documentação de
propriedade da Dona Yara Maria Botelho Vieira foi enviada para
tratamento de restauração no Arquivo Público Municipal, num total
aproximado de 273 cartas e 130 telegramas, referentes aos anos de
1893-1894, os quais não passaram pela avaliação dos membros do
Projeto de Extensão (Imagem 5) mas que deveriam, igualmente, estar
sujeitos aos cuidados previstos no documento entregue à senhora
Yara em abril de 2019.
Imagem 5 – Análise das condições físicas do acervo da Família Silva Tavares
Fonte – Acervo pessoal de Fernanda Kieling Pedrazzi.
Para além do levantamento previsto no Projeto de Extensão,
e a consequente listagem de controle documental originada desta
atividade, a equipe dedicou-se, ainda, em elaborar uma listagem
de recomendações aos proprietários no sentido de assegurar que
o novo custodiador da documentação, ou seja, o Arquivo Público
Municipal de Bagé, estivesse atento a algumas medidas arquivísticas
importantes. As recomendações técnicas foram de suma importância
na formalização da doação.
50
SUMÁRIO
A trajetória da documentação da família Silva Tavares:
do acesso privado ao público visando a difusão
Foi indicado que o material fosse entregue em uma ordem dada
pela família e que a mesma deveria ser mantida sem que seja feita
qualquer retirada ou troca de documentos em sua ordem original
por funcionários ou colaboradores do Arquivo Público Municipal
de Bagé. Isso se deve sempre fazer de modo a obedecer o princípio
arquivístico do respeito à ordem original, ou seja, aquele que “garante
a preservação do contexto de produção/acumulação dos documentos”
(TESSITORE, 2017, p. 15).
Sugeriu-se que o trabalho de verificação do acervo fosse feito
com o acompanhamento de um arquivista devidamente formado
em nível de graduação (pois existem 16 cursos em atividade hoje no
Brasil), com a finalidade de estabelecer um Fundo Documental do
tipo Pessoal que levará o nome completo Arquivo da Família Silva
Tavares. Neste caso, o princípio arquivístico da proveniência estava
sendo suscitado, ou seja, aquele em que se reconhece a individualidade
e se entende que a “pessoa é a acumuladora do arquivo e só no seu
contexto de produção/acumulação este pode ser compreendido
integralmente” (TESSITORE, 2017, p. 15).
Com a identificação do fundo, um arranjo documental poderia
ser pensado de modo a encontrar os laços documentais para realizar
a estruturação de uma ordem fidedigna à acumulação, considerando
a teoria arquivística. Para tanto foi sugerida a pesquisa nas normas
ISAD (G) e NOBRADE, ambas relacionadas à descrição documental
e que estão disponíveis no site do Conselho Nacional de Arquivos, o
Conarq, que atua em conjunto com o Arquivo Nacional (disponível
em conarq.arquivonacional.gov.br). “A descrição é um conjunto
de procedimentos que, levando em conta os elementos formais
e de conteúdo do documento e privilegiando acesso a conjuntos
documentais, possibilita a elaboração de instrumentos de pesquisa”
(TESSITORE, 2017, p. 15).
Foi feita a ressalva de que nenhum documento poderia ser
eliminado do conjunto sob pena de perder a organicidade do acervo e sua
contextualização histórica. É “na fase permanente que o arquivo ganha
identidade institucional, pois é o momento em que os documentos
adquirem valor secundário máximo, contemplando pesquisas de
caráter retrospectivo, normalmente de mais longo duração”, o que é
realizado por pesquisadores (TESSITORE, 2017, p. 13).
Na medida em que a documentação começa a ser arranjada, ou
seja, classificada mas na fase permanente, inicia-se também um trabalho
de identificação, catalogação e higienização do acervo com limpeza
51
SUMÁRIO
A trajetória da documentação da família Silva Tavares:
do acesso privado ao público visando a difusão
mecânica e anotação em local apropriado (listagem no computador,
por exemplo) das condições de conservação de cada peça documental.
Foi indicada a leitura de material referente a “Procedimentos de
conservação” pela equipe do Arquivo, disponível no site do Arquivo
Nacional (disponível em (www.arquivonacional.gov.br).
Sobre o arquivamento de forma definitiva, foi sugerida a
verificação de documentos sobre esta prática igualmente disponível
no site do Arquivo Nacional do Brasil com o nome “Armazenagem e
manuseio”. Logicamente esta etapa precede a digitalização de todos
os documentos frente e verso, dentro das especificações previstas
pelo Conselho Nacional de Arquivos, tendo sido indicado o material
denominado “Recomendações para Digitalização de Documentos
Arquivísticos Permanentes” por se tratar de uma documentação
originalmente de propriedade privada mas de interesse público, fato
que fez surgir a possibilidade/interesse da doação ao Arquivo Público
Municipal de Bagé.
Desse modo, os representantes digitais serão o meio de pesquisa
pelo qual os cidadãos terão acesso, preferentemente. Sugeriu-se
que somente em casos especiais deveria ser concedido acesso aos
originais, considerando a justificativa do pesquisador. A proposta é
manter os documentos menos manuseados e, com isso, prolongar
a vida do suporte. Para isso recomenda-se a adoção de repositório
digital e o seguimento das Diretrizes para a Implementação de
Repositórios Arquivísticos Digitais Confiáveis - RDC-Arq (vide
publicações técnicas no site do Conselho Nacional de Arquivos).
Sugeriu-se que, como cuidado importante, em hipótese alguma
a documentação ficasse exposta em vitrines na área de acesso ao
público sendo, sua custódia e guarda, restrita a um serviço de arquivo,
ou seja, a documentação sempre mantida em local reservado, dentro
dos padrões arquivísticos de umidade, temperatura e iluminação
bem como acondicionada em invólucros de qualidade arquivística e
em estantes preferentemente de aço e fechadas em local seguro.
Quanto a pesquisa ao público, esta somente foi indicada com
controle e observação do pesquisador, que deveria dispor de luvas
apropriadas. No entanto referiu-se a necessidade de, antes de tudo,
a documentação estar higienizada, arranjada, descrita, digitalizada
e devidamente registrada como Fundo Pessoal junto ao Arquivo
Nacional como parte de uma instituição pública conforme a Norma
internacional para descrição de instituições com acervo arquivístico,
52
SUMÁRIO
A trajetória da documentação da família Silva Tavares:
do acesso privado ao público visando a difusão
a ISDIAH (conforme publicações técnicas no site do Conselho
Nacional de Arquivos).
Foi, por fim, recomendado que a instituição que recebia o
acervo da família Silva Tavares deveria se comprometer a não ter
ganhos lucrativos com a documentação, ou seja, que fossem cobrados
valores financeiros pela pesquisa, sendo amplamente aberta em seus
representantes digitais tão logo se cumpra todos os critérios de
acesso e difusão.
E como medida que garante a continuidade do acervo através
dos anos, solicitou-se providências quanto à restauração dos
documentos deteriorados, sendo esta realizada por um profissional
habilitado e considerando o documento “Manual de pequenos
reparos em livros”, e quanto a higienização e desinfecção do material,
evitando a proliferação de microrganismos e insetos, tal como consta
no texto “Emergências com pragas em arquivos e bibliotecas”, ambos
materiais disponíveis no site do Arquivo Nacional.
Considerações finais
A iniciativa de doação de Yara Maria Botelho Vieira foi uma
opção visando mudança de trajetória dos documentos por considerar
que o Arquivo Público Municipal de Bagé é um espaço de memória
capaz de dar as condições reais de manutenção da memória da
família Silva Tavares e seus contemporâneos através do patrimônio
documental que constituíram em vida.
A doação foi oficialmente concretizada no Arquivo Público
Municipal Tarcísio Taborda, localizado na rua General João Telles,
862, no centro de Bagé (RS) na manhã do dia 17 de outubro de
2019, meio ano após o encerramento do Projeto de Extensão, com
evento agendado pelo Gabinete do Prefeito Municipal de Bagé.
No convite da Prefeitura, o evento estava com o nome de “Entrega
dos documentos pertencentes a Família Silva Tavares, referentes a
Revolução Farroupilha e a Revolução Federalista” e com a frase “Os
documentos silenciosos querem se fazer ouvir”.
Em vídeo denominado “Acervo Joca Tavares”, produzido
pela Coordenadoria de Comunicação Social e Memória de Bagé e
disponibilizado na rede social Facebook da Prefeitura Municipal de
Bagé no mesmo dia do evento de doação, a doadora, Dona Yara, disse
que “a entrega deste patrimônio familiar representa para nós um
momento de muito orgulho e ao mesmo tempo muito compromisso
53
SUMÁRIO
A trajetória da documentação da família Silva Tavares:
do acesso privado ao público visando a difusão
com humildade, porque somos descendentes de pessoas que muito
fizeram pelo Rio Grande do Sul e pelo Brasil”8. Na sequência, teve
oportunidade de exprimir seu sentimento a sua irmã, Margarida
Maria Botelho, quando afirma que “chega o momento em que a gente
não deve conservar as coisas fechadas e sem deixar a participação
da comunidade, então nós achamos que deveríamos partilhar e não
manter fechado um tesouro igual a este”9. Um ano depois, em 18 de
outubro de 2020, ao rememorar a data nas redes sociais, Dona Yara
evidencia seu sentimento de satisfação e certeza de que fez a melhor
opção em relação ao cenário alcançado: “Esta doação se fazia mister,
tal a importância histórica, devidamente cuidados e preservados
pela família”10.
Entende-se que o trabalho desenvolvido pela equipe
universitária voluntária, ligada à UFSM e UNIPAMPA, no Projeto de
Extensão deu sua contribuição para o desfecho satisfatório que teve
a doação do acervo Silva Tavares, preparando os materiais e fazendo
sugestões que trazem retorno para toda a comunidade.
Referências
ANDRADE, Gustavo Figueira. A trajetória política do General João Nunes da
Silva Tavares (Joca Tavares): família, comunicação e fronteira. Dissertação.
Mestrado em História. UFSM, 2017. Disponível em: http://coral.ufsm.br/ppgh/
images/Dissertao_Gustavo_Figueira_Andrade_PPGH_UFSM.pdf Acesso em: 13
mar. 2019.
BELLOTTO, Heloisa Liberalli. Arquivística: objetos, princípios e rumos. São Paulo:
Associação dos Arquivistas de São Paulo, 2002.
CORREIA, Inês. Preservar o seu arquivo de família. In: ROSA, Maria de Lurdes.;
NÓVOA, Rita Sampaio da. (Coord.). Arquivos de família: memórias habitadas.
Guia para salvaguarda e estudo de um património em risco. Lisboa, Portugal: Instituto de Estudos Medievais, 2014. p. 62 - 75
8. VIEIRA, Yara Maria Botelho. Entrevista concedida. Página inicial da Prefeitura Municipal de Bagé, Facebook, 17 out. 2019. Disponível em: https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=1278030795701513&id=665563420281590 Acesso em: 15 jan. 2021.
9. BOTELHO, Margarida Maria. Entrevista concedida. Página inicial da Prefeitura Municipal de Bagé, Facebook, 17 out. 2019. Disponível em: https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=1278030795701513&id=665563420281590 Acesso em: 15 jan. 2021.
10. VIEIRA, Yara Maria Botelho. Página pessoal do Facebook, 18 out. 2020. Disponível
em: https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=10222241295359602&id=1181786639
Acesso em: 15 jan. 2021.
54
SUMÁRIO
A trajetória da documentação da família Silva Tavares:
do acesso privado ao público visando a difusão
FERNANDES, Sofia. Proteger o seu arquivo de família, através de contratos de depósito. In: ROSA, Maria de Lurdes.; NÓVOA, Rita Sampaio da. (Coord.). Arquivos
de família: memórias habitadas. Guia para salvaguarda e estudo de um património
em risco. Lisboa, Portugal: Instituto de Estudos Medievais, 2014. p. 76 - 93
LEME, Margarida. Compreender o seu arquivo de família. In: ROSA, Maria de Lurdes.; NÓVOA, Rita Sampaio da. (Coord.). Arquivos de família: memórias habitadas.
Guia para salvaguarda e estudo de um património em risco. Lisboa, Portugal: Instituto de Estudos Medievais, 2014. p. 16 – 31
OLIVEIRA, Leandro Rosa de. Nas veredas do Império: guerra, política e mobilidades através da trajetória do Visconde de Serro Alegre (Rio Grande do Sul, c.1790
- c.1870). 2016.155 p. Dissertação (Mestrado em História). Pontifica Universidade
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PEREIRA, Octacílio. Ligeiros traços Biográficos do Ex. Sr. Barão de Santa Tecla. Pelotas: Tipografia da Opinião Pública, 1901.
RHEINGANTZ, Carlos Grandmasson. Famílias primeiras de Bagé. Bagé:
EDIURCAMP, 1993.
RIBAS, Elisabete Marin. Reunindo histórias: o arquivo do IEB e seus fundos pessoais
ou Não é pessoal, são negócios - por uma política dos arquivos pessoais. In: CAMPOS, José Francisco Guelfi. (Org.) Arquivos pessoais: experiências, reflexões, perspectivas. São Paulo: Associação de Arquivistas de São Paulo, 2017. p. 96 - 106
ROSA, Maria de Lurdes. Tratar o seu arquivo de família. ROSA, Maria de Lurdes;
NÓVOA, Rita Sampaio da. (Coord.) Arquivos de família: memórias habitadas. Guia
para salvaguarda e estudo de um património em risco. Lisboa, Portugal: Instituto de
Estudos Medievais, 2014. p. 32 - 61
ROSA, Maria de Lurdes; NÓVOA, Rita Sampaio da (Coord.). Arquivos de família:
memórias habitadas. Guia para salvaguarda e estudo de um património em risco.
Lisboa, Portugal: Instituto de Estudos Medievais, 2014. Coleção Instrumentos de
Trabalho 1.
SOUSA, Maria João da Câmara Andrade e. Valorizar o seu arquivo de família. In:
ROSA, Maria de Lurdes; NÓVOA, Rita Sampaio da (Coord.). Arquivos de família:
memórias habitadas. Guia para salvaguarda e estudo de um património em risco. Lisboa, Portugal: Instituto de Estudos Medievais, 2014. p. 94 - 115
TAVARES, Francisco da Silva. Diário da Revolução Federalista de 1893. CABEDA, Corálio Bragança Pardo; AXT, Gunter; SEELING, Ricardo Vaz. (Org.). Porto
Alegre: Procuradoria Geral – Geral de Justiça, Projeto Memória, 2004. Tomo I. (Memória Política e Jurídica do Rio Grande do Sul, 3).
TESSITORE, Viviane. Arquivos, centros de documentação e de memória: perfis institucionais e funções sociais. In: CAMPOS, José Francisco Guelfi. (Org.) Arquivos
pessoais: experiências, reflexões, perspectivas. São Paulo: Associação de Arquivistas
de São Paulo, 2017. p. 12 - 28
55
SUMÁRIO
A trajetória da documentação da família Silva Tavares:
do acesso privado ao público visando a difusão
Hemeroteca do Museu Dom Diogo de Souza,
Bagé, Rio Grande do Sul:
Jornal O Bageense, 12/08/1864, p.2.
Jornal União Liberal, 26/09/1886, p.1.
Fontes digitais online:
BOTELHO, Margarida Maria. Entrevista concedida. Página inicial da Prefeitura
Municipal de Bagé, Facebook, 17 out. 2019. Disponível em: https://m.facebook.
com/story.php?story_fbid=1278030795701513&id=665563420281590 Acesso em:
15 jan. 2021.
VIEIRA, Yara Maria Botelho. Entrevista concedida. Página inicial da Prefeitura
Municipal de Bagé, Facebook, 17 out. 2019. Disponível em: https://m.facebook.
com/story.php?story_fbid=1278030795701513&id=665563420281590 Acesso em:
15 jan. 2021
VIEIRA, Yara Maria Botelho. Postagem em página pessoal do Facebook, 18 out.
2020. Disponível em: https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=10222241295
359602&id=1181786639 Acesso em: 15 jan. 2021.
56
SUMÁRIO
57
SUMÁRIO
TIPOLOGIAS E SIMBOLISMOS DO
ACERVO DO CEMITÉRIO PATRIMONIAL
DA SANTA CASA DE CARIDADE DE BAGÉ
Clarisse Ismério 1
58
SUMÁRIOTipologia e simbolismos do acervo do cemitério patrimonial da Santa Casa
de Caridade de Bagé
1
Introdução
A cidade dos mortos ou campos santos carregam um imaginário
permeado pelo sofrimento e pelos mitos, mas, quando observamos
mais detalhadamente sua história e os símbolos presentes nos
túmulos e mausoléus, nos deparamos com outra realidade.
Na idade média, os mortos eram enterrados fora do perímetro
urbano, mas como a Igreja era definida como “espaço sagrado”, muitos
representantes das camadas abastadas passaram a ser depositados
em seu solo. Os princípios de higiene e a preocupação de conter a
proliferação de epidemias, decorrentes do século XVIII, mudaram
essa cultura e fizeram com que os mortos fossem enterrados em
cemitérios mais afastados das cidades. Paralelamente, cresceu a
preocupação com a estética dos túmulos, jazigos e mausoléus, fruto
do gosto peculiar das camadas abastadas ascendentes, que buscavam
[...] registrar suas particularidades nos cemitérios, que
se tornaram o local propício para: eternizar o individualismo do homem, recém-valorizado após a morte;
romper o anonimato das pessoas que passam a promover-se, distinguir-se dos demais, adquirir propriedades
perpétuas, cabendo aos homens poderosos o melhor
quinhão da vida eterna. (BORGES, 2002, p. 130-131).
Característica acentuada no século XIX, na medida em que os
cemitérios tornam-se locais de perpetuação e elevação da imagem
das famílias abastadas, misturando “poder, orgulho e glória post
mortem” e onde se eleva “bem alto a honra dos Mortos; ergue-se,
assim, a pujança dos vivos.” (SOUSA, 1995, p. 176). Assim, cada
família escolhia como iria manter viva a memória de seus entes
queridos, ao criar uma composição cênica permeada por
1. Historiadora. Doutora em História do Brasil pela PUCRS. Coordenadora do Cursos de
História, Professora e Pesquisadora da URCAMP/Bagé/RS.
[email protected]
59
SUMÁRIOTipologia e simbolismos do acervo do cemitério patrimonial da Santa Casa
de Caridade de Bagé
[...] simbologias próprias, recorrendo frequentemente às alegorias, acaba por conferir a este entendimento
um caráter misterioso, pouco claro, exigindo o recurso
constante à interpretação e elevando a ideia de que só
se atinge o verdadeiro sentido cemiterial da morte através de uma rede complexa de significantes. (SOUSA,
2003, p. 282).
Ariès (1982, p. 578-579) ressalta que, com o passar do tempo,
os cemitérios perderam gradativamente seu aspecto mórbido
e desolador, para se transformar em locais de convivência e
sociabilidade, transformando-se em guardiões da cultura e da
memória de seu povo, por conservarem os restos mortais de figuras
ilustres. Logo, observa-se que esses espaços não foram criados
somente para acolher os mortos, mas para serem apreciados pelos
vivos, pois quando “criados no período Romântico foram concebidos
precisamente para ser visitados e admirados pelas obras de arte neles
contidas, obras essas que eram muitas vezes representativas do que
de melhor se fazia na época.” (QUEIROZ, 2007, p. 1).
Um fator que auxiliou esta visão foi a difusão das ideias
positivistas, pois Comte, por meio da máxima “os vivos são sempre e
cada vez mais governados pelos mortos”, justificava que a memória
e os feitos dos heróis e homens notáveis do passado deveria servir de
exemplo e inspiração para as futuras gerações.
O mesmo processo ocorreu nos cemitérios brasileiros que
formaram, ao longo do tempo, um acervo de grande valor artístico
e histórico, sendo estes analisados através das pesquisas e produções
científicas.
Portanto, os Cemitérios Patrimoniais são espaços de memória,
verdadeiros museus a céu aberto, que servem de referência para
pesquisas acadêmicas, projetos em educação patrimonial, passeios
temáticos, eventos culturais e roteiros turísticos.
Nestas breves páginas, evidenciamos a importância do
acervo do Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé para a
reconstituição e preservação da história local. Para tanto, dividimos
o capítulo em duas partes, sendo que na primeira apresentamos
as produções científicas de relevância sobre o tema e na segunda
analisamos algumas representações simbólicas, que fazem parte do
roteiro teatral do evento cultural Sarau Noturno2.
2. Em 31 de outubro de 2008, ocorreu a primeira apresentação do evento cultural Sarau
Noturno, no Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé. Trata-se de uma apresentação
teatral que conta um pouco da história de Bagé e seu imaginário simbólico, mesclando com
passagens e personagens da literatura romântica. O Sarau Noturno é um projeto de Edu-
60
SUMÁRIOTipologia e simbolismos do acervo do cemitério patrimonial da Santa Casa
de Caridade de Bagé
Recortes das investigações
cemiterial e tumular
sobre
arte
No Brasil, os estudos sobre a arte cemiterial e tumular iniciam
com Clarival do Prado Valladares, que publicou, em 1972, a obra “Arte
e sociedade nos cemitérios brasileiros”, que apresenta uma pesquisa
extensa e detalhada sobre a arte e arquitetura dos cemitérios de várias
cidades brasileiras, fruto de uma minuciosa pesquisa desenvolvida
de 1960 a 1970. Em 1973, em uma autocrítica sobre sua investigação,
publicada na Revista Brasileira de Cultura, salientava que “entre a
data de entrega dos originais à tipografia (1970) e a de publicação
(1972) foram inumeráveis as mutilações, destruições, desapropriações
de jazigos ditos perpétuos que observamos nos cemitérios do Rio de
Janeiro” e que alguns dados importantes ficaram de fora. Porém,
salientou que apesar dessas “falhas” produziu uma obra de grande
referência que serviria de base para futuras pesquisas sobre arte
tumular e cemitérios e não escondeu sua grande satisfação de ter
transformado um assunto “tabu”, outrora esquecido pelos estudiosos,
em um tema de pesquisa em ascensão:
Alegra-me, sobretudo, verificar que os mais novos darão
melhores frutos. Assim serão vistos, sempre, através do
meu reconhecimento e através da alegria de quem não
pode negar, nem se esquecer, que nesses novos rumos
dos estudos sobre genuinidade brasileira foi semente
que medrou e viceja. (VALLADARES, 1973, p. 16).
O tema frutificou nos estudos de Maria Elizia Borges, Tania
Andrade Lima e Harry Rodrigues Bellomo. A pesquisadora Maria
Elizia Borges (2002) analisa a arte e arquitetura funerária por meio da
produção dos artistas marmoristas italianos e dos ateliês de Ribeirão
Preto. Maria Elizia Borges possui uma grande pesquisa voltada para
os estudos cemiteriais, sendo considerada a grande dama da pesquisa
cemiterial no Brasil3.
Tania Andrade Lima classificou os cemitérios como sítios
arqueológicos, cujos artefatos expressavam as mudanças no
imaginário coletivo referente à morte, fruto da ruptura da ordem
escravocrata. A pesquisa foi desenvolvida nos cemitérios do Rio de
cação Patrimonial, que tem como proposta a valorização e preservação da arte cemiterial.
3. Em 19 de abril de 2004, no 1º Encontro sobre Cemitérios Brasileiros, Maria Elizia Borges,
o geógrafo Eduardo Coelho Morgado Rezende e o historiador Harry Rodrigues Bellomo
fundaram a Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais (ABEC), uma entidade sem fins
lucrativos voltada para a promoção e divulgação das pesquisas na área. Atualmente, encontra-se sediada no Memorial Funerário Mathias Haas, em Blumenau/SC (https://www.
estudoscemiteriais.com.br/abec).
61
SUMÁRIOTipologia e simbolismos do acervo do cemitério patrimonial da Santa Casa
de Caridade de Bagé
Janeiro, da Venerável Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco
de Paula (Cemitério do Catumbi), escolhido como referência de
cemitério religioso; e o Cemitério de São João Batista, como cemitério
secular (LIMA, 1994, p. 93-95).
Harry Bellomo (2000) analisou as múltiplas tipologias da arte
funerária nos cemitérios de Porto Alegre e do interior do estado do
Rio Grande do Sul, destacando que se caracterizam como importantes
fontes históricas (materiais e imateriais), pois colaboram para a
preservação da memória familiar e coletiva. Permitindo, dessa forma,
o estudo das manifestações e crenças religiosas, das ideias e posturas
políticas; mostrando os gostos artísticos da sociedade; oportunizando
o conhecimento da formação étnica do município e da expectativa de
vida da população; além de propiciar o desenvolvimento de estudos
genealógicos. Nos anos que trabalhou na Pontifícia Universidade
Católica do Rio grande do Sul (PUCRS), Bellomo coordenou um
grupo de pesquisa denominado Cemiteriais, cujos trabalhos foram
publicados no livro “Cemitérios do Rio Grande do Sul: arte, sociedade,
ideologia”, de 2000 e 2008. A contribuição do professor Bellomo,
estudos cemiteriais no Rio Grande do Sul, é de valor inestimável e
seu legado é mantido pelos pesquisadores que foram seus alunos.
Os primeiros apontamentos históricos sobre o Cemitério da
Santa Casa de Caridade de Bagé iniciaram com o historiador Tarcísio
Taborda4, ao escrever em sua coluna no Jornal Correio do Sul artigos
evidenciando detalhes, institucionalização, principais túmulos,
famílias e personalidades. Esses e outros artigos foram publicados
na íntegra em 2015, na obra intitulada “Bagé de ontem e de hoje:
4. Tarcísio Antônio da Costa Taborda, magistrado, professor universitário e historiador. Nascido em Bagé, no dia 13 de julho de 1928, ele era filho do médico e maior nome na área
da educação daquela região, Dr. Attila Taborda (1897-1975). Tarcísio casou-se com Maria
Valderê Nunes, tendo os filhos José Tiaraju, Maria Moema e Maria Bartira. Entre 1951 e
1955, foi professor no ensino secundário, dando aulas de História do Brasil, Elementos de
Economia Política, Português e Latim. Em 1952, bacharelou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da Universidade do Rio Grande do Sul (UFRGS). Advogou
até 1955, quando passou a magistrado. Exerceu o magistério superior nas faculdades de
Filosofia, Ciências e Letras e de Direito, integrante das Faculdades Unidas de Bagé (FUnBA)
– Fundação Attila Taborda. Na década de 1950, começou um museu em sua própria casa.
Quando já não havia mais espaço para as peças colecionadas, ele conseguiu com seu pai
espaço no local chamado Vila Vicentina, surgindo daí o Museu Dom Diogo de Souza, cujo
nome homenageia o fundador de Bagé. Tarcísio criou ainda duas outras instituições museológicas: o Museu Patrício Corrêa Câmara, destinado a preservar material arqueológico encontrado em escavações executadas na área do Forte de Santa Tecla (1773-1776), e também
o Museu da Gravura Brasileira, que possui acervo de obras de artistas locais, brasileiros e de
outros países. Reconhecido nacionalmente por seu trabalho, foi homenageado recebendo in
memoriam, no dia 18 de dezembro de 2008, no Museu Histórico Nacional, a Medalha do
Mérito Museológico (CHAVES, 2014).
62
SUMÁRIOTipologia e simbolismos do acervo do cemitério patrimonial da Santa Casa
de Caridade de Bagé
coletânea de artigos publicados na imprensa (1930- 1994)”, organizada
por Elida Hernandes Garcia.
Eliane Bastianello, em sua dissertação de mestrado intitulada
“Os monumentos funerários do Cemitério da Santa Casa de Caridade
de Bagé e seus significados culturais: memória pública, étnica e
artefactual (1858-1950)”, de 2010, estudou os simbolismos, edificações
e ornamentos funerários desse espaço de memória, como também
a importância do escultor-marmorista José Martinez Lopes na
produção local. A pesquisa foi transformada no livro “Memória retida
na pedra”, lançado em 2016. Em 2018, infelizmente, a apaixonada
pesquisadora da arte cemiterial faleceu, mas deixou uma importante
contribuição para a história de Bagé.
Um outro olhar reflexivo sobre o tema apresenta a dissertação
de Sérgio Roberto Rocha da Silva, “A Representação do Herói na Arte
Funerária do Rio Grande do Sul (1900-1950)”, defendida na UFRGS
em 2001, que demonstrou as representações simbólicas e alegóricas
do herói positivista presentes em túmulos dos cemitérios de Rio
Grande, Porto Alegre e Bagé.
Em 2007, iniciamos, no Centro Universitário da Região da
Campanha (Urcamp), o Projeto de Pesquisa “História através da
Arte Cemiterial”, cujo objetivo foi refletir a história do município
de Bagé por intermédio das representações simbólicas expressas
no Cemitério da Santa Casa de Caridade. Caracterizou-se, também,
como uma pesquisa documental, estruturada em fontes primárias
bibliográficas, materiais e orais. As informações foram sistematizadas
em três etapas: identificação dos túmulos e mausoléus; registro
fotográfico; e levantamento de informações nos jornais e com as
famílias locais.
Alguns dos resultados foram publicados em artigos em
periódicos e eventos científicos, dos quais destacamos os seguintes
títulos: “Preservando o Patrimônio Cultural Dos Cemitérios: Estudo
sobre os Cemitérios de Porto Alegre e Bagé” (2013); “Os Símbolos e
Representações Femininas da Arte Cemiterial no Período Republicano
do Rio Grande do Sul/Brasil (1889-1930)” (2016); e “Um outro olhar
sobre os cemitérios: refletindo a arte cemiterial sob a perspectiva das
pesquisas, ações, passeios e eventos culturais” (2017).
Contudo, os resultados da pesquisa também oportunizaram
na organização do evento cultural Sarau Noturno (2008), um evento
teatral cujas apresentações ocorrem no cemitério da Santa Casa de Bagé.
O projeto foi alicerçado na metodologia da educação patrimonial e
“ativação da memória social, recuperando conexões e tramas perdidas,
63
SUMÁRIOTipologia e simbolismos do acervo do cemitério patrimonial da Santa Casa
de Caridade de Bagé
[...] promovendo a apropriação pelas comunidades de sua herança
cultural, resgatando ou reforçando a autoestima e a capacidade de
identificação dos valores culturais” (HORTA, 2000, p. 35).
O evento foi criado como um projeto de extensão e, em 2018, passou
para a categoria de projeto de ensino, no qual participam acadêmicos
de diversos cursos da Urcamp como voluntários. O Sarau Noturno
oportunizou várias produções científicas, das quais destacamos os
artigos: “Projeto Cultural Sarau Noturno: desenvolvendo a educação
patrimonial através da arte cemiterial” (2013); “Vozes Femininas do
Sarau Noturno: refletindo a arte cemiterial sob a perspectiva das
representações e olhares femininos” (2020); e o livro Sarau Noturno,
publicado em 2016. Atualmente, devido ao momento de isolamento
social, causado pela pandemia do Covid 19, o evento foi virtualizado,
sendo reestruturado o roteiro, ensaios via Google Meet, virtualização
dos túmulos, construção do cenário virtual para a apresentação que
ocorreu dia 31 de outubro via plataforma YouTube5. A experiência foi
narrada no capítulo “Novo Sarau Noturno: do presencial ao virtual”,
da coletânea “Patrimônio Cultural: simbolismos, intertextualidades e
polifonias”, editada em 2021.
As representações simbólicas presentes no
Cemitério Patrimonial da Santa Casa de
Caridade de Bagé
O Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé possui um
acervo escultórico de inegável valor histórico, artístico e arquitetônico,
fruto da opulência econômica da segunda metade do século XIX.
Observamos que a preocupação com a ostentação simbólica reflete o
mesmo padrão de outros espaços sagrados nos quais encontramos o
[...] reflexo da organização da sociedade local onde a
magnificência das construções é tradutora da exuberância possidente dos vivos. Desse modo, as construções
cemiteriais surgem como pretextos dos vivos para honrar os mortos e, ao mesmo tempo, manter a dignidade
dos que permanecem (SOUZA, 1995, p. 176).
O primeiro cemitério da cidade era localizado atrás da Igreja
Matriz de São Sebastião, mas Tarcísio Taborda ressaltou, em um
artigo publicado no Jornal da Manhã, em 27 de setembro de 1951, que
5. As apresentações e material de divulgação do Sarau Noturno estão disponíveis na plataforma:
https://www.youtube.com/channel/UC3j7erV6UWaV95Cy9BHZ5WA e o vídeo comemorativo de dez anos (2019) está disponível no link: https://www.facebook.com/UrcampOficial/videos/campus-bag%C3%A9-projeto-cultural-sarau-noturno/2358844901069842/
64
SUMÁRIOTipologia e simbolismos do acervo do cemitério patrimonial da Santa Casa
de Caridade de Bagé
conforme o crescimento e as necessidades da cidade o cemitério foi
transferido, “para terrenos na esquina da Rua General Osório com
a Rua 3 de fevereiro, depois passou para a esquina da Avenida Sete
de Setembro com a rua Marechal Deodoro”. E, neste endereço, foi
inaugurado sob as bênçãos do padre Cândido Lúcio de Almeida, em
1858 o Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé, que iniciou
modestamente com catacumbas, mas com o passar do tempo foi
“enriquecido por sepulturas magníficas e artísticas. Cemitério que
guarda os Heróis da Pátria. Heróis da caridade. Heróis do Ensino.
Heróis de Batalhas inúmeras. Cemitério onde repousam nossos
antepassados.” (TABORDA, 2015, p. 68-69).
Atualmente, o cemitério patrimonial guarda uma parte da
história da Rainha da Fronteira6, que é contada nas memórias
das famílias tradicionais; dos vultos históricos, heróis cívicos que
participaram da Revolução Farroupilha7 e da Guerra do Paraguai8; das
representações simbólicas e da releitura promovida pelo imaginário
social. Em seu acervo escultórico, encontramos as tipologias cristã,
alegórica e cívico celebrativa.
A proposição estética da arte cemiterial revela uma forte
influência do culto ao herói, com o intuito de influenciar e servir
de modelo para as gerações futuras, princípios preconizados na
Doutrina Positivista Comteana9, que
6. Apelido atribuído à cidade de Bagé por sua localização.
7. A Revolução Farroupilha, ou Guerra dos Farrapos, ocorreu de 1835 a 1845, na qual as elites
políticas da província de São Pedro do Rio Grande do Sul se insurgiram contra o governo
Imperial do Brasil. O resultado foi a declaração de independência da província como estado
republicano, dando origem à República Rio-Grandense.
8. A Guerra do Paraguai ocorreu de 1864 a 1870, sendo travada entre o Paraguai e a Tríplice
Aliança, formada pelo Brasil, Argentina e Uruguai.
9. A doutrina Positivista de Auguste Comte teve uma influência marcante na história do Rio
Grande do Sul. Começou em 1882, quando Júlio de Castilhos fundou o Partido Republicano
Riograndense (PRR), adotando a filosofia comteana expressa na obra Política Positiva, para
dar um sustentáculo doutrinário que garantisse a disciplina e coesão do partido. Conforme
destacou Boeira, não ocorreu uma simples transposição da doutrina de Comte para sociedade rio-grandense. Na realidade, existiam três tipos de ideologias positivistas nos anos
de 1870 a 1930, que são: o político, o difuso e o religioso. O político foi uma releitura das
ideias de Auguste Comte por Júlio de Castilhos, com objetivo de resolver as necessidades
imediatas e os projetos a longo prazo, tornando-o mais direto e flexível de ser entendido
pelo público politicamente relevante. Ficou conhecido como Positivismo Castilhista ou Positivismo Heterodoxo. O difuso unia a releitura castilhista com o comteano e mais o cientificismo evolucionista, chegando ao alcance de todos por meio de jornais, revistas, palestras,
conferências e dos símbolos e representações presentes na arte fachadista e cemiterial. Já o
religioso seguia a doutrina da Religião da Humanidade, também era chamado de Positivismo Ortodoxo e servia de reserva moral para o castilhismo (BOEIRA, 1980, p. 38-59). A
moral, a rigidez, o autoritarismo e a disciplina eram os pontos que uniam os três tipos de
Positivismo, fundindo-os em um único objetivo: organizar a sociedade através de uma moral
conservadora.
65
SUMÁRIOTipologia e simbolismos do acervo do cemitério patrimonial da Santa Casa
de Caridade de Bagé
[...] exerceu grande influência no culto aos heróis, o que
justifica o período do surto da arte cemiterial, como este
momento em que os cemitérios passam a ser os melhores locais de homenagens aos homens que se destacaram na política, cultura e dentro de suas próprias famílias. O positivismo no Rio Grande do Sul, ao utilizar a
arte funerária como veículo de perpetuação de sua ideologia, teve como objetivo principal consolidar seus atos
para as futuras geraçõe (SILVA, 2001, p. 14).
Um grande exemplo de exaltação ao culto do herói é o mausoléu
de Antônio de Souza Netto10 (Imagem 1), um suntuoso jazigo em
mármore de Carrara construído na Itália que foi transportado em
blocos para Bagé (BONÉS, 1995). Lembrando que o herói se constitui
como um “personagem da história de um povo que lutou em prol
de seus cidadãos e praticou atos de auto sacrifício pelo seu país e
trabalhou em um grande feito no campo de batalha, ou ainda numa
força de trabalho” (VALLE e TELLES, 2014, p. 6), atributos que são
encontrados nos símbolos que perpetuam a memória e os feitos
notáveis de Netto.
Imagem 1: Mausoléu do General Souza Netto Cemitério da Santa Casa de Bagé
Fotografia: Diones Alves.
10. Conforme relata Elaine Bastianello, em julho de 1866, o General Netto faleceu no hospital
de Corrientes, na Argentina, e após seu falecimento seus restos mortais foram deslocados por
três vezes. Foi trazido de Corrientes para Bagé, foi inumado no jazigo-capela de sua família no
Cemitério da Santa Casa de Caridade, construído poucos anos antes, por suas irmãs, Floriana
Marques Netto e Bernardina de Mattos Netto. Porém, mais tarde, suas filhas, Teutônia Netto e Maria Antonia Netto Mendilaharsu, que residiam no Uruguai, transferiram seus restos
mortais para Montevidéu, onde permaneceram até o centenário de sua morte. Em 1966, ano
do centenário, seus restos mortais voltaram para Bagé e foram depositados em um mausoléu
construído para guardá-los. O processo de transladação foi uma iniciativa do historiador Tarcísio Antônio da Costa Taborda e apoiado pela Câmara Municipal de Bagé e pelo Instituto
Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (BASTIANELLO, 2010, p. 57-62).
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SUMÁRIOTipologia e simbolismos do acervo do cemitério patrimonial da Santa Casa
de Caridade de Bagé
Historicamente, e segundo o imaginário social, o perfil de
Netto foi marcado pela sua participação na Revolução Farroupilha
(1835-1945) e na Guerra do Paraguai (1864-1870), mas não foi
representado como um general em seu leito de morte. Pelo contrário,
foi eternizado iconograficamente como um herói ilustrado que,
ao invés da farda, veste terno e gravata, símbolos de sobriedade e
elegância na época. Sua imagem está representada na parte central
do túmulo, em um brasão celebrativo, rodeado de flores. As flores
são identificadas, genericamente, como símbolos da saudade, mas
neste brasão podemos identificar dois tipos específicos com seus
significados próprios, que são a camélia (perfeição) e o jasmim
(elegância). As coroas de flores são “indicativas de uma alegria
divina, são comumente empregadas para representar a vitória da
alma humana sobre o pecado da morte. Elas são compostas de
várias flores como rosas, lírio, margaridas e azevinho, geralmente
arrematadas por um laço de fitas” (BORGES, 2002, p. 203).
A estrutura do mausoléu se classifica esteticamente na tipologia
cívico-celebrativa, com uma dupla função de “servir de sepultura
e celebrar a memória de vultos destacados no mundo político,
econômico social e cultural. Devido a essa dupla função, estes túmulos
costumam ter a imagem do morto e alegorias das atividades exercidas
ao longo da vida ou sua ideologia” (BELLOMO, 1994, p. 85). Esta
tipologia é bastante comum nos cemitérios riograndenses devido à
tradição positivista, tendo como grandes exemplos o túmulo de Júlio
Prates de Castilho e o Mausoléu de José Gomes Pinheiro Machado,
ambos do Cemitério da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre.
A celebração e perpetuação da memória do herói também
podem ser visualizadas nas representações femininas que o
acompanham, que são as alegorias do saber e do heroísmo. A alegoria
do saber, destacada na Imagem 2 (à esquerda), pode ser interpretada
como Clio, a musa da história, pois apresenta dois livros fechados.
O livro que está em seu colo representa a história da Revolução
Farroupilha, na qual foram moldados princípios como cidadania,
liberdade, separatismo e liderança política no Rio Grande do Sul. O
outro livro, que está debaixo do pé da musa, refere-se à Guerra do
Paraguai. Clio ocupa seu lugar de guardiã da história e da tradição,
sendo ela a responsável por perpetuar a história do herói ilustrado,
que tem a cidade de Bagé como local de sua última morada.
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SUMÁRIOTipologia e simbolismos do acervo do cemitério patrimonial da Santa Casa
de Caridade de Bagé
Imagem 2: Musa Clio e Alegoria do heroísmo,
detalhe do Mausoléu do General Souza Netto Cemitério da Santa Casa de Bagé
Fotografias: Diones Alves.
Uma segunda representação feminina, localizada à direita
do mausoléu, refere-se à alegoria do heroísmo, destacada por uma
jovem com o semblante triste e com uma coroa de louros em seu
colo (Imagem 2, à direita). A coroa de louros, símbolo da vitória e
da glória, na antiguidade clássica era uma homenagem atribuída aos
heróis e aos atletas.
As representações artísticas femininas, presentes nos
cemitérios do Rio Grande do Sul, contribuíram para a divulgação dos
preceitos e da moral positivista, cujo objetivo era consolidar junto
ao imaginário popular o símbolo de perfeição feminina, inspirada
em Clotilde de Vaux, representação da Religião da Humanidade11.
A mentalidade conservadora propiciou a reconstrução de uma
11. No dia 28 de agosto de 1845, Conte conheceu Clotilde de Vaux na igreja de São Paulo,
durante um batizado. A partir daí, passou a nutrir uma forte paixão por Clotilde. Clotilde
estava com 30 anos e foi casada com Lepoquer de Vaux, que a abandonou muito cedo.
Sendo tesoureiro, desviava dinheiro dos cofres públicos e de particulares e ao ser descoberto fugiu sem deixar vestígios. O filósofo revela sua paixão à amada, mas ela se mantém
reservada, pois se achava mais digna de piedade do que de ternura. Apesar de decepcionado
com a recusa de seu amor, Comte propôs uma relação fraternal. Quando Clotilde adoeceu,
com problemas sérios nos brônquios e abdominais, Comte revelou que seu amor era casto
e puro como ela desejava. Deu-lhe o amor divino espiritual. A enfermidade aumentou e
ele, não podendo mais visitá-la, escreveu-lhe diariamente. Em 5 de Abril de 1846, Clotilde
faleceu. Em uma tentativa de manter viva a imagem da mulher que tanto amou, Comte
transformou-a em sua musa, criando a Religião da Humanidade. Nascia uma nova fase da
doutrina positivista comteana. A vida constante de Comte serviu-lhe de base para construir
uma filosofia que idealizava um modelo de mulher. A musa, Clotilde, foi transformada na
alegoria da Religião da Humanidade, símbolo de grande adoração. Através do Catecismo
Positivista, Comte ditou normas de conduta às mulheres, tendo como modelo a rainha do lar
e o anjo tutelar, símbolos formados pelo arquétipo da Grande Mãe (ISMÉRIO, 2019, p. 17).
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SUMÁRIOTipologia e simbolismos do acervo do cemitério patrimonial da Santa Casa
de Caridade de Bagé
simbologia impregnada de valores moralistas sobre como deveria ser
a conduta feminina.
Portanto, as mulheres nos cemitérios foram perpetuadas em
estátuas de carpideiras, anjas ou alegorias para evidenciar o dever da
mulher enquanto guardiã da moral. Na estatuária, foram ressaltadas
somente as virtudes femininas preconizadas pelo patriarcado, pois
na arte deveria expressar somente a imagem ideal a ser seguida,
cultivando assim o aperfeiçoamento humano.
Uma terceira figura em destaque, na parte de cima do
mausoléu do General Netto, é uma anja guardiã orante, que zela
pela moral e pelos valores cristãos (Imagem 1). A simbologia do
anjo tutelar aparece também nos túmulos dos cemitérios trazendo
como atributos a caridade, consolação, anunciação e o juízo final. Os
anjos normalmente são classificados na tipologia cristã, mas neste
mausoléu faz parte do conjunto da obra que reverencia os atributos e
representativos do herói.
Os anjos eram figuras comuns nas sepulturas de crianças,
cuja inocência lhes legitimava o título de “anjos do céu”. No século
XIX, passou a ter duas representações sucessivamente, inicialmente
como um jovem que representa o anjo da morte e, logo após, a forma
mais frequente, tornou-se uma figura feminina de formas opulentas
(VOVELLE, 1997, p. 330-331). Os anjos sofreram alterações em sua
imagem e atributos, sendo que tais elementos acrescidos são fruto do
imaginário popular de cada período. Os anjos são os intermediários
entre Deus e o mundo, tendo o papel de executar as ordens do Senhor,
transmitindo os sinais do sagrado, as advertências e punições.
A apresentação dos arcanjos na Bíblia e nos escritos da Contra
Reforma era bélica, ou seja, todos possuíam armadura para lutar
contra os inimigos da fé, pensamento tridentino que propunha o ideal
da guerra santa por meio da catequização, levando a cristandade aos
pagãos. A imagem do anjo guerreiro muda com o passar do tempo,
tornando-se protetor e intermediário dos homens perante Deus.
Isso se dá devido à mudança do pensamento cristão, que deixa de
lado a postura guerreira para ocupar-se da condução do rebanho. O
arquétipo continua sendo o mesmo, embora a alteração no símbolo
ocorra para acompanhar o discurso do período. O mesmo vai ocorrer
com o símbolo ao construir o modelo de anjo feminino, por ser a
mulher a consoladora, orientadora e guardiã da sua família.
O mausoléu de João da Silva Tavares, Visconde de Cerro
Alegre, comandante da divisão de cavalaria do exército imperial
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SUMÁRIOTipologia e simbolismos do acervo do cemitério patrimonial da Santa Casa
de Caridade de Bagé
brasileiro e um dos nobres da Rainha da Fronteira, se destaca pela
sua simplicidade e altivez (Imagem 3).
Imagem 3: Mausoléu do Visconde de Cerro Alegre.
Fotografia: Douglas Lemos de Quadros.
O mausoléu em mármore, em formato de capela neoclássica,
que apresenta colunas inspiradas na estética dórica, tem no seu
frontão uma coroa com pequenas flores que, para o cristianismo,
simboliza a salvação alcançada ou ainda a saudade. Sob a capela,
tochas acesas representam a iluminação espiritual e o conhecimento.
Entre elas, o resto de uma cruz, que significa a morte e a ressurreição de
Cristo. A austeridade presente no túmulo do visconde é característica
da aristocracia local que “tinha uma consciência tão profunda de
sua importância e de seu papel na sociedade riograndense que não
precisou reforçar seu status através de túmulos imponentes. Colocar
o título e o brasão lhes parecia suficiente” (BELLOMO, 1994, p. 64).
A nobreza tem suas origens no período medieval, no qual a
fidelidade entre os senhores e guerreiros era garantida pelo pacto
militar de suserania e vassalagem. O suserano protegia, dava
sustentação jurídica e terra, enquanto, em troca, o vassalo prestava
obrigações militares. Era uma forma de garantir a proteção mútua e a
estabilidade administrativa e social.
Essa estrutura tornou-se mais complexa a partir do Império
Carolíngio, quando Carlos Magno organizou a administração de
seus domínios em três esferas: condados, governados pelos condes;
70
SUMÁRIOTipologia e simbolismos do acervo do cemitério patrimonial da Santa Casa
de Caridade de Bagé
governos provinciais, controlados pelos duques; e as marcas,
governos militares que tinham como função defender fronteiras.
Já no período moderno, devido à centralização do poder nas mãos
do rei e o crescimento da corte, a nobreza passou a ser também
palaciana (viviam nas cortes sustentadas pelos monarcas) e togada
(compravam os títulos nobiliários).
No Brasil, a nobreza iniciou sua formação com D. João VI e foi
mantida durante o I e II Império, seguindo a estrutura portuguesa:
duques, marqueses, condes, viscondes e barões. Era um título
concedido pelo monarca ao súdito por serviços prestados à coroa,
mas existiam também aqueles que eram comprados. Em nenhum dos
casos o título era hereditário.
João da Silva Tavares recebeu seus títulos nobiliários pelos
serviços prestados à monarquia e pela lealdade dedicada ao Império.
Em 1859, ganhou o de “Barão de Cerro Alegre” e, em 1870, ao final
da Guerra do Paraguai foi-lhe auferido o título de “Visconde com
Grandeza”. Essa distinção autorizava usar em seu brasão de armas a
coroa do título superior, no caso o de conde. Por seus feitos, também
recebeu as comendas de Comendador da Ordem de Cristo e Cavaleiro
da Ordem de Aviz. Observamos que seu mausoléu não tem nenhuma
alusão iconográfica aos títulos, a única referência é a identificação:
“Sepulcro do Visconde de Cerro Alegre e sua família”.
Por outro lado a exuberância e imponência estão presentes no
jazigo de Francisco Ilarregui (Imagem 4). Ilarregui era um imigrante
espanhol, que prosperou em Bagé através de atividades ligadas ao
comércio e tornou-se uma figura de destaque na sociedade, como foi
destacado em seu obituário:
Aos estragos da cruel enfermidade que há muito o atormentava, faleceu na manhã de ontem, o honrado e laborioso comerciante e capitalista desta praça, Sr. Francisco
Ilarregui. O finado era um cavalheiro respeitável, de caráter austero e muito concentrado ao trabalho, conseguido à custa de incessante labor, adquirir honestamente uma regular fortuna. Era natural de Espanha, casado
e contava 62 anos de idade. Verdadeiro homem de bem,
gozou sempre de elevado crédito e da maior consideração na sociedade em que viveu (O DEVER, 1905, p. 2).
O mausoléu é todo em mármore, representando um templo
grego, que ao centro tem o busto de Ilarregui sobre um caixão. Mostra
a opulência de um homem que na morte queria ser representado como
um herói letrado entre as colunas de sua acrópole particular.
71
SUMÁRIOTipologia e simbolismos do acervo do cemitério patrimonial da Santa Casa
de Caridade de Bagé
Imagem 4: Jazigo de Francisco Ilarregui, Cemitério da Santa Casa de Bagé
Fotografia: Diones Alves.
O detalhe central do jazigo, expresso na platibanda, reflete
sobre o tempo que se esvai rapidamente, representado pela ampulheta
alada, e a iminência da morte é destacada pelas tochas que se apagam
(Imagem 5). Essa representação da morte é a antítese da passagem
bíblica na qual o início da vida é simbolizada pela luz que se acende
conforme determina Criador: “Deus disse: “Faça-se a luz! E a luz foi
feita” (GENESIS, 3:1). Consideramos que o jazigo, simbolicamente,
foi feito para preservar e edificar a memória do morto, mas também
instiga a quem observar o túmulo que reflita sobre a certeza da morte
e efemeridade da vida.
Imagem 5: Representação da Morte, detalhe do jazigo de Francisco Ilarregui
(Fotografia de Diones Alves).
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SUMÁRIOTipologia e simbolismos do acervo do cemitério patrimonial da Santa Casa
de Caridade de Bagé
Normalmente, quando pensamos na imagem da morte
imagina-se a figura do ceifador, tradicional representação da morte
no imaginário medieval, mas com o passar do tempo a morte também
passou a ser personificada com atributos femininos, sendo identificada
por uma jovem que apaga a chama da vida. Simbolicamente, a
morte evidencia o aspecto perecível e destrutível da existência, mas
também de revelação e introdução, pois está presente nos rituais
de iniciação assumindo o significado psicológico de transição para
uma nova fase, uma nova etapa a ser seguida, pois “liberta das forças
negativas e regressivas, ela desmaterializa libera as forças de ascensão
do espírito” (CHEVALIER e GHEERBRANT, 1994, p. 621).
A imagem feminina é bastante comum nos cemitérios, adornando
túmulos e mausoléus, um característica decorrente da mentalidade
positivista que consagrou a mulher como consoladora, orientadora
e guardiã da família. Trata-se da tipologia alegórica que “em geral
são figuras femininas, representadas nos padrões do academicismo
clássico, personificando a dor, a meditação, a consolação, a saudade, a
fé, a caridade e a esperança” (BELLOMO, 1994, p. 85).
As carpideiras ou pranteadoras personificam a lamentação, dor
e perda. No passado, eram mulheres pagas para chorar nos velórios e
enterros, que com o choro comoviam todos os que estavam presentes,
mesmo que ele não conhecessem o falecido. Foi uma das mais antigas
profissões femininas, pois foram encontradas referências nas pinturas
egípcias (presentes nos hipogeus, túmulos escavados nas encostas de
montanhas) e em relatos bíblicos (imagem 6).
Imagem 6: Carpideiras.
Fotografia: Clarisse Ismério.
73
SUMÁRIOTipologia e simbolismos do acervo do cemitério patrimonial da Santa Casa
de Caridade de Bagé
A saudade é representada como uma mulher triste segurando
uma coroa de flores, que pode estar sentada ou debruçada sob
o túmulo. Dessa forma, representa todo o sentimento de dor e
sofrimento que a perda de um ente querido pode representar para
a família e pessoas próximas. Quando aparece abraçada à cruz,
agrega, também, a ideia da fé. Pode, ainda, representar a saudade e a
esperança quando se apresenta com uma estrela na testa, símbolo da
esperança, e olhando para o céu (imagem 7).
Imagem 7: Alegorias da saudade e esperança.
Fotografia: Douglas Lemos de Quadro e Diones Alves.
Apesar das características próprias de cada alegoria, todas as
figuras femininas resumem-se na representação da viúva eterna e da
guardiã da moral, consagradas pelo positivismo. Por meio da arte
cemiterial, as imagens femininas transformam-se em viúvas eternas
que zelam pela memória das famílias ilustres.
Existem túmulos que, além de guardarem a memória, registram
a dor da perda ou uma tragédia ocorrida. Como é o caso do túmulo de
José Paixão Cortes, que narra a morte do menino Euclides E. Felipe,
que ao enfiar a mão em uma toca de corujas foi surpreendido por
uma serpente. Esse inocente gesto lhe custou a vida. No túmulo,
encontramos entalhada a coruja e a serpente, que são guardadas
pelas representações da morte, da saudade e da orante (Imagem 8).
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SUMÁRIOTipologia e simbolismos do acervo do cemitério patrimonial da Santa Casa
de Caridade de Bagé
Imagem 8: Túmulo de José Paixão Cortes.
Fotografia: Janete Souza de Luiz.
A coruja é uma ave de rapina noturna que possui diferentes
significados nas mitologias. Na Grécia antiga, era uma dos símbolos
da deusa Atena, caracterizando o pensamento racional que se
sobressai às trevas. Nos mitos indo-americanos, representa a morte
e a guardiã dos cemitérios (CHEVALIER e GHEERBRANT, 1994,
p. 293). E a serpente também possui múltiplos significados, mas
predomina a interpretação da tradição judaico-cristã, na qual está
associada ao demônio, responsável pelos desmandos e sofrimento
da humanidade.
Podemos constatar, nesse breve detalhamento de algumas
das obras que compõem o acervo do Cemitério da Santa Casa de
Caridade de Bagé, que ele se caracteriza como um museu a céu
aberto, um espaço de memória, no qual a história das famílias locais
são contadas através de mausoléus, túmulos, estátuas e símbolos.
Durante a pesquisa, constatamos que uma grande parte da sociedade
bajeense não conhecia a história e os significados expressos nos
túmulos e mausoléus. Assim, diante de tal constatação foi proposta
a organização do um evento cultural Sarau Noturno, para servir
de mediador e interlocutor, aproximando a população local da sua
história e da arte cemiterial.
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SUMÁRIOTipologia e simbolismos do acervo do cemitério patrimonial da Santa Casa
de Caridade de Bagé
Considerações finais
Gradativamente, após anos de pesquisas e múltiplas produções
científicas, os estereótipos e tabus atribuídos aos cemitérios são
substituídos pela compreensão de que esses ambientes também
podem ser caracterizados como instituições culturais, espaços de
memória, acervos documentais ou grandes galerias de arte. Nessa
breve narrativa, evidenciamos a excelência do acervo do Cemitério
da Santa Casa de Caridade de Bagé para a reconstituição da história
local, ao analisarmos uma parte significativa de seu rico acervo.
Assim, enfatizamos a importância de conhecer e preservar
o Cemitério Patrimonial da Santa Casa de Caridade de Bagé, pois,
enquanto guardião da memória, se constitui como uma fonte
inesgotável para pesquisas acadêmicas, projetos em educação
patrimonial, passeios temáticos, eventos culturais e roteiros turísticos.
Metaforicamente, podemos pensar os cemitérios como livros,
cujos capítulos são os túmulos e mausoléus, que revelam para o leitor
atento um universo de fatos históricos permeados por símbolos
universais e narrativas do imaginário social.
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SUMÁRIOTipologia e simbolismos do acervo do cemitério patrimonial da Santa Casa
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78
SUMÁRIO
79
SUMÁRIO
VILA SANTA THEREZA: PATRIMÔNIO,
MEMÓRIA E AUDIOVISUAL
Adriana Gonçalves Ferreira 1
80
SUMÁRIO
Vila Santa Thereza: patrimônio, memória e audiovisual
1
Introdução
A cidade de Bagé localiza-se na região de fronteira, limitada, ao
norte, pelos municípios de Lavras do Sul e Caçapava do Sul; ao Sul,
pela República Oriental do Uruguai e Herval; ao Leste, por Pinheiro
Machado, Hulha Negra e Candiota; ao Oeste, por Dom Pedrito e pela
República Oriental do Uruguai.
No passado, as posses das terras eram definidas pelas relações
de poder e pela expansão territorial, vinculadas às guerras e disputas
na fronteira Brasil e Banda Oriental. A linha de fronteira nessa região
fazia, do que hoje é Bagé, naquela época, ora território Espanhol, ora
território português, até a fundação do Município, em 1811, liderada
por Dom Diogo de Souza.
A influência das colonizações portuguesa e espanhola
contextualiza a economia na região e determina o surgimento do
patrimônio arquitetônico e cultural no Município até os dias atuais.
O Centro Histórico Vila de Santa Thereza, situado em Bagé, traça
uma linha do tempo, segundo Fagundes (2005), desde o surgimento
da Charqueada de Santa Thereza, fundada em 1897, pelo imigrante
português Antônio Nunes de Ribeiro Magalhães, até o Centro
Histórico Vila de Santa Thereza e seu tombamento.
A trajetória desse patrimônio perpassa a presença de
trabalhadores da charqueada, que habitavam, e ainda habitam,
a Vila. Estudar a memória presente entre seus descendentes é
fundamental, assim como a Vila Santa Thereza na atualidade. Da
mesma maneira, as ações voluntárias da Associação Pró Santa
Thereza, movimento da sociedade civil organizada que resultou na
revitalização do Centro Histórico Vila de Santa Thereza, em 2008,
são relevantes neste trabalho.
1. Mestre em Patrimônio Cultural (UFSM)
81
SUMÁRIO
Vila Santa Thereza: patrimônio, memória e audiovisual
Dentre essas ações, destaca-se o ressurgimento da Vila
Santa Thereza, que teve início com a charqueada, passou pelo
encerramento do negócio do charque e o abandono, bem como seu
respectivo tombamento, a partir de 1999, com a Lei 3.534/99, que
“declara Patrimônio Histórico e Cultural do Município de Bagé, a
Capela localizada no Bairro Santa Thereza” (BAGÉ, 1999). No mesmo
sentido, a Lei 3.687/2001:
tomba como Patrimônio Histórico e Cultural do município, no Bairro Santa Thereza, o Coreto, o Lago que o
circunda, mais a área do entrono do referido lago, num
raio de 12 metros, localizado próximo à Capela de Santa
Thereza, bem como as Ruínas do sobrado que foi residência do Visconde de Ribeiro Magalhães e dá outras
providências. (BAGÉ, 2001).
Assim como os esforços do Deputado Adilson Troca, no seu
Projeto de Lei 33/2002, sancionado, no governo Olívio Dutra, sob a Lei
nº 11.891/2003, que “declara bem integrante do Patrimônio Histórico
Cultural do Estado, o Complexo de Santa Thereza, no Município de
Bagé” (RIO GRANDE DO SUL, 2003).
O trabalho incessante da organização da sociedade civil e a
revitalização que denomina o espaço como Centro Histórico Vila de
Santa Thereza, em que, através da Associação Pró Santa Thereza, foi
possível revitalizar no ano 2008: a capela, um teatro, um memorial
(ainda inconcluso) e um espaço de eventos ao ar livre. O coreto,
que aguarda a segunda fase da revitalização, assim como aguarda a
execução de um projeto paisagístico que abriga as ruínas do sobrado.
A vila operária, onde residem os trabalhadores, também aguarda
revitalização das fachadas.
A memória e o traçado na linha do tempo desse patrimônio
histórico preservam-se por meio da linguagem audiovisual, com base
em experiências já realizadas em Bagé, sob a temática de filmar e ser
filmado, com intuito de preservar a memória oral.
A proposta de construção de um documentário audiovisual,
tem como norte a pedagogia do projeto de cinema, educação e direitos
humanos, “Inventar com a Diferença”, resultado de do investimento
de políticas públicas, desenvolvido no departamento de cinema da
Universidade Federal Fluminense pela então Secretaria de Direitos
Humanos da Presidência da República, em 2013. Esse projeto,
desenvolvido em todos os Estados do Brasil, em 2014, foi aplicado em
Bagé, no Rio Grande do Sul, após passar por um edital que selecionou
candidatos no Estado. Durante o processo de filmagem com escolas
82
SUMÁRIO
Vila Santa Thereza: patrimônio, memória e audiovisual
e grupos de diferentes comunidades, em Bagé e no Uruguai, foi
perceptível a presença de questões relacionadas ao patrimônio nas
imagens, nos desejos de filmar e de falar sobre si.
Os filmes que nasceram da pedagogia do “Inventar” permeiam a
memória individual e coletiva dos grupos, apresentando vários curtas
que abordam temas como patrimônio natural, material e imaterial,
em suas dimensões, dentro da identidade cultural da fronteira.
Desde o nascimento, percebemos a vida através da imagem
e do som, pelos sentidos da visão e audição. Logo, a relação com o
audiovisual justifica-se nas relações humanas, faz parte da percepção
do ser em sociedade. A relação com a câmera, tanto para quem filma
quanto para quem é filmado, é é o alicerce deste estudo, embasado
em exercícios, desenvolvidos de maneira singular, que despertam
para sentimentos de pertencimento e descobertas de valorização de
si, dos outros e do território que se habita.
Nesse sentido, é interesse deste trabalho observar o audiovisual
na preservação do espaço de memória, o patrimônio, considerando-o
um artefato museológico e educativo, a partir de seus processos de
produção coletiva. Com isso, pretende valorizar a luta da sociedade
civil pela defesa do patrimônio histórico, voltando-se, em especial,
para a Vila Santa Thereza, em Bagé.
A velocidade com que o mundo atual desconsidera a história,
através do descaso e do comportamento efêmero da sociedade
contemporânea, é preocupante. Destacar a valorização da história
das sociedades e da luta da sociedade civil pela preservação do
patrimônio cultural é de extrema relevância para a humanidade. O
fenômeno da “globalização”, ao mesmo tempo em que possibilita
uma dimensão de intercâmbios de informações e de bens culturais,
também poderá ocasionar certa alienação cultural.
No que diz respeito à compreensão das diferenças presentes nas
sociedades, as questões relacionadas ao patrimônio cultural devem ser
tratadas com uma dimensão humana, pois concernem ao indivíduo e
suas relações com o mundo. Um documentário sobre o patrimônio
histórico, produzido pelos próprios habitantes do entorno do espaço
tombado, permite que estes olhem para si a partir de uma perspectiva
que extrapola o território, contribuindo, de maneira relevante, para
a valorização e a preservação do Patrimônio Histórico Cultural.
Observar, construir, realizar, capturar e finalizar um ciclo em torno de
imagens, é um processo muito importante para entender o resultado.
Dessa forma, é possível dizer que o documentário Vila Santa Thereza
83
SUMÁRIO
Vila Santa Thereza: patrimônio, memória e audiovisual
é, além de uma ação de educação patrimonial, um ato de preservação
da memória de um território tombado e daqueles que o habitam.
Com vistas a essas conjunturas, muitos pesquisadores vêm
avaliando a relação entre audiovisual e preservação. O trabalho de
Arruda (2006), intitulado Documentação audiovisual: instrumento de
construção da memória da favela do Chapéu Mangueira, aproxima-se
do tema proposto, pois trata da construção da memória da favela do
Chapéu Mangueira, localizada no Leme, bairro da zona sul do Rio de
Janeiro, onde as narrativas de um grupo de moradores, envolvendo
suas histórias de vida e do desenvolvimento do local, compõem
essa memória, através do registro audiovisual. Além da preservação
da memória, o autor analisa o papel das pessoas que compõem
esse grupo de narradores e moradores de uma favela, e a forma de
documentação adotada para as narrativas, que tem por objetivo
legar, para as gerações futuras, o que foi feito e quem contribuiu com
as melhorias atualmente visíveis no local.
Já Ferraz (2017) aborda a valorização dos arquivos em
audiovisual, pois estuda a difusão do patrimônio audiovisual de
televisão pela internet, a partir do estudo de caso do Instituto
Nacional do Audiovisual (INA), buscando as contribuições que as
ações de gestão do patrimônio audiovisual francês podem dar aos
profissionais de acervos audiovisuais brasileiros. Analisa o acesso
e a funcionalidade, assim como maneiras de proporcionar maior
democratização da informação e produção de conhecimento,
destacando a curadoria online, voltada à função educativa do
patrimônio e à valorização dos arquivos.
A pesquisa de Ferreira (2015) destaca a importância do
audiovisual para um arquivo. Analisa a difusão do audiovisual, como
meio de comunicação com a sociedade, através do desenvolvimento
de vídeo institucional do Arquivo Histórico Municipal de Santa
Maria, além de outros vídeos institucionais de arquivos estaduais e do
Distrito Federal. Nos casos acima, já se configura a ideia de pensar o
audiovisual como artefato museológico, tema que é digno de atenção
neste estudo. Por meio de relatos, indicando que os descendentes
também interpretam os trabalhadores da charqueada Santa Thereza,
a metodologia da história oral foi inserida neste trabalho, através
das entrevistas gravadas para o documentário, com o objetivo de
reconstruir o percurso histórico da comunidade.
Por exemplo, a estratégia metodológica adotada por Gonçalves
(2013) realizou a filmagem de 17 entrevistas, concedidas por sujeitos
84
SUMÁRIO
Vila Santa Thereza: patrimônio, memória e audiovisual
representativos no contexto cultural e audiovisual de Juiz de Fora,
Minas Gerais, dando ênfase à investigação inédita sobre a produção
audiovisual independente realizada pela empresa local Bem-tevídeo, fundada em 1984. Desse modo, o estudo realizado pelo
autor observa o imaginário, a memória e a identidade na produção
audiovisual da Bem-te-vídeo.
Manter a integridade do produto audiovisual é necessário
para que seu conteúdo seja preservado. O trabalho acadêmico
de La Carreta (2005) analisa os conceitos que fazem do filme um
documento histórico, a partir dos processos de restauração da
película. No presente trabalho também se considera imprescindível
a atualização dos formatos de mídia digital para a preservação do
conteúdo existente no produto audiovisual (neste caso, a memória).
Para compreender a memória da vida cultural da comunidade
da Vila e relacioná-la com o presente, o trabalho de Halbwachs
(2004) merece aprofundamento. A memória individual, construída
a partir das referências e lembranças próprias do grupo, refere-se,
portanto, a “um ponto de vista sobre a memória coletiva, olhar este
que deve sempre ser analisado considerando-se o lugar ocupado
pelo sujeito no interior do grupo e das relações mantidas com
outros meios” (HALBWACHS, 2004, p. 55). Para além da formação
da memória, Halbwachs aponta que as lembranças podem, a partir
da vivência em grupo, serem reconstruídas ou simuladas. Podemos
criar representações do passado assentadas na percepção de outras
pessoas, no que imaginamos ter acontecido ou pela internalização
de representações de uma memória histórica. A lembrança, de
acordo com Halbwachs (2004), “é uma imagem engajada em outras
imagens” (HALBWACHS, 2004, p. 75).
Nesse sentido, a memória, neste estudo, é a imagem falada
nos depoimentos, gravada e engajada em outra imagem falada. O
produto audiovisual, o documentário, é uma imagem engajada na
outra imagem, que constrói a própria narrativa de memórias e ficará
salvaguardada. O patrimônio, portanto, corresponde às pessoas, a
tudo aquilo que parte do humano, suas ações e expressões culturais,
cujas marcas, presentes no planeta de diversas maneiras, inclusive na
oralidade, constituem um patrimônio.
O documentário de que se fala aqui teve por objetivo registrar
a história da Vila de Santa Thereza, desde a sua fundação, em 1897,
até a atualidade, demonstrando que a produção audiovisual também
serve como ferramenta de preservação da memória e do patrimônio.
85
SUMÁRIO
Vila Santa Thereza: patrimônio, memória e audiovisual
Para isso, uma investigação acerca do Centro Histórico Vila de Santa
Thereza foi realizada, lançando olhar sobre sua história, bem como
sobre sua vida econômica, cultural e artística, desde a época da
charqueada de Santa Thereza, tendo em vista compreendê-lo como
espaço de memória e identidade local, além de patrimônio histórico
da cidade de Bagé.
O referido Centro Histórico, apesar de vivenciar o processo
de modernização, apresenta um rico acervo de prédios e paisagem,
possibilitando inventariar uma vasta gama de significados em suas
edificações, tanto na arquitetura, pintura, espaço físico, quanto nas
ações culturais e educativas que constróem a história através dos
tempos. Esse patrimônio reúne um complexo que também reflete
o poder socioeconômico em suas várias fases de desenvolvimento,
sendo estas construções um testemunho importante para a história,
a memória social e para a identidade da sociedade bajeense.
O pouco conhecimento que possuem os habitantes da cidade
sobre tais construções torna este estudo extremamente relevante,
demonstrando como um produto audiovisual pode contribuir nos
processos de preservação da memória e compreensão da história
de espaços tombados. Nessa perspectiva, busca-se reconhecer,
compreender e valorizar este espaço como portador da história dessa
cidade e de um ciclo econômico vivido no Brasil com a produção do
charque. Para alcançar o entendimento da memória social e coletiva,
entretanto, é preciso relacionar as ações culturais e o comportamento
da comunidade que ali viveu, no passado, com as de seus descendentes
que habitam a Vila de Santa Thereza, no presente.
Assim sendo, é possível compreender o exercício da cultura
popular no Centro Histórico Vila de Santa Thereza, hoje em dia,
como uma ressignificação da cultura erudita que, no passado, ali
esteve presente desde a fundação da Vila, pelo Visconde de Ribeiro
Magalhães, responsável por primeiro possibilitar o acesso à cultura
na comunidade. Por conseguinte, tomando o patrimônio como uma
dimensão da memória, podemos afirmar, conforme Candau (2011),
que este fortalece a identidade, tanto a nível individual quanto
coletivo, uma vez que restituir a memória desaparecida de uma pessoa
é restituir sua identidade. Isto se dá porque a memória constitui-se
das lembranças de uma história que, ressignificada pelo coletivo, diz
respeito a cada indivíduo, razão pela qual fortalece a identidade do
grupo. A seguir, trata-se da história da Vila Santa Thereza, em Bagé.
86
SUMÁRIO
Vila Santa Thereza: patrimônio, memória e audiovisual
A História da Vila Santa Thereza, em Bagé
A Charqueada de Santa Thereza foi fundada em 21 de fevereiro
de 1897, pelo português Antônio Nunes de Ribeiro Magalhães, que
nomeou o estabelecimento em homenagem a sua esposa Dona
Thereza Pimentel Magalhães, conforme Mazza Leite (2011). A partir
de então, a charqueada de Santa Thereza alavancou a economia da
região, que até então enviava a produção local para as charqueadas
de Pelotas.
Para falar sobre essa charqueada, é preciso conhecer um pouco
da história do português que a fundou. Antônio Nunes de Ribeiro
Magalhães, filho de Joaquim Nunes e Joaquina da Rosa de Magalhães,
nasceu na Freguesia de “Castelões da Cepeda”, do Concelho de
Paredes, distrito do Porto, em Portugal, em 05 de outubro de 1841.
Seus primeiros estudos foram em Portugal. Aos 12 anos, em 1853
embarcou no veleiro “Iris”, com destino ao Brasil, especificamente
ao Porto de Rio Grande, cuja cidade recebia muitos imigrantes
portugueses. Ao chegar em Rio Grande, foi trabalhar como caixeiro
em um dos armazéns do Mercado Público. Posteriormente, foi
recomendado ao comerciante da família Delabary2, proprietário de
um local chamado “Três Vendas”, no município de Lavras do Sul.
Segundo Fagundes (2005), Antônio passou de empregado a
sócio de Delabary. Adquirindo capital, abriu seu negócio próprio, a
firma Alegre e Magalhães, em Lavras. O negócio funcionou até 1872.
No entanto, Diego Delabary, Juiz de direito que pesquisa a história da
família Delabary, afirma, em seu relato oral, que, de acordo com seus
antepassados, a sociedade de Antônio Nunes de Ribeiro Magalhães
com a sua família estabeleceu-se, em verdade, com Martín Delabary,
na localidade de São Sebastião, na estrada para Lavras, em um
comércio denominado Casa das Correntes3. A informação é embasada
em Teixeira (1992), que indica que as primeiras edificações das Três
Vendas remontam a 1920, época em que o Visconde já teria 80 anos.
Por outro lado, as datas de funcionamento do estabelecimento
comercial Casa das Correntes vão de encontro ao relato oral da família
Delabary, de que o português Antônio Nunes de Ribeiro Magalhães
2. Família Delabary ou de Labary (de Labari em Basco) é originária da comuna de Anhaux, na
baixa Navarra, no País Basco Francês, departamento de Piereneus Atlanticus, na hoje denominada região da Noca Aquitânia (França). A Família Delabary chegou a América do Sul em
Montevidéu, por volta de 1844. Posteriormente ao passar por Pelotas e Bagé no RioGrande
do Sul, erradicou-se em Lavras do Sul. Os documentos brasileiros passaram o sobrenome
de Labary, para Delabary.
3. Em entrevista concedida à autora deste trabalho.
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SUMÁRIO
Vila Santa Thereza: patrimônio, memória e audiovisual
teria trabalhado ali e tornado-se sócio, antes de se estabelecer em
Bagé. Conforme Leite (1997):
Os primeiros ranchos edificados no terreno da atual
“Casa das Correntes”, foram erguidos por um casal de
imigrantes franceses, que manteve comércio de secos
e molhados, cujos nomes eram os seguintes: Martín de
Labary, sua mulher Domingas de Labary e o filho do casal José de Labary. Essas pessoas acham-se aí sepultadas e a lápide registra a data de 23 de setembro de 1865.
(LEITE, 1997, p. 36).
Antônio Nunes de Ribeiro Magalhães mudou-se para o
município de Bagé, para a localidade rural Piraí, onde constituiu a firma
Magalhães & Souza, que operava no ramo de secos e molhados. Nessa
época, casou-se com Dona Thereza Pimentel. Essa sociedade teve
duração efêmera, de modo que, pouco tempo depois, estabeleceu-se
na cidade de Bagé. Em 1884, operava em grande escala, principalmente
na compra e venda de gado, como açougue. Em 1885, Antônio Nunes
de Ribeiro Magalhães recebeu sua carta de comerciante, junto à Junta
Comercial de Porto Alegre, conforme Boucinha (1993).
A firma individual funcionava na esquina da Avenida Sete de
Setembro (Figura 1) com a Três de Fevereiro, em Bagé. Era classificada
como “Loja de fazendas”, “Fructos do País”, “Secos e Molhados”, “Loja
de Ferragens” e “Porcelana e Miudezas”.
Figura 1 - Antiga casa da Firma Magalhães, comércio de secos e molhados, onde
atualmente é a Câmara de Vereadores de Bagé.
Fonte: Acervo fotográfico da Fototeca Túlio Lopes do Museu Dom Diogo de
Souza/FAT URCAMP, Bagé, RS, Brasil.
Em 17 de setembro de 1888, Antônio Nunes de Ribeiro
Magalhães foi nomeado vice-cônsul da Nação Portuguesa em Bagé.
O ato foi assinado pelo Dr. Antônio de Castro, cônsul de Portugal na
88
SUMÁRIO
Vila Santa Thereza: patrimônio, memória e audiovisual
Província, e confirmado por Dom Pedro II. Em 1893, colocou seu filho
Antônio como sócio, constituindo a firma “Magalhães & Filhos”. Um
ano depois, em 1894, fundou, nos arredores de Bagé (no atual bairro
Pedra Branca, próximo das pedreiras), a charqueada do Cotovelo, em
meio aos dias turbulentos da Revolução Federalista4.
Em 1897, comprou uma fração de campo à margem da estrada
de ferro, a seis quilômetros do centro da cidade de Bagé, local onde
construiu a charqueada de Santa Thereza. Conforme Figura 2, abaixo:
Figura 2 - Capela de Santa Thereza D’Ávila, ao lado está o
Teatro Santo Antônio, 1910.
Fonte: Acervo fotográfico da Fototeca Túlio Lopes do Museu Dom Diogo de
Souza/FAT URCAMP, Bagé RS, Brasil.
No entorno da charqueada, surgiu a Vila Santa Thereza, que,
além da residência de verão da família, abrigava, inicialmente, cerca
de 200 trabalhadores e respectivos familiares, que atuavam nas
charqueadas e nas fábricas, segundo Reis (1911). O estabelecimento
mantinha relações assalariadas com os empregados e trazia o modelo
europeu de produção e modo de vida ao entorno do negócio. A
assistência aos trabalhadores era completa: não só habitavam uma
vila construída para os trabalhadores da charqueada, como tinham
assistência médica e farmacêutica. Nos anos seguintes, a população
da Vila aumentou (REIS, 1911).
A edição de 03 de setembro de 1907 do jornal “O Dever”
descreve com detalhes a inauguração do hospital de Santa Thereza,
que, além de ambulatórios, contava com sala de cirurgia e leitos
4. Aconteceu no Rio Grande do Sul, teve início no ano de 1893 e perdurou até 1895, envolvendo os mais importantes grupos políticos. A República dava seus primeiros passos e dois
grupos pleiteavam o poder, o Partido Federalista – que agrupava a antiga nata do Partido
Liberal da época do império, comandado por Gaspar da Silveira Martins – e o Partido Republicano Rio-Grandense – do qual faziam parte os adeptos da república, e que era dirigido
por Júlio de Castilhos, então governador.
89
SUMÁRIO
Vila Santa Thereza: patrimônio, memória e audiovisual
para internação. Vários foram os médicos que, ao longo dos anos,
prestaram serviços nesse hospital. Hoje, o prédio abriga a atual escola
de educação infantil Ana Móglia, situada na Avenida Visconde de
Ribeiro Magalhães (FAGUNDES, 2005, p. 139).
Além do hospital, a Vila tinha moradias para cerca de 1000
pessoas, luz elétrica (com usina independente), uma Capela
de Santa Thereza D’Ávila, o Teatro Santo Antônio e o Coreto,
circundado pelo lago artificial, faziam parte da Vila, assim como
padaria, sapataria, restaurante popular, fruteira, comércio de secos
e molhados, fábrica de sabão, fábrica de escovas e uma fábrica de
línguas enlatadas, conforme descreve o jornal “O Dever”, em 1922:
Entre as diversas melhorias que foram feitas ao longo
dos anos, havia: Adega, padaria, fábrica de gelo, depósitos de madeira, fábrica de mosaico e tijolos, forno e cal,
com produção diária de 1.200 quilos. Anexo a estas fábricas também havia carpintaria, tanoaria, ferraria (Jornal
“O Dever”, 1922, p. 05, apud FAGUNDES, 2005, p. 140).
Na vila, havia também uma “quadra” de tênis para os
funcionários e uma vida cultural ativa. O Teatro Santo Antônio
garantia alegria à população; ali, havia um grupo de arte dramática,
composto pelos empregados do estabelecimento, uma banda musical
chamada “Lira de Santa Thereza” e um cinematógrafo. O espaço
tinha 6 camarins, 17 camarotes, 50 cadeiras na plateia e galeria para
150 pessoas. Além disso, havia mesa de bilhar, bilheteria, copa e um
piano que era tocado por músicos de renome internacional. No teto
do teatro, figuravam medalhões, como Carlos Gomes, Donizzetti,
Bellini, Puccini, Verdi, Chopin, no “pano de boca” havia uma alegoria
ao trabalho (FAGUNDES, 2005).
Os próprios moradores eram protagonistas das ações culturais,
como quermesses e cantos na capela. A linha férrea que percorria o
estabelecimento proporcionava o desembarque de grupos de artistas.
Com o passar do tempo, surgiu um time de futebol, o “Therezinha
Futebol Clube”, fundado em 1928.
Capela de Santa Thereza
A Capela de Santa Thereza, inaugurada em 1909, e o Teatro
Santo Antônio (Figura 2) também faziam parte desse setor. A capela
foi construída em homenagem a Santa Thereza D’Ávila, cumprindo
uma promessa feita por Dona Thereza, esposa de Ribeiro Magalhães.
90
SUMÁRIO
Vila Santa Thereza: patrimônio, memória e audiovisual
O dia da inauguração, 15 de outubro de 1908, foi escolhido por ser o
mesmo dia do nascimento da santa, em 1515.
A obra é do arquiteto Pedro Obino, filho de imigrantes italianos
de forte tradição artística, cujo pai esteve ligado à construção da
Catedral de Bagé. Além de arquiteto, Pedro Obino também era
artista plástico e assinou a pintura sacra que havia no teto da capela
(Figura 3).
Figura 3 - Fragmentos da pintura Sacra, obra de Pedro Obino no teto da capela de
Santa Thereza D’Ávila (Sagrado Coração de Jesus e Nossa Senhora da Conceição),
que, devido à depredação, não pôde ser restaurada.
Fonte: Acervo fotográfico da Fototeca Túlio Lopes do Museu Dom Diogo de
Souza/FAT URCAMP, Bagé RS, Brasil.
Tanto a família Magalhães quanto a comunidade passaram a
usar a capela durante as festividades, casamentos, batizados, etc. Além
da padroeira, guardava imagens de Santo Antônio, São Sebastião, São
Geraldo, Nossa Senhora da Conceição, entre outros.
Da Charqueada ao Centro
Associação pró Santa Thereza
Histórico,
a
Na década de 1960, ocorre o encerramento do ciclo do charque
em Bagé. Os princípios do abandono e do esquecimento marcam
a história dessa comunidade. A Vila Santa Thereza fica estagnada
por algo em torno de 30 anos, ou mais. A partir dos anos 1960, ali
permanecem os descendentes dos trabalhadores da charqueada,
habitando as casas da vila operária, idealizadas pelo Visconde de
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SUMÁRIO
Vila Santa Thereza: patrimônio, memória e audiovisual
Ribeiro Magalhães, e outras erguidas no entorno. A Escola Ana Móglia
(antigo hospital da charqueada) segue em funcionamento, atendendo
moradores. O teatro Santo Antônio foi o primeiro a desabar, seguido,
após alguns anos, pelo sobrado onde residiu o Visconde (Figura 4) e
que, após a sua morte, foi também um seminário.
A casa do filho mais velho do Visconde, de nome Antônio,
foi habitada por diferentes famílias, segundo histórias orais da
comunidade, mas a intempérie também o leva a ruínas. Em seguida,
o desemprego recai sobre aquela comunidade, que vivia do trabalho
relacionado à produção do charque. Resta a memória de uma época
dourada, econômica e culturalmente vívida, composta pelas histórias
da vila Santa Thereza e de Bagé, na fronteira sul-rio-grandense.
Passados mais de 30 anos, a fé traz um sopro de esperança,
quando a capela de Santa Thereza D’Ávila, em estado avançado de
depredação, começa a ruir, o que ocasionou uma reação conjunta das
comunidades da vila Santa Thereza e de Bagé. Num fôlego de lucidez
em benefício do patrimônio, uma exposição fotográfica é realizada
na Praça Silveira Martins, por iniciativa do curso de Arquitetura e
Urbanismo da Urcamp e do ECOARTE5 (Grupo de Arte e Ecologia
de Bagé). Em 1992, o estudante Luís Fausto Teixeira retrata, através
de suas lentes analógicas, a capela de Santa Thereza, já em ruínas.
Foi essa experiência acadêmica, mais precisamente na disciplina de
“Introdução à fotografia”, ministrada pela da professora Maria Luiza
Pêgas, do curso de Arquitetura e Urbanismo, juntamente com o
ECOARTE, que a organização da sociedade civil promoveu discussão
sobre o patrimônio, despertando a redescoberta e a luta incessante
pela revitalização e manutenção desse patrimônio cultural da cidade.
Figura 4 - Ruínas Vila Santa Thereza, antigo casarão do Visconde,
onde residia na Vila Santa Thereza.
Fonte: Acervo pessoal de Diego Fagundes. Fotografia de Diego Fagundes, 2004.
5. Grupo de bajeenses, associação em fefesa da Ecologia Ampla e da Arte.
92
SUMÁRIO
Vila Santa Thereza: patrimônio, memória e audiovisual
Desde então, a Vila de Santa Thereza saiu do anonimato e
do esquecimento e passou a ser o objetivo de vida de um grupo de
mulheres ativistas, movidas pela curiosidade, pela determinação e
pela ética, que trilharam um longo caminho, lideradas por Yerecê
Belmonte Móglia6 (Figura 5), uma referência para a comunidade da
Vila Santa Thereza. Ao visualizar as fotos em posse do Centro de Artes
Maria de Lourdes Alcalde (CENARTE)7, Yerecê fica impactada com a
depredação, pois tinha ligação direta com a Vila Santa Thereza, uma
vez que seu sogro sucedeu o Visconde na posse da charqueada e, com
isso, ela residiu naquela Vila por boa parte de sua vida, durante os
quais estabeleceu vínculos com a comunidade.
Figura 5 - Fotografia de Yerecê Belmonte Móglia, 2001.
Fonte: Fotografia do Acervo de Zélia Pedra Móglia, filha de Yerecê.
Com a singela pretensão de salvar uma capela depredada e ruída
pelas ações da intempérie, Yerecê estabelece contato inicial com os
moradores de Santa Thereza. Conforme relato da moradora Maria
Alcira Valério Teixeira e seu esposo, Paulo Roberto Barbosa Teixeira8,
6. Yerecê Belmonte Móglia, nascida em 26 de julho de 1927, filha de Jurandyr Loureiro Belmonte e Zélia Silveira Belmonte. Casou-se com Mário Tavares Móglia em 28 de setembro
de 1946, em Porto Alegre. Em Bagé, eles residiram alguns anos na Vila Santa Thereza. Seu
esposo era neto de Rodolpho Móglia, que foi contador do Visconde de Ribeiro Magalhães e
adquiriu a charqueada de Santa Thereza alguns anos após a morte do Visconde.
7. Grupo ativista pela arte, extinto, em março de 2002, por medidas econômicas da Universidade da Região da Campanha.
8. Maria Alcira Valério Teixeira e Paulo Roberto Barbosa Teixeira são moradores da Vila Santa
93
SUMÁRIO
Vila Santa Thereza: patrimônio, memória e audiovisual
neto de Rafael Fagundes Teixeira (trabalhador da charqueada),
Yerecê compareceu, em sua casa na época, recrutando moradores
para reuniões comunitárias.
A partir disso, uma luta conjunta é travada em prol da melhoria
da capela e, posteriormente, pela defesa do patrimônio, que reúne
um complexo arquitetônico, simbólico e histórico. Yerecê, em
contato com os moradores locais, junto à comunidade da Vila e ao
grupo de mulheres que atuavam no CENARTE - da Universidade
da Região da Campanha, fomenta ações em benefício da capela
de Santa Thereza D’Ávila. Sob a sua liderança, então presidente
da Associação Pró CENARTE, quermesses, rifas e brechós são
realizados para angariar fundos.
Dentre outras ações, a comunidade une-se para lavar as telhas
da capela, além de providenciar um cadeado e correntes para a
porta de entrada, na tentativa de barrar o vandalismo. O estado de
depredação e danificação impossibilitou a salvação da pintura sacra
do artista Pedro Obino, no teto da capela. No mesmo sentido, uma
série de ações foram propostas para sensibilizar a comunidade e
promover a valorização da memória da Vila.
Em 2002, ocorre o fechamento do CENARTE, fato que
resulta na fundação da Associação Pró Santa Thereza, instituída
legalmente como organização da sociedade civil e, posteriormente,
reconhecida como de interesse público9. A partir daí, os olhares
da comunidade de Bagé se voltam, novamente, à Vila. A luta é
fortalecida devido às relações de Yerecê, agora presidente da
Associação Pró Santa Thereza. Em contato com Luis Fernando
Cirne Lima10, a presidente articula projeto por meio dos incentivos
fiscais das leis LIC11 e Rouanet, que possibilitam a revitalização,
cujas obras começaram em 2005 e culminam com a inauguração
do Centro Histórico Vila de Santa Thereza, em 25 de outubro de
2008. O projeto é patrocinado pela Copesul, com contrapartida
Thereza. O relato oral de ambos foi concedido em 2014, durante as gravações do projeto
Inventar com a Diferença, realizado pela cineasta Adriana Gonçalves Ferreira.
9. Em 2002, a gestão da Fundação Áttila Taborda - Universidade da Região da Campanha (FAT-Urcamp) – fecha o CENARTE (Centro de Artes), por motivo de contenção de despesas.
10. Luis Fernando Cirne Lima foi presidente da Copesul (Companhia Petroquímica do Sul),
atualmente Petroquímica Braskem. Foi Ministro da Agricultura e tinha ligações com Bagé e
com a família Móglia - Yerecê e seu esposo, Mário Belmonte Móglia.
11. Lei Estadual de Incentivo à Cultura (LIC) do Rio Grande do Sul. As leis estaduais de incentivo à cultura surgiram após a criação da Lei Rouanet, com o objetivo de valorizar a cultura
local. A Lei 13.490/10 é um sistema unificado de Apoio e Fomento às atividades culturais
do estado do Rio Grande do Sul.
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SUMÁRIO
Vila Santa Thereza: patrimônio, memória e audiovisual
de 10% de empresas locais (os Supermercados Peruzzo e as Lojas
Obino), e a Prefeitura de Bagé. A empresa Tellus é responsável
pelo projeto. O arquiteto Flávio Kiefer assina o projeto do Centro
Histórico e oportuniza ao público uma experiência de contato com
a riqueza arquitetônica histórica da região, uma vez que o espaço
abriga memórias do desenvolvimento da região sul.
A Preservação do Patrimônio e a Vila de Santa
Thereza
Destacando a importância da memória, do patrimônio e da
identidade, este trabalho busca valorizar tanto a paisagem cultural
quanto a percepção e a representação da comunidade que habita o
entorno desse complexo urbano que foi a charqueada e hoje integra
o patrimônio e a memória social da cidade. Hoje, com processos
amadurecidos ao longo de 20 anos de ativismo, a Associação Pró
Santa Thereza, mantenedora do espaço, busca alternativas pela
preservação da Vila Santa Thereza. A falta de políticas efetivas de
preservação, a ação do tempo, o abandono e, principalmente, o
vandalismo praticado através dos tempos apagam parte da memória
social de Bagé, do Estado do Rio Grande do Sul e do Brasil, tornando
ainda mais relevante o ativismo da sociedade civil.
Alguns trabalhos apresentados durante o “ArquiMemória - III
Encontro Nacional de Arquitetos” sobre preservação do Patrimônio
Edificado, realizado em Salvador, no ano de 200812, evidenciam
que a avaliação das políticas patrimoniais, realizadas pelas diversas
esferas institucionais, não pode ser feita apenas com base em
ações diretas ou indiretas de seus agentes, mas devem considerar
também a omissão e o que não é feito, em razão de disputas ou
posicionamentos políticos. As formações dos autores dos artigos,
entre os quais se encontram planejadores, arquitetos, urbanistas,
gestores públicos, técnicos em restauração e pesquisadores das
12. Exemplo de trabalhos que tratam do assunto: ArquiMemória - III Encontro Nacional
de Arquitetos sobre preservação do Patrimônio Edificado, realizado em Salvador no ano
de 2008. (GÓMEZ FERRI, Javier. Do patrimônio à identidade: a sociedade civil como
ativadora do patrimônio na cidade de Valência. Gazeta de Antropologia, 2004, edição 20);
SERRA, Daniela Campos de Abreu. A participação da sociedade civil organizada na
gestão do patrimônio cultural de Ribeirão Preto: o CONPPAC/RP. 2006. Dissertação
(Mestrado) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de História, Direito e Serviço Social,
2006.Artigo publicado no caderno Direito & Justiça do jornal Estado de Minas, edição de
26 set. 2011. Maria Coeli Simões Pires - Secretária de Estado de Casa Civil e Relações Institucionais, membro efetivo do Instituto de Advogados de Minas Gerais.
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SUMÁRIO
Vila Santa Thereza: patrimônio, memória e audiovisual
ciências sociais, testemunham a interdisciplinaridade que deve
orientar as ações de preservação do patrimônio.
Ao se debruçarem sobre esses temas, os textos expõem uma
visão diversificada e rica, perseguindo uma preservação do patrimônio
que é custeada pelo Estado mas, crescentemente, vem sendo pensada
a partir de parcerias público-privadas, através da participação da
sociedade civil organizada.
Inaugurado em outubro de 2008, com a denominação “Centro
Histórico Vila de Santa Thereza” (Figura 6), o edifício recebeu,
primeiramente, a revitalização de parte da área pública: a capela de
Santa Thereza D’Ávila, parte da casa onde residia o filho do Visconde,
Antônio Magalhães (local do futuro memorial da Vila), o teatro
Santo Antônio (intervenção contemporânea) e uma praça cívica com
banheiros públicos (que abriga eventos a céu aberto).
Figura 6 - Área revitalizada do Centro Histórico Vila de Santa Thereza,
memorial, capela e teatro
Fonte: Acervo fotográfico da Associação Pró Santa Thereza,
foto de Júlio Pimentel, 2008
O complexo cultural abrange a totalidade da Vila Santa
Thereza, cuja revitalização integral faz parte dos planos da Associação
Pró Santa Thereza, incluindo a restauração das casas operárias e do
coreto, bem como um projeto paisagístico local.
Desde sua inauguração, em 2008, o Centro Histórico tem
vida dinâmica, realiza ações educativas, atividades de educação
patrimonial, eventos culturais, palestras, cursos e oficinas planejados
pela mantenedora, a Associação Pró Santa Thereza. A Associação
96
SUMÁRIO
Vila Santa Thereza: patrimônio, memória e audiovisual
Pro Santa Thereza também é reconhecida como ponto de cultura (o
Pampa Sem Fronteiras)13 devido à trajetória de envolvimento cultural
comunitário. O diálogo com universidades, coletivos de expressão
cultural, escolas e outros segmentos de organizações da sociedade
civil faz com que o espaço viva em pleno ativismo cultural.
Atualmente, é ponto de referência de cultura, educação
patrimonial, lazer, entretenimento e turismo. Recebe, anualmente,
cerca de 30 mil pessoas, segundo o livro de registros da Associação
Pró Santa Thereza. A política consolida o patrimônio como um
capital na sua existência, porém sua vida depende da relação com
suas raízes. Metaforicamente, o patrimônio é o coração que bate,
mas o que pulsa são as ações comunitárias, a compreensão da
comunidade, seu sentimento de pertencimento e o movimento que
ali acontece, partindo do sentido de entrelaçamento da sociedade
com esse patrimônio (VARINE, 2012).
A renovação do patrimônio é possível quando se atinge o
desenvolvimento social no território, e a sociedade cria e recria,
ressignificando o espaço, afirmando a consciência em si e a consciência
de sua riqueza patrimonial herdada e cultivada.
Até recentemente, o Estado, primeiro, e o mercado do
turismo, depois, foram os dois principais agentes patrimonializantes
culturais. Recentemente, um novo agente patrimonializador
emergiu com força: a sociedade civil, ou o Terceiro Setor. Isto se dá
através de grupos que, podendo assumir a forma de associações e/ou
plataformas, empreendem uma atividade de defesa do patrimônio
que, às vezes, entra em conflito com os outros dois agentes. A
sociedade precisa compreender que o patrimônio é o rastro que
a Humanidade deixa, rastro da existência sob todas as formas e
maneiras de vida. Pensar o Centro Histórico Vila de Santa Thereza,
sua essência, sua sobrevivência, seu legado e ressignificação, como
nasce e renasce, é questão de olhar com atenção para o entorno.
13. O Ponto de Cultura Pampa Sem Fronteiras é um projeto da Associação Pró Santa Thereza,
resultado de uma política pública da cultura, instituída pelo Ex-Ministro da Cultura Gilberto
Gil, idealizada por Célio Turino, historiador, administrador cultural e servidor público. Célio
foi convidado por Gilberto Gil para desenvolver um programa de democratização e acesso
à cultura, o Programa Cultura Viva, que deu origem à Lei Cultura Viva no Brasil. Constitui-se em um espaço articulador da cultura audiovisual na fronteira Brasil-Uruguai, em Bagé e
região fronteiriça. Fomenta a cultura de fronteira e dialoga com UNIPAMPA, URCAMP,
IFSUL, Escola Municipal Ana Móglia, Associação dos Deficientes Visuais e Auditivos, OSCIP Guayí, Abadá Capoeira, Mostra de Frontera en Rivera UY, Festival Internacional de
Cinema da Fronteira, ONG Mundo Afro Rivera, Biricunymba Comparsa de Candombe
Rivera, Llave 13 Comparsa de Candombe de Melo-Uy, Cuerda de Candombe Grillos Candomberos de Bagé RS.
97
SUMÁRIO
Vila Santa Thereza: patrimônio, memória e audiovisual
Processos de tombamento e inventariação, compartilhados e
participativos, devem ser observados com atenção direcionada aos
atores locais, à comunidade, aos funcionários atuantes nos espaços,
bem como aos políticos governantes.
A Constituição Federal de 1988 instituiu o regime democrático
de direito e seu exercício pelo povo, de forma indireta e direta.
Permitiu a participação da sociedade na gestão pública, garantiu
a preservação do meio ambiente e do patrimônio cultural para as
futuras gerações. No entanto, o histórico constitucional brasileiro
revelou como é complexo o caminho existente entre a norma
abstrata e a realidade concreta. Entre as possibilidades de exercício
da democracia direta, encontram-se as instâncias denominadas
Conselhos Municipais. Quanto à preservação do patrimônio cultural
local, a Constituição Federal definiu a competência do Município na
sua gestão, garantindo a colaboração da comunidade no processo. A
sustentabilidade do patrimônio depende dessa compreensão coletiva,
podendo, assim, acontecer a preservação no sentido da vida cultural
e da preservação física.
A troca entre “educadores”, ou indivíduos que ocupam
determinadas posições nos espaços culturais patrimoniais, com a
comunidade local é fator imprescindível para acionar o protagonismo
de ação das comunidades. Só assim pode acontecer a ação patrimonial,
que deve adaptar os museus para atenderem às necessidades das
populações e cumprirem seu devido papel social.
Para compreender o processo histórico de Santa Thereza e
a consolidação das instituições de proteção ao patrimônio, faz-se
mister debruçar-se sobre a contribuição de Choay (2006), pois, nos
séculos XIX e XX, a revolução industrial marca o fim de uma época,
reforçando o sentimento de preservação e também o valor histórico,
de aprendizagem e educação, seguindo o caminho aberto pela
Revolução Francesa no sentido da valorização e da democratização
do patrimônio. Além disso, Choay (2006) revela autores, arquitetos
e nomes de teóricos que abordaram restauro, arte e valorização de
monumentos, museus, antiquários e memória social. Nesse contexto,
é preciso buscar alternativas para valorizar e preservar a memória, a
partir das ações da sociedade civil.
Assim, a criação de um documentário audiovisual, com a
participação da sociedade civil, pode dar visibilidade e auxiliar
na preservação da memória, tornando-se um instrumento e um
patrimônio cultural e histórico regional. O produto, um documentário
98
SUMÁRIO
Vila Santa Thereza: patrimônio, memória e audiovisual
de 65 minutos, intitulado Vila Santa Thereza (2011), em alta resolução,
é o registro audiovisual da memória e do patrimônio histórico,
realizado com a participação dos moradores da Vila Santa Thereza no
processo de produção. Nele, encontra-se uma narrativa documental
que objetivou materializar, através da linguagem audiovisual/
cinematográfica, processos culturais e sociais do patrimônio histórico
de Bagé. O documentário explora a realidade, a partir de imagens
de fotografias antigas, jornais de época, documentos e objetos, assim
como gravações dos relatos de moradores da Vila de Santa Thereza,
ainda vivos, que nasceram, cresceram e ainda lá residem, tendo
presenciado o ciclo laboral do charque.
Suas histórias, lembranças e vivências, assim como de seus
ascendentes que ali também viveram, desde o surgimento, passando
pela fundação da charqueada que originou a vila, além da percepção
da diretora e roteirista do documentário em questão, que participa
como ativista pela preservação da Vila Santa Thereza e desenvolve
relações com a comunidade.
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de construção da memória da favela do Chapéu Mangueira. Dissertação de Mestrado (Pós-graduação em Memória Social e Documento) - Universidade do Federal
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BAGÉ. Lei nº 3.687, de 24 de abril de 2001. Tomba como patrimônio histórico e
cultural do município, no Bairro Santa Tereza, o coreto, o lago que o circunda, mais a
área em torno do referido lago, num raio de 12 metros, localizados próximo à Igreja
de Santa Tereza, bem como, as ruínas do sobrado que foi residência do Visconde Ribeiro de Magalhães e dá outras providências. Leis Municipais. Bagé, 1999. Disponível
em: https://bit.ly/2NYagM8. Acesso em: 29/04/2020.
BOUCINHA, Cláudio Antunes. A história das charqueadas de Bagé (1891-1940)
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CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. São Paulo: UNESP, 2006.
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99
SUMÁRIO
Vila Santa Thereza: patrimônio, memória e audiovisual
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100
SUMÁRIO
101
SUMÁRIO
A VISUALIDADE DA PHENIX: FOTOGRAFIA
E IMPRENSA ILUSTRADA EM BAGÉ
Luísa Kuhl Brasil 1
102
SUMÁRIO
A visualidade da Phenix: fotografia e imprensa ilustrada em Bagé
1
Introdução
A fotografia teve um papel primordial na construção de uma
visualidade moderna no início do século XX. Ocorrendo cada vez
mais um processo de complexificação dos suportes e meios onde
as imagens fotográficas eram exibidas, vemos surgir neste período
a publicação de imagens nas revistas ilustradas. Neste texto buscase compreender a inserção da imagem fotográfica, principalmente
retratos, na revista ilustrada Phenix, que circulou em Bagé e cidades
vizinhas como Dom Pedrito, Santana do Livramento, Pinheiro
Machado e Pelotas no ano de 1921 e os três primeiros meses de 1922.
O intuito desta análise é compreender de que forma a fotografia
contribuiu para a construção da imagem do indivíduo no espaço
público, problematizando as novas formas de sociabilidade, consumo
e comunicação no princípio de século XX.
A partir da inserção de imagens nos periódicos, surge uma
maior publicização da imagem de indivíduos que antes se restringiam
à troca de fotografias entre amigos e família. A revista ilustrada com
suas fotografias estampadas surge para trazer este novo homem
moderno à tona, para expô-lo ao julgamento dos olhares alheios e
situá-lo no interior de uma sociabilidade que emergia.
Phenix e o contexto das revistas ilustradas na década de 1920
Dialogando com caricaturas, pinturas e ilustrações, a fotografia
encontra espaço na revista ilustrada, pois se presencia neste momento
o surgimento de uma nova cultura visual que, alargando horizontes
de atuação, tem o papel de educação do olhar, ou seja, a construção
de sociabilidades que partem da exposição do indivíduo por meio da
imagem. Para sair do anonimato o que se almejava era se expor em
um periódico a fim de sustentar uma posição social.
A revista Phenix foi o primeiro periódico desta modalidade a
surgir na cidade de Bagé. A imprensa da década de XX na cidade
1. Doutora em História
103
SUMÁRIO
A visualidade da Phenix: fotografia e imprensa ilustrada em Bagé
já compreendia grandes jornais como O Dever e o Correio do Sul,
porém, não existia ainda um periódico que fosse dedicado a publicar
textos literários, poesias e fotografias sociais.
O grupo que criou a revista era formado por homens integrantes
das camadas média e alta da sociedade. Com profissões diversificadas
como médico, arquiteto, jornalista e advogado, os membros iniciais da
revista eram pessoas interessadas nos aspectos culturais, intelectuais
e mundanos. A palavra cosmopolita poderia se encaixar se falássemos
de uma cidade com suporte estrutural e político para tanto. O que
não é o caso de Bagé. No entanto, ao folhearmos as páginas da Phenix,
percebemos o intuito que seus redatores tinham de inserir Bagé, por
meio de um magazine, num universo cosmopolita parecido com o que
se vivia em Pelotas ou Porto Alegre no período. Atentos às mudanças
e ritmos que movimentavam a vida social bageense, seus redatores,
mesmo que timidamente, se encaixam numa das características mais
marcantes do “ser moderno” no início do século: observar, comentar
e criticar textual e visualmente a construção urbana e social.
Presente em todas as edições, os textos literários, traduções
de grandes escritores, as poesias e a crônica social formam um
padrão que nos leva a interpretar o público leitor da Phenix. Não
somente dedicado ao leitor comum que estava mais interessado nas
notícias em si, a Phenix vai ao encontro de um público ávido por
um refinamento intelectual que os outros periódicos não ofereciam.
Como no trecho do texto de abertura da revista pode-se constatar:
A nossa cidade, que se blasona de ser um centro de cultura, capaz de hombrear com todos os símiles do Estado,
não teve até agora, uma publicação d’este genero, que lhe
fosse o repositorio dos factos sociaes que avultam-nos
“faits divers” de uma urbs que se prêza, nem o expoente
da vida mundana, em tudo que a ella possa interessar
(Texto dos editores, Phenix, nº1, fevereiro de 1921).
Tendo em vista o baixo número de letrados neste período, a
revista ilustrada surge para satisfazer e legitimar um público voltado
à construção urbana e que podem ser denominados como uma
camada média urbana. O desejo de modernidade, de compartilhar do
consumo burguês dos grandes centros nacionais e internacionais e a
vontade de se aproximar do novo estilo de vida que surgia com a Belle
Époque, eram constantes também no interior do Rio Grande do Sul.
Cidade voltada ao trabalho com a terra, com uma população
urbana ainda bem inferior à do campo e relativamente distante da
capital, Bagé construiu um sentido de modernidade mais voltado a
104
SUMÁRIO
A visualidade da Phenix: fotografia e imprensa ilustrada em Bagé
ideias e projeções do que a prática da mesma. A partir dos textos
e imagens publicados na revista, pode-se perceber que não eram
somente assuntos ligados à pecuária e a vida campesina que
interessavam os cidadãos.
As novas formas de sociabilidade e o desejo de se inserir
numa modernidade urbana e social fizeram com que fosse criada
em Bagé uma revista que acompanhasse o modelo de muitas outras
produzidas no Brasil e no exterior. A fotografia teve um papel
primordial na construção dessa nova visibilidade que deveria ser
consumida, falada, gesticulada e colocada em promoção no interior
do Estado, a fim de encontrar um elo com os grandes centros do
país. Segundo Charles Monteiro:
Através da forma de edição de imagens fotográficas nessas revistas ilustradas estava em construção uma nova
imagem de indivíduo no espaço público e de formas
de sociabilidade e de consumo modernos na sociedade urbana brasileira. A interpretação das relações entre
imagens permite pensar a elaboração de uma pedagogia
do olhar e a construção de novos códigos modernos de
sociabilidades (MONTEIRO, 2012, p.1).
Pensar esta modernidade almejada (mesmo que não sustentada
na prática), por meio de fotografias, é julgar a imagem fotográfica como
instrumento da modernidade. Ver e dar-se a ver eram fenômenos
presentes na vida urbana – e campesina também – no início do
século XX. Os costumes europeus, manifestados aqui pelos móveis
domésticos, práticas de tomar chá, roupas e acessórios, entre outros,
deveriam ser expostos aos olhares para assim serem “copiados”,
garantindo status aos grupos mais favorecidos. No entanto, esta
modernidade estampada nas páginas das revistas, não pretendia
romper totalmente com o passado. O que existia em termos de
inovação não pode ser considerado como uma ruptura nos costumes,
mas sim uma “negociação com a tradição” (MONTEIRO, 2012, p.2).
As fotografias publicadas na Phenix demonstram justamente
esta noção de modernidade ainda conservadora. Ao contrário de
revistas como a Revista de Antropofagia ou a Klaxon, que se inserem
numa vanguarda literária, propondo uma ruptura com os padrões
das publicações desde o século XIX, a Phenix se mostra como uma
revista conservadora em termos formais, visuais e de conteúdo.
Deflagrando-se principalmente na fotografia, percebemos estes laços
ainda existentes, pois os retratos publicados não se diferenciavam na
maioria das vezes dos retratos de estúdio em voga no período. São
105
SUMÁRIO
A visualidade da Phenix: fotografia e imprensa ilustrada em Bagé
exatamente as mesmas imagens que circulavam num espaço mais
privado que, com a Phenix, passaram a circular no espaço público.
A Alemanha e a Rússia foram dois países que despontaram na
produção de revistas ilustradas que utilizaram meios de diagramação
para divulgação de novas linguagens artísticas e experimentações
estéticas a partir de 1910. Em Londres e Paris, nesse mesmo momento,
vemos a incorporação de fotografias que, acompanhando textos
e ilustrações, permitiram um aumento significativo da vendagem
das revistas. Criando, desta forma, uma cultura visual baseada na
multiplicação da imagem aliada a uma nova prática de escrita, mais
dinâmica e moderna (MONTEIRO, 2011, p.2).
Mais voltadas ao entretenimento, as revistas ilustradas no Brasil
tiveram o papel de inovação da linguagem textual. O público, cada
vez mais alfabetizado e familiarizado com modos de viver modernos e
cosmopolitas, estava ávido por uma imprensa que articulasse imagem
e texto. Tendo a fotografia, ao lado da caricatura e da publicidade,
papel importante para a exposição dessa dita modernidade.
No Brasil, o crescimento das revistas ilustradas acompanhou
os primeiros passos de uma criação de um mercado de periódicos.
A segmentação da imprensa estava despontando e cada dia havia
uma diversificação maior em relação a temas e objetivos nos
periódicos. Segundo Ivete Batista da Silva Almeida, entre 1912 e 1930,
o crescimento e a diversificação dos temas foram visíveis no Brasil.2
Os temas variavam conforme o público leitor. O processo
de complexificação e segmentação dos periódicos respeitava as
tendências de consumo, tanto comercial quanto comportamental,
de seu público leitor. Dentro dessa gama de possibilidades temáticas
que nos fornecem as revistas ilustradas deste período, podemos
assinalar três grandes grupos de publicações. Primeiro encontramos
aqueles magazines de vanguarda, onde os espaços para a inovação e
experimentação estética e formal tinham vez. É o caso da Revista de
Antropofagia e da Klaxon, já citadas. Em segundo, temos as revistas
literárias que desde o século XIX tinham espaço no Brasil. Estas
revistas se caracterizam pelo lançamento de novos autores e de uma
criação de um perfil da intelectualidade brasileira. Elas tinham por
essência um caráter pedagógico. Em terceiro, temos as revistas de
variedades. Este tipo foi o mais abundante no Brasil. Seu público era
2. A autora estabelece em números este crescimento: “no campo dos Noticiosos, cresceria
de 882 títulos, para 1.519; os Literários de 118, para 297; os Científicos de 58, para 212; os
Humorísticos de 57, para 99; os Almanaks de 14, para 66; os Didáticos de 8, para 33; os Históricos de 7, para 14; os Cinematográficos de nenhuma, para 10” (ALMEIDA, 2011, p.39).
