Academia.eduAcademia.edu

História de Bagé: novos olhares

2021, Gustavo Andrade, Maria Medianeira Padoin e Clarisse Ismério , Texto e Contexto Editora

Quanto à organização, procurou-se estruturar o livro em duas partes, por temáticas gerais, sendo a primeira, Patrimônio, Cultura e Sociedade, e a segunda, Fronteira, Economia e Política, cada uma delas com um prefácio escrito por dois importantes nomes bajeenses: Elizabeth Macedo de Fagundes e José Carlos Teixeira Giorgis, respectivamente. A obra conta, em sua capa, com fotografia cedida pelo eminente fotógrafo bajeense Eurico Salis e será composta por 22 capítulos escritos por autores convidados, dentre os quais historiadores, museólogos ou pesquisadores pertencentes a outras áreas que possuam estudos que contemplem a cidade de Bagé." (trecho da introdução)

©2021Gustavo Figueira Andrade; Clarisse Ismério; Maria Medianeira Padoin Todos os direitos reservados aos organizadores Capa: Dyego Marçal sobre as fotos de Eurico Salis, que cedeu gentilmente as duas imagens. Diagramação: Texto e Contexto Editora Supervisão Editorial: Gustavo Andrade H673 História de Bagé: novos olhares [livro eletrônico]/ Gustavo Andrade; Maria Medianeira Padoin; Clarisse Ismério (Org.). Ponta Grossa: Texto e Contexto, 2021. 490p.; il. E-book - PDF Interativo ISBN e-book: 978-65-88461-38-9 DOI: 10.54176/RGTM8538 1. Rio Grande do Sul -História. 2. Bagé - História. 3. Bagé – Patrimônio histórico. 4. Bagé – Memória. 5, Bagé – Colonização. I. Andrade, Gustavo (Org.); II. Padoin, Maria Medianeira (Org.). III. Ismério, Clarisse (Org.). IV. T. CDD: 981.65 Ficha Catalográfica Elaborada por Maria Luzia F. B. dos Santos CRB 9/986 Todos os direitos reservados aos organizadores. *Os textos publicados neste livro são de responsabilidade dos autores. Texto e Contexto Rua Eduardo Bonjean, 375 Ponta Grossa - PR (42)988834226 www.textoecontextoeditora.com,br [email protected] CONSELHO EDITORIAL Presidente: Dra. Larissa de Cássia Ribeiro Antunes (UEPG) Membros: Dr. Fábio Augusto Steyer (UEPG) Me. Anderson Pedro Laurindo (UTFPR) Dra Marly Catarina Soares (UEPG) Dra. Naira de Almeida Nascimento (UTFPR) Dra Letícia Fraga (UEPG) Dra. Anna Stegh Camati (UNIANDRADE) Dr. Evanir Pavloski (UEPG) Dra. Eunice de Morais (UEPG) Dra. Joice Beatriz da Costa (UFFS) Dra. Luana Teixeira Porto (URI) Dr. César Augusto Queirós (UFAM) Dr. Valdir Prigol (UFFS) Dr. Ubirajara Araujo Moreira (UEPG) Dr. Luís Augusto Fischer (UFRGS) Dra. Clarisse Ismério (URCAMP) Dr. Nei Alberto Salles Filho (UEPG) Dr. Ana Flávia Braun Vieira (UEPG) SOBRE OS ORGANIZADORES Gustavo Figueira Andrade – Graduado em História (Bacharelado) pela Universidade Federal de Pelotas. Especialista em Ensino Técnico e Profissional (FASEG). Mestre e Doutor em História pela Universidade Federal de Santa Maria, nesta última etapa foi Bolsista CAPES/ FAPERGS, com período de Doutorado Sanduíche (Edital CAPES PDSE 041/2018) na Universidade Nacional de Mar del Plata. É membro do Grupo de Pesquisa da UFSM/CNPq História Platina: política, sociedade e instituições, do Instituto Histórico e Geográfico de Pelotas e autor de livros. Clarisse Ismério – Graduada em História pela PUCRS em 1992 (licenciatura e bacharelado). Em 1995 concluiu o Mestrado e o Doutorado em 1999, no Programa de Pós-Graduação em História, da PUCRS. Em 1995 publicou pela Edipucrs o livro ``Mulher: a Moral e o Imaginário 1889-1930”, que foi reeditado pela Ediurcamp em 2018. Atualmente é coordenadora do Curso de História da URCAMP, onde desenvolve também atividade de professora e pesquisadora. Autora de livros de educação patrimonial, Sarau Noturno (Chiado, 2016) e Pequenos Detalhes de Bagé (Ediurcamp,2019). Desenvolveu em 2020 o projeto de pósdoutorado, sob orientação da Profa. Dra. Edla Eggert, no Programa de Pósgraduação em Educação, da PUCRS. Maria Medianeira Padoin – Professora Titular do Departamento De História da Universidade Federal de Santa Maria; Professora do Programa de Pós-Graduação em História e do Programa de PósGradução em Patrimônio Cultural(Profissional); Doutora em História pela UFRGS e Mestre em História Pela UFPR. Coordenadora do Grupo de Pesquisa CNPq/UFSM História Platina: sociedade, poder e instituições; Coordenadora do Comitê Acadêmico História, Regiões e Fronteiras da AUGM (Associação das Universidades do Grupo Montevidéu); Integra a Cátedra Unesco sediada na UFSM Fronteiras e Migrações. É membro do Instituto Histórico de São Leopoldo.Possui livros, capítulos de livros, artigos, trabalhos publicados, bem como coordena projetos de Extensão pela UFSM. É representante da UFSM na Comissão de Educação, Cultura e Comunicação do aspirante Geoparque Quarta Colônia junto à UNESCO. SUMÁRIO Sumário 6 Introdução....................................................................10 P arte I - P atrImônIo , C ultura e S oCIedade Prefácio.........................................................................16 Preservação da memória documental de bagé.........24 Jorge Alberto Soares Cruz Luciana Souza de Brito Maria Medianeira Padoin A trajetória da documentação da família silva tavares: do acesso privado ao público visando a difusão.......................38 Fernanda Kieling Pedrazzi Gustavo Figueira Andrade Tipologias e simbolismos do acervo do cemitério patrimonial da santa casa de caridade de bagé............................58 Clarisse Ismério Vila santa thereza: patrimônio, memória e audiovisual...........................80 Adriana Gonçalves Ferreira A visualidade da phenix: fotografia e imprensa ilustrada em bagé...............102 Luísa Kuhl Brasil Práticas associativas negras em bagé: imprensa, carnaval e clubes sociais.........................124 Tiago Rosa da Silva Rafael Rosa da Silva O instituto municipal de belas artes: estado do conhecimento e perspectivas para futuras abordagens...........................................146 Rafael Rodrigues da Silva Luís Borges dos Santos Júnior Alessandro Carvalho Bica As primeiras décadas do século xx: um balanço sobre a educação republicana no município de bagé/rs............................................168 Alessandro Carvalho Bica O “escrínio” de andradina de oliveira e o protagonismo feminista na cidade de bagé/rs (1898).............................................192 Clarisse Ismério Edla Eggert P arte II - e ConomIa , F ronteIra e P olítICa Prefácio.......................................................................212 Ferrovia na província de São pedro: o caso da estrada de ferro rio grande – bagé.......222 Maira Eveline Schmitz A exploração da mão de obra escrava na pecuária (campanha Gaúcha, segunda metade do século xix).................242 Marcelo Santos Matheus Os trabalhadores da charqueada industrial nos dados da delegacia regional do trabalho do rio grande do sul...............................260 Aristeu Elisandro Machado Lopes Elites, família e riqueza na pecuária gaúcha: o caso dos estancieiros e charqueadores de bagé (c. 1850-1930)..........................................280 Jonas Moreira Vargas A família delabary......................................................305 Claudio Antunes Boucinha O caso dos valdenses: imigração e redes de relação de uma comundiade italina protestante a partir da fronteira sul....................332 Arthur Engster Varreira Os alemães-russos de aceguá: as migrações dos menonitas......................................350 Carlos Eduardo Piassini Os “turcos” estão chegando: os imigrantes sírios e libaneses em bagé.................366 Júlio Bittencourt-Francisco Uma região em armas: a delimitação de uma região conformada pela guerra durante o século xix no espaço platino.................388 Gustavo Figueira Andrade O general joão nunes da silva tavares e a cidade de bagé: do contexto da proclamação da república à revolução federalista.....................410 Gustavo Figueira Andrade Aristeu Elisandro Machado Lopes De bagé à europa: os espaços de circulação de gaspar silveira martins....................432 Monica Rossato O caudilho e a rainha da fronteira: apontamentos sobre a relação entre aparício saraiva e o município de bagé durante as revoluções de 1896 e 1904.....................456 Pablo Rodrigues Dobke Por uma história operária de bagé (rs): associações, imprensa e militância (1889-1930).......474 André Vinicius Mossate Jobim SUMÁRIO introdução 10 SUMÁRIO Introdução A iniciativa desta obra e sua organização surgiram a partir de reflexões do historiador Dr. Gustavo Figueira Andrade1 e das historiadoras Dr.ª Maria Medianeira Padoin2 e Dr.ª Clarisse Ismério3, que lhes permitiram identificar algumas lacunas na historiografia sobre a produção do conhecimento acadêmico-científico e de sua divulgação, acerca da região da Campanha Meridional, especificamente sobre a cidade de Bagé. Observaram, também, que apesar de nos últimos anos ter havido um certo crescimento em relação ao número de pesquisas, no âmbito acadêmico, que contemplam Bagé e a região da Campanha Meridional, esses trabalhos ainda não tinham sido divulgados. Foi com base nessa observação, portanto, que foi idealizada a proposta de se organizar uma obra que reunisse parte desses estudos que evidenciam o que vem sendo produzido de novos conhecimentos e olhares sobre essa história local e regional e, ao mesmo tempo, valorizasse as instituições bajeenses e as famílias que preservam seus acervos e, consequentemente, a memória local. Assim, a ideia da publicação desses escritos foi evoluindo até que, finalmente, concretizou-se na edição deste livro que possibilitará à comunidade bajeense (e não só) ter acesso aos resultados dessas pesquisas, até então desconhecidos, e o retorno de sua atenção para com a preservação de seu patrimônio histórico, cultural e documental. 1. Mestre e Doutor em História pela Universidade Federal de Santa Maria. 2. Doutora em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; professora Programa de Pós-Graduação em História da UFSM e do Programa de Pós-Graduação em Patrimônio Cultural da UFSM. 3. Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; coordenadora do curso de História da Universidade da Região da Campanha. 11 SUMÁRIO Introdução Cabe ressaltar que se trata de uma obra que pretende, por um lado, dar continuidade ao trabalho precursor dos antepassados que marcaram época e deixaram importantes registros4 sobre a História de Bagé, a exemplo de Jorge Reis5, Eurico Salis6 e Tarcísio Antônio Costa Taborda7, até os estudos mais recentes realizados por pesquisadores locais como: Elizabeth Macedo de Fagundes8, Mário Nogueira Lopes9, Yara Maria Botelho Vieira e Carlos Fonttes10, Élida Garcia11, Cláudio Lemieszek12, Carlos Roberto Martins Brasil13, Cândido Pires de Oliveira14, Eron Vaz Mattos15, Cássio Gomes, Edgard Lucas16, , Ivan César dos Santos Pinheiro17, Diones Piazer Franchi18, dentre outros. 4. Registro aqui minha homenagem in memoriam a historiadora, colega e amiga Elaine Maria Tonini Bastianello, autora do livro: BASTINAELLO, Elaine M. T. A memória retida em pedra: a história de Bagé inscrita nos monumentos funerários (1858-1950). Santa Maria: Ed. Pallotti, 2016. 5. REIS, Jorge. Homens do Passado. Bagé: URCAMP, 1983 6. SALIS, Eurico J. História de Bagé. Porto Alegre: Globo, 1955. p. 289. 7. TABORDA, Tarcísio. O Sítio de Bagé, 1893-1894. Revista Militar Brasileira. Separata. v. XCIII, Ano LVI, n.1, jan./mar., 1970. _______. A Igreja de São Sebastião de Bagé. S/E, Bagé, 1975. TABORDA, Tarcísio. GARCIA, Élida Hernandes (Org.). Bagé de Ontem e de Hoje. Bagé: Ed. Ediurcamp, 2015. 8. FAGUNDES, Elizabeth Macedo de. Inventário Cultural de Bagé: um passeio pela história. Bagé: Evangraf, 2005. 9. LOPES, Mario Nogueira. Bagé: fatos e personalidades. Porto Alegre: Evangraf, 2007. 10. FONTTES, Carlos; VIEIRA, Yara Maria Botelho. As estâncias contam história. Bagé. Santa Maria: Pallotti, 2005. 11. GARCIA, Elida Hernandes. Escritores Bageenses. Bagé: Praça da Matriz, 2006. 12. LEMIESZEK, Cláudio de Leão. Bagé. Relatos de sua história. Porto Alegre: Martins Livreiro, 2000. LEMIESZEK, Cláudio de Leão; GARCIA, Élida. Guia incompleto das primazias de Bagé. Bagé: Ediurcamp, 2013. 13. BRASIL, Carlos Roberto Martins. Pioneiros açorianos: notas históricas e genealógicas. Porto Alegre: Edigal; Renascença, 2009. 14. OLIVEIRA, Cândido Pires de. Alma, Terra e Sangue: fragmentos da história das Palmas. 2. ed. Bagé: S/E, 2011. 15. MATTOS, Eron Vaz. Aqui – Memorial em Olhos D’Agua. Edição do Autor, 2 ed. 2019. 16. LOPES, Cássio Gomes; LUCAS, Edgard Lopes. A Rainha da Fronteira. Fragmentos da História de Bagé. Santa Maria: Ed. Pallotti, 2015. 17 PINHEIRO, Ivan César dos Santos. Uma breve história do forte Santa Tecla. 1. ed. Bagé: LEB - Livraria e Editora Bajeense, 2015. v. 1. 92p 18. FRANCHI, Diones Piazer. O ensino de história através da tv e as mídias digitais. Dissertação (Mestrado Profissional em História). Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande, 2016. 12 SUMÁRIO Introdução É importante destacar que o considerável volume de obras produzidas por esses autores revela o interesse dos bajeenses pela sua história, pela preservação da memória e da identidade locais. Além do mais, são trabalhos que constituem referências primordiais para todos os que procuram realizar pesquisas históricas sobre a vida cultural, política, social, econômica e política do município de Bagé. Para a organização do livro, partiu-se da compreensão de que a História é uma ciência capaz de criar uma orientação cultural da vida prática humana, estabelecida por problemas e carências de orientação no presente19. Portanto, não é estática no tempo; foram muitas as transformações ocorridas e que levaram a renovações teóricometodológicas no âmbito historiográfico. Pode-se falar, também, de um amadurecimento gradual de ideias que vinham sendo propostas, anteriormente, novos enfoques de pesquisa histórica, pois, segundo Christopher Hill, “cada geração formula novas perguntas ao passado e encontra novas áreas de simpatia à medida que revive distintos aspectos das experiências de suas predecessoras”20. Ainda quanto à organização, procurou-se estruturar o livro em duas partes, por temáticas gerais, sendo a primeira, Patrimônio, Cultura e Sociedade, e a segunda, Fronteira, Economia e Política, cada uma delas com um prefácio escrito por dois importantes nomes bajeenses: Elizabeth Macedo de Fagundes e José Carlos Teixeira Giorgis, respectivamente. A obra conta, em sua capa, com fotografia cedida pelo eminente fotógrafo bajeense Eurico Salis e será composta por 22 capítulos escritos por autores convidados, dentre os quais historiadores, museólogos ou pesquisadores pertencentes a outras áreas que possuam estudos que contemplem a cidade de Bagé. Reunir os estudos em formato de livro propicia o registro e a relevante contribuição para a historiografia sul-rio-grandense acerca do estado da arte do quem vem sendo produzido sobre uma cidade e uma sociedade que ocupou, durante boa parte dos séculos XIX e XX, posição de vanguarda em diversas áreas do cenário cultural, político, econômico e social do Rio Grande do Sul e do Brasil. Esta obra, ao apresentar a diversidade de fontes que vêm sendo utilizadas pelos pesquisadores, traz aportes para a compreensão 19. RÜSEN, Jörn. Teoria da História: uma teoria da história como ciência. Trad. de Estevão de Rezende Martins. Curitiba: UFPR, 2015. 20. HILL, Christopher. O mundo de ponta cabeça. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p.33. 13 SUMÁRIO Introdução de uma história que não é apenas local ou nacional, mas também fortemente vinculada a um espaço fronteiriço platino21, e se constitui num ponto de referência para os estudos que venham a ser desenvolvidos e que abranjam esse espaço. Por fim, este livro demonstra que, para além dos temas apresentados, existe muito a ser pesquisado e produzido, temáticas que ainda precisam de estudos que as enfoquem com mais profundidade. Revela, por outro lado, o enorme potencial do Arquivo Público Municipal e do Museu Dom Diogo de Souza, instituições bajeenses que guardam e preservam uma rica variedade de fontes. Que esta obra seja instigadora de muitas outras iniciativas e parcerias que promovam pesquisas de qualidade sobre a História de Bagé e que proporcione espaços para a participação e divulgação de novos trabalhos. Tenham uma ótima leitura! Gustavo Figueira Andrade. Doutor em História pela Universidade Federal de Santa Maria. 21. PADOIN, Maria Medianeira. O federalismo no espaço fronteiriço platino. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1999. 14 SUMÁRIO 15 SUMÁRIO Parte I Patrimônio, Cultura e Sociedade 16 SUMÁRIO Prefácio Parte I Prefácio Foi com grande honra que recebi o convite para apresentar ao leitor esta primeira parte da coletânea de artigos pautados com o título de Patrimônio, Cultura e Sociedade organizados pelos Professores Dr. Gustavo Andrade, Dra. Maria Medianeira Padoin e Dra. Clarisse Ismério. A multiplicidade de olhares é uma característica importante desta coletânea. Os ensaios tratam de diversos temas sobre a história de Bagé com contribuições significativas através de novas abordagens. Os colaboradores, em seus artigos, promovem o diálogo entre a história das instituições públicas e privadas de Bagé e a importância e necessidade da preservação documental, debatendo e estimulando novos saberes. O desejo de eternizar momentos por meio de algum tipo de registro sempre ocorreu, em todos os tempos e culturas. A cada época, a humanidade produziu suas práticas sociais e conservou suas experiências para transmiti-las a gerações futuras de diferentes maneiras. Preservar a memória institucional é manter uma organização sempre viva e com suas bases fortalecidas. Para que essa memória seja preservada, é preciso conservar fotos, documentos, objetos e organizar os registros dos fatos. A relação entre história, memória e patrimônio documental fundamental para a preservação da identidade do cidadão com suas referências, além do direito da sociedade de acesso à informação. Neste contexto, os professores Dr. Jorge Alberto Soares Cruz, Dra Luciana Souza de Brito e Dra. Maria Medianeira Padoin descrevem as ações produzidas no projeto História Memória e Patrimônio I, coordenado pela Dra. Maria Padoin que foi aplicado em Bagé, em 2017 e que teve como objetivo a difusão de conhecimento e capacitação para os profissionais das instituições de guarda de acervos. 17 SUMÁRIO Prefácio Parte I Seguindo no mesmo tema abordado, analisamos outro capítulo, onde os Professores, Dra. Fernanda Pedrazzi e Dr. Gustavo Andrade nos contam sobre o caminho e destino da documentação da família Silva Tavares, preservada pelos descendentes há mais de 120 anos. No ano de 2019 foi realizado um movimento para preservar o acervo da família Silva Tavares dada a sua importância para a cidade de Bagé. Os descendentes tiveram a consciência em buscarem nas instituições públicas de ensino, suporte e informação para organizar o processo de transferência do privado para o público. A iniciativa de doação de Yara Maria Botelho Vieira dos documentos para o Arquivo Público de Bagé foi uma opção por considerar que este espaço de memória tem condições de inventariar e fazer a manutenção do patrimônio documental da família. No conjunto dos saberes e fazeres, a arte nos conta a história através de diferentes expressões, na arte cemiterial, no teatro, na imagem, no cinema, na música, na literatura e na poesia. Na arte cemiterial... A Professora Dra. Clarisse Ismério viaja no tempo e nos transporta à Idade Média mostrando porque das localizações dos cemitérios em relação ao espaço urbano e enfatiza que, com o passar do tempo, os cemitérios perderam o aspecto “mórbido e desolador”, para se transformarem em locais de “convivência e sociabilidade”, transformando-se em depositários da cultura e da memória de uma comunidade. Ela nos leva a vagar pelos caminhos e passagens do Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé e demora-se à frente do Mausoléu de Antônio de Souza Neto e de João da Silva Tavares e ainda do Jazigo de Francisco Ilarregui e diante deles, desnuda seus túmulos explicando cada simbologia, cada alegoria, cada escultura que os adornam. Ela também nos mostra a influência positivista na arte cemiterial e nos desvenda a presença de imagens femininas que ornamentam muitos túmulos e mausoléus. No teatro... A Dra. Clarisse ainda nos presenteia com a descrição do seu Projeto Cultural, Sarau Noturno – do presencial ao Virtual, que é fundamentado na metodologia da Educação Patrimonial e no estímulo da memória social. E´ a arte cênica contando história, é um teatro que usa como palco as veredas e vielas do Cemitério e a arte cemiterial, como pano de fundo tentando recuperar a memória da sociedade e promover o resgate da herança cultural. No cinema... A Professora Adriana Gonçalves Ferreira nos coloca no tempo e no espaço da história de Santa Thereza, desde o surgimento 18 SUMÁRIO Prefácio Parte I da Charqueada de Santa Thereza, fundada em 1897, pelo imigrante português, Antônio Nunes de Ribeiro Magalhães. Localizada em Bagé, na região do pampa gaúcho, a Vila de Santa Thereza se transformou no Centro Histórico Vila de Santa Thereza e a Prof. Adriana descreve o papel da Associação pró Santa Thereza na luta pelo processo de tombamento e restauração do patrimônio existente. A produção de um audiovisual é mais uma ferramenta de preservação da memória e do patrimônio e foi proposto e executado pela Professora Adriana. Ela dedicou-se a realizar uma investigação profunda do histórico da Vila de Santa Thereza do ponto de vista, cultural, artístico, econômico e humano, através de pesquisas, depoimentos e entrevistas com descendentes do fundador e dos antigos colaboradores. Ela nos apresenta a Vila de Santa Thereza através de um documentário no qual, ficará registrado o legado do seu fundador até a sensibilidade de Ierecê Moglia para imortalizar este sonho. Na imagem... A Professora Dra. Luísa Kuhn Brasil nos faz mergulhar na Revista Phenix, revista ilustrada, que circulou em Bagé no ano de 1921 e em alguns meses de 1922. Ela nos faz compreender de que forma a fotografia contribuiu para a construção da “imagem do individuo no espaço público e as reações deste indivíduo no meio social no qual ele se coloca”, dando margem a novas possibilidades de transmissão da informação e de sua interpretação. A revista Phenix foi o primeiro periódico desta modalidade que surgiu em Bagé. Segundo a professora Luísa, a imprensa nas primeiras décadas do século XX, no município, comportava “grandes jornais como O Dever e o Correio do Sul, porém, não existia ainda um periódico que fosse dedicado a publicar textos literários, poesias e fotografias sociais”. O grupo que concebeu a revista era formado por “homens integrantes das camadas media e alta da sociedade”. Os idealizadores eram de diferentes áreas do conhecimento: eram médicos, arquitetos, jornalistas e advogados, mas todos tinham algo em comum, interesse nos aspectos culturais, intelectuais e “mundanos”. Na literatura... Nos deparamos com este curioso e instigante capítulo, onde as Professoras, Dra. Clarisse Ismério e Dra. Edla Eggert nos contam a história e as idéias de Andradina de Oliveira, uma mulher inspiradora de diversificados predicados que se impôs e ousou superar as dificuldades colocadas à uma mulher, na sua época. A história de Andradina, de acordo com as autoras, é a história de uma mulher que no final do século XIX e começo do século XX, viúva, mãe de 19 SUMÁRIO Prefácio Parte I dois filhos, buscou o sustento de sua família na sua “intelectualidade e surgiu como cronista, romancista, poeta e dramaturga.” Foi uma representante do sexo feminino, que mesmo em terras tão distantes das metrópoles culturais do país, acompanhou a chamada primeira onda feminista que acontecia na Europa e Estados Unidos. Havia neste momento, uma discussão do papel da mulher dentro do espaço privado chamando a figura feminina de “a rainha do lar”, e a tendência marcante das mulheres na ocupação do espaço público. O período que Andradina viveu em Bagé ela criou seu próprio jornal, O Escrínio que circulou de 1898 até 1910. O jornal guardou no seu conteúdo a luta pela igualdade entre homens e mulheres, pela valorização do ensino e pelo estímulo a capacitação do sexo feminino para o mercado de trabalho. Na música ... Entre notas e acordes despertava Bagé, em 1904, para o estudo e aprendizado da música. Bem absorvida pela comunidade e sendo o quarto conservatório musical do país, foi fácil sua histórica trajetória, tendo a instituição recebido diversos nomes até a denominação atual de Instituto Musical de Belas Artes Rita Jobim de Vasconcellos. Os docentes, Prof. Dr. Rafael Rodrigues da Silva, Prof. Luis Borges dos Santos e Prof. Dr. Alessandro Carvalho Bica, nos apresentam a motivação, a evolução e a descrição dos envolvidos em todo o processo que criou o IMBA. O trabalho também nos mostra o alinhamento da criação do Instituto com as políticas estaduais do Partido Republicano, que na época, administrava, tanto na esfera estadual quanto municipal. E´ relatado, além do histórico da instituição a biografia de alguns que se dedicaram ao longo dos anos ao ensino da música em Bagé. Eles concluem o trabalho dizendo que a história do IMBA nesses 100 anos de existência está “entrelaçada” com a história de Bagé e intimamente ligado a disputas políticas e ideológicas ao longo dos anos. Reforçam ainda, que considerar neste ambiente, um “olhar” atento a esse grupo de pessoas, amantes e incentivadoras da música, que lutaram durante décadas para a manutenção e sobrevivência do IMBA podem nos transparecer muito sobre a sociedade de Bagé. Seguindo a leitura dos capítulos, eles nos fazem refletir sobre os diferentes olhares e as distintas atitudes tomadas pelos personagens da história, os Professores Tiago Rosa da Silva e Rafael Rosa da Silva, nos oportunizam conhecer o surgimento das associações negras no período pós-abolição em que a libertação escravagista 20 SUMÁRIO Prefácio Parte I teria apenas alavancado o preconceito contra a raça negra de forma que eles continuaram a ser segregados e marginalizados diante da sociedade branca e elitista do século XIX. Isto aconteceu em todo o Brasil. Em Bagé não foi diferente. Não contavam com os mesmos direitos sociais e econômicos que os brancos; não podiam usufruir dos mesmos lugares e ambientes ainda que fossem públicos. A falta de acesso à educação foi fundamental para manter esse grupo sem oportunidades para melhorar sua vida. O descaso e o desmerecimento os eliminavam de qualquer circunstância favorável de evolução socioeconômica e humana, e isso se estendeu por décadas sem que eles pudessem encontrar um caminho que os colocassem em frente aos seus direitos, que, na verdade, deveriam ter sido normalizados após a abolição. Os autores ainda nos chamam a atenção que mesmo havendo uma significativa presença negra, na cidade de Bagé no século XIX e princípios do século XX, os escritores e historiadores locais relataram a história da cidade pautado na liderança de homens brancos e ignoraram as experiências negras na região, tanto no período préabolição quando no período pós-abolição. Também nos dão ciência que mesmo com todas estas dificuldades havia uma comunidade negra que buscou construir espaços próprios, através da Imprensa, dos festejos carnavalescos e dos Clubes Sociais. Ao fazerem um levantamento dos jornais da Imprensa Negra nos arquivos do Museu Dom Diogo de Souza (Bagé), bem como no acervo do Museu José Hipólito da Costa (Porto Alegre), eles encontraram 13 exemplares, tendo o primeiro iniciado sua circulação do ano de 1913 e o ultimo, no ano de 1952. As Associações Negras para os festejos carnavalescos começaram a serem encontradas a partir dos anos 30 e 40 e muitas delas cumprem até hoje o seu papel. Como exemplo relatam a história do Bloco Carnavalesco Os Zíngaros, do final da década de 30, que não restringiu sua atuação somente ao período do carnaval e passou a proporcionar lazer e recreação para seus sócios durante o ano todo. Foi a partir de 1944 que foi fundado por onze trabalhadores negros de Bagé a Sociedade Recreativa Os Zíngaros, presente ativamente até os dias atuais. Para concluir essa primeira parte da coletânea, o Professor Alessandro Bica nos alcança mais uma pesquisa detalhada e esclarecedora sobre a Educação em Bagé nas primeiras décadas do século XX. Ele nos mostra as influências positivistas na escola e no ensino público, e o quanto era significante esta interferência como 21 SUMÁRIO Prefácio Parte I estratégia exitosa do projeto político republicano. Ele analisa as políticas públicas na área da educação nas administrações de Lúcio Figueiredo Teixeira, José Octavio Gonçalves e Tupy Silveira, todos do Partido Republicano, até meados dos anos 20. Nos relata a situação, tanto da educação pública como da educação privada no Município de Bagé, nestes três governos. O professor Bica termina seu capítulo, minuciosamente exposto, abrindo o campo das possibilidades “de novas e futuras leituras que possam ser construídas a partir dos dados encontrados sobre estas Instituições Escolares nas primeiras décadas do século”. Finalizo este prefacio, com muita satisfação, por ter acrescido na minha bagagem de conhecimento novas informações sobre a história de Bagé e também por reconhecer que a interpretação dos fatos, sempre baseados em conhecimento aprofundado nos faz compreender a história através de um olhar mais dilatado e questionador. Obrigada por esta oportunidade! Boa leitura Elizabeth Macedo de Fagundes 22 SUMÁRIO Prefácio Parte I 23 SUMÁRIO Prefácio Parte I PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA DOCUMENTAL DE BAGÉ Jorge Alberto Soares 1 Luciana Souza Brito 2 Maria Medianeira Padoin 3 24 SUMÁRIO Preservação da memória documental de Bagé Jorge Alberto Soares Cruz1 Luciana Souza de Brito2 Maria Medianeira Padoin3 Introdução A proposta desta pesquisa tem por motivação apresentar elementos que permitam resgatar ações que foram desenvolvidas com vistas a preservação da memória documental da cidade de Bagé. Nesse contexto, buscou-se de forma preliminar realizar um levantamento acerca do quantitativo de instituições de custódia de acervos presentes na cidade, tendo em vista uma consulta realizada de forma on line. A partir da consulta realizada, conseguiu-se perceber que a memória documental da cidade de Bagé, constituída por documentos textuais, iconográficos, sonoros, etc. está presente em diferentes instituições de custódia (públicas e privadas). Além disso, destaca-se que estas instituições de custódia desempenham um importante papel na construção da memória e identidade local. E, para tanto, faz-se necessário adotar critérios específicos para gestão e preservação desses acervos, que tem na área de Arquivologia uma base para o desenvolvimento de ações que permitam sua preservação e manutenção a longo prazo. 1. Doutor em História e professor do curso de Arquivologia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).e do Programa de Pós-graduação em Patrimônio Cultural/UFSM. 2. Doutora em História e professora do curso de Arquivologia da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). 3. Doutora em História, professora do curso de História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). 25 SUMÁRIO Preservação da memória documental de Bagé Nesse sentido, a realização de atividades de capacitação com servidores e responsáveis pelas instituições de custódia dos acervos, por meio de uma parceria destas com a UFSM, é uma forma de promover ações com vistas ao melhor gerenciamento e salvaguarda destes acervos, na medida em que disponibilizam um espaço para o diálogo e a troca de experiências e conhecimento. Assim, o projeto “História, Memória e Patrimônio I”, coordenado pela Profª. Maria Medianeira Padoin, foi uma iniciativa pioneira nesse sentido, pois agrupou diferentes profissionais da área de História e Arquivologia, para que em conjunto, pudessem promover palestras e cursos visando a disseminação de pesquisas em andamento na Universidade Federal de Santa Maria - UFSM com temáticas inerentes a região e município de Bagé, mas também com a finalidade de dar orientações sobre como proceder no tocante ao tratamento dos acervos documentais presentes nas diferentes instituições de custódia de Bagé. Diante do exposto, este artigo discorre sobre as ações promovidas pelo projeto no município de Bagé, especificamente aquelas inerentes à gestão e tratamento dos acervos documentais, por meio da realização de palestras e cursos. A cidade de Bagé e instituições de custódia de acervos A cidade de Bagé, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (2021), tem uma área territorial de 4.090.360 km2, e uma população estimada em 121.335 pessoas. Considerando esse território e população, o município apresenta um quantitativo particularmente pequeno de instituições que têm por função a custódia e a preservação de documentos e informações sobre a história e a memória bajeense. Entende-se que a valorização e a preservação da história e da memória bajeense é importante para que se possa compreender aspectos de estruturação e desenvolvimento da comunidade local. Assim, faz-se necessário conceber as fontes documentais enquanto um patrimônio coletivo de uma sociedade, que integra sua herança fundamental e preciosa, tanto do passado quanto para o futuro, pois são garantias da memória e da manutenção do sentido de existência/ identidade/ desta sociedade. Sendo assim, torna-se necessário a integração entre as instituições que detêm acervos arquivísticos com 26 SUMÁRIO Preservação da memória documental de Bagé os pesquisadores e os cidadãos comuns que precisam se identificar com os acervos existentes. Nesse contexto, é relevante destacar o quantitativo atual de instituições com capacidade de rememorar a história existentes na cidade de Bagé e que possuem como propósito a custódia e manutenção de acervos (documentais, iconográficos, bibliográficos, objetos museológicos, dentre outros). Estes locais devem ser considerados como lugares de memória da população e do município. Em relação a estes lugares de memória, O Historiador francês Pierre Nora coloca: Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memórias espontâneas, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas (...). Criar museus, arquivos, cemitérios, coleções, festas aniversários, tratados processos verbais, monumentos, santuário, associações, são marcos testemunhas de uma outra era, das ilusões de eternidade (NORA, 1993, p.13). Sendo assim, a valorização destes espaços de memória e o surgimento de novos temas de estudo na área de história têm proporcionado o desenvolvimento de trabalhos científicos em arquivos, centros de memória e centros de documentação4. Após a realização de um levantamento na internet5, constatouse que as instituições que tem desenvolvido atividades de espaço de guarda de memória no município de Bagé (de forma pública e privada) são: Museu Dom Diogo de Souza, Museu da Gravura Brasileira, Arquivo Público Municipal Tarcísio Taborda6, Biblioteca Municipal Dr. Otávio Santos, Biblioteca Central da URCAMP. Além dessas instituições tem-se também os acervos documentais presentes em instituições públicas referentes à sua área específica de atuação, como a Câmara de Vereadores Municipal, a Prefeitura Municipal, a Justiça Federal, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, dentre outros, que no desempenho cotidiano de suas ações produzem documentos, que após terem cumprido sua 4. Segundo Marilena Leite Paes (2002, p. 20) “a finalidade dos centros de documentação são idênticos aos dos arquivos, ou seja constituem-se em base do conhecimento da história e tem como função tornar disponíveis as informações contidas no acervo documental sob sua guarda”. 5. Pesquisa realiada em Março de 2021. 6. O arquivo possui sua sede em um prédio que pertenceu a uma antiga cooperativa de Lãs o que tem colaborado com uma melhor efetividade na preservação dos documentos, principalmente em relação a umidade do meio ambiente. 27 SUMÁRIO Preservação da memória documental de Bagé função inicial e avaliados podem ser considerados como de guarda permanente, e portanto, parte da memória bajeense por registrar fatos, ações e situações que contribuem para o fazer historiográfico preservando e valorizando a identidade do município. Neste sentido a historiadora Arlete Farge (2009) afirma que é nos arquivos onde podemos encontrar alguns momentos da vida de personagens comuns que possuem o potencial de ligar o passado ao presente, através do trabalho dos historiadores. Ainda sobre os locais de custódia dos acervos documentais, ressalta-se a fala de Maia e Cordeiro (2008, p. 64), em que Historiadores e arquivistas de maneira geral estão convencidos de que os melhores lugares para a preservação da memória, principalmente do documento histórico, ou seja, de caráter permanente são os locais especializados, com arquitetura adequada e pessoal qualificado, é o caso dos Arquivos, Centros de Documentação, Museus e Bibliotecas. Esses órgãos denominados de “documentação” possuem papéis e funções diferenciadas e típicas de cada um. Ao observar a realidade de Bagé, percebe-se que a custódia dos acervos documentais que contêm importantes informações sobre sua história e memória é realizada pelo conjunto de instituições destacadas por Maia e Cordeiro (2008), com exceção dos Centros de Documentação que não foram identificados no levantamento realizado no município. Ademais, enquanto aparatos culturais tais instituições (arquivos, bibliotecas e museus) são essenciais para a preservação da memória bajeense Entretanto, os autores Varela e Barbosa (2013) destacam que estas instituições têm uma função maior. Assim, para os referidos autores, Arquivos, bibliotecas e museus são no imaginário da sociedade, aparatos com a missão de preservar, para todo o sempre, a cultura acumulada pela humanidade, sendo, pois, templos de contemplação. E, verdadeiramente, o são, mas não só. Como canais de comunicação do conhecimento, passado e presente, estas organizações têm a obrigação de transcender esta imagem estática, deixando transparecer, para seus usuários e visitantes, o significado de seu conteúdo na construção da sociedade contemporânea. (VARELA; BARBOSA, 2013, p. 339 grifo nosso). 28 SUMÁRIO Preservação da memória documental de Bagé Portanto, é com base nos documentos e informações presentes nos arquivos, bibliotecas e museus que a história e memória bajeense pode ser construída, interpretada e difundida. Nesse sentido, é relevante evidenciar as ações que foram desenvolvidas para contribuir na gestão e preservação dos acervos documentais do município, em que se destaca a atividade desenvolvida por meio de uma parceria entre a Universidade Federal de Santa Maria (curso de História e Arquivologia), e algumas instituições de custódia local. Ações desenvolvidas por meio do projeto “História, Memória e Patrimônio I” Tendo em vista o desenvolvimento de ações que pudessem promover a conscientização da importância da história local e a gestão e preservação dos acervos documentais de Bagé, foi realizado um projeto junto com o Arquivo Público Municipal, Museu dom Diogo de Souza (de Bagé) e a Universidade da Região da Campanha – URCAMP, em que foram organizados ações de extensão que envolveram docentes dos cursos de História e Arquivologia da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM e alunos do Programa de Pós-Graduação em História – PPGH da mesma instituição. Nesse processo, tinha-se como propósito que esses profissionais, a partir de sua formação e temas de pesquisas, pudessem contribuir na capacitação continuada dos profissionais que atuavam na área de patrimônio (públicos e privados) e da história, promovendo uma atualização de conhecimentos para a gestão e preservação de acervos e espaços de memória na cidade.. Diante deste cenário, foram feitas reuniões de trabalho o que culminou com a realização de um ciclo de palestras e posteriormente a realização de cursos, que envolveram atividades teóricas e práticas destinadas aos colaboradores do Arquivo Municipal, do Museu Dom Diogo de Souza7 e do Arquivo da Cidade de Dom Pedrito . Especificamente no que se refere ao ciclo de palestras, buscouse demonstrar os resultados de pesquisas vinculadas ao PPGH em que foram utilizados acervos da região, bem como aqueles trabalhos desenvolvidos com temáticas que envolveram este espaço fronteiriço, procurando dar um retorno para a comunidade, e ao mesmo tempo 7. Vinculado à URCAMP. 29 SUMÁRIO Preservação da memória documental de Bagé demonstrando a relevância da preservação dos mais diversos acervos e da importância de uma política de investimento na área de cultura, identidade, memória e patrimônio (CRUZ, BRITO, PADOIN, 2018). Sendo assim, no Ciclo de Palestras os Professores Jorge Alberto Soares Cruz (UFSM/PPGH) e Luciana Souza de Brito (UFSM/PPGH e FURG) abordaram o tema referente à “Preservação da memória documental e a pesquisa em História”. A coordenadora do Projeto, a Professora Maria Medianeira Padoin e o Doutorando Carlos Piassini (UFSM/PPGH) realizaram a palestra intitulada: “A Revolução Farroupilha e a Imigração: uma contextualização histórica do espaço platino”. Na sequência o Historiador Bageense e doutorando em História, Gustavo Andrade (UFSM/PPGH) e o doutorando Pablo Dobke (UFSM/PPGH) abordaram o tema “Revolução Federalista”. Encerrando o ciclo de Palestras, as doutorandas Monica Rossato e Naiani Machado da Silva abordaram o tema referente ao senador do império “Gaspar Silveira Martins”. As ações realizadas no âmbito do projeto “História, Memória e Patrimônio I”, sob coordenação da Profa. Dra. Maria Medianeira Padoin da UFSM8, foram realizadas com o apoio da Fundação Áttila Taborda/Universidade da Região da Campanha/ Museu Dom Diogo de Souza e PROIPPEX (Pró-reitoria de Inovação Pós-graduação Pesquisa e Extensão da URCAMP/Bagé). Também participam na organização dos eventos propostos por este projeto a Prefeitura Municipal de Bagé, e Arquivo Público Municipal da mesma cidade. Estas instituições foram responsáveis pela organização junto com a UFSM além de participarem do curso e ciclo de palestras. O local de realização das etapas do curso e ciclo de palestras foram realizados nas dependências do Museu Dom Diogo de Souza (que é administrado pela Fundação e vinculado à URCAMP de Bagé). O projeto foi concebido tendo etapas de trabalho integradas, as quais centraram-se no desenvolvimento de um curso e ciclo de palestras em três módulos, que integraram um curso de capacitação para, os colaboradores que atuam no Arquivo Municipal e nas Secretarias do Município, bem como colaboradores que atuam no Museu Dom Diogo de Souza, e pessoas da comunidade que trabalham ou se interessam pela área de preservação da identidade, memória e do patrimônio documental. 8. Tendo como vice-coordenador o Professor Me. Jorge Alberto Soares Cruz do Departamento de Arquivologia da UFSM. 30 SUMÁRIO Preservação da memória documental de Bagé Os Ciclos de Palestras, foram realizados em 2017, em parceria com tais órgãos/instituições e também com a URCAMP e Fundação Atila Taborda, de forma aberta ao público, incentivando a participação de professores, alunos tanto do ensino básico como superior, além de interessados em geral, tendo sido utilizadas as dependências do Museu Dom Diogo de Souza para a realização do mesmo. As atividades estruturaram-se da seguinte forma: na primeira semana de agosto de 2017 foi realizado o primeiro módulo do curso, intitulado: “O Passado e o Presente nos Arquivos Municipais: O papel dos arquivos municipais na construção e preservação de uma memória e identidade regional”. Este módulo foi ministrado pelos Professores Maria Medianeira Padoin (UFSM), Jorge Alberto Cruz (UFSM) e Luciana Souza Brito (FURG). O tema do módulo levou em consideração a realidade brasileira, sendo que o Brasil possui na atualidade 5.570 municípios os quais devem atender as demandas da Lei nº. 12.527/2011 - Lei de Acesso à Informação (LAI). No contexto desta Lei, o Conselho Nacional de Arquivos (CONARQ) e o Arquivo Nacional tem incentivando prefeitos e presidentes de Câmaras de Vereadores para que sejam criados arquivos municipais, com a função de custodiar e disponibilizar informações ao cidadão, favorecendo o exercício pleno da cidadania e a preservação da memória, da identidade e do patrimônio documental dos municípios. Diante deste cenário podemos afirmar que o município de Bagé, por ter um arquivo municipal, possui uma realidade um pouco diferente da maioria dos municípios brasileiros. A Lei 12527\2011 preconiza o acesso à informação objetivando harmonizar e aprimorar o atendimento aos cidadãos e pesquisadores, o qual buscam nos acervos documentais municipais informações de que necessitam evitando o obscurantismo de informações públicas. Ademais, não podemos esquecer que é nos municípios onde ocorre a maior contato entre os cidadãos e o poder público o que facilita a reivindicação e a elaboração de políticas públicas que favoreçam a maioria da população. Sendo assim, o direito às informações é um preceito estabelecido na constituição de 1988 e que pode ser equiparado ao direito à alimentação, segurança, saúde, moradia e à educação. Sendo assim, uma população bem informada possui maior capacidade de discernir e reivindicar seus direitos junto aos gestores e órgãos públicos. Para a organização dos acervos documentais no âmbito da cidade de Bagé, tendo como base a legislação vigente, devemos considerar alguns preceitos no campo da teoria Arquivística. Neste 31 SUMÁRIO Preservação da memória documental de Bagé cenário torna-se pertinente abordar conceitos que envolvam as sete funções arquivísticas propostas por Rousseau e Couture (1998), que podem ser identificadas como: criação e produção, aquisição, avaliação, descrição, referência e difusão, preservação. A seguir conceitua-se cada uma das funções arquivísticas para um melhor entendimento do tema. A função de criação e produção objetiva o controle da criação dos documentos e informações na sua origem, pois a partir desta função há uma significativa contribuição da eficiência administrativa que visa evitar a duplicação de documentos e de informações. A aquisição, segunda função apresentada por Rousseau e Couture (1998) pode ser definida como a entrada de documentos nos arquivos que pode ser por doação, transferência ou recolhimento. Neste sentido o Dicionário de Terminologia Arquivística (DTA) resume a aquisição como “ação formal em que se funda a transmissão de propriedade de documentos e arquivos” (CAMARGO; BELLOTTO, 1996, p. 4). A classificação, atividade essencial para a gestão de acervos documentais, refere-se a “Organização dos documentos de um arquivo ou coleção, de acordo com um plano de classificação, código de classificação ou quadro de arranjo” (ARQUIVO NACIONAL, 2005, p. 48). Já a avaliação é entendida como um processo que compreende a análise de documentos onde é atribuída a destinação final, apoiado em valores que lhes são atribuídos de acordo com uma tabela de temporalidade de documentos (eliminação ou guarda permanente). A partir desta função muitos documentos, devido sua importância histórica, patrimonial e administrativa, passam a formar o patrimônio documental de uma pessoa ou instituição. A função de descrição corresponde ao conjunto de procedimentos que leva em conta os elementos formais e de conteúdo dos documentos que proporcionam a elaboração de instrumentos que auxiliarão os pesquisadores nas consultas aos acervos (ARQUIVO NACIONAL, 2005). Após a realização da descrição de documentos as funções de referência e difusão serão ferramentas que auxiliarão na divulgação de documentos e informações existentes no acervo do arquivo ou centro de documentação. Por fim, a função de preservação compreende um conjunto de medidas de ordem estratégica, política e operacional com vistas a manutenção da integridade dos conjuntos documentais, entre as quais encontram-se atividades de conservação preventiva dos 32 SUMÁRIO Preservação da memória documental de Bagé acervos, o que transforma o arquivo em um lugar de história e de memórias coletivas e individuais, preservando vestígios e fatos de elementos identitários e culturais, algumas vezes esquecidos, de diferentes grupos humanos. Assim, no âmbito do desenvolvimento do curso, buscouse promover uma discussão teórica e metodológica acerca da importância dos arquivos municipais na construção e preservação da cultura, memória e identidade regional. Sendo assim, foram desenvolvidas atividades com o uso de material expositivo e mediações com a comunidade. A abertura deste módulo coube a Profa. Maria Medianeira Padoin (UFSM/PPGH) sendo o mesmo ministrado pelos: Prof. Jorge Alberto Soares Cruz e Profa. Luciana Souza de Brito, os quais na época de realização das atividades estavam regularmente matriculados como alunos do Programa de Pós-Graduação em História da UFSM em nível de doutoramento. O segundo módulo do curso, intitulado “Estratégias de Preservação de documentos digitais e higienização de documentos textuais”, ocorreu no dia 15 de setembro de 2017. Assim, no período da manhã foram discutidas estratégias de preservação de documentos digitais, sob responsabilidade do Prof. Jorge Alberto Soares Cruz (UFSM/PPGH). No período da tarde realizou-se ações teórico práticas de higienização mecânica de documentos textuais e volumes encadernados, sendo ministrada pela Profa. Dra. Luciana Souza de Brito (UFSM/PPGH e FURG). A higienização mecânica é aplicada com o objetivo de retirar as partículas de poeira, incrustações, e outros depósitos da superfície do acervo, atividade que promove a conservação dos documentos a longo prazo, pois sujidades são um agente de degradação de acervos documentais em qualquer suporte. Nesse contexto, para o desenvolvimento desta atividade a Direção do Museu Dom Diogo de Souza disponibilizou um ambiente equipado com mesas de trabalho com capacidade para comportar a quantidade de participantes inscritos para desenvolvimento das ações práticas. Destaca-se ainda que os recursos materiais necessários à atividade prática, tais como trinchas, pós de borracha ralada e equipamentos de proteção individual (luvas, máscara, jaleco), foram disponibilizados pela equipe do projeto de extensão. Já os documentos utilizados na atividade foram levados pelos próprios participantes do curso. 33 SUMÁRIO Preservação da memória documental de Bagé Diante do exposto, entende-se as ações realizadas no âmbito do projeto de extensão, configuraram-se como uma oportunidade de relacionamento entre a teoria e a prática profissional, pois promoveram a interdisciplinaridade entre diferentes áreas do conhecimento (Arquivologia e História), junto a comunidade de Bagé, especificamente no que tange ao desenvolvimento de ações com vistas à discussão e preservação do patrimônio histórico cultural presente na cidade e custodiado por diferentes instituições. Buscou-se com esse projeto contribuir na gestão e nas políticas públicas para a gestão e a preservação da memória, identidade e do patrimônio histórico e cultural da cidade de Bagé, criando um espaço de atuação para alunos e professores para divulgarem os resultados de suas pesquisas construídos na Universidade Pública e também na integração e aprendizado com a comunidade e os seus representantes (CRUZ, BRITO, PADOIN, 2018). Considerações finais Este texto teve como objetivos publicizar ações que foram desenvolvidas no município de Bagé, no contexto do projeto “História, Memória e Patrimônio I”, coordenado pela Profa. Maria Medianeira Padoin, do Departamento de História da UFSM, com vicecoordenação do professor Jorge Alberto Soares Cruz, do Departamento de Arquivologia da mesma instituição. No contexto do projeto elaborou-se ações que visavam a valorização do patrimônio histórico e documental da cidade de Bagé. Neste cenário, professores dos cursos de História e Arquivologia da UFSM e de alunos do Programa de Pós-graduação em História UFSM tiveram uma importância fundamental no processo para valorizar e preservar a memória e a identidade regional, através da divulgação do patrimônio histórico e documental Bageense. Nesse contexto, constata-se a necessidade da elaboração de políticas públicas que visem a criação, manutenção e organização dos arquivos municipais, que são locais de memória e história dos municípios. Estes locais possibilitam aos pesquisadores o acesso às fontes documentais, que muitas vezes são fragmentos de informações que obrigam os pesquisadores a trabalharem como arqueólogos reconstruindo a história, a partir de partículas de informações encontradas nos acervos documentais. Assim, ao observar a realidade da cidade de Bagé percebe-se que um primeiro passo já foi dado, pois a mesma dispõe de um arquivo municipal implementado formalmente, 34 SUMÁRIO Preservação da memória documental de Bagé o qual custodia diferentes acervos documentais, públicos e privados. Nesse sentido, faz-se necessário a manutenção constante das rotinas de preservação e conservação do acervo, mas fundamentalmente ações de gestão e tratamento do mesmo visando a aplicação das sete funções arquivísticas definidas por Rousseau e Couture (1998), para que os documentos possam estar acessíveis à consulta dos cidadãos. Além disso, o acesso à informação é um direito estabelecido na Carta Constitucional de 1988 e regulamentado pela Lei de Acesso à Informação (LAI) Lei 12.527\2011, e que para ser cumprido necessita que os acervos documentais estejam devidamente classificados, avaliados e descritos visando o acesso rápido à informação neles contida. Diante do exposto, a temática das palestras e dos cursos estavam alicerçadas nas afinidades existentes entre documento, memória, identidade, preservação e informação relacionados às funções arquivísticas e a produção documental, buscando fornecer aos participantes da atividade subsídios para o tratamento dos documentos presentes nas diferentes instituições de custódia da cidade, mas principalmente promovendo uma sensibilização para a necessidade de uma gestão adequada dos arquivos no município de Bagé. A disseminação das ações realizadas no âmbito do projeto, a partir dessa publicação é uma forma de manter o registro daquilo que foi realizado, mas principalmente, de fomentar que essas ações iniciais venham a ter uma continuidade, pois um primeiro passo já foi dado. Sendo assim, ressalta-se que a construção e disseminação do conhecimento produzido nas pesquisas realizadas com temáticas que envolvem Bagé no âmbito da UFSM é uma forma de dar um retorno à sociedade das ações que são elaboradas por esta instituição pública. Além disso, a UFSM também se coloca à disposição da comunidade quando desenvolve ações de extensão, como o projeto “História, Memória e Patrimônio I”, colaborando para a modificação de uma realidade local a partir da contribuição de professores e alunos de seu quadro, atuando de forma significativa para cumprir as suas funções de ensino, pesquisa e extensão. Referências ARQUIVO NACIONAL. Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005. CAMARGO, Ana Maria de Almeida; BELLOTTO, Heloisa. Dicionário de Terminologia Arquivistica. Associação dos Arquivistas Brasileiros, 1996. 35 SUMÁRIO Preservação da memória documental de Bagé CRUZ, Jorge Alberto Soares.; BRITO, Luciana Souza de; PADOIN, Maria Medianeira. História e Memória de Bagé: Intersecções entre o Programa de Pós-Graduação em História da UFSM, o Arquivo Público Municipal e Museu Dom Diogo de Souza. In: Revista do CEPA. v. 37, n. 49, 2018. p. 34-52. Disponível em: < https://online.unisc.br/seer/index.php/cepa/article/view/12703 >. Acesso em: 20 fev. 2021. FARGE, Arlete. O sabor dos arquivos. Tradução Fátima Murad. São Paulo: USP, 2009. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Cidades e Estados. Bagé. 2021. Disponível em: < https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/rs/bage.html >. Acesso em: 20 fev. 2021. MAIA, C. J.; CORDEIRO, F. L. Tratamento documental: possibilidades de preservação da memória histórica regional - relato de experiência. In: UNIMONTES CIENTÍFICA, Montes Carlos, v.10, n. 1/2, jan./dez., 2008. p. 62 68. Disponível em: , http://www.ruc.unimontes.br/index.php/unicientifica/ article/view/236/228 >. Acesso em 23 fev. 2021. NASCIMENTO, José Antonio Moraes do. Centro de Documentação e Arquivos. São Leopoldo/RS: Oikos, 2016. NORA, Pierre. Entre Memória e História. A problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, v. 10, n. 10, p. 7-28, 1993. ROUSSEAU, Jean-Yves; COUTURE, Carol. Os Fundamentos da disciplina arquivística. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1998. VARELA, Aida Varela; BARBOSA, Marilene Lobo Abreu. Bibliotecas, arquivos e museus: agentes de universalização do conhecimento. In: DUARTE, Zeny. Arquivos, Bibliotecas e Museus: realidades de Portugal e Brasil, Salvador: EDUFBA, 2013. p. 339-374. 36 SUMÁRIO 37 SUMÁRIO A TRAJETÓRIA DA DOCUMENTAÇÃO DA FAMÍLIA SILVA TAVARES: DO ACESSO PRIVADO AO PÚBLICO VISANDO A DIFUSÃO Fernanda Kieling Pedrazzi 1 Gustavo Figueira Andrade 2 38 SUMÁRIO A trajetória da documentação da família Silva Tavares: do acesso privado ao público visando a difusão 1 2 Introdução Um dos objetos possíveis da arquivística, quando esta é tomada como ciência, é o arquivo, ou seja, “os conjuntos documentais produzidos /recebidos /acumulados pelas entidades públicas ou privadas no exercício de suas funções” (BELLOTTO, 2002, p. 5). Nesta perspectiva, há duas categorias básicas de arquivos: os públicos e os privados. Dentre estes últimos, os de direito privado, para além das entidades, “há também os arquivos familiares e pessoais” (BELLOTTO, 2002, p. 28). O acervo documental privado pertencente à família Silva Tavares está há mais de 120 anos preservado por seus descendentes, composto por uma diversidade de materiais que datam do desde o século XVIII. O acervo contém relatos de momentos decisivos e complexos da história do Brasil e do Rio Grande do Sul, tais como, a Revolução Farroupilha (1835-1845), Guerra de 1851, contra Oribe e Rosas, as campanhas de intervenção no Uruguai de 1864, a Guerra do Paraguai (1864-1870), passando pela Revolução Federalista (18911896)3, a pacificação e o Partido Federalista no pós-conflito. Os arquivos de família “são riquíssimos repositórios da memória (...) ‘moram’ testemunhos das vivências das famílias, dos contextos sociais nos quais se incluíram, dos episódios políticos aos quais assistiram, das terras onde viveram” (ROSA; NÓVOA, 2014, p. 10). 1. Doutora em Letras pela Universidade Federal de Santa Maria. 2. Doutor em História pela Universidade Federal de Santa Maria. 3 Sobre uma nova cronologia acerca da Revolução Federalista ver: ANDRADE, Gustavo. Fronteira e territorialização: uma cartografia da Revolução Federalista (1891-1896) a partir das redes de relações de poder da família Silva Tavares na região platina. Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria, 2021. 39 SUMÁRIO A trajetória da documentação da família Silva Tavares: do acesso privado ao público visando a difusão No ano de 2019 foi realizado um movimento que desejava, antes de tudo, a preservação da memória da documentação da tradicional família Silva Tavares dada a sua importância para a cidade de Bagé (RS). Esta ação teve a participação de docentes e discentes de universidades gaúchas. Considera-se que a documentação em questão é parte do patrimônio cultural da cidade e evidencia-se a importância dela para a região da campanha e de seus personagens durante mais de um século de história. Sua manutenção neste espaço geográfico era visto, naquele momento crucial, como fundamental para que pudesse seguir sendo uma referência da história e da memória do Rio Grande do Sul e brasileira. Há uma “convicção de que a preservação e o estudo dos arquivos de família tem muito a beneficiar do estreitar das relações entre as universidades, as instituições que tutelam os arquivos e os proprietários” (ROSA; NÓVOA, 2014, p. 13). A estes últimos é imputado um papel fundamental quanto ao presente e futuro deste patrimônio, já que “as histórias de família e as tradições orais são preciosas fontes para a reconstituição de episódios da história dos arquivos e para o preenchimento de lacunas que os registros escritos não conseguem colmatar” (ROSA; NÓVOA, 2014, p. 13). A nova trajetória do acervo, a partir da doação de parte dos documentos para uma instituição pública local, a saber, o Arquivo Público Municipal Tarcísio Taborda de Bagé, na fronteira sul do Brasil, especificamente os documentos que estavam em posse de Yara Maria Botelho Vieira, a descendente da família que teve a iniciativa de doar, buscava a preservação e a garantia de memória, com acessibilidade ampla e irrestrita ao material. Não é somente sobre conservar os registros, é também sobre como se comprometer com a “partilha de traços do passado que não dizem apenas respeito às famílias mas a todos nós” (ROSA; NÓVOA, 2014. p. 14). Partilhar, portanto, é dar a chance de conhecer o nosso passado como coletividade. Afinal, os arquivos “contam histórias, documentam pessoas e identidades, e são fontes relevantes de informação para pesquisa. São a nossa memória gravada e formam uma parte importante da nossa cultura e história oficial e não oficial” (LEME, 2014, p. 17). Este artigo retoma a importância dos arquivos e dos acervos privados, em especial os familiares, e relata o processo de acompanhamento realizado por membros de universidades a partir da manipulação da documentação quando esta fora preparada para doação, constituindo de registro do levantamento da mesma, unindo, em um mesmo propósito, os idealizadores desta ação, que 40 SUMÁRIO A trajetória da documentação da família Silva Tavares: do acesso privado ao público visando a difusão eram seus proprietários, bem como o ente público a receber o acervo e colaboradores voluntários vinculados a instituições de ensino. Uma breve história da família Silva Tavares 4 A família Silva Tavares descende de portugueses vindos da Ilha Terceira dos Açores (Portugal) e habitava a região de Rio Grande no final do século XVIII. Posteriormente passou para a cidade de Herval e Bagé (porção meridional do território brasileiro), já em meados do século XIX (RHEINGANTZ, 1993; OLIVEIRA, 2016; ANDRADE, 2017). Um dos grandes nomes desta família foi João da Silva Tavares, o Visconde do Serro Alegre, e dedicou-se à pecuária, política e também à guerra, especialmente durante a Revolução Farroupilha (1835-1845) (OLIVEIRA, 2016). Dentre seus 19 filhos, cinco deles dedicaram-se à política desde o nível local até o nacional, como, por exemplo, os casos de Joaquim da Silva Tavares, Presidente da Província do Rio Grande do Sul, em 1888 e Francisco da Silva Tavares, foi Deputado Provincial e pela Assembleia Geral do Império. No âmbito da política local e estadual também destacaramse José Bonifácio da Silva Tavares, Presidente da Câmara Municipal de Vereadores de Bagé, em 1886, e seu irmão José Facundo da Silva Tavares, vereador em 1864 (O BAGEENSE, 12/08/1864, p.2; UNIÃO LIBERAL, 26/09/1886, p.1). No aspecto militar, principalmente através da Guarda Nacional, um dos maiores expoentes foi João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares), teve destacada atuação durante a Guerra do Paraguai (1864-1870), recebeu a patente de Brigadeiro Honorário do Exército Brasileiro e o título de Barão do Itaqui (ANDRADE, 2017). A família Silva Tavares participou ativamente do processo de transição da Monarquia para a República, em 1889. Dois membros desta família ocuparam o cargo de governador do estado do Rio Grande do Sul, Dr. Francisco, em 1890, e João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares), em 1892 (PEREIRA,1901; TAVARES, 2004; ANDRADE, 2017). Neste período conturbado dos primeiros anos da República, vários dos membros desta família foram articuladores e fundadores do Partido Federalista, em 1892, na cidade de Bagé; e revolucionários durante a Revolução Federalista, da qual o general Joca Tavares foi o Comandante em Chefe das Forças do Exército Libertador durante boa parte do conflito (ANDRADE, 2017). 4. Informações encontradas na Dissertação de Mestrado “A trajetória política do General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares): família, comunicação e fronteira” de Gustavo Figueira Andrade, 2017. 41 SUMÁRIO A trajetória da documentação da família Silva Tavares: do acesso privado ao público visando a difusão Arquivos privados: uma riqueza particular que pode/deve ser difundida “Um arquivo de família é tanto arquivo como o arquivo de uma instituição pública, pois a instituição família, no decurso de sua existência, produz ou recebe documentação que conserva a título de prova ou informação, tal como qualquer organismo” (LEME, 2014, p. 18). Assim sendo, é perfeitamente compreensível que ao longo de gerações uma família não só reúna como também faça dispersar documentos uma vez que, a medida que os anos passam, também passam pessoas e histórias. O fato de haver um grande número de filhos, algo comum em algumas famílias do passado, só faz dificultar a reunião de um conjunto completo de família com uma só pessoa e em um só local. Os anos passam e os documentos são distribuídos entre os muitos descendentes, muitas vezes por serem entendidos como monumentos, objetos comparáveis como aqueles de museus, e não entendidos como orgânicos, ou seja, objetos de arquivos. Toda a complexidade do arquivo criado a partir de atividades desempenhadas por uma família dificulta ainda mais a ideia de fundo de arquivo de família, ou seja, de um conjunto uno, coeso e completo. Fundo é um “conjunto orgânico de documentos de arquivo de uma única proveniência. É a mais ampla unidade arquivística” (LEME, 2014, p. 22). Apesar de ser um arquivo como qualquer outro, os arquivos de família se caracterizam de modo diferente. Como são de pessoas e das famílias, “a primeira responsabilidade na sua conservação é delas. Para complicar, as pessoas e famílias não são em geral arquivistas, não sabem como organizar os montes de papéis que têm em casa ou receberam” (ROSA, 2014, p. 34). Portanto, uma das primeiras dificuldades é justamente saber como conservar os documentos sem afetá-los negativamente, sem prejudicar o seu estado físico e ainda permitindo que tenham a vida o mais longa possível. Além das provas de existência (como certidões de nascimento e morte, documento de identidade, entre outros) e de bens, ainda há aqueles documentos que guardamos por vontade própria. “Os documentos obrigatórios e as recordações pessoais (...) devem assim separar-se de algum modo dos livros e objetos que fomos recebendo ou recolhendo, mas que não foram ‘produzidos’ por nós ou em função compulsória da nossa existência” (ROSA, 2014, p. 36). Para isso é preciso levar em conta algo próprio do mundo dos arquivos, a 42 SUMÁRIO A trajetória da documentação da família Silva Tavares: do acesso privado ao público visando a difusão organicidade e a ordem original, ou seja, a identificação das relações internas entre documentos e a forma como foram ligados por aqueles que os produziram, seja na forma como foram guardados os documentos, seja por quem os produziu. Por exemplo, um conjunto de cartas recebidas por determinada pessoa em determinado período e que foram mantidas juntas em uma caixa, e, ao mesmo tempo, separadas das demais tipologias. Portanto, mesmo em se tratando de documentos pessoais, ao lançar um olhar mais técnico, é possível levantar algumas informações sobre eles como a data e o local da produção, o tipo de documento em questão (se é uma carta, um diário ou um livro de atas, etc.), as pessoas envolvidas e qual é o assunto daquele documento. Neste caso, é possível fazer uma descrição do que contém. Os estudos de genealogia se apoiam firmemente em documentos de família pois só através deles é que se pode recompor toda uma linhagem da qual se fazem necessários registros públicos e privados. De outro lado, acontece com alguma frequência que documentos de trabalho passam a integrar arquivos de famílias por serem levados para casa por aqueles profissionais que os produziram. Logicamente hoje entende-se como equivocada tal prática mas nem por isso ela deixou de acontecer através dos anos. Para isso é preciso classificar os documentos quando se encontram em meio a documentos de família, separando aqueles que dizem mais respeito a alguma instituição do que propriamente à família. Nos dias de hoje já existem profissionais arquivistas que se dedicam a organizar arquivos familiares por terem experiência específica nesta atividade. Também há aqueles que ainda se valem desta organização para escreverem a história da família pois, como já foi mencionado, é grande o interesse pela recuperação de informações que são privadas porém com interesse público, para a coletividade. “A preservação de um arquivo de família pressupõe em primeiro lugar a consciência de um valor material” dos registros (CORREIA, 2014, p. 63). Seus herdeiros têm interesse legítimo mas isso “depende de acções deliberadas, decisões e compromissos que representam um determinado plano de preservação, cujas premissas e determinações podem, e devem, ser igualmente documentadas e passadas de geração em geração” (CORREIA, 2014, p. 63). Assim, mesmo a decisão de doar uma documentação familiar deve ser registrada e divulgada entre os familiares pois a decisão de um membro de mudar a trajetória da guarda dos documentos afeta a cadeia de herdeiros que seguem as gerações daquele membro. 43 SUMÁRIO A trajetória da documentação da família Silva Tavares: do acesso privado ao público visando a difusão A decisão de mudar a guarda de documentos de família do privado para o público, por exemplo, ou seja, de concretizar uma doação, leva em conta as preocupações com a memória. Os riscos ambientais que envolvem alta umidade e temperatura, incidência de sujidades, a necessidade de um controle de pragas bem como evitar exposição prolongada à luz são fatores que muitas vezes movem uma família a buscar condições melhores de armazenamento que podem ser encontradas em arquivos. Uma família nem sempre terá um mobiliário adequado, livre de traças ou roedores (agentes biológicos). É bom lembrar que os suportes de informação, como o papel mas também os tantos outros, podem sofrer danos irreversíveis. A degradação é acelerada ainda com o mau manuseio, com o uso de materiais de baixa qualidade para acondicionamento e/ou armazenamento e a falta de higienização periódica. Entende-se que “os arquivos de família e os arquivos pessoais podem ser considerados património cultural e, desta forma, terem um valor histórico e documental que extravasa o interesse pela memória familiar” e por isso o zelo é dever dos proprietários que precisam pensar em identificá-lo e divulgá-lo de modo a permitir que seja valorizado (FERNANDES, 2014, p. 78). Nesse caso, a ideia de compartilhar a informação através da doação para uma instituição pública pode ser uma alternativa importante já que se entende que neste local terá não apenas melhores condições de armazenagem como também os recursos para difundir os documentos. Não apenas haverá os meios e o conhecimento para tratar os arquivos como também poderão ser fonte para estudos que resultarão em pesquisas publicadas. Porém, “esta decisão deve ser tomada pela família. Estes devem sentir-se confiantes e determinados, pois no caso de doação, por exemplo, são decisões irreversíveis” (FERNANDES, 2014, p. 89). É possível fazer uma combinação ou contrato entre as duas partes, ou seja, o proprietário e a instituição que receberá o acervo. Para isso é preciso conhecer os documentos e registrar o que será doado. “Apesar de perder totalmente a propriedade do fundo documental, poderá estabelecer um acordo com a entidade a quem vai doar, quer do usufruto, quer direitos especiais de consulta do dito acervo” (FERNANDES, 2014, p. 91). “A função cultural dos arquivos familiares começa a cumprirse plenamente a partir do momento em que os seus proprietários decidem optar pela divulgação de seus conteúdos”, isto é, assim que o conteúdo for conhecido e disponível (SOUSA, 2014, p. 97). A doação de um acervo de família para um arquivo público está nessa direção e 44 SUMÁRIO A trajetória da documentação da família Silva Tavares: do acesso privado ao público visando a difusão terá o assessoramento de um arquivista, profissional capaz de tratar o acervo e difundi-lo entre os públicos de interesse e públicos potenciais. A família é que geralmente entrega a documentação para a instituição, devendo haver um extremo cuidado nesse processo. “Em alguns casos, a retirada do acervo obriga a equipe técnica a entrar no espaço da intimidade de uma família: em outras palavras, é do lar dos titulares que sai sua própria história, registrada em sua documentação” (RIBAS, 2017, p. 103). Assim, ao dar fim ao tempo de uma documentação no espaço familiar pode haver alguma dor ou sentimento de perda. “Para além da persona pública, ali estão os registros de uma história pessoal, sejam como partes da vida de titulares (RIBAS, 2017, p. 103). O acervo documental em questão O acervo documental da Família Silva Tavares que foi analisado estava composto5, no momento de seu levantamento, no primeiro semestre de 2019, por centenas de cartas, telegramas, bilhetes, diplomas, fotografias, cadernetas, processos judiciais, cartões de visita, cópias de documentos, anotações diversas, documentos cifrados, confidenciais, enviados e recebidos de diversas autoridades políticas, civis, militares, tanto brasileiras quanto estrangeiras. Não é raro sentir certo desconforto em concluir uma doação pois “os doadores vivem o dilema da necessidade de manutenção de uma memória que merece ser preservada em uma instituição de referência, contraposta ao papel afetivo que os documentos se revestem” (RIBAS, 2017, p. 103). Dentre as autoridades que podiam ser encontradas como remetentes ou como destinatários dos documentos, estavam nomes de destaque como: General Manoel Luís Osório; Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias; Irineu Evangelista de Sousa, o Barão de Mauá; José Antônio Correia da Câmara, Visconde de Pelotas; Gaspar Silveira Martins; Gumercindo Saraiva; Aparício Saraiva; Almirante Luís Felipe de Saldanha da Gama; Marechal Floriano da Silva Peixoto; Prudente José de Morais, Presidente da República do Brasil (18941898); Maximo Santos, Presidente do Uruguai (1882-1886); dentre outros personagens. Além disso, contava com jornais da época, numa pequena coleção reunida e bem preservada. 5. No primeiro semestre de 2019 foi produzido um Controle de Condições Gerais do Acervo da Família Silva Tavares, onde estava registrada a descrição dos tipos documentais encontrados de modo a acompanhar o documento encaminhado para o Arquivo público a que se destinava o acervo. 