106
SUMÁRIO
A visualidade da Phenix: fotografia e imprensa ilustrada em Bagé
principalmente formado por mulheres. Nestas revistas encontramos
publicidade, aspectos da vida social, esportes, cinema e literatura. Em
Porto Alegre as revistas de variedades eram a Máscara (1918-1928),
a Madrugada (1926) e, posteriormente, a Revista do Globo (19291967). Os estúdios de fotografia, que neste período se encontravam
no seu auge, encontram nestas revistas um espaço de publicização
da produção. A elite local estampava seus retratos posados, de
casamento, eventos políticos e de práticas de sociabilidade urbana
nas páginas destas revistas.
A Phenix, criada em 1921, pode ser considerada uma revista
de variedades ao passo que visualizamos diferentes tipos de textos
e matérias. Ela não foi uma revista que respeitou de forma rígida
a sessões contínuas. Ou seja, a cada número surgiam diferentes
espaços de escrita. Apenas algumas características são constantes
em todos os números. O espaço da charge feita pelo ilustrador
Henrique Tobal e denominada Typos Populares é presente em
todos os exemplares. A sessão No Paiz da Graça, assinada por Helio,
também é uma constante. Crítica de cinema, sessão de esportes,
uma sessão intitulada Futilidade e o caderno Bagé Rural surgem
com mais constância somente a partir da edição de número sete,
de agosto de 1921. Mesmo com o estabelecimento destas sessões,
os editores da Phenix não respeitaram rigorosamente em todas as
edições a presença dessas sessões. Ora vemos a crítica de cinema,
ora só visualizamos o caderno de esportes.
Os diferentes usos da fotografia na Phenix
Com uma padronização em todas as edições do espaço da
publicidade nas suas páginas, a Phenix se mostrou como uma revista
alinhada com os editoriais em voga na década de 20. As revistas
ilustradas eram primordialmente financiadas com verbas advindas
de assinaturas, vendas avulsas, colaborações ocasionais e anúncios.
Pela escassez das fontes de financiamento, quando era permitida a
diagramação dos anúncios, usualmente eles eram dissociados dos
outros conteúdos, se concentrando nas páginas iniciais e finais das
publicações (TRUSZ, 2006, p.70). O número de páginas dedicada à
publicidade na revista variava de 7, 8 ou 9 páginas no início, com o
mesmo número no final, ou seja, em média temos 18 páginas somente
de publicidade estampada na Phenix, tendo a revista uma média de
35 páginas por exemplar. Para Alice Trusz (2006, p.71) os motivos da
existência dessa distribuição da publicidade nas revistas ilustradas
podem estar relacionados tanto ao preconceito contra a publicidade
107
SUMÁRIO
A visualidade da Phenix: fotografia e imprensa ilustrada em Bagé
por parte da imprensa ou a uma forma mais objetiva de expor estes
anúncios ao consumidor, quanto às questões de ordem técnica e
financeira, o que tornaria menos custosa a impressão e mais eficiente
a propaganda. Aqui podemos acrescentar outro motivo. Este tipo de
distribuição da propaganda poderia estar relacionado às próprias
técnicas iniciais de publicidade e de mercantilização da imprensa,
onde o valor do consumo para a sociedade ainda não carecia de uma
inserção tão forte dos anúncios nas páginas de conteúdo.
A publicidade aparecia nas páginas iniciais e finais da revista.
Ora encontram-se anúncios de página inteira, ora vemos a divisão da
página em duas, três, quatro e até seis partes, sendo ainda os anúncios
todos em P&B. As partes interna e externa da contracapa também
eram utilizadas para este fim, sendo a contracapa o único local onde
a propaganda aparecia em cor, tendo em vista a alta visibilidade
que este espaço tinha na revista. Além disso, pela capa e contracapa
serem de um papel mais sofisticado, com impressão policromática
e, no caso da Phenix, com possibilidade de uma ilustração mais
elaborada, o espaço da contracapa era considerado o mais nobre para
a publicidade.
Os tipos gráficos e as molduras variavam conforme a
propaganda, dando ênfase às informações mais importantes dos
anúncios. Não há informação precisa de quem na revista elaborava
esta diagramação dos anúncios, mas como o ilustrador da revista
era o arquiteto Henrique Tobal, pode-se supor que era ele quem
desenhava as molduras e dispunha as propagandas nas páginas. A
maior parte dos anúncios era de casas de tecidos, papelaria e bazar,
remédios, confeitarias, armazéns, relógios, casas de moda, estúdios
de fotografia, tabacarias, automóveis, seguros de vida.
A presença de fotografias nos anúncios é tímida em relação
às ilustrações, por mais que estas também não eram tão frequentes,
dando-se mais destaque para os tipos gráficos e para as molduras. Os
anúncios que utilizavam a fotografia aparecem nas chamadas para
circo, cinema ou teatro, onde as atrizes ilustravam as páginas. Outra
forma de aparecer fotografia no espaço dos reclames são as imagens
de alguns pontos da cidade, normalmente ocupando meia página e
com título Bagé Pittoresco. Em algumas edições visualiza-se em meio
ao espaço dedicado à publicidade fotografias que se referem à moda,
como no caso desta página da edição de maio de 1921:
108
SUMÁRIO
A visualidade da Phenix: fotografia e imprensa ilustrada em Bagé
Figura 1. Phenix, maio de 1921.
Como pode-se perceber na imagem, todas as fotografias vem
com assinatura da Phenix. Sabendo que o fotógrafo principal da
revista era José Greco, deduzimos que estas imagens partiram de seu
ateliê. Outro destaque importante seria o formato e a disposição das
imagens, único conteúdo da página inteira.
Em algumas edições da Phenix, a regra que separava a
publicidade do conteúdo não se aplica. Talvez pela grande demanda
da população em expor suas imagens, conforme salienta o próprio
editor Túlio Lopes em vários momentos, ou talvez por uma inovação
técnica mesmo, algumas fotografias das “belas criaturas” da cidade
aparecem entre os anúncios, como no caso da figura 2:
Figura 2. Phenix, julho de 1921.
109
SUMÁRIO
A visualidade da Phenix: fotografia e imprensa ilustrada em Bagé
Mesmo não estando situadas nas extremidades da revista,
algumas “propagandas” ganham destaque em colorido. Situada na
terceira página, a propaganda dos artistas é valorizada na cor vermelha,
no uso da fotografia e na clareza do conteúdo que clama aos bageenses
a assistir o famoso dueto que se realizaria no Teatro Coliseu.
Figura 3. Phenix, agosto de 1921.
Ao longo do ano de 1921, algumas características da publicidade
da Phenix vão se transformando, nunca deixando de lado totalmente o
formato de propaganda no início e fim da revista. Alguns anúncios vão
se misturando às páginas de conteúdo, demonstrando a importância
cada vez mais marcante dada a certos produtos. Na imagem da figura
4, se destaca a propaganda do cigarro Veado:
Figura 4. Phenix, agosto de 1921.
110
SUMÁRIO
A visualidade da Phenix: fotografia e imprensa ilustrada em Bagé
Como uma forma eficaz de propagandear as cidades vizinhas,
buscando atingir o público que lá também consumia a revista, vemos
nas páginas de publicidade cartões postais que apresentam locais de
valor modernizante para a cidade, postais que trazem representados
bancos, construções urbanas recentes e praças, locais importantes
de recreação, onde o footing se realizava. Na imagem da figura 5,
visualiza-se dois espaços da cidade de São Gabriel, o primeiro cartão
postal apresenta a rua Coronel Sezefredo, dando destaque ao Banco
Pelotense. Esta fotografia não se encontra ali por pura coincidência,
a página anterior apresenta um anúncio deste banco que ocupa
página inteira, logo, esta fotografia tem um propósito claro de
reiterar o anúncio.
Figura 5. Phenix, s’etembro de 1921.
A presença da fotografia na publicidade da revista se mostra
como mais uma forma de reiterar o próprio anúncio. Por seu caráter
realista, estatuto maior da imagem fotográfica no período, ela se
torna uma ferramenta eficaz de prova e embelezamento nas páginas
de propaganda.
O espaço dedicado às múltiplas formas de literatura na revista
pode ser considerado a âncora desta magazine. Poesias, crônicas,
textos históricos, contos e traduções são uma constante em todos os
números. Segundo Charles Monteiro:
As revistas ilustradas foram um novo espaço de atuação de literatos e pretendentes a escritores na Primeira
República. No contexto de modernização urbana, de
expansão da imprensa e de novas demandas sociais de
informação e de entretenimento das elites e camadas
111
SUMÁRIO
A visualidade da Phenix: fotografia e imprensa ilustrada em Bagé
médias urbanas, as revistas ilustradas colocaram aos literatos um desafio. Tornou-se necessário abordar novos
temas, escrever textos mais concisos (contos e crônicas)
e de uma forma diferente para cativar um novo público
amplo e diversificado (MONTEIRO, 2011, p. 2-3).
O maior número de escritores colaboradores da Phenix foram
intelectuais da própria cidade de Bagé. Algumas vezes aparecendo
com pseudônimos, como os casos de Mourah e Léo, a maioria dos
textos são assinados por personalidades da intelectualidade local,
como Fernando Borba (que era também redator da revista), Jorge
Reis, Artur Damé (escrevia principlamente assuntos relacionados à
personagens históricos e críticas à urbanização da cidade), Henrique
Tobal (arquiteto da cidade e diretor artístico da Phenix), Publio
D’albuquerque e Julio Dantas. Alguns textos aparecem em espanhol
e assinam nomes como Mario Moratoria. O espaço para a expressão
feminina também é uma constante, a escritora Universina de Araujo
Nunes possui vários textos publicados, Hollanda Cavalcanti e Maria
Amalia Vaz de Carvalho também formam o rol feminino de escritoras.
A poesia é uma forma literária presente em todos os números da
revista. Aparecendo em inúmeras formas, a que mais chama a atenção
para esta abordagem é a seção intitulada No Paiz da Graça, assinada
por Helio. Em todos os números a poesia aparece vinculada à uma
fotografia de alguma dama da sociedade. Com um enquadramento
ilustrado, o retrato mostra e o texto floreia.
Figura 6. Phenix, maio de 1921.
O assunto “fotografia” é muito presente na revista, tendo em
vista a situação favorável dos estúdios naquele momento e também
112
SUMÁRIO
A visualidade da Phenix: fotografia e imprensa ilustrada em Bagé
a ligação do fotógrafo José Greco com Túlio Lopes e outros editores
da Phenix. Encontram-se referências escritas, fotografias retratando
o próprio fotógrafo e também caricaturas com poesia como na figura
7. Não podendo afirmar que a caricatura e a poesia são dedicadas à
Greco, apenas pressuponho sê-lo devido à morte prematura de sua
esposa Leocádia Chicchi Greco, em novembro de 19003, que deixou
Greco com filhos ainda pequenos. Eis a página da revista:
Figura 7. Phenix, junho de 1921.
As hipóteses que levam à esta interpretação são três: a primeira
obviamente é pela caricatura representar um fotógrafo. A segunda
é a referência na poesia à Dante Alighieri, italiano como Greco. A
terceira hipótese se refere à sátira final da poesia, onde um trocadilho
com a palavra mãe, insinua que o poeta fala de um pai solteiro.
Os temas que compõem as crônicas da Phenix são variados.
Desde críticas à urbanização, feitas por Henrique Tobal e Artur
Damé, até crônicas sociais, que, com humor e astúcia, nos permitem
abordar alguns aspectos dos relacionamentos sociais vividos no
período, ou pelo menos como eles eram publicados.
A crítica de cinema nos primeiros números da Phenix ainda
não tinha uma padronização tanto textual quanto de ilustração.
O primeiro texto que fala sobre o cinema (que se encontra já no
primeiro número da revista) na verdade não se refere a algum filme
em específico, mas trata-se de uma crônica sobre “as vantagens de ir
ao cinema”. Na página seguinte lemos outro texto, assinado por R. B
(possivelmente Romeu Borba), que fala sobre alguns filmes e sobre
3. A informação do ano da morte de Leocadia foi obtida no túmulo do casal no Cemitério da
Santa Casa de Caridade de Bagé.
113
SUMÁRIO
A visualidade da Phenix: fotografia e imprensa ilustrada em Bagé
as péssimas condições dos cinemas na cidade, tendo em vista o “luxo”
de cinemas como o Guaranny de Pelotas, cidade tão próxima. Mais
como uma crítica à situação dos teatros e do público expectador,
estes primeiros textos não tratam dos filmes em si, porém o segundo
texto faz referência aos artistas Mary Pickford e George Walsh, dois
vultos de grande sucesso no período (figura 8). Ao longo dos meses
surge uma padronização da página de cinema, com arte ilustrativa
específica e agora com textos mais voltados à crítica de filmes em
si. Na figura 9 vê-se o exemplo dessa padronização da ilustração do
caderno de cinema, denominado “Arte do silêncio”.
Figura 8. Phenix, fevereiro de 1921.
Figura 9. Phenix, maio de 1921.
Entendendo a cultura visual como um espectro de imagens que
não necessariamente advém só da fotografia, é necessário salientar
que o cinema na década de 1920 no Brasil teve uma importância
crucial no comportamento social, caracterizando estilos de vida
principalmente de influência norte-americana. A propaganda e a
crítica cinematográfica são presenças constantes na revista, e não
bastaria determinarmos somente o espaço da fotografia nestas
páginas para compreender o regime visual que se construía em
Bagé. Os textos sobre cinema que foram publicados na revista falam
sobre a prática de ir ao teatro como a grande atração da cidade.
Não é raro encontrar crítica aos filmes em série, onde assuntos de
pouca profundidade intelectual e humana atraem um vasto público.
114
SUMÁRIO
A visualidade da Phenix: fotografia e imprensa ilustrada em Bagé
Selecionei algumas páginas da revista para abordar esta questão,
mesmo não tendo a fotografia papel determinante.
Figura 10. Phenix, maio de 1921.
A figura 10 demonstra a importância do cinema para a
sociedade bageense do período. As atrizes Lila Lee e Viviam
Martin, ambas da Paramount Picture, estampam seus rostos para
propagandear os dois filmes que protagonizam. Esta propaganda se
encontra na página dedicada às propagandas gerais da revista. Na
legenda só visualiza-se o nome das atrizes e seus filmes, bastando
suas imagens para chamar o público. Na figura 11, novamente não há
fotografia, porém à menção aos atores Wallace Reid e Charles Ray,
como ícones daquela época, mostram a intimidade com a imagem
em movimento daquela população.
Figura 11. Phenix, junho de 1921.
115
SUMÁRIO
A visualidade da Phenix: fotografia e imprensa ilustrada em Bagé
Figura 12. Phenix, julho de 1921.
Na figura 12, que ocupa o espaço anterior ao editorial da revista,
visualiza-se um novo tipo de disposição tanto da imagem quando do
texto. Com diagramação onde imagem se intercala com texto, vê-se um
diálogo entre as duas esferas. A ilustração e a fotografia apresentam os
atores, enquanto o texto propagandeia seus filmes de grande sucesso.
A prática esportiva na década de 1920 se caracterizava como
mais uma processo de condicionamento social que visava a afirmação
do processo de modernização. A modernização dos costumes e,
concomitantemente, dos espaços de convivência. Além disso, a menção
à saúde e higiene também fazem parte do discurso sobre a prática
esportiva. Na Phenix, dois esportes ganham destaque em suas páginas.
O tênis, praticado no Bagé Tennis Club, era tido como um esporte
feminino e, recorrentemente, as moças eram flagradas praticando.
Essa tipologia fotográfica possui uma característica própria que não
é comum à disposição dos outros tipos de fotografias publicadas na
revista. A fotomontagem, ainda que incipiente, fornece um certo
movimento que caracteriza o entusiasmo pelo esporte (figura 13).
Figura 13. Phenix, junho de 1921.
116
SUMÁRIO
A visualidade da Phenix: fotografia e imprensa ilustrada em Bagé
Como já mencionado anteriormente, a aparição da imagem
fotográfica na revista não está diretamente relacionada com o texto.
Para os esportes não é diferente, como pode-se perceber na figura
14. Nesta página da revista, a fotografia assume papel essencial de
informação sobre o jogo realizado entre os dois times principais da
cidade o Guarany e o Bagé. Apenas a legenda que especifica cada time
é informação adicional.
Figura 14. Phenix, agosto de 1921.
As fotografias de esporte dizem respeito três questões centrais.
Primeiramente temos um apelo aos costumes de higiene e saúde
que somente o esporte poderia prover. Logo pode-se supor que o
esporte, por ser prática coletiva, propiciava relações sociais de cunho
modernizante, fazendo da prática de ir ao clube uma ferramenta de
distinção social. Um terceiro aspecto é a ideia de progresso que está
imbricada no ser esportista. Segundo Vitor Andrade de Melo, citado
por Cláudio de Sá Machado Junior em sua tese (2011), o praticante
de esporte “era o misto de homem e máquina que poderia ajudar a
construir para a civilização a ideia da necessidade de progresso” (MELO,
2007, p.221 Apud. MACHADO, 2011, p.199). Modernidade e progresso
eram conceitos que estavam se formulando nesta sociedade. Logo, a
prática de esporte e, mais ainda, o ato de fotografar o praticante foram
estratégias de consolidação e agenciamento social que contribuíram
para o fortalecimento da ideia de civilidade e modernidade.
O espaço dos retratos de estúdio na Phenix.
Falemos em números: o total de páginas (contando com capa e
contra-capa) de todos os números pesquisados da Phenix contabiliza
399 páginas. Destas 399 páginas, 197 contém fotografias. Ou seja, 49,3%
das páginas são ilustradas com fotografias. Estatisticamente falando, já
podemos visualizar a importância que a fotografia passou a ter no início
117
SUMÁRIO
A visualidade da Phenix: fotografia e imprensa ilustrada em Bagé
do século na imprensa. No entanto, vamos mais adiante. O valor dado
à imagem fotográfica não se encontra somente na imagem em si, mas
também no discurso que dela se faz. Este valor está na propaganda, no
aparecimento do termo nos textos literários, na importância dada ao
fotógrafo, enfim, ao universo que compreende o fazer fotográfico que,
sabemos, vai muito além da própria imagem. Neste subtítulo, tentarei
delimitar o espaço da fotografia na revista Phenix, justamente por meio
das imagens e de seus outros modos de ação.
As fotografias publicadas nas páginas da Phenix na maioria
das vezes aparecem desvinculadas do conteúdo escrito. Por se
apresentarem em formato de retrato, representando a elite da cidade,
a fotografia assume um caráter de “crônica social” por ela mesma.
A veiculação da fotografia como “obra única” ou seja, aparecendo
desagregada do texto, é um indício do seu caráter de produto cultural,
com seus autores, seus significados próprios e espaços de ação.
Em todos os seus números, a capa da Phenix contém um
retrato fotográfico. Todos são de mulheres jovens da alta sociedade
bageense, e por vezes de cidades vizinhas como Dom Pedrito e
Santana do Livramento. Com ilustração que centraliza a imagem
fotográfica, destacando-a, as capas da Phenix trazem modelos
jovens (as vezes crianças) que representam o discurso de beleza
e “fineza” que se almejava mostrar aos leitores. Além, é claro, de
atingir o público feminino, por mais que este não fosse o único
leitor da revista.4
Figura 15. Capa Revista Phenix, março de 1921.
4. A estimativa de público leitor por gênero não é possível de ser feita com exatidão. As interpretações são com base nos assuntos da revista e nas páginas que mostram as listas de
assinaturas. Todos os assinantes são homens, o que não quer dizer que todos liam ou que
somente homens a liam.
118
SUMÁRIO
A visualidade da Phenix: fotografia e imprensa ilustrada em Bagé
Figura 16. Capa Revista Phenix, junho, de 1921.
No corpo da revista encontramos os créditos da fotografia de
capa, indicando quem são as retratadas e o fotógrafo, na maioria
das vezes é José Greco. A inserção do fotógrafo na imprensa se dá de
forma mais enfática a partir da popularização das revistas ilustradas.
A Phenix já no seu primeiro número, e mais ainda, na segunda página,
traz o retrato de José Greco com a seguinte legenda: “O nosso distincto
amigo e collaborador Snr. José Greco, eximio photographo, proprietario
do Bazar Greco”. Como pode-se ver na figura 17:
Figura 17. Phenix, fevereiro de 1921.
Esta condição do fotógrafo neste momento está relacionada à
popularização e ao auge dos estúdios fotográficos. Bagé possuía na
época alguns estúdios como o Photographia Brasil, Ateliê Greco, Photo
Inghes e Giovaninni. O fotógrafo adquire um papel determinante na
119
SUMÁRIO
A visualidade da Phenix: fotografia e imprensa ilustrada em Bagé
representação das elites locais e por isso possui grande prestígio para
o público leitor da revista. As menções a José Greco não cessam ao
longo do ano de 1921, passando inclusive a ser o fotógrafo oficial da
revista. Segundo Monteiro o “fotógrafo é testemunha ocular” das novas
práticas que certos grupos, influenciados pelos costumes europeus,
introduziam nas sociedades locais (MONTEIRO, 2001, p.5). Para o
autor, o fotógrafo ajuda a construir a imagem da distinção de classe,
que, nas revistas ilustradas, encontram espaço para se legitimarem.
No editorial do segundo número da Phenix, os editores
reclamam da falta de um atelier de zincogravura5 na cidade, o que
dificulta e retarda a confecção dos clichês, já que estes tinham que
ser encomendados em Porto Alegre, fato que perdurou até agosto
de 1921, quando os senhores Heitor e Alcides Germano abriram um
atelier de photogravura na cidade, possibilitando a impressão total da
Phenix em Bagé.
No mesmo mês de março, lê-se um texto onde salienta-se o
grande número de retratos que são enviados para publicação, no
entanto, pede-se que somente mulheres (o então chamado “belo
sexo”) enviem retratos. O texto diz o seguinte:
Bagé goza, muito justamente, da fama de ser a terra das
moças bonitas...e dos homens feios. Seria motivo de intenso jubilo e orgulho para os organizadores da Phenix,
que os ultimos se mantivessem socegados e as primeiras
apparecessem a illustrar as paginas da revista. Isto dizemos, porque teem affluido espontaneamente á nossa
redacção retratos de marmanjos, que temos publicado
e publicaremos (alguns cá de casa...), mas que preferimos vêr substituidos por photographias de “demoiselles” gentis. Avisamos, por isso, aos nossos amigos do
sexo feio que queiram contribuir para o bom nome de
Bagé, que, ao envez de nos mandarem as suas proprias
caretas, remettam-nos retratos de suas irmãs, primas,
noivas, etc; que nos sentiremos honrados em publicar
(Phenix, março, 1921, nº2).
As fotografias da Phenix registram basicamente esportes (tênis
e futebol), o footing (que se dava na saída da missa), atrizes de
cinema, misses, cartões postais e acontecimentos sociais. Os retratos
são em maioria simples, sem cenário, em preto e branco e com baixa
qualidade técnica. No entanto, algumas fotografias se diferenciam
desta lógica. De qualidade técnica superior e composição mais
elaborada, estas imagens se destacam nas páginas da Phenix. Como já
foi mencionado, praticamente todas as imagens produzidas por José
5. Processo de gravar fotografia ou ilustração em zinco.
120
SUMÁRIO
A visualidade da Phenix: fotografia e imprensa ilustrada em Bagé
Greco são creditadas (prática não usual para as revistas da época)6,
estas não fogem à esta regra.
Figura 18. Phenix, maio de 1921.
Impressas em cores diferentes, a iluminação, a pose e o cenário
contribuem para a legitimação do fotógrafo como artista, tantas vezes
salientada pela própria revista em relação a José Greco. São diversos
os momentos que na Phenix vemos referência a Greco como o artista
da cidade e, além disso, às suas imagens como “arte photographica”.
Figura 19. Phenix, agosto de 1921.
6. Para maiores informações sobre o assunto ler: COSTA, Helouise. Pictorialismo e imprensa:
o caso da Revista O Cruzeiro. In.: FABRIS, Annateresa. Fotografia: usos e funções no século XIX. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008
121
SUMÁRIO
A visualidade da Phenix: fotografia e imprensa ilustrada em Bagé
Figura 20. Phenix, setembro de 1921.
As fotografias mais recorrentes são, sem sombra de dúvida, os
retratos de mulheres e crianças. A menção ao casamento, seja o já
consumado ou a própria promoção dele, são aspectos presentes na
Phenix. As fotografias das senhoritas demonstram exatamente esta
promoção. Normalmente a legenda indica a que família a fotografada
pertence, realizando assim, por meio da imagem, um agenciamento
social. Ou seja, as famílias que almejavam unir suas propriedades,
elevando cada vez mais suas riquezas, encontravam na fotogrfia e na
publicação delas uma maneira de propagandear, de expor a figura
feminina, valorizando seus dotes e belezas.
Os meandros entre a noção de público e privado no início do
século XX estavam se consolidando. No Brasil, costumes europeus
eram cada vez mais importados e com isso a noção de lar e de
intimidade se complexificava cada vez mais. O uso da fotografia, e
mais ainda, do retrato na imprensa segue esta lógica. Ao passo que o
indivíduo complexifica estas relações privadas, ele sente a necessidade
de expô-las para a consolidação de um status social que o projete
em uma sociedade cada vez mais homogeneizadora. Os retratos se
mostram como um agenciamento entre as camadas média e alta da
sociedade como forma de se diferenciar, e foi na imprensa que este
inventário privado ganhou um público.
122
SUMÁRIO
Referências
FABRIS, Annateresa. Fotografia: usos e funções no século XIX. São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, 2008
MONTEIRO, Charles. O lugar da fotografia frente a outras imagens e sua função
social na elaboração de uma nova visualidade urbana moderna nas revistas ilustradas
dos anos 1920. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São
Paulo, julho 2011.
MONTEIRO, Charles. A construção de uma visualidade urbana moderna nas revistas ilustradas brasileiras nos anos 1920. In: Relatório Final Edital Universal 2092011. Porto Alegre: PUCRS, 2012, pp. 1-15.
MACHADO JUNIOR, Cláudio de Sá. Fotografias da vida social: identidades e
visibilidades nas imagens publicadas na Revista do Globo (Rio Grande do Sul,
década de 1930). Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo, 2011.
TRUSZ, Alice Dubina. Publicidade e imprensa – A modernização na aliança entre
produção cultural, técnica e mercado. In.: RAMOS, Paula (Org.) A Madrugada da
Modernidade (1926). Porto Alegre: Editora UniRitter, 2006.
Fontes
Revista Phenix:
Anno I número 1: fevereiro de 1921
Anno I número 2: março de 1921
Anno I número 3: abril de 1921
Anno I número 4: maio de 1921
Anno I número 5: junho de 1921
Anno I número 6: julho de 1921
Anno I número 7: agosto de 1921
Anno I número 8: setembro de 1921
Anno I número 9: outubro de 1921
Anno I número 10: novembro de 1921
Anno I número 11: dezembro de 1921
Anno II número 12-1: fevereiro de 1922
Anno II número 2: abril ou março de 1922
Anno II número 3: janeiro de 1923
123
SUMÁRIO
PRÁTICAS ASSOCIATIVAS
NEGRAS EM BAGÉ: IMPRENSA,
CARNAVAL E CLUBES SOCIAIS ¹
Tiago Rosa da Silva 2
Rafael Rosa da Silva 3
124
SUMÁRIO
Práticas associativas negras em Bagé:
imprensa, carnaval e clubes sociais
1
2
3
Introdução
O presente capítulo tem como objetivo analisar a mobilização
negra na cidade de Bagé através das suas práticas associativas no
período pós-Abolição e na contemporaneidade, com ênfase na
Imprensa Negra, nos festejos carnavalescos e nos Clubes Sociais Negros.
Tais espaços foram gestados de norte a sul do Brasil desde o século
XIX, porém no pós-Abolição se intensificaram e foram responsáveis,
como afirma Silva (2020) por forjarem projetos coletivos de existência
para uma parcela significativa da população negra. Porém, antes de
adentrarmos nas experiências associativas das gentes de cor bageense,
vamos observar algumas características acerca da construção histórica
do município de Bagé, bem como as narrativas que ao longo dos anos
foram sendo construídas e ao mesmo tempo acabaram por invisibilizar
a presença e a atuação coletiva da população negra local tanto no
período da escravidão bem como no pós-Abolição.
“Tudo o que se vê plasma-se em uma inexorável supremacia
branca”4: a invisibilidade do negro na história de Bagé.
1. Esse texto é uma homenagem In Memoriam ao professor Ivoncléo Monteiro, homem negro
que tanto contribuiu para a manutenção e valorização do carnaval e dos clubes negros na
cidade de Bagé.
2. Mestre em História pela UFPel. Professor substituto de História do IFSUL Campus Avançado de Jaguarão/RS.
3. Mestre em Cultura e Territorialidades pela UFF. Doutorando em Antropologia pela UFF.
4. Ao escrever sobre a cidade onde forjou sua infância e adolescência, o intelectual negro
Gilberto Alves Soares observou Bagé e concluiu, em meados dos anos de 1980, que a localidade ainda guardava resquícios colonialistas. A presente citação do subcapítulo pode ser
encontrada em SOARES, Gilberto Alves. Se não me falha a memória. Lajeado: Obra do
autor, 2015, p. 34.
125
SUMÁRIO
Práticas associativas negras em Bagé:
imprensa, carnaval e clubes sociais
Localizado na fronteira Sul do Brasil e fazendo divisa com
o Uruguai, mais especificamente com a cidade de Vichadero,
o município de Bagé guarda características de uma localidade
interiorana cujas casas, ruas e praças bicentenárias se sobressaem em
meio a prédios e construções mais modernas.
Fruto de vários conflitos envolvendo portugueses e espanhóis
no inicio do século XVIII, a pacata vila chamada de São Sebastião de
Bagé passou diversas vezes do domínio espanhol para o português e
vice-versa. Com o intuito de amenizar tais conflitos com os espanhóis,
a coroa portuguesa começou a distribuir sesmarias para a ocupação e
demarcação dos espaços regionais, dando, assim, origem as primeiras
estâncias na região (LEMIESZEK, 2000, p. 64). Mas é a partir de um
episódio em específico – a marcha para Montevidéu chefiada pelo
Marechal Dom Diogo de Souza – que a localidade de São Sebastião
de Bagé vai começar a dar sinais de crescimento populacional. Na
sua partida para Montevidéu, Dom Diogo de Souza decide deixar
um acampamento militar estabelecido nos cerros da região. Tal
acampamento possuía combatentes, médicos, soldados, feridos,
mulheres e crianças. É a partir deste episódio, segundo alguns
historiadores locais, dentre eles Taborda (2015) e Lemieszek (2000) que
se originou o município de Bagé, ou seja, a partir de um acampamento
militar improvisado, mais precisamente em meados de 1811.
A partir de então o pequeno acampamento começou a crescer,
tornando-se uma vila e teve um crescimento rápido como bem
pontua o escritor Cláudio Lemieszek:
A evolução da organização administrativa de Bagé
igualmente é muito rápida, demonstrando seu precoce
crescimento e importância. Até 1832 pertenceu ao município de Rio Pardo, ano em que passou a integrar o município de Piratini. Em 1846, no mês de junho, foi criado
o município de Bagé, e em dezembro desse mesmo ano
procedeu-se à eleição para a primeira legislatura da Câmara de Vereadores. O foro foi instalado em 1848, e finalmente, em 1859, Bagé é elevada à categoria de cidade
(LEMIESZEK, 2000, p. 66).
Assim como as demais cidades interioranas da fronteira, Bagé
também apresentou uma significativa presença de trabalhadores/as
negros/as escravizados/as no decorrer do século XIX. Porém, o que
chama bastante atenção é o fato de que os escritores e historiadores
que se debruçaram sobre a história do município acabaram por
negligenciar as experiências destes sujeitos, pois em suas obras,
tanto Fagundes (1995), bem como Taborda (2015), Lemieszek (2000),
126
SUMÁRIO
Práticas associativas negras em Bagé:
imprensa, carnaval e clubes sociais
e Lemieszek e Garcia (2013) ignoram a presença e as experiências
de pessoas negras na condição de escravizados/as e livres. Nesse
sentido, tais autores acabaram por “pintar” o quadro de uma Bagé
sem conflitos e contradições sociais, e indo mais além, tais narrativas
atribuem o desenvolvimento da cidade à presença de imigrantes:
Juntas, as três colônias de imigrantes (espanhóis, portugueses e italianos) deixaram um belo legado de obras e
lição de vida a seus descendentes bajeenses. Fundaram
hospitais, sociedades beneficentes, casas comerciais e
industrias. Além disso, tiveram presença marcante na
música, nas artes e na literatura bajeense, não podendo
deixar de citar, desse modo, a qualidade dos artesãos e
profissionais de diversos ofícios de relevante utilidade
para a novel cidade. (LEMIESZEK e GARCIA, 2013, P. 15).
(grifos nossos).
Observando as principais produções acadêmicas sobre Bagé,
notamos que há a naturalização de uma história em que pesa
a figura do homem branco, do europeu, sendo este sinônimo do
progresso local. Tais questões são reforçadas nas obras de Fagundes
(1995) e Taborda (2015), que, junto com Lemieszek e Garcia (2013),
são tidos como os principais historiadores da cidade. Em sua vasta
produção acadêmica, o historiador Tarcísio Antônio da Costa
Taborda se empenhou em pesquisar as origens de Bagé e suas
principais lideranças políticas, ganhando destaque nomes como o
do Marechal Dom Diogo de Souza e Gaspar Silveira Martins. Os
escritos da escritora Elisabeth Fagundes se assemelham aos de
Taborda, no qual a sua principal preocupação foi a de estabelecer o
vínculo da história da cidade de Bagé junto à do Rio Grande do Sul,
sobretudo através de lideranças políticas locais e as “efemérides” da
“Rainha da Fronteira”5.
Porém, a realidade que se fazia presente na localidade de Bagé
é bem oposta ao que foi construída e está presente no imaginário da
cidade até os dias atuais. Referimo-nos aqui a grande circulação de
homens, mulheres, crianças e idosos negros que viviam na condição
de trabalhadores escravizados, livres e libertos e que transitavam
pela cidade, tanto na zona urbana como nos espaços rurais. Com
relação às pesquisas sobre escravidão na cidade de Bagé, o artigo
escrito por Oliveira (2010) e a tese de Matheus (2016) buscam
mostrar que a localidade de Bagé atravessou o século XIX com uma
significativa presença de trabalhadores/as negros/as escravizados/as,
5. Epíteto atribuído à cidade de Bagé.
127
SUMÁRIO
Práticas associativas negras em Bagé:
imprensa, carnaval e clubes sociais
configurando-se enquanto uma importante localidade escravista da
Província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Para se ter uma ideia,
o primeiro censo realizado no ano de 1846 mostra que Bagé possuía
uma população total de 4.104 pessoas. Destas, os/as trabalhadores/
as escravizados/as somavam 1.212, ao passo que pessoas livres
somavam 2.884. Com relação ao percentual, observamos que os/as
trabalhadores/as escravizados/as perfaziam 29,5% dos habitantes do
município (MATHEUS, 2016, p. 76).
Passados treze anos do primeiro censo realizado, a população
local crescera substancialmente, chegando ao número de 12.342
pessoas, ao passo que a população negra também acompanhou esse
crescimento como mostra a tabela abaixo:
Tabela: Estatística populacional das cidades escravistas – 1859
% de
Município
Livres
Escravos Libertos
Total
escravos
Porto
Alegre
20.341
8.417
965
29.723
28,31
Jaguarão
7.668
5.056
275
12.999
38,89
Pelotas
7.793
4.788
312
12.893
37,13
Rio Grande
15.432
4.369
71
19.872
21,98
Cruz Alta
22.073
4.019
392
26.484
15,17
Bagé
7.982
4.016
344
12.342
32,53
Fonte: Relatório do Presidente da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul Joaquim Antão Fernandes leão, 1859. Encontrada em: (http://www-apps.crl.edu/
brazil/provincial/rio_grande_do_sul) (SILVA, 2018, p. 33).
Ao observarmos a tabela acima, fica evidente a significativa
presença de trabalhadores/as negros/as escravizados/as que residiam
em Bagé no ano de 1859, no qual perfazem 32,53% da população total
do município. Esses dados são de extrema importância, pois a cidade
de Bagé, em proporção ao número de habitantes, acaba ficando na
frente da capital da Província Porto Alegre e só fica atrás da cidade
fronteiriça de Jaguarão e do polo charqueador de Pelotas, ficando a
frente, inclusive, da cidade portuária de Rio Grande6. Para além de
6. Cabe destacar a importância da cidade de Rio Grande no que diz respeito à chegada e
renovação dos grupos de trabalhadores/as negros/as escravizados/as no decorrer do século XIX, pois como bem apontou o historiador BERUTE, 2011, Rio Grande fazia parte
da chamada terceira perna do tráfico transatlântico de escravizados, pois ao chegarem aos
principais portos do Brasil (Salvador, Pernambuco e Rio de Janeiro), os africanos eram (re)
128
SUMÁRIO
Práticas associativas negras em Bagé:
imprensa, carnaval e clubes sociais
ocuparem os espaços urbanos e rurais da cidade de Bagé, homens e
mulheres negras também forjaram múltiplas estratégias de resistência
ao cativeiro, como é o caso das fugas, revoltas e formação de
quilombos, o que evidentemente chamava a atenção das autoridades
locais e mostrava a instabilidade dessa região de fronteira. A título
de exemplo, temos o trabalho do historiador Oliveira (2010), que
analisou algumas destas resistências empreendidas por negros/as
escravizados/as no município.
Analisando aspectos das fugas na cidade de Bagé através de
inventários, Oliveira (2010) nos trás informações que denotam essa
fragilidade característica da região fronteiriça de Bagé, em que ao
efetuar o inventário de seu esposo, em 1849, a proprietária Felícia Flora
Ribeiro informa que “seis anos antes fugiram para o Estado Oriental os
seus escravos Antônio da Costa, Matheus da Costa e Florinda crioula,
dos quais nunca mais soube notícias” (OLIVEIRA, 2010, p. 184). Além
das fugas, Oliveira (2010) também chama a atenção para tentativas de
formação de comunidades quilombolas na região, bem como furtos e
brigas envolvendo sujeitos negros na condição de escravizados. Tais
ocorrências acabavam chamando a atenção das autoridades locais,
como é o caso de uma correspondência enviada pelo subdelegado
da policia local para o presidente da Província no ano de 1845 e que
pedia, dentre outras demandas, o reforço da Guarda Nacional para
conter tentativas de insurreições negras na região:
Ilmo. Exmo. Snr.
A invasão dos bárbaros assassinos do governo de Montevideo, os intentos de sublevarem (sic) a escravatura nesta
província; os orientais imigrados dos dois partidos que
vagam pelos distritos sem mostrarem em que se ocupam,
e finalmente os desertores do Exército que também aparecem tem posto os cidadãos pacíficos em sobressalto, e
desassossego, e desejando tomar as providencias conveniente para estabelecer a tranquilidade pública consultei
Comandante Superior da G. N. deste município para estabelecer uma polícia dos G. N. da reserva [...] (OLIVEIRA, 2010, Op. Cit. p. 191). (Grifos nossos)
Mesmo havendo, como mostrado até aqui, uma significativa
presença negra na cidade de Bagé e que atravessou o século XIX,
os escritores e historiadores locais acabaram por construir uma
história no singular, uma história pautada em lideranças politicas
(homens brancos) e que negligenciaram as múltiplas experiências
distribuídos para outros portos, sendo um destes o da cidade de Rio Grande.
129
SUMÁRIO
Práticas associativas negras em Bagé:
imprensa, carnaval e clubes sociais
negras na região. Isso não ocorreu somente no período escravista,
pois como veremos a seguir, após a abolição formal da escravidão
em 1888, a cidade de Bagé seguiu com uma significativa presença
de pessoas negras e estas buscaram construir espaços próprios
para sua existência coletiva, como é o caso da Imprensa Negra, do
Carnaval e dos Clubes Sociais.
Pós-Abolição e Imprensa Negra em Bagé
Aqui o pós-Abolição é visto como um período com
características próprias, momento no qual sujeitos negros buscaram
ampliar margens de autonomia na construção de espaços próprios e
racializados, bem como buscaram dar novos significados a liberdade
e a cidadania, pois a partir do fim formal da escravidão – 13 de maio
de 1888 – o Estado brasileiro se empenhou em forjar uma sociedade
estratificada e cujo peso da exclusão caía, principalmente, sobre os
ombros das gentes de cor.
Com o inicio da Primeira República – 1889 – a cidade de Bagé já
se configurava dentre as principais cidades do interior do estado do
Rio Grande do Sul, tendo na pecuária o seu principal motor propulsor
da economia. Ao mesmo tempo em que a cidade crescia do ponto
de vista populacional, a vida política do município também crescia,
bem como os espaços e centros culturais (LEMIESZEK, 2000). Nesse
sentido, jornais foram inaugurados, bem como sociedades recreativas,
beneficentes, mutualistas e de classe. Em muitos destes espaços,
era vedada a participação da sociedade colored bageense. Podemos
citar aqui o Club Comercial e Caixeiral, que proibiam a entrada de
pessoas negras nas suas dependências. Pessoas negras também eram
proibidas de frequentarem espaços como cafés, estabelecimentos
comerciais e até mesmo calçadas do centro da cidade. Esses espaços,
tidos aqui como racializados, foram uma constante no pós-Abolição
não somente na cidade aqui analisada, mas também em diversas
outras cidades do Rio Grande do Sul e do restante do Brasil. Nem
por isso, pessoas negras ficaram “apáticas” e assistiram submissas tais
exclusões, mas pelo contrário, buscaram criar seus próprios espaços
também pautados na lógica da racialização na ânsia por melhor viver.
Dentre estes espaços podemos apontar a chamada Imprensa Negra.
Segundo nos mostra os estudos de Pinto (2006), jornais da
chamada Imprensa Negra existem no Brasil desde o século XIX.
Porém, foi no período pós-Abolição que tais impressos cresceram
130
SUMÁRIO
Práticas associativas negras em Bagé:
imprensa, carnaval e clubes sociais
substancialmente no país, tendo o Rio Grande do Sul uma gama
destes jornais como apontam estudos mais recentes de pesquisadores
empenhados, sobretudo, dentro do campo de estudos do pósAbolição, dentre os quais podemos destacar as pesquisas de Santos
(2011), Oliveira (2017), Perussatto (2018) e Al-Alam (2020), bem como
as pesquisas realizadas pelo GEPA – Grupo de Estudos sobre o Pósabolição - da Universidade Federal de Santa Maria.
No que diz respeito à cidade de Bagé, ao fazer um levantamento
dos jornais da Imprensa Negra nos arquivos do Museu Dom Diogo de
Souza (Bagé), bem como no acervo do Museu José Hipólito da Costa
(Porto Alegre), nos deparamos com 13 exemplares, cujo primeiro data
do ano de 1913 e o último do ano de 1952. Os títulos dos periódicos7
são, a saber: O Rio Branco (1913), A Liberdade (1920), A Defeza (1920),
O Palmeira (1922; 1927, 1949, 1952), O Rouxinol (1924), A Revolta
(1925), O Teimoso (1928), O Boato (1929), Lampeão (1934), Socega
Leão (1937; 1939) e O 28 de Setembro (1937, 1938, 1939) (SILVA, 2018).
Esses periódicos mencionados guardam muitas características
semelhantes entre si, dentre os quais o monitoramento do
comportamento em público de pessoas negras, principalmente as
mulheres. Era corriqueiro aparecerem nestes jornais colunas de
fofocas e os famosos “espiões”, que estavam empenhados em vigiar o
comportamento feminino como podemos ver na coluna abaixo:
Na noite de 25 foi encontrado as 9,30 horas um bloco de
morenas de grande algazarra na esquina da praça esporte e rua M. Deororo mais cautella meninas não abuzem
com quem passa na rua senão eu vou dizer o nome de vocês snta (sic) querem andar de joelhos vão para a Igreja
que o lugar de se ajoelhar snta (Socega Leão, 1937, p. 2).
Essas colunas foram uma constante nos jornais da Imprensa
Negra em outras cidades do Rio Grande do Sul como atestam os
estudos de Oliveira (2017) para Pelotas, Al-Alam (2020) para Jaguarão
e também se fizeram presentes em outros estados do país, como bem
pontua Domingues (2008) que estudou, principalmente, os periódicos
de São Paulo. Este mesmo autor afirma que uma das características da
Imprensa Negra de São Paulo era o combate à vadiagem, aos maus
costumes e ao uso de álcool. Segundo o referido autor, nas páginas
dessa imprensa, “o negro deveria ser trabalhador, honesto e cumpridor
7. Os periódicos A Defeza; O Boato; O Lampeão; O Rio Branco; O Rouxinol e o Socega Leão, foram
encontrados a partir de um projeto de digitalização realizado pelo Museu Hipólito José da
Costa. Eles podem ser encontrados na página: http://afro.culturadigital.br/imprensa-negra-no-rio-grande-do-sul/.
131
SUMÁRIO
Práticas associativas negras em Bagé:
imprensa, carnaval e clubes sociais
dos seus deveres, além de zelar pela moral e pelos bons costumes”
(DOMINGUES, 2008, p. 41). Nesse sentido, é importante destacar que
a vigilância e o controle sistemático do comportamento, sobretudo
das mulheres, vinha no sentido de positivar a imagem da coletividade
negra, tida no período pós-Abolição como um grupo desorganizado e
alvo das mais perversas teorias raciais da época em questão.
Além das já mencionadas colunas de fofocas, alguns jornais da
Imprensa Negra de Bagé também pautavam o debate sobre a instrução
primária. No editorial do periódico A Defeza (1920), que se intitulava
o Orgam da Raça Ethyopica – Litterario, Noticioso e Recreativo e era
dirigido por Pedro Paulo de Oliveira, há um artigo escrito por João dos
Anjos, cujo tema abordado foi o analfabetismo, pois, segundo João:
[...] é um assumpto não só de agrado como de interesse,
principalmente da nossa raça. Uma das coisas a que nos
devemos interessar é a instrucção, o aprendermos a ler
e a escrever; procurarmos conhecer o direito, e que e o
porque das coisas da vida. A instrucção é tudo. (A Defeza, 1920, p.1). (Grifos nossos).
Outro editorial que aborda a educação e a instrução primária
foi escrito por João Dutra, que em 1925 era o redator e proprietário do
jornal A Revolta, e segundo consta no editorial do referido jornal, a
luta da coletividade negra deveria ser em torno do:
Amor ao trabalho, guerra tenaz e desenfreada ao analfabetismo e ao vicio, união laboriosa e fecunda dos nossos
ideaes para a elevação de nossa raça, instituindo escolas
primárias, fundando sociedades, verdadeiros centros de
civismo, de labor, amparo e desenvolvimento physicos
e intelectuais [...] (A Revolta, 1925, p. 1). (Grifos nossos)
Como podemos observar, a pauta da educação e instrução
primária estava na ordem do dia dos redatores e proprietários de
jornais da Imprensa Negra bageense no pós-Abolição. Estes sujeitos
estavam atentos aos desafios colocados à população negra no período
citado, e sabiam que a elevação da raça passava, sobretudo, pela
alfabetização e educação, bem como a construção de sociedades
organizadas, no qual poderiam proporcionar oficinas de trabalho
para os seus e as suas.
Outra característica da Imprensa Negra de Bagé foi a
interlocução com outros periódicos negros de outras cidades do
Estado gaúcho, como é o caso do jornal O Succo de Santa Maria,
A Liberdade de Porto Alegre e A Alvorada de Pelotas. Além de
receberem os devidos periódicos em suas redações e de possuírem
132
SUMÁRIO
Práticas associativas negras em Bagé:
imprensa, carnaval e clubes sociais
correspondentes na cidade, como é o caso do A Alvorada, essas
interlocuções também se faziam presentes em visitas de times de
futebol que disputavam ligas específicas para jogadores negros. É o
caso da Liga José do Patrocínio de Pelotas e da Liga 13 de Maio de
Bagé. Tais ligas de futebol possuíam equipes que disputavam jogos
amistosos com seus co-irmãos de outras cidades, fortalecendo redes
de apoio e solidariedade (SILVA, 2018).
Festas, eventos culturais/sociais e atividades vinculadas às
sociedades negras, sobretudo as de cunho recreativo eram amplamente
noticiadas nas páginas da Imprensa Negra de Bagé, principalmente os
festejos destinados ao Momo, que como veremos a seguir, também foi
amplamente utilizado pela população negra bageense para se afirmar
numa sociedade cujas relações sociais eram racializadas.
Construindo espaços racializados: Carnaval e
Clubes Sociais em Bagé no pós-Abolição
Para além da Imprensa Negra, coletividades negras de Bagé
buscaram, também, atuar nos festejos destinados a Momo. Ao
vasculharmos os jornais redigidos por e para negros em Bagé bem
como o jornal Correio do Sul, este que fazia parte da imprensa
hegemônica local, acabamos por encontrar uma série de ranchos,
cordões e blocos carnavalescos compostos por sujeitos negros e que
tiveram uma importante atuação no carnaval da cidade. Aqui cabe
destacar a emergência de estudos sobre o carnaval numa perspectiva
racial negra que vem emergindo nos últimos tempos. Para o caso do
Rio Grande do Sul vale apontar para o trabalho pioneiro de Loner
(2001) sobre as cidades de Pelotas e Rio Grande e Germano (1999) e
Rosa (2008), que tiveram como foco de suas análises o carnaval na
cidade de Porto Alegre, entre outros trabalhos.
Para o caso das cidades de Pelotas e Rio Grande, Loner (2001)
encontrou entidades carnavalescas negras ainda no século XIX,
no qual algumas aparecem, inclusive, comemorando a abolição
da escravidão no Brasil. Já os estudos que focam na cidade de
Porto Alegre têm como palco de análise as décadas de 1930 e 1940,
momento marcado pela ascensão de Getúlio Vargas à presidência
do Brasil e pela construção de um discurso nacionalista no qual
o Estado buscou se apropriar dos festejos carnavalescos. Mas ao
mesmo tempo grupos carnavalescos compostos por sujeitos negros
133
SUMÁRIO
Práticas associativas negras em Bagé:
imprensa, carnaval e clubes sociais
também buscaram ocupar os espaços das ruas e se apropriar desta
tão famosa festa popular brasileira.
Para o caso de Bagé, as principais entidades carnavalescas
negras foram encontradas a partir dos anos de 1930 e 1940. É o caso do
Rancho Carnavalesco Vamos de Qualquer Jeito; Rancho Carnavalesco
Respinga; Cordão Carnavalesco Adeantados; Cordão Carnavalesco
Bambas da Cidade; Bloco Carnavalesco Piratas do Amor, Bloco
Carnavalesco Garotos da Batucada e Bloco Os Zíngaros (SILVA, 2018).
Pelos levantamentos feitos a partir dos periódicos aqui mencionados,
estas entidades foram as principais responsáveis por dar a tônica do
carnaval de rua de Bagé, mostrando todo o potencial organizativo de
coletividades negras.
No período carnavalesco era comum entidades negras
realizarem desfiles pelas ruas de Bagé, passando em visita à outras
entidades e em alguns casos finalizando suas apresentações em
frente a redação de jornais locais, como é o caso do já citado Correio
do Sul. Outro fator importante a ser levado em consideração era a
proibição, em muitos casos, destas entidades desfilarem em salões de
sociedades da elite local, como o Club Comercial e Clube Caixeiral,
salvo algumas exceções, como foi o caso do Garotos da Batucada
que em certa ocasião foram convidados a se apresentarem no Club
Comercial. Ademais, essas entidades ou desfilavam pelas ruas ou
realizavam concursos entre os seus, como o realizado pela Sociedade
As Teimosas no ano de 1925:
Concurso Carnavalesco – Promovido pela benquista
sociedade As Teimosas, levarão a efeito um bem organizado concurso, em que tomarão parte, todos os cordões
locais, para o fim de se apurar durante o período carnavalesco, qual é o cordão mais “simpático”. Os prêmios
se acharão expostos na vitrine da Ferragem Magalhães,
e a apuração será feita diariamente, na redação deste
semanário, a rua General Netto n: 6, onde de 2ª feira
em diante se acharão cupons a venda. O preço de cada
cupom será de cem reis. Só tomarão parte os cordões da
raça. (O Teimoso, 22/01/1928). (grifos nossos).
Como podemos observar a partir do excerto acima, a Sociedade
As Teimosas deu cabo em um concurso onde só poderiam participar
cordões da raça. Ou seja, era um concurso carnavalesco no qual a
identidade negra racializada era acionada pelos sujeitos negros, pois
como bem nos mostra a historiadora Fernanda Oliveira da Silva:
134
SUMÁRIO
Práticas associativas negras em Bagé:
imprensa, carnaval e clubes sociais
Os grupos negros, na ânsia por existir de forma plena,
gestaram uma contra ideologia por meio das bases disponíveis e, se a raça os impedia de acessar espaços, porque não a utilizar como uma característica para forjar
seus próprios espaços e por meio destes contrapor os
estereótipos que fundamentavam as discriminações?
(SILVA, 2017, p. 115).
Outro fator que merece destaque quando observamos as
entidades carnavalescas negras de Bagé é o seu rigor quanto ao
desfile e elaboração de fantasias. Em entrevista realizada com o Sr.
Luís Barbosa da Silva, conhecido popularmente pelos seus como
Casquinha, o mesmo afirma que não era qualquer pessoa negra que
poderia ingressar nas entidades carnavalescas negras que desfilavam
em Bagé nos idos dos anos de 1930. Como exemplo, o mesmo afirma
que existia uma rigorosa seleção para instrumentistas. Nesse contexto,
os ranchos e cordões carnavalescos desfilavam com a chamada
Orquestra, possuindo, além de instrumentos percussivos, trompetes
e trombones. Além dessa rigorosa seleção para quem quisesse compor
a bateria destas entidades, também existia uma rigorosa elaboração
de fantasias, como podemos observar na imagem abaixo:
Imagem 1: Cordão Carnavalesco Bambas da Cidade - 1947
Fonte: (Acervo particular de Luís Barbosa da Silva)
135
SUMÁRIO
Práticas associativas negras em Bagé:
imprensa, carnaval e clubes sociais
Além do Bambas da Cidade, outras duas entidades carnavalescas
negras que obtiveram destaque nos festejos destinados a Momo
em Bagé foram os Garotos da Batucada e o Bloco Os Zíngaros. O
primeiro acabou por se consagrar como um dos principais blocos
da cidade, ganhando diversos concursos realizados por lojas locais
e também em concursos patrocinados pelo jornal Correio do Sul.
Essa consagração fazia com que o referido jornal estampasse em suas
páginas uma fotografia dos membros do bloco, bem como o nome de
sua respectiva diretoria. Isso também ocorreu com o segundo bloco
mencionado, Os Zíngaros. Estes obtiveram reconhecimento a partir
dos anos finais da década de 1930 e inicio da década seguinte, quando
ganharam por quatro vezes seguida os concursos realizados pelo
jornal Correio do Sul. Assim como as entidades citadas anteriormente,
esta também era pautada por uma rigidez e organização por parte
dos seus membros. Isso pode ser o fator que motivou a criação, no
ano de 1944, de uma sociedade recreativa, no qual a partir de então
Os Zíngaros não se restringissem somente ao período do carnaval
e sim passassem a proporcionar lazer e recreação para seus sócios
durante o ano todo. Nesse sentido, a partir do ano de 1944 estava
fundada a Sociedade Recreativa Os Zíngaros, clube fundado por onze
trabalhadores negros de Bagé. A partir do seu estatuto, criado no ano
de 1948, podemos ter acesso aos nomes dos seus sócios fundadores,
sendo eles: Pedro Mendes, Nadir Alves da Costa, Martin C. Fernandes,
Constantino Monteiro, Antonio Alves, Antonio S. Alves, Claudio
Cavalheiro, Edmar C. Madruga, Ferdinando Saraiva, Elias Bell e
Gervasio Rodrigues.8
Consolidada a Sociedade, seus membros logo deram cabo de
organizar diversas atividades sociais/recreativas para seus sócios,
como é o caso de bailes de debutantes, quermesses, festas de São
João, bailes da Primavera dentre outras atividades sociais. Assim
como havia certa rigorosidade no ingresso aos cordões, ranchos
e blocos carnavalescos negros, nos clubes sociais também havia,
como deixa bem evidente uma parte de seu estatuto:
Todo o cidadão para ser admitido como sócio é preciso
ser moralizado e que não se dê á prática de maus costumes, assim como a senhora ou senhorita é preciso ser de
conduta inatacável.9
8. Estatutos da Sociedade Recreativa Os Zíngaros. 1948. Typografia da Casa Maciel, Bagé.
p. 27-28.
9. Estatutos da Sociedade Recreativa Os Zíngaros. 1948. Typografia da Casa Maciel, Bagé.
p. 4.
136
SUMÁRIO
Práticas associativas negras em Bagé:
imprensa, carnaval e clubes sociais
É importante destacar que tais espaços associativos forjados por
sujeitos negros no pós-Abolição, como é o caso do clube Os Zíngaros,
buscavam se afastar de estigmas que eram atrelados a estes, e a busca
de uma moral está vinculada a ideia de criação de uma identidade
negra positiva como bem pontuou Silva (2011).
Tanto o supracitado clube, bem como a Sociedade Recreativa
Palmeiras possuíam essas características. Essa última foi criada
no ano de 1948 e para além de realizar festas e eventos sociais/
recreativos, possuía também um departamento cultural e uma
biblioteca. Isso mostra que os sujeitos negros que frequentavam
estes espaços estavam conscientes da situação de suas coletividades
e buscavam meios de aprimorar seus conhecimentos intelectuais,
tendo em vista que tais sociedades estavam imersas em um contexto
no qual as relações sociais eram racializadas. Nesse sentido, era de
fundamental importância mostrar-se organizado e disciplinado
frente a uma sociedade racista.
A Sociedade Recreativa Palmeiras também realizava festas das
mais variadas em sua sede social situada na rua José Otávio, centro
da cidade de Bagé. Assim como ocorria no Clube Os Zíngaros, o
Palmeiras também realizava a escolha das rainhas, momento muito
aguardado pelos seus associados. Era uma escolha rigorosa de quem
iria, a partir de então, representar o clube em eventos sociais e em
visitas a sociedades co-irmãs, inclusive em outras cidades.
Como escrito anteriormente, a Sociedade Palmeiras extrapolava
as atividades meramente recreativas, possuindo um departamento
cultural e inclusive um jornal chamado Boletim do Departamento
Cultural Casemiro de Abreu, no qual noticiava as atividades que eram
realizadas na sociedade, bem como anunciava futuros movimentos a
serem feitos, assim como noticias das mais variadas que incluíam os/
as aniversariantes que pertenciam ao quadro de associados, poemas
dentre outras notícias. Também chama a atenção a criação de uma
biblioteca, mostrando que os/as associados/as buscavam meios de
expandir seus conhecimentos intelectuais, denotando toda uma
organização. Nesse sentido, cabe aqui a definição de Clube Social
Negro elaborada pela historiadora e intelectual negra Fernanda
Oliveira da Silva:
[...] os clubes negros são espaços associativos criados a
partir do século XIX, sobretudo a partir da década de
1870, por e para pessoas negras – com base em uma
ideia de raça – autoidentificadas como negras; pretas;
morenas; mulatas; colored; da raça de cor/raza de color;
137
SUMÁRIO
Práticas associativas negras em Bagé:
imprensa, carnaval e clubes sociais
etiópica; de cor; conrazanea; mantidos por associados
e associadas, instalados em uma sede física, própria
ou não, na qual desenvolviam/desenvolvem atividades
sociais – de caráter autodenominado cultural; social;
político; bailante/dançante; beneficente; recreativo e/
ou carnavalesco – cuja nomeação era/é autoatribuída
como club/clube, centro, associação e/ou sociedade e
cujo objetivo era/é manter um espaço de convívio social
no qual eram/são realizadas festas (SILVA, 2017, p. 148).
Para além de atividades meramente recreativas, os clubes
negros foram responsáveis por forjar novos sentidos de liberdade e
cidadania para segmentos da população negra de Bagé. Eram espaços
de debates políticos e articulações com outras sociedades que
existiam no Estado do Rio Grande do Sul e que inclusive, em alguns
casos, extrapolavam as fronteiras nacionais ao manterem vínculos
com sociedades negras existentes no Uruguai. Além de congregarem
famílias negras e forjarem uma maneira própria de existir em
meio a uma sociedade marcada pelas relações sociais racializadas,
essas sociedades, no qual se enquadra também a Imprensa Negra
e os cordões, ranchos e blocos carnavalescos, foram responsáveis
por construir uma identidade negra positiva, e com isso também
ajudaram na construção de outros territórios negros que se mantém
em pé ainda nos dias atuais. O próprio Zíngaros ainda está na ativa,
realizando diversas atividades sociais/recreativas/políticas. E tais
sociedades foram a porta de entrada de diversos sujeitos negros que
ao frequentarem seus espaços também construíram outros, como é
o caso de entidades vinculadas ao carnaval e que ainda existem em
Bagé na contemporaneidade e seguem afirmando uma identidade
negra, como veremos a seguir.
Por uma identidade negra bageense: territórios
e sociabilidade negra no carnaval de rua de
Bagé
Nos tópicos anteriores, percebemos a importância que as
práticas associativas negras exerceram para a população negra em Bagé
nas primeiras décadas do século XX, servindo não somente enquanto
espaços de recreação, como também de lutas e enfrentamentos
numa sociedade fortemente marcada por relações racializadas. Tanto
os clubes sociais, a Imprensa Negra e os cordões, ranchos e blocos
carnavalescos foram de vital importância para que pudéssemos
138
SUMÁRIO
Práticas associativas negras em Bagé:
imprensa, carnaval e clubes sociais
entender quais as dinâmicas são empreendidas em solo bageense
na contemporaneidade. Ao realizarmos o exercício de apontar e
problematizar como foram forjadas as inúmeras práticas associativas
negras na cidade de Bagé, damo-nos conta de que as construções
das práticas de sociabilidade negra que hoje são manifestadas nas
inúmeras comunidades são frutos de um passado recente, onde
os sujeitos negros criaram espaços para os seus. O campo do pósAbolição é uma chave analítica importante e que nos ajuda a perceber
como, num contexto atual, encontram-se os grupos ligados as práticas
carnavalescas e como ainda são forjados espaços de sociabilidade e
construção de uma identidade negra ligada ao carnaval.
Territórios, sociabilidade e identidade negra são palavraschaves que fazem parte do contexto carnavalesco na Rainha da
Fronteira. Levando em consideração a grande extensão territorial
que o município comporta, inúmeros bairros encontram-se afastados
da região central. É no centro que encontramos grande parte do
comércio local, além de mercados e uma centena de ambulantes. Ao
nos afastarmos da região central, nos damos conta não só da imensidão
da cidade, como também nos deparamos com inúmeros territórios
negros (Silva, 2019). A antropóloga Ilka Boaventura Leite, ao versar
acerca dos territórios negros em áreas urbanas, os conceitualiza
enquanto espaços demarcados por limites e reconhecidos por
todos que o frequentam, sendo parte fundamenta da construção de
processos de identificação coletiva (LEITE, 1991, p.40). Para a autora,
os territórios negros em áreas urbanas estão divididos em dois
modelos de ocupação: residenciais e interacionais. Os territórios de
ocupações residenciais caracterizam-se por espaços fixos, como por
exemplo, centros de umbanda ou candomblé/batuque10, ou mesmo
as sedes/barracões das agremiações carnavalescas. Já os territórios
negros de ocupações interacionais caracterizam-se por pontos de
encontros, como por exemplo, a região central da cidade de Bagé
nos festejos carnavalescos ou mesmo a realização dos ensaios das
agremiações em seus territórios. A contribuição do historiador
Bittencourt Jr (2005) acerca de território negro também nos ajuda
a pensar as configurações presentes em solo bageense. Para o autor,
os territórios negros se constituem enquanto objeto histórico de
exclusão social, onde são forjadas singularidades socioculturais de
10. Tendo como base uma pesquisa realizada pelo IBGE, Oro (2008) aponta que 1,26% da
população gaúcha afirmava pertencer a Umbanda ou Candomblé/batuque, totalizando
121,180 pessoas. Tendo em vista que a mesma pesquisa apontou que o número de candomblecistas e umbandistas no Brasil era de 525,013, o Rio Grande do Sul concentrava 23% do
total de membros das religiões afro-brasileiras.
139
SUMÁRIO
Práticas associativas negras em Bagé:
imprensa, carnaval e clubes sociais
matriz afro-brasileira (BITTENCOURT, 2005, p.37). Tanto os modelos
que são atribuídos à construção de espaços de identificação coletiva,
quanto os espaços que são objetos de exclusão social, fazem parte
do contexto das comunidades negras em Bagé e estão diretamente
ligadas as características e práticas carnavalescas que emanam dos
grupos negros destes territórios.
Atualmente, o carnaval de rua de bageense é dividido em dois
modelos: carnaval do “meio dia” e os desfiles noturnos competitivos.
Os desfiles do meio dia caracterizam-se por agremiações que
pertencem, em sua grande maioria, à clubes sociais das elites locais,
como por exemplo, o já mencionado Clube Caixeiral, no qual faz parte
o bloco Galo Caixeiro. Estes desfiles acontecem no sábado de carnaval
e contam com a participação de milhares de foliões, que percorrem
um trajeto de aproximadamente seis quarteirões da Avenida Sete
de Setembro, principal via da região central da cidade. Ao som de
marchinhas que são executadas por pequenas baterias e também por
trios elétricos – que executam algumas das músicas que estão entre as
mais tocadas nos veículos de comunicação e nas principais rádios da
cidade – o carnaval do meio dia conta com a participação de sujeitos
que se deslocam das inúmeras comunidades da cidade, bem como
de indivíduos ligados aos setores de elite, que desfilam em pequenos
blocos com seus abadás11.
Acerca do carnaval noturno, este caracteriza-se pela
competitividade, começando no sábado à noite e estendendo-se até
segunda à noite. As agremiações estão divididas em três categorias:
blocos burlescos, blocos carnavalescos e escolas de samba. Acerca
dos blocos burlescos, o etnomusicólogo gaúcho Mário Maia (2008),
ao se referir aos blocos burlescos da cidade de Pelotas, atenta para
características próximas as agremiações burlescas bageenses.
Segundo o autor, os blocos burlescos pelotenses desfilam satirizando
tudo e todos, apresentam carros alegóricos montados com muita
criatividade, além da antiga tradição dos homens desfilarem com
trajes femininos (MAIA, 2008, p.20). A abordagem de Maia (2008)
é bem próxima do carnaval burlesco de Bagé, tendo em vista a
criatividade na montagem das alegorias, no qual são usados, por
11. Em certos carnavais, a fantasia foi trocada por vestimentas que procuram mais identificar a
qual bloco o folião pertence do que seu caráter lúdico. Esse é o caso do carnaval de Salvador,
em que essa identificação ocorre pelos abadás. Tais indumentárias, que já foram chamadas
de mortalhas, têm origem numa fantasia, a de morto, e que, na qualidade de vestimenta, era
uma forma de contradizer pelas roupas a grande alegria com que se desfilava. Paulatinamente, a mortalha foi adaptada, com a redução de seu tamanho, pois os foliões a usavam em geral dobrada durante o desfile. Paralelamente, ganhou cores como elementos de padronização
dos blocos; estética que, de início, não era aceita. (XAVIER; MAIA, 2009, p. 218).
140
SUMÁRIO
Práticas associativas negras em Bagé:
imprensa, carnaval e clubes sociais
exemplo, papelões, garrafas pets, isopor e tecido TNT12. Nesta
categoria, são cinco os quesitos a serem julgados: samba-enredo,
alegorias/adereços, evolução, harmonia e bateria. Destacam-se as
alegorias de mão, estas feitas com isopor ou papelão e cola quente,
que contém tanto os símbolos das agremiações, bem como traz parte
da narrativa que o desfile se propõe a contar.
Os blocos carnavalescos, popularmente chamados de blocos
de limpo – em oposição aos blocos burlescos que são chamados
de blocos de sujo – apresentam características que se aproximam
das configurações das escolas de samba, contendo alegorias, alas e
fantasias. Segundo Silva (2019):
Obedecem a um enredo, que deve ser apresentado e
evoluído através da composição de alas, estas com fantasias. As confecções dos carros alegóricos já exigem
mais acabamento e se dispensam carros motorizados.
No lugar do mestre sala e porta bandeira, existe a porta
estandarte, figura responsável por apresentar o símbolo da agremiação. Os desfiles apresentam poucas alas,
sendo a bateria composta por aproximadamente trinta
indivíduos. Os quesitos a serem julgados são os mesmos
dos blocos burlescos, apresentando uma pequena mudança na evolução, onde o humor não é avaliado. (SILVA, 2019, p.21).
Tendo sua principal diferença nas fantasias, carros alegóricos
e alas, os blocos carnavalescos não costumam levar um grande
número de foliões em seus desfiles, tendo em vista verba escassa que
é repassada pela Secretaria de Cultura e Turismo, o que impossibilita
a produção em grande escala de fantasias.
Por fim, são as escolas de samba que encerram os desfiles
competitivos do carnaval de rua de Bagé. Diferente das agremiações
cariocas, por exemplo, que tem seus desfiles televisionados para o
Rio Grande do Sul no período carnavalesco, as escolas de samba de
Bagé apresentam-se na contramão da espetacularização (Duarte,
2011). Os carros alegóricos e fantasias são confeccionados com poucos
recursos, o que impede tanto a produção em grande escala, quanto o
luxo e riqueza de detalhes. Os quesitos a serem julgados obedecem a
um padrão que tem por referência as configurações, por exemplo, das
escolas de samba do Rio de Janeiro e São Paulo.
12. TNT é um material popularmente usado no carnaval de rua de Bagé. Sua característica está
em simular um tecido, servindo para forrar carros alegóricos e bonecos. Tem um custo baixo
e isso facilita que as agremiações possam utilizar. (Silva, 2019, p.19).
141
SUMÁRIO
Práticas associativas negras em Bagé:
imprensa, carnaval e clubes sociais
Imagem 2: Desfile da escola de samba Estrela D’Alva. Bagé, 2018.
Fonte: (Acervo particular de Rafael Rosa da Silva)
Tendo em vista que as agremiações carnavalescas emergem,
majoritariamente, nos territórios negros de Bagé, a construção dos
festejos de carnaval acabam por serem atribuídas aos sujeitos negros
e negras inseridos nestas comunidades. São estes grupos que forjam
os espaços de sociabilidade negra, tanto no período que antecede os
desfiles, como por exemplo, a realização de atividades para arrecadar
verbas para o custeio dos desfiles, como também nos períodos de
ensaios. Os espaços de sociabilidade negra emergem do encontro
de indivíduos de diversas comunidades, que em muitas ocasiões,
deslocam-se de para assistir a ensaios de agremiações. Estes encontros
são formadores dos territórios negros de ocupações interacionais,
como bem aponta Leite (1991). Para além dos ensaios de agremiações,
que se configuram enquanto espaços de sociabilidade para a população
negra de Bagé, a região central, onde os festejos carnavalescos
ocorrem, é de suma importância para a formação e configuração
dos espaços de sociabilidade e identidade negra bageense. São nas
vias do centro da cidade que as comunidades se encontram para
realizarem não somente os desfiles – produzidos comunitariamente
pelos sujeitos envolvidos com as agremiações – como também
para manifestar uma identidade negra voltada para o carnaval. Os
desfiles carnavalescos atribuem outros sentidos ao centro da cidade,
que durante o restante do ano apresenta outra configuração. Este
sentido, exercido pelos sujeitos negros das comunidades da cidade,
142
SUMÁRIO
Práticas associativas negras em Bagé:
imprensa, carnaval e clubes sociais
atribuem a estes grupos um caráter identitário ligado ao carnaval.
A manifestação desta identidade negra carnavalesca bageense (Silva,
2019) tem suas raízes nas primeiras décadas do século XX, onde as
práticas associativas negras tornaram-se referências para que na
contemporaneidade, as inúmeras agremiações ainda existissem. O
contexto carnavalesco de Bagé apresenta-se enquanto um espaço
não somente formador de uma identidade, como também atribui
um forte caráter de sociabilidade negra para quem dele participa,
sendo os territórios negros presentes no município o local onde estas
práticas ainda são forjadas e manifestadas.
Considerações finais
Como podemos observar, as práticas associativas que foram
forjadas pelos sujeitos negros em Bagé no pós-Abolição, não somente
apresentaram um caráter de luta e enfrentamento perante uma
sociedade fortemente marcada por relações racializadas, como
também serviram para mostrar como os grupos negros organizavamse nos espaços recreativos. A busca por visibilidade desses
sujeitos nas primeiras décadas do século XX ainda reverberam na
contemporaneidade. O presente capitulo, ao retornar para o século
XIX, apontou a invisibilidade social e cultural dos sujeitos negros em
solo bageense através da construção de uma narrativa branca e de
descendência europeia que vislumbrava a consolidação da cidade de
Bagé. Porém, como fora demostrado, a presença dos sujeitos negros
em solo bageense nesse contexto era de extrema significância. Mesmo
assim houve um “apagamento” das trajetórias individuais e coletivas
destes sujeitos na formação histórica do município.
Contudo, ao entrarmos nas primeiras décadas do século XX, foi
possível perceber a importância das práticas associativas que fizeram
parte dos grupos negros na cidade de Bagé, tendo na Imprensa
Negra, nos Clubes Sociais e nos festejos carnavalescos importantes
ferramentas de enfrentamentos, além da demonstração do poder
organizacional na criação de espaços recreativos, educacionais e,
principalmente, racializados. Os carnavais das décadas de 1930 e
1940, manifestados, por exemplo, pelo bloco carnavalesco Garotos
da Batucada, ainda estão presentes no imaginário local dos foliões
mais antigos da cidade. Estas agremiações, importantes no contexto
do pós-Abolição, também se mostram de suma importância ao
debatermos o carnaval contemporâneo de Bagé, pois como já fora
dito, as práticas associativas negras em Bagé são referenciadas nas
agremiações que ainda se mantem ativas no carnaval de rua bageense.
143
SUMÁRIO
Práticas associativas negras em Bagé:
imprensa, carnaval e clubes sociais
Não somente dentro dos territórios negros que existem em Bagé,
como também nas vias da região central no período momesco, são
construídos espaços de sociabilidade negra, que ajudam na afirmação
e manutenção de uma identidade negra local, esta forjada no início
do século XX através das práticas associativas negras e que ainda se
mantém presentes na cidade.
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144
SUMÁRIO
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145
SUMÁRIO
O INSTITUTO MUNICIPAL
DE BELAS ARTES: ESTADO DO
CONHECIMENTO E PERSPECTIVAS
PARA FUTURAS ABORDAGENS
Rafael Rodrigues da Silva1
Luís Borges dos Santos Júnior2
Alessandro Carvalho Bica3
146
SUMÁRIO
O Instituto Municipal de Belas Artes:
estado do conhecimento e perspectivas para futuras abordagens
1
2
3
Introdução
No ano em que escrevemos o presente capítulo, o Instituto
Municipal de Belas Artes – Profª. Rita Jobim Vasconcelos (IMBA, daqui
em diante) completa cem anos de existência e segue uma instituição
de alto valor simbólico para a sociedade bajeense. Ao longo de sua
história não só centenas de pessoas de Bagé e da região receberam
formação em Música, Dança e Artes Visuais, através dos diversos
cursos que o IMBA ofereceu ao longo desse século, como também
serviu de entreposto cultural promovendo ou facilitando a realização
de concertos e outras apresentações artísticas que dificilmente
poderiam ter sido realizadas sem o esforço da instituição.
Dada sua relevância social, sua história foi relatada por diferentes
historiadores (CORTE REAL, 1984; LEMIESZEK, 1997; FAGUNDES,
2004) cujo trabalho proporcionou a base para as pesquisas mais
recentes sobre a instituição. Nestes trabalhos, o surgimento do
IMBA é comumente apresentado como um reflexo da valorização
que a população de Bagé deu e dá à cultura e, sobretudo, à música.
Não é nosso intuito negar o apreço da sociedade à manifestações
culturais, tal como as promovidas pelo IMBA, no entanto, trabalhos
mais recentes vêm ressaltando outros fatores que contribuíram para
a fundação e manutenção do IMBA na cidade, resultando em uma
complexa trama política que envolve a política institucional, questões
de classe, raça e gênero.
1. Doutor em Música e professor da Unipampa.
2. Mestre, Mestrado Acadêmico em Ensino/Unipampa.
3. Doutor em Educação e professor da Unipampa.
147
SUMÁRIO
O Instituto Municipal de Belas Artes:
estado do conhecimento e perspectivas para futuras abordagens
O presente artigo tem por objetivo retomar de forma sucinta
a história da instituição ressaltando aspectos trazidos à tona pelas
pesquisas realizadas nas duas últimas décadas e apontar algumas
lacunas de conhecimento a serem exploradas em trabalhos futuros.
Esses avanços realizados nas últimas décadas são fruto de pesquisas
acadêmicas em nível de graduação, mestrado e doutorado e, também,
do projeto de extensão Memórias do Ensino de Música em Bagé e
região que, coordenado pelo Prof. Dr. Rafael Rodrigues da Silva,
realizou, até o momento, duas entrevistas coletivas com professores
renomados da cidade cuja história remonta de alguma forma ao
IMBA: Profa. Neiva Petri Martinez (NEIVA, 2017) e Prof. Ivonléo
Monteiro (IVONLÉO, 2017).
Achamos pertinente pontuar que os esforços em compreender
a história do IMBA ganharam especial força a partir do surgimento
do curso de Música da Universidade Federal do Pampa (Unipampa),
surgimento esse também fruto do apoio institucional oferecido pelo
próprio instituto. Em atividade desde 2012, o curso vem concentrando
em torno de si diversos esforços de pesquisa sobre o IMBA, realizados
por seus professores/as e alunos/as, no entanto, tais esforços em
compreender o passado da instituição não se limitam à área de
Música tendo tido contribuições muito significativas oriundas das
áreas de Educação, Ensino, Educação Física e Memória Social.
Ensino de Música em Bagé no período anterior
ao IMBA
Fundada no século XIX, a cidade de Bagé tem registros de
formação de conjuntos musicais e desde suas primeiras décadas,
abarcando tanto aqueles voltados a fins litúrgicos, quanto militares,
até os ligados ao entretenimento nos mais variados eventos sociais
que a cidade abarcava (LEMIESZEK, 1997; FAGUNDES, 2004). De
acordo com Lemieszek (2000) a vida musical era intensa, com
professores de música, sociedades musicais, sociedade filarmônica,
banda militar, clubes com grupos musicais e teatros.
O primeiro conservatório oficial4 da cidade, o Conservatório
Municipal de Música (CMMB), fundado em 1904, é também o quarto
4. Neste trabalho, entende-se por conservatórios oficiais os estabelecimentos de ensino de
música cuja organização, ação e diplomas emitidos são reconhecidos pelo poder público.
Comumente, estes estabelecimentos recebiam aportes financeiros e infraestrutura para realizar suas atividades oriundas de iniciativas municipais, estaduais e/ou federais. Seguramente
houveram muitos outros estabelecimentos privados de ensino de Música ao longo do século
148
SUMÁRIO
O Instituto Municipal de Belas Artes:
estado do conhecimento e perspectivas para futuras abordagens
conservatório do país, tendo sido precedido apenas pelo Conservatório
Imperial de Música do Rio de Janeiro (1841), o Conservatório de Música
do Pará (1895) e o Conservatório de Música da Bahia (1895). Dirigido
pelo espanhol Enrique Calderón de La Barca, o conservatório esteve
em funcionamento por três anos usando como sede a Intendência
Municipal da cidade (SILVA, 2019; LEMIESZEK, 1997).
Figura 1 - Enrique Calderón de la Barca (c. 1909).
Fonte: LOS MAESTROS, 1909.
Como era comum às instituições conservatoriais da época o
CMMB limitou sua atuação ao ensino e difusão da música de concerto
europeia, particularmente a música das óperas e operetas italianas
muito em voga nos teatros do período. Com um corpo docente
formado por quatro professores homens, poucas foram as mulheres
inscritas, mesmo sendo a aprendizagem de piano já compreendida à
época como uma prenda social importante para a educação feminina.
Os cursos oferecidos contemplavam canto, piano, violino, bandolim,
flauta, oboé, além das aulas de teoria e solfejo, comum a todos os
alunos. As apresentações de alunos e professores foram realizadas no
Teatro 28 de Setembro (SILVA, 2019).
XIX e XX cuja denominação usava o termo conservatório.
149
SUMÁRIO
O Instituto Municipal de Belas Artes:
estado do conhecimento e perspectivas para futuras abordagens
O contexto de criação do IMBA
Nos anos que se seguiram à fundação do CMMB, se observa
um constante movimento de fundação de conservatórios oficiais
pelo país. Somente durante a Primeira República, entre 1889 e 1930,
o Brasil passou de um país com apenas um conservatório oficial para
um país com quinze conservatórios oficiais ativos, sendo que dez
deles instalados no estado do Rio Grande do Sul.
As razões para a alta concentração de conservatórios no estado
do Rio Grande do Sul e a rapidez com a qual se multiplicaram passaram
a ser melhor compreendidas em suas múltiplas dimensões a partir de
pesquisas mais recentes. O trabalho de Bica (2013) explorou o modo
pelo qual a fundação do IMBA e de outras instituições educativas
estavam alinhadas tanto às políticas estaduais levadas adiante
pelo Partido Republicano Rio-grandense (PRR), quanto à filosofia
positivista e castilhista na qual se baseava o ideário do partido. Os
trabalhos oriundos do Grupo de Pesquisas em Musicologia da UFPel
(NOGUEIRA, 2007; GOLDBERG; NOGUEIRA, 2010b; NOGUEIRA;
GOLDBERG, 2011), bem como o trabalho de Simões (2011) são
particularmente férteis no sentido de compreender o surgimento
do Centro de Cultura Artística do Rio Grande do Sul e sua atuação
diretamente responsável pela fundação do IMBA.
O Centro de Cultura Artística do Rio Grande do Sul foi uma
entidade fundada em 1920 cujo objetivo era o de implementar no
Estado um projeto de “interiorização da cultura artística”. Este
projeto consistia em uma ação combinada de formação de plateia
para a música de concerto europeia e criação de conservatórios pelo
interior do estado. Estes conservatórios, além de difundir o repertório
da música de concerto europeia através do ensino, serviriam como
novos espaços para a realização de concertos e, portanto, campo de
trabalho para os músicos de Porto Alegre, cidade onde a constante
chegada de músicos imigrantes aumentava muito a oferta de músicos
profissionais na cidade sem, necessariamente, expandir os espaços de
trabalho (SIMÕES, 2011).
Foi por iniciativa particular de um dos professores de piano do
Conservatório de Música do Instituto de Belas Artes, Guilherme Halfeld
Fontainha (1887-1970), juntamente com o bandolinista e professor
José Corsi (1880-1938) diretor do Instituto Musical Porto Alegre e vicepresidente do Centro Musical Porto-Alegrense, que foi colocado em
prática um projeto de criação de conservatórios no interior do estado.
Esse processo de levar o ensino de música ao interior do estado teve
150
SUMÁRIO
O Instituto Municipal de Belas Artes:
estado do conhecimento e perspectivas para futuras abordagens
como meio a criação do Centro de Cultura Artística do Rio Grande
do Sul em 1920, com Fontainha ocupando o cargo de diretor artístico
e Corsi como diretor técnico. No projeto estava incluída a ideia de
manter um mesmo padrão de ensino entre esses conservatórios, bem
como a circulação de artistas nacionais e internacionais.
Com o apoio de Borges de Medeiros, presidente do Estado,
rapidamente foi colocado em prática no ano de 1921. Com uma
rapidez notável para um período onde as comunicações se davam
por telegrama e o deslocamento entre cidades via trens a vapor,
Fontainha e Corsi estiveram diretamente envolvidos na criação
de quinze conservatórios em diferentes cidades: Itaqui (1921),
Bagé (1921), Alegrete (1921), Cachoeira (1921), Montenegro (1921),
Livramento (1922), Jaguarão (1922), Rio Grande (1922), São Leopoldo
(1922)(SILVA, 2019; SIMÕES, 2011; GOLDBERG; NOGUEIRA, 2009).
A inauguração oficial, prevista inicialmente para março de 1921,
aconteceu no dia 7 de maio de 1921, já com a lista de matriculados
publicada. O evento contou com a presença da orquestra do Centro
Musical Porto-Alegrense (sob a regência de Luiz Piedrahita) em
turnê inaugurando também outros conservatórios do mesmo projeto
(SILVA, 2019; GOLDBERG; NOGUEIRA, 2009).
Diferente do CMMB cujo corpo discente foi composto
majoritariamente pelo sexo masculino, o IMBA seguiu por
décadas, desde a sua fundação, atendendo a um público, na
prática, exclusivamente feminino, o que já havia sido apontado por
Lemieszek (1997). Curiosamente, a predominância feminina já era
esperada antes mesmo de terem recebidos as primeiras inscrições,
como se nota na matéria do jornal bajeense O Dever em sua
divulgação do novo conservatório.
Como aconteceu em Porto Alegre e, ultimamente em
Pelotas, Bagé não tarda á appreciar as inestimaveis
vantagens moderna, pois o Conservatorio principiará
a funccionar no decorrer da 1ª quinzena de Março... As
alumnas terão duas aulas de instrumento por semana
e 2 de theoria, solfejo e história da musica. (O DEVER,
07/01/1921, p. 1)
Como o texto da matéria ilustra, a predominância feminina já
era esperada, o que demonstra um notável interesse pela educação
feminina por parte do poder público e pela alta sociedade da época, já
que o processo de implementação do IMBA requereu o envolvimento
de diferentes instituições e sujeitos de prestígio da cidade. Entre
eles, vale notar a disposição do Visconde Ribeiro de Magalhães em
151
SUMÁRIO
O Instituto Municipal de Belas Artes:
estado do conhecimento e perspectivas para futuras abordagens
doar uma sede para o futuro conservatório, a ser construída em um
terreno de sua propriedade situado na Av. 7 de Setembro. Não há
registros de que a construção foi iniciada e tampouco concluída. Com
isso, a sede “provisória” do conservatório foi tornando a ideia de uma
sede definitiva cada vez mais distante.
A primeira sede do IMBA, na qual se instalou provisoriamente já
no seu primeiro ano foi a sede urbana do Clube Caixeiral, tradicional
clube da elite bajeense, localizado à Rua (hoje avenida) Sete de
Setembro, o espaço mais urbanizado e mais valorizado da cidade
à época. Foi no Clube Caixeiral que foram realizadas as aulas, os
recitais, os concursos de piano e até concertos de artistas agenciados
pelo Centro de Cultura Artística para os quais se cobrou ingresso.
Segundo o relato oral de Wanda Urdaniz Deiro dado a Silva (2019) e
Fagundes (2012), o IMBA ainda ocupou dois outros espaços da cidade
(todos na mesma rua) até se instalar, em 1934, no Solar da Sociedade
Espanhola, onde se encontra até hoje. A cronologia dessas mudanças
de sede não é clara e merece pesquisas específicas.
Os primeiros anos do IMBA
Os anos iniciais de atuação do IMBA em Bagé haviam sido
abordados pela historiografia da cidade, principalmente no que tange
aos políticos e professores diretamente envolvidos em sua fundação e
na sua direção. O trabalho de Silva (2019) aborda em profundidade as
questões sócio-políticas em torno de sua fundação, de modo que este
será a base para as informações apresentadas nesta seção do capítulo.
Neste trabalho, identificamos o IMBA por seu nome atual, no
entanto, seu nome mudou significativamente ao longo de sua história.
O primeiro nome dado à instituição que viria a ser o IMBA foi Escola
Musical de Bagé. Esse nome seguiu sendo usado oficialmente (apesar
da comum troca de nomes por parte dos jornalistas da imprensa
local) até a mudança para o nome dado com a municipalização em
1927: Conservatório Municipal de Música de Bagé (exatamente o
mesmo nome do conservatório de 1904). Se o nome idêntico dado a
instituição foi fruto de ignorância sobre a história (à época, recente)
do ensino de música da cidade ou como uma forma deliberada de
apagar registros de um passado incômodo, não é possível afirmar
a partir das pesquisas já realizadas. Mais tarde, em 1937, passou a
se chamar Instituto Municipal de Belas Artes e, em 1964 recebe o
nome pelo qual é conhecido na atualidade: Instituto Municipal de
152
SUMÁRIO
O Instituto Municipal de Belas Artes:
estado do conhecimento e perspectivas para futuras abordagens
Belas Artes “Professora Rita Jobim Vasconcellos”, uma homenagem à
primeira diretora local do IMBA no exato ano de sua morte.
Rita Jobim Vasconcelos dirigiu o IMBA por 37 anos (1926 - 1964),
mas esteve ligada de alguma forma à instituição desde a fundação em
1921. Nasceu em São Gabriel no dia 8/10/1905 (FAGUNDES, 2012) e
era filha de Ildefonso Vasconcellos, guarda-livros atuante em Bagé
e ex-presidente do Clube Caixeiral (a sede provisória do IMBA),
posto que o fez participar da mesa da cerimônia de inauguração
oficial do IMBA em1921. O nome de Rita estava na primeira lista de
matriculadas e já era uma pianista com considerável experiência, haja
vista que participou do primeiro concurso de piano da instituição
em 1921, concorrendo com Aracy Mariante, Genny Pereira e Renée
Médici (irmã do ex-presidente do Brasil Emílio Garrastazu Médici).
Figura 2 - Rita Vasconcellos em material de divulgação do IMBA
Fonte: Corte Real (1984).
A gestão de Rita é antecedida, no entanto por duas diretoras de
fora da cidade cujo trabalho deu condições para que o IMBA iniciasse
já em 1921. Apesar de haverem pianistas experientes em Bagé (como
Rita) mesmo antes da fundação do IMBA, as diretrizes do Centro
de Cultura Artística, divulgadas pela imprensa local, indicavam que
cada conservatório criado só poderia ser dirigido por professores
diplomados pelo Conservatório de Música de Porto Alegre (instituição
da qual Guilherme Fontainha era professor). Dessa forma, não havia
ninguém na cidade apto assumir a direção.
As condições para o início dos trabalhos no IMBA se tornaram
reais com a chegada de Vicentina Felizardo Ferreira que, mudou-se
153
SUMÁRIO
O Instituto Municipal de Belas Artes:
estado do conhecimento e perspectivas para futuras abordagens
de Porto Alegre para Bagé junto com as duas filhas, Celia e Gladys
Ferreira (que também lecionaram no IMBA) especificamente para
assumir a direção do novo conservatório.
Figura 3 - Anúncio da Escola Musical de Bagé
Fonte: Correio do Sul (8/04/1921, p.1)
Fagundes (2012) afirma que Celia veio a substituir sua mãe na
direção, em um segundo momento. A gestão de Vicentina e Célia
Ferreira só será substituída em 1923 com a posse de Jandyra Nunes
Pereira. Filha do coronel Claudio Nunes Pereira, Jandyra, também
solteira, se mudou com a família para Bagé onde permaneceu
pelos três anos em que dirigiu o IMBA. Durante sua direção, mais
precisamente nos anos de 1925 e 1926, Rita Jobim Vasconcelos se
mudou para Porto Alegre para poder estudar no Conservatório que
lhe daria a habilitação para dirigir o IMBA. Tudo indica que seu posto
de diretora já estava garantida assim que se diplomou.
A prontidão com que a família Ferreira e Jandyra deixaram a
cidade chama a atenção e parecem indicar que o tempo em Bagé
tinha como principal razão o trabalho no IMBA. As primeiras
diretoras tinham condições de permanecer como professoras da
instituição, mas preferiram se ausentar da cidade, sempre em direção
a Porto Alegre. Esta prontidão para se ausentar da cidade parece ser
simbólica de como as professoras abriram mão da convivência com
entes queridos e das particularidades da vida em Porto Alegre.
154
SUMÁRIO
O Instituto Municipal de Belas Artes:
estado do conhecimento e perspectivas para futuras abordagens
Conhecer as condições de trabalho oferecidas a essas mulheres
(informação à qual não se tem acesso através da documentação
pesquisada) certamente contribuiria para compreender o campo
de possibilidades que estavam à frente dessas que se dispuseram a
uma mudança tão drástica em sua vida e de sua família por alguns
ano sem função do projeto de “interiorização da cultura artística” no
estado do Rio Grande do Sul.
Ao que parece, essa é uma dimensão importante da
compreensão de como uma instituição como o IMBA se consolida
em uma sociedade tal como a bajeense. Seguramente, Guilherme
Fontainha e José Corsi são figuras centrais nesse processo com suas
capacidades de articular alianças políticas em níveis regionais e
locais e administrar os diferentes interesses e oposições em relação
aos conservatórios criados em cada cidade. No entanto, a empreitada
só se fez possível através de uma grande dose de esforço humano
empregado por diversos sujeitos para manter o projeto vivo mesmo
após passados os primeiros momentos de euforia da população local
quando os conservatórios deixam de ser novidade na cidade.
Quando a bajeense Rita Vasconcellos assume a direção do
IMBA, em 1926, o ciclo de sacrifícios pessoais de professoras de
música para assumir, em caráter provisório, a direção da instituição
se encerra e dá-se início a um novo e longo ciclo que durará 37 anos.
Este ciclo já se inicia com um marco fundamental de sua gestão que
é a municipalização do IMBA.
A municipalização do IMBA
Carlos Mangabeira assumiu a intendência de Bagé em 1926,
mesmo ano em que Rita Vasconcelos, a primeira diretora bajeense,
assume a direção do IMBA. Há fortes indícios de que essa sincronia
entre Carlos e Rita é importante para se compreender o processo de
municipalização, mas ainda são necessárias novas pesquisas, explorar
essa hipótese a fim de compreender melhor as condições nas quais a
municipalização do IMBA acontece. Esse papel de Carlos Mangabeira
na municipalização do IMBA passa a ser melhor compreendido na
historiografia a partir do trabalho de Bica (2013) que tem por objetivo
compreender sua política educacional na cidade.
Carlos Cavalcanti Mangabeira nasceu em 1876 em Salvador
(BA). Era médico farmacêutico e tenente do exército. Em 1900 foi
transferido para o Rio Grande do Sul e serviu em várias cidades da
região da fronteira. Em 1908, fixou residência em Bagé, onde participou
155
SUMÁRIO
O Instituto Municipal de Belas Artes:
estado do conhecimento e perspectivas para futuras abordagens
ativamente do Partido Republicano bajeense e acabou se tornando
uma espécie de “homem de confiança” de Tupy Silveira (intendente
de Bagé entre 1914 e 1925), vindo a sucedê-lo na intendência entre
1926 e 1929. Antes disso, foi eleito deputado estadual em 1913 e viceintendente de Tupy Silveira desde 1917 (BICA, 2013). Sua gestão como
intendente, conforme analisada por Bica (2013), foi marcada por uma
política de “expansão educacional” que envolveu a organização da
instrução primária, a municipalização do Gymnasio Nossa Senhora
da Auxiliadora (colégio particular de educação secundária dirigido
por padres salesianos) e do IMBA, em 1926, além da criação, em
1927, da Praça dos Esportes, voltada a promover a educação física,
principalmente dos jovens, em consonância com os ideais higienistas
característicos dos discursos educacionais da época
Da combinação de um intendente fortemente engajado em
organizar o sistema educacional bajeense e expandir as oportunidades
de estudo da população e uma diretora que, residente em Bagé,
tinha condições de planejar, a longo prazo, os rumos da instituição,
emergiu um projeto de municipalização de uma das instituições de
ensino de Música de Bagé.
De acordo com Bica (2013), nos princípios positivistas
adotados pelo Partido Republicano Rio-grandense, a educação
pública municipal já havia ofertado o ensino primário e secundário
e se tornava complementar incluir a instrução artística, além de
oferecer novos cursos no Conservatório se fosse necessário. Assim,
Mangabeira buscou realizar a municipalização do IMBA, mas com
a intenção de torná-lo uma sucursal do Instituto de Belas Artes do
Rio Grande do Sul. Carlos Mangabeira enviou carta ao Instituto
solicitando que se tornassem oficiais os exames e emitisse os
diplomas ali concedidos, o que não foi aceito. Ficou definido, no
entanto, que continuassem vindo anualmente dois professores do
Conservatório do Instituto de Belas Artes do Rio Grande do Sul, com
o objetivo de realizar os exames finais, evitando assim, o estágio de
dois anos dos alunos (as) em Porto Alegre para obter o diploma. Em
1928 houve nova tentativa de equiparação de Conservatório de Bagé
com o de Porto Alegre, e ao que parece, também não tendo sido
atentida. (RELATÓRIO MUNICIPAL 1927-1928; SIMON, 2003)
Para Bica (2013) o processo de municipalização começou em
1926 e só foi concluído no ano seguinte com o Acto nº 336, assinado
por Carlos Mangabeira, como parte de um projeto educacional da
administração municipal. Através deste ato, foram adquiridos todos
os bens e materiais da instituição.
156
SUMÁRIO
O Instituto Municipal de Belas Artes:
estado do conhecimento e perspectivas para futuras abordagens
A cobertura do jornal local ligado ao PRR, ao qual
Mangabeira também era filiado, afirma o seguinte:
A intendencia hontem, municipalisou o Conservatorio
de musica desta cidade. É intuito do nosso illustre amigo dr. Carlos Mangabeira, gestor dos negocios municipaes, reorganizar o Conservatorio nas mesmas bases de
Porto Alegre. Em conferencia que S. S, teve, hontem,
com o maestro Corsi, ficou resolvido que virá no fim de
todos os annos lectivos, uma commissão de professores
para examinar os alumnos. É pensamento, tambem do
dr. intendente proporcionar audições de professores de
musica... que vierem ao Estado para os alumnos do referido estabelecimento. O objectivo principal do dr. intendente, em municipalisar o Conservatorio de musica,
além de desenvolver o gosto artistico de nossos jovens
patricios, é facilitar áquelles de comprovado gosto pela
bella arte e que não tenham recursos, dar-lhes ensino
gratuito (O DEVER, 14/12/1926, p. 2).
Segundo a matéria, Mangabeira agiu no sentido de manter os
objetivos estabelecidos pela instituição desde o início: organizar o
ensino de música na cidade com base no modelo do Conservatório
de Porto Alegre e promover performances públicas de músicos de
fora da cidade. O que representa, de fato, uma novidade em relação
à concepção geral que o IMBA vinha tendo é a intenção de oferecer
ensino gratuito àqueles que, demonstrando “talento” para a música,
não possuíssem recursos para custear as taxas do conservatório.
Eis aí um elemento novo que contrasta com a narrativa que vinha sendo
mobilizada pela instituição.
Durante toda a cobertura do jornal O Dever sobre o IMBA
até sua municipalização, os elementos ressaltados pelos jornalistas
são a distinção social das alunas e do público que frequentava as
apresentações e a elegância nas vestimentas e decorações do espaço.
Quando O Dever noticia a pretensão de Carlos Mangabeira de
ampliar o acesso ao IMBA, incorporando uma população mais pobre,
acrescenta-se às narrativas sobre o IMBA um reconhecimento da
desigualdade de acesso a uma instituição. Este é o primeiro registro de
política social implantada pelo IMBA desde sua fundação, ainda que
a instituição tenha sido reconhecida por grande parte da sociedade
bajeense como elitista por várias décadas a seguir, como ilustra os
relatos orais de Neiva (2017) e Ivonléo (2017).
Foi a partir da municipalização, sob a direção de Rita
Vasconcellos, que houve um significativo aumento no alcance que
o IMBA teve na sociedade bajeense. Com os dados disponíveis
157
SUMÁRIO
O Instituto Municipal de Belas Artes:
estado do conhecimento e perspectivas para futuras abordagens
nos Relatórios Municipais de 1927 a 19335, foi possível observar o
número de alunos matriculados a partir da municipalização, como
mostram os dados abaixo:
Tabela 01 – Matrículas (1927 – 1933)
ANO
MATRÍCULAS
PAGAS
MATRÍCULAS
GRATUITAS
TOTAL
1927
45
0
45
1928
89
0
89
1929
99
20
119
1930
117
15
132
1931
127
15
142
1932
90
20
110
1933
108
20
128
Fonte: elaborado pelos autores (2021)
Acervo: Museu Dom Diogo de Souza
O número de matrículas realizadas em 1927 praticamente
dobrou em 1928, evidenciando a importância que o Conservatório
assumia para a educação musical em Bagé. O número de discentes
seguiu aumentando até 1931, quando alcançou o número de 142
matrículas. Em relação às matrículas gratuitas, estas foram colocadas
em oferta a partir do ano de 1929, iniciando com 20 alunos e sem
que ainda existisse regulamentação para essa prática. A oferta de
matrículas gratuitas só foi regulamentada em 1930, através do Acto
nº 7, de 20 de março, que além do candidato(a) atender uma das três
condições indicadas, precisa “[...] que fique provada a condição de
pobresa dos candidatos.” (RELATÓRIO MUNICIPAL, 1931, p. 13)
Outro efeito importante da municipalização foi a relativa
independência conquistada em relação ao Centro de Cultura
Artística e ao Conservatório de Música de Porto Alegre. Abaixo, o
ato, publicado pelo intendente no jornal O Dever.
Acto nº 336
Municipalisa a Escola de Musica O intendente
municipal de Bagé, no uso de attribuições legaes,
5. Essa temporalidade relacionada aos dados das matrículas (1927-1933) deve-se ao fato de
não haver exemplar de relatórios posteriores ao ano de 1933, impedindo de completarmos
as informações desejadas.
158
SUMÁRIO
O Instituto Municipal de Belas Artes:
estado do conhecimento e perspectivas para futuras abordagens
Considerando que intendencia já adquirio,
por compra, todos os moveis e utencilios da Escola
de Musica, fundada nesta cidade pelos professores
Fontainha e José Corsi, e para a qual os cofres do
municipio concorriam com grande parte das despezas
de seu custeio;
Considerando que é indispensavel dar maior
desenvolvimento ao ensino dos diversos cursos
ministrados na referida Escola que, não obstrante sua
deficiencia, tem concorrido para o aproveitamento
artistico de nossas conterraneas;
Considerando, finalmente, que já tendo esta
administração providenciado sobre o ensino primario e
secundario, deve, tambem, cogitar da educação artistica
de seus municipes
Decreta:
Art. 1º - Fica nesta data municipalisada a Escola
de Musica, que passará a denominar-se - Conservatorio
Municipal de Musica.
Art. 2º- O Conservatorio observará, até ulterior
deliberação o regulamento da Escola de Musica.
Art. 3º - Serão creados novos cursos e aulas, á
proporção que forem julgados necessarios.
Art. 4º - São mantidas em seus cargos, em
quanto convier ao municipio, a directora e professores
da Escola, as quaes continuarão a perceber os mesmos
vencimentos.
Art 5º- Revogam-se as disposições em contrario
(O DEVER, 06/04/1927, p. 1).
Até este ato, o IMBA obedecia ao regulamento do Conservatório
de Música de Porto Alegre. O regulamento próprio da instituição só
veio ser implementado no ano de 1929, mas o ato acima transcrito
já apontava para a independência do IMBA em relação a Porto
Alegre quando, no artigo 2º indica que seguirá observando o mesmo
regulamento até segunda ordem. No novo Regulamento (1929), a
diretoria ficou composta por presidente, o Intendente Municipal, e a
diretora, Rita Jobim Vasconcellos, e tinha o corpo docente formado
pelas professoras de piano com Rita J. Vasconcellos e Sylvia Lannes,
no canto Thalia de Leão, no violino Lourdes Figueiró e na teoria e
solfejo, Dinah Gelcich (REGULAMENTO DO CONSERVATÓRIO
MUNICIPAL DE MÚSICA DE BAGÉ, 1929).
159
SUMÁRIO
O Instituto Municipal de Belas Artes:
estado do conhecimento e perspectivas para futuras abordagens
O ensino de Música no IMBA
O ensino oferecido pelo IMBA foi objeto de pesquisa nos
trabalhos de Huber (2013), Herbstrith (2015), Irênio (2018), Silva
(2019) e Júnior (2021). Ainda que o número de trabalhos sobre o
ensino no IMBA tenha crescido significativamente na última década,
uma instituição com cem anos de idade que acompanhou diferentes
momentos da história bajeense ainda apresenta diversas lacunas de
conhecimento ainda não exploradas pela historiografia. Esta seção se
dedica a uma síntese dos trabalhos sobre ensino de Música, mas vale
registrar o potencial para se explorar outros cursos já oferecidos pela
instituição, como é o caso de Herbstrith (2015) que cujo objeto de
pesquisa é o ensino de dança no IMBA.
É possível afirmar, a partir da literatura sobre a criação de
conservatórios e escolas de música pelo Brasil, que há um elemento
comum de identificação não só com o repertório da música de concerto
europeia, mas também com as concepções e práticas pedagógicas
associadas a esse continente. Embora alguns autores associem as
práticas conservatoriais com as concepções vigentes no continente
europeu em geral, sem maiores distinções, outros apontam que as
referências estão fortemente concentradas em torno da cultura
músico-pedagógica associada a três países: Itália, França e Alemanha.
Essa concentração também dá espaço a uma polarização que se fará
entre a tradição das óperas e operetas italianas, muito populares no
Brasil desde o período anterior à proclamação da República em 1889,
e aquela que foi caracterizada como “cultura artística”, associada
principalmente com as culturas alemã e francesa. Mais do que
uma disputa entre nações tidas como culturas homogêneas, esse
debate reflete o conflito entre o “passadismo estético”, de um lado,
e os “adeptos da modernidade” de outro. Tal disputa se intensifica
tanto com a vinda de músicos estrangeiros para o Brasil quanto
com a vinda de uma primeira geração de músicos profissionais cuja
formação se deu na Europa nas primeiras décadas do século XX.
Nesse contexto,segundo Lucas (2005, s/ p.), os conservatórios de
Porto Alegre e Pelotas podem ser interpretados como “laboratório
para testagem da modernidade no campo da pedagogia musical
dentro dos cânones da música erudita ocidental”.
Tendo sido criado como uma espécie de filial do Conservatório
de Música de Porto Alegre, o IMBA herdou tais concepções desde
o início e a exigência de diplomação neste primeiro para dirigir o
segundo era uma das formas de garantir esse alinhamento sóciomusico-pedagógico. Os cursos oferecidos pelo IMBA, como é
da tradição conservatorial, possuem um recorte orientado por
160
SUMÁRIO
O Instituto Municipal de Belas Artes:
estado do conhecimento e perspectivas para futuras abordagens
instrumentos (cursos de piano, violino, flauta, etc.), sempre
acompanhados de cursos entendidos como complementares
e obrigatórios de caráter “teórico” (Teoria da Música, Solfejo,
Harmonia, História da Música, etc.).
No ano de sua fundação, o IMBA anunciou na imprensa local
os cursos de canto, piano, violino, violoncelo e bandolim, além de
teoria, solfejo e harmonia. Mas, só há registros de aulas dos cursos
de piano, teoria e solfejo (SILVA, 2019). O curso de violino só entrou
em vigor no ano de 1926, sob a direção de Rita Vasconcellos, de
informação obtida nos programas de audição da Escola, também foi
quando a instituição teve o primeiro aluno, pois até esse momento o
corpo discente era formado por meninas.
Figura 4 - Alunas e professora do IMBA (1922-1923)
Fonte: Huber (2012). Acervo do Museu Dom Diogo de Souza.
A prioridade no ensino era dada ao piano, considerando o
fato de maior procura, assim como foi no período de 1921-1927, de
acordo com Silva (2019) devido ao prestígio e a relevância desse
instrumento para as noções de educação feminina da época. No
regulamento de 1929 indicava ter vários professores de piano e
possibilidades de contratar mais para atender a demanda, permite
ainda que o aluno possa escolher com qual deles quer ter aulas por
afinidade, para assim, ter um ambiente de estímulo e que evite
161
SUMÁRIO
O Instituto Municipal de Belas Artes:
estado do conhecimento e perspectivas para futuras abordagens
desistências. A grande procura, em 1927 era pelo curso de piano e já
possuía duas professoras auxiliares, Maria Teixeira e Auta Lannes.
(RELATÓRIO MUNICIPAL, 1928)
Quanto à grade curricular prevista para a diplomação no IMBA,
apesar de não haver nos acervos consultados o regulamento no acervo
do Arquivo Municipal de Bagé, a cobertura do jornal Correio do Sul a
descreve da seguinte forma:
Conservatório de Música – [...] O respectivo curso, que
será de 9 annos para os alunos que não tiverem ainda
nenhuma iniciação musical, poderá ser feito, entretanto, em 5 ou 6 annos, dependendo isso sómente da capacidade intelectual e da aplicação de cada um.
Serão instituidas medalhas de ouro para premiar os esforços dos alunos que obtiverem a melhor classificação
em cada curso e aos que não houverem faltado a uma
unica aula durante o anno lectivo.
As pessoas que obtiverem o diploma do Conservatório
de Bagé terão direito, si o quizerem, a fazer parte do corpo docente de qualquer outro dos institutos de musica a
serem installados neste Estado.
No decorrer de cada anno lectivo haverá audições publicas, tendentes a mostrar o aproveitamento dos alunos e
de os habituar ao contacto com o publico.
Candidataram se já a matricula do futuroso Conservatorio de Musica de Bagé as distinctas senhoritas Haydée Mangabeira, Mariazinha Gomes de Abreu, Aurelia
Mercio Silveira, Sylvia Mercio Silveira, Branca Candiota,
Elza Vieira Alves, Edith Dupont, Laura Valls, Graziela
Moraes, Aracy Faget Maria Dupont Teixeira e Rittinha J.
Vasconcellos. (CORREIO DO SUL, 02/01/1921, p.3)
Segundo a matéria, os cursos tinham uma duração de nove
anos para as alunas que não tivessem educação formal em música,
com a possibilidade de concluir em menos tempo, a depender da
aluna. Entre as estratégias de motivação e divulgação do IMBA estava
a participação de audições públicas e concursos realizados com um
frequência de, no mínimo, uma vez por semestre.
O repertório desse período de 1921 a 1927, segundo Silva (2019)
segue a orientação do Conservatório de Música de Porto Alegre.
Conforme o autor, em relação a nacionalidades, teve a predominância
de compositores alemães (38%), seguidos de brasileiros (19%) e de
franceses (16%), aparecem outras nacionalidades, mas com menor
representação de peças no repertório. Assim, para Silva (2019) “o
162
SUMÁRIO
O Instituto Municipal de Belas Artes:
estado do conhecimento e perspectivas para futuras abordagens
IMBA se tornou um centro de referência do cultivo e da propagação
de práticas psicopedagógicas alinhadas às correntes modernistas da
música de concerto”. (SILVA, 2019, p. 283).
Perspectivas para futuras abordagens
As diversas pesquisas realizadas na década de 2010 avançaram
significativamente em relação à compreensão que temos hoje sobre o
período entre 1921 e 1937, ano em que a instituição adota a categoria
de instituto para abarcar o ensino de outras artes além da música.
No ano de 1964 o IMBA tem o Ministério da Educação e da Cultura
reconhece como cursos de nível superior os cursos de Instrumentos
e Canto (com o decreto n.°53.993 de 2 de julho de 1964) e as Artes
Plásticas (decreto n.° 48.905, de 27 de agosto de 1960). É nesse ano
que, com o falecimento de Rita Vasconcellos, a instituição passa a ser
denominada de Instituto Municipal de Belas Artes Professora Rita
Jobim Vasconcellos. Em 1969, após decisão do legislativo municipal,
os cursos de Música (Instrumentos e Canto) mais o de Artes Plásticas
(pintura e desenho) do IMBA são transferidos para a Fundação
Universidade de Bagé, hoje Universidade da Região da Campanha,
ficando somente com os cursos livres.
Estes e outros marcos históricos já conhecidos merecem ser
melhor compreendidos a partir de pesquisas específicas. O campo
de possibilidades de objetos de pesquisa em relação ao IMBA não
se limita necessariamente a recortes temporais, mas também vem
explorando categorias como as noções de gênero mobilizadas pela
instituição, como é o abordado nos trabalhos de Silva (2019) e Socca
(2019). Outra linha de investigação vem se centrando na história
de cursos ou projetos específicos, como é o caso de Irênio (2017)
sobre o ensino de acordeom na instituição e Rodrigues (2016) sobre
o projeto “Noites de serestas e músicas inesquecíveis”. Questões de
raça relacionadas à proibição, mais ou menos explícita, de que alunos
e alunas pretos cursassem o IMBA até aproximadamente a década
de 1960 foram levantadas nos relatos orais de Neiva (2017) e Ivonléo
(2017), no entanto, ainda não foram objeto de pesquisas específicas.