45 SUMÁRIO A trajetória da documentação da família Silva Tavares: do acesso privado ao público visando a difusão Desde a produção documental dos Silva Tavares de todo o acervo possível de ser encontrado, muitos dos descendentes estiveram com a posse dos documentos provenientes dos membros mais antigos da família, atuando como verdadeiros guardiões da memória6, defendendo a preservação desta documentação. São destacados aqui Umbelina Tavares da Silva Tavares, Carlos Alberto da Silva Tavares (Bebeto), Branca Moglia Tavares, Yara Tavares, Yara Maria Tavares de Junqueira Botelho, Yara Maria Botelho Vieira, José Maria Tavares de Junqueira Botelho e Tarcísio Antônio Costa Taborda. Imagem 1 – Pesquisador manuseando documento original da família Silva Tavares Fonte – Acervo pessoal de Fernanda Kieling Pedrazzi. Ao longo dos anos, pesquisadores e historiadores (Imagem 1) tiveram contato com a documentação da família Silva Tavares, atuando na preservação e oportunizando o conhecimento de parte desta história, contando, através de suas narrativas, importantes acontecimentos da história a partir do que estava escrito nesses materiais, tais como Tarcísio Antônio Costa Taborda, Gustavo Figueira Andrade, Élida Hernandes Garcia e todas outras pessoas que voluntariamente, e imbuídos de grande interesse e responsabilidade, tornaram possível o trabalho desenvolvido na documentação que estava prestes a ser doada. 6. Informações repassadas por D. Yara Maria Botelho Vieira, em março de 2019. 46 SUMÁRIO A trajetória da documentação da família Silva Tavares: do acesso privado ao público visando a difusão Com o objetivo de levantar o patrimônio documental reunido pela família Silva Tavares de Bagé (RS), foi necessário criar um Projeto de Extensão (Imagem 2) na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), com sede no centro do Estado do Rio Grande do Sul denominado “Levantamento do Patrimônio Histórico Documental da Família Silva Tavares de Bagé-RS” (registro no Gabinete de Projetos do Centro de Ciências Sociais e Humanas nº 050992), que esteve vinculado ao “Programa: Patrimônio Histórico, Gestão Documental, Memória, Preservação” (registrado no mesmo Gabinete sob o nº 039598), coordenado pela professora Dr. Maria Medianeira Padoin. Imagem 2 – Cópia do registro do Projeto de Extensão na UFSM Fonte – Projetos UFSM. Disponível em: ufsm.br Acesso em: 04 abr. 2019. Este Projeto congregou forças para que pudesse fazer o registro do levantamento documental. Estiveram envolvidos no referido Projeto de Extensão servidores e demais membros da comunidade acadêmica da UFSM e UNIPAMPA, atuando de forma conjunta para realizar atividades de avaliação e identificação de documentos pertencentes ao arquivo privado da Família Silva Tavares. Afinal, tratando-se de arquivos familiares cuja acumulação documental tenha mais do que cem anos (e cujo interesse histórico e cultural seja comprovado), é muito importante que os proprietários tenham consciência de que, entre a (possível) perda total da informação ou possibilidade de esta ser estudada e conservada, há que optar por esta última. É importante tomar consciência de que serve de muito pouco ser-se o único conhecedor e observador de um documento. (FERREIRA, 2014, p. 98) 47 SUMÁRIO A trajetória da documentação da família Silva Tavares: do acesso privado ao público visando a difusão Os descendentes da família Silva Tavares tiveram a consciência e buscaram nas instituições públicas de ensino apoio e conhecimento para organizar o processo de transição entre o privado e o público. O resultado do trabalho com o acervo No período em que o Projeto de Extensão esteve ativo, 13 de fevereiro a 30 de abril de 2019, pouco mais de dois meses e meio, foram realizadas as tarefas de planejamento, acompanhamento das condições de guarda, acesso e proteção do acervo, garantindo integridade do conjunto que é a herança desta doação para esta geração e gerações futuras. Também foi feito um relatório para a instituição que abrigou o Projeto de modo a prestar contas do que foi realizado. Participaram Historiadores, Arquivistas, Bibliotecários e outros membros da área de Comunicação com o intuito de congregar um grupo interdisciplinar ao objetivo do mesmo, qual era: “Levantar o patrimônio documental reunido pela família Silva Tavares de Bagé (RS) colaborando para a preservação, valorização e divulgação do patrimônio histórico de Bagé”. Entre os membros desta equipe (Imagem 3), constituída por docentes e então discentes membros do Programa de Pós-Graduação em História e do Programa de PósGraduação em Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Santa Maria, citamos: Gustavo F. Andrade, Adriana Gonçalves Ferreira, Vera Lúcia Scotto Leite e os professores Maria Medianeira Padoin, Fernanda Kieling Pedrazzi e Jorge Alberto Soares Cruz. Pertencente à Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), fizeram parte do grupo de trabalho as bibliotecárias Vanessa Abreu Dias e Dayse Pestana. Imagem 3 Grupo de extensionistas da UFSM e UNIPAMPA em atividade na casa de D. Yara Fonte – Acervo pessoal de Fernanda Kieling Pedrazzi. 48 SUMÁRIO A trajetória da documentação da família Silva Tavares: do acesso privado ao público visando a difusão Quanto às atividades de avaliação e identificação de documentos, durante o levantamento documental do grupo que atuou no projeto de pesquisa, e que estava na residência da D. Yara Maria Botelho Vieira, foi possível identificar que em geral a documentação está em boas condições, no entanto, existem documentos que ainda possuem grampos metálicos e outras presilhas, que podem vir a oxidar e deteriorar os documentos. Existem também documentos que já estão deteriorados, com amassados, rasgos ou partes faltantes, e que necessitam ser restaurados. De todo modo as condições novas de guarda deverão considerar as sugestões técnicas emanadas do Conselho Nacional de Arquivos7 com a finalidade de evitar mais danos à documentação da Família Silva Tavares, dentre elas aquelas disponíveis no documento “Recomendações para construção de arquivos”, disponível no site do Conselho Nacional de Arquivos (o Conarq). Foi avaliado que se fazia necessária uma higienização e desinfecção de todo o acervo documental, tendo em vista terem sido identificadas algumas traças, o que poderia vir a comprometer sua preservação (Imagens 4 e 5). Imagem 4 – Registro fotográfico de documento da Família Silva Tavares Fonte – Acervo pessoal de Fernanda Kieling Pedrazzi. 7. Ver “Recomendações para construção de arquivos”. Disponível em: http://conarq.arquivonacional.gov.br/images/publicacoes_textos/recomendaes_para_construo_de_arquivos. pdf Acesso em: 13 mar. 2019. 49 SUMÁRIO A trajetória da documentação da família Silva Tavares: do acesso privado ao público visando a difusão Recomenda-se que “chegando à instituição de guarda, a higienização do acervo deve ser a mais imediata possível, mesmo que em um primeiro momento seja necessário o emprego de embalagens mais simples, visando o início do mapeamento documental e proteção contra luz e poeira” (RIBAS, 2017, p. 104). Por fim, cabe ressaltar que parte da documentação de propriedade da Dona Yara Maria Botelho Vieira foi enviada para tratamento de restauração no Arquivo Público Municipal, num total aproximado de 273 cartas e 130 telegramas, referentes aos anos de 1893-1894, os quais não passaram pela avaliação dos membros do Projeto de Extensão (Imagem 5) mas que deveriam, igualmente, estar sujeitos aos cuidados previstos no documento entregue à senhora Yara em abril de 2019. Imagem 5 – Análise das condições físicas do acervo da Família Silva Tavares Fonte – Acervo pessoal de Fernanda Kieling Pedrazzi. Para além do levantamento previsto no Projeto de Extensão, e a consequente listagem de controle documental originada desta atividade, a equipe dedicou-se, ainda, em elaborar uma listagem de recomendações aos proprietários no sentido de assegurar que o novo custodiador da documentação, ou seja, o Arquivo Público Municipal de Bagé, estivesse atento a algumas medidas arquivísticas importantes. As recomendações técnicas foram de suma importância na formalização da doação. 50 SUMÁRIO A trajetória da documentação da família Silva Tavares: do acesso privado ao público visando a difusão Foi indicado que o material fosse entregue em uma ordem dada pela família e que a mesma deveria ser mantida sem que seja feita qualquer retirada ou troca de documentos em sua ordem original por funcionários ou colaboradores do Arquivo Público Municipal de Bagé. Isso se deve sempre fazer de modo a obedecer o princípio arquivístico do respeito à ordem original, ou seja, aquele que “garante a preservação do contexto de produção/acumulação dos documentos” (TESSITORE, 2017, p. 15). Sugeriu-se que o trabalho de verificação do acervo fosse feito com o acompanhamento de um arquivista devidamente formado em nível de graduação (pois existem 16 cursos em atividade hoje no Brasil), com a finalidade de estabelecer um Fundo Documental do tipo Pessoal que levará o nome completo Arquivo da Família Silva Tavares. Neste caso, o princípio arquivístico da proveniência estava sendo suscitado, ou seja, aquele em que se reconhece a individualidade e se entende que a “pessoa é a acumuladora do arquivo e só no seu contexto de produção/acumulação este pode ser compreendido integralmente” (TESSITORE, 2017, p. 15). Com a identificação do fundo, um arranjo documental poderia ser pensado de modo a encontrar os laços documentais para realizar a estruturação de uma ordem fidedigna à acumulação, considerando a teoria arquivística. Para tanto foi sugerida a pesquisa nas normas ISAD (G) e NOBRADE, ambas relacionadas à descrição documental e que estão disponíveis no site do Conselho Nacional de Arquivos, o Conarq, que atua em conjunto com o Arquivo Nacional (disponível em conarq.arquivonacional.gov.br). “A descrição é um conjunto de procedimentos que, levando em conta os elementos formais e de conteúdo do documento e privilegiando acesso a conjuntos documentais, possibilita a elaboração de instrumentos de pesquisa” (TESSITORE, 2017, p. 15). Foi feita a ressalva de que nenhum documento poderia ser eliminado do conjunto sob pena de perder a organicidade do acervo e sua contextualização histórica. É “na fase permanente que o arquivo ganha identidade institucional, pois é o momento em que os documentos adquirem valor secundário máximo, contemplando pesquisas de caráter retrospectivo, normalmente de mais longo duração”, o que é realizado por pesquisadores (TESSITORE, 2017, p. 13). Na medida em que a documentação começa a ser arranjada, ou seja, classificada mas na fase permanente, inicia-se também um trabalho de identificação, catalogação e higienização do acervo com limpeza 51 SUMÁRIO A trajetória da documentação da família Silva Tavares: do acesso privado ao público visando a difusão mecânica e anotação em local apropriado (listagem no computador, por exemplo) das condições de conservação de cada peça documental. Foi indicada a leitura de material referente a “Procedimentos de conservação” pela equipe do Arquivo, disponível no site do Arquivo Nacional (disponível em (www.arquivonacional.gov.br). Sobre o arquivamento de forma definitiva, foi sugerida a verificação de documentos sobre esta prática igualmente disponível no site do Arquivo Nacional do Brasil com o nome “Armazenagem e manuseio”. Logicamente esta etapa precede a digitalização de todos os documentos frente e verso, dentro das especificações previstas pelo Conselho Nacional de Arquivos, tendo sido indicado o material denominado “Recomendações para Digitalização de Documentos Arquivísticos Permanentes” por se tratar de uma documentação originalmente de propriedade privada mas de interesse público, fato que fez surgir a possibilidade/interesse da doação ao Arquivo Público Municipal de Bagé. Desse modo, os representantes digitais serão o meio de pesquisa pelo qual os cidadãos terão acesso, preferentemente. Sugeriu-se que somente em casos especiais deveria ser concedido acesso aos originais, considerando a justificativa do pesquisador. A proposta é manter os documentos menos manuseados e, com isso, prolongar a vida do suporte. Para isso recomenda-se a adoção de repositório digital e o seguimento das Diretrizes para a Implementação de Repositórios Arquivísticos Digitais Confiáveis - RDC-Arq (vide publicações técnicas no site do Conselho Nacional de Arquivos). Sugeriu-se que, como cuidado importante, em hipótese alguma a documentação ficasse exposta em vitrines na área de acesso ao público sendo, sua custódia e guarda, restrita a um serviço de arquivo, ou seja, a documentação sempre mantida em local reservado, dentro dos padrões arquivísticos de umidade, temperatura e iluminação bem como acondicionada em invólucros de qualidade arquivística e em estantes preferentemente de aço e fechadas em local seguro. Quanto a pesquisa ao público, esta somente foi indicada com controle e observação do pesquisador, que deveria dispor de luvas apropriadas. No entanto referiu-se a necessidade de, antes de tudo, a documentação estar higienizada, arranjada, descrita, digitalizada e devidamente registrada como Fundo Pessoal junto ao Arquivo Nacional como parte de uma instituição pública conforme a Norma internacional para descrição de instituições com acervo arquivístico, 52 SUMÁRIO A trajetória da documentação da família Silva Tavares: do acesso privado ao público visando a difusão a ISDIAH (conforme publicações técnicas no site do Conselho Nacional de Arquivos). Foi, por fim, recomendado que a instituição que recebia o acervo da família Silva Tavares deveria se comprometer a não ter ganhos lucrativos com a documentação, ou seja, que fossem cobrados valores financeiros pela pesquisa, sendo amplamente aberta em seus representantes digitais tão logo se cumpra todos os critérios de acesso e difusão. E como medida que garante a continuidade do acervo através dos anos, solicitou-se providências quanto à restauração dos documentos deteriorados, sendo esta realizada por um profissional habilitado e considerando o documento “Manual de pequenos reparos em livros”, e quanto a higienização e desinfecção do material, evitando a proliferação de microrganismos e insetos, tal como consta no texto “Emergências com pragas em arquivos e bibliotecas”, ambos materiais disponíveis no site do Arquivo Nacional. Considerações finais A iniciativa de doação de Yara Maria Botelho Vieira foi uma opção visando mudança de trajetória dos documentos por considerar que o Arquivo Público Municipal de Bagé é um espaço de memória capaz de dar as condições reais de manutenção da memória da família Silva Tavares e seus contemporâneos através do patrimônio documental que constituíram em vida. A doação foi oficialmente concretizada no Arquivo Público Municipal Tarcísio Taborda, localizado na rua General João Telles, 862, no centro de Bagé (RS) na manhã do dia 17 de outubro de 2019, meio ano após o encerramento do Projeto de Extensão, com evento agendado pelo Gabinete do Prefeito Municipal de Bagé. No convite da Prefeitura, o evento estava com o nome de “Entrega dos documentos pertencentes a Família Silva Tavares, referentes a Revolução Farroupilha e a Revolução Federalista” e com a frase “Os documentos silenciosos querem se fazer ouvir”. Em vídeo denominado “Acervo Joca Tavares”, produzido pela Coordenadoria de Comunicação Social e Memória de Bagé e disponibilizado na rede social Facebook da Prefeitura Municipal de Bagé no mesmo dia do evento de doação, a doadora, Dona Yara, disse que “a entrega deste patrimônio familiar representa para nós um momento de muito orgulho e ao mesmo tempo muito compromisso 53 SUMÁRIO A trajetória da documentação da família Silva Tavares: do acesso privado ao público visando a difusão com humildade, porque somos descendentes de pessoas que muito fizeram pelo Rio Grande do Sul e pelo Brasil”8. Na sequência, teve oportunidade de exprimir seu sentimento a sua irmã, Margarida Maria Botelho, quando afirma que “chega o momento em que a gente não deve conservar as coisas fechadas e sem deixar a participação da comunidade, então nós achamos que deveríamos partilhar e não manter fechado um tesouro igual a este”9. Um ano depois, em 18 de outubro de 2020, ao rememorar a data nas redes sociais, Dona Yara evidencia seu sentimento de satisfação e certeza de que fez a melhor opção em relação ao cenário alcançado: “Esta doação se fazia mister, tal a importância histórica, devidamente cuidados e preservados pela família”10. Entende-se que o trabalho desenvolvido pela equipe universitária voluntária, ligada à UFSM e UNIPAMPA, no Projeto de Extensão deu sua contribuição para o desfecho satisfatório que teve a doação do acervo Silva Tavares, preparando os materiais e fazendo sugestões que trazem retorno para toda a comunidade. Referências ANDRADE, Gustavo Figueira. A trajetória política do General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares): família, comunicação e fronteira. Dissertação. Mestrado em História. UFSM, 2017. Disponível em: http://coral.ufsm.br/ppgh/ images/Dissertao_Gustavo_Figueira_Andrade_PPGH_UFSM.pdf Acesso em: 13 mar. 2019. BELLOTTO, Heloisa Liberalli. Arquivística: objetos, princípios e rumos. São Paulo: Associação dos Arquivistas de São Paulo, 2002. CORREIA, Inês. Preservar o seu arquivo de família. In: ROSA, Maria de Lurdes.; NÓVOA, Rita Sampaio da. (Coord.). Arquivos de família: memórias habitadas. Guia para salvaguarda e estudo de um património em risco. Lisboa, Portugal: Instituto de Estudos Medievais, 2014. p. 62 - 75 8. VIEIRA, Yara Maria Botelho. Entrevista concedida. Página inicial da Prefeitura Municipal de Bagé, Facebook, 17 out. 2019. Disponível em: https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=1278030795701513&id=665563420281590 Acesso em: 15 jan. 2021. 9. BOTELHO, Margarida Maria. Entrevista concedida. Página inicial da Prefeitura Municipal de Bagé, Facebook, 17 out. 2019. Disponível em: https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=1278030795701513&id=665563420281590 Acesso em: 15 jan. 2021. 10. VIEIRA, Yara Maria Botelho. Página pessoal do Facebook, 18 out. 2020. Disponível em: https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=10222241295359602&id=1181786639 Acesso em: 15 jan. 2021. 54 SUMÁRIO A trajetória da documentação da família Silva Tavares: do acesso privado ao público visando a difusão FERNANDES, Sofia. Proteger o seu arquivo de família, através de contratos de depósito. In: ROSA, Maria de Lurdes.; NÓVOA, Rita Sampaio da. (Coord.). Arquivos de família: memórias habitadas. Guia para salvaguarda e estudo de um património em risco. Lisboa, Portugal: Instituto de Estudos Medievais, 2014. p. 76 - 93 LEME, Margarida. Compreender o seu arquivo de família. In: ROSA, Maria de Lurdes.; NÓVOA, Rita Sampaio da. (Coord.). Arquivos de família: memórias habitadas. Guia para salvaguarda e estudo de um património em risco. Lisboa, Portugal: Instituto de Estudos Medievais, 2014. p. 16 – 31 OLIVEIRA, Leandro Rosa de. Nas veredas do Império: guerra, política e mobilidades através da trajetória do Visconde de Serro Alegre (Rio Grande do Sul, c.1790 - c.1870). 2016.155 p. Dissertação (Mestrado em História). Pontifica Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016. PEREIRA, Octacílio. Ligeiros traços Biográficos do Ex. Sr. Barão de Santa Tecla. Pelotas: Tipografia da Opinião Pública, 1901. RHEINGANTZ, Carlos Grandmasson. Famílias primeiras de Bagé. Bagé: EDIURCAMP, 1993. RIBAS, Elisabete Marin. Reunindo histórias: o arquivo do IEB e seus fundos pessoais ou Não é pessoal, são negócios - por uma política dos arquivos pessoais. In: CAMPOS, José Francisco Guelfi. (Org.) Arquivos pessoais: experiências, reflexões, perspectivas. São Paulo: Associação de Arquivistas de São Paulo, 2017. p. 96 - 106 ROSA, Maria de Lurdes. Tratar o seu arquivo de família. ROSA, Maria de Lurdes; NÓVOA, Rita Sampaio da. (Coord.) Arquivos de família: memórias habitadas. Guia para salvaguarda e estudo de um património em risco. Lisboa, Portugal: Instituto de Estudos Medievais, 2014. p. 32 - 61 ROSA, Maria de Lurdes; NÓVOA, Rita Sampaio da (Coord.). Arquivos de família: memórias habitadas. Guia para salvaguarda e estudo de um património em risco. Lisboa, Portugal: Instituto de Estudos Medievais, 2014. Coleção Instrumentos de Trabalho 1. SOUSA, Maria João da Câmara Andrade e. Valorizar o seu arquivo de família. In: ROSA, Maria de Lurdes; NÓVOA, Rita Sampaio da (Coord.). Arquivos de família: memórias habitadas. Guia para salvaguarda e estudo de um património em risco. Lisboa, Portugal: Instituto de Estudos Medievais, 2014. p. 94 - 115 TAVARES, Francisco da Silva. Diário da Revolução Federalista de 1893. CABEDA, Corálio Bragança Pardo; AXT, Gunter; SEELING, Ricardo Vaz. (Org.). Porto Alegre: Procuradoria Geral – Geral de Justiça, Projeto Memória, 2004. Tomo I. (Memória Política e Jurídica do Rio Grande do Sul, 3). TESSITORE, Viviane. Arquivos, centros de documentação e de memória: perfis institucionais e funções sociais. In: CAMPOS, José Francisco Guelfi. (Org.) Arquivos pessoais: experiências, reflexões, perspectivas. São Paulo: Associação de Arquivistas de São Paulo, 2017. p. 12 - 28 55 SUMÁRIO A trajetória da documentação da família Silva Tavares: do acesso privado ao público visando a difusão Hemeroteca do Museu Dom Diogo de Souza, Bagé, Rio Grande do Sul: Jornal O Bageense, 12/08/1864, p.2. Jornal União Liberal, 26/09/1886, p.1. Fontes digitais online: BOTELHO, Margarida Maria. Entrevista concedida. Página inicial da Prefeitura Municipal de Bagé, Facebook, 17 out. 2019. Disponível em: https://m.facebook. com/story.php?story_fbid=1278030795701513&id=665563420281590 Acesso em: 15 jan. 2021. VIEIRA, Yara Maria Botelho. Entrevista concedida. Página inicial da Prefeitura Municipal de Bagé, Facebook, 17 out. 2019. Disponível em: https://m.facebook. com/story.php?story_fbid=1278030795701513&id=665563420281590 Acesso em: 15 jan. 2021 VIEIRA, Yara Maria Botelho. Postagem em página pessoal do Facebook, 18 out. 2020. Disponível em: https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=10222241295 359602&id=1181786639 Acesso em: 15 jan. 2021. 56 SUMÁRIO 57 SUMÁRIO TIPOLOGIAS E SIMBOLISMOS DO ACERVO DO CEMITÉRIO PATRIMONIAL DA SANTA CASA DE CARIDADE DE BAGÉ Clarisse Ismério 1 58 SUMÁRIOTipologia e simbolismos do acervo do cemitério patrimonial da Santa Casa de Caridade de Bagé 1 Introdução A cidade dos mortos ou campos santos carregam um imaginário permeado pelo sofrimento e pelos mitos, mas, quando observamos mais detalhadamente sua história e os símbolos presentes nos túmulos e mausoléus, nos deparamos com outra realidade. Na idade média, os mortos eram enterrados fora do perímetro urbano, mas como a Igreja era definida como “espaço sagrado”, muitos representantes das camadas abastadas passaram a ser depositados em seu solo. Os princípios de higiene e a preocupação de conter a proliferação de epidemias, decorrentes do século XVIII, mudaram essa cultura e fizeram com que os mortos fossem enterrados em cemitérios mais afastados das cidades. Paralelamente, cresceu a preocupação com a estética dos túmulos, jazigos e mausoléus, fruto do gosto peculiar das camadas abastadas ascendentes, que buscavam [...] registrar suas particularidades nos cemitérios, que se tornaram o local propício para: eternizar o individualismo do homem, recém-valorizado após a morte; romper o anonimato das pessoas que passam a promover-se, distinguir-se dos demais, adquirir propriedades perpétuas, cabendo aos homens poderosos o melhor quinhão da vida eterna. (BORGES, 2002, p. 130-131). Característica acentuada no século XIX, na medida em que os cemitérios tornam-se locais de perpetuação e elevação da imagem das famílias abastadas, misturando “poder, orgulho e glória post mortem” e onde se eleva “bem alto a honra dos Mortos; ergue-se, assim, a pujança dos vivos.” (SOUSA, 1995, p. 176). Assim, cada família escolhia como iria manter viva a memória de seus entes queridos, ao criar uma composição cênica permeada por 1. Historiadora. Doutora em História do Brasil pela PUCRS. Coordenadora do Cursos de História, Professora e Pesquisadora da URCAMP/Bagé/RS. [email protected] 59 SUMÁRIOTipologia e simbolismos do acervo do cemitério patrimonial da Santa Casa de Caridade de Bagé [...] simbologias próprias, recorrendo frequentemente às alegorias, acaba por conferir a este entendimento um caráter misterioso, pouco claro, exigindo o recurso constante à interpretação e elevando a ideia de que só se atinge o verdadeiro sentido cemiterial da morte através de uma rede complexa de significantes. (SOUSA, 2003, p. 282). Ariès (1982, p. 578-579) ressalta que, com o passar do tempo, os cemitérios perderam gradativamente seu aspecto mórbido e desolador, para se transformar em locais de convivência e sociabilidade, transformando-se em guardiões da cultura e da memória de seu povo, por conservarem os restos mortais de figuras ilustres. Logo, observa-se que esses espaços não foram criados somente para acolher os mortos, mas para serem apreciados pelos vivos, pois quando “criados no período Romântico foram concebidos precisamente para ser visitados e admirados pelas obras de arte neles contidas, obras essas que eram muitas vezes representativas do que de melhor se fazia na época.” (QUEIROZ, 2007, p. 1). Um fator que auxiliou esta visão foi a difusão das ideias positivistas, pois Comte, por meio da máxima “os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mortos”, justificava que a memória e os feitos dos heróis e homens notáveis do passado deveria servir de exemplo e inspiração para as futuras gerações. O mesmo processo ocorreu nos cemitérios brasileiros que formaram, ao longo do tempo, um acervo de grande valor artístico e histórico, sendo estes analisados através das pesquisas e produções científicas. Portanto, os Cemitérios Patrimoniais são espaços de memória, verdadeiros museus a céu aberto, que servem de referência para pesquisas acadêmicas, projetos em educação patrimonial, passeios temáticos, eventos culturais e roteiros turísticos. Nestas breves páginas, evidenciamos a importância do acervo do Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé para a reconstituição e preservação da história local. Para tanto, dividimos o capítulo em duas partes, sendo que na primeira apresentamos as produções científicas de relevância sobre o tema e na segunda analisamos algumas representações simbólicas, que fazem parte do roteiro teatral do evento cultural Sarau Noturno2. 2. Em 31 de outubro de 2008, ocorreu a primeira apresentação do evento cultural Sarau Noturno, no Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé. Trata-se de uma apresentação teatral que conta um pouco da história de Bagé e seu imaginário simbólico, mesclando com passagens e personagens da literatura romântica. O Sarau Noturno é um projeto de Edu- 60 SUMÁRIOTipologia e simbolismos do acervo do cemitério patrimonial da Santa Casa de Caridade de Bagé Recortes das investigações cemiterial e tumular sobre arte No Brasil, os estudos sobre a arte cemiterial e tumular iniciam com Clarival do Prado Valladares, que publicou, em 1972, a obra “Arte e sociedade nos cemitérios brasileiros”, que apresenta uma pesquisa extensa e detalhada sobre a arte e arquitetura dos cemitérios de várias cidades brasileiras, fruto de uma minuciosa pesquisa desenvolvida de 1960 a 1970. Em 1973, em uma autocrítica sobre sua investigação, publicada na Revista Brasileira de Cultura, salientava que “entre a data de entrega dos originais à tipografia (1970) e a de publicação (1972) foram inumeráveis as mutilações, destruições, desapropriações de jazigos ditos perpétuos que observamos nos cemitérios do Rio de Janeiro” e que alguns dados importantes ficaram de fora. Porém, salientou que apesar dessas “falhas” produziu uma obra de grande referência que serviria de base para futuras pesquisas sobre arte tumular e cemitérios e não escondeu sua grande satisfação de ter transformado um assunto “tabu”, outrora esquecido pelos estudiosos, em um tema de pesquisa em ascensão: Alegra-me, sobretudo, verificar que os mais novos darão melhores frutos. Assim serão vistos, sempre, através do meu reconhecimento e através da alegria de quem não pode negar, nem se esquecer, que nesses novos rumos dos estudos sobre genuinidade brasileira foi semente que medrou e viceja. (VALLADARES, 1973, p. 16). O tema frutificou nos estudos de Maria Elizia Borges, Tania Andrade Lima e Harry Rodrigues Bellomo. A pesquisadora Maria Elizia Borges (2002) analisa a arte e arquitetura funerária por meio da produção dos artistas marmoristas italianos e dos ateliês de Ribeirão Preto. Maria Elizia Borges possui uma grande pesquisa voltada para os estudos cemiteriais, sendo considerada a grande dama da pesquisa cemiterial no Brasil3. Tania Andrade Lima classificou os cemitérios como sítios arqueológicos, cujos artefatos expressavam as mudanças no imaginário coletivo referente à morte, fruto da ruptura da ordem escravocrata. A pesquisa foi desenvolvida nos cemitérios do Rio de cação Patrimonial, que tem como proposta a valorização e preservação da arte cemiterial. 3. Em 19 de abril de 2004, no 1º Encontro sobre Cemitérios Brasileiros, Maria Elizia Borges, o geógrafo Eduardo Coelho Morgado Rezende e o historiador Harry Rodrigues Bellomo fundaram a Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais (ABEC), uma entidade sem fins lucrativos voltada para a promoção e divulgação das pesquisas na área. Atualmente, encontra-se sediada no Memorial Funerário Mathias Haas, em Blumenau/SC (https://www. estudoscemiteriais.com.br/abec). 61 SUMÁRIOTipologia e simbolismos do acervo do cemitério patrimonial da Santa Casa de Caridade de Bagé Janeiro, da Venerável Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco de Paula (Cemitério do Catumbi), escolhido como referência de cemitério religioso; e o Cemitério de São João Batista, como cemitério secular (LIMA, 1994, p. 93-95). Harry Bellomo (2000) analisou as múltiplas tipologias da arte funerária nos cemitérios de Porto Alegre e do interior do estado do Rio Grande do Sul, destacando que se caracterizam como importantes fontes históricas (materiais e imateriais), pois colaboram para a preservação da memória familiar e coletiva. Permitindo, dessa forma, o estudo das manifestações e crenças religiosas, das ideias e posturas políticas; mostrando os gostos artísticos da sociedade; oportunizando o conhecimento da formação étnica do município e da expectativa de vida da população; além de propiciar o desenvolvimento de estudos genealógicos. Nos anos que trabalhou na Pontifícia Universidade Católica do Rio grande do Sul (PUCRS), Bellomo coordenou um grupo de pesquisa denominado Cemiteriais, cujos trabalhos foram publicados no livro “Cemitérios do Rio Grande do Sul: arte, sociedade, ideologia”, de 2000 e 2008. A contribuição do professor Bellomo, estudos cemiteriais no Rio Grande do Sul, é de valor inestimável e seu legado é mantido pelos pesquisadores que foram seus alunos. Os primeiros apontamentos históricos sobre o Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé iniciaram com o historiador Tarcísio Taborda4, ao escrever em sua coluna no Jornal Correio do Sul artigos evidenciando detalhes, institucionalização, principais túmulos, famílias e personalidades. Esses e outros artigos foram publicados na íntegra em 2015, na obra intitulada “Bagé de ontem e de hoje: 4. Tarcísio Antônio da Costa Taborda, magistrado, professor universitário e historiador. Nascido em Bagé, no dia 13 de julho de 1928, ele era filho do médico e maior nome na área da educação daquela região, Dr. Attila Taborda (1897-1975). Tarcísio casou-se com Maria Valderê Nunes, tendo os filhos José Tiaraju, Maria Moema e Maria Bartira. Entre 1951 e 1955, foi professor no ensino secundário, dando aulas de História do Brasil, Elementos de Economia Política, Português e Latim. Em 1952, bacharelou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da Universidade do Rio Grande do Sul (UFRGS). Advogou até 1955, quando passou a magistrado. Exerceu o magistério superior nas faculdades de Filosofia, Ciências e Letras e de Direito, integrante das Faculdades Unidas de Bagé (FUnBA) – Fundação Attila Taborda. Na década de 1950, começou um museu em sua própria casa. Quando já não havia mais espaço para as peças colecionadas, ele conseguiu com seu pai espaço no local chamado Vila Vicentina, surgindo daí o Museu Dom Diogo de Souza, cujo nome homenageia o fundador de Bagé. Tarcísio criou ainda duas outras instituições museológicas: o Museu Patrício Corrêa Câmara, destinado a preservar material arqueológico encontrado em escavações executadas na área do Forte de Santa Tecla (1773-1776), e também o Museu da Gravura Brasileira, que possui acervo de obras de artistas locais, brasileiros e de outros países. Reconhecido nacionalmente por seu trabalho, foi homenageado recebendo in memoriam, no dia 18 de dezembro de 2008, no Museu Histórico Nacional, a Medalha do Mérito Museológico (CHAVES, 2014). 62 SUMÁRIOTipologia e simbolismos do acervo do cemitério patrimonial da Santa Casa de Caridade de Bagé coletânea de artigos publicados na imprensa (1930- 1994)”, organizada por Elida Hernandes Garcia. Eliane Bastianello, em sua dissertação de mestrado intitulada “Os monumentos funerários do Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé e seus significados culturais: memória pública, étnica e artefactual (1858-1950)”, de 2010, estudou os simbolismos, edificações e ornamentos funerários desse espaço de memória, como também a importância do escultor-marmorista José Martinez Lopes na produção local. A pesquisa foi transformada no livro “Memória retida na pedra”, lançado em 2016. Em 2018, infelizmente, a apaixonada pesquisadora da arte cemiterial faleceu, mas deixou uma importante contribuição para a história de Bagé. Um outro olhar reflexivo sobre o tema apresenta a dissertação de Sérgio Roberto Rocha da Silva, “A Representação do Herói na Arte Funerária do Rio Grande do Sul (1900-1950)”, defendida na UFRGS em 2001, que demonstrou as representações simbólicas e alegóricas do herói positivista presentes em túmulos dos cemitérios de Rio Grande, Porto Alegre e Bagé. Em 2007, iniciamos, no Centro Universitário da Região da Campanha (Urcamp), o Projeto de Pesquisa “História através da Arte Cemiterial”, cujo objetivo foi refletir a história do município de Bagé por intermédio das representações simbólicas expressas no Cemitério da Santa Casa de Caridade. Caracterizou-se, também, como uma pesquisa documental, estruturada em fontes primárias bibliográficas, materiais e orais. As informações foram sistematizadas em três etapas: identificação dos túmulos e mausoléus; registro fotográfico; e levantamento de informações nos jornais e com as famílias locais. Alguns dos resultados foram publicados em artigos em periódicos e eventos científicos, dos quais destacamos os seguintes títulos: “Preservando o Patrimônio Cultural Dos Cemitérios: Estudo sobre os Cemitérios de Porto Alegre e Bagé” (2013); “Os Símbolos e Representações Femininas da Arte Cemiterial no Período Republicano do Rio Grande do Sul/Brasil (1889-1930)” (2016); e “Um outro olhar sobre os cemitérios: refletindo a arte cemiterial sob a perspectiva das pesquisas, ações, passeios e eventos culturais” (2017). Contudo, os resultados da pesquisa também oportunizaram na organização do evento cultural Sarau Noturno (2008), um evento teatral cujas apresentações ocorrem no cemitério da Santa Casa de Bagé. O projeto foi alicerçado na metodologia da educação patrimonial e “ativação da memória social, recuperando conexões e tramas perdidas, 63 SUMÁRIOTipologia e simbolismos do acervo do cemitério patrimonial da Santa Casa de Caridade de Bagé [...] promovendo a apropriação pelas comunidades de sua herança cultural, resgatando ou reforçando a autoestima e a capacidade de identificação dos valores culturais” (HORTA, 2000, p. 35). O evento foi criado como um projeto de extensão e, em 2018, passou para a categoria de projeto de ensino, no qual participam acadêmicos de diversos cursos da Urcamp como voluntários. O Sarau Noturno oportunizou várias produções científicas, das quais destacamos os artigos: “Projeto Cultural Sarau Noturno: desenvolvendo a educação patrimonial através da arte cemiterial” (2013); “Vozes Femininas do Sarau Noturno: refletindo a arte cemiterial sob a perspectiva das representações e olhares femininos” (2020); e o livro Sarau Noturno, publicado em 2016. Atualmente, devido ao momento de isolamento social, causado pela pandemia do Covid 19, o evento foi virtualizado, sendo reestruturado o roteiro, ensaios via Google Meet, virtualização dos túmulos, construção do cenário virtual para a apresentação que ocorreu dia 31 de outubro via plataforma YouTube5. A experiência foi narrada no capítulo “Novo Sarau Noturno: do presencial ao virtual”, da coletânea “Patrimônio Cultural: simbolismos, intertextualidades e polifonias”, editada em 2021. As representações simbólicas presentes no Cemitério Patrimonial da Santa Casa de Caridade de Bagé O Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé possui um acervo escultórico de inegável valor histórico, artístico e arquitetônico, fruto da opulência econômica da segunda metade do século XIX. Observamos que a preocupação com a ostentação simbólica reflete o mesmo padrão de outros espaços sagrados nos quais encontramos o [...] reflexo da organização da sociedade local onde a magnificência das construções é tradutora da exuberância possidente dos vivos. Desse modo, as construções cemiteriais surgem como pretextos dos vivos para honrar os mortos e, ao mesmo tempo, manter a dignidade dos que permanecem (SOUZA, 1995, p. 176). O primeiro cemitério da cidade era localizado atrás da Igreja Matriz de São Sebastião, mas Tarcísio Taborda ressaltou, em um artigo publicado no Jornal da Manhã, em 27 de setembro de 1951, que 5. As apresentações e material de divulgação do Sarau Noturno estão disponíveis na plataforma: https://www.youtube.com/channel/UC3j7erV6UWaV95Cy9BHZ5WA e o vídeo comemorativo de dez anos (2019) está disponível no link: https://www.facebook.com/UrcampOficial/videos/campus-bag%C3%A9-projeto-cultural-sarau-noturno/2358844901069842/ 64 SUMÁRIOTipologia e simbolismos do acervo do cemitério patrimonial da Santa Casa de Caridade de Bagé conforme o crescimento e as necessidades da cidade o cemitério foi transferido, “para terrenos na esquina da Rua General Osório com a Rua 3 de fevereiro, depois passou para a esquina da Avenida Sete de Setembro com a rua Marechal Deodoro”. E, neste endereço, foi inaugurado sob as bênçãos do padre Cândido Lúcio de Almeida, em 1858 o Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé, que iniciou modestamente com catacumbas, mas com o passar do tempo foi “enriquecido por sepulturas magníficas e artísticas. Cemitério que guarda os Heróis da Pátria. Heróis da caridade. Heróis do Ensino. Heróis de Batalhas inúmeras. Cemitério onde repousam nossos antepassados.” (TABORDA, 2015, p. 68-69). Atualmente, o cemitério patrimonial guarda uma parte da história da Rainha da Fronteira6, que é contada nas memórias das famílias tradicionais; dos vultos históricos, heróis cívicos que participaram da Revolução Farroupilha7 e da Guerra do Paraguai8; das representações simbólicas e da releitura promovida pelo imaginário social. Em seu acervo escultórico, encontramos as tipologias cristã, alegórica e cívico celebrativa. A proposição estética da arte cemiterial revela uma forte influência do culto ao herói, com o intuito de influenciar e servir de modelo para as gerações futuras, princípios preconizados na Doutrina Positivista Comteana9, que 6. Apelido atribuído à cidade de Bagé por sua localização. 7. A Revolução Farroupilha, ou Guerra dos Farrapos, ocorreu de 1835 a 1845, na qual as elites políticas da província de São Pedro do Rio Grande do Sul se insurgiram contra o governo Imperial do Brasil. O resultado foi a declaração de independência da província como estado republicano, dando origem à República Rio-Grandense. 8. A Guerra do Paraguai ocorreu de 1864 a 1870, sendo travada entre o Paraguai e a Tríplice Aliança, formada pelo Brasil, Argentina e Uruguai. 9. A doutrina Positivista de Auguste Comte teve uma influência marcante na história do Rio Grande do Sul. Começou em 1882, quando Júlio de Castilhos fundou o Partido Republicano Riograndense (PRR), adotando a filosofia comteana expressa na obra Política Positiva, para dar um sustentáculo doutrinário que garantisse a disciplina e coesão do partido. Conforme destacou Boeira, não ocorreu uma simples transposição da doutrina de Comte para sociedade rio-grandense. Na realidade, existiam três tipos de ideologias positivistas nos anos de 1870 a 1930, que são: o político, o difuso e o religioso. O político foi uma releitura das ideias de Auguste Comte por Júlio de Castilhos, com objetivo de resolver as necessidades imediatas e os projetos a longo prazo, tornando-o mais direto e flexível de ser entendido pelo público politicamente relevante. Ficou conhecido como Positivismo Castilhista ou Positivismo Heterodoxo. O difuso unia a releitura castilhista com o comteano e mais o cientificismo evolucionista, chegando ao alcance de todos por meio de jornais, revistas, palestras, conferências e dos símbolos e representações presentes na arte fachadista e cemiterial. Já o religioso seguia a doutrina da Religião da Humanidade, também era chamado de Positivismo Ortodoxo e servia de reserva moral para o castilhismo (BOEIRA, 1980, p. 38-59). A moral, a rigidez, o autoritarismo e a disciplina eram os pontos que uniam os três tipos de Positivismo, fundindo-os em um único objetivo: organizar a sociedade através de uma moral conservadora. 65 SUMÁRIOTipologia e simbolismos do acervo do cemitério patrimonial da Santa Casa de Caridade de Bagé [...] exerceu grande influência no culto aos heróis, o que justifica o período do surto da arte cemiterial, como este momento em que os cemitérios passam a ser os melhores locais de homenagens aos homens que se destacaram na política, cultura e dentro de suas próprias famílias. O positivismo no Rio Grande do Sul, ao utilizar a arte funerária como veículo de perpetuação de sua ideologia, teve como objetivo principal consolidar seus atos para as futuras geraçõe (SILVA, 2001, p. 14). Um grande exemplo de exaltação ao culto do herói é o mausoléu de Antônio de Souza Netto10 (Imagem 1), um suntuoso jazigo em mármore de Carrara construído na Itália que foi transportado em blocos para Bagé (BONÉS, 1995). Lembrando que o herói se constitui como um “personagem da história de um povo que lutou em prol de seus cidadãos e praticou atos de auto sacrifício pelo seu país e trabalhou em um grande feito no campo de batalha, ou ainda numa força de trabalho” (VALLE e TELLES, 2014, p. 6), atributos que são encontrados nos símbolos que perpetuam a memória e os feitos notáveis de Netto. Imagem 1: Mausoléu do General Souza Netto Cemitério da Santa Casa de Bagé Fotografia: Diones Alves. 10. Conforme relata Elaine Bastianello, em julho de 1866, o General Netto faleceu no hospital de Corrientes, na Argentina, e após seu falecimento seus restos mortais foram deslocados por três vezes. Foi trazido de Corrientes para Bagé, foi inumado no jazigo-capela de sua família no Cemitério da Santa Casa de Caridade, construído poucos anos antes, por suas irmãs, Floriana Marques Netto e Bernardina de Mattos Netto. Porém, mais tarde, suas filhas, Teutônia Netto e Maria Antonia Netto Mendilaharsu, que residiam no Uruguai, transferiram seus restos mortais para Montevidéu, onde permaneceram até o centenário de sua morte. Em 1966, ano do centenário, seus restos mortais voltaram para Bagé e foram depositados em um mausoléu construído para guardá-los. O processo de transladação foi uma iniciativa do historiador Tarcísio Antônio da Costa Taborda e apoiado pela Câmara Municipal de Bagé e pelo Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (BASTIANELLO, 2010, p. 57-62). 66 SUMÁRIOTipologia e simbolismos do acervo do cemitério patrimonial da Santa Casa de Caridade de Bagé Historicamente, e segundo o imaginário social, o perfil de Netto foi marcado pela sua participação na Revolução Farroupilha (1835-1945) e na Guerra do Paraguai (1864-1870), mas não foi representado como um general em seu leito de morte. Pelo contrário, foi eternizado iconograficamente como um herói ilustrado que, ao invés da farda, veste terno e gravata, símbolos de sobriedade e elegância na época. Sua imagem está representada na parte central do túmulo, em um brasão celebrativo, rodeado de flores. As flores são identificadas, genericamente, como símbolos da saudade, mas neste brasão podemos identificar dois tipos específicos com seus significados próprios, que são a camélia (perfeição) e o jasmim (elegância). As coroas de flores são “indicativas de uma alegria divina, são comumente empregadas para representar a vitória da alma humana sobre o pecado da morte. Elas são compostas de várias flores como rosas, lírio, margaridas e azevinho, geralmente arrematadas por um laço de fitas” (BORGES, 2002, p. 203). A estrutura do mausoléu se classifica esteticamente na tipologia cívico-celebrativa, com uma dupla função de “servir de sepultura e celebrar a memória de vultos destacados no mundo político, econômico social e cultural. Devido a essa dupla função, estes túmulos costumam ter a imagem do morto e alegorias das atividades exercidas ao longo da vida ou sua ideologia” (BELLOMO, 1994, p. 85). Esta tipologia é bastante comum nos cemitérios riograndenses devido à tradição positivista, tendo como grandes exemplos o túmulo de Júlio Prates de Castilho e o Mausoléu de José Gomes Pinheiro Machado, ambos do Cemitério da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. A celebração e perpetuação da memória do herói também podem ser visualizadas nas representações femininas que o acompanham, que são as alegorias do saber e do heroísmo. A alegoria do saber, destacada na Imagem 2 (à esquerda), pode ser interpretada como Clio, a musa da história, pois apresenta dois livros fechados. O livro que está em seu colo representa a história da Revolução Farroupilha, na qual foram moldados princípios como cidadania, liberdade, separatismo e liderança política no Rio Grande do Sul. O outro livro, que está debaixo do pé da musa, refere-se à Guerra do Paraguai. Clio ocupa seu lugar de guardiã da história e da tradição, sendo ela a responsável por perpetuar a história do herói ilustrado, que tem a cidade de Bagé como local de sua última morada. 67 SUMÁRIOTipologia e simbolismos do acervo do cemitério patrimonial da Santa Casa de Caridade de Bagé Imagem 2: Musa Clio e Alegoria do heroísmo, detalhe do Mausoléu do General Souza Netto Cemitério da Santa Casa de Bagé Fotografias: Diones Alves. Uma segunda representação feminina, localizada à direita do mausoléu, refere-se à alegoria do heroísmo, destacada por uma jovem com o semblante triste e com uma coroa de louros em seu colo (Imagem 2, à direita). A coroa de louros, símbolo da vitória e da glória, na antiguidade clássica era uma homenagem atribuída aos heróis e aos atletas. As representações artísticas femininas, presentes nos cemitérios do Rio Grande do Sul, contribuíram para a divulgação dos preceitos e da moral positivista, cujo objetivo era consolidar junto ao imaginário popular o símbolo de perfeição feminina, inspirada em Clotilde de Vaux, representação da Religião da Humanidade11. A mentalidade conservadora propiciou a reconstrução de uma 11. No dia 28 de agosto de 1845, Conte conheceu Clotilde de Vaux na igreja de São Paulo, durante um batizado. A partir daí, passou a nutrir uma forte paixão por Clotilde. Clotilde estava com 30 anos e foi casada com Lepoquer de Vaux, que a abandonou muito cedo. Sendo tesoureiro, desviava dinheiro dos cofres públicos e de particulares e ao ser descoberto fugiu sem deixar vestígios. O filósofo revela sua paixão à amada, mas ela se mantém reservada, pois se achava mais digna de piedade do que de ternura. Apesar de decepcionado com a recusa de seu amor, Comte propôs uma relação fraternal. Quando Clotilde adoeceu, com problemas sérios nos brônquios e abdominais, Comte revelou que seu amor era casto e puro como ela desejava. Deu-lhe o amor divino espiritual. A enfermidade aumentou e ele, não podendo mais visitá-la, escreveu-lhe diariamente. Em 5 de Abril de 1846, Clotilde faleceu. Em uma tentativa de manter viva a imagem da mulher que tanto amou, Comte transformou-a em sua musa, criando a Religião da Humanidade. Nascia uma nova fase da doutrina positivista comteana. A vida constante de Comte serviu-lhe de base para construir uma filosofia que idealizava um modelo de mulher. A musa, Clotilde, foi transformada na alegoria da Religião da Humanidade, símbolo de grande adoração. Através do Catecismo Positivista, Comte ditou normas de conduta às mulheres, tendo como modelo a rainha do lar e o anjo tutelar, símbolos formados pelo arquétipo da Grande Mãe (ISMÉRIO, 2019, p. 17). 68 SUMÁRIOTipologia e simbolismos do acervo do cemitério patrimonial da Santa Casa de Caridade de Bagé simbologia impregnada de valores moralistas sobre como deveria ser a conduta feminina. Portanto, as mulheres nos cemitérios foram perpetuadas em estátuas de carpideiras, anjas ou alegorias para evidenciar o dever da mulher enquanto guardiã da moral. Na estatuária, foram ressaltadas somente as virtudes femininas preconizadas pelo patriarcado, pois na arte deveria expressar somente a imagem ideal a ser seguida, cultivando assim o aperfeiçoamento humano. Uma terceira figura em destaque, na parte de cima do mausoléu do General Netto, é uma anja guardiã orante, que zela pela moral e pelos valores cristãos (Imagem 1). A simbologia do anjo tutelar aparece também nos túmulos dos cemitérios trazendo como atributos a caridade, consolação, anunciação e o juízo final. Os anjos normalmente são classificados na tipologia cristã, mas neste mausoléu faz parte do conjunto da obra que reverencia os atributos e representativos do herói. Os anjos eram figuras comuns nas sepulturas de crianças, cuja inocência lhes legitimava o título de “anjos do céu”. No século XIX, passou a ter duas representações sucessivamente, inicialmente como um jovem que representa o anjo da morte e, logo após, a forma mais frequente, tornou-se uma figura feminina de formas opulentas (VOVELLE, 1997, p. 330-331). Os anjos sofreram alterações em sua imagem e atributos, sendo que tais elementos acrescidos são fruto do imaginário popular de cada período. Os anjos são os intermediários entre Deus e o mundo, tendo o papel de executar as ordens do Senhor, transmitindo os sinais do sagrado, as advertências e punições. A apresentação dos arcanjos na Bíblia e nos escritos da Contra Reforma era bélica, ou seja, todos possuíam armadura para lutar contra os inimigos da fé, pensamento tridentino que propunha o ideal da guerra santa por meio da catequização, levando a cristandade aos pagãos. A imagem do anjo guerreiro muda com o passar do tempo, tornando-se protetor e intermediário dos homens perante Deus. Isso se dá devido à mudança do pensamento cristão, que deixa de lado a postura guerreira para ocupar-se da condução do rebanho. O arquétipo continua sendo o mesmo, embora a alteração no símbolo ocorra para acompanhar o discurso do período. O mesmo vai ocorrer com o símbolo ao construir o modelo de anjo feminino, por ser a mulher a consoladora, orientadora e guardiã da sua família. O mausoléu de João da Silva Tavares, Visconde de Cerro Alegre, comandante da divisão de cavalaria do exército imperial 69 SUMÁRIOTipologia e simbolismos do acervo do cemitério patrimonial da Santa Casa de Caridade de Bagé brasileiro e um dos nobres da Rainha da Fronteira, se destaca pela sua simplicidade e altivez (Imagem 3). Imagem 3: Mausoléu do Visconde de Cerro Alegre. Fotografia: Douglas Lemos de Quadros. O mausoléu em mármore, em formato de capela neoclássica, que apresenta colunas inspiradas na estética dórica, tem no seu frontão uma coroa com pequenas flores que, para o cristianismo, simboliza a salvação alcançada ou ainda a saudade. Sob a capela, tochas acesas representam a iluminação espiritual e o conhecimento. Entre elas, o resto de uma cruz, que significa a morte e a ressurreição de Cristo. A austeridade presente no túmulo do visconde é característica da aristocracia local que “tinha uma consciência tão profunda de sua importância e de seu papel na sociedade riograndense que não precisou reforçar seu status através de túmulos imponentes. Colocar o título e o brasão lhes parecia suficiente” (BELLOMO, 1994, p. 64). A nobreza tem suas origens no período medieval, no qual a fidelidade entre os senhores e guerreiros era garantida pelo pacto militar de suserania e vassalagem. O suserano protegia, dava sustentação jurídica e terra, enquanto, em troca, o vassalo prestava obrigações militares. Era uma forma de garantir a proteção mútua e a estabilidade administrativa e social. Essa estrutura tornou-se mais complexa a partir do Império Carolíngio, quando Carlos Magno organizou a administração de seus domínios em três esferas: condados, governados pelos condes; 70 SUMÁRIOTipologia e simbolismos do acervo do cemitério patrimonial da Santa Casa de Caridade de Bagé governos provinciais, controlados pelos duques; e as marcas, governos militares que tinham como função defender fronteiras. Já no período moderno, devido à centralização do poder nas mãos do rei e o crescimento da corte, a nobreza passou a ser também palaciana (viviam nas cortes sustentadas pelos monarcas) e togada (compravam os títulos nobiliários). No Brasil, a nobreza iniciou sua formação com D. João VI e foi mantida durante o I e II Império, seguindo a estrutura portuguesa: duques, marqueses, condes, viscondes e barões. Era um título concedido pelo monarca ao súdito por serviços prestados à coroa, mas existiam também aqueles que eram comprados. Em nenhum dos casos o título era hereditário. João da Silva Tavares recebeu seus títulos nobiliários pelos serviços prestados à monarquia e pela lealdade dedicada ao Império. Em 1859, ganhou o de “Barão de Cerro Alegre” e, em 1870, ao final da Guerra do Paraguai foi-lhe auferido o título de “Visconde com Grandeza”. Essa distinção autorizava usar em seu brasão de armas a coroa do título superior, no caso o de conde. Por seus feitos, também recebeu as comendas de Comendador da Ordem de Cristo e Cavaleiro da Ordem de Aviz. Observamos que seu mausoléu não tem nenhuma alusão iconográfica aos títulos, a única referência é a identificação: “Sepulcro do Visconde de Cerro Alegre e sua família”. Por outro lado a exuberância e imponência estão presentes no jazigo de Francisco Ilarregui (Imagem 4). Ilarregui era um imigrante espanhol, que prosperou em Bagé através de atividades ligadas ao comércio e tornou-se uma figura de destaque na sociedade, como foi destacado em seu obituário: Aos estragos da cruel enfermidade que há muito o atormentava, faleceu na manhã de ontem, o honrado e laborioso comerciante e capitalista desta praça, Sr. Francisco Ilarregui. O finado era um cavalheiro respeitável, de caráter austero e muito concentrado ao trabalho, conseguido à custa de incessante labor, adquirir honestamente uma regular fortuna. Era natural de Espanha, casado e contava 62 anos de idade. Verdadeiro homem de bem, gozou sempre de elevado crédito e da maior consideração na sociedade em que viveu (O DEVER, 1905, p. 2). O mausoléu é todo em mármore, representando um templo grego, que ao centro tem o busto de Ilarregui sobre um caixão. Mostra a opulência de um homem que na morte queria ser representado como um herói letrado entre as colunas de sua acrópole particular. 71 SUMÁRIOTipologia e simbolismos do acervo do cemitério patrimonial da Santa Casa de Caridade de Bagé Imagem 4: Jazigo de Francisco Ilarregui, Cemitério da Santa Casa de Bagé Fotografia: Diones Alves. O detalhe central do jazigo, expresso na platibanda, reflete sobre o tempo que se esvai rapidamente, representado pela ampulheta alada, e a iminência da morte é destacada pelas tochas que se apagam (Imagem 5). Essa representação da morte é a antítese da passagem bíblica na qual o início da vida é simbolizada pela luz que se acende conforme determina Criador: “Deus disse: “Faça-se a luz! E a luz foi feita” (GENESIS, 3:1). Consideramos que o jazigo, simbolicamente, foi feito para preservar e edificar a memória do morto, mas também instiga a quem observar o túmulo que reflita sobre a certeza da morte e efemeridade da vida. Imagem 5: Representação da Morte, detalhe do jazigo de Francisco Ilarregui (Fotografia de Diones Alves). 72 SUMÁRIOTipologia e simbolismos do acervo do cemitério patrimonial da Santa Casa de Caridade de Bagé Normalmente, quando pensamos na imagem da morte imagina-se a figura do ceifador, tradicional representação da morte no imaginário medieval, mas com o passar do tempo a morte também passou a ser personificada com atributos femininos, sendo identificada por uma jovem que apaga a chama da vida. Simbolicamente, a morte evidencia o aspecto perecível e destrutível da existência, mas também de revelação e introdução, pois está presente nos rituais de iniciação assumindo o significado psicológico de transição para uma nova fase, uma nova etapa a ser seguida, pois “liberta das forças negativas e regressivas, ela desmaterializa libera as forças de ascensão do espírito” (CHEVALIER e GHEERBRANT, 1994, p. 621). A imagem feminina é bastante comum nos cemitérios, adornando túmulos e mausoléus, um característica decorrente da mentalidade positivista que consagrou a mulher como consoladora, orientadora e guardiã da família. Trata-se da tipologia alegórica que “em geral são figuras femininas, representadas nos padrões do academicismo clássico, personificando a dor, a meditação, a consolação, a saudade, a fé, a caridade e a esperança” (BELLOMO, 1994, p. 85). As carpideiras ou pranteadoras personificam a lamentação, dor e perda. No passado, eram mulheres pagas para chorar nos velórios e enterros, que com o choro comoviam todos os que estavam presentes, mesmo que ele não conhecessem o falecido. Foi uma das mais antigas profissões femininas, pois foram encontradas referências nas pinturas egípcias (presentes nos hipogeus, túmulos escavados nas encostas de montanhas) e em relatos bíblicos (imagem 6). Imagem 6: Carpideiras. Fotografia: Clarisse Ismério. 73 SUMÁRIOTipologia e simbolismos do acervo do cemitério patrimonial da Santa Casa de Caridade de Bagé A saudade é representada como uma mulher triste segurando uma coroa de flores, que pode estar sentada ou debruçada sob o túmulo. Dessa forma, representa todo o sentimento de dor e sofrimento que a perda de um ente querido pode representar para a família e pessoas próximas. Quando aparece abraçada à cruz, agrega, também, a ideia da fé. Pode, ainda, representar a saudade e a esperança quando se apresenta com uma estrela na testa, símbolo da esperança, e olhando para o céu (imagem 7). Imagem 7: Alegorias da saudade e esperança. Fotografia: Douglas Lemos de Quadro e Diones Alves. Apesar das características próprias de cada alegoria, todas as figuras femininas resumem-se na representação da viúva eterna e da guardiã da moral, consagradas pelo positivismo. Por meio da arte cemiterial, as imagens femininas transformam-se em viúvas eternas que zelam pela memória das famílias ilustres. Existem túmulos que, além de guardarem a memória, registram a dor da perda ou uma tragédia ocorrida. Como é o caso do túmulo de José Paixão Cortes, que narra a morte do menino Euclides E. Felipe, que ao enfiar a mão em uma toca de corujas foi surpreendido por uma serpente. Esse inocente gesto lhe custou a vida. No túmulo, encontramos entalhada a coruja e a serpente, que são guardadas pelas representações da morte, da saudade e da orante (Imagem 8). 74 SUMÁRIOTipologia e simbolismos do acervo do cemitério patrimonial da Santa Casa de Caridade de Bagé Imagem 8: Túmulo de José Paixão Cortes. Fotografia: Janete Souza de Luiz. A coruja é uma ave de rapina noturna que possui diferentes significados nas mitologias. Na Grécia antiga, era uma dos símbolos da deusa Atena, caracterizando o pensamento racional que se sobressai às trevas. Nos mitos indo-americanos, representa a morte e a guardiã dos cemitérios (CHEVALIER e GHEERBRANT, 1994, p. 293). E a serpente também possui múltiplos significados, mas predomina a interpretação da tradição judaico-cristã, na qual está associada ao demônio, responsável pelos desmandos e sofrimento da humanidade. Podemos constatar, nesse breve detalhamento de algumas das obras que compõem o acervo do Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé, que ele se caracteriza como um museu a céu aberto, um espaço de memória, no qual a história das famílias locais são contadas através de mausoléus, túmulos, estátuas e símbolos. Durante a pesquisa, constatamos que uma grande parte da sociedade bajeense não conhecia a história e os significados expressos nos túmulos e mausoléus. Assim, diante de tal constatação foi proposta a organização do um evento cultural Sarau Noturno, para servir de mediador e interlocutor, aproximando a população local da sua história e da arte cemiterial. 75 SUMÁRIOTipologia e simbolismos do acervo do cemitério patrimonial da Santa Casa de Caridade de Bagé Considerações finais Gradativamente, após anos de pesquisas e múltiplas produções científicas, os estereótipos e tabus atribuídos aos cemitérios são substituídos pela compreensão de que esses ambientes também podem ser caracterizados como instituições culturais, espaços de memória, acervos documentais ou grandes galerias de arte. Nessa breve narrativa, evidenciamos a excelência do acervo do Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé para a reconstituição da história local, ao analisarmos uma parte significativa de seu rico acervo. Assim, enfatizamos a importância de conhecer e preservar o Cemitério Patrimonial da Santa Casa de Caridade de Bagé, pois, enquanto guardião da memória, se constitui como uma fonte inesgotável para pesquisas acadêmicas, projetos em educação patrimonial, passeios temáticos, eventos culturais e roteiros turísticos. Metaforicamente, podemos pensar os cemitérios como livros, cujos capítulos são os túmulos e mausoléus, que revelam para o leitor atento um universo de fatos históricos permeados por símbolos universais e narrativas do imaginário social. Referências ARIÈS, Philipe. O Homem diante da morte. Rio de janeiro: Francisco Alves, Vol. II, 1982. BASTIANELLO, Eliane M. Tonini. Os monumentos funerários do Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé e seus significados culturais: memória pública, étnica e artefactual (1858-1950). Dissertação (Mestrado em Memória e Patrimônio Cultural) – Universidade Federal de Pelotas, 2010. BELLOMO, Harry. A produção da estatuária funerária em Porto Alegre. In.: Rio Grande do Sul: Aspectos da Cultura. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1994. BELLOMO, Harry. Cemitérios do Rio Grande do Sul: arte, sociedade, ideologia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. CHAVES, Ricardo. Tarcísio Taborda, o historiador que fez história. Almanaque Gaúcho, 2014. Disponível em: <http://wp.clicrbs.com.br/almanaquegaucho/2014/03/13/tarcisio-taborda-o-historiador-que-fez-historia/?topo=13,1,1,,,77>. Acesso em: 4 dez. 2014. CHEVALIER, Jean & CHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982. ISMÉRIO, Clarisse. Sarau Noturno. Lisboa: Editora Chiado, 2016. BORGES, Maria Elizia. 2002. Arte funerária no Brasil (1890-1930) ofício de marmoristas italianos em Ribeirão Preto. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 2002. 76 SUMÁRIOTipologia e simbolismos do acervo do cemitério patrimonial da Santa Casa de Caridade de Bagé HORTA, Maria de Lourdes Parreiras. Fundamentos da educação patrimonial. Ciências e Letras, Porto Alegre, n. 27, p. 25-35, 2000. HORTA, Maria de Lourdes; GRUMBERG, Evelina; MONTEIRO, Adriane. Guia Básico da Educação Patrimonial. Brasília: IPHAN, 1999. ISMÉRIO, Clarisse; COUTO, Amanda; ROSA, Darlan. Novo Sarau Noturno: do presencial ao virtual. In.: ISMÉRIO, Clarisse (Org.). Patrimônio Cultu- ral: simbolismos, intertextualidades e polifonias [livro eletrônico]. São Paulo: Vecher, 2021. Disponível em: <https://doi.org/10.47585/9786599324215>. Acesso em: 9 mar. 2021. ISMÉRIO, Clarisse. Vozes Femininas do Sarau Noturno: refletindo a arte cemiterial sob a perspectiva das representações e olhares femininos. Revista M. Estudos sobre a morte, os mortos e o morrer, [S.l.], v. 5, n. 9, p. 142-160, jul. 2020. Disponível em: <https://doi.org/10.9789/2525-3050.2020.v5i9.142-160>. Acesso em: 9 mar. 2021 ISMÉRIO, Clarisse. Sarau Noturno. Lisboa: Editora Chiado, 2016. ISMÉRIO, Clarisse. Os Símbolos e Representações Femininas da Arte Cemiterial no Período Republicano do Rio Grande do Sul/ Brasil (1889-1930). Revista Grafía, v. 13, n. 2, p. 48-65, jul./dez. 2016. Disponível em: <https://doi. org/10.26564/16926250.671> Acesso em: 13 jun. 2017. ISMÉRIO, Clarisse. Projeto Cultural Sarau Noturno: desenvolvendo a educação patrimonial através da arte cemiterial. Revista Vox Musei, Lisboa, v. 1, p. 113-127, 2013. ISMÉRIO, Clarisse. Preservando o Patrimônio Cultural Dos Cemitérios: Estudo sobre os Cemitérios de Porto Alegre e Bagé. Revista Memória em Rede, Pelotas, v.3, n.8, p. 35-49, jan./jun.2013. Disponível em: <https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/Memoria/article/view/9464>. Acesso em: 9 mar. 2021 LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno explicado as crianças. 2. ed. Lisboa: Dom Quixote, 1993. QUEIROZ, Francisco. Os cemitérios históricos e o seu potencial turístico em Portugal. Anuário 21 Gramas, n.º 1, p. 7-12, 2008. Disponível em: <http://www.franciscoqueiroz.com/Cemiterios_historicos_Potencial_Turistico_Portugal_versao_21_ gramas.pdf>. Acesso em: 31 maio 2016. RED IBEROAMERICANA DE GESTIÓN Y VALORACIÓN DE CEMENTERIOS PATRIMONIALES. Disponível em: <www.redcementeriospatrimoniales.blogspot.com>. Acesso em: 12 jun. 2017. SILVA, Sérgio Roberto Rocha da. A Representação do Herói na Arte Funerária do Rio Grande do Sul (1900-1950). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2001. SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e. Subsídios para a Iconografia da Morte no Porto do Século XIX (II). Humanística e Teologia, Porto, n. 16, p. 175-213, 1995. VALLADARES, Clarival do Prado. Arte e Sociedade nos Cemitérios Brasileiros. Brasília: MEC-RJ, 1972. 77 SUMÁRIOTipologia e simbolismos do acervo do cemitério patrimonial da Santa Casa de Caridade de Bagé VALLADARES, Clarival do Prado. Arte e Sociedade nos Cemitérios Brasileiros. Revista Brasileira de Cultura, v. 5, n. 15, p. 9-16, jan./mar. 1973. VALLE, Cléa Fernandes Ramos; TELLES, Verônica. O mito do conceito de herói. Revista do ISAT, Rio de Janeiro, v. 2, n. 1, 2014. Disponível em: <http://www.revistadoisat.com.br/pdf/Clea%20Veronica%20Mito%20Heroi.pdf>. Acesso em: 19 out. 2017. VOVELLE, Michel. Ideologias e Mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 1997. 78 SUMÁRIO 79 SUMÁRIO VILA SANTA THEREZA: PATRIMÔNIO, MEMÓRIA E AUDIOVISUAL Adriana Gonçalves Ferreira 1 80 SUMÁRIO Vila Santa Thereza: patrimônio, memória e audiovisual 1 Introdução A cidade de Bagé localiza-se na região de fronteira, limitada, ao norte, pelos municípios de Lavras do Sul e Caçapava do Sul; ao Sul, pela República Oriental do Uruguai e Herval; ao Leste, por Pinheiro Machado, Hulha Negra e Candiota; ao Oeste, por Dom Pedrito e pela República Oriental do Uruguai. No passado, as posses das terras eram definidas pelas relações de poder e pela expansão territorial, vinculadas às guerras e disputas na fronteira Brasil e Banda Oriental. A linha de fronteira nessa região fazia, do que hoje é Bagé, naquela época, ora território Espanhol, ora território português, até a fundação do Município, em 1811, liderada por Dom Diogo de Souza. A influência das colonizações portuguesa e espanhola contextualiza a economia na região e determina o surgimento do patrimônio arquitetônico e cultural no Município até os dias atuais. O Centro Histórico Vila de Santa Thereza, situado em Bagé, traça uma linha do tempo, segundo Fagundes (2005), desde o surgimento da Charqueada de Santa Thereza, fundada em 1897, pelo imigrante português Antônio Nunes de Ribeiro Magalhães, até o Centro Histórico Vila de Santa Thereza e seu tombamento. A trajetória desse patrimônio perpassa a presença de trabalhadores da charqueada, que habitavam, e ainda habitam, a Vila. Estudar a memória presente entre seus descendentes é fundamental, assim como a Vila Santa Thereza na atualidade. Da mesma maneira, as ações voluntárias da Associação Pró Santa Thereza, movimento da sociedade civil organizada que resultou na revitalização do Centro Histórico Vila de Santa Thereza, em 2008, são relevantes neste trabalho. 1. Mestre em Patrimônio Cultural (UFSM) 81 SUMÁRIO Vila Santa Thereza: patrimônio, memória e audiovisual Dentre essas ações, destaca-se o ressurgimento da Vila Santa Thereza, que teve início com a charqueada, passou pelo encerramento do negócio do charque e o abandono, bem como seu respectivo tombamento, a partir de 1999, com a Lei 3.534/99, que “declara Patrimônio Histórico e Cultural do Município de Bagé, a Capela localizada no Bairro Santa Thereza” (BAGÉ, 1999). No mesmo sentido, a Lei 3.687/2001: tomba como Patrimônio Histórico e Cultural do município, no Bairro Santa Thereza, o Coreto, o Lago que o circunda, mais a área do entrono do referido lago, num raio de 12 metros, localizado próximo à Capela de Santa Thereza, bem como as Ruínas do sobrado que foi residência do Visconde de Ribeiro Magalhães e dá outras providências. (BAGÉ, 2001). Assim como os esforços do Deputado Adilson Troca, no seu Projeto de Lei 33/2002, sancionado, no governo Olívio Dutra, sob a Lei nº 11.891/2003, que “declara bem integrante do Patrimônio Histórico Cultural do Estado, o Complexo de Santa Thereza, no Município de Bagé” (RIO GRANDE DO SUL, 2003). O trabalho incessante da organização da sociedade civil e a revitalização que denomina o espaço como Centro Histórico Vila de Santa Thereza, em que, através da Associação Pró Santa Thereza, foi possível revitalizar no ano 2008: a capela, um teatro, um memorial (ainda inconcluso) e um espaço de eventos ao ar livre. O coreto, que aguarda a segunda fase da revitalização, assim como aguarda a execução de um projeto paisagístico que abriga as ruínas do sobrado. A vila operária, onde residem os trabalhadores, também aguarda revitalização das fachadas. A memória e o traçado na linha do tempo desse patrimônio histórico preservam-se por meio da linguagem audiovisual, com base em experiências já realizadas em Bagé, sob a temática de filmar e ser filmado, com intuito de preservar a memória oral. A proposta de construção de um documentário audiovisual, tem como norte a pedagogia do projeto de cinema, educação e direitos humanos, “Inventar com a Diferença”, resultado de do investimento de políticas públicas, desenvolvido no departamento de cinema da Universidade Federal Fluminense pela então Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, em 2013. Esse projeto, desenvolvido em todos os Estados do Brasil, em 2014, foi aplicado em Bagé, no Rio Grande do Sul, após passar por um edital que selecionou candidatos no Estado. Durante o processo de filmagem com escolas 82 SUMÁRIO Vila Santa Thereza: patrimônio, memória e audiovisual e grupos de diferentes comunidades, em Bagé e no Uruguai, foi perceptível a presença de questões relacionadas ao patrimônio nas imagens, nos desejos de filmar e de falar sobre si. Os filmes que nasceram da pedagogia do “Inventar” permeiam a memória individual e coletiva dos grupos, apresentando vários curtas que abordam temas como patrimônio natural, material e imaterial, em suas dimensões, dentro da identidade cultural da fronteira. Desde o nascimento, percebemos a vida através da imagem e do som, pelos sentidos da visão e audição. Logo, a relação com o audiovisual justifica-se nas relações humanas, faz parte da percepção do ser em sociedade. A relação com a câmera, tanto para quem filma quanto para quem é filmado, é é o alicerce deste estudo, embasado em exercícios, desenvolvidos de maneira singular, que despertam para sentimentos de pertencimento e descobertas de valorização de si, dos outros e do território que se habita. Nesse sentido, é interesse deste trabalho observar o audiovisual na preservação do espaço de memória, o patrimônio, considerando-o um artefato museológico e educativo, a partir de seus processos de produção coletiva. Com isso, pretende valorizar a luta da sociedade civil pela defesa do patrimônio histórico, voltando-se, em especial, para a Vila Santa Thereza, em Bagé. A velocidade com que o mundo atual desconsidera a história, através do descaso e do comportamento efêmero da sociedade contemporânea, é preocupante. Destacar a valorização da história das sociedades e da luta da sociedade civil pela preservação do patrimônio cultural é de extrema relevância para a humanidade. O fenômeno da “globalização”, ao mesmo tempo em que possibilita uma dimensão de intercâmbios de informações e de bens culturais, também poderá ocasionar certa alienação cultural. No que diz respeito à compreensão das diferenças presentes nas sociedades, as questões relacionadas ao patrimônio cultural devem ser tratadas com uma dimensão humana, pois concernem ao indivíduo e suas relações com o mundo. Um documentário sobre o patrimônio histórico, produzido pelos próprios habitantes do entorno do espaço tombado, permite que estes olhem para si a partir de uma perspectiva que extrapola o território, contribuindo, de maneira relevante, para a valorização e a preservação do Patrimônio Histórico Cultural. Observar, construir, realizar, capturar e finalizar um ciclo em torno de imagens, é um processo muito importante para entender o resultado. Dessa forma, é possível dizer que o documentário Vila Santa Thereza 83 SUMÁRIO Vila Santa Thereza: patrimônio, memória e audiovisual é, além de uma ação de educação patrimonial, um ato de preservação da memória de um território tombado e daqueles que o habitam. Com vistas a essas conjunturas, muitos pesquisadores vêm avaliando a relação entre audiovisual e preservação. O trabalho de Arruda (2006), intitulado Documentação audiovisual: instrumento de construção da memória da favela do Chapéu Mangueira, aproxima-se do tema proposto, pois trata da construção da memória da favela do Chapéu Mangueira, localizada no Leme, bairro da zona sul do Rio de Janeiro, onde as narrativas de um grupo de moradores, envolvendo suas histórias de vida e do desenvolvimento do local, compõem essa memória, através do registro audiovisual. Além da preservação da memória, o autor analisa o papel das pessoas que compõem esse grupo de narradores e moradores de uma favela, e a forma de documentação adotada para as narrativas, que tem por objetivo legar, para as gerações futuras, o que foi feito e quem contribuiu com as melhorias atualmente visíveis no local. Já Ferraz (2017) aborda a valorização dos arquivos em audiovisual, pois estuda a difusão do patrimônio audiovisual de televisão pela internet, a partir do estudo de caso do Instituto Nacional do Audiovisual (INA), buscando as contribuições que as ações de gestão do patrimônio audiovisual francês podem dar aos profissionais de acervos audiovisuais brasileiros. Analisa o acesso e a funcionalidade, assim como maneiras de proporcionar maior democratização da informação e produção de conhecimento, destacando a curadoria online, voltada à função educativa do patrimônio e à valorização dos arquivos. A pesquisa de Ferreira (2015) destaca a importância do audiovisual para um arquivo. Analisa a difusão do audiovisual, como meio de comunicação com a sociedade, através do desenvolvimento de vídeo institucional do Arquivo Histórico Municipal de Santa Maria, além de outros vídeos institucionais de arquivos estaduais e do Distrito Federal. Nos casos acima, já se configura a ideia de pensar o audiovisual como artefato museológico, tema que é digno de atenção neste estudo. Por meio de relatos, indicando que os descendentes também interpretam os trabalhadores da charqueada Santa Thereza, a metodologia da história oral foi inserida neste trabalho, através das entrevistas gravadas para o documentário, com o objetivo de reconstruir o percurso histórico da comunidade. Por exemplo, a estratégia metodológica adotada por Gonçalves (2013) realizou a filmagem de 17 entrevistas, concedidas por sujeitos 84 SUMÁRIO Vila Santa Thereza: patrimônio, memória e audiovisual representativos no contexto cultural e audiovisual de Juiz de Fora, Minas Gerais, dando ênfase à investigação inédita sobre a produção audiovisual independente realizada pela empresa local Bem-tevídeo, fundada em 1984. Desse modo, o estudo realizado pelo autor observa o imaginário, a memória e a identidade na produção audiovisual da Bem-te-vídeo. Manter a integridade do produto audiovisual é necessário para que seu conteúdo seja preservado. O trabalho acadêmico de La Carreta (2005) analisa os conceitos que fazem do filme um documento histórico, a partir dos processos de restauração da película. No presente trabalho também se considera imprescindível a atualização dos formatos de mídia digital para a preservação do conteúdo existente no produto audiovisual (neste caso, a memória). Para compreender a memória da vida cultural da comunidade da Vila e relacioná-la com o presente, o trabalho de Halbwachs (2004) merece aprofundamento. A memória individual, construída a partir das referências e lembranças próprias do grupo, refere-se, portanto, a “um ponto de vista sobre a memória coletiva, olhar este que deve sempre ser analisado considerando-se o lugar ocupado pelo sujeito no interior do grupo e das relações mantidas com outros meios” (HALBWACHS, 2004, p. 55). Para além da formação da memória, Halbwachs aponta que as lembranças podem, a partir da vivência em grupo, serem reconstruídas ou simuladas. Podemos criar representações do passado assentadas na percepção de outras pessoas, no que imaginamos ter acontecido ou pela internalização de representações de uma memória histórica. A lembrança, de acordo com Halbwachs (2004), “é uma imagem engajada em outras imagens” (HALBWACHS, 2004, p. 75). Nesse sentido, a memória, neste estudo, é a imagem falada nos depoimentos, gravada e engajada em outra imagem falada. O produto audiovisual, o documentário, é uma imagem engajada na outra imagem, que constrói a própria narrativa de memórias e ficará salvaguardada. O patrimônio, portanto, corresponde às pessoas, a tudo aquilo que parte do humano, suas ações e expressões culturais, cujas marcas, presentes no planeta de diversas maneiras, inclusive na oralidade, constituem um patrimônio. O documentário de que se fala aqui teve por objetivo registrar a história da Vila de Santa Thereza, desde a sua fundação, em 1897, até a atualidade, demonstrando que a produção audiovisual também serve como ferramenta de preservação da memória e do patrimônio. 85 SUMÁRIO Vila Santa Thereza: patrimônio, memória e audiovisual Para isso, uma investigação acerca do Centro Histórico Vila de Santa Thereza foi realizada, lançando olhar sobre sua história, bem como sobre sua vida econômica, cultural e artística, desde a época da charqueada de Santa Thereza, tendo em vista compreendê-lo como espaço de memória e identidade local, além de patrimônio histórico da cidade de Bagé. O referido Centro Histórico, apesar de vivenciar o processo de modernização, apresenta um rico acervo de prédios e paisagem, possibilitando inventariar uma vasta gama de significados em suas edificações, tanto na arquitetura, pintura, espaço físico, quanto nas ações culturais e educativas que constróem a história através dos tempos. Esse patrimônio reúne um complexo que também reflete o poder socioeconômico em suas várias fases de desenvolvimento, sendo estas construções um testemunho importante para a história, a memória social e para a identidade da sociedade bajeense. O pouco conhecimento que possuem os habitantes da cidade sobre tais construções torna este estudo extremamente relevante, demonstrando como um produto audiovisual pode contribuir nos processos de preservação da memória e compreensão da história de espaços tombados. Nessa perspectiva, busca-se reconhecer, compreender e valorizar este espaço como portador da história dessa cidade e de um ciclo econômico vivido no Brasil com a produção do charque. Para alcançar o entendimento da memória social e coletiva, entretanto, é preciso relacionar as ações culturais e o comportamento da comunidade que ali viveu, no passado, com as de seus descendentes que habitam a Vila de Santa Thereza, no presente. Assim sendo, é possível compreender o exercício da cultura popular no Centro Histórico Vila de Santa Thereza, hoje em dia, como uma ressignificação da cultura erudita que, no passado, ali esteve presente desde a fundação da Vila, pelo Visconde de Ribeiro Magalhães, responsável por primeiro possibilitar o acesso à cultura na comunidade. Por conseguinte, tomando o patrimônio como uma dimensão da memória, podemos afirmar, conforme Candau (2011), que este fortalece a identidade, tanto a nível individual quanto coletivo, uma vez que restituir a memória desaparecida de uma pessoa é restituir sua identidade. Isto se dá porque a memória constitui-se das lembranças de uma história que, ressignificada pelo coletivo, diz respeito a cada indivíduo, razão pela qual fortalece a identidade do grupo. A seguir, trata-se da história da Vila Santa Thereza, em Bagé. 86 SUMÁRIO Vila Santa Thereza: patrimônio, memória e audiovisual A História da Vila Santa Thereza, em Bagé A Charqueada de Santa Thereza foi fundada em 21 de fevereiro de 1897, pelo português Antônio Nunes de Ribeiro Magalhães, que nomeou o estabelecimento em homenagem a sua esposa Dona Thereza Pimentel Magalhães, conforme Mazza Leite (2011). A partir de então, a charqueada de Santa Thereza alavancou a economia da região, que até então enviava a produção local para as charqueadas de Pelotas. Para falar sobre essa charqueada, é preciso conhecer um pouco da história do português que a fundou. Antônio Nunes de Ribeiro Magalhães, filho de Joaquim Nunes e Joaquina da Rosa de Magalhães, nasceu na Freguesia de “Castelões da Cepeda”, do Concelho de Paredes, distrito do Porto, em Portugal, em 05 de outubro de 1841. Seus primeiros estudos foram em Portugal. Aos 12 anos, em 1853 embarcou no veleiro “Iris”, com destino ao Brasil, especificamente ao Porto de Rio Grande, cuja cidade recebia muitos imigrantes portugueses. Ao chegar em Rio Grande, foi trabalhar como caixeiro em um dos armazéns do Mercado Público. Posteriormente, foi recomendado ao comerciante da família Delabary2, proprietário de um local chamado “Três Vendas”, no município de Lavras do Sul. Segundo Fagundes (2005), Antônio passou de empregado a sócio de Delabary. Adquirindo capital, abriu seu negócio próprio, a firma Alegre e Magalhães, em Lavras. O negócio funcionou até 1872. No entanto, Diego Delabary, Juiz de direito que pesquisa a história da família Delabary, afirma, em seu relato oral, que, de acordo com seus antepassados, a sociedade de Antônio Nunes de Ribeiro Magalhães com a sua família estabeleceu-se, em verdade, com Martín Delabary, na localidade de São Sebastião, na estrada para Lavras, em um comércio denominado Casa das Correntes3. A informação é embasada em Teixeira (1992), que indica que as primeiras edificações das Três Vendas remontam a 1920, época em que o Visconde já teria 80 anos. Por outro lado, as datas de funcionamento do estabelecimento comercial Casa das Correntes vão de encontro ao relato oral da família Delabary, de que o português Antônio Nunes de Ribeiro Magalhães 2. Família Delabary ou de Labary (de Labari em Basco) é originária da comuna de Anhaux, na baixa Navarra, no País Basco Francês, departamento de Piereneus Atlanticus, na hoje denominada região da Noca Aquitânia (França). A Família Delabary chegou a América do Sul em Montevidéu, por volta de 1844. Posteriormente ao passar por Pelotas e Bagé no RioGrande do Sul, erradicou-se em Lavras do Sul. Os documentos brasileiros passaram o sobrenome de Labary, para Delabary. 3. Em entrevista concedida à autora deste trabalho. 87 SUMÁRIO Vila Santa Thereza: patrimônio, memória e audiovisual teria trabalhado ali e tornado-se sócio, antes de se estabelecer em Bagé. Conforme Leite (1997): Os primeiros ranchos edificados no terreno da atual “Casa das Correntes”, foram erguidos por um casal de imigrantes franceses, que manteve comércio de secos e molhados, cujos nomes eram os seguintes: Martín de Labary, sua mulher Domingas de Labary e o filho do casal José de Labary. Essas pessoas acham-se aí sepultadas e a lápide registra a data de 23 de setembro de 1865. (LEITE, 1997, p. 36). Antônio Nunes de Ribeiro Magalhães mudou-se para o município de Bagé, para a localidade rural Piraí, onde constituiu a firma Magalhães & Souza, que operava no ramo de secos e molhados. Nessa época, casou-se com Dona Thereza Pimentel. Essa sociedade teve duração efêmera, de modo que, pouco tempo depois, estabeleceu-se na cidade de Bagé. Em 1884, operava em grande escala, principalmente na compra e venda de gado, como açougue. Em 1885, Antônio Nunes de Ribeiro Magalhães recebeu sua carta de comerciante, junto à Junta Comercial de Porto Alegre, conforme Boucinha (1993). A firma individual funcionava na esquina da Avenida Sete de Setembro (Figura 1) com a Três de Fevereiro, em Bagé. Era classificada como “Loja de fazendas”, “Fructos do País”, “Secos e Molhados”, “Loja de Ferragens” e “Porcelana e Miudezas”. Figura 1 - Antiga casa da Firma Magalhães, comércio de secos e molhados, onde atualmente é a Câmara de Vereadores de Bagé. Fonte: Acervo fotográfico da Fototeca Túlio Lopes do Museu Dom Diogo de Souza/FAT URCAMP, Bagé, RS, Brasil. Em 17 de setembro de 1888, Antônio Nunes de Ribeiro Magalhães foi nomeado vice-cônsul da Nação Portuguesa em Bagé. O ato foi assinado pelo Dr. Antônio de Castro, cônsul de Portugal na 88 SUMÁRIO Vila Santa Thereza: patrimônio, memória e audiovisual Província, e confirmado por Dom Pedro II. Em 1893, colocou seu filho Antônio como sócio, constituindo a firma “Magalhães & Filhos”. Um ano depois, em 1894, fundou, nos arredores de Bagé (no atual bairro Pedra Branca, próximo das pedreiras), a charqueada do Cotovelo, em meio aos dias turbulentos da Revolução Federalista4. Em 1897, comprou uma fração de campo à margem da estrada de ferro, a seis quilômetros do centro da cidade de Bagé, local onde construiu a charqueada de Santa Thereza. Conforme Figura 2, abaixo: Figura 2 - Capela de Santa Thereza D’Ávila, ao lado está o Teatro Santo Antônio, 1910. Fonte: Acervo fotográfico da Fototeca Túlio Lopes do Museu Dom Diogo de Souza/FAT URCAMP, Bagé RS, Brasil. No entorno da charqueada, surgiu a Vila Santa Thereza, que, além da residência de verão da família, abrigava, inicialmente, cerca de 200 trabalhadores e respectivos familiares, que atuavam nas charqueadas e nas fábricas, segundo Reis (1911). O estabelecimento mantinha relações assalariadas com os empregados e trazia o modelo europeu de produção e modo de vida ao entorno do negócio. A assistência aos trabalhadores era completa: não só habitavam uma vila construída para os trabalhadores da charqueada, como tinham assistência médica e farmacêutica. Nos anos seguintes, a população da Vila aumentou (REIS, 1911). A edição de 03 de setembro de 1907 do jornal “O Dever” descreve com detalhes a inauguração do hospital de Santa Thereza, que, além de ambulatórios, contava com sala de cirurgia e leitos 4. Aconteceu no Rio Grande do Sul, teve início no ano de 1893 e perdurou até 1895, envolvendo os mais importantes grupos políticos. A República dava seus primeiros passos e dois grupos pleiteavam o poder, o Partido Federalista – que agrupava a antiga nata do Partido Liberal da época do império, comandado por Gaspar da Silveira Martins – e o Partido Republicano Rio-Grandense – do qual faziam parte os adeptos da república, e que era dirigido por Júlio de Castilhos, então governador. 89 SUMÁRIO Vila Santa Thereza: patrimônio, memória e audiovisual para internação. Vários foram os médicos que, ao longo dos anos, prestaram serviços nesse hospital. Hoje, o prédio abriga a atual escola de educação infantil Ana Móglia, situada na Avenida Visconde de Ribeiro Magalhães (FAGUNDES, 2005, p. 139). Além do hospital, a Vila tinha moradias para cerca de 1000 pessoas, luz elétrica (com usina independente), uma Capela de Santa Thereza D’Ávila, o Teatro Santo Antônio e o Coreto, circundado pelo lago artificial, faziam parte da Vila, assim como padaria, sapataria, restaurante popular, fruteira, comércio de secos e molhados, fábrica de sabão, fábrica de escovas e uma fábrica de línguas enlatadas, conforme descreve o jornal “O Dever”, em 1922: Entre as diversas melhorias que foram feitas ao longo dos anos, havia: Adega, padaria, fábrica de gelo, depósitos de madeira, fábrica de mosaico e tijolos, forno e cal, com produção diária de 1.200 quilos. Anexo a estas fábricas também havia carpintaria, tanoaria, ferraria (Jornal “O Dever”, 1922, p. 05, apud FAGUNDES, 2005, p. 140). Na vila, havia também uma “quadra” de tênis para os funcionários e uma vida cultural ativa. O Teatro Santo Antônio garantia alegria à população; ali, havia um grupo de arte dramática, composto pelos empregados do estabelecimento, uma banda musical chamada “Lira de Santa Thereza” e um cinematógrafo. O espaço tinha 6 camarins, 17 camarotes, 50 cadeiras na plateia e galeria para 150 pessoas. Além disso, havia mesa de bilhar, bilheteria, copa e um piano que era tocado por músicos de renome internacional. No teto do teatro, figuravam medalhões, como Carlos Gomes, Donizzetti, Bellini, Puccini, Verdi, Chopin, no “pano de boca” havia uma alegoria ao trabalho (FAGUNDES, 2005). Os próprios moradores eram protagonistas das ações culturais, como quermesses e cantos na capela. A linha férrea que percorria o estabelecimento proporcionava o desembarque de grupos de artistas. Com o passar do tempo, surgiu um time de futebol, o “Therezinha Futebol Clube”, fundado em 1928. Capela de Santa Thereza A Capela de Santa Thereza, inaugurada em 1909, e o Teatro Santo Antônio (Figura 2) também faziam parte desse setor. A capela foi construída em homenagem a Santa Thereza D’Ávila, cumprindo uma promessa feita por Dona Thereza, esposa de Ribeiro Magalhães. 90 SUMÁRIO Vila Santa Thereza: patrimônio, memória e audiovisual O dia da inauguração, 15 de outubro de 1908, foi escolhido por ser o mesmo dia do nascimento da santa, em 1515. A obra é do arquiteto Pedro Obino, filho de imigrantes italianos de forte tradição artística, cujo pai esteve ligado à construção da Catedral de Bagé. Além de arquiteto, Pedro Obino também era artista plástico e assinou a pintura sacra que havia no teto da capela (Figura 3). Figura 3 - Fragmentos da pintura Sacra, obra de Pedro Obino no teto da capela de Santa Thereza D’Ávila (Sagrado Coração de Jesus e Nossa Senhora da Conceição), que, devido à depredação, não pôde ser restaurada. Fonte: Acervo fotográfico da Fototeca Túlio Lopes do Museu Dom Diogo de Souza/FAT URCAMP, Bagé RS, Brasil. Tanto a família Magalhães quanto a comunidade passaram a usar a capela durante as festividades, casamentos, batizados, etc. Além da padroeira, guardava imagens de Santo Antônio, São Sebastião, São Geraldo, Nossa Senhora da Conceição, entre outros. Da Charqueada ao Centro Associação pró Santa Thereza Histórico, a Na década de 1960, ocorre o encerramento do ciclo do charque em Bagé. Os princípios do abandono e do esquecimento marcam a história dessa comunidade. A Vila Santa Thereza fica estagnada por algo em torno de 30 anos, ou mais. A partir dos anos 1960, ali permanecem os descendentes dos trabalhadores da charqueada, habitando as casas da vila operária, idealizadas pelo Visconde de 91 SUMÁRIO Vila Santa Thereza: patrimônio, memória e audiovisual Ribeiro Magalhães, e outras erguidas no entorno. A Escola Ana Móglia (antigo hospital da charqueada) segue em funcionamento, atendendo moradores. O teatro Santo Antônio foi o primeiro a desabar, seguido, após alguns anos, pelo sobrado onde residiu o Visconde (Figura 4) e que, após a sua morte, foi também um seminário. A casa do filho mais velho do Visconde, de nome Antônio, foi habitada por diferentes famílias, segundo histórias orais da comunidade, mas a intempérie também o leva a ruínas. Em seguida, o desemprego recai sobre aquela comunidade, que vivia do trabalho relacionado à produção do charque. Resta a memória de uma época dourada, econômica e culturalmente vívida, composta pelas histórias da vila Santa Thereza e de Bagé, na fronteira sul-rio-grandense. Passados mais de 30 anos, a fé traz um sopro de esperança, quando a capela de Santa Thereza D’Ávila, em estado avançado de depredação, começa a ruir, o que ocasionou uma reação conjunta das comunidades da vila Santa Thereza e de Bagé. Num fôlego de lucidez em benefício do patrimônio, uma exposição fotográfica é realizada na Praça Silveira Martins, por iniciativa do curso de Arquitetura e Urbanismo da Urcamp e do ECOARTE5 (Grupo de Arte e Ecologia de Bagé). Em 1992, o estudante Luís Fausto Teixeira retrata, através de suas lentes analógicas, a capela de Santa Thereza, já em ruínas. Foi essa experiência acadêmica, mais precisamente na disciplina de “Introdução à fotografia”, ministrada pela da professora Maria Luiza Pêgas, do curso de Arquitetura e Urbanismo, juntamente com o ECOARTE, que a organização da sociedade civil promoveu discussão sobre o patrimônio, despertando a redescoberta e a luta incessante pela revitalização e manutenção desse patrimônio cultural da cidade. Figura 4 - Ruínas Vila Santa Thereza, antigo casarão do Visconde, onde residia na Vila Santa Thereza. Fonte: Acervo pessoal de Diego Fagundes. Fotografia de Diego Fagundes, 2004. 5. Grupo de bajeenses, associação em fefesa da Ecologia Ampla e da Arte. 92 SUMÁRIO Vila Santa Thereza: patrimônio, memória e audiovisual Desde então, a Vila de Santa Thereza saiu do anonimato e do esquecimento e passou a ser o objetivo de vida de um grupo de mulheres ativistas, movidas pela curiosidade, pela determinação e pela ética, que trilharam um longo caminho, lideradas por Yerecê Belmonte Móglia6 (Figura 5), uma referência para a comunidade da Vila Santa Thereza. Ao visualizar as fotos em posse do Centro de Artes Maria de Lourdes Alcalde (CENARTE)7, Yerecê fica impactada com a depredação, pois tinha ligação direta com a Vila Santa Thereza, uma vez que seu sogro sucedeu o Visconde na posse da charqueada e, com isso, ela residiu naquela Vila por boa parte de sua vida, durante os quais estabeleceu vínculos com a comunidade. Figura 5 - Fotografia de Yerecê Belmonte Móglia, 2001. Fonte: Fotografia do Acervo de Zélia Pedra Móglia, filha de Yerecê. Com a singela pretensão de salvar uma capela depredada e ruída pelas ações da intempérie, Yerecê estabelece contato inicial com os moradores de Santa Thereza. Conforme relato da moradora Maria Alcira Valério Teixeira e seu esposo, Paulo Roberto Barbosa Teixeira8, 6. Yerecê Belmonte Móglia, nascida em 26 de julho de 1927, filha de Jurandyr Loureiro Belmonte e Zélia Silveira Belmonte. Casou-se com Mário Tavares Móglia em 28 de setembro de 1946, em Porto Alegre. Em Bagé, eles residiram alguns anos na Vila Santa Thereza. Seu esposo era neto de Rodolpho Móglia, que foi contador do Visconde de Ribeiro Magalhães e adquiriu a charqueada de Santa Thereza alguns anos após a morte do Visconde. 7. Grupo ativista pela arte, extinto, em março de 2002, por medidas econômicas da Universidade da Região da Campanha. 8. Maria Alcira Valério Teixeira e Paulo Roberto Barbosa Teixeira são moradores da Vila Santa 93 SUMÁRIO Vila Santa Thereza: patrimônio, memória e audiovisual neto de Rafael Fagundes Teixeira (trabalhador da charqueada), Yerecê compareceu, em sua casa na época, recrutando moradores para reuniões comunitárias. A partir disso, uma luta conjunta é travada em prol da melhoria da capela e, posteriormente, pela defesa do patrimônio, que reúne um complexo arquitetônico, simbólico e histórico. Yerecê, em contato com os moradores locais, junto à comunidade da Vila e ao grupo de mulheres que atuavam no CENARTE - da Universidade da Região da Campanha, fomenta ações em benefício da capela de Santa Thereza D’Ávila. Sob a sua liderança, então presidente da Associação Pró CENARTE, quermesses, rifas e brechós são realizados para angariar fundos. Dentre outras ações, a comunidade une-se para lavar as telhas da capela, além de providenciar um cadeado e correntes para a porta de entrada, na tentativa de barrar o vandalismo. O estado de depredação e danificação impossibilitou a salvação da pintura sacra do artista Pedro Obino, no teto da capela. No mesmo sentido, uma série de ações foram propostas para sensibilizar a comunidade e promover a valorização da memória da Vila. Em 2002, ocorre o fechamento do CENARTE, fato que resulta na fundação da Associação Pró Santa Thereza, instituída legalmente como organização da sociedade civil e, posteriormente, reconhecida como de interesse público9. A partir daí, os olhares da comunidade de Bagé se voltam, novamente, à Vila. A luta é fortalecida devido às relações de Yerecê, agora presidente da Associação Pró Santa Thereza. Em contato com Luis Fernando Cirne Lima10, a presidente articula projeto por meio dos incentivos fiscais das leis LIC11 e Rouanet, que possibilitam a revitalização, cujas obras começaram em 2005 e culminam com a inauguração do Centro Histórico Vila de Santa Thereza, em 25 de outubro de 2008. O projeto é patrocinado pela Copesul, com contrapartida Thereza. O relato oral de ambos foi concedido em 2014, durante as gravações do projeto Inventar com a Diferença, realizado pela cineasta Adriana Gonçalves Ferreira. 9. Em 2002, a gestão da Fundação Áttila Taborda - Universidade da Região da Campanha (FAT-Urcamp) – fecha o CENARTE (Centro de Artes), por motivo de contenção de despesas. 10. Luis Fernando Cirne Lima foi presidente da Copesul (Companhia Petroquímica do Sul), atualmente Petroquímica Braskem. Foi Ministro da Agricultura e tinha ligações com Bagé e com a família Móglia - Yerecê e seu esposo, Mário Belmonte Móglia. 11. Lei Estadual de Incentivo à Cultura (LIC) do Rio Grande do Sul. As leis estaduais de incentivo à cultura surgiram após a criação da Lei Rouanet, com o objetivo de valorizar a cultura local. A Lei 13.490/10 é um sistema unificado de Apoio e Fomento às atividades culturais do estado do Rio Grande do Sul. 94 SUMÁRIO Vila Santa Thereza: patrimônio, memória e audiovisual de 10% de empresas locais (os Supermercados Peruzzo e as Lojas Obino), e a Prefeitura de Bagé. A empresa Tellus é responsável pelo projeto. O arquiteto Flávio Kiefer assina o projeto do Centro Histórico e oportuniza ao público uma experiência de contato com a riqueza arquitetônica histórica da região, uma vez que o espaço abriga memórias do desenvolvimento da região sul. A Preservação do Patrimônio e a Vila de Santa Thereza Destacando a importância da memória, do patrimônio e da identidade, este trabalho busca valorizar tanto a paisagem cultural quanto a percepção e a representação da comunidade que habita o entorno desse complexo urbano que foi a charqueada e hoje integra o patrimônio e a memória social da cidade. Hoje, com processos amadurecidos ao longo de 20 anos de ativismo, a Associação Pró Santa Thereza, mantenedora do espaço, busca alternativas pela preservação da Vila Santa Thereza. A falta de políticas efetivas de preservação, a ação do tempo, o abandono e, principalmente, o vandalismo praticado através dos tempos apagam parte da memória social de Bagé, do Estado do Rio Grande do Sul e do Brasil, tornando ainda mais relevante o ativismo da sociedade civil. Alguns trabalhos apresentados durante o “ArquiMemória - III Encontro Nacional de Arquitetos” sobre preservação do Patrimônio Edificado, realizado em Salvador, no ano de 200812, evidenciam que a avaliação das políticas patrimoniais, realizadas pelas diversas esferas institucionais, não pode ser feita apenas com base em ações diretas ou indiretas de seus agentes, mas devem considerar também a omissão e o que não é feito, em razão de disputas ou posicionamentos políticos. As formações dos autores dos artigos, entre os quais se encontram planejadores, arquitetos, urbanistas, gestores públicos, técnicos em restauração e pesquisadores das 12. Exemplo de trabalhos que tratam do assunto: ArquiMemória - III Encontro Nacional de Arquitetos sobre preservação do Patrimônio Edificado, realizado em Salvador no ano de 2008. (GÓMEZ FERRI, Javier. Do patrimônio à identidade: a sociedade civil como ativadora do patrimônio na cidade de Valência. Gazeta de Antropologia, 2004, edição 20); SERRA, Daniela Campos de Abreu. A participação da sociedade civil organizada na gestão do patrimônio cultural de Ribeirão Preto: o CONPPAC/RP. 2006. Dissertação (Mestrado) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de História, Direito e Serviço Social, 2006.Artigo publicado no caderno Direito & Justiça do jornal Estado de Minas, edição de 26 set. 2011. Maria Coeli Simões Pires - Secretária de Estado de Casa Civil e Relações Institucionais, membro efetivo do Instituto de Advogados de Minas Gerais. 95 SUMÁRIO Vila Santa Thereza: patrimônio, memória e audiovisual ciências sociais, testemunham a interdisciplinaridade que deve orientar as ações de preservação do patrimônio. Ao se debruçarem sobre esses temas, os textos expõem uma visão diversificada e rica, perseguindo uma preservação do patrimônio que é custeada pelo Estado mas, crescentemente, vem sendo pensada a partir de parcerias público-privadas, através da participação da sociedade civil organizada. Inaugurado em outubro de 2008, com a denominação “Centro Histórico Vila de Santa Thereza” (Figura 6), o edifício recebeu, primeiramente, a revitalização de parte da área pública: a capela de Santa Thereza D’Ávila, parte da casa onde residia o filho do Visconde, Antônio Magalhães (local do futuro memorial da Vila), o teatro Santo Antônio (intervenção contemporânea) e uma praça cívica com banheiros públicos (que abriga eventos a céu aberto). Figura 6 - Área revitalizada do Centro Histórico Vila de Santa Thereza, memorial, capela e teatro Fonte: Acervo fotográfico da Associação Pró Santa Thereza, foto de Júlio Pimentel, 2008 O complexo cultural abrange a totalidade da Vila Santa Thereza, cuja revitalização integral faz parte dos planos da Associação Pró Santa Thereza, incluindo a restauração das casas operárias e do coreto, bem como um projeto paisagístico local. Desde sua inauguração, em 2008, o Centro Histórico tem vida dinâmica, realiza ações educativas, atividades de educação patrimonial, eventos culturais, palestras, cursos e oficinas planejados pela mantenedora, a Associação Pró Santa Thereza. A Associação 96 SUMÁRIO Vila Santa Thereza: patrimônio, memória e audiovisual Pro Santa Thereza também é reconhecida como ponto de cultura (o Pampa Sem Fronteiras)13 devido à trajetória de envolvimento cultural comunitário. O diálogo com universidades, coletivos de expressão cultural, escolas e outros segmentos de organizações da sociedade civil faz com que o espaço viva em pleno ativismo cultural. Atualmente, é ponto de referência de cultura, educação patrimonial, lazer, entretenimento e turismo. Recebe, anualmente, cerca de 30 mil pessoas, segundo o livro de registros da Associação Pró Santa Thereza. A política consolida o patrimônio como um capital na sua existência, porém sua vida depende da relação com suas raízes. Metaforicamente, o patrimônio é o coração que bate, mas o que pulsa são as ações comunitárias, a compreensão da comunidade, seu sentimento de pertencimento e o movimento que ali acontece, partindo do sentido de entrelaçamento da sociedade com esse patrimônio (VARINE, 2012). A renovação do patrimônio é possível quando se atinge o desenvolvimento social no território, e a sociedade cria e recria, ressignificando o espaço, afirmando a consciência em si e a consciência de sua riqueza patrimonial herdada e cultivada. Até recentemente, o Estado, primeiro, e o mercado do turismo, depois, foram os dois principais agentes patrimonializantes culturais. Recentemente, um novo agente patrimonializador emergiu com força: a sociedade civil, ou o Terceiro Setor. Isto se dá através de grupos que, podendo assumir a forma de associações e/ou plataformas, empreendem uma atividade de defesa do patrimônio que, às vezes, entra em conflito com os outros dois agentes. A sociedade precisa compreender que o patrimônio é o rastro que a Humanidade deixa, rastro da existência sob todas as formas e maneiras de vida. Pensar o Centro Histórico Vila de Santa Thereza, sua essência, sua sobrevivência, seu legado e ressignificação, como nasce e renasce, é questão de olhar com atenção para o entorno. 13. O Ponto de Cultura Pampa Sem Fronteiras é um projeto da Associação Pró Santa Thereza, resultado de uma política pública da cultura, instituída pelo Ex-Ministro da Cultura Gilberto Gil, idealizada por Célio Turino, historiador, administrador cultural e servidor público. Célio foi convidado por Gilberto Gil para desenvolver um programa de democratização e acesso à cultura, o Programa Cultura Viva, que deu origem à Lei Cultura Viva no Brasil. Constitui-se em um espaço articulador da cultura audiovisual na fronteira Brasil-Uruguai, em Bagé e região fronteiriça. Fomenta a cultura de fronteira e dialoga com UNIPAMPA, URCAMP, IFSUL, Escola Municipal Ana Móglia, Associação dos Deficientes Visuais e Auditivos, OSCIP Guayí, Abadá Capoeira, Mostra de Frontera en Rivera UY, Festival Internacional de Cinema da Fronteira, ONG Mundo Afro Rivera, Biricunymba Comparsa de Candombe Rivera, Llave 13 Comparsa de Candombe de Melo-Uy, Cuerda de Candombe Grillos Candomberos de Bagé RS. 97 SUMÁRIO Vila Santa Thereza: patrimônio, memória e audiovisual Processos de tombamento e inventariação, compartilhados e participativos, devem ser observados com atenção direcionada aos atores locais, à comunidade, aos funcionários atuantes nos espaços, bem como aos políticos governantes. A Constituição Federal de 1988 instituiu o regime democrático de direito e seu exercício pelo povo, de forma indireta e direta. Permitiu a participação da sociedade na gestão pública, garantiu a preservação do meio ambiente e do patrimônio cultural para as futuras gerações. No entanto, o histórico constitucional brasileiro revelou como é complexo o caminho existente entre a norma abstrata e a realidade concreta. Entre as possibilidades de exercício da democracia direta, encontram-se as instâncias denominadas Conselhos Municipais. Quanto à preservação do patrimônio cultural local, a Constituição Federal definiu a competência do Município na sua gestão, garantindo a colaboração da comunidade no processo. A sustentabilidade do patrimônio depende dessa compreensão coletiva, podendo, assim, acontecer a preservação no sentido da vida cultural e da preservação física. A troca entre “educadores”, ou indivíduos que ocupam determinadas posições nos espaços culturais patrimoniais, com a comunidade local é fator imprescindível para acionar o protagonismo de ação das comunidades. Só assim pode acontecer a ação patrimonial, que deve adaptar os museus para atenderem às necessidades das populações e cumprirem seu devido papel social. Para compreender o processo histórico de Santa Thereza e a consolidação das instituições de proteção ao patrimônio, faz-se mister debruçar-se sobre a contribuição de Choay (2006), pois, nos séculos XIX e XX, a revolução industrial marca o fim de uma época, reforçando o sentimento de preservação e também o valor histórico, de aprendizagem e educação, seguindo o caminho aberto pela Revolução Francesa no sentido da valorização e da democratização do patrimônio. Além disso, Choay (2006) revela autores, arquitetos e nomes de teóricos que abordaram restauro, arte e valorização de monumentos, museus, antiquários e memória social. Nesse contexto, é preciso buscar alternativas para valorizar e preservar a memória, a partir das ações da sociedade civil. Assim, a criação de um documentário audiovisual, com a participação da sociedade civil, pode dar visibilidade e auxiliar na preservação da memória, tornando-se um instrumento e um patrimônio cultural e histórico regional. O produto, um documentário 98 SUMÁRIO Vila Santa Thereza: patrimônio, memória e audiovisual de 65 minutos, intitulado Vila Santa Thereza (2011), em alta resolução, é o registro audiovisual da memória e do patrimônio histórico, realizado com a participação dos moradores da Vila Santa Thereza no processo de produção. Nele, encontra-se uma narrativa documental que objetivou materializar, através da linguagem audiovisual/ cinematográfica, processos culturais e sociais do patrimônio histórico de Bagé. O documentário explora a realidade, a partir de imagens de fotografias antigas, jornais de época, documentos e objetos, assim como gravações dos relatos de moradores da Vila de Santa Thereza, ainda vivos, que nasceram, cresceram e ainda lá residem, tendo presenciado o ciclo laboral do charque. Suas histórias, lembranças e vivências, assim como de seus ascendentes que ali também viveram, desde o surgimento, passando pela fundação da charqueada que originou a vila, além da percepção da diretora e roteirista do documentário em questão, que participa como ativista pela preservação da Vila Santa Thereza e desenvolve relações com a comunidade. Referências ARRUDA, Ana Cristina da Conceição. Documentação audiovisual: instrumento de construção da memória da favela do Chapéu Mangueira. Dissertação de Mestrado (Pós-graduação em Memória Social e Documento) - Universidade do Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, p. 83, 2006. Disponível em: http:// www.memoriasocial.pro.br/documentos/Dissertações/Diss193.pdf. Acesso em: 04/04/2019. BAGÉ. Lei nº 3.534, de 9 de setembro de 1999. Declara Patrimônio Histórico e Cultural do município a Igreja Santa Tereza, localizada bairro de mesma denominação. Leis Municipais. Bagé, 1999. Disponível em: https://bit.ly/3c242D0. Acesso em: 04/04/2020. BAGÉ. Lei nº 3.687, de 24 de abril de 2001. Tomba como patrimônio histórico e cultural do município, no Bairro Santa Tereza, o coreto, o lago que o circunda, mais a área em torno do referido lago, num raio de 12 metros, localizados próximo à Igreja de Santa Tereza, bem como, as ruínas do sobrado que foi residência do Visconde Ribeiro de Magalhães e dá outras providências. Leis Municipais. Bagé, 1999. Disponível em: https://bit.ly/2NYagM8. Acesso em: 29/04/2020. BOUCINHA, Cláudio Antunes. A história das charqueadas de Bagé (1891-1940) na literatura. Dissertação (Mestrado em história) Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,1993. CANDAU, Joel. Memória e identidade. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2011. CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. São Paulo: UNESP, 2006. FAGUNDES, Elizabeth Macedo de. Inventário cultural de Bagé: um passeio pela 99 SUMÁRIO Vila Santa Thereza: patrimônio, memória e audiovisual História. Porto Alegre: Evangraf, 2005. FERRAZ, Bruna Carolina Bueno. Difusão do patrimônio audiovisual de televisão pela internet: o caso do Instituto Nacional do Audiovisual (INA). Dissertação (Mestrado em Bens Culturais e Projetos Sociais) - Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, p. 110, 2017. FERREIRA, Rafael Chaves. Difusão audiovisual do Arquivo Histórico Municipal de Santa Maria como meio de comunicação com a sociedade. Dissertação de Mestrado (Pós-Graduação Profissional em Patrimônio Cultural) - Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, p. 143, 2015. GONÇALVES, Raruza Keara Teixeira. Narrativas à margem: imaginário, memória e identidade na produção audiovisual da Bem-te-vídeo. Dissertação (Mestrado em Comunicação) - Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, p. 175, 2013. Disponível em: https://repositorio.ufjf.br/jspui/handle/ufjf/1218. Acesso em: 29/04/2020. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2004. LA CARRETA, Enrique López da Cunha Pereira. Cinema: memória audiovisual do mundo. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, p. 213, 2005. LEITE, João Francisco Trein. Coxilha de São Sebastião. Bagé: FAT-URCAMP, 1997. MAZZA LEITE, José Antonio. Xarqueadas de Danúbio Gonçalves: um resgate para a história. Porto Alegre: Observatório Gráfico, 2011. REIS, Jorge. Apontamentos históricos e estatísticos de Bagé. Bagé: Tipografia Jornal do Povo, 1911. RIO GRANDE DO SUL. Assembleia Legislativa do Estado. Lei 11.891, de 7 de janeiro de 2003. Declara bem integrante do patrimônio cultural do Estado o Complexo de Santa Thereza, no município de Bagé. Sistema Legis. Porto Alegre, 2003. Disponível em: https://bit.ly/3kHyczi. Acesso em: 29/04/2020. TEIXEIRA, Edilberto. Na bateia do tempo. v. 2. [S.l.]:Terra de Ouro, 1992. VARINE, Hugues de. As raízes do futuro: o patrimônio a serviço do desenvolvimento local. Porto Alegre: Medianiz, 2012. VILA Santa Thereza. Direção de Adriana Gonçalves Ferreira. Bagé: Ponto de Cultura Pampa sem Fronteiras, 2020. Disponível em: https://www.pontodeculturapampasemfronteiras.com/santathereza. Acesso em 29/07/2020. 100 SUMÁRIO 101 SUMÁRIO A VISUALIDADE DA PHENIX: FOTOGRAFIA E IMPRENSA ILUSTRADA EM BAGÉ Luísa Kuhl Brasil 1 102 SUMÁRIO A visualidade da Phenix: fotografia e imprensa ilustrada em Bagé 1 Introdução A fotografia teve um papel primordial na construção de uma visualidade moderna no início do século XX. Ocorrendo cada vez mais um processo de complexificação dos suportes e meios onde as imagens fotográficas eram exibidas, vemos surgir neste período a publicação de imagens nas revistas ilustradas. Neste texto buscase compreender a inserção da imagem fotográfica, principalmente retratos, na revista ilustrada Phenix, que circulou em Bagé e cidades vizinhas como Dom Pedrito, Santana do Livramento, Pinheiro Machado e Pelotas no ano de 1921 e os três primeiros meses de 1922. O intuito desta análise é compreender de que forma a fotografia contribuiu para a construção da imagem do indivíduo no espaço público, problematizando as novas formas de sociabilidade, consumo e comunicação no princípio de século XX. A partir da inserção de imagens nos periódicos, surge uma maior publicização da imagem de indivíduos que antes se restringiam à troca de fotografias entre amigos e família. A revista ilustrada com suas fotografias estampadas surge para trazer este novo homem moderno à tona, para expô-lo ao julgamento dos olhares alheios e situá-lo no interior de uma sociabilidade que emergia. Phenix e o contexto das revistas ilustradas na década de 1920 Dialogando com caricaturas, pinturas e ilustrações, a fotografia encontra espaço na revista ilustrada, pois se presencia neste momento o surgimento de uma nova cultura visual que, alargando horizontes de atuação, tem o papel de educação do olhar, ou seja, a construção de sociabilidades que partem da exposição do indivíduo por meio da imagem. Para sair do anonimato o que se almejava era se expor em um periódico a fim de sustentar uma posição social. A revista Phenix foi o primeiro periódico desta modalidade a surgir na cidade de Bagé. A imprensa da década de XX na cidade 1. Doutora em História 103 SUMÁRIO A visualidade da Phenix: fotografia e imprensa ilustrada em Bagé já compreendia grandes jornais como O Dever e o Correio do Sul, porém, não existia ainda um periódico que fosse dedicado a publicar textos literários, poesias e fotografias sociais. O grupo que criou a revista era formado por homens integrantes das camadas média e alta da sociedade. Com profissões diversificadas como médico, arquiteto, jornalista e advogado, os membros iniciais da revista eram pessoas interessadas nos aspectos culturais, intelectuais e mundanos. A palavra cosmopolita poderia se encaixar se falássemos de uma cidade com suporte estrutural e político para tanto. O que não é o caso de Bagé. No entanto, ao folhearmos as páginas da Phenix, percebemos o intuito que seus redatores tinham de inserir Bagé, por meio de um magazine, num universo cosmopolita parecido com o que se vivia em Pelotas ou Porto Alegre no período. Atentos às mudanças e ritmos que movimentavam a vida social bageense, seus redatores, mesmo que timidamente, se encaixam numa das características mais marcantes do “ser moderno” no início do século: observar, comentar e criticar textual e visualmente a construção urbana e social. Presente em todas as edições, os textos literários, traduções de grandes escritores, as poesias e a crônica social formam um padrão que nos leva a interpretar o público leitor da Phenix. Não somente dedicado ao leitor comum que estava mais interessado nas notícias em si, a Phenix vai ao encontro de um público ávido por um refinamento intelectual que os outros periódicos não ofereciam. Como no trecho do texto de abertura da revista pode-se constatar: A nossa cidade, que se blasona de ser um centro de cultura, capaz de hombrear com todos os símiles do Estado, não teve até agora, uma publicação d’este genero, que lhe fosse o repositorio dos factos sociaes que avultam-nos “faits divers” de uma urbs que se prêza, nem o expoente da vida mundana, em tudo que a ella possa interessar (Texto dos editores, Phenix, nº1, fevereiro de 1921). Tendo em vista o baixo número de letrados neste período, a revista ilustrada surge para satisfazer e legitimar um público voltado à construção urbana e que podem ser denominados como uma camada média urbana. O desejo de modernidade, de compartilhar do consumo burguês dos grandes centros nacionais e internacionais e a vontade de se aproximar do novo estilo de vida que surgia com a Belle Époque, eram constantes também no interior do Rio Grande do Sul. Cidade voltada ao trabalho com a terra, com uma população urbana ainda bem inferior à do campo e relativamente distante da capital, Bagé construiu um sentido de modernidade mais voltado a 104 SUMÁRIO A visualidade da Phenix: fotografia e imprensa ilustrada em Bagé ideias e projeções do que a prática da mesma. A partir dos textos e imagens publicados na revista, pode-se perceber que não eram somente assuntos ligados à pecuária e a vida campesina que interessavam os cidadãos. As novas formas de sociabilidade e o desejo de se inserir numa modernidade urbana e social fizeram com que fosse criada em Bagé uma revista que acompanhasse o modelo de muitas outras produzidas no Brasil e no exterior. A fotografia teve um papel primordial na construção dessa nova visibilidade que deveria ser consumida, falada, gesticulada e colocada em promoção no interior do Estado, a fim de encontrar um elo com os grandes centros do país. Segundo Charles Monteiro: Através da forma de edição de imagens fotográficas nessas revistas ilustradas estava em construção uma nova imagem de indivíduo no espaço público e de formas de sociabilidade e de consumo modernos na sociedade urbana brasileira. A interpretação das relações entre imagens permite pensar a elaboração de uma pedagogia do olhar e a construção de novos códigos modernos de sociabilidades (MONTEIRO, 2012, p.1). Pensar esta modernidade almejada (mesmo que não sustentada na prática), por meio de fotografias, é julgar a imagem fotográfica como instrumento da modernidade. Ver e dar-se a ver eram fenômenos presentes na vida urbana – e campesina também – no início do século XX. Os costumes europeus, manifestados aqui pelos móveis domésticos, práticas de tomar chá, roupas e acessórios, entre outros, deveriam ser expostos aos olhares para assim serem “copiados”, garantindo status aos grupos mais favorecidos. No entanto, esta modernidade estampada nas páginas das revistas, não pretendia romper totalmente com o passado. O que existia em termos de inovação não pode ser considerado como uma ruptura nos costumes, mas sim uma “negociação com a tradição” (MONTEIRO, 2012, p.2). As fotografias publicadas na Phenix demonstram justamente esta noção de modernidade ainda conservadora. Ao contrário de revistas como a Revista de Antropofagia ou a Klaxon, que se inserem numa vanguarda literária, propondo uma ruptura com os padrões das publicações desde o século XIX, a Phenix se mostra como uma revista conservadora em termos formais, visuais e de conteúdo. Deflagrando-se principalmente na fotografia, percebemos estes laços ainda existentes, pois os retratos publicados não se diferenciavam na maioria das vezes dos retratos de estúdio em voga no período. São 105 SUMÁRIO A visualidade da Phenix: fotografia e imprensa ilustrada em Bagé exatamente as mesmas imagens que circulavam num espaço mais privado que, com a Phenix, passaram a circular no espaço público. A Alemanha e a Rússia foram dois países que despontaram na produção de revistas ilustradas que utilizaram meios de diagramação para divulgação de novas linguagens artísticas e experimentações estéticas a partir de 1910. Em Londres e Paris, nesse mesmo momento, vemos a incorporação de fotografias que, acompanhando textos e ilustrações, permitiram um aumento significativo da vendagem das revistas. Criando, desta forma, uma cultura visual baseada na multiplicação da imagem aliada a uma nova prática de escrita, mais dinâmica e moderna (MONTEIRO, 2011, p.2). Mais voltadas ao entretenimento, as revistas ilustradas no Brasil tiveram o papel de inovação da linguagem textual. O público, cada vez mais alfabetizado e familiarizado com modos de viver modernos e cosmopolitas, estava ávido por uma imprensa que articulasse imagem e texto. Tendo a fotografia, ao lado da caricatura e da publicidade, papel importante para a exposição dessa dita modernidade. No Brasil, o crescimento das revistas ilustradas acompanhou os primeiros passos de uma criação de um mercado de periódicos. A segmentação da imprensa estava despontando e cada dia havia uma diversificação maior em relação a temas e objetivos nos periódicos. Segundo Ivete Batista da Silva Almeida, entre 1912 e 1930, o crescimento e a diversificação dos temas foram visíveis no Brasil.2 Os temas variavam conforme o público leitor. O processo de complexificação e segmentação dos periódicos respeitava as tendências de consumo, tanto comercial quanto comportamental, de seu público leitor. Dentro dessa gama de possibilidades temáticas que nos fornecem as revistas ilustradas deste período, podemos assinalar três grandes grupos de publicações. Primeiro encontramos aqueles magazines de vanguarda, onde os espaços para a inovação e experimentação estética e formal tinham vez. É o caso da Revista de Antropofagia e da Klaxon, já citadas. Em segundo, temos as revistas literárias que desde o século XIX tinham espaço no Brasil. Estas revistas se caracterizam pelo lançamento de novos autores e de uma criação de um perfil da intelectualidade brasileira. Elas tinham por essência um caráter pedagógico. Em terceiro, temos as revistas de variedades. Este tipo foi o mais abundante no Brasil. Seu público era 2. A autora estabelece em números este crescimento: “no campo dos Noticiosos, cresceria de 882 títulos, para 1.519; os Literários de 118, para 297; os Científicos de 58, para 212; os Humorísticos de 57, para 99; os Almanaks de 14, para 66; os Didáticos de 8, para 33; os Históricos de 7, para 14; os Cinematográficos de nenhuma, para 10” (ALMEIDA, 2011, p.39). 106 SUMÁRIO A visualidade da Phenix: fotografia e imprensa ilustrada em Bagé principalmente formado por mulheres. Nestas revistas encontramos publicidade, aspectos da vida social, esportes, cinema e literatura. Em Porto Alegre as revistas de variedades eram a Máscara (1918-1928), a Madrugada (1926) e, posteriormente, a Revista do Globo (19291967). Os estúdios de fotografia, que neste período se encontravam no seu auge, encontram nestas revistas um espaço de publicização da produção. A elite local estampava seus retratos posados, de casamento, eventos políticos e de práticas de sociabilidade urbana nas páginas destas revistas. A Phenix, criada em 1921, pode ser considerada uma revista de variedades ao passo que visualizamos diferentes tipos de textos e matérias. Ela não foi uma revista que respeitou de forma rígida a sessões contínuas. Ou seja, a cada número surgiam diferentes espaços de escrita. Apenas algumas características são constantes em todos os números. O espaço da charge feita pelo ilustrador Henrique Tobal e denominada Typos Populares é presente em todos os exemplares. A sessão No Paiz da Graça, assinada por Helio, também é uma constante. Crítica de cinema, sessão de esportes, uma sessão intitulada Futilidade e o caderno Bagé Rural surgem com mais constância somente a partir da edição de número sete, de agosto de 1921. Mesmo com o estabelecimento destas sessões, os editores da Phenix não respeitaram rigorosamente em todas as edições a presença dessas sessões. Ora vemos a crítica de cinema, ora só visualizamos o caderno de esportes. Os diferentes usos da fotografia na Phenix Com uma padronização em todas as edições do espaço da publicidade nas suas páginas, a Phenix se mostrou como uma revista alinhada com os editoriais em voga na década de 20. As revistas ilustradas eram primordialmente financiadas com verbas advindas de assinaturas, vendas avulsas, colaborações ocasionais e anúncios. Pela escassez das fontes de financiamento, quando era permitida a diagramação dos anúncios, usualmente eles eram dissociados dos outros conteúdos, se concentrando nas páginas iniciais e finais das publicações (TRUSZ, 2006, p.70). O número de páginas dedicada à publicidade na revista variava de 7, 8 ou 9 páginas no início, com o mesmo número no final, ou seja, em média temos 18 páginas somente de publicidade estampada na Phenix, tendo a revista uma média de 35 páginas por exemplar. Para Alice Trusz (2006, p.71) os motivos da existência dessa distribuição da publicidade nas revistas ilustradas podem estar relacionados tanto ao preconceito contra a publicidade 107 SUMÁRIO A visualidade da Phenix: fotografia e imprensa ilustrada em Bagé por parte da imprensa ou a uma forma mais objetiva de expor estes anúncios ao consumidor, quanto às questões de ordem técnica e financeira, o que tornaria menos custosa a impressão e mais eficiente a propaganda. Aqui podemos acrescentar outro motivo. Este tipo de distribuição da propaganda poderia estar relacionado às próprias técnicas iniciais de publicidade e de mercantilização da imprensa, onde o valor do consumo para a sociedade ainda não carecia de uma inserção tão forte dos anúncios nas páginas de conteúdo. A publicidade aparecia nas páginas iniciais e finais da revista. Ora encontram-se anúncios de página inteira, ora vemos a divisão da página em duas, três, quatro e até seis partes, sendo ainda os anúncios todos em P&B. As partes interna e externa da contracapa também eram utilizadas para este fim, sendo a contracapa o único local onde a propaganda aparecia em cor, tendo em vista a alta visibilidade que este espaço tinha na revista. Além disso, pela capa e contracapa serem de um papel mais sofisticado, com impressão policromática e, no caso da Phenix, com possibilidade de uma ilustração mais elaborada, o espaço da contracapa era considerado o mais nobre para a publicidade. Os tipos gráficos e as molduras variavam conforme a propaganda, dando ênfase às informações mais importantes dos anúncios. Não há informação precisa de quem na revista elaborava esta diagramação dos anúncios, mas como o ilustrador da revista era o arquiteto Henrique Tobal, pode-se supor que era ele quem desenhava as molduras e dispunha as propagandas nas páginas. A maior parte dos anúncios era de casas de tecidos, papelaria e bazar, remédios, confeitarias, armazéns, relógios, casas de moda, estúdios de fotografia, tabacarias, automóveis, seguros de vida. A presença de fotografias nos anúncios é tímida em relação às ilustrações, por mais que estas também não eram tão frequentes, dando-se mais destaque para os tipos gráficos e para as molduras. Os anúncios que utilizavam a fotografia aparecem nas chamadas para circo, cinema ou teatro, onde as atrizes ilustravam as páginas. Outra forma de aparecer fotografia no espaço dos reclames são as imagens de alguns pontos da cidade, normalmente ocupando meia página e com título Bagé Pittoresco. Em algumas edições visualiza-se em meio ao espaço dedicado à publicidade fotografias que se referem à moda, como no caso desta página da edição de maio de 1921: 108 SUMÁRIO A visualidade da Phenix: fotografia e imprensa ilustrada em Bagé Figura 1. Phenix, maio de 1921. Como pode-se perceber na imagem, todas as fotografias vem com assinatura da Phenix. Sabendo que o fotógrafo principal da revista era José Greco, deduzimos que estas imagens partiram de seu ateliê. Outro destaque importante seria o formato e a disposição das imagens, único conteúdo da página inteira. Em algumas edições da Phenix, a regra que separava a publicidade do conteúdo não se aplica. Talvez pela grande demanda da população em expor suas imagens, conforme salienta o próprio editor Túlio Lopes em vários momentos, ou talvez por uma inovação técnica mesmo, algumas fotografias das “belas criaturas” da cidade aparecem entre os anúncios, como no caso da figura 2: Figura 2. Phenix, julho de 1921. 109 SUMÁRIO A visualidade da Phenix: fotografia e imprensa ilustrada em Bagé Mesmo não estando situadas nas extremidades da revista, algumas “propagandas” ganham destaque em colorido. Situada na terceira página, a propaganda dos artistas é valorizada na cor vermelha, no uso da fotografia e na clareza do conteúdo que clama aos bageenses a assistir o famoso dueto que se realizaria no Teatro Coliseu. Figura 3. Phenix, agosto de 1921. Ao longo do ano de 1921, algumas características da publicidade da Phenix vão se transformando, nunca deixando de lado totalmente o formato de propaganda no início e fim da revista. Alguns anúncios vão se misturando às páginas de conteúdo, demonstrando a importância cada vez mais marcante dada a certos produtos. Na imagem da figura 4, se destaca a propaganda do cigarro Veado: Figura 4. Phenix, agosto de 1921. 110 SUMÁRIO A visualidade da Phenix: fotografia e imprensa ilustrada em Bagé Como uma forma eficaz de propagandear as cidades vizinhas, buscando atingir o público que lá também consumia a revista, vemos nas páginas de publicidade cartões postais que apresentam locais de valor modernizante para a cidade, postais que trazem representados bancos, construções urbanas recentes e praças, locais importantes de recreação, onde o footing se realizava. Na imagem da figura 5, visualiza-se dois espaços da cidade de São Gabriel, o primeiro cartão postal apresenta a rua Coronel Sezefredo, dando destaque ao Banco Pelotense. Esta fotografia não se encontra ali por pura coincidência, a página anterior apresenta um anúncio deste banco que ocupa página inteira, logo, esta fotografia tem um propósito claro de reiterar o anúncio. Figura 5. Phenix, s’etembro de 1921. A presença da fotografia na publicidade da revista se mostra como mais uma forma de reiterar o próprio anúncio. Por seu caráter realista, estatuto maior da imagem fotográfica no período, ela se torna uma ferramenta eficaz de prova e embelezamento nas páginas de propaganda. O espaço dedicado às múltiplas formas de literatura na revista pode ser considerado a âncora desta magazine. Poesias, crônicas, textos históricos, contos e traduções são uma constante em todos os números. Segundo Charles Monteiro: As revistas ilustradas foram um novo espaço de atuação de literatos e pretendentes a escritores na Primeira República. No contexto de modernização urbana, de expansão da imprensa e de novas demandas sociais de informação e de entretenimento das elites e camadas 111 SUMÁRIO A visualidade da Phenix: fotografia e imprensa ilustrada em Bagé médias urbanas, as revistas ilustradas colocaram aos literatos um desafio. Tornou-se necessário abordar novos temas, escrever textos mais concisos (contos e crônicas) e de uma forma diferente para cativar um novo público amplo e diversificado (MONTEIRO, 2011, p. 2-3). O maior número de escritores colaboradores da Phenix foram intelectuais da própria cidade de Bagé. Algumas vezes aparecendo com pseudônimos, como os casos de Mourah e Léo, a maioria dos textos são assinados por personalidades da intelectualidade local, como Fernando Borba (que era também redator da revista), Jorge Reis, Artur Damé (escrevia principlamente assuntos relacionados à personagens históricos e críticas à urbanização da cidade), Henrique Tobal (arquiteto da cidade e diretor artístico da Phenix), Publio D’albuquerque e Julio Dantas. Alguns textos aparecem em espanhol e assinam nomes como Mario Moratoria. O espaço para a expressão feminina também é uma constante, a escritora Universina de Araujo Nunes possui vários textos publicados, Hollanda Cavalcanti e Maria Amalia Vaz de Carvalho também formam o rol feminino de escritoras. A poesia é uma forma literária presente em todos os números da revista. Aparecendo em inúmeras formas, a que mais chama a atenção para esta abordagem é a seção intitulada No Paiz da Graça, assinada por Helio. Em todos os números a poesia aparece vinculada à uma fotografia de alguma dama da sociedade. Com um enquadramento ilustrado, o retrato mostra e o texto floreia. Figura 6. Phenix, maio de 1921. O assunto “fotografia” é muito presente na revista, tendo em vista a situação favorável dos estúdios naquele momento e também 112 SUMÁRIO A visualidade da Phenix: fotografia e imprensa ilustrada em Bagé a ligação do fotógrafo José Greco com Túlio Lopes e outros editores da Phenix. Encontram-se referências escritas, fotografias retratando o próprio fotógrafo e também caricaturas com poesia como na figura 7. Não podendo afirmar que a caricatura e a poesia são dedicadas à Greco, apenas pressuponho sê-lo devido à morte prematura de sua esposa Leocádia Chicchi Greco, em novembro de 19003, que deixou Greco com filhos ainda pequenos. Eis a página da revista: Figura 7. Phenix, junho de 1921. As hipóteses que levam à esta interpretação são três: a primeira obviamente é pela caricatura representar um fotógrafo. A segunda é a referência na poesia à Dante Alighieri, italiano como Greco. A terceira hipótese se refere à sátira final da poesia, onde um trocadilho com a palavra mãe, insinua que o poeta fala de um pai solteiro. Os temas que compõem as crônicas da Phenix são variados. Desde críticas à urbanização, feitas por Henrique Tobal e Artur Damé, até crônicas sociais, que, com humor e astúcia, nos permitem abordar alguns aspectos dos relacionamentos sociais vividos no período, ou pelo menos como eles eram publicados. A crítica de cinema nos primeiros números da Phenix ainda não tinha uma padronização tanto textual quanto de ilustração. O primeiro texto que fala sobre o cinema (que se encontra já no primeiro número da revista) na verdade não se refere a algum filme em específico, mas trata-se de uma crônica sobre “as vantagens de ir ao cinema”. Na página seguinte lemos outro texto, assinado por R. B (possivelmente Romeu Borba), que fala sobre alguns filmes e sobre 3. A informação do ano da morte de Leocadia foi obtida no túmulo do casal no Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé. 113 SUMÁRIO A visualidade da Phenix: fotografia e imprensa ilustrada em Bagé as péssimas condições dos cinemas na cidade, tendo em vista o “luxo” de cinemas como o Guaranny de Pelotas, cidade tão próxima. Mais como uma crítica à situação dos teatros e do público expectador, estes primeiros textos não tratam dos filmes em si, porém o segundo texto faz referência aos artistas Mary Pickford e George Walsh, dois vultos de grande sucesso no período (figura 8). Ao longo dos meses surge uma padronização da página de cinema, com arte ilustrativa específica e agora com textos mais voltados à crítica de filmes em si. Na figura 9 vê-se o exemplo dessa padronização da ilustração do caderno de cinema, denominado “Arte do silêncio”. Figura 8. Phenix, fevereiro de 1921. Figura 9. Phenix, maio de 1921. Entendendo a cultura visual como um espectro de imagens que não necessariamente advém só da fotografia, é necessário salientar que o cinema na década de 1920 no Brasil teve uma importância crucial no comportamento social, caracterizando estilos de vida principalmente de influência norte-americana. A propaganda e a crítica cinematográfica são presenças constantes na revista, e não bastaria determinarmos somente o espaço da fotografia nestas páginas para compreender o regime visual que se construía em Bagé. Os textos sobre cinema que foram publicados na revista falam sobre a prática de ir ao teatro como a grande atração da cidade. Não é raro encontrar crítica aos filmes em série, onde assuntos de pouca profundidade intelectual e humana atraem um vasto público. 114 SUMÁRIO A visualidade da Phenix: fotografia e imprensa ilustrada em Bagé Selecionei algumas páginas da revista para abordar esta questão, mesmo não tendo a fotografia papel determinante. Figura 10. Phenix, maio de 1921. A figura 10 demonstra a importância do cinema para a sociedade bageense do período. As atrizes Lila Lee e Viviam Martin, ambas da Paramount Picture, estampam seus rostos para propagandear os dois filmes que protagonizam. Esta propaganda se encontra na página dedicada às propagandas gerais da revista. Na legenda só visualiza-se o nome das atrizes e seus filmes, bastando suas imagens para chamar o público. Na figura 11, novamente não há fotografia, porém à menção aos atores Wallace Reid e Charles Ray, como ícones daquela época, mostram a intimidade com a imagem em movimento daquela população. Figura 11. Phenix, junho de 1921. 115 SUMÁRIO A visualidade da Phenix: fotografia e imprensa ilustrada em Bagé Figura 12. Phenix, julho de 1921. Na figura 12, que ocupa o espaço anterior ao editorial da revista, visualiza-se um novo tipo de disposição tanto da imagem quando do texto. Com diagramação onde imagem se intercala com texto, vê-se um diálogo entre as duas esferas. A ilustração e a fotografia apresentam os atores, enquanto o texto propagandeia seus filmes de grande sucesso. A prática esportiva na década de 1920 se caracterizava como mais uma processo de condicionamento social que visava a afirmação do processo de modernização. A modernização dos costumes e, concomitantemente, dos espaços de convivência. Além disso, a menção à saúde e higiene também fazem parte do discurso sobre a prática esportiva. Na Phenix, dois esportes ganham destaque em suas páginas. O tênis, praticado no Bagé Tennis Club, era tido como um esporte feminino e, recorrentemente, as moças eram flagradas praticando. Essa tipologia fotográfica possui uma característica própria que não é comum à disposição dos outros tipos de fotografias publicadas na revista. A fotomontagem, ainda que incipiente, fornece um certo movimento que caracteriza o entusiasmo pelo esporte (figura 13). Figura 13. Phenix, junho de 1921. 116 SUMÁRIO A visualidade da Phenix: fotografia e imprensa ilustrada em Bagé Como já mencionado anteriormente, a aparição da imagem fotográfica na revista não está diretamente relacionada com o texto. Para os esportes não é diferente, como pode-se perceber na figura 14. Nesta página da revista, a fotografia assume papel essencial de informação sobre o jogo realizado entre os dois times principais da cidade o Guarany e o Bagé. Apenas a legenda que especifica cada time é informação adicional. Figura 14. Phenix, agosto de 1921. As fotografias de esporte dizem respeito três questões centrais. Primeiramente temos um apelo aos costumes de higiene e saúde que somente o esporte poderia prover. Logo pode-se supor que o esporte, por ser prática coletiva, propiciava relações sociais de cunho modernizante, fazendo da prática de ir ao clube uma ferramenta de distinção social. Um terceiro aspecto é a ideia de progresso que está imbricada no ser esportista. Segundo Vitor Andrade de Melo, citado por Cláudio de Sá Machado Junior em sua tese (2011), o praticante de esporte “era o misto de homem e máquina que poderia ajudar a construir para a civilização a ideia da necessidade de progresso” (MELO, 2007, p.221 Apud. MACHADO, 2011, p.199). Modernidade e progresso eram conceitos que estavam se formulando nesta sociedade. Logo, a prática de esporte e, mais ainda, o ato de fotografar o praticante foram estratégias de consolidação e agenciamento social que contribuíram para o fortalecimento da ideia de civilidade e modernidade. O espaço dos retratos de estúdio na Phenix. Falemos em números: o total de páginas (contando com capa e contra-capa) de todos os números pesquisados da Phenix contabiliza 399 páginas. Destas 399 páginas, 197 contém fotografias. Ou seja, 49,3% das páginas são ilustradas com fotografias. Estatisticamente falando, já podemos visualizar a importância que a fotografia passou a ter no início 117 SUMÁRIO A visualidade da Phenix: fotografia e imprensa ilustrada em Bagé do século na imprensa. No entanto, vamos mais adiante. O valor dado à imagem fotográfica não se encontra somente na imagem em si, mas também no discurso que dela se faz. Este valor está na propaganda, no aparecimento do termo nos textos literários, na importância dada ao fotógrafo, enfim, ao universo que compreende o fazer fotográfico que, sabemos, vai muito além da própria imagem. Neste subtítulo, tentarei delimitar o espaço da fotografia na revista Phenix, justamente por meio das imagens e de seus outros modos de ação. As fotografias publicadas nas páginas da Phenix na maioria das vezes aparecem desvinculadas do conteúdo escrito. Por se apresentarem em formato de retrato, representando a elite da cidade, a fotografia assume um caráter de “crônica social” por ela mesma. A veiculação da fotografia como “obra única” ou seja, aparecendo desagregada do texto, é um indício do seu caráter de produto cultural, com seus autores, seus significados próprios e espaços de ação. Em todos os seus números, a capa da Phenix contém um retrato fotográfico. Todos são de mulheres jovens da alta sociedade bageense, e por vezes de cidades vizinhas como Dom Pedrito e Santana do Livramento. Com ilustração que centraliza a imagem fotográfica, destacando-a, as capas da Phenix trazem modelos jovens (as vezes crianças) que representam o discurso de beleza e “fineza” que se almejava mostrar aos leitores. Além, é claro, de atingir o público feminino, por mais que este não fosse o único leitor da revista.4 Figura 15. Capa Revista Phenix, março de 1921. 4. A estimativa de público leitor por gênero não é possível de ser feita com exatidão. As interpretações são com base nos assuntos da revista e nas páginas que mostram as listas de assinaturas. Todos os assinantes são homens, o que não quer dizer que todos liam ou que somente homens a liam. 118 SUMÁRIO A visualidade da Phenix: fotografia e imprensa ilustrada em Bagé Figura 16. Capa Revista Phenix, junho, de 1921. No corpo da revista encontramos os créditos da fotografia de capa, indicando quem são as retratadas e o fotógrafo, na maioria das vezes é José Greco. A inserção do fotógrafo na imprensa se dá de forma mais enfática a partir da popularização das revistas ilustradas. A Phenix já no seu primeiro número, e mais ainda, na segunda página, traz o retrato de José Greco com a seguinte legenda: “O nosso distincto amigo e collaborador Snr. José Greco, eximio photographo, proprietario do Bazar Greco”. Como pode-se ver na figura 17: Figura 17. Phenix, fevereiro de 1921. Esta condição do fotógrafo neste momento está relacionada à popularização e ao auge dos estúdios fotográficos. Bagé possuía na época alguns estúdios como o Photographia Brasil, Ateliê Greco, Photo Inghes e Giovaninni. O fotógrafo adquire um papel determinante na 119 SUMÁRIO A visualidade da Phenix: fotografia e imprensa ilustrada em Bagé representação das elites locais e por isso possui grande prestígio para o público leitor da revista. As menções a José Greco não cessam ao longo do ano de 1921, passando inclusive a ser o fotógrafo oficial da revista. Segundo Monteiro o “fotógrafo é testemunha ocular” das novas práticas que certos grupos, influenciados pelos costumes europeus, introduziam nas sociedades locais (MONTEIRO, 2001, p.5). Para o autor, o fotógrafo ajuda a construir a imagem da distinção de classe, que, nas revistas ilustradas, encontram espaço para se legitimarem. No editorial do segundo número da Phenix, os editores reclamam da falta de um atelier de zincogravura5 na cidade, o que dificulta e retarda a confecção dos clichês, já que estes tinham que ser encomendados em Porto Alegre, fato que perdurou até agosto de 1921, quando os senhores Heitor e Alcides Germano abriram um atelier de photogravura na cidade, possibilitando a impressão total da Phenix em Bagé. No mesmo mês de março, lê-se um texto onde salienta-se o grande número de retratos que são enviados para publicação, no entanto, pede-se que somente mulheres (o então chamado “belo sexo”) enviem retratos. O texto diz o seguinte: Bagé goza, muito justamente, da fama de ser a terra das moças bonitas...e dos homens feios. Seria motivo de intenso jubilo e orgulho para os organizadores da Phenix, que os ultimos se mantivessem socegados e as primeiras apparecessem a illustrar as paginas da revista. Isto dizemos, porque teem affluido espontaneamente á nossa redacção retratos de marmanjos, que temos publicado e publicaremos (alguns cá de casa...), mas que preferimos vêr substituidos por photographias de “demoiselles” gentis. Avisamos, por isso, aos nossos amigos do sexo feio que queiram contribuir para o bom nome de Bagé, que, ao envez de nos mandarem as suas proprias caretas, remettam-nos retratos de suas irmãs, primas, noivas, etc; que nos sentiremos honrados em publicar (Phenix, março, 1921, nº2). As fotografias da Phenix registram basicamente esportes (tênis e futebol), o footing (que se dava na saída da missa), atrizes de cinema, misses, cartões postais e acontecimentos sociais. Os retratos são em maioria simples, sem cenário, em preto e branco e com baixa qualidade técnica. No entanto, algumas fotografias se diferenciam desta lógica. De qualidade técnica superior e composição mais elaborada, estas imagens se destacam nas páginas da Phenix. Como já foi mencionado, praticamente todas as imagens produzidas por José 5. Processo de gravar fotografia ou ilustração em zinco. 120 SUMÁRIO A visualidade da Phenix: fotografia e imprensa ilustrada em Bagé Greco são creditadas (prática não usual para as revistas da época)6, estas não fogem à esta regra. Figura 18. Phenix, maio de 1921. Impressas em cores diferentes, a iluminação, a pose e o cenário contribuem para a legitimação do fotógrafo como artista, tantas vezes salientada pela própria revista em relação a José Greco. São diversos os momentos que na Phenix vemos referência a Greco como o artista da cidade e, além disso, às suas imagens como “arte photographica”. Figura 19. Phenix, agosto de 1921. 6. Para maiores informações sobre o assunto ler: COSTA, Helouise. Pictorialismo e imprensa: o caso da Revista O Cruzeiro. In.: FABRIS, Annateresa. Fotografia: usos e funções no século XIX. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008 121 SUMÁRIO A visualidade da Phenix: fotografia e imprensa ilustrada em Bagé Figura 20. Phenix, setembro de 1921. As fotografias mais recorrentes são, sem sombra de dúvida, os retratos de mulheres e crianças. A menção ao casamento, seja o já consumado ou a própria promoção dele, são aspectos presentes na Phenix. As fotografias das senhoritas demonstram exatamente esta promoção. Normalmente a legenda indica a que família a fotografada pertence, realizando assim, por meio da imagem, um agenciamento social. Ou seja, as famílias que almejavam unir suas propriedades, elevando cada vez mais suas riquezas, encontravam na fotogrfia e na publicação delas uma maneira de propagandear, de expor a figura feminina, valorizando seus dotes e belezas. Os meandros entre a noção de público e privado no início do século XX estavam se consolidando. No Brasil, costumes europeus eram cada vez mais importados e com isso a noção de lar e de intimidade se complexificava cada vez mais. O uso da fotografia, e mais ainda, do retrato na imprensa segue esta lógica. Ao passo que o indivíduo complexifica estas relações privadas, ele sente a necessidade de expô-las para a consolidação de um status social que o projete em uma sociedade cada vez mais homogeneizadora. Os retratos se mostram como um agenciamento entre as camadas média e alta da sociedade como forma de se diferenciar, e foi na imprensa que este inventário privado ganhou um público. 122 SUMÁRIO Referências FABRIS, Annateresa. Fotografia: usos e funções no século XIX. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008 MONTEIRO, Charles. O lugar da fotografia frente a outras imagens e sua função social na elaboração de uma nova visualidade urbana moderna nas revistas ilustradas dos anos 1920. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011. MONTEIRO, Charles. A construção de uma visualidade urbana moderna nas revistas ilustradas brasileiras nos anos 1920. In: Relatório Final Edital Universal 2092011. Porto Alegre: PUCRS, 2012, pp. 1-15. MACHADO JUNIOR, Cláudio de Sá. Fotografias da vida social: identidades e visibilidades nas imagens publicadas na Revista do Globo (Rio Grande do Sul, década de 1930). Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo, 2011. TRUSZ, Alice Dubina. Publicidade e imprensa – A modernização na aliança entre produção cultural, técnica e mercado. In.: RAMOS, Paula (Org.) A Madrugada da Modernidade (1926). Porto Alegre: Editora UniRitter, 2006. Fontes Revista Phenix: Anno I número 1: fevereiro de 1921 Anno I número 2: março de 1921 Anno I número 3: abril de 1921 Anno I número 4: maio de 1921 Anno I número 5: junho de 1921 Anno I número 6: julho de 1921 Anno I número 7: agosto de 1921 Anno I número 8: setembro de 1921 Anno I número 9: outubro de 1921 Anno I número 10: novembro de 1921 Anno I número 11: dezembro de 1921 Anno II número 12-1: fevereiro de 1922 Anno II número 2: abril ou março de 1922 Anno II número 3: janeiro de 1923 123 SUMÁRIO PRÁTICAS ASSOCIATIVAS NEGRAS EM BAGÉ: IMPRENSA, CARNAVAL E CLUBES SOCIAIS ¹ Tiago Rosa da Silva 2 Rafael Rosa da Silva 3 124 SUMÁRIO Práticas associativas negras em Bagé: imprensa, carnaval e clubes sociais 1 2 3 Introdução O presente capítulo tem como objetivo analisar a mobilização negra na cidade de Bagé através das suas práticas associativas no período pós-Abolição e na contemporaneidade, com ênfase na Imprensa Negra, nos festejos carnavalescos e nos Clubes Sociais Negros. Tais espaços foram gestados de norte a sul do Brasil desde o século XIX, porém no pós-Abolição se intensificaram e foram responsáveis, como afirma Silva (2020) por forjarem projetos coletivos de existência para uma parcela significativa da população negra. Porém, antes de adentrarmos nas experiências associativas das gentes de cor bageense, vamos observar algumas características acerca da construção histórica do município de Bagé, bem como as narrativas que ao longo dos anos foram sendo construídas e ao mesmo tempo acabaram por invisibilizar a presença e a atuação coletiva da população negra local tanto no período da escravidão bem como no pós-Abolição. “Tudo o que se vê plasma-se em uma inexorável supremacia branca”4: a invisibilidade do negro na história de Bagé. 1. Esse texto é uma homenagem In Memoriam ao professor Ivoncléo Monteiro, homem negro que tanto contribuiu para a manutenção e valorização do carnaval e dos clubes negros na cidade de Bagé. 2. Mestre em História pela UFPel. Professor substituto de História do IFSUL Campus Avançado de Jaguarão/RS. 3. Mestre em Cultura e Territorialidades pela UFF. Doutorando em Antropologia pela UFF. 4. Ao escrever sobre a cidade onde forjou sua infância e adolescência, o intelectual negro Gilberto Alves Soares observou Bagé e concluiu, em meados dos anos de 1980, que a localidade ainda guardava resquícios colonialistas. A presente citação do subcapítulo pode ser encontrada em SOARES, Gilberto Alves. Se não me falha a memória. Lajeado: Obra do autor, 2015, p. 34. 125 SUMÁRIO Práticas associativas negras em Bagé: imprensa, carnaval e clubes sociais Localizado na fronteira Sul do Brasil e fazendo divisa com o Uruguai, mais especificamente com a cidade de Vichadero, o município de Bagé guarda características de uma localidade interiorana cujas casas, ruas e praças bicentenárias se sobressaem em meio a prédios e construções mais modernas. Fruto de vários conflitos envolvendo portugueses e espanhóis no inicio do século XVIII, a pacata vila chamada de São Sebastião de Bagé passou diversas vezes do domínio espanhol para o português e vice-versa. Com o intuito de amenizar tais conflitos com os espanhóis, a coroa portuguesa começou a distribuir sesmarias para a ocupação e demarcação dos espaços regionais, dando, assim, origem as primeiras estâncias na região (LEMIESZEK, 2000, p. 64). Mas é a partir de um episódio em específico – a marcha para Montevidéu chefiada pelo Marechal Dom Diogo de Souza – que a localidade de São Sebastião de Bagé vai começar a dar sinais de crescimento populacional. Na sua partida para Montevidéu, Dom Diogo de Souza decide deixar um acampamento militar estabelecido nos cerros da região. Tal acampamento possuía combatentes, médicos, soldados, feridos, mulheres e crianças. É a partir deste episódio, segundo alguns historiadores locais, dentre eles Taborda (2015) e Lemieszek (2000) que se originou o município de Bagé, ou seja, a partir de um acampamento militar improvisado, mais precisamente em meados de 1811. A partir de então o pequeno acampamento começou a crescer, tornando-se uma vila e teve um crescimento rápido como bem pontua o escritor Cláudio Lemieszek: A evolução da organização administrativa de Bagé igualmente é muito rápida, demonstrando seu precoce crescimento e importância. Até 1832 pertenceu ao município de Rio Pardo, ano em que passou a integrar o município de Piratini. Em 1846, no mês de junho, foi criado o município de Bagé, e em dezembro desse mesmo ano procedeu-se à eleição para a primeira legislatura da Câmara de Vereadores. O foro foi instalado em 1848, e finalmente, em 1859, Bagé é elevada à categoria de cidade (LEMIESZEK, 2000, p. 66). Assim como as demais cidades interioranas da fronteira, Bagé também apresentou uma significativa presença de trabalhadores/as negros/as escravizados/as no decorrer do século XIX. Porém, o que chama bastante atenção é o fato de que os escritores e historiadores que se debruçaram sobre a história do município acabaram por negligenciar as experiências destes sujeitos, pois em suas obras, tanto Fagundes (1995), bem como Taborda (2015), Lemieszek (2000), 126 SUMÁRIO Práticas associativas negras em Bagé: imprensa, carnaval e clubes sociais e Lemieszek e Garcia (2013) ignoram a presença e as experiências de pessoas negras na condição de escravizados/as e livres. Nesse sentido, tais autores acabaram por “pintar” o quadro de uma Bagé sem conflitos e contradições sociais, e indo mais além, tais narrativas atribuem o desenvolvimento da cidade à presença de imigrantes: Juntas, as três colônias de imigrantes (espanhóis, portugueses e italianos) deixaram um belo legado de obras e lição de vida a seus descendentes bajeenses. Fundaram hospitais, sociedades beneficentes, casas comerciais e industrias. Além disso, tiveram presença marcante na música, nas artes e na literatura bajeense, não podendo deixar de citar, desse modo, a qualidade dos artesãos e profissionais de diversos ofícios de relevante utilidade para a novel cidade. (LEMIESZEK e GARCIA, 2013, P. 15). (grifos nossos). Observando as principais produções acadêmicas sobre Bagé, notamos que há a naturalização de uma história em que pesa a figura do homem branco, do europeu, sendo este sinônimo do progresso local. Tais questões são reforçadas nas obras de Fagundes (1995) e Taborda (2015), que, junto com Lemieszek e Garcia (2013), são tidos como os principais historiadores da cidade. Em sua vasta produção acadêmica, o historiador Tarcísio Antônio da Costa Taborda se empenhou em pesquisar as origens de Bagé e suas principais lideranças políticas, ganhando destaque nomes como o do Marechal Dom Diogo de Souza e Gaspar Silveira Martins. Os escritos da escritora Elisabeth Fagundes se assemelham aos de Taborda, no qual a sua principal preocupação foi a de estabelecer o vínculo da história da cidade de Bagé junto à do Rio Grande do Sul, sobretudo através de lideranças políticas locais e as “efemérides” da “Rainha da Fronteira”5. Porém, a realidade que se fazia presente na localidade de Bagé é bem oposta ao que foi construída e está presente no imaginário da cidade até os dias atuais. Referimo-nos aqui a grande circulação de homens, mulheres, crianças e idosos negros que viviam na condição de trabalhadores escravizados, livres e libertos e que transitavam pela cidade, tanto na zona urbana como nos espaços rurais. Com relação às pesquisas sobre escravidão na cidade de Bagé, o artigo escrito por Oliveira (2010) e a tese de Matheus (2016) buscam mostrar que a localidade de Bagé atravessou o século XIX com uma significativa presença de trabalhadores/as negros/as escravizados/as, 5. Epíteto atribuído à cidade de Bagé. 127 SUMÁRIO Práticas associativas negras em Bagé: imprensa, carnaval e clubes sociais configurando-se enquanto uma importante localidade escravista da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Para se ter uma ideia, o primeiro censo realizado no ano de 1846 mostra que Bagé possuía uma população total de 4.104 pessoas. Destas, os/as trabalhadores/ as escravizados/as somavam 1.212, ao passo que pessoas livres somavam 2.884. Com relação ao percentual, observamos que os/as trabalhadores/as escravizados/as perfaziam 29,5% dos habitantes do município (MATHEUS, 2016, p. 76). Passados treze anos do primeiro censo realizado, a população local crescera substancialmente, chegando ao número de 12.342 pessoas, ao passo que a população negra também acompanhou esse crescimento como mostra a tabela abaixo: Tabela: Estatística populacional das cidades escravistas – 1859 % de Município Livres Escravos Libertos Total escravos Porto Alegre 20.341 8.417 965 29.723 28,31 Jaguarão 7.668 5.056 275 12.999 38,89 Pelotas 7.793 4.788 312 12.893 37,13 Rio Grande 15.432 4.369 71 19.872 21,98 Cruz Alta 22.073 4.019 392 26.484 15,17 Bagé 7.982 4.016 344 12.342 32,53 Fonte: Relatório do Presidente da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul Joaquim Antão Fernandes leão, 1859. Encontrada em: (http://www-apps.crl.edu/ brazil/provincial/rio_grande_do_sul) (SILVA, 2018, p. 33). Ao observarmos a tabela acima, fica evidente a significativa presença de trabalhadores/as negros/as escravizados/as que residiam em Bagé no ano de 1859, no qual perfazem 32,53% da população total do município. Esses dados são de extrema importância, pois a cidade de Bagé, em proporção ao número de habitantes, acaba ficando na frente da capital da Província Porto Alegre e só fica atrás da cidade fronteiriça de Jaguarão e do polo charqueador de Pelotas, ficando a frente, inclusive, da cidade portuária de Rio Grande6. Para além de 6. Cabe destacar a importância da cidade de Rio Grande no que diz respeito à chegada e renovação dos grupos de trabalhadores/as negros/as escravizados/as no decorrer do século XIX, pois como bem apontou o historiador BERUTE, 2011, Rio Grande fazia parte da chamada terceira perna do tráfico transatlântico de escravizados, pois ao chegarem aos principais portos do Brasil (Salvador, Pernambuco e Rio de Janeiro), os africanos eram (re) 128 SUMÁRIO Práticas associativas negras em Bagé: imprensa, carnaval e clubes sociais ocuparem os espaços urbanos e rurais da cidade de Bagé, homens e mulheres negras também forjaram múltiplas estratégias de resistência ao cativeiro, como é o caso das fugas, revoltas e formação de quilombos, o que evidentemente chamava a atenção das autoridades locais e mostrava a instabilidade dessa região de fronteira. A título de exemplo, temos o trabalho do historiador Oliveira (2010), que analisou algumas destas resistências empreendidas por negros/as escravizados/as no município. Analisando aspectos das fugas na cidade de Bagé através de inventários, Oliveira (2010) nos trás informações que denotam essa fragilidade característica da região fronteiriça de Bagé, em que ao efetuar o inventário de seu esposo, em 1849, a proprietária Felícia Flora Ribeiro informa que “seis anos antes fugiram para o Estado Oriental os seus escravos Antônio da Costa, Matheus da Costa e Florinda crioula, dos quais nunca mais soube notícias” (OLIVEIRA, 2010, p. 184). Além das fugas, Oliveira (2010) também chama a atenção para tentativas de formação de comunidades quilombolas na região, bem como furtos e brigas envolvendo sujeitos negros na condição de escravizados. Tais ocorrências acabavam chamando a atenção das autoridades locais, como é o caso de uma correspondência enviada pelo subdelegado da policia local para o presidente da Província no ano de 1845 e que pedia, dentre outras demandas, o reforço da Guarda Nacional para conter tentativas de insurreições negras na região: Ilmo. Exmo. Snr. A invasão dos bárbaros assassinos do governo de Montevideo, os intentos de sublevarem (sic) a escravatura nesta província; os orientais imigrados dos dois partidos que vagam pelos distritos sem mostrarem em que se ocupam, e finalmente os desertores do Exército que também aparecem tem posto os cidadãos pacíficos em sobressalto, e desassossego, e desejando tomar as providencias conveniente para estabelecer a tranquilidade pública consultei Comandante Superior da G. N. deste município para estabelecer uma polícia dos G. N. da reserva [...] (OLIVEIRA, 2010, Op. Cit. p. 191). (Grifos nossos) Mesmo havendo, como mostrado até aqui, uma significativa presença negra na cidade de Bagé e que atravessou o século XIX, os escritores e historiadores locais acabaram por construir uma história no singular, uma história pautada em lideranças politicas (homens brancos) e que negligenciaram as múltiplas experiências distribuídos para outros portos, sendo um destes o da cidade de Rio Grande. 129 SUMÁRIO Práticas associativas negras em Bagé: imprensa, carnaval e clubes sociais negras na região. Isso não ocorreu somente no período escravista, pois como veremos a seguir, após a abolição formal da escravidão em 1888, a cidade de Bagé seguiu com uma significativa presença de pessoas negras e estas buscaram construir espaços próprios para sua existência coletiva, como é o caso da Imprensa Negra, do Carnaval e dos Clubes Sociais. Pós-Abolição e Imprensa Negra em Bagé Aqui o pós-Abolição é visto como um período com características próprias, momento no qual sujeitos negros buscaram ampliar margens de autonomia na construção de espaços próprios e racializados, bem como buscaram dar novos significados a liberdade e a cidadania, pois a partir do fim formal da escravidão – 13 de maio de 1888 – o Estado brasileiro se empenhou em forjar uma sociedade estratificada e cujo peso da exclusão caía, principalmente, sobre os ombros das gentes de cor. Com o inicio da Primeira República – 1889 – a cidade de Bagé já se configurava dentre as principais cidades do interior do estado do Rio Grande do Sul, tendo na pecuária o seu principal motor propulsor da economia. Ao mesmo tempo em que a cidade crescia do ponto de vista populacional, a vida política do município também crescia, bem como os espaços e centros culturais (LEMIESZEK, 2000). Nesse sentido, jornais foram inaugurados, bem como sociedades recreativas, beneficentes, mutualistas e de classe. Em muitos destes espaços, era vedada a participação da sociedade colored bageense. Podemos citar aqui o Club Comercial e Caixeiral, que proibiam a entrada de pessoas negras nas suas dependências. Pessoas negras também eram proibidas de frequentarem espaços como cafés, estabelecimentos comerciais e até mesmo calçadas do centro da cidade. Esses espaços, tidos aqui como racializados, foram uma constante no pós-Abolição não somente na cidade aqui analisada, mas também em diversas outras cidades do Rio Grande do Sul e do restante do Brasil. Nem por isso, pessoas negras ficaram “apáticas” e assistiram submissas tais exclusões, mas pelo contrário, buscaram criar seus próprios espaços também pautados na lógica da racialização na ânsia por melhor viver. Dentre estes espaços podemos apontar a chamada Imprensa Negra. Segundo nos mostra os estudos de Pinto (2006), jornais da chamada Imprensa Negra existem no Brasil desde o século XIX. Porém, foi no período pós-Abolição que tais impressos cresceram 130 SUMÁRIO Práticas associativas negras em Bagé: imprensa, carnaval e clubes sociais substancialmente no país, tendo o Rio Grande do Sul uma gama destes jornais como apontam estudos mais recentes de pesquisadores empenhados, sobretudo, dentro do campo de estudos do pósAbolição, dentre os quais podemos destacar as pesquisas de Santos (2011), Oliveira (2017), Perussatto (2018) e Al-Alam (2020), bem como as pesquisas realizadas pelo GEPA – Grupo de Estudos sobre o Pósabolição - da Universidade Federal de Santa Maria. No que diz respeito à cidade de Bagé, ao fazer um levantamento dos jornais da Imprensa Negra nos arquivos do Museu Dom Diogo de Souza (Bagé), bem como no acervo do Museu José Hipólito da Costa (Porto Alegre), nos deparamos com 13 exemplares, cujo primeiro data do ano de 1913 e o último do ano de 1952. Os títulos dos periódicos7 são, a saber: O Rio Branco (1913), A Liberdade (1920), A Defeza (1920), O Palmeira (1922; 1927, 1949, 1952), O Rouxinol (1924), A Revolta (1925), O Teimoso (1928), O Boato (1929), Lampeão (1934), Socega Leão (1937; 1939) e O 28 de Setembro (1937, 1938, 1939) (SILVA, 2018). Esses periódicos mencionados guardam muitas características semelhantes entre si, dentre os quais o monitoramento do comportamento em público de pessoas negras, principalmente as mulheres. Era corriqueiro aparecerem nestes jornais colunas de fofocas e os famosos “espiões”, que estavam empenhados em vigiar o comportamento feminino como podemos ver na coluna abaixo: Na noite de 25 foi encontrado as 9,30 horas um bloco de morenas de grande algazarra na esquina da praça esporte e rua M. Deororo mais cautella meninas não abuzem com quem passa na rua senão eu vou dizer o nome de vocês snta (sic) querem andar de joelhos vão para a Igreja que o lugar de se ajoelhar snta (Socega Leão, 1937, p. 2). Essas colunas foram uma constante nos jornais da Imprensa Negra em outras cidades do Rio Grande do Sul como atestam os estudos de Oliveira (2017) para Pelotas, Al-Alam (2020) para Jaguarão e também se fizeram presentes em outros estados do país, como bem pontua Domingues (2008) que estudou, principalmente, os periódicos de São Paulo. Este mesmo autor afirma que uma das características da Imprensa Negra de São Paulo era o combate à vadiagem, aos maus costumes e ao uso de álcool. Segundo o referido autor, nas páginas dessa imprensa, “o negro deveria ser trabalhador, honesto e cumpridor 7. Os periódicos A Defeza; O Boato; O Lampeão; O Rio Branco; O Rouxinol e o Socega Leão, foram encontrados a partir de um projeto de digitalização realizado pelo Museu Hipólito José da Costa. Eles podem ser encontrados na página: http://afro.culturadigital.br/imprensa-negra-no-rio-grande-do-sul/. 131 SUMÁRIO Práticas associativas negras em Bagé: imprensa, carnaval e clubes sociais dos seus deveres, além de zelar pela moral e pelos bons costumes” (DOMINGUES, 2008, p. 41). Nesse sentido, é importante destacar que a vigilância e o controle sistemático do comportamento, sobretudo das mulheres, vinha no sentido de positivar a imagem da coletividade negra, tida no período pós-Abolição como um grupo desorganizado e alvo das mais perversas teorias raciais da época em questão. Além das já mencionadas colunas de fofocas, alguns jornais da Imprensa Negra de Bagé também pautavam o debate sobre a instrução primária. No editorial do periódico A Defeza (1920), que se intitulava o Orgam da Raça Ethyopica – Litterario, Noticioso e Recreativo e era dirigido por Pedro Paulo de Oliveira, há um artigo escrito por João dos Anjos, cujo tema abordado foi o analfabetismo, pois, segundo João: [...] é um assumpto não só de agrado como de interesse, principalmente da nossa raça. Uma das coisas a que nos devemos interessar é a instrucção, o aprendermos a ler e a escrever; procurarmos conhecer o direito, e que e o porque das coisas da vida. A instrucção é tudo. (A Defeza, 1920, p.1). (Grifos nossos). Outro editorial que aborda a educação e a instrução primária foi escrito por João Dutra, que em 1925 era o redator e proprietário do jornal A Revolta, e segundo consta no editorial do referido jornal, a luta da coletividade negra deveria ser em torno do: Amor ao trabalho, guerra tenaz e desenfreada ao analfabetismo e ao vicio, união laboriosa e fecunda dos nossos ideaes para a elevação de nossa raça, instituindo escolas primárias, fundando sociedades, verdadeiros centros de civismo, de labor, amparo e desenvolvimento physicos e intelectuais [...] (A Revolta, 1925, p. 1). (Grifos nossos) Como podemos observar, a pauta da educação e instrução primária estava na ordem do dia dos redatores e proprietários de jornais da Imprensa Negra bageense no pós-Abolição. Estes sujeitos estavam atentos aos desafios colocados à população negra no período citado, e sabiam que a elevação da raça passava, sobretudo, pela alfabetização e educação, bem como a construção de sociedades organizadas, no qual poderiam proporcionar oficinas de trabalho para os seus e as suas. Outra característica da Imprensa Negra de Bagé foi a interlocução com outros periódicos negros de outras cidades do Estado gaúcho, como é o caso do jornal O Succo de Santa Maria, A Liberdade de Porto Alegre e A Alvorada de Pelotas. Além de receberem os devidos periódicos em suas redações e de possuírem 132 SUMÁRIO Práticas associativas negras em Bagé: imprensa, carnaval e clubes sociais correspondentes na cidade, como é o caso do A Alvorada, essas interlocuções também se faziam presentes em visitas de times de futebol que disputavam ligas específicas para jogadores negros. É o caso da Liga José do Patrocínio de Pelotas e da Liga 13 de Maio de Bagé. Tais ligas de futebol possuíam equipes que disputavam jogos amistosos com seus co-irmãos de outras cidades, fortalecendo redes de apoio e solidariedade (SILVA, 2018). Festas, eventos culturais/sociais e atividades vinculadas às sociedades negras, sobretudo as de cunho recreativo eram amplamente noticiadas nas páginas da Imprensa Negra de Bagé, principalmente os festejos destinados ao Momo, que como veremos a seguir, também foi amplamente utilizado pela população negra bageense para se afirmar numa sociedade cujas relações sociais eram racializadas. Construindo espaços racializados: Carnaval e Clubes Sociais em Bagé no pós-Abolição Para além da Imprensa Negra, coletividades negras de Bagé buscaram, também, atuar nos festejos destinados a Momo. Ao vasculharmos os jornais redigidos por e para negros em Bagé bem como o jornal Correio do Sul, este que fazia parte da imprensa hegemônica local, acabamos por encontrar uma série de ranchos, cordões e blocos carnavalescos compostos por sujeitos negros e que tiveram uma importante atuação no carnaval da cidade. Aqui cabe destacar a emergência de estudos sobre o carnaval numa perspectiva racial negra que vem emergindo nos últimos tempos. Para o caso do Rio Grande do Sul vale apontar para o trabalho pioneiro de Loner (2001) sobre as cidades de Pelotas e Rio Grande e Germano (1999) e Rosa (2008), que tiveram como foco de suas análises o carnaval na cidade de Porto Alegre, entre outros trabalhos. Para o caso das cidades de Pelotas e Rio Grande, Loner (2001) encontrou entidades carnavalescas negras ainda no século XIX, no qual algumas aparecem, inclusive, comemorando a abolição da escravidão no Brasil. Já os estudos que focam na cidade de Porto Alegre têm como palco de análise as décadas de 1930 e 1940, momento marcado pela ascensão de Getúlio Vargas à presidência do Brasil e pela construção de um discurso nacionalista no qual o Estado buscou se apropriar dos festejos carnavalescos. Mas ao mesmo tempo grupos carnavalescos compostos por sujeitos negros 133 SUMÁRIO Práticas associativas negras em Bagé: imprensa, carnaval e clubes sociais também buscaram ocupar os espaços das ruas e se apropriar desta tão famosa festa popular brasileira. Para o caso de Bagé, as principais entidades carnavalescas negras foram encontradas a partir dos anos de 1930 e 1940. É o caso do Rancho Carnavalesco Vamos de Qualquer Jeito; Rancho Carnavalesco Respinga; Cordão Carnavalesco Adeantados; Cordão Carnavalesco Bambas da Cidade; Bloco Carnavalesco Piratas do Amor, Bloco Carnavalesco Garotos da Batucada e Bloco Os Zíngaros (SILVA, 2018). Pelos levantamentos feitos a partir dos periódicos aqui mencionados, estas entidades foram as principais responsáveis por dar a tônica do carnaval de rua de Bagé, mostrando todo o potencial organizativo de coletividades negras. No período carnavalesco era comum entidades negras realizarem desfiles pelas ruas de Bagé, passando em visita à outras entidades e em alguns casos finalizando suas apresentações em frente a redação de jornais locais, como é o caso do já citado Correio do Sul. Outro fator importante a ser levado em consideração era a proibição, em muitos casos, destas entidades desfilarem em salões de sociedades da elite local, como o Club Comercial e Clube Caixeiral, salvo algumas exceções, como foi o caso do Garotos da Batucada que em certa ocasião foram convidados a se apresentarem no Club Comercial. Ademais, essas entidades ou desfilavam pelas ruas ou realizavam concursos entre os seus, como o realizado pela Sociedade As Teimosas no ano de 1925: Concurso Carnavalesco – Promovido pela benquista sociedade As Teimosas, levarão a efeito um bem organizado concurso, em que tomarão parte, todos os cordões locais, para o fim de se apurar durante o período carnavalesco, qual é o cordão mais “simpático”. Os prêmios se acharão expostos na vitrine da Ferragem Magalhães, e a apuração será feita diariamente, na redação deste semanário, a rua General Netto n: 6, onde de 2ª feira em diante se acharão cupons a venda. O preço de cada cupom será de cem reis. Só tomarão parte os cordões da raça. (O Teimoso, 22/01/1928). (grifos nossos). Como podemos observar a partir do excerto acima, a Sociedade As Teimosas deu cabo em um concurso onde só poderiam participar cordões da raça. Ou seja, era um concurso carnavalesco no qual a identidade negra racializada era acionada pelos sujeitos negros, pois como bem nos mostra a historiadora Fernanda Oliveira da Silva: 134 SUMÁRIO Práticas associativas negras em Bagé: imprensa, carnaval e clubes sociais Os grupos negros, na ânsia por existir de forma plena, gestaram uma contra ideologia por meio das bases disponíveis e, se a raça os impedia de acessar espaços, porque não a utilizar como uma característica para forjar seus próprios espaços e por meio destes contrapor os estereótipos que fundamentavam as discriminações? (SILVA, 2017, p. 115). Outro fator que merece destaque quando observamos as entidades carnavalescas negras de Bagé é o seu rigor quanto ao desfile e elaboração de fantasias. Em entrevista realizada com o Sr. Luís Barbosa da Silva, conhecido popularmente pelos seus como Casquinha, o mesmo afirma que não era qualquer pessoa negra que poderia ingressar nas entidades carnavalescas negras que desfilavam em Bagé nos idos dos anos de 1930. Como exemplo, o mesmo afirma que existia uma rigorosa seleção para instrumentistas. Nesse contexto, os ranchos e cordões carnavalescos desfilavam com a chamada Orquestra, possuindo, além de instrumentos percussivos, trompetes e trombones. Além dessa rigorosa seleção para quem quisesse compor a bateria destas entidades, também existia uma rigorosa elaboração de fantasias, como podemos observar na imagem abaixo: Imagem 1: Cordão Carnavalesco Bambas da Cidade - 1947 Fonte: (Acervo particular de Luís Barbosa da Silva) 135 SUMÁRIO Práticas associativas negras em Bagé: imprensa, carnaval e clubes sociais Além do Bambas da Cidade, outras duas entidades carnavalescas negras que obtiveram destaque nos festejos destinados a Momo em Bagé foram os Garotos da Batucada e o Bloco Os Zíngaros. O primeiro acabou por se consagrar como um dos principais blocos da cidade, ganhando diversos concursos realizados por lojas locais e também em concursos patrocinados pelo jornal Correio do Sul. Essa consagração fazia com que o referido jornal estampasse em suas páginas uma fotografia dos membros do bloco, bem como o nome de sua respectiva diretoria. Isso também ocorreu com o segundo bloco mencionado, Os Zíngaros. Estes obtiveram reconhecimento a partir dos anos finais da década de 1930 e inicio da década seguinte, quando ganharam por quatro vezes seguida os concursos realizados pelo jornal Correio do Sul. Assim como as entidades citadas anteriormente, esta também era pautada por uma rigidez e organização por parte dos seus membros. Isso pode ser o fator que motivou a criação, no ano de 1944, de uma sociedade recreativa, no qual a partir de então Os Zíngaros não se restringissem somente ao período do carnaval e sim passassem a proporcionar lazer e recreação para seus sócios durante o ano todo. Nesse sentido, a partir do ano de 1944 estava fundada a Sociedade Recreativa Os Zíngaros, clube fundado por onze trabalhadores negros de Bagé. A partir do seu estatuto, criado no ano de 1948, podemos ter acesso aos nomes dos seus sócios fundadores, sendo eles: Pedro Mendes, Nadir Alves da Costa, Martin C. Fernandes, Constantino Monteiro, Antonio Alves, Antonio S. Alves, Claudio Cavalheiro, Edmar C. Madruga, Ferdinando Saraiva, Elias Bell e Gervasio Rodrigues.8 Consolidada a Sociedade, seus membros logo deram cabo de organizar diversas atividades sociais/recreativas para seus sócios, como é o caso de bailes de debutantes, quermesses, festas de São João, bailes da Primavera dentre outras atividades sociais. Assim como havia certa rigorosidade no ingresso aos cordões, ranchos e blocos carnavalescos negros, nos clubes sociais também havia, como deixa bem evidente uma parte de seu estatuto: Todo o cidadão para ser admitido como sócio é preciso ser moralizado e que não se dê á prática de maus costumes, assim como a senhora ou senhorita é preciso ser de conduta inatacável.9 8. Estatutos da Sociedade Recreativa Os Zíngaros. 1948. Typografia da Casa Maciel, Bagé. p. 27-28. 9. Estatutos da Sociedade Recreativa Os Zíngaros. 1948. Typografia da Casa Maciel, Bagé. p. 4. 136 SUMÁRIO Práticas associativas negras em Bagé: imprensa, carnaval e clubes sociais É importante destacar que tais espaços associativos forjados por sujeitos negros no pós-Abolição, como é o caso do clube Os Zíngaros, buscavam se afastar de estigmas que eram atrelados a estes, e a busca de uma moral está vinculada a ideia de criação de uma identidade negra positiva como bem pontuou Silva (2011). Tanto o supracitado clube, bem como a Sociedade Recreativa Palmeiras possuíam essas características. Essa última foi criada no ano de 1948 e para além de realizar festas e eventos sociais/ recreativos, possuía também um departamento cultural e uma biblioteca. Isso mostra que os sujeitos negros que frequentavam estes espaços estavam conscientes da situação de suas coletividades e buscavam meios de aprimorar seus conhecimentos intelectuais, tendo em vista que tais sociedades estavam imersas em um contexto no qual as relações sociais eram racializadas. Nesse sentido, era de fundamental importância mostrar-se organizado e disciplinado frente a uma sociedade racista. A Sociedade Recreativa Palmeiras também realizava festas das mais variadas em sua sede social situada na rua José Otávio, centro da cidade de Bagé. Assim como ocorria no Clube Os Zíngaros, o Palmeiras também realizava a escolha das rainhas, momento muito aguardado pelos seus associados. Era uma escolha rigorosa de quem iria, a partir de então, representar o clube em eventos sociais e em visitas a sociedades co-irmãs, inclusive em outras cidades. Como escrito anteriormente, a Sociedade Palmeiras extrapolava as atividades meramente recreativas, possuindo um departamento cultural e inclusive um jornal chamado Boletim do Departamento Cultural Casemiro de Abreu, no qual noticiava as atividades que eram realizadas na sociedade, bem como anunciava futuros movimentos a serem feitos, assim como noticias das mais variadas que incluíam os/ as aniversariantes que pertenciam ao quadro de associados, poemas dentre outras notícias. Também chama a atenção a criação de uma biblioteca, mostrando que os/as associados/as buscavam meios de expandir seus conhecimentos intelectuais, denotando toda uma organização. Nesse sentido, cabe aqui a definição de Clube Social Negro elaborada pela historiadora e intelectual negra Fernanda Oliveira da Silva: [...] os clubes negros são espaços associativos criados a partir do século XIX, sobretudo a partir da década de 1870, por e para pessoas negras – com base em uma ideia de raça – autoidentificadas como negras; pretas; morenas; mulatas; colored; da raça de cor/raza de color; 137 SUMÁRIO Práticas associativas negras em Bagé: imprensa, carnaval e clubes sociais etiópica; de cor; conrazanea; mantidos por associados e associadas, instalados em uma sede física, própria ou não, na qual desenvolviam/desenvolvem atividades sociais – de caráter autodenominado cultural; social; político; bailante/dançante; beneficente; recreativo e/ ou carnavalesco – cuja nomeação era/é autoatribuída como club/clube, centro, associação e/ou sociedade e cujo objetivo era/é manter um espaço de convívio social no qual eram/são realizadas festas (SILVA, 2017, p. 148). Para além de atividades meramente recreativas, os clubes negros foram responsáveis por forjar novos sentidos de liberdade e cidadania para segmentos da população negra de Bagé. Eram espaços de debates políticos e articulações com outras sociedades que existiam no Estado do Rio Grande do Sul e que inclusive, em alguns casos, extrapolavam as fronteiras nacionais ao manterem vínculos com sociedades negras existentes no Uruguai. Além de congregarem famílias negras e forjarem uma maneira própria de existir em meio a uma sociedade marcada pelas relações sociais racializadas, essas sociedades, no qual se enquadra também a Imprensa Negra e os cordões, ranchos e blocos carnavalescos, foram responsáveis por construir uma identidade negra positiva, e com isso também ajudaram na construção de outros territórios negros que se mantém em pé ainda nos dias atuais. O próprio Zíngaros ainda está na ativa, realizando diversas atividades sociais/recreativas/políticas. E tais sociedades foram a porta de entrada de diversos sujeitos negros que ao frequentarem seus espaços também construíram outros, como é o caso de entidades vinculadas ao carnaval e que ainda existem em Bagé na contemporaneidade e seguem afirmando uma identidade negra, como veremos a seguir. Por uma identidade negra bageense: territórios e sociabilidade negra no carnaval de rua de Bagé Nos tópicos anteriores, percebemos a importância que as práticas associativas negras exerceram para a população negra em Bagé nas primeiras décadas do século XX, servindo não somente enquanto espaços de recreação, como também de lutas e enfrentamentos numa sociedade fortemente marcada por relações racializadas. Tanto os clubes sociais, a Imprensa Negra e os cordões, ranchos e blocos carnavalescos foram de vital importância para que pudéssemos 138 SUMÁRIO Práticas associativas negras em Bagé: imprensa, carnaval e clubes sociais entender quais as dinâmicas são empreendidas em solo bageense na contemporaneidade. Ao realizarmos o exercício de apontar e problematizar como foram forjadas as inúmeras práticas associativas negras na cidade de Bagé, damo-nos conta de que as construções das práticas de sociabilidade negra que hoje são manifestadas nas inúmeras comunidades são frutos de um passado recente, onde os sujeitos negros criaram espaços para os seus. O campo do pósAbolição é uma chave analítica importante e que nos ajuda a perceber como, num contexto atual, encontram-se os grupos ligados as práticas carnavalescas e como ainda são forjados espaços de sociabilidade e construção de uma identidade negra ligada ao carnaval. Territórios, sociabilidade e identidade negra são palavraschaves que fazem parte do contexto carnavalesco na Rainha da Fronteira. Levando em consideração a grande extensão territorial que o município comporta, inúmeros bairros encontram-se afastados da região central. É no centro que encontramos grande parte do comércio local, além de mercados e uma centena de ambulantes. Ao nos afastarmos da região central, nos damos conta não só da imensidão da cidade, como também nos deparamos com inúmeros territórios negros (Silva, 2019). A antropóloga Ilka Boaventura Leite, ao versar acerca dos territórios negros em áreas urbanas, os conceitualiza enquanto espaços demarcados por limites e reconhecidos por todos que o frequentam, sendo parte fundamenta da construção de processos de identificação coletiva (LEITE, 1991, p.40). Para a autora, os territórios negros em áreas urbanas estão divididos em dois modelos de ocupação: residenciais e interacionais. Os territórios de ocupações residenciais caracterizam-se por espaços fixos, como por exemplo, centros de umbanda ou candomblé/batuque10, ou mesmo as sedes/barracões das agremiações carnavalescas. Já os territórios negros de ocupações interacionais caracterizam-se por pontos de encontros, como por exemplo, a região central da cidade de Bagé nos festejos carnavalescos ou mesmo a realização dos ensaios das agremiações em seus territórios. A contribuição do historiador Bittencourt Jr (2005) acerca de território negro também nos ajuda a pensar as configurações presentes em solo bageense. Para o autor, os territórios negros se constituem enquanto objeto histórico de exclusão social, onde são forjadas singularidades socioculturais de 10. Tendo como base uma pesquisa realizada pelo IBGE, Oro (2008) aponta que 1,26% da população gaúcha afirmava pertencer a Umbanda ou Candomblé/batuque, totalizando 121,180 pessoas. Tendo em vista que a mesma pesquisa apontou que o número de candomblecistas e umbandistas no Brasil era de 525,013, o Rio Grande do Sul concentrava 23% do total de membros das religiões afro-brasileiras. 139 SUMÁRIO Práticas associativas negras em Bagé: imprensa, carnaval e clubes sociais matriz afro-brasileira (BITTENCOURT, 2005, p.37). Tanto os modelos que são atribuídos à construção de espaços de identificação coletiva, quanto os espaços que são objetos de exclusão social, fazem parte do contexto das comunidades negras em Bagé e estão diretamente ligadas as características e práticas carnavalescas que emanam dos grupos negros destes territórios. Atualmente, o carnaval de rua de bageense é dividido em dois modelos: carnaval do “meio dia” e os desfiles noturnos competitivos. Os desfiles do meio dia caracterizam-se por agremiações que pertencem, em sua grande maioria, à clubes sociais das elites locais, como por exemplo, o já mencionado Clube Caixeiral, no qual faz parte o bloco Galo Caixeiro. Estes desfiles acontecem no sábado de carnaval e contam com a participação de milhares de foliões, que percorrem um trajeto de aproximadamente seis quarteirões da Avenida Sete de Setembro, principal via da região central da cidade. Ao som de marchinhas que são executadas por pequenas baterias e também por trios elétricos – que executam algumas das músicas que estão entre as mais tocadas nos veículos de comunicação e nas principais rádios da cidade – o carnaval do meio dia conta com a participação de sujeitos que se deslocam das inúmeras comunidades da cidade, bem como de indivíduos ligados aos setores de elite, que desfilam em pequenos blocos com seus abadás11. Acerca do carnaval noturno, este caracteriza-se pela competitividade, começando no sábado à noite e estendendo-se até segunda à noite. As agremiações estão divididas em três categorias: blocos burlescos, blocos carnavalescos e escolas de samba. Acerca dos blocos burlescos, o etnomusicólogo gaúcho Mário Maia (2008), ao se referir aos blocos burlescos da cidade de Pelotas, atenta para características próximas as agremiações burlescas bageenses. Segundo o autor, os blocos burlescos pelotenses desfilam satirizando tudo e todos, apresentam carros alegóricos montados com muita criatividade, além da antiga tradição dos homens desfilarem com trajes femininos (MAIA, 2008, p.20). A abordagem de Maia (2008) é bem próxima do carnaval burlesco de Bagé, tendo em vista a criatividade na montagem das alegorias, no qual são usados, por 11. Em certos carnavais, a fantasia foi trocada por vestimentas que procuram mais identificar a qual bloco o folião pertence do que seu caráter lúdico. Esse é o caso do carnaval de Salvador, em que essa identificação ocorre pelos abadás. Tais indumentárias, que já foram chamadas de mortalhas, têm origem numa fantasia, a de morto, e que, na qualidade de vestimenta, era uma forma de contradizer pelas roupas a grande alegria com que se desfilava. Paulatinamente, a mortalha foi adaptada, com a redução de seu tamanho, pois os foliões a usavam em geral dobrada durante o desfile. Paralelamente, ganhou cores como elementos de padronização dos blocos; estética que, de início, não era aceita. (XAVIER; MAIA, 2009, p. 218). 140 SUMÁRIO Práticas associativas negras em Bagé: imprensa, carnaval e clubes sociais exemplo, papelões, garrafas pets, isopor e tecido TNT12. Nesta categoria, são cinco os quesitos a serem julgados: samba-enredo, alegorias/adereços, evolução, harmonia e bateria. Destacam-se as alegorias de mão, estas feitas com isopor ou papelão e cola quente, que contém tanto os símbolos das agremiações, bem como traz parte da narrativa que o desfile se propõe a contar. Os blocos carnavalescos, popularmente chamados de blocos de limpo – em oposição aos blocos burlescos que são chamados de blocos de sujo – apresentam características que se aproximam das configurações das escolas de samba, contendo alegorias, alas e fantasias. Segundo Silva (2019): Obedecem a um enredo, que deve ser apresentado e evoluído através da composição de alas, estas com fantasias. As confecções dos carros alegóricos já exigem mais acabamento e se dispensam carros motorizados. No lugar do mestre sala e porta bandeira, existe a porta estandarte, figura responsável por apresentar o símbolo da agremiação. Os desfiles apresentam poucas alas, sendo a bateria composta por aproximadamente trinta indivíduos. Os quesitos a serem julgados são os mesmos dos blocos burlescos, apresentando uma pequena mudança na evolução, onde o humor não é avaliado. (SILVA, 2019, p.21). Tendo sua principal diferença nas fantasias, carros alegóricos e alas, os blocos carnavalescos não costumam levar um grande número de foliões em seus desfiles, tendo em vista verba escassa que é repassada pela Secretaria de Cultura e Turismo, o que impossibilita a produção em grande escala de fantasias. Por fim, são as escolas de samba que encerram os desfiles competitivos do carnaval de rua de Bagé. Diferente das agremiações cariocas, por exemplo, que tem seus desfiles televisionados para o Rio Grande do Sul no período carnavalesco, as escolas de samba de Bagé apresentam-se na contramão da espetacularização (Duarte, 2011). Os carros alegóricos e fantasias são confeccionados com poucos recursos, o que impede tanto a produção em grande escala, quanto o luxo e riqueza de detalhes. Os quesitos a serem julgados obedecem a um padrão que tem por referência as configurações, por exemplo, das escolas de samba do Rio de Janeiro e São Paulo. 12. TNT é um material popularmente usado no carnaval de rua de Bagé. Sua característica está em simular um tecido, servindo para forrar carros alegóricos e bonecos. Tem um custo baixo e isso facilita que as agremiações possam utilizar. (Silva, 2019, p.19). 141 SUMÁRIO Práticas associativas negras em Bagé: imprensa, carnaval e clubes sociais Imagem 2: Desfile da escola de samba Estrela D’Alva. Bagé, 2018. Fonte: (Acervo particular de Rafael Rosa da Silva) Tendo em vista que as agremiações carnavalescas emergem, majoritariamente, nos territórios negros de Bagé, a construção dos festejos de carnaval acabam por serem atribuídas aos sujeitos negros e negras inseridos nestas comunidades. São estes grupos que forjam os espaços de sociabilidade negra, tanto no período que antecede os desfiles, como por exemplo, a realização de atividades para arrecadar verbas para o custeio dos desfiles, como também nos períodos de ensaios. Os espaços de sociabilidade negra emergem do encontro de indivíduos de diversas comunidades, que em muitas ocasiões, deslocam-se de para assistir a ensaios de agremiações. Estes encontros são formadores dos territórios negros de ocupações interacionais, como bem aponta Leite (1991). Para além dos ensaios de agremiações, que se configuram enquanto espaços de sociabilidade para a população negra de Bagé, a região central, onde os festejos carnavalescos ocorrem, é de suma importância para a formação e configuração dos espaços de sociabilidade e identidade negra bageense. São nas vias do centro da cidade que as comunidades se encontram para realizarem não somente os desfiles – produzidos comunitariamente pelos sujeitos envolvidos com as agremiações – como também para manifestar uma identidade negra voltada para o carnaval. Os desfiles carnavalescos atribuem outros sentidos ao centro da cidade, que durante o restante do ano apresenta outra configuração. Este sentido, exercido pelos sujeitos negros das comunidades da cidade, 142 SUMÁRIO Práticas associativas negras em Bagé: imprensa, carnaval e clubes sociais atribuem a estes grupos um caráter identitário ligado ao carnaval. A manifestação desta identidade negra carnavalesca bageense (Silva, 2019) tem suas raízes nas primeiras décadas do século XX, onde as práticas associativas negras tornaram-se referências para que na contemporaneidade, as inúmeras agremiações ainda existissem. O contexto carnavalesco de Bagé apresenta-se enquanto um espaço não somente formador de uma identidade, como também atribui um forte caráter de sociabilidade negra para quem dele participa, sendo os territórios negros presentes no município o local onde estas práticas ainda são forjadas e manifestadas. Considerações finais Como podemos observar, as práticas associativas que foram forjadas pelos sujeitos negros em Bagé no pós-Abolição, não somente apresentaram um caráter de luta e enfrentamento perante uma sociedade fortemente marcada por relações racializadas, como também serviram para mostrar como os grupos negros organizavamse nos espaços recreativos. A busca por visibilidade desses sujeitos nas primeiras décadas do século XX ainda reverberam na contemporaneidade. O presente capitulo, ao retornar para o século XIX, apontou a invisibilidade social e cultural dos sujeitos negros em solo bageense através da construção de uma narrativa branca e de descendência europeia que vislumbrava a consolidação da cidade de Bagé. Porém, como fora demostrado, a presença dos sujeitos negros em solo bageense nesse contexto era de extrema significância. Mesmo assim houve um “apagamento” das trajetórias individuais e coletivas destes sujeitos na formação histórica do município. Contudo, ao entrarmos nas primeiras décadas do século XX, foi possível perceber a importância das práticas associativas que fizeram parte dos grupos negros na cidade de Bagé, tendo na Imprensa Negra, nos Clubes Sociais e nos festejos carnavalescos importantes ferramentas de enfrentamentos, além da demonstração do poder organizacional na criação de espaços recreativos, educacionais e, principalmente, racializados. Os carnavais das décadas de 1930 e 1940, manifestados, por exemplo, pelo bloco carnavalesco Garotos da Batucada, ainda estão presentes no imaginário local dos foliões mais antigos da cidade. Estas agremiações, importantes no contexto do pós-Abolição, também se mostram de suma importância ao debatermos o carnaval contemporâneo de Bagé, pois como já fora dito, as práticas associativas negras em Bagé são referenciadas nas agremiações que ainda se mantem ativas no carnaval de rua bageense. 143 SUMÁRIO Práticas associativas negras em Bagé: imprensa, carnaval e clubes sociais Não somente dentro dos territórios negros que existem em Bagé, como também nas vias da região central no período momesco, são construídos espaços de sociabilidade negra, que ajudam na afirmação e manutenção de uma identidade negra local, esta forjada no início do século XX através das práticas associativas negras e que ainda se mantém presentes na cidade. Referências AL-ALAM, Caiuá Cardoso. O Jaguarense no jornal A Alvorada (1932-1934): imprensa negra e política na fronteira Brasil-Uruguai. MÉTIS: história & cultura – v. 19, n. 37, jan./jun. 2020. p. 54-79. BITTENCOURT Jr. Losvaldyr Carvalho. Territórios Negros. In: SANTOS, Irene (Org). Negro em preto e branco: história fotográfica da população negra em Porto Alegre. Porto Alegre: Do autor, 2005, p.36-57. DOMINGUES, Petrônio. A nova abolição. São Paulo: Selo Negro, 2008. DUARTE, Ulisses Corrêa. O carnaval espetáculo no Sul do Brasil: uma etnografia da cultura carnavalesca nas construções das identidades e nas transformações da festa em Porto Alegre e Uruguaiana. (Dissertação de Mestrado) PPG Antropologia Social: UFRGS, Porto Alegre, 2011. FAGUNDES, Elisabeth Macedo de. Bagé: no caminho da história do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1995. GERMANO, Iris. Rio Grande do Sul, Brasil e Etiópia: os negros e o carnaval de Porto Alegre nas décadas de 1930 e 1940. Dissertação. Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), 1999. LEITE, Ilka Boaventura. Território negro em área rural e urbana – algumas questões. Textos e debates. NUER/UFSC, Florianópolis, ano 1, N. 2, 1991, p.39-46. LEMIESZEK, Cláudio. Bagé: novos relatos de sua história. Porto Alegre: Martins Livreiro, 2000. LEMIESZEK; GARCIA, Elida Hernandes. Guia incompleto das primazias de Bagé. Bagé: Ediurcamp, 2013. LONER, Beatriz Ana. Construção de classe: operários de Pelotas e Rio Grande (1888-1830). Pelotas, Universidade Federal de Pelotas. Ed. Universitária: Unitrabalho. 2001. MAIA, Mario de Souza. O Sopapo e o Cabobu: etnografia de uma tradição percussiva no extremo sul do Brasil. (Tese de Doutorado) PPG Música: UFRGS, Porto Alegre, 2008. MATHEUS, Marcelo Santos. A produção da diferença: escravidão e desigualdade social ao sul do império brasileiro (Bagé, c. 1820 – 1870). Tese de Doutorado. Programa de Pós-graduação em História Social. Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). 2016. OLIVEIRA, Ângela Pereira. A racialização nas entrelinhas da imprensa negra: o caso O Exemplo e A Alvorada – 1920-1935. Dissertação. Mestrado em História, Pelotas: Universidade Federal de Pelotas, 2017. 144 SUMÁRIO OLIVEIRA, Vinicius Pereira de. Escravos em Bagé: fugas, quilombos e insurreições. Mostra de pesquisa do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Anais: produzindo a história a partir de fontes primárias. Porto Alegre: Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas – CORAG, 2010. ORO, Ari Pedro. As religiões Afro-Brasileiras do Rio Grande do Sul. Debates do Ner, Porto Alegre, Ano 9, N. 13 JAN/JUN. 2008, p. 9-23. PERUSSATTO, Melina Kleinert. Arautos da liberdade: educação, trabalho e cidadania no pós-abolição a partir do jornal O Exemplo de Porto Alegre (c.1892-c.1911). 2018. Tese (Doutorado em História) UFRGS, Porto Alegre: 2018. PINTO, Ana Flávia Magalhães. De pele escura e tinta preta: a imprensa negra no século XIX (1833-1899). Dissertação. Programa de Pós-graduação em História. Universidade de Brasília (UnB). Brasília, 2006. ROSA, Marcus Vinícius de Freitas. Quando Vargas caiu no samba: um estudo sobre os significados do carnaval e as relações estabelecidas entre os poderes públicos, a imprensa e os grupos de foliões em Porto Alegre durante as décadas de 1930 e 1940. Dissertação. Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), 2008. SANTOS, José Antônio dos. Prisioneiros da história: trajetórias intelectuais na imprensa negra meridional. Tese. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC). Porto Alegre, 2011. SILVA, Fernanda Oliveira da. As lutas políticas nos clubes negros: culturas negras, racialização e cidadania na fronteira Brasil – Uruguai no pós-abolição (1870 – 1960). Tese (Doutorado em História), Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2017. SILVA, Fernanda Oliveira da. Clubes negros ao sul do Sul: a mobilização recreativa nas cidades de fronteira Brasil-Uruguai no pós-Abolição (décadas 1920-1950). In: MENDONÇA, Joseli Maria Nunes; TEIXEIRA, Luana; MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti (organizadoras). Pós-Abolição no Sul do Brasil: associativismo e trajetórias negras. Salvador: Sagga, 2020. p. 38-56. SILVA, Fernanda Oliveira da. Os negros, a constituição de espaços para os seus e o entrelaçamento destes espaços: associações e identidades negras em Pelotas (1820 – 1943). Dissertação. Programa de Pós-graduação em História. PUC, Porto Alegre, 2011. SILVA, Rafael Rosa. “Saí da vila e fui sambar lá no asfalto”: território, sociabilidade e identidade negra no carnaval de rua de Bagé RS. (Dissertação de Mestrado) PPG em Cultura e Territorialidades: UFF, Niterói, 2019. SILVA, Tiago Rosa da. Vivências e experiências associativas negras em Bagé-RS no Pós-abolição: imprensa, carnaval e clubes sociais negros na fronteira sul do brasil - 1913-1980. Dissertação. (Mestrado em História). Pelotas: Universidade Federal de Pelotas, 2018. TABORDA, Tarcísio Antônio da Costa. Bagé de ontem e de hoje: coletânea de artigos publicados na imprensa (1939 – 1994). Bagé: Ediurcamp, 2015. XAVIER, Clarissa Valadares; MAIA, Carlos Eduardo Santos. A diversidade dos carnavais no Brasil: sobre fantasias e abadás. ArtCultura: V. 11, N. 19, JUL/DEZ, 2009, p.211-224. Disponível em: (http://www.seer.ufu.br/index.php/artcultura) Acesso em: 27/01/2021. 145 SUMÁRIO O INSTITUTO MUNICIPAL DE BELAS ARTES: ESTADO DO CONHECIMENTO E PERSPECTIVAS PARA FUTURAS ABORDAGENS Rafael Rodrigues da Silva1 Luís Borges dos Santos Júnior2 Alessandro Carvalho Bica3 146 SUMÁRIO O Instituto Municipal de Belas Artes: estado do conhecimento e perspectivas para futuras abordagens 1 2 3 Introdução No ano em que escrevemos o presente capítulo, o Instituto Municipal de Belas Artes – Profª. Rita Jobim Vasconcelos (IMBA, daqui em diante) completa cem anos de existência e segue uma instituição de alto valor simbólico para a sociedade bajeense. Ao longo de sua história não só centenas de pessoas de Bagé e da região receberam formação em Música, Dança e Artes Visuais, através dos diversos cursos que o IMBA ofereceu ao longo desse século, como também serviu de entreposto cultural promovendo ou facilitando a realização de concertos e outras apresentações artísticas que dificilmente poderiam ter sido realizadas sem o esforço da instituição. Dada sua relevância social, sua história foi relatada por diferentes historiadores (CORTE REAL, 1984; LEMIESZEK, 1997; FAGUNDES, 2004) cujo trabalho proporcionou a base para as pesquisas mais recentes sobre a instituição. Nestes trabalhos, o surgimento do IMBA é comumente apresentado como um reflexo da valorização que a população de Bagé deu e dá à cultura e, sobretudo, à música. Não é nosso intuito negar o apreço da sociedade à manifestações culturais, tal como as promovidas pelo IMBA, no entanto, trabalhos mais recentes vêm ressaltando outros fatores que contribuíram para a fundação e manutenção do IMBA na cidade, resultando em uma complexa trama política que envolve a política institucional, questões de classe, raça e gênero. 1. Doutor em Música e professor da Unipampa. 2. Mestre, Mestrado Acadêmico em Ensino/Unipampa. 3. Doutor em Educação e professor da Unipampa. 147 SUMÁRIO O Instituto Municipal de Belas Artes: estado do conhecimento e perspectivas para futuras abordagens O presente artigo tem por objetivo retomar de forma sucinta a história da instituição ressaltando aspectos trazidos à tona pelas pesquisas realizadas nas duas últimas décadas e apontar algumas lacunas de conhecimento a serem exploradas em trabalhos futuros. Esses avanços realizados nas últimas décadas são fruto de pesquisas acadêmicas em nível de graduação, mestrado e doutorado e, também, do projeto de extensão Memórias do Ensino de Música em Bagé e região que, coordenado pelo Prof. Dr. Rafael Rodrigues da Silva, realizou, até o momento, duas entrevistas coletivas com professores renomados da cidade cuja história remonta de alguma forma ao IMBA: Profa. Neiva Petri Martinez (NEIVA, 2017) e Prof. Ivonléo Monteiro (IVONLÉO, 2017). Achamos pertinente pontuar que os esforços em compreender a história do IMBA ganharam especial força a partir do surgimento do curso de Música da Universidade Federal do Pampa (Unipampa), surgimento esse também fruto do apoio institucional oferecido pelo próprio instituto. Em atividade desde 2012, o curso vem concentrando em torno de si diversos esforços de pesquisa sobre o IMBA, realizados por seus professores/as e alunos/as, no entanto, tais esforços em compreender o passado da instituição não se limitam à área de Música tendo tido contribuições muito significativas oriundas das áreas de Educação, Ensino, Educação Física e Memória Social. Ensino de Música em Bagé no período anterior ao IMBA Fundada no século XIX, a cidade de Bagé tem registros de formação de conjuntos musicais e desde suas primeiras décadas, abarcando tanto aqueles voltados a fins litúrgicos, quanto militares, até os ligados ao entretenimento nos mais variados eventos sociais que a cidade abarcava (LEMIESZEK, 1997; FAGUNDES, 2004). De acordo com Lemieszek (2000) a vida musical era intensa, com professores de música, sociedades musicais, sociedade filarmônica, banda militar, clubes com grupos musicais e teatros. O primeiro conservatório oficial4 da cidade, o Conservatório Municipal de Música (CMMB), fundado em 1904, é também o quarto 4. Neste trabalho, entende-se por conservatórios oficiais os estabelecimentos de ensino de música cuja organização, ação e diplomas emitidos são reconhecidos pelo poder público. Comumente, estes estabelecimentos recebiam aportes financeiros e infraestrutura para realizar suas atividades oriundas de iniciativas municipais, estaduais e/ou federais. Seguramente houveram muitos outros estabelecimentos privados de ensino de Música ao longo do século 148 SUMÁRIO O Instituto Municipal de Belas Artes: estado do conhecimento e perspectivas para futuras abordagens conservatório do país, tendo sido precedido apenas pelo Conservatório Imperial de Música do Rio de Janeiro (1841), o Conservatório de Música do Pará (1895) e o Conservatório de Música da Bahia (1895). Dirigido pelo espanhol Enrique Calderón de La Barca, o conservatório esteve em funcionamento por três anos usando como sede a Intendência Municipal da cidade (SILVA, 2019; LEMIESZEK, 1997). Figura 1 - Enrique Calderón de la Barca (c. 1909). Fonte: LOS MAESTROS, 1909. Como era comum às instituições conservatoriais da época o CMMB limitou sua atuação ao ensino e difusão da música de concerto europeia, particularmente a música das óperas e operetas italianas muito em voga nos teatros do período. Com um corpo docente formado por quatro professores homens, poucas foram as mulheres inscritas, mesmo sendo a aprendizagem de piano já compreendida à época como uma prenda social importante para a educação feminina. Os cursos oferecidos contemplavam canto, piano, violino, bandolim, flauta, oboé, além das aulas de teoria e solfejo, comum a todos os alunos. As apresentações de alunos e professores foram realizadas no Teatro 28 de Setembro (SILVA, 2019). XIX e XX cuja denominação usava o termo conservatório. 149 SUMÁRIO O Instituto Municipal de Belas Artes: estado do conhecimento e perspectivas para futuras abordagens O contexto de criação do IMBA Nos anos que se seguiram à fundação do CMMB, se observa um constante movimento de fundação de conservatórios oficiais pelo país. Somente durante a Primeira República, entre 1889 e 1930, o Brasil passou de um país com apenas um conservatório oficial para um país com quinze conservatórios oficiais ativos, sendo que dez deles instalados no estado do Rio Grande do Sul. As razões para a alta concentração de conservatórios no estado do Rio Grande do Sul e a rapidez com a qual se multiplicaram passaram a ser melhor compreendidas em suas múltiplas dimensões a partir de pesquisas mais recentes. O trabalho de Bica (2013) explorou o modo pelo qual a fundação do IMBA e de outras instituições educativas estavam alinhadas tanto às políticas estaduais levadas adiante pelo Partido Republicano Rio-grandense (PRR), quanto à filosofia positivista e castilhista na qual se baseava o ideário do partido. Os trabalhos oriundos do Grupo de Pesquisas em Musicologia da UFPel (NOGUEIRA, 2007; GOLDBERG; NOGUEIRA, 2010b; NOGUEIRA; GOLDBERG, 2011), bem como o trabalho de Simões (2011) são particularmente férteis no sentido de compreender o surgimento do Centro de Cultura Artística do Rio Grande do Sul e sua atuação diretamente responsável pela fundação do IMBA. O Centro de Cultura Artística do Rio Grande do Sul foi uma entidade fundada em 1920 cujo objetivo era o de implementar no Estado um projeto de “interiorização da cultura artística”. Este projeto consistia em uma ação combinada de formação de plateia para a música de concerto europeia e criação de conservatórios pelo interior do estado. Estes conservatórios, além de difundir o repertório da música de concerto europeia através do ensino, serviriam como novos espaços para a realização de concertos e, portanto, campo de trabalho para os músicos de Porto Alegre, cidade onde a constante chegada de músicos imigrantes aumentava muito a oferta de músicos profissionais na cidade sem, necessariamente, expandir os espaços de trabalho (SIMÕES, 2011). Foi por iniciativa particular de um dos professores de piano do Conservatório de Música do Instituto de Belas Artes, Guilherme Halfeld Fontainha (1887-1970), juntamente com o bandolinista e professor José Corsi (1880-1938) diretor do Instituto Musical Porto Alegre e vicepresidente do Centro Musical Porto-Alegrense, que foi colocado em prática um projeto de criação de conservatórios no interior do estado. Esse processo de levar o ensino de música ao interior do estado teve 150 SUMÁRIO O Instituto Municipal de Belas Artes: estado do conhecimento e perspectivas para futuras abordagens como meio a criação do Centro de Cultura Artística do Rio Grande do Sul em 1920, com Fontainha ocupando o cargo de diretor artístico e Corsi como diretor técnico. No projeto estava incluída a ideia de manter um mesmo padrão de ensino entre esses conservatórios, bem como a circulação de artistas nacionais e internacionais. Com o apoio de Borges de Medeiros, presidente do Estado, rapidamente foi colocado em prática no ano de 1921. Com uma rapidez notável para um período onde as comunicações se davam por telegrama e o deslocamento entre cidades via trens a vapor, Fontainha e Corsi estiveram diretamente envolvidos na criação de quinze conservatórios em diferentes cidades: Itaqui (1921), Bagé (1921), Alegrete (1921), Cachoeira (1921), Montenegro (1921), Livramento (1922), Jaguarão (1922), Rio Grande (1922), São Leopoldo (1922)(SILVA, 2019; SIMÕES, 2011; GOLDBERG; NOGUEIRA, 2009). A inauguração oficial, prevista inicialmente para março de 1921, aconteceu no dia 7 de maio de 1921, já com a lista de matriculados publicada. O evento contou com a presença da orquestra do Centro Musical Porto-Alegrense (sob a regência de Luiz Piedrahita) em turnê inaugurando também outros conservatórios do mesmo projeto (SILVA, 2019; GOLDBERG; NOGUEIRA, 2009). Diferente do CMMB cujo corpo discente foi composto majoritariamente pelo sexo masculino, o IMBA seguiu por décadas, desde a sua fundação, atendendo a um público, na prática, exclusivamente feminino, o que já havia sido apontado por Lemieszek (1997). Curiosamente, a predominância feminina já era esperada antes mesmo de terem recebidos as primeiras inscrições, como se nota na matéria do jornal bajeense O Dever em sua divulgação do novo conservatório. Como aconteceu em Porto Alegre e, ultimamente em Pelotas, Bagé não tarda á appreciar as inestimaveis vantagens moderna, pois o Conservatorio principiará a funccionar no decorrer da 1ª quinzena de Março... As alumnas terão duas aulas de instrumento por semana e 2 de theoria, solfejo e história da musica. (O DEVER, 07/01/1921, p. 1) Como o texto da matéria ilustra, a predominância feminina já era esperada, o que demonstra um notável interesse pela educação feminina por parte do poder público e pela alta sociedade da época, já que o processo de implementação do IMBA requereu o envolvimento de diferentes instituições e sujeitos de prestígio da cidade. Entre eles, vale notar a disposição do Visconde Ribeiro de Magalhães em 151 SUMÁRIO O Instituto Municipal de Belas Artes: estado do conhecimento e perspectivas para futuras abordagens doar uma sede para o futuro conservatório, a ser construída em um terreno de sua propriedade situado na Av. 7 de Setembro. Não há registros de que a construção foi iniciada e tampouco concluída. Com isso, a sede “provisória” do conservatório foi tornando a ideia de uma sede definitiva cada vez mais distante. A primeira sede do IMBA, na qual se instalou provisoriamente já no seu primeiro ano foi a sede urbana do Clube Caixeiral, tradicional clube da elite bajeense, localizado à Rua (hoje avenida) Sete de Setembro, o espaço mais urbanizado e mais valorizado da cidade à época. Foi no Clube Caixeiral que foram realizadas as aulas, os recitais, os concursos de piano e até concertos de artistas agenciados pelo Centro de Cultura Artística para os quais se cobrou ingresso. Segundo o relato oral de Wanda Urdaniz Deiro dado a Silva (2019) e Fagundes (2012), o IMBA ainda ocupou dois outros espaços da cidade (todos na mesma rua) até se instalar, em 1934, no Solar da Sociedade Espanhola, onde se encontra até hoje. A cronologia dessas mudanças de sede não é clara e merece pesquisas específicas. Os primeiros anos do IMBA Os anos iniciais de atuação do IMBA em Bagé haviam sido abordados pela historiografia da cidade, principalmente no que tange aos políticos e professores diretamente envolvidos em sua fundação e na sua direção. O trabalho de Silva (2019) aborda em profundidade as questões sócio-políticas em torno de sua fundação, de modo que este será a base para as informações apresentadas nesta seção do capítulo. Neste trabalho, identificamos o IMBA por seu nome atual, no entanto, seu nome mudou significativamente ao longo de sua história. O primeiro nome dado à instituição que viria a ser o IMBA foi Escola Musical de Bagé. Esse nome seguiu sendo usado oficialmente (apesar da comum troca de nomes por parte dos jornalistas da imprensa local) até a mudança para o nome dado com a municipalização em 1927: Conservatório Municipal de Música de Bagé (exatamente o mesmo nome do conservatório de 1904). Se o nome idêntico dado a instituição foi fruto de ignorância sobre a história (à época, recente) do ensino de música da cidade ou como uma forma deliberada de apagar registros de um passado incômodo, não é possível afirmar a partir das pesquisas já realizadas. Mais tarde, em 1937, passou a se chamar Instituto Municipal de Belas Artes e, em 1964 recebe o nome pelo qual é conhecido na atualidade: Instituto Municipal de 152 SUMÁRIO O Instituto Municipal de Belas Artes: estado do conhecimento e perspectivas para futuras abordagens Belas Artes “Professora Rita Jobim Vasconcellos”, uma homenagem à primeira diretora local do IMBA no exato ano de sua morte. Rita Jobim Vasconcelos dirigiu o IMBA por 37 anos (1926 - 1964), mas esteve ligada de alguma forma à instituição desde a fundação em 1921. Nasceu em São Gabriel no dia 8/10/1905 (FAGUNDES, 2012) e era filha de Ildefonso Vasconcellos, guarda-livros atuante em Bagé e ex-presidente do Clube Caixeiral (a sede provisória do IMBA), posto que o fez participar da mesa da cerimônia de inauguração oficial do IMBA em1921. O nome de Rita estava na primeira lista de matriculadas e já era uma pianista com considerável experiência, haja vista que participou do primeiro concurso de piano da instituição em 1921, concorrendo com Aracy Mariante, Genny Pereira e Renée Médici (irmã do ex-presidente do Brasil Emílio Garrastazu Médici). Figura 2 - Rita Vasconcellos em material de divulgação do IMBA Fonte: Corte Real (1984). A gestão de Rita é antecedida, no entanto por duas diretoras de fora da cidade cujo trabalho deu condições para que o IMBA iniciasse já em 1921. Apesar de haverem pianistas experientes em Bagé (como Rita) mesmo antes da fundação do IMBA, as diretrizes do Centro de Cultura Artística, divulgadas pela imprensa local, indicavam que cada conservatório criado só poderia ser dirigido por professores diplomados pelo Conservatório de Música de Porto Alegre (instituição da qual Guilherme Fontainha era professor). Dessa forma, não havia ninguém na cidade apto assumir a direção. As condições para o início dos trabalhos no IMBA se tornaram reais com a chegada de Vicentina Felizardo Ferreira que, mudou-se 153 SUMÁRIO O Instituto Municipal de Belas Artes: estado do conhecimento e perspectivas para futuras abordagens de Porto Alegre para Bagé junto com as duas filhas, Celia e Gladys Ferreira (que também lecionaram no IMBA) especificamente para assumir a direção do novo conservatório. Figura 3 - Anúncio da Escola Musical de Bagé Fonte: Correio do Sul (8/04/1921, p.1) Fagundes (2012) afirma que Celia veio a substituir sua mãe na direção, em um segundo momento. A gestão de Vicentina e Célia Ferreira só será substituída em 1923 com a posse de Jandyra Nunes Pereira. Filha do coronel Claudio Nunes Pereira, Jandyra, também solteira, se mudou com a família para Bagé onde permaneceu pelos três anos em que dirigiu o IMBA. Durante sua direção, mais precisamente nos anos de 1925 e 1926, Rita Jobim Vasconcelos se mudou para Porto Alegre para poder estudar no Conservatório que lhe daria a habilitação para dirigir o IMBA. Tudo indica que seu posto de diretora já estava garantida assim que se diplomou. A prontidão com que a família Ferreira e Jandyra deixaram a cidade chama a atenção e parecem indicar que o tempo em Bagé tinha como principal razão o trabalho no IMBA. As primeiras diretoras tinham condições de permanecer como professoras da instituição, mas preferiram se ausentar da cidade, sempre em direção a Porto Alegre. Esta prontidão para se ausentar da cidade parece ser simbólica de como as professoras abriram mão da convivência com entes queridos e das particularidades da vida em Porto Alegre. 154 SUMÁRIO O Instituto Municipal de Belas Artes: estado do conhecimento e perspectivas para futuras abordagens Conhecer as condições de trabalho oferecidas a essas mulheres (informação à qual não se tem acesso através da documentação pesquisada) certamente contribuiria para compreender o campo de possibilidades que estavam à frente dessas que se dispuseram a uma mudança tão drástica em sua vida e de sua família por alguns ano sem função do projeto de “interiorização da cultura artística” no estado do Rio Grande do Sul. Ao que parece, essa é uma dimensão importante da compreensão de como uma instituição como o IMBA se consolida em uma sociedade tal como a bajeense. Seguramente, Guilherme Fontainha e José Corsi são figuras centrais nesse processo com suas capacidades de articular alianças políticas em níveis regionais e locais e administrar os diferentes interesses e oposições em relação aos conservatórios criados em cada cidade. No entanto, a empreitada só se fez possível através de uma grande dose de esforço humano empregado por diversos sujeitos para manter o projeto vivo mesmo após passados os primeiros momentos de euforia da população local quando os conservatórios deixam de ser novidade na cidade. Quando a bajeense Rita Vasconcellos assume a direção do IMBA, em 1926, o ciclo de sacrifícios pessoais de professoras de música para assumir, em caráter provisório, a direção da instituição se encerra e dá-se início a um novo e longo ciclo que durará 37 anos. Este ciclo já se inicia com um marco fundamental de sua gestão que é a municipalização do IMBA. A municipalização do IMBA Carlos Mangabeira assumiu a intendência de Bagé em 1926, mesmo ano em que Rita Vasconcelos, a primeira diretora bajeense, assume a direção do IMBA. Há fortes indícios de que essa sincronia entre Carlos e Rita é importante para se compreender o processo de municipalização, mas ainda são necessárias novas pesquisas, explorar essa hipótese a fim de compreender melhor as condições nas quais a municipalização do IMBA acontece. Esse papel de Carlos Mangabeira na municipalização do IMBA passa a ser melhor compreendido na historiografia a partir do trabalho de Bica (2013) que tem por objetivo compreender sua política educacional na cidade. Carlos Cavalcanti Mangabeira nasceu em 1876 em Salvador (BA). Era médico farmacêutico e tenente do exército. Em 1900 foi transferido para o Rio Grande do Sul e serviu em várias cidades da região da fronteira. Em 1908, fixou residência em Bagé, onde participou 155 SUMÁRIO O Instituto Municipal de Belas Artes: estado do conhecimento e perspectivas para futuras abordagens ativamente do Partido Republicano bajeense e acabou se tornando uma espécie de “homem de confiança” de Tupy Silveira (intendente de Bagé entre 1914 e 1925), vindo a sucedê-lo na intendência entre 1926 e 1929. Antes disso, foi eleito deputado estadual em 1913 e viceintendente de Tupy Silveira desde 1917 (BICA, 2013). Sua gestão como intendente, conforme analisada por Bica (2013), foi marcada por uma política de “expansão educacional” que envolveu a organização da instrução primária, a municipalização do Gymnasio Nossa Senhora da Auxiliadora (colégio particular de educação secundária dirigido por padres salesianos) e do IMBA, em 1926, além da criação, em 1927, da Praça dos Esportes, voltada a promover a educação física, principalmente dos jovens, em consonância com os ideais higienistas característicos dos discursos educacionais da época Da combinação de um intendente fortemente engajado em organizar o sistema educacional bajeense e expandir as oportunidades de estudo da população e uma diretora que, residente em Bagé, tinha condições de planejar, a longo prazo, os rumos da instituição, emergiu um projeto de municipalização de uma das instituições de ensino de Música de Bagé. De acordo com Bica (2013), nos princípios positivistas adotados pelo Partido Republicano Rio-grandense, a educação pública municipal já havia ofertado o ensino primário e secundário e se tornava complementar incluir a instrução artística, além de oferecer novos cursos no Conservatório se fosse necessário. Assim, Mangabeira buscou realizar a municipalização do IMBA, mas com a intenção de torná-lo uma sucursal do Instituto de Belas Artes do Rio Grande do Sul. Carlos Mangabeira enviou carta ao Instituto solicitando que se tornassem oficiais os exames e emitisse os diplomas ali concedidos, o que não foi aceito. Ficou definido, no entanto, que continuassem vindo anualmente dois professores do Conservatório do Instituto de Belas Artes do Rio Grande do Sul, com o objetivo de realizar os exames finais, evitando assim, o estágio de dois anos dos alunos (as) em Porto Alegre para obter o diploma. Em 1928 houve nova tentativa de equiparação de Conservatório de Bagé com o de Porto Alegre, e ao que parece, também não tendo sido atentida. (RELATÓRIO MUNICIPAL 1927-1928; SIMON, 2003) Para Bica (2013) o processo de municipalização começou em 1926 e só foi concluído no ano seguinte com o Acto nº 336, assinado por Carlos Mangabeira, como parte de um projeto educacional da administração municipal. Através deste ato, foram adquiridos todos os bens e materiais da instituição. 