O campo de possibilidades de investigação é vasto e contempla
múltiplas formas de compreender o passado não só da música e
da educação musical na cidade, mas da sociedade bajeense como
um todo. O que a pesquisa em torno de instituições educacionais
e culturais como o IMBA vêm mostrando é que, quando tomados
como objeto de pesquisa histórica, proporcionam um ponto de vista
particular a partir do qual podemos observar a sociedade e suas
163
SUMÁRIO
O Instituto Municipal de Belas Artes:
estado do conhecimento e perspectivas para futuras abordagens
diferentes dinâmicas. Revela algo sobre a sociedade que cultivou
instituições como essa que dificilmente a história política poderia
revelar. A história do IMBA nesses cem anos de existência faz parte
da história de Bagé e das disputas políticas e ideológicas inerentes
à dinâmica de qualquer cidade. E um olhar atento a esse pequeno
universo de pessoas e músicas a que damos o nome de IMBA pode
nos revelar muito sobre a cidade na qual se localiza.
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SUMÁRIO
O Instituto Municipal de Belas Artes:
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Grande do Sul (1904-1927): uma sociologia dos processos músico-pedagógicos da
Primeira República. 2019. 340 f. Tese (Doutorado em Música). Porto Alegre: Universidade federal do Rio Grande do Sul, 2019.
SIMON, Círio. A origem do Instituto de Artes da UFRGS: etapas entre 19081962 e contribuições na constituição de expressões de autonomia no sistema de artes
visuais do Rio Grande do Sul. 2003. 661 f. Tese (Doutorado em História). Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – Departamento de História, 2003.
SIMÕES, Julia da Rosa. Ser músico e viver da música no Brasil: um estudo da
trajetória do Centro Musical Porto-alegrense (1920-1933). 2011. 263 f. Dissertação
(Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas), Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, 2011.
SOCCA,Thaís Sauco . Construções de gênero na banda do Imba de Bagé/RS
: um estudo etnomusicológica histórico (1960 - 1976). 50 p. 2019. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Música) – Universidade Federal do Pampa, Campus
Bagé, Bagé, 2019.
TABORDA, Tarcísio Antônio Costa. Bagé de ontem e de hoje: coletânea de artigos publicados na imprensa (1939-1994). Elida Hernandez Garcia (org.) Bagé: Ediurcamp, 2015.
165
SUMÁRIO
O Instituto Municipal de Belas Artes:
estado do conhecimento e perspectivas para futuras abordagens
Fontes
Arquivo Público Municipal de Bagé
Museu Dom Diogo de Souza – FAT/Urcamp
Atos
BAGÉ, Mangabeira, Carlos Cavalcante. Acto Nº 336. Bagé: Intendencia Municipal de
Bagé, Reg. Livro 5 – fls. 133 e 133 v., 5 abr. 1927.
BAGÉ, Teixeira, Luiz Mércio. Acto Nº 27. Bagé: Prefeitura Municipal de Bagé, 30
set. 1937.
Jornais consultados
Correio do Sul (1921, 1927, 1928, 1929, 1936, 1937)
O Dever (1921-1928)
Regulamentos
Regulamento do Conservatorio Municipal de Música de Bagé. Intendencia Municipal de Bagé. Bagé: Typographia da Casa Maciel. 1929.
Regulamento do Instituto Municipal de Belas Artes de Bagé. Prefeitura Municipal de Bagé. Bagé: 1937.
Relatórios municipais
Relatório Intendencial de Carlos Cavalcanti Mangabeira apresentado ao Conselho Municipal em 20 de setembro de 1927. Bagé: Typografia Casa Maciel, 1927.
Relatório Intendencial de Carlos Cavalcanti Mangabeira apresentado ao Conselho Municipal em 20 de setembro de 1928. Bagé: Typografia Casa Maciel, 1928.
Relatório Intendencial de Alziro Marino apresentado ao Conselho Municipal
em 20 de setembro de 1929. Bagé: Typografia Casa Maciel, 1929.
Relatório Intendencial de Juvêncio Maximiliano Lemos apresentado ao Conselho Municipal em 20 de setembro de 1930. Bagé: Officinas Graphicas da Casa
Maciel, 1930.
Relatório Intendencial de Juvêncio Maximiliano Lemos apresentado ao
Exmo. Snr. Interventor Federal no Estado General J. A. Flores da Cunha em
24 de junho de 1931. Bagé: Officinas Graphicas da Casa Maciel, 1931.
Relatório do prefeito municipal Major Gervasio Rodrigues apresentado ao
Exmo. Sr. Interventor Federal no Estado General J. A. Flores da Cunha referente ao ano de 1932. Bagé: Officinas Graphicas da Casa Maciel, 1932.
Relatório do prefeito municipal Major Gervasio Rodrigues apresentado ao
Exmo. Sr. Interventor Federal no Estado General J. A. Flores da Cunha referente ao ano de 1933. Bagé: Officinas Graphicas da Casa Maciel, 1933.
166
SUMÁRIO
167
SUMÁRIO
AS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XX:
UM BALANÇO SOBRE A EDUCAÇÃO
REPUBLICANA NO MUNICÍPIO DE BAGÉ/RS
Alessandro Carvalho Bica 1
168
SUMÁRIO
As primeiras décadas do século XX:
um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS
1
Introdução
A Primeira República no Rio Grande do Sul foi marcada pela
hegemonia política do Partido Republicano Rio-Grandense, que se
manteve no poder tanto na esfera estadual, como no controle do
município de Bagé.
Esta atuação foi assinalada pela influência ideológica do
Positivismo, o qual, de acordo com Tambara (1991) apresentou certas
especificidades, decorrentes da aproximação das ideias de Auguste
Comte com a leitura ideológica realizada por Júlio de Castilhos, este
conjugamento ideológico, ficou conhecido como Castilhismo2.
Nesta perspectiva, os líderes republicanos na condução
administrativa do Estado conferiram a escola e ao ensino público,
o caminho principal para o êxito do projeto político republicano
de educação, isto é, a formação da “consciência nacional” e o
estabelecimento do estatuto da cidadania. (Corsetti, 2008.)
Neste esforço pela estruturação do ensino público como meio
de intervenção social, os governos republicanos estaduais trataram de
pensar e qualificar políticas públicas educacionais para modernizar e
1. Dr. em Educação pela Universidade Federal do Pampa - UNIPAMPA.
2. A obra Castilhismo: Uma Filosofia da República escrita por Ricardo Vélez Rodríguez, busca
compreender as origens, as influências, os sentidos e os reflexos do Castilhismo, e, resume
neste sentido o conjunto de princípios e de regras norteadoras da prática castilhista: A “pureza das intenções”, pré-requisito moral de todo governante; O bem público interpretado
como “reino da virtude”; e, o exercício de tutela moralizadora do Estado sobre a sociedade.
(2000, p. 17). Rodríguez, Ricardo Vélez. Castilhismo: Uma Filosofia da República. Brasília:
Senado Federal, Conselho Editorial, 2000. (Coleção 500 anos).
169
SUMÁRIO
As primeiras décadas do século XX:
um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS
renovar a educação estadual. Sobre esta concepção republicana de
educação, Corsetti (1998, p. 154), faz a seguinte consideração:
Em termos educacionais, o governo de orientação positivista moveu-se em função de interesses específicos,
que previam a utilização da educação como instrumento de modernização. Nesse sentido a ação governamental, além de jogar com a sua política educacional para
ampliar o nível de formação dos gaúchos pela diminuição do analfabetismo, entre outros elementos, demonstrou sua compreensão de que a moral e a educação se
constituíram nos principais elementos de garantia da
ordem social, amenizadores de conflitos e promotores
da acomodação dos indivíduos à sociedade. A escola
foi, assim, um dos mecanismos de construção da hegemonia burguesa.
Sendo assim, a organização do sistema educacional riograndense no período da República Velha, constitui-se no aparato
necessário para a construção do projeto político educacional
republicano.
Entendemos que os Relatórios3 Intendenciais e Orçamentais
são fontes de pesquisa, e, eram produzidos geralmente no mês de
setembro, possuíam como objetivo apresentar o mapeamento das
ações e programas realizados pelo Intendente Municipal, referentes a
todos os campos da administração pública. Na feitura destes relatórios,
cada assunto da administração pública possuía um espaço específico
para o relato das atividades anuais do Intendente e seus secretários.
Sendo assim, os esforços estaduais empreendidos pelo governo
no processo de expansão do ensino desde a instauração da república
no Estado do Rio Grande do Sul, também foram acompanhados pelos
intendentes republicanos nas principais cidades do Estado. Nesta
perspectiva, é importante perceber e analisar como se planejaram as
políticas públicas para a educação municipal nas primeiras décadas
do século XX, na cidade de Bagé.
As constantes preocupações dos Intendentes municipais em
relação à deficiência do sistema educacional da cidade são verificadas
na sequência de descrições encontradas nos Relatórios Intendenciais
3. A feitura, a apresentação e a leitura dos Relatórios Intendenciais realizada pelos Intendentes
municipais aos Conselheiros do município, ocorria geralmente entre os meses de setembro ou outubro, e fazia parte de todo um aparato simbólico e ideológico pensado pelos
republicanos, que buscava representar à lisura, a honestidade, a integridade e a boa fé dos
administradores sobre as questões do gerenciamento da coisa pública. Esta concepção foi
uma prática realizada pelos positivistas, durante toda a Primeira República no Estado do Rio
Grande do Sul, e pode ser definida pela frase: “Viver para Outrem, Viver às Claras”. Sobre
este assunto, consultar: CORSETTI (1998) e GUTFREIND (1998).
170
SUMÁRIO
As primeiras décadas do século XX:
um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS
do município de Bagé. No Relatório Intendencial referente ao ano de
1905, publicado no jornal O Dever de 28 de outubro do mesmo ano,
pelo Intendente Augusto Lucio de Figueiredo Teixeira, percebemos
o panorama da Educação Pública Municipal:
Instrucção Publica – É notavel a deficiencia de escolas na campanha do municipio. De todos os districtos
tenho recebido pedidos para a creação de estabelecimentos de ensino publico, ponderando-me os interessados que existe grande numero de analphabetos nos
nossos departamentos ruraes, verdade que infelizmente não admitte contestação. (grifos nossos) (O Dever,
28/10/1905, p. 02)
Do Relatório apresentado acima, podemos concluir que nas
iniciativas municipais em relação ao ensino primário, incorriam os
seguintes problemas, a permanência numérica de poucas escolas na
região da campanha do município, o grande número de analfabetos na
cidade e a necessidade de criação novas aulas nos distritos municipais.
Neste sentido também, verifica-se uma eficácia maior na oferta de
aulas tuteladas pelo governo do Estado, num total de 08 (oito) aulas
e mais um Colégio Distrital, e uma efetiva participação da iniciativa
privada na constituição de 11 (onze) escolas e/ou aulas no município.
Corsetti (2008) afirma que durante a Primeira República, o
Estado do Rio Grande do Sul experimentou uma participação ativa
da iniciativa privada no estabelecimento de instituições escolares,
sendo possível perceber nos discursos republicanos, as garantias
concedidas para a iniciativa privada em manter e ampliar seus espaços
de penetração nos negócios da educação.
Durante o governo de Augusto Lúcio de Figueiredo Teixeira
observam-se as primeiras tentativas de expansão do ensino primário
municipal, bem como, a preocupação na redução do analfabetismo
que atingia taxas altíssimas no município de Bagé, logo se percebe
que a educação constitui-se na principal ferramenta republicana.
Estas constatações podem ser observadas no Relatório Intendencial
do ano de 1906:
Instrucção Publica – Em meu anterior relatorio, tive ensejo de patentear-vos a deficiência de escolas na campanha, onde é enorme o numero de analphabetos. Usando verba que para esse fim decretastes, creando mais
quatro escolas, quando apenas existiam duas, localisei
no populoso logar denominado Pirahyzinho, nas immediações das xarqueadas, uma aula sob a direcção da
senhorita Marina Mogetti, que com proficiência tem se
entregado aos árduos labores de seu cargo. A frequencia
171
SUMÁRIO
As primeiras décadas do século XX:
um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS
de nossas aulas da campanha é de 106 alumnos, sendo
87 do sexo masculino e 19 do feminino. (grifos nossos)
(O Dever, 18/10/1906, p.01)
Sobre as considerações descritas no Relatório Intendencial das
condições da educação primária municipal percebe-se às seguintes
questões: a nomeação de professoras municipais para as aulas
públicas, a extinção do Colégio Distrital e que apenas 06 (seis) aulas
estaduais estavam providas. Quanto à participação da iniciativa
privada, observa-se o destaque dado à presença de duas instituições de
ensino católicas na cidade, o Ginásio Nossa Senhora Auxiliadora para
o sexo masculino e o Colégio Franciscano Espírito Santo destinado a
educação das meninas.
Em relação aos dados estatísticos descritos anteriormente
nos relatórios intendenciais, podemos compor o seguinte quadro
comparativo sobre o panorama das mudanças na Instrução Pública
no município de Bagé entre os anos de 1903 e 1908.
Quadro 01 – Panorama Educacional da década de 1900
Ano
Aulas
Municipais
Aulas
Estaduais
Aulas
Particulares
Frequencia
Média
1903
02
08
Não contam
dados
Não contam
dados
1904
02
08
13
1173 alunos
1905
03
08
11
Não contam
dados
1906
06
06
11
Não contam
dados
1907
06
12
13
1612 alunos
1908
08
11
14
1906 alunos
1909
Não contam
dados
Não contam dados
Não contam
dados
Não contam
dados
Fonte: Livre adaptação dos dados encontrados nos Relatórios Intendenciais
A partir destes dados, observa-se um crescimento numérico
vertiginoso no concurso do estabelecimento da educação primária
172
SUMÁRIO
As primeiras décadas do século XX:
um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS
pela ação municipal, de 02 aulas para 08 aulas, isto significa afirmar
que este crescimento alcançou 75% no número das aulas municipais.
Em relação às aulas franqueadas pelo Estado, o crescimento alcançou
um índice de 36%, e no que tange a ação da iniciativa privada, este
crescimento foi de apenas 7% no número de aulas e/ou colégios em
relação ao início da década.
É importante perceber que apesar dos discursos da
municipalidade em aferir a escola o papel de espaço norteador da
direção intelectual e moral dos indivíduos, capaz de constituir
uma sociedade onde a anarquia fosse suplantada pela ordem e pela
prosperidade, desenvolvendo o senso do dever, de obediência e de
modernidade da República, as dificuldades encontradas na primeira
década do século XX provocariam mudanças substanciais nas décadas
seguintes na cidade de Bagé.
Apesar dos francos esforços municipais desencadeados na
primeira década do século XX, em expandir e apoiar a constituição
de espaços educativos, estes eram insuficientes para a organização
de uma estrutura do Sistema Educacional Municipal, tendo em vista,
que ainda não havia uma legislação municipal4 que estruturasse a
Educação Pública Municipal no município de Bagé.
Em seu primeiro Relatório, José Octavio Gonçalves elabora
um inventário detalhado da situação educacional do município de
Bagé, apresentando a importância da disseminação e as vantagens do
ensino no contexto republicano.
Instrucção Publica – É desnecessario fazer considerações sobre este ramo da administração publica porque
todos sabeis as vantagens que dimanam para o paiz, da
disseminação do ensino. É a base do progresso de um
povo, em todas as manifestações da sua actividade. O
governo do Estado a quem especialmente cumpre prover a instrucção, tem procurado melhoral-a n’esta circumscripção como lhe é possivel. O nosso prospero
4. Durante a Primeira República no Estado do Rio Grande do Sul, os republicanos estabeleceram uma série de decretos e regulamentos para a organização do ensino público estadual,
e, conseqüentemente no aprimoramento da Instrução Pública no Estado. A pesquisadora
Berenice Corsetti em sua tese de doutorado “Controle e Ufanismo: A Escola Pública no Rio
Grande do Sul (1889-1930) elabora um interessante quadro sobre todas as legislações relativas ao processo de organização do ensino público estadual ocorrido na Primeira República
e defende a seguinte ideia, Corsetti (1998, p. 285-286): A organização do ensino público
[...] foi promovida através da utilização do instrumento privilegiado pelos positivistas, ou
seja, a lei. [...] Devemos ressaltar que essas regulamentações expressaram, [...] pressupostos
políticos e educacionais defendidos pelos republicanos. Por outro lado, os estudos e pesquisas realizados sobre o mesmo período político, revelam que a ação da esfera municipal no
processo de regulamentação da educação primária, ocorreu somente após a década de 1920
nos municípios do Rio Grande do Sul.
173
SUMÁRIO
As primeiras décadas do século XX:
um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS
municipio com uma população approximada a 40 mil
habitantes, ainda resente-se da falta de instrucção mas,
nutre fundadas esperanças na acção proveitosa do patriotico governo do Estado no sentido de melhora-la,
como se vae observando das medidas ultimamente
adoptadas. (grifos nossos) (O Dever, 23/09/1910, p. 01)
A leitura do Relatório Intendencial, nos relata o cenário
da educação municipal, porém, é perceptível neste discurso a
ausência de políticas públicas e a insuficiência de aulas tuteladas
pelo município, por outro lado, ainda persiste a ação da iniciativa
privada nas questões educacionais e o irrestrito apoio à ação estadual
no propósito de criação do Colégio Elementar na cidade de Bagé.
Neste sentido, não podemos deixar de fazer alusão a alguns dados
estatísticos descritos na obra Apontamentos Históricos e Estatísticos
de Bagé de Jorge Reis, encarregado da Estatística do Município. Sobre
a Instrução Pública, comenta Reis (1911, p. 67):
Aulas municipaes, 4, localisadas nas xarqueadas S.
Thereza, S. Martin, estação de S. Rosa e no 3º Distrito.
Frequencia dessas aulas, 136. [...] Total dos alumnos matriculados em todas as aulas do municipio 1.791; - sexo
masculino 1017, feminino 774. É presidente do conselho
escolar, o Major Julio Soares de Mello. (grifos nossos)
Através destes dados estatísticos, podemos fazer algumas
deduções, que apesar das aulas presentes no município de Bagé
apresentarem uma matrícula total de 1791 alunos, apenas 1456 alunos
ou 81% destes frequentavam as cadeiras escolares.
Em relação à frequência verificada no total das aulas, podemos
afirmar que, os colégios particulares apresentavam uma frequência
de 66% (965 alunos); que as aulas públicas estaduais representavam
24% (355 alunos) do total e que as aulas municipais atingiam
um percentual equivalente a 10% (136 alunos) do total das aulas
organizadas no município de Bagé. Cabe salientar, que na construção
destas análises, os dados arrolados acima se referem conjuntamente
ao ensino primário e ao ensino secundário.
No processo de análise dos dados quantitativos encontrados
nos Relatórios da Instrução Pública do Estado do Rio Grande do Sul
entre os anos de 1912 e 1913, sobre a educação municipal, verificamos
a permanência do mesmo quadro numérico de escolas encontrado no
Relatório Intendencial do ano de 1910, apresentado por José Octavio
Gonçalves. Neste sentido, afirmamos que em sua última gestão como
174
SUMÁRIO
As primeiras décadas do século XX:
um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS
intendente municipal não ocorreram mudanças no panorama da
Educação Pública Municipal em Bagé.
Os processos históricos das sucessões dos chefes executivos
municipais em Bagé adquiriram características peculiares após
a Revolução Federalista (1893-1895), neste sentido, as indicações
dos candidatos à intendência municipal passaram a privilegiar os
correligionários que demonstrassem uma total identificação com o
Castilhismo-Borgismo, o que implicava em uma subordinação direta
ao líder do partido e ao presidente do Estado, figura que representava
a hegemonia política do PRR.
Neste sentido, os signatários republicanos bajeenses que
assumiram a condição de Intendentes Municipais, após o início da
derrocada do Federalismo na cidade de Bagé, possuíam uma relação
de dedicação natural ao ideário positivista do Partido Republicano
Rio-Grandense, como afirma Bakos (1998, p. 215) em relação aos
intendentes da cidade de Porto Alegre:
Desde 1893, já então no poder, o Partido Republicano
buscava manter a sua hegemonia recrutando, na sociedade civil, correligionários coniventes com o ideário castilhista para ocupar postos-chave no aparelho de estado..
A primeira Constituição Republicana do estado – 1891 –,
que teve Júlio de Castilhos como seu principal mentor,
fornecia os meios técnicos necessários para o governo
do estado controlar os municípios apesar de, em leitura menos avisada, ela parecesse assegurar a autonomia
municipal. Se ele servisse com fidelidade, perpetuava-se
no cargo, fato explicado pelo princípio castilhista de que
o poder vinha do saber. Tal premissa justificava a permanência de um político em um mesmo posto por um
longo período de tempo, a fim de que conhecesse todos
os macetes de sua função. (grifos nossos)
Portanto, após a morte de José Octavio Gonçalves, o Partido
Republicano bajeense necessitava de uma forte liderança política para
governar o município, o vácuo deixado na morte do ex-intendente,
fez com que o diretório estadual conjuntamente com o diretório
municipal, realizasse uma escolha capaz de preencher a lacuna
ideológica e política dentro do partido.
Martim Silveira nasceu em Bagé, em 1876. Filho do abastado
fazendeiro Jerônimo Silveira, participou na defesa do Cerco de Bagé
(1895) e filiou-se ao Partido Republicano Rio-Grandense com apenas
17 anos de idade. Na última gestão de José Octavio Gonçalves (19101913), com 34 anos de idade, foi escolhido como vice-intendente
175
SUMÁRIO
As primeiras décadas do século XX:
um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS
municipal, devido ao seu prestígio com os fazendeiros da região e
com os próprios republicanos bajeenses. (Taborda, 1966)
O processo da escolha de Martim Tupy Silveira como sucessor
intendencial e na chefia unipessoal da política municipal possuía
como objetivo preencher a possibilidade da ausência de lideranças
republicanas na cidade. Estas constatações podem ser observadas na
notícia sobre a posse intendencial realizada em 05 de janeiro de 1914:
Realizou-se, hontem, [...] a solemnidade da posse do
intendente eleito, nosso illustre amigo sr. coronel Tupy
Silveira e membros do conselho municipal. [...] Esse
pronunciamento da collectividade bageense manifestou-se desde que pela primeira vez foi lembrado o nome
do coronel Tupy Silveira, para a alta investidura que lhe
foi confiada, sendo que, quando um mister foi escolher
um nome para substituir o coronel José Octavio Gonçalves o seu surgiu naturalmente sem que uma só objecção
se fizesse sentir, sem que um pronunciamento contrário
fosse ouvido. O nome do coronel Tupy Silveira surgiu de
conciliábulo político. [...] e foi amparado pelos próceres
do partido republicano, cuja suprema chefia está confiada ao esclarecido espírito de tolerância do benemérito
dr. Borges de Medeiros, que tem como suprema aspiração, que alimenta com carinhos especiaes o engrandecimento do Rio Grande do Sul, o bem estar da família riograndense. (Grifos nossos) (O Dever, 06/01/1914, p.01)
Neste sentido, é possível afirmar, que Martim Tupy Silveira
absorveu e foi absorvido pelo imaginário Castilhista-Borgista
possibilitando a sua permanência na condução administrativa do
município até o ano de 1925, momento das primeiras inflexões
políticas ocorridas em função das mudanças oriundas da Pacificação
Estadual de 1923 e da alteração da Lei Orgânica Eleitoral do
município de Bagé em outubro de 1924.
Elaboramos a partir do Relatório Intendencial apresentado por
Martim Tupy Silveira ao Conselho Municipal em 20 de setembro de
1914, o seguinte quadro conjuntamente com o mapa da localização
dos distritos municipais:
176
SUMÁRIO
As primeiras décadas do século XX:
um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS
QUADRO 02 – Aulas Municipais em 1914
Distr.
Professores
Localidades
Mas.
Fem.
Matric.
Freq.
01
6º
Laudelino
Moreira
Minuano
17
09
26
19
02
1º
Isais M. da S.
Soares
S. Martim
31
28
59
37
03
3º
Floricio de S.
Alves
Olhos
d’agua
18
07
25
15
04
4º
Ernesto R.
Tubino
Bolena
24
04
28
19
05
1º
Alice Duarte
Rego
Est. Aceguá
12
22
34
26
06
5º
Ié Pereira da
Silva
Jaguarão
25
03
28
21
07
5º
Manoel P.
Cunha
E. S. Rosa
11
19
30
24
08
5º
Resendo L.
d’Oliveira
A. S. Rosa
22
10
32
20
09
3º
Ondina P. de
Barros
Pirahysinho
01
08
09
07
10
7º
Pedro J. de
Barros
Passo-Salso
14
05
19
18
11
7º
Manoel B.
Soares
Candiota
27
03
30
22
12
7º
José P. de S.
Sarmento
Jaguarão
15
11
26
21
13
1º
Marina Mogetti
S. Thereza
08
18
26
20
14
1º
Olga Siedler
Est. Cerro
16
34
50
32
15
1º
Julieta Pires
Arruda
P. Republica
36
44
80
54
277
225
502
355
Obs.
S u bve n c i o n a d a s p e l o G ove r n o E s t a d u a l .
Nº
Mun.
Fonte: Adaptado do Relatório Intendencial do ano de 1914 (p.75)
Acervo: Museu Dom Diogo de Souza
Com base nos dados expostos no Quadro 02 que trata das aulas
municipais e na leitura do mapa dos distritos de Bagé no período de
1914, podemos fazer as seguintes ponderações sobre o panorama da
Educação Pública Municipal existente na cidade de Bagé:
- Quase todas as aulas municipais eram subvencionadas pelo
governo do Estado;
- Que o 1º Distrito (Bagé), zona mais urbana do município,
possuía o maior percentual das aulas municipais (05 aulas); o maior
177
SUMÁRIO
As primeiras décadas do século XX:
um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS
número de matrículas, isto é, 249 alunos ou 49% do total e uma
matrícula maior de meninas nas escolas municipais;
- Que o 5º Distrito (Santa Rosa) e 7º Distrito (Candiota)
possuíam o mesmo número de aulas municipais, ocupavam
conjuntamente o segundo maior número de matrículas do
município e em suas aulas estudavam majoritariamente alunos do
sexo masculino;
- Que o 3º Distrito (Olhos D’ água), 4º Distrito (Palmas) e
6º Distrito (Rio Negro) possuíam conjuntamente apenas 04 aulas
municipais, o menor número de alunos matriculados e um percentual
de 68% de frequencia do total de alunos matriculados, como também,
os alunos do sexo masculino predominavam em suas aulas.
Outro ponto relevante para nossa análise é a constatação de
que somente no 1º Distrito (Bagé), zona urbana da cidade, havia
um número maior de meninas matriculadas no ensino de primeiras
letras, não possuímos dados relativos à frequencia destas aulas, mas
podemos conjecturar que: as meninas das famílias mais urbanas
ingressavam em maior número nas escolas, e, por conseguinte sua
educação mesmo que voltada para o lar, poderia possibilitar mudanças
sociais geradas pelos novos tempos modernos, esta sociedade urbana
percebia aos poucos, que a mulher não podia permanecer na mesma
situação de ignorância.
Por outro lado nos distritos mais suburbanos ou rurais,
geralmente mais pobres e afastados do centro urbano, permanecia
a velha idéia de que a educação feminina se resumia às prendas do
lar e que a mulher deveria ser preparada para ser uma dona de casa,
esposa e mãe, perpetuando assim, a diferenciação econômica entre
os gêneros, caso não encontrasse um esposo, teria que trabalhar para
garantir o seu sustento. (Saffioti, 1976)
No mesmo Relatório Intendencial do ano de 1914, encontramos
ainda informações sobre a situação das aulas estaduais e dos colégios
particulares distribuídos no município de Bagé. Em relação ao quadro
numérico das aulas estaduais, havia 05 (cinco) aulas públicas e 01
(um) Colégio Elementar, estas aulas possuíam uma matricula de 614
alunos com uma freqüência de 477 alunos. Deste conjunto de aulas,
o Colégio Elementar e mais 03 (aulas) eram para ambos os sexos, 01
(uma) para sexo feminino e outra somente para meninos.
Em relação à questão do gênero presente nas matriculas, de um
total de 614 alunos, 54% ou 335 eram do sexo feminino, todas estas
178
SUMÁRIO
As primeiras décadas do século XX:
um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS
aulas estavam localizadas entre o 1º distrito, 5º e 7º distrito da cidade
de Bagé.
No que tange a educação vinculada à iniciativa privada
presente no município de Bagé, o quadro apresentado no Relatório
Intendencial do ano de 1914, estava representado da seguinte
forma, havia a existência de 15 (quinze) escolas particulares, todas
ofereciam ensino primário e apenas 08 (oito) ensino secundário. A
matrícula estava dividida em 734 alunos ou 74% no ensino primário
e 257 ou 26% dos alunos no ensino secundário, estas escolas em seu
conjunto tinham uma frequencia de quase 90% do total de 991 alunos
matriculados.
Destas 15 (quinze) escolas existentes na cidade, 08 (oito) eram
mistas, 04 (quatro) para o sexo feminino e apenas 03 (três) para o sexo
masculino. Apesar, da ocorrência de um número maior de escolas
mistas e para o sexo feminino, a maior matrícula era de meninos, ou
seja, 581 alunos ou 59% eram do sexo masculino.
Sendo assim, percebe-se que o primeiro Relatório Intendencial
de Martim Tupy Silveira, demonstra que o número total de alunos
matriculados na Instrução Pública na cidade de Bagé era de 2107
alunos, sendo que estes estavam divididos em 1850 alunos no ensino
primário e 257 alunos no ensino secundário. Outra constatação
extremamente relevante para nossas análises futuras, e que de todos
os alunos matriculados nas escolas municipais, apenas 80 alunos
dos 502 alunos matriculados pertenciam à única escola totalmente
tutelada pelo município.
Os Relatórios Intendenciais publicados no jornal O Dever
entre os anos de 1915 a 1918, trazem pouquíssimas ou quase nenhuma
informação sobre a Instrução Publica existente no município de Bagé.
Por outro lado, estes mesmos relatórios são fontes riquíssimas para
compreender como se desenhava administrativamente o governo de
Martim Tupy Silveira.
Neste sentido, foi possível constatar que principalmente após o
estabelecimento do Decreto nº 2265 de 10 de março de 19175 que previa
a assinatura de um convênio entre governo do Estado e a Intendência
de Bagé para a realização do fornecimento e melhoramento dos
serviços de água, esgoto e energia elétrica, a principal preocupação
da gestão intendencial foi equiparar com serviços de infra-estrutura
o município de Bagé, isto é, organizar o sistema de água e esgoto, de
5. Fonte: Leis, Decretos e Actos do Governo do Estado do Rio Grande do Sul de 1917. Porto
Alegre: Officinas Typographicas D’ “A Federação”, 1918. (p. 112-113)
179
SUMÁRIO
As primeiras décadas do século XX:
um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS
abertura e preservação de estradas, de higiene, de assistência e saúde
pública, como também de segurança pública com a manutenção de
verbas para a Guarda Municipal da cidade.
Estas mesmas ações e procedimentos administrativos eram
uma tônica nas principais cidades do Estado, governadas por
republicanos que buscavam a ordem da sociedade e o progresso
rumo à modernização. 6
Contudo, a ausência de informações relativas à Instrução
Pública Municipal nos Relatórios Intendenciais expedidos por
Martim Tupy Silveira em sua gestão, podem ser complementados
pelos dados encontrados nos Relatórios do Orçamento Municipal,
no que se refere às receitas e despesas realizadas com a educação
tutelada somente pela ação municipal:
Quadro 03 – Receita7 Ordinária e Despesa Ordinária do Município com Educação
Ano
Receita
Total
Despesa
Total
Despesa
Municipal
1917
8:400$000
12:000$000
3:600$000
1918
8:400$000
12:000$000
3:600$000
1919
8:400$000
10:600$000
2:200$000
1920
8:400$000
10:600$000
2:200$000
1921
8:400$000
11:800$000
3:400$000
Aplicação
Professores
Móveis e
Utensílios
Fonte: Adaptado dos Relatórios do Orçamento
Acervo: Arquivo Público Municipal de Bagé
Em relação à questão da Receita Ordinária do município, é
necessário relembrar que desde o início da Primeira República ocorria
a subvenção escolar ao município de Bagé, como retrata o Quadro
XX referente ao ano de 1914, mas estas subvenções escolares somente
começam a aparecer nos Relatórios do Orçamento Municipal a partir
de 1917, e indicado como Subvenção às Escolas.
6. Interessante estudo realizado e publicado por Bakos (1998), onde a autora trata desta política
governamental ocorrida na cidade de Porto Alegre no período da Primeira República.
7. Em tempo, salientamos que os valores referentes à coluna da Receita Ordinária se referem
ao repasse financeiro do Estado para as escolas municipais subvencionadas, sendo que todos
os valores descritos na tabela estão na moeda da época, isto é, em contos de réis.
180
SUMÁRIO
As primeiras décadas do século XX:
um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS
Sobre as especificidades dos aspectos da subvenção escolar
ocorrida na Primeira República, Corsetti (1998, pág. 179-180), traz
a seguinte afirmação:
O governo gaúcho, portanto, passou a diversificar sua
estratégia em relação aos mecanismos utilizados para a
expansão do ensino, incluindo as subvenções escolares
com instrumento de sua política educacional, passando a envolver não apenas as escolas particulares como,
também, os próprios municípios. [...] Colocando, a nível das falas, a expansão das subvenções como derivada
da necessidade de impulsionar o ensino público [...], o
governo ampliou o número de subvenções aos municípios que, em 1914, chegaram a 963, e, em 1916, a 1065.
[...] a evolução da política relativa à concessão de subvenções escolares foi marcada por um crescimento daquelas concedidas aos municípios.
Portanto, percebe-se que as subvenções estaduais eram
usadas para o pagamento de professores, para a compra de móveis
e utensílios escolares, e que estas sempre se mantiveram em
8:400$000 (oito mil e quatrocentos contos de réis) até o final da
década de 1920.
Por outro lado, os mesmos Relatórios revelam que às despesas
municipais em relação aos investimentos educacionais, isto é, às
Escolas Municipais, perfizeram uma média de 3:000$000 (três mil
contos de réis) no mesmo período. Portanto, podemos afirmar que
a administração do município de Bagé despendia com a educação
pública municipal menos do que recebia do governo estadual.
Neste sentido, a leitura do Relatório Intendencial apresentado
em 20 de setembro de 1922, por Martim Silveira Martins ao Conselho
Municipal confirma nossa hipótese levantada anteriormente da
pouca ação do poder público municipal nas duas primeiras décadas
do século XX, em relação à educação pública municipal. Portanto,
as primeiras mudanças em relação aos investimentos educacionais
patrocinados pela ação do município ocorrem com uma maior
frequencia após a passagem dos anos de 1920. O quadro abaixo sobre
o panorama da Instrução Pública e Particular no ano de 1922 nos
auxilia a compreender estas mudanças:
181
SUMÁRIO
As primeiras décadas do século XX:
um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS
Quadro 04 - Instrução Pública e Particular no município de Bagé
CURSO PRIMARIO
Aulas
Tipo
Matrícula
H.
M.
T.
Professores
Freq.
CURSO SECUNDARIO
Matrícula
Freq.
H.
M.
H.
M.
T.
02
Estaduais
227
211
438
317
01
09
--
--
--
--
20
Municipais
313
224
53
447
10
10
--
--
--
--
03
Subvencionadas
pelo município
141
--
141
118
3
--
--
--
--
--
27
Particulares
762
483
1245
1098
9
18
--
--
--
--
01
Gymnasio
Auxiliadora
200
--
200
176
14
--
100
--
100
92
01
Collegio
Espírito
Santo
--
116
116
106
--
14
--
86
86
80
01
Collegio
Perseverança
--
--
--
--
--
01
15
21
33
33
01
Collegio
Applicação
43
97
140
140
--
03
05
14
19
19
1686
1131
2817
2402
37
55
121
121
241
224
Fonte: Adaptado do Relatório Intendencial do ano de 1922 (p.68)
Acervo: Museu Dom Diogo de Souza
Os dados representados acima, nos auxiliam a imprimir algumas
análises sobre a instrução pública e particular presente no município
de Bagé. Porém, se compararmos primeiramente estes dados aos
analisados no ano de 1914, pode-se estabelecer o seguinte cenário:
- No ano de 1914, havia 05 (cinco) aulas estaduais e 01 Colégio
Elementar, porém, com o processo de aumento das subvenções
escolares ao município de Bagé, o número de aulas públicas estaduais
no ano de 1922, teve um decréscimo de 80% em relação aos dados
encontrados em 1914;
- No tocante a ação da iniciativa privada, o número de escolas
apresentadas no relatório intendencial de 1922, demonstra que
ocorreu um aumento significativo na expansão de instituições
182
SUMÁRIO
As primeiras décadas do século XX:
um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS
escolares particulares, isto significa afirmar, que ao compararmos
os dados do ano de 1914, a iniciativa privada dobrou o número de
escolas/ aulas no ano de 1922 na cidade de Bagé;
- Por outro lado, em relação à ação do governo municipal podese afirmar que ocorreu um aumento no número de escolas, de 01
(uma) em 1914 para 08 (oito) escolas em 1922, além de o município
subvencionar 03 (três) escolas particulares;
Em relação aos dados isolados do Relatório Intendencial do
ano de 1922, faz-se as seguintes observações:
- Que todas as escolas subvencionadas pelo município eram
para meninos e atendiam somente o ensino de primeiras letras e
eram regidas por docentes do sexo masculino;
- Que 2817 alunos ou 92% do total estavam matriculados no
ensino primário, e que destes 59% ou 1686 alunos eram do sexo
masculino;
- Que no ensino secundário havia a equivalência do número de
escolas e do número de alunos do sexo feminino e masculino;
- Que as matrículas nas escolas que atendiam o ensino primário
estavam divididas percentualmente em 65% de alunos nas escolas
particulares, 19% nas escolas municipais e por fim 16% nas escolas
estaduais;
- Que dos 92 professores do quadro da Instrução Pública e
Particular no município de Bagé, 55 docentes ou 60% do total eram
mulheres;
Sobre o processo de feminização do magistério ocorrido
na Primeira República no Estado do Rio Grande do Sul, a leitura
dos trabalhos de Tambara (1998) e Werle (1996, 2005) podem
nos ajudar na compreensão deste movimento que modificou a
escola primária no Estado. Neste sentido, a profissão docente foi,
para muitas mulheres, uma possibilidade de romper barreiras de
preconceito e de desigualdade social e econômica e significou
um caminho para a profissionalização feminina. Estes termos são
expostos por Tambara (1998, p. 02-04)
Este é outro aspecto que sem dúvida contribuiu para
a feminilização do magistério das séries iniciais. Isto
é, socialmente se permitiu a mulher a ocupação de
um turno de trabalho enquanto que nos outros era
continuava a desempenhar normalmente os outros
papéis sociais que tradicionalmente lhe eram atribuídos. (grifos nossos)
183
SUMÁRIO
As primeiras décadas do século XX:
um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS
Na tentativa de compor um maior escopo empírico destas
características educacionais, lançamos mão de alguns dados
encontrados nos Relatórios do Orçamento municipal da cidade de
Bagé, entre os anos de 1921 a 1925, organizados no quadro abaixo:
Quadro 05 – Orçamento de despesas do Município com outras
ordens em porcentagem
Ano 1921
Orçamento Total 867:840$000
Anual
Ano 1922
Ano 1923
Ano 1924
Ano 1925
1.183.640,000 1.201.640,000 1.201.640,000 1.240.800,000
Administração
Pública
63,20%
69,13%
68,85%
68,85%
69,54%
Segurança
Pública
17,93%
16,25%
16,01%
17,67%
18,13%
Iluminação e
Higiene
Pública
12,68%
9,29%
9,90%
8,24%
7,58%
Despesas
Diversas
3,34%
2,45%
2,41%
2,41%
2,82%
Auxílios
Municipais
1,50%
1,10%
1,08%
1,08%
0,24%
Educação
Municipal
1,36%
1,77%
1,75%
1,75%
1,69%
Fonte: Livre adaptação dos Relatórios do Orçamento
Algumas conclusões podem ser realizadas com base nos dados
do quadro acima, que os gastos empreendidos com a educação
municipal tiveram uma média de 1,66% do orçamento total do
município, entre os anos de 1921 à 1925. As verbas destinadas para
a Educação Pública Municipal, quase sempre ocuparam a última
categoria de investimentos municipais.
A partir do Quadro 05, outras análises podem ser feitas, entre as
quais, destacam-se: que a primeira faixa orçamentária do município
estava ligada com as despesas da Administração Pública e que
também havia uma grande preocupação municipal com a Segurança
Municipal, visto que a Intendência Municipal empreendia volumosos
gastos com a manutenção da Guarda Municipal e dos Postos policiais
184
SUMÁRIO
As primeiras décadas do século XX:
um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS
na cidade. Este fato nos permite afirmar, que no município de Bagé,
berço do Partido Federalista, havia uma preocupação constante da
Intendência Municipal em manter a ordem social.
A preocupação com a Instrução Pública Municipal, bem como
o aumento dos investimentos financeiros aplicados com a Educação
Pública Municipal serão sentidos com maior ênfase, somente após
a segunda metade da década de 1920. Contudo, cabe salientar que
a década de 1920, na área da educação, foi um período de grandes
iniciativas. Foi à década das reformas educacionais. Não havia um
sistema organizado de educação pública, abria-se assim um grande
espaço para propostas em prol da educação.
Um dos movimentos mais importantes da época ficou conhecido
com o nome de Escola Nova. Entre os princípios defendidos por estes
educadores estavam à defesa de uma escola pública, universal e
gratuita que se tornarão suas grandes bandeiras. A educação deveria
ser proporcionada a todos, e todos deveriam receber o mesmo tipo
de educação.
Pretendia-se com o movimento criar uma igualdade de
oportunidades. A função da educação era formar um cidadão livre e
consciente que pudesse incorporar-se ao grande Estado Nacional em
que o Brasil estava se transformando.
A leitura e a análise dos Relatórios Intendenciais encontrados
no período da gestão municipal de Martim Tupy Silveira (1914-1925)
revelaram o forte crescimento de instituições escolares vinculadas às
ordens confessionais ou a professores particulares na cidade de Bagé no
período estudado. Sendo assim, esta progressão numérica de escolas
representa o avanço da iniciativa privada na expansão do ensino,
seja ele, primário ou secundário presente na Primeira República em
Bagé. Por outro lado, mesmo que havendo uma iniciativa do governo
estadual conjuntamente às primeiras iniciativas da gestão municipal,
estas não foram capazes de impedir esta expansão escolar privada.
Sobre o panorama educacional existente na Primeira República,
Corsetti (2008, p. 63) faz a seguinte avaliação:
[...], a ação do governo gaúcho revelou a utilização da
educação como instrumento da política de modernização do Estado, tendo sido marcada por características
que resumem a importante intervenção dos dirigentes positivistas em relação ao setor, conforme exposto
abaixo: a) Expansão do ensino público primário, como
ação fundamental do Estado; e) Contenção de despesas
com a expansão do ensino, através dos mecanismos das
185
SUMÁRIO
As primeiras décadas do século XX:
um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS
subvenções escolares e do envolvimento das municipalidades; f) Centralização administrativa e uniformização
pedagógica; g) Controle pleno do ensino público e liberdade à iniciativa privada; h) Utilização da escola pública
para a formação da mentalidade adequada ao processo
de modernização conservadora promovido pelo Estado.
Em paralelo, a política educacional republicana incluiu,
através de uma acomodação de interesses, um relacionamento importante entre o PRR e a Igreja Católica que,
mesmo não isento de divergências, serviu à concretização dos projetos por eles desenvolvidos. (grifos nossos)
Portanto, não restringindo a difusão do ensino primário
somente as iniciativas estaduais e municipais, os governantes
republicanos reproduziam a máxima do discurso do PRR que entendia
os assuntos educacionais da seguinte maneira: “Ensine quem souber e
quiser – como puder”. Assim, o exercício do magistério é deixado nas
mãos da iniciativa privada, como afirma Louro (1986, p. 11): Com isso,
a iniciativa privada era bem estimulada em todas as áreas, inclusive
no ensino, embora neste setor [...] o estado desse assistência. Dessa
forma, entende-se o princípio da liberdade à iniciativa privada no
sentido de fomentar a instrução primária e secundaria na Primeira
República em Bagé.
Neste sentido, verificou-se que a expansão do ensino privado
ocorrida no governo de Martim Tupy Silveira possui os seguintes
números comparativos. No início de sua gestão no ano de 1914,
havia 15 escolas particulares com uma matrícula de 991 alunos, estes
divididos em 734 alunos no ensino primário e 257 alunos no ensino
secundário. Por outro lado, no período relativo ao ano de 1922, havia
31 escolas particulares com um número de matrículas equivalente a
1842 alunos, sendo que 1701 alunos estavam no ensino primário e 241
alunos no ensino secundário.
Estes números revelam que ocorreu um crescimento de 57% na
oferta de escolas do ensino primário tuteladas pela iniciativa privada,
e um aumento de 53% do número de alunos nestas escolas. Cabe
salientar que durante todo o período da gestão de Tupy Silveira, o
ensino secundário estava atrelado à iniciativa particular no município.
Portanto, nosso interesse nesta parte do trabalho é descortinar
e inventariar a presença das principais instituições escolares privadas
na cidade de Bagé, que usaram a propaganda institucional8 como
8. Sobre o uso, a importância e as características das propagandas de Instituições Escolares em
jornais na Primeira República, consultar o trabalho de NEVES, Helena de Araujo. A “alma
do Negócio”: aspectos da educação em Pelotas-RS na propaganda institucional (1875-1910).
186
SUMÁRIO
As primeiras décadas do século XX:
um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS
forma de anunciar as atividades educacionais nos jornais O Dever e o
Correio do Sul no período compreendido entre 1914-1925.
Quadro 06 – Instituições Escolares noticiadas nos jornais (1914-1925)
Nome da Instituição
Tipo de Ensino
Vagas
Características
Collegio Tiradentes
P/S
F/M
Externato
Collegio Dupont
P/S
F/M
Internato / Externato
Collegio São Paulo
P/S
F/M
Externato
Collegio São José
P/S
F
Externato
Collegio Perseverança
P/S
F
Internato / Externato
Collegio Nunes
P/S
F/M
Internato / Externato
Gymnasio Bageense
P/S
F/M
Externato
Collegio Espirito Santo
P/S
F
Internato / Externato
Gymnasio Nª Sª Auxiliadora
P/S
M
Internato / Externato
Collegio Aplicação
P
F/M
Externato
Collegio São Pedro
P
F/M
Internato / Externato
Collegio São Luiz
P/S
M
Internato / Externato
Escola Parochial S. Sebastião
P
M
Externato
Fonte: Livre adaptação do autor dos jornais O Dever e Correio do Sul
De todo modo, apesar de termos encontrado nos Relatórios
Intendenciais de 1914 e 1922, respectivamente, um número
equivalente a 15 (quinze) instituições escolares e 31 (trinta e uma)
escolas particulares no período do governo de Martim Tupy Silveira,
muitas destas escolas não tiveram nenhuma ocorrência nos jornais.
Sendo assim, na elaboração do Quadro 06 tivemos o cuidado
de mencionarmos apenas as instituições escolares que tiveram
mais de 10 ocorrências de propagandas institucionais nos jornais
pesquisados. Especificamente sobre os anúncios escolares, Neves
(2007, p. 96) argumenta:
Nesse contexto percebe-se, tanto pelo conteúdo dos anúncios, como através dos relatórios, que foram muitas as iniciativas do ensino
privado na cidade. Por meio da exposição das
características dos serviços de que as instituições dispunham, foi possível encontrar, nos
260 f. Dissertação de Mestrado, UFPel: FaE, Pelotas, 2007.
187
SUMÁRIO
As primeiras décadas do século XX:
um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS
anúncios, dados sobre sua origem e seu cotidiano. Desse modo, pode-se saber como as
escolas eram constituídas uma vez que eram
detalhados, por exemplo, seu calendário escolar, seu corpo docente, suas condições de
admissão, as disciplinas que ofereciam, além
de sua estrutura física.
A partir destas considerações e da leitura das notícias
encontradas nos Relatórios Intendenciais e nos periódicos da cidade
de Bagé, revela-se à existência de um número efetivamente peculiar
de instituições escolares para uma cidade que possuía neste período a
4ª (quarta) arrecadação de tributos municipais do Estado e já possuía
uma população de quase trinta e dois mil habitantes.
Também é possível fazer outras apreensões dos dados retirados
do Quadro XX, tais como a existência de um número maior de
instituições particulares, proeminentemente, com o objetivo de
atender o ensino primário e secundário na cidade, como também
para o ensino de meninos e meninas.
Na tentativa de elaborar uma análise sobre a presença
destas instituições escolares no município de Bagé, organizamos o
Quadro XX, na perspectiva de esclarecer algumas especificidades
educacionais destas instituições escolares encontradas nos jornais
da cidade.
Quadro 07 – Especificidades das Instituições Escolares
Instituição Escolar
Mantenedora e/ou Proprietário
Endereço
Collegio Tiradentes
Julio Lebrum
Praça da Matriz (imediações)
Collegio Dupont
Charles Dupont
7 de setembro, 205
Collegio São Paulo
A. A. Agostinho da Cruz
General Sampaio, 63
Collegio São José
Heloisa Sarmento
Mal. Floriano, 73
Collegio Perseverança
Julieta Cazarré
Barão do Triunfo, 109
Collegio Nunes
Jacinto Nunes Garcia
Praça Julio de Castilhos, 82
Gymnasio Bageense
Manoel e Pedro Grott
3 de fevereiro, 123
Collegio Espirito
Santo9
Irmãs Franciscanas
Gen. Osório, 204
9. Sobre a História Institucional do Colégio Espírito Santo da cidade de Bagé, consultar a
dissertação de Mestrado: AZEVEDO, Regina Quintanilha. Praticas Educativas do Curso
Complementar de uma Escola Particular Católica (Colégio Espírito Santo, Bagé, 1930-44).
139 f. Dissertação de Mestrado, UFPel: FaE, Pelotas, 2003.
188
SUMÁRIO
As primeiras décadas do século XX:
um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS
Gymnasio Nª Sª
Auxiliadora10
Padres Salesianos
Praça Rio Branco
Collegio Aplicação
Universina de Araujo Bastos
Gen. Sampaio, 139
Collegio São Pedro
Olivia Romero
General Osório, 113
Collegio São Luiz
Waldemar Machado e Pery
Coronel
Gen. João Telles, 15
Escola Parochial S.
Sebastião
Cônego Costabile Hippolyto
Praça da Matriz (imediações)
Fonte: Livre adaptação do autor dos jornais O Dever e Correio do Sul
As instituições escolares representadas no Quadro 06 e
Quadro 07 merecem destaque, quer seja por sua evidência nos
jornais, quer seja por suas propostas pedagógicas, quer seja por suas
práticas escolares e/ou por sua existência na atualidade.
Ao analisarmos o quadro XX, percebemos que a localização
destas instituições escolares se situava próxima à região que se efetivou
a primeira ocupação urbana da cidade de Bagé, isto é, no primeiro
centro urbano, entre a Praça da Matriz da Catedral São Sebastião e a
Praça Rio Branco, este movimento de diálogo da cultura escolar com
a cultura urbana, é relembrado por Faria Filho (1999, p. 143):
[..] é uma cultura escolar que dialoga com a cultura urbana, criando e/ou se apropriando de representações
sobre o conjunto do social a partir do seu lugar específico na cidade. É a cultura de uma escola que se localiza, literal e simbolicamente, no centro, visando a influenciar os “poderes constituídos” e, neste movimento,
constituir-se como um poder de influência sobre os “outros”, sobre aqueles que se localizam na periferia.
Logo, salienta-se que no processo da escolha dos lugares que
serviriam para a construção de prédios escolares ou de prédios
alugados que abrigariam estas instituições escolares, houve todo
um movimento que priorizava melhores condições, fossem elas, de
salubridade, de espaço, de trabalho, de adequação às legislações
educacionais ou por fim, de dialogar com o espaço público e urbano
da cidade. Através desta pequena incursão pelos anúncios, como
também na leitura de trechos dos relatórios intendenciais sobre as
instituições escolares privadas existentes no período da gestão de
Martim Tupy Silveira, compreendemos que pesquisar a vida das
10. Em comemoração aos cem anos da Escola Nª Sª Auxiliadora, foi produzido o livro de
MARTINS, Tarcísio Luís Brasil. Cem anos com a Rainha: centenário da presença Salesiana
em Bagé/RS. Porto Alegre: Inspetoria Salesiana São Pio X, 2004, este trabalho é um interessante estudo sobre a presença da Congregação de Dom Bosco na cidade de Bagé e a sua
obra educativa.
189
SUMÁRIO
As primeiras décadas do século XX:
um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS
Instituições Escolares de uma cidade é extremamente relevante na
compreensão de uma face da História da Educação.
Portanto, acreditamos que o historiador ao revisitar o passado
traz à tona novas interpretações e novos sentidos aos seus escritos,
como afirma Chartier (2001): “Ler é uma prática criativa que inventa
significados e conteúdos singulares, não redutíveis as intenções dos
textos ...”, ancorados nesta compreensão, pretendeu-se que esta
parte do capítulo possa possibilitar novas e futuras leituras que
possam ser construídas a partir dos dados encontrados sobre estas
Instituições Escolares de Bagé na Primeira República, bem como,
buscar compreender um passado permeado por intenções políticas,
educacionais e culturais que fazem da história da educação um campo
de pesquisa inquietante.
Por fim, esperamos que este trabalho possa exercer um
papel fundamental na construção de um acervo e um arcabouço
documental para outras pesquisas sobre outras instituições escolares
de ensino que estiveram presentes na história da educação de Bagé
nas primeiras décadas do século XX.
Referencias
BAKOS, Margaret M. Marcas do positivismo no governo municipal de Porto
Alegre. Revista Estudos Avançados. [online]. 1998, vol.12, nº 33, pp. 213-226.
CHARTIER, Roger. Cultura Escrita, Literatura e História. Porto Alegre: Artmed,
2001
CORSETTI, Berenice. Uma história sobre trajetórias dos professores públicos
do Rio Grande do Sul (1889-1930). In: Revista História & Perspectivas, Uberlândia,
nº 38, jan. jun 2008, p. 79-98
____________. Controle e Ufanismo. A Escola Pública no Rio Grande do Sul
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GUTFREIND, Ieda. Historiografia sul-rio-grandense e o positivismo comtiano. 1998, p. 50. In: GRAEBIN, Cleusa M.; LEAL, Elisabete (org.). Revisitando o positivismo. 1ª ed. Canoas: Editora La Salle, 1998, p. 47-58.
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REIS, Jorge. Apontamentos Históricos e Estatísticos de Bagé. Bagé: Typografia
do “jornal do Povo”, 1911.
190
SUMÁRIO
As primeiras décadas do século XX:
um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS
TAMBARA, Elomar. A Educação no Rio Grande do Sul sob o Castilhismo. Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós Graduação
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NEVES, Helena de Araujo. A “alma do Negócio”: aspectos da educação em
Pelotas-RS na propaganda institucional (1875-1910). 260 f. Dissertação de Mestrado, UFPel: FaE, Pelotas, 2007.
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Figura 01 – Anúncio do Collegio Dupont
Fonte: Correio do Sul, 19/01/1917 (p.02)
Figura 02 – Anúncio dos Colégios Espírito Santo e Gymnasio Nossa Senhora Auxiliadora
Fonte: Correio do Sul, 12/02/1918. (p.02)
191
SUMÁRIO
O “ESCRÍNIO” DE ANDRADINA DE OLIVEIRA
E O PROTAGONISMO FEMINISTA NA CIDADE
DE BAGÉ/RS (1898)
Clarisse Ismério1
Edla Eggert2
192
SUMÁRIO
O “escrínio” de Andradina de Oliveira e o protagonismo feminista
na cidade de Bagé/RS (1898)
1
2
Introdução
Ao refletir sobre a história das mulheres na história tradicional,
Michelle Perrot (2005) evidencia as constantes lacunas das fontes e
profundo silêncio dos arquivos, que evidenciam a segregação social
imposta e o papel de coadjuvante determinado pelo processo histórico.
No Brasil e, mais especificamente, no Rio Grande do Sul
durante a República Velha (1889-1930), observamos essa postura
através da influência da doutrina Positivista de Auguste Comte. O
Positivismo opunha-se frontalmente ao Catolicismo, porém existia
um ponto de convergência entre as duas doutrinas, referente à
postura e ao espaço de atuação feminina: defendiam que a mulher
era a guardiã da moral e do culto religioso.
A mulher era considerada uma educadora por natureza,
com isso poderia exercer a profissão de professora, orientando os
alunos como se fossem seus próprios filhos. A professora trabalhava
em escolas, casas particulares ou em suas próprias casas. Algumas
mulheres desistiram de ser rainha do lar e de constituir família para
se dedicar unicamente ao magistério. A mulher que optasse por
ficar solteira era, muitas vezes, estereotipada pela sociedade, porque
estaria deixando de cumprir sua função de progenitora, perdendo sua
pureza espiritual, ficando desprotegida e exposta aos males da vida.
Isso acontecia porque o lugar da mulher era dentro do lar cuidando de
seus entes ou afazeres. Se ficasse solteira estaria fora dos padrões préestabelecidos, mas se decidisse dedicar-se unicamente ao magistério,
1. Doutora em História do Brasil- Urcamp.
2. Doutora em Educação - PUCRS
193
SUMÁRIO
O “escrínio” de Andradina de Oliveira e o protagonismo feminista
na cidade de Bagé/RS (1898)
ensinando as crianças como se fossem seus próprios filhos, resgatava
o estado de pureza no papel de mãe-educadora (ISMÉRIO, 2018).
Por meio do ofício do magistério, as mulheres conquistaram seu
espaço e puderam também atuar como escritoras e jornalistas, para
difundir seus ideais e questionar os valores da sociedade machista e
conservadora que viviam. Dentre elas destaca-se a importância da
produção e atuação profissional da educadora Andradina de Oliveira
(1864-1935), que criou o segundo periódico feminista, o Escrínio
(1898-1910), na cidade de Bagé e posteriormente foi publicado em
Santa Maria e Porto Alegre.
A pesquisadora Hilda A. Hubner Flores dedicou uma parte de
seus estudos para reconstituir a história das mulheres no Rio Grande
do Sul, produção literária e periódicos. E dentre suas produções
destacamos a organização da obra Divórcio?, de Andradina de
Oliveira. Flores, nesta edição, apresenta um texto biográfico da
autora entrelaçando sua trajetória com suas ações, manifestações e
publicações e destaca que “é uma das autoras notáveis que atuaram
na virada dos séculos XIX-XX. Impôs-se como cronista, romancista,
poeta e dramaturga. Feminista assumida, formou opinião através
do magistério, de conferências, das obras e de seu jornal/revista
Escrínio” (FLORES, 2007, p.11).
Lúcia Henriques Maia (2010) em sua dissertação, O Perdão,
de Andradina de Oliveira: romance urbano na Belle Époque riograndense, discorre sobre a identidade rio-grandense, modernidade
e gênero tendo como pano de fundo a urbanização de Porto Alegre.
O mesmo romance é analisado por Selma Alves de Souza e Paulo
Henrique Pressotto, por meio da personagem Estela refletem sobre
a representação e o espaço das mulheres delimitado pelos códigos
sociais patriarcais do século XIX. No artigo os autores salientam o
ativismo feminista de Andradina, salientando-a como defensora
dos direitos das mulheres e destacando que as suas personagens
retratavam muito bem os dramas das relações de classe e de gênero.
E com veemência apontam a denúncia que a autora fazia com relação
às leis que decretava “a ilegitimidade social da mulher que rompe
com o contrato da indissolubilidade do casamento, considerado
tabu, inaceitável para os padrões de comportamento vigentes
para a sociedade da época”(SOUZA; PRESSOTTO, 2017).
A autora também foi motivo de pesquisa e produção de tese de
Rosa Cristina Hood Gautério (2015), denominada “Escrínio, Andradina
de Oliveira e Sociedade(s): Entrelaços de um legado feminista”, em
194
SUMÁRIO
O “escrínio” de Andradina de Oliveira e o protagonismo feminista
na cidade de Bagé/RS (1898)
que foi analisada a trajetória histórica da educadora e escritora a
partir do jornal Escrínio e de sua produção literária, oportunizando
análise sobre gênero, subjetividade e relações de poder. Gautério
afirma a importância de Andradina como, “(...) Expressão de grande
representatividade no cenário social do seu tempo, a escritora gaúcha
é uma voz indissociável da imprensa feminina como referência da
história cultural e literária das mulheres não só no Rio Grande do Sul,
mas também no Brasil” (GAUTÉRIO, 2011, p. 516).
Diante do exposto a presente pesquisa concentrou-se na fase de
Bagé, conhecida pelo patriarcado e conservadorismo, onde se originou
o periódico no dia 2 de janeiro de 18983. Através da investigação ficou
constatado que existem apenas cinco exemplares desse período, sendo
que apenas um exemplar encontra-se na cidade de origem:
Escrínio (Bagé) - dia 02.01.1898 - nº 1 (Acervo da Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ);
Escrínio (Bagé) - dia 09.01.1898 - nº 2 (Acervo da Biblioteca Rio-Grandense, Rio Grande, RS);
Escrínio (Bagé) - dia 23.01.1898 - nº 4 (Acervo da Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ);
Escrínio (Bagé) - dia 30.01.1898 - nº 5 (Acervo do Museu
D. Diogo de Souza, Bagé, RS);
Escrínio (Bagé) - dia 10.04.1898 - nº 15 (Acervo da Biblioteca Rio-Grandense, Rio Grande, RS).4
Observa-se, a necessidade de reconstituir a fase de Andradina
em Bagé, buscando ler nas fontes disponíveis os pequenos detalhes
que passam despercebidos ou são negligenciados por olhares
menos atentos. Esses fragmentos são reveladores na visão de Carlo
Ginzburg, uma vez que “pistas infinitesimais permitem captar a
uma realidade mais profunda, de outra forma inatingível. (...) Se a
realidade é opaca, existem zonas privilegiadas - sinais, indícios, que
permitem decifrá-la” (GINZBURG,2007, p. 150 e 177).
E sob a perspectiva da hermenêutica feminista, as ações e o
protagonismo de Andradina são elucidados em suas vivências,
produção literária e jornalística. Nessa proposta metodológica
reflexiva, utilizando a hermenêutica da suspeita, existe a compreensão
3. Projeto pesquisa de pós-doutorado desenvolvido junto ao PPGEdu da PUCRS.Foi chancelado pelas Universidades Comunitárias e desse modo possui o incentivo de ambas: URCAMP e PUCRS.
4. Destaca-se que os exemplares citados foram adquiridos, cópia digital e microfilme.
195
SUMÁRIO
O “escrínio” de Andradina de Oliveira e o protagonismo feminista
na cidade de Bagé/RS (1898)
de que os dados levantados nas fontes jornalísticas da época refletem
a mentalidade patriarcal e conservadora cujos discursos estabeleciam
regramentos e modelos de conduta social. Mas, por outro lado,
também se evidencia a leitura das fontes pautada nessa hermenêutica
que evidencia a relembrança e suspeita de sempre perguntar como é
que mulheres na pele de Andradina posicionaram contra a cultura
patriarcal de sua época (EGGERT, 1999, p.24).
Nessa perspectiva delineou-se uma pesquisa com outro olhar,
não meramente técnico e hermético, mas que considera os fatos
construídos como fruto das percepções e vivências femininas. Uma
investigação que busca “conseguir perceber na outra pesquisada
uma cúmplice da descoberta de nós mesmas”. Uma vez que “somos
sujeitos capazes de transformar determinada realidade/pesquisa e nos
transformarmos.” (EGGERT, 2003, p. 20 apud. CASTRO, 2014, p. 6)
No capítulo analisamos fragmentos do periódico Escrínio e para
tanto dividimos em dois momentos, primeiramente apresentaremos
recortes da história de Andradina de Oliveira e, num segundo
momento, refletimos seu posicionamento e vivências a partir das
páginas do jornal.
Recortes da história de Andradina de Oliveira
Andradina América de Andrada de Oliveira nasceu em Porto
Alegre, em 12 de julho de 1864, filha do médico sanitarista Carlos
Montezuma de Andrade e de Joaquina da Silva Pacheco, natural de
Rio Pardo. Andradina casou-se aos 17 anos com o tenente Martiniano
de Oliveira (12º Batalhão de Infantaria), de origem nordestina, em 18
de setembro de 1881, e dessa união teve os filhos Adalberon e Lola. Ao
enviuvar, mudou-se com seus dois filhos para Pelotas e depois, para
Rio Grande, onde contrariou os “bons costumes” e buscou o sustento
da sua família. Segundo Flores, “(...) a partir de sua intelectualidade:
lecionou, editou livros, fez palestras e conferências remuneradas,
quando se esperava da mulher que permanecesse nos afazeres do lar,
na costura, nos bordados” (2007, p.11).
A filha de Andradina Lola de Oliveira5, ao homenagear a mãe
nas memórias “Minha Mãe!”, relata que “Andradina começou aos
5. Lola de Oliveira (Porto Alegre 1889 - Rio de Janeiro) era filha do casamento de Andradina
com Augusto Martiniano de Oliveira. Foi poetisa, romancista, teatróloga, contista e pintora.
Dirigiu junto com a mãe o Escrínio e foi colaboradora do Corimbo. Também era mãe de
Aldaberon, que estudou no Colégio Militar de Rio Pardo e pretendia seguir os passos do pai,
mas em 20 de agosto de 1906, aos 22 anos, faleceu de tuberculose. (Flores, 2007, p. 11-12)
196
SUMÁRIO
O “escrínio” de Andradina de Oliveira e o protagonismo feminista
na cidade de Bagé/RS (1898)
cinco anos, os seus estudos primários no colégio dirigido pela escritora
gaúcha Luciana de Abreu. Mais tarde fez, com raro brilhantismo,
conquistando distinções em todas as matérias, curso na Escola Normal
de Porto Alegre” (OLIVEIRA, 1958 apud GAUTÉRIO, 2015, p. 41-42).
Esse registro é bastante significativo, pois a professora e poetisa
Luciana de Abreu foi das primeiras líderes feministas do Rio Grande do
Sul, que em suas palestras no Partenon Literário, lutava pela abolição
da escravatura, pela igualdade entre os sexos através da educação e
pelo voto feminino (MOTTA, 1987, p. 74). Luciana tem uma história
de superação, pois quando bebê foi deixada na roda dos expostos
da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, sendo adotada pelo
guarda-livros Gaspar Ferreira Viana e esposa. Foi a primeira aluna a
se inscrever na Escola Normal da Província em 1869, obtendo o título
de professora em 1872, em 1873 ingressou no magistério público e
em seguida criou a própria escola que possuía uma grande procura
(MOTTA, 1987, p. 74 e Flores, 1999, p.15). E, para Maria Josepha
Motta (1987), Luciana de Abreu foi uma mulher ímpar que conseguiu
notoriedade através da educação e ao liderar a luta feminina numa
sociedade pautada pelo conservadorismo patriarcal. Podemos seguir
a proposta da hermenêutica feminista (EGGERT, 1999) e, imaginar o
quanto a coerência de Luciana de Abreu foi exemplo para Andradina,
aluna em sua escola.
Ao depararmo-nos com esse fato, entendemos que nossa
autora em questão, teve uma educação diferenciada cujos princípios
formadores estarão presentes na sua produção e direcionamento social.
Salientamos ainda o fato de ela ter cursado a Escola Normal
da Província de São Pedro, criada em 5 de março de 1869 em Porto
Alegre, que era voltada para formar professoras, uma vez que essa
atividade era vista como uma continuação do papel da mãe. Essa
escola também é reconhecida por formar uma parte significativa das
mulheres rio-grandenses que se tornaram grandes líderes (LOURO,
1986, p. 28 e 29).
E foi em Pelotas que Andradina começou a colaborar com
os jornais locais e onde conheceu o novo companheiro, o ator
de teatro Júlio de Oliveira, considerado um artista dramático de
grande talento. E essa união revelou uma nova vocação: a de atriz e
dramaturga. E, conforme destaca Gautério (2015, p. 53,) no ano de
1896, Andradina deixa por um tempo o ofício de professora, e lançase numa bem-sucedida excursão teatral pelo estado, sendo que o
início é na cidade de Bagé.
197
SUMÁRIO
O “escrínio” de Andradina de Oliveira e o protagonismo feminista
na cidade de Bagé/RS (1898)
A ligação com a cidade Bagé se dá através da grande amiga
e poetisa Leocádia Grecco6 que durante o lançamento de seu
primeiro livro de contos, “Preludiando”, na cidade de Rio Grande em
1897, lhe faz um convite para ir morar na cidade que por ela tem
apreço. O trecho autobiográfico que destacamos a seguir nos indica
rememoração saudosa e convite audacioso de mudança de lugar.
Quando em 1897, na hospitaleira cidade de Rio Grande
publiquei o meu primeiro livro, (contos), Preludiando,
livro sem pretensões, e que foi gentilmente recebido
pela crítica, Leocádia, a saudosa amiga, prestou-me
inolvidável auxílio, acudindo, espontaneamente, a carregar-se de coloca-lo também na cidade de Bagé, o que
prontamente conseguiu graças às simpatias de que gozava (...) Leocádia endereçou-me entusiástica missiva
que terminava assim: para que eu seja completamente
feliz só me falta um ente a meu lado: tu! Por que não
vens para Bagé? Aqui todos te estimam! Vem! (OLIVEIRA, 1907, p. 58 apud GAUTÉRIO, 2015, p. 54)
Bagé conquistou seu apogeu, na segunda metade do século XIX.
A cidade desfrutava de poderio econômico fruto das charqueadas e do
ramal ferroviário que dinamizava o escoamento da produção. Em 1897,
foi fundada por Antônio Nunes de Ribeiro Magalhães a Charqueada
de Santa Thereza, considerada um símbolo da modernidade para
o período. A modernização impulsionada pelo desenvolvimento
das charqueadas proporcionou melhorias no município, tais como
o telefone, iluminação, cinema, automóvel, teatro e feiras de
exposição (LEMIESZEK, 1997). O desenvolvimento das charqueadas
proporcionou um crescimento urbano que possibilitou a opulência
destacada por nossa autora, por meio de construções suntuosas,
prédios públicos em forma de palacetes, perceptíveis também nos
túmulos e mausoléus, que foram produzidas por marmorarias de
Montevidéu, Gênova e Porto Alegre. Esses detalhes aparecem num
artigo de Andradina publicado no jornal “O Dever” em 1915, período
em que ela morava na capital do estado, Porto Alegre. Ela escreve
com saudosismo e admiração sobre o tempo em que viveu em Bagé.
Das cidades da vastíssima e opulenta campanha rio-grandense, é Bagé uma das mais belas e mais prósperas. Impressiona agradavelmente a sua entrada, com as
charqueadas bem cuidadas, de aspecto florescente, a
linda Vila Santa Thereza, com a sua poética capelinha,
as suas avenidas extensas de eucaliptos a purificar o ar,
6. Poetisa e colaboradora dos Jornais Escrínio e Corimbo. Era esposa do fotógrafo José Grecco, que registrou momentos da Revolução de 1893 em Bagé.
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SUMÁRIO
O “escrínio” de Andradina de Oliveira e o protagonismo feminista
na cidade de Bagé/RS (1898)
a embelezar ainda mais o sítio que o pendor estético de
um homem de energia e de bondade, o distinto português, Sr. Visconde Ribeiro Magalhães, tornou um paraíso terreal, sob este céu sempre azul, em que as nuvens
são sempre formosamente brancas. Pitoresco, os arredores de Bagé! Lindas as suas ruas higiênicas, avenidas
longas e largas, arborizadas de acácias de flores de ouro
ou de prata, os de ramagem farfalhante, entremeados
de postes elegantes, pintados de alumínio e de que pendem os grandes fogos elétricos, derramando uma luz
esplêndida, claríssima, numa opacidade de luar, como
se fossem outros tantos globos lunares que baixassem,
enquanto as estrelas, num fulgor intenso, cravejam o
profundo firmamento a espiar talvez do alto, as formosas bajeenses, nos carros destoldados e nos frenéticos
automóveis, passeando, na doçura das noites cálidas, a
sua elegância e a sua gracilidade tão afamadas. Encantadora a Praça Voluntários da Pátria, verdadeiro bosque,
cheio de gorjeios e perfumes, de flores e de árvores, com
sombras deliciosas, convidando ao repouso do espírito
e do corpo. De um lado vê-se o Mercado, a fachada ostentando três cúpulas que lhe dão um aspecto elegante;
De outro, o Teatro 28 de Setembro e a Intendência, dois
belos e vistosos edifícios. E como agrada observar-se o
gosto na edificação! Há palacetes deveras chiques, onde
se percebe pelos jardins floridos a paixão pela flor e pela
árvore que tanto encanto dão às cidades dos descampados imensos da nossa terra. Há várias praças novas
que se vão arborizar para maior beleza de Bagé; numa
ergue-se a estátua do grande médico, que foi o Dr. Penna, cuja bondade fez dos corações bageenses um pedestal imperecível para a sua cara lembrança; noutra há o
pequeno busto do maior estadista da América, o Barão
do Rio Branco. E como Bagé se tornou em poucos anos
uma cidade linda e risonha em que a indústria pastoril,
a agricultura, o comércio, a instrução e tantos outros
elementos poderosos hão de fazer dela uma das mais
opulentas do Rio Grande do Sul, muitas são as impressões que reserva ao forasteiro, principalmente quando
este saber ver com olhos d’alma o progresso da sua pátria. E mais fortes são estas impressões quando recebidas por entre o espontâneo carinho de um povo culto
e hospitaleiro (OLIVEIRA, 1915 apud. GIORGIS, 2013)
Há um misto de admiração trazida minuciosamente pelas
descrições tanto de aspectos físicos quanto de aspectos morais e
afetivos. E, sobretudo nos chama a atenção para com o enaltecimento
da cultura sofisticada de círculos que, muito provavelmente
prestigiavam a escrita de Andradina.
199
SUMÁRIO
O “escrínio” de Andradina de Oliveira e o protagonismo feminista
na cidade de Bagé/RS (1898)
As fontes jornalísticas evidenciam que o período que
Andradina esteve em Bagé foi produtivo, pois criou seu próprio
jornal e abriu uma escola mista. Ela definia a cidade como “a mais
histórica da Revolução7, onde o ar tem a verdadeira pureza, onde o
clima tem o encanto da salubridade, onde o céu não tem inveja do
céu de Nápoles onde a mulher é adoravelmente bela, onde o povo é
caracteristicamente gentil e hospitaleiro (...). de quem tenho recebido
as mais gentilíssimas provas de simpatia” (OLIVEIRA, 1898, p. 1).
Apesar da acolhida e dos êxitos alcançados em 1899 ela
transfere-se para Santa Maria. Essa mudança, segundo Rosa Gautério
(2015), ocorreu em decorrência do aumento da febre tifoide em Bagé
que era noticiada diariamente pelo jornal O Comércio.
Posteriormente Andradina e sua filha, Lola mudaram para
Porto Alegre, onde tiveram uma vida intelectual bastante produtiva.
Entre 1915 e 1920, mãe e filha, fizeram uma tournée cultural pelo
Uruguai, Argentina, Paraguai e estado do Matogrosso, vivendo “da
cultura, Andradina conferenciando e Lola ensinando desenho e
pintura, com a venda de suas telas” (FLORES, 2007, p. 16-17). Hilda
Flores destaca ainda que posteriormente foram para o estado de
São Paulo, primeiramente para Jaú e depois Ribeirão Preto, mas que
pouco se sabe sobre esse período da vida de Andradina. Contudo a
autora relata que ela teria sido aprisionada na Revolução de 1932, e
esse fato desencadeou uma doença mental que a levou a morte em
19 de junho de 1935, aos 71 anos. Os restos mortais de Andradina e
de Lola estão depositados num túmulo do cemitério São Paulo, na
capital paulista. (FLORES, 2007, p.18)
Escrínio: feminismo em Bagé
No dia 2 de janeiro 1899, nasce em Bagé o segundo8 periódico
feminista rio-grandense, o Escrínio9, um jornal literário, artístico e
noticioso, fruto das aspirações de Andradina de Oliveira (imagem
1). Posteriormente o periódico foi publicado em Santa Marie e
7. A Revolução Federalista de 1893 ocorreu entre federalistas (maragatos) e republicanos (ximangos). Dentre os muitos acontecimentos destaca-se o Cerco de Bagé, no qual no os federalistas sob o comando de João da Silva Tavares (Joca Tavares) sitiaram a cidade por 46 dias.
8. O primeiro periódico feminista do Rio Grande do Sul foi O Corimbo (1883-1943), das irmãs
Revocata Heloísa de Mello e Julieta de Mello Monteiro, de Rio Grande, que versava sobre
os direitos sociais das mulheres. Andradina foi ativa colaboradora dos periódicos Corimbo,
A Violeta e do Almanaque literário e Artístico do Rio Grande do Sul.
9. Escrínio é um cofre de papéis ou escrivaninha.
200
SUMÁRIO
O “escrínio” de Andradina de Oliveira e o protagonismo feminista
na cidade de Bagé/RS (1898)
posteriormente em Porto Alegre, cujo primeiro número data de 12
de julho de 1901. Em 1906 Andradina interrompe a circulação do
jornal para cuidar do filho, Aldebaron que estava com tuberculose.
Ele falece em 22 de agosto do mesmo ano10. O Escrínio é relançado
em 1909 no formato de revista, cujo último exemplar foi publicado
em 25 de junho de 1910.
Imagem 1: Escrínio, Bagé, dia 02.01.1898 - nº 1. Acervo da
Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ.
Constatamos que a postura feminista11 de Andradina, tomou voz
nas páginas do seu semanário, que propunha difundir o protagonismo
e a emancipação intelectual feminina ao abordar os mais variados
temas sociais. Conforme a sua proprietária e redatora pronunciou no
primeiro número:
O paladino que, hoje, surge, na arena escabrosa do jornalismo, é o produto de uma vontade feminil que, jamais, se entibiou no meio das terríveis lutas pela vida;
10. A dor da perda de seu filho querido é expressa no livro Cruz de Pedra de 1908.
11. Entendemos que o feminismo produzido por mulheres do século XIX possui protagonismos importantes vistos desde o nosso tempo de século XXI. Não vamos nos ater a
compreensão histórica das “ondas” feministas, pois as narrativas se sobrepõem, compõem
e inclusive depõem. Mas o que mais nos chama a atenção é que depois de mais de 100 anos
vamos retomando aspectos estratégicos das nossas antecessoras que acenaram com muita
astúcia a habilidade do manuseio das agulhas e das palavras.
201
SUMÁRIO
O “escrínio” de Andradina de Oliveira e o protagonismo feminista
na cidade de Bagé/RS (1898)
de uma vontade que sobrepujou, sempre, os mais atrozes dissabores, com que, para uns a sorte se apraz em
tapetar-lhes o caminho da existência, onde muitas vezes, para colher uma flor que os fascina pelo delicado
colorido de suas pétalas ou pelo embriagador perfume
de sua corola, rasgam as vestes nas sarças maninhas, dilaceram as carnes nos espinhos agudos, despedaçam a
alma nas dores fundas, nas agonias lentas, nas desilusões amargas, nas desesperanças infindas, nas tristezas
inconsoláveis (...) O Escrínio, o modesto Escrínio, será
o eco de todos os bons sentimentos, de todas as legítimas e sãs doutrinas, de todas as nobres tentativas, de todos os levantados cometimentos, de todas as sublimes
aspirações; será, finalmente, o cofre amoroso das joias
literárias dos filhos do Rio Grande do Sul, desta terra
de bravos, de que me orgulho de ser filha, desta terra
que viu nascer Osório, Andrade Neves, Marechal Bittencourt – heróis que tem assombrado o mundo inteiro
pelo seu valor inexcedível, pela sua incomparável abnegação; desta terra feliz, em que tem brotado esplendidamente, mil robustas inteligências, quer na tribuna, que
na imprensa, quer na literatura, quer nas Bellas Artes
(OLIVEIRA, 1898, p. 1).
Andradina também deixa claro que a linha editorial do jornal
seguirá suas convicções e lutas feministas e que suas páginas irão
auxiliar no despertar feminino:
Fundado por uma filha desta encantadora terra, por
uma fervorosa defensora do seu sexo, o Escrínio surge,
também, como um incitamento à mulher rio-grandense, convidando-a a romper o denso casulo da obscuridade, o vir á tona do jornalismo trazer as pérolas da
sua cultivada inteligência! O Escrínio aparece como um
verdadeiro propagandista da instrução, do cultivo do
espírito feminil! (OLIVEIRA, 1898, p. 1).
Conforme salienta Celi Regina Pinto o movimento feminista
inicia no Brasil na década de 1910 com a luta pelo sufrágio feminino,
liderada por Bertha Lutz, Bióloga e uma das fundadoras da Federação
Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF) em 1922. E também
destaca que se difundiu em três vertentes: a primeira reivindicava os
direitos políticos; a segunda, chamada de feminismo difuso, marcada
pela imprensa alternativa feminista; e terceira norteada por mulheres
trabalhadoras, intelectuais e militantes do movimento anarquista
e comunista (PINTO, 2003, p.14 e 15). Observa-se que o Escrínio
é um dos jornais representantes da segunda fase, na qual algumas
educadoras passaram a expressar suas ideias feministas na imprensa
202
SUMÁRIO
O “escrínio” de Andradina de Oliveira e o protagonismo feminista
na cidade de Bagé/RS (1898)
local. Supomos que o “denso casulo da obscuridade” é um anúncio de
outros tempos preparadores de reivindicações.
Os seguidores do positivismo, tais como Teixeira Mendes (1908)
e Joaquim Bagueira Leal (1921), que foram responsáveis pela difusão
do discurso conservador que delimita a mulher no espaço privado,
em suas palestras que foram posteriormente publicadas pela Igreja
Positivista do Rio de Janeiro, posicionavam-se contundentemente
contra o feminismo, que na visão desses nobres senhores estimulava
a competição entre os sexos desvirtuando a mulher de exercer seu
verdadeiro papel social. Chamamos atenção para a atualidade de
discursos semelhantes encontrados nas câmaras de deputados e
vereadores em nossos últimos tempos que parecem ser tirados de
discursos como esse de Mendes, “essa aberração feminista; com seu
consequente amor livre, esse horror dos horrores, que brada aos céus,
constituem o extremo grão ultrarrevolucionário da dissolução do lar”.
(1908, p. 170) Ou ainda um triste “produto da anarquia moderna. Entre
as grosserias masculinas que se deseja ver a mulher praticar estão as
que se resumem no chamado direito ao voto”. (LEAL, 1921, p. 4)
O discurso contra o trabalho feminino não era exclusividade
dos positivistas, na realidade eles salientaram uma preocupação que
era constante na sociedade do período. Todas as publicações em
torno desse tema procuravam destacar o aspecto negativo gerado
pela mulher que trocava seus deveres principais por uma profissão
remunerada: “Toda a sociedade em que os homens sugam os serviços
materiais das pobres mulheres, é uma sociedade em desorganização”
(LEAL, 1921, p. 3-4).
E, já no primeiro número de seu semanário, Andradina
posiciona-se contundentemente contra a máxima que limita a
mulher no espaço privado exercendo sua função de rainha do lar ou
de anjo tutelar.
A mulher deve ser instruída, deve ser educada para
melhor cumprir a sua divina missão na terra – ser mãe.
Deixemos falar os espíritos retrógrados! Deixemos fallar
os ignorantes, que proclamam a decantada trilogia da
mulher – filha, esposa e mãe! Dizem eles: A mulher só
deve ser isto e para isto basta-lhe saber lavar e cozinhar.
Irrisório! Então a mulher para ser a verdadeira filha, a
verdadeira esposa, a verdadeira mãe, só precisa saber o
trabalho doméstico? Não! Não! E não! A mulher precisa
ir, além do fogão, além da tesoura, além do tanque, em
que lava a roupa da família. Ela necessita de uma boa
educação e de uma sólida instrução. É preciso que ela
faça do lar um cenário, onde representa ora o papel de
cozinheira ora o papel de literata, música o quer que
203
SUMÁRIO
O “escrínio” de Andradina de Oliveira e o protagonismo feminista
na cidade de Bagé/RS (1898)
seja, onde o seu espírito se alimente e se desenvolva.
(OLIVEIRA, 1898, p. 1 e 2)
Com esse posicionamento Andradina crítica visão conservadora,
estabelecida durante o curso de história, de que a mulher deveria ser
educada para ser dona de casa e educar seus filhos, pois era desprovida
de dotes intelectuais, mas detinha os afetivos, como escreveu Pio
XI, na encíclica Castii Conubii (Sobre o Matrimônio Cristão): “Se
efetivamente o homem é a cabeça, a mulher é o coração, e se um tem
primado do governo, a outra pode e deve atribuir como seu primado
do amor”. (Pio XI, 1952, p.14).
Augusto Comte às denominava com o sexo afetivo, sendo a
representação da mais pura emoção. E, uma vez que são os sentimentos
que determinam sua ação, era considerada irracional, tendo que
ser protegida pelo homem. A inferioridade feminina encontrava-se
expressa no discurso doutrinário do Catecismo Positivista, no diálogo
entre o sacerdote e a mulher iniciada:
Mulher - Pelo que ouvi em nossa conferência preliminar, sinto-me atemorizada, meu pai, por minha profunda insuficiência para a elevada exposição que ides começar (...) minha inteligência se figura demasiado fraca
para compreender esta explicação, por mais simples que
vos seja dado fazê-la. (...)
Sacerdote - (...) As mulheres e os proletários que a exposição tem em vista não devem ser doutores, nem eles
os querem. (...)
Mulher - Amedronto-me de minha nulidade pessoal antes semelhante existência (COMTE, 1988, p. 95, 96 e 99)
A inferioridade do sexo feminino em relação ao masculino
também é salientada pelo filósofo iluminista Jean-Jacques Rousseau,
na obra “Emílio ou Da Educação”. Emílio, personagem que
representava o sexo masculino, tem por qualidades as de ser ativo,
forte, corajoso e inteligente. E por sua natureza, deveria ser educado
para os negócios públicos. Já sua companheira Sofia, representante do
sexo feminino, aparece em segundo plano, como um complemento
às ações e qualidades de Emílio. Ela é descrita como um ser frágil,
submisso, passivo e emotivo. Por ser a sua natureza frágil, seria
educada de forma bem rígida para que não fosse corrompida pelos
males da sociedade e somente aprenderia os trabalhos destinados
ao seu sexo, ou seja, as prendas domésticas e tudo aquilo que a
preparasse para ser filha, esposa e mãe. Nunca deveria meter-se nos
negócios públicos, conforme Rousseau:
204
SUMÁRIO
O “escrínio” de Andradina de Oliveira e o protagonismo feminista
na cidade de Bagé/RS (1898)
O que Sofia sabe mais a fundo, e que lhe fizeram aprender com mais cuidado, são os trabalhos de seu sexo,
mesmo aqueles que não se lembram, como cortar e
costurar seus vestidos. Não há trabalho em agulha que
não saiba e que não faça com prazer; mas o trabalho que
prefere a qualquer outro é o de fazer rendas, porque nenhum outro dá atitude mais agradável e em nenhum os
dedos exercitam com mais graça e ligeireza. Dedicou-se
também à todas as tarefas do lar. Conhece a cozinha e a
copa; sabe o preço dos mantimentos; conhece as qualidades; sabe muito bem suas contas; serve de mordomo
para sua mãe. Feita para um dia ser mãe de família e ela
própria, governando a casa paterna aprende a governar
a dela (ROUSSEAU, 1992, p. 473).
Rousseau, além de influenciar Kant (1724-1804) e Pestalozzi
(1746-1827), influenciou muitos pensadores e médicos sanitaristas do
século XIX, que fundamentam suas teorias e seus discursos higienistas
nas teses do filósofo francês. Essas ideias foram retomadas por Comte,
tanto na questão da educação da mulher como nas características
que a tornavam inferior e frágil.
Andradina não era contra as mulheres que optavam por casar e
cuidar exclusivamente do lar, mas argumentava que a mulher deveria
ter acesso a uma educação de qualidade, que lhe proporcionasse
curiosidade e conhecimento para tratar de temas complexos ou
simples que compõem seu dia a dia.
A mulher deve saber talhar a roupa dos filhos, e também
ensinar-lhes a matéria prima de que ela é feita. Deve
saber preparar um excelente pudim e mostrar, quando
interrogada por estas naturalmente curiosa as criaturinhas, os seus conhecimentos de botânica. A mulher
deve ser bem educada, deve ser bem instruída, porque
ela é a primeira mestra do seu filho, porque ela, só ela!
Pode formar-lhe o coração, implantar-lhe os bons sentimentos. O caráter, a dignidade, a virtude! Não há inconveniente algum para a boa direção do lar, como julgam
muitos, passar a mulher do fogão à secretaria. A mão
que prepara um bom filé pode traçar um bom soneto.
Não há dúvida. (...) Assim, pois, amadas rio-grandenses, estuda e aperfeiçoa e o vosso espírito para vos tornardes mais gentil rainha, do pequenino reino, que nós
todos veneramos – o lar… (OLIVEIRA, 1898, p. 2).
Observa-se que no texto enfatiza que a mulher com
conhecimento poderá educar com mais propriedade seus filhos,
preparando-os realmente para a vida. Com essa afirmação ela
responde a altura outra máxima do período, que afirmava que a
205
SUMÁRIO
O “escrínio” de Andradina de Oliveira e o protagonismo feminista
na cidade de Bagé/RS (1898)
mulher era educadora por natureza. Esse era um dos compromissos
assumidos no ritual do casamento positivista e os iniciados na
doutrina constantemente reforçavam a importância dessa missão
feminina, independente de sua instrução que preparava as meninas
para serem futuras mães e os meninos para se tornarem grandes
homens e futuros gênios. Teixeira Mendes (1908) instruía fielmente
os ensinamentos de Rousseau ao enfatizar que a maternidade é
soberana e moldura do “tempo preciso para que todas as mulheres
pudessem aprender, de modo a exercer a sua função de mães, de
formadoras de homens”. Esse é o ensinamento compreensível, o de
que a mulher não escreve epopeias, porque na compreensão do seu
inspirador Rousseau, a mulher tem sua missão de garantir um lar
soberano para o descanso do “seu homem” esse sim, cidadão.
Paradoxalmente, por mais que nos pareça, desde nossos
dias, perceber que a nossa autora oferece destaques próximos ao
que esses senhores admoestavam, ela propagava a importância e
os benefícios de uma educação feminina de qualidade. Andradina
convida as mulheres e todos que desejarem seus escritos para
serem publicados, uma vez que o “Escrínio orgulhar-se-á quando
vos lembrardes de enviar-lhe as joias literárias dos vossos cérebros
ricos de poesia, das vossas almas ricas de dedicação!” (OLIVEIRA,
1898, p. 2).
Em outra passagem do mesmo artigo Andradina expressa a visão
feminista de não confrontar o sexo oposto, mas tê-lo como aliado
e parceiro nas conquistas uma vez que os homens compreendem a
importância da mulher como uma aliada no trabalho diário, como
companheira, amante e mãe.
Felizmente, no século das luzes, o homem o nosso consocio nos prazeres e nas dores, despindo aquele carrancismo estúpido dos nossos antepassados, vai-nos fazendo justiça e reconhecendo em nós a mesma capacidade
intelectual, que, até bem pouco, era considerada seu
exclusivo privilégio. Sim! Ele compreende, afinal, que a
mulher pode, com vantagem, auxiliá-lo nas lutas pela
vida, trabalhar, seja em que for, a seu lado, sem descurar
um só de seus deveres domésticos, uma só das suas virtudes. Ele compreende que a mulher instruída e educada pode desempenhar, mais belamente, o seu papel de
filha, de esposa e de mãe. (OLIVEIRA, 1898, p. 2)
Arriscamos afirmar que nesse discurso denunciador dos
domínios patriarcais está contida uma ambiguidade que também se
apresenta em outra brilhante parceira brasileira do século XIX, Nísia
Floresta. Elas por um lado anunciam as virtudes recém descobertas
206
SUMÁRIO
O “escrínio” de Andradina de Oliveira e o protagonismo feminista
na cidade de Bagé/RS (1898)
de si mesmas e, simultaneamente juram que seguirão zelando seus
algozes por meio do trabalho zeloso junto às suas famílias, fazendo
ruir, vez por outra, alguns dos seus pilares. Essa ambiguidade nos
interessa como pista hermenêutica para futuros pespontos para mais
estudos e textos que as mulheres do século XXI retomam com novas
perspectivas.
O Escrínio era um semanário que circulou de 1898 a 1910 e a
cada final de mês, tinha um número especial comemorativo dedicado
às mulheres (imagem 2).
Imagem 2: Escrínio, Bagé, dia 30.01.1898 - nº 5, edição especial.
Acervo do Museu D. Diogo de Souza, Bagé, RS.
Observamos que apenas o número cinco encontra-se em Bagé,
fazendo parte do acervo de jornais do Museu D. Diogo de Souza.
Esse exemplar é um número especial que foi publicado no dia 30
de janeiro de 1898, cuja editora esclarece a proposta e convida os
colaboradores(as) para enviar seus escritos:
O número de hoje – o último deste mês,– como o último de todos os outros meses, será consagrado à Mulher,
tornando-se um número especial, pelo que pedimos
aos nossos colaboradores e às pessoas que nos quiserem honrar com a gentil colaboração, sobre tão delicado tema, enviarem-nos com antecedência os originais
(OLIVEIRA, 1989, p. 2).
207
SUMÁRIO
O “escrínio” de Andradina de Oliveira e o protagonismo feminista
na cidade de Bagé/RS (1898)
O primeiro número especial foi composto por poemas e contos
escritos por vários colaboradores, tais como Pedro Antônio de Miranda
(Pelotas), Ferdinando Martino, Jáder de Carvallho, Revocata H. de
Mello, J. B. I., Leocádia Greco, Pedro Antonio de Miranda Pelotas,
Ibrantina Cardona. SP, C. Reis. Elvira Gama. Rio de Janeiro, Pierrot
Pelotas e J.B.I. Dentre os inúmeros elogios e aclamações às mulheres
destaca-se as palavras da poetisa Leocádia Greco, grande amiga de
Andradina, que aproveita o espaço privilegiado para expressar suas
ideias sobre o papel feminino na sociedade:
Dizem que a mulher existe para criar seus filhos e cuidar
dos arranjos da casa; não sendo necessário ser instruída
para ser boa. Sim, diz muito bem quem vê na mulher
um autômato. Imbecis! egoístas! Como melhorar as gerações se a mulher vive no obscurantismo? Como desejar um povo que compreenda os deveres de cidadão se a
mulher os ignora? (...) Deixemos falar os espíritos frívolos e retrógrados; procuremos dissipar com o estudo a
densa nuvem que nos circunda, para que a geração, que
nos pertence da qual somos responsáveis possa brilhar
santamente com a sua luz seremos recompensados nossos esforços e abençoados pelas gerações futuras (GRECO, 1989, p.3).
Num período em que as mulheres eram educadas para serem
submissamente coadjuvantes, a educadora feminista Andradina
de Oliveira rompe com os padrões ao propor o protagonismo e a
emancipação intelectual feminina nas páginas do seu jornal Escrínio.
Foi uma mulher adiante do seu tempo, que também se notabilizou
como escritora, dramaturga e conferencista (imagem 3).
Imagem 3: Foto do livro Contos de natal (1908).
Acervo da Biblioteca Rio-Grandense (GAUTÉRIO, 2015, p. 37).
208
SUMÁRIO
O “escrínio” de Andradina de Oliveira e o protagonismo feminista
na cidade de Bagé/RS (1898)
Deixou um vasto legado literário, do qual citamos alguns
títulos como: O sacrifício de Laura (1891), Preludiando (1897),
Almanaque literário e estatístico (1899), Você me conhece? (1899),
A mulher rio-grandense: escritoras mortas (1907), Contos de Natal
(1908), Cruz de pérolas (1908), O perdão (1910) e Divórcio? (1912).
E pelo reconhecimento de sua obra foi homenageada como patrona
da cadeira no. 11 da Academia literária Feminina de Letras do Rio
Grande do Sul – ALFRS.
Considerações finais
Em breves páginas delineamos um pouco da história e do
pensamento de Andradina de Oliveira, uma mulher inspiradora de
múltiplos atributos que se fez forte através de sua intelectualidade
e ousou superar as dificuldades impostas ao seu sexo. Num período
em que o modelo de conduta feminino preconizado pela tradição
patriarcal era de esposa, genitora e formadora de homens, algumas
mulheres romperam o silêncio construindo espaços para ressignificar
suas vidas, propagar suas ideias e marcar seu lugar na história.
Como eram consideradas “educadoras por natureza” utilizaram
do ofício docente para alçar voos mais altos e marcar espaço na
sociedade, através de sua produção literária e jornalística, difundiram
seus ideais e questionaram os valores da sociedade machista e
conservadora em que viviam. Essas mulheres, aos nossos olhos foram
destemidas ao utilizarem amplamente de espaços possíveis para
reivindicar uma educação digna para as meninas e mulheres e, com
isso, ampliarem os direitos civis de todas.
E a professora Andradina de Oliveira, foi uma dessas grandes
mulheres, que produziu o seu periódico como instrumento de
formação da sociedade na luta pela igualdade, valorização do ensino
e capacitação das mulheres. O Escrínio, criado em terras bajeenses,
tornou-se o porta voz de suas aspirações e fiel guardião atemporal
das evidências de sua militância feminista.
Referências
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209
SUMÁRIO
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na cidade de Bagé/RS (1898)
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GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas e Sinais. São Paulo: Companhia das letras,
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210
SUMÁRIO
O “escrínio” de Andradina de Oliveira e o protagonismo feminista
na cidade de Bagé/RS (1898)
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MOTTA, Maria. Luciana de Abreu. In FLORES, Hilda. Porto Alegre: História e
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OLIVEIRA, Andradina de. Escrínio. ano I, número 1, Rio Grande, Bagé, 2 de Janeiro de 1898, ano I, número 1. Acervo Especial da Biblioteca Nacional.
OLIVEIRA, Andradina de. Escrínio. ano I, número 5, Rio Grande, Bagé, 30 de
Janeiro de 1898, ano I, número 1. Acervo Especial da Biblioteca Nacional.
PAIXÃO, Márcia e EGGERT, Edla. A hermenêutica feminista como suporte
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EDUNISC, 2011. Disponível em: www.unisc.br/edunisc. Acesso em: 04 de março
de 2020.
211
SUMÁRIO
Parte II
Economia, Fronteira e Política
212
SUMÁRIO
Prefácio
OUTR AS VISÕES DOS CÂNONES BAJEENSES
José Carlos Teixeira Giorgis (*)
1. Contam que Cícero, ao apresentar a obra de Heródoto a
quem considerava o pai da História, afirmava fazê-lo para que as
obras dos homens não fossem esquecidas com o tempo como ainda
as maravilhosas façanhas de gregos e bárbaros e a causa de seus
conflitos. Disso se deduz que tais trabalhos acentuam a existência de
um verdadeiro programa ou tarefa do historiador contendo um relato,
estória, exposição oral ou escrita, onde olhos e ouvidos ressaltam
uma palavra essencial da História, ou seja, o testemunho, a quem
cabe preservar a lembrança das ações humanas através da Memória.
E, assim, não sejam jamais esquecidas.
Diz Eric Hobsbawn que a destruição do passado e dos
mecanismos que vinculam a experiência pessoal à das gerações
pretéritas é um dos fenômenos mais lúgubres do final do século
passado e de nossos dias, pois quase todos os jovens de hoje crescem
num presente contínuo, sem relação orgânica com o outrora. E assim,
os historiadores, cujo ofício é lembrar o que os outros esquecem,
tornam-se mais importantes que nunca, devendo ser mais que
simples cronistas, memorialistas ou compiladores; e nem apenas
julgar, mas compreender, embora as convicções e a experiência, o que
não significa transigir com o que deve ser criticado.
A análise histórica tem conduta oscilatória que intervém na
literatura e na investigação, lembrando Marc Ferro que os conteúdos
ideológicos sucumbiram com a falência de alguns movimentos,
como o marxismo, levando ao exame de uma ótica plana da história,
como ainda a eclosão de nações emergentes alterou a centralidade
do discurso meramente europeu, abrindo oportunidade à crítica e
leitura segundo os novos tempos. E que a história é uma disputa
em que o controle do passado ajuda a dominar o presente, de que
redunda aquilo que o autor chama de história vigiada, pois quando
mais se divulga algum conhecimento mais rigorosa se torna a
fiscalização. É dele, ainda, a catalogação da história em fatual e não
fatual, história- narrativa e história-problema, a história segundo as
213
SUMÁRIO
Outras visões dos cânones bajeenses
elites ou história vista de cima e a história segundo os proletários
ou história vista de baixo, classificações que apenas consideram as
variáveis da obra, o modo de exposição e a natureza dos assuntos
abordados, os procedimentos de análise, os vínculos entre os objetos
de estudo, enfim, as metodologias e as práticas do ofício.
Veyne leciona que a história é análise mais que narração, o
que a distingue do romance, pois se ela fosse simples ressurreição
e não exame, bastava a leitura da produção novelística e não seria
necessário escrevê-la: o romancista cria e recria, mas o historiador
fornece-lhe sentido e conceito. E, enquanto a história de outrora
ou história de tratados e batalhas é mera narrativa e arrolamento
de fontes, a vigente história não fatual vai além, juntando pesquisas
e análises que desembarcam em conceitos que dão finalidade aos
acontecimentos.
Repete-se ali a lição de Chartier para quem a história é discurso
que aciona construções, composições e figuras que são as mesmas da
escrita narrativa, portanto da ficção, mas é um discurso que, ao mesmo
tempo, produz corpo de enunciados científicos, com possibilidade de
estabelecer um conjunto de regras que permitam controlar operações
proporcionais à produção de objetos determinados.
Essas são meditações que acodem quando se conhece o
conteúdo do livro coletivo História de Bagé sobre Novos Olhares,
produto de iniciativa organização realizada pelos historiadores, Dr.
Gustavo Figueira Andrade, , Dr.ª Maria Medianeira Padoin, docente
do PPGH/ UFSM, e Dr.ª Clarisse Ismério, coordenadora curso de
História/URCAMP, louvável iniciativa que contou com o apoio de
profissionais dos cursos de História e Arquivologia da Universidade
de Santa Maria e, em especial, com os alunos do Programa de PósGraduação em História de dita instituição. Na obra se incluem
eruditos trabalhos e pesquisas de ressonância, não apenas do
pessoal vinculado às entidades, mas outros talentosos pesquisadores
e historiadores, conjunto que redunda num livro seminal que se
inscreve entre os clássicos sobre a Memória da cidade fronteiriça,
mas que se estende para uma peculiar investigação de fatos e
pessoas e suas circunstâncias, por isso matricial contribuição para a
historiografia brasileira.
Dividida em duas partes, a primeira delas cuida do Patrimônio,
Cultura e Sociedade, ocasião em que os cultos autores se debruçam
sobre os aspectos de preservação da memória de Bagé, como cidade
suas instituições e seus acervos, como os da Santa Casa e seu cemitério;
214
SUMÁRIO
Outras visões dos cânones bajeenses
da família Tavares, de tanta importância para os fastos regionais; a
imprensa feminina de Andradina de Oliveira; as práticas entre a
população negra; a educação local sob os apanágios republicanos e
castilhistas; a existência do Instituto de Belas Artes; e a Vila de Santa
Thereza, que de certa forma representa um laço com temas da Segunda
Parte, e em especial a presença do Visconde Ribeiro de Magalhães.
Importa referir que a intenção genuflexa dos trabalhos busca
“a valorização e a preservação da história e da memória bajeense
(...) para que se possa compreender aspectos de estruturação e
desenvolvimento da comunidade local”, concebendo as fontes
documentais enquanto “um patrimônio coletivo de uma sociedade”,
objetivo suficientemente valorizado pelo conteúdo dos artigos.
2. A parte seguinte se intitula Economia, Fronteira e Política,
abrange 12 textos, também de grande hierarquia histórica, mas onde
consigo ver, entre eles todos, um especial pano de fundo, exatamente
uma das minhas indagações pela proeminência que devo ao apreço
visceral ao solo onde nasci: a Fronteira, em todas as vicissitudes e
glórias, não apenas como um mero marco topográfico, mas como
espaço de alteridade, paz e afeição fraterna. A Fronteira Iluminada,
na feliz acepção de Fernando Cacciatore Garcia, é exaltada por tantos
estudos como os de Oswaldo Aranha, Bevilaqua, Guilhermino César,
Barão do Rio Branco, Golin, Álvaro Soares, Souza Doca, Hélio Viana,
Chasteen, Moisés Vellinho, Tarcísio Taborda e muitos outros, para
ficar apenas na literatura brasileira.
Gunter Axt, ao prefaciar a obra de Fernando C. Garcia, declara
que a fronteira é uma região que envolve uma linha limítrofe, que pode
ser geográfica, mas é, sobretudo cultural e simbólica, confundindo-se
com a própria linha limítrofe; a torre de controle é uma construção
que representa um devir histórico. Tudo aquilo que separa ou divide,
diz o historiador, não é impermeável. Não é necessariamente a
mesma de ontem e talvez não seja a de amanhã, mas um portal que
muda o status das pessoas e das coisas. Pode libertar ou aprisionar,
pode antagonizar. Mas pode também integrar.
A existência de fronteira ampla e aberta, escrevi em texto
jornalístico, que agasalha o território bajeense constitui significativa
realidade geopolítica na topografia pátria. Carece de nitidez sinal que
costume marcar alguma barreira formal entre as nações vizinhas.
Nada nos separa, diria um orador contumaz. Há um fluxo natural de
cá para acolá na medida que outro circula em roteiro invertido como
se apenas mudassem sons ou costumes ao transpor a imaginária
215
SUMÁRIO
Outras visões dos cânones bajeenses
linha. Por deter, por formação profissional, também modestos
conhecimentos das ciências, sustento que esse intercâmbio se
assemelha à osmose biológica, fenômeno comum na vida dos seres
vivos e que consiste na troca de líquidos através da membrana
semipermeável das células de uma para outra conforme se altere a
concentração dos produtos necessários à sobrevivência do indivíduo.
A muitos chama atenção como esse fato encontra ressonância, e
repetição, em episódios que ilustram a história rio-grandense; ou seja,
como essa permeabilidade da fronteira está presente em numerosos
eventos, onde brasileiros ou uruguaios migram com inteira liberdade,
fazendo base ora aqui ou acampando lá segundo os seus interesses
nacionais próprios, até muitas vezes conjugados no mesmo ideal, em
fraternidade política a unificar sonhos específicos. Basta rememorarse a revolta farroupilha com as diásporas de Bento Gonçalves ou
Neto; ou as incursões dos irmãos Saraiva em suas pugnas orientais;
ou Joca Tavares, chefiando tropas binacionais que arrancaram da
Carpintaria em 1893; ou Aparício, de quem se diz haver possuído um
sítio em Bagé, haver participado de refregas estaduais, registrando
alguns escritores, com alguma contestação, que os pais destes heróis
uruguaios (Aparício, Gumercindo, Chiquito) por pouco não foram
gerados aqui quando seu pai partiu de Lavras, o que transformaria
Bagé na terra natal daqueles líderes, tendo mudado o rumo para
Santa Vitória do Palmar ante o clima belicoso daqueles tempos.
Afirma a professora Ieda Gutfreind, autora de obras
importantes sobre a imigração judaica no Rio Grande do Sul, que
a historiografia oficial gaúcha construiu um relato sobre fronteiras
sempre ameaçadas, ou discurso da muralha que objetiva separar o
que, por natureza, sempre foi apenas uma continuidade, ou seja, a
vastíssima área da pampa.
Segundo ela, é a teoria da fronteira linha, que releva os
conflitos entre os impérios e depois entre países independentes,
deixando de lado as naturais aproximações e trocas que sempre
ocorrem nos dois lados de uma fronteira. Isso decorre da intenção
de manter um Rio Grande brasileiro, com origem em Portugal e
sobre o pertencimento do estado meridional do Brasil como uma
possessão lusitana. O empenho foi sempre o de elaborar uma
história que confirmasse as raízes portuguesas e um sentimento de
brasilidade dos gaúchos, apoiando-se num nacionalismo em defesa
da fronteira que faz exacerbar o sentimento pátrio sulino, o de um
gaúcho brasileiro pioneiro dos sentimentos nativistas. Tal se reflete,
216
SUMÁRIO
Outras visões dos cânones bajeenses
para Gutfreind, numa gauchização dos imigrantes aqui chegados,
que abdicam de suas etnias em prol desta homogeneização.
O correto para a historiadora seria adotar-se a fronteira zona,
propugnada por Jean Chesneaux, que valoriza mais a integração, o
convívio, o contato e a aproximação dos lados, dando relevância
à fluidez das fronteiras, o que eleva o sentimento de solidariedade
internacional, a amizade entre os povos, a fraternidade, deixando
de lado rivalidade, discórdias e conflitos.
A professora Ana Luiza Reckziegel, ao explanar as relações
diplomáticas entre Brasil e Uruguai nos eventos de 1893, aqui, e 1897,
no lado oriental, demonstra que o governo do Rio Grande do Sul,
em determinado período, conduziu com autonomia suas ações com
o pais vizinho, até ignorando as orientações oficiais, postura que
denomina como diplomacia marginal percebível nos movimentos
revolucionários indicados. A instabilidade política no Rio Grande do
Sul repercutiu no Uruguai não apenas pela situação limítrofe, mas
pelo envolvimento direto dos orientais na contenda gaúcha, como a
presença de Gumercindo e Aparício Saravia nas hostes federalistas.
Esse trânsito espontâneo, de ligações comuns, de interação nos
assuntos daqui e de lá, ostentada pelos homens da região nos ajudam
a compreender as imbricações destes caudilhos nas querelas políticas
dos dois territórios.
A afirmação da historiadora passofundense fortalece a acepção
pessoal de que exista entre Bagé e Aceguá uma fronteira osmótica
pulsante, dinâmica, ativa, agora bem retratada pelos artigos que
compõem essa obra significativa.
4. Como disse acima, consigo divisar na narrativa da estrada
de ferro Bagé-Rio Grande, inclusive da discussão de seu traçado,
feito por Maira Eveline Schimitz, fortes indícios de que sua
construção levou em conta os interesses em ligar a fronteira ao
mar, para a exportação dos produtos da região, bem como o aporte
dos descarregados em Rio Grande. O artigo de Marcelo Santos
Matheus sobre a escravidão na campanha gaúcha com a exploração
por uma elite de criadores não descarta a existência do convívio
também com o que acontecia no Uruguai, sabido da circulação
entre os dois países dos cativos. E Aristeu Elisandro Machado Lopes,
ao referendar os trabalhadores das charqueadas, traz ao proscênio a
figura do Visconde Ribeiro de Magalhães que em sua empresa possuía
empregados oriundos do Rio Negro e Tres Cerros, no Uruguai. A
que se junta a percuciente pesquisa de Jonas M. Vargas que desvela
217
SUMÁRIO
Outras visões dos cânones bajeenses
o conhecido fato de que os rebanhos uruguaios transitavam para as
charqueadas de Bagé e Pelotas até com alguma naturalidade, onde
Bagé, segundo o autor, era um importante corredor de passagem,
fazendo parte de um espaço econômico pecuário-escravista que se
estendia ao interior do Uruguai até o complexo porto-charqueada
localizado em Pelotas e Rio Grande. Saliente-se, como ele diz, que
não se conhecem os inventários uruguaios de João da Silva Tavares,
Visconde de Serro Alegre Tavares, como ainda o de João Antônio
Martins. Gustavo Figueira Andrade, um dos idealizados deste livro
e reconhecida autoridade, mercê de suas pesquisas e textos, no trato
de assuntos referentes à família Silva Tavares, aqui em companhia de
Aristeu Elisandro Machado Lopes, disseca, com talento, as relações
de João Nunes da Silva Tavares, o Joca, com a cidade de Bagé no
contexto da proclamação da República e da Revolução Federalista,
episódios onde a presença do caudilho bajeense teve notória e
destacada liderança. O que encontra ligação com os movimentos
de Gaspar Silveira Martins, narrados por Mônica Rossato, político
também visceralmente unido a Bagé, apontando o destaque dele
como Deputado Provincial, Deputado Geral, Senador, Ministro da
Fazenda, Presidente da Província e Conselheiro do Império. Essa
peculiar situação de fronteira encaminha o estudo da presença do
uruguaio Aparício Saraiva em Bagé, durante s revoluções uruguaias
de 1896 e 1904, feito com erudição por Pablo Rodrigues Dobke; e
matéria, que, com menor talento, o subscrevente ensaiou em artigos
de jornal, focalizando mais a presença de Cândida Diáz, esposa do
caudilho, e filhos do casal.