156 SUMÁRIO O Instituto Municipal de Belas Artes: estado do conhecimento e perspectivas para futuras abordagens A cobertura do jornal local ligado ao PRR, ao qual Mangabeira também era filiado, afirma o seguinte: A intendencia hontem, municipalisou o Conservatorio de musica desta cidade. É intuito do nosso illustre amigo dr. Carlos Mangabeira, gestor dos negocios municipaes, reorganizar o Conservatorio nas mesmas bases de Porto Alegre. Em conferencia que S. S, teve, hontem, com o maestro Corsi, ficou resolvido que virá no fim de todos os annos lectivos, uma commissão de professores para examinar os alumnos. É pensamento, tambem do dr. intendente proporcionar audições de professores de musica... que vierem ao Estado para os alumnos do referido estabelecimento. O objectivo principal do dr. intendente, em municipalisar o Conservatorio de musica, além de desenvolver o gosto artistico de nossos jovens patricios, é facilitar áquelles de comprovado gosto pela bella arte e que não tenham recursos, dar-lhes ensino gratuito (O DEVER, 14/12/1926, p. 2). Segundo a matéria, Mangabeira agiu no sentido de manter os objetivos estabelecidos pela instituição desde o início: organizar o ensino de música na cidade com base no modelo do Conservatório de Porto Alegre e promover performances públicas de músicos de fora da cidade. O que representa, de fato, uma novidade em relação à concepção geral que o IMBA vinha tendo é a intenção de oferecer ensino gratuito àqueles que, demonstrando “talento” para a música, não possuíssem recursos para custear as taxas do conservatório. Eis aí um elemento novo que contrasta com a narrativa que vinha sendo mobilizada pela instituição. Durante toda a cobertura do jornal O Dever sobre o IMBA até sua municipalização, os elementos ressaltados pelos jornalistas são a distinção social das alunas e do público que frequentava as apresentações e a elegância nas vestimentas e decorações do espaço. Quando O Dever noticia a pretensão de Carlos Mangabeira de ampliar o acesso ao IMBA, incorporando uma população mais pobre, acrescenta-se às narrativas sobre o IMBA um reconhecimento da desigualdade de acesso a uma instituição. Este é o primeiro registro de política social implantada pelo IMBA desde sua fundação, ainda que a instituição tenha sido reconhecida por grande parte da sociedade bajeense como elitista por várias décadas a seguir, como ilustra os relatos orais de Neiva (2017) e Ivonléo (2017). Foi a partir da municipalização, sob a direção de Rita Vasconcellos, que houve um significativo aumento no alcance que o IMBA teve na sociedade bajeense. Com os dados disponíveis 157 SUMÁRIO O Instituto Municipal de Belas Artes: estado do conhecimento e perspectivas para futuras abordagens nos Relatórios Municipais de 1927 a 19335, foi possível observar o número de alunos matriculados a partir da municipalização, como mostram os dados abaixo: Tabela 01 – Matrículas (1927 – 1933) ANO MATRÍCULAS PAGAS MATRÍCULAS GRATUITAS TOTAL 1927 45 0 45 1928 89 0 89 1929 99 20 119 1930 117 15 132 1931 127 15 142 1932 90 20 110 1933 108 20 128 Fonte: elaborado pelos autores (2021) Acervo: Museu Dom Diogo de Souza O número de matrículas realizadas em 1927 praticamente dobrou em 1928, evidenciando a importância que o Conservatório assumia para a educação musical em Bagé. O número de discentes seguiu aumentando até 1931, quando alcançou o número de 142 matrículas. Em relação às matrículas gratuitas, estas foram colocadas em oferta a partir do ano de 1929, iniciando com 20 alunos e sem que ainda existisse regulamentação para essa prática. A oferta de matrículas gratuitas só foi regulamentada em 1930, através do Acto nº 7, de 20 de março, que além do candidato(a) atender uma das três condições indicadas, precisa “[...] que fique provada a condição de pobresa dos candidatos.” (RELATÓRIO MUNICIPAL, 1931, p. 13) Outro efeito importante da municipalização foi a relativa independência conquistada em relação ao Centro de Cultura Artística e ao Conservatório de Música de Porto Alegre. Abaixo, o ato, publicado pelo intendente no jornal O Dever. Acto nº 336 Municipalisa a Escola de Musica O intendente municipal de Bagé, no uso de attribuições legaes, 5. Essa temporalidade relacionada aos dados das matrículas (1927-1933) deve-se ao fato de não haver exemplar de relatórios posteriores ao ano de 1933, impedindo de completarmos as informações desejadas. 158 SUMÁRIO O Instituto Municipal de Belas Artes: estado do conhecimento e perspectivas para futuras abordagens Considerando que intendencia já adquirio, por compra, todos os moveis e utencilios da Escola de Musica, fundada nesta cidade pelos professores Fontainha e José Corsi, e para a qual os cofres do municipio concorriam com grande parte das despezas de seu custeio; Considerando que é indispensavel dar maior desenvolvimento ao ensino dos diversos cursos ministrados na referida Escola que, não obstrante sua deficiencia, tem concorrido para o aproveitamento artistico de nossas conterraneas; Considerando, finalmente, que já tendo esta administração providenciado sobre o ensino primario e secundario, deve, tambem, cogitar da educação artistica de seus municipes Decreta: Art. 1º - Fica nesta data municipalisada a Escola de Musica, que passará a denominar-se - Conservatorio Municipal de Musica. Art. 2º- O Conservatorio observará, até ulterior deliberação o regulamento da Escola de Musica. Art. 3º - Serão creados novos cursos e aulas, á proporção que forem julgados necessarios. Art. 4º - São mantidas em seus cargos, em quanto convier ao municipio, a directora e professores da Escola, as quaes continuarão a perceber os mesmos vencimentos. Art 5º- Revogam-se as disposições em contrario (O DEVER, 06/04/1927, p. 1). Até este ato, o IMBA obedecia ao regulamento do Conservatório de Música de Porto Alegre. O regulamento próprio da instituição só veio ser implementado no ano de 1929, mas o ato acima transcrito já apontava para a independência do IMBA em relação a Porto Alegre quando, no artigo 2º indica que seguirá observando o mesmo regulamento até segunda ordem. No novo Regulamento (1929), a diretoria ficou composta por presidente, o Intendente Municipal, e a diretora, Rita Jobim Vasconcellos, e tinha o corpo docente formado pelas professoras de piano com Rita J. Vasconcellos e Sylvia Lannes, no canto Thalia de Leão, no violino Lourdes Figueiró e na teoria e solfejo, Dinah Gelcich (REGULAMENTO DO CONSERVATÓRIO MUNICIPAL DE MÚSICA DE BAGÉ, 1929). 159 SUMÁRIO O Instituto Municipal de Belas Artes: estado do conhecimento e perspectivas para futuras abordagens O ensino de Música no IMBA O ensino oferecido pelo IMBA foi objeto de pesquisa nos trabalhos de Huber (2013), Herbstrith (2015), Irênio (2018), Silva (2019) e Júnior (2021). Ainda que o número de trabalhos sobre o ensino no IMBA tenha crescido significativamente na última década, uma instituição com cem anos de idade que acompanhou diferentes momentos da história bajeense ainda apresenta diversas lacunas de conhecimento ainda não exploradas pela historiografia. Esta seção se dedica a uma síntese dos trabalhos sobre ensino de Música, mas vale registrar o potencial para se explorar outros cursos já oferecidos pela instituição, como é o caso de Herbstrith (2015) que cujo objeto de pesquisa é o ensino de dança no IMBA. É possível afirmar, a partir da literatura sobre a criação de conservatórios e escolas de música pelo Brasil, que há um elemento comum de identificação não só com o repertório da música de concerto europeia, mas também com as concepções e práticas pedagógicas associadas a esse continente. Embora alguns autores associem as práticas conservatoriais com as concepções vigentes no continente europeu em geral, sem maiores distinções, outros apontam que as referências estão fortemente concentradas em torno da cultura músico-pedagógica associada a três países: Itália, França e Alemanha. Essa concentração também dá espaço a uma polarização que se fará entre a tradição das óperas e operetas italianas, muito populares no Brasil desde o período anterior à proclamação da República em 1889, e aquela que foi caracterizada como “cultura artística”, associada principalmente com as culturas alemã e francesa. Mais do que uma disputa entre nações tidas como culturas homogêneas, esse debate reflete o conflito entre o “passadismo estético”, de um lado, e os “adeptos da modernidade” de outro. Tal disputa se intensifica tanto com a vinda de músicos estrangeiros para o Brasil quanto com a vinda de uma primeira geração de músicos profissionais cuja formação se deu na Europa nas primeiras décadas do século XX. Nesse contexto,segundo Lucas (2005, s/ p.), os conservatórios de Porto Alegre e Pelotas podem ser interpretados como “laboratório para testagem da modernidade no campo da pedagogia musical dentro dos cânones da música erudita ocidental”. Tendo sido criado como uma espécie de filial do Conservatório de Música de Porto Alegre, o IMBA herdou tais concepções desde o início e a exigência de diplomação neste primeiro para dirigir o segundo era uma das formas de garantir esse alinhamento sóciomusico-pedagógico. Os cursos oferecidos pelo IMBA, como é da tradição conservatorial, possuem um recorte orientado por 160 SUMÁRIO O Instituto Municipal de Belas Artes: estado do conhecimento e perspectivas para futuras abordagens instrumentos (cursos de piano, violino, flauta, etc.), sempre acompanhados de cursos entendidos como complementares e obrigatórios de caráter “teórico” (Teoria da Música, Solfejo, Harmonia, História da Música, etc.). No ano de sua fundação, o IMBA anunciou na imprensa local os cursos de canto, piano, violino, violoncelo e bandolim, além de teoria, solfejo e harmonia. Mas, só há registros de aulas dos cursos de piano, teoria e solfejo (SILVA, 2019). O curso de violino só entrou em vigor no ano de 1926, sob a direção de Rita Vasconcellos, de informação obtida nos programas de audição da Escola, também foi quando a instituição teve o primeiro aluno, pois até esse momento o corpo discente era formado por meninas. Figura 4 - Alunas e professora do IMBA (1922-1923) Fonte: Huber (2012). Acervo do Museu Dom Diogo de Souza. A prioridade no ensino era dada ao piano, considerando o fato de maior procura, assim como foi no período de 1921-1927, de acordo com Silva (2019) devido ao prestígio e a relevância desse instrumento para as noções de educação feminina da época. No regulamento de 1929 indicava ter vários professores de piano e possibilidades de contratar mais para atender a demanda, permite ainda que o aluno possa escolher com qual deles quer ter aulas por afinidade, para assim, ter um ambiente de estímulo e que evite 161 SUMÁRIO O Instituto Municipal de Belas Artes: estado do conhecimento e perspectivas para futuras abordagens desistências. A grande procura, em 1927 era pelo curso de piano e já possuía duas professoras auxiliares, Maria Teixeira e Auta Lannes. (RELATÓRIO MUNICIPAL, 1928) Quanto à grade curricular prevista para a diplomação no IMBA, apesar de não haver nos acervos consultados o regulamento no acervo do Arquivo Municipal de Bagé, a cobertura do jornal Correio do Sul a descreve da seguinte forma: Conservatório de Música – [...] O respectivo curso, que será de 9 annos para os alunos que não tiverem ainda nenhuma iniciação musical, poderá ser feito, entretanto, em 5 ou 6 annos, dependendo isso sómente da capacidade intelectual e da aplicação de cada um. Serão instituidas medalhas de ouro para premiar os esforços dos alunos que obtiverem a melhor classificação em cada curso e aos que não houverem faltado a uma unica aula durante o anno lectivo. As pessoas que obtiverem o diploma do Conservatório de Bagé terão direito, si o quizerem, a fazer parte do corpo docente de qualquer outro dos institutos de musica a serem installados neste Estado. No decorrer de cada anno lectivo haverá audições publicas, tendentes a mostrar o aproveitamento dos alunos e de os habituar ao contacto com o publico. Candidataram se já a matricula do futuroso Conservatorio de Musica de Bagé as distinctas senhoritas Haydée Mangabeira, Mariazinha Gomes de Abreu, Aurelia Mercio Silveira, Sylvia Mercio Silveira, Branca Candiota, Elza Vieira Alves, Edith Dupont, Laura Valls, Graziela Moraes, Aracy Faget Maria Dupont Teixeira e Rittinha J. Vasconcellos. (CORREIO DO SUL, 02/01/1921, p.3) Segundo a matéria, os cursos tinham uma duração de nove anos para as alunas que não tivessem educação formal em música, com a possibilidade de concluir em menos tempo, a depender da aluna. Entre as estratégias de motivação e divulgação do IMBA estava a participação de audições públicas e concursos realizados com um frequência de, no mínimo, uma vez por semestre. O repertório desse período de 1921 a 1927, segundo Silva (2019) segue a orientação do Conservatório de Música de Porto Alegre. Conforme o autor, em relação a nacionalidades, teve a predominância de compositores alemães (38%), seguidos de brasileiros (19%) e de franceses (16%), aparecem outras nacionalidades, mas com menor representação de peças no repertório. Assim, para Silva (2019) “o 162 SUMÁRIO O Instituto Municipal de Belas Artes: estado do conhecimento e perspectivas para futuras abordagens IMBA se tornou um centro de referência do cultivo e da propagação de práticas psicopedagógicas alinhadas às correntes modernistas da música de concerto”. (SILVA, 2019, p. 283). Perspectivas para futuras abordagens As diversas pesquisas realizadas na década de 2010 avançaram significativamente em relação à compreensão que temos hoje sobre o período entre 1921 e 1937, ano em que a instituição adota a categoria de instituto para abarcar o ensino de outras artes além da música. No ano de 1964 o IMBA tem o Ministério da Educação e da Cultura reconhece como cursos de nível superior os cursos de Instrumentos e Canto (com o decreto n.°53.993 de 2 de julho de 1964) e as Artes Plásticas (decreto n.° 48.905, de 27 de agosto de 1960). É nesse ano que, com o falecimento de Rita Vasconcellos, a instituição passa a ser denominada de Instituto Municipal de Belas Artes Professora Rita Jobim Vasconcellos. Em 1969, após decisão do legislativo municipal, os cursos de Música (Instrumentos e Canto) mais o de Artes Plásticas (pintura e desenho) do IMBA são transferidos para a Fundação Universidade de Bagé, hoje Universidade da Região da Campanha, ficando somente com os cursos livres. Estes e outros marcos históricos já conhecidos merecem ser melhor compreendidos a partir de pesquisas específicas. O campo de possibilidades de objetos de pesquisa em relação ao IMBA não se limita necessariamente a recortes temporais, mas também vem explorando categorias como as noções de gênero mobilizadas pela instituição, como é o abordado nos trabalhos de Silva (2019) e Socca (2019). Outra linha de investigação vem se centrando na história de cursos ou projetos específicos, como é o caso de Irênio (2017) sobre o ensino de acordeom na instituição e Rodrigues (2016) sobre o projeto “Noites de serestas e músicas inesquecíveis”. Questões de raça relacionadas à proibição, mais ou menos explícita, de que alunos e alunas pretos cursassem o IMBA até aproximadamente a década de 1960 foram levantadas nos relatos orais de Neiva (2017) e Ivonléo (2017), no entanto, ainda não foram objeto de pesquisas específicas. O campo de possibilidades de investigação é vasto e contempla múltiplas formas de compreender o passado não só da música e da educação musical na cidade, mas da sociedade bajeense como um todo. O que a pesquisa em torno de instituições educacionais e culturais como o IMBA vêm mostrando é que, quando tomados como objeto de pesquisa histórica, proporcionam um ponto de vista particular a partir do qual podemos observar a sociedade e suas 163 SUMÁRIO O Instituto Municipal de Belas Artes: estado do conhecimento e perspectivas para futuras abordagens diferentes dinâmicas. Revela algo sobre a sociedade que cultivou instituições como essa que dificilmente a história política poderia revelar. A história do IMBA nesses cem anos de existência faz parte da história de Bagé e das disputas políticas e ideológicas inerentes à dinâmica de qualquer cidade. E um olhar atento a esse pequeno universo de pessoas e músicas a que damos o nome de IMBA pode nos revelar muito sobre a cidade na qual se localiza. Referências BICA, Alessandro Carvalho. A organização da educação pública municipal no governo de Carlos Cavalcanti Mangabeira (1925-1929) no município de Bagé/ RS. 2013. 351 f. Tese (Doutorado em Educação), São Leopoldo, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2013. _______. DEWES, Helyna. FERREIRA, Diogo. O desafio da preservação histórico e cultural de Bagé: uma experiência de extensão. Experiência, Santa Maria, UFSM, v. 3, n. 1, p. 4-19, jan./jul. 2017. CORTE REAL, Antônio Tavares. Subsídios para a história da música no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul/IEL, 1980. FAGUNDES, Elizabeth Macedo. Bagé no caminho da história do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Martins Livreiro Editor, 1995. HERBSTRITH, Cristiane de Almeida. Memória da dança no Instituto Municipal de Belas Artes – IMBA. 2015. 93 f. Dissertação (Mestrado em Educação Física) Pelotas: Universidade Federal de Pelotas, 2015. HUBER, Eliana Vaz. Arte, tempo e memória: noventa anos do Instituto Municipal de Belas Artes (IMBA) em Bagé e a cultura dos grupos artísticos. 2013. 106 f. Dissertação (Mestrado em Memória Social e Bens Culturais), Canoas, Centro Universitário La Salle, 2013. IVONLÉO, Monteiro. Memórias do Ensino de Música em Bagé. Entrevista coletiva coordenada por Rafael Rodrigues da Silva. 2017. Disponível em: https://www. youtube.com/watch?v=ARc40GqM_nI. Acesso em: 27/03/2021. IRÊNIO, Cristiane Gonçalves. O ensino de acordeom no IMBA: uma conversa com a professora Neiva Sittoni Brasil. 66 p. 2017. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Música) – Universidade Federal do Pampa, Campus Bagé, Bagé, 2017. JÚNIOR, Luís Borges dos Santos. Instituto Municipal de Belas Artes de Bagé-RS: estudo e análise social do repertório (1927-1937). 2021. 131 f. Dissertação (Mestrado em Ensino), Bagé, Universidade Federal do Pampa, 2021. LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos de metodologia científica. 5 ed. São Paulo: Atlas, 2003. LEMIESZEK, Cláudio de Leão. Bagé: relatos de sua história. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1997. __________. BAGÉ: novos relatos de sua história. Bagé: Martins Livreiro, 2000. LOS MAESTROS: Enrique G. Calderón de la Barca. La Lira: Revista del Conservatorio Musical La Lira. Montevideo: La Propaganda, n. 9, mayo, p. 5-6, 1909. (Biblioteca Nacional do Uruguai). 164 SUMÁRIO O Instituto Municipal de Belas Artes: estado do conhecimento e perspectivas para futuras abordagens LUCAS, Maria Elizabeth. História e patrimônio de uma instituição musical: um projeto modernista no sul do Brasil? In: NOGUEIRA, Isabel (Org.). História iconográfica do Conservatório de Música da UFPel. Porto Alegre: Paloti, 2005, p. 19-23. NEIVA Petri Martinez - Memórias do Ensino de Música em Bagé. Entrevista coletiva coordenada por Rafael Rodrigues da Silva. 2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=uO08RCfHSwQ. Acesso em: 27/03/2021 NOGUEIRA, Isabel P.; GOLDBERG, L. G. D. Centro de Cultura Artística do Rio Grande do Sul: O início de um projeto ambicioso. Anais: XIX Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação (ANPPOM), Curitiba, 2009. Disponível em: https://antigo.anppom.com.br/anais/anaiscongresso_anppom_2009/ II_MusicologiaHistoricaeEsteticaMusical.pdf Acesso em: 5 mai. 2019 ______; GOLDBERG, L. G. D. O ensino musical no RS da Primeira República: o Rio Grande dos Conservatórios. In: ______; MICHELON, Francisca Ferreira; SILVEIRA JÚNIOR, Yimi P. W. (Org.). Música, memória e sociedade ao sul: retrospectiva do Grupo de Pesquisa em Musicologia da UFPel (2001-2011). Pelotas: Editora da UFPel, 2011, p. 59-72. PEREIRA, Avelino Romero. Música, sociedade e política: Alberto Nepomuceno e a República Musical. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007. (Col. História, Cultura e Idéias, v. 7) ______. Uma República Musical: música, política e sociabilidade no Rio de Janeiro oitocentista (1882-1899). Natal: Associação Nacional de Professores Universitários de História, Simpósio Nacional de História, 27, 2013. Disponível em: http:// www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1364696506_ARQUIVO_UmaRepublicaMusical-AvelinoRomero.pdf Acesso em: 18 jul. 2020. RODRIGUES, Niandra Lacerda. “Noite de serestas e músicas inesquecíveis”: uma etnografia sobre música e memória em Bagé/RS. 60 p. 2016. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Música) – Universidade Federal do Pampa, Campus Bagé, Bagé, 2016. SILVA. Rafael Rodrigues da. Ensino de música em conservatórios de Bagé – Rio Grande do Sul (1904-1927): uma sociologia dos processos músico-pedagógicos da Primeira República. 2019. 340 f. Tese (Doutorado em Música). Porto Alegre: Universidade federal do Rio Grande do Sul, 2019. SIMON, Círio. A origem do Instituto de Artes da UFRGS: etapas entre 19081962 e contribuições na constituição de expressões de autonomia no sistema de artes visuais do Rio Grande do Sul. 2003. 661 f. Tese (Doutorado em História). Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – Departamento de História, 2003. SIMÕES, Julia da Rosa. Ser músico e viver da música no Brasil: um estudo da trajetória do Centro Musical Porto-alegrense (1920-1933). 2011. 263 f. Dissertação (Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas), Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2011. SOCCA,Thaís Sauco . Construções de gênero na banda do Imba de Bagé/RS : um estudo etnomusicológica histórico (1960 - 1976). 50 p. 2019. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Música) – Universidade Federal do Pampa, Campus Bagé, Bagé, 2019. TABORDA, Tarcísio Antônio Costa. Bagé de ontem e de hoje: coletânea de artigos publicados na imprensa (1939-1994). Elida Hernandez Garcia (org.) Bagé: Ediurcamp, 2015. 165 SUMÁRIO O Instituto Municipal de Belas Artes: estado do conhecimento e perspectivas para futuras abordagens Fontes Arquivo Público Municipal de Bagé Museu Dom Diogo de Souza – FAT/Urcamp Atos BAGÉ, Mangabeira, Carlos Cavalcante. Acto Nº 336. Bagé: Intendencia Municipal de Bagé, Reg. Livro 5 – fls. 133 e 133 v., 5 abr. 1927. BAGÉ, Teixeira, Luiz Mércio. Acto Nº 27. Bagé: Prefeitura Municipal de Bagé, 30 set. 1937. Jornais consultados Correio do Sul (1921, 1927, 1928, 1929, 1936, 1937) O Dever (1921-1928) Regulamentos Regulamento do Conservatorio Municipal de Música de Bagé. Intendencia Municipal de Bagé. Bagé: Typographia da Casa Maciel. 1929. Regulamento do Instituto Municipal de Belas Artes de Bagé. Prefeitura Municipal de Bagé. Bagé: 1937. Relatórios municipais Relatório Intendencial de Carlos Cavalcanti Mangabeira apresentado ao Conselho Municipal em 20 de setembro de 1927. Bagé: Typografia Casa Maciel, 1927. Relatório Intendencial de Carlos Cavalcanti Mangabeira apresentado ao Conselho Municipal em 20 de setembro de 1928. Bagé: Typografia Casa Maciel, 1928. Relatório Intendencial de Alziro Marino apresentado ao Conselho Municipal em 20 de setembro de 1929. Bagé: Typografia Casa Maciel, 1929. Relatório Intendencial de Juvêncio Maximiliano Lemos apresentado ao Conselho Municipal em 20 de setembro de 1930. Bagé: Officinas Graphicas da Casa Maciel, 1930. Relatório Intendencial de Juvêncio Maximiliano Lemos apresentado ao Exmo. Snr. Interventor Federal no Estado General J. A. Flores da Cunha em 24 de junho de 1931. Bagé: Officinas Graphicas da Casa Maciel, 1931. Relatório do prefeito municipal Major Gervasio Rodrigues apresentado ao Exmo. Sr. Interventor Federal no Estado General J. A. Flores da Cunha referente ao ano de 1932. Bagé: Officinas Graphicas da Casa Maciel, 1932. Relatório do prefeito municipal Major Gervasio Rodrigues apresentado ao Exmo. Sr. Interventor Federal no Estado General J. A. Flores da Cunha referente ao ano de 1933. Bagé: Officinas Graphicas da Casa Maciel, 1933. 166 SUMÁRIO 167 SUMÁRIO AS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XX: UM BALANÇO SOBRE A EDUCAÇÃO REPUBLICANA NO MUNICÍPIO DE BAGÉ/RS Alessandro Carvalho Bica 1 168 SUMÁRIO As primeiras décadas do século XX: um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS 1 Introdução A Primeira República no Rio Grande do Sul foi marcada pela hegemonia política do Partido Republicano Rio-Grandense, que se manteve no poder tanto na esfera estadual, como no controle do município de Bagé. Esta atuação foi assinalada pela influência ideológica do Positivismo, o qual, de acordo com Tambara (1991) apresentou certas especificidades, decorrentes da aproximação das ideias de Auguste Comte com a leitura ideológica realizada por Júlio de Castilhos, este conjugamento ideológico, ficou conhecido como Castilhismo2. Nesta perspectiva, os líderes republicanos na condução administrativa do Estado conferiram a escola e ao ensino público, o caminho principal para o êxito do projeto político republicano de educação, isto é, a formação da “consciência nacional” e o estabelecimento do estatuto da cidadania. (Corsetti, 2008.) Neste esforço pela estruturação do ensino público como meio de intervenção social, os governos republicanos estaduais trataram de pensar e qualificar políticas públicas educacionais para modernizar e 1. Dr. em Educação pela Universidade Federal do Pampa - UNIPAMPA. 2. A obra Castilhismo: Uma Filosofia da República escrita por Ricardo Vélez Rodríguez, busca compreender as origens, as influências, os sentidos e os reflexos do Castilhismo, e, resume neste sentido o conjunto de princípios e de regras norteadoras da prática castilhista: A “pureza das intenções”, pré-requisito moral de todo governante; O bem público interpretado como “reino da virtude”; e, o exercício de tutela moralizadora do Estado sobre a sociedade. (2000, p. 17). Rodríguez, Ricardo Vélez. Castilhismo: Uma Filosofia da República. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2000. (Coleção 500 anos). 169 SUMÁRIO As primeiras décadas do século XX: um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS renovar a educação estadual. Sobre esta concepção republicana de educação, Corsetti (1998, p. 154), faz a seguinte consideração: Em termos educacionais, o governo de orientação positivista moveu-se em função de interesses específicos, que previam a utilização da educação como instrumento de modernização. Nesse sentido a ação governamental, além de jogar com a sua política educacional para ampliar o nível de formação dos gaúchos pela diminuição do analfabetismo, entre outros elementos, demonstrou sua compreensão de que a moral e a educação se constituíram nos principais elementos de garantia da ordem social, amenizadores de conflitos e promotores da acomodação dos indivíduos à sociedade. A escola foi, assim, um dos mecanismos de construção da hegemonia burguesa. Sendo assim, a organização do sistema educacional riograndense no período da República Velha, constitui-se no aparato necessário para a construção do projeto político educacional republicano. Entendemos que os Relatórios3 Intendenciais e Orçamentais são fontes de pesquisa, e, eram produzidos geralmente no mês de setembro, possuíam como objetivo apresentar o mapeamento das ações e programas realizados pelo Intendente Municipal, referentes a todos os campos da administração pública. Na feitura destes relatórios, cada assunto da administração pública possuía um espaço específico para o relato das atividades anuais do Intendente e seus secretários. Sendo assim, os esforços estaduais empreendidos pelo governo no processo de expansão do ensino desde a instauração da república no Estado do Rio Grande do Sul, também foram acompanhados pelos intendentes republicanos nas principais cidades do Estado. Nesta perspectiva, é importante perceber e analisar como se planejaram as políticas públicas para a educação municipal nas primeiras décadas do século XX, na cidade de Bagé. As constantes preocupações dos Intendentes municipais em relação à deficiência do sistema educacional da cidade são verificadas na sequência de descrições encontradas nos Relatórios Intendenciais 3. A feitura, a apresentação e a leitura dos Relatórios Intendenciais realizada pelos Intendentes municipais aos Conselheiros do município, ocorria geralmente entre os meses de setembro ou outubro, e fazia parte de todo um aparato simbólico e ideológico pensado pelos republicanos, que buscava representar à lisura, a honestidade, a integridade e a boa fé dos administradores sobre as questões do gerenciamento da coisa pública. Esta concepção foi uma prática realizada pelos positivistas, durante toda a Primeira República no Estado do Rio Grande do Sul, e pode ser definida pela frase: “Viver para Outrem, Viver às Claras”. Sobre este assunto, consultar: CORSETTI (1998) e GUTFREIND (1998). 170 SUMÁRIO As primeiras décadas do século XX: um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS do município de Bagé. No Relatório Intendencial referente ao ano de 1905, publicado no jornal O Dever de 28 de outubro do mesmo ano, pelo Intendente Augusto Lucio de Figueiredo Teixeira, percebemos o panorama da Educação Pública Municipal: Instrucção Publica – É notavel a deficiencia de escolas na campanha do municipio. De todos os districtos tenho recebido pedidos para a creação de estabelecimentos de ensino publico, ponderando-me os interessados que existe grande numero de analphabetos nos nossos departamentos ruraes, verdade que infelizmente não admitte contestação. (grifos nossos) (O Dever, 28/10/1905, p. 02) Do Relatório apresentado acima, podemos concluir que nas iniciativas municipais em relação ao ensino primário, incorriam os seguintes problemas, a permanência numérica de poucas escolas na região da campanha do município, o grande número de analfabetos na cidade e a necessidade de criação novas aulas nos distritos municipais. Neste sentido também, verifica-se uma eficácia maior na oferta de aulas tuteladas pelo governo do Estado, num total de 08 (oito) aulas e mais um Colégio Distrital, e uma efetiva participação da iniciativa privada na constituição de 11 (onze) escolas e/ou aulas no município. Corsetti (2008) afirma que durante a Primeira República, o Estado do Rio Grande do Sul experimentou uma participação ativa da iniciativa privada no estabelecimento de instituições escolares, sendo possível perceber nos discursos republicanos, as garantias concedidas para a iniciativa privada em manter e ampliar seus espaços de penetração nos negócios da educação. Durante o governo de Augusto Lúcio de Figueiredo Teixeira observam-se as primeiras tentativas de expansão do ensino primário municipal, bem como, a preocupação na redução do analfabetismo que atingia taxas altíssimas no município de Bagé, logo se percebe que a educação constitui-se na principal ferramenta republicana. Estas constatações podem ser observadas no Relatório Intendencial do ano de 1906: Instrucção Publica – Em meu anterior relatorio, tive ensejo de patentear-vos a deficiência de escolas na campanha, onde é enorme o numero de analphabetos. Usando verba que para esse fim decretastes, creando mais quatro escolas, quando apenas existiam duas, localisei no populoso logar denominado Pirahyzinho, nas immediações das xarqueadas, uma aula sob a direcção da senhorita Marina Mogetti, que com proficiência tem se entregado aos árduos labores de seu cargo. A frequencia 171 SUMÁRIO As primeiras décadas do século XX: um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS de nossas aulas da campanha é de 106 alumnos, sendo 87 do sexo masculino e 19 do feminino. (grifos nossos) (O Dever, 18/10/1906, p.01) Sobre as considerações descritas no Relatório Intendencial das condições da educação primária municipal percebe-se às seguintes questões: a nomeação de professoras municipais para as aulas públicas, a extinção do Colégio Distrital e que apenas 06 (seis) aulas estaduais estavam providas. Quanto à participação da iniciativa privada, observa-se o destaque dado à presença de duas instituições de ensino católicas na cidade, o Ginásio Nossa Senhora Auxiliadora para o sexo masculino e o Colégio Franciscano Espírito Santo destinado a educação das meninas. Em relação aos dados estatísticos descritos anteriormente nos relatórios intendenciais, podemos compor o seguinte quadro comparativo sobre o panorama das mudanças na Instrução Pública no município de Bagé entre os anos de 1903 e 1908. Quadro 01 – Panorama Educacional da década de 1900 Ano Aulas Municipais Aulas Estaduais Aulas Particulares Frequencia Média 1903 02 08 Não contam dados Não contam dados 1904 02 08 13 1173 alunos 1905 03 08 11 Não contam dados 1906 06 06 11 Não contam dados 1907 06 12 13 1612 alunos 1908 08 11 14 1906 alunos 1909 Não contam dados Não contam dados Não contam dados Não contam dados Fonte: Livre adaptação dos dados encontrados nos Relatórios Intendenciais A partir destes dados, observa-se um crescimento numérico vertiginoso no concurso do estabelecimento da educação primária 172 SUMÁRIO As primeiras décadas do século XX: um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS pela ação municipal, de 02 aulas para 08 aulas, isto significa afirmar que este crescimento alcançou 75% no número das aulas municipais. Em relação às aulas franqueadas pelo Estado, o crescimento alcançou um índice de 36%, e no que tange a ação da iniciativa privada, este crescimento foi de apenas 7% no número de aulas e/ou colégios em relação ao início da década. É importante perceber que apesar dos discursos da municipalidade em aferir a escola o papel de espaço norteador da direção intelectual e moral dos indivíduos, capaz de constituir uma sociedade onde a anarquia fosse suplantada pela ordem e pela prosperidade, desenvolvendo o senso do dever, de obediência e de modernidade da República, as dificuldades encontradas na primeira década do século XX provocariam mudanças substanciais nas décadas seguintes na cidade de Bagé. Apesar dos francos esforços municipais desencadeados na primeira década do século XX, em expandir e apoiar a constituição de espaços educativos, estes eram insuficientes para a organização de uma estrutura do Sistema Educacional Municipal, tendo em vista, que ainda não havia uma legislação municipal4 que estruturasse a Educação Pública Municipal no município de Bagé. Em seu primeiro Relatório, José Octavio Gonçalves elabora um inventário detalhado da situação educacional do município de Bagé, apresentando a importância da disseminação e as vantagens do ensino no contexto republicano. Instrucção Publica – É desnecessario fazer considerações sobre este ramo da administração publica porque todos sabeis as vantagens que dimanam para o paiz, da disseminação do ensino. É a base do progresso de um povo, em todas as manifestações da sua actividade. O governo do Estado a quem especialmente cumpre prover a instrucção, tem procurado melhoral-a n’esta circumscripção como lhe é possivel. O nosso prospero 4. Durante a Primeira República no Estado do Rio Grande do Sul, os republicanos estabeleceram uma série de decretos e regulamentos para a organização do ensino público estadual, e, conseqüentemente no aprimoramento da Instrução Pública no Estado. A pesquisadora Berenice Corsetti em sua tese de doutorado “Controle e Ufanismo: A Escola Pública no Rio Grande do Sul (1889-1930) elabora um interessante quadro sobre todas as legislações relativas ao processo de organização do ensino público estadual ocorrido na Primeira República e defende a seguinte ideia, Corsetti (1998, p. 285-286): A organização do ensino público [...] foi promovida através da utilização do instrumento privilegiado pelos positivistas, ou seja, a lei. [...] Devemos ressaltar que essas regulamentações expressaram, [...] pressupostos políticos e educacionais defendidos pelos republicanos. Por outro lado, os estudos e pesquisas realizados sobre o mesmo período político, revelam que a ação da esfera municipal no processo de regulamentação da educação primária, ocorreu somente após a década de 1920 nos municípios do Rio Grande do Sul. 173 SUMÁRIO As primeiras décadas do século XX: um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS municipio com uma população approximada a 40 mil habitantes, ainda resente-se da falta de instrucção mas, nutre fundadas esperanças na acção proveitosa do patriotico governo do Estado no sentido de melhora-la, como se vae observando das medidas ultimamente adoptadas. (grifos nossos) (O Dever, 23/09/1910, p. 01) A leitura do Relatório Intendencial, nos relata o cenário da educação municipal, porém, é perceptível neste discurso a ausência de políticas públicas e a insuficiência de aulas tuteladas pelo município, por outro lado, ainda persiste a ação da iniciativa privada nas questões educacionais e o irrestrito apoio à ação estadual no propósito de criação do Colégio Elementar na cidade de Bagé. Neste sentido, não podemos deixar de fazer alusão a alguns dados estatísticos descritos na obra Apontamentos Históricos e Estatísticos de Bagé de Jorge Reis, encarregado da Estatística do Município. Sobre a Instrução Pública, comenta Reis (1911, p. 67): Aulas municipaes, 4, localisadas nas xarqueadas S. Thereza, S. Martin, estação de S. Rosa e no 3º Distrito. Frequencia dessas aulas, 136. [...] Total dos alumnos matriculados em todas as aulas do municipio 1.791; - sexo masculino 1017, feminino 774. É presidente do conselho escolar, o Major Julio Soares de Mello. (grifos nossos) Através destes dados estatísticos, podemos fazer algumas deduções, que apesar das aulas presentes no município de Bagé apresentarem uma matrícula total de 1791 alunos, apenas 1456 alunos ou 81% destes frequentavam as cadeiras escolares. Em relação à frequência verificada no total das aulas, podemos afirmar que, os colégios particulares apresentavam uma frequência de 66% (965 alunos); que as aulas públicas estaduais representavam 24% (355 alunos) do total e que as aulas municipais atingiam um percentual equivalente a 10% (136 alunos) do total das aulas organizadas no município de Bagé. Cabe salientar, que na construção destas análises, os dados arrolados acima se referem conjuntamente ao ensino primário e ao ensino secundário. No processo de análise dos dados quantitativos encontrados nos Relatórios da Instrução Pública do Estado do Rio Grande do Sul entre os anos de 1912 e 1913, sobre a educação municipal, verificamos a permanência do mesmo quadro numérico de escolas encontrado no Relatório Intendencial do ano de 1910, apresentado por José Octavio Gonçalves. Neste sentido, afirmamos que em sua última gestão como 174 SUMÁRIO As primeiras décadas do século XX: um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS intendente municipal não ocorreram mudanças no panorama da Educação Pública Municipal em Bagé. Os processos históricos das sucessões dos chefes executivos municipais em Bagé adquiriram características peculiares após a Revolução Federalista (1893-1895), neste sentido, as indicações dos candidatos à intendência municipal passaram a privilegiar os correligionários que demonstrassem uma total identificação com o Castilhismo-Borgismo, o que implicava em uma subordinação direta ao líder do partido e ao presidente do Estado, figura que representava a hegemonia política do PRR. Neste sentido, os signatários republicanos bajeenses que assumiram a condição de Intendentes Municipais, após o início da derrocada do Federalismo na cidade de Bagé, possuíam uma relação de dedicação natural ao ideário positivista do Partido Republicano Rio-Grandense, como afirma Bakos (1998, p. 215) em relação aos intendentes da cidade de Porto Alegre: Desde 1893, já então no poder, o Partido Republicano buscava manter a sua hegemonia recrutando, na sociedade civil, correligionários coniventes com o ideário castilhista para ocupar postos-chave no aparelho de estado.. A primeira Constituição Republicana do estado – 1891 –, que teve Júlio de Castilhos como seu principal mentor, fornecia os meios técnicos necessários para o governo do estado controlar os municípios apesar de, em leitura menos avisada, ela parecesse assegurar a autonomia municipal. Se ele servisse com fidelidade, perpetuava-se no cargo, fato explicado pelo princípio castilhista de que o poder vinha do saber. Tal premissa justificava a permanência de um político em um mesmo posto por um longo período de tempo, a fim de que conhecesse todos os macetes de sua função. (grifos nossos) Portanto, após a morte de José Octavio Gonçalves, o Partido Republicano bajeense necessitava de uma forte liderança política para governar o município, o vácuo deixado na morte do ex-intendente, fez com que o diretório estadual conjuntamente com o diretório municipal, realizasse uma escolha capaz de preencher a lacuna ideológica e política dentro do partido. Martim Silveira nasceu em Bagé, em 1876. Filho do abastado fazendeiro Jerônimo Silveira, participou na defesa do Cerco de Bagé (1895) e filiou-se ao Partido Republicano Rio-Grandense com apenas 17 anos de idade. Na última gestão de José Octavio Gonçalves (19101913), com 34 anos de idade, foi escolhido como vice-intendente 175 SUMÁRIO As primeiras décadas do século XX: um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS municipal, devido ao seu prestígio com os fazendeiros da região e com os próprios republicanos bajeenses. (Taborda, 1966) O processo da escolha de Martim Tupy Silveira como sucessor intendencial e na chefia unipessoal da política municipal possuía como objetivo preencher a possibilidade da ausência de lideranças republicanas na cidade. Estas constatações podem ser observadas na notícia sobre a posse intendencial realizada em 05 de janeiro de 1914: Realizou-se, hontem, [...] a solemnidade da posse do intendente eleito, nosso illustre amigo sr. coronel Tupy Silveira e membros do conselho municipal. [...] Esse pronunciamento da collectividade bageense manifestou-se desde que pela primeira vez foi lembrado o nome do coronel Tupy Silveira, para a alta investidura que lhe foi confiada, sendo que, quando um mister foi escolher um nome para substituir o coronel José Octavio Gonçalves o seu surgiu naturalmente sem que uma só objecção se fizesse sentir, sem que um pronunciamento contrário fosse ouvido. O nome do coronel Tupy Silveira surgiu de conciliábulo político. [...] e foi amparado pelos próceres do partido republicano, cuja suprema chefia está confiada ao esclarecido espírito de tolerância do benemérito dr. Borges de Medeiros, que tem como suprema aspiração, que alimenta com carinhos especiaes o engrandecimento do Rio Grande do Sul, o bem estar da família riograndense. (Grifos nossos) (O Dever, 06/01/1914, p.01) Neste sentido, é possível afirmar, que Martim Tupy Silveira absorveu e foi absorvido pelo imaginário Castilhista-Borgista possibilitando a sua permanência na condução administrativa do município até o ano de 1925, momento das primeiras inflexões políticas ocorridas em função das mudanças oriundas da Pacificação Estadual de 1923 e da alteração da Lei Orgânica Eleitoral do município de Bagé em outubro de 1924. Elaboramos a partir do Relatório Intendencial apresentado por Martim Tupy Silveira ao Conselho Municipal em 20 de setembro de 1914, o seguinte quadro conjuntamente com o mapa da localização dos distritos municipais: 176 SUMÁRIO As primeiras décadas do século XX: um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS QUADRO 02 – Aulas Municipais em 1914 Distr. Professores Localidades Mas. Fem. Matric. Freq. 01 6º Laudelino Moreira Minuano 17 09 26 19 02 1º Isais M. da S. Soares S. Martim 31 28 59 37 03 3º Floricio de S. Alves Olhos d’agua 18 07 25 15 04 4º Ernesto R. Tubino Bolena 24 04 28 19 05 1º Alice Duarte Rego Est. Aceguá 12 22 34 26 06 5º Ié Pereira da Silva Jaguarão 25 03 28 21 07 5º Manoel P. Cunha E. S. Rosa 11 19 30 24 08 5º Resendo L. d’Oliveira A. S. Rosa 22 10 32 20 09 3º Ondina P. de Barros Pirahysinho 01 08 09 07 10 7º Pedro J. de Barros Passo-Salso 14 05 19 18 11 7º Manoel B. Soares Candiota 27 03 30 22 12 7º José P. de S. Sarmento Jaguarão 15 11 26 21 13 1º Marina Mogetti S. Thereza 08 18 26 20 14 1º Olga Siedler Est. Cerro 16 34 50 32 15 1º Julieta Pires Arruda P. Republica 36 44 80 54 277 225 502 355 Obs. S u bve n c i o n a d a s p e l o G ove r n o E s t a d u a l . Nº Mun. Fonte: Adaptado do Relatório Intendencial do ano de 1914 (p.75) Acervo: Museu Dom Diogo de Souza Com base nos dados expostos no Quadro 02 que trata das aulas municipais e na leitura do mapa dos distritos de Bagé no período de 1914, podemos fazer as seguintes ponderações sobre o panorama da Educação Pública Municipal existente na cidade de Bagé: - Quase todas as aulas municipais eram subvencionadas pelo governo do Estado; - Que o 1º Distrito (Bagé), zona mais urbana do município, possuía o maior percentual das aulas municipais (05 aulas); o maior 177 SUMÁRIO As primeiras décadas do século XX: um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS número de matrículas, isto é, 249 alunos ou 49% do total e uma matrícula maior de meninas nas escolas municipais; - Que o 5º Distrito (Santa Rosa) e 7º Distrito (Candiota) possuíam o mesmo número de aulas municipais, ocupavam conjuntamente o segundo maior número de matrículas do município e em suas aulas estudavam majoritariamente alunos do sexo masculino; - Que o 3º Distrito (Olhos D’ água), 4º Distrito (Palmas) e 6º Distrito (Rio Negro) possuíam conjuntamente apenas 04 aulas municipais, o menor número de alunos matriculados e um percentual de 68% de frequencia do total de alunos matriculados, como também, os alunos do sexo masculino predominavam em suas aulas. Outro ponto relevante para nossa análise é a constatação de que somente no 1º Distrito (Bagé), zona urbana da cidade, havia um número maior de meninas matriculadas no ensino de primeiras letras, não possuímos dados relativos à frequencia destas aulas, mas podemos conjecturar que: as meninas das famílias mais urbanas ingressavam em maior número nas escolas, e, por conseguinte sua educação mesmo que voltada para o lar, poderia possibilitar mudanças sociais geradas pelos novos tempos modernos, esta sociedade urbana percebia aos poucos, que a mulher não podia permanecer na mesma situação de ignorância. Por outro lado nos distritos mais suburbanos ou rurais, geralmente mais pobres e afastados do centro urbano, permanecia a velha idéia de que a educação feminina se resumia às prendas do lar e que a mulher deveria ser preparada para ser uma dona de casa, esposa e mãe, perpetuando assim, a diferenciação econômica entre os gêneros, caso não encontrasse um esposo, teria que trabalhar para garantir o seu sustento. (Saffioti, 1976) No mesmo Relatório Intendencial do ano de 1914, encontramos ainda informações sobre a situação das aulas estaduais e dos colégios particulares distribuídos no município de Bagé. Em relação ao quadro numérico das aulas estaduais, havia 05 (cinco) aulas públicas e 01 (um) Colégio Elementar, estas aulas possuíam uma matricula de 614 alunos com uma freqüência de 477 alunos. Deste conjunto de aulas, o Colégio Elementar e mais 03 (aulas) eram para ambos os sexos, 01 (uma) para sexo feminino e outra somente para meninos. Em relação à questão do gênero presente nas matriculas, de um total de 614 alunos, 54% ou 335 eram do sexo feminino, todas estas 178 SUMÁRIO As primeiras décadas do século XX: um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS aulas estavam localizadas entre o 1º distrito, 5º e 7º distrito da cidade de Bagé. No que tange a educação vinculada à iniciativa privada presente no município de Bagé, o quadro apresentado no Relatório Intendencial do ano de 1914, estava representado da seguinte forma, havia a existência de 15 (quinze) escolas particulares, todas ofereciam ensino primário e apenas 08 (oito) ensino secundário. A matrícula estava dividida em 734 alunos ou 74% no ensino primário e 257 ou 26% dos alunos no ensino secundário, estas escolas em seu conjunto tinham uma frequencia de quase 90% do total de 991 alunos matriculados. Destas 15 (quinze) escolas existentes na cidade, 08 (oito) eram mistas, 04 (quatro) para o sexo feminino e apenas 03 (três) para o sexo masculino. Apesar, da ocorrência de um número maior de escolas mistas e para o sexo feminino, a maior matrícula era de meninos, ou seja, 581 alunos ou 59% eram do sexo masculino. Sendo assim, percebe-se que o primeiro Relatório Intendencial de Martim Tupy Silveira, demonstra que o número total de alunos matriculados na Instrução Pública na cidade de Bagé era de 2107 alunos, sendo que estes estavam divididos em 1850 alunos no ensino primário e 257 alunos no ensino secundário. Outra constatação extremamente relevante para nossas análises futuras, e que de todos os alunos matriculados nas escolas municipais, apenas 80 alunos dos 502 alunos matriculados pertenciam à única escola totalmente tutelada pelo município. Os Relatórios Intendenciais publicados no jornal O Dever entre os anos de 1915 a 1918, trazem pouquíssimas ou quase nenhuma informação sobre a Instrução Publica existente no município de Bagé. Por outro lado, estes mesmos relatórios são fontes riquíssimas para compreender como se desenhava administrativamente o governo de Martim Tupy Silveira. Neste sentido, foi possível constatar que principalmente após o estabelecimento do Decreto nº 2265 de 10 de março de 19175 que previa a assinatura de um convênio entre governo do Estado e a Intendência de Bagé para a realização do fornecimento e melhoramento dos serviços de água, esgoto e energia elétrica, a principal preocupação da gestão intendencial foi equiparar com serviços de infra-estrutura o município de Bagé, isto é, organizar o sistema de água e esgoto, de 5. Fonte: Leis, Decretos e Actos do Governo do Estado do Rio Grande do Sul de 1917. Porto Alegre: Officinas Typographicas D’ “A Federação”, 1918. (p. 112-113) 179 SUMÁRIO As primeiras décadas do século XX: um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS abertura e preservação de estradas, de higiene, de assistência e saúde pública, como também de segurança pública com a manutenção de verbas para a Guarda Municipal da cidade. Estas mesmas ações e procedimentos administrativos eram uma tônica nas principais cidades do Estado, governadas por republicanos que buscavam a ordem da sociedade e o progresso rumo à modernização. 6 Contudo, a ausência de informações relativas à Instrução Pública Municipal nos Relatórios Intendenciais expedidos por Martim Tupy Silveira em sua gestão, podem ser complementados pelos dados encontrados nos Relatórios do Orçamento Municipal, no que se refere às receitas e despesas realizadas com a educação tutelada somente pela ação municipal: Quadro 03 – Receita7 Ordinária e Despesa Ordinária do Município com Educação Ano Receita Total Despesa Total Despesa Municipal 1917 8:400$000 12:000$000 3:600$000 1918 8:400$000 12:000$000 3:600$000 1919 8:400$000 10:600$000 2:200$000 1920 8:400$000 10:600$000 2:200$000 1921 8:400$000 11:800$000 3:400$000 Aplicação Professores Móveis e Utensílios Fonte: Adaptado dos Relatórios do Orçamento Acervo: Arquivo Público Municipal de Bagé Em relação à questão da Receita Ordinária do município, é necessário relembrar que desde o início da Primeira República ocorria a subvenção escolar ao município de Bagé, como retrata o Quadro XX referente ao ano de 1914, mas estas subvenções escolares somente começam a aparecer nos Relatórios do Orçamento Municipal a partir de 1917, e indicado como Subvenção às Escolas. 6. Interessante estudo realizado e publicado por Bakos (1998), onde a autora trata desta política governamental ocorrida na cidade de Porto Alegre no período da Primeira República. 7. Em tempo, salientamos que os valores referentes à coluna da Receita Ordinária se referem ao repasse financeiro do Estado para as escolas municipais subvencionadas, sendo que todos os valores descritos na tabela estão na moeda da época, isto é, em contos de réis. 180 SUMÁRIO As primeiras décadas do século XX: um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS Sobre as especificidades dos aspectos da subvenção escolar ocorrida na Primeira República, Corsetti (1998, pág. 179-180), traz a seguinte afirmação: O governo gaúcho, portanto, passou a diversificar sua estratégia em relação aos mecanismos utilizados para a expansão do ensino, incluindo as subvenções escolares com instrumento de sua política educacional, passando a envolver não apenas as escolas particulares como, também, os próprios municípios. [...] Colocando, a nível das falas, a expansão das subvenções como derivada da necessidade de impulsionar o ensino público [...], o governo ampliou o número de subvenções aos municípios que, em 1914, chegaram a 963, e, em 1916, a 1065. [...] a evolução da política relativa à concessão de subvenções escolares foi marcada por um crescimento daquelas concedidas aos municípios. Portanto, percebe-se que as subvenções estaduais eram usadas para o pagamento de professores, para a compra de móveis e utensílios escolares, e que estas sempre se mantiveram em 8:400$000 (oito mil e quatrocentos contos de réis) até o final da década de 1920. Por outro lado, os mesmos Relatórios revelam que às despesas municipais em relação aos investimentos educacionais, isto é, às Escolas Municipais, perfizeram uma média de 3:000$000 (três mil contos de réis) no mesmo período. Portanto, podemos afirmar que a administração do município de Bagé despendia com a educação pública municipal menos do que recebia do governo estadual. Neste sentido, a leitura do Relatório Intendencial apresentado em 20 de setembro de 1922, por Martim Silveira Martins ao Conselho Municipal confirma nossa hipótese levantada anteriormente da pouca ação do poder público municipal nas duas primeiras décadas do século XX, em relação à educação pública municipal. Portanto, as primeiras mudanças em relação aos investimentos educacionais patrocinados pela ação do município ocorrem com uma maior frequencia após a passagem dos anos de 1920. O quadro abaixo sobre o panorama da Instrução Pública e Particular no ano de 1922 nos auxilia a compreender estas mudanças: 181 SUMÁRIO As primeiras décadas do século XX: um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS Quadro 04 - Instrução Pública e Particular no município de Bagé CURSO PRIMARIO Aulas Tipo Matrícula H. M. T. Professores Freq. CURSO SECUNDARIO Matrícula Freq. H. M. H. M. T. 02 Estaduais 227 211 438 317 01 09 -- -- -- -- 20 Municipais 313 224 53 447 10 10 -- -- -- -- 03 Subvencionadas pelo município 141 -- 141 118 3 -- -- -- -- -- 27 Particulares 762 483 1245 1098 9 18 -- -- -- -- 01 Gymnasio Auxiliadora 200 -- 200 176 14 -- 100 -- 100 92 01 Collegio Espírito Santo -- 116 116 106 -- 14 -- 86 86 80 01 Collegio Perseverança -- -- -- -- -- 01 15 21 33 33 01 Collegio Applicação 43 97 140 140 -- 03 05 14 19 19 1686 1131 2817 2402 37 55 121 121 241 224 Fonte: Adaptado do Relatório Intendencial do ano de 1922 (p.68) Acervo: Museu Dom Diogo de Souza Os dados representados acima, nos auxiliam a imprimir algumas análises sobre a instrução pública e particular presente no município de Bagé. Porém, se compararmos primeiramente estes dados aos analisados no ano de 1914, pode-se estabelecer o seguinte cenário: - No ano de 1914, havia 05 (cinco) aulas estaduais e 01 Colégio Elementar, porém, com o processo de aumento das subvenções escolares ao município de Bagé, o número de aulas públicas estaduais no ano de 1922, teve um decréscimo de 80% em relação aos dados encontrados em 1914; - No tocante a ação da iniciativa privada, o número de escolas apresentadas no relatório intendencial de 1922, demonstra que ocorreu um aumento significativo na expansão de instituições 182 SUMÁRIO As primeiras décadas do século XX: um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS escolares particulares, isto significa afirmar, que ao compararmos os dados do ano de 1914, a iniciativa privada dobrou o número de escolas/ aulas no ano de 1922 na cidade de Bagé; - Por outro lado, em relação à ação do governo municipal podese afirmar que ocorreu um aumento no número de escolas, de 01 (uma) em 1914 para 08 (oito) escolas em 1922, além de o município subvencionar 03 (três) escolas particulares; Em relação aos dados isolados do Relatório Intendencial do ano de 1922, faz-se as seguintes observações: - Que todas as escolas subvencionadas pelo município eram para meninos e atendiam somente o ensino de primeiras letras e eram regidas por docentes do sexo masculino; - Que 2817 alunos ou 92% do total estavam matriculados no ensino primário, e que destes 59% ou 1686 alunos eram do sexo masculino; - Que no ensino secundário havia a equivalência do número de escolas e do número de alunos do sexo feminino e masculino; - Que as matrículas nas escolas que atendiam o ensino primário estavam divididas percentualmente em 65% de alunos nas escolas particulares, 19% nas escolas municipais e por fim 16% nas escolas estaduais; - Que dos 92 professores do quadro da Instrução Pública e Particular no município de Bagé, 55 docentes ou 60% do total eram mulheres; Sobre o processo de feminização do magistério ocorrido na Primeira República no Estado do Rio Grande do Sul, a leitura dos trabalhos de Tambara (1998) e Werle (1996, 2005) podem nos ajudar na compreensão deste movimento que modificou a escola primária no Estado. Neste sentido, a profissão docente foi, para muitas mulheres, uma possibilidade de romper barreiras de preconceito e de desigualdade social e econômica e significou um caminho para a profissionalização feminina. Estes termos são expostos por Tambara (1998, p. 02-04) Este é outro aspecto que sem dúvida contribuiu para a feminilização do magistério das séries iniciais. Isto é, socialmente se permitiu a mulher a ocupação de um turno de trabalho enquanto que nos outros era continuava a desempenhar normalmente os outros papéis sociais que tradicionalmente lhe eram atribuídos. (grifos nossos) 183 SUMÁRIO As primeiras décadas do século XX: um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS Na tentativa de compor um maior escopo empírico destas características educacionais, lançamos mão de alguns dados encontrados nos Relatórios do Orçamento municipal da cidade de Bagé, entre os anos de 1921 a 1925, organizados no quadro abaixo: Quadro 05 – Orçamento de despesas do Município com outras ordens em porcentagem Ano 1921 Orçamento Total 867:840$000 Anual Ano 1922 Ano 1923 Ano 1924 Ano 1925 1.183.640,000 1.201.640,000 1.201.640,000 1.240.800,000 Administração Pública 63,20% 69,13% 68,85% 68,85% 69,54% Segurança Pública 17,93% 16,25% 16,01% 17,67% 18,13% Iluminação e Higiene Pública 12,68% 9,29% 9,90% 8,24% 7,58% Despesas Diversas 3,34% 2,45% 2,41% 2,41% 2,82% Auxílios Municipais 1,50% 1,10% 1,08% 1,08% 0,24% Educação Municipal 1,36% 1,77% 1,75% 1,75% 1,69% Fonte: Livre adaptação dos Relatórios do Orçamento Algumas conclusões podem ser realizadas com base nos dados do quadro acima, que os gastos empreendidos com a educação municipal tiveram uma média de 1,66% do orçamento total do município, entre os anos de 1921 à 1925. As verbas destinadas para a Educação Pública Municipal, quase sempre ocuparam a última categoria de investimentos municipais. A partir do Quadro 05, outras análises podem ser feitas, entre as quais, destacam-se: que a primeira faixa orçamentária do município estava ligada com as despesas da Administração Pública e que também havia uma grande preocupação municipal com a Segurança Municipal, visto que a Intendência Municipal empreendia volumosos gastos com a manutenção da Guarda Municipal e dos Postos policiais 184 SUMÁRIO As primeiras décadas do século XX: um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS na cidade. Este fato nos permite afirmar, que no município de Bagé, berço do Partido Federalista, havia uma preocupação constante da Intendência Municipal em manter a ordem social. A preocupação com a Instrução Pública Municipal, bem como o aumento dos investimentos financeiros aplicados com a Educação Pública Municipal serão sentidos com maior ênfase, somente após a segunda metade da década de 1920. Contudo, cabe salientar que a década de 1920, na área da educação, foi um período de grandes iniciativas. Foi à década das reformas educacionais. Não havia um sistema organizado de educação pública, abria-se assim um grande espaço para propostas em prol da educação. Um dos movimentos mais importantes da época ficou conhecido com o nome de Escola Nova. Entre os princípios defendidos por estes educadores estavam à defesa de uma escola pública, universal e gratuita que se tornarão suas grandes bandeiras. A educação deveria ser proporcionada a todos, e todos deveriam receber o mesmo tipo de educação. Pretendia-se com o movimento criar uma igualdade de oportunidades. A função da educação era formar um cidadão livre e consciente que pudesse incorporar-se ao grande Estado Nacional em que o Brasil estava se transformando. A leitura e a análise dos Relatórios Intendenciais encontrados no período da gestão municipal de Martim Tupy Silveira (1914-1925) revelaram o forte crescimento de instituições escolares vinculadas às ordens confessionais ou a professores particulares na cidade de Bagé no período estudado. Sendo assim, esta progressão numérica de escolas representa o avanço da iniciativa privada na expansão do ensino, seja ele, primário ou secundário presente na Primeira República em Bagé. Por outro lado, mesmo que havendo uma iniciativa do governo estadual conjuntamente às primeiras iniciativas da gestão municipal, estas não foram capazes de impedir esta expansão escolar privada. Sobre o panorama educacional existente na Primeira República, Corsetti (2008, p. 63) faz a seguinte avaliação: [...], a ação do governo gaúcho revelou a utilização da educação como instrumento da política de modernização do Estado, tendo sido marcada por características que resumem a importante intervenção dos dirigentes positivistas em relação ao setor, conforme exposto abaixo: a) Expansão do ensino público primário, como ação fundamental do Estado; e) Contenção de despesas com a expansão do ensino, através dos mecanismos das 185 SUMÁRIO As primeiras décadas do século XX: um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS subvenções escolares e do envolvimento das municipalidades; f) Centralização administrativa e uniformização pedagógica; g) Controle pleno do ensino público e liberdade à iniciativa privada; h) Utilização da escola pública para a formação da mentalidade adequada ao processo de modernização conservadora promovido pelo Estado. Em paralelo, a política educacional republicana incluiu, através de uma acomodação de interesses, um relacionamento importante entre o PRR e a Igreja Católica que, mesmo não isento de divergências, serviu à concretização dos projetos por eles desenvolvidos. (grifos nossos) Portanto, não restringindo a difusão do ensino primário somente as iniciativas estaduais e municipais, os governantes republicanos reproduziam a máxima do discurso do PRR que entendia os assuntos educacionais da seguinte maneira: “Ensine quem souber e quiser – como puder”. Assim, o exercício do magistério é deixado nas mãos da iniciativa privada, como afirma Louro (1986, p. 11): Com isso, a iniciativa privada era bem estimulada em todas as áreas, inclusive no ensino, embora neste setor [...] o estado desse assistência. Dessa forma, entende-se o princípio da liberdade à iniciativa privada no sentido de fomentar a instrução primária e secundaria na Primeira República em Bagé. Neste sentido, verificou-se que a expansão do ensino privado ocorrida no governo de Martim Tupy Silveira possui os seguintes números comparativos. No início de sua gestão no ano de 1914, havia 15 escolas particulares com uma matrícula de 991 alunos, estes divididos em 734 alunos no ensino primário e 257 alunos no ensino secundário. Por outro lado, no período relativo ao ano de 1922, havia 31 escolas particulares com um número de matrículas equivalente a 1842 alunos, sendo que 1701 alunos estavam no ensino primário e 241 alunos no ensino secundário. Estes números revelam que ocorreu um crescimento de 57% na oferta de escolas do ensino primário tuteladas pela iniciativa privada, e um aumento de 53% do número de alunos nestas escolas. Cabe salientar que durante todo o período da gestão de Tupy Silveira, o ensino secundário estava atrelado à iniciativa particular no município. Portanto, nosso interesse nesta parte do trabalho é descortinar e inventariar a presença das principais instituições escolares privadas na cidade de Bagé, que usaram a propaganda institucional8 como 8. Sobre o uso, a importância e as características das propagandas de Instituições Escolares em jornais na Primeira República, consultar o trabalho de NEVES, Helena de Araujo. A “alma do Negócio”: aspectos da educação em Pelotas-RS na propaganda institucional (1875-1910). 186 SUMÁRIO As primeiras décadas do século XX: um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS forma de anunciar as atividades educacionais nos jornais O Dever e o Correio do Sul no período compreendido entre 1914-1925. Quadro 06 – Instituições Escolares noticiadas nos jornais (1914-1925) Nome da Instituição Tipo de Ensino Vagas Características Collegio Tiradentes P/S F/M Externato Collegio Dupont P/S F/M Internato / Externato Collegio São Paulo P/S F/M Externato Collegio São José P/S F Externato Collegio Perseverança P/S F Internato / Externato Collegio Nunes P/S F/M Internato / Externato Gymnasio Bageense P/S F/M Externato Collegio Espirito Santo P/S F Internato / Externato Gymnasio Nª Sª Auxiliadora P/S M Internato / Externato Collegio Aplicação P F/M Externato Collegio São Pedro P F/M Internato / Externato Collegio São Luiz P/S M Internato / Externato Escola Parochial S. Sebastião P M Externato Fonte: Livre adaptação do autor dos jornais O Dever e Correio do Sul De todo modo, apesar de termos encontrado nos Relatórios Intendenciais de 1914 e 1922, respectivamente, um número equivalente a 15 (quinze) instituições escolares e 31 (trinta e uma) escolas particulares no período do governo de Martim Tupy Silveira, muitas destas escolas não tiveram nenhuma ocorrência nos jornais. Sendo assim, na elaboração do Quadro 06 tivemos o cuidado de mencionarmos apenas as instituições escolares que tiveram mais de 10 ocorrências de propagandas institucionais nos jornais pesquisados. Especificamente sobre os anúncios escolares, Neves (2007, p. 96) argumenta: Nesse contexto percebe-se, tanto pelo conteúdo dos anúncios, como através dos relatórios, que foram muitas as iniciativas do ensino privado na cidade. Por meio da exposição das características dos serviços de que as instituições dispunham, foi possível encontrar, nos 260 f. Dissertação de Mestrado, UFPel: FaE, Pelotas, 2007. 187 SUMÁRIO As primeiras décadas do século XX: um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS anúncios, dados sobre sua origem e seu cotidiano. Desse modo, pode-se saber como as escolas eram constituídas uma vez que eram detalhados, por exemplo, seu calendário escolar, seu corpo docente, suas condições de admissão, as disciplinas que ofereciam, além de sua estrutura física. A partir destas considerações e da leitura das notícias encontradas nos Relatórios Intendenciais e nos periódicos da cidade de Bagé, revela-se à existência de um número efetivamente peculiar de instituições escolares para uma cidade que possuía neste período a 4ª (quarta) arrecadação de tributos municipais do Estado e já possuía uma população de quase trinta e dois mil habitantes. Também é possível fazer outras apreensões dos dados retirados do Quadro XX, tais como a existência de um número maior de instituições particulares, proeminentemente, com o objetivo de atender o ensino primário e secundário na cidade, como também para o ensino de meninos e meninas. Na tentativa de elaborar uma análise sobre a presença destas instituições escolares no município de Bagé, organizamos o Quadro XX, na perspectiva de esclarecer algumas especificidades educacionais destas instituições escolares encontradas nos jornais da cidade. Quadro 07 – Especificidades das Instituições Escolares Instituição Escolar Mantenedora e/ou Proprietário Endereço Collegio Tiradentes Julio Lebrum Praça da Matriz (imediações) Collegio Dupont Charles Dupont 7 de setembro, 205 Collegio São Paulo A. A. Agostinho da Cruz General Sampaio, 63 Collegio São José Heloisa Sarmento Mal. Floriano, 73 Collegio Perseverança Julieta Cazarré Barão do Triunfo, 109 Collegio Nunes Jacinto Nunes Garcia Praça Julio de Castilhos, 82 Gymnasio Bageense Manoel e Pedro Grott 3 de fevereiro, 123 Collegio Espirito Santo9 Irmãs Franciscanas Gen. Osório, 204 9. Sobre a História Institucional do Colégio Espírito Santo da cidade de Bagé, consultar a dissertação de Mestrado: AZEVEDO, Regina Quintanilha. Praticas Educativas do Curso Complementar de uma Escola Particular Católica (Colégio Espírito Santo, Bagé, 1930-44). 139 f. Dissertação de Mestrado, UFPel: FaE, Pelotas, 2003. 188 SUMÁRIO As primeiras décadas do século XX: um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS Gymnasio Nª Sª Auxiliadora10 Padres Salesianos Praça Rio Branco Collegio Aplicação Universina de Araujo Bastos Gen. Sampaio, 139 Collegio São Pedro Olivia Romero General Osório, 113 Collegio São Luiz Waldemar Machado e Pery Coronel Gen. João Telles, 15 Escola Parochial S. Sebastião Cônego Costabile Hippolyto Praça da Matriz (imediações) Fonte: Livre adaptação do autor dos jornais O Dever e Correio do Sul As instituições escolares representadas no Quadro 06 e Quadro 07 merecem destaque, quer seja por sua evidência nos jornais, quer seja por suas propostas pedagógicas, quer seja por suas práticas escolares e/ou por sua existência na atualidade. Ao analisarmos o quadro XX, percebemos que a localização destas instituições escolares se situava próxima à região que se efetivou a primeira ocupação urbana da cidade de Bagé, isto é, no primeiro centro urbano, entre a Praça da Matriz da Catedral São Sebastião e a Praça Rio Branco, este movimento de diálogo da cultura escolar com a cultura urbana, é relembrado por Faria Filho (1999, p. 143): [..] é uma cultura escolar que dialoga com a cultura urbana, criando e/ou se apropriando de representações sobre o conjunto do social a partir do seu lugar específico na cidade. É a cultura de uma escola que se localiza, literal e simbolicamente, no centro, visando a influenciar os “poderes constituídos” e, neste movimento, constituir-se como um poder de influência sobre os “outros”, sobre aqueles que se localizam na periferia. Logo, salienta-se que no processo da escolha dos lugares que serviriam para a construção de prédios escolares ou de prédios alugados que abrigariam estas instituições escolares, houve todo um movimento que priorizava melhores condições, fossem elas, de salubridade, de espaço, de trabalho, de adequação às legislações educacionais ou por fim, de dialogar com o espaço público e urbano da cidade. Através desta pequena incursão pelos anúncios, como também na leitura de trechos dos relatórios intendenciais sobre as instituições escolares privadas existentes no período da gestão de Martim Tupy Silveira, compreendemos que pesquisar a vida das 10. Em comemoração aos cem anos da Escola Nª Sª Auxiliadora, foi produzido o livro de MARTINS, Tarcísio Luís Brasil. Cem anos com a Rainha: centenário da presença Salesiana em Bagé/RS. Porto Alegre: Inspetoria Salesiana São Pio X, 2004, este trabalho é um interessante estudo sobre a presença da Congregação de Dom Bosco na cidade de Bagé e a sua obra educativa. 189 SUMÁRIO As primeiras décadas do século XX: um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS Instituições Escolares de uma cidade é extremamente relevante na compreensão de uma face da História da Educação. Portanto, acreditamos que o historiador ao revisitar o passado traz à tona novas interpretações e novos sentidos aos seus escritos, como afirma Chartier (2001): “Ler é uma prática criativa que inventa significados e conteúdos singulares, não redutíveis as intenções dos textos ...”, ancorados nesta compreensão, pretendeu-se que esta parte do capítulo possa possibilitar novas e futuras leituras que possam ser construídas a partir dos dados encontrados sobre estas Instituições Escolares de Bagé na Primeira República, bem como, buscar compreender um passado permeado por intenções políticas, educacionais e culturais que fazem da história da educação um campo de pesquisa inquietante. Por fim, esperamos que este trabalho possa exercer um papel fundamental na construção de um acervo e um arcabouço documental para outras pesquisas sobre outras instituições escolares de ensino que estiveram presentes na história da educação de Bagé nas primeiras décadas do século XX. Referencias BAKOS, Margaret M. Marcas do positivismo no governo municipal de Porto Alegre. Revista Estudos Avançados. [online]. 1998, vol.12, nº 33, pp. 213-226. CHARTIER, Roger. Cultura Escrita, Literatura e História. Porto Alegre: Artmed, 2001 CORSETTI, Berenice. Uma história sobre trajetórias dos professores públicos do Rio Grande do Sul (1889-1930). In: Revista História & Perspectivas, Uberlândia, nº 38, jan. jun 2008, p. 79-98 ____________. Controle e Ufanismo. A Escola Pública no Rio Grande do Sul (1890-1930). Santa Maria: UFSM, 1998. Tese (Doutorado em Educação), Faculdade de Educação, Universidade Federal de Santa Maria, 1998. GUTFREIND, Ieda. Historiografia sul-rio-grandense e o positivismo comtiano. 1998, p. 50. In: GRAEBIN, Cleusa M.; LEAL, Elisabete (org.). Revisitando o positivismo. 1ª ed. Canoas: Editora La Salle, 1998, p. 47-58. FARIA FILHO, L. M. (Org.). Pesquisa em história da educação: perspectivas de análise, objetos e fontes. Belo Horizonte: HG Edições, 1999. LOURO, Guacira Lopes. Prendas e antiprendas: educando a mulher gaúcha. Educação e Realidade, Porto Alegre, v.11, n.2, p.25-56, jul./dez. 1986. REIS, Jorge. Apontamentos Históricos e Estatísticos de Bagé. Bagé: Typografia do “jornal do Povo”, 1911. 190 SUMÁRIO As primeiras décadas do século XX: um balanço sobre a educação republicana no município de Bagé/RS TAMBARA, Elomar. A Educação no Rio Grande do Sul sob o Castilhismo. Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós Graduação em Educação, 1991. Tese de Doutorado. ____________. Profissionalização, Escola Normal e Feminilização: Magistério Sul-Rio-Grandense de Instrução Pública no Século XIX. História da Educação. Pelotas: ASPHE/FaE/UFPel, nº 03. pp 35-58, abril, 1998. NEVES, Helena de Araujo. A “alma do Negócio”: aspectos da educação em Pelotas-RS na propaganda institucional (1875-1910). 260 f. Dissertação de Mestrado, UFPel: FaE, Pelotas, 2007. WERLE, Flavia Obino Correa. Escola Normal Rural no Rio Grande do Sul: História Institucional. Revista Diálogo Educacional, V. 05, nº 14, p. 35-50. jan-abril 2005. Figura 01 – Anúncio do Collegio Dupont Fonte: Correio do Sul, 19/01/1917 (p.02) Figura 02 – Anúncio dos Colégios Espírito Santo e Gymnasio Nossa Senhora Auxiliadora Fonte: Correio do Sul, 12/02/1918. (p.02) 191 SUMÁRIO O “ESCRÍNIO” DE ANDRADINA DE OLIVEIRA E O PROTAGONISMO FEMINISTA NA CIDADE DE BAGÉ/RS (1898) Clarisse Ismério1 Edla Eggert2 192 SUMÁRIO O “escrínio” de Andradina de Oliveira e o protagonismo feminista na cidade de Bagé/RS (1898) 1 2 Introdução Ao refletir sobre a história das mulheres na história tradicional, Michelle Perrot (2005) evidencia as constantes lacunas das fontes e profundo silêncio dos arquivos, que evidenciam a segregação social imposta e o papel de coadjuvante determinado pelo processo histórico. No Brasil e, mais especificamente, no Rio Grande do Sul durante a República Velha (1889-1930), observamos essa postura através da influência da doutrina Positivista de Auguste Comte. O Positivismo opunha-se frontalmente ao Catolicismo, porém existia um ponto de convergência entre as duas doutrinas, referente à postura e ao espaço de atuação feminina: defendiam que a mulher era a guardiã da moral e do culto religioso. A mulher era considerada uma educadora por natureza, com isso poderia exercer a profissão de professora, orientando os alunos como se fossem seus próprios filhos. A professora trabalhava em escolas, casas particulares ou em suas próprias casas. Algumas mulheres desistiram de ser rainha do lar e de constituir família para se dedicar unicamente ao magistério. A mulher que optasse por ficar solteira era, muitas vezes, estereotipada pela sociedade, porque estaria deixando de cumprir sua função de progenitora, perdendo sua pureza espiritual, ficando desprotegida e exposta aos males da vida. Isso acontecia porque o lugar da mulher era dentro do lar cuidando de seus entes ou afazeres. Se ficasse solteira estaria fora dos padrões préestabelecidos, mas se decidisse dedicar-se unicamente ao magistério, 1. Doutora em História do Brasil- Urcamp. 2. Doutora em Educação - PUCRS 193 SUMÁRIO O “escrínio” de Andradina de Oliveira e o protagonismo feminista na cidade de Bagé/RS (1898) ensinando as crianças como se fossem seus próprios filhos, resgatava o estado de pureza no papel de mãe-educadora (ISMÉRIO, 2018). Por meio do ofício do magistério, as mulheres conquistaram seu espaço e puderam também atuar como escritoras e jornalistas, para difundir seus ideais e questionar os valores da sociedade machista e conservadora que viviam. Dentre elas destaca-se a importância da produção e atuação profissional da educadora Andradina de Oliveira (1864-1935), que criou o segundo periódico feminista, o Escrínio (1898-1910), na cidade de Bagé e posteriormente foi publicado em Santa Maria e Porto Alegre. A pesquisadora Hilda A. Hubner Flores dedicou uma parte de seus estudos para reconstituir a história das mulheres no Rio Grande do Sul, produção literária e periódicos. E dentre suas produções destacamos a organização da obra Divórcio?, de Andradina de Oliveira. Flores, nesta edição, apresenta um texto biográfico da autora entrelaçando sua trajetória com suas ações, manifestações e publicações e destaca que “é uma das autoras notáveis que atuaram na virada dos séculos XIX-XX. Impôs-se como cronista, romancista, poeta e dramaturga. Feminista assumida, formou opinião através do magistério, de conferências, das obras e de seu jornal/revista Escrínio” (FLORES, 2007, p.11). Lúcia Henriques Maia (2010) em sua dissertação, O Perdão, de Andradina de Oliveira: romance urbano na Belle Époque riograndense, discorre sobre a identidade rio-grandense, modernidade e gênero tendo como pano de fundo a urbanização de Porto Alegre. O mesmo romance é analisado por Selma Alves de Souza e Paulo Henrique Pressotto, por meio da personagem Estela refletem sobre a representação e o espaço das mulheres delimitado pelos códigos sociais patriarcais do século XIX. No artigo os autores salientam o ativismo feminista de Andradina, salientando-a como defensora dos direitos das mulheres e destacando que as suas personagens retratavam muito bem os dramas das relações de classe e de gênero. E com veemência apontam a denúncia que a autora fazia com relação às leis que decretava “a ilegitimidade social da mulher que rompe com o contrato da indissolubilidade do casamento, considerado tabu, inaceitável para os padrões de comportamento vigentes para a sociedade da época”(SOUZA; PRESSOTTO, 2017). A autora também foi motivo de pesquisa e produção de tese de Rosa Cristina Hood Gautério (2015), denominada “Escrínio, Andradina de Oliveira e Sociedade(s): Entrelaços de um legado feminista”, em 194 SUMÁRIO O “escrínio” de Andradina de Oliveira e o protagonismo feminista na cidade de Bagé/RS (1898) que foi analisada a trajetória histórica da educadora e escritora a partir do jornal Escrínio e de sua produção literária, oportunizando análise sobre gênero, subjetividade e relações de poder. Gautério afirma a importância de Andradina como, “(...) Expressão de grande representatividade no cenário social do seu tempo, a escritora gaúcha é uma voz indissociável da imprensa feminina como referência da história cultural e literária das mulheres não só no Rio Grande do Sul, mas também no Brasil” (GAUTÉRIO, 2011, p. 516). Diante do exposto a presente pesquisa concentrou-se na fase de Bagé, conhecida pelo patriarcado e conservadorismo, onde se originou o periódico no dia 2 de janeiro de 18983. Através da investigação ficou constatado que existem apenas cinco exemplares desse período, sendo que apenas um exemplar encontra-se na cidade de origem: Escrínio (Bagé) - dia 02.01.1898 - nº 1 (Acervo da Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ); Escrínio (Bagé) - dia 09.01.1898 - nº 2 (Acervo da Biblioteca Rio-Grandense, Rio Grande, RS); Escrínio (Bagé) - dia 23.01.1898 - nº 4 (Acervo da Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ); Escrínio (Bagé) - dia 30.01.1898 - nº 5 (Acervo do Museu D. Diogo de Souza, Bagé, RS); Escrínio (Bagé) - dia 10.04.1898 - nº 15 (Acervo da Biblioteca Rio-Grandense, Rio Grande, RS).4 Observa-se, a necessidade de reconstituir a fase de Andradina em Bagé, buscando ler nas fontes disponíveis os pequenos detalhes que passam despercebidos ou são negligenciados por olhares menos atentos. Esses fragmentos são reveladores na visão de Carlo Ginzburg, uma vez que “pistas infinitesimais permitem captar a uma realidade mais profunda, de outra forma inatingível. (...) Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas - sinais, indícios, que permitem decifrá-la” (GINZBURG,2007, p. 150 e 177). E sob a perspectiva da hermenêutica feminista, as ações e o protagonismo de Andradina são elucidados em suas vivências, produção literária e jornalística. Nessa proposta metodológica reflexiva, utilizando a hermenêutica da suspeita, existe a compreensão 3. Projeto pesquisa de pós-doutorado desenvolvido junto ao PPGEdu da PUCRS.Foi chancelado pelas Universidades Comunitárias e desse modo possui o incentivo de ambas: URCAMP e PUCRS. 4. Destaca-se que os exemplares citados foram adquiridos, cópia digital e microfilme. 195 SUMÁRIO O “escrínio” de Andradina de Oliveira e o protagonismo feminista na cidade de Bagé/RS (1898) de que os dados levantados nas fontes jornalísticas da época refletem a mentalidade patriarcal e conservadora cujos discursos estabeleciam regramentos e modelos de conduta social. Mas, por outro lado, também se evidencia a leitura das fontes pautada nessa hermenêutica que evidencia a relembrança e suspeita de sempre perguntar como é que mulheres na pele de Andradina posicionaram contra a cultura patriarcal de sua época (EGGERT, 1999, p.24). Nessa perspectiva delineou-se uma pesquisa com outro olhar, não meramente técnico e hermético, mas que considera os fatos construídos como fruto das percepções e vivências femininas. Uma investigação que busca “conseguir perceber na outra pesquisada uma cúmplice da descoberta de nós mesmas”. Uma vez que “somos sujeitos capazes de transformar determinada realidade/pesquisa e nos transformarmos.” (EGGERT, 2003, p. 20 apud. CASTRO, 2014, p. 6) No capítulo analisamos fragmentos do periódico Escrínio e para tanto dividimos em dois momentos, primeiramente apresentaremos recortes da história de Andradina de Oliveira e, num segundo momento, refletimos seu posicionamento e vivências a partir das páginas do jornal. Recortes da história de Andradina de Oliveira Andradina América de Andrada de Oliveira nasceu em Porto Alegre, em 12 de julho de 1864, filha do médico sanitarista Carlos Montezuma de Andrade e de Joaquina da Silva Pacheco, natural de Rio Pardo. Andradina casou-se aos 17 anos com o tenente Martiniano de Oliveira (12º Batalhão de Infantaria), de origem nordestina, em 18 de setembro de 1881, e dessa união teve os filhos Adalberon e Lola. Ao enviuvar, mudou-se com seus dois filhos para Pelotas e depois, para Rio Grande, onde contrariou os “bons costumes” e buscou o sustento da sua família. Segundo Flores, “(...) a partir de sua intelectualidade: lecionou, editou livros, fez palestras e conferências remuneradas, quando se esperava da mulher que permanecesse nos afazeres do lar, na costura, nos bordados” (2007, p.11). A filha de Andradina Lola de Oliveira5, ao homenagear a mãe nas memórias “Minha Mãe!”, relata que “Andradina começou aos 5. Lola de Oliveira (Porto Alegre 1889 - Rio de Janeiro) era filha do casamento de Andradina com Augusto Martiniano de Oliveira. Foi poetisa, romancista, teatróloga, contista e pintora. Dirigiu junto com a mãe o Escrínio e foi colaboradora do Corimbo. Também era mãe de Aldaberon, que estudou no Colégio Militar de Rio Pardo e pretendia seguir os passos do pai, mas em 20 de agosto de 1906, aos 22 anos, faleceu de tuberculose. (Flores, 2007, p. 11-12) 196 SUMÁRIO O “escrínio” de Andradina de Oliveira e o protagonismo feminista na cidade de Bagé/RS (1898) cinco anos, os seus estudos primários no colégio dirigido pela escritora gaúcha Luciana de Abreu. Mais tarde fez, com raro brilhantismo, conquistando distinções em todas as matérias, curso na Escola Normal de Porto Alegre” (OLIVEIRA, 1958 apud GAUTÉRIO, 2015, p. 41-42). Esse registro é bastante significativo, pois a professora e poetisa Luciana de Abreu foi das primeiras líderes feministas do Rio Grande do Sul, que em suas palestras no Partenon Literário, lutava pela abolição da escravatura, pela igualdade entre os sexos através da educação e pelo voto feminino (MOTTA, 1987, p. 74). Luciana tem uma história de superação, pois quando bebê foi deixada na roda dos expostos da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, sendo adotada pelo guarda-livros Gaspar Ferreira Viana e esposa. Foi a primeira aluna a se inscrever na Escola Normal da Província em 1869, obtendo o título de professora em 1872, em 1873 ingressou no magistério público e em seguida criou a própria escola que possuía uma grande procura (MOTTA, 1987, p. 74 e Flores, 1999, p.15). E, para Maria Josepha Motta (1987), Luciana de Abreu foi uma mulher ímpar que conseguiu notoriedade através da educação e ao liderar a luta feminina numa sociedade pautada pelo conservadorismo patriarcal. Podemos seguir a proposta da hermenêutica feminista (EGGERT, 1999) e, imaginar o quanto a coerência de Luciana de Abreu foi exemplo para Andradina, aluna em sua escola. Ao depararmo-nos com esse fato, entendemos que nossa autora em questão, teve uma educação diferenciada cujos princípios formadores estarão presentes na sua produção e direcionamento social. Salientamos ainda o fato de ela ter cursado a Escola Normal da Província de São Pedro, criada em 5 de março de 1869 em Porto Alegre, que era voltada para formar professoras, uma vez que essa atividade era vista como uma continuação do papel da mãe. Essa escola também é reconhecida por formar uma parte significativa das mulheres rio-grandenses que se tornaram grandes líderes (LOURO, 1986, p. 28 e 29). E foi em Pelotas que Andradina começou a colaborar com os jornais locais e onde conheceu o novo companheiro, o ator de teatro Júlio de Oliveira, considerado um artista dramático de grande talento. E essa união revelou uma nova vocação: a de atriz e dramaturga. E, conforme destaca Gautério (2015, p. 53,) no ano de 1896, Andradina deixa por um tempo o ofício de professora, e lançase numa bem-sucedida excursão teatral pelo estado, sendo que o início é na cidade de Bagé. 197 SUMÁRIO O “escrínio” de Andradina de Oliveira e o protagonismo feminista na cidade de Bagé/RS (1898) A ligação com a cidade Bagé se dá através da grande amiga e poetisa Leocádia Grecco6 que durante o lançamento de seu primeiro livro de contos, “Preludiando”, na cidade de Rio Grande em 1897, lhe faz um convite para ir morar na cidade que por ela tem apreço. O trecho autobiográfico que destacamos a seguir nos indica rememoração saudosa e convite audacioso de mudança de lugar. Quando em 1897, na hospitaleira cidade de Rio Grande publiquei o meu primeiro livro, (contos), Preludiando, livro sem pretensões, e que foi gentilmente recebido pela crítica, Leocádia, a saudosa amiga, prestou-me inolvidável auxílio, acudindo, espontaneamente, a carregar-se de coloca-lo também na cidade de Bagé, o que prontamente conseguiu graças às simpatias de que gozava (...) Leocádia endereçou-me entusiástica missiva que terminava assim: para que eu seja completamente feliz só me falta um ente a meu lado: tu! Por que não vens para Bagé? Aqui todos te estimam! Vem! (OLIVEIRA, 1907, p. 58 apud GAUTÉRIO, 2015, p. 54) Bagé conquistou seu apogeu, na segunda metade do século XIX. A cidade desfrutava de poderio econômico fruto das charqueadas e do ramal ferroviário que dinamizava o escoamento da produção. Em 1897, foi fundada por Antônio Nunes de Ribeiro Magalhães a Charqueada de Santa Thereza, considerada um símbolo da modernidade para o período. A modernização impulsionada pelo desenvolvimento das charqueadas proporcionou melhorias no município, tais como o telefone, iluminação, cinema, automóvel, teatro e feiras de exposição (LEMIESZEK, 1997). O desenvolvimento das charqueadas proporcionou um crescimento urbano que possibilitou a opulência destacada por nossa autora, por meio de construções suntuosas, prédios públicos em forma de palacetes, perceptíveis também nos túmulos e mausoléus, que foram produzidas por marmorarias de Montevidéu, Gênova e Porto Alegre. Esses detalhes aparecem num artigo de Andradina publicado no jornal “O Dever” em 1915, período em que ela morava na capital do estado, Porto Alegre. Ela escreve com saudosismo e admiração sobre o tempo em que viveu em Bagé. Das cidades da vastíssima e opulenta campanha rio-grandense, é Bagé uma das mais belas e mais prósperas. Impressiona agradavelmente a sua entrada, com as charqueadas bem cuidadas, de aspecto florescente, a linda Vila Santa Thereza, com a sua poética capelinha, as suas avenidas extensas de eucaliptos a purificar o ar, 6. Poetisa e colaboradora dos Jornais Escrínio e Corimbo. Era esposa do fotógrafo José Grecco, que registrou momentos da Revolução de 1893 em Bagé. 198 SUMÁRIO O “escrínio” de Andradina de Oliveira e o protagonismo feminista na cidade de Bagé/RS (1898) a embelezar ainda mais o sítio que o pendor estético de um homem de energia e de bondade, o distinto português, Sr. Visconde Ribeiro Magalhães, tornou um paraíso terreal, sob este céu sempre azul, em que as nuvens são sempre formosamente brancas. Pitoresco, os arredores de Bagé! Lindas as suas ruas higiênicas, avenidas longas e largas, arborizadas de acácias de flores de ouro ou de prata, os de ramagem farfalhante, entremeados de postes elegantes, pintados de alumínio e de que pendem os grandes fogos elétricos, derramando uma luz esplêndida, claríssima, numa opacidade de luar, como se fossem outros tantos globos lunares que baixassem, enquanto as estrelas, num fulgor intenso, cravejam o profundo firmamento a espiar talvez do alto, as formosas bajeenses, nos carros destoldados e nos frenéticos automóveis, passeando, na doçura das noites cálidas, a sua elegância e a sua gracilidade tão afamadas. Encantadora a Praça Voluntários da Pátria, verdadeiro bosque, cheio de gorjeios e perfumes, de flores e de árvores, com sombras deliciosas, convidando ao repouso do espírito e do corpo. De um lado vê-se o Mercado, a fachada ostentando três cúpulas que lhe dão um aspecto elegante; De outro, o Teatro 28 de Setembro e a Intendência, dois belos e vistosos edifícios. E como agrada observar-se o gosto na edificação! Há palacetes deveras chiques, onde se percebe pelos jardins floridos a paixão pela flor e pela árvore que tanto encanto dão às cidades dos descampados imensos da nossa terra. Há várias praças novas que se vão arborizar para maior beleza de Bagé; numa ergue-se a estátua do grande médico, que foi o Dr. Penna, cuja bondade fez dos corações bageenses um pedestal imperecível para a sua cara lembrança; noutra há o pequeno busto do maior estadista da América, o Barão do Rio Branco. E como Bagé se tornou em poucos anos uma cidade linda e risonha em que a indústria pastoril, a agricultura, o comércio, a instrução e tantos outros elementos poderosos hão de fazer dela uma das mais opulentas do Rio Grande do Sul, muitas são as impressões que reserva ao forasteiro, principalmente quando este saber ver com olhos d’alma o progresso da sua pátria. E mais fortes são estas impressões quando recebidas por entre o espontâneo carinho de um povo culto e hospitaleiro (OLIVEIRA, 1915 apud. GIORGIS, 2013) Há um misto de admiração trazida minuciosamente pelas descrições tanto de aspectos físicos quanto de aspectos morais e afetivos. E, sobretudo nos chama a atenção para com o enaltecimento da cultura sofisticada de círculos que, muito provavelmente prestigiavam a escrita de Andradina. 199 SUMÁRIO O “escrínio” de Andradina de Oliveira e o protagonismo feminista na cidade de Bagé/RS (1898) As fontes jornalísticas evidenciam que o período que Andradina esteve em Bagé foi produtivo, pois criou seu próprio jornal e abriu uma escola mista. Ela definia a cidade como “a mais histórica da Revolução7, onde o ar tem a verdadeira pureza, onde o clima tem o encanto da salubridade, onde o céu não tem inveja do céu de Nápoles onde a mulher é adoravelmente bela, onde o povo é caracteristicamente gentil e hospitaleiro (...). de quem tenho recebido as mais gentilíssimas provas de simpatia” (OLIVEIRA, 1898, p. 1). Apesar da acolhida e dos êxitos alcançados em 1899 ela transfere-se para Santa Maria. Essa mudança, segundo Rosa Gautério (2015), ocorreu em decorrência do aumento da febre tifoide em Bagé que era noticiada diariamente pelo jornal O Comércio. Posteriormente Andradina e sua filha, Lola mudaram para Porto Alegre, onde tiveram uma vida intelectual bastante produtiva. Entre 1915 e 1920, mãe e filha, fizeram uma tournée cultural pelo Uruguai, Argentina, Paraguai e estado do Matogrosso, vivendo “da cultura, Andradina conferenciando e Lola ensinando desenho e pintura, com a venda de suas telas” (FLORES, 2007, p. 16-17). Hilda Flores destaca ainda que posteriormente foram para o estado de São Paulo, primeiramente para Jaú e depois Ribeirão Preto, mas que pouco se sabe sobre esse período da vida de Andradina. Contudo a autora relata que ela teria sido aprisionada na Revolução de 1932, e esse fato desencadeou uma doença mental que a levou a morte em 19 de junho de 1935, aos 71 anos. Os restos mortais de Andradina e de Lola estão depositados num túmulo do cemitério São Paulo, na capital paulista. (FLORES, 2007, p.18) Escrínio: feminismo em Bagé No dia 2 de janeiro 1899, nasce em Bagé o segundo8 periódico feminista rio-grandense, o Escrínio9, um jornal literário, artístico e noticioso, fruto das aspirações de Andradina de Oliveira (imagem 1). Posteriormente o periódico foi publicado em Santa Marie e 7. A Revolução Federalista de 1893 ocorreu entre federalistas (maragatos) e republicanos (ximangos). Dentre os muitos acontecimentos destaca-se o Cerco de Bagé, no qual no os federalistas sob o comando de João da Silva Tavares (Joca Tavares) sitiaram a cidade por 46 dias. 8. O primeiro periódico feminista do Rio Grande do Sul foi O Corimbo (1883-1943), das irmãs Revocata Heloísa de Mello e Julieta de Mello Monteiro, de Rio Grande, que versava sobre os direitos sociais das mulheres. Andradina foi ativa colaboradora dos periódicos Corimbo, A Violeta e do Almanaque literário e Artístico do Rio Grande do Sul. 9. Escrínio é um cofre de papéis ou escrivaninha. 200 SUMÁRIO O “escrínio” de Andradina de Oliveira e o protagonismo feminista na cidade de Bagé/RS (1898) posteriormente em Porto Alegre, cujo primeiro número data de 12 de julho de 1901. Em 1906 Andradina interrompe a circulação do jornal para cuidar do filho, Aldebaron que estava com tuberculose. Ele falece em 22 de agosto do mesmo ano10. O Escrínio é relançado em 1909 no formato de revista, cujo último exemplar foi publicado em 25 de junho de 1910. Imagem 1: Escrínio, Bagé, dia 02.01.1898 - nº 1. Acervo da Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ. Constatamos que a postura feminista11 de Andradina, tomou voz nas páginas do seu semanário, que propunha difundir o protagonismo e a emancipação intelectual feminina ao abordar os mais variados temas sociais. Conforme a sua proprietária e redatora pronunciou no primeiro número: O paladino que, hoje, surge, na arena escabrosa do jornalismo, é o produto de uma vontade feminil que, jamais, se entibiou no meio das terríveis lutas pela vida; 10. A dor da perda de seu filho querido é expressa no livro Cruz de Pedra de 1908. 11. Entendemos que o feminismo produzido por mulheres do século XIX possui protagonismos importantes vistos desde o nosso tempo de século XXI. Não vamos nos ater a compreensão histórica das “ondas” feministas, pois as narrativas se sobrepõem, compõem e inclusive depõem. Mas o que mais nos chama a atenção é que depois de mais de 100 anos vamos retomando aspectos estratégicos das nossas antecessoras que acenaram com muita astúcia a habilidade do manuseio das agulhas e das palavras. 201 SUMÁRIO O “escrínio” de Andradina de Oliveira e o protagonismo feminista na cidade de Bagé/RS (1898) de uma vontade que sobrepujou, sempre, os mais atrozes dissabores, com que, para uns a sorte se apraz em tapetar-lhes o caminho da existência, onde muitas vezes, para colher uma flor que os fascina pelo delicado colorido de suas pétalas ou pelo embriagador perfume de sua corola, rasgam as vestes nas sarças maninhas, dilaceram as carnes nos espinhos agudos, despedaçam a alma nas dores fundas, nas agonias lentas, nas desilusões amargas, nas desesperanças infindas, nas tristezas inconsoláveis (...) O Escrínio, o modesto Escrínio, será o eco de todos os bons sentimentos, de todas as legítimas e sãs doutrinas, de todas as nobres tentativas, de todos os levantados cometimentos, de todas as sublimes aspirações; será, finalmente, o cofre amoroso das joias literárias dos filhos do Rio Grande do Sul, desta terra de bravos, de que me orgulho de ser filha, desta terra que viu nascer Osório, Andrade Neves, Marechal Bittencourt – heróis que tem assombrado o mundo inteiro pelo seu valor inexcedível, pela sua incomparável abnegação; desta terra feliz, em que tem brotado esplendidamente, mil robustas inteligências, quer na tribuna, que na imprensa, quer na literatura, quer nas Bellas Artes (OLIVEIRA, 1898, p. 1). Andradina também deixa claro que a linha editorial do jornal seguirá suas convicções e lutas feministas e que suas páginas irão auxiliar no despertar feminino: Fundado por uma filha desta encantadora terra, por uma fervorosa defensora do seu sexo, o Escrínio surge, também, como um incitamento à mulher rio-grandense, convidando-a a romper o denso casulo da obscuridade, o vir á tona do jornalismo trazer as pérolas da sua cultivada inteligência! O Escrínio aparece como um verdadeiro propagandista da instrução, do cultivo do espírito feminil! (OLIVEIRA, 1898, p. 1). Conforme salienta Celi Regina Pinto o movimento feminista inicia no Brasil na década de 1910 com a luta pelo sufrágio feminino, liderada por Bertha Lutz, Bióloga e uma das fundadoras da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF) em 1922. E também destaca que se difundiu em três vertentes: a primeira reivindicava os direitos políticos; a segunda, chamada de feminismo difuso, marcada pela imprensa alternativa feminista; e terceira norteada por mulheres trabalhadoras, intelectuais e militantes do movimento anarquista e comunista (PINTO, 2003, p.14 e 15). Observa-se que o Escrínio é um dos jornais representantes da segunda fase, na qual algumas educadoras passaram a expressar suas ideias feministas na imprensa 202 SUMÁRIO O “escrínio” de Andradina de Oliveira e o protagonismo feminista na cidade de Bagé/RS (1898) local. Supomos que o “denso casulo da obscuridade” é um anúncio de outros tempos preparadores de reivindicações. Os seguidores do positivismo, tais como Teixeira Mendes (1908) e Joaquim Bagueira Leal (1921), que foram responsáveis pela difusão do discurso conservador que delimita a mulher no espaço privado, em suas palestras que foram posteriormente publicadas pela Igreja Positivista do Rio de Janeiro, posicionavam-se contundentemente contra o feminismo, que na visão desses nobres senhores estimulava a competição entre os sexos desvirtuando a mulher de exercer seu verdadeiro papel social. Chamamos atenção para a atualidade de discursos semelhantes encontrados nas câmaras de deputados e vereadores em nossos últimos tempos que parecem ser tirados de discursos como esse de Mendes, “essa aberração feminista; com seu consequente amor livre, esse horror dos horrores, que brada aos céus, constituem o extremo grão ultrarrevolucionário da dissolução do lar”. (1908, p. 170) Ou ainda um triste “produto da anarquia moderna. Entre as grosserias masculinas que se deseja ver a mulher praticar estão as que se resumem no chamado direito ao voto”. (LEAL, 1921, p. 4) O discurso contra o trabalho feminino não era exclusividade dos positivistas, na realidade eles salientaram uma preocupação que era constante na sociedade do período. Todas as publicações em torno desse tema procuravam destacar o aspecto negativo gerado pela mulher que trocava seus deveres principais por uma profissão remunerada: “Toda a sociedade em que os homens sugam os serviços materiais das pobres mulheres, é uma sociedade em desorganização” (LEAL, 1921, p. 3-4). E, já no primeiro número de seu semanário, Andradina posiciona-se contundentemente contra a máxima que limita a mulher no espaço privado exercendo sua função de rainha do lar ou de anjo tutelar. A mulher deve ser instruída, deve ser educada para melhor cumprir a sua divina missão na terra – ser mãe. Deixemos falar os espíritos retrógrados! Deixemos fallar os ignorantes, que proclamam a decantada trilogia da mulher – filha, esposa e mãe! Dizem eles: A mulher só deve ser isto e para isto basta-lhe saber lavar e cozinhar. Irrisório! Então a mulher para ser a verdadeira filha, a verdadeira esposa, a verdadeira mãe, só precisa saber o trabalho doméstico? Não! Não! E não! A mulher precisa ir, além do fogão, além da tesoura, além do tanque, em que lava a roupa da família. Ela necessita de uma boa educação e de uma sólida instrução. É preciso que ela faça do lar um cenário, onde representa ora o papel de cozinheira ora o papel de literata, música o quer que 203 SUMÁRIO O “escrínio” de Andradina de Oliveira e o protagonismo feminista na cidade de Bagé/RS (1898) seja, onde o seu espírito se alimente e se desenvolva. (OLIVEIRA, 1898, p. 1 e 2) Com esse posicionamento Andradina crítica visão conservadora, estabelecida durante o curso de história, de que a mulher deveria ser educada para ser dona de casa e educar seus filhos, pois era desprovida de dotes intelectuais, mas detinha os afetivos, como escreveu Pio XI, na encíclica Castii Conubii (Sobre o Matrimônio Cristão): “Se efetivamente o homem é a cabeça, a mulher é o coração, e se um tem primado do governo, a outra pode e deve atribuir como seu primado do amor”. (Pio XI, 1952, p.14). Augusto Comte às denominava com o sexo afetivo, sendo a representação da mais pura emoção. E, uma vez que são os sentimentos que determinam sua ação, era considerada irracional, tendo que ser protegida pelo homem. A inferioridade feminina encontrava-se expressa no discurso doutrinário do Catecismo Positivista, no diálogo entre o sacerdote e a mulher iniciada: Mulher - Pelo que ouvi em nossa conferência preliminar, sinto-me atemorizada, meu pai, por minha profunda insuficiência para a elevada exposição que ides começar (...) minha inteligência se figura demasiado fraca para compreender esta explicação, por mais simples que vos seja dado fazê-la. (...) Sacerdote - (...) As mulheres e os proletários que a exposição tem em vista não devem ser doutores, nem eles os querem. (...) Mulher - Amedronto-me de minha nulidade pessoal antes semelhante existência (COMTE, 1988, p. 95, 96 e 99) A inferioridade do sexo feminino em relação ao masculino também é salientada pelo filósofo iluminista Jean-Jacques Rousseau, na obra “Emílio ou Da Educação”. Emílio, personagem que representava o sexo masculino, tem por qualidades as de ser ativo, forte, corajoso e inteligente. E por sua natureza, deveria ser educado para os negócios públicos. Já sua companheira Sofia, representante do sexo feminino, aparece em segundo plano, como um complemento às ações e qualidades de Emílio. Ela é descrita como um ser frágil, submisso, passivo e emotivo. Por ser a sua natureza frágil, seria educada de forma bem rígida para que não fosse corrompida pelos males da sociedade e somente aprenderia os trabalhos destinados ao seu sexo, ou seja, as prendas domésticas e tudo aquilo que a preparasse para ser filha, esposa e mãe. Nunca deveria meter-se nos negócios públicos, conforme Rousseau: 204 SUMÁRIO O “escrínio” de Andradina de Oliveira e o protagonismo feminista na cidade de Bagé/RS (1898) O que Sofia sabe mais a fundo, e que lhe fizeram aprender com mais cuidado, são os trabalhos de seu sexo, mesmo aqueles que não se lembram, como cortar e costurar seus vestidos. Não há trabalho em agulha que não saiba e que não faça com prazer; mas o trabalho que prefere a qualquer outro é o de fazer rendas, porque nenhum outro dá atitude mais agradável e em nenhum os dedos exercitam com mais graça e ligeireza. Dedicou-se também à todas as tarefas do lar. Conhece a cozinha e a copa; sabe o preço dos mantimentos; conhece as qualidades; sabe muito bem suas contas; serve de mordomo para sua mãe. Feita para um dia ser mãe de família e ela própria, governando a casa paterna aprende a governar a dela (ROUSSEAU, 1992, p. 473). Rousseau, além de influenciar Kant (1724-1804) e Pestalozzi (1746-1827), influenciou muitos pensadores e médicos sanitaristas do século XIX, que fundamentam suas teorias e seus discursos higienistas nas teses do filósofo francês. Essas ideias foram retomadas por Comte, tanto na questão da educação da mulher como nas características que a tornavam inferior e frágil. Andradina não era contra as mulheres que optavam por casar e cuidar exclusivamente do lar, mas argumentava que a mulher deveria ter acesso a uma educação de qualidade, que lhe proporcionasse curiosidade e conhecimento para tratar de temas complexos ou simples que compõem seu dia a dia. A mulher deve saber talhar a roupa dos filhos, e também ensinar-lhes a matéria prima de que ela é feita. Deve saber preparar um excelente pudim e mostrar, quando interrogada por estas naturalmente curiosa as criaturinhas, os seus conhecimentos de botânica. A mulher deve ser bem educada, deve ser bem instruída, porque ela é a primeira mestra do seu filho, porque ela, só ela! Pode formar-lhe o coração, implantar-lhe os bons sentimentos. O caráter, a dignidade, a virtude! Não há inconveniente algum para a boa direção do lar, como julgam muitos, passar a mulher do fogão à secretaria. A mão que prepara um bom filé pode traçar um bom soneto. Não há dúvida. (...) Assim, pois, amadas rio-grandenses, estuda e aperfeiçoa e o vosso espírito para vos tornardes mais gentil rainha, do pequenino reino, que nós todos veneramos – o lar… (OLIVEIRA, 1898, p. 2). Observa-se que no texto enfatiza que a mulher com conhecimento poderá educar com mais propriedade seus filhos, preparando-os realmente para a vida. Com essa afirmação ela responde a altura outra máxima do período, que afirmava que a 205 SUMÁRIO O “escrínio” de Andradina de Oliveira e o protagonismo feminista na cidade de Bagé/RS (1898) mulher era educadora por natureza. Esse era um dos compromissos assumidos no ritual do casamento positivista e os iniciados na doutrina constantemente reforçavam a importância dessa missão feminina, independente de sua instrução que preparava as meninas para serem futuras mães e os meninos para se tornarem grandes homens e futuros gênios. Teixeira Mendes (1908) instruía fielmente os ensinamentos de Rousseau ao enfatizar que a maternidade é soberana e moldura do “tempo preciso para que todas as mulheres pudessem aprender, de modo a exercer a sua função de mães, de formadoras de homens”. Esse é o ensinamento compreensível, o de que a mulher não escreve epopeias, porque na compreensão do seu inspirador Rousseau, a mulher tem sua missão de garantir um lar soberano para o descanso do “seu homem” esse sim, cidadão. Paradoxalmente, por mais que nos pareça, desde nossos dias, perceber que a nossa autora oferece destaques próximos ao que esses senhores admoestavam, ela propagava a importância e os benefícios de uma educação feminina de qualidade. Andradina convida as mulheres e todos que desejarem seus escritos para serem publicados, uma vez que o “Escrínio orgulhar-se-á quando vos lembrardes de enviar-lhe as joias literárias dos vossos cérebros ricos de poesia, das vossas almas ricas de dedicação!” (OLIVEIRA, 1898, p. 2). Em outra passagem do mesmo artigo Andradina expressa a visão feminista de não confrontar o sexo oposto, mas tê-lo como aliado e parceiro nas conquistas uma vez que os homens compreendem a importância da mulher como uma aliada no trabalho diário, como companheira, amante e mãe. Felizmente, no século das luzes, o homem o nosso consocio nos prazeres e nas dores, despindo aquele carrancismo estúpido dos nossos antepassados, vai-nos fazendo justiça e reconhecendo em nós a mesma capacidade intelectual, que, até bem pouco, era considerada seu exclusivo privilégio. Sim! Ele compreende, afinal, que a mulher pode, com vantagem, auxiliá-lo nas lutas pela vida, trabalhar, seja em que for, a seu lado, sem descurar um só de seus deveres domésticos, uma só das suas virtudes. Ele compreende que a mulher instruída e educada pode desempenhar, mais belamente, o seu papel de filha, de esposa e de mãe. (OLIVEIRA, 1898, p. 2) Arriscamos afirmar que nesse discurso denunciador dos domínios patriarcais está contida uma ambiguidade que também se apresenta em outra brilhante parceira brasileira do século XIX, Nísia Floresta. Elas por um lado anunciam as virtudes recém descobertas 206 SUMÁRIO O “escrínio” de Andradina de Oliveira e o protagonismo feminista na cidade de Bagé/RS (1898) de si mesmas e, simultaneamente juram que seguirão zelando seus algozes por meio do trabalho zeloso junto às suas famílias, fazendo ruir, vez por outra, alguns dos seus pilares. Essa ambiguidade nos interessa como pista hermenêutica para futuros pespontos para mais estudos e textos que as mulheres do século XXI retomam com novas perspectivas. O Escrínio era um semanário que circulou de 1898 a 1910 e a cada final de mês, tinha um número especial comemorativo dedicado às mulheres (imagem 2). Imagem 2: Escrínio, Bagé, dia 30.01.1898 - nº 5, edição especial. Acervo do Museu D. Diogo de Souza, Bagé, RS. Observamos que apenas o número cinco encontra-se em Bagé, fazendo parte do acervo de jornais do Museu D. Diogo de Souza. Esse exemplar é um número especial que foi publicado no dia 30 de janeiro de 1898, cuja editora esclarece a proposta e convida os colaboradores(as) para enviar seus escritos: O número de hoje – o último deste mês,– como o último de todos os outros meses, será consagrado à Mulher, tornando-se um número especial, pelo que pedimos aos nossos colaboradores e às pessoas que nos quiserem honrar com a gentil colaboração, sobre tão delicado tema, enviarem-nos com antecedência os originais (OLIVEIRA, 1989, p. 2). 207 SUMÁRIO O “escrínio” de Andradina de Oliveira e o protagonismo feminista na cidade de Bagé/RS (1898) O primeiro número especial foi composto por poemas e contos escritos por vários colaboradores, tais como Pedro Antônio de Miranda (Pelotas), Ferdinando Martino, Jáder de Carvallho, Revocata H. de Mello, J. B. I., Leocádia Greco, Pedro Antonio de Miranda Pelotas, Ibrantina Cardona. SP, C. Reis. Elvira Gama. Rio de Janeiro, Pierrot Pelotas e J.B.I. Dentre os inúmeros elogios e aclamações às mulheres destaca-se as palavras da poetisa Leocádia Greco, grande amiga de Andradina, que aproveita o espaço privilegiado para expressar suas ideias sobre o papel feminino na sociedade: Dizem que a mulher existe para criar seus filhos e cuidar dos arranjos da casa; não sendo necessário ser instruída para ser boa. Sim, diz muito bem quem vê na mulher um autômato. Imbecis! egoístas! Como melhorar as gerações se a mulher vive no obscurantismo? Como desejar um povo que compreenda os deveres de cidadão se a mulher os ignora? (...) Deixemos falar os espíritos frívolos e retrógrados; procuremos dissipar com o estudo a densa nuvem que nos circunda, para que a geração, que nos pertence da qual somos responsáveis possa brilhar santamente com a sua luz seremos recompensados nossos esforços e abençoados pelas gerações futuras (GRECO, 1989, p.3). Num período em que as mulheres eram educadas para serem submissamente coadjuvantes, a educadora feminista Andradina de Oliveira rompe com os padrões ao propor o protagonismo e a emancipação intelectual feminina nas páginas do seu jornal Escrínio. Foi uma mulher adiante do seu tempo, que também se notabilizou como escritora, dramaturga e conferencista (imagem 3). Imagem 3: Foto do livro Contos de natal (1908). Acervo da Biblioteca Rio-Grandense (GAUTÉRIO, 2015, p. 37). 208 SUMÁRIO O “escrínio” de Andradina de Oliveira e o protagonismo feminista na cidade de Bagé/RS (1898) Deixou um vasto legado literário, do qual citamos alguns títulos como: O sacrifício de Laura (1891), Preludiando (1897), Almanaque literário e estatístico (1899), Você me conhece? (1899), A mulher rio-grandense: escritoras mortas (1907), Contos de Natal (1908), Cruz de pérolas (1908), O perdão (1910) e Divórcio? (1912). E pelo reconhecimento de sua obra foi homenageada como patrona da cadeira no. 11 da Academia literária Feminina de Letras do Rio Grande do Sul – ALFRS. Considerações finais Em breves páginas delineamos um pouco da história e do pensamento de Andradina de Oliveira, uma mulher inspiradora de múltiplos atributos que se fez forte através de sua intelectualidade e ousou superar as dificuldades impostas ao seu sexo. Num período em que o modelo de conduta feminino preconizado pela tradição patriarcal era de esposa, genitora e formadora de homens, algumas mulheres romperam o silêncio construindo espaços para ressignificar suas vidas, propagar suas ideias e marcar seu lugar na história. Como eram consideradas “educadoras por natureza” utilizaram do ofício docente para alçar voos mais altos e marcar espaço na sociedade, através de sua produção literária e jornalística, difundiram seus ideais e questionaram os valores da sociedade machista e conservadora em que viviam. Essas mulheres, aos nossos olhos foram destemidas ao utilizarem amplamente de espaços possíveis para reivindicar uma educação digna para as meninas e mulheres e, com isso, ampliarem os direitos civis de todas. E a professora Andradina de Oliveira, foi uma dessas grandes mulheres, que produziu o seu periódico como instrumento de formação da sociedade na luta pela igualdade, valorização do ensino e capacitação das mulheres. O Escrínio, criado em terras bajeenses, tornou-se o porta voz de suas aspirações e fiel guardião atemporal das evidências de sua militância feminista. Referências CASTRO, Amanda Motta. A hermenêutica Feminista como forma de análise na pesquisa científica. CONGRESSO INTERNACIONAL DA FACULDADES EST, 2., 2014, São Leopoldo. Anais do Congresso Internacional da Faculdades EST. São Leopoldo: EST, v. 2, 2014. Disponível em: file:///C:/Users/User/Downloads/ 217-1463-1-PB.pdf Acesso: 13 de outubro de 2019. 209 SUMÁRIO O “escrínio” de Andradina de Oliveira e o protagonismo feminista na cidade de Bagé/RS (1898) COMTE, Auguste. Catecismo Positivista. In COMTE. Col. Os Pensadores, São Paulo: Nova Cultural, 1988. EGGERT, Edla. A mulher e a educação: possibilidade de uma leitura criativa a partir da hermenêutica feminista. In. Estudos Leopoldenses, Série Educação, vol.3, no. 5, 1999, p-19-23. FLORES, Hilda Agnes Hüber. Original Contrato de Casamento. In. Presença Literária 1994. Revista da Academia Literária Feminina do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Nova Dimensão, 1994. FLORES, Hilda A. Hübner. Andradina de Oliveira: A Feminista. In. O Divórcio? Porto Alegre/Florianópolis: Ediplat/Editora Mulheres, 2007. FLORES, Hilda A. Hübner. Sociedade: Preconceitos e Conquistas. Porto Alegre: Nova Dimensão, 1989. GAUTÉRIO, Rosa Cristina Hood. Escrínio, Andradina de Oliveira e sociedade(s): entrelaços de um legado feminista. Tese de Doutorado defendidano Programa de Pós-Graduação em Literatura, da Universidade Federal de Santa Cataria (UFSC), 2015. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/158435 Acesso em: 19 de abril de 2019. GAUTÉRIO, Rosa Cristina Hood. Escrínio: A imprensa feminina sul-rio-grandense como produto cultural na construção da história das mulheres. In: IX Seminário Internacional de História da Literatura. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2011. Disponível em: https://editora.pucrs.br/Ebooks/Web/978-85-397-0198-8/Trabalhos/89.pdf Acesso em: 02 de maio de 2020. GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas e Sinais. São Paulo: Companhia das letras, 2007. ISMÉRIO, Clarisse. Mulher:A Moral e o Imaginário 1889-1930. Bagé: Ediurcamp, 2018. LEAL, Joaquim Bagueira. A mulher. Rio de Janeiro: Demétrio do Rego Lemos, 1921. LEMIESZEK, Cláudio Leão. Bagé: Relatos de sua história. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1997. LOURO, Guacira Lopes. Prendas e antiprendas : uma história da educação feminina no Rio Grande do Sul. 1986. Tese (doutorado) Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação, Campinas, SP. Disponível em: <http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/252830>. Acesso em: 04 de março de 2020. MAIA, Lúcia Henriques. O Perdão, de Andradina de Oliveira : romance urbano na Belle Époque rio-grandense. Dissertação apresentada no Programa de Pósgraduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), 2010. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/24040 Acesso em 20 de abril de 2020. MENDES, Teixeira. A solução da questão social, segundo os ensinos da verdadeira ciência positivista (conferência de 30 de novembro de 1908). in.CASTRO, A. R. Gomes. A mulher. Rio de Janeiro, Igreja do Apostolado Positivista no Brasil, 1921. 210 SUMÁRIO O “escrínio” de Andradina de Oliveira e o protagonismo feminista na cidade de Bagé/RS (1898) MIRANDA, Jussara Valéria de Miranda. Recuso-me! Ditos e escritos de Maria Lacerda de Moura. Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Uberlândia, 2006. Disponível em: https://repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/16458/1/JVMiranda1DISSPRT.pdf Acesso em: 27 de outubro de 2019. MOTTA, Maria. Luciana de Abreu. In FLORES, Hilda. Porto Alegre: História e Cultura. Martins Livreiro, 1987. NASCIMENTO, Cecília Vieira do e OLIVEIRA, Bernardo J. O Sexo Feminino em campanha pela emancipação da mulher.In. Cadernos Pagu, no. 29, julho-dezembro de 2007:429-457. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/cpa/n29/a17n29. pdfAcesso: 12 de abril de 2020. OLIVEIRA, Andradina de. Escrínio. ano I, número 1, Rio Grande, Bagé, 2 de Janeiro de 1898, ano I, número 1. Acervo Especial da Biblioteca Nacional. OLIVEIRA, Andradina de. Escrínio. ano I, número 5, Rio Grande, Bagé, 30 de Janeiro de 1898, ano I, número 1. Acervo Especial da Biblioteca Nacional. PAIXÃO, Márcia e EGGERT, Edla. A hermenêutica feminista como suporte para pesquisar a experiência das mulheres. In. EGGERT, Edla (Org). Processos educativos no fazer artesanal de mulheres do Rio Grande do Sul. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2011. Disponível em: www.unisc.br/edunisc. Acesso em: 04 de março de 2020. 211 SUMÁRIO Parte II Economia, Fronteira e Política 212 SUMÁRIO Prefácio OUTR AS VISÕES DOS CÂNONES BAJEENSES José Carlos Teixeira Giorgis (*) 1. Contam que Cícero, ao apresentar a obra de Heródoto a quem considerava o pai da História, afirmava fazê-lo para que as obras dos homens não fossem esquecidas com o tempo como ainda as maravilhosas façanhas de gregos e bárbaros e a causa de seus conflitos. Disso se deduz que tais trabalhos acentuam a existência de um verdadeiro programa ou tarefa do historiador contendo um relato, estória, exposição oral ou escrita, onde olhos e ouvidos ressaltam uma palavra essencial da História, ou seja, o testemunho, a quem cabe preservar a lembrança das ações humanas através da Memória. E, assim, não sejam jamais esquecidas. Diz Eric Hobsbawn que a destruição do passado e dos mecanismos que vinculam a experiência pessoal à das gerações pretéritas é um dos fenômenos mais lúgubres do final do século passado e de nossos dias, pois quase todos os jovens de hoje crescem num presente contínuo, sem relação orgânica com o outrora. E assim, os historiadores, cujo ofício é lembrar o que os outros esquecem, tornam-se mais importantes que nunca, devendo ser mais que simples cronistas, memorialistas ou compiladores; e nem apenas julgar, mas compreender, embora as convicções e a experiência, o que não significa transigir com o que deve ser criticado. A análise histórica tem conduta oscilatória que intervém na literatura e na investigação, lembrando Marc Ferro que os conteúdos ideológicos sucumbiram com a falência de alguns movimentos, como o marxismo, levando ao exame de uma ótica plana da história, como ainda a eclosão de nações emergentes alterou a centralidade do discurso meramente europeu, abrindo oportunidade à crítica e leitura segundo os novos tempos. E que a história é uma disputa em que o controle do passado ajuda a dominar o presente, de que redunda aquilo que o autor chama de história vigiada, pois quando mais se divulga algum conhecimento mais rigorosa se torna a fiscalização. É dele, ainda, a catalogação da história em fatual e não fatual, história- narrativa e história-problema, a história segundo as 213 SUMÁRIO Outras visões dos cânones bajeenses elites ou história vista de cima e a história segundo os proletários ou história vista de baixo, classificações que apenas consideram as variáveis da obra, o modo de exposição e a natureza dos assuntos abordados, os procedimentos de análise, os vínculos entre os objetos de estudo, enfim, as metodologias e as práticas do ofício. Veyne leciona que a história é análise mais que narração, o que a distingue do romance, pois se ela fosse simples ressurreição e não exame, bastava a leitura da produção novelística e não seria necessário escrevê-la: o romancista cria e recria, mas o historiador fornece-lhe sentido e conceito. E, enquanto a história de outrora ou história de tratados e batalhas é mera narrativa e arrolamento de fontes, a vigente história não fatual vai além, juntando pesquisas e análises que desembarcam em conceitos que dão finalidade aos acontecimentos. Repete-se ali a lição de Chartier para quem a história é discurso que aciona construções, composições e figuras que são as mesmas da escrita narrativa, portanto da ficção, mas é um discurso que, ao mesmo tempo, produz corpo de enunciados científicos, com possibilidade de estabelecer um conjunto de regras que permitam controlar operações proporcionais à produção de objetos determinados. Essas são meditações que acodem quando se conhece o conteúdo do livro coletivo História de Bagé sobre Novos Olhares, produto de iniciativa organização realizada pelos historiadores, Dr. Gustavo Figueira Andrade, , Dr.ª Maria Medianeira Padoin, docente do PPGH/ UFSM, e Dr.ª Clarisse Ismério, coordenadora curso de História/URCAMP, louvável iniciativa que contou com o apoio de profissionais dos cursos de História e Arquivologia da Universidade de Santa Maria e, em especial, com os alunos do Programa de PósGraduação em História de dita instituição. Na obra se incluem eruditos trabalhos e pesquisas de ressonância, não apenas do pessoal vinculado às entidades, mas outros talentosos pesquisadores e historiadores, conjunto que redunda num livro seminal que se inscreve entre os clássicos sobre a Memória da cidade fronteiriça, mas que se estende para uma peculiar investigação de fatos e pessoas e suas circunstâncias, por isso matricial contribuição para a historiografia brasileira. Dividida em duas partes, a primeira delas cuida do Patrimônio, Cultura e Sociedade, ocasião em que os cultos autores se debruçam sobre os aspectos de preservação da memória de Bagé, como cidade suas instituições e seus acervos, como os da Santa Casa e seu cemitério; 214 SUMÁRIO Outras visões dos cânones bajeenses da família Tavares, de tanta importância para os fastos regionais; a imprensa feminina de Andradina de Oliveira; as práticas entre a população negra; a educação local sob os apanágios republicanos e castilhistas; a existência do Instituto de Belas Artes; e a Vila de Santa Thereza, que de certa forma representa um laço com temas da Segunda Parte, e em especial a presença do Visconde Ribeiro de Magalhães. Importa referir que a intenção genuflexa dos trabalhos busca “a valorização e a preservação da história e da memória bajeense (...) para que se possa compreender aspectos de estruturação e desenvolvimento da comunidade local”, concebendo as fontes documentais enquanto “um patrimônio coletivo de uma sociedade”, objetivo suficientemente valorizado pelo conteúdo dos artigos. 2. A parte seguinte se intitula Economia, Fronteira e Política, abrange 12 textos, também de grande hierarquia histórica, mas onde consigo ver, entre eles todos, um especial pano de fundo, exatamente uma das minhas indagações pela proeminência que devo ao apreço visceral ao solo onde nasci: a Fronteira, em todas as vicissitudes e glórias, não apenas como um mero marco topográfico, mas como espaço de alteridade, paz e afeição fraterna. A Fronteira Iluminada, na feliz acepção de Fernando Cacciatore Garcia, é exaltada por tantos estudos como os de Oswaldo Aranha, Bevilaqua, Guilhermino César, Barão do Rio Branco, Golin, Álvaro Soares, Souza Doca, Hélio Viana, Chasteen, Moisés Vellinho, Tarcísio Taborda e muitos outros, para ficar apenas na literatura brasileira. Gunter Axt, ao prefaciar a obra de Fernando C. Garcia, declara que a fronteira é uma região que envolve uma linha limítrofe, que pode ser geográfica, mas é, sobretudo cultural e simbólica, confundindo-se com a própria linha limítrofe; a torre de controle é uma construção que representa um devir histórico. Tudo aquilo que separa ou divide, diz o historiador, não é impermeável. Não é necessariamente a mesma de ontem e talvez não seja a de amanhã, mas um portal que muda o status das pessoas e das coisas. Pode libertar ou aprisionar, pode antagonizar. Mas pode também integrar. A existência de fronteira ampla e aberta, escrevi em texto jornalístico, que agasalha o território bajeense constitui significativa realidade geopolítica na topografia pátria. Carece de nitidez sinal que costume marcar alguma barreira formal entre as nações vizinhas. Nada nos separa, diria um orador contumaz. Há um fluxo natural de cá para acolá na medida que outro circula em roteiro invertido como se apenas mudassem sons ou costumes ao transpor a imaginária 215 SUMÁRIO Outras visões dos cânones bajeenses linha. Por deter, por formação profissional, também modestos conhecimentos das ciências, sustento que esse intercâmbio se assemelha à osmose biológica, fenômeno comum na vida dos seres vivos e que consiste na troca de líquidos através da membrana semipermeável das células de uma para outra conforme se altere a concentração dos produtos necessários à sobrevivência do indivíduo. A muitos chama atenção como esse fato encontra ressonância, e repetição, em episódios que ilustram a história rio-grandense; ou seja, como essa permeabilidade da fronteira está presente em numerosos eventos, onde brasileiros ou uruguaios migram com inteira liberdade, fazendo base ora aqui ou acampando lá segundo os seus interesses nacionais próprios, até muitas vezes conjugados no mesmo ideal, em fraternidade política a unificar sonhos específicos. Basta rememorarse a revolta farroupilha com as diásporas de Bento Gonçalves ou Neto; ou as incursões dos irmãos Saraiva em suas pugnas orientais; ou Joca Tavares, chefiando tropas binacionais que arrancaram da Carpintaria em 1893; ou Aparício, de quem se diz haver possuído um sítio em Bagé, haver participado de refregas estaduais, registrando alguns escritores, com alguma contestação, que os pais destes heróis uruguaios (Aparício, Gumercindo, Chiquito) por pouco não foram gerados aqui quando seu pai partiu de Lavras, o que transformaria Bagé na terra natal daqueles líderes, tendo mudado o rumo para Santa Vitória do Palmar ante o clima belicoso daqueles tempos. Afirma a professora Ieda Gutfreind, autora de obras importantes sobre a imigração judaica no Rio Grande do Sul, que a historiografia oficial gaúcha construiu um relato sobre fronteiras sempre ameaçadas, ou discurso da muralha que objetiva separar o que, por natureza, sempre foi apenas uma continuidade, ou seja, a vastíssima área da pampa. Segundo ela, é a teoria da fronteira linha, que releva os conflitos entre os impérios e depois entre países independentes, deixando de lado as naturais aproximações e trocas que sempre ocorrem nos dois lados de uma fronteira. Isso decorre da intenção de manter um Rio Grande brasileiro, com origem em Portugal e sobre o pertencimento do estado meridional do Brasil como uma possessão lusitana. O empenho foi sempre o de elaborar uma história que confirmasse as raízes portuguesas e um sentimento de brasilidade dos gaúchos, apoiando-se num nacionalismo em defesa da fronteira que faz exacerbar o sentimento pátrio sulino, o de um gaúcho brasileiro pioneiro dos sentimentos nativistas. Tal se reflete, 216 SUMÁRIO Outras visões dos cânones bajeenses para Gutfreind, numa gauchização dos imigrantes aqui chegados, que abdicam de suas etnias em prol desta homogeneização. O correto para a historiadora seria adotar-se a fronteira zona, propugnada por Jean Chesneaux, que valoriza mais a integração, o convívio, o contato e a aproximação dos lados, dando relevância à fluidez das fronteiras, o que eleva o sentimento de solidariedade internacional, a amizade entre os povos, a fraternidade, deixando de lado rivalidade, discórdias e conflitos. A professora Ana Luiza Reckziegel, ao explanar as relações diplomáticas entre Brasil e Uruguai nos eventos de 1893, aqui, e 1897, no lado oriental, demonstra que o governo do Rio Grande do Sul, em determinado período, conduziu com autonomia suas ações com o pais vizinho, até ignorando as orientações oficiais, postura que denomina como diplomacia marginal percebível nos movimentos revolucionários indicados. A instabilidade política no Rio Grande do Sul repercutiu no Uruguai não apenas pela situação limítrofe, mas pelo envolvimento direto dos orientais na contenda gaúcha, como a presença de Gumercindo e Aparício Saravia nas hostes federalistas. Esse trânsito espontâneo, de ligações comuns, de interação nos assuntos daqui e de lá, ostentada pelos homens da região nos ajudam a compreender as imbricações destes caudilhos nas querelas políticas dos dois territórios. A afirmação da historiadora passofundense fortalece a acepção pessoal de que exista entre Bagé e Aceguá uma fronteira osmótica pulsante, dinâmica, ativa, agora bem retratada pelos artigos que compõem essa obra significativa. 4. Como disse acima, consigo divisar na narrativa da estrada de ferro Bagé-Rio Grande, inclusive da discussão de seu traçado, feito por Maira Eveline Schimitz, fortes indícios de que sua construção levou em conta os interesses em ligar a fronteira ao mar, para a exportação dos produtos da região, bem como o aporte dos descarregados em Rio Grande. O artigo de Marcelo Santos Matheus sobre a escravidão na campanha gaúcha com a exploração por uma elite de criadores não descarta a existência do convívio também com o que acontecia no Uruguai, sabido da circulação entre os dois países dos cativos. E Aristeu Elisandro Machado Lopes, ao referendar os trabalhadores das charqueadas, traz ao proscênio a figura do Visconde Ribeiro de Magalhães que em sua empresa possuía empregados oriundos do Rio Negro e Tres Cerros, no Uruguai. A que se junta a percuciente pesquisa de Jonas M. Vargas que desvela 217 SUMÁRIO Outras visões dos cânones bajeenses o conhecido fato de que os rebanhos uruguaios transitavam para as charqueadas de Bagé e Pelotas até com alguma naturalidade, onde Bagé, segundo o autor, era um importante corredor de passagem, fazendo parte de um espaço econômico pecuário-escravista que se estendia ao interior do Uruguai até o complexo porto-charqueada localizado em Pelotas e Rio Grande. Saliente-se, como ele diz, que não se conhecem os inventários uruguaios de João da Silva Tavares, Visconde de Serro Alegre Tavares, como ainda o de João Antônio Martins. Gustavo Figueira Andrade, um dos idealizados deste livro e reconhecida autoridade, mercê de suas pesquisas e textos, no trato de assuntos referentes à família Silva Tavares, aqui em companhia de Aristeu Elisandro Machado Lopes, disseca, com talento, as relações de João Nunes da Silva Tavares, o Joca, com a cidade de Bagé no contexto da proclamação da República e da Revolução Federalista, episódios onde a presença do caudilho bajeense teve notória e destacada liderança. O que encontra ligação com os movimentos de Gaspar Silveira Martins, narrados por Mônica Rossato, político também visceralmente unido a Bagé, apontando o destaque dele como Deputado Provincial, Deputado Geral, Senador, Ministro da Fazenda, Presidente da Província e Conselheiro do Império. Essa peculiar situação de fronteira encaminha o estudo da presença do uruguaio Aparício Saraiva em Bagé, durante s revoluções uruguaias de 1896 e 1904, feito com erudição por Pablo Rodrigues Dobke; e matéria, que, com menor talento, o subscrevente ensaiou em artigos de jornal, focalizando mais a presença de Cândida Diáz, esposa do caudilho, e filhos do casal. Apontem-se como ainda apologéticos e exaurientes, os textos sobre as imigrações dos Valdenses, protestantes adeptos de Pedro Valdo, da cidade de Lion, considerados heréticos pela Igreja Católica e fugitivos para as regiões alpinas do norte da Itália. Alguns deles vieram para Argentina e Uruguai e para o Rio Grande do Sul, localizando-se em Porto Alegre, Pelotas, Bento Gonçalves e Bagé. Lembra o autor Arthur Engster Varreira que a passagem deste grupo migratório europeu se deu pelo espaço da fronteira platina, incluindo a região da campanha, trazendo a lembrança do relacionamento de alguns, como os Jannuzzi e Gianelli, com empresários como Guinle e Gaffrée, aqui o bajeense Cândido. Já Carlos Eduardo Piassini, ao cuidar da imigração alemã-russa, recorda os imigrantes teutosrussos que vieram se instalar em Aceguá, então pertencente ao município de Bagé, onde fundaram a Colônia Nova, em 1949. Eram da religião anabatista, portanto luteranos, de quem discordavam 218 SUMÁRIO Outras visões dos cânones bajeenses a respeito do batismo que para aqueles só devia ocorrer na idade adulta, divergindo de Lutero, Calvino e outros líderes protestantes. Uma das divergências com os anabatistas aconteceu na Holanda, sob a liderança do ex-padre católico Menno Simons, daí os “menonitas” que, em parte, depois se localizaram na Rússia, de lá se evadindo depois de Stálin. Daí o Brasil, Rio Grande do Sul e distrito de Bagé, hoje de Aceguá. Outra imigração relatada é dos sírios libaneses para Bagé, tratada por Júlio Bittencourt Francisco, autor inclusive de livro sobre o tema no Rio Grande do Sul, que relata a vinda deste núcleo para o Rio Grande do Sul, em 1890 e para Bagé. Cognominados de “turcos” pela população da época, na realidade eram oriundos da Síria e Líbano, tendo de adotar o passaporte da Turquia para viajarem. Júlio fez importante acervo de depoimentos com famílias de Bagé, chegando a um interessante panorama da cidade, costumes e vida de tais imigrantes. Convém encerrar com dois artigos que brilham como os demais. O esboço por uma história operaria de Bagé, contendo suas entidades características, é escrito por André Vinicius Mossate Jobim que parte do significativo número de trabalhadores em Bagé, entre a República e 1930, dedicando-se duas personagens que a marcaram pela tendência anarquista: Venâncio Pastorini Sobrinho e Dorval Lamotte. É que Bagé foi um reconhecido núcleo de Imprensa Anarquista, segundo revelou estudos pioneiros de meu saudoso amigo João Batista Marçal. Quando há muitos anos visitei um Centro Anarquista, existente em Vila Isabel, no Rio de Janeiro, ao referir Pastorini e sua ação proselitismo em Bagé, fui honrado depois, com a designação do nome dele para uma das estantes da biblioteca lá existente. Foi figura muito bem descrita pelo artigo, como ainda Dorval Lamotte. O autor conta a fundação da primeira associação operária, a Sociedade Protetora dos Artistas, de 1883, depois veio a Sociedade Operária de Socorro Mútuo e Beneficente, de 1898, seguindo-se outras, sindicalistas ou anarquistas. Essa espécie de associação se reproduziu muito em Bagé, inclusive algumas de italianos, portugueses, espanhóis e outras, entidades muito elogiadas pelo caráter associativo e protetor. Outro trabalho criativo e original foi a genealogia da família Delabary, A partir da profícua investigação desencadeada pelo descendente Diego Teixeira Delabary é um trabalho que alia coragem, denodo e muita transpiração, como é ali narrado por ele. E a partir dos dados, o historiador bajeense Cláudio Antunes Boucinha, cujo talento só é superado por sua modéstia e discrição, desenvolve uma rede de informações e ilações com acontecimentos históricos vividos por 219 SUMÁRIO Outras visões dos cânones bajeenses muitos componentes da família Delabary. Boucinhas foi, a meu juízo, um dos primeiros historiadores, além de alguns pós-graduados, a trabalhar com as informações da internet, tornando-se um exímio pesquisador virtual e que deu dignidade e crença em tais análises, bastando indicar a massiva bibliografia, onde além de escritores de prestígio e obras de relevo se acham os caminhos pelo espaço internético, todos apropriados e sérios. 5. O projeto capitaneado por estudiosos de escol e protegido por entidades de referência transformou-se, pela mágica qualidade de seus escritores e textos, em obra que envaidece a pesquisa e engrandece a cultura histórica do país. Mas, sobretudo, entalha um diamante coruscante e raro na coroa da Rainha da Fronteira. Porto Alegre, maio de 2021. (*). Mestre em Direito, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul e Diretor do Memorial do Judiciário do Estado. 220 SUMÁRIO 221 SUMÁRIO FERROVIA NA PROVÍNCIA DE SÃO PEDRO: O CASO DA ESTRADA DE FERRO RIO GRANDE – BAGÉ 1 Maira Eveline Schmitz2 222 SUMÁRIO Ferrovia na província de São Pedro: o caso da estrada de ferro Rio Grande - Bagé 1 2 Introdução O século XIX, de forma geral, pode ser considerado um momento de transformação, mais do que de estruturas políticas ou econômicas, das formas de ver, sentir e estar no mundo. Palco para novidades produzidas pelo homem, foi o século da revolução industrial, do desenvolvimento da técnica, do fortalecimento do regime do tempo e do relógio e da aproximação dos mundos. Inúmeros ícones desta “virada moderna”, assim, podem ser citados, como os motores a vapor para a indústria, a iluminação a gás, o telégrafo, o telefone, a eletricidade, a fotografia, as estradas de ferro. Acelerando a comunicação e o transporte e criando confortos que a nova classe média requisitava, estes melhoramentos são representantes de um novo modo do ser social e cultural no ocidente. Reconhecendo que este momento de transição se apresenta – e se representa – por meio de variados símbolos, Peter Gay defende que, de todas as invenções do século XIX, são as estradas de ferro as que melhor exemplificam a “sensação vertiginosa” que possuíam as pessoas “de viver numa tempestade de prodigiosas transformações daquilo a que estavam habituados” (GAY, 2002, p. 164). As ferrovias ocasionaram transformações não somente por sua existência física e “real”, desenvolvendo o transporte, propiciando ou impedindo a 1. Este artigo é resultado da dissertação de mestrado intitulada “Nas asas do vapor: construção do espaço ferroviário em Pelotas/RS (fim do séc. XIX – início do séc. XX)” defendida pela autora no PPGH-UFPel, em 2013. O texto foi originalmente publicado nos Anais da X Mostra de Pesquisa do APERS: produzindo história a partir de fontes primárias, Porto Alegre: Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas - CORAG, 2013, p. 191-208. 2. Mestra em História, Doutoranda PPGH-UFSM/ Docente IFFar – campus Santa Rosa. 223 SUMÁRIO Ferrovia na província de São Pedro: o caso da estrada de ferro Rio Grande - Bagé urbanização. Os trens passaram a adentrar a imaginação das pessoas, modificando a forma como estas se afinavam com o tempo, com a velocidade e seus estímulos e com o próprio espaço. Metaforicamente falando, apesar de as ferrovias serem um objeto histórico por excelência, pois lidam e interferem com os dois principais conceitos da História – o tempo e o espaço – os estudos sobre esta temática, no Rio Grande do Sul, ainda não obtiveram um relevo considerável. Poucos são os esforços em construir reflexões e narrativas sobre o seu processo de instauração, desenvolvimento e usos, principalmente no tocante aos seus primeiros anos de funcionamento. Esta escassez de pesquisas, além de acarretar em uma lacuna historiográfica, traz efeitos sobre a própria organização das fontes primárias sobre o tema. Não ignorando os esforços de alguns arquivos específicos – como o Museu do Trem, na cidade de São LeopoldoRS – a documentação sobre a ferrovia no Estado se encontra bastante dispersa e, principalmente, pouco conhecida. Se a falta de sistematização documental reflete dificuldades para as pesquisas, a falta de pesquisas acaba por manter esta situação, uma vez que estes acervos não são explorados em toda a sua potencialidade. Levando em conta esta situação, o presente trabalho tem por objetivo traçar um histórico das primeiras discussões sobre a estrada de ferro Rio Grande – Bagé, localizada na região meridional do Rio Grande do Sul. Pretende-se, assim, contribuir para a construção do saber relativo à rede férrea no Estado. A Ferrovia na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul A história das estradas de ferro no Rio Grande do Sul, conforme o inventário das estações ferroviárias elaborado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (IPHAE), tem início em 1866, com os debates na Assembleia Provincial acerca da construção de uma linha que interligasse a zona de colonização alemã, no vale do Rio dos Sinos, com a capital Porto Alegre (IPHAE, 2002, p. 19). O direito de construção foi cedido a uma empresa inglesa, sendo inaugurada a primeira seção da estrada em 1874. De acordo com o historiador Caryl Eduardo Jovanovich Lopes, “o assunto dos transportes era a tônica na pauta da Assembleia” e seguindo a febre dos trilhos de ferro que varria o Império brasileiro, 224 SUMÁRIO Ferrovia na província de São Pedro: o caso da estrada de ferro Rio Grande - Bagé a solução encontrada foi a fundação de uma estrada de ferro até Hamburger-Berg – atual Novo Hamburgo (LOPES, 2002, p. 70). Posteriormente a esta linha pioneira, foi sendo implantada na Província uma rede de estradas de ferro, seguindo quatro linhas principais: as Estradas de Ferro Porto Alegre – Uruguaiana, Rio Grande – Bagé, Santa Maria – Marcelino Ramos e Barra do Quarai – Itaqui. “A ferrovia rio-grandense era estratégica e de incontestável poder político, importante elemento de repressão ao contrabando nas fronteiras do Uruguai e Argentina, valioso instrumento para a atenção as colônias de imigrantes e, por isso, meta do governo gaúcho” (2002, p. 70). Focalizar-se-á, aqui, a linha que vai do Rio Grande à Bagé por sua importância no sul do Estado e por ser a primeira via férrea a passar pela região. Esta estrada fazia parte do projeto inicial da rede ferroviária para a Província, apresentada em 1872 pelo engenheiro J. Ewbank da Câmara, sendo aquela denominada por ele de “Tronco Sul”. Sua construção foi autorizada a partir de um decreto imperial, em 1873, juntamente com a linha Porto Alegre – Uruguaiana. A concessão de sua construção passou por vários nomes, começando pelo empresário Hygino Corrêa Durão, que a princípio parece ter desistido dos direitos. A concessão passa para a Compagnie Imperiale des Chemins de Fer du Rio Grande do Sul, de origem belga, a qual em 17 de fevereiro de 1883 foi autorizada a fundir-se com a Southern Brazilian Rio Grande do Sul Company. Foi a partir desta fusão que, afinal, ocorreu a construção da linha (IPHAE, 2002, p. 20). A Southern Brazilian Rio Grande do Sul Company deteve os direitos da estrada até 1905. Neste ano, o controle passa para a Compagnie Auxiliare des Chemins de Fer au Brésil, até ser encampada pelo governo estadual em 1920, federalizada em 1957 e desestatizada, voltando ao capital privado, ao longo da década de 1990. Os primeiros contratos, projetos e discussões datam da década de 1870 e podem ajudar a compreender as dinâmicas que de certa forma determinaram o próprio trabalho das companhias que prosseguiram na concessão. Como afirma Lopes, a rede ferroviária gaúcha, ao contrário da tendência geral brasileira, foi fruto de um planejamento. Ela “não nasceu da união ocasional de vias, mas, sim, como resultado de um projeto fundamentado que se tornou realidade nas últimas décadas do século XIX e princípios do XX” (LOPES, 2002, p. 70). A ideia das vias férreas como uma rede é abordada também por Lidia Maria Possas, no seu estudo sobre a Noroeste paulista, aonde esta aparece como discurso somente nas décadas de 30 e 40: 225 SUMÁRIO Ferrovia na província de São Pedro: o caso da estrada de ferro Rio Grande - Bagé Ela [a rede férrea] deveria ser pensada como “artérias” que conduzem o fluxo sanguíneo, alimentando todo o organismo nacional. Essa ideia compartilhava também com a possibilidade de os trilhos energizarem o papel das cidades grandes, alimentando, provendo as menores e assim realizando as trocas comerciais e econômicas, intensificando a propagação de ideias e alargando progressivamente o horizonte nas localidades mais isoladas, pela penetração de focos de civilização. Era a completa racionalidade em prol da domesticação do sertão selvagem e bárbaro. (POSSAS, 2001, p. 88) Se na Europa ocidental de meados do XIX, a ferrovia solidifica um ideário de mudança, acompanhando uma série de transformações técnicas e científicas, no Brasil as estradas de ferro ganham ares de “energizadoras”, literalmente transportando os benefícios e a civilização pelos locais mais incautos. Houve uma crença muito fortalecida de que os caminhos de ferro, ao adentrarem sertões, selvas e regiões pouco habitadas, poderiam levar em seus trilhos a cultura, os modos e a condição de vida das “civilizações”. E na região sul da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul não seria diferente. A atuação esperada das linhas férreas era em relação principalmente ao fortalecimento comercial, industrial e econômico. Ao lado disto, evidentemente, o desenvolvimento das localidades, fossem elas cidades consolidadas, ou povoações necessitando de um impulso. Não faltavam, assim, motivações bem fundamentadas para a construção da estrada de ferro. As pessoas ainda as menos versadas nos conhecimentos econômicos e administrativos não desconhecem que as fáceis vias de communicação marítimas, fluviaes e terrestres são no presente século um dos principais elementos do desenvolvimento das industrias e progresso da riqueza das nações. É, portanto, certo, e incontestável que se devem promover e auxiliar todas as vias de communicação entre os centros productores e os mercados commerciaes e consumidores, e principalmente em paizes novos como o Brasil, onde o systema de viação agora é que se começa a ensaiar.3 Este fragmento foi retirado de um pequeno livreto, Considerações sobre a directriz da Estrada de Ferro da cidade do Rio Grande a Alegrete na província do Rio Grande do Sul, editado em 1874 3. UM RIO-GRANDENSE na corte. Considerações sobre a directriz da Estrada de Ferro da cidade do Rio Grande a Alegrete na província do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Typographia Universal de E. & H. Laemmert, 1874. p.3. Acervo do Centro de Documentação e Obras Valiosas da Bibliotheca Pública Pelotense. 226 SUMÁRIO Ferrovia na província de São Pedro: o caso da estrada de ferro Rio Grande - Bagé no Rio de Janeiro e assinado somente como “Um Rio-Grandense na corte”. As razões específicas de sua publicação serão abordadas mais adiante, mas neste momento já se pode perceber a coadunação do autor com a noção que permeava o tema das ferrovias e dos transportes neste período. A interligação dos territórios era a tônica do momento, visando fortalecer o ideal de nação e de Império. Em seu livro Estradas de ferro no Brazil, José Gonçalves de Oliveira aponta também esta característica. Particularmente, coloca as linhas do Rio Grande do Sul, ao lado da que liga São Paulo e Mato Grosso, como as que merecem a atenção do governo mais do que todas as outras, “por interessarem directamente a integridade da nação”4. Lidia Maria Vianna Possas explica de certa forma esse ideário: No Brasil, no entanto, esse conjunto de artefatos de ferro, os trens, os trilhos e as locomotivas com suas estações feitas de vidro e ferro não foram associadas à arte, como “monumentos móveis”, exaltação estética do espetáculo fabril da modernidade urbano-industrial. Para justificar o alto custo de seus investimentos e defender traçados na maioria das vezes decididos pelas particularidades e interesses pessoais, o projeto era ajustado a imagens fortes de integração nacional e continental e de uma civilização que chegava para libertar o país da condição de atraso e distribuir condições de riqueza. (POSSAS, 2001, p. 70) No Brasil, a ferrovia e todos os seus elementos não chegam para consolidar e fortalecer o momento industrial e urbano. Pelo contrário, por muito tempo foram a esperança do desenvolvimento desta condição moderna para o país, de possibilitar a criação de uma indústria interligada à produção agrícola e, por consequência, estimular o crescimento de cidades. Mas estas escolhas não se davam de forma aleatória, ou baseadas no que possivelmente poderia ser “o melhor para a nação”; como todo empreendimento, muitos interesses pessoais e privados se encontravam em jogo, os quais necessitavam forjar ideários e discursos que os legitimassem de forma a ser aceitos pela massa populacional. Se esta noção apresentada é mais genérica, as peculiaridades locais da Província não deixam de receber ênfase nos escritos: Não há uma só pessoa que, tendo viajado pelo centro do Brasil, deixe de admirar a fertilidade do nosso sólom que produz todas as espécies de cultura nas diversas zonas 4. OLIVEIRA, José Gonçalves. Estradas de ferro no Brazil. 2ªed. São Paulo: Casa Vanorden, 1912. Acervo do Museu do Trem, São Leopoldo. 