Apontem-se como ainda apologéticos e exaurientes, os
textos sobre as imigrações dos Valdenses, protestantes adeptos de
Pedro Valdo, da cidade de Lion, considerados heréticos pela Igreja
Católica e fugitivos para as regiões alpinas do norte da Itália. Alguns
deles vieram para Argentina e Uruguai e para o Rio Grande do Sul,
localizando-se em Porto Alegre, Pelotas, Bento Gonçalves e Bagé.
Lembra o autor Arthur Engster Varreira que a passagem deste grupo
migratório europeu se deu pelo espaço da fronteira platina, incluindo
a região da campanha, trazendo a lembrança do relacionamento de
alguns, como os Jannuzzi e Gianelli, com empresários como Guinle
e Gaffrée, aqui o bajeense Cândido. Já Carlos Eduardo Piassini, ao
cuidar da imigração alemã-russa, recorda os imigrantes teutosrussos que vieram se instalar em Aceguá, então pertencente ao
município de Bagé, onde fundaram a Colônia Nova, em 1949. Eram
da religião anabatista, portanto luteranos, de quem discordavam
218
SUMÁRIO
Outras visões dos cânones bajeenses
a respeito do batismo que para aqueles só devia ocorrer na idade
adulta, divergindo de Lutero, Calvino e outros líderes protestantes.
Uma das divergências com os anabatistas aconteceu na Holanda,
sob a liderança do ex-padre católico Menno Simons, daí os
“menonitas” que, em parte, depois se localizaram na Rússia, de lá se
evadindo depois de Stálin. Daí o Brasil, Rio Grande do Sul e distrito
de Bagé, hoje de Aceguá. Outra imigração relatada é dos sírios
libaneses para Bagé, tratada por Júlio Bittencourt Francisco, autor
inclusive de livro sobre o tema no Rio Grande do Sul, que relata a
vinda deste núcleo para o Rio Grande do Sul, em 1890 e para Bagé.
Cognominados de “turcos” pela população da época, na realidade
eram oriundos da Síria e Líbano, tendo de adotar o passaporte da
Turquia para viajarem. Júlio fez importante acervo de depoimentos
com famílias de Bagé, chegando a um interessante panorama da
cidade, costumes e vida de tais imigrantes.
Convém encerrar com dois artigos que brilham como os demais.
O esboço por uma história operaria de Bagé, contendo suas entidades
características, é escrito por André Vinicius Mossate Jobim que parte
do significativo número de trabalhadores em Bagé, entre a República e
1930, dedicando-se duas personagens que a marcaram pela tendência
anarquista: Venâncio Pastorini Sobrinho e Dorval Lamotte. É que
Bagé foi um reconhecido núcleo de Imprensa Anarquista, segundo
revelou estudos pioneiros de meu saudoso amigo João Batista Marçal.
Quando há muitos anos visitei um Centro Anarquista, existente
em Vila Isabel, no Rio de Janeiro, ao referir Pastorini e sua ação
proselitismo em Bagé, fui honrado depois, com a designação do nome
dele para uma das estantes da biblioteca lá existente. Foi figura muito
bem descrita pelo artigo, como ainda Dorval Lamotte. O autor conta
a fundação da primeira associação operária, a Sociedade Protetora
dos Artistas, de 1883, depois veio a Sociedade Operária de Socorro
Mútuo e Beneficente, de 1898, seguindo-se outras, sindicalistas ou
anarquistas. Essa espécie de associação se reproduziu muito em
Bagé, inclusive algumas de italianos, portugueses, espanhóis e outras,
entidades muito elogiadas pelo caráter associativo e protetor. Outro
trabalho criativo e original foi a genealogia da família Delabary, A
partir da profícua investigação desencadeada pelo descendente
Diego Teixeira Delabary é um trabalho que alia coragem, denodo e
muita transpiração, como é ali narrado por ele. E a partir dos dados,
o historiador bajeense Cláudio Antunes Boucinha, cujo talento só
é superado por sua modéstia e discrição, desenvolve uma rede de
informações e ilações com acontecimentos históricos vividos por
219
SUMÁRIO
Outras visões dos cânones bajeenses
muitos componentes da família Delabary. Boucinhas foi, a meu juízo,
um dos primeiros historiadores, além de alguns pós-graduados, a
trabalhar com as informações da internet, tornando-se um exímio
pesquisador virtual e que deu dignidade e crença em tais análises,
bastando indicar a massiva bibliografia, onde além de escritores
de prestígio e obras de relevo se acham os caminhos pelo espaço
internético, todos apropriados e sérios.
5. O projeto capitaneado por estudiosos de escol e protegido
por entidades de referência transformou-se, pela mágica qualidade
de seus escritores e textos, em obra que envaidece a pesquisa e
engrandece a cultura histórica do país. Mas, sobretudo, entalha um
diamante coruscante e raro na coroa da Rainha da Fronteira.
Porto Alegre, maio de 2021.
(*). Mestre em Direito, membro do Instituto Histórico e Geográfico
do Rio Grande do Sul e Diretor do Memorial do Judiciário do Estado.
220
SUMÁRIO
221
SUMÁRIO
FERROVIA NA PROVÍNCIA DE
SÃO PEDRO: O CASO DA ESTRADA
DE FERRO RIO GRANDE – BAGÉ 1
Maira Eveline Schmitz2
222
SUMÁRIO
Ferrovia na província de São Pedro:
o caso da estrada de ferro Rio Grande - Bagé
1
2
Introdução
O século XIX, de forma geral, pode ser considerado um
momento de transformação, mais do que de estruturas políticas
ou econômicas, das formas de ver, sentir e estar no mundo. Palco
para novidades produzidas pelo homem, foi o século da revolução
industrial, do desenvolvimento da técnica, do fortalecimento do
regime do tempo e do relógio e da aproximação dos mundos. Inúmeros
ícones desta “virada moderna”, assim, podem ser citados, como os
motores a vapor para a indústria, a iluminação a gás, o telégrafo, o
telefone, a eletricidade, a fotografia, as estradas de ferro. Acelerando
a comunicação e o transporte e criando confortos que a nova classe
média requisitava, estes melhoramentos são representantes de um
novo modo do ser social e cultural no ocidente.
Reconhecendo que este momento de transição se apresenta – e
se representa – por meio de variados símbolos, Peter Gay defende
que, de todas as invenções do século XIX, são as estradas de ferro as
que melhor exemplificam a “sensação vertiginosa” que possuíam as
pessoas “de viver numa tempestade de prodigiosas transformações
daquilo a que estavam habituados” (GAY, 2002, p. 164). As ferrovias
ocasionaram transformações não somente por sua existência física
e “real”, desenvolvendo o transporte, propiciando ou impedindo a
1. Este artigo é resultado da dissertação de mestrado intitulada “Nas asas do vapor: construção
do espaço ferroviário em Pelotas/RS (fim do séc. XIX – início do séc. XX)” defendida
pela autora no PPGH-UFPel, em 2013. O texto foi originalmente publicado nos Anais da
X Mostra de Pesquisa do APERS: produzindo história a partir de fontes primárias, Porto
Alegre: Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas - CORAG, 2013, p. 191-208.
2. Mestra em História, Doutoranda PPGH-UFSM/ Docente IFFar – campus Santa Rosa.
223
SUMÁRIO
Ferrovia na província de São Pedro:
o caso da estrada de ferro Rio Grande - Bagé
urbanização. Os trens passaram a adentrar a imaginação das pessoas,
modificando a forma como estas se afinavam com o tempo, com a
velocidade e seus estímulos e com o próprio espaço.
Metaforicamente falando, apesar de as ferrovias serem um
objeto histórico por excelência, pois lidam e interferem com os dois
principais conceitos da História – o tempo e o espaço – os estudos
sobre esta temática, no Rio Grande do Sul, ainda não obtiveram um
relevo considerável. Poucos são os esforços em construir reflexões
e narrativas sobre o seu processo de instauração, desenvolvimento
e usos, principalmente no tocante aos seus primeiros anos de
funcionamento.
Esta escassez de pesquisas, além de acarretar em uma lacuna
historiográfica, traz efeitos sobre a própria organização das fontes
primárias sobre o tema. Não ignorando os esforços de alguns arquivos
específicos – como o Museu do Trem, na cidade de São LeopoldoRS – a documentação sobre a ferrovia no Estado se encontra
bastante dispersa e, principalmente, pouco conhecida. Se a falta de
sistematização documental reflete dificuldades para as pesquisas, a
falta de pesquisas acaba por manter esta situação, uma vez que estes
acervos não são explorados em toda a sua potencialidade.
Levando em conta esta situação, o presente trabalho tem por
objetivo traçar um histórico das primeiras discussões sobre a estrada
de ferro Rio Grande – Bagé, localizada na região meridional do Rio
Grande do Sul. Pretende-se, assim, contribuir para a construção do
saber relativo à rede férrea no Estado.
A Ferrovia na Província de São Pedro do Rio
Grande do Sul
A história das estradas de ferro no Rio Grande do Sul, conforme
o inventário das estações ferroviárias elaborado pelo Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (IPHAE), tem início em
1866, com os debates na Assembleia Provincial acerca da construção
de uma linha que interligasse a zona de colonização alemã, no vale
do Rio dos Sinos, com a capital Porto Alegre (IPHAE, 2002, p. 19).
O direito de construção foi cedido a uma empresa inglesa, sendo
inaugurada a primeira seção da estrada em 1874.
De acordo com o historiador Caryl Eduardo Jovanovich Lopes,
“o assunto dos transportes era a tônica na pauta da Assembleia” e
seguindo a febre dos trilhos de ferro que varria o Império brasileiro,
224
SUMÁRIO
Ferrovia na província de São Pedro:
o caso da estrada de ferro Rio Grande - Bagé
a solução encontrada foi a fundação de uma estrada de ferro até
Hamburger-Berg – atual Novo Hamburgo (LOPES, 2002, p. 70).
Posteriormente a esta linha pioneira, foi sendo implantada na
Província uma rede de estradas de ferro, seguindo quatro linhas
principais: as Estradas de Ferro Porto Alegre – Uruguaiana, Rio
Grande – Bagé, Santa Maria – Marcelino Ramos e Barra do Quarai
– Itaqui. “A ferrovia rio-grandense era estratégica e de incontestável
poder político, importante elemento de repressão ao contrabando
nas fronteiras do Uruguai e Argentina, valioso instrumento para
a atenção as colônias de imigrantes e, por isso, meta do governo
gaúcho” (2002, p. 70).
Focalizar-se-á, aqui, a linha que vai do Rio Grande à Bagé por
sua importância no sul do Estado e por ser a primeira via férrea a
passar pela região. Esta estrada fazia parte do projeto inicial da rede
ferroviária para a Província, apresentada em 1872 pelo engenheiro J.
Ewbank da Câmara, sendo aquela denominada por ele de “Tronco
Sul”. Sua construção foi autorizada a partir de um decreto imperial,
em 1873, juntamente com a linha Porto Alegre – Uruguaiana.
A concessão de sua construção passou por vários nomes,
começando pelo empresário Hygino Corrêa Durão, que a princípio
parece ter desistido dos direitos. A concessão passa para a Compagnie
Imperiale des Chemins de Fer du Rio Grande do Sul, de origem belga,
a qual em 17 de fevereiro de 1883 foi autorizada a fundir-se com a
Southern Brazilian Rio Grande do Sul Company. Foi a partir desta
fusão que, afinal, ocorreu a construção da linha (IPHAE, 2002, p. 20).
A Southern Brazilian Rio Grande do Sul Company deteve os direitos
da estrada até 1905. Neste ano, o controle passa para a Compagnie
Auxiliare des Chemins de Fer au Brésil, até ser encampada pelo governo
estadual em 1920, federalizada em 1957 e desestatizada, voltando ao
capital privado, ao longo da década de 1990. Os primeiros contratos,
projetos e discussões datam da década de 1870 e podem ajudar a
compreender as dinâmicas que de certa forma determinaram o
próprio trabalho das companhias que prosseguiram na concessão.
Como afirma Lopes, a rede ferroviária gaúcha, ao contrário da
tendência geral brasileira, foi fruto de um planejamento. Ela “não
nasceu da união ocasional de vias, mas, sim, como resultado de um
projeto fundamentado que se tornou realidade nas últimas décadas do
século XIX e princípios do XX” (LOPES, 2002, p. 70). A ideia das vias
férreas como uma rede é abordada também por Lidia Maria Possas,
no seu estudo sobre a Noroeste paulista, aonde esta aparece como
discurso somente nas décadas de 30 e 40:
225
SUMÁRIO
Ferrovia na província de São Pedro:
o caso da estrada de ferro Rio Grande - Bagé
Ela [a rede férrea] deveria ser pensada como “artérias”
que conduzem o fluxo sanguíneo, alimentando todo o
organismo nacional. Essa ideia compartilhava também
com a possibilidade de os trilhos energizarem o papel
das cidades grandes, alimentando, provendo as menores e assim realizando as trocas comerciais e econômicas, intensificando a propagação de ideias e alargando
progressivamente o horizonte nas localidades mais
isoladas, pela penetração de focos de civilização. Era
a completa racionalidade em prol da domesticação do
sertão selvagem e bárbaro. (POSSAS, 2001, p. 88)
Se na Europa ocidental de meados do XIX, a ferrovia solidifica
um ideário de mudança, acompanhando uma série de transformações
técnicas e científicas, no Brasil as estradas de ferro ganham ares
de “energizadoras”, literalmente transportando os benefícios e a
civilização pelos locais mais incautos. Houve uma crença muito
fortalecida de que os caminhos de ferro, ao adentrarem sertões,
selvas e regiões pouco habitadas, poderiam levar em seus trilhos a
cultura, os modos e a condição de vida das “civilizações”.
E na região sul da Província de São Pedro do Rio Grande do
Sul não seria diferente. A atuação esperada das linhas férreas era
em relação principalmente ao fortalecimento comercial, industrial
e econômico. Ao lado disto, evidentemente, o desenvolvimento
das localidades, fossem elas cidades consolidadas, ou povoações
necessitando de um impulso. Não faltavam, assim, motivações bem
fundamentadas para a construção da estrada de ferro.
As pessoas ainda as menos versadas nos conhecimentos econômicos e administrativos não desconhecem
que as fáceis vias de communicação marítimas, fluviaes e terrestres são no presente século um dos principais elementos do desenvolvimento das industrias e
progresso da riqueza das nações. É, portanto, certo, e
incontestável que se devem promover e auxiliar todas
as vias de communicação entre os centros productores e
os mercados commerciaes e consumidores, e principalmente em paizes novos como o Brasil, onde o systema
de viação agora é que se começa a ensaiar.3
Este fragmento foi retirado de um pequeno livreto,
Considerações sobre a directriz da Estrada de Ferro da cidade do Rio
Grande a Alegrete na província do Rio Grande do Sul, editado em 1874
3. UM RIO-GRANDENSE na corte. Considerações sobre a directriz da Estrada de Ferro da cidade do Rio Grande a Alegrete na província do Rio Grande do Sul. Rio de
Janeiro: Typographia Universal de E. & H. Laemmert, 1874. p.3. Acervo do Centro de Documentação e Obras Valiosas da Bibliotheca Pública Pelotense.
226
SUMÁRIO
Ferrovia na província de São Pedro:
o caso da estrada de ferro Rio Grande - Bagé
no Rio de Janeiro e assinado somente como “Um Rio-Grandense
na corte”. As razões específicas de sua publicação serão abordadas
mais adiante, mas neste momento já se pode perceber a coadunação
do autor com a noção que permeava o tema das ferrovias e dos
transportes neste período. A interligação dos territórios era a tônica
do momento, visando fortalecer o ideal de nação e de Império.
Em seu livro Estradas de ferro no Brazil, José Gonçalves de
Oliveira aponta também esta característica. Particularmente, coloca
as linhas do Rio Grande do Sul, ao lado da que liga São Paulo e Mato
Grosso, como as que merecem a atenção do governo mais do que todas
as outras, “por interessarem directamente a integridade da nação”4.
Lidia Maria Vianna Possas explica de certa forma esse ideário:
No Brasil, no entanto, esse conjunto de artefatos de ferro, os trens, os trilhos e as locomotivas com suas estações feitas de vidro e ferro não foram associadas à arte,
como “monumentos móveis”, exaltação estética do espetáculo fabril da modernidade urbano-industrial. Para
justificar o alto custo de seus investimentos e defender
traçados na maioria das vezes decididos pelas particularidades e interesses pessoais, o projeto era ajustado a
imagens fortes de integração nacional e continental e
de uma civilização que chegava para libertar o país da
condição de atraso e distribuir condições de riqueza.
(POSSAS, 2001, p. 70)
No Brasil, a ferrovia e todos os seus elementos não chegam
para consolidar e fortalecer o momento industrial e urbano. Pelo
contrário, por muito tempo foram a esperança do desenvolvimento
desta condição moderna para o país, de possibilitar a criação de
uma indústria interligada à produção agrícola e, por consequência,
estimular o crescimento de cidades. Mas estas escolhas não se davam
de forma aleatória, ou baseadas no que possivelmente poderia ser “o
melhor para a nação”; como todo empreendimento, muitos interesses
pessoais e privados se encontravam em jogo, os quais necessitavam
forjar ideários e discursos que os legitimassem de forma a ser aceitos
pela massa populacional.
Se esta noção apresentada é mais genérica, as peculiaridades
locais da Província não deixam de receber ênfase nos escritos:
Não há uma só pessoa que, tendo viajado pelo centro do
Brasil, deixe de admirar a fertilidade do nosso sólom que
produz todas as espécies de cultura nas diversas zonas
4. OLIVEIRA, José Gonçalves. Estradas de ferro no Brazil. 2ªed. São Paulo: Casa Vanorden, 1912. Acervo do Museu do Trem, São Leopoldo.
227
SUMÁRIO
Ferrovia na província de São Pedro:
o caso da estrada de ferro Rio Grande - Bagé
que o atravessão; ao mesmo passo que observa a carestia
dos gêneros mais communs da nossa alimentação, porque os lavradores deixão de planta-los em grande escala
por ser difficil e caro o seu transporte para as cidades populosas e commerciaes, e por isso não chega o producto
das vendas paras despezas dos fretes: todos são unanimes e concordes em que a mais urgente necessidade do
Brasil é traçar e construir vias férreas, e de rodagem em
todas as direções dos centros populosos das nossas cidades centraes e marítimas.5
Comparando o solo gaúcho ao restante do país, o autor
consegue tornar a produção agrícola da Província o principal motivo
para a construção de uma ferrovia e, ao mesmo tempo, o grande
problema a ser solucionado por ela. Demonstra que a região tem as
condições para suprir as necessidades comerciais de uma estrada de
ferro, mas ao mesmo tempo necessita dela – é uma motivação – para
que efetive tal capacidade.
No relatório publicado pelo engenheiro chefe Eduardo José de
Moraes, o tema produtividade também é apresentado. Ele aponta
que em um relatório do Ministério da Agricultura do ano de 1877 foi
afirmado que a região sul, ao contrário da zona norte da Província,
por mais que parecesse rica, criadora e industrial por ora, não teria
condições de manter uma estrada de ferro futuramente. Sendo
assim, a construção desta deveria se dar com base não nos critérios
produtivos, mas somente como meio de defesa territorial. Ao que o
engenheiro Eduardo José de Moraes rebate:
...a região entre Pelotas e Bagé, por Cangussú, póde manter na actualidade uma estrada de ferro, da mesma bitola
adoptada na linha do Norte, por ser ella immediatamente productiva, o que aliás nunca foi demonstrado para a
denominada estrada de ferro do Norte. A construcção da
estrada de ferro entre Pelotas e Bagé (...) se é grande a sua
utilidade sob o ponto de vista commercial, maior é ainda
sua necessidade sob o ponto de vista militar.6
Há uma combinação, nesta perspectiva, das condições
comerciais produtivas e estratégicas militares. Ainda que os pontos
de vista não concordem quanto ao grau de efetividade de cada um
deles para uma estrada de ferro no Sul, ambos são sempre citados
e levados em consideração nos motivos da construção da linha. A
5. Um Rio-Grandense na corte. Considerações sobre a directriz... p.4.
6. MORAES, Eduardo José. A estrada de ferro de Pelotas a Bagé (Memória apresentada
á consideração do governo imperial). São Paulo: Typographia de Jorge Seckler, 1878. p.4.
Acervo do Centro de Documentação e Obras Valiosas, Bibliotheca Pública Pelotense.
228
SUMÁRIO
Ferrovia na província de São Pedro:
o caso da estrada de ferro Rio Grande - Bagé
comparação entre Norte e Sul mostra que os interesses pela ferrovia
estavam presentes em toda a Província, buscando sua relevância e
muitas vezes se confrontando. O discurso, no entanto, acaba sempre
pendendo para a união dos territórios e José Eduardo de Moraes
termina seu ponto argumentando que, após a construção de ambas
as vias, um ramal que as interligue poderia – e deveria – ser efetivado.
Chama a atenção na citação acima, ainda, o adendo “por
Cangussú” como ligação entre as cidades de Pelotas e Bagé. O fato
de a localidade ter sido mencionada pelo engenheiro, mesmo não
sendo um ponto considerado nos projetos iniciais, leva a análise
para outra questão: a do traçado que deveria tomar a Estrada de
Ferro do Rio Grande a Bagé e os inúmeros debates e interesses que
permearam esta escolha.
A estrada de ferro do Rio Grande a Bagé: debates sobre o traçado
O primeiro contrato para os estudos e construção da linha do
sul da Província foi firmado entre o Governo Imperial e o empresário
Hygino Corrêa Durão, em 10 de setembro de 1873, sendo comprovado
por decreto em março de 1874:
DECRETO N. 5565 - DE 14 DE MARÇO DE 1874
Approva o contracto para explorações e estudos da linha
ferrea da Cidade do Rio Grande até a Cidade de Alegrete. Hei por bem Approvar o contracto celebrado com
Hygino Corrêa Durão, para explorações e estudos relativos á projectada linha ferrea de que trata a Lei nº 2397
de 10 de Setembro do anno passado, na parte que se dirige da Cidade do Rio Grande até a Cidade de Alegrete,
sob as clausulas que com este baixam, assignadas por
José Fernandes da Costa Pereira Junior, do Meu Conselho, Ministro e Secretario de Estado dos Negocios da
Agricultura, Commercio e Obras Publicas, que assim o
tenho entendido e faça executar. Palacio do Rio de Janeiro em quatorze de Março de mil oitocentos setenta e
quatro, quinquagesimo terceiro da Independencia e do
Imperio.Com a rubrica de Sua Magestade o Imperador.
José Fernandes da Costa Pereira Junior.7
7. BRASIL. Decreto nº 5565 de 14 de Março de 1874, o qual approva o contracto para explorações e estudos da linha ferrea da Cidade do Rio Grande até a Cidade de Alegrete. Disponível em <<http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=57089&norma=72941>> acesso em jan. 2012.
229
SUMÁRIO
Ferrovia na província de São Pedro:
o caso da estrada de ferro Rio Grande - Bagé
O decreto imperial que firma a concessão de Hygino Corrêa
Durão, ao lado do relatório (1874) e da memória justificativa (1876)
elaborados pelo empresário, é de suma importância no contexto
documental e histórico sobre a linha Rio Grande – Bagé. Seguiuse, assim, um método de análise que visou confrontar e comparar
a posição de Durão em suas principais questões – perspectiva que
teoricamente seria a “oficial” – com a abordagem dada a estas por
relatórios, impressões e correspondências de outras origens. Ao fim
e ao cabo, espera-se conseguir perceber as circunstâncias, tensões e
posições que envolveram este empreendimento férreo, pelo menos
de forma a clarificá-lo um pouco.
Quanto ao traçado da linha do Rio Grande a Bagé, este estava
pré-delimitado, pelo menos quanto aos principais pontos, no próprio
decreto de 1874. Diz o contrato firmado por Durão e o Ministério da
Agricultura, na condição II:
A estrada dividir-se-ha provisoriamente em duas partes. A primeira parte será da Cidade do Rio Grande á
Cidade de Bagé constando de cinco secções, sendo a 1ª
do Rio Grande á Cidade de Pelotas, a 2ª de Pelotas á
margem do rio Piratinim, a 3ª do Piratinim ás Pedras
Altas, a 4ª das Pedras Altas a Candiota, a 5ª do Candiota a Bagé; a segunda parte será de Bagé ao Alegrete constando de tres secções, sendo a 1ª da Cidade de
Bagé a D. Pedrito, a 2ª de D. Pedrito a Santa Maria do
Rosario, e a 3ª de Santa Maria do Rosario a Alegrete. O
Governo fará neste plano as modificações que julgar
convenientes.8
Percebe-se que a parte que vai do Rio Grande até Bagé, nesse
momento, ainda segue uma determinação semelhante aos primeiros
projetos apresentados na assembleia provincial por Ewbank da
Câmara. Constituiria nominalmente uma parte da estrada maior
até Alegrete, a original “Tronco Sul”, que percorreria as fronteiras
meridionais da Província. Hygino Corrêa Durão ficou incumbido pelo
decreto de fazer “todos os estudos technicos necessarios” e apresentar
“planos definitivos de toda a linha em condições que habilitem para
encetar a locação e as construcções”, entregando posteriormente “a
construcção de plantas e perfis das linhas estudadas” e organizando
os “orçamentos e memorias descriptivas do projecto”. De modo geral,
os pontos denominados no decreto acabaram se mantendo nestes
relatórios e memórias.
8. BRASIL. Decreto nº 5565 de 14 de Março de 1874...
230
SUMÁRIO
Ferrovia na província de São Pedro:
o caso da estrada de ferro Rio Grande - Bagé
É importante dar ênfase à última frase: “O Governo fará neste
plano as modificações que julgar convenientes”, o que abriu brechas
para contestações ao projeto delineado pelo contratante. Fato este
percebido e utilizado como justificativa para a elaboração do já
mencionado Considerações sobre a directriz da Estrada de Ferro da
cidade do Rio Grande a Alegrete na província do Rio Grande do Sul
(1874). Ao deixar clara a possibilidade de mudanças no trajeto, o
Governo autoriza e incita as diferentes opiniões a se manifestarem.
Mesmo amenizando sua posição, ao afirmar que não censura
a concessão feita pelo Governo Imperial ao empresário, o autor das
Considerações visa com estes escritos comprovar que o traçado
escolhido por Durão não responde aos interesses comerciais, industriais,
estratégicos e militares da Província. Afiança sua posição alegando
ser esta a “nossa opinião e a de todos quantos conhecem aquellas
localidades” e “o que a plena luz tem sido demonstrado na imprensa
do Rio Grande de todas as cores e credos políticos”. Comprovar que
esta não seria uma ideia simplesmente pessoal, mas consensualmente
aceita, foi uma tentativa de lhe dar certo respaldo social.
As vias de communicação nas províncias limitrophes
com os Estados confinantes devem ser muito estudadas
pelo Governoantes de determinar-lhes a direcção que
devem seguir, porque nessas estradas se devem attender
as conveniências dos transportes e aos meios de defesa
nas occasiões de guerras com os Estados limitrophes; e
nos parece que o Sr. Conselheiro Ministro da Agricultura, Commercio e Obras Publicas não cogitou destes
princípios quando firmou o contracto com o Sr. Durão.
O Governo Imperial, sem oppôr embaraços ao systema
de viação terrestre, deve ser muito cauteloso na concessão de caminhos de ferro para a província do Rio Grande,
e para as outras que com esta limitão o Imperio com as
Republicas que o circumdão; jamais se deve decidir sómente em vista das informações e planos apresentados
pelos pretendentes de semelhantes emprezas, porque
assim procedendo evitará complicações futuras e prejudiciaes aos interesses que lhe cumpre salvaguardar.9
O autor dá forte ênfase ao caráter eminentemente bélico da
região escolhida por Hygino Durão e não poupa críticas, mais do que
a este, ao Ministro da Agricultura, por ter aceitado tais termos. Este
fato, somado à possível fraca capacidade de atendimento comercial e
industrial, atestaria que a diretriz escolhida não compensa nenhum
9. Um Rio-Grandense Na Corte. Considerações sobre a directriz... p.5-6.
231
SUMÁRIO
Ferrovia na província de São Pedro:
o caso da estrada de ferro Rio Grande - Bagé
dos princípios de uma via férrea. Chega mesmo de forma irônica a
afirmar que o Ministro não teria nenhum conhecimento sobre os
territórios em questão – ainda que tivesse sido presidente da Província
alguns anos antes – e que, portanto, provavelmente teria se deixado
convencer de tal traçado pelo empresário.
O interesse de Hygino Côrrea Durão em manter este trajeto, na
perspectiva “de simples intuição” das Considerações, se justificaria
pelo desejo de que a estrada percorresse próxima às minas de carvão
de Candiota, de cuja exploração também era o concessionário. O
desgosto do autor parece ser tão profundo que não lhe permite evitar
o cômico comentário de que o empresário “parece que não calculou
bem os seus interesses”, não sendo o traçado a melhor escolha até
mesmo para esta motivação10. Sugere, então, que seria
muito melhor que S. Ex.(...) não devia sómente ouvir a parte interessada, porém sim as pessoas mais
competentes e praticas dos municípios que tinha de
percorrer a estrada, e até mesmo, encontrando divergência de opiniões, lhe cumpria mandar examinar os
pontos divergentes por engenheiros ao serviço de seu
ministério, ou pelos engenheiros da província; e as
despezas que fizesse com estes estudos, devião correr
por conta do Sr. Durão, que requeria esse privilegio.11
Recorrer ao governo imperial, nos termos do contrato, parece
ser a única alternativa legal para quem buscasse alterações no projeto.
Os pedidos para que outras partes e interesses fossem ouvidos
eram constantes, mas os pedintes não se limitavam a isto. O autor
das Considerações, assim como outros, sugeriu sua própria noção
de melhor traçado: “os homens mais considerados e práticos dos
municípios de Pelotas, Cangussú, Piratiny e Bagé são unanimes em
pensar que a estrada de ferro de Pelotás á Bagé deve seguir a directriz
da antiga estrada de rodagem”12, uma vez que “os negociantes de Bagé
sempre conduzirão as mercadorias compradas em Pelotas em carretas
puxadas por bois por uma estrada geral, que em qualquer estação
do anno offerece fácil trajecto”13. A ideia era fazer com a estrada de
ferro seguisse pelos mesmos territórios percorridos pela estrada de
rodagem, os quais eram mais habitados e com uma produção agrícola
fortalecida. Eis o traçado sugerido:
10. Um Rio-Grandense Na Corte. Considerações sobre a directriz... p.11.
11. Um Rio-Grandense Na Corte. Considerações sobre a directriz... p.11-12.
12. Um Rio-Grandense Na Corte. Considerações sobre a directriz... p.20.
13. Um Rio-Grandense Na Corte. Considerações sobre a directriz... p.24.
232
SUMÁRIO
Ferrovia na província de São Pedro:
o caso da estrada de ferro Rio Grande - Bagé
Esta estrada, que é percorrida há mais de meio século, se
dirige da cidade de Pelotas atravessando as 38 ou 39 leguas que as separão de Bagé sempre por cima de collinas
que se ligão entre si nos municípios de Pelotas, Cangussú, Piratiny e Bagé.
Começa por cima da coxilha (collina) que principiando
nas proximidades de Pelotas vai passar junta da Villa de
Cangussu, e desta continuando pela coxilha de Santo
Antonio, que passa a uma légua de distancia da Villa de
Piratiny, e á mesma distancia da freguezia da Luz das
Cassimbinhas até encontrar a coxilha das Velledas, e por
esta segue até despontar o arroio de Candiota, entrando
depois na coxilha da Bolena e d’ahi até Bagé.14
A principal justificativa para tal trajeto é reforçada várias
vezes ao longo do tempo: a supremacia comercial e estratégica
frente ao projeto de Hygino Corrêa Durão. E o “rio-grandense
na côrte” termina sua proposição pedindo que o Ministro da
Agricultura “nomeie uma Comissão de Engenheiros de sua
confiança para irem fazer um reconhecimento sobre as directrizes
que apontamos”15 a fim de verificar os argumentos.
Neste ponto, novamente se observa o conhecimento que
possui o autor do decreto que delimita os termos da concessão. Diz
a condição XI do Contrato: “É livre ao Governo, em todo o tempo,
mandar Engenheiros de sua confiança acompanhar os trabalhos a
fim de examinar se são executados com proficiencia e methodo, e a
precisa actividade”16. O governo, desta forma, realmente detinha o
poder de inspecionar os estudos e nomear uma equipe de engenheiros
responsável para tanto.
O livreto analisado acima foi publicado com a data de 1º de
julho de 1874. Já no fim do mês de março, no entanto, encontramse correspondências entre a Repartição de Obras Públicas da
Província e o governo imperial, falando sobre um suposto pedido
de acompanhamento dos trabalhos, onde o assunto principal é
justamente a probabilidade do traçado que passasse pelas localidades
de Canguçu e Piratini ser mais vantajoso do que o que cruzaria o
Passo de Maria Gomes, Pedras Altas e Candiota. Percebe-se que Rio
Grande, Pelotas e Bagé são pontos incontestes, ficando a discussão
centrada no trecho que ligaria estas duas últimas cidades.
14. Um Rio-Grandense Na Corte. Considerações sobre a directriz... p.11.
15. Um Rio-Grandense Na Corte. Considerações sobre a directriz... p.31.
16. BRASIL. Decreto nº 5565 de 14 de Março de 1874...
233
SUMÁRIO
Ferrovia na província de São Pedro:
o caso da estrada de ferro Rio Grande - Bagé
Em correspondência do dia 28 de março de 1874, expedida pela
Repartição em Porto Alegre, têm-se detalhadas as duas possibilidades:
Há duas únicas direcções a seguir, e são aquellas que
vem na planta designada com as cores carmesim e azul.
(...) Se partindo de Pelotas seguisemos a direcção carmesim iremos passar o rio Piratinim no ponto C. (passo
de Maria Gomes). Seguindo pela direcção da estrada
d’aquella cidade a de Jaguarão até o ponto em que ella
muda de direcção para tomar a Freguesia do Herval ou
suas proximidades a buscar uma subida suave para a
serra dos Tapes pela ramificação conhecida pelo nome
de Pedras Altas e por ella decaer ao passo do arroio Candiota. Si se toma outra direção sobe-se a serra dos Tapes
no ponto em que ella mais se approxima da cidade de
Pelotas, segue se pelo seu dorso passando pela Villa de
Cangussu e em ponto próximo á Villa do Piratinim até
a Capella da Luz, ponto de inserção da serra dos Tapes
com o seu contraforte Coxilha Grande, podendo d’ali
ou descer para Candiota ou seguir pelo contraforte até
a cidade de Bagé. Esta ultima hypothese tem a seu favor
a ausência completa de rios e arroios, mas tem contra
si não só um maior desenvolvimento de estrada como
também o afastamento d’ella do arroio Candiota, ponto
interessante por estae n’elle situado o mais importante
jasigo carbonífero da Provincia.17
Observa-se que a dúvida a pairar pela Província era
praticamente a mesma, o que pode atestar a afirmação do “Um
rio-grandense na corte” de que o assunto vinha sendo fortemente
discutido pelos interessados e entendidos, bem como pela imprensa.
A correspondência, infelizmente, não identifica os responsáveis pela
explanação dos dois traçados e também não estava acompanhada da
planta mencionada.
A partir destas breves explanações, pode-se observar que o fato
da necessidade da construção de uma estrada de Ferro que ligasse
Pelotas a Bagé – podendo partir de Rio Grande – era unânime nas
opiniões. O que ainda divergia era o melhor traçado, as localidades
a serem atendidas, os interesses que possuíam maior força nos
cenários político e econômico. Como afirma Possas, “os caminhos
de ferro venceram as resistências dos incrédulos sem, no entanto,
eliminar a constante oposição perante os gastos e privilégios que
eram concedidos e que, na maioria das vezes, tinham caráter
eminentemente político” (POSSAS, 2001, p. 69).
17. CORRESPONDÊNCIA. Repartição das Obras Publicas Provinciaes em Porto Alegre 28
de março de 1874.
234
SUMÁRIO
Ferrovia na província de São Pedro:
o caso da estrada de ferro Rio Grande - Bagé
A condição XXXVI do Contrato firmado por Hygino Corrêa
Durão pode auxiliar a pensar sobre esta questão, ao tratar sobre as
indenizações dos terrenos:
O emprezario fica obrigado a pagar aos proprietarios
dos terrenos atravessados pela via-ferrea todas as indemnizações a que tiverem direito na fórma da Lei.
Assim responderá sempre pelas bemfeitorias que estragar e pelo valor do solo, quando o proprietario provar
com documentos authenticos que o primitivo titulo de
dominio directo ou util expressamente o isentava de
prestar-se ás servidões publicas. Cede-lhe o Governo
gratuitamente os terrenos nacionaes que fôr necessario
occupar com o leito da estrada, estações, depositos e
mais accessorios indispensaveis ao trafego.18
O empresário, pelo decreto, teria livre acesso aos terrenos
nacionais, ou seja, aos que já eram de posse do Império – ou de posse
de ninguém. A questão se complexificaria quando, para efetivar a
construção da linha, fosse necessário expropriar terras de particulares,
os quais nesta região da Província eram geralmente grandes
proprietários estancieiros. A escolha do traçado – sendo uma hipótese
que não se pode comprovar por enquanto – poderia ter, assim, relação
também com quais eram estes proprietários que viriam a receber as
indenizações. Teriam grandes influências políticas e econômicas, a
ponto de conseguir fazer a estrada passar por suas terras? Possuíram
relações fraternais e amigáveis com Hygino Corrêa Durão? Ou ainda,
por outro lado, essas terras não teriam sido apropriadas por ninguém
que pudesse atestar a posse, podendo o empresário diminuir o valor
total das indenizações? No momento, são somente perguntas. A falta
de respostas conclusivas não significa, porém, que elas não ajudem a
pensar e atestar o quanto os interesses particulares influenciavam no
empreendimento público.
Se as motivações privadas eram visíveis, as de caráter público
também se faziam manifestar. As câmaras municipais de Canguçu e
Piratini aplicaram, assim, seus esforços a fim de mudar a traçado da
linha férrea. Em correspondência do dia 19 de maio de 1874, assinada
por José Francisco dos Santos Queima – ajudante da comissão fiscal
das estradas de ferro –, fica-se sabendo que os engenheiros José Maria
dos Campos e Alexandre da Silva Brandão realizaram seus estudos a
18. BRASIL. Decreto nº 5565 de 14 de Março de 1874...
235
SUMÁRIO
Ferrovia na província de São Pedro:
o caso da estrada de ferro Rio Grande - Bagé
fim de comprovar a superioridade do traçado alternativo, a passar
por aquelas localidades.19
Em 23 de julho do mesmo ano, segue outro ofício também de
Santos Queima com o pedido das duas câmaras para que se mude
efetivamente o traçado.20 Alegam, sobretudo, que Hygino Corrêa
Durão deve ser obrigado a realizar os estudos efetivos naqueles
territórios. Baseiam-se na condição VIII do Contrato, a qual
determina que quando se apresentassem duas ou mais direções
que oferecessem vantagens proximamente iguais, o empresário fica
incumbido de realizar os estudos em cada um delas, submetendo os
respectivos planos e orçamentos21. Não foram encontradas fontes que
demonstrem que estes estudos foram realizados por Hygino Corrêa
Durão. Ao contrário, em 1874 é publicado seu relatório e em 1876
suas memórias, ambos tratando somente do traçado originalmente
proposto.
A discussão pela linha, como se observa, segue na mesma
direção. Contudo, aqui outra questão pode ser levantada: o papel dos
engenheiros na validação dos argumentos. De acordo com Possas,
Como entre os europeus, os trilhos no Brasil vieram reforçar a crença nas virtudes da técnica e da ciência, e esses
profissionais, identificados como “doutores”, com seus
argumentos competentes, passaram a subordinar tudo e
todos, assumindo, tanto no Rio de Janeiro como em São
Paulo, a condução da hierarquia administrativa da ferrovia, das oficinas ao controle de toda a extensão da linha
com seus homens e mulheres. (POSSAS, 2001, p. 85)
O engenheiro chefe da estrada de ferro do Rio Grande a Bagé,
nesse momento, era Eduardo José de Moraes, que de acordo com o
contrato, em sua condição VI, foi nomeado perante aprovação do
governo22. Estes profissionais da construção, “bacharéis”, adquiriram
com sua formação um status de conhecimento indiscutível.
Praticamente todos os argumentos em prol de um ou outro traçado
levavam em consideração o aval de um engenheiro – para validá-lo –
ou a falta de estudos com a presença de um, para contestá-lo. Esses
19. CORRESPONDÊNCIA. 19 de maio. Porto alegre 18 de Maio de 1874. Illmo. Exmo Srº
Dr. João Pedro de Carvalho Moraes. Presidente da Provincia. Jose Francisco dos Santos
Queima, Ajudante da Commissão fiscal das estradas de ferro.
20. CORRESPONDÊNCIA. Repartição das obras públicas provinciaes em Porto Alegre, 20
de Junho de 1874. Officio do Bel José Queima em 23 de julho de 1874. Officio ao Mº da
Agricultura, em 23 de julho de 1874.
21. BRASIL. Decreto nº 5565 de 14 de Março de 1874...
22. BRASIL. Decreto nº 5565 de 14 de Março de 1874...
236
SUMÁRIO
Ferrovia na província de São Pedro:
o caso da estrada de ferro Rio Grande - Bagé
homens, ao longo do tempo, sempre fizeram parte das diretorias
ferroviárias, não só em São Paulo e Rio de Janeiro, mas também no
Rio Grande do Sul.
O traçado definitivo
Mas afinal, como ficou o traçado da estrada de ferro de Rio
Grande a Bagé?
José Gonçalves de Oliveira, na publicação Estradas de ferro no
Brazil, apresenta esta descrição:
Estudando-se os pormenores do traçado na planta da
exploração, vê-se que de Pelotas a linha procura a margem do rio Piratinim, que deságua na Lagoa Mirim, e
sobe-o até as cabeceiras; transpõe pouco acima d’ellas
a cumiada da Cochilha das Pedras Altas; corta os valles
dos rios confluentes Candiota e Jaguarão; vae passar por
uma garganta da Cochilha Grande; atravessa o Rio Negro e quatro arroios affluentes d’elle, attingindo na altitude de 214 metros a cidade de Bagé situada na encosta
de uma cochilha.23
Efetivamente, percebe-se que a construção do caminho de
ferro seguiu o projeto inicial proposto no contrato entre governo
imperial e Hygino Corrêa Durão, consistindo-se o trecho, outrora em
dúvida, pelos pontos de Passo das Pedras, Maria Gomes e Candiota.
Nas memórias de Alberto Coelho da Cunha – cidadão pelotense autor
de vários textos sobre assuntos da cidade no final do século XIX e
início do XX – intituladas “Viação Pública”, há comentários sobre
esta estrada de ferro que trazem informações sobre o traçado final.
Conforme tabela apresentada, a linha em 1884 contava, em toda a
sua extensão, com 16 estações, “collocadas ás seguintes distancias
kilometricas, a partir da Estação Marítima” – esta última construída
em 1888, elevando o traçado até o litoral da cidade do Rio Grande:
Tabela: Distância das estações da Estrada de Ferro Rio Grande – Bagé a partir da
Estação Marítima de Rio Grande
Estações
Central do Rio Grande
Quinta
Povo Novo
Pelotas (Central)
Distância kilometrica
2,8
19,9
35,8
55,3
23. OLIVEIRA, José Gonçalves. Estradas de ferro... p.74.
237
SUMÁRIO
Ferrovia na província de São Pedro:
o caso da estrada de ferro Rio Grande - Bagé
Capão do Leão
70,0
Passo das Pedras
89,8
Piratiny
104,4
Basílio
126,8
Cerro Chato
156,3
Nascentes
182,2
Pedras Altas
196,7
Candiota
225,3
Santa Rosa
243,2
Rio Negro
258,8
Bagé
283,0
Fonte: CUNHA, Alberto Coelho da. Viação Pública. s/d. Acervo do Centro de
Documentação e Obras Valiosas da Bibliotheca Pública Pelotense.24
Contando com pouco mais de 280 quilômetros de extensão de
trilhos, cada parada se localizava a uma média de 20 km de distância
da próxima. Detalhe para as estações de Pelotas a Capão do Leão (14,7
km) e Nascentes a Pedras Altas (14,5 km) com as menores distâncias
e de Basílio a Cerro Chato (29,5 km) e Pedras Altas a Candiota (28,6
km) com a maior quilometragem entre si. O aumento ou diminuição
das distâncias entre estações ajuda a pensar quais territórios eram
mais povoados – ou se eram de propriedade de pessoas influentes –,
justificando a presença das paradas. De forma geral, a zona com as
menores distâncias se concentra na região que inicia em Rio Grande
e vai até a localidade de Maria Gomes (atual Pedro Osório). A cidade
de Pelotas, assim, é o ponto médio desta abrangência (52,5km de Rio
Grande e 49,1km da estação Piratiny), indicando sua centralidade na
região.
De acordo com as memórias de Alberto Coelho da Cunha, a
construção da estrada de ferro de Rio Grande a Bagé foi por decreto
nº 7.056 de 23 de outubro de 1878 concedida a James Gracie Taylor
e Miguel G. da Cunha. Pelo decreto 7.934 e 7.941 de 11 de Dezembro
de 1880 foram os referidos concessionários autorizados a transferir a
concessão à Companhia Chemins de Fer de Rio Grande do Sul.25
Pelo decreto nº 8.887 de 17 de fevereiro de 1883, a construção
foi transferida para a Southern Brazilian Rio Grande do Sul Railway
24. CUNHA, Alberto Coelho da. Viação Pública (memórias). Fundo Alberto Coelho da
Cunha. Acervo do Centro de Documentação e Obras Valiosas, Bibliotheca Pública Pelotense. Este documento foi encontrado no local de pesquisa na forma manuscrita, sendo a tabela
reproduzida pela autora.
25. CUNHA, Alberto Coelho da. Viação Pública...
238
SUMÁRIO
Ferrovia na província de São Pedro:
o caso da estrada de ferro Rio Grande - Bagé
Company Limited, “com cessão completa de todos os direitos,
privilégios e garantias de juros”26. Os trabalhos teriam sido iniciados
na cidade do Rio Grande em 27 de novembro de 1881, e concluídos
em 27 de novembro de 1884, sob a direção do engenheiro francês
Bonafous. Cunha frisou, ainda, que no ano de 1901 se inaugurou
um ramal, “que partindo de Bagé, vai entroncar em Cacequy com
a estrada de ferro de Porto Alegre a Uruguayana, ficando por essa
forma ligado este município a todos aquelles por onde passa, não só
essa estrada, como a que vae de Santa Maria ao Passo Fundo”27.
O manuscrito de Alberto Coelho da Cunha não possui datação,
parecendo ser a compilação de escritos analíticos feitos sobre a
cidade de Pelotas e região ao longo de anos. A parte relativa à via
férrea, contudo, parece ter sido redigida aproximadamente no ano
de 1903, estimativa feita a partir de dados apresentados em algumas
tabelas e afiançada pelo fato de ainda não haver menção à Compagnie
Auxiliare, responsável pela linha a partir de 1905. Para Marluza Harres,
foi através de um acordo com a companhia belga que buscou-se “a
constituição de uma rede ferroviária ligando os diferentes centros
econômicos do estado” (1994, p. 11). A região sul estava, afinal,
relacionada ao restante da Província de São Pedro do Rio Grande do
Sul por uma projetada e ordenada rede de caminhos de ferro.
Considerações finais
A partir das considerações acima discorridas e, principalmente,
da análise das fontes primárias pode-se observar que as discussões
e debates sobre o desenvolvimento de uma rede férrea na Província
de São Pedro do Rio Grande do Sul ocorreram em consonância
com uma lógica de progresso e modernidade que permeava o país
a partir da década de 1850. Os principais motivos e argumentos
defendidos são relacionados a uma melhoria econômica e comercial
para a Província. A estrada de ferro do Rio Grande a Bagé, além de
se coadunar com todas estas condições, possuía a característica de
ser um instrumento de segurança bélica e militar, em virtude de sua
posição de fronteira.
As discussões em torno de seu traçado envolveram interesses
públicos, mas principalmente privados – como os dos municípios a
serem atingidos pelo serviço e, por outro lado, das pessoas influentes
26. CUNHA, Alberto Coelho da. Viação Pública... p.86
27. CUNHA, Alberto Coelho da. Viação Pública...
239
SUMÁRIO
Ferrovia na província de São Pedro:
o caso da estrada de ferro Rio Grande - Bagé
na região e do próprio empresário concessionário da linha. Todos
estes debates e opiniões divergentes possuíam por mote central o
desenvolvimento da região, o que atesta a importância que a ferrovia
passa a adquirir na esperança, no imaginário e na prática das pessoas.
Como afirmado anteriormente, os estudos sobre ferrovia
no Estado ainda são incipientes, o que não significa, contudo, que
não existam fontes ricas e pertinentes que possibilitem a pesquisa.
Espera-se, com este trabalho sobre a estrada de ferro Rio Grande –
Bagé, ter dado mostras das inúmeras questões que ainda podem ser
postas, problematizadas e compreendidas.
Referências
GAY, Peter. O século de Schnitzler: a formação da cultura da classe
média. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
HARRES, Marluza. Ferroviários: disciplinarização e trabalho (VFRGS.
1920-1942). 1994. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
IPHAE (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado). Patrimônio Ferroviário no Rio Grande do Sul: Inventário das Estações 1874-1959.
Porto Alegre: Pallotti, 2002.
LOPES, Caryl E. J. A Compagnie Auxiliare de Chemins de Fér au Brésil e a cidade de Santa Maria no Rio Grande do Sul, Brasil. 2002. Tese
(Doutorado em Arquitetura). Universidade Politécnica da Catalunha, Barcelona.
POSSAS, Lidia Maria Vianna. Mulheres, trens e trilhos: modernidade no
sertão paulista. São Paulo: EDUSC, 2001.
Documentais
BRASIL. Decreto nº 5565 de 14 de Março de 1874, o qual approva o contracto para explorações e estudos da linha ferrea da Cidade do Rio Grande
até a Cidade de Alegrete. Disponível em <<http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=57089 &norma=72941>> acesso em
jan. 2012.
CORRESPONDÊNCIA. Repartição das Obras Publicas Provinciaes.
Porto Alegre, 28 de março de 1874. Fundo da Secretaria de Obras Públicas,
acervo do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul.
240
SUMÁRIO
Ferrovia na província de São Pedro:
o caso da estrada de ferro Rio Grande - Bagé
CORRESPONDÊNCIA. Repartição das Obras Publicas Provinciaes.
Porto Alegre, 19 de maio de 1874. Illmo. Fundo da Secretaria de Obras Públicas, acervo do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul.
OFÍCIO. Repartição das Obras Públicas Provinciaes. Porto Alegre, 20
de Junho de 1874. Fundo da Secretaria de Obras Públicas, acervo do Arquivo
Histórico do Rio Grande do Sul.
CUNHA, Alberto Coelho da. Viação Pública (memórias). Fundo Alberto
Coelho da Cunha. Acervo do Centro de Documentação e Obras Valiosas,
Bibliotheca Pública Pelotense.
DURÃO, Hygino Corrêa. Relatório sobre os estudos definitivos da estrada de ferro do Rio Grande à Bagé na província do RS. 1874. DPRS-007.
Acervo do Centro de Documentação e Obras Valiosas, Bibliotheca Pública
Pelotense.
DURÃO, Hygino Corrêa. Memória Justificativa sobre os estudos definitivos para a Estrada de Ferro do Rio Grande ao entroncamento no
Cacequy. 1876. DPRS-007. Acervo do Centro de Documentação e Obras
Valiosas, Bibliotheca Pública Pelotense.
MORAES, Eduardo José. A estrada de ferro de Pelotas a Bagé (Memória
apresentada á consideração do governo imperial). São Paulo: Typographia de Jorge Seckler, 1878. DPM-002. Acervo do Centro de Documentação
e Obras Valiosas, Bibliotheca Pública Pelotense. cx.
OLIVEIRA, José Gonçalves. Estradas de ferro no Brazil. 2ªed. São Paulo: Casa Vanorden, 1912. Acervo do Museu do Trem, São Leopoldo.UM
RIO-GRANDENSE na corte. Considerações sobre a directriz da Estrada de
Ferro da cidade do Rio Grande a Alegrete na província do Rio Grande do Sul.
Rio de Janeiro: Typographia Universal de E. & H. Laemmert, 1874. DPRS007. Acervo do Centro de Documentação e Obras Valiosas da Bibliotheca
Pública Pelotense
241
SUMÁRIO
A EXPLORAÇÃO DA MÃO DE OBRA
ESCRAVA NA PECUÁRIA
(CAMPANHA GAÚCHA, SEGUNDA
METADE DO SÉCULO XIX)
Marcelo Santos Matheus1
242
SUMÁRIO
A exploração de mão de obra escrava na pecuária
(campanha gaúcha, segunda metade do século XIX)
1
Introdução
Este texto trata do uso e da importância da mão de obra escrava
na pecuária na segunda metade do século XIX, em especial nas décadas
que se seguiram logo após o fechamento do tráfico internacional de
africanos escravizados. O foco recai sobre a região da Campanha,
maior produtora de gado do Brasil de então, contudo, circunscrito
ao município de Bagé, formado por duas paróquias: São Sebastião de
Bagé e Nossa Senhora do Patrocínio de Dom Pedrito (Dom Pedrito
se emancipou no início da década de 1870). Para tanto, as fontes
exploradas são, sobretudo, os inventários post mortem produzidos
em Bagé e a Lista de Classificação de Escravos de Dom Pedrito.
Felizmente, não é mais preciso gastar tinta explicando a
utilização de mão de obra escrava na pecuária, no Rio Grande do
Sul, tanto no período colonial, quanto no imperial. Uma extensa
bibliografia já superou a ideia, anacrônica, de que o uso de escravos
na lida com o gado não havia sido importante por ser irracional do
ponto de vista econômico e também porque os escravos naturalmente
fugiriam pela fronteira com o Uruguai (ZARTH, 2002; OSÓRIO, 2008;
FARINATTI, 2007).
No entanto, ainda são poucos os estudos que tratam dessa
questão para a segunda metade do oitocentos. Durante algum
tempo, a historiografia sustentou que, logo após 1850, a mão de obra
escrava começou a perder importância para a produção de gado.
Todavia, tal processo parece só se intensificar, de fato, na década
de 1880. No geral, os historiadores se basearam em (problemáticos)
1. Doutor em História Social pela UFRJ. Professor de História do IFRS.
243
SUMÁRIO
A exploração de mão de obra escrava na pecuária
(campanha gaúcha, segunda metade do século XIX)
censos (e teorias outras), os quais nem tratavam diretamente do uso
de escravos na pecuária, mas que teoricamente demonstravam uma
queda no número de escravos, da primeira para a segunda metade
do oitocentos, no Rio Grande do Sul para sustentar tal questão
(MATHEUS, 2013)
Na verdade, creio que a ideia do enfraquecimento da utilização
de escravos na pecuária foi elaborada colada a outra ideia-força, que
também se mostrou equivocada, embora seguidamente repetida. Falo
da concentração da propriedade escrava na segunda metade do século
XIX e, junto a isso, a perda de escravos do Rio Grande do Sul para o
sudeste cafeeiro. Não irei retomar ipsis litteris tal debate, porém, em
outros momentos mostrei (em pesquisa com foco no município de
Alegrete) que, para o Rio Grande do Sul, nem uma, nem outra são
válidas – ao menos não para as primeiras décadas da segunda metade
do século (MATHEUS, 2012, capítulo 1).
Neste contexto, no presente estudo pretendo reforçar a defesa
da importância do uso da mão de obra escrava na pecuária, na
Campanha, mas em outra localidade da mesma região. Notadamente,
conforme um censo agrário de 1858, depois de Alegrete os maiores
rebanhos da província estavam em Bagé – 772.232 e 531.640 cabeças
de gado, respectivamente2. Para isso, como já foi mencionado, exploro
os inventários post mortem e a Lista de Classificação de Escravos de
Dom Pedrito.
De início, faço um breve resumo da presença escrava em Bagé
ao longo do século XIX, bem como das características econômicas da
localidade. Logo após, passo para a análise dos inventários e, em um
tópico à parte, da Lista de Classificação de Escravos de Dom Pedrito,
tentando novamente redimensionar a importância da mão de obra
escrava para a pecuária naquele contexto, em especial na segunda
metade do oitocentos.
Escravidão
pecuária
e
diversificação
produtiva
e
Ao longo do século XIX, Bagé sempre teve uma expressiva
população escrava. Conforme um mapa da população de 1846, 29,5%
dos habitantes (ou 1.212 indivíduos) eram escravos, sendo 25% deles
2. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Mapa numérico das estâncias existentes dos diferentes municípios da província, de que até agora se tem conhecimento oficial, com declaração dos animais que possuem
e criam, por ano, e do número de pessoas empregadas no seu custeio. Fundo Estatísticas, m. 02, 1858.
244
SUMÁRIO
A exploração de mão de obra escrava na pecuária
(campanha gaúcha, segunda metade do século XIX)
africanos. Já em 1858, de acordo com um mapa de famílias, a população
cativa havia aumentado para 4.016 escravos, ou 32,5% do total. Por
fim, segundo o Censo de 1872, a população escrava havia crescido para
4.816, embora percentualmente houvesse caído para 22%3.
Essa presença cativa encontra correspondência em diferentes
fontes, como batismos e inventários, por exemplo. Entre o final da
década de 1820 e 1870, mais de 3.100 escravos foram batizados em
Bagé. Na primeira metade do século XIX, os 821 cativos levados à pia
batismal perfizeram 21% de todos os batizados na localidade. Já os 2.346
cativos que receberam os santos óleos entre 1851 e 1870 representaram
nada menos do que 26% do total de batizandos nesse período. Assim
como nos batismos, os inventários ilustram a importância social,
demográfica e econômica dos escravos: entre c.1820 e 1870, 2.288
cativos foram inventariados em Bagé, sendo mais de 71% deles entre
1851 e 1870 (MATHEUS, 2016, pp. 109-118 e pp. 187-192).
Antes de prosseguirmos com a análise das características dos
escravos a partir dos inventários, é preciso esclarecer que, do ponto de
vista econômico, a paisagem agrária da Campanha era caracterizada
por uma diversidade produtiva. Embora o predomínio da pecuária,
de 314 inventários abertos em Bagé entre 1817 e 1870 que tiveram os
bens arrolados e avaliados, na maioria deles aparecem indicativos
(bois mansos ou ferramentas com enxadas, machados, pás, foices,
etc., ou mesmo escravos designados como “roceiros” ou “lavrador”)
da prática de agricultura. Tal prática, como veremos no próximo
tópico a partir da classificação dos escravos, continuou ao longo da
década de 1870. Em resumo, em mais de 65% dos inventários em que
foi possível identificar as atividades produtivas desenvolvidas, a regra
era diversificação produtiva, isto é, a combinação de duas ou mais
atividades (MATHEUS, 2016, pp. 137-159).
Por sua vez, se a pecuária não era uma exclusividade naquela
realidade, a utilização da mão de obra escrava, sim, era um padrão,
seja na pequena agricultura, seja no comércio, no trabalho doméstico,
por profissionais liberais e nas atividades, digamos assim, urbanas,
e, principalmente claro, na criação de gado. Não à toa, o peso dos
escravos na composição dos patrimônios dos bageenses variou entre
22% e quase 30% entre c.1820 e 1870 (MATHEUS, 2016, pp. 159-162).
3. Para o ano de 1846: Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Mapas estatísticos da população
dos municípios e distritos da Província do Rio Grande. Fundo de Estatística, maço 1, 1846; para
1858: Fundação de Economia e Estatística. Mappa Statístico da População da Província classificada
por idades, sexos, estados e condições com o resumo total de livres libertos e escravos. In: De Província de
São Pedro a Estado do Rio Grande do Sul – Censos do RS, 1803-1850. Porto Alegre: Federação de
Economia e Estatística, 1981, p. 66; e para 1872: www.ibge.gov.br.
245
SUMÁRIO
A exploração de mão de obra escrava na pecuária
(campanha gaúcha, segunda metade do século XIX)
Entretanto, de fato era na pecuária que a exploração do trabalho
cativo se fazia mais representativa, muito em razão das ligações que o
produto dessa atividade mantinha com o mercado interno e externo
e, por isso, da sua capacidade de acumulação de capitais e de acesso
ao mercado – atlântico, inclusive – de escravos (FARINATTI, 2007;
VARGAS, 2016). Como é possível observar na tabela abaixo, em 100%
dos inventários com 500 ou mais reses algum escravo foi arrolado
dentre os bens. Por um lado, se em alguns poucos inventários com até
100 reses nenhum cativo foi arrolado, por outro era exatamente nesse
grupo que os escravos compunham a maior parte do patrimônio dos
inventariados: 35%, em 61 inventários com essa característica, o que
redimensiona, embora não seja este o foco de nosso estudo, o impacto
do fim da escravidão para o segmento menos abastado (MATHEUS,
2016, pp. 180-184).
Tabela 1 - Presença da posse de escravos entre criadores de gado, Bagé (c.1820-1870)
Tamanho dos
rebanhos
c.1820-1835
1841-1850
1851-1860
1861-1870
Até 100 reses
100%
85,5%
62%
77,5%
De 101 a 500
100%
100%
89,5%
80%
De 501 a 1.000
-
100%
100%
100%
Mais de 1.000
100%
100%
100%
100%
Total
100%
97%
86%
88%
Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (doravante APERS).
Registros de Inventários. Bagé, c.1820-1870.
Embora essa disseminação da posse escrava entre os produtores
de gado, é importante registrar a concentração da mesma. Os 10%
dos criadores mais ricos (45 de 245 inventários) concentravam 25%
dos escravos dos produtores de gado – concentração que também se
faziam presente, de forma ainda mais profunda, na posse do gado, já
que os 10% mais abastados detinham 49% do rebanho (MATHEUS,
2016, pp. 184 e 221).
Voltando para a análise dos inventários para entender a
intrínseca relação entre produção pecuária e a exploração da
mão de obra escrava, trabalhamos agora com 219 documentos, ou
apenas aqueles inventários de criadores com escravos. Primeiro,
246
SUMÁRIO
A exploração de mão de obra escrava na pecuária
(campanha gaúcha, segunda metade do século XIX)
vamos analisar a questão da necessidade de trabalhadores na
pecuária naquele contexto. Depois, verificamos que informações os
inventários fornecem sobre a ocupação/especialização dos cativos,
acrescentando, no tópico a seguir, uma fonte muito rica, mas ainda
pouco utilizada: a Lista de Classificação dos Escravos (no caso a lista
de Dom Pedrito).
A pecuária extensiva, praticada em campos abertos, exigia um
permanente cuidado com o gado, tanto para ele não se perder, quanto
para não se misturar com rebanhos alheios. Como esta era uma
atividade rotineira, necessitava de um número x de trabalhadores
permanentes, de acordo com o tamanho do rebanho. Ao mesmo
tempo, havia momentos em que era necessária mais mão de obra
para trabalhos específicos (momentos estes denominados de rodeios),
como a contagem do gado, para realizar alguns curativos, a marcação,
a castração ou a reunião de uma tropa para enviar à uma charqueada.
Por seu turno, a produção estava imbricada com as estações do
ano. De um lado, um bom pasto para os animais era fundamental,
ao que um verão com poucas chuvas era prejudicial; de outro, a
marcação e a castração, por exemplo, eram feitas no outono (ou no
início da próxima estação), para que não se acumulassem com outras
atividades a serem realizadas no inverno e porque nos meses quentes
havia muitos insetos, o que podia acarretar danos aos animais.
O gado acostumado a determinado espaço geográfico e à
presença humana era denominado de manso (gado costeado ou
domesticado). Já o gado há tempos solto nos campos, grosso modo,
sem sofrer processos como marcação, cura de bicheiras, etc., era
denominado de xucro/chucro (ou alçado). Com efeito, o gado manso
tinha um valor maior na hora da venda ou mesmo no momento da
avalição no inventário, entretanto, na lógica dos criadores, ter parte
dos animais em estado xucro podia ser um recurso para diminuir
os gastos com a criação. Como pondera Luís A. Farinatti, em um
contexto onde os rebanhos eram abundantes, não amansar todo o
gado xucro (durante determinado período de tempo) podia ser uma
estratégia para que não fosse preciso tanta mão de obra (FARINATTI,
2007, pp. 290-293)4.
Por sua vez, os cavalos eram essenciais para o pastoreio. Assim
como o gado, os cavalos (ou animais cavalares, como geralmente
aparecia nos inventários) eram divididos em mansos e xucros. No
4. Para todo o processo descrito, além da referência de Farinatti: (OSÓRIO, 2008, pp. 146160). Ver também: (BELL, 1998; CORRÊA, 2013).
247
SUMÁRIO
A exploração de mão de obra escrava na pecuária
(campanha gaúcha, segunda metade do século XIX)
entanto, a tarefa de domar (torná-lo manso) um cavalo não era algo
simples, demandando mão de obra especializada. Alguns criadores
tinham escravos com essa especialidade: por exemplo, no inventário
de Manoel José de Santana foi arrolado Maximiano, crioulo de 25 anos,
“campeiro e domador”; no do Tenente-Coronel Frederico Gonçalves
Jardim foi descrito o crioulo Januário, “domador”. Já outros tinham
que pagar pelo serviço – o Capitão José Marcelino Prestes, viúvo de
Ana Maria da Natividade, descreveu no inventário de sua falecida
esposa que, além de uma série de problemas que teve que resolver em
relação ao rebanho do casal que estava no Estado Oriental, pagou a
diversos peões por serviços, dentre eles “o peão Américo para domar,
5 mil réis ao mês”, quantia que em 10 meses resultou no pagamento
de 50 mil réis5. Assim, a doma entra na mesma categoria da marcação
e outras atividades sazonais, isto é, era necessária apenas em um
curto espaço de tempo. Mas e qual era a necessidade de mão de obra
permanente para o costeio do gado?
Em geral, a historiografia aceita que em média um peão podia
cuidar entre 500 e 600, podendo chegar a 700 reses conforme alguns
relatos à época, logo, um pequeno criador podia ele mesmo tomar
conta de um rebanho que não ultrapassasse esse montante, embora
muitos pequenos produtores tivessem escravos (OSÓRIO, 2008,
pp. 148-160; BELL, 1998, p. 51; FARINATTI, 2007, pp. 296-297)6. Em
rebanhos de maior envergadura, geralmente a partir de 1.000 reses,
passava-se a necessitar de mão de obra extra permanente, caso
não existisse nenhum filho, outro parente ou agregados em idade
suficiente para ajudar. Neste sentido, o quanto os escravos supriam
esta necessidade? E o que os inventários (abertos em Bagé) nos
informam sobre tal processo?
Os inventários trazem somente alguns indícios sobre
as atividades em que os cativos eram empregados – ou eram
preferencialmente empregados, pois nos parece bastante lógico que
em uma economia baseada na pecuária, a qual se caracteriza por ter
alguns picos de necessidade de mão de obra, em momentos em que
a lida com o gado não demandasse muito trabalho, alguns cativos
5. APERS. Registro de Inventário. Manoel José de Santana, Comarca de Caçapava, Fundo
016, I Vara da Família, nº 75, 1851; APERS. Registro de Inventário. Tenente-Coronel, Comarca de Bagé, Fundo 010, Vara de Família e Sucessão, nº 261, 1869; APERS. Registro de
Inventário. Manoel José de Santana, Comarca de Caçapava, Fundo 016, I Vara da Família,
nº 75, 1851.
6. Paulo Zarth, a partir da análise dos inventários post-mortem e das Memórias do fazendeiro
Arístides de Moraes Gomes, escrita na primeira metade do século XX, lembra que “os escravos dividiam-se em todas as atividades no interior da estância” (ZARTH, 2002, p. 115).
248
SUMÁRIO
A exploração de mão de obra escrava na pecuária
(campanha gaúcha, segunda metade do século XIX)
pudessem ser empregados em outra atividade, como a agricultura.
Por isso não deve surpreender a ocorrência de escravos identificados
como campeiro e roceiro. Este foi o caso de Luiz, africano, designado
como “campeiro e roceiro” e do crioulo Venâncio, também identificado
como “campeiro e roceiro”7.
Tabela 2 - Ocupação dos escravos conforme os inventários, Bagé (c.1820-1870)
Criadores
Escravos Escravos
Escravos
campeiros roceiros Domésticos
Escravos s/r acima
com
dos 14
ofício
anos
Até
100 reses
16
9
13
4
93
De
101 a 500
39
21
18
6
168
De
501 a 1.000
47
22
13
8
162
Mais de
1.000 reses
108
36
42
20
270
Total
210
88
86
38
693
APERS. Registros de Inventários. Bagé, c.1820-1870.
s/r = sem referência
Por vezes, os escravos não recebiam nenhuma qualificação que
denotava alguma especialização, mas desempenhavam mais de uma
tarefa. Durante a investigação de um crime, o escravo Leandro, do
capitão Manoel Martins, afirmou que trabalhava “do que manda fazer
seu senhor”. Em um segundo interrogatório, o mesmo Leandro afirmou
que ele e outros cativos, “por ordem de seu senhor tinham ido marcar
gado”, logo, Leandro, mesmo sem se identificar como campeiro, como
muitos outros o faziam, ajudava na lida com o gado em momentos
de maior necessidade de mão de obra, como a marcação. No mesmo
processo, o africano Mina José Pequeno também afirmou trabalhar no
“que lhe ordena seu senhor”, porém, o pernambucano Luís e o africano
Mina Benedito, todos pertencentes a Manoel Martins, qualificaram-se
como “pedreiro” e “roceiro”, respectivamente8.
7. APERS. Registro de Inventário. Manoel Alves Lucas, Comarca de Caçapava, Fundo 016,
I Vara da Família, nº 99, 1853; APERS. Registro de Inventário. Maria Gonçalves da Silva.
Comarca de Bagé, Fundo 010, Vara de Família e Sucessão, nº 197, 1862.
8. APERS. Processo-crime, Bagé, I Vara do cível e Crime, nº 3438, 1859.
249
SUMÁRIO
A exploração de mão de obra escrava na pecuária
(campanha gaúcha, segunda metade do século XIX)
No entanto, predomínio é daqueles cativos que tiveram apenas
uma especialização indicada – 422 casos. Destes, 38 eram oficiais
(pedreiro, carpinteiro, alfaiate, etc.), 86 domésticos (cozinheira,
costureira, etc.), 88 roceiros e 210 campeiros/domadores (ou cerca de
50% dos que tiveram alguma ocupação identificada), todos eles, os
campeiros, do sexo masculino. Do total, 206 (ou 49%) com alguma
ocupação pertenciam a criadores com mais de 1.000 reses, os quais
também detinham 108 (ou 51,5%) dos campeiros arrolados nos
inventários, como é possível notar na tabela acima9.
Também conforme os inventários, mas até 1850 apenas, Luís
A. Farinatti localizou 157 cativos com uma ocupação declarada – a
maioria deles (53%) era de campeiros; já Helen Osório, para o período
colonial, observou que dentre 367 escravos, 152 (41%) eram campeiros
(FARINATTI, 2007, p. 303; OSÓRIO, 2008, pp. 149-150.). Portanto,
os números encontrados pelos autores são próximos aos percentuais
observados para Bagé, onde um número expressivo de campeiros
(mais de 48%) estava nas mãos de pequenos e médios criadores.
Para além das parcas informações existentes nos inventários
e na falta de censos agrários mais detalhados, há uma outra fonte,
infelizmente ainda pouco utilizada, que nos ajuda a compreender a
importância dos escravos para a pecuária, em especial na segunda
metade do século XIX. A Lei do Ventre Livre, de 1871, previa que
todos os cativos que vivessem no Império deveriam ser matriculados
(documentação que, de fato, foi quase totalmente destruída por
determinação de Rui Barbosa). Da mesma forma, as câmaras
municipais ficaram responsáveis por organizar listas de classificação,
com o objetivo de libertar alguns escravos de acordo com critérios
previamente estabelecidos (tinham preferência aqueles com família
constituída perante à igreja católica). Portanto, se as matrículas não
foram conservadas, muitas listas de classificação sobreviveram ao
tempo, e ao descaso das autoridades brasileiras com fontes históricas,
para diversas localidades do Brasil (SLENES, 1983; MARCONDES,
2010). É essa fonte que exploramos agora.
9. Em 693 casos de escravos com 15 anos ou mais nenhum tipo de especialização foi descrita
– lembrando, estes números se referem somente aos 219 inventários de criadores de gado
escravistas. Contabilizamos de 15 anos para cima (e não apenas até 45 anos), pois encontramos casos de escravos com mais de 45 e descritos com ocupações específicas. Um exemplo
foi Francisco, 75 anos, “campeiro”. Em: APERS. Registro de Inventário. Joaquina Tomásia
de Jesus. Comarca de Bagé, Fundo 010, Vara de Família e Sucessão, nº 191, 1862.
250
SUMÁRIO
A exploração de mão de obra escrava na pecuária
(campanha gaúcha, segunda metade do século XIX)
A Lista de Classificação de Escravos de Dom
Pedrito
Repetindo, após a provação da Lei do Ventre Livre, em 1871,
todos os senhores de escravos do império foram obrigados a
matricular seus escravos entre 1872 e 1873. Aqueles que não o fizessem
podiam perder suas posses, o que de fato acontecia (SLENES, 1983).
Além de matricular, um dispositivo da lei, regulamentado por forma
de decreto, também os obrigava a classificar seus cativos para serem
libertados pelo Fundo de Emancipação (MOREIRA, 2003, p. 142).
Esta classificação aconteceu, na maior parte, entre os anos de 1873 e
1875, embora continuasse ao longo das décadas de 1870 e 1880.
De acordo com Robert Slenes, as “juntas eram obrigadas a
fazer uma lista de todos os escravos residentes nas suas respectivas
localidades” (SLENES, 1983, p. 142). Porém, conforme o autor, em
muitos municípios nem todos os cativos foram classificados. Em
Alegrete, por exemplo, cerca de 83% dos escravos foram classificados
(MATHEUS, 2012, capítulo 1).
Nas listas consta o nome, número da matrícula, cor, idade,
estado civil, profissão, aptidão para o trabalho, número de pessoas
da família que foram classificadas juntamente, moralidade, valor
(quando manumitido pelo fundo), além, é claro, do nome do senhor
dos cativos. Infelizmente, em relação às matrículas, na lista de
classificação não consta a naturalidade nem a filiação dos escravos.
A título de exemplo e comparação, conforme o Censo de 1872, o
primeiro grande recenseamento geral da história brasileira, havia
apenas 12 “africanos” em Dom Pedrito, todos eles já “livres”. Com isso,
portanto, todos os classificados (caso os senhores não estivessem
escondendo a ilegalidade de suas posses devido ao tráfico ilegal a
partir de 1831) eram nascidos no Brasil.
Nesse sentido, a partir da lista, é possível reconstituir
praticamente todo conteúdo das matrículas, mas somente para
aqueles municípios em que a maioria dos cativos foi classificada – o
que parece ter sido o caso da Lista de Dom Pedrito. De acordo com
o Censo de 1872, havia 6.036 almas em Dom Pedrito, sendo 1.411
delas escravas (23,5%), e, segundo a Lista de Classificação, foram
classificados 1.414 cativos10. A lista, por óbvio, não era um retrato
estático daquela realidade, como o censo, e conforme algum escravo
10. De acordo com o Censo de 1872, mais de 58,5% da população de Dom Pedrito era “preta”
ou “parda” Se somarmos os “caboclos”, esse percentual vai a mais de 60%.
251
SUMÁRIO
A exploração de mão de obra escrava na pecuária
(campanha gaúcha, segunda metade do século XIX)
nascia devia ser devidamente classificado. Não à toa, há 12 cativos
com 1 ano listados nela.
Como já mencionamos, desde o início da década de 1850 o
município de Bagé era formado por duas paróquias – São Sebastião
de Bagé e Nossa Senhora do Patrocínio de Dom Pedrito11. Dom
Pedrito se emancipou em 1872 e, em meio a este processo, aconteceu
que os escravos da paróquia foram matriculados em Bagé, mas, com
a emancipação, elaborou-se uma lista de classificação própria para
os cativos do recém-criado município. E é com este documento que
iremos ponderar, agora, o quanto os escravos eram utilizados na
pecuária em plena década de 1870, quando boa parte da historiografia
acreditava, por uma série de motivos, que já não o eram tão
importantes para produção (MATHEUS, 2013). Isto foi possível, pois
dentre as informações que a junta de classificação tinha que preencher
sobre os escravos estava a “profissão” dos mesmos. No Censo de 1872
também havia tal campo, contudo, para as localidades do sudoeste
sul-rio-grandense, onde predominava a pecuária, nenhum escravo
foi descrito como “campeiro” ou “peão”, num claro descompasso
com determinadas realidades locais, como a da Campanha sul-riograndense. Na imagem abaixo é possível observar a descrição dos
escravos (nome, idade, etc.) e sua ocupação (“campeiro”, roceiro”,
etc.), nome dos senhores, bem como outras informações na Lista de
Dom Pedrito.
Antes de passarmos para a análise principal, dada a raridade do
documento especialmente para o Rio Grande do Sul12, é interessante
apreciar algumas informações gerais que a lista fornece. Dos quase
cinco mil escravos existentes em Bagé no início da década de 1870,
cerca de um terço habitava a paróquia de Dom Pedrito. Dos 1.414
cativos classificados na localidade, 55,5% eram do sexo masculino.
No que diz respeito às idades, 45% dos escravos tinham até
14 anos – o que atesta a importância da reprodução natural para a
própria reprodução da instituição, que não contava mais com o
tráfico transatlântico. Já os entre 15 e 50 anos representavam 51% dos
cativos e, por fim, os com 51 anos ou mais cerca de 4%.
11. Ver: ADB. ‘Meio de busca’; e o censo de 1872 em: www.ibge.gov.br.
12. Além das listas de Alegrete e de Dom Pedrito, até o momento foram encontrados as para
Encruzilhada (a qual está em processo de fichamento) e para Rio Pardo, que Melina Perussatto analisou (PERUSSATTO, 2010).
252
SUMÁRIO
A exploração de mão de obra escrava na pecuária
(campanha gaúcha, segunda metade do século XIX)
Imagem – recorte de página do Livro de Classificação dos Escravos,
Dom Pedrito, meados da década de 1870
Fonte: Museu Paulo Firpo. Lista de classificação dos escravos para serem libertados
pelo fundo de emancipação, p. 31. Observação: todas as informações gerais sobre
a Lista de Classificação de Dom Pedrito foram retiradas dessa fonte, salvo nova e
específica referência.
Além de dados quantitativas, os recenseadores anotaram
informações interessantes na aba “Observações”. Maria e Candido,
ela “cozinheira” e ele “campeiro”, escravos de Francisca Fernandes
de Lima, estavam no “Estado Oriental” – e hoje sabe-se que aqueles
escravos que passavam a fronteira, para onde o solo era livre, com
o consentimento do senhor, quando retornavam tinham o direito
à liberdade, ou seja, a própria produção da lista, neste aspecto, era
a produção de uma prova de escravização ilegal (GRINBERG, 2007;
MATHEUS, 2012, capítulo 4). A “costureira” Caetana, de apenas 14
anos, passou pelo drama (o desenraizamento e a ruptura dos laços
sociais produzidos na localidade onde nasceu e cresceu) que muitos
escravos enfrentaram, especialmente a partir de 1850, quando o
tráfico atlântico foi definitivamente proibido: nas “observações”
está anotado que ela foi “vendida para Caçapava”. Já o “campeiro”
Marcelino, de 22 anos, estava “fugido”13.
Todavia, é a classificação da “profissão” que nos parece mais
interessante, muito em função do censo de 1872 não trazer (assim
com nenhum outro censo agrário) a informação dos trabalhadores
13. Lista de Classificação de Dom Pedrito, op. cit., pp. 15, 21 e 34.
253
SUMÁRIO
A exploração de mão de obra escrava na pecuária
(campanha gaúcha, segunda metade do século XIX)
escravizados utilizados preferencialmente na pecuária. Dos 745
escravos descritos como do sexo masculino, nada menos do que 412
(ou 55,5% de todos os escravos) foram listados como “campeiros”. Se
nos atermos apenas aos homens entre seis e cinquenta e oito anos
(recorte que leva em conta o cativo mais novo classificado como
“campeiro” – com 6 anos, e o mais velho – com 58 anos), temos que
607 escravos ficaram dentro dessa faixa etária. Desses, nada menos
que 68% tinham como sua principal ocupação a lida com o gado14.
Deste modo, como os gráficos abaixo ilustram, temos que
quase 7 em cada 10 escravos do sexo masculino entre 6 e 58 anos eram
destinados à pecuária, isto no início da década de 1870, quando a
instituição escravista perdia a passos largos sua força e legitimidade.
Este é quase o mesmo percentual observado para Alegrete, a partir
da lista de classificação elaborada para este município (MATHEUS,
2012, p. 74).
Mas quem eram os senhores que exploravam a mão de obra
escrava na pecuária em Dom Pedrito? Vimos antes que os grandes
criadores concentravam boa parte (25%) de todos os escravos em
Bagé. Da mesma forma, foi possível observar que, dentre os cativos
que tiveram a ocupação anotada no inventário, cerca de metade
pertencia a senhores com 1.000 ou mais reses. Por outro lado, vimos
também que 1 peão poderia dar conta de um pequeno (até 700 reses)
rebanho e que os pequenos criadores também exploraram a mão de
14. Todas as informações foram retiradas de: Lista de Classificação de Dom Pedrito, op. cit.
Na verdade, o número total de escravos designados como campeiros foi de 419, todavia, sete
deles eram mulheres, ou melhor, campeiras.
254
SUMÁRIO
A exploração de mão de obra escrava na pecuária
(campanha gaúcha, segunda metade do século XIX)
obra cativa. Assim, 1 escravo campeiro, naquele contexto, era algo
muito valioso, especialmente para os pequenos e médios criadores.
Conforme a Lista de Classificação de Dom Pedrito, 353
proprietários classificaram seus escravos, sendo que 80% dos senhores
do sexo masculino. Com efeito, do total de senhores, mais de 91%
tinha até 9 escravos. Cerca de 8% tinha entre 10 e 19 cativos e 1% (três
proprietários) tinha 20 ou mais escravos. Esses grandes senhores
concentravam 5% dos escravos ou, em outras palavras, concentravam
cinco vezes mais escravos do que sua própria representatividade. Já os
médios proprietários detinham 24% e os pequenos 71% dos cativos. A
moda, isto é, a principal ocorrência, era de proprietários com apenas
um escravo (93 senhores) e depois com 2 cativos (66). Em média,
cada senhor tinha 4 cativos.
Tabela 3 – Distribuição dos escravos campeiros entre os senhores de diferentes
envergaduras
Tamanho
da posse
Senhores
com 1 a 9
escravos
Senhores
com
10 a 19
escravos
Senhores
com 20
ou mais
escravos
Total
Número
de
senhores
% de
senhores
Número de
escravos campeiros
% de escravos campeiros
185
87
288
68,5
24
11,5
105
25,5
3
1,5
26
6
212
100
419
100
No que se refere às profissões dos escravos, 4 foram descritos
com ofícios como alfaiate, sapateiro, oleiro (especialista na fabricação
de telhas) e veleiro (provavelmente a fabricação e velas)15. Outros 73
foram designados como “roceiro” ou “lavrador”, o que mais uma vez
realça a importância da agricultura. Por sua vez, 32 foram descritos
como “pajem” ou “mucamba”. Outros 29 cativos foram designados
como “servente” ou “de todo serviço”. Há ainda 1 quitandeira e 1
jornaleiro. Entretanto, o que predomina são os serviços domésticos
15. De acordo com Antonio de Moraes Silva, “veleiro” é a “pessoa que faz velas”. Da mesma
255
SUMÁRIO
A exploração de mão de obra escrava na pecuária
(campanha gaúcha, segunda metade do século XIX)
e na lida com o gado: como já dissemos, 419 foram indicados como
“campeiros”; e 324 cativas foram designadas como “engomadeira”,
“serviço doméstico”, “cozinheira”, “costureira”, “lavadeira”, etc.
Mas e os campeiros, em que posses estavam distribuídos? Para
esclarecer, trabalho agora com o universo de 419 escravos campeiros,
pois conto as 7 escravas campeiras existentes na lista. A maior parte
deles pertenciam a senhores com até 9 escravos, contudo, se esses
proprietários representavam 87% dos que detinham cativos campeiros,
concentravam 68,5% dos escravos. Já os médios proprietários (com
10 a 19 escravos) representavam 11,5%, concentrando mais de 25%
dos cativos. Finalmente, os senhores com mais posses perfaziam
apenas 1,5% dos proprietários, todavia, concentravam quatro vezes
mais sua representatividade (6%), demonstrando mais uma vez uma
concentração não só da posse escrava, mas também em específico da
posse de cativos especializados nas lidas campeiras. A tabela 3 acima
ilustra tal questão.
Já nos encaminhando para as conclusões, é importante
salientar o quanto os pequenos proprietários lançavam mão da
exploração do trabalho escravo na pecuária. Em 31 casos de senhores
com apenas 1 cativo, esse foi designado como “campeiro”, sendo
que 5 desses senhores eram, na verdade, senhoras. Em 24 casos de
senhores com 2 escravos, um deles foi descrito como “campeiro”,
número que sobe para 31 em senhores com até 3 cativos e 24 em
proprietários com até 4 escravos.
Enfim, creio que os números apresentados a partir da Lista de
Classificação corroboram o encontrado conforme os inventários, isto
é, a escravidão era estrutural para a atividade pastoril e, até onde
puderam, os senhores continuaram destinando os cativos para
a produção de gado. Ou seja, caso a Lei do Ventre Livre não fosse
promulgada e, anos depois, a abolição não tivesse sido levada a cabo, a
escravidão provavelmente continuaria a servir de alicerce à pecuária.
Por óbvio, tal traço, definidor das relações de trabalho, continuou
marcando e balizando as relações sociais na região após a abolição,
embora a questão fuja dos objetivos imediatos deste estudo (sobre
isso, para a mesma região tratada aqui neste estudo, ver: MOREIRA
e MATHEUS, 2020).
maneira, mas conforme o dicionário de Luís Maria da Silva Pinto, “veleiro” é aquele “que faz
velas” (PINTO, 1832, p. 1084; SILVA, 1789, p. 837). Agradeço ao colega Miquéias Mügge
as indicações.
256
SUMÁRIO
A exploração de mão de obra escrava na pecuária
(campanha gaúcha, segunda metade do século XIX)
Considerações finais
Espero que o leitor tenha notado que a Campanha sulriograndense se tratava de uma área rural – rural e escravista e,
por isso, bastante representativa do Brasil de então. Logo, apesar
das especificidades (produção pecuária, área fronteiriça, etc.),
provavelmente boa parte dos traços sociais aqui descritos são, em
tese, generalizáveis para outras regiões do Império. Referimo-nos,
especificamente, a disseminação da posse escrava e, por isso, a ampla
utilização da mão de obra cativa nos mais diversos ramos econômicos
e, fundamentalmente, na principal atividade econômica da qual a
elite social drenava e retirava seus recursos.
Por outro lado, acredito que nunca é demais repetir e reforçar:
é impressionante o vigor da escravidão, ainda em meados da década
de 1870. Mesmo em um lugarejo no extremo sul do Império, quase
caindo do mapa, em uma região fronteiriça com nações onde não
havia mais a escravidão. Naquele contexto, em uma localidade com
pouco mais de 6 mil almas, nada menos do que 353 senhores eram
detentores de escravos e, mais importante, mais de 90% deles eram
pequenos senhores, com até 9 escravos (notadamente, 45% tinham
1 ou 2 cativos). Caso não fosse o processo abolicionista, que acelerou
o fim da escravidão, parece que os proprietários estavam dispostos
a levar adiante tanto seu status de senhores de outras vontades,
bem como a exploração do trabalho alheio, numa simbiose entre
questões sociais, culturais e econômicas que explicam não só aquela
realidade, mas também estruturas outras legadas pelo passado
escravista brasileiro.
Da mesma forma, espero que tenha ficado claro o quanto a
economia da região e, principalmente, sua elite social e econômica
dependia da exploração do trabalho escravo. Com efeito, a escravidão
foi estrutural para a produção pecuária enquanto o trabalho servil
existiu no Brasil. Assim sendo, a acumulação de bens e capital da elite
da região (algo generalizável para outras partes do Brasil também)
teve origem na renda oriunda do trabalho cativo, o qual perfazia boa
parte do patrimônio dos bageenses.
Todavia, se a elite dos criadores concentrava a maior parte
dos recursos (terras, gado e escravos), a mão de obra cativa era
largamente utilizada por todos produtores de gado. Não à toa,
conforme foi possível verificar a partir da Lista de Classificação de
Dom Pedrito, mais de 87% dos senhores que eram proprietários de
escravos campeiros eram pequenos senhores (com até 9 cativos). E
257
SUMÁRIO
A exploração de mão de obra escrava na pecuária
(campanha gaúcha, segunda metade do século XIX)
isto para meados da década de 1870. Ou seja, pequenos produtores
também eram, em alguma medida, dependentes do trabalho cativo.
Nesse sentido, provavelmente o impacto do fim da escravidão
teve consequências mais severas para os pequenos senhores, cujo
patrimônio estava mais comprometido com a posse cativa, do que
para os maiores criadores. Tal entendimento, creio, redimensiona o
interesse sobre a manutenção da instituição escravista, não sendo ela,
primeiro, de interesse somente dos cafeicultores paulistas e, também,
não sendo algo que dizia respeito apenas aos grandes proprietários
de escravos, mas de ampla parcela da população brasileira, algo ainda
pouco explorado pela historiografia.
Referências
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FARINATTI, Luís A. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na
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GRINBERG, Keila. Escravidão, alforria e direito no Brasil oitocentista: reflexões
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MATHEUS, Marcelo S. Escravidão, pecuária e liberdade: o Livro de classificação
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MATHEUS, Marcelo S. A produção da diferença: escravidão e desigualdade social
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(Tese de Doutorado)
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MOREIRA, Paulo M. S. e MATHEUS, Marcelo S. Processo e estrutura: o fim da
escravidão e a persistência dos castigos físicos (Rio Grande do Sul, final do século
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MOREIRA, Paulo R. S. Os Cativos e os Homens de bem: experiências negras no
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258
SUMÁRIO
A exploração de mão de obra escrava na pecuária
(campanha gaúcha, segunda metade do século XIX)
OSÓRIO, Helen. O império português ao sul da América: estancieiros, lavradores
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PERUSSATTO, Melina K. Como se de ventre livre nascesse: experiências de cativeiro, parentesco, emancipação e liberdade nos derradeiros anos da escravidão – Rio
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ZARTH, Paulo Afonso. Do Arcaico ao Moderno. Transformações no Rio Grande
do Sul do século XIX. Ijuí: Editora Unijuí, 2002.
259
SUMÁRIO
OS TRABALHADORES
DA CHARQUEADA INDUSTRIAL
NOS DADOS DA DELEGACIA REGIONAL
DO TRABALHO DO RIO GRANDE DO SUL
Aristeu Elisandro Machado Lopes1
260
SUMÁRIO
Os trabalhadores da charqueada industrial nos dados da Delegacia Regional
do Trabalho do Rio Grande do Sul
1∗
Introdução
No ano de 1932 o então governo provisório de Getúlio Vargas
promulgaria um decreto que alteraria a história dos trabalhadores
brasileiros. Trata-se do decreto nº 21.175, de 21 de março de 1932,
que instituiu a carteira profissional, que destacava, já em seu
artigo primeiro, que o novo documento foi estabelecido “para as
pessoas maiores de 16 anos de idade, sem distinção de sexo, que
exerçam emprego ou prestem serviços remunerados no comércio
ou na indústria” (BRASIL, 1932A).2 A trajetória profissional dos
trabalhadores e trabalhadoras seria, a partir de então, registrada
nas páginas da carteira, tornando-se o histórico das atividades
profissionais desempenhadas ao longo dos anos de vida laboral.
Conforme o texto veiculado na carteira, de autoria de Marcondes
Filho, Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio, do governo
varguista, a carteira “configura a história de uma vida” uma vez
que, quem a examinar “logo verá se o portador é um temperamento
aquietado ou versátil; se ama a profissão escolhida ou ainda não
encontrou a própria vocação; se andou de fábrica em fábrica como
uma abelha, ou permaneceu no mesmo estabelecimento” (GOMES,
2005, p. 235). Nos anos e décadas posteriores à sua criação, a carteira
assinada se tornou a aspiração de todo o trabalhador, pois representava
a garantia de direitos, como estabilidade, salário regular, férias e
1. Doutor em História/UFRGS. Professor Associado II do Departamento de História e do
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pelotas.
2. Ainda no ano de 1932, outro decreto alterou a redação do artigo primeiro contemplando
um universo maior de trabalhadores: “Art. 1º Fica instituída, no território nacional, a carteira
profissional para as pessoas maiores de 16 anos de idade, sem distinção de sexo, que exerçam
emprego ou prestem serviços remunerados.” (BRASIL, 1932B).
261
SUMÁRIO
Os trabalhadores da charqueada industrial nos dados da Delegacia Regional
do Trabalho do Rio Grande do Sul
aposentadoria. Dessa forma, tornou-se hábito “tirar” a carteira logo
ao início da vida profissional, prática que permanece na atualidade.
No ano seguinte ao decreto as primeiras carteiras profissionais
começaram a ser emitidas no Rio Grande do Sul. Inicialmente as
solicitações foram feitas apenas em Porto Alegre, mas logo também
começaram a ser requeridas em outros municípios, entre os quais
Bagé. O objetivo deste capítulo é, em um primeiro momento,
apresentar brevemente os dados dos trabalhadores e trabalhadoras
que solicitaram carteira profissional vinculados a estabelecimentos
localizados em Bagé. A seguir, o capítulo focará em um grupo
específico de trabalhadores: aqueles que, no momento da solicitação
da carteira, no ano de 1941, estavam vinculados a Charqueada
Industrial. Além de abordar as informações específicas sobre esse
grupo – nome, profissão, cor, ano e local de nascimento, residência,
estado civil e dependentes– essa parte também analisará o conjunto
de fotografias 3x4 desses trabalhadores. Os dados e as fotografias
conformam parte da história da Charqueada Industrial por um viés
diferenciado, ou seja, a partir de seus trabalhadores e, notadamente,
por seus rostos.
O texto será desenvolvido a partir das fichas de qualificação
profissional, as quais constituem o acervo da Delegacia Regional
do Trabalho do Rio Grande do Sul, salvaguardado no Núcleo de
Documentação História Professora Beatriz Loner da Universidade
Federal de Pelotas. As fichas e o acervo serão explicados no tópico
seguinte.
O acervo da Delegacia Regional do Trabalho
do Rio Grande do Sul
Para atender a demanda pelas carteiras profissionais, o
Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio estabeleceu Inspetorias
Regionais do Trabalho nos estados (mais tarde renomeadas para
Delegacias). A solicitação seguia uma rotina meticulosa, com o
preenchimento de uma ficha de qualificação profissional, ou seja, o
documento no qual eram registradas todas as informações pessoais
e profissionais do requerente. A ficha era constituída por duas vias,
sendo que uma delas era remetida ao Rio de Janeiro, para o MTIC,
responsável pela emissão da carteira. A outra permanecia na DRT do
estado de origem da solicitação.
262
SUMÁRIO
Os trabalhadores da charqueada industrial nos dados da Delegacia Regional
do Trabalho do Rio Grande do Sul
A ficha possuía os seguintes campos: nome completo, nome
da mãe, nome do pai, data e local de nascimento, nacionalidade cor
(da pele), cor dos olhos, cor do cabelo, sinais particulares e altura. Já
entre os campos específicos sobre a atividade exercida constavam:
profissão, estabelecimento, e seu endereço, e vínculo sindical. Outros
campos registravam: estado civil, número de dependentes, endereço
residencial, grau de instrução e uma parte específica anotava
informações sobre estrangeiros. No verso da ficha, havia espaço para
anotações posteriores, como solicitação de segunda via da carteira,
mudança de estado civil, inclusão de dependentes, entre outras,
e também eram marcadas as digitais e anexada uma fotografia no
formato 3x4 (LOPES, 2020).
A ficha de qualificação profissional é o documento que
constitui o acervo pesquisado e é composto por aproximadamente
627.000 fichas, armazenadas em 1.050 caixas de arquivo permanente,
que compreendem o período entre 1933 e 1968. As pesquisas com
esses documentos foram facilitadas com a criação de um banco de
dados, que reproduz os mesmos campos da ficha e permite cruzálos. O banco, além de “possibilitar o desenvolvimento de inúmeras
pesquisas”, também permite a “própria preservação da documentação,
que está em suporte papel” (LONER, 2010, p. 21). Atualmente o banco
possui 50.773 fichas que correspondem ao primeiro ano da DRT/
RS, 1933, até 1944, sendo que este é o ano atualmente em digitação.
3
No próximo tópico serão apresentadas e analisadas as informações
sobre os trabalhadores que solicitaram carteira profissional em Bagé,
as quais foram extraídas a partir de levantamentos e cruzamentos
realizados no banco de dados do acervo da DRT/RS.
Os trabalhadores de Bagé nos dados da DRT/
RS
Do total de fichas já inseridas no banco de dados, 619 foram
solicitadas por trabalhadores que desempenhavam suas funções em
Bagé. Os pedidos foram realizados em 1935 e entre 1939 e 1941: 233
solicitações em 1935, 98 em 1939, 93 em 1940 e 195 em 1941. Como Bagé
não contava com um atendimento fixo da DRT/RS – o mesmo para
todos os demais municípios do interior do estado que somente mais
tarde contaram com os primeiros postos em Passo Fundo, em 1945,
3. Importante explicar que o conjunto documental não representa a totalidade dos trabalhadores do estado no período e nem mesmo o número total de solicitantes – visto que muitas
fichas se perderam ao longo do tempo.
263
SUMÁRIO
Os trabalhadores da charqueada industrial nos dados da Delegacia Regional
do Trabalho do Rio Grande do Sul
e em Pelotas, no ano de 1948 (LONER, 2008) – as solicitações foram
realizadas a partir de duas possibilidades. A primeira, um funcionário
da DRT/RS poderia se deslocar até a cidade, com os cadernos de
fichas, para atender a demanda. A segunda, os empregadores ou os
sindicatos poderiam realizar a coleta dos dados nas fichas e remeter
os livros para Porto Alegre. Essa segunda possibilidade era prevista
no decreto que instituiu a carteira, conforme o § 2º do artigo quarto:
“Além do próprio interessado, os empregadores, ou os sindicatos
oficialmente reconhecidos, poderão promover o andamento do
pedido das carteiras” (Brasil, 1932A). Os livros das fichas dos
trabalhadores de Bagé corroboram com essa interpretação. Cada
livro é formado por 50 fichas e, no caso específico dos solicitantes de
Bagé, os livros possuem entre 40 e 50 fichas preenchidas com dados
de trabalhadores da cidade.4
No campo gênero, 554 fichas foram solicitadas por homens
e 65 por mulheres. De acordo com os dados do Recenseamento do
Brasil de 1940 – considerado o mais próximo dos dados da DRT/
RS – Bagé totalizava uma população de 59.000 pessoas, sendo
30.084 mulheres e 28.916 homens (INSTITUTO BRASILEIRO DE
GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 1950, p. 50). As mulheres, portanto,
formavam a maioria. Comparando os dados do censo com aqueles
da DRT/RS é possível constatar que, embora o número de mulheres
fosse superior ao de homens, entre os solicitantes de carteira a
presença masculina prevaleceu. Apesar de um número menor de
solicitações, as mulheres de Bagé estavam envolvidas em atividades
diversificadas, como demonstra a tabela abaixo:
Tabela 1: Quantitativo das Profissões registradas por número de trabalhadoras
Profissão
Auxiliar de comércio
Camareira
Servente
Copeira
Cozinheira
Auxiliar de padaria
Trabalhadoras
16
12
10
5
5
4
4. Até o momento foram inseridos no banco dados 14 livros com trabalhadores de Bagé assim
distribuídos: 50 fichas (três livros), 49 fichas (três livros), 48 fichas (três livros), 47 fichas
(um livro), 45 (dois livros), 40 fichas (um livro) e em apenas um livro há somente uma ficha.
264
SUMÁRIO
Os trabalhadores da charqueada industrial nos dados da Delegacia Regional
do Trabalho do Rio Grande do Sul
Professora
Empacotadora de fumo
Industriaria/Empacotadora/ Zeladora/
Auxiliar de escritório/Enfermeira/
Telefonista/Parteira prática/não informado
3
2
1
Fonte: Acervo da Delegacia Regional do Rio Grande do Sul-NDH-UFPel.
Já em relação à cor registrada, os dados da DRT/RS apontavam
para 472 fichas com a informação da cor como “branca”, 69 como
“parda”, 54 como “preta”, 17 como “morena”, seis como “não
informado” e uma como “mista”. No que se refere a distribuição por
cor no Censo de 1940, 47.064 totalizavam cor “branca”, 7.045 cor
“preta”, 12 cor “amarela”, 4.854 cor “parda” e 23 com cor “não declarada”
(INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA,
1950, p. 53). É possível considerar que as informações das fichas,
na comparação com o resultado do recenseamento, não estavam
eqüidistantes, ou seja, a pouca presença de pessoas com registro de
outras cores no censo estão condizentes com os dados da delegacia,
visto que em ambos a cor que predominou foi a branca. Sobre essa
questão, é importante que se faça uma ressalva em relação aos dados
da DRT/RS. Como destacado anteriormente, os documentos não são
definitivos ao se referir aos mundos do trabalho no estado, ou seja,
eles constituem uma parcela dos trabalhadores, portanto, é provável
que muitos outros com cores que não a branca trabalhavam no
município em ocupações que, talvez, não os estimulassem solicitar
uma carteira profissional.5
Essa hipótese também é amparada nos próprios dados até
então inseridos no banco sobre os trabalhadores de Bagé, no que
se refere tanto as mulheres como aos não brancos nos mundos do
trabalho na cidade. Se, por um lado, a ocupação da mão de obra
feminina era diversificada, por outro, ao incluí-la na totalidade das
informações sobre a profissão registrada nas fichas, tal diversificação
se torna mais evidente. Dessa forma, os resultados com muitas
profissões, mas com poucos trabalhadores, indicam que havia muitos
outros – tanto mulheres, como não brancos – que não solicitaram o
5. Tiago Rosa da Silva afirma que “diversos mecanismos [foram] acionados por sujeitos negros
em Bagé no Pós-abolição através de seus espaços associativos, a saber: imprensa, entidades
carnavalescas e clubes sociais” (SILVA, 2018, p. 30). Tais mecanismos foram estudados por
ele em sua dissertação tornando evidente, portanto, que a população negra bageense, no
período abordado neste texto, era muito superior ao número de solicitações de carteira até
então averiguadas no Acervo da DRT/RS.
265
SUMÁRIO
Os trabalhadores da charqueada industrial nos dados da Delegacia Regional
do Trabalho do Rio Grande do Sul
documento ou suas fichas se perderam ao longo do tempo. A tabela
seguinte apresenta as profissões registradas nas fichas de homens e
mulheres com cinco ou mais trabalhadores:
Tabela 2: Quantitativo das Profissões registradas por trabalhadores e trabalhadoras
Profissões
Trabalhadores/
Trabalhadoras
Ferroviário
Bancário
Servente
Padeiro
Comerciário
Auxiliar de comércio
Cozinheira/Cozinheiro
Garçom
Pedreiro
Camareira/Camareiro
Jornaleiro
Chofer
Carneador
Carpinteiro
Marceneiro
Copeira/Copeiro
Professora/Professor
Mecânico
Jornalista
Eletricista
83
76
64
32
30
75
26
29
16
13
11
10
7
7
7
7
7
6
5
5
Fonte: Acervo da Delegacia Regional do Rio Grande do Sul-NDH-UFPel.
Além dessas, outras ocupações registradas nas fichas foram:
tipógrafo, auxiliar de padaria, sapateiro, pintor, foguista, masseiro,
ronda, preparador de charque, gerente, cobrador, carroceiro,
lustrador, porteiro, enfermeira, empacotador de fumo, doceira,
contador, químico, colchoeiro, agricultor, serrador, engenheiro
266
SUMÁRIO
Os trabalhadores da charqueada industrial nos dados da Delegacia Regional
do Trabalho do Rio Grande do Sul
agrônomo, telefonista, escriturário, guarda-livros, confeiteiro,
engenheiro civil, vulgarizador, servente de pedreiro, ourives,
impressor, entre outras. Tanto as ocupações da tabela como essas,
com quatro ou menos trabalhadores, demonstram a variedade da
mão de obra na cidade, com atividades laborais vinculadas aos
setores do comércio, de serviços, construção civil e industrial.
Da mesma forma, essa diversificação também permite
considerar que Bagé possuía intensas atividades econômicas, o que a
coloca como um pólo empregatício no cenário econômico do estado,
assemelhando-se com Pelotas e Rio Grande, outras duas cidades
da zona sul com intensas atividades e, igualmente, com bastante
demandantes de carteiras profissionais. Ainda, comparando as duas
tabelas, nota-se que algumas ocupações femininas, como cozinheira,
camareira, copeira e professora, também foram encontradas entre os
homens. Destaca-se, nesse sentido, os cozinheiros, que totalizam 21
homens enquanto apenas cinco mulheres são cozinheiras.
O maior grupo de trabalhadores foi formado pelos ferroviários,
todos vinculados a Viação Férrea do Rio Grande do Sul. Os bancários
estavam distribuídos nas seguintes instituições: Banco da Província
do Rio Grande do Sul, Banco Nacional do comércio e Banco do
Brasil. Sobre as demais profissões, sobretudo aquelas relacionadas ao
comércio, os vínculos eram com estabelecimentos diversos, muitos
dos quais não identificavam o nome fantasia, e sim o do empregador.
A pesquisa nesse campo específico da ficha – estabelecimento –
permitiu verificar uma significativa presença de trabalhadores na
Charqueada Industrial. No próximo tópico serão apresentadas
algumas informações dos seus trabalhadores e, também, as fotografias
entregues por eles no momento da solicitação da carteira.
Os trabalhadores da Charqueada Industrial
Em 1904 Antônio Nunes de Ribeiro Magalhães, o Visconde
de Ribeiro Magalhães – comerciante português e proprietário de
outra charqueada, a Santa Thereza – arrendou a Companhia Industrial Bageense, a qual foi comprada por ele em 1907, e renomeada para Charqueada Industrial (ALVES, FORNECK, SILVEIRA,
2019, p.04) (FAGUNDES, 2005, p.133). Em 1912 foram iniciadas as
tratativas para a transformação industrial da charqueada em um
empreendimento voltado ao comércio internacional, sobretudo
de carne enlatada. O Visconde
267
SUMÁRIO
Os trabalhadores da charqueada industrial nos dados da Delegacia Regional
do Trabalho do Rio Grande do Sul
Tinha em mente a exportação de carnes e congelados
para o mercado consumidor da Europa. Não podendo prescindir nem do capital nem de técnicos do Velho Mundo, procurou integrar na empresa elementos
destacados do capitalismo inglês. Com o conceito e
prestígio de que gozava, conquistou a adesão de duas
altas personalidades do mundo financeiro da Inglaterra;
Mister K. Wilson, um dos diretores da famosa companhia de navegação Mala Real Inglesa, e Mister Bruster,
proeminente banqueiro, membro da diretoria do Bigstafe Bank de Londres. Com essas figuras de projeção
internacional, foi organizada a “Anglo Brazilian Meat
Company”, com capitais ingleses e brasileiros. O Visconde participava com 23,75% do capital da sociedade.
(FAGUNDES, 2005, p.133) (Grifo no original)
A sociedade planejada e firmada pelo Visconde não durou
muito tempo. Com o advento da Primeira Guerra Mundial, a
sociedade foi desfeita em 1915. Já o Visconde entrou em falência em
1923 (FAGUNDES, 2005, p.134). Contudo, ao buscar por investidores
ingleses, ele tentou associar a sua charqueada aos recursos mais
modernos no que se refere à tecnologia de carne frigorificada, o que
teria alçado a charqueada para um outro nível de produção, tornando-a
um frigorífico voltado à exportação. Isso aconteceu, um pouco menos
de 10 anos depois do fim da sociedade do empreendedor bageense,
na cidade de Barretos quando, outro grupo de capital inglês, o Vestey
Brothers, instalou o Frigorífico Anglo de Barretos, em 1923 (ARAUJO,
2002).6 Se a sociedade envolvendo a Charqueada Industrial tivesse
prosperado, certamente Bagé estaria entre os municípios pioneiros
na instalação de indústrias frigorificadas no Brasil.
Contudo, a charqueada continuou sua produção nos anos
seguintes ao fim da sociedade e mesmo após a falência do Visconde.
Suas atividades não se ampliaram da forma como ele havia auspiciado,
mas, provavelmente, continuou destinando sua produção para o
mercado interno. Essa constatação é feita a partir da análise dos
dados dos trabalhadores da Charqueada que solicitaram carteira
profissional no ano de 1941.
A Charqueada Industrial ocupa a terceira posição entre os totais
de solicitações em Bagé, com 39 pedidos de carteira.7 A ocupação
6. No ano seguinte, o mesmo grupo inaugurou o Frigorífico Anglo de Fray Bentos, no Uruguai
(MICHELON, 2012). Já a unidade do Frigorífico Anglo de Pelotas foi inaugurada em 1943
após obras de readequação do prédio do antigo Frigorífico Sulriograndense, que havia sido
instalado em Pelotas, com capital nacional, no ano de 1918. (MICHELON, 2012) (LOPES;
SCHMIDT, 2018).
7. Como destacado anteriormente, a Viação Férrea do Rio Grande do Sul ocupa a primeira
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SUMÁRIO
Os trabalhadores da charqueada industrial nos dados da Delegacia Regional
do Trabalho do Rio Grande do Sul
com maior registro nas fichas foi servente, com 29 trabalhadores. Na
sequência, as informações apresentam uma mão de obra que pode
ser considerada como especializada: preparador de charque (2),
carneador (2) e preparador de couros (1). Os demais desempenhavam
atividades específicas: foguista (1), mecânico (1), ronda (1), carpinteiro
(1) e porteiro (1).
A charqueada, certamente, contava com um número maior
de trabalhadores, sobretudo em relação àqueles especializados. De
acordo com Alessandro Bica: “As charqueadas bageenses geravam os
maiores números de empregos na região de Bagé entre o final do
século XIX e nas primeiras décadas do século XX, constituindo-se no
entorno do estabelecimento da charqueada, uma gama de empregos
diretos e indiretos” (BICA, 2013, p. 57).
A presença significativa dos serventes aponta para uma
constatação relevante. É possível considerar que muitos deles
trabalhavam em sintonia com os preparadores e carneadores,
executando as mesmas tarefas ou outras consideradas imprescindíveis
para o desempenho de uma charqueada, como o desmembramento
dos animais abatidos e o salgamento das carnes. Dessa forma, a
ocupação de servente não deve ser considerada somente a partir do
desempenho de tarefas como a limpeza e a organização do espaço
físico da charqueada.8 Ainda, outra explicação pode estar relacionada
com os salários, ou seja, um servente não receberia o mesmo valor
de um trabalhador especializado, portanto, para a charqueada
era mais vantajoso, economicamente, contratar a maioria de seus
trabalhadores como serventes e uma minoria como especializados.9
Todos os trabalhadores da charqueada que solicitaram carteira
eram homens. Em relação ao ano de nascimento, foi verificado que
um primeiro grupo, formado por 13 trabalhadores, nasceu no século
XIX (1880, 1886, 1888, 1889, 1891 (2), 1893 (2), 1894, 1895, 1899 e 1900
(2)). Os demais nasceram entre os anos de 1901 e 1921. O trabalhador
mais velho tinha 61 anos quando solicitou sua carteira enquanto o
mais novo, 20 anos.
Cruzando os anos de nascimento do primeiro grupo com o
estado civil, 11 eram casados e dois eram solteiros. Já entre os nascidos
no século XX, 10 casados, 15 solteiros e um viúvo. Sobre o registro das
posição, com 83 trabalhadores. Em seguida, está o Banco da Província do Rio Grande do
Sul, com 44 fichas.
8. Essa constatação em relação aos serventes já foi observada na análise de outros grupos de
trabalhadores vinculados a uma mesma empresa.
9. As fichas dos trabalhadores da Charqueada Industrial não registravam informações sobre
salários.
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SUMÁRIO
Os trabalhadores da charqueada industrial nos dados da Delegacia Regional
do Trabalho do Rio Grande do Sul
cores nas fichas, 25 com cor “branca”, nove com cor “preta”, quatro
com cor “parda” e um com cor “morena”. Essas informações vão ao
encontro do que foi constatado acima no que se refere aos totais das
cores registradas nas fichas solicitadas em Bagé, ou seja, a cor “branca”
igualmente predominava entre os trabalhadores da charqueada.
A maioria era nascida em Bagé, totalizando 28 trabalhadores.
Os demais nasceram em Lavras do Sul (2), Dom Pedrito (2), Arroio
Grande (1), Rio Negro- Uruguai (1), Tres Cerros-Uruguai (1), Jaguarão
(1), Uruguaiana (1), Rio Pardo (1) e Cacimbinhas (atual Pinheiro
Machado) (1).
Ao cruzar os dados sobre a cidade de nascimento com a
residência informada na ficha, 21 bageenses apontaram o próprio local
de trabalho como suas moradias. Além deles, outros sete também
indicaram a Charqueada como residência, os nascidos em Lavras do
Sul, Tres Cerros, Rio Pardo, Jaguarão, Arroio Grande e Cacimbinhas.
28 dos 39 trabalhadores moravam, provavelmente, não nas
dependências da charqueada, mas no seu entorno. Para compreender
essa questão, é necessário retornar ao histórico do empreendimento e
da outra charqueada, a Santa Thereza. Em 1907 o Visconde de Ribeiro
Magalhães “construiu uma linha de bondes (puxada por mulas) e
uma Avenida (denominada “Boulevard 16 de Outubro”) interligando
as charqueadas Santa Thereza e Companhia Industrial Bageense, que
distanciavam, aproximadamente, 1000m entre si” (SOARES, 2006,
p. 72). Nos anos posteriores à abertura da avenida, trabalhadores se
instalaram nas suas imediações e é nelas que os trabalhadores que
solicitaram carteira em 1941, provavelmente, residiam:
No entorno da Charqueada Santa Thereza formou-se
um complexo urbano com inúmeros estabelecimentos industriais e comerciais, além de residências destinadas aos trabalhadores. A vila abrigava a família
do Visconde e cerca de 840 pessoas, que trabalhavam
tanto nas charqueadas quanto nas fábricas existentes
entre a Charqueada Santa Thereza e a Charqueada
Industrial (FAGUNDES, 2012). (ALVES, FORNECK,
SILVEIRA, 2019, p.05).
Seus locais de moradia, portanto, ficavam próximos a
charqueada e no complexo urbano, sendo ela um ponto de referência,
o que os levou a informá-la como sua residência. É provável que
os outros trabalhadores também residissem em locais próximos
ao seu local de trabalho. Cinco deles informaram suas residências
acrescentando a localização “subúrbio”: Vila Carlos Alberto, Vila
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SUMÁRIO
Os trabalhadores da charqueada industrial nos dados da Delegacia Regional
do Trabalho do Rio Grande do Sul
Arejano (2 trabalhadores), Tupy Silveira e Santa Tecla. Outros quatro
informaram como endereços: São Martim (2 trabalhadores), Vila
Operária e Rio Negro enquanto um indicou apenas “Bagé” e outro
um endereço em uma rua do centro da cidade: Marechal Floriano, 78.
A região que abrigava as duas charqueadas e as interligava recebeu,
ao longo dos anos após suas inaugurações, uma infraestrutura que
possibilitava aos trabalhadores residir próximo aos dois locais de
trabalho, o que justificava o endereço informado pela maioria.
Conforme Sandra Pesavento, o Visconde de Ribeiro Magalhães,
instalou, na primeira década do século XX, nas imediações da
Charqueada Santa Thereza, “um colégio misto para 60 alunos, sendo
o professor pago pela Intendência Municipal” (PESAVENTO, 1988,
p.59). Ainda, de acordo com a autora, já em 1909, a propriedade
do Visconde possuía: “casas de material construídas para abrigar o
pessoal do estabelecimento” (PESAVENTO, 1988, p.82). Tanto a escola
como as casas foram estabelecidas quase concomitantes à fundação
da Charqueada Industrial. Dessa forma, é possível considerar que
nos anos posteriores muitos dos trabalhadores residiam no complexo
urbano charqueador, como exemplifica os 28 trabalhadores que
solicitaram carteira em 1941.
A ficha de qualificação profissional proporciona estabelecer
possibilidades de análise de parte da trajetória profissional dos
trabalhadores. Suas informações permitem identificar os dados
pessoais e profissionais dos solicitantes e, em alguns casos, como este
dos trabalhadores da Charqueada Industrial, averiguar determinadas
peculiaridades, como a residência informada ser idêntica ao
vínculo empregatício. Contudo, outra possibilidade relevante
proporcionada pela ficha é a visualização do rosto do trabalhador a
partir da sua fotografia 3x4 e a forma como se apresentaram diante
do fotógrafo. Apresentar e analisar essas fotografias em pequeno
formato permite dar a ver esses trabalhadores comuns, os quais,
possivelmente, somente têm seus passados conservados, quiçá,
pelas memórias familiares.
A figura 1 apresenta as fotografias dos trabalhadores especializados
(o preparador de charque,10 o carneador e o preparador de couros), o
foguista, o mecânico, o ronda, o carpinteiro e o porteiro enquanto as
figuras 2, 3 e 4 trazem as fotografias dos serventes. Em todas elas é visível
a placa que indica a data do registro. Esse acessório era obrigatório,
conforme o decreto que criou a carteira em seu artigo 6º:
10. A fotografia de um dos preparadores de charque não está fixada na sua ficha.
271
SUMÁRIO
Os trabalhadores da charqueada industrial nos dados da Delegacia Regional
do Trabalho do Rio Grande do Sul
As fotografias que figurarão na carteira deverão reproduzir a imagem da cabeça tomada de frente, com as dimensões aproximadas de três centímetros por quatro,
tendo, num dos ângulos, em algarismos bem visíveis, a
data em que tiverem sido feitas, não se admitindo fotografias tiradas mais de um ano antes da sua apresentação (BRASIL, 1932A).
Figura 1: Trabalhadores da Charqueada Industrial
Legenda: Eduardo Faccio (preparador de charque), Zoilo Rosas (mecânico), Joventil
Garcia de Menezes (carneador), Pery Machado Moreno (carneador), Aparício Mendes (Preparador de couros), Santiago Alves Martins (foguista), Cypriano Teixeira
Nunes (ronda), Nicanor Ramos (carpinteiro) e Conceição Silveira (porteiro).
Fonte: Acervo da Delegacia Regional do Rio Grande do Sul-NDH-UFPel.
Figura 2: Trabalhadores da Charqueada Industrial
Legenda: Cesario Madruga, João Silveira, Valentim Bastos, Ladislau Oliveira, Mario
Gonçalves de Oliveira, Apolonio Nunes, Leopoldo Alves Marimono, Valdemar
Alarcom, Cícero dos Santos Gonçalves e Oliverio Moraes.
Fonte: Acervo da Delegacia Regional do Rio Grande do Sul-NDH-UFPel.
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SUMÁRIO
Os trabalhadores da charqueada industrial nos dados da Delegacia Regional
do Trabalho do Rio Grande do Sul
Figura 3: Trabalhadores da Charqueada Industrial
Legenda: Estevão Machado, Valdelirio Carvalho, Oscar Sais Proença, Paulo Barboza, Rozauro Brigido Conde, Derqui Rodrigues Dornel, Manoel Brasilio Corrêa da
Silva, Athaydes Rodrigues da Silva, João Aristides de Freitas e Marcos Farias.
Fonte: Acervo da Delegacia Regional do Rio Grande do Sul-NDH-UFPel.
Figura 4: Trabalhadores da Charqueada Industrial
Legenda: Dejalma Couto, João Batista Severo, Walmor Pereira, Juvenal Leite,
Candido Moraes, Miro Pereira, João Fernandez Barcelos, Marcilio Boba da Rosa e
João Carlos Soares. Fonte: Acervo da Delegacia Regional do
Rio Grande do Sul-NDH-UFPel.
Nas fotografias são identificados dois modelos de placas, o que
leva a considerar que se tratava de dois estúdios fotográficos. Em
um deles, é possível ler o nome do estúdio: Fotoarte (por exemplo,
na figura 1, nas placas do segundo, do quarto e nos últimos quatro
trabalhadores). A economia de Bagé, da mesma forma que outras
cidades importantes do interior do Rio Grande do Sul, se desenvolveu
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SUMÁRIO
Os trabalhadores da charqueada industrial nos dados da Delegacia Regional
do Trabalho do Rio Grande do Sul
nas últimas décadas do século XIX, o que proporcionou o crescimento
urbano e cultural (LEMIESZEK, 1997) (FAGUNDES, 2005) (BICA,
2013). Dessa forma, estabelecimentos fotográficos se instalaram na
cidade visando atender, sobretudo, a elite local. Luisa Brasil destaca
que, com a instalação de dois estúdios – Nova Photographia de
Amoretty e Poppe e Atelier José Greco11 – “pode-se dizer que, já em
fins do século XIX, aquela população já possuía familiaridade com
a imagem” (BRASIL, 2013, p. 65), o que inauguraria a produção de
fotografias na cidade.
Não foram encontradas informações sobre o fotógrafo e nem
mesmo sobre o Fotoarte. No entanto, é possível considerar que,
naquele momento, os trabalhadores tinham a sua disposição dois
estabelecimentos para decidir em qual deles realizar o seu registro
fotográfico, confirmando, assim, uma possível continuidade da
familiaridade com a imagem, como destacado pela autora. Por
outro lado, é relevante pontuar que, provavelmente, para muitos
trabalhadores, a sua fotografia 3x4 foi o seu primeiro registro
fotográfico. A produção de uma fotografia ainda permaneceu onerosa
até meados dos anos 1940, o que não permitiu “um uso massivo
da técnica”, restando os retratos fotográficos para os “segmentos
que podiam arcar com o pagamento dos serviços de um fotógrafo”
(BARBOSA, 2018, p. 150).
Apenas um trabalhador foi fotografado em novembro de 194012
(o primeiro da figura 2) e todos os demais foram fotografados entre
março e abril de 1941, alguns, inclusive, no mesmo dia, embora não
se verifica um registro coletivo, e sim individual. Nesse sentido,
não houve, por exemplo, uma atitude do próprio empregador em
incentivar a produção concomitante das fotografias, por exemplo. É
provável que todos eles foram avisados sobre a importância da carteira
e, informados do dia que os dados seriam recolhidos, procuraram os
estúdios. Dessa forma, quando as fichas foram preenchidas, todos já
estavam com as suas fotografias 3x4.
Todos os trabalhadores apresentaram-se diante do fotógrafo com
suas melhores roupas, o que leva a interpretar que eles estavam, como
destacou Miriam Moreira Leite ao analisar fotografias de famílias do
século XIX e começo do século XX, com suas vestimentas de domingo,
de sair de casa ou de festa (LEITE, 1993, p.97). A maioria veste casaco
e gravata enquanto outros usavam lenços, acessório muito usado no
11. Sobre o fotógrafo José Greco, ver: (ANDRADE; BRASIL; LOPES, 2021).
12. Conforme sua ficha indica a sua solicitação foi em 1941.
274
SUMÁRIO
Os trabalhadores da charqueada industrial nos dados da Delegacia Regional
do Trabalho do Rio Grande do Sul
tradicionalismo do Rio Grande do Sul. Percebe-se, por exemplo, que
o terceiro, o quinto, o sexto e o oitavo trabalhadores da figura 1 usam
lenços com nós elaborados, cada um com um tipo diferente.
Como destacado acima, a maioria informava casado como o
estado civil, o que os levava a indicar suas esposas como dependentes,
assim como filhos – apenas dois não indicaram filhos e, um desses,
não indiciou nenhum dependente. Também nas fichas dos solteiros
foram anotadas informações sobre companheiras e filhos como
dependentes. Entre os casados, um indicou 10 dependentes: a esposa
e nove filhos;13 dois indicaram nove: a esposa e oito filhos (sétimo
trabalhador da figura 1 e segundo trabalhador da figura 4); outros dois,
oito dependentes, a esposa e sete filhos (sétimo trabalhador da figura
2 e sétimo trabalhador da figura 4) e dois indicaram sete dependentes:
a esposa e seis filhos (segundo trabalhador da figura e primeiro
trabalhador da figura 4). Entre os demais casados o número de filhos
variou entre zero e seis. Na fichas do grupo dos solteiros também
foram anotadas informações sobre dependentes: entre os 17 solteiros,
13 registraram filhos e companheiras como dependentes. Entre eles,
um com seis dependentes, a companheira e cinco filhos (décimo
trabalhador da figura 2) e três com cinco dependentes, a companheira
e quatro filhos (segundo trabalhador da figura 2 e terceiro e décimo
trabalhadores da figura 3). Entre os outros solteiros com filhos, o
número de dependentes variou entre um e dois filhos. Os demais
quatro solteiros, sem filhos, indicaram os pais como dependentes. O
único viúvo (oitavo trabalhador da figura 3) registrou cinco filhos.
Essas informações sobre o número de dependentes, sobretudo,
em relação aos filhos, denotam outra constatação pertinente sobre
esses trabalhadores. Além da maioria se estabelecer nas imediações
do local de trabalho, alguns casaram e tiveram filhos, outros tiveram
filhos com companheiras, mas, todos eles direcionaram suas vidas
para a charqueada, tanto no que se refere ao desempenho profissional,
como também na esfera privada constituindo família e criando os
filhos nas imediações da sede do empreendimento charqueador.
Considerações finais
A Charqueada Industrial, o empreendimento, não resistiu
ao tempo, embora a Vila de Santa Thereza, localizada no mesmo
complexo, tenha permanecido: “Os prédios localizados no atual
13. Este é o preparador de charque Pacheco dos Santos Menezes, cuja fotografia se perdeu.
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SUMÁRIO
Os trabalhadores da charqueada industrial nos dados da Delegacia Regional
do Trabalho do Rio Grande do Sul
Centro Histórico de Santa Thereza são remanescentes da época do
apogeu das charqueadas em Bagé. Essas edificações representam
vários segmentos das atividades que eram realizadas no local”
(ALVES, FORNECK, SILVEIRA, 2019, p.06). O passado arquitetônico
continua evocando a história do trabalho realizado nas charqueadas
fundadas pelo Visconde de Ribeiro Magalhães, e sua trajetória
de empreendedor é conhecida. Já as histórias dos trabalhadores,
homens que desempenhavam funções variadas nas linhas de
produção do charque, desde o abate e o desmembramento dos
animais até o processo de salgar as carnes, são pouco conhecidas.14
O acervo da DRT/RS possibilita compreender uma parte de
suas histórias. As fichas de qualificação profissional, produzidas
com o objetivo específico à solicitação da carteira profissional, é um
documento exclusivo no que se refere à trajetória profissional dos
trabalhadores, já que permite averiguar uma série de informações
pessoais e profissionais no momento da solicitação da carteira.
No conjunto de fichas analisado neste texto, um dos dados mais
relevantes foi aquele sobre as residências, com a maioria declarando a
própria charqueada como seu endereço. Essa constatação sugere que
muitos deles aproveitaram os benefícios oferecidos pelo complexo
charqueador para se instalarem e, como também observado nas
fichas, constituir família e criar os filhos.
Ainda, a pouca presença de trabalhadores especializados e o
significativo número de serventes indica que estes desempenhavam
atividades que requeriam determinado conhecimento, considerado
especializado, como o executado por aqueles. Todos esses dados
se tornam ainda mais relevantes ao averiguar as trajetórias desses
trabalhadores associadas com suas fotografias 3x4. São elas que
apresentam os rostos, as expressões e as vestimentas escolhidas por
eles para a produção do registro. Em outras palavras, as fotografias
3x4 contam suas histórias com mais sensibilidade, dando a ver o
trabalhador comum, o qual, com sua força de trabalho contribuiu
com a economia da cidade, assim como para a história da Charqueada
Industrial.
14. Importante destacar que quando se refere somente aos homens, é uma referência aos 39
trabalhadores cujas fichas foram localizadas no acervo da DRT/RS. Nesse sentido, é provável que nas linhas de produção da Charqueada Industrial, em outros momentos de sua
história, as mulheres também trabalharam.
276
SUMÁRIO
Os trabalhadores da charqueada industrial nos dados da Delegacia Regional
do Trabalho do Rio Grande do Sul
Referências
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Os trabalhadores da charqueada industrial nos dados da Delegacia Regional
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278
SUMÁRIO
279
SUMÁRIO
ELITES, FAMÍLIA E RIQUEZA NA
PECUÁRIA GAÚCHA: O CASO DOS
ESTANCIEIROS E CHARQUEADORES
DE BAGÉ (C. 1850-1930)
Jonas M. Vargas1
280
SUMÁRIO
Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha:
o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930)
1
Introdução
Ao longo de todo o século XIX, a pecuária foi o carro-chefe
da economia sul-rio-grandense. A região da campanha, localizada
no sudoeste da Província, era o principal espaço agrário dedicado
a esse ramo de atividades, possuindo vastas pastagens povoadas
com milhões de cabeças de gado. Nesse contexto, o município de
Bagé destacou-se por conta de suas estâncias e rebanhos vacuns
que abasteciam os mercados locais, mas que tinham como principal
destino as charqueadas de Pelotas. No que diz respeito às mencionadas
atividades econômicas, dois fatores merecem ser comentados
inicialmente. A mão de obra escravizada no trabalho com o gado foi
fator estrutural nessa economia regional, sendo amplamente utilizada
nas pequenas, médias e grandes propriedades. E, o segundo, é que a
criação de gado não foi realizada somente por ricos estancieiros. A
paisagem agrária da fronteira foi marcada por uma grande presença
de médios e pequenos criadores, sendo que muitos criavam em terras
de terceiros, constituindo-se em agregados, o que tornava o espaço
agrário considerado ainda mais complexo.2
No entanto, o presente capítulo não se dedicará ao estudo da
escravidão e dos pequenos produtores, uma vez que o foco principal
é analisar os mais ricos criadores de gado do município, assim como
as charqueadas surgidas na passagem do século XIX para o XX. Tais
1. Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da
Universidade Federal de Pelotas.
2. Essas ideias já estão mais do que consolidadas na historiografia. Ver, por exemplo, ZARTH
(1997), OSÓRIO (2007), GARCIA (2005), FARINATTI (2010), MATHEUS (2016).
281
SUMÁRIO
Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha:
o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930)
produtores, juntamente com suas famílias, configuravam parte de
um grupo da elite econômica da fronteira sul, concentrando não
apenas a riqueza fundiária da região, como também o prestígio social
e o acesso aos principais espaços de poder político. Pode-se dizer,
inclusive, que o período aqui estudado se constituiu no auge de poder
político e econômico dessa classe de grandes proprietários rurais.
Um estudo focado somente em Bagé pode revelar aspectos singulares
referentes a esse município, mas também lançar luz para mecanismos
de reprodução social comuns a toda a região da campanha, que ainda
merecem ser mais bem estudados.
Contudo, num período amplo de quase um século, muitas
transformações de ordem econômica e social afetaram aquele
território. Estudando a região da campanha rio-grandense, Stephen
Bell (1998) percebeu que a modernização das técnicas produtivas na
pecuária regional, aliadas ao avanço de práticas mais capitalistas na
cultura dos campos, ocorreu em três etapas. Num primeiro momento,
entre 1850 e 1870, algumas poucas iniciativas foram tomadas, como
a importação de algumas raças cavalares e de carneiros merinos.
Com apoio do governo provincial, houve certo entusiasmo com a
ovinocultura, mas ela acabou não vingando da mesma forma como
nos países do Prata. Posteriormente, entre 1870 e 1895, ocorreu de
fato o investimento em novas raças cavalares inglesas e bovinas
trazidas do exterior. A criação dos primeiros hipódromos e clubes de
corrida promoveu uma maior popularização dessas iniciativas. Essa
também foi a fase do cercamento dos campos e da expansão da malha
ferroviária. Por último, as primeiras décadas do século XX marcaram a
entrada da pecuária regional nos moldes mais capitalistas e modernos,
dentro dos limites infraestruturais da região. As charqueadas, agora
com trabalhadores assalariados, tiveram que disputar o gado com os
primeiros frigoríficos, os engenheiros agrônomos começaram a ter
destaque no processo de modernização das técnicas agropecuárias,
surgiram associações de classe, periódicos especializados, exposições
e novas instalações destinadas a melhor a qualidade dos rebanhos.
Apesar de tal processo de modernização capitalista no campo
ter se realizado de maneira atrasada se comparado à Argentina e ao
Uruguai, a região da campanha foi a porta de entrada de tais inovações
técnicas.3 Neste sentido, irei me deter mais na primeira fase, analisando
a estrutura agrária bageense no meado do século XIX, os mais ricos
estancieiros e os níveis de concentração de riqueza locais, e na terceira
3. Sobre a história da pecuária gaúcha escravista e capitalista ver PESAVENTO (1980), ZARTH (1997), BELL (1998), FARINATTI (2010), GARCIA (2005, 2010) e LEIPNITZ (2010).
282
SUMÁRIO
Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha:
o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930)
fase, já no início do século XX, quando além da criação de gado aos
moldes já capitalistas, Bagé também se tornou um importante polo
charqueador regional. A partir desses dados, a análise da permanência
de algumas famílias na camada superior dessa hierarquia local também
se configura num dos objetivos finais do texto.
Bagé e sua elite agrária no meado do oitocentos
Creio não ser necessário realizar uma análise aprofundada a
respeito das origens do município de Bagé, pois outros autores já
o fizeram.4 Nesse sentido, basta mencionar que quando o exército
luso-brasileiro acampou nesse território sob às ordens de D. Diogo de
Souza, em 1811, já existiam algumas estâncias na localidade. Elas eram
oriundas das primeiras doações de sesmarias realizadas entre 1789
e 1797 e que chegaram a um total de 16 propriedades nesse período.
Posteriormente, entre 1800 e 1822, foram doadas mais 85 sesmarias
em terras que vieram a constituir o município de Bagé no século XIX.5
Nesse momento, a região já estava totalmente integrada ao sistema
econômico das charqueadas escravistas localizadas em Pelotas. Aliás,
foi justamente o surgimento dessas charqueadas, a partir da década de
1780, que criou uma grande demanda por gado vacum, fomentando a
migração para aquela fronteira aberta e a consequente expansão das
atividades pecuaristas com o uso do trabalho escravizado.6 Todos os
anos, os novilhos da região da campanha abasteciam as charqueadas,
que exportavam a carne-seca para o sudeste e o nordeste da América
luso-brasileira e os couros para os mercados do Atlântico Norte
(VARGAS, 2016).
Contudo, não se pode contar essa história sem mencionar
a questão da fronteira com o Estado Oriental do Uruguai, que até
a Guerra da Cisplatina (1825-1828) constituía-se numa província
brasileira. A anexação do território, ainda no período colonial, foi
muito favorável à economia pecuário-charqueadora rio-grandense.
Estancieiros luso-brasileiros compraram terras no país vizinho
por baixíssimo preço, estabeleceram propriedades de criação e
4. Para referências mais tradicionais, ver PIMENTEL (1940) e TABORDA (1959). Para uma
análise mais recente, ver MATHEUS (2016).
5. Sobre as doações e detalhes das mesmas, ver BRASIL (2009). Algumas dessas sesmarias
encontravam-se em terras que hoje pertencem a municípios que foram se emancipando de
Bagé ao longo dos anos, como Dom Pedrito, Hulha Negra, Aceguá e Candiota.
6. Sobre este processo, ver OSÓRIO (2007) e FARINATTI (2010).
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SUMÁRIO
Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha:
o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930)
arrebataram muitos bovinos para o mercado rio-grandense, legal e
ilegalmente, tanto em épocas de paz quanto em épocas de guerra.7
Décadas depois, os rebanhos uruguaios continuaram sendo
fundamentais para a ampliação e desenvolvimento das charqueadas
pelotenses. De acordo com Alvarino Marques (1987, p. 92), todos os
anos Pelotas recebia cerca de 100 mil novilhos vindos do Uruguai.
Não existem dados precisos sobre este comércio e muito menos sobre
o contrabando, mas, em 1864, o Presidente da Província declarou que
o Rio Grande do Sul absorveu mais de 130 mil reses do país vizinho.
Relatório Presidente da Província do Rio Grande do Sul, Espiridião
Eloy de Barros, de 1864, p. 60.8 Desnecessário dizer que Bagé
constituía-se em importante corredor de passagem dessas tropas de
gado, fazendo parte de um espaço econômico pecuário-escravista que
se estendia do interior do Uruguai até o complexo porto-charqueada,
localizado nas cidades de Pelotas e Rio Grande. As charqueadas
pelotenses abatiam, em média, de 300 a 350 mil novilhos por safra.
A oscilação dos preços do charque, do sal, dos couros, assim como a
criação de impostos e o encarecimento dos fretes, afetavam os preços
do gado e, consequentemente, os custos e ganhos entre os criadores
(VARGAS, 2016).
A inserção de Bagé nesse mercado de gado para o litoral sul
se deu com enorme destaque, movimentando a economia local,
atraindo novos moradores e possibilitando o crescimento se sua
população. Conforme Matheus, quando a capela de São Sebastião de
Bagé começou a ser construída, em 1815, o povoado contava com duas
mil almas. A Guerra dos Farrapos (1835-1845) foi bastante prejudicial
à economia regional e colaborou com a dispersão de muitas famílias.
Mas em 1846, um ano antes de ser elevada à condição de Vila, sua
população alcançou 4.104 habitantes. Em 1858 ela subiu para 12.342 e,
no Censo geral de 1872, chegou a 21.768 pessoas. A população cativa
sempre foi crescente, ultrapassando os 4.800 escravizados nesse
último ano (MATHEUS, 2016, p. 91-92). Em meio a esse processo,
Bagé tornou-se o segundo munícipio com o maior rebanho bovino
da província. Em 1858, quando esses dados foram reunidos em um
recenseamento agrário provincial, Bagé foi apontada como possuindo
7. Sobre a expansão luso-brasileira na Banda Oriental ver ALADREN (2012) e MANEGAT
(2015). Sobre o contrabando e o roubo de gado na fronteira, ver THOMPSON FLORES
(2014).
8. Relatório Presidente da Província do Rio Grande do Sul, Espiridião Eloy de Barros, de 1864,
p. 60.
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SUMÁRIO
Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha:
o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930)
260 estâncias de criação e 531.640 cabeças de gado vacum, ficando
atrás apenas de Alegrete, que tinha, respectivamente, 391 e 772.232.9
É nesse momento que inicio a análise a respeito de quem eram
os grandes estancieiros bageenses do período.10 Pesquisando todos os
inventários post-mortem de Bagé, Matheus localizou um total de 314
documentos com avaliação completa, entre 1820 e 1870. Sabe-se que
os inventários são fontes que sobre-representam as camadas mais
abastadas da sociedade estudada, mas na falta de censos agrários
mais detalhados ou outros documentos que possibilitariam entender
melhor a distribuição da riqueza, eles são comumente utilizados pelos
praticantes da história agrária e história econômica. É bem verdade
que eles refletem o patrimônio das pessoas no momento de seu
falecimento, inviabilizando uma análise das atividades econômicas
ao longo de uma vida. Contudo, os inventários possibilitam o acesso
a dados relevantes a respeito da estrutura produtiva, da disseminação
da escravidão, dos investimentos em terras e gado e da transmissão
de riqueza de uma geração para outra.11
Um dos primeiros aspectos destacados por Matheus diz
respeito à diversificação das atividades econômicas em Bagé. Não
foi raro encontrar proprietários que, além de criar gado, também se
dedicavam à pequena agricultura. “Ao invés da visão tradicional, que
há um bom tempo vem sendo desfeita, em que na Campanha praticavase somente a pecuária, vemos que em 43% dos estabelecimentos (e
este é um número mínimo) a agricultura era praticada” (MATHEUS,
2016, p. 141-142). Soma-se a isso o fato de que a criação também era
diversificada. Em apenas 22,5% dos inventários dos criadores de gado,
a pecuária bovina era a atividade exclusiva. Apesar dos rebanhos
vacuns serem muitos maiores, também se buscava criar outros tipos
de gados: de todos os 284 mil animais arrolados nos inventários, 79%
eram bovinos, 11% cavalares, 9% ovinos e 1% asininos. Os animais
compunham apenas parte dos bens dos inventariados. Juntos com
9. “Mapa numérico das estâncias existentes dos diferentes municípios da província, de que até
agora se tem conhecimento oficial, com declaração dos animais que possuem e criam, por
ano, e do número de pessoas empregadas no seu custeio” (Arquivo Histórico do Estado do
Rio Grande do Sul. Fundo Estatística. Maço 2, 1858).
10. Os dados elencados a seguir sobre os mais ricos estancieiros só foram possíveis de ser compilados porque o historiador Marcelo Matheus nos cedeu gentilmente a sua base de dados de
inventários post-mortem para análise. Além disso, para uma síntese da estrutura produtiva local
utilizo muitas das conclusões que o autor chegou na sua tese de doutorado (MATHEUS,
2016).
11. Sobre os usos possíveis dos inventários post-mortem, ver VARGAS (2013).
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SUMÁRIO
Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha:
o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930)
as terras e os escravizados eles atingiam mais de 80% do total dos
patrimônios (MATHEUS, 2016, p. 156-157).
Obviamente que essa riqueza estava concentrada nas mãos das
famílias mais ricas do período. Os 31 proprietários com os maiores
patrimônios somavam 10% dos inventários, mas detinham quase 50%
da riqueza total. Contudo, essa desigualdade foi aumentando com o
tempo. Matheus percebeu que os 10% dos mais ricos, entre 1820 e 1835,
possuíam 39% da riqueza total no período, mas na década de 1860, esse
índice chegou a 52,5% (MATHEUS, 2016, p. 163). Portanto, a partir do
meado do século XIX, alguns fatores econômicos favoreceram esse
maior enriquecimento, seguido de um aumento da concentração
patrimonial. Dois aspectos importantes dizem respeito à valorização
da mão de obra e das terras. Com relação à mão de obra, a Lei Eusébio
de Queiroz (1850) extinguiu o tráfico transatlântico, interrompendo
a oferta de africanos escravizados para o mercado brasileiro, o que
resultou num aumento dos preços desses trabalhadores cativos.
No mesmo ano, a Lei de Terras também regulamentou o mercado
fundiário, contribuindo com o encarecimento dos bens rurais, num
processo de valorização que já estava em vigor, visto o início do
fechamento da fronteira agrária.12
Esse é um bom momento para analisar quem eram os
proprietários mais ricos do período. Dentre os inventários trabalhados
por Matheus, a maior fortuna era a de Domingos de Souza Neto, irmão
do antigo general farroupilha Antônio de Souza Neto, que chegava a
309 contos de reis. Quando trabalham com valores monetários no
século XIX é comum os historiadores converterem os valores dos mil
réis para as libras esterlinas, pois a moeda inglesa foi mais estável
e sofreu menos com as flutuações inflacionárias, o que favorece as
comparações. Nesse sentido, o patrimônio de Domingos somou
28.410£ (libras esterlinas). Somente 12 bageenses, com inventários
abertos entre 1820 e 1871, ultrapassaram as 10.000£. Entre eles
estavam Pedro Rodrigues de Borba, Manoel Vieira da Cunha, José
Teixeira Brasil, Firmina de Souza Brasil, Joaquim Pereira Fagundes,
Alexandre Simões Pires, José de Souza Neto, Ana Florisbela da Silva,
entre outros (MATHEUS, 2016, p. 375).
Como a pesquisa de Matheus vai até 1871, o autor acabou não
garimpando em seu recorte temporal o inventário de João da Silva
Tavares (o Visconde de Serro Alegre), aberto em 1872. O chefe de
12. Estudando Alegrete, entre 1830 e 1870, Graciela Garcia concluiu que o preço médio das
terras no local aumentou 800%, enquanto o gado vacum apenas dobrou de valor (GARCIA,
2005, p. 25).
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SUMÁRIO
Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha:
o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930)
uma das famílias mais conhecidas de sua época, por conta de sua
riqueza, prestígio militar e poder político, era mais rico que todos
os estancieiros mencionados acima. Seu patrimônio atingia 41.790£,
com destaque para suas estâncias, seus 19 cativos e o rebanho de mais
de 10 mil animais, sendo 8 mil reses de criar.13 Além disso, deve-se
considerar que, por questões metodológicas, os inventários abertos
fora de Bagé não entraram na análise de Matheus. É importante
dizer isso, porque um dos mais ricos estancieiros bageenses também
merece ser mencionado aqui, apesar de seu inventário ter sido
aberto em Pelotas. João Antônio Martins deixou uma impressionante
riqueza de 88.529£ em estâncias, animais, imóveis urbanos, dívidas
ativas e escravizados, sendo que boa parte já estava nas mãos dos
seus muitos filhos, como adiantamento de herança.14
Como estou investigando os maiores criadores bageenses do
período, cabe algumas palavras sobre o tamanho dos seus rebanhos.
Como já foi dito, a antiga ideia de que a região da campanha era
povoada somente por grandes pecuaristas foi superada já faz
muito tempo. Estudando Bagé, Matheus confirmou o mesmo perfil
socioeconômico para a paisagem agrária local. Para o autor, “uma
quantidade significativa de pequenos produtores, com ou sem a
propriedade da terra, mas, de uma forma ou de outra, com acesso a
ela, também ocupava aquele espaço geográfico”. A maior parte dos
criadores era formada por pequenos produtores, para os padrões
da época: pelo menos 25% dos inventários possuíam de 1 a 100 reses
e outros 36% detinham de 101 a 500 reses. No entanto, esses 61%
concentravam somente 12% do total de reses de criar. “Enquanto isso,
os estancieiros com mais de 1.000 reses somavam 25% dos inventários,
mas concentravam 76,5% do rebanho” (MATHEUS, 2016, p. 166).
Portanto, estamos diante de uma grande concentração de gado
na localidade. Não surpreende que muitos desses maiores criadores
também estavam entre os mais ricos mencionados anteriormente.
Joao Antônio Martins detinha um rebanho de mais de 14.000 reses
de criar, seguido por João da Silva Tavares (8.000), Domingos de
Souza Neto (8.000), Serafim Correa de Barros (8.000), José Teixeira
Brasil (6.860), Manoel Antonio Severo (6.080), Manoel Vieira da
Cunha (4.796), Alexandre Simões Pires (4.253), Felisberto Silveira da
13. Inventário do Visconde de Serro Alegre, N. 62, Maço 2, Cartório do Cível e Crime de
Bagé, 1872, APERS. Para uma análise da trajetória do Visconde, ver a ótima pesquisa de
OLIVEIRA (2016).
14. Inventário de João Antônio Martins. N. 317, maço 22, Cartório de órfãos e provedoria de
Pelotas, 1850, APERS.
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SUMÁRIO
Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha:
o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930)
Rosa (3.330), entre outros. Alguns grandes criadores, com rebanhos
superiores a 2 mil reses, não figuravam entre as famílias mais ricas
do local. Os inventários são boas fontes para o estudo da riqueza,
mas eles refletem o patrimônio apenas na época da morte dos
proprietários, desconsiderando outras fases da vida. Outro problema
é que em alguns casos o processo não era levado adiante, por
dificuldades de avaliação ou por motivos familiares. Esse foi o caso
de Leonardo José Collares, estancieiro muito rico nesse período, com
muitas estâncias, escravizados e um grande rebanho, mas que teve o
inventário interrompido pelos herdeiros.15
Na realidade, a hierarquia social local não era tão simples de
ser medida. Casamentos, alianças políticas, participação em guerras,
a localização e o tamanho das terras, entre outros aspectos, influíam
na dimensão da riqueza e no prestígio social e uma análise mais
aprofundada sobre as elites locais mereceria um estudo à parte
(FARINATTI, 2010; VARGAS, 2021). Contudo, é possível destacar as
famílias Silva Tavares, Silveira Martins, Vieira da Cunha, Collares,
Souza Neto, Brasil, Simões Pires, Silveira da Rosa, entre outras, como
aquelas que concentravam uma maior riqueza e possuíam extensa
parentela. Algumas delas eram sesmeiras, possuindo grandes fazendas
de criação desde o início do século. Outras possuíam um maior acesso
aos espaços de poder político. Enquanto algumas estavam inseridos
em importantes redes de relações envolvendo militares, bacharéis,
charqueadores pelotenses e fazendeiros do Estado Oriental, algo que
também influía no mundo dos negócios (FARINATTI, 2010).
Além disso, não é coincidência que os maiores patrimônios
inventariados começam a aparecer entre os anos 1850 e 1870. Tratouse de uma conjuntura atlântica de grande expansão mercantil
(HOBSBAWM, 2000). O comércio de charque e dos couros
acompanhou as flutuações dos mercados internacionais, chegando
até os confins do Império do Brasil, estimulando uma maior demanda
por gado vacum. As charqueadas pelotenses atingiram seus recordes
em abates, ultrapassando os 400 mil novilhos no final da década de
1860 (VARGAS, 2016). Esse processo foi o mesmo que alavancou a
expansão capitalista para o interior da Argentina, promovendo a
importação de raças ovinas europeias, a explosão das exportações
de lã e o início da modernização da triticultura que faria sucesso
nas décadas finais do oitocentos (BARSKY, DJENDEREDJIAN,
2003; MARTIREN, 2016; SABATO, 1989). Também foi uma época na
15. Inventário de Leonardo José Collares, n. 158, 1859, Cartório da I Vara do Cível e Crime,
Bagé, APERS.
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SUMÁRIO
Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha:
o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930)
qual o mercado de terras esteve nitidamente mais aquecido, com
charqueadores e capitalistas comprando estâncias na campanha e
no Uruguai (VARGAS, 2016). Possivelmente tal conjuntura favorável
também estivesse se refletindo nos patrimônios inventariados.
Matheus percebeu que “da década de 1850 para a de 1860, o rebanho
ovino teve um aumento de 44,5 animais em média por inventário
para 108,5” e “apenas entre os criadores de gado vacum, de 53,5 para
149,5 animais em média” (MATHEUS, 2016, p. 150).
Os criadores mais ricos possuíam grande ingerência sobre o
mercado de gado na fronteira. Alguns deles compravam os novilhos
dos pequenos criadores, montavam tropas maiores com seus peões e
escravizados campeiros, e remetiam para Pelotas, lucrando também
como atravessadores (FARINATTI, 2010; VARGAS, 2016). Em Pelotas,
eles tinham acesso a artigos luxuosos da época, podendo também
desfrutar dos espaços de lazer e sociabilidade da cidade dos barões
do charque. Não é coincidência que muitas famílias ricas da região
da campanha possuíam casas em Pelotas.16 O mesmo vale para João
da Silva Tavares, que inclusive teve um de seus filhos, Joaquim da
Silva Tavares (Barão de Santa Tecla), atuando como rico charqueador
em Pelotas. João Antônio Martins, por sua vez, possuía muitas casas,
armazéns e terrenos em Pelotas, além de ações no Teatro Sete de
Abril, um piano e vários livros, demonstrando seu apreço pela
incipiente vida cultural pelotense.
No entanto, todo esse sistema econômico pecuário-escravista de
criação extensiva que vinculava a região da campanha ao complexo
charqueador-escravista do litoral sul começou a enfrentar fortes crises
nas últimas décadas da monarquia. A superprodução e a retração dos
mercados consumidores do charque, a incapacidade em competir
com os produtores platinos, o encarecimento das terras, as divisões
de herança de geração para geração, a decadência das charqueadas
escravistas e o próprio fim da escravidão, trouxeram dificuldades para
os produtores rurais da fronteira, que tiveram que se adaptar a um
novo cenário cada vez mais capitalista e repleto de transformações no
meio rural.17 Essa crise foi capaz de derrubar as mencionadas famílias do
topo da hierarquia social local? É sobre os estancieiros e charqueadores
de Bagé nessa nova conjuntura que tratarei a seguir.
16. Em Bagé, por exemplo, a sesmeira Ana Pedrosa de Jesus e seu esposo Tenente Ignácio
Marques da Silva possuíam, entre seus bens inventariados, um sobrado em Pelotas (BRASIL, 2009, p. 89).
17. Para maiores detalhes desse processo, ver BELL (1998), CORSETTI (1983), ZARTH
(1997), LEIPNITZ (2010), GARCIA (2010), VARGAS (2016).
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Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha:
o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930)
A era da modernização capitalista (1895-1930)
Agora saltamos algumas décadas para frente. No Rio Grande do
Sul, a instabilidade política inaugurada com o advento da República e a
resistência ao novo regime resultaram na Revolução Federalista (18931895). Bastante estudada, a guerra dispensa maiores comentários, mas
basta lembrar que ambas as famílias mencionadas anteriormente,
ou seja, os Silveira Martins e os Silva Tavares, tiveram personagens
centrais entre as lideranças que se opuseram militarmente ao governo
do Partido Republicano Rio-grandense (ANDRADE, 2017). Mesmo
que tenham sido derrotados, tal protagonismo mostra a força de
mobilização daquela elite agrária oitocentista. A guerra trouxe grande
prejuízo para a economia regional, mas estabilizado o novo regime, a
campanha foi palco de importante onda de modernização capitalista.
Conforme a análise de Stephen Bell, esse período trouxe
algumas inovações significativas e atingiu toda a região da campanha
gaúcha, chegando com mais força em alguns municípios e com
menos força em outros. De acordo com o autor, uma das primeiras
transformações ocorridas na pecuária regional foi o cercamento dos
campos, iniciado nos anos 1870 e 1880 e que logo foi se espalhando
por toda a região. Quase que paralelamente, a expansão da
malha ferroviária em direção à campanha possibilitou o envio e o
recebimento de mercadorias com maior velocidade e segurança. A
linha Bagé - Rio Grande foi inaugurada em 1884 e, anos depois, as
charqueadas começaram a se proliferar pela fronteira oeste e sudoeste
do Rio Grande do Sul, podendo remeter seus produtos a custos mais
baixos. Contudo, a malha ferroviária no norte do Uruguai também
conectava os municípios da campanha gaúcha até Montevidéu, cujo
porto era mais bem preparado que o de Rio Grande para receber
navios de grande calado. Se tal alternativa em vender o gado ou o
charque aos comerciantes orientais não desfavorecia os produtores
rurais (sempre em busca dos melhores preços), ela prejudicava a
arrecadação de impostos do governo gaúcho (BELL, 1998).
No entanto, se esse contato com os platinos desagradava de um
lado, por outro ele era muito positivo, pois as relações estabelecidas
com os fazendeiros uruguaios facilitaram o acesso às cercas de arame
e ao melhoramento das raças bovinas, ovinas e cavalares. Além disso,
Bell demonstra como um certo conservadorismo e apego às práticas
tradicionais, denunciado pelos próprios vereadores e fazendeiros mais
progressistas da região da campanha, dificultou e atrasou a adoção das
inovações técnicas. Contudo, o autor também justifica que, em meio
290
SUMÁRIO
Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha:
o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930)
as guerras na fronteira e as crises econômicas no setor, a maior parte
dos criadores não possuía condições financeiras de investir e nem
motivação para tanto, visto as muitas precariedades regionais, como
a ausência de transporte qualificado, os problemas da barra do porto
de Rio Grande, a falta de crédito e de um apoio estatal mais efetivo.
Outro fator apontado por Bell foi a resistência da população pobre do
campo às disciplinas impostas pelo mundo do trabalho capitalista no
pós-abolição. No Rio Grande do Sul não havia um código legislativo
rural como na Argentina e no Uruguai que reprimisse os mais pobres,
buscando enquadrá-los para o trabalho nas estâncias. Os estancieiros
queixavam-se dos problemas com a mão de obra, mas também com
o banditismo rural que assolava a fronteira em épocas de crise e que
não era combatido pelas autoridades locais (BELL, 1998).
Mesmo com as mencionadas dificuldades, algumas parcelas
das elites locais acabaram liderando o processo de modernização,
tanto em iniciativas individuais quanto nas associações criadas por
eles próprios. Elas promoviam reuniões, publicações especializadas,
exposições e feiras de gado. Em Bagé, a Associação Comercial, que
também reunia pecuaristas, foi fundada em 1898. Os primeiros
leilões de gado ocorreram em 1901 e a Associação Rural do município
foi fundada em 1904. Em 1906, preocupado com o melhoramento
das raças bovinas, Leonardo Brasil Collares organizou o primeiro
registro genealógico do Estado, com sede em Bagé. Em 1914, a
instituição transferiu-se para Pelotas, onde ficou até 1921, quando foi
fundada a Associação do Registro Genealógico Sul-Rio-grandense.
As assinaturas na ata de 1906 revelavam a forte presença de novos
profissionais que tiveram papel central na pesquisa e modernização
agropecuária em todo o Brasil: os engenheiros agrônomos (VARGAS,
2019; MENDONÇA, 1997).18
O próprio Leonardo Collares, que era um dos principais
pecuaristas de Bagé e grande criador da raça Hershey, também era
formado pela Escola de Agronomia e Veterinária de Pelotas, fundada
em 1883. Essa instituição enfrentou muitas dificuldades iniciais e
formou sua primeira turma em 1895. Contando com o apoio das elites
municipais, ela foi de grande importância para formar os primeiros
profissionais dessas áreas no Rio Grande do Sul. Filhos de fazendeiros
de vários municípios da região da campanha estudaram na instituição,
mas demorou muito para que a profissão de agrônomo fosse
18. Pelas assinaturas na ata, percebe-se a presença de outros agrônomos formados em Pelotas,
como Alpheu Braga, José Antônio Martins, Aluisio Escobar, Luiz Gomes de Freitas e Alfredo da Silva Tavares, além de coronéis, charqueadores e ricos pecuaristas.
291
SUMÁRIO
Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha:
o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930)
valorizada no processo de modernização e superação das crises que
afetavam a economia agrária regional. Com o tempo, os engenheiros
agrônomos encontraram emprego nas propriedades agropecuárias
de todo o Estado e também na burocracia governamental (VARGAS,
2019). Os engenheiros agrônomos personificavam a união entre os
avanços científicos e a tradição agrária local. Com a finalidade de
evitar doenças e melhorar os rebanhos, houve também uma maior
preocupação com a higiene dos estabelecimentos, o que resultou na
construção de banheiros carrapaticidas – acessíveis apenas para os mais
abastados criadores. Em 1914 foram registrados 86 desses banheiros
em todo o Rio Grande do Sul e Bagé, com 20 deles, vangloriava-se
de ser o município com o maior número (PESAVENTO, 1980, p. 119).
Além disso, os conhecimentos científicos também foram acionados
na melhoria das pastagens. Conforme Bell (1998), uma das saídas foi
o cultivo da alfafa, que também foi praticado em Bagé.
Para uma contextualização mais detalhada, entre as décadas de
1900 e 1930, utilizarei os dados de uma fonte documental muito pouco
trabalhada: os Almanacks Laemmert.19 Tais publicações surgiram no
Rio de Janeiro, ainda no meado do século XIX, e tinham como objetivo
divulgar dados estatísticos populacionais, comerciais e referentes aos
estabelecimentos mercantis, agrários e socioprofissionais de diferentes
partes do Brasil. No caso do Rio Grande do Sul, os mencionados
indicadores são mais completos e recorrentes a partir do século
XX.20 Em 1907, por exemplo, o capítulo referente a Bagé dizia que o
município possuía 35 mil habitantes e era rico em jazidas de carvão,
ferro, mármore, granito, mas que a principal atividade econômica era
a pecuária. Ao elencar os estabelecimentos, o documento evidencia a
presença de correeiros, curtumes, lombilharias, sapatarias, leiterias,
barracas de couro, vendedores de gado, além de outras atividades
vinculadas direta e indiretamente aos produtos da criação, como
açougues e charqueadas.
Para uma melhor dimensão da evolução das atividades da
pecuária e da charqueada no período, assim como os principais
proprietários desses ramos de atividades, tomo como parâmetro
o primeiro ano de cada década (1911, 1921 e 1931). Os Almanacks, a
partir da década de 1910, começam a ficar mais completos, trazendo
19. A coleção está disponível online no site da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, com o
título “Almanak Laemmert: Administrativo, Mercantil e Industrial (RJ)”. Ver http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/ (Último acesso em 15 de março de 2021).
20. Para um exemplo do uso dos Almanacks para o estudo de Pelotas ver VARGAS; PERES
(2020).
292
SUMÁRIO
Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha:
o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930)
informações mais qualitativas. Em 1911, sobre a agricultura, ficou
registrado: “É exercida em pequena escala e quase se limita
para o consumo particular. O cultivo de vinha tem progredido
extraordinariamente. Os vegetais cultivados são as videiras, árvores
frutíferas, batatas doce e inglesa, cebolas, ervilhas, favas, feijão, milho,
trigo, repolho, alfafa, etc.” Com relação aos produtos agrícolas, pouco
mudou em 1921. No entanto, em 1931, aparecia a produção de arroz
como um dos destaques.
O carro-chefe da economia, como foi dito, era a pecuária e a
charqueada e, sobre a atividade criatória, o Almanack de 1911 deixou
registrado que Bagé possuía cerca de 300 mil cabeças de gado bovino,
sendo “alguns milhares da raça Durham, Hereford, Zebu, Holandesa
e outras”. As ovelhas, por sua vez, somavam 190 mil, com destaque
para “as raças Rambuillet, crioulas e outras”. Sobre os cavalos,
registraram que os criadores faziam “cruzamento com os Percherons
e Arabes, contendo as fazendas e estabelecimentos congêneres,
26.000 animais”. Dez anos depois, em 1921, Bagé já contava com mais
de 46 mil habitantes. Sobre a pecuária, foi anotado que o município
possuía 244 mil bovinos, 176 mil ovelhas e 26.500 cavalos – todos eles
das mesmas raças mencionadas anteriormente. Caso a fonte esteja
correta, é interessante perceber que houve uma diminuição nos
rebanhos. É sabido que na década de 1910, a pecuária vinha sofrendo
forte crise e a diminuição dos rebanhos foi ponto de debate na União
dos Criadores.21 No entanto, em 1931 os rebanhos voltaram a crescer,
pois o documento apresenta 450.000 cabeças de gado bovino,
igualmente das raças Durham Hereford, Zebu, Holandesa e outras,
e 420 mil ovelhas das raças Rambuillet, crioulas e outras. Sobre os
cavalos, manteve-se o registro aproximado de 26.500 animais.
Certamente os dados do Almanack possuem problemas e
muitas vezes os autores ficavam sem atualizar as informações, apenas
repetindo informações de um ano para o outro. Isso não inviabiliza o
uso do documento, mas encoraja futuros pesquisadores a confrontálo com outras fontes. Além disso, é importante considerar que essas
oscilações tanto no tamanho dos rebanhos, quanto nos ritmos de
abate nas charqueadas eram comuns desde o século XIX, mas no
geral, tanto o tamanho dos rebanhos quanto o volume de produção de
charque aumentaram bastante se comparados esses dados com o do
21. Conforme Pesavento, o Estado teve que intervir para que as vacas não fossem abatidas, o
que dificultava a reprodução dos rebanhos. Outras queixas comuns diziam respeito às epizootias. É possível também que o alto nível de abate ocasionado pelo aumento da demanda
durante a Primeira Grande Guerra também tenha favorecido a diminuição dos rebanhos
(PESAVENTO, 1980, p. 79-109).
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SUMÁRIO
Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha:
o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930)
período escravista. Portanto, as charqueadas gaúchas não reduziram
a sua produção durante a Primeira República. As estatísticas das
exportações rio-grandenses mostram que após o fim da escravidão o
charque continuou a ser vendido em altas quantidades. Apenas para
nível de comparação, durante o auge das charqueadas pelotenses
nos anos 1860, o Rio Grande do Sul exportou em média 30 a 35 mil
toneladas do produto, ultrapassando as 40 mil somente em um dos
anos (VARGAS, 2016). Já nas décadas de 1910 e 1920, o Rio Grande
do Sul exportou, respectivamente, uma média de 45 mil toneladas
na primeira e 52 mil na segunda. Ou seja, a produção aumentou em
mais de 50%. Outro indicador importante diz respeito aos rebanhos
destinados ao charque. Entre 1911 e 1915, por exemplo, o Rio Grande
do Sul abateu 3.213.595 cabeças de gado, o que representa uma média
de mais de 640 mil novilhos abatidos por safra – índice bem acima do
meado do século XIX (DALMAZO; CARVANTES, 2004, p. 109; 158).
Portanto, o que ocorreu nesse novo contexto foi que as
charqueadas passaram a funcionar com mão de obra livre e assalariada
e se espalharam por todo o Rio Grande do Sul, deixando de ter Pelotas
como principal polo produtor. Aliás, em 1920, Bagé era o município
que mais possuía charqueadas desse novo padrão, apresentando
seis estabelecimentos. Seus ritmos de abate eram superiores às
charqueadas escravistas, assim como a média de trabalhadores e
funcionários. As charqueadas bageenses abatiam, em média, de 40
a 60 mil, sendo que um dos estabelecimentos do Visconde Ribeiro
Magalhães chegava a abater mais de 80 mil em alguns anos, reunindo
de 470 a 500 trabalhadores nas safras (PESAVENTO, 1980, p. 170171; BOUCINHA, 1993). Em comparação, as maiores charqueadas
escravistas de Pelotas, nos anos 1870, poucas vezes passaram das
20 mil reses abatidas, e tinham de 60 a 70 escravizados alocados
diretamente no estabelecimento (VARGAS, 2016). Além disso,
somando charqueadas e frigoríficos, Bagé também apresentou as
maiores cifras de abate de gado vacum na década de 1910, com uma
média de 130 mil cabeças nos anos em que esteve na frente, muito
acima dos demais municípios (BICA, 2017, p. 21).
Se os Barões do charque pelotenses dos anos 1850 a 1880
diversificavam seus negócios, os seu congêneres das décadas de
1910 e 1920 o faziam ainda mais, pois os ramos favoráveis aos
investimentos de capital eram os mais variados. Emílio Guilayn,
por exemplo, também inverteu capitais em uma casa de câmbio, foi
proprietário da empresa que fornecia energia elétrica na cidade, teve
uma companhia de seguros, um moinho, entre outros investimentos.
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SUMÁRIO
Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha:
o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930)
Fundador da Associação Comercial de Bagé, em 1898, ele também
foi deputado estadual pelo PRR. A maior parte dos charqueadores
também atuava na criação e/ou no comércio, mas nenhum deles se
comparava ao Visconde Ribeiro Magalhães. Em 1906, Antônio Nunes
Ribeiro Magalhães recebeu esse título de nobreza do Rei de Portugal,
seu país de origem. Em 1907, foi classificado como um dos 20 maiores
industriais do Brasil. Sua trajetória exibia muita riqueza e ostentação,
tendo construído um grande palacete na cidade de Bagé. Exercendo
amplamente a caridade, ele também “construiu um amplo complexo
urbano e industrial, composto por vila de operários, indústrias,
igreja, teatro, hospital, quadra de tênis, serralharia, olaria”, entre
outros, além de armazém e padaria que empregavam 140 pessoas
(ASSUMPÇÃO NETO, 2015, p. 54). Em 1914, ele foi apontado como
um dos maiores criadores de gado do Rio Grande do Sul, com 15.600
cabeças bovinas (PESAVENTO, 1980, p. 119).22
Apesar das impressionantes trajetórias empresarias como a do
Visconde, a era de ouro das charqueadas bageenses durou pouco
se comparada a outros ciclos econômicos regionais na história
do Brasil. É possível perceber isso comparando a presença dos
charqueadores bageenses arrolados no Almanack em 1911 com os
anos de 1921 e 1931. No primeiro ano foram listados os seguintes
estabelecimentos: Companhias Anonimas (Saladero S. Domingos),
Freitas, Guilayn & Cia (Saladero S. Antonio), Serafim Gomes & Irmão
(Saladero S. Martin), Saladeros Industrial e Santa Tereza (ambos
do Visconde de Magalhães). Em 1921, continuavam a funcionar os
mesmos estabelecimentos. No entanto, compilando dados de 1920,
Sandra Pesavento também lista mais uma charqueada nesse ano, a
São Miguel, de propriedade de Miguel Vinhas & Cia, que havia sido
fundada em 1914.23
Contudo, em 1931 é possível notar uma reconfiguração do setor.
Com o falecimento do Visconde Ribeiro Magalhães, em 1926, outros
empresários surgiram como proprietários de novas charqueadas:
Augusto Dupont & Cia. (Charqueada Santa Rosa), Custodio Gomes
& Cia (São Miguel, Rio Negro), Prates, Moglia & Cia. Ltd. (Santa
Teresa), Cia. Saladeril Bageense, Industrial (São Matheus), Suñe &
Cia (São Domingos), Saraiva & Cia (Santo Antônio), Sicca Blois & Cia
(Apheby), B. Lignon (no Rio Negro). Portanto, é visível que alguns
22. Sobre as charqueadas do visconde, ver também BOUCINHA (1993) e SOARES (2006).
23. O Visconde Magalhães havia fundado a Santa Teresa em 1897 e a Industrial em 1908. A
San Martin era de 1900, a Santo Antônio de 1904, mesmo ano da S. Domingos, que pertencia à Tamborindeguy & Costa. (PESAVENTO, 1980, p. 170-171)
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SUMÁRIO
Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha:
o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930)
empresários não conseguiam ficar muito tempo nesse ramo de
atividades. Talvez, tal permanência nem fosse do interesse de alguns,
podendo os saladeros serem tidos como alvos de inversões sazonais.
No entanto, a impressão passada pelos principais estudiosos do tema
sugere que as charqueadas dessa época nunca foram um investimento
muito seguro para a maioria dos seus proprietários, pois, apesar de
enriquecer alguns dos maiores investidores, eles sempre tiveram o
“fantasma” dos frigoríficos os rondando.24
De acordo com Pesavento, a pecuária regional vivenciou diversas
crises ao longo das primeiras décadas do século XX, com pequenos
momentos de euforia. E ao longo de todo esse período, vários
criadores com visão mais progressista alertaram para a necessidade
de superar-se o ciclo das charqueadas e iniciar uma nova etapa. Os
frigoríficos já eram uma realidade no Uruguai e na Argentina, que
lentamente foram diminuindo sua produção de charque. Em 1916, esses
pecuaristas gaúchos se associaram a partir da União dos Criadores, e
promoveram a fundação da Companhia Frigorífica Rio Grande, em
Pelotas. Em 1920, o próprio frigorífico ainda fabricava charque, mas
um ano depois, por ausência de capital e investidores, foi vendido
para uma firma inglesa.25 A entrada das companhias frigoríficas
estrangeiras, como Armour, Swift e Anglo, em vários municípios da
fronteira, foi lentamente destruindo a resistência dos charqueadores
da região da campanha. Os anos 1940 foram derradeiros e com a
expansão dos frigoríficos, as charqueadas passaram a diminuir cada
vez mais a sua produção, abastecendo somente o mercado local, até
que a democratização das geladeiras domésticas fosse um dos últimos
golpes no setor (BARRAN; NAHUM, 1967).
É importante considerar que os charqueadores de Bagé eram
um grupo distinto de investidores locais. A maioria não pertencia às
tradicionais famílias criadoras de gado do século XIX. Tratavam-se de
comerciantes e capitalistas (muitos deles estrangeiros), com negócios
na pecuária, que tinham na charqueada um dos seus investimentos.
Contudo, eles não se constituíam em um grupo apartado social e
economicamente dos criadores bageenses. O pecuarista Dr. José F.
Freitas, por exemplo, era sócio da charqueada de Emílio Guilayn e
ambos tinham como gerente outro pecuarista: Pedro Candido Borba.
Os Moglia, que aparecem como grandes criadores em 1931, tinham
24. Refiro-me aqui principalmente aos estudos de PESAVENTO (1980), BELL (1988) e
VOLKMER (2017).
25. Em 1924, tornou-se o conhecido Frigorífico Anglo. Para maiores detalhes ver MICHELON (2012).
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SUMÁRIO
Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha:
o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930)
em Rodolpho Moglia o gerente das charqueadas do Visconde Ribeiro
Magalhães. Além disso, muitos dos charqueadores também eram
criadores, como o próprio Visconde.
As mesmas informações reunidas a respeito dos charqueadores
podem ser expostas para os estancieiros bageenses. Em 1911, o
Almanack elencou como os “Principais fazendeiros e criadores”
de Bagé os proprietários Leonardo Collares Sobrinho, Henrique
Silveira da Rosa, Dr. Orlando Pereira Brasil, Eugenio M. de Sousa,
Manoel Alves Sarmento, o Visconde Ribeiro Magalhães, Antonio
Torrescasana, Alvaro José Correa, J. José Silveira, Comendador
Candido Xavier de Azambuja e Pedro Candido B. Borba. Somam-se a
esses os coronéis José Octaviano Gonçalves, Thomas Mercio Pereira,
Antônio Barbosa Netto e José Bonifácio da Silva Tavares. Em 1921,
todos os proprietários acima mantiveram-se entre os principais, com
exceção do coronel José O. Gonçalves. Contudo, somavam-se a esses
outros, como Andre Aribilaga, Antonio A. de Assumpção, Antonio
Costa & C., Antonio Paiva, Feliciano G. Vieira, Francisco e Leopoldina
Paiva, Henrique Neto, Ismael Pereira, Manoel Zeferino Pardomo,
Nepomuceno Saraiva, Raulino Teixeira, Sá & Filho, Viúva Gervasio &
Filhos e o Dr. José Francisco de Freitas.
Agora examinamos o Almanack de 1931. Dos 15 listados em 1911,
apenas Leonardo Collares Sobrinho, Henrique Silveira da Rosa, Dr.
Orlando Pereira Brasil, Eugenio M. de Souza, Manoel Alves Sarmento,
Coronel Antonio Barbosa Netto e J. José Silveira permaneceram entre
os principais fazendeiros e criadores. Dos novos 14 proprietários que
ingressaram na lista de 1921, somente Andre Aribilaga, Antonio A.
de Assumpção e Feliciano G. Vieira surgem com os mesmos nomes
sociais em 1931.26 Contudo, engana-se quem pensa se tratar de uma
substituição dos principais estancieiros por outros. Quando se olha
para as famílias ao invés dos indivíduos, é possível perceber que os
patrimônios estavam nas mãos das mesmas parentelas, podendo
ser constituídos por venda, casamento, sociedade ou herança.
Antonio Torrescana, por exemplo, agora era representado somente
pela Viúva Torrescana. Ao lado da Viúva Gervásio & Filho ela era
uma das duas únicas mulheres da lista. Nesse meio tempo, outros
26. Os Assumpção, de rica família charqueadora pelotense, estavam fortemente vinculados por
laços matrimoniais aos Silva Tavares, que além de criadores em Bagé também tinham um
membro de sua família que era charqueador em Pelotas, o Barão de Santa Tecla. Feliciano
Gonçalves Vieira, por sua vez, era herdeiro do advogado dos Silva Tavares e que também se
tornou estancieiro em terras que daquela família. Quando Feliciano “criava seu gado leiteiro
“Shortorner”, em 1903, inaugurou uma moderna queijaria com produção de queijos vendidos na cidade de Bagé”. (FONTTES; VIEIRA, 2005, p. 96-99).
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SUMÁRIO
Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha:
o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930)
fazendeiros faleceram e o Doutor Freitas agora era representado
pelos “Herdeiros de José Francisco de Freitas”. Um outro Freitas
agora aparecia como Freitas Mercio & Cia, justificando a saída de
Thomas Mercio Pereira da lista. O comendador Candido X. de
Azambuja deu lugar a Armando Xavier de Azambuja, Ismael Pereira
deu lugar aos Irmãos Pereira, enquanto Manoel Pardomo agora era
Manoel Zeferino Pardomo, Sá & Filho. Os Paiva, que antes tinham
Francisco e Leopoldina, agora estavam acompanhados de Antônio
Paiva. A família Netto continuava com Antônio B. Netto e Henrique
Netto. Os Collares, além de ter a permanência de Leonardo, agora
também tinham Thomaz Collares e João Cirne Collares. E o coronel
Silva Tavares agora estava representado por Carlos A. Silva Tavares.
Portanto, quando se toma as três listagens em conjunto, é
possível verificar a presença de algumas famílias entre os “principais
criadores”. Não é possível saber se somente os critérios de riqueza
foram acionados para a composição dessa relação, uma vez que o
prestígio social e o pertencimento a famílias tradicionais do lugar
também deviam afetar as classificações sociais a respeito de quem
era a elite pecuarista de determinado local. Mas o que se pode
perceber é uma relativa permanência de algumas famílias entre os
maiores fazendeiros e criadores de gado de Bagé desde meados do
século XIX até as primeiras décadas do século XX. Famílias como os
Silva Tavares, Souza Netto, Silveira da Rosa, Corrêa, Collares, Brasil
e Mércio (que eram grandes criadores em Dom Pedrito) apresentam
um ou mais representantes. Chama atenção a ausência dos Martins
nessas listas. Contudo, recorrendo a uma análise da história das
estâncias de Bagé pude verificar que eles estavam ali, com muitas
propriedades, incluindo terras em Aceguá e Candiota.27
A compilação de estâncias de Bagé realizada por pesquisadores
do município acabam contribuindo bastante para a reconstituição da
história dessas propriedades, assim como de sua transmissão para
herdeiros e outros proprietários. Ao reconstruírem as genealogias
dessas principais famílias, fica evidente as alianças matrimoniais, o
que poderia colaborar para tornar o grupo bastante coeso em termos
de interesses políticos e econômicos. Nesse sentido, considerando27. Algumas terras dos Martins foram vendidas para outros proprietários, como o Visconde
Ribeiro Magalhães, por exemplo. Os muitos laços matrimoniais das herdeiras colocaram outras propriedades como pertencentes a outras famílias. Esse foi o caso dos Sarmento, apenas
para dar um exemplo. Além disso, havia terras que posteriormente passaram a pertencer aos
municípios vizinhos, o que justifica sua ausência no Almanack. No entanto, Fonttes e Vieira
arrolam as estâncias “Cinco Salsos” e São José” como pertencentes a essa família durante a
Primeira República (FONTTES; VIEIRA, 2005).
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SUMÁRIO
Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha:
o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930)
se a permanência de muitas dessas famílias enquanto grandes
pecuaristas desde o início do século XIX, quando ainda criavam
seu gado em vastas terras sem aramado e explorando o trabalho
escravizado, pode-se considerar que a sua história se confunde com
a própria história do município. No entanto, não devemos esquecer
que existem outras histórias que também precisam ser contadas,
envolvendo a maior parte da população do local, muitos dos quais
já estavam vivendo naquelas terras antes da chegada dessas famílias.
Considerações finais
O presente capítulo investigou os mais ricos criadores de gado
em Bagé no meado do oitocentos, época no qual a criação extensiva
era realizada com a utilização do trabalho escravizado, em fronteiras
ainda mal definidas e em meio a muitas guerras. Muitas das famílias
mais ricas no período haviam recebido sesmarias ainda no período
colonial, mas outras vieram décadas depois, atraídas pela demanda
por gado provocada pelas charqueadas pelotenses. A sociedade
bajeense nessa época apresentou altos índices de concentração de
riqueza nas mãos de poucos proprietários, expressando uma estrutura
socioeconômica comum em todo o Brasil. Na virada do século XIX
para o XX, uma onda de modernização capitalista e inovações técnicas
atingiu todas a região platina, chegando primeiro na Argentina e no
Uruguai. Os motivos do atraso gaúcho eram estruturais, desde as
precariedades nos meios de transporte, no sistema de crédito e na
falta de apoio do governo, mas também refletiam o conservadorismo
de boa parte dos grandes proprietários rurais.
A incorporação das inovações técnicas passou pelo contato
com os fazendeiros estrangeiros, pelas iniciativas individuais de
alguns pecuaristas e pelas associações rurais locais. Nesse sentido,
como na maior parte do Brasil, a modernização capitalista do período
ocorreu de forma conservadora, mantendo boa parte das estruturas
sociais tradicionais. Participando e conduzindo todo o processo, as
principais famílias pecuaristas do oitocentos conseguiram manter-se
no topo da hierarquia social local até as primeiras décadas do século
XX, sendo que várias delas ainda possuem seus estabelecimentos
nos dias atuais. Tal fenômeno é bem distinto do ocorrido com as
charqueadas bageenses. Apesar de ter atraído muitos investimentos
ao longo da Primeira República e ter contribuído com a modernização
da cidade, o ciclo do charque em Bagé durou apenas algumas décadas
e sempre esteve sob a sombra ameaçadora dos frigoríficos.
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SUMÁRIO
Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha:
o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930)
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301
SUMÁRIO
Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha:
o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930)
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ZARTH, Paulo Afonso. História Agrária do Planalto Gaúcho. Ijuí: Editora da
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302
SUMÁRIO
303
SUMÁRIO
A FAMÍLIA DELABARY
Claudio Antunes Boucinha1
304
SUMÁRIO
A família Delebary
1
Introdução
A chegada dos irmãos franceses Martin Delabary e Bernard
Delabary, em 1844, estava associada a uma significativa onda
migratória que coincidiu com o fim da guerra civil de 1835-1845, na
então província de São Pedro do Rio Grande do Sul (BETEMPS, 2021a)
. O registro dessa chegada de imigrantes franceses, em 1844, em
parte, estava registrada (BETEMPS, 2021b). Sobre o nome da família
Delabary, é de origem basca (PATRONYME LABARY, 2021; CAMPIÓN,
2021). No caso de Domingas Landabouro Delabary, o sobrenome
Landabouro, versão francesa de
“Landaburu”,de origem basca,
possivelmente também de “Anhaux, Baigorry, Basse Navarre” ( LOS
VASCOS EN LA ARGENTINA BUSCADOR DE APELLIDOS VASCOS
(2021) ; STATISTICS AND MEANING OF NAME LANDABURU , 2021
; PATRONYME: LANDABURU ,2021; LANDABURU, 2021). Note-se
que os descendentes da família Delabary, acabam por arrendar terras
na região que foi fronteira entre Espanha e Portugal, no Tratado de
Madrid, em 1750, ocupação do território que se intensifica em 1801
( LANGBECKER e PERLEBERG, 2021; CAMARGO, 2021b) . A linha
demarcatória do Tratado de Madrid possivelmente foi decisiva na
ocupação do território que seria, mais tarde, Torquato Severo, Parada
Pons, Vila de São Sebastião (MORONI, 2021). No planejamento da
1. Mestre em História do Brasil(PUCRS). Licenciado em História(UFSM). Com contribuições
e análises, arquivos pessoais, pesquisa, de Diego Teixeira Delabary; Viviane Dias Borges;
Leandro Betemps.
305
SUMÁRIO
A família Delebary
futura estrada de ferro entre Bagé e S . Gabriel, publicados em 1876,
na escolha da direção da estrada, um dos caminhos elencados era
o da coxilha,”no Martin Delabary, a 37 km de Bage”(MORSING,
2021a). A história da família Delabary ajuda a esclarecer como foi
a ocupação da terra, na fronteira, bem como a formação de ideias
políticas na região da campanha gaúcha, os vínculos, próximos ou
não, com os maragatos. O impacto, os efeitos, dessa adesão aos
partidários de Gaspar Silveira Martins, pode-se avaliar na figura de
Anselmo Ibalburri Garrastazu, associado também à Aparício Saravia.
Anselmo Garrastazu, foi um antigo “maragato” (DIAS, 2021; SÁ, 1973,
p. 25; SARAVIA e GARCIA, 1956, p. 574; MONEGAL, 1942, p. 400;
MAIZTEGUI CASAS, 2005, p. 138; RELA, 2000, p.60; RELA, 2004, p.
211; GIORGIS, 2021a; GIORGIS, 2021b; GIORGIS, 2021c), fazendeiro
em Dom Pedrito (SULIANI, 2021).
O trabalho de
pesquisa denominado de “Biografia de
Martin Delabary”, de Diego Teixeira Delabary, tem características
especiais. Corresponde a uma preocupação antiga de muitas
famílias que, antes da Internet e da World Wide Web, centravase nas buscas em cartórios e organizações especializadas
em genealogia. Agora, são livros de origem europeia, antes
inacessíveis, combinados com documentos oficiais, fotografias e
outros guardados da família. Em mensagem eletrônica, Diego
Teixeira Delabary esclarece como foi feita a pesquisa:
“Eu sempre tive interesse em montar a árvore genealógica da família Delabary, mas o meu pai só sabia que
éramos descendentes de franceses, sem muitas informações adicionais. Um dia em 2003, quando estava
indo no ônibus de linha de Lavras do Sul a Bagé para
uma aula prática da faculdade de direito na Urcamp,
embarcou em São Sebastião um senhor grisalho que
sentou ao meu lado. Ele me perguntou como eu me
chamava. Ao responder, ele quis saber se eu era dos Delabary de Lavras. Com a resposta afirmativa, ele então
me falou que escrevera um livro sobre São Sebastião
que mencionava a minha família, o qual estava em suas
mãos. Ele me mostrou o livro, no qual havia um pequeno mapa com a casa das correntes e o túmulo dos
imigrantes franceses Delabary (era o túmulo de Martin
Delabary). Ele contou que a tradição oral de São Sebastião dizia que os primeiros Delabary eram conhecidos
no local como os Labary. O homem do livro se chamava
João Francisco Trein Leite e suas pesquisas me ajudariam muito a desvendar a minha árvore genealógica.
Posteriormente, lembrei que minha prima Gabriela
306
SUMÁRIO
A família Delebary
Delabary uma vez me disse que encontrou um livro sobre imigração no Brasil em uma biblioteca pública em
Itajaí (Santa Catarina) onde era dito que os irmãos bascos franceses Martin e Bernard Delabary emigraram
para o Brasil via Uruguai. Ela fotografou a passagem do
livro e me encaminhou. Não tenho o nome do livro.
Pelos idos de 2015, comecei a buscar informações sobre
a história da família Delabary. Fui até São Sebastião,
mas o senhor Trein Leite já havia falecido. Falei com
ex-funcionários e parentes dele e consegui cópias de alguns livros, bem como do mapa. A seguir, um morador
da Vila me mostrou o túmulo de Martin Delabary, atrás
da Casa das Correntes e bati algumas fotos dele. Pesquisando sobre imigração francesa no Rio Grande do
Sul, encontrei artigos de Leandro Betemps. Consegui
o contato dele, o qual me indicou alguns livros e sites
de genealogia basca. O professor Leandro Betemps
me indicou o livro “Franceses no Rio Grande do Sul”,
de Armindo Beux, no qual era informado que Martin
Delabary, um basco francês emigrou para o Uruguai
e entrou no Brasil por Pelotas em 1844. O professor
Betemps encontrou o registro original do setor de
imigração da época e me mandou uma foto. Nos sites
franceses de genealogia encontrei várias certidões digitalizadas de Martin Delabary, Bernard, Jean Delabary,
dentre outras na comuna de Anhaux na França. Em um
dos sites, consegui o contato do pesquisador basco, senhor Claude Lesgourgues, que obteve para mim as certidões originais dos Delabary em Anhaux nos registros
municipais que se encontram bem conservados. Após,
busquei as certidões de Pedro Delabary no cartório de
registro Civil de Lavras, o qual indicava que Pedro era filho de Bernard Delabary e Joana Salduberry. Com essas
informações, parti em busca de várias certidões da família Delabary no Bispado de Bagé. Em complemento,
fiz várias viagens ao Uruguai, localizando certidões em
Salto, informações em Montevideo e Tacuarembó, nos
registros civis e nos registros das igrejas. Obtive com
familiares uma antiga carta de Martin Delabary datada de 1877, que pertencia ao meu bisavô, José Cacildo
Delabary. Logrei encontrar no livro Os Diários da Revolução de 1893 de Joca Tavares mais informações sobre
os Delabary na casa das correntes. Os principais livros
pesquisados foram Coxilha de São Sebastião de João
Francisco Trein Leite, Diários da Revolução de Joca
Tavares e Franceses no Rio Grande do Sul de Armindo
Beux. Como o processo de pesquisa durou muitos anos
e foi feito de forma amadora, não tenho bem certeza da
ordem cronológica e da sucessão dos eventos”.
307
SUMÁRIO
A família Delebary
Biografia de Martin Delabary
“Martin Labary nasceu em Anhaux (França) no dia 1 de
setembro de 1816, filho de Jean Labary da casa de Pantxot de Lasse e de Louise Castilla, filha mais velha da
casa de Etcheverrybehere de Anhaux, bairro Chubitoa.
Anhaux é uma pequena comuna do país basco francês,
na Região da Baixa Navarra. Jean Labary, pai de Martin,
nasceu no dia 13 de outubro de 1786, na casa da família
em Lasse, chamada Pantxot, filho de Pierre ou Pedro de
Labary (lavrador) e de Jeanne Camino. Jean era lavrador
e depois se tornou funcionário da aduana na fronteira
com a Espanha. Louise Castilla, mãe de Martin, nasceu
em 3 de dezembro de 1797, na casa de Etcheverry, filha
de Martin Castilla (nascido por 1754), de profissão tosador de mulas e de Marie Etchebarne. Os Castilla possuíam duas casas em Anhaux, a casa Etcheverry e a casa
Etchebarne, no mesmo quarteirão Chubitoa, hoje desaparecida. A casa Etchebarne foi vendida em setembro
de 1799. Jean Labary e Louise Castilla se casaram em 6
de setembro de 1815, indo morar na casa Etcheverry, dos
pais de Louise. A família de Martin Delabary enfrentou
um período perturbado por duas guerras: da França
contra a Espanha (1791 a 1796) e as guerras napoleônicas
(até 1815), sendo que a região de Anhaux sofreu pilhagens e morte de gado pelos espanhóis, sendo também
forçados a alimentar as tropas de Napoleão. Na mesma
época a região sofreu com variações climáticas que afetaram as colheitas e com doenças que mataram o gado,
empobrecendo sobremaneira a região. Por outro lado,
a tradição basca era contrária à submissão dos jovens
ao alistamento militar obrigatório e muitos conscritos
emigraram para fugir do Exército. O costume de passar
toda a herança para o filho ou filha mais velha foi outro
fator que contribuiu para a diáspora basca. Nesse período, as Províncias Unidas do Rio da Prata na América
do Sul obtiveram a independência da Coroa Espanhola,
passando a buscar imigrantes, em especial no país
basco, para povoarem as grandes extensões de terra e
para o trabalho braçal. Foi nesse contexto que Martin
Delabary resolveu emigrar para a América do Sul, embarcando em 18382 em Bordeaux e desembarcando em
Montevidéu no mesmo ano. Seis anos depois, em 1844,
Martin Delabary ingressou no Brasil. No livro de registro de estrangeiros da cidade de Pelotas foi apontada a
chegada de Martin Delabary a já então cidade de Pelo-
2. Conforme data no “passe-port” de Martin. Arquivo particular de Diego Teixeira Delabary.
308
SUMÁRIO
A família Delebary
tas em 20/09/1844 3, conforme informação extraída de
Armindo Beux (BEUX, 1976). Em 1845 Martin Delabary
casou-se com Dominique Landabourou ou Gandabourou, sendo pais de Maria Doroteia Delabary (nascida em
28/03/1846) e de José Delabary (não identificada data de
nascimento). Maria Dorothea Delabary casou com Cadet Laurent Bordagorry em 23/09/1865, sendo pais de
Laurent Bordagorry, Eulalie Bordagorry e Maria Haydée
Bordagorry. Martin Delabary fixou-se na Vila de São
Sebastião (também chamada de Torquato Severo), hoje
pertencente ao município de Dom Pedrito/RS. Em São
Sebastião Martin e sua esposa (chamada, no Brasil, de
Domingas) construíram os primeiros ranchos no local
denominado ‘Casa das Correntes’ ou ‘Estância das Correntes’, instalando lá um armazém de secos e molhados,
onde o casal negociava todo o gênero de produtos necessários para a vida rural. A ‘Casa das Correntes’ de Martin
Delabary e Domingas Delabary foi o primeiro núcleo de
comércio da Vila de São Sebastião, conforme expôs João
Francisco Trein Leite no livro ‘Coxilha de São Sebastião’. Em 1870 Martin Delabary escreveu uma carta em
português para o seu genro Cadet Laurent Bordagorry, o
que permite concluir que além do francês e do basco, ele
dominava a língua portuguesa. Considerando que Martin viveu seis anos no Uruguai antes de partir para o Brasil, é possível que falasse espanhol também. Mantendo
a tradição basca, Martin desempenhava o papel de chefe da família Delabary figurando como testemunha em
todos os registros de casamento de seus parentes. Bernardo Delabary, irmão de Martin, nascido em 6 de dezembro de 1818, casou em 1839 com Jeanne Salduberri
(dita Joana no Brasil), emigrando para a América do Sul
por volta de 1850 e indo morar como o irmão no Brasil,
trabalhando nas terras arrendadas por Martin. Bernardo era sapateiro de profissão. Bernardo e Joana tiveram
dois filhos nascidos no Uruguai: Joana Delabary e Pedro
Delabary. Martin Delabary tornou-se um próspero comerciante na Casa das Correntes, sendo arrendatário de
terras no Distrito do Piraí em Bagé. Precisando de um
caixeiro para o seu comércio, Martin Delabary foi a Rio
Grande em busca de um profissional, encontrando no
Mercado Público local o jovem Antônio Nunes Ribeiro
Magalhães (futuro Visconde de Ribeiro Magalhães), o
qual foi contratado por Martin. Posteriormente, Antônio Nunes Ribeiro Magalhães tornou-se sócio de Martin
Delabary no armazém de secos e molhados, conforme
informa o professor Cláudio Antunes Boucinha em sua
3. Martin acabava de completar aniversário.
309
SUMÁRIO
A família Delebary
dissertação de mestrado ‘A história das Charqueadas de
Bagé (1891-1940) na literatura’. Ao contrário do que se
pensava anteriormente, o comércio de Martin Delabary
não ficava nas Três Vendas em Lavras do Sul, mas sim
na «Casa das Correntes», na coxilha de São Sebastião.
Na verdade, a localidade de Três Vendas em Lavras do
Sul só recebeu esse nome muito tempo depois, por volta
de 1930, quando José Cacildo Delabary (sobrinho-neto
de Martin Delabary, filho de Pedro Delabary e neto de
Bernardo Delabary) construiu uma casa de comércio
na localidade do Tabuleiro, juntando-se aos estabelecimentos comerciais de Alcides Munhoz e de Odorico
Soares, que ficavam bem próximos uns dos outros. Daí
o nome Três Vendas4. Martin Delabary ou apenas Delabary, como era conhecido na região, foi citado no livro
‘Diários da Revolução de 1893’, do General Joca Tavares
(AXT; CABEDA; SEELIG,2004), sendo informado que as
tropas do General Menna Barreto passaram pela Coxilha de São Sebastião em 23 de abril de 1895, acampando
no Delabary5. O comerciante Martin Delabary faleceu
entre 1880 e 1895 e seu túmulo está localizado nos fundos da ‘Casa das Correntes’, antigo local em que exercia
sua atividade de comerciante. O túmulo de Martin Delabary está localizado na vila de São Sebastião (também
chamada de Torquato Severo), na estrada que liga Bagé
à cidade de Lavras do Sul. Existem fotos da sepultura,
com o nome de Martin Delabary e a homenagem de sua
esposa Domingas Delabary (Dominique).6 Após a morte de Martin, sua esposa Domingas Delabary ingressou
com uma ação judicial contra a Fazenda Nacional, pedindo uma indenização7 pelos prejuízos decorrentes da
ocupação militar das terras que ela arrendava no Distrito do Piraí, em Bagé-RS. O Supremo Tribunal Federal confirmou o pagamento da indenização devida pela
apropriação de cavalos, éguas, potros, potrilhos e mulas,
e pela destruição de postes, aramados e plantações. Para
pagamento da referida indenização foi editado o decreto n° 3.247 de 4 de abril de 1899. O valor da indenização
4. Qual a relação da sepultura com a localidade de “Três vendas”, em Lavras?
“Não tem nenhuma relação. A localidade de Três Vendas fica bem antes da Vila de São Sebastião, onde está o túmulo de Martin Delabary. Segundo o livro ‘Lavras do sul na Bateia
do Tempo’, de Edilberto Teixeira, a localidade de três vendas fica na estrada para o Ibaré,
e consagrou-se com este nome por existirem, por um longo período, três casas comerciais
vizinhas, respectivamente de propriedade de José Cacildo Delabary, Alcides Munhoz e Odorico Antônio Soares”. Viviane Delabary.
5. No “labari” ou delabari.
6. Datas? “Na sepultura eu não localizei data, somente a homenagem de Domingas para o
Martin”. Viviane Delabary.
7. Seria interessante ver quantos pediram indenização para o governo federal.
310
SUMÁRIO
A família Delebary
foi de 400:750$030 (quatrocentos contos, setecentos e
cinquenta mil e trinta réis)”(DELABARY, 2021c).
Família Delabary: Genealogia
8
“A família Delabary ( DELABARY, 2021b) ou de Labary
(de Labari em basco) é originária da comuna de Anhaux,
na Baixa Navarra, no País basco francês, departamento
de Pirineus-Atlânticos, na hoje denominada Região de
Nova Aquitânia (França).
Dentre os ancestrais mais antigos da família, há notícia
de Arnalt Ochoa de Labari (ou Lavari), ‘señor de Cabañas’ de vacas em 1358 no Vale de Salazar, Reino de
Navarra. Em 1522, durante a Guerra de Navarra, Martin
de Labari, um escudeiro (mais baixo grau de nobreza
no Reino de Navarra, aspirante a cavaleiro) alistado em
outra capitania espanhola, recusou-se a participar do
assédio ao Castelo de Amaiur, de acordo com o registro,
‘porque era apaixonado por Navarra’. Ele foi imediatamente despedido (MONTEANO,2010). Em 1551 em
Pamplona na cerimônia de juramento dos foros perante
as Cortes de Navarra pelo Príncipe Filipe (futuro Rei Filipe II da Espanha), filho do Imperador Carlos V, Rei das
Espanhas, Don Miguel Perez de Labari foi o Procurador
(representante) da Boa Villa de Lumbier (FUEROS DEL
REYNO DE NAVARRA, 2021, p. 219), da Merindade de
Sangüesa, sendo que as boas vilas (burgos ou cidades
livres), também chamadas Universidades, eram um
dos braços das Cortes de Navarra, junto com os Braços
Militar e Eclesiástico. Há a referência ao padre Bernard
D›Aldax de Labary, ordenado padre em 1732, vigário de
Bussunarits e que se tornou presbítero em Irouleguy.
Especificamente no tocante à nossa9 família em linha
reta, apurei a existência de Pierre de Labary (nascido
em 1748, em Lasse), que casou com Jeanne Camino em
junho de 1784 (em Lasse) e tiveram um filho,
Jean de Labary (nascido em 13/10/1786, Lasse, na
França).
Jean de Labary casou com Louise Castilla (nascida em
03/12/1797, Anhaux, na França) em Anhaux no dia
06/09/1815 e tiveram dois filhos:
8. Pesquisas de Diego Teixeira Delabary.
9. Pesquisas de Diego Teixeira Delabary.
311
SUMÁRIO
A família Delebary
Martin de Labary (nascido em 01/09/1816, Anhaux, na
França) e
Bernard de Labary (nascido em 06/12/1818, Anhaux, na
França).
Os irmãos franceses Martin Delabary e Bernard Delabary
(registrados com esses sobrenomes nos documentos
brasileiros) provavelmente embarcaram em Bordeaux,
em dezembro de 1838 e desembarcaram na América do
Sul (em Montevidéu no Uruguai) , em 183810.
Martin Delabary casou em 1845 11 com Dominique Gendaburry (dita Domingas). O casal Martin e Dominique
teve, até onde foi apurado, dois filhos:
Maria Dorothea Delabary (nascida em 28/03/1846, em
Bagé-RS) e
José Delabary (não identificado o ano de nascimento),
que teria morrido12 sem deixar descendência.
Maria Dorothea Delabary casou com Cadet Laurent
Bordagorry em 23/09/1865, sendo pais de
Laurent Bordagorry,
Eulalie Bordagorry e
Maria Haydée Bordagorry.
Bernard Delabary (dito Bernardo no Brasil) casou
com Jeanne (dita Joana) Salaberry (ou Salduberry) em
Anhaux na França em 1839 13.
Há uma informação não confirmada que o casal teria
celebrado novo matrimônio na América do Sul em 1852
14
(em Salto, no Uruguai).
O casal Bernard Delabary e Jeanne Delabary (Bernardo
e Joana) teve, até onde consegui apurar, dois filhos:
Joanna Delabary e
Pedro Delabary.
Joanna (ou Juana) Delabary, (nascida em 1850, no Uruguai, e falecida em 28/11/1911, Bagé-RS, com sessenta e
10. Conforme data no “passe-port” de Martin. Arquivo particular de Diego Teixeira Delabary.
11. Martin, com 29 anos.
12. Atestado de óbito? Batismo? “Não procurei o atestado de óbito, nem o de batismo no
Bispado de Bagé, por não ter uma data referência. Essa informação foi obtida no livro do
João Trein Leite”. Viviane Delabary.
13. Bernard, com 21 anos.
14. Então, Bernard teria supostamente 34 anos.
312
SUMÁRIO
A família Delebary
um anos) casou com Anselmo Garrastazu (nascido em
24/02/1854, em Dom Pedrito/RS) em 20/10/1873 em Lavras do Sul/RS, sendo pais de
Júlia Garrastazu (nascida em 1881), que casou com
Emílio Grastattaro Médici em 1901, sendo pais do expresidente
1. Emílio Garrastazu Médici, nascido em 04/12/1905.
Pedro Delabary (nascido em 1851 e falecido em 12/11/1921,
Lavras do Sul-RS, com setenta anos), casou com Maria
da Conceição Soares e tiveram treze filhos:
Altamira Delabary (nascida por volta de 1881),
Trajano Delabary (nascido por volta de 1882),
Aidé Delabary (nascida por volta de 1883),
Corinna Delabary (nascida por volta de 1884),
José Cacildo Delabary (nascido em 28/03/1885),
Celina Delabary (nascida por volta de 1886),
Julieta Delabary (nascida por volta de 1885),
Breno Delabary (nascido por volta de 1889),
Octávio Delabary (nascido por volta de 1890)
Ercília Delabary (nascida por volta de 1891),
Loreta Delabary (nascida por volta de 1892),
Amadeu Delabary (nascido por volta de 1897),
Celso Delabary (nascido por volta de 1899) .
José Cacildo Delabary (nascido em 28/03/1885, em Lavras do Sul/RS e falecido em 18/05/1975, em Lavras do
Sul/RS, com noventa anos) casou com Hermozinda Antunes em 30/07/1906.
O casal teve os seguintes filhos:
Nelson Antunes Delabary (nascido em 16/11/1907),
Idorilda Antunes Delabary,
Nereu Antunes Delabary (01/03/1912),
Nadir Antunes Delabary (1915),
Napoleão Antunes Delabary (27/04/1919),
Nair Antunes Delabary e
Idelcina Antunes Delabary.
313
SUMÁRIO
A família Delebary
Do segundo casamento de José Cacildo Delabary, com
Zeferina Vargas de Freitas em 29/07/1936, nasceram os
seguintes filhos:
Maria Helenita Freitas Delabary,
Nezio Freitas Delabary,
Maria Edenar Freitas Delabary,
Noé Freitas Delabary e
Nairo Freitas Delabary.
Napoleão Antunes Delabary (27/04/1919) casou com
Maria Amália Leal Soares em 1945, sendo pais de
Boris Soares Delabary (09/10/1947),
Alan Tadeu Soares Delabary (1948),
Helio Napoleão Soares Delabary (26/11/1953),
Tasso Caubi Soares Delabary (30/11/1957) e
Tirso Soares Delabary (30/10/1960).
Helio Napoleão Soares Delabary (26/11/1953) casou em
07/01/1983, com Ceres Denise Oliveira Teixeira, em Lavras do Sul/RS e tiveram dois filhos:
Diego Teixeira Delabary (nascido em 19/06/1984, Feira
de Santana/BA) e
Marcio Teixeira Delabary (nascido em 19/02/1984, Feira
de Santana/BA)”.15
Guerra Civil de 1893
Ao aprofundar os dados fornecidos, o assunto invade outro,
a guerra civil de 1893 – 1895, no Estado do Rio Grande do Sul,
especialmente uma parte dos ataques à propriedade, durante o
conflito, com indenizações requeridas, posteriormente, aos cofres
públicos da nação. O general João Nunes da Silva Tavares, em 1895,
na pacificação, entre as condições enumeradas, estava a indenização
dos proprietários: “solicitava o direito de ‘requerer indenização por
prejuízos que sofreram com o abastecimento de forças do Governo
e outros em suas propriedades’’’(FRANCO, 1996, p. 143. Citado por:
PISTOIA, 2021, p. 132). O presidente Prudente de Moraes, respondeu
“Quanto à 3.ª condição - Cessada a luta armada no sul, não só os
rebeldes como os que lutaram pela legalidade e os que não tomaram
15. Pesquisa de Diego Teixeira Delabary.
314
SUMÁRIO
A família Delebary
parte na luta, ficarão todos com o direito salvo para reclamar, pelos
trâmites legais (...) a indenização (...)” ( ROSA, 1930, p. 208. Citado
por: PISTOIA, 2021, p. 133). Como se observa, o direito à propriedade
estava garantido; e era o Estado que garantia as indenizações para
todos os envolvidos. O tema dos ataques à propriedade, multas, muito
caro para Escobar (1983), foi abordado por Cristiane Debus Pistoia
(PISTOIA, 2021). Os efeitos econômicos e sociais desses ataques
a propriedade ainda exigem uma análise mais apurada para que se
possa observar a amplitude da destruição do Estado de direito, no
pós-guerra, especialmente sobre a garantia do direito de propriedade
que foi sonegada a muitos, enquanto milhares de gaúchos foram em
direção a fronteira, sem eira e nem beira, deixando tudo para trás,
para salvar as suas vidas, fato denunciado por Escobar. No caso de
Domingas Landabouro Delabary, arrendatária ou subarrendatária,
chama a atenção todo o longo processo até receber a indenização.
É preciso compreender o que realmente foi considerado saque das
propriedades e por qual viés foi feito o combate político por parte
dos maragatos. Geralmente, ao atacar as propriedades, supostamente
os castilhistas atacavam o ideário liberal. Embora tenha um passado
escravista, Castilhos não parecia romper com o liberalismo, do ponto
de vista da garantia da propriedade. O que é denominado de saque,
por parte dos maragatos, é apenas a aplicação da lei em tempos de
guerra, de “comoção interna”, para os castilhistas, para a legalidade.
O direito de guerra justifica tudo? Aparentemente, os maragatos
argumentavam alguma categoria de direito consuetudinário, um
acordo tácito subliminar em torno do direito à propriedade? Existia
a ideia de uma certa igualdade entre os estancieiros, enquanto
produtores, proprietários, como um acordo de cavalheiros, de que a
propriedade não deveria ser tocada, por ser “naturalmente” intocável?
Nas leis brasileiras em voga, o direito à propriedade não estava
acima das razões de Estado. A ideia de atribuir responsabilidades à
legalidade, em tempos de guerra, na visão dos maragatos, implicava
em defender o direito à propriedade, primeiro, como uma justiça de
mão única, irracional, desmedida, quando se sabia que ambos os lados
não respeitaram tal direito? Até que ponto a guerra civil de 1893 é um
prolongamento de práticas de violência já existentes? ( BARETTA, S.
& MARKOFF, J. 1978. Citado por: YOUNGER, 2021, p.8). Motivadas
principalmente pela disputa em torno da posse da terra, visto a falta de
um marco regulatório da propriedade, desde 1822, quando o regime
sesmarial foi extinto? Sem entrar na discussão sobre teoria da história,
o fato é que as diferenças entre legalidade e maragato não estavam
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A família Delebary
necessariamente na origem de classe, e nem é o objetivo somente um
olhar economicista da sociedade (SACCOL, 2021). Governo e oposição
estavam num mesmo universo ideológico, numa mesma estrutura
agrária (TRINDADE, 1979, p. 119. Citado por: ROUSTON JUNIOR,
2021, p. 30). Conforme Helga Piccolo (1993, 2021), Escobar (1983)
utilizou amplamente o livro de Antonio Ferreira Prestes Guimarães
(1987) sem mencioná-lo (citado por: SÊGA, 2021). A denúncia de
saques a propriedade continha uma sugestão de que deveria haver
novas indenizações por parte do governo federal? Nada evidencia
tal pensamento; no entanto, a publicação do livro de Wenceslau
Escobar (1983), vinte e cinco anos depois, em 1920, demonstrava que
as cicatrizes da guerra civil ainda estavam abertas. (PISTOIA, 2021b).
Wenceslau reconhecia-se como liberal, mas até que ponto suas
idéias diferiam do projeto político oposto, em 1930? (ROSENFIELD,
2021a; ROSENFIELD, 2021b; MARTINS, 2021). Wenceslau Escobar
era defensor da monarquia, que acreditava ser mais democrática do
que a República (ESCOBAR, 2021). “Também há em Escobar (1922;
1930), um elogio às instituições monárquicas” (AXT, 2021). A lei, de
1826, utilizada para justificar os ataques à propriedade, por parte da
legalidade, estava assente na ordem do Império, em uma Constituição
outorgada, autocrática. O Art 8.º da lei de 1826, suspendia todas as
formalidades sobre a propriedade privada, “no caso de perigo iminente,
como de guerra, ou comoção” interna (Coleção de Leis do Império do
Brasil, 2021). O suposto liberalismo da Constituição de 1824 esbarra
numa premissa básica: a formação escravista (VASCONCELOS, 2021).
O uso de leis do Império, depois da instalação da República, coloca os
limites da intervenção militar, em 1889, que não tiveram pruridos em
usar desse ou daquele instrumento, quando lhe apetecia (QUEIROZ,
2021). Ou seja, o direito à propriedade foi suspenso. A ideia de uma
“comoção intestina” demonstrava o que estava em jogo, no que se
referia a política interna.
“A Constituição brasileira do Império também garantiu
“o direito de propriedade em toda a sua plenitude” (art.
179, n.o 22), acrescentado que, se o bem público, legalmente verificado, exigisse “o uso e emprego da propriedade do cidadão”, seria ele previamente indenizado do
valor dela. Regulando o modo por que se devia executar
a disposição constitucional, a lei de 9 de setembro de
1826 distinguiu os casos de utilidade e de necessidades
públicas que tomariam legítima a desapropriação, mas
estabeleceu, afinal, que, no caso de perigo iminente,
como de guerra, ou comoção, cessariam todas as formalidades, e poder-se-ia “tomar posse do uso”, quanto bas-
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A família Delebary
tasse (art. 8.°). Compreende-se que cessassem todas as
formalidades exigidas na desapropriação, pois a guerra
ou a comoção intestina eram motivos para justificar a
dispensa das formalidades que garantiam a propriedade
individual (Constituição citada, art. 179, n.º 35). Ficou,
deste modo, admitida a requisição, que, no entanto, só
depois de quase um século foi extensamente regulada”.
(GUIMARÃES, 2021).
Veja-se que o cessamento, a dispensa, das garantias da
propriedade, implicava, inclusive, na negação da ideia de «laisser
faire, laisser passer ».
“Que ninguém seja constrangido a vender. Cada um poderá vender o seu a quem quiser, e pelo melhor preço
que puder: e não será obrigado a vender a seu irmão ou
outro parente; nem ninguém poderá dizer que o quer
tanto por tanto, porque foi de seu avoengo. (Exceto para
utilidade pública. Const. , art. 179, § 22. Lei de 9 de setembro de 1826. E veja - se o Alvará de 27 de novembro
de 1804, extensivo ao Brasil pelo Alvará de 4 de março de
1819)”. (SUSANO, 2021).
Somente em 1916, ao que parece, observa-se alguma evolução,
no que tange às ideias liberais e a questão da terra (ESTEFANI,
2021). Interessante nisso tudo é a tentativa, hegemônica ou não, de
circunscrever o conflito no território do Estado do Rio Grande do Sul,
colocando de fora, exteriormente, o Estado Nacional, como se este
não estivesse afinado com os interesses castilhistas. No julgamento
do Supremo Tribunal Federal, a tensão entre a quem deve-se atribuir
as responsabilidades com as indenizações de guerra, se o Estado do
Rio Grande do Sul, se a União, ficava claro que existia uma tentativa
de limitar a guerra civil à fronteira de uma das unidades da República.
Veja-se que são debates pós-guerra, em que ambos os lados, por
diferentes interesses, procuram um suposto e esperado Estado de
Direito que, durante a guerra, parecia estar extinto. Não é à toa que
Castilhos ficou com a pecha de ditador, não necessariamente pelas
ideias positivistas. Igualmente, Floriano Peixoto, o Marechal de ferro,
foi chamado de tirano, e não foi assim, por acaso, durante a guerra
civil. A ocupação da terra, na fronteira brasileira, por parte de Martin
Delabary e sua esposa Domingas, na Vila de São Sebastião (Torquato
Severo), como arrendatário de terras no no então Distrito do Piraí
em Bagé, foi, possivelmente, expressão de contrato de arrendamento
anteriormente a Lei de Terras de 1850, pois
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“Após a Independência do Brasil, o regime sesmarial
foi extinto e o país ficou sem uma legislação para regulamentar o acesso à terra. Até o surgimento da Lei de
Terras (Lei n. 601 de 18 de setembro de 1850), a posse
da terra era facilmente realizada sem uma autorização
oficial. ‘No período colonial, uma das principais formas
de apropriar-se da terra e dos recursos naturais deu-se
por meio do apossamento primário da terra e dos recursos naturais renováveis, com base em uma agricultura
móvel, predatória e rudimentar’(BENATTI, 2003,p. 54.
Citado por: ALMEIDA; BUAINAIN, 2021)”.
e posteriormente a Lei de Terras de 1850, pois “com o alvará
de 3 de novembro de 1857 e lei de 4 de julho de 1776 a locação foi
reduzida à condição de contrato pessoal, ‘ainda que fosse de cem
anos’ (MEIRA, 1983, p. 120. Citado por:ALMEIDA; BUAINAIN, 2021),
enquanto marco legal, além de demonstrar uma das maneiras de
incluir os estrangeiros, já que o sistema escravista era dominante,
como “forma de o proprietário colocar as terras em utilização,
essencial para conservar a propriedade”, bem como “via de substituição
do trabalho escravo, visto parecer quase impossível a existência
do trabalho assalariado naquele tempo na sociedade brasileira”
(PETTERSEN; MARQUES, 1977. Citado por: ALMEIDA; BUAINAIN,
2021); e, ainda, “para atender a procura de terras dos imigrantes no
país, que viam na parceria uma forma de acumular riquezas e uma
etapa para se tornar proprietários” (ALMEIDA; BUAINAIN, 2021).
“Embora as desvantagens dessas relações contratuais fossem notórias,
o surgimento dos contratos de arrendamento e parceria contribuiu
para conciliar os interesses dos proprietários e dos imigrantes” (
SALINAS,2021). “Assim, o arrendamento rural servia como uma forma
de conservação da grande propriedade sem a necessidade de vendas
de terras que se buscavam manter como reserva especulativa e de
valor” (PETTERSEN E MARQUES, 1977. Citado por: CASTRO, 2021).
Os terrenos atravessados pela linha são em geral de sesmaria. Diz o engenheiro Camargo no seu quadro estatístico e geographico CAMARGO, 2021a) o seguinte:«
Póde-se dizer que, exceptuando as serras do Uruguay
e as ramificações da serra geral, que cortam diferentes
municípios da província, e que se acham devolutos, todas as outras pertencem a domínio particular. Toda a
propriedade de terras foi adquirida por posse, ou por
cartas de sesmaria, concedidas pelos antigos Governadores e capitães Generais. O trabalho relativo à verificação e descriminação das terras públicas e particulares, assim como a descriminação das posses e sesmarias
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entre si, tem causado nesta província graves inconvenientes em relação à administração e tranquilidade pública» (MORSING, 2021b).
Em 13 de dezembro de 1895, no requerimento de Domingas
Laudabouro Delabari foi indeferido, o que prova que existia algum
processo, alguma reclamação já em curso. No requerimento, ficava
clara a condição de arrendatária da requerente. Interessante é que,
nesse primeiro momento, conforme o parecer do procurador-geral da
República, Antônio de Sousa Martins, faltou competência para fazer
a reclamação: “visto não ser em direito, considerada arrendatária
da fazenda Pirahy, já por não fazerem prova os documentos por
ela exibidos” (BRASIL, 2021d). O Supremo Tribunal Federal, em 8
de dezembro de 1897, em decisão, resgatou uma lei do tempo do
Império, especificamente o art. 8. ° da lei de 9 de setembro de 1826,
para pagar a indenização.
“ Vistos, expostos e discutidos estes autos de apelação
cível, em que são partes: 1.ª apelante, a Fazenda Federal,
por seu procurador de seção do Rio Grande do Sul; 2.ª
apelante, d. Domingas Landabouro Delabary, e apeladas as mesmas, e considerando que é obrigação do Estado pagar a propriedade particular de que se utilizou em
tempo de guerra por agentes seus, órgãos de sua ação
e autoridade (art. 8. ° da lei de 9 de setembro de 1826
); que forças legais ao mando de autoridades militares
federais se apropriaram de gados e benfeitorias pertencentes à 2.ª apelante; que a sentença apelada, admitido
tais premissas, não conclui tão rigorosamente quanto
devera, e restringe a condenação pelo fundamento de
que a ré 1.ª apelante já pagou todas as vantagens de campanha às forças que operaram no Estado do Rio Grande
do Sul no período a que se refere o pedido; que tal facto não perime a obrigação da ré de indenizar a autora,
a qual nada tem com aquele pagamento, que não lhe
foi aplicado; que, entretanto, não está cumpridamente
provado o número de cabeças de gado consumidas, nem
o respectivo valor, nem tão pouco o valor das benfeitorias destruídas, sendo, além disso, certo que do pedido
referente ao gado não se deduziram as reses de que se
utilizaram as forças revolucionárias capitaneadas pelo
general Silva Tavares: Acordam, negando provimento à primeira apelação e dando á segunda, confirmar a
sentença apelada na parte em que condena a Fazenda
Federal a pagar à autora a indenização devida pela apropriação de cavalos, eguas, poldros, potrilhos e mulas, e
pela destruição de postes, aramados e plantações, como
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liquidado for na execução e reformar no mais a mesma
sentença, para condenar também a ré a pagar à autora o
justo preço das reses abatidas e levantadas pelas forças
legais da estância de que esta era sub arrendatária, devendo igualmente o respectivo número e preço liquidarse na execução. Custas pela primeira apelante. Supremo
Tribunal Federal, 8 de dezembro de 1897. — Aquino e
Castro, P. ; — Lúcio de Mendonça. — Ribeiro de Almeida. — Piza e Almeida. — Augusto Olyntho. — Macedo
Soares. — João Barbalho. — Pereira Franco. — Américo Lobo. — Bernardino Ferreira. — André Cavalcante. — Manoel Murtinho, vencido: reformava a sentença
apelada para absolver a ré de todo o pedido, pela improcedência deste, nos termos em que foi proposto. Havendo entre as forças que se apropriaram para sua mobilização e sustendo do gado cavalar e vacum da autora,
corpos de milícia cívica e outros pertencentes ao Estado
do Rio Grande do Sul, os quais no decurso de 1893, em
que se deu tal apropriação, não eram mantidos à custa
da União, não podia correr por conta dessa à correspondente indenização, entretanto que a autora pretende
responsabilizar por ela a Fazenda Nacional, exigindo
judicialmente o respectivo pagamento, que deveria ser
demandado a quem custeava as aludidas forças civis e
estaduais. Na ação proposta, pois, confundiram-se responsabilidades distintas, pelo que era inadmissível essa
ação e, portanto, no caso de ser julgada improcedente.
— Pindahiba de Mattos, vencido pelos mesmos fundamentos de voto do sr. ministro Manoel Murtinho. Fui
presente, João Pedro”. (MENDONÇA, 2021).
O Decreto nº. 3247, de 4 de Abril de 1899, estabelecia um crédito
especial de 400:750$030 para ocorrer ao pagamento reclamado por
D. Domingas Landabouro Delabary como indenização. Reconhecia
Domingas como arrendatária da fazenda situada no Piray, 2.º distrito
do termo de Bagé”. Aparentemente, a reclamação de indenização
estava orçada em 720:000$, pela ocupação das forças legais, que
acamparam na fazenda.
“(...) Intentando ação contra a Fazenda Federal, por ter
sido indeferida tal reclamação para haver a quantia de
545:255$, como indenização de prejuízos provenientes
da perda de gado vacum, cavalar e muar consumido o
levantado pelas mesmas forças, da falta de produção
das crias de gado vacum durante três anos e da destruição do cercas e plantações, foi a referida ação julgada,
na 1.ª instância, procedente quanto ao gado cavalar e
muar, cercas e plantações, e improcedente quanto ao
gado vacum, inclusive a produção das crias consumi-
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das. Apelaram ambas as partes para o Supremo Tribunal Federal, que deu provimento à autora, não incluindo, porém, nesse provimento a indenização relativa
à falta de produção das crias durante três anos. A
liquidação apurou em favor da liquidante a quantia do
518:360$700. Abatido, porém, o valor da produção de
três anos, fica reduzida a responsabilidade da Fazenda Federal a 398:255$700, aceitos como juridicamente
o foram pela sentença respectiva os preços dados pela
liquidante, quantia esta que se eleva a 400:750$030,
atendendo-se ao engano que houve na contagem das
custas. (...)”. ( BRASIL, 2021a).
Manuel Ferraz de Campos Sales, quarto presidente da
República, entre 1898 e 1902, em mensagem ao Congresso Nacional,
em 30 de abril de 1899, solicitava autorização para o pagamento de
Domingas Landabouro Delabary. (BRASIL, 2021b). João Nepomuceno
de Medeiros Mallet, Rio de Janeiro, 4 de maio de 1899, reiterou o
pagamento de 400:750$030 (BRASIL, 2021c) . Em seis de outubro de
1899, o Presidente da República assinou o decreto de pagamento de
Domingas Landabouro Delabary, de 400:750$030 (Coleção de Leis
do Brasil, 2021b) . O jornal O Paiz, do Rio De Janeiro, Sábado, 7
de outubro de 1899, noticiou o decreto do Presidente Manuel Ferraz
de Campos Sales que autorizava o pagamento de 400:750$030, com
erro gráfico. (O Paiz, 2021). THE RIO NEWS, 7 de novembro de
1899, sugere que houve algum tipo de negociação com Domingas
Landabouro Delabary, a partir de Joaquim Duarte Murtinho,
ministro das finanças, em que Domingas aceitava receber menos, em
vez de 520.574 $870, receberia 374.163$. O jornal perguntava, “Como
essas reduções são arranjadas? Os credores são obrigados a aceitar
o que o ministro oferece para escapar da espera indefinida, ou são
oferecidos voluntariamente?” (THE RIO NEWS, 2021a). O jornal “THE
RIO NEWS”, de 14 de novembro de 1899, anunciava o pagamento
para Domingas, em menor valor, com mais detalhes da suposta
negociação. Aparentemente o Tribunal de Contas foi acionado por
Domingas Laudabouro Delabary para que houvesse o pagamento de
400.750$030; mas não ganhou. Aparentemente, o Tribunal de Contas
lavou as mãos, “o tribunal não tem nada a ver com o menor montante
agora especificado pelo ministro”, pondo a culpa no ministro das
Finanças, Joaquim Duarte Murtinho, que ganhou fama por restaurar
as finanças republicanas no governo Campos Sales. Joaquim Duarte
Murtinho era irmão de Manuel José Murtinho, ministro do Supremo
Tribunal Federal (JOAQUIM MURTINHO, 2021), que já havia votado
contra a indenização. O pedido original era 520.574$880, o Congresso
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aceitou 400.750$030, e Murtinho pagou 374.163$. O jornal afirmava:
“- O ministro das Finanças aparentemente se superou em sua política
de “apertar” os credores” (THE RIO NEWS, 2021b). Aliás, a política
econômica de Joaquim Murtinho, “um liberal convicto, que tachava
de socialista a tradição brasileira de interferência do Estado na
economia” (CARVALHO, 2021. LYNCH, 2021), também expressava-se
no caso da indenização de Domingas, como demonstração de força
política, contra uma viúva de um estrangeiro, de uma imigrante,
por isso, não foi a toa que o jornal “THE RIO NEWS” se manifestou,
manifestando um posicionamento crítico com relação ao governo,
algo que não era novo, visto que “graças a suas iniciativas, o jornal
se engajou na luta abolicionista, servindo mesmo de ponte entre os
brasileiros e estrangeiros envolvidos com o tema, notadamente com
a British and Foreign Anti-Slavery Society” (MELO, 2021).