227 SUMÁRIO Ferrovia na província de São Pedro: o caso da estrada de ferro Rio Grande - Bagé que o atravessão; ao mesmo passo que observa a carestia dos gêneros mais communs da nossa alimentação, porque os lavradores deixão de planta-los em grande escala por ser difficil e caro o seu transporte para as cidades populosas e commerciaes, e por isso não chega o producto das vendas paras despezas dos fretes: todos são unanimes e concordes em que a mais urgente necessidade do Brasil é traçar e construir vias férreas, e de rodagem em todas as direções dos centros populosos das nossas cidades centraes e marítimas.5 Comparando o solo gaúcho ao restante do país, o autor consegue tornar a produção agrícola da Província o principal motivo para a construção de uma ferrovia e, ao mesmo tempo, o grande problema a ser solucionado por ela. Demonstra que a região tem as condições para suprir as necessidades comerciais de uma estrada de ferro, mas ao mesmo tempo necessita dela – é uma motivação – para que efetive tal capacidade. No relatório publicado pelo engenheiro chefe Eduardo José de Moraes, o tema produtividade também é apresentado. Ele aponta que em um relatório do Ministério da Agricultura do ano de 1877 foi afirmado que a região sul, ao contrário da zona norte da Província, por mais que parecesse rica, criadora e industrial por ora, não teria condições de manter uma estrada de ferro futuramente. Sendo assim, a construção desta deveria se dar com base não nos critérios produtivos, mas somente como meio de defesa territorial. Ao que o engenheiro Eduardo José de Moraes rebate: ...a região entre Pelotas e Bagé, por Cangussú, póde manter na actualidade uma estrada de ferro, da mesma bitola adoptada na linha do Norte, por ser ella immediatamente productiva, o que aliás nunca foi demonstrado para a denominada estrada de ferro do Norte. A construcção da estrada de ferro entre Pelotas e Bagé (...) se é grande a sua utilidade sob o ponto de vista commercial, maior é ainda sua necessidade sob o ponto de vista militar.6 Há uma combinação, nesta perspectiva, das condições comerciais produtivas e estratégicas militares. Ainda que os pontos de vista não concordem quanto ao grau de efetividade de cada um deles para uma estrada de ferro no Sul, ambos são sempre citados e levados em consideração nos motivos da construção da linha. A 5. Um Rio-Grandense na corte. Considerações sobre a directriz... p.4. 6. MORAES, Eduardo José. A estrada de ferro de Pelotas a Bagé (Memória apresentada á consideração do governo imperial). São Paulo: Typographia de Jorge Seckler, 1878. p.4. Acervo do Centro de Documentação e Obras Valiosas, Bibliotheca Pública Pelotense. 228 SUMÁRIO Ferrovia na província de São Pedro: o caso da estrada de ferro Rio Grande - Bagé comparação entre Norte e Sul mostra que os interesses pela ferrovia estavam presentes em toda a Província, buscando sua relevância e muitas vezes se confrontando. O discurso, no entanto, acaba sempre pendendo para a união dos territórios e José Eduardo de Moraes termina seu ponto argumentando que, após a construção de ambas as vias, um ramal que as interligue poderia – e deveria – ser efetivado. Chama a atenção na citação acima, ainda, o adendo “por Cangussú” como ligação entre as cidades de Pelotas e Bagé. O fato de a localidade ter sido mencionada pelo engenheiro, mesmo não sendo um ponto considerado nos projetos iniciais, leva a análise para outra questão: a do traçado que deveria tomar a Estrada de Ferro do Rio Grande a Bagé e os inúmeros debates e interesses que permearam esta escolha. A estrada de ferro do Rio Grande a Bagé: debates sobre o traçado O primeiro contrato para os estudos e construção da linha do sul da Província foi firmado entre o Governo Imperial e o empresário Hygino Corrêa Durão, em 10 de setembro de 1873, sendo comprovado por decreto em março de 1874: DECRETO N. 5565 - DE 14 DE MARÇO DE 1874 Approva o contracto para explorações e estudos da linha ferrea da Cidade do Rio Grande até a Cidade de Alegrete. Hei por bem Approvar o contracto celebrado com Hygino Corrêa Durão, para explorações e estudos relativos á projectada linha ferrea de que trata a Lei nº 2397 de 10 de Setembro do anno passado, na parte que se dirige da Cidade do Rio Grande até a Cidade de Alegrete, sob as clausulas que com este baixam, assignadas por José Fernandes da Costa Pereira Junior, do Meu Conselho, Ministro e Secretario de Estado dos Negocios da Agricultura, Commercio e Obras Publicas, que assim o tenho entendido e faça executar. Palacio do Rio de Janeiro em quatorze de Março de mil oitocentos setenta e quatro, quinquagesimo terceiro da Independencia e do Imperio.Com a rubrica de Sua Magestade o Imperador. José Fernandes da Costa Pereira Junior.7 7. BRASIL. Decreto nº 5565 de 14 de Março de 1874, o qual approva o contracto para explorações e estudos da linha ferrea da Cidade do Rio Grande até a Cidade de Alegrete. Disponível em <<http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=57089&norma=72941>> acesso em jan. 2012. 229 SUMÁRIO Ferrovia na província de São Pedro: o caso da estrada de ferro Rio Grande - Bagé O decreto imperial que firma a concessão de Hygino Corrêa Durão, ao lado do relatório (1874) e da memória justificativa (1876) elaborados pelo empresário, é de suma importância no contexto documental e histórico sobre a linha Rio Grande – Bagé. Seguiuse, assim, um método de análise que visou confrontar e comparar a posição de Durão em suas principais questões – perspectiva que teoricamente seria a “oficial” – com a abordagem dada a estas por relatórios, impressões e correspondências de outras origens. Ao fim e ao cabo, espera-se conseguir perceber as circunstâncias, tensões e posições que envolveram este empreendimento férreo, pelo menos de forma a clarificá-lo um pouco. Quanto ao traçado da linha do Rio Grande a Bagé, este estava pré-delimitado, pelo menos quanto aos principais pontos, no próprio decreto de 1874. Diz o contrato firmado por Durão e o Ministério da Agricultura, na condição II: A estrada dividir-se-ha provisoriamente em duas partes. A primeira parte será da Cidade do Rio Grande á Cidade de Bagé constando de cinco secções, sendo a 1ª do Rio Grande á Cidade de Pelotas, a 2ª de Pelotas á margem do rio Piratinim, a 3ª do Piratinim ás Pedras Altas, a 4ª das Pedras Altas a Candiota, a 5ª do Candiota a Bagé; a segunda parte será de Bagé ao Alegrete constando de tres secções, sendo a 1ª da Cidade de Bagé a D. Pedrito, a 2ª de D. Pedrito a Santa Maria do Rosario, e a 3ª de Santa Maria do Rosario a Alegrete. O Governo fará neste plano as modificações que julgar convenientes.8 Percebe-se que a parte que vai do Rio Grande até Bagé, nesse momento, ainda segue uma determinação semelhante aos primeiros projetos apresentados na assembleia provincial por Ewbank da Câmara. Constituiria nominalmente uma parte da estrada maior até Alegrete, a original “Tronco Sul”, que percorreria as fronteiras meridionais da Província. Hygino Corrêa Durão ficou incumbido pelo decreto de fazer “todos os estudos technicos necessarios” e apresentar “planos definitivos de toda a linha em condições que habilitem para encetar a locação e as construcções”, entregando posteriormente “a construcção de plantas e perfis das linhas estudadas” e organizando os “orçamentos e memorias descriptivas do projecto”. De modo geral, os pontos denominados no decreto acabaram se mantendo nestes relatórios e memórias. 8. BRASIL. Decreto nº 5565 de 14 de Março de 1874... 230 SUMÁRIO Ferrovia na província de São Pedro: o caso da estrada de ferro Rio Grande - Bagé É importante dar ênfase à última frase: “O Governo fará neste plano as modificações que julgar convenientes”, o que abriu brechas para contestações ao projeto delineado pelo contratante. Fato este percebido e utilizado como justificativa para a elaboração do já mencionado Considerações sobre a directriz da Estrada de Ferro da cidade do Rio Grande a Alegrete na província do Rio Grande do Sul (1874). Ao deixar clara a possibilidade de mudanças no trajeto, o Governo autoriza e incita as diferentes opiniões a se manifestarem. Mesmo amenizando sua posição, ao afirmar que não censura a concessão feita pelo Governo Imperial ao empresário, o autor das Considerações visa com estes escritos comprovar que o traçado escolhido por Durão não responde aos interesses comerciais, industriais, estratégicos e militares da Província. Afiança sua posição alegando ser esta a “nossa opinião e a de todos quantos conhecem aquellas localidades” e “o que a plena luz tem sido demonstrado na imprensa do Rio Grande de todas as cores e credos políticos”. Comprovar que esta não seria uma ideia simplesmente pessoal, mas consensualmente aceita, foi uma tentativa de lhe dar certo respaldo social. As vias de communicação nas províncias limitrophes com os Estados confinantes devem ser muito estudadas pelo Governoantes de determinar-lhes a direcção que devem seguir, porque nessas estradas se devem attender as conveniências dos transportes e aos meios de defesa nas occasiões de guerras com os Estados limitrophes; e nos parece que o Sr. Conselheiro Ministro da Agricultura, Commercio e Obras Publicas não cogitou destes princípios quando firmou o contracto com o Sr. Durão. O Governo Imperial, sem oppôr embaraços ao systema de viação terrestre, deve ser muito cauteloso na concessão de caminhos de ferro para a província do Rio Grande, e para as outras que com esta limitão o Imperio com as Republicas que o circumdão; jamais se deve decidir sómente em vista das informações e planos apresentados pelos pretendentes de semelhantes emprezas, porque assim procedendo evitará complicações futuras e prejudiciaes aos interesses que lhe cumpre salvaguardar.9 O autor dá forte ênfase ao caráter eminentemente bélico da região escolhida por Hygino Durão e não poupa críticas, mais do que a este, ao Ministro da Agricultura, por ter aceitado tais termos. Este fato, somado à possível fraca capacidade de atendimento comercial e industrial, atestaria que a diretriz escolhida não compensa nenhum 9. Um Rio-Grandense Na Corte. Considerações sobre a directriz... p.5-6. 231 SUMÁRIO Ferrovia na província de São Pedro: o caso da estrada de ferro Rio Grande - Bagé dos princípios de uma via férrea. Chega mesmo de forma irônica a afirmar que o Ministro não teria nenhum conhecimento sobre os territórios em questão – ainda que tivesse sido presidente da Província alguns anos antes – e que, portanto, provavelmente teria se deixado convencer de tal traçado pelo empresário. O interesse de Hygino Côrrea Durão em manter este trajeto, na perspectiva “de simples intuição” das Considerações, se justificaria pelo desejo de que a estrada percorresse próxima às minas de carvão de Candiota, de cuja exploração também era o concessionário. O desgosto do autor parece ser tão profundo que não lhe permite evitar o cômico comentário de que o empresário “parece que não calculou bem os seus interesses”, não sendo o traçado a melhor escolha até mesmo para esta motivação10. Sugere, então, que seria muito melhor que S. Ex.(...) não devia sómente ouvir a parte interessada, porém sim as pessoas mais competentes e praticas dos municípios que tinha de percorrer a estrada, e até mesmo, encontrando divergência de opiniões, lhe cumpria mandar examinar os pontos divergentes por engenheiros ao serviço de seu ministério, ou pelos engenheiros da província; e as despezas que fizesse com estes estudos, devião correr por conta do Sr. Durão, que requeria esse privilegio.11 Recorrer ao governo imperial, nos termos do contrato, parece ser a única alternativa legal para quem buscasse alterações no projeto. Os pedidos para que outras partes e interesses fossem ouvidos eram constantes, mas os pedintes não se limitavam a isto. O autor das Considerações, assim como outros, sugeriu sua própria noção de melhor traçado: “os homens mais considerados e práticos dos municípios de Pelotas, Cangussú, Piratiny e Bagé são unanimes em pensar que a estrada de ferro de Pelotás á Bagé deve seguir a directriz da antiga estrada de rodagem”12, uma vez que “os negociantes de Bagé sempre conduzirão as mercadorias compradas em Pelotas em carretas puxadas por bois por uma estrada geral, que em qualquer estação do anno offerece fácil trajecto”13. A ideia era fazer com a estrada de ferro seguisse pelos mesmos territórios percorridos pela estrada de rodagem, os quais eram mais habitados e com uma produção agrícola fortalecida. Eis o traçado sugerido: 10. Um Rio-Grandense Na Corte. Considerações sobre a directriz... p.11. 11. Um Rio-Grandense Na Corte. Considerações sobre a directriz... p.11-12. 12. Um Rio-Grandense Na Corte. Considerações sobre a directriz... p.20. 13. Um Rio-Grandense Na Corte. Considerações sobre a directriz... p.24. 232 SUMÁRIO Ferrovia na província de São Pedro: o caso da estrada de ferro Rio Grande - Bagé Esta estrada, que é percorrida há mais de meio século, se dirige da cidade de Pelotas atravessando as 38 ou 39 leguas que as separão de Bagé sempre por cima de collinas que se ligão entre si nos municípios de Pelotas, Cangussú, Piratiny e Bagé. Começa por cima da coxilha (collina) que principiando nas proximidades de Pelotas vai passar junta da Villa de Cangussu, e desta continuando pela coxilha de Santo Antonio, que passa a uma légua de distancia da Villa de Piratiny, e á mesma distancia da freguezia da Luz das Cassimbinhas até encontrar a coxilha das Velledas, e por esta segue até despontar o arroio de Candiota, entrando depois na coxilha da Bolena e d’ahi até Bagé.14 A principal justificativa para tal trajeto é reforçada várias vezes ao longo do tempo: a supremacia comercial e estratégica frente ao projeto de Hygino Corrêa Durão. E o “rio-grandense na côrte” termina sua proposição pedindo que o Ministro da Agricultura “nomeie uma Comissão de Engenheiros de sua confiança para irem fazer um reconhecimento sobre as directrizes que apontamos”15 a fim de verificar os argumentos. Neste ponto, novamente se observa o conhecimento que possui o autor do decreto que delimita os termos da concessão. Diz a condição XI do Contrato: “É livre ao Governo, em todo o tempo, mandar Engenheiros de sua confiança acompanhar os trabalhos a fim de examinar se são executados com proficiencia e methodo, e a precisa actividade”16. O governo, desta forma, realmente detinha o poder de inspecionar os estudos e nomear uma equipe de engenheiros responsável para tanto. O livreto analisado acima foi publicado com a data de 1º de julho de 1874. Já no fim do mês de março, no entanto, encontramse correspondências entre a Repartição de Obras Públicas da Província e o governo imperial, falando sobre um suposto pedido de acompanhamento dos trabalhos, onde o assunto principal é justamente a probabilidade do traçado que passasse pelas localidades de Canguçu e Piratini ser mais vantajoso do que o que cruzaria o Passo de Maria Gomes, Pedras Altas e Candiota. Percebe-se que Rio Grande, Pelotas e Bagé são pontos incontestes, ficando a discussão centrada no trecho que ligaria estas duas últimas cidades. 14. Um Rio-Grandense Na Corte. Considerações sobre a directriz... p.11. 15. Um Rio-Grandense Na Corte. Considerações sobre a directriz... p.31. 16. BRASIL. Decreto nº 5565 de 14 de Março de 1874... 233 SUMÁRIO Ferrovia na província de São Pedro: o caso da estrada de ferro Rio Grande - Bagé Em correspondência do dia 28 de março de 1874, expedida pela Repartição em Porto Alegre, têm-se detalhadas as duas possibilidades: Há duas únicas direcções a seguir, e são aquellas que vem na planta designada com as cores carmesim e azul. (...) Se partindo de Pelotas seguisemos a direcção carmesim iremos passar o rio Piratinim no ponto C. (passo de Maria Gomes). Seguindo pela direcção da estrada d’aquella cidade a de Jaguarão até o ponto em que ella muda de direcção para tomar a Freguesia do Herval ou suas proximidades a buscar uma subida suave para a serra dos Tapes pela ramificação conhecida pelo nome de Pedras Altas e por ella decaer ao passo do arroio Candiota. Si se toma outra direção sobe-se a serra dos Tapes no ponto em que ella mais se approxima da cidade de Pelotas, segue se pelo seu dorso passando pela Villa de Cangussu e em ponto próximo á Villa do Piratinim até a Capella da Luz, ponto de inserção da serra dos Tapes com o seu contraforte Coxilha Grande, podendo d’ali ou descer para Candiota ou seguir pelo contraforte até a cidade de Bagé. Esta ultima hypothese tem a seu favor a ausência completa de rios e arroios, mas tem contra si não só um maior desenvolvimento de estrada como também o afastamento d’ella do arroio Candiota, ponto interessante por estae n’elle situado o mais importante jasigo carbonífero da Provincia.17 Observa-se que a dúvida a pairar pela Província era praticamente a mesma, o que pode atestar a afirmação do “Um rio-grandense na corte” de que o assunto vinha sendo fortemente discutido pelos interessados e entendidos, bem como pela imprensa. A correspondência, infelizmente, não identifica os responsáveis pela explanação dos dois traçados e também não estava acompanhada da planta mencionada. A partir destas breves explanações, pode-se observar que o fato da necessidade da construção de uma estrada de Ferro que ligasse Pelotas a Bagé – podendo partir de Rio Grande – era unânime nas opiniões. O que ainda divergia era o melhor traçado, as localidades a serem atendidas, os interesses que possuíam maior força nos cenários político e econômico. Como afirma Possas, “os caminhos de ferro venceram as resistências dos incrédulos sem, no entanto, eliminar a constante oposição perante os gastos e privilégios que eram concedidos e que, na maioria das vezes, tinham caráter eminentemente político” (POSSAS, 2001, p. 69). 17. CORRESPONDÊNCIA. Repartição das Obras Publicas Provinciaes em Porto Alegre 28 de março de 1874. 234 SUMÁRIO Ferrovia na província de São Pedro: o caso da estrada de ferro Rio Grande - Bagé A condição XXXVI do Contrato firmado por Hygino Corrêa Durão pode auxiliar a pensar sobre esta questão, ao tratar sobre as indenizações dos terrenos: O emprezario fica obrigado a pagar aos proprietarios dos terrenos atravessados pela via-ferrea todas as indemnizações a que tiverem direito na fórma da Lei. Assim responderá sempre pelas bemfeitorias que estragar e pelo valor do solo, quando o proprietario provar com documentos authenticos que o primitivo titulo de dominio directo ou util expressamente o isentava de prestar-se ás servidões publicas. Cede-lhe o Governo gratuitamente os terrenos nacionaes que fôr necessario occupar com o leito da estrada, estações, depositos e mais accessorios indispensaveis ao trafego.18 O empresário, pelo decreto, teria livre acesso aos terrenos nacionais, ou seja, aos que já eram de posse do Império – ou de posse de ninguém. A questão se complexificaria quando, para efetivar a construção da linha, fosse necessário expropriar terras de particulares, os quais nesta região da Província eram geralmente grandes proprietários estancieiros. A escolha do traçado – sendo uma hipótese que não se pode comprovar por enquanto – poderia ter, assim, relação também com quais eram estes proprietários que viriam a receber as indenizações. Teriam grandes influências políticas e econômicas, a ponto de conseguir fazer a estrada passar por suas terras? Possuíram relações fraternais e amigáveis com Hygino Corrêa Durão? Ou ainda, por outro lado, essas terras não teriam sido apropriadas por ninguém que pudesse atestar a posse, podendo o empresário diminuir o valor total das indenizações? No momento, são somente perguntas. A falta de respostas conclusivas não significa, porém, que elas não ajudem a pensar e atestar o quanto os interesses particulares influenciavam no empreendimento público. Se as motivações privadas eram visíveis, as de caráter público também se faziam manifestar. As câmaras municipais de Canguçu e Piratini aplicaram, assim, seus esforços a fim de mudar a traçado da linha férrea. Em correspondência do dia 19 de maio de 1874, assinada por José Francisco dos Santos Queima – ajudante da comissão fiscal das estradas de ferro –, fica-se sabendo que os engenheiros José Maria dos Campos e Alexandre da Silva Brandão realizaram seus estudos a 18. BRASIL. Decreto nº 5565 de 14 de Março de 1874... 235 SUMÁRIO Ferrovia na província de São Pedro: o caso da estrada de ferro Rio Grande - Bagé fim de comprovar a superioridade do traçado alternativo, a passar por aquelas localidades.19 Em 23 de julho do mesmo ano, segue outro ofício também de Santos Queima com o pedido das duas câmaras para que se mude efetivamente o traçado.20 Alegam, sobretudo, que Hygino Corrêa Durão deve ser obrigado a realizar os estudos efetivos naqueles territórios. Baseiam-se na condição VIII do Contrato, a qual determina que quando se apresentassem duas ou mais direções que oferecessem vantagens proximamente iguais, o empresário fica incumbido de realizar os estudos em cada um delas, submetendo os respectivos planos e orçamentos21. Não foram encontradas fontes que demonstrem que estes estudos foram realizados por Hygino Corrêa Durão. Ao contrário, em 1874 é publicado seu relatório e em 1876 suas memórias, ambos tratando somente do traçado originalmente proposto. A discussão pela linha, como se observa, segue na mesma direção. Contudo, aqui outra questão pode ser levantada: o papel dos engenheiros na validação dos argumentos. De acordo com Possas, Como entre os europeus, os trilhos no Brasil vieram reforçar a crença nas virtudes da técnica e da ciência, e esses profissionais, identificados como “doutores”, com seus argumentos competentes, passaram a subordinar tudo e todos, assumindo, tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo, a condução da hierarquia administrativa da ferrovia, das oficinas ao controle de toda a extensão da linha com seus homens e mulheres. (POSSAS, 2001, p. 85) O engenheiro chefe da estrada de ferro do Rio Grande a Bagé, nesse momento, era Eduardo José de Moraes, que de acordo com o contrato, em sua condição VI, foi nomeado perante aprovação do governo22. Estes profissionais da construção, “bacharéis”, adquiriram com sua formação um status de conhecimento indiscutível. Praticamente todos os argumentos em prol de um ou outro traçado levavam em consideração o aval de um engenheiro – para validá-lo – ou a falta de estudos com a presença de um, para contestá-lo. Esses 19. CORRESPONDÊNCIA. 19 de maio. Porto alegre 18 de Maio de 1874. Illmo. Exmo Srº Dr. João Pedro de Carvalho Moraes. Presidente da Provincia. Jose Francisco dos Santos Queima, Ajudante da Commissão fiscal das estradas de ferro. 20. CORRESPONDÊNCIA. Repartição das obras públicas provinciaes em Porto Alegre, 20 de Junho de 1874. Officio do Bel José Queima em 23 de julho de 1874. Officio ao Mº da Agricultura, em 23 de julho de 1874. 21. BRASIL. Decreto nº 5565 de 14 de Março de 1874... 22. BRASIL. Decreto nº 5565 de 14 de Março de 1874... 236 SUMÁRIO Ferrovia na província de São Pedro: o caso da estrada de ferro Rio Grande - Bagé homens, ao longo do tempo, sempre fizeram parte das diretorias ferroviárias, não só em São Paulo e Rio de Janeiro, mas também no Rio Grande do Sul. O traçado definitivo Mas afinal, como ficou o traçado da estrada de ferro de Rio Grande a Bagé? José Gonçalves de Oliveira, na publicação Estradas de ferro no Brazil, apresenta esta descrição: Estudando-se os pormenores do traçado na planta da exploração, vê-se que de Pelotas a linha procura a margem do rio Piratinim, que deságua na Lagoa Mirim, e sobe-o até as cabeceiras; transpõe pouco acima d’ellas a cumiada da Cochilha das Pedras Altas; corta os valles dos rios confluentes Candiota e Jaguarão; vae passar por uma garganta da Cochilha Grande; atravessa o Rio Negro e quatro arroios affluentes d’elle, attingindo na altitude de 214 metros a cidade de Bagé situada na encosta de uma cochilha.23 Efetivamente, percebe-se que a construção do caminho de ferro seguiu o projeto inicial proposto no contrato entre governo imperial e Hygino Corrêa Durão, consistindo-se o trecho, outrora em dúvida, pelos pontos de Passo das Pedras, Maria Gomes e Candiota. Nas memórias de Alberto Coelho da Cunha – cidadão pelotense autor de vários textos sobre assuntos da cidade no final do século XIX e início do XX – intituladas “Viação Pública”, há comentários sobre esta estrada de ferro que trazem informações sobre o traçado final. Conforme tabela apresentada, a linha em 1884 contava, em toda a sua extensão, com 16 estações, “collocadas ás seguintes distancias kilometricas, a partir da Estação Marítima” – esta última construída em 1888, elevando o traçado até o litoral da cidade do Rio Grande: Tabela: Distância das estações da Estrada de Ferro Rio Grande – Bagé a partir da Estação Marítima de Rio Grande Estações Central do Rio Grande Quinta Povo Novo Pelotas (Central) Distância kilometrica 2,8 19,9 35,8 55,3 23. OLIVEIRA, José Gonçalves. Estradas de ferro... p.74. 237 SUMÁRIO Ferrovia na província de São Pedro: o caso da estrada de ferro Rio Grande - Bagé Capão do Leão 70,0 Passo das Pedras 89,8 Piratiny 104,4 Basílio 126,8 Cerro Chato 156,3 Nascentes 182,2 Pedras Altas 196,7 Candiota 225,3 Santa Rosa 243,2 Rio Negro 258,8 Bagé 283,0 Fonte: CUNHA, Alberto Coelho da. Viação Pública. s/d. Acervo do Centro de Documentação e Obras Valiosas da Bibliotheca Pública Pelotense.24 Contando com pouco mais de 280 quilômetros de extensão de trilhos, cada parada se localizava a uma média de 20 km de distância da próxima. Detalhe para as estações de Pelotas a Capão do Leão (14,7 km) e Nascentes a Pedras Altas (14,5 km) com as menores distâncias e de Basílio a Cerro Chato (29,5 km) e Pedras Altas a Candiota (28,6 km) com a maior quilometragem entre si. O aumento ou diminuição das distâncias entre estações ajuda a pensar quais territórios eram mais povoados – ou se eram de propriedade de pessoas influentes –, justificando a presença das paradas. De forma geral, a zona com as menores distâncias se concentra na região que inicia em Rio Grande e vai até a localidade de Maria Gomes (atual Pedro Osório). A cidade de Pelotas, assim, é o ponto médio desta abrangência (52,5km de Rio Grande e 49,1km da estação Piratiny), indicando sua centralidade na região. De acordo com as memórias de Alberto Coelho da Cunha, a construção da estrada de ferro de Rio Grande a Bagé foi por decreto nº 7.056 de 23 de outubro de 1878 concedida a James Gracie Taylor e Miguel G. da Cunha. Pelo decreto 7.934 e 7.941 de 11 de Dezembro de 1880 foram os referidos concessionários autorizados a transferir a concessão à Companhia Chemins de Fer de Rio Grande do Sul.25 Pelo decreto nº 8.887 de 17 de fevereiro de 1883, a construção foi transferida para a Southern Brazilian Rio Grande do Sul Railway 24. CUNHA, Alberto Coelho da. Viação Pública (memórias). Fundo Alberto Coelho da Cunha. Acervo do Centro de Documentação e Obras Valiosas, Bibliotheca Pública Pelotense. Este documento foi encontrado no local de pesquisa na forma manuscrita, sendo a tabela reproduzida pela autora. 25. CUNHA, Alberto Coelho da. Viação Pública... 238 SUMÁRIO Ferrovia na província de São Pedro: o caso da estrada de ferro Rio Grande - Bagé Company Limited, “com cessão completa de todos os direitos, privilégios e garantias de juros”26. Os trabalhos teriam sido iniciados na cidade do Rio Grande em 27 de novembro de 1881, e concluídos em 27 de novembro de 1884, sob a direção do engenheiro francês Bonafous. Cunha frisou, ainda, que no ano de 1901 se inaugurou um ramal, “que partindo de Bagé, vai entroncar em Cacequy com a estrada de ferro de Porto Alegre a Uruguayana, ficando por essa forma ligado este município a todos aquelles por onde passa, não só essa estrada, como a que vae de Santa Maria ao Passo Fundo”27. O manuscrito de Alberto Coelho da Cunha não possui datação, parecendo ser a compilação de escritos analíticos feitos sobre a cidade de Pelotas e região ao longo de anos. A parte relativa à via férrea, contudo, parece ter sido redigida aproximadamente no ano de 1903, estimativa feita a partir de dados apresentados em algumas tabelas e afiançada pelo fato de ainda não haver menção à Compagnie Auxiliare, responsável pela linha a partir de 1905. Para Marluza Harres, foi através de um acordo com a companhia belga que buscou-se “a constituição de uma rede ferroviária ligando os diferentes centros econômicos do estado” (1994, p. 11). A região sul estava, afinal, relacionada ao restante da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul por uma projetada e ordenada rede de caminhos de ferro. Considerações finais A partir das considerações acima discorridas e, principalmente, da análise das fontes primárias pode-se observar que as discussões e debates sobre o desenvolvimento de uma rede férrea na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul ocorreram em consonância com uma lógica de progresso e modernidade que permeava o país a partir da década de 1850. Os principais motivos e argumentos defendidos são relacionados a uma melhoria econômica e comercial para a Província. A estrada de ferro do Rio Grande a Bagé, além de se coadunar com todas estas condições, possuía a característica de ser um instrumento de segurança bélica e militar, em virtude de sua posição de fronteira. As discussões em torno de seu traçado envolveram interesses públicos, mas principalmente privados – como os dos municípios a serem atingidos pelo serviço e, por outro lado, das pessoas influentes 26. CUNHA, Alberto Coelho da. Viação Pública... p.86 27. CUNHA, Alberto Coelho da. Viação Pública... 239 SUMÁRIO Ferrovia na província de São Pedro: o caso da estrada de ferro Rio Grande - Bagé na região e do próprio empresário concessionário da linha. Todos estes debates e opiniões divergentes possuíam por mote central o desenvolvimento da região, o que atesta a importância que a ferrovia passa a adquirir na esperança, no imaginário e na prática das pessoas. Como afirmado anteriormente, os estudos sobre ferrovia no Estado ainda são incipientes, o que não significa, contudo, que não existam fontes ricas e pertinentes que possibilitem a pesquisa. Espera-se, com este trabalho sobre a estrada de ferro Rio Grande – Bagé, ter dado mostras das inúmeras questões que ainda podem ser postas, problematizadas e compreendidas. Referências GAY, Peter. O século de Schnitzler: a formação da cultura da classe média. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. HARRES, Marluza. Ferroviários: disciplinarização e trabalho (VFRGS. 1920-1942). 1994. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. IPHAE (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado). Patrimônio Ferroviário no Rio Grande do Sul: Inventário das Estações 1874-1959. Porto Alegre: Pallotti, 2002. LOPES, Caryl E. J. A Compagnie Auxiliare de Chemins de Fér au Brésil e a cidade de Santa Maria no Rio Grande do Sul, Brasil. 2002. Tese (Doutorado em Arquitetura). Universidade Politécnica da Catalunha, Barcelona. POSSAS, Lidia Maria Vianna. Mulheres, trens e trilhos: modernidade no sertão paulista. São Paulo: EDUSC, 2001. Documentais BRASIL. Decreto nº 5565 de 14 de Março de 1874, o qual approva o contracto para explorações e estudos da linha ferrea da Cidade do Rio Grande até a Cidade de Alegrete. Disponível em <<http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=57089 &norma=72941>> acesso em jan. 2012. CORRESPONDÊNCIA. Repartição das Obras Publicas Provinciaes. Porto Alegre, 28 de março de 1874. Fundo da Secretaria de Obras Públicas, acervo do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. 240 SUMÁRIO Ferrovia na província de São Pedro: o caso da estrada de ferro Rio Grande - Bagé CORRESPONDÊNCIA. Repartição das Obras Publicas Provinciaes. Porto Alegre, 19 de maio de 1874. Illmo. Fundo da Secretaria de Obras Públicas, acervo do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. OFÍCIO. Repartição das Obras Públicas Provinciaes. Porto Alegre, 20 de Junho de 1874. Fundo da Secretaria de Obras Públicas, acervo do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. CUNHA, Alberto Coelho da. Viação Pública (memórias). Fundo Alberto Coelho da Cunha. Acervo do Centro de Documentação e Obras Valiosas, Bibliotheca Pública Pelotense. DURÃO, Hygino Corrêa. Relatório sobre os estudos definitivos da estrada de ferro do Rio Grande à Bagé na província do RS. 1874. DPRS-007. Acervo do Centro de Documentação e Obras Valiosas, Bibliotheca Pública Pelotense. DURÃO, Hygino Corrêa. Memória Justificativa sobre os estudos definitivos para a Estrada de Ferro do Rio Grande ao entroncamento no Cacequy. 1876. DPRS-007. Acervo do Centro de Documentação e Obras Valiosas, Bibliotheca Pública Pelotense. MORAES, Eduardo José. A estrada de ferro de Pelotas a Bagé (Memória apresentada á consideração do governo imperial). São Paulo: Typographia de Jorge Seckler, 1878. DPM-002. Acervo do Centro de Documentação e Obras Valiosas, Bibliotheca Pública Pelotense. cx. OLIVEIRA, José Gonçalves. Estradas de ferro no Brazil. 2ªed. São Paulo: Casa Vanorden, 1912. Acervo do Museu do Trem, São Leopoldo.UM RIO-GRANDENSE na corte. Considerações sobre a directriz da Estrada de Ferro da cidade do Rio Grande a Alegrete na província do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Typographia Universal de E. & H. Laemmert, 1874. DPRS007. Acervo do Centro de Documentação e Obras Valiosas da Bibliotheca Pública Pelotense 241 SUMÁRIO A EXPLORAÇÃO DA MÃO DE OBRA ESCRAVA NA PECUÁRIA (CAMPANHA GAÚCHA, SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX) Marcelo Santos Matheus1 242 SUMÁRIO A exploração de mão de obra escrava na pecuária (campanha gaúcha, segunda metade do século XIX) 1 Introdução Este texto trata do uso e da importância da mão de obra escrava na pecuária na segunda metade do século XIX, em especial nas décadas que se seguiram logo após o fechamento do tráfico internacional de africanos escravizados. O foco recai sobre a região da Campanha, maior produtora de gado do Brasil de então, contudo, circunscrito ao município de Bagé, formado por duas paróquias: São Sebastião de Bagé e Nossa Senhora do Patrocínio de Dom Pedrito (Dom Pedrito se emancipou no início da década de 1870). Para tanto, as fontes exploradas são, sobretudo, os inventários post mortem produzidos em Bagé e a Lista de Classificação de Escravos de Dom Pedrito. Felizmente, não é mais preciso gastar tinta explicando a utilização de mão de obra escrava na pecuária, no Rio Grande do Sul, tanto no período colonial, quanto no imperial. Uma extensa bibliografia já superou a ideia, anacrônica, de que o uso de escravos na lida com o gado não havia sido importante por ser irracional do ponto de vista econômico e também porque os escravos naturalmente fugiriam pela fronteira com o Uruguai (ZARTH, 2002; OSÓRIO, 2008; FARINATTI, 2007). No entanto, ainda são poucos os estudos que tratam dessa questão para a segunda metade do oitocentos. Durante algum tempo, a historiografia sustentou que, logo após 1850, a mão de obra escrava começou a perder importância para a produção de gado. Todavia, tal processo parece só se intensificar, de fato, na década de 1880. No geral, os historiadores se basearam em (problemáticos) 1. Doutor em História Social pela UFRJ. Professor de História do IFRS. 243 SUMÁRIO A exploração de mão de obra escrava na pecuária (campanha gaúcha, segunda metade do século XIX) censos (e teorias outras), os quais nem tratavam diretamente do uso de escravos na pecuária, mas que teoricamente demonstravam uma queda no número de escravos, da primeira para a segunda metade do oitocentos, no Rio Grande do Sul para sustentar tal questão (MATHEUS, 2013) Na verdade, creio que a ideia do enfraquecimento da utilização de escravos na pecuária foi elaborada colada a outra ideia-força, que também se mostrou equivocada, embora seguidamente repetida. Falo da concentração da propriedade escrava na segunda metade do século XIX e, junto a isso, a perda de escravos do Rio Grande do Sul para o sudeste cafeeiro. Não irei retomar ipsis litteris tal debate, porém, em outros momentos mostrei (em pesquisa com foco no município de Alegrete) que, para o Rio Grande do Sul, nem uma, nem outra são válidas – ao menos não para as primeiras décadas da segunda metade do século (MATHEUS, 2012, capítulo 1). Neste contexto, no presente estudo pretendo reforçar a defesa da importância do uso da mão de obra escrava na pecuária, na Campanha, mas em outra localidade da mesma região. Notadamente, conforme um censo agrário de 1858, depois de Alegrete os maiores rebanhos da província estavam em Bagé – 772.232 e 531.640 cabeças de gado, respectivamente2. Para isso, como já foi mencionado, exploro os inventários post mortem e a Lista de Classificação de Escravos de Dom Pedrito. De início, faço um breve resumo da presença escrava em Bagé ao longo do século XIX, bem como das características econômicas da localidade. Logo após, passo para a análise dos inventários e, em um tópico à parte, da Lista de Classificação de Escravos de Dom Pedrito, tentando novamente redimensionar a importância da mão de obra escrava para a pecuária naquele contexto, em especial na segunda metade do oitocentos. Escravidão pecuária e diversificação produtiva e Ao longo do século XIX, Bagé sempre teve uma expressiva população escrava. Conforme um mapa da população de 1846, 29,5% dos habitantes (ou 1.212 indivíduos) eram escravos, sendo 25% deles 2. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Mapa numérico das estâncias existentes dos diferentes municípios da província, de que até agora se tem conhecimento oficial, com declaração dos animais que possuem e criam, por ano, e do número de pessoas empregadas no seu custeio. Fundo Estatísticas, m. 02, 1858. 244 SUMÁRIO A exploração de mão de obra escrava na pecuária (campanha gaúcha, segunda metade do século XIX) africanos. Já em 1858, de acordo com um mapa de famílias, a população cativa havia aumentado para 4.016 escravos, ou 32,5% do total. Por fim, segundo o Censo de 1872, a população escrava havia crescido para 4.816, embora percentualmente houvesse caído para 22%3. Essa presença cativa encontra correspondência em diferentes fontes, como batismos e inventários, por exemplo. Entre o final da década de 1820 e 1870, mais de 3.100 escravos foram batizados em Bagé. Na primeira metade do século XIX, os 821 cativos levados à pia batismal perfizeram 21% de todos os batizados na localidade. Já os 2.346 cativos que receberam os santos óleos entre 1851 e 1870 representaram nada menos do que 26% do total de batizandos nesse período. Assim como nos batismos, os inventários ilustram a importância social, demográfica e econômica dos escravos: entre c.1820 e 1870, 2.288 cativos foram inventariados em Bagé, sendo mais de 71% deles entre 1851 e 1870 (MATHEUS, 2016, pp. 109-118 e pp. 187-192). Antes de prosseguirmos com a análise das características dos escravos a partir dos inventários, é preciso esclarecer que, do ponto de vista econômico, a paisagem agrária da Campanha era caracterizada por uma diversidade produtiva. Embora o predomínio da pecuária, de 314 inventários abertos em Bagé entre 1817 e 1870 que tiveram os bens arrolados e avaliados, na maioria deles aparecem indicativos (bois mansos ou ferramentas com enxadas, machados, pás, foices, etc., ou mesmo escravos designados como “roceiros” ou “lavrador”) da prática de agricultura. Tal prática, como veremos no próximo tópico a partir da classificação dos escravos, continuou ao longo da década de 1870. Em resumo, em mais de 65% dos inventários em que foi possível identificar as atividades produtivas desenvolvidas, a regra era diversificação produtiva, isto é, a combinação de duas ou mais atividades (MATHEUS, 2016, pp. 137-159). Por sua vez, se a pecuária não era uma exclusividade naquela realidade, a utilização da mão de obra escrava, sim, era um padrão, seja na pequena agricultura, seja no comércio, no trabalho doméstico, por profissionais liberais e nas atividades, digamos assim, urbanas, e, principalmente claro, na criação de gado. Não à toa, o peso dos escravos na composição dos patrimônios dos bageenses variou entre 22% e quase 30% entre c.1820 e 1870 (MATHEUS, 2016, pp. 159-162). 3. Para o ano de 1846: Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Mapas estatísticos da população dos municípios e distritos da Província do Rio Grande. Fundo de Estatística, maço 1, 1846; para 1858: Fundação de Economia e Estatística. Mappa Statístico da População da Província classificada por idades, sexos, estados e condições com o resumo total de livres libertos e escravos. In: De Província de São Pedro a Estado do Rio Grande do Sul – Censos do RS, 1803-1850. Porto Alegre: Federação de Economia e Estatística, 1981, p. 66; e para 1872: www.ibge.gov.br. 245 SUMÁRIO A exploração de mão de obra escrava na pecuária (campanha gaúcha, segunda metade do século XIX) Entretanto, de fato era na pecuária que a exploração do trabalho cativo se fazia mais representativa, muito em razão das ligações que o produto dessa atividade mantinha com o mercado interno e externo e, por isso, da sua capacidade de acumulação de capitais e de acesso ao mercado – atlântico, inclusive – de escravos (FARINATTI, 2007; VARGAS, 2016). Como é possível observar na tabela abaixo, em 100% dos inventários com 500 ou mais reses algum escravo foi arrolado dentre os bens. Por um lado, se em alguns poucos inventários com até 100 reses nenhum cativo foi arrolado, por outro era exatamente nesse grupo que os escravos compunham a maior parte do patrimônio dos inventariados: 35%, em 61 inventários com essa característica, o que redimensiona, embora não seja este o foco de nosso estudo, o impacto do fim da escravidão para o segmento menos abastado (MATHEUS, 2016, pp. 180-184). Tabela 1 - Presença da posse de escravos entre criadores de gado, Bagé (c.1820-1870) Tamanho dos rebanhos c.1820-1835 1841-1850 1851-1860 1861-1870 Até 100 reses 100% 85,5% 62% 77,5% De 101 a 500 100% 100% 89,5% 80% De 501 a 1.000 - 100% 100% 100% Mais de 1.000 100% 100% 100% 100% Total 100% 97% 86% 88% Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (doravante APERS). Registros de Inventários. Bagé, c.1820-1870. Embora essa disseminação da posse escrava entre os produtores de gado, é importante registrar a concentração da mesma. Os 10% dos criadores mais ricos (45 de 245 inventários) concentravam 25% dos escravos dos produtores de gado – concentração que também se faziam presente, de forma ainda mais profunda, na posse do gado, já que os 10% mais abastados detinham 49% do rebanho (MATHEUS, 2016, pp. 184 e 221). Voltando para a análise dos inventários para entender a intrínseca relação entre produção pecuária e a exploração da mão de obra escrava, trabalhamos agora com 219 documentos, ou apenas aqueles inventários de criadores com escravos. Primeiro, 246 SUMÁRIO A exploração de mão de obra escrava na pecuária (campanha gaúcha, segunda metade do século XIX) vamos analisar a questão da necessidade de trabalhadores na pecuária naquele contexto. Depois, verificamos que informações os inventários fornecem sobre a ocupação/especialização dos cativos, acrescentando, no tópico a seguir, uma fonte muito rica, mas ainda pouco utilizada: a Lista de Classificação dos Escravos (no caso a lista de Dom Pedrito). A pecuária extensiva, praticada em campos abertos, exigia um permanente cuidado com o gado, tanto para ele não se perder, quanto para não se misturar com rebanhos alheios. Como esta era uma atividade rotineira, necessitava de um número x de trabalhadores permanentes, de acordo com o tamanho do rebanho. Ao mesmo tempo, havia momentos em que era necessária mais mão de obra para trabalhos específicos (momentos estes denominados de rodeios), como a contagem do gado, para realizar alguns curativos, a marcação, a castração ou a reunião de uma tropa para enviar à uma charqueada. Por seu turno, a produção estava imbricada com as estações do ano. De um lado, um bom pasto para os animais era fundamental, ao que um verão com poucas chuvas era prejudicial; de outro, a marcação e a castração, por exemplo, eram feitas no outono (ou no início da próxima estação), para que não se acumulassem com outras atividades a serem realizadas no inverno e porque nos meses quentes havia muitos insetos, o que podia acarretar danos aos animais. O gado acostumado a determinado espaço geográfico e à presença humana era denominado de manso (gado costeado ou domesticado). Já o gado há tempos solto nos campos, grosso modo, sem sofrer processos como marcação, cura de bicheiras, etc., era denominado de xucro/chucro (ou alçado). Com efeito, o gado manso tinha um valor maior na hora da venda ou mesmo no momento da avalição no inventário, entretanto, na lógica dos criadores, ter parte dos animais em estado xucro podia ser um recurso para diminuir os gastos com a criação. Como pondera Luís A. Farinatti, em um contexto onde os rebanhos eram abundantes, não amansar todo o gado xucro (durante determinado período de tempo) podia ser uma estratégia para que não fosse preciso tanta mão de obra (FARINATTI, 2007, pp. 290-293)4. Por sua vez, os cavalos eram essenciais para o pastoreio. Assim como o gado, os cavalos (ou animais cavalares, como geralmente aparecia nos inventários) eram divididos em mansos e xucros. No 4. Para todo o processo descrito, além da referência de Farinatti: (OSÓRIO, 2008, pp. 146160). Ver também: (BELL, 1998; CORRÊA, 2013). 247 SUMÁRIO A exploração de mão de obra escrava na pecuária (campanha gaúcha, segunda metade do século XIX) entanto, a tarefa de domar (torná-lo manso) um cavalo não era algo simples, demandando mão de obra especializada. Alguns criadores tinham escravos com essa especialidade: por exemplo, no inventário de Manoel José de Santana foi arrolado Maximiano, crioulo de 25 anos, “campeiro e domador”; no do Tenente-Coronel Frederico Gonçalves Jardim foi descrito o crioulo Januário, “domador”. Já outros tinham que pagar pelo serviço – o Capitão José Marcelino Prestes, viúvo de Ana Maria da Natividade, descreveu no inventário de sua falecida esposa que, além de uma série de problemas que teve que resolver em relação ao rebanho do casal que estava no Estado Oriental, pagou a diversos peões por serviços, dentre eles “o peão Américo para domar, 5 mil réis ao mês”, quantia que em 10 meses resultou no pagamento de 50 mil réis5. Assim, a doma entra na mesma categoria da marcação e outras atividades sazonais, isto é, era necessária apenas em um curto espaço de tempo. Mas e qual era a necessidade de mão de obra permanente para o costeio do gado? Em geral, a historiografia aceita que em média um peão podia cuidar entre 500 e 600, podendo chegar a 700 reses conforme alguns relatos à época, logo, um pequeno criador podia ele mesmo tomar conta de um rebanho que não ultrapassasse esse montante, embora muitos pequenos produtores tivessem escravos (OSÓRIO, 2008, pp. 148-160; BELL, 1998, p. 51; FARINATTI, 2007, pp. 296-297)6. Em rebanhos de maior envergadura, geralmente a partir de 1.000 reses, passava-se a necessitar de mão de obra extra permanente, caso não existisse nenhum filho, outro parente ou agregados em idade suficiente para ajudar. Neste sentido, o quanto os escravos supriam esta necessidade? E o que os inventários (abertos em Bagé) nos informam sobre tal processo? Os inventários trazem somente alguns indícios sobre as atividades em que os cativos eram empregados – ou eram preferencialmente empregados, pois nos parece bastante lógico que em uma economia baseada na pecuária, a qual se caracteriza por ter alguns picos de necessidade de mão de obra, em momentos em que a lida com o gado não demandasse muito trabalho, alguns cativos 5. APERS. Registro de Inventário. Manoel José de Santana, Comarca de Caçapava, Fundo 016, I Vara da Família, nº 75, 1851; APERS. Registro de Inventário. Tenente-Coronel, Comarca de Bagé, Fundo 010, Vara de Família e Sucessão, nº 261, 1869; APERS. Registro de Inventário. Manoel José de Santana, Comarca de Caçapava, Fundo 016, I Vara da Família, nº 75, 1851. 6. Paulo Zarth, a partir da análise dos inventários post-mortem e das Memórias do fazendeiro Arístides de Moraes Gomes, escrita na primeira metade do século XX, lembra que “os escravos dividiam-se em todas as atividades no interior da estância” (ZARTH, 2002, p. 115). 248 SUMÁRIO A exploração de mão de obra escrava na pecuária (campanha gaúcha, segunda metade do século XIX) pudessem ser empregados em outra atividade, como a agricultura. Por isso não deve surpreender a ocorrência de escravos identificados como campeiro e roceiro. Este foi o caso de Luiz, africano, designado como “campeiro e roceiro” e do crioulo Venâncio, também identificado como “campeiro e roceiro”7. Tabela 2 - Ocupação dos escravos conforme os inventários, Bagé (c.1820-1870) Criadores Escravos Escravos Escravos campeiros roceiros Domésticos Escravos s/r acima com dos 14 ofício anos Até 100 reses 16 9 13 4 93 De 101 a 500 39 21 18 6 168 De 501 a 1.000 47 22 13 8 162 Mais de 1.000 reses 108 36 42 20 270 Total 210 88 86 38 693 APERS. Registros de Inventários. Bagé, c.1820-1870. s/r = sem referência Por vezes, os escravos não recebiam nenhuma qualificação que denotava alguma especialização, mas desempenhavam mais de uma tarefa. Durante a investigação de um crime, o escravo Leandro, do capitão Manoel Martins, afirmou que trabalhava “do que manda fazer seu senhor”. Em um segundo interrogatório, o mesmo Leandro afirmou que ele e outros cativos, “por ordem de seu senhor tinham ido marcar gado”, logo, Leandro, mesmo sem se identificar como campeiro, como muitos outros o faziam, ajudava na lida com o gado em momentos de maior necessidade de mão de obra, como a marcação. No mesmo processo, o africano Mina José Pequeno também afirmou trabalhar no “que lhe ordena seu senhor”, porém, o pernambucano Luís e o africano Mina Benedito, todos pertencentes a Manoel Martins, qualificaram-se como “pedreiro” e “roceiro”, respectivamente8. 7. APERS. Registro de Inventário. Manoel Alves Lucas, Comarca de Caçapava, Fundo 016, I Vara da Família, nº 99, 1853; APERS. Registro de Inventário. Maria Gonçalves da Silva. Comarca de Bagé, Fundo 010, Vara de Família e Sucessão, nº 197, 1862. 8. APERS. Processo-crime, Bagé, I Vara do cível e Crime, nº 3438, 1859. 249 SUMÁRIO A exploração de mão de obra escrava na pecuária (campanha gaúcha, segunda metade do século XIX) No entanto, predomínio é daqueles cativos que tiveram apenas uma especialização indicada – 422 casos. Destes, 38 eram oficiais (pedreiro, carpinteiro, alfaiate, etc.), 86 domésticos (cozinheira, costureira, etc.), 88 roceiros e 210 campeiros/domadores (ou cerca de 50% dos que tiveram alguma ocupação identificada), todos eles, os campeiros, do sexo masculino. Do total, 206 (ou 49%) com alguma ocupação pertenciam a criadores com mais de 1.000 reses, os quais também detinham 108 (ou 51,5%) dos campeiros arrolados nos inventários, como é possível notar na tabela acima9. Também conforme os inventários, mas até 1850 apenas, Luís A. Farinatti localizou 157 cativos com uma ocupação declarada – a maioria deles (53%) era de campeiros; já Helen Osório, para o período colonial, observou que dentre 367 escravos, 152 (41%) eram campeiros (FARINATTI, 2007, p. 303; OSÓRIO, 2008, pp. 149-150.). Portanto, os números encontrados pelos autores são próximos aos percentuais observados para Bagé, onde um número expressivo de campeiros (mais de 48%) estava nas mãos de pequenos e médios criadores. Para além das parcas informações existentes nos inventários e na falta de censos agrários mais detalhados, há uma outra fonte, infelizmente ainda pouco utilizada, que nos ajuda a compreender a importância dos escravos para a pecuária, em especial na segunda metade do século XIX. A Lei do Ventre Livre, de 1871, previa que todos os cativos que vivessem no Império deveriam ser matriculados (documentação que, de fato, foi quase totalmente destruída por determinação de Rui Barbosa). Da mesma forma, as câmaras municipais ficaram responsáveis por organizar listas de classificação, com o objetivo de libertar alguns escravos de acordo com critérios previamente estabelecidos (tinham preferência aqueles com família constituída perante à igreja católica). Portanto, se as matrículas não foram conservadas, muitas listas de classificação sobreviveram ao tempo, e ao descaso das autoridades brasileiras com fontes históricas, para diversas localidades do Brasil (SLENES, 1983; MARCONDES, 2010). É essa fonte que exploramos agora. 9. Em 693 casos de escravos com 15 anos ou mais nenhum tipo de especialização foi descrita – lembrando, estes números se referem somente aos 219 inventários de criadores de gado escravistas. Contabilizamos de 15 anos para cima (e não apenas até 45 anos), pois encontramos casos de escravos com mais de 45 e descritos com ocupações específicas. Um exemplo foi Francisco, 75 anos, “campeiro”. Em: APERS. Registro de Inventário. Joaquina Tomásia de Jesus. Comarca de Bagé, Fundo 010, Vara de Família e Sucessão, nº 191, 1862. 250 SUMÁRIO A exploração de mão de obra escrava na pecuária (campanha gaúcha, segunda metade do século XIX) A Lista de Classificação de Escravos de Dom Pedrito Repetindo, após a provação da Lei do Ventre Livre, em 1871, todos os senhores de escravos do império foram obrigados a matricular seus escravos entre 1872 e 1873. Aqueles que não o fizessem podiam perder suas posses, o que de fato acontecia (SLENES, 1983). Além de matricular, um dispositivo da lei, regulamentado por forma de decreto, também os obrigava a classificar seus cativos para serem libertados pelo Fundo de Emancipação (MOREIRA, 2003, p. 142). Esta classificação aconteceu, na maior parte, entre os anos de 1873 e 1875, embora continuasse ao longo das décadas de 1870 e 1880. De acordo com Robert Slenes, as “juntas eram obrigadas a fazer uma lista de todos os escravos residentes nas suas respectivas localidades” (SLENES, 1983, p. 142). Porém, conforme o autor, em muitos municípios nem todos os cativos foram classificados. Em Alegrete, por exemplo, cerca de 83% dos escravos foram classificados (MATHEUS, 2012, capítulo 1). Nas listas consta o nome, número da matrícula, cor, idade, estado civil, profissão, aptidão para o trabalho, número de pessoas da família que foram classificadas juntamente, moralidade, valor (quando manumitido pelo fundo), além, é claro, do nome do senhor dos cativos. Infelizmente, em relação às matrículas, na lista de classificação não consta a naturalidade nem a filiação dos escravos. A título de exemplo e comparação, conforme o Censo de 1872, o primeiro grande recenseamento geral da história brasileira, havia apenas 12 “africanos” em Dom Pedrito, todos eles já “livres”. Com isso, portanto, todos os classificados (caso os senhores não estivessem escondendo a ilegalidade de suas posses devido ao tráfico ilegal a partir de 1831) eram nascidos no Brasil. Nesse sentido, a partir da lista, é possível reconstituir praticamente todo conteúdo das matrículas, mas somente para aqueles municípios em que a maioria dos cativos foi classificada – o que parece ter sido o caso da Lista de Dom Pedrito. De acordo com o Censo de 1872, havia 6.036 almas em Dom Pedrito, sendo 1.411 delas escravas (23,5%), e, segundo a Lista de Classificação, foram classificados 1.414 cativos10. A lista, por óbvio, não era um retrato estático daquela realidade, como o censo, e conforme algum escravo 10. De acordo com o Censo de 1872, mais de 58,5% da população de Dom Pedrito era “preta” ou “parda” Se somarmos os “caboclos”, esse percentual vai a mais de 60%. 251 SUMÁRIO A exploração de mão de obra escrava na pecuária (campanha gaúcha, segunda metade do século XIX) nascia devia ser devidamente classificado. Não à toa, há 12 cativos com 1 ano listados nela. Como já mencionamos, desde o início da década de 1850 o município de Bagé era formado por duas paróquias – São Sebastião de Bagé e Nossa Senhora do Patrocínio de Dom Pedrito11. Dom Pedrito se emancipou em 1872 e, em meio a este processo, aconteceu que os escravos da paróquia foram matriculados em Bagé, mas, com a emancipação, elaborou-se uma lista de classificação própria para os cativos do recém-criado município. E é com este documento que iremos ponderar, agora, o quanto os escravos eram utilizados na pecuária em plena década de 1870, quando boa parte da historiografia acreditava, por uma série de motivos, que já não o eram tão importantes para produção (MATHEUS, 2013). Isto foi possível, pois dentre as informações que a junta de classificação tinha que preencher sobre os escravos estava a “profissão” dos mesmos. No Censo de 1872 também havia tal campo, contudo, para as localidades do sudoeste sul-rio-grandense, onde predominava a pecuária, nenhum escravo foi descrito como “campeiro” ou “peão”, num claro descompasso com determinadas realidades locais, como a da Campanha sul-riograndense. Na imagem abaixo é possível observar a descrição dos escravos (nome, idade, etc.) e sua ocupação (“campeiro”, roceiro”, etc.), nome dos senhores, bem como outras informações na Lista de Dom Pedrito. Antes de passarmos para a análise principal, dada a raridade do documento especialmente para o Rio Grande do Sul12, é interessante apreciar algumas informações gerais que a lista fornece. Dos quase cinco mil escravos existentes em Bagé no início da década de 1870, cerca de um terço habitava a paróquia de Dom Pedrito. Dos 1.414 cativos classificados na localidade, 55,5% eram do sexo masculino. No que diz respeito às idades, 45% dos escravos tinham até 14 anos – o que atesta a importância da reprodução natural para a própria reprodução da instituição, que não contava mais com o tráfico transatlântico. Já os entre 15 e 50 anos representavam 51% dos cativos e, por fim, os com 51 anos ou mais cerca de 4%. 11. Ver: ADB. ‘Meio de busca’; e o censo de 1872 em: www.ibge.gov.br. 12. Além das listas de Alegrete e de Dom Pedrito, até o momento foram encontrados as para Encruzilhada (a qual está em processo de fichamento) e para Rio Pardo, que Melina Perussatto analisou (PERUSSATTO, 2010). 252 SUMÁRIO A exploração de mão de obra escrava na pecuária (campanha gaúcha, segunda metade do século XIX) Imagem – recorte de página do Livro de Classificação dos Escravos, Dom Pedrito, meados da década de 1870 Fonte: Museu Paulo Firpo. Lista de classificação dos escravos para serem libertados pelo fundo de emancipação, p. 31. Observação: todas as informações gerais sobre a Lista de Classificação de Dom Pedrito foram retiradas dessa fonte, salvo nova e específica referência. Além de dados quantitativas, os recenseadores anotaram informações interessantes na aba “Observações”. Maria e Candido, ela “cozinheira” e ele “campeiro”, escravos de Francisca Fernandes de Lima, estavam no “Estado Oriental” – e hoje sabe-se que aqueles escravos que passavam a fronteira, para onde o solo era livre, com o consentimento do senhor, quando retornavam tinham o direito à liberdade, ou seja, a própria produção da lista, neste aspecto, era a produção de uma prova de escravização ilegal (GRINBERG, 2007; MATHEUS, 2012, capítulo 4). A “costureira” Caetana, de apenas 14 anos, passou pelo drama (o desenraizamento e a ruptura dos laços sociais produzidos na localidade onde nasceu e cresceu) que muitos escravos enfrentaram, especialmente a partir de 1850, quando o tráfico atlântico foi definitivamente proibido: nas “observações” está anotado que ela foi “vendida para Caçapava”. Já o “campeiro” Marcelino, de 22 anos, estava “fugido”13. Todavia, é a classificação da “profissão” que nos parece mais interessante, muito em função do censo de 1872 não trazer (assim com nenhum outro censo agrário) a informação dos trabalhadores 13. Lista de Classificação de Dom Pedrito, op. cit., pp. 15, 21 e 34. 253 SUMÁRIO A exploração de mão de obra escrava na pecuária (campanha gaúcha, segunda metade do século XIX) escravizados utilizados preferencialmente na pecuária. Dos 745 escravos descritos como do sexo masculino, nada menos do que 412 (ou 55,5% de todos os escravos) foram listados como “campeiros”. Se nos atermos apenas aos homens entre seis e cinquenta e oito anos (recorte que leva em conta o cativo mais novo classificado como “campeiro” – com 6 anos, e o mais velho – com 58 anos), temos que 607 escravos ficaram dentro dessa faixa etária. Desses, nada menos que 68% tinham como sua principal ocupação a lida com o gado14. Deste modo, como os gráficos abaixo ilustram, temos que quase 7 em cada 10 escravos do sexo masculino entre 6 e 58 anos eram destinados à pecuária, isto no início da década de 1870, quando a instituição escravista perdia a passos largos sua força e legitimidade. Este é quase o mesmo percentual observado para Alegrete, a partir da lista de classificação elaborada para este município (MATHEUS, 2012, p. 74). Mas quem eram os senhores que exploravam a mão de obra escrava na pecuária em Dom Pedrito? Vimos antes que os grandes criadores concentravam boa parte (25%) de todos os escravos em Bagé. Da mesma forma, foi possível observar que, dentre os cativos que tiveram a ocupação anotada no inventário, cerca de metade pertencia a senhores com 1.000 ou mais reses. Por outro lado, vimos também que 1 peão poderia dar conta de um pequeno (até 700 reses) rebanho e que os pequenos criadores também exploraram a mão de 14. Todas as informações foram retiradas de: Lista de Classificação de Dom Pedrito, op. cit. Na verdade, o número total de escravos designados como campeiros foi de 419, todavia, sete deles eram mulheres, ou melhor, campeiras. 254 SUMÁRIO A exploração de mão de obra escrava na pecuária (campanha gaúcha, segunda metade do século XIX) obra cativa. Assim, 1 escravo campeiro, naquele contexto, era algo muito valioso, especialmente para os pequenos e médios criadores. Conforme a Lista de Classificação de Dom Pedrito, 353 proprietários classificaram seus escravos, sendo que 80% dos senhores do sexo masculino. Com efeito, do total de senhores, mais de 91% tinha até 9 escravos. Cerca de 8% tinha entre 10 e 19 cativos e 1% (três proprietários) tinha 20 ou mais escravos. Esses grandes senhores concentravam 5% dos escravos ou, em outras palavras, concentravam cinco vezes mais escravos do que sua própria representatividade. Já os médios proprietários detinham 24% e os pequenos 71% dos cativos. A moda, isto é, a principal ocorrência, era de proprietários com apenas um escravo (93 senhores) e depois com 2 cativos (66). Em média, cada senhor tinha 4 cativos. Tabela 3 – Distribuição dos escravos campeiros entre os senhores de diferentes envergaduras Tamanho da posse Senhores com 1 a 9 escravos Senhores com 10 a 19 escravos Senhores com 20 ou mais escravos Total Número de senhores % de senhores Número de escravos campeiros % de escravos campeiros 185 87 288 68,5 24 11,5 105 25,5 3 1,5 26 6 212 100 419 100 No que se refere às profissões dos escravos, 4 foram descritos com ofícios como alfaiate, sapateiro, oleiro (especialista na fabricação de telhas) e veleiro (provavelmente a fabricação e velas)15. Outros 73 foram designados como “roceiro” ou “lavrador”, o que mais uma vez realça a importância da agricultura. Por sua vez, 32 foram descritos como “pajem” ou “mucamba”. Outros 29 cativos foram designados como “servente” ou “de todo serviço”. Há ainda 1 quitandeira e 1 jornaleiro. Entretanto, o que predomina são os serviços domésticos 15. De acordo com Antonio de Moraes Silva, “veleiro” é a “pessoa que faz velas”. Da mesma 255 SUMÁRIO A exploração de mão de obra escrava na pecuária (campanha gaúcha, segunda metade do século XIX) e na lida com o gado: como já dissemos, 419 foram indicados como “campeiros”; e 324 cativas foram designadas como “engomadeira”, “serviço doméstico”, “cozinheira”, “costureira”, “lavadeira”, etc. Mas e os campeiros, em que posses estavam distribuídos? Para esclarecer, trabalho agora com o universo de 419 escravos campeiros, pois conto as 7 escravas campeiras existentes na lista. A maior parte deles pertenciam a senhores com até 9 escravos, contudo, se esses proprietários representavam 87% dos que detinham cativos campeiros, concentravam 68,5% dos escravos. Já os médios proprietários (com 10 a 19 escravos) representavam 11,5%, concentrando mais de 25% dos cativos. Finalmente, os senhores com mais posses perfaziam apenas 1,5% dos proprietários, todavia, concentravam quatro vezes mais sua representatividade (6%), demonstrando mais uma vez uma concentração não só da posse escrava, mas também em específico da posse de cativos especializados nas lidas campeiras. A tabela 3 acima ilustra tal questão. Já nos encaminhando para as conclusões, é importante salientar o quanto os pequenos proprietários lançavam mão da exploração do trabalho escravo na pecuária. Em 31 casos de senhores com apenas 1 cativo, esse foi designado como “campeiro”, sendo que 5 desses senhores eram, na verdade, senhoras. Em 24 casos de senhores com 2 escravos, um deles foi descrito como “campeiro”, número que sobe para 31 em senhores com até 3 cativos e 24 em proprietários com até 4 escravos. Enfim, creio que os números apresentados a partir da Lista de Classificação corroboram o encontrado conforme os inventários, isto é, a escravidão era estrutural para a atividade pastoril e, até onde puderam, os senhores continuaram destinando os cativos para a produção de gado. Ou seja, caso a Lei do Ventre Livre não fosse promulgada e, anos depois, a abolição não tivesse sido levada a cabo, a escravidão provavelmente continuaria a servir de alicerce à pecuária. Por óbvio, tal traço, definidor das relações de trabalho, continuou marcando e balizando as relações sociais na região após a abolição, embora a questão fuja dos objetivos imediatos deste estudo (sobre isso, para a mesma região tratada aqui neste estudo, ver: MOREIRA e MATHEUS, 2020). maneira, mas conforme o dicionário de Luís Maria da Silva Pinto, “veleiro” é aquele “que faz velas” (PINTO, 1832, p. 1084; SILVA, 1789, p. 837). Agradeço ao colega Miquéias Mügge as indicações. 256 SUMÁRIO A exploração de mão de obra escrava na pecuária (campanha gaúcha, segunda metade do século XIX) Considerações finais Espero que o leitor tenha notado que a Campanha sulriograndense se tratava de uma área rural – rural e escravista e, por isso, bastante representativa do Brasil de então. Logo, apesar das especificidades (produção pecuária, área fronteiriça, etc.), provavelmente boa parte dos traços sociais aqui descritos são, em tese, generalizáveis para outras regiões do Império. Referimo-nos, especificamente, a disseminação da posse escrava e, por isso, a ampla utilização da mão de obra cativa nos mais diversos ramos econômicos e, fundamentalmente, na principal atividade econômica da qual a elite social drenava e retirava seus recursos. Por outro lado, acredito que nunca é demais repetir e reforçar: é impressionante o vigor da escravidão, ainda em meados da década de 1870. Mesmo em um lugarejo no extremo sul do Império, quase caindo do mapa, em uma região fronteiriça com nações onde não havia mais a escravidão. Naquele contexto, em uma localidade com pouco mais de 6 mil almas, nada menos do que 353 senhores eram detentores de escravos e, mais importante, mais de 90% deles eram pequenos senhores, com até 9 escravos (notadamente, 45% tinham 1 ou 2 cativos). Caso não fosse o processo abolicionista, que acelerou o fim da escravidão, parece que os proprietários estavam dispostos a levar adiante tanto seu status de senhores de outras vontades, bem como a exploração do trabalho alheio, numa simbiose entre questões sociais, culturais e econômicas que explicam não só aquela realidade, mas também estruturas outras legadas pelo passado escravista brasileiro. Da mesma forma, espero que tenha ficado claro o quanto a economia da região e, principalmente, sua elite social e econômica dependia da exploração do trabalho escravo. Com efeito, a escravidão foi estrutural para a produção pecuária enquanto o trabalho servil existiu no Brasil. Assim sendo, a acumulação de bens e capital da elite da região (algo generalizável para outras partes do Brasil também) teve origem na renda oriunda do trabalho cativo, o qual perfazia boa parte do patrimônio dos bageenses. Todavia, se a elite dos criadores concentrava a maior parte dos recursos (terras, gado e escravos), a mão de obra cativa era largamente utilizada por todos produtores de gado. Não à toa, conforme foi possível verificar a partir da Lista de Classificação de Dom Pedrito, mais de 87% dos senhores que eram proprietários de escravos campeiros eram pequenos senhores (com até 9 cativos). E 257 SUMÁRIO A exploração de mão de obra escrava na pecuária (campanha gaúcha, segunda metade do século XIX) isto para meados da década de 1870. Ou seja, pequenos produtores também eram, em alguma medida, dependentes do trabalho cativo. Nesse sentido, provavelmente o impacto do fim da escravidão teve consequências mais severas para os pequenos senhores, cujo patrimônio estava mais comprometido com a posse cativa, do que para os maiores criadores. Tal entendimento, creio, redimensiona o interesse sobre a manutenção da instituição escravista, não sendo ela, primeiro, de interesse somente dos cafeicultores paulistas e, também, não sendo algo que dizia respeito apenas aos grandes proprietários de escravos, mas de ampla parcela da população brasileira, algo ainda pouco explorado pela historiografia. Referências BELL, Stephen. Campanha Gaúcha: a brazilian ranching sistem, 1850-1928. Stanford: Stanford University Press, 1998. CORRÊA, André do N. Ao Sul do Brasil Oitocentista: Escravidão e Estrutura Agrária em Caçapava, (1821-1850). Santa Maria: PPGH/UFSM, 2013. (Dissertação de Mestrado) FARINATTI, Luís A. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na Fronteira Sul do Brasil (1825-1865). Rio de Janeiro: PPGHIS/UFRJ, 2007. (Tese de Doutorado). GRINBERG, Keila. Escravidão, alforria e direito no Brasil oitocentista: reflexões sobre a lei de 1831 e o “princípio da liberdade” na fronteira sul do Império brasileiro. CARVALHO, José Murilo de (org.). In: Nação e cidadania no Império: novos horizontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. MATHEUS, Marcelo S. Fronteiras da Liberdade: escravidão, hierarquia social e alforria no extremo sul do Império do Brasil. São Leopoldo: Oikos/Unisinos, 2012. MATHEUS, Marcelo S. Escravidão, pecuária e liberdade: o Livro de classificação de escravos (Alegrete, década de 1870), História Unisinos, São Leopoldo, v. 17, nº. 1, pp. 24-36, jan./abr., 2013. MATHEUS, Marcelo S. A produção da diferença: escravidão e desigualdade social ao sul do Império brasileiro (Bagé, c.1820-1870). Rio de Janeiro: PPGH/UFRJ, 2016. (Tese de Doutorado) MARCONDES, Renato L. Diverso e Desigual: o Brasil escravista na década de 1870. Ribeirão Preto: Funpec, 2010. MOREIRA, Paulo M. S. e MATHEUS, Marcelo S. Processo e estrutura: o fim da escravidão e a persistência dos castigos físicos (Rio Grande do Sul, final do século XIX). v. 24, nº. 2, pp. 269-281, mai./ago., 2020. MOREIRA, Paulo R. S. Os Cativos e os Homens de bem: experiências negras no espaço urbano. Porto Alegre: EST, 2003. 258 SUMÁRIO A exploração de mão de obra escrava na pecuária (campanha gaúcha, segunda metade do século XIX) OSÓRIO, Helen. O império português ao sul da América: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008. PERUSSATTO, Melina K. Como se de ventre livre nascesse: experiências de cativeiro, parentesco, emancipação e liberdade nos derradeiros anos da escravidão – Rio Pardo/RS, c.1860 - c.1888. São Leopoldo: PPGH/Unisinos, 2010. (Dissertação de Mestrado) PINTO, Luís Maria da Silva. Diccionario da lingua brasileira. Ouro Preto: Typographia de Silva, 1832. SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da lingua portugueza composto pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado, e accrescentado por Antonio de Moraes Silva natural do Rio de Janeiro. V. 2. Lisboa: Simão Tadeu Ferreira, 1789. SLENES, Robert W. O que Rui Barbosa não queimou: novas fontes para o estudo da escravidão no século XIX. Estudos Econômicos, v. 13, nº. 1, pp. 117-149, jan./ abr., 1983. VARGAS, Jonas M. Barões do charque e suas fortunas: um estudo sobre as elites regionais brasileiras a partir de uma análise dos charqueadores de Pelotas (Rio Grande do Sul, séc. XIX). São Leopoldo: OIKOS, 2016. ZARTH, Paulo Afonso. Do Arcaico ao Moderno. Transformações no Rio Grande do Sul do século XIX. Ijuí: Editora Unijuí, 2002. 259 SUMÁRIO OS TRABALHADORES DA CHARQUEADA INDUSTRIAL NOS DADOS DA DELEGACIA REGIONAL DO TRABALHO DO RIO GRANDE DO SUL Aristeu Elisandro Machado Lopes1 260 SUMÁRIO Os trabalhadores da charqueada industrial nos dados da Delegacia Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul 1∗ Introdução No ano de 1932 o então governo provisório de Getúlio Vargas promulgaria um decreto que alteraria a história dos trabalhadores brasileiros. Trata-se do decreto nº 21.175, de 21 de março de 1932, que instituiu a carteira profissional, que destacava, já em seu artigo primeiro, que o novo documento foi estabelecido “para as pessoas maiores de 16 anos de idade, sem distinção de sexo, que exerçam emprego ou prestem serviços remunerados no comércio ou na indústria” (BRASIL, 1932A).2 A trajetória profissional dos trabalhadores e trabalhadoras seria, a partir de então, registrada nas páginas da carteira, tornando-se o histórico das atividades profissionais desempenhadas ao longo dos anos de vida laboral. Conforme o texto veiculado na carteira, de autoria de Marcondes Filho, Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio, do governo varguista, a carteira “configura a história de uma vida” uma vez que, quem a examinar “logo verá se o portador é um temperamento aquietado ou versátil; se ama a profissão escolhida ou ainda não encontrou a própria vocação; se andou de fábrica em fábrica como uma abelha, ou permaneceu no mesmo estabelecimento” (GOMES, 2005, p. 235). Nos anos e décadas posteriores à sua criação, a carteira assinada se tornou a aspiração de todo o trabalhador, pois representava a garantia de direitos, como estabilidade, salário regular, férias e 1. Doutor em História/UFRGS. Professor Associado II do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pelotas. 2. Ainda no ano de 1932, outro decreto alterou a redação do artigo primeiro contemplando um universo maior de trabalhadores: “Art. 1º Fica instituída, no território nacional, a carteira profissional para as pessoas maiores de 16 anos de idade, sem distinção de sexo, que exerçam emprego ou prestem serviços remunerados.” (BRASIL, 1932B). 261 SUMÁRIO Os trabalhadores da charqueada industrial nos dados da Delegacia Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul aposentadoria. Dessa forma, tornou-se hábito “tirar” a carteira logo ao início da vida profissional, prática que permanece na atualidade. No ano seguinte ao decreto as primeiras carteiras profissionais começaram a ser emitidas no Rio Grande do Sul. Inicialmente as solicitações foram feitas apenas em Porto Alegre, mas logo também começaram a ser requeridas em outros municípios, entre os quais Bagé. O objetivo deste capítulo é, em um primeiro momento, apresentar brevemente os dados dos trabalhadores e trabalhadoras que solicitaram carteira profissional vinculados a estabelecimentos localizados em Bagé. A seguir, o capítulo focará em um grupo específico de trabalhadores: aqueles que, no momento da solicitação da carteira, no ano de 1941, estavam vinculados a Charqueada Industrial. Além de abordar as informações específicas sobre esse grupo – nome, profissão, cor, ano e local de nascimento, residência, estado civil e dependentes– essa parte também analisará o conjunto de fotografias 3x4 desses trabalhadores. Os dados e as fotografias conformam parte da história da Charqueada Industrial por um viés diferenciado, ou seja, a partir de seus trabalhadores e, notadamente, por seus rostos. O texto será desenvolvido a partir das fichas de qualificação profissional, as quais constituem o acervo da Delegacia Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul, salvaguardado no Núcleo de Documentação História Professora Beatriz Loner da Universidade Federal de Pelotas. As fichas e o acervo serão explicados no tópico seguinte. O acervo da Delegacia Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul Para atender a demanda pelas carteiras profissionais, o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio estabeleceu Inspetorias Regionais do Trabalho nos estados (mais tarde renomeadas para Delegacias). A solicitação seguia uma rotina meticulosa, com o preenchimento de uma ficha de qualificação profissional, ou seja, o documento no qual eram registradas todas as informações pessoais e profissionais do requerente. A ficha era constituída por duas vias, sendo que uma delas era remetida ao Rio de Janeiro, para o MTIC, responsável pela emissão da carteira. A outra permanecia na DRT do estado de origem da solicitação. 