Considerações finais
O estudo da família Delabary, especialmente a história de
Martin Delabary, por um lado, por suas vinculações diretas com a vida
do Visconde de Ribeiro Magalhães, apresentado por Diego Delabary,
foi fundamental para esclarecer exatamente onde o jovem Antônio
Nunes de Ribeiro Magalhães trabalhou como caixeiro, no interior da
Freguesia recém elevada à Vila de Bagé, em 1846. Também é importante
a exploração geográfica, a espacialidade, o desenho do mapa da
ocupação do território, após o Tratado de Madrid. A inserção da região
dentro de uma nova realidade nacional em que constava o imigrante,
enquanto arrendatário de uma posse ou propriedade. A forma como o
exército da legalidade atuava com relação ao estatuto da propriedade e
as indenizações decorrentes. As origens da violência na guerra civil de
1893, como produto histórico de uma insegurança jurídica acerca da
garantia da propriedade. Os vínculos políticos de um imigrante com
os maragatos. As diferenças e semelhanças de discursos com relação
à garantia da propriedade e as incongruências do liberalismo. As
práticas militares semelhantes de Maragatos e Legalistas, pertencentes
ao mesmo segmento social. Enfim, a política econômica do liberal
Joaquim Murtinho com relação ao pagamento de uma indenização a
uma viúva de um imigrante pós-guerra civil de 1893.
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A família Delebary
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Brasil’. Muitos julgaram então que o trabalho era, com efeito, da autoria do desembargador Venâncio Bernardo de Ochoa, deputado em Portugal nas Cortes constituintes
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329
SUMÁRIO
A família Delebary
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3430 – DE 6 DE OUTUBRO DE 1899. Relatório : Ministério da Guerra (RJ) - 1828
a 1940. Abre ao Ministério da Guerra o crédito especial da quantia de 400:750$030
para ocorrer ao pagamento reclamado por D. Domingas Landabouro Delabary,
como indemnização por prejuízos e danos causados pelas forças legais que operaram no Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em: http://legis.senado.leg.br/
norma/400738/publicacao/15799729 . Acesso em: 11/02/2021. Disponível em:
http://legis.senado.leg.br/norma/400738 . Acesso em: 11/02/2021. Disponível
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Acesso em: 11/02/2021b.
FUEROS DEL REYNO DE NAVARRA. RECOPILACIÓN de todas las leyes
del reyno de Navarra concedidas y juradas por los Señores Reyes á suplicación de
los tres Estados de dicho reyno, por el licenciado Armendariz. Pamplona: Carlos de
Labayen Impressor, 1614. Disponível em: http://www.liburuklik.euskadi.eus/handle/10771/9234 . Acesso em: 14/03/2021.
331
SUMÁRIO
O CASO DOS VALDENSES: IMIGRAÇÃO
E REDES DE RELAÇÃO DE UMA
COMUNIDADE ITALINA PROTESTANTE
A PARTIR DA FRONTEIRA SUL
Arthur Engster Varreira1
332
SUMÁRIO
O caso dos Valdenses: imigração e redes de relação de uma
comunidade italiana protestante a partir da frenteira Sul
1
Introdução
É bem conhecido o fato de que a Societa Italiana de Soccorso
Mutuo e Beneficnza in Bagé, atual Sociedade Italiana de Beneficência
Anita Garibaldi, foi a primeira organização assistencialista do seu tipo
organizada por imigrantes italianos no Brasil, tendo sido inaugurada
já a 150 anos. Quando da sua fundação oficial, em primeiro de janeiro
de 1871, registravam-se em Bagé cerca de 122 italianos residentes,
de maneira que a comunidade italiana local antecede até mesmo o
período comumente associado ao início da imigração italiana para o
Brasil, entre os anos de 1874 e 1875.
O trajeto destes imigrantes, porém, não foi dos mais diretos,
pois não chegavam ao Rio Grande do Sul vindos diretamente da
Itália. Tendo se assentado em Bagé entre os anos finais da década
de 1850 e ao longo da década de 1860, estes italianos faziam parte de
grupos imigrantes inseridos nos movimentos de imigração oficial
para o Uruguai e a Argentina, que começaram a ser promovidos
na região com o final da Guerra Grande em 1852. Dessa forma, a
primeira organização italiana do Brasil e a comunidade italiana
de Bagé tem sua história fortemente vinculada a esse processo
migratório platino, que por sua vez nos permite relaciona-la com
um grupo de imigrantes italianos que é comumente negligenciado
pela historiografia brasileira da imigração: o dos Valdenses.
Originalmente um movimento cristão de reforma religiosa
iniciado na cidade de Lion, no sul da França, nas últimas décadas
do século XII em torno da figura semi-mítica de um certo Pedro
Valdo, os Valdenses foram condenados enquanto heresia pela Igreja
1. Mestre em História, UFSM/Brasil.
333
SUMÁRIO
O caso dos Valdenses: imigração e redes de relação de uma
comunidade italiana protestante a partir da frenteira Sul
Católica entre 1184 e 1215, tendo sobrevivido à anos de perseguições
e massacres apenas em núcleos isolados nas regiões alpinas do norte
da Itália. Entre os séculos XIII e XIV essas comunidades também se
relacionaram com diversos outros movimentos religiosos e sociais do
período, somando muitas das vivências destes as suas. De maneira
geral, procuravam retornar as escrituras e acreditavam no direito a
pregação laica, na igualdade de espírito entre homens e mulheres, na
alfabetização para a leitura da Bíblia, no desapego aos bens materiais
e na procura por uma vida comunitária pacífica e autônoma.
O grupo se juntou ao movimento protestante europeu já na
primeira metade do século XVI, filiando-se a tradição calvinista
que já era popular na Suíça e em diversas cidades do sul da França.
Ainda assim, até o século XIX, os Valdenses representavam a única
comunidade evangélica da península itálica, tendo consolidado suas
comunidades ao longo dos vales de São Martim, Luserna e Perosa
(coletivamente conhecidos por Vales Valdenses), na atual fronteira
entre a Itália e a França. Durante esse período ainda foram submetidos
ao chamado Gueto Alpino2, em que se submeteram a uma série de
restrições3 (as chamadas Leis do Gueto e os Editos Anti-Valdenses)
em troca da garantias de proteção limitada por parte da monarquia
dos Saboia, que se estendeu desde 1890 até 1848, quando tiveram suas
liberdades civis e religiosas asseguradas pelo Edito de Emancipação.
Por esta época os Vales já se encontravam com um grande
excedente populacional (uma vez que a região se sustentava por meio
da agricultura subsistência e pela limitada pecuária local) e muitos
jovens Valdenses vinham adotando práticas de migração sazonal para
poderem sustentar suas famílias, procurando trabalho em centros
urbanos próximo e especialmente na Costa Azul da França, aonde
atuavam nos ramos hoteleiro, comerciário e ferroviário durante a
temporada turística local nos meses de inverno. Esse movimento
migratório apenas se intensificou com a emancipação de 1848 e
muitos grupos passaram a procurar por emigrar em caráter definitivo.
Por diversas razões (desde sua religião até sua experiência
agrícola), os Valdenses também chamaram a atenção de diversas
empresas de colonização, recebendo propostas para estabelecer
2. Esse conceito foi cunhado por historiadores Valdenses a partir da segunda metade do século XIX e não aparece em nenhum registro contemporâneo do período (VILLANI, 2019,
p.118).
3. Não eram necessariamente proibidos de sair dos seus Vales, mas as garantias de proteção e
de tolerância religiosa que lhes eram asseguradas neles, não valiam em nenhuma outra parte.
Fora dos Vales não podiam entrar em relações legais com católicos (casamentos, parcerias
comerciais, etc.), registrar bens ou terras em seu nome e nem praticar de forma privada sua
religião, por exemplo.
334
SUMÁRIO
O caso dos Valdenses: imigração e redes de relação de uma
comunidade italiana protestante a partir da frenteira Sul
colônias próprias em locais tão diversos quanto o Canadá, a Argélia,
os Estados Unidos e a Argentina, mas nenhuma destas conseguiu
convencer as autoridades dos Vales4 a se comprometer com a
imigração. Essa relutância se baseava em elementos culturais do
grupo, bem como nas expectativas que detinham para com suas
colônias: os Valdenses esperam ter a posse imediata (ou no menor
tempo possível) das terras as quais eram alocados e exigiam que
lhes garantissem pelo menos uma escola e um templo, bem como o
pagamento dos vencimentos dos professores e do pastor.
Um fluxo migratório definitivo para fora dos Vales se
desenvolveu apenas a partir do final de 1856, graças à intervenção
de dois jovens Valdenses que vinham trabalhando em um hotel no
centro de Montevidéu5. Sabendo da disposição de muitos Valdenses
em emigrar e tendo se informado dos interesses do governo uruguaio
em organizar colônias agrícolas no interior do país, bem como da
ampla oferta de terras a bons preços para os colonos, eles escreveram
a seus familiares ainda na Europa, incentivando-os a imigração
para a região. Um deles, Juan Pedro Planchón, escreveu ao irmão
dizendo “creo que más vale ser agricultor ó proprietario aqui que em
los Valles” (JOURDAN, 1901, p. 194).
Estas cartas, por sua vez, foram rapidamente publicizadas nos
Vales e criaram um novo estímulo para a imigração. Em consequência
disso, um período inicial de imigração informal se desenvolveu
nos anos seguintes, com os primeiros contingentes de imigrantes
Valdenses chegando ao Uruguai entre os anos de 1857 e 1858. Os
Valdenses se tornaram alguns dos primeiros grupos de imigrantes
de origem itálica a chegar a região platina e, a partir da década
de 1860, seu processo migratório passou a ser gerido de maneira
oficial, sendo dirigido de maneira bilateral pelas autoridades dos
Vales e pelos governos do Prata. Assim, a imigração Valdense para
a América não ficou limitada a República Oriental e contou ainda
com o estabelecimento de colônias na Argentina (a partir de 1860) e
mesmo no Rio Grande do Sul (a partir de 1880), isso sem mencionar
os processos migratórios internos que levaram grupos Valdenses a
centros como Rio de Janeiro e São Paulo.
4. Ainda que respondessem aos governos locais, as comunidades Valdenses se organizavam de
maneira autônoma, cada qual sendo dirigida por um Consistório local de representantes eleitos
que responde a uma Mesa (ou Távola) geral dos Vales que é eleita anualmente por um Sínodo
(JOURDAN, 1901, p.12-13).
5. Tendo originalmente participado da migração sazonal para o sul da França, eles teriam
trabalhado em um hotel em Marselha antes de embarcarem de maneira clandestina para a
América do Sul, se assentando em Montevidéu por volta de 1852 ou 1853 (JOURDAN,
1901, p.195; DAVIT & GILLES, 2018, p.4).
335
SUMÁRIO
O caso dos Valdenses: imigração e redes de relação de uma
comunidade italiana protestante a partir da frenteira Sul
Os movimentos migratórios de grupos europeus para a espaço
da fronteira platina de maneira geral (incluindo a região da campanha
sul) procuravam atender a uma distinta política de Estado que vinha
se desenvolvendo na região desde os primeiros anos de independência
das repúblicas platinas, entre as décadas de 1810 e 1830, e que ganhou
força com o final da chamada Guerra Grande no começo da década de
1850. A baixa densidade populacional e, como consequência disso, os
baixos índices de produtividade e desenvolvimento da agroindústria
regional se encontravam presentes em todos os lados da fronteira, de
maneira que a imigração e o desenvolvimento de colônias agrícolas e
de ocupação do espaço6 se tornaram elementos comuns aos processos
de estruturação e de modernização dos Estados Nacionais da região.
Para além disso, haviam ainda especificidades locais que
incentivavam o subsídio à imigração, desde o combate do governo
provincial do Rio Grande do Sul aos latifúndios e a má distribuição de
terras até o esforço do Estado argentino em repelir as comunidades
indígenas da região central do país. No Uruguai, contudo, a
preocupação principal dizia respeito a fronteira com o Brasil. Os
acordos de fronteiras e limites que ambos os países assinaram em 1851
havia sido largamente desfavoráveis aos interesses uruguaios e, como
consequência disso, o governo oriental passou a segunda metade do
século XIX fazendo um esforço constante para nacionalizar a região
de fronteira (SEGARRA, 1969, p.38).
Um censo realizado pelo governo brasileiro antes da assinatura
dos acordos, em 1850, dava conta que cerca de 33% de todas as
terras do lado uruguaio da fronteira com o Brasil pertenciam a
fazendeiros brasileiros (NAHUM, 2003, p.47)7. Pelos tratados de 1851
esses proprietários brasileiros que controlavam a fronteira também
dispunham de privilégios em ambos os lados da linha demarcatória.
Não ficava explícito nos acordos até que ponto as leis uruguaias
vigoravam ou não em terras brasileiras dentro do Uruguai e os
estancieiros com terras contínuas de uma lado ao outro da fronteira
também podiam facilmente manobrar suas posses para evitar
impostos e taxações. Mais grave ainda para o governo da República
Oriental, estes acordas reafirmaram o princípio do uti possidetis
6. Diferentemente dos fluxos migratórios que se desenvolveram, no mesmo período, em direção aos estados da região sudeste do Brasil, por exemplo, que visavam a substituição da
mão-de-obra escrava.
7. Os dados não são muito precisos quanto a que parcela do território uruguaio essa porcentagem diz respeito. É possível que esses dados estejam se referindo a quantidade de terra
ocupada por brasileiro em toda a República Oriental, o que seria ainda mais alarmante para
as autoridades nacionais, mas o mais provável é que ela se aplique apenas à parcela de terras dentro do território nacional uruguaio localizadas ao norte do rio Negro (MENEGAT,
2015, p.12).
336
SUMÁRIO
O caso dos Valdenses: imigração e redes de relação de uma
comunidade italiana protestante a partir da frenteira Sul
à região, que concedia posse legal da terra a quem a ocupasse
efetivamente (SEGARRA, 1969, p.16;33) – o que fez com que o Uruguai
desenvolvesse um interesse pioneiro para com o estabelecimento de
colônias na região, procurando conter o avanço brasileiro.
A preferência, de modo geral, residia nos imigrantes de origem
alemã e italiana, que atuariam também enquanto mecanismo de
defesa contra as influencias imperialistas europeias, no sentido de
que se temia que a presença de certos grupos de imigrantes, como
ingleses e franceses, pudesse levar ao surgimento de uma forte
influência destas nações nas políticas nacionais, visto que ambas
detinham especial interesse sobre o comércio que transitava pelo Rio
da Prata. Lucas Moreno, que foi membro da comissão para imigração
do governo uruguaio nos primeiros anos da década de 1850, escreveu
para um colega sobre o interesse nas populações vindas da península
itálica dizendo que “[...] la misma falta de unidad en aquela nación,
es una garantia para nosotros” (MELLO, 1948, p. 343).
No Uruguai havia ainda uma aparente preferência por grupos
protestantes, num esforço de coibir a forte influência católica que se
opunha ao projeto de Estado Nacional liberal que o país procurava
desenvolver (MAGGIS, 2017, p.4-5). Os últimos anos do período colonial
haviam sido associados ao declínio da autoridade da Igreja Católica
na região e muitos esperavam que o período do pós-independência
pudesse permitir a volta do catolicismo a vida política local. Desta
forma, os Valdenses correspondiam a muitas das preferências do
governo uruguaio para com os imigrantes que se esperava receber.
Outra vantagem oferecida pelos Valdenses que pode
ser observada a partir de suas colônias diz respeito ao idioma.
Diferentemente de outros grupos imigrantes, a identidade étnica e
cultural dos Valdenses não se encontrava diretamente vinculada a
questões como a língua ou o fenótipo, se apoiando mais no elemento
religioso e na atuação comunitária (GEYMONAT, 1995, p.34), de
maneira que não só adotavam rapidamente8 o idioma do local como
também procuravam preservar suas estruturas comunitárias se
relacionando e buscando inserção em diversos elementos da sociedade
local. Essa particularidade, por sua vez, se apresenta como um desafio
para o historiador que procura trabalhar com os Valdenses, uma vez
que os nomes dos indivíduos e de suas famílias podem aparecer não
apenas com distintas grafias (como normalmente ocorre em fontes
documentas) como também com distintas traduções.
8. A primeira geração de Valdenses nascidos no Uruguai, por exemplo, já falava de forma majoritária o espanhol. Em 1901, pouco mais de 40 anos depois do início da imigração, eram
apenas os mais velhos que ainda falavam o dialeto patois comumente utilizado nos Vales
(JOURDAN, 1901, p.227-228).
337
SUMÁRIO
O caso dos Valdenses: imigração e redes de relação de uma
comunidade italiana protestante a partir da frenteira Sul
Os Valdenses que chegaram ao Uruguai vindos dos Vales no
século XIX, por exemplo, eram em sua maioria bilíngues e falavam
tanto o provençal patois (ou em alguns casos o francês) quanto
o italiano, de maneira que seus nomes, e mesmo sobrenomes em
alguns casos, aparecem em ambas as variações idiomáticas, as quais
se somariam ainda versões em espanhol e em português por meio
dos processos de colonização. Entre as diversas famílias Valdenses
que imigraram para o prata, destaca-se que os sobrenomes ArmandUgon e Armand-Hugon, por exemplo, não correspondem a um
mesmo núcleo familiar, não sendo originários da mesma região
dos Vales. No caso de sobrenomes como Morel e Morelli, uma
avaliação mais atenta se faz necessária, uma vez que podem ou não
corresponder à mesma família, com a exceção talvez dos Chollet e
Cholante que parecem se referenciar a uma mesma linhagem9.
Figura Nº1 – Lista incompleta de sobrenomes de famílias Valdenses na América
recolhidos por Louis Jourdan para a escrita do Compendio de Historia de los Valdenses.
Fonte: JOURDAN, Luis. Compendio de Historia de los Valdenses. Colonia Valdense: Tipografia Claudiana, 1901, p.231-232.
9. Pelo que parece sinalizado em listagens mais antigas de sobrenomes Valdenses como no
Compendio de Historia de los Valdenses (ver Figura Nº1) de Luis Jourdan (1901).
338
SUMÁRIO
O caso dos Valdenses: imigração e redes de relação de uma
comunidade italiana protestante a partir da frenteira Sul
Enfim, esse grupo singular de imigrantes italianos protestantes
(ou mesmo hereges como eram conhecidos pelos católicos do século
XIX), foi um dos primeiros a se assentar na região da fronteira
platina e, em consequência disso, um dos primeiros a chegar ao sul
do Brasil, adentrando o Rio Grande do Sul pela disputada região
da campanha meridional. Famílias Valdenses se estabeleceram em
Pelotas, Porto Alegre, Bento Gonçalves e Bagé entre 1860 e 1880, com
estudos mais recentes publicados por autores como Vicente Dalla
Chiesa (2014) e Nuncia Santoro de Constantino (2006) enfocando nos
desenvolvimentos posteriores dessas comunidades sem se aprofundar
em sua trajetória dentro do espaço da fronteira platina – o que já é
notável diante do fato de que até poucos anos a presença Valdense
dentro da imigração italiana para o Brasil era comumente refutada10.
Para as comunidades Valdenses na América do Sul de forma
geral, esse espaço de fronteira não apenas permitiu esse tipo de
circularidade como também se mostrou central ao desenvolvimento
de redes de relação e de troca amplas, diversas e de grande alcance,
que foram essenciais para garantir a estabilidade e a prosperidade
das famílias e núcleos imigrantes tanto na região quanto em outras
localidades que serviram de destino à grupos menores e a imigrantes
independentes em processos migratórios informais. Trabalhos que
relacionam redes de relação e correntes migratórias se tornaram
mais numerosos em anos recentes, especialmente a partir da
popularização dos jogos de escala de análise que nos permitem
relacionar associações de grupo ou individuais próximas com redes
de contato abrangentes estruturadas a partir de uma multitude de
ralações.
Dito isso, procuramos então relacionar algumas das redes
de relação construídas por imigrantes Valdenses com e a partir do
espaço platino, especialmente com e a partir da região de fronteira
entre Brasil e Uruguai. Estas redes, de maneira geral, puderam ser
identificadas a partir de produções acadêmicas dispersas sobre
o processo de imigração italiana para o Brasil, contando com a
região fronteiriça platina como o principal elo entre as relações
aparentemente dispersas e acidentais desenvolvidas por esses
imigrantes. Será apresentado aqui com especial destaque o caso
dos irmãos Jannuzzi, residentes no Rio de Janeiro nas últimas
10. Pode-se citar como exemplo a publicação “Italianos no protestantismo brasileiro: a face
esquecida da imigração”, de 2004, aonde o autor comenta que “No tocante aos italianos,
registre-se que o Brasil, a rigor, não recebeu imigrantes Valdenses [...]. Sabe-se da vinda de
uma ou duas famílias que se radicaram em São Paulo e frequentavam a I Igreja Presbiteriana
Independente do Brasil” (PEREIRA, 2004, p. 89).
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SUMÁRIO
O caso dos Valdenses: imigração e redes de relação de uma
comunidade italiana protestante a partir da frenteira Sul
décadas do século XIX, cujas parcerias comerciais foram fortemente
influenciadas por laços religiosos e políticos que se desenvolveram a
partir da fronteira.
Redes de relação e contatos fronteiriços
Para muitos dos italianos Valdenses que chegavam a América,
o ambiente não era dos mais acolhedores. Apesar dos esforços em
prol da laicização do Estado, as sociedades locais ainda eram uma
de forte ascendência católica e os colonos que chegavam a região
logo se destinavam a assentamentos isolados que os deixavam
ainda mais distantes do modelo de vida comunitária ao qual eles
haviam se associado ao longo de sua trajetória. Para solucionar estas
problemáticas os Valdenses recorreram a uma estratégia que já lhes
era bem conhecida: a das redes de relação.
Em consequência dos anos de repressão na Europa, os Valdenses
tinham uma boa noção de como habitar às margens da sociedade.
Eles buscavam em suas redes de relação externas apoio necessário
para garantir presença contínua em distintos espaços políticos,
sociais e mesmo geográficos, enquanto que mantinham suas próprias
comunidades coesas em constante contato umas com as outras. Os
imigrantes procuravam manter seu sistema organizacional próprio
por meio de instituições políticas, associacionistas, filantrópicas e de
beneficência. Também se aproximaram das denominações Metodista
e Presbiteriana, uma vez que estas dispunham de uma presença mais
bem estabelecida na região platina de maneira geral e, no Brasil, dos
interesses políticos do Partido Liberal, que lutava pela garantia da
liberdade de culto e do direito de voto aos acatólicos.
A região da fronteira como um todo, com certo destaque
aos espaços de circulação estabelecidos entre as cidades de Bagé
e Melo no caso da fronteira com o Brasil, foi um elemento central
ao desenvolvimento de muitas das redes de relação construídas
por esses imigrantes uma vez que sua presença ficou assegurada
de ambos os lados da fronteira. Já do primeiro contingente de
Valdenses que chegou ao Uruguai em 1857, um número ainda
indefinido de famílias partiu em direção aos departamentos de Salto
e Tacuarembó, mais próximos a fronteira com o Brasil e a Argentina
em 1858 (JOURDAN, 1901, p.199), com grupos menores chegando
até e cruzando a fronteira ainda na década de 1860, de maneira
que as relações mantidas e construídas pelos Valdenses enquanto
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SUMÁRIO
O caso dos Valdenses: imigração e redes de relação de uma
comunidade italiana protestante a partir da frenteira Sul
indivíduos e enquanto grupo tiveram seu alcance constantemente
estendido na medida em que estes imigrantes avançavam e se
inseriam em novos espaços.
O historiador italiano Vittorio Cappelli (2014) é um que
apresenta um estudo de caso curioso, dedicado a trajetória de dois
imigrantes italianos radicados no Rio de Janeiro que possuem um
forte vínculo com essas rede que se estabeleceu na região Platina.
Em específico o autor procura trabalhar com a trajetória dos irmãos
Jannuzzi, dois Valdenses que a partir dos anos finais do Império
comandaram a maior empresa de construção da capital brasileira
(CAPPELLI, 2014, p.117). Antonio e Giuseppe Jannuzzi11 imigraram em
direção ao Uruguai em 187212, se assentando em Montevidéu até 1874
(CAPPELLI, 2014, p.118), tendo escolhido o Uruguai em consequência
da marcada presença Valdense local e do já bem estabelecido fluxo
migratório para a região.
Em 1874, em razão da falta de perspectivas promissoras no
ramo da construção na capital uruguaia, os irmãos se dirigiram ao
Rio de Janeiro (AUGUSTO, 1893, p. 265), aonde Antônio passou a
trabalhar para a Companhia Ferro-Carril Carioca. Já em 1875 Antônio
deixou a empresa ferro-carril e organizou, junto do irmão, a firma
de arquitetura e engenharia Antonio Jannuzzi, Fratello & Cia., por
meio da qual os irmãos atuaram em diversos projetos de construção
na cidade do Rio de Janeiro e região ao longo de mais de cinquenta
anos (FIGUEIRA, 2015, p.01). Sendo que é a partir de alguns desses
trabalhos que passamos a investigar a rede de relação em que eles se
inseriam, uma rede que, ainda que centrada em indivíduo residentes
na corte brasileira no Rio de Janeiro, foi articulada graças a sua ampla
circulação pelos espaços fronteiriços, contando com braços capazes
de se estender desde Montevidéu, no Uruguai, e das cidades de Bagé e
Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, até os Estados Unidos e a Europa.
Na segunda metade da década de 1880, figuravam entre o corpo
de diretores da empresa dos Jannuzzi outros dois irmãos: os Gianelli,
donos da Gianelli & Comp., que foram responsáveis por fundar o
Moinho Fluminense, a primeira fábrica de moagem de trigo do Brasil.
Tal como os Jannuzzi, Carlos e Leopoldo Gianelli, que também eram de
11. Daqui em diante passaremos a usar a grafia portuguesa de “Antônio” e “José” para nos
referirmos aos primeiros nomes dos irmãos, uma vez que a maior parte da bibliografia, bem
como dos documentos e reportagens do período que mencionaremos aqui, faz o mesmo.
12. Um retrato biográfico de Antõnio Jannuzzi publicado pela revista O Album, em agosto de
1893, dá a data de chegada dos irmãos em montevidéu como 1870, mas a maior parte das
demais referências coloca mesmo em 1872, daí nossa preferência pela manutenção desta
última data no corpo do texto.
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SUMÁRIO
O caso dos Valdenses: imigração e redes de relação de uma
comunidade italiana protestante a partir da frenteira Sul
ascendência Valdense, vinham do Uruguai, tendo ambos nascido em
Montevidéu, mas seu pai, Giacomo Gianelli, havia emigrado da Itália
em 1849. Este Giacomo Gianelli, ou Santiago Gianelli como passou
a ser conhecido no Uruguai, também foi fundador e proprietário de
uma indústria de moagem que realizou negócios no interior do país
e na região da fronteira com o Brasil e na campanha sul ente 1850 e
1860 (CURI, 1996, p.55). Mais do que isso, Santiago também foi um
dos patronos do associativismo italiano pelo Uruguai, bem como um
dos principais defensores do movimento sindical no país tanto no
campo quanto nas fábricas (CURI, 2014, p.03).
Outra parceria de destaque dos Jannuzzi foi com os empresários
gaúchos Eduardo Palassin Guinle, descendente de imigrantes
franceses fixados em Porto Alegre, e Cândido Gaffrée, também
descende de imigrantes franceses e natural da cidade de Bagé, aonde
a família reside até hoje. A partir das décadas finais do século XIX
e do começo do século XX, a Antonio Jannuzai, Fratello & Cia foi a
empresa responsável pela construção de, pelo menos, quatro edifícios
na Avenida Central do Rio de Janeiro para os empreendimentos do
grupo Gaffrée, Guinle & Cia., que ademais dirigia a Companhia Docas
de Santos, responsável pela construção e pelo gerenciamento do porto
de Santos entre 1886 e 1980 (CAPPELLI, 2014, p.120). No tocante ao
elemento religioso, a família de Eduardo Guinle, cujos pais haviam
emigrado da França para Montevidéu na década de 1840, vinha da
isolada comuna de Bazet, nos Altos Pirineus, região conhecida pela
forte influência religiosa cátara e huguenote (DO CARMO, 2008,
p.36), enquanto que os Gaffrée parecem ser um dos únicos elementos
católicos dessa rede.
Na verdade, muitas das relações construídas pelos Jannuzzi
dentro de seu espaço de trabalho eram permeadas por sua
religiosidade. Uma vez estabelecidos na então capital brasileira,
os irmãos se vincularam a Igreja Presbiteriana do Brasil, atuando
ativamente enquanto benfeitores da instituição (FIGUEIRA, 2015,
p.01-02). Também patrocinaram as igrejas Metodista, Anglicana
e Congrecgacionista, com sua empresa sendo responsável pela
construção de um total de 8 templos na cidade do Rio de Janeiro e
região. O mesmo padrão de relacionamento pode ser observado nas
comunidades Valdenses do prata, com um dos primeiros protetores
da comunidade e patrocinadores do seu processo migratório sendo o
Reverendo Frederick Snow Pendleton, da Ingreja Anglicana, e com a
vinculação das Igrejas Valdense e Metodista a partir das décadas de
1870 e 1880, de maneira que um evento não é necessariamente um
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SUMÁRIO
O caso dos Valdenses: imigração e redes de relação de uma
comunidade italiana protestante a partir da frenteira Sul
reflexo ou uma consequência do outro, mas sim que ambos fazem
parte de um processo mais amplo de inserção Valdense no espaço.
Fator curioso também em relativo a vinculação protestante foi
a filiação maçônica do grupo (CAPELLI, 2014, p.120), com o nome
de Antônio Jannuzzi figurando entre os 33 fundadores originais
da Loggia Capitolare Massonica Fratellanza Italiana em 1892, loja
maçônica fundada por iniciativa de imigrantes italianos com apoio
da Società Italiana di Beneficenza e Mutuo Soccorso (da qual o
próprio Antônio era o presidente) do Rio de Janeiro. É mais do que
certo que a inserção dos irmãos nestes espaços garantiu a expansão
de seus contatos e influência e é provável que essa inserção tenha se
tornado possível a partir de relações estabelecidas dentro da Igreja
Presbiteriana, tal como ocorreu no Rio Grande do Sul com imigrantes
Valdenses filiados a igreja Metodista e loja maçônica do Grande
Oriente do Rio Grande do Sul. Aqui, a comunidade Valdense mais
proeminente foi provavelmente a estabelecida a partir das Colônia
Dona Isabel e Alfredo Chaves, nos atuais municípios de Bento
Gonçalves e Veranópolis a partir das quais observamos outra vez
este vínculo entre protestantismo e maçonaria. Vicente Dalla-Chiesa
(2018, p.182), por exemplo, comenta o caso do imigrante Angelo
Dal’Acqua, Valdense maçom reside de Bento Gonçalves, que em 1903
se realocou para Bagé a convite de um companheiro maçom que já
residia na cidade, o também Valdense Silvestre Benvengú.
Mas de volta as relações estabelecidas pelas parcerias
comercias dos Jannuzzi, passamos então a dar um rápido olhar ao
sócio de Pallasin Guinle, o bajeense Cândido Gaffrée. Embora sua
família também tivesse origem francesa, os Gaffrée – ao que parece
– não possuíam vinculação religiosa protestante, tanto que o próprio
Cândido destinou em seu testamento o montante de cem mil contos
de réis as igrejas matrizes das cidades do Rio de Janeiro, Santos, Porto
Alegre e Bagé. Na verdade, sabe-se pouco da trajetória da família
Gaffrée externo a sua influência em nível local, dado que trabalhos
dedicados a trajetória desses dois imigrantes parecem colocar os
Guinle enquanto objeto central de pesquisa na maior parte da vezes.
O que sabemos com certeza é que o pai de Cândido, Antônio
Gaffrée, era natural de Dunquerque no norte da França13, imigrou
para a América do Sul em algum momento na primeira metade do
século XIX , tendo se estabelecido na cidade de Bagé até o ano de
13. Conforme informado pelo registro de Batismo do próprio Cândido Gaffrée e de seus
irmãos.
343
SUMÁRIO
O caso dos Valdenses: imigração e redes de relação de uma
comunidade italiana protestante a partir da frenteira Sul
184814 na companhia da esposa, Juliana de Azambuja Gaffrée (de
provável ascendência portuguesa). De fato, Cândido parece ter sido
o único dos filhos do casal que se dirigiu para fora da região, tendo
chegado ao Rio de Janeiro em 1870, com cerca de 17 anos (BULCÃO,
2015, s/p), aonde abriu a loja de tecidos Aux Tuileries, a qual Eduardo
Guinle entrou em sociedade logo em 1871 (DO CARMO, 2008, p.36),
dando as bases para o desenvolvimento do chamado Polvo-do-Rio. O
sobrinho e afilhado de Cândido, Cândido Lucas Gaffrée, que deixou
Bagé para estudar no Rio de Janeiro no começo do século XX, também
entrou em negócios com a Antonio Jannuzzi, Fratello & Cia.
Uma última relação de trabalho que vale explorar aqui devido a
seus vínculos com a fronteira é a que os Jannuzzi mantiveram como o
político e jornalista carioca José Carlos Rodrigues, dono e diretor do
Jornal do Comércio – para o qual os irmãos edificaram uma nova sede
em 1908, junto a Avenida Central do Rio de Janeiro (CAPPELLI, 2014,
p.120) – que, para além da parceira comercial, também amigo pessoal
íntimo dos irmãos.
Essa amizade, por sua vez, parece ter sido possibilitada pela
circularidade comum que ambos tinham em espaços de cunho
religioso e político. Rodrigues era amigo de longa data do reverendo
americano George Whithill Chamberlain, pastor presbiteriano que
foi um dos encarregados da organização da primeira congregação
da Igreja Presbiteriana no Brasil e, posteriormente, um dos líderes
do processo de difusão do presbiterianismo pelo estado de São
Paulo15 (ASCIUTTI, 2010, p.40). Mais do que isso, Chamberlain
foi o responsável pela “conversão”16 de José Carlos Rodrigues ao
Protestantismo, ainda na década de 1870. Mas é dentro do campo
político que Rodrigues ganha especial destaque, sendo conhecido por
suas opiniões e filiações de cunho liberal e tendo trabalhado como
Oficial de Gabinete para o ministro João da Silva Carrão, enquanto
Ministro da Fazenda (1866), durante o Gabinete Olinda (1865-1866) e
tendo sido um amigo pessoal de Gaspar Silveira Martins (ROSSATO,
2016, p.147-148), também conhecido dos Jannuzzi.
14. Data de nascimento do primeiro filho do casal, Joaquim Gaffrée, irmão mais velho de
Cândido, nascido em 26 de abril daquele ano.
15. Em 1870, Chamberlain ainda se tornou fundador da “Escola Americana de São Paulo”, atualmente a Universidade Presbiteriana Mackenzie (DE PAULA, 1953, p.429).
16. Rodrigues nunca se converteu a uma corrente religiosa em específico, mas ao longo de sua
vida atuou ativamente nas igrejas Presbiteriana, Anglicana e Metodista, sendo comumente
referenciado na bibliografia como “de fé protestante”.
344
SUMÁRIO
O caso dos Valdenses: imigração e redes de relação de uma
comunidade italiana protestante a partir da frenteira Sul
As redes de relações de Silveira Martins, cidadão fronteiriço
nascido em Melo (no Uruguai) de pais brasileiros naturais de Bagé, e
sua atuação social e política em defesa da imigração e dos imigrantes,
reforma eleitoral e da inclusão dos acatólicos na vida política
nacional são bem conhecidas, tendo sido largamente trabalhadas
por pesquisadoras como Mônica Rossato (2013; 2016) em trabalhos
recentes. A vinculação política dos Jannuzzi a um posicionamento
de ordem liberal também se faz central ao processo de construção
de suas redes de relação. Autores confessionais de origem Valdense
como Giorgio Tourn (1983) vinculam ainda mais o quadro religioso
ao seu posicionamento político de maneira geral, defendendo que o
grupo já se encontrava, desde o século XVIII, inserido “dentro de el
modelo mercantil-burgués-protestante, enfrentando al absolutismo
catolico” (1983, p.248-249), de maneira que as relações estabelecidas
por eles procuravam reproduzir esta linha de pensamento político,
econômico e social.
É curioso pensa nos indivíduos que compunham alguns dos
braços que a rede de relação estabelecida pelos Jannuzzi era capaz
de estender. Ao longo de seus contatos eles formavam um grupo
consideravelmente diverso de pessoas que dispunham de uma vasta
capacidade de circulação que, por coincidência, irradiava a partir de
um espaço singular como o da região da fronteira platina. A maioria
dos sujeitos pertencentes a essa rede de protestantes cariocas (que
não obstante incluía católicos, paulistas, gaúchos e imigrantes
europeus e americanos) transitaram e/ou tinha acesso a contatos
diretos que transitavam pela fronteira Brasil/Uruguai entre as
décadas de 1850 e 1890 e a própria rede era baseada em fatores de
ordem política, religiosa, fraternal e comunitária características.
Durante este período de maneira geral podemos dizer que esta
região de fronteira parece ter sido central ao itinerário daqueles de
trajetória imigrante. A partir dos seus contatos com Silveira Martins,
por exemplo, tanto Rodrigues quanto os irmãos Jannuzzi poderiam
chegar ao interior do Uruguai e a cidade de Bagé, onde poderiam
encontrar com os Gianelli e com os Gaffrée, se ligando ainda aos
Guinle a partir destes. Também a partir de Silveira Martins, e de
sua defesa da inclusão política e eleitoral dos grupos acatólicos,
os elementos de elite protestante dessa rede, como Rodrigues e os
próprios Jannuzzi e Guinle, poderiam encontrar voz para garantir
sua inserção nos processos políticos locais e nacionais que em
grande parte garantiram sua ascensão comercial e social.
345
SUMÁRIO
O caso dos Valdenses: imigração e redes de relação de uma
comunidade italiana protestante a partir da frenteira Sul
A partir da maçonaria, tanto de suas lojas vinculadas ao Grande
Oriente da Itália quanto daquelas vinculadas ao Grande Oriente do
Rio Grande do Sul, e das associações de mútuo socorro capitaneadas
e promovidas pela imigração italiana de modo geral e em espacial
pelos imigrantes Valdenses, bem como das instituições de filantropia
e doação, por sua vez, era possível também assegurar uma maior
inserção em diversos setores da sociedade que pudessem auxiliar na
sua própria adaptação, desde as demais comunidades imigrantes e
protestantes, a grupos políticos e intelectuais de cunho liberal.
Mais do que isso, como a própria rede era centrada em um
espaço externo a região de fronteira em que se concentrava a maior
parte da influência Valdense na América, era mesmo necessário que
ela se desenvolvesse de maneira tão ampla quanto possível para que os
contatos pudessem adquirir maior utilidade a estes imigrantes. Dito
isso, vale aqui comentar que essa percepção das relações imigrantes
só foi possível a partir da inclusão dos Valdenses na historiografia
da imigração e na história da fronteira sul e do Rio Grande do Sul.
Inserindo esse grupo longamente negligenciado na pesquisa histórica é
possível, então, observar uma região ainda mais ativa e interconectada,
na qual a cidade de Bagé, enquanto centro urbano, comercial e
político tem considerável destaque. Para além disso, o pioneirismo
imigrante e associativista na região parecem indicar que os Valdenses
e a influência de suas redes e instituições já se encontravam mais
inseridos na sociedade local do que originalmente proposto.
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346
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348
SUMÁRIO
349
SUMÁRIO
OS ALEMÃES-RUSSOS DE ACEGUÁ:
AS MIGRAÇÕES DOS MENONITAS
Carlos Eduardo Piassini1
350
SUMÁRIO
Os alemães-russos de Aceguá: as migrações dos menonitas
1
Introdução
As primeiras levas de imigrantes alemães chegaram no Rio
Grande do Sul em 1824, instalando-se na área da Real Feitoria do
Linho Cânhamo, atual São Leopoldo. Ao longo dos séculos XIX e XX,
outras regiões gaúchas conheceram aquele processo colonizatório
baseado na pequena propriedade. Os objetivos eram diversos:
contar com soldados para a defesa da independência brasileira;
produzir alimentos; adensar a população; ocupar o território para
que os espanhóis, e depois as Repúblicas vizinhas recentemente
independentes, não o fizessem; expulsar os grupos indígenas
presentes naquelas regiões; branquear a população; valorizar as
terras pouco interessantes aos grandes proprietários da fronteira
meridional; e garantir a construção e manutenção de estradas,
conectando diferentes regiões do Rio Grande do Sul (KLUG, 2009;
PIASSINI, 2014).
A colonização alemã começou a partir de uma política
intencional do governo imperial brasileiro. Inicialmente, a principal
preocupação de D. Pedro I era fortalecer o poder militar do Império,
pois a independência ainda não estava garantida, uma vez que
Portugal não havia a aceitado e nem reconhecido. Assim, foram
recrutados mercenários alemães sob o disfarce de colonos para burlar
a imposição do Congresso de Viena (1814-1815) de proibir a formação
de tropas militares de mercenários, afinal, acreditava-se que essa
medida poderia impedir que outro Napoleão Bonaparte pudesse
1. Professor Mestre pela Universidade Federal de Santa Maria.
351
SUMÁRIO
Os alemães-russos de Aceguá: as migrações dos menonitas
surgir e ameaçar as monarquias europeias. Ao mesmo tempo, as
pressões inglesas para o fim do tráfico de escravos impeliram o
governo imperial a tomar medidas para, paulatinamente, substituir
a mão-de-obra negra e cativa pela livre e branca. Assim, em São
Pedro do Rio Grande do Sul, houve a colonização alemã baseada
na pequena propriedade agrícola, uma proposta de organização
econômica distinta daquela predominante na referida província, ou
seja, do modelo das grandes propriedades oriundas, sobretudo, da
distribuição de sesmarias (CUNHA, 2017).
Segundo Lando e Barros (1992, p. 19),
Os imigrantes que se dirigiam para o Rio Grande do
Sul eram atraídos por uma política governamental que
pretendia, fixando-os à terra, formar colônias que produzissem gêneros necessários ao consumo interno. Localizavam-se próximos de um centro urbano, mas suficientemente distantes das áreas da grande propriedade,
de modo a não apresentar uma ameaça à sua hegemonia
política e econômica. Recebiam terras do governo imperial, as quais exploravam de modo independente, dedicando-se primeiramente à agricultura [...].
A colonização alemã no Rio Grande do Sul, portanto, começou
no Vale do Rio dos Sinos, estendendo-se durante o século XIX para
as regiões do Litoral, Vale do Taquari, Vale do Rio Pardo, Paranhana
Encosta da Serra, Vale do Caí, Central, Metropolitana Delta do Jacuí,
Hortênsias, Jacuí Centro e Sul. Houve a tentativa de instalação de
uma Colônia alemã nas Missões, mas não logrou êxito. Durante muito
tempo, houve o entendimento de que a escolha daqueles locais se deu
porque os imigrantes alemães teriam procurado áreas semelhantes
à sua terra de origem, ou seja, zonas de mata e serraria. Porém, o
que ocorreu, é que “A Fronteira, os Campos de Cima da Serra, o
Distrito das Missões e o Litoral – em resumo, todas as terras próprias
para pecuária e, posteriormente, para o arroz – estavam ocupadas”
(DACANAL, 1980, p. 274), restando apenas as regiões de mato, em
que as melhores terras eram aquelas próximas aos rios navegáveis.
Essas regiões, que foram rapidamente colonizados ao longo do
séc. XIX, contavam com terras de origem vulcânica, potencialmente
aptas para a agricultura, e áreas de planície que recompunham sua
fertilidade periodicamente, a partir das inundações dos rios, como
o Caí, o Sinos e o Rio Pardo. As terras florestais do Rio Grande do
Sul, diferentemente daquelas do Sudeste, eram menos valorizadas,
pois a principal atividade econômica da província meridional era
a pecuária, desenvolvida em áreas de campo. Assim, a colonização
352
SUMÁRIO
Os alemães-russos de Aceguá: as migrações dos menonitas
alemã foi dirigida para as áreas de mata para não criar concorrência ao
latifúndio exportador, como era o caso da Campanha. Outros fatores,
porém, devem ser considerados. Diferentemente da abundância
das terras florestais, o solo arenoso da Campanha era escasso em
recursos, com baixa fertilidade e acentuada acidez, o que dificultaria
a implantação de colônias agrícolas. Também o acesso a água era
difícil. Os fazendeiros deslocavam seus rebanhos para os locais
próximos dos cursos d’água, mas esse movimento não seria possível
às atividades agrícolas dos colonos alemães. Outro recurso escasso
era a madeira, fundamental para o assentamento das Colônias, pois
era matéria-prima para a construção de casas, galpões, cercados
e utensílios, ao mesmo tempo em que servia como combustível
doméstico (CHRISTILLINO, 2010).
Desde o início do séc. XIX, as áreas de fronteira do Rio Grande
do Sul com a Argentina e o Uruguai estavam ocupadas com estâncias,
portanto, a instalação de Colônias naquela região exigiria gastos e
desgaste político da Coroa junto aos fazendeiros locais com a compra
e desapropriação de terras, algo desnecessário, uma vez que existiam
terras devolutas nas áreas florestais da província. Assim, explica
Christillino (2010), as Câmaras de Vereadores de municípios da
fronteira rejeitaram a criação de Colônias na região, o que levou o
Governo Imperial a escolher as regiões de mata, onde, diferentemente
da Campanha, parte da elite local recebeu com entusiasmo o
empreendimento colonizador. Outro fator que repeliu a colonização
alemã na Campanha esteve relacionado ao seu aspecto fronteiriço:
Geopoliticamente era importante o povoamento das
províncias de fronteira. Contudo, a Coroa e o Governo Provincial do Rio Grande do Sul evitaram, entre as
décadas de 1850 e 1880, a instalação de colônias próximas às divisas com os países platinos. Não era seguro
ocupar os limites políticos do Império com elementos
estrangeiros estranhos ao poder local e nacional. Além
do mais, as divisas meridionais do Brasil não estavam
solidamente afirmadas, e os colonos poderiam se voltar contra o Império numa eventual revolta e, incentivados pelos governos dos países vizinhos, poderiam
criar problemas quanto ao território ocupado (CHRISTILLINO, 2010, p. 161).
Todos esses fatores, portanto, afastaram a colonização alemã
da região da Campanha. Ainda assim, grupos de origem alemã, como
os descendentes das primeiras levas de imigrantes e novos grupos
que vieram para o Brasil no séc. XX, acabaram espalhando núcleos
353
SUMÁRIO
Os alemães-russos de Aceguá: as migrações dos menonitas
colonizatórios em grande parte do Rio Grande do Sul, para além das
regiões iniciais, vindo até mesmo a marcar presença na Fronteira
Oeste e na Campanha. Em Aceguá, município pertencente a Bagé
até 1996, houve a presença de alemães-russos, instalados na Colônia
Nova, fundada em 1949. A história desse núcleo está relacionada
com diferentes momentos históricos de elevada importância, como a
Reforma Luterana do séc. XVI e a Revolução Russa do séc. XX.
A Reforma Luterana e os Menonitas
A partir do séc. XIV, quando a Europa foi assolada pela Grande
Peste, que dizimou cerca de 30% a 60% de sua população, ou seja,
entre 75 e 200 milhões de pessoas, o poder da Igreja Católica passou
a ser questionado. Os conhecimentos científicos ainda não eram
suficientemente avançados e disseminados para que as pessoas
pudessem compreender a origem e as causas daquela peste tão mortal.
As respostas vieram carregadas com os elementos da mentalidade
daquela época: seria um castigo divino, um forte sinal do fim dos tempos.
A cristandade pecadora havia decepcionado o criador, que enviara a
peste para separar os bons dos maus. A dimensão catastrófica daquele
cenário trouxe consequências para a Igreja Católica: o penoso castigo,
muitos tiveram a coragem de pensar, não seria necessariamente voltado
aos cristãos pecadores, mas sim para o clero desviante, que havia se
afastado dos preceitos originais do catolicismo; ao mesmo tempo, as
soluções religiosas, como preces, flagelos e peregrinações, não faziam
a peste passar, de modo que a Igreja deixou de conseguir oferecer a
muitos fiéis respostas para suas angustias existenciais; ainda, com o
fim da peste, percebeu-se que o mundo não havia acabado e que não
acabaria, colocando em dúvida a ideia do juízo final e da remissão dos
pecados. Apesar de tudo, a Igreja Católica sobreviveu àquele contexto
dificílimo e continuou imensamente poderosa. Por outro lado, ganhou
forma o gérmen das reformas religiosas do séc. XVI (FOSIER, 1988;
FRANCO JÚNIOR, 2001).
Em várias partes da Europa, ainda no começo do séc. XVI,
eram comuns procissões de flagelantes penitentes que, entre açoites
e gemidos, suplicavam o perdão de seus pecados. Aquele era um
sinal da desesperança que tomava muitos europeus. O processe de
crise da cristandade fez ganhar corpo um movimento constituído de
religiosos devotados à pureza da espiritualidade cristã, que passaram
a defender uma religiosidade mais sincera e intimista, para além dos
sacramentos e distante dos luxos de Roma. O maior exemplo disso
354
SUMÁRIO
Os alemães-russos de Aceguá: as migrações dos menonitas
esteve em Martinho Lutero, um monge alemão que mudou os rumos
da religião no mundo Ocidental (FEBVRE, 2012).
As maiores críticas a Igreja eram em relação ao nicolaísmo,
que era a prática de muitos clérigos de viver com mulheres e/ou
ter relações sexuais, burlando o celibato e ao simonismo, que era
a prática de realizar negociatas ou tráfico envolvendo assuntos e
objetos sagrados, como a compra de cargos eclesiásticos e a venda
de indulgências. A Igreja Católica parecia indiferente as críticas e os
papas pouco ou nada faziam pela fé católica, bastando fazer valer os
sacramentos, a autoridade dos bispos nas dioceses e dos padres nas
paróquias. Esperava-se que os fiéis batizassem seus filhos, casassem
com a benção do pároco, fizessem a confissão dos pecados e pagassem
o dízimo e as missas pelas almas no purgatório. Portanto, pouco
importava a relação íntima dos fiéis com a religiosidade, desde que
cumprissem os ritos católicos. No séc. XVI, a Igreja passou a vender
indulgências como nunca havia feito antes, assegurando que quem
pagasse por elas teria seus pecados mortais abolidos e garantiria um
lugar no paraíso (FEBVRE, 2012).
Em 1517, o papa Leão X autorizou a venda de indulgências para
a construção da nova basílica de São Pedro, no Vaticano, cujo valor
estava afundando a igreja em dívidas. Como reação, o monge Martinho
Lutero enviou 95 teses críticas as práticas da igreja anexadas a cartas
endereçadas a Alberto de Mainz, Arcebispo de Mainz, ao papa Leão
X e à diversos de seus amigos e professores universitários, em 31 de
outubro de 1517, data considerada como o início da Reforma Protestante
e comemorada anualmente como o Dia da Reforma Protestante. Sem
respostas dos altos eclesiásticos, Martinho Lutero, ou um pequeno
grupo de seus estudantes, teria afixado as 95 teses na porta da igreja
do Castelo de Wittenberg, Alemanha. Lutero criticava as indulgências
e diversos abusos do clero que afastavam os fiéis da igreja e, portanto,
da salvação eterna. Aquela ação resultou no início do movimento
reformista. Lutero não desejava romper com a Igreja Católica, mas
apenas ver realizada uma reforma interna (FEBVRE, 2012).
O alto clero exigiu retratação de Lutero, mas o monge não
recuou, pelo contrário, reafirmou suas posições. Em 1520, o papado
publicou a Bula Exsurge Domine ameaçando Lutero de excomunhão.
O monge queimou uma cópia da Bula em claro aviso de que não
iria ceder às pressões. Assim, em 1521, ele acabou excomungado
pelo papa Leão X. Também o imperador do Sacro Império Romano
Germânico, Carlos V, procurou pressionar Lutero para que retirasse
suas críticas ao clero católico, convocando para isso uma assembleia,
a Dieta de Worms. Naquela ocasião, mais uma vez, Lutero afirmou
355
SUMÁRIO
Os alemães-russos de Aceguá: as migrações dos menonitas
suas convicções e desafiou os presentes a provarem, com base nas
escrituras, que ele estava errado (FEBVRE, 2012).
O pensamento reformista de Lutero pode ser resumido em três
doutrinas: a justificação ou salvação pela fé, o sacerdócio universal e
a infalibilidade da bíblia. A primeira doutrina estabelecia que o bom
cristão deveria, antes de tudo, ter fé em deus, pouco importando as boas
obras que ele pudesse fazer na vida terrena para salvar sua alma após a
morte, pois a graça provinha da fé interior, não de gestos externos ou
da compra de indulgências. A segunda doutrina estabelecia que todo
bom cristão poderia ser pastor de seu rebanho, desde que estudasse
as escrituras. Não deveria existir uma separação radical entre o clero
e a massa de cristãos. A terceira doutrina contrariava frontalmente
o poder de Roma, pois, no lugar da infalibilidade do papa, Lutero
pregava a infalibilidade da bíblia, daí a necessidade de traduzi-la do
latim para as línguas vernáculas (línguas correntes). Ainda, Lutero
considerava o celibato uma hipocrisia, de modo a aceitar o casamento
como uma possibilidade real (FEBVRE, 2012).
A invenção da imprensa no séc. XV, por Gutemberg, permitiu
a rápida difusão das ideias de Lutero em toda a Europa, o que
inspirou novos movimentos reformistas e deu argumentos para
ações revolucionárias, como algumas revoltas camponesas. Assim,
teve origem o Movimento Anabatista, a Reforma de João Calvino, o
puritanismo inglês, o Movimento Huguenote francês, e o Movimento
Menonita, entre outros. Surgiram várias correntes com diversos
nomes e doutrinas, quase todas derivadas, em maior ou menor grau,
das versões luterana e calvinista. Teve grande destaque a doutrina
anabatista, considerada como uma corrente radical da Reforma
Protestante, adotada por diferentes grupos, com crenças e práticas
próprias, unidos pelo entendimento de que o batizado deveria
ocorrer na vida adulta, como uma escolha consciente dos convertidos.
Desconsideravam, portanto, o batismo católico, luterano e anglicano
(SNYDER, 2004).
O anabatismo da Reforma Protestante esteve baseado nos
princípios de justificação pela fé e do sacerdócio universal, ou seja,
partiu do princípio de que deveria existir a adesão voluntária do crente
à Igreja. Contudo, Lutero, Calvino e outros reformadores mantiveram
o batismo infantil, o que ia de encontro ao ideal da liberdade de
escolha dos anabatistas. Em 1523, em Zurique, na Suíça, o ex-padre
Ulrich Zwingli, passou a reformar os preceitos religiosos da Igreja
local. Alguns de seus discípulos, Georg Blaurock, Conrad Grebel e
Félix Manz, discordaram da perspectiva de Ulrich ao desejarem
uma reforma mais radical, tanto na questão do batismo, quanto em
356
SUMÁRIO
Os alemães-russos de Aceguá: as migrações dos menonitas
relação a vinculação da Igreja e do Estado. Eles defenderam a ideia
de que não havia nenhuma justificativa para a igreja estar atrelada
ao Estado e que os cristãos eram uma comunidade de crentes que
deveria seguir Cristo por meio de uma escolha consciente, expressa
em testemunho público através do batismo adulto. Em 21 de janeiro
de 1525, em Zollikon, um subúrbio de Zurique, o grupo realizou seu
batismo, ou como definiram, seu “re-batismo”, considerado como
batismo de fé, iniciando um movimento que se espalhou rapidamente
por toda a Europa, especialmente nos territórios do Sacro Império
Romano-Germânico. Aquela data acabou escolhida como o marco de
fundação da Igreja Anabatista (SNYDER, 2004).
Assim como ocorreu dentro do movimento protestante, também
entre os anabatistas surgiram ramificações e novas denominações,
algumas mais radicais do que outras. O episódio da Rebelião de
Münster (1534-1535), resultado do radicalismo ideológico de seus
realizadores, teve importante impacto na história dos anabatistas.
Seguidor de Lutero e profundo conhecedor da Bíblia, Melchior
Hoffman conquistou notoriedade com suas pregações críticas à Igreja
Católica. Camponeses e grupos sociais desfavorecidos foram atraídos
por suas palavras, que os inspiraram a lutar por mudanças, gerando
distúrbios sociais. Assim, Hoffman foi expulso de algumas cidades,
até chegar em Estrasburgo, onde teve contato com o movimento
anabatista, ao qual se converteu. A grande preocupação de Hoffman
dizia respeito ao retorno de Cristo, sobretudo em relação ao local
em que isso ocorreria: dizendo ter revelações de deus, ele acabou
convencido de que Estrasburgo seria esse lugar. Hoffman acabou
preso e, após quase uma década nessa condição, morreu. As ideias
dele, porém, influenciaram outros pregadores, como o holandês Jan
Matthijs, que se mudou para a cidade alemã de Münster, na Vestfália,
em 1534 (DICK e AUGUST, 2019).
Para Matthijs, diferentemente de Hoffman, a cidade em que
ocorreria o retorno de Cristo seria em Münster, por ele chamada
de “Nova Jerusalém”. Assim, caberia aos fiéis preparar esse grande
evento, o que compreenderia a perseguição e execução daqueles
que não estivessem alinhados aos dogmas anabatistas. Junto de
Matthijs, atuaram outros fervorosos anabatistas, como o pastor
luterano Bernhard Rothmann, e o alfaiate Jan Leiden. Oponente
incansável do catolicismo, o pastor Bernhard Rothmann escreveu
panfletos que, inicialmente, traziam fortes críticas à Igreja Católica e
que, depois, defendiam que a Bíblia clamava pela igualdade absoluta
dos homens em todas as questões, inclusive quanto a distribuição
da riqueza. Os panfletos, distribuídos em todo o norte do território
357
SUMÁRIO
Os alemães-russos de Aceguá: as migrações dos menonitas
alemão, atraíram muitos pobres da região para a cidade de Münster,
com a ilusão de que lá teriam acesso a distribuição de sua riqueza.
A presença daquelas pessoas ajudou Rothmann e seus aliados a
colocarem o comerciante de lã, Bernhard Knipperdolling, como
prefeito de Münster. Aquele grupo anabatista, ligado as ideias de
Matthijs, portanto, havia chegado ao poder. Houve a instauração
de uma nova ordem. A população foi forçada a escolher entre o rebatismo ou a morte, mosteiros foram tomados, as riquezas e bens da
cidade foram confiscados e distribuídos igualitariamente e luteranos
e católicos foram vigorosamente perseguidos, de modo que muitos
fugiram (DICK e AUGUST, 2019).
O bispo de Münster conseguiu reunir forças militares e sitiar a
cidade por longo período, até lograr êxito em sua retomada. Houve
um terrível massacre de muitos dos habitantes remanescentes da
cidade, assim como a tortura e execução dos líderes anabatistas.
Seguiu-se uma grande onda de perseguição contra os anabatistas
por toda a Europa, uma vez que acabaram associados com aquele
episódio. Aliás, tal estado de coisas já era constante desde a década
de 1520, pois os anabatistas, além de contestarem o catolicismo,
o luteranismo e o calvinismo, traziam em suas ideias traços de
contestação da ordem política e social vigente nos países de língua
alemã no início do séc. XVI. Assim, tiveram contra eles poderosas
forças políticas e religiosas, que usaram a Rebelião de Münster como
pretexto para intensificar o combate que faziam aos anabatistas.
Inclusive Martinho Lutero recomendou o uso da força para dar fim ao
movimento anabatista. Houve prisões, multas, torturas e, até mesmo,
julgamentos e execuções por heresia (DICK e AUGUST, 2019).
O cenário pouco amigável resultou na migração de grupos
anabatistas para regiões menos hostis ao seu modo de vida e
pensamento religioso. Alguns soberanos europeus aceitaram de
bom grado a vinda desses grupos para povoar suas possessões
escassamente habitadas. Os territórios de maior atração para os
anabatistas foram o Palatinado, a Alsácia e a Morávia. Essa migração
permitiu a sobrevivência do anabatismo e sua difusão para outras
regiões da Europa, como os Países Baixos, onde desde o século XIV,
já existia uma forte tendência para a reforma da Igreja por meio de
movimentos como o dos sacramentários, a Devotio Moderna e os
Irmãos da Vida Comum. Na Holanda, desenvolveu-se a ramificação
dos anabatistas denominada de Menonitas, sob a liderança do expadre católico Menno Simons. Para fugir da ligação existente entre
o termo “anabatista” e o episódio de Münster, o grupo holandês
358
SUMÁRIO
Os alemães-russos de Aceguá: as migrações dos menonitas
adotou a denominação de Menonita, como uma homenagem ao seu
líder (MASKE, 2013).
As migrações Menonitas
A vida religiosa dos Menonitas os fez se isolarem por meio do
estabelecimento de colônias autossuficientes, com pouco contato
com o mundo exterior. Inclusive, esse comportamento deu origem
a ramificação anabatista dos Amish, estabelecida nos Estados
Unidos e Canadá, conhecida até os dias de hoje por seus costumes
ultraconservadores. Ao mesmo tempo, esse isolamento era uma
resposta as perseguições que sofriam.
Como explica Maske (2013, p. 258)
Regiões inóspitas e pouco povoadas foram sendo procuradas e colônias menonitas foram sendo estabelecidas,
muitas vezes com o beneplácito dos soberanos dessas
regiões, desejosos de povoar seus territórios com camponeses ativos, para aumentar a riqueza de seus domínios. Várias localidades da Europa acolheram refugiados menonitas, concedendo-lhes liberdade de religião,
isenção de prestação de juramentos e de servir nos
exércitos do rei. Regiões do centro e do leste da Europa,
Prússia, Polônia e Rússia foram sendo ocupadas num
período de quase trezentos anos, entre 1549 e 1763.
Portanto, as perseguições e guerras religiosas da época moderna
levaram os Menonitas a procurarem regiões que os aceitassem,
fechando-se enquanto comunidades em colônias isoladas. Com
a conquista da América pelos europeus e sua colonização, muitos
Menonitas acabaram emigrando para os Estados Unidos, inclusive,
foram alguns dos primeiros alemães a migrarem para lá. Espalharamse pelo mundo, com presença significativa no continente africano,
no Paraguai e no México. Outros continuaram isolados no Velho
Mundo (MASKE, 2013).
Adeptos de uma rotina de trabalho e honestidade, muitos
grupos Menonitas conseguiram transformar terras pouco produtivas
em áreas atrativas, com granjas e fazendas rentáveis. Tornaram-se
especialistas na produção de queijos e laticínios, sobretudo pela
experiência com pecuária leiteira e no cultivo de cereais. Por conta
disso, no final do séc. XVIII, um grupo Menonita estabelecido na
Prússia, então território germânico, recebeu o convite da Imperatriz
da Rússia, Catarina, a Grande, para povoar uma região conquistada
pelos russos com as Guerras Russo-Turcas (1768-1774), hoje Ucrânia.
359
SUMÁRIO
Os alemães-russos de Aceguá: as migrações dos menonitas
Os que aceitaram o convite foram assentados em Chortitza, em
1789, e Molotschna, em 1804. Mantiveram-se, entretanto, como
estrangeiros, pois não professavam a religião oficial do Império
Russo, a católica ortodoxa. Receberam a autorização de manter sua
fé e modo de vida anabatista, desde que não tentassem converter
o povo russo. Assim, puderam viver alguns anos em relativa
tranquilidade, dedicando-se a atividades agrícolas, além disso,
ergueram importantes instituições médicas. Com o passar do tempo,
frente a diminuta oferta de terras em relação ao crescimento da
população, os Menonitas se espalharam para diversas regiões do
Império Russo. No começo do séc. XX, especificamente quando
da eclosão da Primeira Guerra Mundial, os Menonitas já somavam
120.000 membros na Rússia (MASKE, 2013; LUNELLI, 2001).
As primeiras décadas daquele século trouxeram desafios
aos Menonitas russos. A Grande Guerra fez pairar sobre eles a
desconfiança de que haviam colaborado com a Alemanha, pois
legalmente eram considerados como uma minoria alemã dentro da
Rússia, inclusive tendo o alemão como língua principal. Isso se deu
apesar de uma maior integração com a sociedade receptora, uma vez
que os hospitais e lazaretos das comunidades Menonitas atenderam
muitos pacientes que não pertenciam a elas, ao mesmo tempo, a
prosperidade econômica de suas colônias impulsionou o contato
deles com a sociedade russa, já que dela vinham muitos de seus
empregados em fazendas, fábricas e residências. A prosperidade dos
núcleos Menonitas dentro de um país cheio de miséria desagradava
alguns grupos, como os nacionalistas. Assim, acabaram sofrendo
graves consequências com as transformações resultantes da
Revolução Russa de 1917 (MASKE, 2013).
Fortemente ligados às atividades capitalistas e proprietários
de importantes extensões de terra, acabaram sendo considerados
como inimigos dos revolucionários. A guerra civil entre os exércitos
Vermelho e Branco levou a invasão de suas propriedades, com sérios
prejuízos financeiros. Além disso, bandos armados apareceram para
roubar, matar e queimar o pouco que restou. Assim, em 1923, um
grande contingente de Menonitas passou a emigrar para o Canadá,
a partir de contatos com conhecidos lá estabelecidos desde a década
de 1870. Aqueles que permaneceram em território russo tiveram de
reconstruir suas vidas e defender seus interesses dentro de uma
nova realidade (MASKE, 2013).
Apesar de ter se implantado um regime socialista na
Rússia, até 1928 não houve uma ação do governo revolucionário no sentido de confiscar a propriedade rural.
360
SUMÁRIO
Os alemães-russos de Aceguá: as migrações dos menonitas
Isso se devia à NEP (New Economic Policy), que não implantava ainda o confisco generalizado de todos os bens
de produção. Era um tipo de socialismo de Estado que
somente encampou as grandes fábricas, os bancos, a
produção de energia, a mineração e as comunicações. O
comércio, os pequenos empreendimentos industriais e
todo o setor agrícola ficaram na mão da iniciativa privada. Inicialmente, com exceção da perseguição religiosa
pelo Estado ateísta, as colônias foram menos atingidas
(MASKE, 2013, p. 260).
Entretanto, tudo mudou quando Stalin chegou ao poder.
O primeiro plano quinquenal do ditador estabeleceu o confisco
compulsório das terras agrícolas e sua coletivização, o que retirou
dos Menonitas sua maior riqueza. A partir de 1928, as comunidades
Menonitas russas procuraram alternativas, entre elas a migração em
massa para o Canadá, o Paraguai e o Brasil. Desesperados, cerca de
13 mil Menonitas foram para os arredores de Moscou e aguardaram
permissão para deixar o território russo. O governo alemão,
defendendo aquele grupo de origem germânica, conseguiu negociar
a permissão para que praticamente a metade dele deixasse a Rússia.
Os que ficaram, acabaram deportados para o interior do país. Quem
seguiu, teve de passar algum tempo em um campo de refugiados na
localidade de Mölln, próximo a Hamburgo, enquanto as autoridades
negociavam com outros países para que recebessem aquele grupo.
O Brasil aceitou, mas sem a garantia de nenhum privilégio, como a
isenção de serviço militar e fiscal. Assim, recebeu um contingente
de cerca de 1.300 Menonitas. O Paraguai, por sua vez, concordou
com todas as reivindicações e para lá foi a maior parte do grupo
refugiado, que estabeleceu uma grande e participativa comunidade
(MASKE, 2013).
Os Menonitas que vieram para o Brasil se instalaram no Estado
de Santa Catarina e foram instalados no Alto Vale do Rio Itajaí, na
região de Ibirama, pela Sociedade Colonizadora Hanseática (SCH),
que naquele contexto colonizava largas faixas de terra no sul do
Brasil. Acostumados ao relevo plano da Rússia, aqueles imigrantes
se depararam com as montanhas da Serra do Mar. Alguns não
conseguiram se adaptar as grandes diferenças geográficas e culturais,
de modo que retornaram para a Europa ou seguiram para a Argentina.
Como a maioria daqueles Menonitas era de trabalhadores urbanos,
não mostraram interesse no trabalho agrícola, o que gerou sérias
críticas a eles por parte da empresa colonizadora SCH. Os colonos,
por sua vez, alegavam que não tinham recebido benefícios prometidos
pela SCH. Assim, houve muitos deles que abandonaram as colônias
361
SUMÁRIO
Os alemães-russos de Aceguá: as migrações dos menonitas
e foram morar em cidades maiores, como Blumenau, Joinville,
Florianópolis, São Paulo e Curitiba (MASKE, 2013; LUNELLI, 2001).
Aqueles que permaneceram nas colônias, dedicaram-se ao
cultivo do milho e da mandioca. Eram, na verdade, especialistas
na plantação de trigo, o que levou alguns deles a migrarem para os
Estados Unidos e o Canadá. O restante, que permaneceu, passou a
buscar terras adequadas ao plantio do trigo. Assim, depois de toda
essa verdadeira saga, chegou até os Menonitas estabelecidos em
Santa Catarina informações sobre o avanço da triticultura no Rio
Grande do Sul, na fronteira com o Uruguai. Houve a formação de uma
delegação que foi visitar aquela região, retornando com entusiasmo.
Em assembleia, os Menonitas decidiram arrendar uma área de 400
ha em Seival, então pertencente a Bagé, hoje município de Candiota,
em 1949. Passaram a produzir trigo com recursos próprios, além de
procurar mais terras. Assim, encontraram o local que passou a ser a
Colônia Nova (LUNELLI, 2001).
Iniciou-se a negociação com o Sr. Plínio A. Silveira da
Rosa, proprietário de 2.256 ha (26 quadras de sesmaria),
no sub-distrito de Aceguá – Bagé, cerca de 45 km da
sede do município e 30 km da fronteira com o Uruguai.
Foi efetivada, em 19.07.1949, a aquisição de parte dessa
área (1.000 há) pelo preço de U$ 6.000,00 a quadra, a ser
pago em dois (2) anos, sendo que os 1.256 ha restantes
foram arrendados por quatro anos, com o compromisso de compra e venda. O então proprietário confiou na
palavra dos colonos; não houve aval, nem garantia, nem
pagamento de entrada (LUNELLI, 2001, p. 46).
A área foi dividida entre as famílias Menonitas, em lotes de 15
e 30 ha. Receberam auxílios por meio de empréstimos de Menonitas
holandeses e americanos, durante quatro anos. O empreendimento
obteve grande êxito. Logo adquiriram mais terras e puderam receber
novas famílias, mecanizando a produção. Infelizmente, a partir
do final da década de 1950, passaram a enfrentar problemas com a
comercialização do trigo, além de condições climáticas e sanitárias
adversas que afetaram a produção. Com isso, vieram dívidas e a venda
de propriedades. Fundaram a Cooperativa Tritícola de Aceguá Ltda.,
para administrar aquela crise. Mesmo assim, cerca de 110 famílias
deixaram a região e migraram para outros Estados e até mesmo para
o exterior (LUNELLI, 2001).
Os que permaneceram resolveram investir em outro ramo
agrícola, a pecuária leiteira. As lideranças da comunidade se uniram
e, em 1959, fundaram a Cooperativa Agrícola Mista Aceguá Ltda., hoje
CAMAL. A partir dessa estrutura, reuniram rebanhos de gado holandês
362
SUMÁRIO
Os alemães-russos de Aceguá: as migrações dos menonitas
e cultivaram pastagens artificiais, além de construir uma fábrica de
laticínios para a produção de queijos e manteiga. A produção leiteira
consolidou a presença Menonita em Aceguá e garantiu o progresso
local nas décadas seguintes. Os avanços tecnológicos na pecuária
leiteira, por exemplo, movimentaram a comunidade para a criação
de uma cooperativa para o fornecimento de energia elétrica, isso nos
anos 1960, que mais tarde daria origem a Cooperativa Regional de
Eletrificação Rural Fronteira Sul Ltda (COOPERSUL). Também na
Colônia Nova houve a fundação de um hospital, que veio a atender
a população da região. Ainda, novas terras foram sendo adquiridas
e novas famílias assentadas, originando as localidades de Colônia
Médici e Colônia Pioneira (LUNELLI, 2001).
Hoje o novo município de Aceguá, desmembrado de
Bagé em 2000, tem uma área territorial de 1.551 km² e
uma população de aproximadamente 7.000 habitantes, sendo que o seu principal distrito é a comunidade
de Colônia Nova, onde se situa o hospital da cidade. O
novo município faz divisa com Bagé, município-mãe,
com Hulha Negra e tem uma grande fronteira seca com
o Uruguai. [...]. Os vários núcleos Menonitas compõe,
atualmente (2001), 213 domicílios (famílias), com 747
habitantes e 86 estabelecimentos agropecuários, responsáveis [...] por 90% da produção leiteira da região de
Bagé [...]. (LUNELLI, 2001, p. 48-49).
Os Menonitas da região da Campanha, portanto, percorreram
um longo caminho histórico até chegarem e se estabelecerem lá.
Ainda que tenham passado muitos anos em território russo, a origem
de seus antepassados é germânica. A história desse grupo retrata
muito bem o mecanismo das migrações humanas em diferentes
épocas. Inicialmente, os Menonitas migraram dentro da Europa, para
regiões que aceitavam sua condição religiosa de cunho anabatista.
Sofreram perseguições e enfrentaram conflitos religiosos, de modo
a se isolarem em pequenas comunidades e desenvolverem um estilo
de vida voltado ao trabalho comunal. A prosperidade de um desses
grupos, residente em território alemão, resultou em convite da
Imperatriz russa para colonizarem áreas recém conquistadas por seu
Império. No que hoje é a Ucrânia, implementaram o mesmo estilo
de vida referido. Tudo ia bem, até que a Primeira Guerra Mundial e
as consequências da Revolução Russa os obrigaram a buscar refúgio
em outros países, como o Paraguai, Estados Unidos, Canadá e Brasil.
No caso brasileiro, instalaram-se em Santa Catarina, mas o desejo
de produzir trigo os levou até a Campanha Sul-rio-grandense, onde
fundaram a Colônia Nova. Temos, assim, a história de um grupo
363
SUMÁRIO
Os alemães-russos de Aceguá: as migrações dos menonitas
humano identificado por sua religiosidade que migrou diversas
vezes, sempre cultivando um estilo de vida comunitário.
Referências
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SNYDER, Arnold. Anabaptism and Reformation in Switzerland: An Historical
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364
SUMÁRIO
365
SUMÁRIO
OS “TURCOS” ESTÃO CHEGANDO:
OS IMIGRANTES SÍRIOS E
LIBANESES EM BAGÉ
Júlio Bittencourt-Francisco 1
366
SUMÁRIO
Os “turcos” estão chegando: os imigrantes sírios e libaneses em Bagé
1
Introdução
O capítulo trata da história da imigração de sírios e libaneses
em Bagé. Levantamos aqui a origem desses imigrantes, os motivos
que os levaram a emigrar e como chegaram ao Brasil, ao Rio Grande
do Sul e a Bagé, mas sobretudo porque escolheram a Rainha da
Fronteira para fincar os empreendimentos que desenvolveram na
cidade, incluindo suas principais contribuições para sociedade
bageense. Neste trabalho, vale frisar, referimo-nos à imigração de
sírios e libaneses para Bagé entre 1890 e 1930.
A proximidade com os vizinhos Uruguai e Argentina e a
realidade econômica que encontraram na cidade, principalmente
nas primeiras décadas do século XX, traçaram a sua estratégia de
inserção e a sua adaptação nesse território. O comércio representou
a principal atividade do grupo, o que lhes proporcionou escapar do
desemprego. Agindo individualmente, mas cooperando em bloco
com outros patrícios, eles iniciaram um movimento de ascensão
social que observamos em seus descendentes na atualidade.
No Sul do Brasil, os sírios e libaneses não são tão numerosos
e característicos2 como em São Paulo ou no Sudeste, de uma forma
geral, e mesmo em estados do Norte, Nordeste (LAMARÃO, 2007)
e Centro-Oeste do Brasil, regiões onde eles são, muitas vezes, ao
lado dos portugueses, os únicos imigrantes. No Rio Grande do Sul,
1. Doutor em História pela PUCRS, Mestre em Memória Social UNIRIO, Especialista em
História do Direito no Brasil UNESA. Professor de museologia.
2. Característicos no sul do Brasil são as imigrações de alemães e italianos, ou a europeia de
uma forma geral.
367
SUMÁRIO
Os “turcos” estão chegando: os imigrantes sírios e libaneses em Bagé
superada a fase de estabilização econômica do grupo, seus esforços
se concentraram na fundação de entidades de assistência e clubes
étnicos. Isso fez com que a memória escrita das etnias não fosse
contemplada de uma forma sistemática pelos próprios imigrantes e
seus descendentes, como foram os de outras levas migratórias mais
numerosas, fazendo com que o acesso as fontes de pesquisa sobre
a trajetória dos sírios e libaneses no estado gaúcho se tornasse uma
tarefa desafiadora para o pesquisador.
Sendo assim, recorremos a todas as fontes possíveis para
elaborar este capítulo. Utilizamos revisão da bibliografia, pesquisa em
arquivos públicos e periódicos, além de entrevistas com descendentes
de imigrantes. A novidade que trazemos aqui é o enfoque local sobre
uma leva migratória minoritária, mas que foi e ainda é importante no
desenvolvimento econômico e para a formação étnica e cultural da
cidade de Bagé.
Na terra de origem: o que levou à emigração
No fim do século XIX e início do XX, grandes levas de emigrantes
árabes fugiram das províncias otomanas da Síria, Palestina e Monte
Líbano e se estabeleceram nas Américas, mas também na África e na
Oceania. Muitos deles haviam partido com a intenção de voltar. Esses
emigrantes eram, em sua maioria, libaneses maronitas e ortodoxos
gregos e sírios católicos greco-antioquinos (melquitas), e em menor
número, muçulmanos e judeus vindos do Oriente Médio.
No início do século XX, os esforços do Império Otomano
para manter a hegemonia em suas províncias árabes, através de
reformas de caráter político-confessionais, precipitaram sobremaneira
a continuidade da saída de cristãos da Grande Síria3. Além disso,
a aproximação do conflito mundial (1914-18) e a decisão dos turcos
de recrutar cristãos para seus exércitos aumentaram ainda mais a
saída dessas populações em direção a outros países, especialmente
Brasil e Argentina. Diversos autores creditam à educação religiosa
de jovens sírios e libaneses, patrocinadas por escolas cristãs e
missões religiosas do Ocidente, o fato de elas terem inculcado no
imaginário cultural da classe média valores ocidentais que predispôs
esses jovens a emigrar. Muitos intelectuais sírios e libaneses, por
sua vez, formados nessas escolas, diante da impossibilidade de se
3. Até 1920, ano da repartição anglo-francesa das províncias otomanas, a Grande Síria correspondia aos atuais Líbano, Síria e Palestina.
368
SUMÁRIO
Os “turcos” estão chegando: os imigrantes sírios e libaneses em Bagé
tornarem profissionais liberais em seus países, e dos obstáculos a
sua incorporação à administração muçulmana, também preferiam
emigrar em busca de melhores oportunidades de vida.
Segundo André Gattaz (2015), as motivações que levaram os
árabes a emigrar durante a dominação turco-otomana entre 1880 e
1920, foram basicamente as seguintes:
O século XIX presenciou importantes mudanças no
contexto econômico e social das províncias árabes do
Império Turco-Otomano. De um modo geral houve
aumento da agricultura em detrimento do pastoreio,
com a consequente diminuição do nomadismo e aumento da urbanização. Os portos também se desenvolveram após a abertura do Canal de Suez (1869) e a
infraestrutura da região foi alterada com a presença de
serviços públicos financiados e operados por empresas
europeias. Houve ainda um grande crescimento populacional, porém sem melhorias no padrão de vida, a não
ser para os setores superiores das populações urbanas,
ligadas ao governo ou aos setores em expansão da economia (GATTAZ, 2015, p.70).
Já após a saída dos turcos e a continuação do regime colonial,
agora sob o domínio francês, a principal motivação que impeliu os
sírios e libaneses a deixar seus países foi a indefinição política. De
acordo com Thibaut (2009), líderes cristãos e muçulmanos tentaram,
na época, encontrar uma fórmula consensual de divisão do poder no
Líbano e na Síria, mas a evolução do componente demográfico entre
as diferentes comunidades confessionais libanesas4 terminou por
inviabilizar a iniciativa. Considerada uma das principais causas das
crises políticas do país, ela também terminou por gerar expressivos
deslocamentos de sua população.
Os períodos dos dois conflitos mundiais registram um declínio,
de modo geral, nos fluxos migratórios que só seriam retomados no
início da década de 1950 (palestinos), na década de 1970 (libaneses) e
mais recentemente, já no século XXI, por conta da guerra civil da Síria.
4. Por exemplo, no Líbano a população maronita cresceu mais do que a de outras etnias, passando a ser maioria em uma população multiétnica, e por consequência reivindicava maior
parte do poder, o que gerou grandes conflitos. Já na Síria os cristãos em minoria numérica
passaram a ser vistos com desconfiança pelos muçulmanos, o que também gerou conflitos.
369
SUMÁRIO
Os “turcos” estão chegando: os imigrantes sírios e libaneses em Bagé
Os sírios e libaneses no Brasil
Os imigrantes da primeira geração, que vieram no bojo de uma
imigração de caráter espontâneo, entraram no Brasil no período que
vai desde 1870, quando se inicia o forte deslocamento internacional
de sírios e libaneses, até 1914. Cabe destacar que essa vaga migratória
foi constituída, em grande parte, por indivíduos que não escolheram
o Brasil como destino precípuo de sua migração, conforme Fígoli e
Vilela (2004) detalham abaixo:
De fato, em primeiro lugar, temos aqueles indivíduos que, por razões sanitárias, não foram aceitos pelos
Estados Unidos e foram desviados para o Brasil, aceito como destino alternativo. Depois, aqueles que chegaram ao Brasil enganados pelas companhias
marítimas que com a promessa de levá-los a Américado Norte os entregaram na América do Sul, dizendo não haver diferença; ainda, há uns poucos aventureiros que, almejando vir para a América, não se
importavam em que país iriam aportar; e, por último,
por um número pequeno que veio intencionalmente
ao Brasil, pois detinham informações que os levaram a tomar a decisão de migrar diretamente para o
país. (FÍGOLI &VILELA, 2004, p.6)
No período da Grande Guerra, poucos foram os sírios e libaneses
que puderam deixar seus países. Mais tarde, entre 1920 e 1930, a
imigração experimentou uma flutuação anual entre mil e cinco mil
indivíduos, alcançando um pico de 7.308 em 1926. Neste período,
se destaca uma segunda geração de imigrantes sírios e libaneses,
caracterizada como uma migração em massa para o Brasil, escolhido
como destino em virtude das notícias obtidas junto aos primeiros
imigrantes. Essa geração de imigrantes contou, em sua grande
maioria, com uma rede social (social network) ampla e estruturada,
constituída por conhecidos e parentes já inseridos, mesmo que em
alguns casos de forma precária, no meio social e econômico, rural
ou urbano, do país. Essa rede ofereceu ampla assistência para o
estabelecimento dos novos imigrantes ¬– moradia, obtenção de
trabalho, aprendizado da língua, entre outros recursos vitais para a
sobrevivência no novo local.
A depressão econômica dos anos 1930 e a adoção, pelo Brasil,
do sistema de quotas para entrada de imigrantes, contudo, reduziram
a imigração a níveis bastante baixos. Com a deflagração da Segunda
Guerra Mundial, esse número caiu ainda mais (KNOWLTON, 1961).
370
SUMÁRIO
Os “turcos” estão chegando: os imigrantes sírios e libaneses em Bagé
A imigração e os sírios e libaneses no Rio
Grande do Sul
O estado gaúcho se destaca pela forte marca migratória,
principalmente a europeia. Açorianos5 e alemães foram os primeiros
a ocupar seu território6 já no início do século XIX, seguidos por
italianos e poloneses nas últimas décadas do século citado. O grosso
da imigração europeia, incluindo a maior parte das levas de alemães,
italianos, portugueses, poloneses, espanhóis, russos e austríacos,
fixaram-se no Rio Grande do Sul entre 1880 e 1920. A maioria desses
contingentes migratórios, contabilizados em dezenas de milhares,
veio ocupar pequenas glebas rurais, as chamadas colônias, o que
tornou o estado sulino um caso único no país onde o latifúndio,
dedicado à monocultura, praticamente não existia. Prevalecia ali a
pequena propriedade familiar, que comercializava seus excedentes
agrícolas, que viria a se tornar o berço do cooperativismo no país
e que, posteriormente, pelo acúmulo da produção de matériaprima, faria do Rio Grande do Sul um dos estados pioneiros na
industrialização no Brasil.
Diferentemente do resto do país, onde a imigração árabe
deve muito aos portos de Santos e do Rio de Janeiro, essa corrente
migratória foi fortemente influenciada, em terras gaúchas, pela
proximidade com os países platinos. Com efeito, já na virada para o
século XX, o Rio Grande do Sul dispunha de uma rede de ferrovias
que ligava a capital Porto Alegre às cidades do sul do estado, e daí
se chegava ao Uruguai e à Argentina. Além disso, havia ligações
marítimas e fluviais com aqueles países.
Os sírios e libaneses já estavam presente em grande número no
Uruguai e na Argentina devido ao forte desenvolvimento econômico
que esses países experimentavam naquela época. Havia mesmo uma
saturação de mascates árabes no Uruguai, a tal ponto que o governo
local chegou a proibir o desembarque de “asiáticos” em Montevidéu,
em 1890 (ODDONE, 1966). Na Argentina, houve um quebra-quebra
em Buenos Aires em 1914, promovido por cerca de 500 árabes em
5. Junto com os luso-brasileiros trouxeram ao Rio Grande do Sul, desde o fim do século XVIII,
os escravos negros, os quais podemos chamar de ‘imigrantes forçados’. Eles foram trazidos
em grande número para trabalhar nas charqueadas do Sul do estado, sendo que segundo
Saint-Hilare (1987), perfazia metade da população da província em 1820, que era de 110 mil
habitantes.
6. Sabemos que os indígenas guaranis e tupis já estavam no território muito antes de qualquer
europeu ou africano, no entanto, para nossos fins, fazemos apenas essa ressalva.
371
SUMÁRIO
Os “turcos” estão chegando: os imigrantes sírios e libaneses em Bagé
protesto contra o desemprego7. Evidentemente, levando-se em conta
este cenário, o Rio Grande do Sul atraiu muitos desses imigrantes
que, inclusive, podiam se deslocar a pé através da fronteira seca com
o Uruguai, chegando a Bagé, Jaguarão ou Livramento, ou de barco,
desembarcando no porto de Rio Grande, ou ainda por via fluvial
desde Buenos Aires ou Montevideo, aportando em Uruguaiana e São
Borja, na fronteira com a Argentina.
Os imigrantes vindos do Oriente Médio, libaneses e sírios
(além de palestinos), começaram a chegar ao Rio Grande do Sul
em maior número a partir de 1890, juntamente com a maior parte
dos outros imigrantes europeus, e são, respectivamente, a quinta
e a sexta etnias quantitativamente mais expressivas de imigrantes
no estado8. Jovens imigrantes sírios e libaneses, com nenhuma ou
pouca instrução e sem nenhum capital se concentraram nas cidades
maiores e mais prósperas, mas também, em números mais discretos,
em municípios menores. Segundo o censo de 1920, havia no Rio
Grande do Sul cerca de 2,5 mil imigrantes árabes9 e, possivelmente,
de acordo com nossas projeções, um número três vezes maior de
descendentes de sírios e libaneses, já nascidos no estado. Eles se
dedicaram ao comércio, primeiramente como mascates, vendendo de
porta-a-porta, depois estabelecidos com pequenas lojas e armazéns.
Diferentemente desse componente majoritário, também vieram, em
menor número, profissionais liberais formados nas universidades das
missões estrangeiras da Síria e do Líbano, intelectuais e jornalistas
perseguidos pela repressão otomana e, por fim, famílias inteiras que
vendiam seus bens ou joias e já chegavam à terra da imigração com
algum capital.
Sírios e libaneses na fronteira e no Sul do
estado
O primeiro texto dedicado especificamente à imigração síriolibanesa no Rio Grande do Sul é o de Tanus Bastani. Ele conta as
memórias do pai libanês, que foi mascate no Rio Grande do Sul no
início do século XX. Em “Os libaneses no Brasil”, publicado no Álbum
7. Essa informação foi retirada de uma nota publicada no jornal porto-alegrense A Federação,
datada de 29 de setembro de 1914.
8. Depois de alemães, italianos, portugueses, poloneses e espanhóis.
9. O censo federal de 1920 apontou um total de 2.565 imigrantes árabes no Rio Grande do Sul.
(cf. PIMENTEL, 1986, p. 56).
372
SUMÁRIO
Os “turcos” estão chegando: os imigrantes sírios e libaneses em Bagé
da colônia sírio-libanesa no Brasil, organizado por Salomão Jorge,
Bastani, de forma ufanista e saudosa, assim se refere ao pai:
Quando, no findar do século XIX, o inesquecível pai
do autor deste livro mascateava pelo interior do estado
sulino, por muitas ocasiões, livrou-se da sanha sanguinária dos ladrões que infestavam a zona de São Francisco Xavier, em direção a Vacaria. Certa vez, indo em
companhia de seu fiel animal, uma mula de carga chamada Catarina, em direção à Bento Gonçalves, o animal que já estava acostumado a abrir as porteiras que
encontrava no caminho empurrando-as com a cabeça,
em dado momento, em virtude de um disparo de espingarda, estranhou o seu dono, e recorcoveando deu-lhe
um coice no calcanhar, abrindo enorme ferida nos pés.
Ali, curtindo dores atrozes durante quase todo o dia, ficou ao abandono, onde foi socorrido pelo boticário do
lugar. Perdeu sua mercadoria e seu animal, tendo que
recomeçar novamente a ganhar avida. Não reclamou de
ninguém, nunca se queixou das barbaridades que contra ele praticaram (BASTANI, 1948, p.130).
Fontes diversas10 revelam que os sírios e libaneses estiveram
presentes na fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai e a
Argentina desde a segunda metade do século XIX. A proximidade
com os países do Rio da Prata conferiu características peculiares à
presença sírio-libanesa no Rio Grande do Sul, se comparada com esta
mesma imigração em outras partes do território nacional. No Sul, a
imigração árabe diferencia-se pela convivência de seus membros com
outros grupos de imigrantes, especialmente alemães e italianos, mas
também com o gaúcho. Becker (1958, p.315) destaca a importância e
significado da presença de sírios e libaneses na região:
E, diga-se de passagem, que a influência econômica deles, na fronteira é grande. E merecidamente, pois por
volta de 1900 os representantes de outras etnias, com
exceção, talvez, dos portugueses, não se animaram a
penetrar naquela região. Os árabes, por sua vez, viam
a dificuldade de iniciar com êxito sua vida na região de
colonização alemã, italiana e polonesa.
Naquele momento, um contingente razoável de mascates
árabes circulava pelo interior do Uruguai e da Argentina, mas também
pelo sul do estado, especialmente por Bagé, Alegrete, São Gabriel,
Herval, Lavras do Sul, Jaguarão, Arroio Grande, Quaraí, Santa Vitória
10. Ver, por exemplo, Annuario Estatístico do Estado do Rio Grande do Sul (1924); Becker
(1958); Fersan (2005) e Rosa (2005).
373
SUMÁRIO
Os “turcos” estão chegando: os imigrantes sírios e libaneses em Bagé
do Palmar, Cerrito, Pedro Osório e Santana do Livramento, visitando
seus clientes nas estâncias, entre peões, colonos e capatazes. Relatos
de filhos e netos de imigrantes libaneses e sírios dão conta que seus
avós entraram a pé pela fronteira do Rio Grande do Sul, tendo ido
se estabelecer em lugares distantes como Tupanciretã11 ou Santo
Ângelo, nas Missões.
A movimentação através da fronteira seca, entre o norte do
Uruguai e a região de Bagé, Livramento e Jaguarão, era especialmente
intensa. Uruguaiana e São Borja, por suas conexões fluviais e
ferroviárias, também eram muito frequentadas pelos mascates sírios
vindos da Argentina ou para lá passando desde o Brasil, na virada
do século XX. Essa movimentação foi sustentável durante as décadas
subsequentes, e, pelo bom momento econômico daquelas regiões
do estado, um número razoável de famílias árabes radicou-se nesses
locais (BASTANI, 1946; BECKER, 1958; ROSA, 2005).
Mascateando por toda a faixa de fronteira, os imigrantes
árabes conviveram durante décadas com o gaúcho peão de estância,
participando das “carreiras em cancha reta”12 e aprendendo a montar
à moda dos peões da fronteira, usando bombachas e esporas,
cavalgando por cima de um pelego, como confirma a literatura de
Cheuiche, (2003) que descreve a participação de um libanês, vindo
do Uruguai, ao cerco de Bagé em 1893. De fato, o envolvimento dos
sírios e libaneses estabelecidos no sul do estado com os entreveros
entre os partidários dos diferentes segmentos da oligarquia gaúcha
foi inevitável. A Revolução Federalista eclodiu em 1893, quando os
maragatos, tendo como líder Gaspar Silveira Martins, chefe do Partido
Federalista Riograndense, rebelaram-se contra o Partido Republicano
do Rio Grande do Sul13, que dominava o cenário político estadual
através de seu líder máximo, Júlio de Castilhos desde 1891. No sul do
estado, o maior representante dos maragatos era Luís Gonçalves das
Chagas, o barão de Candiota, cujas terras se estendiam “das coxilhas
de Santa Maria à cidade de Bagé sem cruzar por outros campos que
não fossem os de sua exclusiva propriedade” (CALLAGE, 1929, p.29).
11. Assim nos relatou Cirne Chamun, nascido em Tupãciretã, em 1935, e ex-presidente da
Sociedade Libanesa, ao narrar a trajetória de seu pai, Antônio Mansur.
12. Esporte equestre muito popular na região do pampa. Para uma descrição detalhada de suas
características, ver Golin (1999).
13. Enquanto os republicanos se estabeleciam com força política em Porto Alegre e eram
especializados no uso da máquina administrativa em seu favor, a oposição federalista mantinha suas bases rurais de sustentação na região da fronteira, dando continuidade à tradição
caudilhista e rebelde do Rio Grande (LOVE, 1971).
374
SUMÁRIO
Os “turcos” estão chegando: os imigrantes sírios e libaneses em Bagé
Nessa época, centenas de mascates árabes percorriam vastas
áreas do sul do Rio Grande do Sul, especialmente as sedes das
grandes estâncias, e não seria improvável que, devido a sua intensa
mobilidade, eles acabassem assumindo o papel de mensageiros e
arautos dos acontecimentos, dentro e fora das terras dos estancieiros.
Isso poderia lhes valer de moeda de troca, garantindo, por exemplo,
proteção nas estradas pelos peões das estâncias ou autorização para
fazer comércio naquelas terras, junto aos seus empregados, peões e
senhoras dos agregados.
Bastani (1946, p.129) refere-se à amizade dos imigrantes com o
barão de Candiota: “Quando, ao findar do século XIX, o inesquecível
pai do autor deste livro mascateava pelo interior do estado sulino,
teve o amparo do inolvidável gaúcho Barão de Candiota, um dos
veteranos heroicos da grandeza sul-rio-grandense.”
Sírios e Libaneses em Bagé
O surgimento das charqueadas associado aos melhoramentos
urbanos ocorridos no município de Bagé entre os anos de 1890 até
a década de 1930, ocasionaram o que podemos chamar de “apogeu
econômico” da cidade, estes acontecimentos são também descritos
por pesquisadores bageenses. Sobre as mudanças que ocorreram
neste período, o historiador Claudio Lemieszek (1997, p.35-36), tece
os seguintes comentários: “Indiscutivelmente, Bagé gozava de uma
condição invejável no Estado. Nas estatísticas relativas às arrecadações
das receitas municipais realizada em 1908, Bagé ostentava um belo
quarto lugar”. E prossegue:
Para que se tenha ideia do que era Bagé, no ano que consideramos o ponto de partida de sua arrancada para o
desenvolvimento, basta dizer que em 1895 sua população beirava os trinta mil habitantes, sendo servida por
duas casas bancárias, sete lojas de fazenda, quatro ferragens, um bazar de louça, seis joalherias, cinquenta e
nove armazéns de secos e molhados, nove hotéis, seis
farmácias, cento e três oficinas de pequenas indústrias,
oito escolas públicas e quatro particulares, duas charqueadas, três curtumes, uma fábrica de sabão, duas de
cerveja, uma de água mineral, afora fábricas de massas,
velas e outras utilidades, bem como dois moinho. (LEMIESZEK 1997, p.35-36)
De fato, a cidade no final do século XIX, já possuía um dos
mais aperfeiçoados códigos de posturas municipais, com grande
375
SUMÁRIO
Os “turcos” estão chegando: os imigrantes sírios e libaneses em Bagé
ênfase para o saneamento básico e saúde pública. As praças, passeios
públicos e ruas despertavam a atenção de todos pela beleza e pela
amplitude. Além disso, em 1872, conforme informa Monastério e
Zell (2004) Bagé era a segunda cidade mais populosa da província
com 21.768 habitantes, só perdendo para a capital que contava 24.916
moradores.
Aproveitando-se do momento econômico que Bagé passava
no início do século XX, muitos imigrantes sírios e libaneses abriram
“bolichos”14 no meio do pampa para vender aos gaúchos. Nossas
pesquisas revelaram que no período da Primeira Guerra Mundial
havia um importante contingente de libaneses, palestinos e sírios
circulando entre Argentina, Uruguai e Brasil, na mascateação, ou já
com suas lojinhas. Impedidos de retornar ao Oriente Médio por via
marítima por causa da guerra, esses árabes circulavam pelo interior e
por Pelotas, Rio Grande e Bagé até Montevidéu e Buenos Aires.
A consolidação das oligarquias em torno do vitorioso Partido
Republicano, no poder desde a última revolução [1893], precipitou
outra revolta em 1923 pela união das oposições em torno da figura
de Assis Brasil, representante dos fazendeiros do sul do estado não
satisfeitos com as fraudes observadas nas últimas eleições, ganhas
novamente por Borges de Medeiros, que contava com o apoio do
governo federal.
Sob o sul do Rio Grande do Sul se abateu pesadamente
a revolução e a insegurança social, justamente em um
momento de crise econômica e recessão mundial, em
um contexto pós-Primeira Grande Guerra, quando estancieiros e criadores haviam contraído empréstimos
para investir em suas propriedades agropastoris, esperando o fim da demanda reprimida para iniciar período
de prosperidade. Por isso investiram em melhores instalações e na qualidade dos rebanhos (FLORES, 2004,
167).
Antônio Karan, nascido em Bagé em 1915, residente na cidade
de Pelotas, com 100 anos de idade na época em que foi entrevistado,
em 22/06/2015, confirmou que seu pai, Francisco Karan, nasceu no
Líbano e que, aos 18 anos, trabalhava diariamente arando o solo seco e
pedregulhos nas terras da família. Diante disso, sabe que o pai entrou
num navio de transporte italiano, juntamente com outros patrícios,
em 1894, e desembarcou em Montevideo. No Uruguai, dirigiu-se a
uma pequena cidade no centro do país, “Santa Clara de Olimar, um
14. Pequeno estabelecimento comercial em área rural ou à beira de estradas onde o viajante
encontra de tudo, especialmente secos e molhados, fumo, sal, banha etc.
376
SUMÁRIO
Os “turcos” estão chegando: os imigrantes sírios e libaneses em Bagé
reduto de Karans”. Contou que o pai passou 12 anos como mascate,
visitando fazendas e estâncias pela fronteira, “desbravando lugares
onde não havia nenhum comércio” até juntar dinheiro e passar ao
Brasil. Assim disse Antônio Karan: Soube disso muito depois...
através de um antigo capataz dele. Ele me contou, disse assim:
“teu pai entrou no Brasil: Montado num cavalo zaino15”! Meu pai
atravessou o Passo do Salso em 1908. Foi lá que eu nasci, numa casa
de torrão, chão batido e telhado de zinco, na época, era 4º distrito
de Bagé, ele comprou muitas quadras de terras lá..., mas então,
o capataz termina de descrever meu pai quando entrou no Brasil:
“de botas pretas, esporas de prata presas por correntes de ouro”.
(Entrevista com Antônio Karan, 2015). Foi justamente ali, no Passo
do Salso, na “campanha bruta” de Bagé, que estava radicado, numa
pequena estância no meio do Pampa, Francisco Karam, imigrante e
comerciante libanês. Seu filho, Antônio Karam, com pouco menos de
dez anos de idade à época, presenciou a Revolução de 1923:
Eu nasci em 1915, no Passo do Salso. O meu pai tinha
um comércio forte, à luz de vela e querosene. (...) Ali,
com 32 anos, minha mãe morreu de convulsão cerebral, deixando meu pai com uma penca de filhos. (...)
Meu irmão Luiz ainda mamava. Mas a vida prosseguiu.
Em 1923, a Revolução era mais fraca, mas era perigosa também16. Estávamos lá no Salso e passou o pessoal
do governo, que eram os chimangos e levaram todos os
nossos cavalos. Nós ficamos a pé. Pouco tempo depois
passaram os maragatos, cujo chefe foi muito generoso,
muito simpático e respeitoso. Aí aconselharam ao papai que fosse para o Uruguai e levasse a família. E um
dia fomos todos de carroça para ao Passo Santa Maria
Isabel, no Uruguai. No final de 192417, já estávamos voltando para Pelotas, onde tirei o ginásio no Gonzaga.
(KARAM, 2015).
15. Zaino é uma tonalidade rica e brilhante de castanho, aproximando-se da cor do mogno polido. Os cavalos dessa pelagem são tidos como muito espertos e são geralmente fortes e bem
dispostos. Fonte: https://www.facebook.com/Mundo-dos-Cavalos-352786828163241/
(acesso em 14.03.2021)
16. O entrevistado provavelmente estava fazendo uma alusão à Revolução de 1893, que foi
mais violenta.
17. Em dezembro de 1923, a revolução terminou. Pelo acordo, o chamado Pacto de Pedras Altas, Borges pôde permanecer até o fim de seu mandato em 1928, mas a Constituição gaúcha
de 1891 foi reformada, impedindo nova reeleição.
377
SUMÁRIO
Os “turcos” estão chegando: os imigrantes sírios e libaneses em Bagé
Foto 1 Shimona Karam, Bagé
(início do século XX)
A fotografia ao lado revela o
expressivo olhar e o elegante porte
da Sra. Karam, pouco antes de sua
morte no início da década de 1920.
Ela posa vestindo uma blusa de
seda, provavelmente encarnada, que
é finamente bordada. O detalhe do
chapéu, um acessório indispensável
na época, o colar e o crucifixo
aparecendo no peito mostra a todos
sua fé cristã. Completa o seu look
a pequena bolsa de mão decorada
com contas, que segura com as
pontas dos dedos, mostrando uma
pulseira em um braço e, no outro,
um delicado relógio, o que evidencia
a prosperidade dos Karam.
Acervo pessoal de Antônio Karam (reprodução da foto feita em junho de 2015)
Pelo que vimos acima, a fronteira – área de ocupação antiga,
mas em termos demográficos relativamente despovoada devido à
natureza da sua principal atividade econômica, a pecuária extensiva –
merece destaque. Becker (1958) faz uma digressão interessante sobre
as andanças desses “comerciantes-viajantes” pela região. Segundo o
autor, eles desempenharam o papel de regulador de preços, comprando
mercadorias diretamente em São Paulo e vendendo-as mais barato
que os comerciantes já estabelecidos, que eram em pequeno número
e, talvez por causa disso, exploravam a clientela.
Foi nessa ocasião que os ambulantes sírios e libaneses
chegaram à região, alcançando até mesmo os locais mais remotos,
vendendo os tecidos e miudezas em geral a preços mais baixos ou
facilitando o pagamento.
A frequente referência a Bagé nas diferentes fontes consultadas
revela sua importância no contexto da imigração síria e libanesa para
as terras gaúchas. Em Bagé, segundo informa Becker (1958, p.316),
havia “forte posição econômica dos árabes e de seus descendentes”.
O autor narra que “segundo informações de certo Antônio Mansur,
todos os sírios de Bagé eram provenientes da cidade de Homs”,
378
SUMÁRIO
Os “turcos” estão chegando: os imigrantes sírios e libaneses em Bagé
inclusive “Fellipe Hallabe, que lá chegou em 1898, e os irmãos Miguel e
Jorge Nicolau, que chegaram em 1901 e 1902, respectivamente”. Ainda
de acordo com Becker, entre os libaneses encontravam-se “Jacob
Fenianos e José Nicolau Schehim como os mais antigos, chegados em
1890”. Outra informação reveladora consta do Annuario estatistico
do Rio Grande do Sul, de 1924, que menciona a Associação Beneficente
Sírio-Libanesa de Bagé, a qual contava com 65 membros em 1923.
Maria Helena Daibler Mansur, hoje com 83 anos, informa que
uma parte da sua família chegou à Bagé no fim do século XIX vindos
de Homs na Síria. Na foto abaixo, vemos pelo menos três gerações
da família Mansur. As poses e o cenário mostram a estabilidade
econômica da família. A seriedade mostrada por todos que estão na
foto, em seus mais distintos trajes, desde os sapatos até as gravatas,
reflete os costumes da época e confunde um dispositivo fotográfico
com a tela de uma pintura, traduzindo a formalidade e a importância
do momento. Sentada, à direita, temos a matriarca Joana Daibler,
comerciante em Bagé, proprietária da Casa da Boneca.
Foto 2 Família Mansur, Bagé (início do século XX)
Acervo pessoal de Maria Helena Daibler Mansur
(reprodução da foto feita em fevereiro de 2021)
Em seu artigo “Os Árabes!”, no livro A saga dos povoadores e
outros contos de Bagé (2005), Maria Helena Mansur informa que sua
avó, Joana Daibler, que já chegou a Bagé viúva, em 1886, “não encontrou
na cidade uma casa para o seu comércio nas proporções desejadas.
Construiu então um prédio na Avenida 7 de Setembro, esquina com
a atual Presidente Vargas” (p. 31). E continua a autora: “Com uma
379
SUMÁRIO
Os “turcos” estão chegando: os imigrantes sírios e libaneses em Bagé
particularidade, mandou colocar no topo da construção uma escultura
em forma de boneca, já que a loja que ali se instalaria iria chamar-se
Casa da Boneca, que se encontra até hoje no mesmo local”. (p.31).
Esta realidade nos faz acreditar que, ao contrário de muitos
sírios que chegaram sem nenhum capital, a viúva Daibler contava
com poder de investimento e liquidez, além de saber onde investir.
Este fato está normalmente ligado a redes de colaboração e
cooperação, quando outros imigrantes já estabelecidos abriam
caminho para outras famílias recém-chegadas. Alguns desses
imigrantes vendiam suas joias ou propriedades na terra de origem
para emigrar e quando chegavam ao seu destino contavam com
redes sociais ou de parentesco, que evidentemente já conheciam o
potencial, as facilidades e as carências do local. Isso era, certamente,
decisivo para o sucesso desses novos empreendimentos.
Famílias sírio-libanesas em Bagé no início do
século XX
Através das pesquisas que realizamos no Arquivo Nacional do Rio
de Janeiro, em maio de 2015, mais precisamente no arquivo referente
ao prontuário de estrangeiros radicados em Bagé, cadastrados a
partir de 1938, encontramos 17 nomes, que transcrevemos abaixo. As
informações trazem o nome do imigrante, origem, data de nascimento
(nasc.) e filiação (fl.). Há ainda informações sobre o endereço, o ano
que preencheu o cadastro e o ano da chegada a Bagé. Além disso,
alguns nomes trazem informações sobre o estado civil e a profissão
desses imigrantes.
01 ABDALLAH, Nasir nasc. 17/01/1894 Monte Líbano fl. A.
Moussi e Farid Kalil Saad Rua General Netto, Bagé, Bagé/RS. 1942
chegou em 1911 Comércio, Bagé/RS 1942.
02 AZÁRIO, Mocaiber nasc. Líbano fl. Emílio e Amália M. R,
Marcílio Dias, 719 R. Bagé, RS Viúva, do lar. 1948. Chegou em 1924.
03 BECHARA, José Mussa Canaan nasc. 20/06/1882 Líbano fl.
M.C. e Mantora B. Rua Mal. Floriano, 1062, Bagé/RS. 1939. Comerciante
Mercado Municipal de Bagé/RS 1952. Chegou em 1899.
04 FADEL, Carim nasc. 25/01/1887 Líbano fl. Ayub F. e Najme F.
Rua Alberto Torres, 86 Bagé/RS 1951. Casado, comercio. Apresentou
certidão de casamento de maio de 1916 realizado em Bagé. Chegou
em 1909.
380
SUMÁRIO
Os “turcos” estão chegando: os imigrantes sírios e libaneses em Bagé
05 FAYAD, Hind nasc. 13/06/1913 Líbano fl. Nassif e Chafica
Fayad Av. Farrapos, 31/2º andar modista. 1949 POA. Solteira, modista.
Passaporte visado no Consulado brasileiro em Marselha em 06/1923.
(ano de sua chegada). Registro de estrangeiro de Bagé/RS 1939.
Naturalizada brasileira em 10/03/1965.
06 FERRES, Carim Sad Musi nasc. 09/03/1897 fl. M.F. e Masa M.
Sffet Rua 24 de Maio. Rio Grande/RS 1940. Chegou em 1916. Casado,
comerciante. Casou em Vila José Otávio 5º distrito de Bagé/RS 1939.
07 HABIB, Moussa Abi nasc. 1921 Roumié Líbano fl. Georges e
Lina Abi H. Rua Hipólito Ribeiro, 74 Báge/RS 1957 Solteiro, Alfaiate.
Bagé/RS. Chegou em 1935.
08 HABIB, Doumit Sakr Bon nasc. 04/01/1904 Líbano fl. Sakr
B.H. Rua Salgado Filho, 798 Bagé/RS 1961. Casado, comerciante.
Bagé/RS, 1961. Chegou em 1928.
09 HARB, Elias João nasc. 19/06/1896 Líbano fl. João e Sada
H. Comercio Município de Bage/RS 1943. Rua Marcilio Dias, 1385
Casado, vendedor ambulante, 1946. Chegou em 1912. Aposentado
1965. Apresentou certidão de nascimento 29/05/1929 filho Ely de
Santa Maria/RS.
10 IEFFETE, Salomão David nasc. 20/03/1894 Síria S. D. e Rafka
José Rua 7 de setembro, 1079 Bagé/RS 1948. Chegou em 1911. Casado,
comerciante. Certidão de casamento de 1921 Bagé/RS 1948.
11 KALIL, Felipe Kalil nasc. 01/05/1919 Uruguai fl. José Kalil e
Badra K. Rua Gal. Netto, 26. Bagé/RS 1951. Chegou em 1936. Solteiro,
comerciante. Bagé/RS 1951.
12 KALIL, Salim nasc. 10/1887 Líbano Kalil Moussi e Hetum
K. Rua Gal. Netto, 56. Bagé/RS 1942. Chegou em 1911. Casado,
comerciante Bagé/RS 1942.
13 KARAM, Nagem nasc. 08/01/1893 Líbano fl. José e Nura K.
Rua Câncio Gomes, 601 Floresta POA 1954. Chegou em 1918. Viúvo,
mecânico. Certidão de nascimento de filha, ocorrido em 08/01/1929
do 3º distrito de Bagé/RS. 1954.
14 MANSUR, Miguel Lutfe nasc. 18/10/1906 Síria fl. Jorge e Maria
Lutfe M. Rua 3 de fevereiro. Bagé/RS 1950 chegou em 1926. Casado,
comerciante. Certidão de estrangeiro tirada em Bagé/RS em 1939.
15 MANSUR, Rosala Jorge nasc. 02/01/1891 Síria fl. Jorge e Maria
Lutfe M. Rua 7 de setembro, 778 R. 1953. Bagé/RS chegou em 1913.
Casado, comerciante à rua Gal Sampaio, 176 Bagé/RS. 1953. Certidão
de estrangeiro tirada em Bagé/RS em 1939.
381
SUMÁRIO
Os “turcos” estão chegando: os imigrantes sírios e libaneses em Bagé
16 MELIK, Melinda Macul nasc. 03/08/1900 Síria Antônio
e Maza M. Rua Tupi Silveira 1698. Bagé/RS 1961. Chegou em 1925.
Casada, do lar. Bagé/RS 1961.
17 SAADI, Isaias masc. 07/04/1902 Síria fl. Antônio e Barbara S.
Rua Mal. Floriano, 965 Bagé/RS 1965. Chegou em 1921. Bagé/RS 1965.
Considerações finais
Existem, no sul do Brasil, dois tipos de imigração: a rural,
quando a família do imigrante tem acesso a um lote de terra para
trabalhar e produzir; e a urbana, quando o estrangeiro se estabelece
em uma cidade e lá exerce a função de operário, ou é empregado
em uma empresa ou ganha a vida como vendedor ambulante.
Historicamente, italianos, alemães e poloneses aderiram à primeira
forma, enquanto portugueses, espanhóis, italianos (calabreses e
sicilianos), gregos, armênios, judeus e sírios e libaneses preferiram
se radicar nas cidades, especialmente nas maiores e mais prósperas.
É claro que esta fórmula não é totalmente inflexível, podendo haver
casos de alemães nas cidades e sírios e libaneses em estâncias, no
entanto o mais comum é que ocorra o que narramos, pelo menos na
primeira geração desses imigrantes.
Uma investigação que ainda carece dedicação por parte dos
pesquisadores da imigração urbana é a que localiza as diversas etnias
em uma cidade, para entender a trajetória de cada uma dessas etnias
comparando as suas estratégias e os investimentos que lançaram
mão para se integrar e se adaptar, em termos de pauta matrimonial,
sociabilidades, lideranças e escolha de seus nichos comerciais.
Sabemos que, em Bagé, os sírios e libaneses organizaram-se
em torno do comércio de têxteis e da venda de roupas prontas, e
que muitos chegaram sem nenhum capital, repetindo a mesma
fórmula que usaram em todo país, ou seja, os que chegaram com
pouco ou nenhum capital se entregaram a mascateação, sempre
por conta própria, em uma trajetória que incluía a cooperação com
os patrícios já estabelecidos para o acesso às mercadorias, muita
austeridade e economia e a posterior abertura de uma pequena loja
em zona periférica. Depois disso, para aqueles que sobreviveram
à concorrência e aos riscos impostos pelo comércio, uma eventual
escalada a uma loja maior em um ponto comercial mais caro18. A
18. A trajetória está descrita no livro do ex-prefeito de Bagé, Luís Simão Kalil (2007) “Salim faz
preço, freguês, Samuel também faz, senhor”.
382
SUMÁRIO
Os “turcos” estão chegando: os imigrantes sírios e libaneses em Bagé
trajetória desses imigrantes está quase sempre ligada ao foco no
investimento da educação dos filhos, que eram estimulados a abraçar
uma carreira liberal, quase sempre longe do comércio.
Mas o que atraiu esses imigrantes a Bagé? Historiadores
afirmam que a produção de charque entre os anos de 1890 e 1930,
constituiu-se como imprescindível e como estrutura necessária
para o desenvolvimento urbano e econômico da cidade19. Tal fato
destacou a cidade entre muitas outras atraindo os imigrantes sírios20
que formaram uma cadeia migratória entre o Oriente Médio e Bagé,
trazendo para a região parentes, vizinhos e conhecidos de cidades
da Síria e do Líbano. Ali já contavam com uma rede de apoio para
se estabelecer, empregar e aprender a língua. Evidenciou-se, assim,
o modelo da chamada migração ‘em corrente’, trazendo pessoas do
Oriente Médio, como é o caso da cidade síria de Homs, para a região
fronteiriça do Rio Grande do Sul, especialmente Bagé,
Evidentemente, como já destacamos, sírios e libaneses vindos
do Uruguai, Argentina e do resto do Brasil também foram atraídos a
fincar comércio na próspera Rainha da Fronteira entre 1890 e 1930.
Atualmente, quando observamos a integração desses imigrantes e
seus descendentes à vida gaúcha nas regiões de fronteira e metade
sul do estado, especialmente em Pelotas, Rio Grande e Bagé, não
devemos considerar que houve uma diminuição ou esvaziamento
da influência árabe, nem do número de descendentes de sírios e
libaneses nessas regiões por não serem mais tão evidentemente
visíveis. Na verdade trata-se antes de uma integração e diluição
completa desses imigrantes e seus descendentes na população de
brasileiros e descendentes de outros imigrantes, por meio, por
exemplo, de casamentos inter-raciais.
Devemos também atentar para o fato de que os descendentes já
estão na terceira, quarta e até mesmo quinta geração, completamente
integrados à vida nacional, e que muitos desses descendentes foram
perdendo seus sobrenomes árabes com o passar do tempo. Talvez
por isso encontremos apenas alguns sobrenomes sírio-libaneses na
política municipal de Bagé, com a participação de pelo menos oito
19. Segundo os estudos realizados por Taborda (1955), Boucinhas (1993), Lemieszek (1997) e
Soares (2006), a produção saladeiril desencadeou uma série de mudanças estruturais extremamente importantes na configuração urbana, econômica, política e sócio cultural da cidade
de Bagé, tornando-a uma das principais cidades do Estado entre o final do século XIX e as
primeiras décadas do século XX. (BICA, 2017, p.18)
20. Até 1926, quando do estabelecimento oficial do Líbano, separado da Síria e sob protetorado francês, sírios e libaneses eram tidos como Sírios, genericamente, termo que utilizo aqui.
383
SUMÁRIO
Os “turcos” estão chegando: os imigrantes sírios e libaneses em Bagé
vereadores21 desde a década de 1950 e um prefeito na década de 199022,
eleito pelo povo de Bagé.
É visível o aumento do número de sírios e libaneses na
região de Bagé até 1930. Entretanto, a partir dessa década, verificamos
uma diminuição da presença desses imigrantes em todo o sul do
estado23, incluindo Pelotas e Rio Grande. Tal fato pode estar ligado ao
declínio das atividades econômicas na região, especialmente depois
da crise de 1929, à medida que se apresentavam mais oportunidades
em outras zonas e cidades rio-grandenses, especialmente na capital e
nas áreas coloniais do estado, mas também fora do território gaúcho,
em cidades do Paraná e de São Paulo.
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21. Vereadores de origem sírio-libanesa em Bagé: Abbib Leffet (1956-59); Jorge Mansur (196063/68); Luiz Simão Kalil (1977-82); Antônio Fayad (1983-88/92/96/2000); Luiz Carlos
Deibler (1989-92); Nasser Yussuf (1997-2000); Claudio Deibler (2001-04); Omar Soares
Abdel Ghani (2013-16/atual). Este último talvez seja um representante de levas migratórias
mais recentes. Fontes: http://cassioglopes.blogspot.com/2018/06/luis-simao-kalil.html e
http://www.camvbage.rs.gov.br/ Acesso em 05.03.2021.
22. Trata-se de Luiz Simão Kalil, que foi prefeito municipal entre 1989 e 1992.
23. Não nos referimos aos palestinos chegados no fim da década de 1940 em diante, tão
pouco aos libaneses que vieram nas décadas de 1970 em diante, quando muitos se
estabeleceram no Chuí, mas que hoje já estão presentes em todo sul do Brasil.
384
SUMÁRIO
Os “turcos” estão chegando: os imigrantes sírios e libaneses em Bagé
FÍGOLI, Leonardo H. G. & VILELA, Elaine M. Migração internacional, multiculturalismo e identidade: sírios e libaneses em Minas Gerais.Trabalho apresentado no XIV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, Caxambu/MG,
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385
SUMÁRIO
Os “turcos” estão chegando: os imigrantes sírios e libaneses em Bagé
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2015. Rio de Janeiro
Fontes Orais
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KARAM, Antônio. [Depoimento ao autor]. Pelotas (RS), 2015.
386
SUMÁRIO
387
SUMÁRIO
UMA REGIÃO EM ARMAS: A DELIMITAÇÃO
DE UMA REGIÃO CONFORMADA PELA
GUERRA DURANTE O SÉCULO XIX NO
ESPAÇO PLATINO
Gustavo Figueira Andrade 1
388
SUMÁRIO
Uma região em armas: a delimitação de uma região
conformada pela guerra durante o século XIX no espaço platino
1
Introdução
Por muito tempo, a historiografia que tratou da Revolução
Federalista (1891-1896)2 delimitou a compreensão sobre os eventos,
influenciada por uma matriz de compreensão que rejeitava as
influências do Prata, restringindo as narrativas aos limites políticos
dos Estados nacionais. Isso trouxe uma série de limitações no que
tange ao acesso às fontes e, por conseguinte, à própria compreensão
da dimensão que determinados eventos históricos tiveram.
Na historiografia rio-grandense, até a década de 1970, segundo
Ieda Gutfreind (1988), pode-se falar na existência de uma “matriz
platina”, a qual defendia a existência de ligações relevantes entre as
sociedades rio-grandense e platina, em oposição à perspectiva de
“matriz lusitana”, que a dissociava do espaço platino.
A partir dessa perspectiva que compreende o Rio Grande do
Sul como parte de um espaço platino, surgiu, nas últimas décadas
do século XX e começo do XXI, um movimento do qual participam
diversos autores, que contribuiu não só para um alargamento da
compreensão do conceito de fronteira3, mas também possibilitou
1. Doutor em História pela Universidade Federal de Santa Maria.
2 Sobre uma nova cronologia acerca da Revolução Federalista ver: ANDRADE, Gustavo.
Fronteira e territorialização: uma cartografia da Revolução Federalista (1891-1896) a partir
das redes de relações de poder da família Silva Tavares na região platina. Tese (Doutorado
em História). Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa
Maria, 2021.
3. Pablo Rodrigues Dobke. Caudilhismo, território e relações sociais de poder: o caso de Aparício Saraiva na região fronteiriça entre Brasil e Uruguai (1896-1904). (Dissertação de Mestrado em
História, Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria,
2015), p. 97. De acordo com o autor, a “fronteira” se encontra no próprio sujeito, isto é, o
ator, através de suas relações, tem a capacidade de ampliar sua malha territorial, mesmo que
389
SUMÁRIO
Uma região em armas: a delimitação de uma região
conformada pela guerra durante o século XIX no espaço platino
uma maior compreensão das interações e contingências existentes
nesse espaço. Além dessas perspectivas, permitiu a compreensão
da existência de um espaço fronteiriço platino, definido por Maria
Medianeira Padoin, como sendo um “espaço social e economicamente
construído que adquiriu um perfil de região, com um sentido
totalizador (mas não homogêneo) enquanto espaço de circulação de
homens, de ideias e de mercadorias” (PADOIN, 1999, p.33).
A existência dessa região platina é fortemente caracterizada
pela presença de semelhanças nos aspectos geográficos, históricos,
culturais, sociais, econômicos e políticos, que agiram no sentido
de criar identidades, modus operandi e modus vivendi típicos, que
se perpetuam no tempo e no espaço (KOSELLECK, 2014) e são
compreensíveis a partir de uma análise que contemple a longa
duração histórica.
Nesse sentido, procuraremos defender a existência de uma
região marcada pela guerra, durante o século XIX − na qual Bagé está
inserida – bem como apresentar algumas de suas características.
Tal compreensão surgiu a partir da análise das correspondências4
do general João Nunes da Silva Tavares5 (Joca Tavares), trocadas
durante a Revolução Federalista, nas quais foi possível identificar a
territorialização de um espaço platinado que formava uma região,
através das suas redes de relações sociais. A região constituída,
no período da Revolução, apresenta elementos comuns a outros
existentes nas várias guerras ocorridas no Prata, principalmente
nas esferas econômica, cultural, militar, política e social, que se
tornam compreensíveis numa perspectiva que contempla a longa
duração histórica.
O desenvolvimento do conceito de região e a
importância das redes de relações sociais para
a territorialização e formação de espaços de
poder
não esteja pessoalmente no referido território, fazendo de suas relações sociais de poder o
principal subsídio na conformação desta.
4. Pesquisa realizada no acervo documental da família Silva Tavares, Bagé, Rio Grade do Sul.
Agradecemos a amizade, a gentileza e a cordialidade com que a Sr.ª Yara Maria Botelho Vieira, bisneta de José Bonifácio da Silva Tavares (irmão do general Joca Tavares), nos recebeu,
concedendo permissão e constante apoio às nossas pesquisas.
5. ANDRADE, Gustavo Figueira. A trajetória política do General João Nunes da Silva
Tavares (Joca Tavares): família, comunicação e fronteira. Dissertação (Mestrado História) – Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2017.
390
SUMÁRIO
Uma região em armas: a delimitação de uma região
conformada pela guerra durante o século XIX no espaço platino
As pesquisas que aproximam História e Geografia tiveram
forte crescimento entre os anos de 1960 e 1970, conduzindo ao
desenvolvimento de uma história regional. Considerando a região
enquanto categoria analítica, tais estudos ganharam forte impulso
com as pesquisas realizadas pela chamada Segunda Geração dos
Annales, com base nos trabalhos desenvolvidos por Fernand Braudel,
passando por Vidal de La Blache, Pierre Villar e Emmanuel Le Roy
Ladurie. A partir da década de 1970, essas pesquisas passaram a se
utilizar de um enfoque que privilegiasse a longa duração para análise
de grupos sociais e para os aspectos econômicos, demográficos,
ideológicos e mentais (CARDOSO, 1990, p.474), com grande ênfase
em análises de dados quantitativos.
O desenvolvimento dessas perspectivas decorre, de acordo
com Janaina Amado (1990), do “esgotamento das grandes sínteses
que predominaram durante muito tempo, macroabordagens que não
foram capazes de apontar uma explicação plausível quando cotejadas
com questões mais particularizadas” (p.11).
A história regional passa, então, a despontar como uma
resposta para superar os discursos hegemônicos, homogeneizantes e
generalizantes, construídos pelas historiografias nacionais pensadas
a partir do centro, em detrimento das diversas realidades existentes
entre o local e o nacional (BANDIERI, 2001; MARCHIONI, 2015).
Muito além de apenas aspectos econômicos, as regiões possuem
uma temporalidade e estão investidas de aspectos simbólicos e
representativos (HEREDIA, 1998), como também podem se sobrepor
e mesmo coexistir no mesmo espaço geográfico (CARDOSO;
BRIGNOLLI, 1982, p.83).
Ao considerarmos que as regiões são imaginadas e construídas
a partir da ação humana, de sua relação com o espaço no decorrer de
diferentes contextos históricos, o homem e a cultura agem no sentido
de modificar esse espaço, enquanto este também exerce influência
sobre a sociedade, a cultura e a economia desses espaços, através de
elementos meta-históricos (KOSELLECK, 2014; BANDIERI, 2001).
Para Arturo Taracena Arriola (2008), a região pode ser
compreendida como “um espaço e território com características
próprias” que preexiste à organização do Estado Nacional e que pode
ser desorganizada por este (p.188). De acordo com o autor, a região
pode ser entendida, também, como um espaço que geograficamente
se estende além das fronteiras políticas, vindo a abranger um espaço
391
SUMÁRIO
Uma região em armas: a delimitação de uma região
conformada pela guerra durante o século XIX no espaço platino
regional e ser ela mesma entendida como uma zona de fronteira
(TARACENA, 2008, p.193).
Ainda segundo Taracena (2008), a região se constitui
enquanto espaço que não está isolado por limites artificiais; ao
contrário, está em contato por meio de diversos elementos, desde
comerciais, políticos, econômicos, sociais ou mesmo culturais.
Portanto, está constantemente “sujeita ao tempo e à capacidade de
territorialização das elites regionais e dos grupos sociais dominantes,
assim como a efeitos provocados pelos movimentos de população e
por lógicas particulares nascidas de processos econômicos internos”
(TARACENA, 2008, p.193; KOSELLECK, 2014).
No que diz respeito ao território que compõe uma região,
Taracena (2008) defende que não precisa ser homogêneo, pois sua
formação depende muito mais de sua definição de “territorialidade”
como elemento fundamental para sua demarcação, ou seja, seria a
“forma de se apropriar dele – como operaram sobre ele seus habitantes
e os atores sociais coletivos internos e externos” (TARACENA, 2008,
p.189). Ao encontro dessas afirmações, Mariana Thompson Flores
(2012) demonstra em sua tese a atuação dos fronteiriços ao se apropriar
do espaço de fronteira ou mesmo de uma região, manejando-a6,
vindo a lhe atribuir sentido de acordo com seus interesses durante o
período de conflito ou devido a necessidades políticas e econômicas.
Uma das formas de identificar a territorialização de um espaço
e delimitar a existência de uma região passa pela compreensão das
relações de poder dos indivíduos e, nesse sentido, as correspondências
são fontes privilegiadas para essa análise.
O retorno do interesse pelos indivíduos, no âmbito históriapolítica, despertou a vontade de compreender o “comportamento
social dos membros de determinado segmento social, no caso as
elites, as estratégias pessoais, seu contexto sociorrelacional e familiar”
(BERTRAND, 1999, p. 112). Nesse sentido, as correspondências
constituem importantes fontes capazes de expressar a complexidade
dos processos políticos, permitindo um olhar não só sobre as
6. Ao desenvolver o conceito de “fronteira manejada”, Mariana Thompson Flores (2012, p.68)
passa a pensar “fronteira” a partir das experiências pessoais e grupais dos habitantes desse
espaço, constituída como espaço dinâmico, podendo ter diversos significados para diferentes agentes, que a partir de suas condições sociais, construíam estratégias para manejar com
ela no seu cotidiano. Defende, ainda, que a fronteira é construída por meio das ações e decisões dos indivíduos no dia a dia, nem sempre pautadas por uma racionalidade (THOMPSON FLORES, 2012, p. 68). Nesse sentido, a fronteira manejada também seria um espaço
que possibilitaria aos indivíduos a utilização de recursos identitários, dependendo do lado da
fronteira em que estivessem, para que dessa forma se beneficiassem das distintas soberanias
(THOMPSON FLORES, 2012, p. 117).
392
SUMÁRIO
Uma região em armas: a delimitação de uma região
conformada pela guerra durante o século XIX no espaço platino
estratégias e as relações de poder, mas também sobre a mentalidade
e a cultura política de uma época.
É através das redes de relações sociais que os indivíduos
agem no sentido de criar, no tempo e no espaço, “um todo dialético
articulado e profundamente entrelaçados, onde o homem converte
o espaço natural em espaço social” (BANDIERI, 2001, p.99). Para
Eugenia Molina (2011), as redes criam laços pelos quais circularão
bens e serviços, os quais podem ser tanto materiais quanto imateriais.
Tais laços tornam-se mais fortes ao longo do tempo, conferindo aos
indivíduos pertencentes a uma rede, acesso a “vinculações diversas,
horizontais, verticais e transversais que, por um lado, dão-lhe uma
determinada margem de ação e recursos para suas atividades”
(MOLINA, 2011, p.20). Por sua vez, Jacques Revel (1995) sustenta
que, por meio do estudo de redes, torna-se possível compreender as
“estratégias sociais desenvolvidas pelos diferentes atores em função
de sua posição e de seus recursos respectivos, individuais, familiares,
de grupos, etc. [...]” (p.130).
Destaca Molina (2011), ainda, que o pertencimento a diversos
espaços de sociabilidade ajuda a conformar redes de relações que,
enquanto práticas associativas, “geram solidariedades e cooperação entre
as elites, importantes para servir de base para suas atividades políticas e
públicas” (p. 31), além de conferir-lhes determinada identidade.
Tais elementos confluem no sentido de permitir a compreensão
da amplitude que pode ter a influência dos indivíduos e dos
mecanismos que permitem não só estabelecer, mas também fortalecer
suas relações de poder sobre determinada região que ultrapassa os
limites políticos, principalmente porque os “grupos humanos não
respeitam limites ou fronteiras que pretendam impor os aparatos
administrativos dos Estados” (RECKZIEGEL, 2016, p.144).
As regiões construídas a partir da ação humana estão sempre em
movimento, “modificam-se de acordo com a época e as finalidades de
seu estudo” (VILLAR, 1976, p.36-37). Dessa forma, são as preocupações
de compreender determinados eventos, a partir do presente, que
levam o historiador a identificar e delimitar espacialmente um espaço
geográfico e atribuir a ele a qualidade de ser uma região, tornando-a
uma possibilidade a ser demonstrada (VAN YOUNG, 1987)
393
SUMÁRIO
Uma região em armas: a delimitação de uma região
conformada pela guerra durante o século XIX no espaço platino
Uma região pensada a partir da guerra
A partir das pesquisas realizadas nas correspondências pessoais
do General João Nunes da Silva Tavares7 (Joca Tavares), pudemos
identificar uma série de localidades das quais provinham cartas e
telegramas trocados entre os chefes federalistas e seus colaboradores,
num espaço que se estendia pelo Rio Grande do Sul, por diversos
Departamentos da República Oriental do Uruguai e por Províncias
da República Argentina, no período que abrange a Revolução
Federalista.
Essa delimitação das localidades e dos trajetos que as
correspondências percorriam permitiu que realizássemos a
delimitação de um espaço territorializado pelo General Tavares e por
outras lideranças federalistas. Com isso, foi possível cartografar as
rotas utilizadas para suprir as forças do Exército Libertador federalista,
demarcando não só as principais rotas de suprimento de munições,
armamentos, cavalos, roupas, mas também os principais pontos de
reunião de tropas e de colaboradores da Revolução, de onde partiam
para realizar incursões sobre o Rio Grande do Sul.
Com relação a essas localidades, foi possível identificar, nas
correspondências enviadas do Uruguai, que provinham de lugares
como Rivera, San Eugênio (del Cuareim − atualmente cidade de
Artigas), Tacuarembó, Melo, Aceguá, Salto, Paysandú, Tranqueras,
Laureles, Minas de Corrales e Montevidéu. Tais correspondências
eram remetidas por chefes federalistas que atuavam nessas
localidades, muitos imigrados fugidos das perseguições de Júlio de
Castilhos, que se utilizavam do território uruguaio para reorganizar e
suprir as forças (ANDRADE, 2017).
Já as correspondências originadas da Argentina eram enviadas
de localidades como Buenos Aires, Concórdia e Alvear, por alguns
dos líderes federalistas que atuavam nesses pontos, e reportavam os
acontecimentos para serem repassados ao General Tavares.
A partir dessa amplitude de localidades identificadas,
evidencia-se a existência de um espaço territorializado pelas relações
de poder do General Joca Tavares, durante o conflito que conformou
uma região platina, conforme a figura 1. Nela, são apresentados os
trajetos utilizados pelos federalistas para suprir suas forças durante
7. Gustavo Figueira Andrade, 2017. “A trajetória política do General João Nunes da Silva
Tavares (Joca Tavares): família, comunicação e fronteira” (Dissertação de Mestrado em História, Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria).
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SUMÁRIO
Uma região em armas: a delimitação de uma região
conformada pela guerra durante o século XIX no espaço platino
a Revolução Federalista de (1891-1896), envolvendo localidades do
Brasil, Uruguai e Argentina.
Figura 1: Trajetos utilizados pelos federalistas para suprir suas forças durante a
Revolução Federalista, envolvendo localidades do Brasil, Uruguai e Argentina.
Fonte: ANDRADE, Gustavo Figueira. A trajetória política do General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares): família, comunicação e fronteira. Dissertação
(Mestrado em História), Santa Maria: UFSM, 2017, p.151.
Ao analisarmos essa região, a partir de suas relações de poder
durante a Revolução Federalista, chamou-nos a atenção o fato de
que as rotas utilizadas, os trajetos das forças militares, as estratégias
empregadas, indissociáveis à fronteira, e a expertise em manejálas durante confrontos, eram coincidentes com os roteiros dos
conflitos anteriores, principalmente, os acontecidos no decorrer do
século XIX , que envolveram as elites políticas e militares sul-riograndenses, conforme procuraremos apresentar a seguir.
Em 1811, ocorreu a chamada expedição “pacificadora” da Banda
Oriental, ordenada por Dom João VI, e comandada pelo capitãogeneral da Capitania-Geral do Rio Grande de São Pedro, Dom Diogo
de Sousa, diante do pedido de socorro emitido por Dom Francisco
Javier Elío, representante das forças fieis à Espanha, sitiadas em
Montevidéu, cujo mapa das operações pode ser observado na figura
2. Este sítio foi estabelecido pelas forças da Junta de Buenos Aires,
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SUMÁRIO
Uma região em armas: a delimitação de uma região
conformada pela guerra durante o século XIX no espaço platino
comandadas por Don Jose Rondeau e de Jose Gervasio Artigas, os
quais procuravam a anexação da Banda Oriental às Províncias Unidas
do Rio da Prata (WIEDERSPAHN, 1979; ISLAS, 2009).
Figura 2 – Mapa das operações da campanha de 1811.
Fonte – WIEDERSPAHN, Henrique Oscar. Bento Gonçalves e as guerras de Artigas. Caxias do Sul, UCS, 1979.
Em outro momento, tanto durante as campanhas de
intervenção na Banda Oriental, de 1816 a 1821, que terminaram com
a anexação dessa província ao Reino Unido do Brasil, Portugal e
Algarves, quanto posteriormente, durante a Guerra da Cisplatina ou
Guerra del Brasil (1825-1828), estavam presentes fortes compreensões
sobre um espaço regional ligado por interesses em comum e por
um entremeado de redes de relações. A convivência e o espaço de
experiência (KOSELLECK, 2006), nessa região, em estado de constante
belicosidade, de cujos conflitos haviam participado a maioria dos
líderes políticos e militares sul-rio-grandenses que atuariam política
e militarmente, durante boa parte do século XIX, criavam vínculos
e estratégias sociais e políticas eivados de interesses econômicos.
Tais elementos teriam confluído, também, para a criação de outros
entendimentos de regiões em cena, como o Sistema de Pueblos
Libres, pelo qual qual José Artigas estabeleceu a Liga Federal, criando
um projeto de configuração nacional alternativo, tanto ao do Rio de
Janeiro, quanto ao de Buenos Aires, projeto este que teria sobrevivido
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SUMÁRIO
Uma região em armas: a delimitação de uma região
conformada pela guerra durante o século XIX no espaço platino
na longa duração histórica, sendo relembrado em diversos momentos
de crise e revoluções.
Na Revolução Farroupilha de 1835-1845, período em que a
província do Rio Grande do Sul havia levantado em armas contra
o Império do Brasil, os líderes da Farroupilha contavam com uma
ampla e densa rede de relações no Prata, sem a qual a Revolução não
teria subsistido por tanto tempo (LEITMAN, 1979; ETCHECHURY
BARRERA, 2013; GUAZZELLI, 2013). Nesse conflito, vários dos
líderes que haviam participado das campanhas militares anteriores,
no Prata, chegaram a aventar a possibilidade de formação de um
país independente que unisse o Rio Grande do Sul ao Uruguai e às
províncias argentinas de Entre Rios e Corrientes (GUAZZELLI, 2013;
ETCHECHURY BARRERA, 2013). Parte das movimentações militares
e dos conflitos, durante a Revolução Farroupilha de 1835-1845, pode
ser observado na figura 3.
Figura 3 - Movimentações das forças farroupilhas e imperiais durante a
Revolução Farroupilha de 1835-1845
Fonte: https://www.sohistoria.com.br/ef2/revolucaofarroupilha/
No período que compreende a chamada Guerra Grande (1839
– 1851), ocorrida entre os partidos Blanco e Colorado, ambos da
República do Uruguai, os interesses dos estancieiros rio-grandenses
foram prejudicados, provocando, assim, a intervenção do governo
brasileiro, o que desencadeou a Guerra de 1851 contra Manuel Oribe
e o argentino Juan Manuel de Rosas. Após o conflito, o número de
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SUMÁRIO
Uma região em armas: a delimitação de uma região
conformada pela guerra durante o século XIX no espaço platino
propriedades brasileiras aumentou, bem como os privilégios aos
senhores da fronteira, devido às imposições feitas ao Uruguai no
Tratado de Paz que deu fim a esta contenda. No entanto, mesmo com o
término da intervenção brasileira contra Oribe, as querelas uruguaias
não só prosseguiam, como também conflitavam com os interesses
dos estancieiros brasileiros e com a política externa do Império de
evitar conflitos, nesse período. Em 1865, novos desentendimentos
ocorreram, envolvendo os interesses dos estancieiros brasileiros,
residentes no Uruguai, sob a alegação daquele governo de que teriam
vencido os privilégios que lhes tinham sido concedidos pelo tratado,
após o conflito de 1851. A esse fator, somou-se a tentativa do governo
oriental, sob o comando de Atanásio Aguirre, de estabelecer um novo
equilíbrio de forças no Prata. Aliando-se ao Paraguai e fazendo frente
aos interesses brasileiros e argentinos, veio de encontro a uma política
externa mais agressiva do Império do Brasil, a partir de 1850 (CERVO;
BUENO, 2015). As ações militares que se seguiram, neste período,
as movimentações pelo espaço platino e, novamente, a utilização de
espaços semelhantes aos conflitos anteriores podem ser observadas
no mapa da figura 4:
Figura 4: Conflitos na Bacia do Prata (1850-1867)
Fonte: https://atlas.fgv.br/marcos/guerra-do-paraguai/mapas/conflitos-na-baciado-prata-1850-1867 Acessado em: 25/11/2018.
Observa-se, no mapa acima, a presença dessas similaridades
nas ações militares que se utilizam das mesmas localidades e
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SUMÁRIO
Uma região em armas: a delimitação de uma região
conformada pela guerra durante o século XIX no espaço platino
situações diversas. Tais semelhanças podem ser decorrentes de três
elementos: da qualidade do terreno utilizado, com poucos cursos
de água, o que facilitaria a movimentação das tropas; da presença
de redes de relações e de ligações criadas ao longo dos processos
históricos, nesses locais e; por último, das práticas econômicas e das
rotas comerciais pré-existentes, já conhecidas. A territorialização
desse espaço em um estado de guerra quase permanente, durante
o século XIX, teria aproximado as populações, estabelecendo
relevantes vínculos políticos, sociais, culturais e econômicos,
constantemente ativados, atuando na conformação de uma região.
Tais vínculos parecem estar sempre sendo reativados nos
momentos de crise e revoluções, trazendo à baila as ideias federalistas
e separatistas que apresentam alguma semelhança com os projetos
separatistas de Artigas e de Rivera. Essas práticas buscavam garantir
a possibilidade de negociação em pé de igualdade frente aos poderes
centrais e à defesa dos interesses das elites políticas fronteiriças. Por
outro lado, evidenciam a longa duração das ideias no Prata, pois a
opção por uma aliança com Uruguai e Corrientes também estava
presente na forma de pensar dos líderes políticos e militares sulrio-grandenses, durante a Revolução Federalista (ANDRADE, 2017;
COSTA, 2006; RECKZIEGEL, 1999).
No final do século XIX, ainda que por motivos bem distintos,
a eclosão da Revolução Federalista de (1891-1896), no Rio Grande do
Sul, coincidiu com a existência, no mesmo período, das Revoluções
Radicais na Argentina8. Nesse sentido, existem indícios de ampla
colaboração entre brasileiros e correntinos, como foi possível
compreender com base nos trabalhos de Marcus Vinícius Costa (2006)
e Gustavo Andrade (2017). Em relação ao ponto de vista correntino,
María del Mar Solís Carnicer (2005) destaca que, durante os anos de
1893 e 1895, existiram diversos conflitos com revolucionários, muitos
deles ocorridos nas cidades fronteiriças com o Brasil, como Santo
Tomé, Paso de los Libres e Alvear.
Nessas cidades, a autora destaca o emprego de forças
recrutadas no Brasil e, além disso, a utilização da fronteira para
refúgio, no Brasil, quando necessário. Isso vem evidenciar o manejo
desse espaço fronteiriço, à semelhança do que já ocorria com o da
fronteira com o Uruguai, fato que merece destaque, principalmente
porque, para uma força cruzar a fronteira com homens em armas, é
8. ALONSO, Paula. “La Unión Cívica Radical. Fundación, oposición y triunfo (1890-1916).
In: LOBATO, M. (Dir.) Nueva Historia Argentina. Buenos Aires, Sudamericana, 2000,
p. 208-260.
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SUMÁRIO
Uma região em armas: a delimitação de uma região
conformada pela guerra durante o século XIX no espaço platino
preciso conhecer o espaço para dele tirar melhor proveito, esquivarse dos obstáculos e receber apoio das forças militares do país vizinho.
Em ambos os casos, é preciso que alguém os esteja apoiando e lhes
garanta refúgio, o que serve para reforçar a ideia da existência de
amplas redes de relações supranacionais que agiram no sentido de
territorializar um espaço.
No sentido da busca por caracterizar a existência de elementos
comuns, durante os conflitos, nesse espaço platino, no século XIX, sob
a perspectiva da longa duração da guerra, procuraremos apresentar, a
seguir, algumas características que contribuíram para a formação de
uma região da guerra.
A convivência e a circulação de indivíduos, nesse espaço
platino, criou espaços de sociabilidades e favoreceu o estabelecimento
de relações sociais para além dos territórios nacionais, tais como
o convívio em decorrência da participação em longos períodos
de guerras (cabe destacar que era uma sociedade em constante
estado de guerra, durante o século XIX, com poucos hiatos de paz,
portanto militarizada), no âmbito militar, a prática da pecuária e o
pertencimento a instituições como a Maçonaria.
A existência dessas sociabilidades aponta o complexo mundo
das relações e estratégias sociais e político/militares entre os caudilhos
dessa região platina, denominados senhores da guerra. Evidencia,
ainda, a presença de intrincadas solidariedades e lealdades entre
as lideranças rio-grandenses, orientais e correntinas, muitas delas,
já velhas conhecidas das campanhas da Invasão da Banda Oriental
de 1811, 1817, da Guerra da Cisplatina (1825-1828), da Revolução
Farroupilha (1835-1845), da Guerra contra Oribe e Rosas, em 1851, e
posteriormente, da Guerra do Paraguai. Nesse sentido, a partir da
análise das correspondências do General Joca Tavares, durante a
Revolução Federalista, constatamos que muitos de seus companheiros
de armas haviam combatido juntos, durante a Guerra do Paraguai,
o que leva a crer ser plausível considerar a guerra como um dos
principais espaços de sociabilidades, capaz de criar solidariedades
na sociedade oitocentista sul-rio-grandense enquanto parte de um
universo de referências culturais e sociais comuns aos indivíduos que
atuam para além das fronteiras nacionais9.
9. Alejandro Grimson, 2003. La Nación en sus límites: contrabandistas y exilados en la frontera
Argentina-Brasil (Barcelona: Editorial Gedisa). Nesta obra o autor destaca que até o final do
séc. XIX, os estados nacionais e seus limites ainda estavam em processo de consolidação.
Neste sentido, as relações desenvolvidas nestes instáveis limites nacionais poderiam ser chamadas “transfronteiriças”.
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SUMÁRIO
Uma região em armas: a delimitação de uma região
conformada pela guerra durante o século XIX no espaço platino
Dentre os aspectos destes referenciais culturais e sociais
comuns a um sujeito fronteiriço, a maneira de fazer a guerra é
uma importante característica que apresenta elementos que se
tornaram semelhantes nesse espaço. Tal maneira de guerrear teria
se constituído pela apropriação de táticas indígenas de confronto
preexistentes à formação dos Estados platinos, acostumadas a se
utilizarem do espaço, desconsiderando limites dos Estados. Táticas
essas que teriam sido mescladas às maneiras de combater trazidas
por portugueses e espanhóis, criando uma maneira característica de
se fazer a guerra.
Esta maneira de lutar, que teria sido empregada desde o período
colonial, utilizava-se das soberanias dos territórios pertencentes
a Portugal e Espanha, ainda em demarcação, principalmente por
indivíduos que habitavam esse espaço, beneficiando-se dessa condição
para obter vantagens de terras e ganhos comerciais e militares.
Num período posterior, esse modo de lutar continuaria sendo
aplicado e adaptado a novas realidades existentes no contexto das
independências e, posteriormente, no processo de consolidação dos
Estados nacionais, influenciando nas formas de pensar e os utilizar
os “limites”, quanto na maneira de manejá-los para a guerra. No
Rio Grande do Sul, esta tática de guerra é conhecida como “Guerra
à Gaúcha”, caracterizada por movimentos rápidos, geralmente a
cavalo, e conduzida por indivíduos que eram exímios conhecedores
do terreno onde atuavam.
Nesse tipo de guerra, forças em menor número enfrentam forças
mais numerosas e melhor organizadas. No entanto, evitam oferecer
combate direto, ou seja, procuram extenuar o moral, os recursos do
inimigo ou sabotar seus recursos estratégicos. Na América do Sul,
essa forma de guerrear também era empregada pelas Montoneras e
teria sido uma maneira de fazer guerra, tanto antes do surgimento
dos exércitos nacionais quanto depois destes (RABINOVICH, 2018).
Pode ser entendida, ainda, de acordo com Valentina Ayrolo, como
sendo “diversas formas de ação militar, também de base popular,
desde tumultos armados, a exércitos não profissionalizados e mal
organizados, cuja ação poderia prolongar-se por alguns meses”
(AYROLO, 2012, p. 1).
Esse manejo das jurisdições e das soberanias das fronteiras, de
acordo com as necessidades políticas e econômicas das populações
que viviam nesses espaços fronteiriços ainda em demarcação, pode
ser destacado como uma das características da região da guerra,
401
SUMÁRIO
Uma região em armas: a delimitação de uma região
conformada pela guerra durante o século XIX no espaço platino
apontando para a recorrência dessa prática em contextos distintos,
durante o século XIX.
Tal prática de manejar fronteiras não constitui uma
especificidade apenas dos rio-grandenses. É também largamente
utilizada por uruguaios e argentinos como, por exemplo, no caso
dos líderes Fructuoso Rivera e Juan Antonio Lavalleja, os quais
mantinham redes de relações pessoais com líderes fronteiriços do
Rio Grande do Sul, Entre Rios e Corrientes, no período da Revolução
Farroupilha. A historiografia argentina aponta para práticas
semelhantes como, por exemplo, a fuga de diversos intelectuais e
políticos argentinos para Montevidéu, durante o governo de Juan
Manuel de Rosas (SHUMWAY, 1993, p.131) e para a atuação de
políticos, como a do correntino Ángel Blanco, durante o período da
Revolução de 1893, na Argentina (SOLÍS CARNICER, 2003).
A partir do ponto de vista social e econômico, essa região
conta com uma forte ligação entre brasileiros residentes e/ou com
propriedades rurais no Uruguai e na Argentina, bem como entre
uruguaios residentes e com propriedades no Brasil, e argentinos
residentes no Uruguai e no Brasil. A circulação das pessoas nesse
espaço também pode ser interligada a questões econômicas e
comerciais, muito relacionadas a um mundo da pecuária10.
Nesse sentido, o comércio de fronteira lícito e ilícito/
contrabando desempenhou importante função na economia
platina e na interligação dessa região, não só criando espaços de
sociabilidade, como também propiciando espaços de experiência
dos indivíduos no manejo do espaço geográfico. Cabe ressaltar que
a prática do contrabando foi uma prática amplamente utilizada
pelos fronteiriços, a partir do século XVIII, segundo afirma Tiago
Gil (2007), envolvendo desde muares, bovinos e equinos, até o
comércio de importação de diversos produtos. Esta prática perdurou
pelo século XIX, conforme afirma Mariana Thompson Flores (2012),
demonstrando a complexidade, as diversas formas pelas quais era
realizada e a amplitude que assumia a articulação em torno dessas
práticas comerciais que ligavam o Rio Grande do Sul ao espaço
platino, onde circulavam produtos vindos dos portos de Montevidéu
e de Buenos Aires, e do Brasil em direção ao Uruguai e à Argentina.
10. Ao nos referirmos a um mundo da Pecuária, fazemos alusão à existência de diversos aspectos históricos, sociais, culturais e políticos que envolvem essa prática econômica, durante o
século XIX. Podem variar desde o estabelecimento de matrimônios, compadrios, até alianças políticas entre famílias da elite, muito associadas a necessidades estratégicas e de poder
de uma sociedade agropastoril fronteiriça.
402
SUMÁRIO
Uma região em armas: a delimitação de uma região
conformada pela guerra durante o século XIX no espaço platino
A partir dos espaços de sociabilidade criados pela articulação
de interesses econômicos da guerra, destacamos o pertencimento a
sociedades secretas, como a Maçonaria, enquanto elemento capaz de
favorecer a atuação dos indivíduos nesse espaço, além das fronteiras,
o que lhes garantiria acesso a recursos materiais e imateriais que
seriam estratégicos para sua atuação política e militar.
A Ordem Maçônica11 pode ser entendida como importante
espaço de sociabilidade que favorecia o trânsito dos indivíduos por
espaços internacionais, no espaço platino, assim como poderia ter
atuado, também, no sentido de facilitar o acesso a determinados
grupos sociais ou círculos de poder. Como importante espaço de
atuação política, a Maçonaria facilitava o estabelecimento de rede
de relações e tinha abrangência internacional, o que propiciava o
contato com pessoas e ideias de diversas origens, principalmente
numa região de fronteira como é o Rio Grande do Sul (PADOIN,
1999). O vai e vem devido aos negócios comerciais, pecuários,
e às participações em guerras, levava os indivíduos a circular por
territórios diversos e, não raro, pode lhes ter suscitado a necessidade
de estabelecer relações pautadas por confiança mútua e lealdade
que lhes proporcionassem confiabilidades fora de suas localidades e
estabelecessem vínculos com pessoas das localidades que visitavam,
além de poder realizar negócios.
Como exemplo, citamos a atuação de Antonio Lavalleja, no
sentido de conseguir apoio para seus objetivos políticos através
da Maçonaria, conforme destacou Cesar Guazzelli, ao apresentar
documento de um representante do governo imperial brasileiro, em
Montevidéu, Manoel d’Almeida Vasconcellos, o qual teria afirmado,
em carta datada de 25 de março de 1833, endereçada ao governo
brasileiro, “a afiliação de Lavalleja à Maçonaria, que ainda em 1832,
entrara ‘em uma sociedade secreta do Rio Grande [do Sul], com o
fim de adquirir partidaristas’” (GUAZZELLI, 2013, p.65). A busca por
fazer propaganda e procurar apoio nas lojas maçônicas era comum,
uma vez que a Maçonaria era importante espaço de atuação política
do período, tanto que sua existência, em diversas localidades, “trouxe
e difundiu informações políticas, culturais e ideológicas correntes no
mundo, criando um espaço para o debate dessas questões” (COLUSSI,
1998, p. 260). Um exemplo dessa atuação regional em busca de apoio
e divulgação de ideias, a partir da Maçonaria, também foi citado por
Cesar Guazzelli (2013), ao afirmar que Bento Gonçalves era amigo
11. BLANC, Claudio. Dicionário Completo de Maçonaria. Editora Online, 2016. COLUSSI, E. L. A Maçonaria gaúcha no século XIX. 3. ed. Passo Fundo: UPF, 2003.
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SUMÁRIO
Uma região em armas: a delimitação de uma região
conformada pela guerra durante o século XIX no espaço platino
e compadre de Antonio Lavalleja e já havia lhe oferecido armas,
empréstimos e apoio militar desde 1832 (GUAZZELLI, 2013, p.64), ou
seja, três anos antes do período da eclosão da Revolução Farroupilha
de 1835. No entanto, a proximidade entre essas lideranças estava
além dos laços de amizade e compadrio, principalmente pelo fato de
ambos pertencerem à Maçonaria e serem liberais, assim como outros
líderes farroupilhas.
Num segundo exemplo, alguns anos mais tarde, durante a
Revolução Federalista de Federalista (1891-1896), semelhante acordo
parece ter sido firmado entre o líder político federalista Gaspar Silveira
Martins e Leandro Alem, um dos líderes da União Cívica Radical,
na Argentina. Este teria oferecido, no período entre 1893 e 1894,
“armamentos e munição aos pontos da fronteira com o Brasil em troca
de apoio dos federalistas brasileiros ao movimento revolucionário”
(RECKZIEGEL, 1999, p.114; COSTA, 2006). Sobre o encontro que
possa ter possibilitado o acordo entre essas duas lideranças, Marcos
Vinícius Costa ressalta a possibilidade de que tenha ocorrido em 1892,
em Montevidéu, período em que os dois chefes políticos estavam
exilados na cidade, ou mesmo em 1894, quando Silveira Martins esteve
exilado em Buenos Aires (COSTA, 2006, p176). Importante asseverar
que também nesse episódio a Maçonaria pode ter estado presente,
pois tanto Silveira Martins (ROSSATO, 2014) quanto Alem12 haviam
sido Grão-Mestres da Maçonaria em seus países, condição essa que
lhes permitiria não só circular e atuar furtivamente em ambientes de
grande prestígio, como também obter apoio e proteção.
Por outro lado, a Maçonaria, além dessa estrutura que favoreceria
a movimentação de indivíduos, também poderia funcionar como
importante instrumento de circulação de ideias, principalmente, em
torno do federalismo13, aproximando e articulando indivíduos nessa
região conformada pela guerra. Nesse sentido, Maria Medianeira
Padoin (1999) destaca não só a importância dessa instituição e a
complexidade que envolveu a circulação de ideias no Prata, como
12. Alem e Perón. Gran Lojia de la Argentina le Libres y Aceptos Masones, http://www.masoneria-argentina.org.ar/novedades-y-eventos/87-alem-y-peron (Consultada el 11 de Abril
de 2019).
13. Sobre federalismos ver: José Murilo Carvalho. Federalismo y centralización em el Império
Brasileño: história y argumento, In: CARMAGNANI, Marcelo. Federalismos latino-americanos: México, Brasil, Argentina, 1ª Ed. Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 51-80.
CHIARAMONTE José Carlos. El federalismo argentino em la primera mitad del siglo XIX.
In: Federalismos latino-americanos: México, Brasil, Argentina, coord. Marcelo Carmagnani,
1ª Ed. Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 81-132.
CORTINA Manuel Suárez (Coordinador). Federalismos: Europa del sur y América Latina
em perspectiva histórica. Grananda, España: Editora Comares, 2016.
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SUMÁRIO
Uma região em armas: a delimitação de uma região
conformada pela guerra durante o século XIX no espaço platino
também sua importância fulcral para o entendimento da Revolução
Farroupilha e de suas lideranças. Evidentemente, essa prática não era
apenas rio-grandense; ela circulava por todo o espaço platino e teve
forte apelo e conotações distintas, tanto nas Repúblicas do Uruguai
e da Argentina, quanto no Império do Brasil, durante o século XIX
(CARVALHO, 1996; CHIARAMONTE, 1996). Os federalismos também
podem ser entendidos como característica presente na cultura política
e nas elites políticas, na longa duração histórica platina, desde ideias
em torno do Protetorado de Artigas até a Revolução Federalista (18911896), no Brasil.
O fenômeno social do caudilhismo, ainda que não seja exclusivo
do Prata, constitui-se importante variável para a compreensão das
relações sociais, durante o século XIX, neste espaço que abrange
Brasil, Uruguai e Argentina, Estados que seriam abrangidos pela
região conformada pela guerra.
Ana Frega (1998) salienta que a compreensão acerca da origem
dos caudilhos estaria associada ao ponto de vista espanhol, segundo
o qual, o caudilho seria “guia e condutor de homens em tempos de
guerra” (FREGA, 1998, p.105), até a busca pela ordem nas províncias
e reivindicações por autonomias locais (CHIARAMONTE, 1991).
Foram, os caudilhos, importantes atores no processo de formação
das nações, durante o século XIX, e seu poder foi, em grande parte,
obliterado a partir da consolidação dos Estados Nacionais, na década
de 1880. Os caudilhos também haviam se destacado na defesa das
autonomias locais (CHIARAMONTE, 2012), posicionando-se em
oposição aos anseios centralistas das antigas capitais vice-reinais e
defendendo ideais de federalismo.
Valentina Ayrolo (2012) enfatiza a atuação dos caudilhos, no
âmbito de suas relações de poder, como importantes articuladores
de redes de relações e mediadores. Essas informações trazidas
pelas autoras vêm ao encontro de nossa hipótese, principalmente
pelo fato de que as articulações políticas e militares dos caudilhos,
na condução da guerra, não se restringiam às fronteiras nacionais.
Ao contrário, abrangiam espaços supranacionais, interligavam-se a
outros caudilhos e ativavam suas redes de solidariedade de acordo
com seus interesses quando necessário.
405
SUMÁRIO
Uma região em armas: a delimitação de uma região
conformada pela guerra durante o século XIX no espaço platino
Considerações finais
Através da apresentação de elementos que evidenciariam a
existência de uma região da guerra, procuramos apresentar diversos
aspectos que permitem pensá-la a partir de uma perspectiva de longa
duração, vindo ao encontro dos estudos desenvolvidos no âmbito da
história regional.
Essa região possui elementos que possibilitam estabelecer
uma identidade típica, que agrega e está relacionada com aspectos
econômicos, sociais e culturais que podem sobrepor, interseccionar
outras regiões, coexistindo e se apropriando de formas distintas pelos
múltiplos atores e interesses existentes.
Trata-se de um espaço onde os conflitos, as redes de relações
dos indivíduos, práticas econômicas e fenômenos sociais permitem
perceber mais aspectos comuns do que antagônicos, nas comunidades
fronteiriças, possibilitando compreender a conformação dos
processos históricos e das identidades regionais.
No que se refere à atuação e à vivência dos indivíduos na
região platina, as correspondências do general Tavares, durante a
Revolução Federalista, permitiram identificar os vínculos regionais e
a importância das relações sociais para territorialização de um espaço
que identificamos comum a diversas campanhas militares.
Da mesma forma, ainda a partir da Revolução Federalista,
mostramos a recorrência de ideias e projetos defendidos em momentos
de crise, no decorrer do século XIX, e o quanto os espaços de rotas
de comércio e contrabando, convertidos em rotas de suprimento
regionais, eram utilizados durante os períodos de guerra.
Outros aspectos também foram relevantes para caracterizar
essa região platina. Assim, evidenciamos os conflitos como espaços
de sociabilidades guerreiras na sociedade oitocentista, capazes de
preservar uma forma de pensar o espaço e a guerra que antecedem
os Estados Nacionais no Prata, que perdura nas ações dos indivíduos
para além dos limites políticos delimitados pelos projetos e interesses
dos Estados.
Ressaltamos, ainda, a existência de uma matriz produtiva
semelhante, voltada para a pecuária, além do comércio, do
contrabando e das experiências dos indivíduos nesse espaço,
sem deixar de considerar o importante fato do pertencimento a
determinadas instituições como, por exemplo, a Maçonaria. Esses
elementos criaram espaços de sociabilidades, contribuíram para a
406
SUMÁRIO
Uma região em armas: a delimitação de uma região
conformada pela guerra durante o século XIX no espaço platino
circulação de valores, ideias e indivíduos, interligaram populações
desse espaço platino, confluíram para o estabelecimento de vínculos,
solidariedades e de identidade típica de um indivíduo platino.
Tal mentalidade compreende uma forma peculiar de os
indivíduos pensarem o espaço, atuarem e se relacionarem com ele,
que permaneceu ao longo do século XIX. Envolve, ainda, o fato
de saberem utilizá-lo estrategicamente, de forma mais ou menos
semelhante, criando um ethos muito ligado às zonas de fronteiras em
momentos de guerra e revoluções, concebendo uma maneira típica
de fazer a guerra nesse espaço.
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409
SUMÁRIO
O GENERAL JOÃO NUNES DA
SILVA TAVARES (JOCA TAVARES)
E A CIDADE DE BAGÉ: DO CONTEXTO
DA PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA À
REVOLUÇÃO FEDERALISTA
Gustavo Figueira Andrade1
Aristeu Elisandro Machado Lopes2
410
SUMÁRIO
O General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares) e a cidade de Bagé:
do contexto da Proclamação da República à Revolução Federalista
1
2
Introdução
Os primeiros anos da República no Brasil foram caracterizados
por um contexto de crise política, econômica e social e, em razão
desse cenário conturbado, a consolidação do novo regime envolveu
graves conflitos, entre os quais eclosão da Revolução Federalista3. No
estado do Rio Grande do Sul, a cidade de Bagé esteve no epicentro
dos embates políticos e revolucionários, devido a sua proximidade
com a fronteira com o Uruguai, o que permitiria estabelecer a sede
de um governo beligerante e, ainda, obter melhor abastecimento
logístico vindo dos federalistas brasileiros, estabelecidos ou exilados
no país vizinho.
Esse conflito contou com grande envolvimento de seus
concidadãos nas refregas políticas daqueles anos. Acontecimentos
esses, que deixaram marcas na sociedade e até hoje estão preservados4
1. Doutor em História pela Universidade Federal de Santa Maria.
2. Doutor em História/UFRGS. Professor Associado II do Departamento de História e do
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pelotas.
3. A Revolução Federalista (1891-1896) foi uma guerra civil ocorrida no período pós Proclamação da República, no Brasil, que opôs liberais federalistas e castilhistas. Abrangeu não
só os estados meridionais brasileiros do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, mas
também um espaço regional platino constituído por Uruguai e Argentina. Pode-se afirmar
que esta Revolução foi um dos conflitos mais violentos ocorridos no. A Revolução pode ser
entendida como um movimento contestatório por parte das antigas elites políticas liberais
que possuíam preponderância no cenário político, durante o regime monárquico no Brasil.
Dentre os motivos, estavam a taxação do comércio de fronteira e a repressão ao contrabando. No Rio Grande do Sul, o conflito envolveu a contestação do modelo político de características positivistas que passou a vigorar com a República. Impediu, ainda, o acesso das elites
liberais às estruturas do poder do Estado, tanto em nível nacional quanto estadual, trazendo
consequências ao poder local dessas elites, opondo concepções federalistas distintas.
4. Percebemos a inexistência e a necessidade de um memorial, no local dos conflitos, em homenagem àqueles homens, mulheres e crianças anônimos, que perderam suas vidas naquela
guerra civil fratricida, na defesa de suas casas, famílias ou ideais.
411
SUMÁRIO
O General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares) e a cidade de Bagé:
do contexto da Proclamação da República à Revolução Federalista
na memória coletiva (HALBWACHS, 1990) dos bajeenses e dos
habitantes da Região da Campanha sul-rio-grandense.
Estabelecer uma análise sobre os eventos ocorridos nesse
período, em Bagé, permite compreender o contexto de violência a
que estava submetida a população urbana. Nesse sentido, o objetivo
deste capítulo será averiguar o contexto econômico, político e social
da cidade, no período da Proclamação da República e da Revolução
Federalista, e como Bagé e sua população foram atingidas pela
violência do conflito. Dessa forma, procuraremos responder algumas
questões como: Qual era o contexto econômico, político e social da
cidade de Bagé nesse período? Quais foram os aspectos que marcaram
a ligação entre Bagé e o contexto político estadual e nacional? Quais
eventos permitem compreender as relações existentes entre Bagé e o
processo de consolidação da República? E, por fim, o que aconteceu
na cidade durante a Revolução Federalista e de que forma isso afetou
a população civil?
Para responder a essas questões, utilizamo-nos de fontes
como censos e jornais contemporâneos aos eventos que tratam
sobre a cidade de Bagé, especialmente o Diário Popular e A
Reforma, ambos de Pelotas, e Cidade do Rio, do Rio de Janeiro.
Utilizamo-nos, também, dos diários pessoais do General João
Nunes da Silva Tavares5, correspondências pessoais e obras facsímiles acerca dos eventos.
5. Nascido em Herval, em 1818, filho de João da Silva Tavares, Visconde do Cerro Alegre, e
de Umbelina Bernarda Assumpção Nunes, casou-se com Flora Vieira Nunes e começou sua
vida militar na Revolução Farroupilha de 1835-1845. Neste conflito, lutou ao lado de seu pai
na defesa do Império do Brasil. Mudou-se com sua família para a cidade de Bagé, na segunda metade do século XIX, onde passou a dedicar-se à pecuária e à atividade charqueadora.
Participou ativamente da vida política e militar da cidade, incorporou-se à Guarda Nacional
e participou de diversas campanhas militares posteriores, como a Guerra de 1851, contra
Manoel Oribe e Juan Manuel de Rosas. Posteriormente,em 1864,lutou na Campanha do
Uruguai e organizou forças para lutar na Guerra do Paraguai, conflito em que se destacou,
principalmente, por comandar o piquete que derrotou e matou Francisco Solano López, na
batalha de Aquidabã. Ao regressar do conflito, recebeu o título de Barão do Itaqui e o título
de General Honorário do Exército Brasileiro, tendo logo assumido o comando da Guarda
Nacional, Guarnição e Fronteira de Bagé, após o falecimento de seu pai. No aspecto político, assumiu a chefia política do Partido Conservador em Bagé. Ocupou cargos em nível
provincial, chegando a ser 3º Vice-Presidente da Província, em 1885, durante o período da
Monarquia no Brasil. Com a República, ao lado de seus irmãos, teve intensa atuação política na fundação dos partidos da União Nacional, Partido Republicano Federal e Partido
Federalista, chegando a ser governador do estado por breves dias. Durante a Revolução
Federalista, foi Comandante-em-Chefe das forças do Exército Libertador federalista, tendo, mais adiante, auxiliado o comando do almirante Luís Felipe Saldanha da Gama, até a
assinatura do tratado de pacificação, em 23 de agosto de 1895 (ANDRADE, 2017).
412
SUMÁRIO
O General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares) e a cidade de Bagé:
do contexto da Proclamação da República à Revolução Federalista
A cidade de Bagé e o contexto da Revolução
Federalista
Durante a segunda metade do século XIX, devido ao intenso
desenvolvimento econômico, comercial, artístico e cultural
impulsionado pela atividade pecuária, Bagé foi elevada à categoria de
cidade, em 18596. Para se ter noção da pujança econômica, citamos o
primeiro recenseamento promovido pelo Império do Brasil, realizado
em 1872, segundo o qual, a cidade estava posicionada entre as mais
ricas e populosas da Província do Rio Grande do Sul, tendo passado,
em 1872, de uma população total de 15.037, entre pessoas livres e
escravizadas, para uma população total de 22.692, em 18907.
A cidade tornara-se, em 1890, a maior cidade da região da
Campanha, graças à economia agropecuária, mas, apesar da evidência
obtida, nos primeiros anos da República e durante a Revolução,
as ruas ainda não eram calçadas. Afora isso, as principais áreas da
cidade contavam com avenidas largas, embelezadas por pequenas
árvores na parte central e por postes de iluminação. Além de praças
e jardins que constituíam passeios públicos, podiam-se visualizar
os postes das linhas do telégrafo, presentes na cidade desde 1881,
que revolucionaram as comunicações (SALIS, 1955). Entretanto, no
período que antecedeu a eclosão do conflito, a cidade enfrentou
dificuldades no âmbito econômico e político.
Enquanto no contexto nacional, assinalado por forte crise
política e econômica, materializava-se a desvalorização da moeda,
fato conhecido como “encilhamento”, e acontecia a Revolta da
Armada (1893-1894), o cenário político do Rio Grande do Sul também
era marcado por forte instabilidade e crise política (MORITZ, 2005;
ANDRADE, 2017).
Após a Proclamação da República, no que se refere à esfera
econômica, a região da Campanha foi prejudicada em diversos
aspectos pelas políticas promovidas por Júlio de Castilhos enquanto
secretário dos governos que se seguiram. Dentre eles, podemos
citar a mudança de regime em relação a um maior controle
sobre a fronteira em decorrência da política fiscal implementada
(PESAVENTO, 1983; TARGA,2008; SOUZA, 1993). Da mesma forma,
a política intervencionista promovida por Castilhos interferiu no
6. Fundação de Economia e Estatística De Província de São Pedro a Estado do Rio Grande do
Sul. Censos do RS 1803-1950. Porto Alegre, 1981.
7. Fundação de Economia e Estatística De Província de São Pedro a Estado do Rio Grande do
Sul. Censos do RS 1803-1950. Porto Alegre, 1981.
413
SUMÁRIO
O General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares) e a cidade de Bagé:
do contexto da Proclamação da República à Revolução Federalista
andamento da vida política, nas localidades, substituindo o comando
das Câmaras Municipais e da Guarda Nacional, destituindo antigos
chefes liberais e conservadores dos cargos públicos, substituindo-os
por membros do PRR (PESAVENTO, 1983; FLORES; FLORES 1999;
FRANCO, 1996; 2012)
No âmbito rural, já eram sentidos os ventos da mudança vindos
da outra banda da fronteira, como bem destaca John Chasteen
(2003), ao apresentar o contexto de uma época em que o aumento
populacional, o cercamento das propriedades e a introdução de
raças de gado europeias teriam ocasionado a diminuição da oferta
de empregos, desenhando uma situação de penúria e até mesmo
de fome para a população rural pobre, não só do Uruguai, como
também do lado brasileiro (CHASTEEN, 2003, p.89-105).
Por se tratar de uma área de fronteira, as mudanças que
prejudicaram a economia rural e a sociedade uruguaia trouxeram, por
sua vez, consequências para a Campanha rio-grandense. De acordo
com Ana Luiza Reckziegel, tais mudanças teriam criado um “excedente
de desemprego, principalmente entre a população masculina que,
na Revolução Federalista, se alistou em busca de oportunidades, até
mesmo de sobrevivência” (RECKZIEGEL, 2007, p. 32).
Nesse sentido, a crise teria afetado muito mais a população
rural pobre que os grandes proprietários e os ricos comerciantes
(RECKZIEGEL, 1999), fato que pode ser observado na fundação de
charqueadas pelo interior do Rio Grande do Sul, como, por exemplo, a
Charqueada Industrial Bajeense, em 1891 (BOUCINHA, 1993), devido
ao enfraquecimento da produção charqueadora em Pelotas. Como
exemplo do envolvimento político e militar de personagens políticos
bajeenses, nos primeiros anos da República, e sua relação com o
aspecto político estadual e nacional, citamos o caso do general João
Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares), o qual recebeu diretamente
do Presidente da República o comando da Fronteira e Guarnição de
Bagé,em 1890(ANDRADE, 2017).
No aspecto político estadual, destacava-se a família Silva
Tavares, importante representante de interesses políticos de grupos
fronteiriços, dentre eles, pecuaristas, charqueadores e comerciantes
da metade sul-rio-grandense, da qual faziam parte Joca e seus irmãos
José Facundo, José Bonifácio (Zeca), Dr. Francisco e Joaquim (Barão
de Santa Tecla). Este grupo, junto a outros políticos do Rio Grande do
Sul, esteve envolvido tanto na Fundação do Partido União Nacional,
em 1890, quanto na fundação do Partido Republicano Federal, em
414
SUMÁRIO
O General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares) e a cidade de Bagé:
do contexto da Proclamação da República à Revolução Federalista
1891, ambos oposicionistas a Júlio de Castilhos (ESCOBAR, 1983;
MORITZ, 2005; VILLALBA, 2017).
Em 1891, ainda, o cenário no âmbito da política nacional
e estadual apresentava-se conturbado, principalmente devido
aos desentendimentos do Presidente Deodoro da Fonseca com
o Congresso, envolvendo embates em torno do autoritarismo
de Deodoro e de questões acerca de um risco de restauração da
Monarquia (JANOTTI, 1986). O resultado desta contenda entre os
poderes Executivo e Legislativo foi a tentativa de fechamento do
Congresso, por parte de Deodoro, fato que configurou um ensaio de
golpe de Estado, em novembro de 1891, iniciativa que foi aprovada
por Júlio de Castilhos, então governador eleito do Rio Grande do Sul
(FLORES; FLORES, 1999).
Essa situação levou à resistência em diversas partes do país e,
em Bagé, não era diferente. O general Tavares, secundado pelas forças
da guarnição sob seu comando, manifestava-se junto a outros líderes
políticos do Rio Grande do Sul, contexto no qual forças aquarteladas
no estado também se levantaram, intimando à renúncia o Presidente
da República e Castilhos8.Tal cenário, ocasionado pela renúncia de
ambos os mandatários, tornou insustentável a posição do governo,
tendo sido conduzido ao poder Floriano Peixoto, vice-presidente da
República, e uma junta governativa, no Rio Grande do Sul.
Esses episódios marcados por deposições e perseguições
passaram a ocorrer em todo o estado, configurando um período de
conflitos políticos, golpes e contragolpes que marcaram a eclosão
da Revolução Federalista (ANDRADE, 2021). Em Bagé, por ter
comandado a resistência na metade sul do Estado e saído do conflito
como um dos principais líderes que ocasionaram a queda de Deodoro
e Castilhos, o general Tavares manteve o comando da Fronteira e
Guarnição de Bagé, até 1892.
A cidade esteve envolvida no centro das decisões políticas
estaduais, em 1892, período em que sediou um congresso político,
convocado pelo general Tavares, ao qual compareceu Gaspar Silveira
Martins9 e chefes políticos oposicionistas de todo o estado. A
8. TAVARES, João Nunes da Silva. Ordem do Dia n.1 do Comando em Chefe das Forças
Revolucionárias do Sul do Estado. Bagé, 8 dez. 1891. Arquivo Público Municipal de Bagé
(grifos nossos).Arquivo Público Municipal de Bagé, RS.
TAVARES, João Nunes da Silva. [Carta] 12 nov.1891, Bagé. [Para] CASTILHOS, Júlio Prates de. Porto Alegre, 1 folha. Ultimato dado pela junta revolucionária ao governador Júlio de
Castilhos. Arquivo Público Municipal de Bagé, RS.
9. Sobre esse personagem ver: ROSSATO, Monica. Gaspar Silveira Martins e a Revolução Federalista (1893-1895): que federalismo é esse? Tese (Doutorado em História). Programa
415
SUMÁRIO
O General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares) e a cidade de Bagé:
do contexto da Proclamação da República à Revolução Federalista
reunião resultou na fundação de um novo partido político, o Partido
Federalista, o qual se desvinculava dos republicanos históricos
dissidentes (FRANCO, 1996; 2012; ANDRADE, 2017).
Nesse contexto revolucionário de intolerância política e
perseguições, o acirramento da crise se dá com o contragolpe de
estado perpetrado pelo Partido Republicano Rio-Grandense contra
José Antônio Correia da Câmara, Visconde de Pelotas. Em 17 de junho
de 1892, Joca Tavares, segundo vice-governador do Rio Grande do Sul
e membro do Partido Federalista, recebeu um telegrama do então
governador deposto, transferindo-lhe o governo do estado. Com essa
decisão, Bagé torna-se sede do governo estadual por breves dias.
O general Tavares, acusando Júlio de Castilhos e Vitorino
Monteiro de promoverem um golpe de estado, passou a reunir
forças oposicionistas e federalistas com o propósito de instaurar a
resistência em Bagé. Dentre as forças que acudiram ao chamado em
defesa do governo de Tavares, estavam personagens que já haviam
ocupado importantes cargos políticos e militares durante o Período
Imperial no Brasil. Parte deles, já com experiência militar, mantinha
relações de amizade com Tavares, ao menos, desde a Guerra do
Paraguai (ANDRADE, 2021).
Nesse contexto, o Exército Brasileiro, por ordens de Floriano
Peixoto e, em acordo com Júlio de Castilhos, quebrou o princípio
de não intervenção federal em questões internas dos estados,
previsto pela Constituição Brasileira de 189110, e interveio em favor de
Castilhos, causando a rendição do general Tavares, em 4 de julho de
1892 (VILLALBA, 2017).
Em Bagé, esse fato desencadeou uma série de eventos de
violência e perseguições implementadas por forças castilhistas que
adentraram a cidade após a rendição, conforme observamos a seguir:
O povo desta cidade e município é testemunha diretamente, tem enchido de pavor e desânimo a todas as famílias, a todos os homens honestos, mesmo aqueles que
neste lugar mais sacrifícios fizeram pela elevação de Sr.
Júlio de Castilhos ao poder. [...]. A desolação do povo é
enorme. Narrar todas as violências, todos os fatos cride Pós Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria, 2021.
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416
SUMÁRIO
O General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares) e a cidade de Bagé:
do contexto da Proclamação da República à Revolução Federalista
minosos que o Proconsul [sic] do Sr. Júlio de Castilhos
e sua gente têm cometido em Bagé, é atualmente um
perigo, porque a ameaça de morte paira sobre aquele
que ousar divulgar qualquer ato selvagem desse sujeito
(Reforma. Pelotas.6 ago. 1892, p.1.).
Restava, assim, ao general Tavares e a outros líderes federalistas
o êxodo para o Uruguai, juntamente com suas famílias, escapando da
vendeta das forças castilhistas e do Exército brasileiro que retomaram
a cidade e passaram a exercer controle e domínio sobre ela a partir
desse momento até o término do conflito11.
Em 1893, no que se refere ao aspecto político e social, a cidade
de Bagé passava por um período de fortes tensões e acirramento dos
ânimos. Essa situação, de acordo com John Chasteen, chegou a tal
ponto que “uma briga qualquer em um baile nos subúrbios da cidade
podia causar a mobilização da guarnição, que ficava em pânico, pois
ninguém ignorava que a maior parte da população da cidade estava
do lado dos federalistas” (CHASTEEN, 2003, p.56).
Ao encontro dessa afirmação de John Chasteen (2003), um
recorte de jornal guardado junto a correspondências pessoais da
família Silva Tavares, em Bagé, permite observar as agressões que
estavam sendo cometidas pelas autoridades militares contra a
população civil, inclusive com perseguição ao Dr. Francisco Tavares.
[...] O coronel Carlos Telles12 nega-o como negará o
atentado cometido contra o ilustre cidadão Dr. Francisco da Silva Tavares, atacado por praças do 31º de infantaria, numa das principais ruas de Bagé, em pleno dia,
e por ordem do comandante daquela guarnição, para
ser conduzido ao quartel do comando, raspar-lhe a cabeça e meter-se-o [sic] na cadeia, segundo informações
militares. O fato é público e notório, foi testemunhado pela população bajeense, que assistiu, sem surpresa
mas indignada, às cenas de repugnante tropelia [...].
Não fora o correto procedimento que teve o Sr. Tenente-coronel Francisco de Paula Alencastro, comandante
11. As forças federalistas comandadas pelo general Joca Tavares tentavam reaver Bagé, ainda
que tivessem falhado na tentativa de tomá-la, após prolongado sítio em que as forças do
Exército e castilhistas estiveram entrincheiradas em torno da praça da igreja Matriz (ANDRADE, 2014). As cartas do general Tavares (2004b, p.92) citam o fato de que a cidade
esteve por breve momento tomada pelas forças de Zeca Tavares − a guarnição de Bagé saíra
em defesa da cidade de Rio Grande que estava sob ataque dos federalistas − ocasião em que
foram destruídas as trincheiras construídas pelos governistas, conseguindo obter suprimentos que foram escondidos nas residências.
12. Irmão do General João Telles, comandou o 31º Batalhão de Infantaria; foi também Comandante da Fronteira e Guarnição de Bagé, durante o cerco da cidade, resistindo às investidas federalistas (PORTO ALEGRE, 1917).
417
SUMÁRIO
O General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares) e a cidade de Bagé:
do contexto da Proclamação da República à Revolução Federalista
do 12º regimento, tirando do sítio, em carro, a vítima
do energúmeno coronel Carlos Telles, e o Dr. Francisco Tavares estaria, talvez, morto, porque teria resistido, infalivelmente, à execução das ordens estupendas
do comandante da guarnição, que há muito, com seus
exemplos de despotismo, ensina a soldadesca ignorante a desrespeitar a sociedade civil. O coronel Carlos Telles igualmente negará a violência praticada para com
o Clube Caixeral; mas Bagé, em peso, sabe das circunstâncias que ocorreram relativamente a mais esse descoco do comandante daquela guarnição, que dissolveu o
simpático e futuroso [sic] Clube, obrigando-o a encaixotar sua rica biblioteca e objetos de valor, em quatro
horas e entregar a chave ao senhorio, com a ordem de
não mais reunirem-se os membros da associação violentada. Tudo isso por que não foi consentido, no baile
do Clube Caixeral, um oficial intruso, alterego do comandante da guarnição [...]13.
A partir desse episódio, as forças governistas passaram a
ocupar a cidade de Bagé, mantendo efetivos militares do Exército,
Brigada Militar e forças civis castilhistas em armas, para impedir a
retomada da cidade e garantir “a ordem”. Importante ressaltarmos
que, na cidade, não havia apenas federalistas, mas também relevante
núcleo político de indivíduos ligados ao PRR, tais como o Dr. Líbio
Vinhas, José Otávio Gonçalves, Jorge Reis, dentre outros, indivíduos
bastante atuantes na vida política local nos anos seguintes (REIS,
1911; SALIS, 1955).
Neste contexto, enquanto muitos líderes federalistas
emigravam para o outro lado da fronteira, como foi o caso do general
Joca Tavares e sua família, em busca de abrigo contra a perseguição
castilhista, passando a organizar um contra-ataque, Bagé tornouse importante reduto governista que deveria ser defendido contra
as tentativas de retomada pelos federalistas. No entanto, diversas
outras famílias não tiveram a mesma sorte de poder abandonar
a cidade e escapar do cenário de violência e de disputas pelo seu
controle por parte de federalistas e castilhistas, contenda cujo maior
exemplo foi o cerco a Bagé.
13. O Coronel Carlos Telles: seus telegramas. Foto de recorte de jornal encontrada junto à
documentação do general Joca Tavares. Arquivo Público Municipal de Bagé, Rio Grande
do Sul.
418
SUMÁRIO
O General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares) e a cidade de Bagé:
do contexto da Proclamação da República à Revolução Federalista
Visões da barbárie: o embate entre governistas
e federalistas pelo domínio de Bagé
Um dos principais eventos que marcou a disputa pela cidade de
Bagé, durante a Revolução Federalista, e que permite compreender o
contexto e a sociedade frente às agruras e dificuldades que enfrentou
a população civil de idosos, mulheres e crianças que vivenciou
os horrores de uma guerra fratricida, foi o cerco a Bagé (LOPES,
ANDRADE, BRASIL, 2021).
Diversos trabalhos foram escritos por memorialistas acerca
desse evento e, dentre os principais expoentes, cabe salientar os
apontamentos realizados por Epaminondas Villalba (1897), Wenceslau
Escobar (1983), Jorge Reis (1911) e José de Carvalho Lima (2009), além
de outros pesquisadores que escreveram, posteriormente, na mesma
linha, tais como Eurico Salis (1955), Tarcísio Taborda (1970) e Cláudio
Moreira Bento (1993).
Também vale destacar os diários e as correspondências do
general João Nunes da Silva Tavares e do Dr. Francisco da Silva
Tavares, enquanto fontes privilegiadas para compreender as vivências
individuais e coletivas, as formas de vida e de percepções sobre a
cultura e a sociedade de uma época (CUNHA, 2013).
As memórias são obras que podem ser entendidas como escritas
de si e constituem, enquanto processo de representação simbólica
do sujeito, importante meio para entender o indivíduo e suas
experiências vividas, a sociedade e a cultura de uma época (GOMES,
2004). Por se tratar de eventos ocorridos durante uma guerra civil,
as memórias se apresentam carregadas de sofrimentos e traumas
vivenciados direta ou indiretamente, levando à seletividade daquilo
que deve ser lembrado ou esquecido em suas memórias (POLLAK,
1992; FARGE, 2001; CANDAU, 2012).
Essas obras memorialísticas estão carregadas da subjetividade e
das paixões políticas de seus autores, o que evidentemente influencia
no teor de seus apontamentos e posicionamentos, na seleção e na
construção de uma narrativa pautada por uma visão de história
característica de seu período, de história enquanto mestra da vida
(GOMES, 2004; OLIVEIRA, 2011; CANDAU, 2012).
É preciso ressaltar que nenhuma fonte é inocente e, nesse sentido,
alerta Jacques Le Goff (2013) acerca da atenção do historiador em
evitar sedução ou ingenuidade pela fonte, devendo ter bem claro que
a produção de um documento, assim como sua preservação, nunca
ocorre de forma inocente ou por mero acaso. Esse processo envolve
419
SUMÁRIO
O General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares) e a cidade de Bagé:
do contexto da Proclamação da República à Revolução Federalista
um procedimento de manipulação que se manifesta em todos os
níveis da constituição do saber histórico; logo, “o documento é um
monumento. Resulta, pois, do esforço das sociedades históricas para
impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada
imagem de si próprias” (LE GOFF, 2013, p. 496-497).
Outras importantes fontes para compreender o contexto, a
atuação dos personagens e os eventos que se seguiram são as notícias
que ocupavam as primeiras páginas dos jornais contemporâneos aos
acontecimentos, dentre os quais, o Diário Popular e A Reforma, de
Pelotas, e Cidade do Rio, do Rio de Janeiro.
Importante salientar que os jornais, enquanto fontes, são
importantes ferramentas para a compreensão de diversas facetas da
sociedade e da política de uma época em análise. Entretanto, não
podem ser considerados de forma ingênua pelo historiador, confiando,
sem crítica, em sua veracidade, mas, sim,como representações que
devem ser analisadas a partir de seu lugar de produção, de sua origem,
pensadas e produzidas para fins específicos e que representam grupos
e interesses (DE LUCA, 2014).
Os eventos que marcaram a violência sobre a cidade na
região da Campanha começaram em 1891, com o levante de forças
pelo general Tavares. Tinham o intuito de resistir ao golpe de
Estado que resultaria na deposição de Manoel Deodoro da Fonseca,
Presidente da República, e do governador Júlio de Castilhos,
motivando a perseguição aos castilhistas que atuavam em defesa de
seu representante. Importante destacar que tais eventos passaram a
marcar o começo da Revolução Federalista.
Após o êxodo federalista para o Uruguai, a partir de 1892, e
com a incursão sobre o Brasil cruzando a fronteira, em fevereiro
de 1893, tais acontecimentos tinham o objetivo de tomar cidades,
conseguir recursos e organizar um governo, tarefa que se mostrou
impossível devido não só ao estilo de guerra empregado pelos
federalistas e de movimento que adotaram, mas também à falta de
meios para defender as cidades contra forças melhor equipadas. Esse
intento resultou, em um primeiro momento, na tentativa de tomar as
cidades de Santana do Livramento e Dom Pedrito, que passaram a ser
sitiadas14 (ANDRADE, 2017).
14. Ao longo do conflito, diversas cidades foram sitiadas ou invadidas pelos federalistas, no Rio
Grande do Sul, como: Rosário do Sul, Santo Ângelo, Palmeira das Missões, Dom Pedrito,
Cruz Alta e Rio Grande, dentre outras.
420
SUMÁRIO
O General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares) e a cidade de Bagé:
do contexto da Proclamação da República à Revolução Federalista
Temendo o pior, ainda em março, cerca de quatrocentos
homens da força do corpo de engenharia, pertencentes às forças
governistas do Exército que estavam em Bagé, passaram a cavar
trincheiras no entorno da praça da Igreja Matriz, buscando fortificar
a posição e se manterem alerta (TAVARES, 2004a).
Tratava-se de um conflito que poderia convulsionar o país
e, por isso, o governo federal mobilizou homens de outros estados
brasileiros para lutar no Sul do Brasil, inclusive deslocando-os para
Bagé, como foi o caso do soldado cearense José de Carvalho Lima
(2009), que serviu nas forças do 11º Batalhão de Infantaria. Deslocado
de Fortaleza, no Ceará, para lutar contra os federalistas, no Rio
Grande do Sul, o soldado chegou a Bagé no mês de junho de 1893
(ANDRADE, 2021).
A narrativa de Carvalho Lima (2009) permite entender
as dificuldades enfrentadas pelos soldados e o clima de tensão
constante. Afirma, o autor, que nesse período em que chegara a
Bagé, estavam aquartelados diferentes contingentes militares de
infantaria, cavalaria, artilharia e de engenharia, constituídos por
cearenses, cariocas e mineiros15, além de forças da Brigada Militar e
de voluntários civis (LIMA, 2009).
Enquanto isso, o outono de 1893 começava rigoroso,
confirmando as impressões do Dr. Francisco Tavares (2004a)
acerca dos gelados dias de março, relatadas em suas memórias. O
excesso de chuvas era outra importante variável para compreender
a movimentação e as condições das forças governistas e federalistas.
Os rios transbordantes dificultavam a movimentação das tropas;
rigorosas geadas aumentavam as agruras dos soldados que
enfrentavam as intempéries com poucos suprimentos, a ponto de
soldados federalistas, em junho de 1893, terem perecido congelados
pela falta de roupas adequadas (TAVARES, 2004b).
Muitos dos contingentes do Exército, vindos de outros estados
brasileiros para lutar na campanha gaúcha contra os federalistas,
sofreram com as intempéries e parte deles foi internada devido ao
frio excessivo que enfrentara (CIDADE DO RIO, 07/04/1893, p.1).
O telégrafo e a ferrovia Bagé/Pelotas eram constantemente
sabotados pelos federalistas, dificultando a logística para suprimentos
e a comunicação das forças governistas, em Bagé (LOPES; ANDRADE;
BRASIL, 2021). Ao encontro dessa afirmação, o jornal pelotense Diário
15. Dentre as forças cariocas que estavam na cidade, ressaltamos o 19º Batalhão de Infantaria
e o 31º Batalhão de Infantaria, de Ouro Preto.
421
SUMÁRIO
O General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares) e a cidade de Bagé:
do contexto da Proclamação da República à Revolução Federalista
Popular, em fevereiro de 1894, noticiava que as forças governistas
estavam em Bagé e contavam com pouca alimentação, esta composta
apenas por alguns animais, fardos de charque, “sacos de bolacha e
farinha entre outros” (DIÁRIO POPULAR, 03/02/1894, p.1).
A situação de penúria dessas forças foi corroborada em uma
comunicação enviada pelo marechal do Exército Isidoro de Oliveira ao
governador do Rio Grande do Sul, Júlio de Castilhos, na qual afirmava:
“tristíssima é a situação de Bagé, sem gêneros
alimentícios, sem
carne e sem meios de sair” (TAVARES, 2004a, p.144).
As forças federalistas espalhavam-se por diversos pontos nos
arredores de Bagé, vigiando a cidade. Algumas se posicionaram
nos cerros de Bagé, fortificando-se em posição estratégica que
permitia o controle sobre o horizonte das planícies da campanha.
Outras forças federalistas, sob as ordens de José Bonifácio da Silva
Tavares, permaneciam próximo à costa do rio Camaquã, no norte do
município, enquanto aguardavam armas que viriam de Montevidéu
(TAVARES, 2004a), ações que evidenciam intensa movimentação
destas forças nos arredores da cidade.
Essa movimentação e ações dos federalistas nos arredores
da cidade buscando isolar Bagé e as forças que nela estavam
aquarteladas, apontam para tentativas mal sucedidas de estabelecer
um cerco à cidade, começando aproximadamente oito meses antes
do que se convencionou na historiografia e obras de memorialistas
escritas posteriores.
Tal afirmação parte do próprio conceito do que seria a palavra
cerco, pois de acordo com o Glossário de Termos e Expressões para uso
no Exército (2009) o ato de cercar uma área ou grupamento inimigo,
abrange de ações no sentido de envolver, buscando seu isolamento,
seja de comunicações, reforço de outras forças ou suprimentos,
cerceando sua movimentação, passos que foram seguidos pelos
federalistas.
No entanto, a imposição de um cerco total buscando
completo isolamento dos sitiados, somente teria começado apenas
em meados de dezembro de 1893, no que atribuímos ser a última
parte deste episódio. Essa atribuição justifica-se pelo fato de que
anteriormente a esta decisão dos federalistas de impor restrição total
de movimentação aos sitiados, muitos civis conseguiram acessar
os sitiados e levar alimentos, o que pode explicar a sua prolongada
resistência (LOPES; ANDRADE; BRASIL, 2021). Nesse sentido, o
pedido de socorro enviado pelas forças governistas sitiadas teria sido
422
SUMÁRIO
O General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares) e a cidade de Bagé:
do contexto da Proclamação da República à Revolução Federalista
realizado por um sujeito que conseguiu escapar da praça, período a
partir do qual foi acelerada a organização de uma força que deveria
socorrer Bagé, isso exemplifica a dificuldade dos federalistas em
conseguir um isolamento total das forças governistas.
A partir desses aspectos apresentados, partimos da hipótese
de que se a lógica empregada até então para estabelecer o período
do começo do cerco, os meses de outubro/novembro de 1893, –
interpretação que, a nosso ver, não leva em consideração que o
cerco existiu efetivamente apenas a partir de meados de dezembro
desse mesmo ano –, como válida, permite-nos defender a existência
de tentativas de cerco pelos federalistas, desde março de 1893. Tal
afirmação justifica-se pelo fato de que as tentativas federalistas
de cercar a cidade e isolar a guarnição governista foram diversas,
descontínuas, plano que enfrentou dificuldades entre março e
novembro, uma vez que houve movimentação de forças governistas
que entravam e saiam da cidade. As circunstâncias favoráveis para o
intento federalista surgiram apenas alguns meses depois, o que não
significa que não tenham existido.
Enquanto isso, na cidade, as forças governistas permaneciam
sob ameaça constante dos federalistas, ao mesmo tempo em que a
munição continuava a tardar. Combates continuavam a ocorrer e
forças governistas que tentavam romper o cerco eram fustigadas.
A população civil, que permanecia em suas casas, vivia dias difíceis
e testemunhava as agruras de uma luta fratricida. Nesse sentido, o
jornal Diário Popular, filiado ao Partido Republicano Rio-Grandense,
veiculou uma notícia afirmando que, quando as forças federalistas
apertaram o cerco sobre a cidade, teriam promovido saques e
desordens de todos os tipos:
“[...] os maragatos, logo que penetraram a cidade, deram começo ao saque, em diversas casas comerciais,
passando depois às casas particulares, donde levaram
tudo, inclusive as panelas [...]. Bagé está completamente
em ruínas: casas saqueadas, incendiadas, outras estragadas pelas balas de fuzilaria e artilharia, dá pena tantos
estragos” (DIÁRIO POPULAR, 24/01/1894, p.1).
As informações apresentadas pelo jornal evidenciam a perda do
controle e as retaliações que ocorreram durante o cerco federalista.
No entanto, tais informações não podem ser desconsideradas na
análise crítica do contexto que as produziu, ou seja, o da filiação
política de seus redatores. Confrontadas com o diário do general
Joca Tavares (2004b) e com relatos obtidos em entrevistas de história
423
SUMÁRIO
O General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares) e a cidade de Bagé:
do contexto da Proclamação da República à Revolução Federalista
oral16 com descendentes de famílias que vivenciaram o conflito em
Bagé, é possível afirmar que forças governistas também realizaram
saques contra propriedades dos federalistas. Portanto, a violência foi
praticada por ambos os lados envolvidos na contenda.
Ainda que o general Tavares tenha buscado manter a ordem
e punir severamente os envolvidos em vandalismo, seria impossível
impedir os excessos cometidos. Nesse sentido, afirma Raul Fradkin
(2010) que a prática de saques era recorrente nos conflitos. No caso
do cerco a Bagé, sem o intuito de justificar a violência, mas sim
compreendê-la e explicá-la, é preciso entender o comportamento
dos federalistas enquanto parte de uma forma de fazer a guerra e de
manter os exércitos com poucos recursos (FRADKIN, 2010).
É preciso considerarmos a composição e a disparidade de
forças envolvidas no conflito do qual participaram corpos regulares
e batalhões compostos por civis, alguns com pouca ou nenhuma
instrução e disciplina. Muitos dos homens que compuseram as
fileiras desses grupos possuíam objetivos distintos: alguns lutavam
por sobrevivência; outros, por vingança. Ao estudar o caso das
montoneras, na Argentina, Raul Fradkin (2010) ressalta que era
comum que os comandantes desses destacamentos conferissem
permissão aos saques das propriedades dos inimigos como uma forma
de puni-los, o que parece ter sido, também, o caso dos federalistas
rio-grandenses. Além do mais, os saques permitiriam obter recursos
para indivíduos das forças que muitas vezes engajavam-se na luta
para conseguir alimentos ou recursos para sobreviver.
Em novembro de 1893, após os federalistas terem recebido
suprimentos e munição, derrotaram as forças governistas
comandadas pelo marechal Isidoro, no combate do Rio Negro, na
época, pertencente ao município de Bagé.
Os caminhos estavam abertos para os federalistas que
passaram a aumentar gradualmente o cerco, invadindo a cidade
de Bagé e tomando inicialmente posições ocupadas pelas forças
governistas, dentre as quais o Teatro 28 de Setembro e o Mercado
Público, enquanto famílias inteiras buscavam abrigo em chácaras nos
arredores da cidade (TAVARES, 2004a; TAVARES, 2004b).
As forças governistas ficaram restritas a seu último reduto,
as trincheiras no entorno da praça da Igreja de São Sebastião,
onde também foram abrigadas famílias de indivíduos ligados ao
PRR dispostos a resistirem aos federalistas. A seu favor, as forças
16. Sobre essa temática ver: ANDRADE (2017).
424
SUMÁRIO
O General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares) e a cidade de Bagé:
do contexto da Proclamação da República à Revolução Federalista
governistas possuíam maior poder de fogo, contando com quatro
peças de artilharia de campanha Krupp, fortemente guarnecidas,
assentadas nas trincheiras nas esquinas da praça, o que lhes conferia
vantagens (DIÁRIO POPULAR, 30/01/1894, p.1).
No começo de dezembro de 1893, o jornal Diário Popular,
de Pelotas, veiculou uma notícia recebida por um correspondente
que estava em Bagé, o qual descreve com detalhes uma tentativa
frustrada dos federalistas de tomar a praça fortificada. Lançando
um olhar sobre o contexto de violência que envolveu os combates,
relata que, ao se aproximarem da cidade, as forças federalistas se
dirigiram à praça onde estava situado o Mercado Público, e sem
desconfiar de qualquer reação,
[...] marcharam em coluna cerrada e, ao toque de clarins
pela Rua Sete de Setembro, sendo então rechaçadas fortemente pela artilharia, postada na praça da igreja, onde
se tinha fortificado a guarnição. A chuva de metralha
e de lanternetas [sic] pelos bravos defensores contra o
inimigo, os pôs em completa debandada, estabelecendo
entre eles verdadeiro pânico. A Rua Sete de Setembro
ficou juncada de cadáveres e de animais feridos, abandonados pelos assaltantes. Consta também que grande
número de prédios daquela rua ficaram danificados.
Segundo informações que nos foram ministradas, o inimigo retirou-se, parte para o Piraí e parte para a Carpintaria (DIÁRIO POPULAR, 08/12/1893, p.2).
Nos arredores da praça da Matriz, na busca por proteger seus
bens ou por não ter para onde fugir, parte da população civil que
havia permanecido em Bagé, alheia às disputas políticas, acabou
sendo ferida por “balas perdidas” nas ruas ou dentro de suas próprias
casas (REIS, 1911; TABORDA, 1970).
Os jornais publicavam notícias acerca de conflitos acirrados,
pintando um cenário estarrecedor como, por exemplo, em relação à
questão sanitária da cidade, que se tornou preocupante. Em razão da
precariedade e da improvisação em meio aos combates, começaram
a eclodir focos de varíola, tifo e outras doenças contagiosas, “devido à
aglomeração de cadáveres enterrados pelos maragatos nos quintais,
no mercado e nas ruas daquela cidade” (DIÁRIO POUPULAR,
06/02/1894, p.2), enquanto as forças sitiadas enterravam os corpos
de seus camaradas em terreno próximo à catedral de São Sebastião
(REIS, 1911).
Com base no diário do general Tavares (2004b), é possível
afirmar que os federalistas ocuparam posições no entorno daquelas
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SUMÁRIO
O General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares) e a cidade de Bagé:
do contexto da Proclamação da República à Revolução Federalista
dos governistas. Eles estabeleceram um cinturão de trincheiras,
barricadas em casas, esquinas e bocas de ruas, localizadas 500 metros
ao redor da praça fortificada, enquanto outra parte do contingente
acampava nos arredores da cidade, tanto em estâncias quanto
próximo aos rios e coxilhas, guarnecendo os acessos ao município
para evitar surpresas (TAVARES, 2004b).
Situada a alguns quilômetros da cidade, a Charqueada
Industrial Bajeense foi utilizada, nesse período, como hospital de
sangue pelos federalistas, onde atuavam médicos e farmacêuticos
bajeenses, partidários dos federalistas, que cuidavam dos inúmeros
feridos que chegavam, dentre eles, o próprio general Tavares que
sofria de problemas de saúde (TAVARES, 2004b).
O empenho em submeter as forças governistas pela fome e o
cerco à cidade não obtiveram o efeito esperado pelos federalistas, ou
seja, as cargas de infantaria foram realizadas, porém rechaçadas pelas
forças entrincheiradas.
A violência dos acontecimentos transparece ainda mais durante
as tentativas de romper o cerco, as forças sitiadas contra-atacaram,
tentando tomar as posições ocupadas pelos federalistas como, por
exemplo, o mercado público, defendido por trincheiras federalistas
na boca da rua próxima, ocasião em que atacaram “as trincheiras à
baioneta calada a 1ª companhia, comandada pelo bravo capitão Carlos
Costa, que foi ferido logo no começo da ação, assumindo o comando o
igualmente bravo alferes Juvêncio Maximiliano Lemos, também ferido
no ato de subir a trincheira” (DIÁRIO POPULAR, 03/02/1894, p. 1).
A manobra final dos federalistas consistia em chegar ao interior
da praça fortificada, derrubando os muros das casas do meio do
quarteirão sem que precisassem passar pelas trincheiras e enfrentar
as metralhas da artilharia, manobra que foi percebida e antecipada
pelo comandante do Exército Brasileiro que defendia a praça, Carlos
Maria da Silva Telles (TAVARES, 2004b).
A munição começava a ficar escassa. Ao leste, forças governistas
da Divisão do Sul, comandadas pelo coronel João Cesar Sampaio, e
organizadas para ir ao socorro da guarnição de Bagé, aproximavamse do município (TAVARES, 2004b; ANDRADE, 2014). Enquanto
isso, pelo oeste, forças da divisão comandada pelo general Hipólito
Ribeiro também marchavam em direção a Bagé, buscando encurralar
as forças do general Tavares, que pressentiu a gravidade da situação e
ordenou o fim do cerco à cidade, retirando-se com suas forças.
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SUMÁRIO
O General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares) e a cidade de Bagé:
do contexto da Proclamação da República à Revolução Federalista
Considerações finais
Através do presente estudo, procuramos apresentar o
cenário econômico, político e social que configurou o contexto da
Proclamação da República até a Revolução Federalista em Bagé.
As transformações ocorridas no âmbito rural e urbano, em Bagé,
desde a segunda metade do século XIX, colocaram-na em condição
econômica favorável, demonstrando uma cidade próspera que
se viu defrontada por um contexto de crise econômica, tanto no
âmbito nacional como no estadual, que esteve muito vinculada aos
conflitos políticos.
Procuramos ressaltar, ainda, que as transformações políticas
conduziram ao poder um grupo antagônico aos interesses
econômicos e políticos dos antigos grupos políticos conservadores
e liberais fronteiriços, muito associado à fronteira e a antigos
benefícios alfandegários que foram cessados durante o governo de
Júlio de Castilhos.
Essas transformações também atingiram o aspecto político e
resultaram na intervenção na vida política dos municípios. Nesse
sentido, procuramos evidenciar, através da atuação política e militar
do general Joca Tavares, o quanto Bagé esteve vinculada a forte
ativismo e protagonismo políticos em oposição ao governo de Júlio
de Castilhos, que julgavam ser uma ingerência na vida política e
econômica dos municípios.
Com base na atuação do general Tavares, no âmbito político e
militar, comprovamos o quanto Bagé esteve vinculada, nesse período,
aos eventos que culminaram com a renúncia do governador do Rio
Grande do Sul, Júlio de Castilhos, e a do Presidente da República,
Manoel Deodoro da Fonseca, em 1891, da mesma forma que com os
eventos que ocasionaram a Revolução Federalista.
Neste período da revolução, Bagé esteve no epicentro dos
acontecimentos políticos, especialmente por sediar a conferência que
levou à fundação do Partido Federalista, em 1892, e como sede do
governo estadual em resistência ao golpe de estado que reconduziu
Júlio de Castilhos ao poder, em julho de 1892.
Nesse sentido, procuramos ressaltar que a violência no
município tinha se acentuado em decorrência desses eventos de
perseguições políticas, saques e violências contra a vida de castilhistas
e federalistas.
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SUMÁRIO
O General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares) e a cidade de Bagé:
do contexto da Proclamação da República à Revolução Federalista
Para melhor exemplificar e compreender a violência que
atingiu a cidade de Bagé, nesse período, citamos o caso do cerco
imposto pelos federalistas à cidade, em 1893, utilizando-nos, para tal,
de diários, jornais e memórias contemporâneas ao conflito. Dessa
forma, procuramos salientar a gravidade dos eventos de violência
e a questão sanitária que se abateu sobre a população civil que
permaneceu na cidade.
Considerando, ainda, os diários do general Tavares,
apresentamos uma cronologia que permite afirmar que as tentativas
de tomar Bagé estavam inseridas numa estratégia mais ampla
dos federalistas de tomar outras cidades. Da mesma forma, ao
reconstruirmos um contexto sobre o cerco à cidade, desde o começo
de 1893, procuramos demonstrar que ele teria tido diversas fases, as
quais teriam começado meses antes do que se supunha.
Por fim, exemplificamos as dificuldades em relação à
alimentação e às intempéries enfrentadas pela população civil e pelos
soldados que estavam sitiados em Bagé, dentre os quais, aqueles
vindos de outras partes do país e que enfrentaram as adversidades
do clima, da paisagem, da alimentação e da violência. Nesse sentido,
o cerco a Bagé pode ser entendido como um evento que adquiriu
proporção nacional e, enquanto uma representação do conturbado
cenário, configurou o contexto social e político da consolidação da
República no sul do país.
Referências
ANDRADE, Gustavo Figueira. Memórias e conflitos: a Divisão do Sul e o levantamento do cerco a Bagé durante a Revolução Federalista de 1893. 2014. Monografia
(Conclusão de Curso). Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2014.
ANDRADE, Gustavo Figueira. A trajetória política do General João Nunes da Silva
Tavares (Joca Tavares): família, comunicação e fronteira. Dissertação (Mestrado
História). Santa Maria: Programa de Pós-Graduação em História, UFSM, 2017.
ANDRADE, Gustavo Figueira. A preservação da memória familiar sobre a atuação
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428
SUMÁRIO
O General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares) e a cidade de Bagé:
do contexto da Proclamação da República à Revolução Federalista
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429
SUMÁRIO
O General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares) e a cidade de Bagé:
do contexto da Proclamação da República à Revolução Federalista
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430
SUMÁRIO
O General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares) e a cidade de Bagé:
do contexto da Proclamação da República à Revolução Federalista
TAVARES, João Nunes da Silva. Diário da Revolução Federalista de 1893. CABEDA, Corálio Bragança Pardo; AXT, Gunter; SEELING, Ricardo Vaz(Org.). Porto
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431
SUMÁRIO
DE BAGÉ À EUROPA:
OS ESPAÇOS DE CIRCULAÇÃO
DE GASPAR SILVEIRA MARTINS 1
Monica Rossato 2
432
SUMÁRIO
De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins
1
2
Introdução
No presente texto, buscamos averiguar os espaços de circulação
de Gaspar Silveira Martins, entre a região fronteiriça platina, o
Império brasileiro e a Europa, trajetória marcada por sua mobilidade
e espaços sociais de atuação política, de redes de contato, leituras,
liberais e maçônicas atuantes no século XIX. Sua inserção nesses
diferentes espaços sociais marcou seu cosmopolitismo cultural e
permite-nos complexificar a sua trajetória política vinculada às
concepções básicas do liberalismo e defensor do federalismo, tendo
sua base de formação e experiência, a região fronteiriça platina3.
Nessa região, Bagé ocupou espaço importante em sua trajetória
política, estando sempre presente ao longo desse processo e de sua
mobilidade para além da fronteira. Sua ligação com Bagé foi marcada
pelos vínculos familiares, de propriedades, de amizades, políticas e
comerciais constantemente mobilizados em diferentes momentos ao
longo de sua vida e especialmente, na transição da Monarquia para a
República, na Revolução Federalista (1893-1895).
Gaspar Silveira Martins, oriundo da região fronteiriça platina,
exerceu sua atividade política durante o Império e, na transição para a
1. O presente texto faz parte das pesquisas de doutorado desenvolvidas junto ao Programa
de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria e junto a Universidade de Coimbra/Portugal através da bolsa de Doutorado Sanduíche no Exterior, Edital
019/2016 PDSE/CAPES. Integra também a Linha de Pesquisa História Platina: sociedade,
poder e instituições (CNPq/UFSM).
2. Doutora em História pela Universidade Federal de Santa Maria. Professora de História da
rede pública de ensino do município de Nova Palma/RS.
3. Região historicamente construída e que envolve os territórios do sul do Brasil e, entre eles
Bagé (próxima à zona de fronteira com o Uruguai), Uruguai e Argentina, locais de atuação e
vínculos de Gaspar Silveira Martins e da Revolução Federalista (1893-1895).
433
SUMÁRIO
De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins
República, foi exilado junto a outros políticos na Europa, seguindo os
rastros do Imperador destronado, D. Pedro II. Sua atuação enquanto
liderança de projeção nacional do Partido Liberal e por seus vínculos
no Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina, levantavam suspeitas de
sua conspiração e articulação fronteiriça em torno da restauração
monárquica. Diante desses fatos, nos questionamos a respeito de
como Silveira Martins construiu essa trajetória política, percorrendo
uma diversidade de locais e estabelecendo uma vasta rede de contatos
entre a região fronteiriça platina, o Império brasileiro e a Europa.
Ademais, procuramos observar como Bagé esteve relacionada à sua
trajetória e atuação enquanto político no Império e na República, em
vínculos e ideias/projetos defendidos que contemplavam a fronteira,
inclusa nela também Bagé.
O Fronteiriço Gaspar Silveira Martins rumo
ao Centro Político do Império
Para compreendermos como Gaspar Silveira Martins migrou
de sua região de origem aos mais altos postos de comando político do
Império, chegando a ser desterrado à Europa pela representatividade
que usufruía junto à Monarquia no Brasil, é preciso buscar as bases
na sua família e região de origem que muito nos tem a dizer a respeito
de sua formação política.
As famílias Silveira e Martins possuíam grandes propriedades
na zona de fronteira, próxima ao limite entre Uruguai (Aceguá)
e Brasil (Bagé), na forma de estâncias de criação de gado, escravos
e benfeitorias urbanas localizadas em Melo e Bagé, conforme os
inventários post mortem ligados à suas famílias. Gaspar Silveira
Martins era filho de pais brasileiros (Carlos Silveira e Maria das Dores
Martins), nascido na Serra de Aceguá e batizado na Catedral de Melo
em 1835. Assim, o registro do sobrenome materno “Martins” após o
sobrenome paterno “Silveira” denota a influência espanhola em seu
documento. Isso corroborou também para o exercício de sua dupla
cidadania, brasileira e uruguaia, proporcionada pela presença da
fronteira e das propriedades familiares4 que, em alguns momentos,
fora utilizada para justificar sua presença no Uruguai5.
4. As questões da origem de Silveira Martins e a inserção de sua família no Uruguai foram discutidas no seguinte trabalho: ROSSATO, Monica. Relações de poder na região fronteiriça
platina: família, trajetória e atuação política de Gaspar Silveira Martins. 2014. 163f. Dissertação (Mestrado em História) - UFSM, Santa Maria, RS, 2014.
5. Em 1894 durante a Revolução Federalista, o deputado do Partido Colorado, Alberto Palomeque buscou defender Silveira Martins do exílio por parte do governo uruguaio justifican-
434
SUMÁRIO
De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins
Ao crescer entre Aceguá e Bagé, vivenciou junto com sua
família a presença dos ideais artiguistas, da Revolução Farroupilha
(1835-1845) e o legado dessas ideias na região fronteiriça platina.
Legado esse, marcado pelo liberalismo e federalismo, de pessoas
que, por exemplo, atuaram na farroupilha e transitaram pela região
como Giuseppe Garibaldi e Tito Lívio Zambeccari e que retornaram
à Europa para atuar no Risorgimento Italiano6. Garibaldi pautavase nas ideias de Mazzini7, nomes os quais Gaspar Silveira Martins se
reportou em discursos políticos. Deixaram aqui, seguidores de seus
ideais de república, unidade e fraternidade entre os povos, como os
círculos garibaldinos que apareceram no Uruguai, em referência à sua
herança na região8. Junto a isso, soma-se o fato da região fronteiriça
platina contar com a presença de considerável imigração estrangeira
muitos deles atuantes na maçonaria, através de lojas maçônicas e dos
periódicos. Assim, ideias liberais que estiveram em voga na Europa
circularam por esses meios também na região fronteiriça platina.
Da fronteira, Silveira Martins migrou para Pelotas (RS) a fim
de realizar seus estudos no Colégio de Antônio José Domingues
(MARTINS, 1929), local aonde sua família conduzia o gado para as
charqueadas e também tinha propriedades. Ali, a família possuiu
estreitos vínculos com comerciantes da indústria charqueadora
como seu padrinho, o charqueador Heliodoro de Azevedo e Souza, o
negociante português Antônio Ferreira Ramos e a família Antiqueira.
Pelotas também era conhecida pela grande riqueza,
desenvolvimento comercial e presença estrangeira proporcionada
pelas indústrias charqueadoras. Para o abastecimento interno da
do que Silveira Martins não era um refugiado político, mas alguém que possuía propriedades,
negócios e interesses no país. Para ver mais, consultar a tese de Doutorado: ROSSATO, Monica. Gaspar Silveira Martins e a Revolução Federalista (1893-1895): que federalismo é esse?.
2020. 376f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Santa Maria, RS, 2020.
6. O Risorgimento Italiano refere-se ao processo histórico de construção da Unidade do Estado Nacional Italiano, pela luta contra o absolutismo monárquico e a dominação estrangeira
do Império Austro-Húngaro.
7. Gioseppe Mazzini (1805-1872) formou-se em Direito na Universidade de Gênova e atuou
na Carbonária Originária do Franco Condado, loja maçônica surgida na França contrária à
maçonaria napoleônica no período do Congresso de Viena. A Carbonária apresentou em
seu seio uma heterogeneidade de tendências, entre elas a diferenciação entre moderados (defendiam um regime constitucional) e radicais (defendiam a instauração da República), estes
últimos sendo um grupo ao qual Mazzini identificava-se. A Unidade trazida pela República
era garantia da associação dos povos livres em uma grande nação, como uma federação
republicana de estados unitários (RIBEIRO, 1990).
8. CIRCULO GARIBALDINO. El Día, Montevideo, 09 mai. 1892. Hemeroteca do Palácio
Legislativo do Uruguai, Montevidéu, Uruguai. A reportagem fala sobre a criação do círculo
garibaldino, em que fazem parte antigos seguidores de Garibaldi, do Uruguai e da Itália.
435
SUMÁRIO
De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins
população, seu padrinho, Heliodoro de Azevedo e Souza, criou
uma colônia de imigração chamada Santa Eulália, de acionistas
charqueadores, a fim de que os colonos viessem a realizar o trabalho
agrícola para o abastecimento da cidade que crescia com as atividades
comerciais das charqueadas (VARGAS, 2016). Nota-se que, nesse caso,
a imigração europeia atendia à demanda de uma elite estancieira
que, charqueadora e comerciante, interessada em seus negócios,
possibilitou o olhar cuidadoso de Silveira Martins a essas demandas,
posteriormente como político, conhecido como um defensor da
colonização e imigração europeia para o Brasil. Vale lembrar que a
presença estrangeira na região fronteiriça platina inseria-o em um
cosmopolitismo cultural aliado à sua formação liberal, agregando a
imigração e colonização como chaves para o desenvolvimento e o
progresso aos seus projetos de Estado.
Rumo ao Rio de Janeiro, aos 13 anos de idade Silveira Martins
foi à busca de dar seguimento aos seus estudos em preparação para o
ingresso nas Academias de Direito do Império. O Colégio do Professor
português Adolfo Manuel Victorio foi escolhido, estando Silveira
Martins sob os cuidados do negociante e amigo da família, José Maria
de Sá. Admitido nos exames preparatórios na Corte, deu início ao
curso na Faculdade de Direito de Olinda (Província de Pernambuco)
em 1852, transferindo-o para a Faculdade de Direito do Largo do São
Francisco em 1854. Em Olinda, não esteve sozinho, havia viajado na
companhia de seu escravo e sob os olhares de seu padrinho Heliodoro
de Azevedo e Souza9. Pernambuco, assim como o Rio Grande do Sul
com a Revolução Farroupilha havia vivenciado uma larga experiência
de tradição republicana, liberal e federalista advinda com a Revolução
Pernambucana (1817) e a Confederação do Equador (1824)10. A partir
dessa experiência, iniciava aí o espaço de sociabilidade junto à
Província de Pernambuco, bem como os contatos com as elites de
outras províncias que ali realizavam seus estudos jurídicos. Em Recife,
foi redator do jornal O Liberal. Mais tarde, quando do seu retorno
9. MOVIMENTO do Porto. Navios sahidos no mesmo dia. O Liberal republicano, 16 nov.
1853, p. 4. Acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Anteriormente, em 6 de fevereiro de 1851, o jornal Correio Mercantil na listagem da movimentação dos portos, registrou
o nome de Silveira Martins saindo dos portos do norte.
10. Como elemento comum entre a Farroupilha e a Confederação do Equador, Padoin (1999)
identificou a atuação do Padre José Antônio Caldas nos dois acontecimentos. Destacamos
também que foi em Recife que se desenvolveu a Geração de 1870, intelectual, científica e
republicana, sob forte viés evolucionista e seguidora das doutrinas de Spencer e relacionada
à geração de intelectuais republicanos portugueses, na representação de Silvio Romero, Tobias Barreto e, no Rio Grande do Sul, por Karl von Koseritz, Graciano Alves de Azambuja
e Alcides Cruz, pontos de contatos nutridos por Silveira Martins.
436
SUMÁRIO
De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins
do desterro europeu (janeiro de 1892), Silveira Martins realizou uma
breve parada em Recife, reafirmando seus vínculos políticos liberais,
antes de aportar no Rio Grande do Sul.
Ir até Pernambuco ou São Paulo cursar a Faculdade de Direito
exigiu certa capacidade de recursos por parte das famílias, que
quisessem ver um de seus membros tornarem-se bacharel. José Murilo
de Carvalho (2003) ao trabalhar com a elite formada nos cursos de
Direito, demonstrou que os alunos das escolas de Direito provinham
de famílias de recursos, pois as duas Escolas cobravam taxas de
matrículas e os alunos que não eram de São Paulo e Recife tinham que
se deslocar até essas cidades e permanecer por cinco anos.
Em São Paulo, Silveira Martins ampliou suas redes de contatos
interpessoais junto ao curso de Direito e na participação de agremiações
estudantis, pois seus colegas e contemporâneos de Faculdade se
tornariam, assim como ele, políticos de projeções provinciais e/ou
nacionais. A elite política, ou seja, aqueles que ocupavam cargos
políticos do Império estavam sendo formados nessas duas Academias
de Direito. Assim, concluído o curso de bacharel em Direito no ano
de 1856, casou-se com D. Adelaide Augusta de Freitas Coutinho,
natural do Rio de Janeiro e filha do Dr. José Júlio de Freitas Coutinho,
um reconhecido advogado da Corte Imperial11, aproximando-se ainda
mais do núcleo político entorno do Imperador.
Assim, pode mudar-se para o Rio de Janeiro e trabalhar
no escritório de advocacia de seu sogro, até ser convidado pelo
então Ministro da Justiça, Barão de Muritiba, para o cargo de juiz
municipal (1859-1864). Muritiba era um homem de confiança do
Imperador e foi Conselheiro de Estado, teve uma relação muito
próxima com Silveira Martins, em que os dois estiveram juntos na
Europa durante o exílio ao lado de D. Pedro II.
Diante dos caminhos percorridos por Silveira Martins
até chegar a Juiz Municipal percebemos que sua entrada no
“mundo da política” a partir de 1860 representou a sua ascensão à
representatividade nacional, levando os interesses locais/regional à
esfera nacional. Assim, um uruguaio e brasileiro começou a ocupar
posições de destaque no centro político do Império, mantendo seus
11. Registro de matrimonio de Adelaide Augusta de Freitas Coutinho e Gaspar Silveira Martins. 27 de novembro de 1856. Rio de Janeiro. Registros da Igreja Católica 1616-1980. Rio de
Janeiro, Paróquia Sant’Ana, Matrimônios 1852, Jul-1861, Abr, imagem 128. Disponível em:
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437
SUMÁRIO
De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins
vínculos e relações com suas estâncias, família e comunidade na
região fronteiriça platina.
Entre os políticos do Império que se uniram à sua família por
vias de matrimônios e apadrinhamento estavam o Manuel Pinto de
Souza Dantas, Joaquim Pedro Salgado, João Antônio de Miranda,
Lafayette Rodrigues Pereira, Felix da Cunha, Quintino Bocayuva,
entre outros (ROSSATO, 2014). Nesse sentido, podemos visualizar as
relações de poder, no âmbito familiar, em que os apadrinhamentos
também fizeram parte, expandindo as teias sociais e políticas de
Gaspar Silveira Martins no centro do Império. Os apadrinhamentos
criavam compromissos recíprocos entre as partes fortalecendo o
grupo da elite política.
Além das relações familiares e políticas, evidenciamos a
participação de Silveira Martins na maçonaria. A participação na
ordem maçônica contribuiu na construção de uma trajetória política
de integração junto à Corte e de socialização entre os participantes, já
que na maçonaria participavam aqueles que tinham reconhecimento
junto à sociedade. Isso evidencia que Gaspar Silveira Martins
circulou por espaços restritos nesse período e que participar desse
grupo proporcionou contato com outros indivíduos. Membro da
maçonaria, Gaspar Silveira Martins recebeu o título de Grão-Mestre
da Ordem Maçônica do Grande Oriente Brasileiro, no Rio de Janeiro,
grau máximo no interior desta organização secreta.12
A década de 1860 marcou a entrada de Silveira Martins na
política, inicialmente como Deputado Provincial pelo Partido Liberal
a partir de 1862. Em termos gerais, na década de 1860 Silveira Martins
demonstrou discursos e ideias ditas no período como “radicais” em
referência a outra geração liberal que defendeu reformas brandas ao
sistema político do Império, pois havia presenciado os perigos de
separação e desintegração que as revoltas provinciais propuseram no
período das Regências. Passada as revoltas regenciais, a unidade do
Império foi construída e reformas profundas podiam pôr em risco tal
estabilidade. Mesmo assim, uma ala do Partido Liberal a qual incluiu
Gaspar Silveira Martins fundou o Clube Radical, no Rio de Janeiro
em 1868 e proferiram discursos com ênfase em reformas estruturais
como descentralização política e administrativa, maior autonomia
provincial, Estado Laico, fim da vitaliciedade do Senado, eleição
direita, entre outros.
12. Certidão de Gaspar Silveira Martins como Grão-Mestre da Ordem. Grande Oriente Brasileiro, 1883. Fonte: Acervo do Grande Oriente do Rio Grande do Sul (GORGS), Porto
Alegre, RS.
438
SUMÁRIO
De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins
As conferencias, onde foram pronunciadas as ideias radicais
e reformistas do sistema monárquico foram realizadas no Teatro
da Fênix Dramática, Rio de Janeiro. Segundo José Murilo de
Carvalho (2007) a conferencia que teve maior número de pessoas
no Rio de Janeiro foi a do Gaspar Silveira Martins pronunciada
no dia 16 de maio de 1869. Nessa ocasião, o discurso de Silveira
Martins foi denominado de “Radicalismo” e nele foram expressas
suas críticas ao sistema político do período, ao Senado vitalício,
a eleição indireta, e ao sistema representativo monárquico,
primando pela criação do Estado Laico, liberdades religiosas e
civis e dos incentivos à imigração europeia.13
Defesas essas que permaneceram em sua atuação política no
Partido Liberal como Deputado Provincial (1862-1889), Deputado
Geral (1872-1879), Ministro da Fazenda (1878-1879) e Senador (18801889). Em diferentes momentos eles sobressaíram como, por exemplo,
nos debates na Assembleia Provincial a respeito do que é ser liberal,
soberania e autonomia das províncias14, nas discussões na Câmara dos
Deputados a respeito da “Questão Religiosa” (defesa do Estado laico,
liberdade civil, casamento civil, entre outros)15 e na “elegibilidade
dos acatólicos” (direitos políticos àqueles que não eram católicos –
religião oficial do Estado Imperial)16, além nas questões relacionadas
a defesa da imigração, tarifa especial e estradas de ferro à Província
do Rio Grande do Sul presentes também na Câmara e no Senado.17
Suas defesas, especialmente sobre imigração europeia, criação
de colônias de imigrantes na Província, construção de estradas de
ferro, o estabelecimento de liberdade religiosa e elegibilidade aos
acatólicos, interligavam-se em uma visão liberal de sociedade e
13. MARTINS, Gaspar Silveira. Conferencia Radical, oitava sessão, 1869. Discurso proferido
pelo Sr. Dr. Gaspar Silveira Martins sobre o Radicalismo. Rio de Janeiro: Typografia e Lithographia Esperança, 1869. Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
14. MARTINS, Silveira. Anais da Assembleia Legislativa Provincial. Sessão de 21 abr. 1874, p.
421. Memorial da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS.
15. MARTINS, Silveira. Anais da Assembleia Legislativa Provincial. Sessão de 21 abr. 1874, p.
421. Memorial da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS.
16. MARTINS, Gaspar Silveira. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão de 10 fev. 1879, p.
418.
17. MARTINS, Gaspar Silveira. Anais da Câmara dos Deputados, 10 jan. 1879, p. 412 e 413;
MARTINS, Gaspar Silveira. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão de 27 fev. 1879, p.
107 e 108; TRANSCRIPÇÃO Silveira Martins. A Reforma, Porto Alegre, 26 de nov. 1886.
Acervo do Museu de Comunicação Hipólito José da Costa, Porto Alegre, RS; MARTINS,
Gaspar Silveira. Anais do Senado Federal. Livro 4, Sessão de 11 ago. 1887, p. 183; MARTINS, Silveira. Anais do Senado, Livro 6. Sessão de 14 de nov. 1888, p. 554-560; MARTINS,
Gaspar Silveira. Anais do Senado Federal. Sessão do dia 5 set. 1888. p. 554.
439
SUMÁRIO
De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins
de construção do Estado Nacional brasileiro, a fim de promover o
desenvolvimento regional de sua comunidade local/provincial e
integrar novos grupos sociais à sua base de apoio eleitoral.
Assim, compreendemos como Silveira Martins construiu sua
trajetória política, desde sua origem na região fronteiriça platina até
os postos de comando mais altos do Império, como os de Ministro da
Fazenda, Presidente de Província (1889) e Conselheiro do Imperador
(1889) levando à Corte as demandas de sua região. Ao longo desse
percurso, Bagé sempre esteve presente em sua vida política, como
um importante reduto liberal e de alianças políticas, mesmo quando
a Monarquia chegou ao seu fim. Passamos então a analisar o percurso
de Silveira Martins na República brasileira, quando às vésperas do
fim da Monarquia, se preparava para embarcar para o Rio de Janeiro
para assumir o novo Gabinete a pedido do Imperador.
Da região fronteiriça platina à Europa: as
vivências de Gaspar Silveira Martins como
desterrado político
A experiência internacional de Silveira Martins perpassa uma
trajetória de vínculos com a região fronteiriça platina e para além
dela, quando pensamos em sua formação acadêmica e política,
de cujo arcabouço intelectual leituras e autores citados em seus
discursos no Império e no posterior desterro na Europa fizeram parte,
contribuindo também para a construção do rol que aproximou esta
região à Europa por meio da Revolução Federalista.
O desterro de Silveira Martins para a Europa, na passagem da
Monarquia para a República, foi emitido pelo Governo Provisório de
Deodoro da Fonseca18, que nutria desavenças pessoais com o político
liberal, que ajudam a explicar a decisão da proclamação da República,
do Decreto de Desterro e da não aprovação de uma ajuda em dinheiro
a Silveira Martins e à sua família na Europa (BARBOSA, 1890, p. 9).
As desavenças entre os dois remontam a tempos anteriores, ainda no
Império, quando em discursos no Senado Silveira Martins criticava a
atuação do então chefe das forças armadas na fronteira da Província
do Rio Grande do Sul, Deodoro da Fonseca.
18. BRASIL. Decreto nº 78, de 21 de dezembro de 1889. Coleção de Leis do Império do
Brasil - 1889, Página 273 (Publicação Original). Disponível em: http://www2.camara.leg.
br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-78- 21-dezembro-1889-542219-publicacaooriginal-50068-pe.html.> Acesso em: 28 set. 2015.
440
SUMÁRIO
De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins
A Europa foi definida como local de desterro de Silveira Martins
a fim de tirá-lo de qualquer possibilidade de contato e organização de
seus correligionários fronteiriços que pudessem ameaçar a República
recém instaurada e o governo de Deodoro da Fonseca. Dessa maneira,
Silveira Martins seguiu para a Europa unindo-se nos rastros do
Imperador destronado e unindo-se à colônia brasileira estabelecida
em Paris. Medida estratégica para afastá-lo da região fronteiriça
platina, região que manifestou historicamente mobilização diante
das crises institucionais dos Estados Nacionais em que a Revolução
Federalista, consolidada com o retorno de Silveira Martins da Europa,
representou a união de diferentes grupos políticos que questionaram
a organização dos poderes do Estado Nacional brasileiro e do Rio
Grande do Sul.
Inicialmente, Silveira Martins e um de seus filhos viajaram
rumo a Lisboa, seguindo para Paris. Alguns dias depois, sua esposa
e filhos viajaram para encontrá-los. A família estabeleceu-se em
Paris em janeiro de 1890, encontrando-se com políticos brasileiros
e estrangeiros como Lafayette Rodrigues Pereira, Barão de Loreto,
Visconde de Ouro Preto, Conde de Barral, André Rebouças, Giovanni
Bovio, Eça de Queiroz, Afonso Celso Júnior, Ferreira Viana, Eduardo
Prado, Rio Branco, Santa Anna Nery e com o próprio D. Pedro II.
Silveira Martins esteve em Lisboa, onde concedeu entrevista
ao periódico inglês Times pela Gazeta de Portugal.19 No mesmo mês,
viajou rumo ao norte da Alemanha, em Hamburgo e Berlim20 e, em
outubro do mesmo ano, para Frankfurt, a fim de tratar dos interesses
da colônia alemã no Rio Grande do Sul.21 Na Europa, em maio de
1890, Silveira Martins esteve em Londres para obter encontro com
José Carlos Rodrigues, reconhecido jornalista brasileiro, simpatizante
da República e do poder monárquico no Brasil. No mesmo ano
esteve também em Nápoles (Itália), em conferência com o jornalista,
professor, filósofo e seguidor das ideias de Mazzini e Garibaldi,
Giovanni Bovio.22 Devido a esse percurso e aos contatos estabelecidos
19. MARTINS, Gaspar Silveira. Entrevista do Senador Gaspar Silveira Martins ao Times em
23 de janeiro de 1890. Gazeta de Portugal, Lisboa, 28 jan. 1890. Periódico pesquisado no
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), Rio de Janeiro.
20. JORNAL DO COMMÉRCIO, RJ, 21 fev. 1890, p. 2. Hemeroteca da Biblioteca Nacional
Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
21. O telegrama comunicou que o governo provisório confiou a Gaspar Silveira Martins a
missão de tratar junto ao consulado brasileiro em Frankfurt de interesses à colônia alemã no
Rio Grande do Sul. Fonte: Diário do Commércio, 13 out. 1890. Hemeroteca da Biblioteca
Nacional, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
22. Notícia publicada no jornal italiano Commercio di Genova, em 31 de dezembro de 1890,
441
SUMÁRIO
De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins
nesses diferentes locais, o governo brasileiro demonstrou suas
desconfianças chegando a suspeitar de que gasparistas estavam
articulando apoio e empréstimos em bancos alemães para uma
possível revolução.
Foi em Paris que a família permaneceu a maior parte do tempo
durante o exílio. Mesmo após o retorno de Silveira Martins ao Brasil
em fins de 1891, sua esposa Adelaide e a filha Gasparina permaneceram
em Paris. Os demais filhos do casal permaneceram em trânsito na
região fronteiriça platina, entre o Brasil e a Europa. Prova disso foi o
fato de Silveira Martins ter um neto nascido em Paris em 1894, Carlos
da Silveira Martins Ramos, que assumiu o cargo de secretário de
diplomacia no exterior23, indicando a inserção da família na Europa.
Na Europa, suas relações com D. Pedro II intensificaram-se no
ano de 1891, quando as visitas e os encontros entre eles, juntamente com
outros políticos, haviam se tornado mais frequentes, possibilitando
um possível arranjo para que um herdeiro da Monarquia assumisse
os negócios políticos no Brasil.
Segundo Janotti (1986), o Conde D‘Eu mantinha intensa
correspondência com Lafayette Rodrigues Pereira, cunhado de
Silveira Martins e também exilado, atuando na promoção de um
encontro com os exilados para discutir a restauração monárquica,
sob a coordenação do Barão de Penedo. Este último político foi por
muitos anos diplomata da Monarquia junto aos interesses brasileiros
na Inglaterra, coincidindo com o período em que Silveira Martins
foi Ministro da Fazenda do Império (1878). O Barão foi responsável
por capitanear empréstimos em bancos ingleses para a construção
de estradas de ferro no Brasil, o que tanto defendia Silveira Martins.
Segundo a mesma autora, D. Pedro II mandou chamar Silveira
Martins para ouvi-lo. Estando todos os que compareceram favoráveis
ao movimento, Gaspar Silveira Martins os contrariou, dizendo estar
tarde para isso. A ocasião foi relata pelo Barão de Penedo, que estava
com Silveira Martins e Godofredo Escragnolle Taunay, juntos a D.
Pedro em seu apartamento no Hotel Bedford, com o objetivo de
discutir a possibilidade do retorno do Imperador em face à desordem
e ao militarismo no Brasil.24 Nesse tema, o cunhado de Silveira
e republicada pelo jornal O Brasil, em 15 de fevereiro de 1891: SILVEIRA MARTINS. O
Brasil, 15 fev. 1890, p. 2. Hemeroteca da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
23. RAMOS, Carlos da Silveira Martins. Ministério das Relações Exteriores. Almanaque do
pessoal para 1940, p. 270. Rio de Janeiro: Jornal do Commércio, 1940. Hemeroteca da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
24. As memórias do Barão de Penedo foram publicadas em: MENDONÇA, Renato Firmino
442
SUMÁRIO
De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins
Martins, Lafayette, estava entre os mais entusiastas da restauração,
chegando inclusive a convidar Saldanha da Gama para o golpe de
estado e para a derrubada do governo republicano (JANOTTI, 1986).
Lafayette Rodrigues Pereira retornou ao Brasil em março de
1891, foi favorável à restauração da Monarquia sob a organização de
uma regência. Para esse plano, o carro-chefe estaria no Rio Grande
do Sul, onde a revolução se expandiria para outros estados e onde
se estabeleceria um governo com representatividade monárquica, a
ser decidida ainda. Além disso, orientava que a criação e a inserção
de um partido monárquico se realizaria apenas quando o nome do
sucessor monárquico fosse decidido, o que nos remete às interações
entre Silveira Martins e seus companheiros na arregimentação
partidária. Eis aqui um dos possíveis vínculos à influência de Gaspar
Silveira Martins como liderança na região da fronteira e na Europa,
sendo homem próximo a Lafayette e ao Imperador por seus vínculos
políticos (ROSSATO, 2020).
Essas rearticulações políticas da Monarquia acalmaram com a
notícia da morte de D. Pedro II, em fins de 1891, pois ele representou
um importante elo de articulação da elite brasileira na Europa.
Silveira Martins, que já tinha o revogamento do seu Decreto de
Banimento, em fins de 1890 decidiu retornar ao Brasil. Embarcou no
paquete inglês Clyd em direção às terras brasileiras, em fins de 1891.
Desacompanhado de parte da sua família, que permaneceu em Paris,
desembarcou em Recife, capital de Pernambuco, no primeiro dia do
ano de 1892, para reencontrar velhos amigos e políticos da época de
Faculdade de Direito e do Partido Liberal.
De Recife viajou para o Rio de Janeiro, onde realizou conferência
com o Ministro da Guerra e da Agricultura, a convite do próprio
Presidente da República, Floriano Peixoto. A conferência tratava
de assuntos de interesse do Rio Grande do Sul como as estradas de
ferro e a barra do Rio Grande, o que vem a demonstrar as tentativas
de rearticulações políticas apresentadas por Silveira Martins junto
ao governo brasileiro para a continuação de obras que estavam em
andamento no Império. Da Capital brasileira, seguiu viagem para o
Rio Grande do Sul, passando por Rio Grande, Pelotas e Bagé, onde foi
recebido por amigos, políticos e população local. Permaneceu alguns
dias em Bagé para tratar de assuntos particulares e logo transportouse para Porto Alegre, para dar seguimento às rearticulações políticas
com seus antigos companheiros liberais e dissidentes republicanos
Maia de. Um diplomata na Corte de Inglaterra: O Barão de Penedo e sua época. Brasília:
Senado Federal; Conselho Editorial, 2006.
443
SUMÁRIO
De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins
em uma nova agremiação partidária, o Partido Federalista, criado em
Congresso que foi realizado em Bagé no ano de 1892.
Para Silveira Martins, como uma das lideranças da Revolução
Federalista, era importante defender um Estado forte, unido
no formato da já instalada República, compreendida como um
Estado Federal Parlamentar a fim de evitar a fragmentação e o
Presidencialismo que havia adquirido status militar e despótico nos
primeiros anos da República com Deodoro da Fonseca, Floriano
Peixoto e Júlio de Castilhos.
As relações de Gaspar Silveira Martins com
Bagé
As relações de Gaspar Silveira Martins com Bagé foram
manifestadas em diferentes momentos de sua trajetória política. Para
demonstrar a incompetência do Ministério chefiado por José Maria
da Silva Paranhos (Rio Branco) para com a nomeação de chefes
de polícia e juízes de paz nas localidades, Silveira Martins fez uso
do exemplo de Bagé, em relação ao assassinato de um estrangeiro
italiano e a impunidade dos criminosos, decorrente dos funcionários
nomeado por aquele Gabinete.25 Mais tarde, ainda na Câmara dos
Deputados, denunciou a circulação de notas falsas em Bagé pedindo
ao governo medidas protetivas contra a invasão de moedas falsas na
Província do Rio Grande do Sul.26 Como Senador, atuou na defesa
das estradas de ferro à sua Província, em especial a que ligava Rio
Grande, Bagé e Cacequi.27 Ainda no Senado, denunciava a nomeação
de funcionários públicos na fronteira adeptos do Partido Republicano,
a exemplo da circular de 10 de dezembro de 1882, que criou o Clube
Republicano de Bagé e dois de seus signatários nomeados aos cargos
de Promotor em Santana do Livramento e delegado de polícia em
Bagé.28 Da mesma forma, requereu esclarecimentos em relação à
transferência do promotor que atuava em Pelotas para Bagé, depois
que o mesmo investigava sobre o assassinato de um capitão a mando
de um subdelegado de Pelotas.29
25. MARTINS, Gaspar Silveira. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão de 16 jan. 1873.
26. MARTINS, Gaspar Silveira. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão de 07 fev. 1877.
27. MARTINS, Gaspar Silveira. Anais do Senado Federal. Sessão de 08 jun. 1885.
28. MARTINS, Gaspar Silveira. Anais do Senado Federal. Sessão de 09 jun. 1883.
29. MARTINS, Gaspar Silveira. Anais do Senado Federal. Sessão de 04 ago. 1888.
444
SUMÁRIO
De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins
Pelo exposto nos discursos, evidencia-se que Bagé esteve sendo
levada à representatividade nacional através da atuação de Silveira
Martins que, circulava entre a Corte e a região fronteiriça platina,
levando aos debates públicos diversas situações ocorridas em Bagé
como instâncias que deviam ser reformadas e/ou melhoradas em
termos políticos e administrativos no Império. No breve levantamento
que realizamos em relação à Bagé no Parlamento percebem-se os
vínculos que interligavam Silveira Martins a sua região.
Logo após o Decreto de Revogação do Desterro de Silveira
Martins na Europa, em Bagé, no Rio Grande do Sul, na zona de
fronteira com o Uruguai, uma comissão foi nomeada para cuidar
dos festejos populares, quando do retorno de Silveira Martins à
pátria após seu período de exílio, a fim de angariar donativos para as
comemorações. Entre os membros da comissão estavam os nomes de
João Fecundo da Silva Tavares, Antônio Maria Martins, Júlio da Silva
Flores, José Frederico Jardim e Luiz Alves Branco Muniz Barreto.30
Tal correspondência evidencia que a data ainda seria comunicada,
em tempo, pelo autor da carta, o major Thomas Márcio Pereira,
ao comerciante bageense João Lydio de Castro.31 A repercussão da
possibilidade de retorno trazida pelo Decreto de Revogação não seria
diferente, e a espera era aguardada por seus amigos e companheiros
fronteiriços bageenses, os mesmos que, logo em seguida, fizeram
parte do Partido Federalista (1892).
O retorno de Silveira Martins da Europa para Bagé representou
a união entre os antigos liberais e base política local. Sua liderança
e capacidade de articulação política e circulação entre a região
fronteiriça platina, o Rio de Janeiro chegando até mesmo a Europa
possibilitou a projeção de um novo Partido e de levar adiante a ideia
da Revolução contra a situação política local/estadual e federal, na
qual o separatismo do Rio Grande do Sul esteve em jogo.
Inicialmente, frente à projeção das eleições estaduais para
o segundo semestre de 1892, a organização dos antigos liberais e
30. Encontramos informações apenas a respeito dos seguintes integrantes: João Fecundo da
Silva Tavares era irmão do General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares), foi Coronel
da Guarda Nacional e ocupou cargos políticos em Bagé/RS (ANDRADE, 2017); Antônio
Maria Martins era fazendeiro e morador de Bagé (TROPEIRO ROUBADO. A Federação,
Porto Alegre. 09 mai. 1903, p. 2. Hemeroteca da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ,
Brasil); Luiz Alves Branco Muniz Barreto era natural da Bahia, em que aparece no Obituário
do ano de 1891: OBITUÁRIO. Jornal do Commércio, RJ, 09 mar. 1891, p. 2. Hemeroteca
da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
31. PEREIRA, Thomas Márcio. Carta a João Lydio de Castro. Bagé, 24 dez. 1890. Arquivo
Público da cidade de Bagé, RS. Agradeço a gentileza do colega Gustavo Figueira Andrade
pela disponibilidade desse documento.
445
SUMÁRIO
De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins
conservadores, que não haviam migrado ao Partido Republicano,
somados aos dissidentes desse último, foi pensada no formato
partidário que pudesse concorrer ao pleito estadual. Assim, o Partido
Federalista foi criado às voltas de seu principal líder, Silveira Martins,
em uma Convenção realizada na cidade de Bagé, Rio Grande do Sul,
em 31 de março de 1892.
Em reunião em Bagé naquela data, sob a presidência do general
Joca Tavares e na presença de outros companheiros, repudiouse a Constituição Estadual, identificada como a Constituição de
Júlio de Castilhos, definindo-se pontos importantes de defesa
como: o presidente do Estado deveria ter mandato de quatro anos
sem reeleição, estando ele sob a responsabilidade dos secretários
(característica parlamentar); a Câmara deveria ser eleita por quatro
anos por distrito e renovada pela metade a cada biênio; os municípios
deveriam ter autonomia completa; a imprensa deveria ser livre; o
governo deveria levar leis para serem discutidas na Câmara.32
Esses pontos, levantados no Congresso de Bagé e defendidos
enquanto ideias do Partido Federalista e enquanto projeto de
uma reforma na Constituição, tinham por objetivo oferecer uma
possibilidade de organização constitucional frente às intempéries do
período político que correspondia ao momento em que o Rio Grande
do Sul era governado por uma Junta Governativa Provisória (de 12
de novembro de 1891 a 17 de junho de 1892), sob o predomínio do
Partido Republicano Federal, dissidência do PRR, que revogou a Carta
Constitucional de Júlio de Castilhos (TRINDADE, 1979). Esse partido
contou com a redação do jornal O Rio Grande e com personalidades
como Demétrio Ribeiro, Antão de Farias, Joaquim Pedro Soares,
Barros Cassal, Adriano Ribeiro, Annibal Cardoso, Joaquim Pedro
Salgado, entre outros (TRINDADE, 1979), que se uniram ao Partido
Federalista e participaram da Revolução Federalista.
Em uma segunda reunião do Partido Federalista, as bases do
sistema jurídico ficaram acertadas, primando pela nomeação dos juízes
de direito por meio do governo federal, e dos juízes municipais por
meio das próprias câmaras municipais. Esses itens foram apresentados
e votados em assembleia, coordenada por Joca Tavares33, Adriano
32. RIO GRANDE DO SUL. Telegrama. Bagé, 2. Gazeta da Tarde, RJ, 04 abr. 1892, p. 2.
Hemeroteca da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
33. João Nunes da Silva Tavares (1818-1906) era antigo chefe político do Partido Conservador
na cidade de Bagé durante o Império. Pertencia a uma família com propriedades rurais no
Rio Grande do Sul e Uruguai, ocupando o posto de chefe militar, na qual participou da
Revolução Farroupilha, em 1835, ao lado das forças imperiais, da campanha contra Oribe
e Rosas em 1851, e posteriormente da Guerra do Paraguai em 1865. Fez parte do Partido
446
SUMÁRIO
De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins
Ribeiro e Francisco Tavares.34 Na mesma ocasião, Silveira Martins foi
indicado à chefia do Partido Federalista, composto por um Diretório
formado por ele, com Joca Tavares de vice- presidente, Adriano
Ribeiro de secretário, Coronel Salgado, Apolinário Porto Alegre e o Sr.
Bittencourt35 como membros, consolidando a aliança política entre o
Partido Federalista e os dissidentes republicanos organizados sob a
denominação de Partido Republicano Federal. O Partido Federalista
contava ainda com a atuação de Francisco Antunes Maciel36, amigo
de Gaspar Silveira Martins e importante liderança política em Pelotas.
Nesse sentido, Bagé foi palco do movimento de rearticulação política
federalista, de reformulação constitucional estadual e federal, pela
primazia das liberdades locais (federalistas), limitação do Executivo
Estadual e maior responsabilidade dos Secretários e da Assembleia
estadual (parlamentarismo). Também foi local da Revolução
Federalista (1893-1895), seja por suas principais lideranças envolvidas
e por sua tradição política relacionada ao Partido Liberal e Partido
Conservador, seja como palco de alguns confrontos armados entre
federalistas e as forças governistas durante o período de 1893 a 1895.
Durante a Revolução Federalista, Silveira Martins, sua família
e companheiros do Partido Federalista, dissidentes republicanos,
somando-se também os militares, civis e marinheiros da Revolta
da Armada, estiveram em circulação política entre o Uruguai e a
Argentina, nas condições de migrados políticos, pois no Rio Grande
do Sul estavam sendo perseguidos por Júlio de Castilhos com apoio
federal de Floriano Peixoto. Assim, a Revolução Federalista alcançou
uma projeção internacional, envolvendo diferentes Estados Nacionais
a partir do deslocamento, alianças e organização dos mantimentos
Conservador e foi indicado pelo governo republicano provisório como Comandante Militar da fronteira, deixando o cargo pouco tempo depois, para juntar-se a outros chefes na
organização do Partido Federalista. Para saber mais, ver trabalho de: ANDRADE, G. F. A
trajetória política do General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares): família, comunicação e fronteira. 2017. 177f. Dissertação (Mestrado História) - UFSM, Santa Maria, RS, 2017.
34. Irmão de João Nunes da Silva Tavares, oriundo da fronteira sul do Brasil, ocupou cargos na
política e na Guarda Nacional durante o Império, assim como foi nomeado governador do
Rio Grande do Sul por Deodoro da Fonseca em 1890. Para saber mais, ver em: ANDRADE. G. F. Op. Cit.
35. RIO GRANDE DO SUL. Telegrama. Bagé, 2. Gazeta da Tarde, RJ, 04 abr. 1892, p. 2.
Hemeroteca da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
36. Francisco Antunes Maciel (1844-1917) era natural de Pelotas (RS) e bacharel em Direito,
alcançou altos cargos políticos junto ao Império como os de Deputado e Conselheiro do
Imperador pelo Partido Liberal. Posteriormente, com a República, aderiu ao Partido Federalista, sendo companheiro e seguidor de Silveira Martins. Para saber mais a respeito dessa
trajetória, ver a tese de Doutorado de: PAULA, Débora Clasen de. Família, Guerra, Política,
Negócios e Fronteira: os Antunes Maciel desde o século XVIII aos inícios do século XX.
2019. 212f. Tese (Doutorado em História) – UFRGS, Porto Alegre, RS, 2019.
447
SUMÁRIO
De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins
para as tropas que os federalistas e seus aliados construíram ao longo
da Revolução no Brasil, Uruguai, Argentina e até mesmo na Europa
(ROSSATO, 2020).
Após a Revolução Federalista, com a rendição dos federalistas
e acordo de paz entre as partes, Silveira Martins retirou-se para sua
estância no Uruguai, continuando transitando pela região fronteiriça
platina, especialmente entre Bagé e Montevidéu. Suas terras no
Uruguai, herdadas de sua família, compunham, nesse momento,
sua principal fonte de renda; além de tudo, ocupava-se dos assuntos
políticos que continuavam a agitar a fronteira, convulsionada
naquele momento pelas agitações revolucionárias entre os grupos
políticos uruguaios Blancos e Colorados, como ele mesmo declarou
em carta, dias antes de falecer, a seu amigo e companheiro da
Revolução Federalista, Barros Cassal:
Ao J. Gabriel se devia fallar só em nome de Hipólito,
nossos companheiros não podiam incomodar-se com
isso. As cartas para os negócios do centro são meios
perigosas em tempo de traições e em que parece que
os homens perderam todo o pudor. Os adversários tem
feito gde barulho com o negocio e o medo já lhe faz ver
forças federalistas reunidas na fronteira sob a proteção
do Presidente Oriental com a que ao mesmo tempo se
desculpam do contrabando de armas que estão fazendo cautelosamente para os seus aliados, os blancos. Em
breve tenciono conferenciar com o nosso novo amigo e
para isso não deixarei de avisa-lo como me pede e é meu
desejo.
Não tenho em nossa pátria muita ambição do que a de
sepultar-me nella – a terra livre como livre era quando
nella residia-me.
Não tenho podido desprender-me daqui pelas dificuldades da vida de estancieiro embaraçado por obrigações
pessoais que contrahi na guerra e principalmente pelas
que me foram creadas pela falta de juízo de meos dous
filhos J. Júlio e Álvaro.37
Nesse sentido, os assuntos políticos do período continuavam
na pauta de atuação de Gaspar Silveira Martins, e o temor
da reorganização das forças federalistas permanecia entre as
preocupações de seus antigos adversários. Isso vem a demonstrar
a inserção política de Silveira Martins e sua importância no rol
dos federalistas, posteriormente ao conflito armado, quando
37. MARTINS, Gaspar Silveira. Carta a Barros Cassal, 16 jun. 1901, Montevidéu. Fundo Gaspar Silveira Martins, Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/RS.
448
SUMÁRIO
De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins
preocupavam aos federalistas as consequências possíveis da guerra
para os negócios familiares, que envolveram também seus filhos
durante a guerra.
A participação familiar de importantes personagens na
Revolução Federalista era algo comum em se tratando de guerra e de
fronteira, pois os negócios políticos (sociais, familiares, econômicos,
entre outros) estão imbricados nesse processo. Os filhos de Silveira
Martins, José Júlio e Álvaro, estavam mais integrados à estância da
família no Uruguai, enquanto seus outros filhos, Adelaide, Francisca,
Carlos e Gasparina, moravam no Rio de Janeiro. José Júlio e Álvaro
estiveram junto nos corpos armados sob comando de Gumercindo
Saraiva e Álvaro Silveira Martins envolveu-se também ao lado dos
marinheiros na Revolta da Armada, iniciada em 6 de setembro de 1893,
quando o mesmo teria tomado parte ao lado dos revolucionários.38
Obrigações pessoais mantinham Silveira Martins em sua propriedade
no Uruguai, devido também ao envolvimento familiar na guerra.
Silveira Martins faleceu em 24 de julho de 1901 na cidade de
Montevidéu. Naquela mesma cidade foi sepultado e dezenove anos
depois seus restos mortais foram trazidos para serem depositados
junto à Catedral de São Sebastião, em Bagé, no túmulo localizado
no interior da catedral, pertecente a seu pai Carlos Silveira. Isso
comprova o pertencimento de Silveira Martins e sua família em Bagé,
local escolhido para serem depositados seus restos mortais. Para essa
representatividade que Silveira Martins e sua memória tiveram em
Bagé, contribuiu sua atuação em favor dos comerciantes e estancieiros
da fronteira em especial por sua luta em favor da aprovação de
uma tarifa especial sobre produtos despachados em alfandegas
da região que sofriam com a concorrencia do contrabando e dos
similares das repúblicas visinhas.39 Da mesma forma, os caminhos
38. FALLECIMENTOS. Jornal do Commércio, RJ, 9 de jul. 1904, p. 2. Hemeroteca da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
39. Através do Decreto nº 7 101, de 30 de novembro de 1878, estabeleceu-se taxas especiais
sobre mercadorias despachadas para consumo nas Alfândegas de Rio Grande, Porto Alegre,
Uruguaiana (Província do Rio Grande do Sul), além da de Corumbá (Mato Grosso). Entre as
mercadorias, específicas do Rio Grande do Sul e que sofriam a concorrência com produtos
similares do Uruguai e com o contrabando, estavam itens como couros e peles, botinas e
coturnos, chalés, mantas e lenços, tecidos e rendas de algodão, arames, roupas, entre outros.
Fonte: MINISTÉRIO DA FAZENDA. Decreto nº 7.101, de 30 de Novembro de 1878.
Câmara dos Deputados. Disponível em: www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/
decreto-7101-30-novembro-1878-548124-publicacaooriginal-63105-pe.html.> Acesso em
16 nov. 2013. Como Ministro da Fazenda, prorrogou, por mais um ano, as disposições do
decreto que suspenderam a cobrança dos direitos de consumo de gado vacum e lanígero
vindos dos países estrangeiros (Decreto nº 7077 de 9 de novembro de 1878), já previsto
dentro da Lei Orçamentária, o que beneficiou, sobretudo, os estancieiros brasileiros que
tinham propriedades no Uruguai e no Rio Grande do Sul, a exemplo de Silveira Martins e
de sua família.
449
SUMÁRIO
De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins
de ferro eram parte do projeto de modernização de Silveira Martins
interligando pontos estratégicos da Província do Rio Grande do Sul,
aproximando a capital, litoral e fronteira facilitando as comunicações
comerciais entre regiões produtora de gado, de produção de charque
e exportadora e regiões de colonização europeia voltadas para uma
economia diversificada e abastecimento local. Além dessas pautas
que beneficiavam Bagé e a fronteira, contribui também para a
construção da memória de Silveira Martins, o trabalho da maçonaria,
como demonstramos nas imagens a seguir:
Figura 1 – Quadro em homenagem a Gaspar Silveira Martins,
presente na Loja Amizade, de Bagé.
Figura 2 – Imagem do local onde se encontra o túmulo de Silveira
Martins e das homenagens prestadas pela maçonaria, em nome da
loja Amizade de Bagé e do federalismo bageense:
Fonte: Fotografia do Acervo Pessoal de Monica Rossato.
Catedral de São Sebastião, Bagé, RS, Brasil, 2017.
450
SUMÁRIO
De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins
Dessa maneira, Silveira Martins migrou de uma região
fronteiriça platina para fazer história e ocupar os postos políticos e
de poder mais importantes do Brasil do século XIX, enviado à Europa
como ameaça ao novo regime republicano. Sua memória ligada a
um federalista e parlamentarista perduram até hoje, de alguém que
defendeu, sobretudo, os interesses de sua região e dos grupos que a ele
estavam articulados como estancieiros, comerciantes e imigrantes.
Viver em um espaço de fronteira foi crucial para a formação política,
sua visão liberal e das autonomias locais, como forma de manter a
unidade de um Estado Nacional e as liberdades individuais.
Considerações finais
Com o presente texto, procuramos demonstrar como o
fronteiriço Gaspar Silveira Martins chegou a figurar entre os políticos
mais conhecidos do Brasil do século XIX, na ocupação de cargos como
os de Deputado Provincial, Deputado Geral, Senador, Ministro da
Fazenda, Presidente de Província e Conselheiro do Imperador. Com
a Proclamação da República em 1889, seus planos foram barrados e
o desterro à Europa imposto por desavença entre ele e Deodoro da
Fonseca a quem Silveira Martins criticava em razão do militarismo e
despotismo com que a República foi construída.
Na Europa, as vivências junto à colônia brasileira em Paris o
aproximaram dos políticos mais influentes do período do âmbito
brasileiro e europeu, assim como o estabelecimento de uma rede
de contatos com periodistas e com o legado das ideias mazzinianas
e liberais da Itália. Junto a isso, os vínculos que também o levaram
à Alemanha, no que diz respeito aos interesses da imigração na
sua região.
Por toda essa trajetória política de Silveira Martins percebemos
como a região fronteiriça platina fez parte de sua formação e enquanto
político, nas ideias e projetos pensados para ela, projetando Bagé e
sua região a um patamar nacional e internacional.
Referências
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451
SUMÁRIO
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MARTINS, Gaspar Silveira. Anais da Câmara dos Deputados, 10 jan. 1879, p. 412
e 413.
MARTINS, Gaspar Silveira. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão de 27 fev.
1879, p. 107 e 108.
MARTINS, Gaspar Silveira. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão de 16 jan. 1873.
452
SUMÁRIO
De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins
MARTINS, Gaspar Silveira. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão de 07 fev.
1877.
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453
SUMÁRIO
De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins
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454
SUMÁRIO
455
SUMÁRIO
O CAUDILHO E A RAINHA DA FRONTEIRA:
APONTAMENTOS SOBRE A RELAÇÃO
ENTRE APARÍCIO SARAIVA E O MUNICÍPIO
DE BAGÉ DURANTE AS REVOLUÇÕES DE
1896 E 1904.
Pablo Rodrigues Dobke1
456
SUMÁRIO
O caudilho e a Rainha da Fronteira: apontamentos sobre a relação entre
Aparício Saraiva e o município de Bagé durante as revoluções de 1896 e 1904
1
Introdução
Não é de hoje que a região fronteiriça onde se encontra o
munícipio de Bagé é motivo de estudos devido sua fundamental
importância frente às atividades bélicas decorridas ao longo do século
XIX e início do XX. Não somente as Coroas Portuguesa e Espanhola
utilizaram-se da referida zona, sendo esta disputa apenas o embrião
daquilo que se seguiu até finalizarem as contendas armadas, sejam as
brasileiras, uruguaias e até mesmo entre as duas nações. Outro fator
interessante naquilo que diz respeito às disputas fronteiriças, fica a
cargo do estabelecimento dos Estados-nacionais de Brasil e Uruguai,
visto que a linha que demarca territorialmente ambos os países é
motivo de contestação política até os dias de hoje2.
No entanto, antes de entrar no assunto aqui proposto, gostaria
de frisar que este artigo tomou como base alguns trechos de minha
Dissertação de Mestrado, “Caudilhismo, território e relações sociais
de poder: o caso de Aparício Saraiva na região fronteiriça entre
Brasil e Uruguai (1896 – 1904)”, defendida na Universidade Federal
de Santa Maria no ano de 2015 e orientada pela professora doutora
Maria Medianeira Padoin; observo também que a pesquisa referente
à Dissertação foi financiada com bolsa de estudos FAPERGS/CAPES.
Na Dissertação acima citada, a partir de uma pesquisa
bibliográfica e documental na perspectiva da história política,
procurei trabalhar com as relações sociais e de poder, tendo nas
1. Mestre em História (UFSM/Brasil).
2. Masoller (UY) ou Vila Albornoz (BR): Área reclamada pelo governo uruguaio a partir de
1934, contígua ao território brasileiro, sendo apropriada por este último desde 1861, pertencendo ao município de Santana do Livramento (RS), fronteira ao Departamento uruguaio de
Rivera. Para mais, ver: https://web.archive.org/web/20070817200811/http://www.info.
lncc.br/wrmkkk/masollee.html (Acesso em: 12 de jan. 2021).
457
SUMÁRIO
O caudilho e a Rainha da Fronteira: apontamentos sobre a relação entre
Aparício Saraiva e o município de Bagé durante as revoluções de 1896 e 1904
obras historiográficas do período, bem como em posteriores e, na
análise da documentação (constituída de diários, correspondências e
periódicos) a fundamentação para a referida pesquisa. Neste sentido,
tive como objetivo a investigação acerca da atuação do caudilho
fronteiriço uruguaio Aparício Saraiva a fins do século XIX e início
do XX, considerando suas relações sociais na materialização de um
território de poder e na territorialização deste mesmo poder. Assim,
a região de fronteira, o indivíduo, o partido político e a sociedade,
imprimiram um capital simbólico que acabou por caracterizar a
liderança do caudilho.
A saber, Aparício Saraiva, importante caudilho uruguaio que a
fins do século XIX e início do XX monopolizou as atenções no cenário
político da região fronteiriça entre o Uruguai e o estado brasileiro do
Rio Grande do Sul, fazendo com que sua pessoa gozasse de enorme
prestígio na referida região, concebendo assim um território de poder
entre os dois Estados-nacionais.
Aparício Saraiva era o quarto filho do casal Francisco Saraiva
(que em solo uruguaio tornou-se Saravia) e Propícia da Rosa, sulrio-grandenses do atual município de Lavras que migraram para o
Uruguai em uma data que segundo o historiador uruguaio Enrique
Mena Segarra, oscila entre 1847 e 1854 (1998, p. 11).
O lugar em que Francisco Saraiva fixou suas posses foi à extensão
que compreende hoje os Departamentos fronteiriços de Cerro Largo
e Treinta y Tres, este último, até o ano de 1884 ainda não havia se
desmembrado do primeiro, levando a crer que Francisco era dono de
uma grande extensão de terras dentro do até então Departamento de
Cerro Largo. Foi então, que na Estância La Chilca, a quarta adquirida,
próxima a Cuchilla Grande no atual Departamento de Treinta y
Tres, que em 16 de agosto de 1856 nasceu Aparício Saraiva (MENA
SEGARRA, 1998, p. 13).
Aparício, juntamente com seus irmãos, passou a maior parte
de sua infância entre os trabalhos rurais nas propriedades de seu
pai. Estudou os primeiros anos em uma das sete escolas existentes
no Departamento de Cerro Largo durante a década de 1860. No ano
de 1869, foi encaminhado ao Colégio do educador Baltasar Montero
Vidaurreta em Montevidéu, do qual acaba fugindo alguns meses
depois com o objetivo de voltar a Cerro Largo (GÁLVEZ, 1942, p. 27).
A fuga do Colégio tornou-se celebre entre as biografias
de Aparício, pois, segundo a maioria delas, ao escapar da escola
montevideana o jovem Aparício (contando com quatorze anos na
458
SUMÁRIO
O caudilho e a Rainha da Fronteira: apontamentos sobre a relação entre
Aparício Saraiva e o município de Bagé durante as revoluções de 1896 e 1904
época), acaba se incorporando a um contingente revolucionário do
Partido Blanco, que neste momento, sob a liderança do caudilho
Timoteo Aparicio convulsionava-se na chamada Revolución de las
Lanzas3 (GÁLVEZ, 1942, p. 27).
Finalizada esta sublevação, Aparício retorna a sua vida
ordinária de trabalhador rural nas estâncias do pai, onde passa a
tropear, comprar e vender bovinos, levando-os principalmente
para Montevidéu. No entanto, durante o ano de 1875 estoura outro
movimento armado, conhecido por Revolución Tricolor4. Além de
Aparício, tomam parte desta outros dois de seus irmãos, Gumercindo
e Antônio Floricio, todos sob o comando do caudilho cerrolarguense
Angel Muniz. Contudo, esta revolta foi facilmente deliberada pelo
Ministro de Guerra, o coronel Lorenzo Latorre (NAHUM, 2013, p. 56).
No ano de 1877, contando com seus 21 anos, contrai
matrimônio com Cândida Díaz que era vizinha de sua família nas
paragens da Cuchilla Grande. O casal teve seis filhos: Aparício,
Nepomuceno, Ramón, Mauro, Exaltación e Villanueva (MENA
SEGARRA, 1998, p. 15).
No ano de 1886, os irmãos Saraiva – Aparício, Gumercindo e
Antônio Floricio – ainda teriam outra oportunidade de agirem contra
o “Militarismo”. A Revolución del Quebracho5 resumiu-se a uma só
batalha, onde os rebeldes derrotados dispersaram-se rapidamente,
impossibilitando a participação dos irmãos que estavam a caminho
da mobilização quando receberam a notícia da derrocada insurgente
(GÁLVEZ, 1942, p. 46).
3. Movimento armado ocorrido entre os anos de 1870 e 1872. Tinha por objetivo a reivindicação de uma maior participação do então Partido Blanco no governo do Colorado Lorenzo
Batlle. Após esta sublevação foi onde se acordaram pela primeira vez as bases para a chamada “política de coparticipação”, onde, em tese, haveria uma divisão dos direitos entre as duas
principais facções políticas, os blancos e os colorados. Para mais, ver: CASTELLANOS, Alfredo. Timoteo Aparicio, el ocaso de las lanzas. Montevidéu: Ediciones de la Banda Oriental, 1998.
4. Este movimento teve como característica a união dos partidos políticos contra o incipiente
“Militarismo”, como uma forma de reestabelecer a legalidade constitucional que já vinha
combalida graças aos insucessos econômicos e a impopularidade do Presidente José Ellauri,
eleito em 1873 que aos poucos abria brechas para a intervenção dos militares comandados
pelo coronel Lorenzo Latorre. Para mais, ver: NAHUM, Benjamín. Breve historia del Uruguay
independiente. 9ª edição. Montevidéu: Ediciones de la Banda Oriental, 2013.
5. Esta contenda reuniu mais uma vez os membros das distintas coletividades políticas com o
objetivo de darem um fim aos governos militares. Por consequência, o então Presidente, o
coronel Máximo Tajes iniciou o processo de transição conhecido como “Civilismo”, dando
assim abertura aos partidos para atuarem em suas representatividades políticas. Para mais,
ver: NAHUM, Bejamín. Manual de historia del Uruguay: 1830-1903. 20ª edição. Montevidéu:
Ediciones de la Banda Oriental, 2013.
459
SUMÁRIO
O caudilho e a Rainha da Fronteira: apontamentos sobre a relação entre
Aparício Saraiva e o município de Bagé durante as revoluções de 1896 e 1904
Antes de completar seus 37 anos, Aparício engajou-se na
Revolução Federalista (1893-95)6 em solo brasileiro ao lado de seu
irmão, o comandante federalista Gumercindo Saraiva. Com a morte
deste último em 1894, Aparício é elevado ao posto de novo comandante
da Revolução, colocação que exerceu até o fim da revolta em 1895.
Esta expedição revolucionária que se estendeu pelos três
estados do sul do Brasil viabilizou a experiência necessária a Aparício
para que mais tarde empreendesse uma série de revoltas no Uruguai
(1896, 1897, 1903 e 1904), elevando-se a um posto de destaque dentro
do Partido Nacional, figurando como um de seus principais líderes
durante o período.
Desta maneira, a partir do ano de 1896, Aparício passa a atuar
efetivamente na política uruguaia empenhando-se em conturbar o
cenário hegemônico protagonizado pelo Partido Colorado. Passadas
as insurgências de 1896 e 1897, Saraiva estabelece-se como o grande
chefe do Partido Nacional. Operando em consonância com o
Presidente Lindolfo Cuestas acerca dos problemas do País, preocupava
constantemente seus arqui-rivais colorados, principalmente o futuro
Presidente José Batlle y Ordóñez, que mesmo antes de vencer as
eleições já prometia acabar com o governo bicéfalo7 que se encontrava
o Uruguai (NAHUM, 2013, p. 259).
O ano de 1904 marca a última atuação rebelde do chefe blanco.
Em setembro deste ano, Aparício foi gravemente ferido na chamada
Batalha de Masoller, localidade esta situada na região fronteiriça
entre Uruguai e Brasil, a poucos quilômetros do Município de
Santana do Livramento. Levado para o lado brasileiro, o Comandante
em Chefe da revolução veio a falecer no dia 10 do mencionado mês de
setembro, na estância de Dona Luiza Pereira, mãe de seu colaborador
João Francisco Pereira de Souza (UMPIÉRREZ, 2007, p. 127).
Como visto nesta breve biografia, Aparício, detinha um
interessante destaque na região fronteiriça, o que acabava por refletir
em seus companheiros de partido, fazendo com que a fronteira
brasileiro-uruguaia fosse um local de confluência entre o caudilho
e aqueles que o acompanhavam. Neste sentido é que se encontra
6. Evento político-militar que teve como base a luta entre Federalistas, capitaneados pelo tribuno Gaspar Silveira Martins e por Republicanos, estes sob a tutela do Presidente do Estado
do Rio Grande do Sul, Júlio de Castilhos. (KÜHN, 2007, p. 106). Segundo a historiadora
Helga Piccolo (1993), a Revolução Federalista foi significativa para o processo histórico brasileiro, no momento de transição entre a Monarquia para a República, transformando assim
a conjuntura social do país (p. 65).
7. Em menção a já citada “política de coparticipação”.
460
SUMÁRIO
O caudilho e a Rainha da Fronteira: apontamentos sobre a relação entre
Aparício Saraiva e o município de Bagé durante as revoluções de 1896 e 1904
o munícipio de Bagé, cidade já destacada por diversas atividades
políticas e, sobretudo, bélicas na virada entre os séculos XIX e XX.
Assim, o objetivo principal deste texto é retratar determinados
episódios que acabaram por envolver algumas figuras de destaque
nas contendas comandadas por Saraiva e que tinham na fronteira
e, sobretudo, no município de Bagé e arredores o sustentáculo para
os movimentos uruguaios (1896 – 1904) e que tanto conturbaram
a supra referida região, fazendo da “Rainha da Fronteira” um local
especial, diria até mesmo, uma aliada e tanto para as pretensões
revolucionárias. Para tal, estão apresentadas aqui algumas situações
pertinentes dentre o período das “Revoluções Saraivistas” e que muito
dizem a respeito da conexão de Saraiva com o município.
Agentes blancos na fronteiriça bagé: contexto,
situações e aliados
Finalizada a Revolução Federalista (1893 – 95) em solo brasileiro,
o então nomeado Comandante em Chefe desta Revolução retorna ao
Uruguai e encontra o país mergulhado em uma crise administrativa
que já se arrastava por anos e um mecanismo de governo que não
abria brechas, calcado no conceito da “influência diretriz”8, criado
pelo anterior presidente da República, o colorado Julio Herrera y
Obes. Neste contexto, o Partido Nacional ansiava por algo que fizesse
tremer a hegemonia colorada, buscando no recém-chegado Aparício
Saraiva a solução para tal incômodo.
Com a exclusão de seus antigos aliados do poder, os federalistas,
e a nova configuração política do Estado do Rio Grande do Sul sendo
comandada com mão de ferro por Júlio de Castilhos e os demais
membros do PRR, obriga Saraiva a buscar algo que o relaciona-se
aos novos “donos” do Rio Grande. Para isto, procura então o auxílio
de dois agentes de fundamental importância para suas ambições na
política uruguaia, o chefe político local de Rivera, Abelardo Márquez
e o comandante geral da fronteira sul-rio-grandense, João Francisco
Pereira de Souza (CAGGIANI, 1997, p. 87).
A nova conformação política do Rio Grande do Sul, de fato,
modificou as estruturas vigentes desde o Império, principalmente,
na base social de apoio ao governo. Assim destaca Fábio Kühn (2007):
8. A “influência diretriz” tinha por conceito que o povo inculto não tinha capacidade intelectual para eleger seus governantes e que estes deveriam ser propostos pelo próprio governo,
que se convertia assim em eleitor, isolando deste modo a vigência da democracia política
(NAHUM, 2013, p. 69).
461
SUMÁRIO
O caudilho e a Rainha da Fronteira: apontamentos sobre a relação entre
Aparício Saraiva e o município de Bagé durante as revoluções de 1896 e 1904
Diferente dos governos liberais do Império, que tinham seu poder assentado no latifúndio pecuarista da
região da campanha, os republicanos buscaram respaldo nos novos setores da oligarquia rural, estabelecidos
na região litorânea e na serra, e nos profissionais liberais, comerciantes e funcionários públicos das zonas
urbanas (p. 107).
No entanto, a preocupação do PRR com a região da campanha
era algo latente, pois, lá, ainda residia a maioria de seus desafetos
políticos e uma reorganização das relações precisava ser feita, daí então
a importância de articularem-se com Aparício nesta via de duas mãos.
Onde Saraiva necessitava dos subsídios provindos do Rio Grande do
Sul para impulsionar seus objetivos políticos e os perrepistas9 careciam
de fortalecerem-se para um melhor controle da região.
Ao tratar-se da mediação de Abelardo Márquez, mais do
que por em contato antigos rivais, permitiu uma maior interação
entre estes agentes, chegando às vias de uma relação de grande
amistosidade. Márquez, foi um reconhecido chefe blanco, líder
político da fronteira pelo Partido Nacional, atuando especialmente
na região de Rivera, com grande participação nas mobilizações de
1896-97 e 1903-04, sendo nomeado Comandante Geral da fronteira
durante os períodos belicosos.
Após a tentativa de impedir as eleições de 1896, Aparício procura
a ajuda de seu amigo e fiel companheiro político, o já mencionado
Abelardo Márquez, para então refugiar-se em território brasileiro,
fixando moradia na cidade de Bagé. No entanto, o receio de ser
perseguido em solo brasileiro devido à participação na Revolução
Federalista em oposição ao PRR fez com que Aparício solicitasse a
proteção de João Francisco sendo intermediado por Márquez, visto
que estes há anos já vinham mantendo estreita relação referente
a negociações envolvendo, principalmente, cavalos (CAGGIANI,
1997, p. 87).
Recebendo as devidas garantias de João Francisco, Aparício
começa a articular seu plano no município de Bagé, posto de forma
efetiva em 1897 com o estourar de mais uma contenda blanca. No
entanto, vale lembrar a importância deste contato para a política do
Partido Nacional personificada neste momento pelo caudilho Aparício
Saraiva, assim como para os objetivos sul-rio-grandenses. Para
compreender mais destas ações, o trabalho de Ana Luiza Reckziegel
(1999), aponta diversos fatores que contribuíram para este enlace
9. Assim chamados os correligionários do Partido Republicano Rio-grandense.
462
SUMÁRIO
O caudilho e a Rainha da Fronteira: apontamentos sobre a relação entre
Aparício Saraiva e o município de Bagé durante as revoluções de 1896 e 1904
entre os chefes fronteiriços, analisando a conjuntura política vivida
no momento igualmente, como as questões que fizeram desta relação
dita pela autora como uma “diplomacia marginal” um importante
subsídio para ambas às aspirações.
Outro trabalho interessante e que tem basicamente o mesmo
objetivo – o de mostrar as relações mantidas entre os insurgentes
blancos e os governistas sul-rio-grandenses – é o de Luis Eduardo
Coronel Maldonado (2009). Neste, o autor expande o estudo também
para a fronteira argentina, porém, no entanto, limita-se apenas a
elencar os fatos ocorridos relativos à revolução uruguaia de 1904.
Quanto à abordagem, o autor opta por um olhar da diplomacia,
trazendo suas tratativas, assim como um anexo documental que
colabora para a compreensão dos episódios.
Em ambos os trabalhos citados acima, o destaque está justamente
na relação mantida entre Saraiva e João Francisco, sendo esta relação
consentida pelo governo republicano do Rio Grande do Sul. Com o
objetivo de elucidar a conjuntura das relações sociais mantidas por
Aparício na região fronteiriça e, sobretudo com o município de Bagé,
parto para a demonstração de alguns apontamentos fundamentais
que basearam a atuação político-revolucionária do caudilho,
conformando assim uma estrutura que possibilitava uma confortável
mobilidade de ação.
Gumercindo, mesmo que já falecido, continuou a fornecer o elo
que mantinha Aparício ligado a seus antigos companheiros sul-riograndenses. Por meio de Gumercindo que Aparício aproximou-se de
figuras como Torquato Severo, Estácio Azambuja e Manuel Macedo,
personagens estes que foram de fundamental importância durante
as campanhas militares de Aparício, como também, nas questões
comerciais abarcando os rebanhos equinos e bovinos.
Para elucidar um pouco deste envolvimento, trago momentos
distintos onde aparecem envolvidos estes três personagens. O
primeiro a ser referido é o general Torquato Severo, oriundo do
município de Dom Pedrito, que no decorrer da Revolução Federalista
(1893-95) comandou a vanguarda de Aparício Saraiva durante o cerco
da cidade paranaense da Lapa.
Em carta de 12 de maio de 1897, a esposa de Aparício, a senhora
Cândida Diaz, que ainda vivia em sua chácara nas cercanias de Bagé,
se diz preocupada com o alto índice de furtos as cavalhadas na região
e que se Aparício precisar ela entrará em contato com Torquato para
enviar-lhe uma tropilha. Assim ela escreve: “los caballos si tu quieres
463
SUMÁRIO
O caudilho e a Rainha da Fronteira: apontamentos sobre a relação entre
Aparício Saraiva e o município de Bagé durante as revoluções de 1896 e 1904
yo hablo con Torcuato y mando para ya”10 (DIAZ, 1897). Reforçando a
participação de Severo na contenda de 1897, o documento intitulado
“Lista de la distribución de ropa a las fuerzas de Saravia”11, mostra uma
relação de roupas e apetrechos a serem enviados para o exército de
Aparício, juntamente com 160 homens, supostamente para inseriremse na luta.
É sabido, que a família de Aparício vivia na mencionada chácara
no município de Bagé, adquirida ainda em 1896 para organizar o
levante armado daquele ano e que para gozar de tranquilidade no
lado brasileiro, Aparício deveria estabelecer novos contatos, como
no caso de sua aproximação com o comandante de fronteira João
Francisco Pereira de Souza (MENA SEGARRA, 1998, p. 60), assim
como reafirmar antigos vínculos, especialmente no que toca ao chefe
Federalista da região, o pedritense, Torquato Severo.
Outra reafirmação de contato recai sobre o caudilho Federalista
Estácio Azambuja, figura destacada nas revoluções de 1893 e 1923
e líder político na região de Bagé. De maneira mais discreta, este
mantinha relações comerciais com Aparício, principalmente ao se
tratar da reprodução e criação de equinos. Em carta de sua estância
na Carpintaria12 datada de 25 de junho de 1897, Azambuja solicita a
Aparício um bom reprodutor para procriação, e ao que tudo indica,
seus reprodutores haviam sido levados para servirem de montaria na
revolução do lado uruguaio (AZAMBUJA, 1897).
No entanto, o intuito da correspondência não refere-se em
primeiro momento a mencionada solicitação. Azambuja pede para
que Aparício lhe envie uma portaria, autorizando o transporte de
uma carroça com “miudezas” da casa de seu sogro na localidade de
Mangrullo13 em Cerro Largo até a sua estância na Carpintaria. Neste
sentido, Azambuja escreve:
Tenho necessidade de mandar até a estância de meu sogro, nos Mangrulhos, uma carroça para trazer-me umas
miudezas que lá tenho. Rogo-vos, pois, mandar-me uma
10. Os cavalos se tu quiseres eu falo com Torquato e os mando para já [Tradução nossa].
DIAZ, Cândida. Carta a Aparício Saraiva, 12 de maio de 1897. Archivo General de la Nación
(AGN). Arquivo Aparício Saraiva. Caixa família de Aparício Saraiva, pasta correspondências. Documento sem número de indicação.
11. Lista de distribuição de roupas as forças de Saraiva [Tradução nossa]. SEVERO, Torquato.
Lista de roupas e apetrechos, 1897. Archivo General de la Nación (AGN). Arquivo Aparício
Saraiva. Pasta 2, documento 49. Na lista, estão presentes artigos como: camisas, bombachas,
alpargatas, ceroulas, ponchos e arreios.
12. Localidade situada no município de Bagé, na margem direita do Rio Negro.
13. Localidade próxima ao hoje município de Aceguá.
464
SUMÁRIO
O caudilho e a Rainha da Fronteira: apontamentos sobre a relação entre
Aparício Saraiva e o município de Bagé durante as revoluções de 1896 e 1904
portaria para que gente de vosso exército respeitem o
condutor e os cavalos que a puxam14 (AZAMBUJA, 1897).
Esta situação evidencia com clareza o poder de Aparício
sobre a região, e até onde as relações sociais de poder estão aptas
a ir. Pois, além dos tramites comerciais relativos à procriação de
equinos, Estácio Azambuja, notado chefe Federalista, reconhecendo
o “domínio” de Aparício solicita a segurança do mesmo para moverse em seu território, reconhecendo assim sua influência.
Por último, trazemos como exemplo, e talvez, o mais
significativo deles a respeito da efetiva participação de Federalistas
ligados primeiramente a Gumercindo nas insurreições de Aparício
no Estado Oriental, trata-se do coronel Manuel Macedo, conhecido
como Fulião. Macedo, nascido no interior do município de Bagé15,
participou ativamente da Revolução de 1904, chegando até mesmo a
ser destaque em reportagem da revista argentina Caras y Caretas de
7 de maio de 190416.
Estes elos construídos primeiramente por Gumercindo
foram herdados e mantidos por Aparício como uma maneira de
continuidade no estabelecimento das relações. Mesmo que o poder
houvesse trocado de lado no Rio Grande do Sul com a vitória
Republicana sobre os Federalistas, e a fronteira fosse controlada com
rigor pelo comandante João Francisco Pereira de Souza, os líderes e
chefetes Maragatos continuavam a exercer sua influência mesmo que
de maneira reduzida, porém, com eficácia e ativa participação.
Nesta rede de auxílio provinda da região fronteiriça destaco
também os coronéis Juan Francisco e Antonio Mena, especialmente
durante a insurreição de 1897. Os irmãos Mena foram fundamentais
agentes, sobretudo no Departamento uruguaio de Treinta y Tres,
atuando também nas cidades sul-rio-grandenses de Bagé e Santana
14. AZAMBUJA, Estácio. Carta a Aparício Saraiva, 25 de junho de 1897. Museo Historico
Nacional (MHN). Coleção Diego Lamas. Tomo 275, documento 106.
15. Manuel Rodrigues de Macedo (Fulião), nasceu em local desconhecido no interior de Bagé,
era caracterizado como um homem que gozava de privilégios devido à hierarquia militar,
pois, não era grande proprietário de terras, além de ser mestiço, fatos que lhe “garantiam
ficar à vontade em meio aos soldados rasos”, dos quais se diferenciava unicamente devido
ao seu posto militar (CHASTEEN, 2003, p. 84).
16. Na reportagem intitulada “La Revolución Oriental”, o coronel Fulião aparece de forma realçada em foto solo e em outra juntamente com seus três filhos. Coronel Fulião. In: Caras y
Caretas. 7 de maio de 1904, nº 292, Ano VII, p. 46. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional da Espanha. Fonte: <http://hemerotecadigital.bne.es/issue.vm?id=0004175896&page=46&search=&lang=es>. Acesso em 06 jan. 2021. Coronel Manuel Macedo (Fulião) e
seus filhos. In: Caras y Caretas. 7 de maio de 1904, nº 292, Ano VII, p. 46. Hemeroteca
Digital da Biblioteca Nacional da Espanha. Fonte: <http://hemerotecadigital.bne.es/issue.
vm?id=0004175896&page=46&search=&lang=es>. Acesso em 06 jan. 2021.
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SUMÁRIO
O caudilho e a Rainha da Fronteira: apontamentos sobre a relação entre
Aparício Saraiva e o município de Bagé durante as revoluções de 1896 e 1904
do Livramento onde possuíam propriedades e familiares, no intuito
de levantarem recursos para o movimento nacionalista (FERNANDEZ
SALDAÑA, 1945, p. 828).
Os irmãos Mena, oriundos do mencionado Departamento de
Treinta y Tres e com grande influência na região de Bagé no Rio Grande
do Sul, tomaram parte na Revolução de 1897, tendo Juan Francisco
deixado a insurreição após o combate de Aceguá a 8 de julho daquele
ano por motivo de divergências com Aparício. Posteriormente, em
1903 juntou-se ao movimento liderado por Eduardo Acevedo Díaz em
dissidência aos demais blancos que apoiavam Aparício a uma nova
contenda, ladeando-se então ao governo do colorado José Batlle y
Ordóñez (FERNADEZ SALDAÑA, 1945, p. 828).
No entanto, Antônio, foi figura atuante em ambas as revoluções
comandando a Divisão nº 17 de Rivera em conjunto com o coronel
Antônio Saavedra. Por motivo de um tiro levado no pé, passou a
acompanhar as tropas a bordo de uma charrete jardineira, como bem
menciona Luis Alberto de Herrera (1898, p. 35).
O coronel Antônio, mostrava-se como um agente
independente, seguro de seus “domínios” e influências atuando
por vezes na função de angariar recursos para a revolução. Em
correspondência a Abelardo Márquez, Antônio comunica que está
por mandar mais recursos do Brasil e pede que Márquez avise a
Aparício sobre o caso. Assim Antônio escreve:
Por mi parte ya está todo listo, abice (sic) el general que
en cuanto tratan del armisticio me encuentro en Bracil
(sic) reunindo recursos para darles al general y mis demás compañeros de causa. Quedo como siempre a sus
ordenes17 (MENA, 1897).
Além disso, por gozar de estabilidade, principalmente na
cidade de Bagé, Antônio por muitas vezes agia como espião, avisando
o Estado-Maior da revolução de alguma possível movimentação
colorada pela região fronteiriça brasileira. Em telegrama, Antônio
sugere a Aparício que se vigiem algumas estações férreas por motivo
de uma remessa de munições vinda do Brasil a ser recebida pelo
general adversário Justino Muniz18.
17. Da minha parte já está tudo pronto, avise o general que enquanto tratam do armistício em
encontro no Brasil reunindo recursos para dar-lhes ao general e aos demais companheiros
de causa. Fico como sempre a suas ordens [Tradução nossa]. MENA, Antônio. Carta a
Abelardo Márquez, Bagé, 18 de julho de 1897. Museo Historico Nacional (MHN). Coleção
Diego Lamas. Tomo 275, documento 096.
18. Nascido no Departamento de Treinta y Tres no ano de 1838, formou-se primeiramente
no trabalho de campo em companhia de seu pai Julian Ramirez, um pequeno proprietário
466
SUMÁRIO
O caudilho e a Rainha da Fronteira: apontamentos sobre a relação entre
Aparício Saraiva e o município de Bagé durante as revoluções de 1896 e 1904
Neste sentido, Antônio observa:
cuanto a la munición que puede recibir Muniz por via
Rio Grande, supongo debe venir a esta o a estación
Rio Negro. Digame se debo adoptar alguna medida de
observación para comunicarle en seguida. Creo que
seria muy conveniente se tuviera observación sobre la
casas de Juan Francisco Barboza, Policarpo Barboza y
Constantino Olano, en caso que las municiones para
Muniz vengan por la estación Rio Negro o por esta. En
caso de venir por la estación Santa Rosa o por Candiota
la vigilancia debe tenerce sobre la casa de Hilácio dos
Santos19 (MENA, 1897).
A comunicação entre Antônio e Aparício acerca das munições
continua por mais alguns dias, exatamente até o dia 30 de julho,
quando Antônio comunica que as munições vieram pela estação de
Candiota20 e que iria seguir a escolta para enfim subtraí-la no meio
do caminho com o intuito de mandar parte para a divisão comandada
por Ismael Velasquez no Rincão de Artigas, atual município de Rio
Branco21.
O demonstrado aqui foi justamente a articulação de Antônio
Mena a serviço da revolução, tanto na captação de recursos como na
qualidade de espião. Valendo-se de em um ponto estratégico, suas
observações permitiram que o Exército Nacionalista mantivesse o
controle sobre a região fronteiriça, regulando assim seu trânsito a
partir de Bagé.
dedicado a pecuária na região conhecida como Sauce de Olimar; no entanto, o tio materno de
Justino, o caudilho nacionalista Ángel Muniz, procurou orientar os passos de seu sobrinho
Assim, Justino seguiu a senda de seu tio e desde cedo se integrou a carreira militar participando de várias ações bélicas, contudo, sua constituição como líder político se dá a partir da
sua nomeação para o cargo de comissário do Departamento de Cerro Largo, o que em seguida
lhe proporcionaria o posto de comandante geral da fronteira. No entanto, por divergências
pessoais com Aparício e a família Saraiva, atuou contra seu próprio partido durante as mencionadas revoltas. Faleceu no mesmo Departamento de Treinta y Tres em sua estância na
localidade conhecida como Bañado de Medina no ano de 1914.
19. Quanto à munição que Muniz pode receber via Rio Grande, suponho que deva de vir
por esta ou pela estação Rio Negro. Diga-me se devo adotar alguma medida de observação
para comunicar-lhe em seguida. Creio que seria muito conveniente se houvesse observação
sobre as casas de Juan Francisco Barboza, Policarpo Barboza e Constantino Olano, caso
as munições para Muniz venham pela estação Rio Negro ou por esta. No caso de vir pela
estação Santa Rosa ou Candiota a vigilância deve ser feita sobre a casa de Hilacio dos Santos
[Tradução nossa]. MENA, Antônio. Carta a Aparício Saraiva, Bagé, 21 de julho de 1897.
Museo Historico Nacional (MHN). Coleção Diego Lamas. Tomo 275, documento 100.
20. O atual município de Candiota, neste período ainda fazia parte do município de Bagé, vindo a desmembrar-se deste no ano de 1992.
21. MENA, Antônio. Carta a Aparício Saraiva, Bagé, 30 de julho de 1897. Museo Historico
Nacional (MHN). Coleção Diego Lamas. Tomo 275, documento 110.
467
SUMÁRIO
O caudilho e a Rainha da Fronteira: apontamentos sobre a relação entre
Aparício Saraiva e o município de Bagé durante as revoluções de 1896 e 1904
Como já antes mencionado, o líder político Abelardo Márquez
atuou de forma profícua junto a Aparício na conformação de
estratégias e arrecadação de recursos pela fronteira, chegando até
mesmo a ser considerado “amigo” do Rio Grande do Sul e a conceder
entrevista à folha oficial do Estado, como bem expõe este jornal órgão
do Partido Republicano Rio-grandense, A Federação22.
Abelardo também recorria às cidades no Rio Grande do Sul
livremente atrás de subsídios para a revolução. Em carta a Aparício,
o chefe político da fronteira diz estar a caminho de Pelotas e Rio
Grande para conseguir munições. Assim, Márquez escreve:
inmediatamente iré a Bagé para conseguir de un amigo
de alli transporte sin perdida de tiempo a Pelotas o Rio
Grande em busca de díez mil tiros de winchester que
me seguraron habia en una de estas ciudades. Dada la
emergencia con que he hecho este pedido, espero tener
esos tiros en Guavijú dentro de seis dias o poco más23
(MÁRQUEZ, 1897).
Outra ação de Márquez era o recolhimento do dinheiro
enviado pelo Comitê Revolucionário 24 sediado em Buenos Aires
e respectivamente o seu uso comprando os víveres necessários
para a ocasião. Em outra correspondência a Aparício, Márquez
escreve neste sentido:
hoy a las 4 pm recebi contestación a mi telegrama a
Golfarini diciendome él que se remitia la suma pedida
a Pelotas por no haber sucursal de banco en esta. Estoy disponiendo entonces la compra de los artículos que
consisten en frezadas, bombachas, calzoncillos, camisas
22. A manchete noticia a compra de uma estância nas redondezas de Bagé por parte de Márquez, mencionando que este é “amigo de nossa terra”. “A Fazenda do Umbú”. A Federação, 5 de janeiro de 1904, nº 4, p. 1. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/
DocReader.aspx?bib= 388653&PagFis=14535&Pesq=abelardo%20marquez>. Acesso
em 10 jan. 2021. A entrevista de Abelardo Márquez concedida em visita a Porto Alegre
pode ser vista em “Emigrados Orientaes”. A Federação, 11 de fevereiro de 1904, nº 35, p.
2. Disponível em:<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=388653&PagFis=15019&Pesq=abelardo%20marquez>. Acesso em 10 jan. 2021.
23. Imediatamente irei a Bagé para conseguir de um amigo dali transporte sem perda de tempo
para Pelotas ou Rio Grande em busca de dez mil tiros de winchester que me asseguraram que
haveria em uma destas cidades. Dada à emergência com que fiz o pedido, espero ter estes tiros em Guavijú dentro de seis dias ou pouco mais [Tradução nossa]. MÁRQUEZ, Abelardo.
Carta a Aparício Saraiva, Serrilhada, 17 de maio de 1897. Museo Historico Nacional (MHN).
Coleção Diego Lamas. Tomo 275, documento 057.
24. O Comitê Revolucionário sediado em Buenos Aires durante a Revolução de 1897 foi presidido por Juan Angel Golfarini e tinha por objetivo reunir fundos e tratar politicamente as
ações da revolução (FERNANDEZ SALDAÑA, 1945, p. 567).
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SUMÁRIO
O caudilho e a Rainha da Fronteira: apontamentos sobre a relação entre
Aparício Saraiva e o município de Bagé durante as revoluções de 1896 e 1904
y tricotas cuyas clases y precios conocerá Su Excelencia
cuando le lleve los detalles25 (MÁRQUEZ, 1897).
Estes exemplos mostram tanto o envolvimento de Márquez
com o movimento como também suas bem quistas relações com o
Rio Grande do Sul. É percebido que o comandante geral da fronteira
Abelardo Márquez foi peça de fundamental importância para as
ações político-militares de Aparício, atuando como um verdadeiro
“relações públicas” em prol do nacionalismo. Outro fato perceptível e
mote deste texto é a inclusão de Bagé no contexto das relações, pois
mesmo sendo citadas outras localidades, o município fronteiriço tem
grande relevância, pois é sempre a partir dele que surgem as ações,
seja na aquisição de transporte e até mesmo por não possuir uma
agência bancária para depósitos vindos do exterior, em suma, Bagé
era a porta de entrada e saída para os intentos revolucionários na
terra uruguaia.
Estes agentes envolveram-se e mobilizaram recursos diversos
para as revoluções comandadas por Aparício, tendo em Bagé um
baluarte para seus subsídios, desta maneira compreende-se o
intercâmbio de relações existentes na sociedade fronteiriça e de como
elas se afunilaram até convergirem na pessoa do general Aparício
Saraiva e na mencionada localidade.
Os exemplos mostrados aqui elucidam a constituição de uma
sociedade imbuída a uma atuação comum e notadamente estruturada
em uma esfera de poder local que dotada de estratégias canalizava em
si a influência necessária para agir conforme a situação. No entanto,
esta canalização convergia a um ponto que para compreendê-lo não
basta apenas o exercício do poder por ele mesmo. Para Márcia da Silva
(2008), “entender o local e as relações de poder nele existentes, não
basta identificá-lo ao poder político. É preciso conceituá-lo como o
poder exercido econômico, social, cultural e simbolicamente” (p.70).
Os agentes mencionados acima se valeram destes atributos
sem sombra de dúvida, no entanto, o exercício de poder atribuído
ao contexto social, cultural e simbólico possui papel elementar neste
caso, pois o meio em que viviam os mais distintos agentes conformava
um só plano, fazendo da paisagem pampeana e fronteiriça o subsidio
25. Hoje às 16:00 recebi resposta ao meu telegrama para Golfarini dizendo-me que a soma
pedida foi depositada em Pelotas por não haver agência bancária aqui. Então, começarei a
organizar a compra dos artigos que consistem em cobertores, bombachas, roupas de baixo,
camisas e blusas cujos modelos e preços conhecerá Sua Excelência quando eu lhe levar os
detalhes [Tradução nossa]. MÁRQUEZ, Abelardo. Carta a Aparício Saraiva, Santana, 24
de maio de 1897. Museo Historico Nacional (MHN). Coleção Diego Lamas. Tomo 275, documento 077.
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SUMÁRIO
O caudilho e a Rainha da Fronteira: apontamentos sobre a relação entre
Aparício Saraiva e o município de Bagé durante as revoluções de 1896 e 1904
das questões sociais e humanas atribuindo a elas o valor simbólico
que influenciou no caudilhismo de Saraiva.
Desta forma, foi neste espaço que Aparício Saraiva procurou
organizar sua vida; a estreita relação com o Rio Grande do Sul
e, principalmente com Bagé, ia muito mais além das posses e dos
parentescos, fazendo com que o chefe político nacionalista percebesse
o valor da região tanto para seus negócios quanto para suas guerras.
O espaço fronteiriço entre Uruguai e Brasil desde longo tempo
é caracterizado por uma profunda e dinâmica interação, aspecto
este que o coloca em uma posição distinta onde a construção das
relações e das identidades se faz de uma maneira peculiar, assim
é importante enfatizar o colocado pela historiadora Ana Luiza
Reckziegel (2010) no que toca essa relação entre o estado brasileiro
Rio Grande do Sul e o Uruguai:
é importante destacar que o relacionamento entre o
Rio Grande do Sul e o Uruguai foi estruturado em uma
região na qual se reconhece uma identidade comum,
se bem que subordinada a Estados distintos. Esta área
compartilhada desde os primórdios de sua ocupação fez
esta região uma zona comum, não propriamente pelo
espaço que ocupa, mas sim pela história que as une.
Para tanto, a noção conceitual de região com a qual
imaginamos esta interação não pode ser vista como algo
previamente estabelecido, mas a partir de uma perspectiva de que esta região foi construída ao longo do processo histórico concreto. Nesse sentido, verificamos que
se formou nessa zona um espaço de autodeterminação
que só pode ser completamente apreendido se levarmos
em conta a posição diferenciada do Rio Grande do Sul
em relação ao restante do país seja por seu modelo econômico, seja pela peculiaridade de sua fronteira viva em
constante movimento (p. 1).
Assim, o espaço fronteiriço, além de conformar por si só uma
série de relações que ao longo do tempo vão se tornando características
deste ambiente, permite que seus habitantes se relacionem em um
dinâmica diferente de outros locais fazendo com que práticas sociais
distintas e neste caso, em uma esfera que abarca as relações de poder
que atuam em prol de objetivos, que por sua vez acabam por abarcar
um elo de situações que se apresentam de diferentes maneiras, sendo
a principal delas, a política.
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SUMÁRIO
O caudilho e a Rainha da Fronteira: apontamentos sobre a relação entre
Aparício Saraiva e o município de Bagé durante as revoluções de 1896 e 1904
Considerações finais
Muitos trabalhos já abordaram o aspecto regional fronteiriço
em suas mais diferentes formas. O caso da fronteira entre o estado
brasileiro do Rio Grande do Sul e a nação vizinha da República
Oriental do Uruguai fomentou durante os últimos anos um número
expressivo de pesquisas, que de modo geral refletiram acerca do papel
político e social desta fronteira, acordando a mesma como um espaço
de intenso movimento e conflitos constantes.
Como é sabido, os blancos de Aparício Saraiva mantinham
total controle sobre três dos cinco Departamentos fronteiriços26
entre Uruguai e Rio Grande do Sul, isto dava ao chefe nacionalista
uma profunda mobilidade neste espaço, capaz de articular-se nos
mais diversos setores, desde os negócios com o gado até os subsídios
revolucionários.
Para isto, Saraiva precisou organizar uma rede de relações que
ultrapassava a linha imaginária do Estado-Nação que divide Uruguai
e Brasil, passando a fazer parte de uma trama na qual o capacitava a
territorializar esta região fronteiriça.
Neste sentido, a trama de contatos desenhada nesta região
conformava um tecido de influências que movidos em torno de
distintos objetivos configuram nódulos de poder e neste contexto é
que se configuram as relações sociais sendo profundamente marcadas
por um discurso relacional condescendente a este determinado espaço
social-geográfico onde as representações adquirem um importante
papel dentro destas relações, sejam ela do cunho político, econômico
ou meramente associativo.
Em suma, a influência de Aparício só foi proporcionada pelas
relações sociais mantidas nessa fronteira, tendo o município de
Bagé como um potentado de seus arranjos, pautando desta forma, a
configuração das relações sociais que organizada por um sistema de
redes integradas a região fronteiriça entre Brasil e Uruguai tornaram
possível à liderança de Aparício Saraiva a partir da territorialização
deste espaço.
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26. A saber, os três Departamentos fronteiriços com domínio blanco eram: Rivera, Cerro Largo
e Treinta y Tres.
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SUMÁRIO
O caudilho e a Rainha da Fronteira: apontamentos sobre a relação entre
Aparício Saraiva e o município de Bagé durante as revoluções de 1896 e 1904
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472
SUMÁRIO
O caudilho e a Rainha da Fronteira: apontamentos sobre a relação entre
Aparício Saraiva e o município de Bagé durante as revoluções de 1896 e 1904
SILVA, Márcia da. Poder local: conceito e exemplos de estudo no Brasil. Sociedade
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MENA, Antônio. Carta a Abelardo Márquez, Bagé, 18 de julho de 1897. Museo
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Digital da Biblioteca Nacional. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/
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hemerotecadigital.bne.es/issue.vm?id=0004175896&page=46&search=&lang=es>.
Acesso em: 06/01/21.
473
SUMÁRIO
POR UMA HISTÓRIA OPERÁRIA DE BAGÉ (RS):
ASSOCIAÇÕES, IMPRENSA E
MILITÂNCIA (1889-1930)
André Vinicius Mossate Jobim1
474
SUMÁRIO
Por uma história operária de Bagé (RS):
associações, imprensa e militância (1889-1930)
1
Introdução
Nos últimos anos foi possível observar uma ampliação no
número de estudos sobre a história dos trabalhadores e trabalhadoras
no Rio Grande do Sul2. Entretanto, muitos deles ainda estão
concentrados nas cidades de Porto Alegre, Santa Maria, Pelotas e
Rio Grande. Portanto, inúmeros municípios ainda exigem um estudo
mais detalhado, de modo que se permita uma melhor compreensão
sobre a constituição dos mundos do trabalho no estado como um
todo. Esse é o caso de Bagé, cidade da região da Campanha, marcada
historicamente por uma imagem associada à produção agropecuária.
Embora esse imaginário esteja vinculado às práticas
desenvolvidas em âmbito rural, nossa proposta nesse artigo é
demonstrar que, entre os primeiros anos da República até meados
da década de 1930, Bagé também teve uma vida operária e urbana
intensa. Para isso, dividimos o texto em três momentos. No
primeiro, iremos destacar o surgimento das primeiras associações
operárias de Bagé: a Sociedade Protetora dos Artistas, a Liga
Operária e a União Operária. No segundo, abordaremos a produção
jornalística de grupos políticos e sindicais da cidade, sobretudo
durante a Primeira República (1889-1930). No terceiro e último,
trataremos brevemente da trajetória de vida de dois militantes:
1. Mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
2. Uma observação a ser feita é de que, embora saibamos das críticas extremamente
pertinentes sobre o uso do universal masculino para designar os diferentes gêneros, optamos por mantê-lo em grande parte do texto, por uma simples questão de
fluência. Ao leitor deve ficar claro que ao utilizarmos palavras como “operário” ou
“trabalhador”, estamos levando em consideração os gêneros diversos.
475
SUMÁRIO
Por uma história operária de Bagé (RS):
associações, imprensa e militância (1889-1930)
Venâncio Pastorini Sobrinho e Dorval Lamotte, integrantes do
grupo de “anarquistas históricos de Bagé”.
Para levarmos a cabo esta tarefa, cabe salientar que nos
orientamos pelas perspectivas teórico-metodológicas desenvolvidas
pela História Social do Trabalho, que ganharam maior visibilidade a
partir da década de 1960 com as obras de Edward Thompson e Eric
Hobsbawm. Tais autores combateram uma determinada concepção
de história que enfatizava somente fatos políticos e econômicos
associados às elites dominantes, passando a valorizar uma “história
vista de baixo”, que tratava os trabalhadores e trabalhadoras
como protagonistas conscientes de suas ações. As documentações
analisadas foram essencialmente livros, dissertações e teses sobre o
operariado sul-rio-grandense, bem como textos, panfletos e jornais
disponíveis no Arquivo Público e no Museu Dom Diogo de Souza,
ambos localizados em Bagé.
As primeiras sociedades operárias de Bagé
Para falarmos sobre as primeiras sociedades operárias de Bagé, é
necessário destacar que seu surgimento só pode ser compreendido se
levarmos em consideração o processo gradual de extinção da escravidão
no Brasil. Ainda no século XIX, Bagé contou com um considerável
contingente de trabalhadores escravizados, utilizado principalmente
nas atividades agropecuárias (MATHEUS, 2016). Especialmente a
partir de 1850, iniciou-se o desenvolvimento e a consolidação das
relações de trabalho livre, acompanhado de um intenso crescimento
urbano. A transição do ciclo charqueador da Zona do Sul do estado
para a Campanha marcou o desenvolvimento da indústria saladeril,
assentada essencialmente na mão-de-obra assalariada. Tal fato,
associado a outras circunstâncias, gerou um processo de modernização
que tornou Bagé uma das cidades mais importantes do Rio Grande do
Sul durante a Primeira República (1889-1930).
Exemplos desse processo foram o surgimento de grupos
expressivos de operários, a fundação de bancos, cinemas e teatros,
além da criação de uma série de outros empreendimentos que giravam
em torno das charqueadas, inclusive na área de transportes. Como
atesta Fernanda Soares, a construção da estrada de ferro Bagé-Rio
Grande, em 1884, responsável por atrair operários de várias cidades
do estado, foi “indispensável na nova dinâmica econômica que as
fronteiras adquiriram. [...]”, pois Bagé passou a absorver “rebanhos da
476
SUMÁRIO
Por uma história operária de Bagé (RS):
associações, imprensa e militância (1889-1930)
fronteira e do planalto que se destinavam anteriormente para Pelotas
ou para Montevidéu” (SOARES, 2006, p. 54-56).
Cabe observar que essas alterações econômicas, além de
modificarem o cenário do mercado de trabalho, fomentaram o
surgimento e a expansão de novas profissões e grupos de trabalhadores
e trabalhadoras. Esses aspectos acabaram por gerar uma significativa
transformação no processo de institucionalização das disputas de
classes em Bagé. O surgimento dessas novas profissões exigiu que os
trabalhadores se organizassem para enfrentar tais mudanças.
Entre essas formas de organização podemos destacar a
fundação de associações operárias mutualistas, que serviam como
entidades representativas desses novos grupos e buscavam garantir
o mínimo de segurança aos trabalhadores, em um momento em
que ainda não havia leis de proteção ao trabalho. Mesmo não tendo
um caráter efetivamente “político”, essas associações mutuais e
beneficentes foram fundamentais para construir uma ideia de classe
e de solidariedade entre os operários.
A primeira entidade desse tipo foi a Sociedade Protetora dos
Artistas, fundada em 1883. Entre seus objetivos estavam a prestação
de serviços médicos e funerários aos seus sócios. Embora possuísse
a denominação “artistas”, isso não significava necessariamente que
seus integrantes eram pessoas ligadas à cultura, como músicos,
atores, etc, mas referia-se às “artes e ofícios”, ou seja, profissionais e
artesãos. Essa constatação nos faz perceber que, embora congregasse
trabalhadores, o termo “operário” ainda não era utilizado, o que
demonstra que a condição de classe ainda não havia se definido
claramente naquele contexto. Sua primeira diretoria foi formada
por Augusto Celestino Loureiro Dias, José Augusto Souza, Francisco
Credidio e Narciso Madramon. De acordo com Elizabeth Fagundes,
a entidade existiu pelo menos até a década de 1990, abandonando
seu caráter assistencial para tornar-se uma entidade recreativa
(FAGUNDES, 2005, p. 414).
A segunda a surgir foi a União Operária de Socorro Mútuo e
Beneficente, em 1898. Essa chama a atenção pelo fato de possuir a
expressão “operário” na sua designação, evidenciando que o conceito
ganhava espaço no país nos primórdios da República. Assim como a
Sociedade Protetora dos Artistas, a União Operária também possuía
caráter assistencial e contava entre seus sócios com pessoas dos mais
diversos espectros políticos e econômicos. Isso necessariamente
demandava que seus integrantes tomassem posição no debate
477
SUMÁRIO
Por uma história operária de Bagé (RS):
associações, imprensa e militância (1889-1930)
ideológico que passava a ganhar contornos mais claros no Rio Grande
do Sul, com a criação de instituições e partidos políticos operários
vinculados aos ideais socialistas3. Nesse contexto, é interessante
refletir sobre o discurso de Ferdinando Martino, primeiro presidente
da entidade, realizado no dia de sua fundação, 24 de abril de 1898:
A Sociedade União Operária de Bagé, por não se achar
plenamente versada sobre os fins das Ligas Operárias
Socialistas e atendendo a que em Bagé não existem fábricas nem oficinas com número crescido de operários,
e atendendo também ao louvável procedimento de quase todos os chefes das poucas oficinas de trabalho que
pagam não só generosamente, mas que ainda tratam
seus empregados com acatamento de verdadeiros amigos e protetores, convinha fundar-se a sociedade com
o título de União Operária de Socorro Mútuo e Beneficente, pois que formando um pecúlio capaz, serviria
para socorrer a todos aqueles sócios que por doença ou
infortúnios da sorte se achavam sem recurso e sem trabalho (...) (CORREIO DO SUL, Bagé, 1º, mai. 1982, n.p).
Esse trecho ilustra o cuidado que Martino tinha em sua fala, ao
mencionar as Ligas Socialistas. Ao mesmo tempo que afirmava não se
achar “plenamente versado” sobre os fins dessas ligas, também referiase positivamente ao “louvável” procedimento dos chefes, os quais
“generosamente” pagavam salários e se colocavam como “protetores”
de seus empregados. A partir disso é possível interpretar que a União
Operária de Bagé não assumiu uma atitude de confronto com os
patrões, e visou construir uma relação de harmonia entre chefes e
operários, ao menos nos seus anos iniciais de funcionamento, como
veremos mais adiante.
Já no ano de 1913 foi fundada a Sociedade Beneficente Liga
Operária de Bagé, nos mesmos moldes assistenciais. Entretanto,
surge a seguinte dúvida: por que foi criada uma segunda associação
assumidamente “operária” na cidade, se a própria União Operária já
se colocava como representante dos setores vinculados ao trabalho?
Uma possível resposta foi dada por Lebindo Vieira, articulista do
jornal nacional A Voz do Trabalhador, em um artigo que publicou
sobre a situação operária em Bagé. Ele relata que, desde sua fundação,
em 1898, a União Operária vinha sendo controlada por um bloco de
patrões. Porém, finalmente, em maio de 1913, um grupo de operários,
conseguiu assumir a direção da entidade, fazendo com que esse bloco
3. Aqui fazemos referência ao Partido Socialista, criado em 1898 na cidade de Rio Grande, e à
Sociedade União Operária, também de Rio Grande, fundada em 1893, que teve no socialista
Antônio Guedes Coutinho uma de suas figuras mais destacadas.
478
SUMÁRIO
Por uma história operária de Bagé (RS):
associações, imprensa e militância (1889-1930)
patronal, incomodado com a derrota, se desligasse da entidade para
criar uma nova associação em novembro de 1913: a Liga Operária
(A VOZ DO TRABALHADOR, Rio de Janeiro, 1. Abr. 1914, p. 3).
Essa análise ganha importância no momento em que Adhemar da
Silva Jr. salienta que a União Operária, ao longo de sua existência,
ganhou notoriedade pelo seu empenho na propaganda socialista e
na organização dos trabalhadores de Bagé (SILVA JR., 2002, p. 3).
Assim, é provável que os militantes mais politizados no campo das
lutas operárias estivessem concentrados na União, enquanto que
na Liga estavam presentes os grupos patronais e seus respectivos
empregados, numa relação de dominação mais visível.
Por fim, em artigo sobre as Ligas Operárias no Rio Grande
do Sul, Beatriz Loner destaca que nos primeiros anos da República,
setores vinculados ao trabalho procuraram inserir-se nas instâncias
políticas do país, como meio de expressar seus próprios interesses.
Pelo fato desse setor ser ainda entendido de forma homogênea, as
diferenciações de classe não eram tão visíveis (LONER, 2010, p. 116).
Como demonstramos, o caso de Bagé não foi diferente, pois, mesmo
tendo entidades autoidentificadas como “operárias”, essas acabaram
por congregar, muitas vezes, interesses de amplos espectros políticos
e econômicos.
A imprensa operária em Bagé
A produção jornalística operária em Bagé foi expressiva,
quando comparada a outras cidades do interior. Entre os anos de
1889 e 1940 foi possível identificar ao menos cinco publicações de
caráter classista, e muitas outras que contaram com a participação de
militantes e integrantes das associações operárias locais.
O primeiro desses periódicos foi o jornal A Defeza, publicado
entre os anos de 1910 e 1911, dirigido por Álvaro Tavares Ribeiro e
Amantino de Oliveira Santos. Nas suas edições há textos que
discutem temas variados, tais como a necessidade de garantia de
direitos trabalhistas, a saúde dos operários afetados pela tuberculose,
e a importância dos trabalhadores se organizarem politicamente
em um partido próprio. Nesse último, especificamente, os autores
mencionam uma figura célebre para justificar a criação de um partido
operário: “É preciso que os operários não esqueçam o que disse Karl
Marx, o grande mestre do socialismo - que a emancipação da classe
só virá por obra dela mesmo” (A DEFEZA, Bagé, 28. Ago. 1910, p. 2).
479
SUMÁRIO
Por uma história operária de Bagé (RS):
associações, imprensa e militância (1889-1930)
Outro jornal de grande importância para o movimento operário
de Bagé foi A Dor Humana, ligado à União Geral dos Trabalhadores,
e editado por Venâncio Pastorini Sobrinho e Cecílio Vilar em 1920.
O seu conteúdo centra-se basicamente em alguns artigos que fazem
críticas à burguesia e ao capitalismo, e outros que elogiam algumas
medidas tomadas pela Rússia revolucionária de então. Um, em
especial, remete à questão do preconceito racial sofrido por um
trabalhador que tentou se associar a um grupo de tiro em Curitiba,
mas que foi proibido devido ao fato de ser negro. Também nos
chama a atenção que o texto final dessa edição tem como autor o
médico anarquista baiano Fábio Luz (A DOR HUMANA, Bagé, 28.
Set. 1920, p. 4), o que nos dá indícios tanto sobre a rede de relações
dos editores com outras partes do país, bem como sobre a orientação
libertária predominante na UGT. Adhemar da Silva Jr. ressalta que
esta agremiação política, além de ser comandada por anarquistas
em várias cidades do estado como Santa Maria e Rio Grande, teve
participação nos 2º e 3º Congressos Operários do Rio Grande do Sul,
em 1920 e 1925 (SILVA JR., 2002, p. 2).
Em 1913 surgiu uma nova publicação operária intitulada O
Trabalho, que se definia como “órgão dos interesses e defesa do
operariado”. Seu redator foi o militante negro Nicolau Tolentino
Marques, que teve participação efetiva em diversas associações
operárias e contribuiu em outros periódicos do município, incluindo
a imprensa negra (SILVA, 2018, p. 140). Nessa edição de novembro
de 1913, o jornal fez ironias à criação da Liga Operária em Bagé,
afirmando que esta serviria somente para combater o operariado
independente, tendo, inclusive, entre seus sócios beneméritos figuras
importantes da elite econômica local (O TRABALHO, Bagé, 30.
Nov. 1913, p. 1). Mesmo não tendo uma filiação ideológica clara, pois
em sua página inicial podemos ler que os editores acolherão todas
“as ideias liberais e modernas”, dois artigos em tom visivelmente
anticlerical, e um texto de Piotr Kropotkine, importante anarquista
russo, nos dão evidências sobre como as concepções libertárias
ganhavam espaço nos jornais operários de Bagé.
A penúltima publicação que gostaríamos de destacar é o
jornal Emancipação, publicado no ano de 1929. Esse quinzenário
se apresentava como uma publicação do Grupo Cultural Livres
Pensadores, formado basicamente pelos anarquistas históricos
de Bagé: Venâncio Pastorini Sobrinho, Cecílio dos Santos, e os
irmãos Dorval e Sebastião Lamotte. Nas duas edições que foram
preservadas, podemos encontrar diversos textos que procuram
480
SUMÁRIO
Por uma história operária de Bagé (RS):
associações, imprensa e militância (1889-1930)
definir o que seria o chamado comunismo anarquista por eles
defendido. Entre as características são destacadas a defesa da
ciência, o combate à propriedade privada, a defesa do amor livre,
o caráter internacionalista dos ideais operários, e a concepção de
uma educação anticlerical. Por fim, chama a atenção um texto que
debate questões relacionadas à exploração da mulher. Nele, o autor
destaca que o sexo feminino é duplamente escravo: do homem
e do capital; além disso, faz uma dura crítica à prostituição, seja
através da venda do corpo ou por meios “legais” como o matrimônio
(EMANCIPAÇÃO, Bagé, 1º mar. 1929, p. 1). Dentre os periódicos
aqui citados, Emancipação é o único que se referia objetivamente à
questão da desigualdade entre os gêneros.
Por fim, analisaremos o jornal sindical Eco Padeiral, que embora
tenha sido publicado em 1940, nos faz pensar sobre o alto nível de
organização dos padeiros no município. De acordo com Adhemar
da Silva Jr., eles formavam uma das categorias mais combativas do
movimento operário em Bagé, tanto que se tornaram representantes
da UGT no Segundo Congresso Operário do Rio Grande do Sul em
1925. Nessa edição de 1940 que foi preservada, podemos encontrar uma
série de orientações sobre como o padeiro deveria agir para fortalecer
o sindicato. Entre os títulos de algumas seções, podemos destacar
“Como se acaba com uma entidade”, que sublinhava a importância de
participar das reuniões do sindicato, ou então “Os dez mandamentos
do operário panificador”, que alertava, entre outras coisas, para que
o trabalhador, “quando recebe seu ordenado com a mensalidade do
sindicato descontado” não deve “ficar contrariado, nem resmungar
impropérios” (ECO PADEIRAL, Bagé, 1940, p. 3). Isso evidencia que
a contribuição sindical era uma das grandes dificuldades enfrentadas
pela categoria. Além dessas seções, há muitos esclarecimentos legais,
que explicam detalhadamente o funcionamento da Lei de Férias, a
criação da Justiça do Trabalho, etc. De forma geral, podemos afirmar
que este periódico, por ser voltado a um grupo específico, pouco se
referia a questões político-ideológicas mais amplas do proletariado, e
para que se compreenda isso de forma adequada, é necessário ter em
mente que o ano de 1940 marcava o auge da ditadura estadonovista
de Getúlio Vargas.
Para concluirmos esta seção sobre a imprensa operária de Bagé,
é possível perceber inicialmente, que, embora não tenham restado
muitas edições de cada um desses periódicos, eles permitem captar
importantes aspectos da história operária local.
481
SUMÁRIO
Por uma história operária de Bagé (RS):
associações, imprensa e militância (1889-1930)
O primeiro é o fato de que, embora Bagé estivesse localizada
no interior do Rio Grande do Sul, autores e ideias circulavam
com grande intensidade entre os militantes letrados da cidade.
Conceitos como anarquismo, comunismo, socialismo, e autores
como Karl Marx e Piotr Kropotkin apareciam com certa frequência
nas páginas desses jornais. O segundo refere-se à ampla rede de
comunicações estabelecida com militantes de outros estados. Foi
possível identificar, por exemplo, artigos do médico baiano Fábio
Luz e do professor carioca José Oiticica, figuras importantes do
movimento operário em nível nacional. O terceiro e último aspecto
que gostaríamos de trazer à reflexão é a variedade dos debates
desenvolvidos nesses órgãos de imprensa. Temas como a necessidade
ou não de um partido operário para a classe trabalhadora; os
problemas gerados pelo preconceito racial; a dupla exploração
sofrida pelas mulheres; o papel ideológico cumprido pela Igreja em
associação com a dominação de classe, enfim, todas essas questões
eram pensadas, refletidas e discutidas pelos operários bajeenses nas
páginas de seus jornais. Vistas em conjunto, tais situações nos fazem
perceber como a cidade de Bagé, embora tivesse sua economia
sustentada pela agropecuária, também possuía uma vida intelectual
e urbana pujante nas primeiras décadas da República.
Militantes anarquistas em Bagé: as trajetórias
de Dorval Lamotte e Venâncio Pastorini
Sobrinho
Dorval Lamotte nasceu em Bagé, no dia 21 de agosto de 1903.
Foi acadêmico do curso de Direito, editor do jornal anticlerical O
Confessado (1926), e redator do periódico O Teimoso, ligado ao clube
carnavalesco negro As Teimosas. Após deixar Bagé, casou em 1931 com
a poetisa Maura de Senna Pereira na cidade de Florianópolis, para a
qual se mudou devido à Revolução de 1930, fixando-se posteriormente
em Porto Alegre, em 1933. Foi integrante do Grupo Cultural dos
Livres Pensadores, responsável pela publicação do jornal anarquista
Emancipação, já mencionado anteriormente. Além de Lamotte, o
grupo era constituído por seu irmão, Sebastião Lamotte, Cecílio dos
Santos, Francisco Fernandes e Venâncio Pastorini, considerados os
“anarquistas históricos” de Bagé (MARÇAL; MARTINS, 2008, p. 67).
A trajetória de Dorval Lamotte abre espaço para se pensar
diversas questões que dizem respeito à vida dos militantes operários
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SUMÁRIO
Por uma história operária de Bagé (RS):
associações, imprensa e militância (1889-1930)
gaúchos. Uma delas envolve a sua saída de Florianópolis para Porto
Alegre. De acordo com as fontes pesquisadas, essa mudança ocorreu
porque Lamotte passou a ocupar um cargo público na capital
gaúcha após a Revolução de 1930 (SCHOREDER, 1997, p. 72). Pelas
menções encontradas no jornal A Federação (Porto Alegre, 18. Jul.
1933, p. 4), ele ocuparia uma função no Poder Executivo do estado,
ou seja, no governo de Flores da Cunha, que, naquele contexto,
ainda era um aliado do presidente Getúlio Vargas. Como salienta
Benito Schmidt, ao discutir a influência das teorias cientificistas e
positivistas no movimento operário gaúcho no início do século XX,
essas concepções parecem
[...] ter contribuído para a adesão de alguns dos mais
destacados líderes socialistas e comunistas - mas não
dos anarquistas, entre os quais a influência desta doutrina era menor, pelo menos segundo as fontes consultadas - do estado ao PRR e, no pós-30, ao governo trabalhista de Vargas, oriundo das fileiras do PRR, e que
também bebeu dos ensinamentos positivistas (SCHMIDT, 2001, p. 123) [grifo nosso].
Como se pode perceber, essa mudança de perspectiva política
na trajetória de alguns militantes não era nova, porém, ganha
relevância por se tratar de um caso raro de militante anarquista que
aderiu ao governo varguista.
A outra questão diz respeito às referências de violência
cometidas por ele contra sua esposa, Maura de Senna Pereira, com
quem foi casado até 1940. Em entrevista concedida no ano de 1990,
a escritora revelou que Lamotte teria a ameaçado diversas vezes
com um revólver, exigindo que se exonerasse do seu trabalho como
professora em Santa Catarina (KALCKMANN, 2007, p. 60). Isso
ilustra as limitações dos discursos de esquerda da época, que, embora
defendessem lógicas de igualdade entre os sexos, eram marcados, em
muitos casos, por práticas de controle e violência contra as mulheres.
Esses dois fatores aqui referenciados abrem perspectivas para
discutir as relações de gênero na vida de militantes de esquerda
no Rio Grande do Sul, e a ambiguidade que envolve a ocupação de
cargos públicos por anarquistas após a Revolução de 1930 no governo
de Getúlio Vargas.
Diferentemente de Lamotte, Venâncio Pastorini Sobrinho
seguiu até o final de sua vida defendendo os ideais libertários. Nascido
na cidade de Rio Grande (RS) em 12 de março de 1885, atuou na Liga
Operária da cidade, e, ao mudar-se para Bagé, tornou-se fundador da
483
SUMÁRIO
Por uma história operária de Bagé (RS):
associações, imprensa e militância (1889-1930)
União Geral dos Trabalhadores, em 1919. Foi editor do jornal A Dor
Humana, também em 1919, e fundador de duas entidades culturais
anarquistas: Os semeadores e o Grupo Cultural dos Livres-pensadores.
Em 1931 foi redator do periódico Emancipação, e em 1946 tornou-se
editor do jornal Novo Dealbar, juntamente com o anarquista espanhol
Reduzindo Colmenero (MARÇAL, 1995, p. 137-138).
Sua militância foi intensa e muitos panfletos dos quais foi
o autor, se perderam. Nas fontes pesquisadas, duas obras foram
identificadas. A primeira foi Cartilha libertária sem Máscara (1962),
na qual o autor tece críticas pesadas ao capitalismo burguês e à
Igreja Católica, entendidas como bases de sustentação do poder que
impede a organização de um sistema social justo e harmonioso, que
somente o anarquismo poderia proporcionar. O outro livreto tem
o título de Em Marcha para o Socialismo (1946), em que Pastorini
diferencia o socialismo soviético do socialismo libertário, destacando
que a existência do Estado, sob qualquer forma, é algo nefasto aos
trabalhadores. Sem uma lógica muito clara na sua escrita, o autor
também faz avaliações sobre Borges de Medeiros, Getúlio Vargas e o
Partido Trabalhista Brasileiro.
A partir dos documentos em questão, fica evidente a defesa
apaixonada de Pastorini pelo estudo e pela educação como meio de
tomada de consciência e de transformação social: “o estudo forma
homens livres, e a cultura forma coletividades conscientes de seus
direitos e deveres” (SOBRINHO, 1962, p. 32). Esse traço, aliás,
é uma característica histórica dos grupos libertários brasileiros,
responsáveis, por exemplo, pela criação das chamadas Escolas
Modernas, que existiram em São Paulo e Porto Alegre no começo
do século XX. Nesse sentido, a impressionante produção escrita do
autor, mostra sua crença na palavra como forma de difundir os ideais
anarquistas. Allyson Viana destaca que, já na década de cinquenta,
[...] além dos livros da [editora] Progresso, de Salvador, apenas as edições de autor do anarquista Venâncio
Pastorini Sobrinho, de Bagé, Rio Grande do Sul, representaram exemplares de edição libertária fora das duas
maiores capitais do país. Pastorini foi responsável, já
destacamos, entre os anos 1940 e 1960, por dezenas de
boletins, panfletos, folhetos e opúsculos escritos, editados e distribuídos por ele próprio na região Sul e que
chegavam aos militantes de outras regiões via correspondência postal (VIANA, 2014, p. 258-259)
Assim, quando comparamos as trajetórias de Pastorini e Lamotte,
conseguimos vislumbrar de forma concreta como as circunstâncias
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SUMÁRIO
Por uma história operária de Bagé (RS):
associações, imprensa e militância (1889-1930)
particulares interferem nos rumos que cada indivíduo dá à sua
própria vida. Mesmo tendo militado juntos, escrito para os mesmo
jornais e frequentado as mesmas associações, ambos acabaram por
tomar direções opostas em termos ideológicos: Pastorini manteve-se
fiel aos ideais anarquistas até o seu falecimento, e Lamotte acabou se
adaptando à nova realidade política que se estabeleceu no país após
1930.
História operária em Bagé: um campo de
estudos em aberto
Evidentemente, todos esses indícios que buscamos sistematizar
no presente artigo, por terem caráter introdutório, ainda necessitam
de maior consistência e reflexão mais apurada por parte de outros
historiadores. Mesmo assim, entendemos que os primeiros passos
deviam ser dados, até mesmo para que novas pesquisas consigam
trazer à luz elementos que corroborem ou questionem as hipóteses
aqui levantadas.
A primeira delas é a de que o surgimento das primeiras entidades
operárias da cidade, que foram a Sociedade Protetora dos Artistas,
mas, sobretudo, a Liga Operária e a União Operária, só ganharam
importância com o processo de desenvolvimento urbano e com o
estabelecimento de um mercado de trabalho assalariado na segunda
metade do século XIX. A institucionalização dessas sociedades aponta
não apenas a expansão do operariado local em termos numéricos, mas
atesta um processo gradual de diferenciação interna das entidades
de classe em Bagé, em que a União Operária parece representar os
interesses de uma militância mais politizada e ideológica, que buscou
valorizar a imagem o operário em detrimento do patrão, enquanto
a Liga Operária estaria vinculada a uma concepção política que
privilegiava uma visão mais harmônica entre capital e trabalho.
A segunda hipótese é de que a intensa produção jornalística
das associações sindicais e operárias de Bagé aponta como uma parte
desses trabalhadores vivenciava e conhecia os grandes debates que
ocorriam no centro do país e até mesmo fora dele, em outras partes
do mundo, mantendo uma rede de relações políticas, de troca de
ideias e de solidariedade, que ultrapassavam largamente os limites de
uma cidade do interior do Rio Grande do Sul. A partir desses circuitos
que foram constituídos, foi possível perceber vários aspectos que
estavam presentes nas páginas dessas publicações, tais como as ideias
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SUMÁRIO
Por uma história operária de Bagé (RS):
associações, imprensa e militância (1889-1930)
anarquistas, os problemas enfrentados pelas mulheres, a necessidade
de fortalecer os sindicatos, os casos evidentes de preconceito racial,
a presença de sujeitos negros na direção dos jornais, os embates
ideológicos travados internamente entre as entidades, e toda uma
série de circunstâncias que se relacionavam diretamente com a vida
desses trabalhadores. Em que pese o caráter lacunar dessa produção,
quando observada em conjunto, pode oferecer evidências de profunda
importância para o pesquisador da área de história do trabalho no
Rio Grande do Sul
Nossa terceira hipótese é a de que, embora tenhamos o
costume de estudar os operários a partir de um viés coletivo, a
análise de trajetórias individuais pode trazer informações novas,
que colocam em xeque determinadas interpretações. Os casos de
Venâncio Pastorini e Dorval Lamotte são exemplos que confirmam,
mas também questionam certas leituras. A vida de Pastorini, por
exemplo, reitera a ideia de que, em linhas gerais, poucos militantes
anarquistas abandonaram suas concepções políticas, pois ele
manteve-se libertário até o final de sua vida. Em contrapartida, seu
camarada de lutas Dorval Lamotte considerou pertinente a entrada
na vida política dentro da estrutura de poder que se organizou
no país após 1930. Em outras palavras, mesmo sendo raro um
anarquista mudar de posição política nesse período, foi exatamente
o que ocorreu com esse militante. O que queremos deixar claro
é que esse tipo de informação geralmente só pode ser obtida no
momento em que nos debruçamos sobre os aspectos biográficos
de determinados indivíduos. Esse mergulho nas particularidades
de uma trajetória pode trazer à tona aquilo que uma análise mais
ampla não conseguiria perceber.
A nossa última hipótese é de que Bagé tornou-se o principal
núcleo anarquista gaúcho no final da década de vinte. Os indícios já
foram dados ao longo do texto, mas serão brevemente retomados aqui.
Entre eles destacamos a fundação da União Geral dos Trabalhadores,
em 1919, entidade esta que por muito tempo foi uma das instituições
mais representativas do proletariado bageense, e que era comandada
pelas principais lideranças anarquistas da cidade. Seus integrantes
participaram de diversos congressos estaduais e nacionais, sempre
pautados pelos ideais libertários. Além disso, três dos principais
periódicos operários eram editados por militantes anarquistas ou
publicavam textos de autores vinculados a essa corrente, como
era o caso de O Trabalho, A Dor Humana, e Emancipação. Por
fim, o município ficou conhecido pela existência de um grupo de
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SUMÁRIO
Por uma história operária de Bagé (RS):
associações, imprensa e militância (1889-1930)
anarquistas históricos formado por Venâncio Pastorini Sobrinho,
Cecílio dos Santos, os irmãos Dorval e Sebastião Lamotte e Francisco
Fernandes. Para acrescentar um último argumento, Beatriz Loner
destaca que Bagé acabou por se tornar o maior centro libertário
do estado no período, tendo recebido inclusive a sede da FORGS
(Federação Operária do Rio Grande do Sul) entre 1927 e 1928, anos
que demarcaram o declínio do anarquismo em nível nacional, em
detrimento do avanço do comunismo, que rapidamente ganhava
espaço (LONER, 2011, p. 193).
Assim, levando em consideração as nossas proposições, tornase indispensável que novas pesquisas se realizem, pois, certamente,
as hipóteses aqui desenvolvidas são de caráter introdutório, e exigem
outras fontes e informações que possam revelar diferentes aspectos
sobre a história do operariado em Bagé.
Referências
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história. 2ª ed., Porto Alegre: Evangraf, 2005.
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SUMÁRIO
Por uma história operária de Bagé (RS):
associações, imprensa e militância (1889-1930)
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Brasil - 1913-1980. Dissertação de mestrado. Pelotas: PPGH/ICH - UFPEL, 2018.
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EMANCIPAÇÃO, Bagé, 1º mar. 1929.
ECO PADEIRAL, Bagé, 1940.
O TRABALHO, Bagé, 30. nov. 1913.
A DOR HUMANA, Bagé, 28. set. 1920.
A DEFEZA, Bagé, 28. ago. 1910.
A VOZ DO TRABALHADOR, Rio de Janeiro, 1. abr. 1914.
CORREIO DO SUL, Bagé, 1º, mai. 1982
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TEXTO E CONTEXTO EDITORA
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TEXTO E CONTEXTO EDITORA
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