262 SUMÁRIO Os trabalhadores da charqueada industrial nos dados da Delegacia Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul A ficha possuía os seguintes campos: nome completo, nome da mãe, nome do pai, data e local de nascimento, nacionalidade cor (da pele), cor dos olhos, cor do cabelo, sinais particulares e altura. Já entre os campos específicos sobre a atividade exercida constavam: profissão, estabelecimento, e seu endereço, e vínculo sindical. Outros campos registravam: estado civil, número de dependentes, endereço residencial, grau de instrução e uma parte específica anotava informações sobre estrangeiros. No verso da ficha, havia espaço para anotações posteriores, como solicitação de segunda via da carteira, mudança de estado civil, inclusão de dependentes, entre outras, e também eram marcadas as digitais e anexada uma fotografia no formato 3x4 (LOPES, 2020). A ficha de qualificação profissional é o documento que constitui o acervo pesquisado e é composto por aproximadamente 627.000 fichas, armazenadas em 1.050 caixas de arquivo permanente, que compreendem o período entre 1933 e 1968. As pesquisas com esses documentos foram facilitadas com a criação de um banco de dados, que reproduz os mesmos campos da ficha e permite cruzálos. O banco, além de “possibilitar o desenvolvimento de inúmeras pesquisas”, também permite a “própria preservação da documentação, que está em suporte papel” (LONER, 2010, p. 21). Atualmente o banco possui 50.773 fichas que correspondem ao primeiro ano da DRT/ RS, 1933, até 1944, sendo que este é o ano atualmente em digitação. 3 No próximo tópico serão apresentadas e analisadas as informações sobre os trabalhadores que solicitaram carteira profissional em Bagé, as quais foram extraídas a partir de levantamentos e cruzamentos realizados no banco de dados do acervo da DRT/RS. Os trabalhadores de Bagé nos dados da DRT/ RS Do total de fichas já inseridas no banco de dados, 619 foram solicitadas por trabalhadores que desempenhavam suas funções em Bagé. Os pedidos foram realizados em 1935 e entre 1939 e 1941: 233 solicitações em 1935, 98 em 1939, 93 em 1940 e 195 em 1941. Como Bagé não contava com um atendimento fixo da DRT/RS – o mesmo para todos os demais municípios do interior do estado que somente mais tarde contaram com os primeiros postos em Passo Fundo, em 1945, 3. Importante explicar que o conjunto documental não representa a totalidade dos trabalhadores do estado no período e nem mesmo o número total de solicitantes – visto que muitas fichas se perderam ao longo do tempo. 263 SUMÁRIO Os trabalhadores da charqueada industrial nos dados da Delegacia Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul e em Pelotas, no ano de 1948 (LONER, 2008) – as solicitações foram realizadas a partir de duas possibilidades. A primeira, um funcionário da DRT/RS poderia se deslocar até a cidade, com os cadernos de fichas, para atender a demanda. A segunda, os empregadores ou os sindicatos poderiam realizar a coleta dos dados nas fichas e remeter os livros para Porto Alegre. Essa segunda possibilidade era prevista no decreto que instituiu a carteira, conforme o § 2º do artigo quarto: “Além do próprio interessado, os empregadores, ou os sindicatos oficialmente reconhecidos, poderão promover o andamento do pedido das carteiras” (Brasil, 1932A). Os livros das fichas dos trabalhadores de Bagé corroboram com essa interpretação. Cada livro é formado por 50 fichas e, no caso específico dos solicitantes de Bagé, os livros possuem entre 40 e 50 fichas preenchidas com dados de trabalhadores da cidade.4 No campo gênero, 554 fichas foram solicitadas por homens e 65 por mulheres. De acordo com os dados do Recenseamento do Brasil de 1940 – considerado o mais próximo dos dados da DRT/ RS – Bagé totalizava uma população de 59.000 pessoas, sendo 30.084 mulheres e 28.916 homens (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 1950, p. 50). As mulheres, portanto, formavam a maioria. Comparando os dados do censo com aqueles da DRT/RS é possível constatar que, embora o número de mulheres fosse superior ao de homens, entre os solicitantes de carteira a presença masculina prevaleceu. Apesar de um número menor de solicitações, as mulheres de Bagé estavam envolvidas em atividades diversificadas, como demonstra a tabela abaixo: Tabela 1: Quantitativo das Profissões registradas por número de trabalhadoras Profissão Auxiliar de comércio Camareira Servente Copeira Cozinheira Auxiliar de padaria Trabalhadoras 16 12 10 5 5 4 4. Até o momento foram inseridos no banco dados 14 livros com trabalhadores de Bagé assim distribuídos: 50 fichas (três livros), 49 fichas (três livros), 48 fichas (três livros), 47 fichas (um livro), 45 (dois livros), 40 fichas (um livro) e em apenas um livro há somente uma ficha. 264 SUMÁRIO Os trabalhadores da charqueada industrial nos dados da Delegacia Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul Professora Empacotadora de fumo Industriaria/Empacotadora/ Zeladora/ Auxiliar de escritório/Enfermeira/ Telefonista/Parteira prática/não informado 3 2 1 Fonte: Acervo da Delegacia Regional do Rio Grande do Sul-NDH-UFPel. Já em relação à cor registrada, os dados da DRT/RS apontavam para 472 fichas com a informação da cor como “branca”, 69 como “parda”, 54 como “preta”, 17 como “morena”, seis como “não informado” e uma como “mista”. No que se refere a distribuição por cor no Censo de 1940, 47.064 totalizavam cor “branca”, 7.045 cor “preta”, 12 cor “amarela”, 4.854 cor “parda” e 23 com cor “não declarada” (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 1950, p. 53). É possível considerar que as informações das fichas, na comparação com o resultado do recenseamento, não estavam eqüidistantes, ou seja, a pouca presença de pessoas com registro de outras cores no censo estão condizentes com os dados da delegacia, visto que em ambos a cor que predominou foi a branca. Sobre essa questão, é importante que se faça uma ressalva em relação aos dados da DRT/RS. Como destacado anteriormente, os documentos não são definitivos ao se referir aos mundos do trabalho no estado, ou seja, eles constituem uma parcela dos trabalhadores, portanto, é provável que muitos outros com cores que não a branca trabalhavam no município em ocupações que, talvez, não os estimulassem solicitar uma carteira profissional.5 Essa hipótese também é amparada nos próprios dados até então inseridos no banco sobre os trabalhadores de Bagé, no que se refere tanto as mulheres como aos não brancos nos mundos do trabalho na cidade. Se, por um lado, a ocupação da mão de obra feminina era diversificada, por outro, ao incluí-la na totalidade das informações sobre a profissão registrada nas fichas, tal diversificação se torna mais evidente. Dessa forma, os resultados com muitas profissões, mas com poucos trabalhadores, indicam que havia muitos outros – tanto mulheres, como não brancos – que não solicitaram o 5. Tiago Rosa da Silva afirma que “diversos mecanismos [foram] acionados por sujeitos negros em Bagé no Pós-abolição através de seus espaços associativos, a saber: imprensa, entidades carnavalescas e clubes sociais” (SILVA, 2018, p. 30). Tais mecanismos foram estudados por ele em sua dissertação tornando evidente, portanto, que a população negra bageense, no período abordado neste texto, era muito superior ao número de solicitações de carteira até então averiguadas no Acervo da DRT/RS. 265 SUMÁRIO Os trabalhadores da charqueada industrial nos dados da Delegacia Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul documento ou suas fichas se perderam ao longo do tempo. A tabela seguinte apresenta as profissões registradas nas fichas de homens e mulheres com cinco ou mais trabalhadores: Tabela 2: Quantitativo das Profissões registradas por trabalhadores e trabalhadoras Profissões Trabalhadores/ Trabalhadoras Ferroviário Bancário Servente Padeiro Comerciário Auxiliar de comércio Cozinheira/Cozinheiro Garçom Pedreiro Camareira/Camareiro Jornaleiro Chofer Carneador Carpinteiro Marceneiro Copeira/Copeiro Professora/Professor Mecânico Jornalista Eletricista 83 76 64 32 30 75 26 29 16 13 11 10 7 7 7 7 7 6 5 5 Fonte: Acervo da Delegacia Regional do Rio Grande do Sul-NDH-UFPel. Além dessas, outras ocupações registradas nas fichas foram: tipógrafo, auxiliar de padaria, sapateiro, pintor, foguista, masseiro, ronda, preparador de charque, gerente, cobrador, carroceiro, lustrador, porteiro, enfermeira, empacotador de fumo, doceira, contador, químico, colchoeiro, agricultor, serrador, engenheiro 266 SUMÁRIO Os trabalhadores da charqueada industrial nos dados da Delegacia Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul agrônomo, telefonista, escriturário, guarda-livros, confeiteiro, engenheiro civil, vulgarizador, servente de pedreiro, ourives, impressor, entre outras. Tanto as ocupações da tabela como essas, com quatro ou menos trabalhadores, demonstram a variedade da mão de obra na cidade, com atividades laborais vinculadas aos setores do comércio, de serviços, construção civil e industrial. Da mesma forma, essa diversificação também permite considerar que Bagé possuía intensas atividades econômicas, o que a coloca como um pólo empregatício no cenário econômico do estado, assemelhando-se com Pelotas e Rio Grande, outras duas cidades da zona sul com intensas atividades e, igualmente, com bastante demandantes de carteiras profissionais. Ainda, comparando as duas tabelas, nota-se que algumas ocupações femininas, como cozinheira, camareira, copeira e professora, também foram encontradas entre os homens. Destaca-se, nesse sentido, os cozinheiros, que totalizam 21 homens enquanto apenas cinco mulheres são cozinheiras. O maior grupo de trabalhadores foi formado pelos ferroviários, todos vinculados a Viação Férrea do Rio Grande do Sul. Os bancários estavam distribuídos nas seguintes instituições: Banco da Província do Rio Grande do Sul, Banco Nacional do comércio e Banco do Brasil. Sobre as demais profissões, sobretudo aquelas relacionadas ao comércio, os vínculos eram com estabelecimentos diversos, muitos dos quais não identificavam o nome fantasia, e sim o do empregador. A pesquisa nesse campo específico da ficha – estabelecimento – permitiu verificar uma significativa presença de trabalhadores na Charqueada Industrial. No próximo tópico serão apresentadas algumas informações dos seus trabalhadores e, também, as fotografias entregues por eles no momento da solicitação da carteira. Os trabalhadores da Charqueada Industrial Em 1904 Antônio Nunes de Ribeiro Magalhães, o Visconde de Ribeiro Magalhães – comerciante português e proprietário de outra charqueada, a Santa Thereza – arrendou a Companhia Industrial Bageense, a qual foi comprada por ele em 1907, e renomeada para Charqueada Industrial (ALVES, FORNECK, SILVEIRA, 2019, p.04) (FAGUNDES, 2005, p.133). Em 1912 foram iniciadas as tratativas para a transformação industrial da charqueada em um empreendimento voltado ao comércio internacional, sobretudo de carne enlatada. O Visconde 267 SUMÁRIO Os trabalhadores da charqueada industrial nos dados da Delegacia Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul Tinha em mente a exportação de carnes e congelados para o mercado consumidor da Europa. Não podendo prescindir nem do capital nem de técnicos do Velho Mundo, procurou integrar na empresa elementos destacados do capitalismo inglês. Com o conceito e prestígio de que gozava, conquistou a adesão de duas altas personalidades do mundo financeiro da Inglaterra; Mister K. Wilson, um dos diretores da famosa companhia de navegação Mala Real Inglesa, e Mister Bruster, proeminente banqueiro, membro da diretoria do Bigstafe Bank de Londres. Com essas figuras de projeção internacional, foi organizada a “Anglo Brazilian Meat Company”, com capitais ingleses e brasileiros. O Visconde participava com 23,75% do capital da sociedade. (FAGUNDES, 2005, p.133) (Grifo no original) A sociedade planejada e firmada pelo Visconde não durou muito tempo. Com o advento da Primeira Guerra Mundial, a sociedade foi desfeita em 1915. Já o Visconde entrou em falência em 1923 (FAGUNDES, 2005, p.134). Contudo, ao buscar por investidores ingleses, ele tentou associar a sua charqueada aos recursos mais modernos no que se refere à tecnologia de carne frigorificada, o que teria alçado a charqueada para um outro nível de produção, tornando-a um frigorífico voltado à exportação. Isso aconteceu, um pouco menos de 10 anos depois do fim da sociedade do empreendedor bageense, na cidade de Barretos quando, outro grupo de capital inglês, o Vestey Brothers, instalou o Frigorífico Anglo de Barretos, em 1923 (ARAUJO, 2002).6 Se a sociedade envolvendo a Charqueada Industrial tivesse prosperado, certamente Bagé estaria entre os municípios pioneiros na instalação de indústrias frigorificadas no Brasil. Contudo, a charqueada continuou sua produção nos anos seguintes ao fim da sociedade e mesmo após a falência do Visconde. Suas atividades não se ampliaram da forma como ele havia auspiciado, mas, provavelmente, continuou destinando sua produção para o mercado interno. Essa constatação é feita a partir da análise dos dados dos trabalhadores da Charqueada que solicitaram carteira profissional no ano de 1941. A Charqueada Industrial ocupa a terceira posição entre os totais de solicitações em Bagé, com 39 pedidos de carteira.7 A ocupação 6. No ano seguinte, o mesmo grupo inaugurou o Frigorífico Anglo de Fray Bentos, no Uruguai (MICHELON, 2012). Já a unidade do Frigorífico Anglo de Pelotas foi inaugurada em 1943 após obras de readequação do prédio do antigo Frigorífico Sulriograndense, que havia sido instalado em Pelotas, com capital nacional, no ano de 1918. (MICHELON, 2012) (LOPES; SCHMIDT, 2018). 7. Como destacado anteriormente, a Viação Férrea do Rio Grande do Sul ocupa a primeira 268 SUMÁRIO Os trabalhadores da charqueada industrial nos dados da Delegacia Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul com maior registro nas fichas foi servente, com 29 trabalhadores. Na sequência, as informações apresentam uma mão de obra que pode ser considerada como especializada: preparador de charque (2), carneador (2) e preparador de couros (1). Os demais desempenhavam atividades específicas: foguista (1), mecânico (1), ronda (1), carpinteiro (1) e porteiro (1). A charqueada, certamente, contava com um número maior de trabalhadores, sobretudo em relação àqueles especializados. De acordo com Alessandro Bica: “As charqueadas bageenses geravam os maiores números de empregos na região de Bagé entre o final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, constituindo-se no entorno do estabelecimento da charqueada, uma gama de empregos diretos e indiretos” (BICA, 2013, p. 57). A presença significativa dos serventes aponta para uma constatação relevante. É possível considerar que muitos deles trabalhavam em sintonia com os preparadores e carneadores, executando as mesmas tarefas ou outras consideradas imprescindíveis para o desempenho de uma charqueada, como o desmembramento dos animais abatidos e o salgamento das carnes. Dessa forma, a ocupação de servente não deve ser considerada somente a partir do desempenho de tarefas como a limpeza e a organização do espaço físico da charqueada.8 Ainda, outra explicação pode estar relacionada com os salários, ou seja, um servente não receberia o mesmo valor de um trabalhador especializado, portanto, para a charqueada era mais vantajoso, economicamente, contratar a maioria de seus trabalhadores como serventes e uma minoria como especializados.9 Todos os trabalhadores da charqueada que solicitaram carteira eram homens. Em relação ao ano de nascimento, foi verificado que um primeiro grupo, formado por 13 trabalhadores, nasceu no século XIX (1880, 1886, 1888, 1889, 1891 (2), 1893 (2), 1894, 1895, 1899 e 1900 (2)). Os demais nasceram entre os anos de 1901 e 1921. O trabalhador mais velho tinha 61 anos quando solicitou sua carteira enquanto o mais novo, 20 anos. Cruzando os anos de nascimento do primeiro grupo com o estado civil, 11 eram casados e dois eram solteiros. Já entre os nascidos no século XX, 10 casados, 15 solteiros e um viúvo. Sobre o registro das posição, com 83 trabalhadores. Em seguida, está o Banco da Província do Rio Grande do Sul, com 44 fichas. 8. Essa constatação em relação aos serventes já foi observada na análise de outros grupos de trabalhadores vinculados a uma mesma empresa. 9. As fichas dos trabalhadores da Charqueada Industrial não registravam informações sobre salários. 269 SUMÁRIO Os trabalhadores da charqueada industrial nos dados da Delegacia Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul cores nas fichas, 25 com cor “branca”, nove com cor “preta”, quatro com cor “parda” e um com cor “morena”. Essas informações vão ao encontro do que foi constatado acima no que se refere aos totais das cores registradas nas fichas solicitadas em Bagé, ou seja, a cor “branca” igualmente predominava entre os trabalhadores da charqueada. A maioria era nascida em Bagé, totalizando 28 trabalhadores. Os demais nasceram em Lavras do Sul (2), Dom Pedrito (2), Arroio Grande (1), Rio Negro- Uruguai (1), Tres Cerros-Uruguai (1), Jaguarão (1), Uruguaiana (1), Rio Pardo (1) e Cacimbinhas (atual Pinheiro Machado) (1). Ao cruzar os dados sobre a cidade de nascimento com a residência informada na ficha, 21 bageenses apontaram o próprio local de trabalho como suas moradias. Além deles, outros sete também indicaram a Charqueada como residência, os nascidos em Lavras do Sul, Tres Cerros, Rio Pardo, Jaguarão, Arroio Grande e Cacimbinhas. 28 dos 39 trabalhadores moravam, provavelmente, não nas dependências da charqueada, mas no seu entorno. Para compreender essa questão, é necessário retornar ao histórico do empreendimento e da outra charqueada, a Santa Thereza. Em 1907 o Visconde de Ribeiro Magalhães “construiu uma linha de bondes (puxada por mulas) e uma Avenida (denominada “Boulevard 16 de Outubro”) interligando as charqueadas Santa Thereza e Companhia Industrial Bageense, que distanciavam, aproximadamente, 1000m entre si” (SOARES, 2006, p. 72). Nos anos posteriores à abertura da avenida, trabalhadores se instalaram nas suas imediações e é nelas que os trabalhadores que solicitaram carteira em 1941, provavelmente, residiam: No entorno da Charqueada Santa Thereza formou-se um complexo urbano com inúmeros estabelecimentos industriais e comerciais, além de residências destinadas aos trabalhadores. A vila abrigava a família do Visconde e cerca de 840 pessoas, que trabalhavam tanto nas charqueadas quanto nas fábricas existentes entre a Charqueada Santa Thereza e a Charqueada Industrial (FAGUNDES, 2012). (ALVES, FORNECK, SILVEIRA, 2019, p.05). Seus locais de moradia, portanto, ficavam próximos a charqueada e no complexo urbano, sendo ela um ponto de referência, o que os levou a informá-la como sua residência. É provável que os outros trabalhadores também residissem em locais próximos ao seu local de trabalho. Cinco deles informaram suas residências acrescentando a localização “subúrbio”: Vila Carlos Alberto, Vila 270 SUMÁRIO Os trabalhadores da charqueada industrial nos dados da Delegacia Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul Arejano (2 trabalhadores), Tupy Silveira e Santa Tecla. Outros quatro informaram como endereços: São Martim (2 trabalhadores), Vila Operária e Rio Negro enquanto um indicou apenas “Bagé” e outro um endereço em uma rua do centro da cidade: Marechal Floriano, 78. A região que abrigava as duas charqueadas e as interligava recebeu, ao longo dos anos após suas inaugurações, uma infraestrutura que possibilitava aos trabalhadores residir próximo aos dois locais de trabalho, o que justificava o endereço informado pela maioria. Conforme Sandra Pesavento, o Visconde de Ribeiro Magalhães, instalou, na primeira década do século XX, nas imediações da Charqueada Santa Thereza, “um colégio misto para 60 alunos, sendo o professor pago pela Intendência Municipal” (PESAVENTO, 1988, p.59). Ainda, de acordo com a autora, já em 1909, a propriedade do Visconde possuía: “casas de material construídas para abrigar o pessoal do estabelecimento” (PESAVENTO, 1988, p.82). Tanto a escola como as casas foram estabelecidas quase concomitantes à fundação da Charqueada Industrial. Dessa forma, é possível considerar que nos anos posteriores muitos dos trabalhadores residiam no complexo urbano charqueador, como exemplifica os 28 trabalhadores que solicitaram carteira em 1941. A ficha de qualificação profissional proporciona estabelecer possibilidades de análise de parte da trajetória profissional dos trabalhadores. Suas informações permitem identificar os dados pessoais e profissionais dos solicitantes e, em alguns casos, como este dos trabalhadores da Charqueada Industrial, averiguar determinadas peculiaridades, como a residência informada ser idêntica ao vínculo empregatício. Contudo, outra possibilidade relevante proporcionada pela ficha é a visualização do rosto do trabalhador a partir da sua fotografia 3x4 e a forma como se apresentaram diante do fotógrafo. Apresentar e analisar essas fotografias em pequeno formato permite dar a ver esses trabalhadores comuns, os quais, possivelmente, somente têm seus passados conservados, quiçá, pelas memórias familiares. A figura 1 apresenta as fotografias dos trabalhadores especializados (o preparador de charque,10 o carneador e o preparador de couros), o foguista, o mecânico, o ronda, o carpinteiro e o porteiro enquanto as figuras 2, 3 e 4 trazem as fotografias dos serventes. Em todas elas é visível a placa que indica a data do registro. Esse acessório era obrigatório, conforme o decreto que criou a carteira em seu artigo 6º: 10. A fotografia de um dos preparadores de charque não está fixada na sua ficha. 271 SUMÁRIO Os trabalhadores da charqueada industrial nos dados da Delegacia Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul As fotografias que figurarão na carteira deverão reproduzir a imagem da cabeça tomada de frente, com as dimensões aproximadas de três centímetros por quatro, tendo, num dos ângulos, em algarismos bem visíveis, a data em que tiverem sido feitas, não se admitindo fotografias tiradas mais de um ano antes da sua apresentação (BRASIL, 1932A). Figura 1: Trabalhadores da Charqueada Industrial Legenda: Eduardo Faccio (preparador de charque), Zoilo Rosas (mecânico), Joventil Garcia de Menezes (carneador), Pery Machado Moreno (carneador), Aparício Mendes (Preparador de couros), Santiago Alves Martins (foguista), Cypriano Teixeira Nunes (ronda), Nicanor Ramos (carpinteiro) e Conceição Silveira (porteiro). Fonte: Acervo da Delegacia Regional do Rio Grande do Sul-NDH-UFPel. Figura 2: Trabalhadores da Charqueada Industrial Legenda: Cesario Madruga, João Silveira, Valentim Bastos, Ladislau Oliveira, Mario Gonçalves de Oliveira, Apolonio Nunes, Leopoldo Alves Marimono, Valdemar Alarcom, Cícero dos Santos Gonçalves e Oliverio Moraes. Fonte: Acervo da Delegacia Regional do Rio Grande do Sul-NDH-UFPel. 272 SUMÁRIO Os trabalhadores da charqueada industrial nos dados da Delegacia Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul Figura 3: Trabalhadores da Charqueada Industrial Legenda: Estevão Machado, Valdelirio Carvalho, Oscar Sais Proença, Paulo Barboza, Rozauro Brigido Conde, Derqui Rodrigues Dornel, Manoel Brasilio Corrêa da Silva, Athaydes Rodrigues da Silva, João Aristides de Freitas e Marcos Farias. Fonte: Acervo da Delegacia Regional do Rio Grande do Sul-NDH-UFPel. Figura 4: Trabalhadores da Charqueada Industrial Legenda: Dejalma Couto, João Batista Severo, Walmor Pereira, Juvenal Leite, Candido Moraes, Miro Pereira, João Fernandez Barcelos, Marcilio Boba da Rosa e João Carlos Soares. Fonte: Acervo da Delegacia Regional do Rio Grande do Sul-NDH-UFPel. Nas fotografias são identificados dois modelos de placas, o que leva a considerar que se tratava de dois estúdios fotográficos. Em um deles, é possível ler o nome do estúdio: Fotoarte (por exemplo, na figura 1, nas placas do segundo, do quarto e nos últimos quatro trabalhadores). A economia de Bagé, da mesma forma que outras cidades importantes do interior do Rio Grande do Sul, se desenvolveu 273 SUMÁRIO Os trabalhadores da charqueada industrial nos dados da Delegacia Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul nas últimas décadas do século XIX, o que proporcionou o crescimento urbano e cultural (LEMIESZEK, 1997) (FAGUNDES, 2005) (BICA, 2013). Dessa forma, estabelecimentos fotográficos se instalaram na cidade visando atender, sobretudo, a elite local. Luisa Brasil destaca que, com a instalação de dois estúdios – Nova Photographia de Amoretty e Poppe e Atelier José Greco11 – “pode-se dizer que, já em fins do século XIX, aquela população já possuía familiaridade com a imagem” (BRASIL, 2013, p. 65), o que inauguraria a produção de fotografias na cidade. Não foram encontradas informações sobre o fotógrafo e nem mesmo sobre o Fotoarte. No entanto, é possível considerar que, naquele momento, os trabalhadores tinham a sua disposição dois estabelecimentos para decidir em qual deles realizar o seu registro fotográfico, confirmando, assim, uma possível continuidade da familiaridade com a imagem, como destacado pela autora. Por outro lado, é relevante pontuar que, provavelmente, para muitos trabalhadores, a sua fotografia 3x4 foi o seu primeiro registro fotográfico. A produção de uma fotografia ainda permaneceu onerosa até meados dos anos 1940, o que não permitiu “um uso massivo da técnica”, restando os retratos fotográficos para os “segmentos que podiam arcar com o pagamento dos serviços de um fotógrafo” (BARBOSA, 2018, p. 150). Apenas um trabalhador foi fotografado em novembro de 194012 (o primeiro da figura 2) e todos os demais foram fotografados entre março e abril de 1941, alguns, inclusive, no mesmo dia, embora não se verifica um registro coletivo, e sim individual. Nesse sentido, não houve, por exemplo, uma atitude do próprio empregador em incentivar a produção concomitante das fotografias, por exemplo. É provável que todos eles foram avisados sobre a importância da carteira e, informados do dia que os dados seriam recolhidos, procuraram os estúdios. Dessa forma, quando as fichas foram preenchidas, todos já estavam com as suas fotografias 3x4. Todos os trabalhadores apresentaram-se diante do fotógrafo com suas melhores roupas, o que leva a interpretar que eles estavam, como destacou Miriam Moreira Leite ao analisar fotografias de famílias do século XIX e começo do século XX, com suas vestimentas de domingo, de sair de casa ou de festa (LEITE, 1993, p.97). A maioria veste casaco e gravata enquanto outros usavam lenços, acessório muito usado no 11. Sobre o fotógrafo José Greco, ver: (ANDRADE; BRASIL; LOPES, 2021). 12. Conforme sua ficha indica a sua solicitação foi em 1941. 274 SUMÁRIO Os trabalhadores da charqueada industrial nos dados da Delegacia Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul tradicionalismo do Rio Grande do Sul. Percebe-se, por exemplo, que o terceiro, o quinto, o sexto e o oitavo trabalhadores da figura 1 usam lenços com nós elaborados, cada um com um tipo diferente. Como destacado acima, a maioria informava casado como o estado civil, o que os levava a indicar suas esposas como dependentes, assim como filhos – apenas dois não indicaram filhos e, um desses, não indiciou nenhum dependente. Também nas fichas dos solteiros foram anotadas informações sobre companheiras e filhos como dependentes. Entre os casados, um indicou 10 dependentes: a esposa e nove filhos;13 dois indicaram nove: a esposa e oito filhos (sétimo trabalhador da figura 1 e segundo trabalhador da figura 4); outros dois, oito dependentes, a esposa e sete filhos (sétimo trabalhador da figura 2 e sétimo trabalhador da figura 4) e dois indicaram sete dependentes: a esposa e seis filhos (segundo trabalhador da figura e primeiro trabalhador da figura 4). Entre os demais casados o número de filhos variou entre zero e seis. Na fichas do grupo dos solteiros também foram anotadas informações sobre dependentes: entre os 17 solteiros, 13 registraram filhos e companheiras como dependentes. Entre eles, um com seis dependentes, a companheira e cinco filhos (décimo trabalhador da figura 2) e três com cinco dependentes, a companheira e quatro filhos (segundo trabalhador da figura 2 e terceiro e décimo trabalhadores da figura 3). Entre os outros solteiros com filhos, o número de dependentes variou entre um e dois filhos. Os demais quatro solteiros, sem filhos, indicaram os pais como dependentes. O único viúvo (oitavo trabalhador da figura 3) registrou cinco filhos. Essas informações sobre o número de dependentes, sobretudo, em relação aos filhos, denotam outra constatação pertinente sobre esses trabalhadores. Além da maioria se estabelecer nas imediações do local de trabalho, alguns casaram e tiveram filhos, outros tiveram filhos com companheiras, mas, todos eles direcionaram suas vidas para a charqueada, tanto no que se refere ao desempenho profissional, como também na esfera privada constituindo família e criando os filhos nas imediações da sede do empreendimento charqueador. Considerações finais A Charqueada Industrial, o empreendimento, não resistiu ao tempo, embora a Vila de Santa Thereza, localizada no mesmo complexo, tenha permanecido: “Os prédios localizados no atual 13. Este é o preparador de charque Pacheco dos Santos Menezes, cuja fotografia se perdeu. 275 SUMÁRIO Os trabalhadores da charqueada industrial nos dados da Delegacia Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul Centro Histórico de Santa Thereza são remanescentes da época do apogeu das charqueadas em Bagé. Essas edificações representam vários segmentos das atividades que eram realizadas no local” (ALVES, FORNECK, SILVEIRA, 2019, p.06). O passado arquitetônico continua evocando a história do trabalho realizado nas charqueadas fundadas pelo Visconde de Ribeiro Magalhães, e sua trajetória de empreendedor é conhecida. Já as histórias dos trabalhadores, homens que desempenhavam funções variadas nas linhas de produção do charque, desde o abate e o desmembramento dos animais até o processo de salgar as carnes, são pouco conhecidas.14 O acervo da DRT/RS possibilita compreender uma parte de suas histórias. As fichas de qualificação profissional, produzidas com o objetivo específico à solicitação da carteira profissional, é um documento exclusivo no que se refere à trajetória profissional dos trabalhadores, já que permite averiguar uma série de informações pessoais e profissionais no momento da solicitação da carteira. No conjunto de fichas analisado neste texto, um dos dados mais relevantes foi aquele sobre as residências, com a maioria declarando a própria charqueada como seu endereço. Essa constatação sugere que muitos deles aproveitaram os benefícios oferecidos pelo complexo charqueador para se instalarem e, como também observado nas fichas, constituir família e criar os filhos. Ainda, a pouca presença de trabalhadores especializados e o significativo número de serventes indica que estes desempenhavam atividades que requeriam determinado conhecimento, considerado especializado, como o executado por aqueles. Todos esses dados se tornam ainda mais relevantes ao averiguar as trajetórias desses trabalhadores associadas com suas fotografias 3x4. São elas que apresentam os rostos, as expressões e as vestimentas escolhidas por eles para a produção do registro. Em outras palavras, as fotografias 3x4 contam suas histórias com mais sensibilidade, dando a ver o trabalhador comum, o qual, com sua força de trabalho contribuiu com a economia da cidade, assim como para a história da Charqueada Industrial. 14. Importante destacar que quando se refere somente aos homens, é uma referência aos 39 trabalhadores cujas fichas foram localizadas no acervo da DRT/RS. Nesse sentido, é provável que nas linhas de produção da Charqueada Industrial, em outros momentos de sua história, as mulheres também trabalharam. 276 SUMÁRIO Os trabalhadores da charqueada industrial nos dados da Delegacia Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul Referências ACERVO DA DELEGACIA REGIONAL DO TRABALHO DO RIO GRANDE DO SUL. Núcleo de Documentação Histórica Professora Beatriz Loner, Universidade Federal de Pelotas. ALVES, Isadora Baptista; FORNECK, Vanessa; SILVEIRA, Aline Montagna da. Vila de Santa Shereza, Bagé/RS: o tempo e a preservação dos remanescentes industriais. Revista Seminário de História da Arte. Pelotas, UFPel, v.01, nº 08, 2019, p. 01-14. Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/Arte/article/view/17902 Acesso em: 07/01/2021 ARAÚJO, Célia Regina Aiélo. Perfil dos operários do Frigorífico Anglo de Barretos-1927/1935. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2002. BARBOSA, Paulo Roberto. Crônicas do cinematógrafo. Escritos sobre cinema e fotografia. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2018. BICA, Alessandro Carvalho. A organização da educação pública municipal no governo de Carlos Cavalcanti Mangabeira (1925-1929) no município de Bagé/ RS. Tese (Doutorado em História) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2013. BRASIL, Luisa Kuhl. Retratos em (Re)vista: Do estúdio à imprensa ilustrada em Bagé, 1890-1921. Porto Alegre, 2013. Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013. BRASIL. Decreto nº 21.175, de 21 de março de 1932A. Disponível em: http:// www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-21175-21-marco-1932-526745-publicacaooriginal-1-pe.html Acesso em: 21/07/2020. BRASIL. Decreto nº 21.580, de 29 de Junho de 1932B. Altera e regulamenta o decreto n.º 21.175, de 21 de março de 1932, que institui a carteira profissional. Disponível em: https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/116710/decreto-21580-32 Acesso em: 21/07/2020. FAGUNDES, Elizabeth Macedo de. Inventário Cultural de Bagé: um passeio pela história. Bagé: Evangraf, 2005. GOMES, Angela de Castro. A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro: FGV, 2005. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Recenseamento Geral do Brasil – Parte XX Rio Grande do Sul. Tomo I. Rio de Janeiro: 1950. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/monografias/GEBIS%20 -%20RJ/CD1940/Censo%20Demografico%201940_pt_XX_t1_RS.pdf Acesso em: 03 abr. 2019. LEITE, Miriam. Retratos de família. São Paulo: EDUSP, 1993. LEMIESZEK, Cláudio. Bagé. Relatos de sua história. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 1997. 277 SUMÁRIO Os trabalhadores da charqueada industrial nos dados da Delegacia Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul LONER, Beatriz. O acervo sobre trabalho do Núcleo de Documentação Histórica da UFPel. In: SCHMIDT, Benito. (Org). Trabalho, justiça e direitos no Brasil. Pesquisa histórica e preservação das fontes. São Leopoldo: Oikos, 2010, p.09-24. LONER, Beatriz. Um perfil do trabalhador gaúcho na década de 30. In: Anais do IX Encontro Estadual de História da ANPUH/RS. Porto Alegre: ANPUH/RS-UFRGS, 2008, p.01-18. Disponível em: http://eeh2008.anpuh-rs.org.br/site/anaiseletronicos#C. Acesso em 08/11/2015. LOPES, Aristeu Elisandro Machado. O Acervo da Delegacia Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul: As fotografias 3x4 dos trabalhadores com sinais de varíola. In: GILL, Lorena; LOPES, Aristeu Elisandro Machado; CUNHA, Ariane; GONZÁLEZ, Ana. Núcleo de Documentação Histórica 30 anos: História, memórias e afetos. Passo Fundo: Acervus Editora, 2020, p. 20-37. LOPES, Aristeu Elisandro Machado; ANDRADE, Gustavo Figueira; BRASIL, Luisa Kuhl. O cerco de Bagé na Revolução Federalista de 1893: História, memória e fotografia. Rio de Janeiro: Paisagens Híbridas, 2021. LOPES, Aristeu Elisandro Machado; SCHMIDT, Mônica Renata. Os trabalhadores no Frigorífico Anglo de Pelotas no Acervo da Delegacia Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul: história, memória e fotografia. Revista Tempos Históricos, Marechal Cândido Rondon, UNIOESTE, v. 22, 2018, p. 398-423. Disponível em: http://e-revista.unioeste.br/index.php/temposhistoricos/article/view/17930 Acesso em: 08/02/2021. MICHELON, Francisca. Sociedade Anônima Frigorífico Anglo de Pelotas: o trabalho do passado nas fotografias do presente. Pelotas: Editora da UFPel, 2012. PESAVENTO, Sandra. A burguesia gaúcha: dominação do capital e disciplina do trabalho. (RS: 1889-1930). Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988. SILVA, Tiago Rosa da. Vivências e experiências associativas negras em Bagé-RS no Pós-abolição: imprensa, carnaval e Clubes Sociais Negros na fronteira sul do Brasil - 1913-1980. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2018. SOARES, Fernanda Codevilla. Santa Thereza: um estudo sobre as charqueadas da fronteira Brasil-Uruguai. Dissertação (Mestrado em Integração Latino Americana) – Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2006. 278 SUMÁRIO 279 SUMÁRIO ELITES, FAMÍLIA E RIQUEZA NA PECUÁRIA GAÚCHA: O CASO DOS ESTANCIEIROS E CHARQUEADORES DE BAGÉ (C. 1850-1930) Jonas M. Vargas1 280 SUMÁRIO Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha: o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930) 1 Introdução Ao longo de todo o século XIX, a pecuária foi o carro-chefe da economia sul-rio-grandense. A região da campanha, localizada no sudoeste da Província, era o principal espaço agrário dedicado a esse ramo de atividades, possuindo vastas pastagens povoadas com milhões de cabeças de gado. Nesse contexto, o município de Bagé destacou-se por conta de suas estâncias e rebanhos vacuns que abasteciam os mercados locais, mas que tinham como principal destino as charqueadas de Pelotas. No que diz respeito às mencionadas atividades econômicas, dois fatores merecem ser comentados inicialmente. A mão de obra escravizada no trabalho com o gado foi fator estrutural nessa economia regional, sendo amplamente utilizada nas pequenas, médias e grandes propriedades. E, o segundo, é que a criação de gado não foi realizada somente por ricos estancieiros. A paisagem agrária da fronteira foi marcada por uma grande presença de médios e pequenos criadores, sendo que muitos criavam em terras de terceiros, constituindo-se em agregados, o que tornava o espaço agrário considerado ainda mais complexo.2 No entanto, o presente capítulo não se dedicará ao estudo da escravidão e dos pequenos produtores, uma vez que o foco principal é analisar os mais ricos criadores de gado do município, assim como as charqueadas surgidas na passagem do século XIX para o XX. Tais 1. Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pelotas. 2. Essas ideias já estão mais do que consolidadas na historiografia. Ver, por exemplo, ZARTH (1997), OSÓRIO (2007), GARCIA (2005), FARINATTI (2010), MATHEUS (2016). 281 SUMÁRIO Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha: o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930) produtores, juntamente com suas famílias, configuravam parte de um grupo da elite econômica da fronteira sul, concentrando não apenas a riqueza fundiária da região, como também o prestígio social e o acesso aos principais espaços de poder político. Pode-se dizer, inclusive, que o período aqui estudado se constituiu no auge de poder político e econômico dessa classe de grandes proprietários rurais. Um estudo focado somente em Bagé pode revelar aspectos singulares referentes a esse município, mas também lançar luz para mecanismos de reprodução social comuns a toda a região da campanha, que ainda merecem ser mais bem estudados. Contudo, num período amplo de quase um século, muitas transformações de ordem econômica e social afetaram aquele território. Estudando a região da campanha rio-grandense, Stephen Bell (1998) percebeu que a modernização das técnicas produtivas na pecuária regional, aliadas ao avanço de práticas mais capitalistas na cultura dos campos, ocorreu em três etapas. Num primeiro momento, entre 1850 e 1870, algumas poucas iniciativas foram tomadas, como a importação de algumas raças cavalares e de carneiros merinos. Com apoio do governo provincial, houve certo entusiasmo com a ovinocultura, mas ela acabou não vingando da mesma forma como nos países do Prata. Posteriormente, entre 1870 e 1895, ocorreu de fato o investimento em novas raças cavalares inglesas e bovinas trazidas do exterior. A criação dos primeiros hipódromos e clubes de corrida promoveu uma maior popularização dessas iniciativas. Essa também foi a fase do cercamento dos campos e da expansão da malha ferroviária. Por último, as primeiras décadas do século XX marcaram a entrada da pecuária regional nos moldes mais capitalistas e modernos, dentro dos limites infraestruturais da região. As charqueadas, agora com trabalhadores assalariados, tiveram que disputar o gado com os primeiros frigoríficos, os engenheiros agrônomos começaram a ter destaque no processo de modernização das técnicas agropecuárias, surgiram associações de classe, periódicos especializados, exposições e novas instalações destinadas a melhor a qualidade dos rebanhos. Apesar de tal processo de modernização capitalista no campo ter se realizado de maneira atrasada se comparado à Argentina e ao Uruguai, a região da campanha foi a porta de entrada de tais inovações técnicas.3 Neste sentido, irei me deter mais na primeira fase, analisando a estrutura agrária bageense no meado do século XIX, os mais ricos estancieiros e os níveis de concentração de riqueza locais, e na terceira 3. Sobre a história da pecuária gaúcha escravista e capitalista ver PESAVENTO (1980), ZARTH (1997), BELL (1998), FARINATTI (2010), GARCIA (2005, 2010) e LEIPNITZ (2010). 282 SUMÁRIO Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha: o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930) fase, já no início do século XX, quando além da criação de gado aos moldes já capitalistas, Bagé também se tornou um importante polo charqueador regional. A partir desses dados, a análise da permanência de algumas famílias na camada superior dessa hierarquia local também se configura num dos objetivos finais do texto. Bagé e sua elite agrária no meado do oitocentos Creio não ser necessário realizar uma análise aprofundada a respeito das origens do município de Bagé, pois outros autores já o fizeram.4 Nesse sentido, basta mencionar que quando o exército luso-brasileiro acampou nesse território sob às ordens de D. Diogo de Souza, em 1811, já existiam algumas estâncias na localidade. Elas eram oriundas das primeiras doações de sesmarias realizadas entre 1789 e 1797 e que chegaram a um total de 16 propriedades nesse período. Posteriormente, entre 1800 e 1822, foram doadas mais 85 sesmarias em terras que vieram a constituir o município de Bagé no século XIX.5 Nesse momento, a região já estava totalmente integrada ao sistema econômico das charqueadas escravistas localizadas em Pelotas. Aliás, foi justamente o surgimento dessas charqueadas, a partir da década de 1780, que criou uma grande demanda por gado vacum, fomentando a migração para aquela fronteira aberta e a consequente expansão das atividades pecuaristas com o uso do trabalho escravizado.6 Todos os anos, os novilhos da região da campanha abasteciam as charqueadas, que exportavam a carne-seca para o sudeste e o nordeste da América luso-brasileira e os couros para os mercados do Atlântico Norte (VARGAS, 2016). Contudo, não se pode contar essa história sem mencionar a questão da fronteira com o Estado Oriental do Uruguai, que até a Guerra da Cisplatina (1825-1828) constituía-se numa província brasileira. A anexação do território, ainda no período colonial, foi muito favorável à economia pecuário-charqueadora rio-grandense. Estancieiros luso-brasileiros compraram terras no país vizinho por baixíssimo preço, estabeleceram propriedades de criação e 4. Para referências mais tradicionais, ver PIMENTEL (1940) e TABORDA (1959). Para uma análise mais recente, ver MATHEUS (2016). 5. Sobre as doações e detalhes das mesmas, ver BRASIL (2009). Algumas dessas sesmarias encontravam-se em terras que hoje pertencem a municípios que foram se emancipando de Bagé ao longo dos anos, como Dom Pedrito, Hulha Negra, Aceguá e Candiota. 6. Sobre este processo, ver OSÓRIO (2007) e FARINATTI (2010). 283 SUMÁRIO Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha: o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930) arrebataram muitos bovinos para o mercado rio-grandense, legal e ilegalmente, tanto em épocas de paz quanto em épocas de guerra.7 Décadas depois, os rebanhos uruguaios continuaram sendo fundamentais para a ampliação e desenvolvimento das charqueadas pelotenses. De acordo com Alvarino Marques (1987, p. 92), todos os anos Pelotas recebia cerca de 100 mil novilhos vindos do Uruguai. Não existem dados precisos sobre este comércio e muito menos sobre o contrabando, mas, em 1864, o Presidente da Província declarou que o Rio Grande do Sul absorveu mais de 130 mil reses do país vizinho. Relatório Presidente da Província do Rio Grande do Sul, Espiridião Eloy de Barros, de 1864, p. 60.8 Desnecessário dizer que Bagé constituía-se em importante corredor de passagem dessas tropas de gado, fazendo parte de um espaço econômico pecuário-escravista que se estendia do interior do Uruguai até o complexo porto-charqueada, localizado nas cidades de Pelotas e Rio Grande. As charqueadas pelotenses abatiam, em média, de 300 a 350 mil novilhos por safra. A oscilação dos preços do charque, do sal, dos couros, assim como a criação de impostos e o encarecimento dos fretes, afetavam os preços do gado e, consequentemente, os custos e ganhos entre os criadores (VARGAS, 2016). A inserção de Bagé nesse mercado de gado para o litoral sul se deu com enorme destaque, movimentando a economia local, atraindo novos moradores e possibilitando o crescimento se sua população. Conforme Matheus, quando a capela de São Sebastião de Bagé começou a ser construída, em 1815, o povoado contava com duas mil almas. A Guerra dos Farrapos (1835-1845) foi bastante prejudicial à economia regional e colaborou com a dispersão de muitas famílias. Mas em 1846, um ano antes de ser elevada à condição de Vila, sua população alcançou 4.104 habitantes. Em 1858 ela subiu para 12.342 e, no Censo geral de 1872, chegou a 21.768 pessoas. A população cativa sempre foi crescente, ultrapassando os 4.800 escravizados nesse último ano (MATHEUS, 2016, p. 91-92). Em meio a esse processo, Bagé tornou-se o segundo munícipio com o maior rebanho bovino da província. Em 1858, quando esses dados foram reunidos em um recenseamento agrário provincial, Bagé foi apontada como possuindo 7. Sobre a expansão luso-brasileira na Banda Oriental ver ALADREN (2012) e MANEGAT (2015). Sobre o contrabando e o roubo de gado na fronteira, ver THOMPSON FLORES (2014). 8. Relatório Presidente da Província do Rio Grande do Sul, Espiridião Eloy de Barros, de 1864, p. 60. 284 SUMÁRIO Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha: o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930) 260 estâncias de criação e 531.640 cabeças de gado vacum, ficando atrás apenas de Alegrete, que tinha, respectivamente, 391 e 772.232.9 É nesse momento que inicio a análise a respeito de quem eram os grandes estancieiros bageenses do período.10 Pesquisando todos os inventários post-mortem de Bagé, Matheus localizou um total de 314 documentos com avaliação completa, entre 1820 e 1870. Sabe-se que os inventários são fontes que sobre-representam as camadas mais abastadas da sociedade estudada, mas na falta de censos agrários mais detalhados ou outros documentos que possibilitariam entender melhor a distribuição da riqueza, eles são comumente utilizados pelos praticantes da história agrária e história econômica. É bem verdade que eles refletem o patrimônio das pessoas no momento de seu falecimento, inviabilizando uma análise das atividades econômicas ao longo de uma vida. Contudo, os inventários possibilitam o acesso a dados relevantes a respeito da estrutura produtiva, da disseminação da escravidão, dos investimentos em terras e gado e da transmissão de riqueza de uma geração para outra.11 Um dos primeiros aspectos destacados por Matheus diz respeito à diversificação das atividades econômicas em Bagé. Não foi raro encontrar proprietários que, além de criar gado, também se dedicavam à pequena agricultura. “Ao invés da visão tradicional, que há um bom tempo vem sendo desfeita, em que na Campanha praticavase somente a pecuária, vemos que em 43% dos estabelecimentos (e este é um número mínimo) a agricultura era praticada” (MATHEUS, 2016, p. 141-142). Soma-se a isso o fato de que a criação também era diversificada. Em apenas 22,5% dos inventários dos criadores de gado, a pecuária bovina era a atividade exclusiva. Apesar dos rebanhos vacuns serem muitos maiores, também se buscava criar outros tipos de gados: de todos os 284 mil animais arrolados nos inventários, 79% eram bovinos, 11% cavalares, 9% ovinos e 1% asininos. Os animais compunham apenas parte dos bens dos inventariados. Juntos com 9. “Mapa numérico das estâncias existentes dos diferentes municípios da província, de que até agora se tem conhecimento oficial, com declaração dos animais que possuem e criam, por ano, e do número de pessoas empregadas no seu custeio” (Arquivo Histórico do Estado do Rio Grande do Sul. Fundo Estatística. Maço 2, 1858). 10. Os dados elencados a seguir sobre os mais ricos estancieiros só foram possíveis de ser compilados porque o historiador Marcelo Matheus nos cedeu gentilmente a sua base de dados de inventários post-mortem para análise. Além disso, para uma síntese da estrutura produtiva local utilizo muitas das conclusões que o autor chegou na sua tese de doutorado (MATHEUS, 2016). 11. Sobre os usos possíveis dos inventários post-mortem, ver VARGAS (2013). 285 SUMÁRIO Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha: o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930) as terras e os escravizados eles atingiam mais de 80% do total dos patrimônios (MATHEUS, 2016, p. 156-157). Obviamente que essa riqueza estava concentrada nas mãos das famílias mais ricas do período. Os 31 proprietários com os maiores patrimônios somavam 10% dos inventários, mas detinham quase 50% da riqueza total. Contudo, essa desigualdade foi aumentando com o tempo. Matheus percebeu que os 10% dos mais ricos, entre 1820 e 1835, possuíam 39% da riqueza total no período, mas na década de 1860, esse índice chegou a 52,5% (MATHEUS, 2016, p. 163). Portanto, a partir do meado do século XIX, alguns fatores econômicos favoreceram esse maior enriquecimento, seguido de um aumento da concentração patrimonial. Dois aspectos importantes dizem respeito à valorização da mão de obra e das terras. Com relação à mão de obra, a Lei Eusébio de Queiroz (1850) extinguiu o tráfico transatlântico, interrompendo a oferta de africanos escravizados para o mercado brasileiro, o que resultou num aumento dos preços desses trabalhadores cativos. No mesmo ano, a Lei de Terras também regulamentou o mercado fundiário, contribuindo com o encarecimento dos bens rurais, num processo de valorização que já estava em vigor, visto o início do fechamento da fronteira agrária.12 Esse é um bom momento para analisar quem eram os proprietários mais ricos do período. Dentre os inventários trabalhados por Matheus, a maior fortuna era a de Domingos de Souza Neto, irmão do antigo general farroupilha Antônio de Souza Neto, que chegava a 309 contos de reis. Quando trabalham com valores monetários no século XIX é comum os historiadores converterem os valores dos mil réis para as libras esterlinas, pois a moeda inglesa foi mais estável e sofreu menos com as flutuações inflacionárias, o que favorece as comparações. Nesse sentido, o patrimônio de Domingos somou 28.410£ (libras esterlinas). Somente 12 bageenses, com inventários abertos entre 1820 e 1871, ultrapassaram as 10.000£. Entre eles estavam Pedro Rodrigues de Borba, Manoel Vieira da Cunha, José Teixeira Brasil, Firmina de Souza Brasil, Joaquim Pereira Fagundes, Alexandre Simões Pires, José de Souza Neto, Ana Florisbela da Silva, entre outros (MATHEUS, 2016, p. 375). Como a pesquisa de Matheus vai até 1871, o autor acabou não garimpando em seu recorte temporal o inventário de João da Silva Tavares (o Visconde de Serro Alegre), aberto em 1872. O chefe de 12. Estudando Alegrete, entre 1830 e 1870, Graciela Garcia concluiu que o preço médio das terras no local aumentou 800%, enquanto o gado vacum apenas dobrou de valor (GARCIA, 2005, p. 25). 286 SUMÁRIO Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha: o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930) uma das famílias mais conhecidas de sua época, por conta de sua riqueza, prestígio militar e poder político, era mais rico que todos os estancieiros mencionados acima. Seu patrimônio atingia 41.790£, com destaque para suas estâncias, seus 19 cativos e o rebanho de mais de 10 mil animais, sendo 8 mil reses de criar.13 Além disso, deve-se considerar que, por questões metodológicas, os inventários abertos fora de Bagé não entraram na análise de Matheus. É importante dizer isso, porque um dos mais ricos estancieiros bageenses também merece ser mencionado aqui, apesar de seu inventário ter sido aberto em Pelotas. João Antônio Martins deixou uma impressionante riqueza de 88.529£ em estâncias, animais, imóveis urbanos, dívidas ativas e escravizados, sendo que boa parte já estava nas mãos dos seus muitos filhos, como adiantamento de herança.14 Como estou investigando os maiores criadores bageenses do período, cabe algumas palavras sobre o tamanho dos seus rebanhos. Como já foi dito, a antiga ideia de que a região da campanha era povoada somente por grandes pecuaristas foi superada já faz muito tempo. Estudando Bagé, Matheus confirmou o mesmo perfil socioeconômico para a paisagem agrária local. Para o autor, “uma quantidade significativa de pequenos produtores, com ou sem a propriedade da terra, mas, de uma forma ou de outra, com acesso a ela, também ocupava aquele espaço geográfico”. A maior parte dos criadores era formada por pequenos produtores, para os padrões da época: pelo menos 25% dos inventários possuíam de 1 a 100 reses e outros 36% detinham de 101 a 500 reses. No entanto, esses 61% concentravam somente 12% do total de reses de criar. “Enquanto isso, os estancieiros com mais de 1.000 reses somavam 25% dos inventários, mas concentravam 76,5% do rebanho” (MATHEUS, 2016, p. 166). Portanto, estamos diante de uma grande concentração de gado na localidade. Não surpreende que muitos desses maiores criadores também estavam entre os mais ricos mencionados anteriormente. Joao Antônio Martins detinha um rebanho de mais de 14.000 reses de criar, seguido por João da Silva Tavares (8.000), Domingos de Souza Neto (8.000), Serafim Correa de Barros (8.000), José Teixeira Brasil (6.860), Manoel Antonio Severo (6.080), Manoel Vieira da Cunha (4.796), Alexandre Simões Pires (4.253), Felisberto Silveira da 13. Inventário do Visconde de Serro Alegre, N. 62, Maço 2, Cartório do Cível e Crime de Bagé, 1872, APERS. Para uma análise da trajetória do Visconde, ver a ótima pesquisa de OLIVEIRA (2016). 14. Inventário de João Antônio Martins. N. 317, maço 22, Cartório de órfãos e provedoria de Pelotas, 1850, APERS. 287 SUMÁRIO Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha: o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930) Rosa (3.330), entre outros. Alguns grandes criadores, com rebanhos superiores a 2 mil reses, não figuravam entre as famílias mais ricas do local. Os inventários são boas fontes para o estudo da riqueza, mas eles refletem o patrimônio apenas na época da morte dos proprietários, desconsiderando outras fases da vida. Outro problema é que em alguns casos o processo não era levado adiante, por dificuldades de avaliação ou por motivos familiares. Esse foi o caso de Leonardo José Collares, estancieiro muito rico nesse período, com muitas estâncias, escravizados e um grande rebanho, mas que teve o inventário interrompido pelos herdeiros.15 Na realidade, a hierarquia social local não era tão simples de ser medida. Casamentos, alianças políticas, participação em guerras, a localização e o tamanho das terras, entre outros aspectos, influíam na dimensão da riqueza e no prestígio social e uma análise mais aprofundada sobre as elites locais mereceria um estudo à parte (FARINATTI, 2010; VARGAS, 2021). Contudo, é possível destacar as famílias Silva Tavares, Silveira Martins, Vieira da Cunha, Collares, Souza Neto, Brasil, Simões Pires, Silveira da Rosa, entre outras, como aquelas que concentravam uma maior riqueza e possuíam extensa parentela. Algumas delas eram sesmeiras, possuindo grandes fazendas de criação desde o início do século. Outras possuíam um maior acesso aos espaços de poder político. Enquanto algumas estavam inseridos em importantes redes de relações envolvendo militares, bacharéis, charqueadores pelotenses e fazendeiros do Estado Oriental, algo que também influía no mundo dos negócios (FARINATTI, 2010). Além disso, não é coincidência que os maiores patrimônios inventariados começam a aparecer entre os anos 1850 e 1870. Tratouse de uma conjuntura atlântica de grande expansão mercantil (HOBSBAWM, 2000). O comércio de charque e dos couros acompanhou as flutuações dos mercados internacionais, chegando até os confins do Império do Brasil, estimulando uma maior demanda por gado vacum. As charqueadas pelotenses atingiram seus recordes em abates, ultrapassando os 400 mil novilhos no final da década de 1860 (VARGAS, 2016). Esse processo foi o mesmo que alavancou a expansão capitalista para o interior da Argentina, promovendo a importação de raças ovinas europeias, a explosão das exportações de lã e o início da modernização da triticultura que faria sucesso nas décadas finais do oitocentos (BARSKY, DJENDEREDJIAN, 2003; MARTIREN, 2016; SABATO, 1989). Também foi uma época na 15. Inventário de Leonardo José Collares, n. 158, 1859, Cartório da I Vara do Cível e Crime, Bagé, APERS. 288 SUMÁRIO Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha: o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930) qual o mercado de terras esteve nitidamente mais aquecido, com charqueadores e capitalistas comprando estâncias na campanha e no Uruguai (VARGAS, 2016). Possivelmente tal conjuntura favorável também estivesse se refletindo nos patrimônios inventariados. Matheus percebeu que “da década de 1850 para a de 1860, o rebanho ovino teve um aumento de 44,5 animais em média por inventário para 108,5” e “apenas entre os criadores de gado vacum, de 53,5 para 149,5 animais em média” (MATHEUS, 2016, p. 150). Os criadores mais ricos possuíam grande ingerência sobre o mercado de gado na fronteira. Alguns deles compravam os novilhos dos pequenos criadores, montavam tropas maiores com seus peões e escravizados campeiros, e remetiam para Pelotas, lucrando também como atravessadores (FARINATTI, 2010; VARGAS, 2016). Em Pelotas, eles tinham acesso a artigos luxuosos da época, podendo também desfrutar dos espaços de lazer e sociabilidade da cidade dos barões do charque. Não é coincidência que muitas famílias ricas da região da campanha possuíam casas em Pelotas.16 O mesmo vale para João da Silva Tavares, que inclusive teve um de seus filhos, Joaquim da Silva Tavares (Barão de Santa Tecla), atuando como rico charqueador em Pelotas. João Antônio Martins, por sua vez, possuía muitas casas, armazéns e terrenos em Pelotas, além de ações no Teatro Sete de Abril, um piano e vários livros, demonstrando seu apreço pela incipiente vida cultural pelotense. No entanto, todo esse sistema econômico pecuário-escravista de criação extensiva que vinculava a região da campanha ao complexo charqueador-escravista do litoral sul começou a enfrentar fortes crises nas últimas décadas da monarquia. A superprodução e a retração dos mercados consumidores do charque, a incapacidade em competir com os produtores platinos, o encarecimento das terras, as divisões de herança de geração para geração, a decadência das charqueadas escravistas e o próprio fim da escravidão, trouxeram dificuldades para os produtores rurais da fronteira, que tiveram que se adaptar a um novo cenário cada vez mais capitalista e repleto de transformações no meio rural.17 Essa crise foi capaz de derrubar as mencionadas famílias do topo da hierarquia social local? É sobre os estancieiros e charqueadores de Bagé nessa nova conjuntura que tratarei a seguir. 16. Em Bagé, por exemplo, a sesmeira Ana Pedrosa de Jesus e seu esposo Tenente Ignácio Marques da Silva possuíam, entre seus bens inventariados, um sobrado em Pelotas (BRASIL, 2009, p. 89). 17. Para maiores detalhes desse processo, ver BELL (1998), CORSETTI (1983), ZARTH (1997), LEIPNITZ (2010), GARCIA (2010), VARGAS (2016). 289 SUMÁRIO Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha: o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930) A era da modernização capitalista (1895-1930) Agora saltamos algumas décadas para frente. No Rio Grande do Sul, a instabilidade política inaugurada com o advento da República e a resistência ao novo regime resultaram na Revolução Federalista (18931895). Bastante estudada, a guerra dispensa maiores comentários, mas basta lembrar que ambas as famílias mencionadas anteriormente, ou seja, os Silveira Martins e os Silva Tavares, tiveram personagens centrais entre as lideranças que se opuseram militarmente ao governo do Partido Republicano Rio-grandense (ANDRADE, 2017). Mesmo que tenham sido derrotados, tal protagonismo mostra a força de mobilização daquela elite agrária oitocentista. A guerra trouxe grande prejuízo para a economia regional, mas estabilizado o novo regime, a campanha foi palco de importante onda de modernização capitalista. Conforme a análise de Stephen Bell, esse período trouxe algumas inovações significativas e atingiu toda a região da campanha gaúcha, chegando com mais força em alguns municípios e com menos força em outros. De acordo com o autor, uma das primeiras transformações ocorridas na pecuária regional foi o cercamento dos campos, iniciado nos anos 1870 e 1880 e que logo foi se espalhando por toda a região. Quase que paralelamente, a expansão da malha ferroviária em direção à campanha possibilitou o envio e o recebimento de mercadorias com maior velocidade e segurança. A linha Bagé - Rio Grande foi inaugurada em 1884 e, anos depois, as charqueadas começaram a se proliferar pela fronteira oeste e sudoeste do Rio Grande do Sul, podendo remeter seus produtos a custos mais baixos. Contudo, a malha ferroviária no norte do Uruguai também conectava os municípios da campanha gaúcha até Montevidéu, cujo porto era mais bem preparado que o de Rio Grande para receber navios de grande calado. Se tal alternativa em vender o gado ou o charque aos comerciantes orientais não desfavorecia os produtores rurais (sempre em busca dos melhores preços), ela prejudicava a arrecadação de impostos do governo gaúcho (BELL, 1998). No entanto, se esse contato com os platinos desagradava de um lado, por outro ele era muito positivo, pois as relações estabelecidas com os fazendeiros uruguaios facilitaram o acesso às cercas de arame e ao melhoramento das raças bovinas, ovinas e cavalares. Além disso, Bell demonstra como um certo conservadorismo e apego às práticas tradicionais, denunciado pelos próprios vereadores e fazendeiros mais progressistas da região da campanha, dificultou e atrasou a adoção das inovações técnicas. Contudo, o autor também justifica que, em meio 290 SUMÁRIO Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha: o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930) as guerras na fronteira e as crises econômicas no setor, a maior parte dos criadores não possuía condições financeiras de investir e nem motivação para tanto, visto as muitas precariedades regionais, como a ausência de transporte qualificado, os problemas da barra do porto de Rio Grande, a falta de crédito e de um apoio estatal mais efetivo. Outro fator apontado por Bell foi a resistência da população pobre do campo às disciplinas impostas pelo mundo do trabalho capitalista no pós-abolição. No Rio Grande do Sul não havia um código legislativo rural como na Argentina e no Uruguai que reprimisse os mais pobres, buscando enquadrá-los para o trabalho nas estâncias. Os estancieiros queixavam-se dos problemas com a mão de obra, mas também com o banditismo rural que assolava a fronteira em épocas de crise e que não era combatido pelas autoridades locais (BELL, 1998). Mesmo com as mencionadas dificuldades, algumas parcelas das elites locais acabaram liderando o processo de modernização, tanto em iniciativas individuais quanto nas associações criadas por eles próprios. Elas promoviam reuniões, publicações especializadas, exposições e feiras de gado. Em Bagé, a Associação Comercial, que também reunia pecuaristas, foi fundada em 1898. Os primeiros leilões de gado ocorreram em 1901 e a Associação Rural do município foi fundada em 1904. Em 1906, preocupado com o melhoramento das raças bovinas, Leonardo Brasil Collares organizou o primeiro registro genealógico do Estado, com sede em Bagé. Em 1914, a instituição transferiu-se para Pelotas, onde ficou até 1921, quando foi fundada a Associação do Registro Genealógico Sul-Rio-grandense. As assinaturas na ata de 1906 revelavam a forte presença de novos profissionais que tiveram papel central na pesquisa e modernização agropecuária em todo o Brasil: os engenheiros agrônomos (VARGAS, 2019; MENDONÇA, 1997).18 O próprio Leonardo Collares, que era um dos principais pecuaristas de Bagé e grande criador da raça Hershey, também era formado pela Escola de Agronomia e Veterinária de Pelotas, fundada em 1883. Essa instituição enfrentou muitas dificuldades iniciais e formou sua primeira turma em 1895. Contando com o apoio das elites municipais, ela foi de grande importância para formar os primeiros profissionais dessas áreas no Rio Grande do Sul. Filhos de fazendeiros de vários municípios da região da campanha estudaram na instituição, mas demorou muito para que a profissão de agrônomo fosse 18. Pelas assinaturas na ata, percebe-se a presença de outros agrônomos formados em Pelotas, como Alpheu Braga, José Antônio Martins, Aluisio Escobar, Luiz Gomes de Freitas e Alfredo da Silva Tavares, além de coronéis, charqueadores e ricos pecuaristas. 291 SUMÁRIO Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha: o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930) valorizada no processo de modernização e superação das crises que afetavam a economia agrária regional. Com o tempo, os engenheiros agrônomos encontraram emprego nas propriedades agropecuárias de todo o Estado e também na burocracia governamental (VARGAS, 2019). Os engenheiros agrônomos personificavam a união entre os avanços científicos e a tradição agrária local. Com a finalidade de evitar doenças e melhorar os rebanhos, houve também uma maior preocupação com a higiene dos estabelecimentos, o que resultou na construção de banheiros carrapaticidas – acessíveis apenas para os mais abastados criadores. Em 1914 foram registrados 86 desses banheiros em todo o Rio Grande do Sul e Bagé, com 20 deles, vangloriava-se de ser o município com o maior número (PESAVENTO, 1980, p. 119). Além disso, os conhecimentos científicos também foram acionados na melhoria das pastagens. Conforme Bell (1998), uma das saídas foi o cultivo da alfafa, que também foi praticado em Bagé. Para uma contextualização mais detalhada, entre as décadas de 1900 e 1930, utilizarei os dados de uma fonte documental muito pouco trabalhada: os Almanacks Laemmert.19 Tais publicações surgiram no Rio de Janeiro, ainda no meado do século XIX, e tinham como objetivo divulgar dados estatísticos populacionais, comerciais e referentes aos estabelecimentos mercantis, agrários e socioprofissionais de diferentes partes do Brasil. No caso do Rio Grande do Sul, os mencionados indicadores são mais completos e recorrentes a partir do século XX.20 Em 1907, por exemplo, o capítulo referente a Bagé dizia que o município possuía 35 mil habitantes e era rico em jazidas de carvão, ferro, mármore, granito, mas que a principal atividade econômica era a pecuária. Ao elencar os estabelecimentos, o documento evidencia a presença de correeiros, curtumes, lombilharias, sapatarias, leiterias, barracas de couro, vendedores de gado, além de outras atividades vinculadas direta e indiretamente aos produtos da criação, como açougues e charqueadas. Para uma melhor dimensão da evolução das atividades da pecuária e da charqueada no período, assim como os principais proprietários desses ramos de atividades, tomo como parâmetro o primeiro ano de cada década (1911, 1921 e 1931). Os Almanacks, a partir da década de 1910, começam a ficar mais completos, trazendo 19. A coleção está disponível online no site da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, com o título “Almanak Laemmert: Administrativo, Mercantil e Industrial (RJ)”. Ver http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/ (Último acesso em 15 de março de 2021). 20. Para um exemplo do uso dos Almanacks para o estudo de Pelotas ver VARGAS; PERES (2020). 292 SUMÁRIO Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha: o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930) informações mais qualitativas. Em 1911, sobre a agricultura, ficou registrado: “É exercida em pequena escala e quase se limita para o consumo particular. O cultivo de vinha tem progredido extraordinariamente. Os vegetais cultivados são as videiras, árvores frutíferas, batatas doce e inglesa, cebolas, ervilhas, favas, feijão, milho, trigo, repolho, alfafa, etc.” Com relação aos produtos agrícolas, pouco mudou em 1921. No entanto, em 1931, aparecia a produção de arroz como um dos destaques. O carro-chefe da economia, como foi dito, era a pecuária e a charqueada e, sobre a atividade criatória, o Almanack de 1911 deixou registrado que Bagé possuía cerca de 300 mil cabeças de gado bovino, sendo “alguns milhares da raça Durham, Hereford, Zebu, Holandesa e outras”. As ovelhas, por sua vez, somavam 190 mil, com destaque para “as raças Rambuillet, crioulas e outras”. Sobre os cavalos, registraram que os criadores faziam “cruzamento com os Percherons e Arabes, contendo as fazendas e estabelecimentos congêneres, 26.000 animais”. Dez anos depois, em 1921, Bagé já contava com mais de 46 mil habitantes. Sobre a pecuária, foi anotado que o município possuía 244 mil bovinos, 176 mil ovelhas e 26.500 cavalos – todos eles das mesmas raças mencionadas anteriormente. Caso a fonte esteja correta, é interessante perceber que houve uma diminuição nos rebanhos. É sabido que na década de 1910, a pecuária vinha sofrendo forte crise e a diminuição dos rebanhos foi ponto de debate na União dos Criadores.21 No entanto, em 1931 os rebanhos voltaram a crescer, pois o documento apresenta 450.000 cabeças de gado bovino, igualmente das raças Durham Hereford, Zebu, Holandesa e outras, e 420 mil ovelhas das raças Rambuillet, crioulas e outras. Sobre os cavalos, manteve-se o registro aproximado de 26.500 animais. Certamente os dados do Almanack possuem problemas e muitas vezes os autores ficavam sem atualizar as informações, apenas repetindo informações de um ano para o outro. Isso não inviabiliza o uso do documento, mas encoraja futuros pesquisadores a confrontálo com outras fontes. Além disso, é importante considerar que essas oscilações tanto no tamanho dos rebanhos, quanto nos ritmos de abate nas charqueadas eram comuns desde o século XIX, mas no geral, tanto o tamanho dos rebanhos quanto o volume de produção de charque aumentaram bastante se comparados esses dados com o do 21. Conforme Pesavento, o Estado teve que intervir para que as vacas não fossem abatidas, o que dificultava a reprodução dos rebanhos. Outras queixas comuns diziam respeito às epizootias. É possível também que o alto nível de abate ocasionado pelo aumento da demanda durante a Primeira Grande Guerra também tenha favorecido a diminuição dos rebanhos (PESAVENTO, 1980, p. 79-109). 293 SUMÁRIO Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha: o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930) período escravista. Portanto, as charqueadas gaúchas não reduziram a sua produção durante a Primeira República. As estatísticas das exportações rio-grandenses mostram que após o fim da escravidão o charque continuou a ser vendido em altas quantidades. Apenas para nível de comparação, durante o auge das charqueadas pelotenses nos anos 1860, o Rio Grande do Sul exportou em média 30 a 35 mil toneladas do produto, ultrapassando as 40 mil somente em um dos anos (VARGAS, 2016). Já nas décadas de 1910 e 1920, o Rio Grande do Sul exportou, respectivamente, uma média de 45 mil toneladas na primeira e 52 mil na segunda. Ou seja, a produção aumentou em mais de 50%. Outro indicador importante diz respeito aos rebanhos destinados ao charque. Entre 1911 e 1915, por exemplo, o Rio Grande do Sul abateu 3.213.595 cabeças de gado, o que representa uma média de mais de 640 mil novilhos abatidos por safra – índice bem acima do meado do século XIX (DALMAZO; CARVANTES, 2004, p. 109; 158). Portanto, o que ocorreu nesse novo contexto foi que as charqueadas passaram a funcionar com mão de obra livre e assalariada e se espalharam por todo o Rio Grande do Sul, deixando de ter Pelotas como principal polo produtor. Aliás, em 1920, Bagé era o município que mais possuía charqueadas desse novo padrão, apresentando seis estabelecimentos. Seus ritmos de abate eram superiores às charqueadas escravistas, assim como a média de trabalhadores e funcionários. As charqueadas bageenses abatiam, em média, de 40 a 60 mil, sendo que um dos estabelecimentos do Visconde Ribeiro Magalhães chegava a abater mais de 80 mil em alguns anos, reunindo de 470 a 500 trabalhadores nas safras (PESAVENTO, 1980, p. 170171; BOUCINHA, 1993). Em comparação, as maiores charqueadas escravistas de Pelotas, nos anos 1870, poucas vezes passaram das 20 mil reses abatidas, e tinham de 60 a 70 escravizados alocados diretamente no estabelecimento (VARGAS, 2016). Além disso, somando charqueadas e frigoríficos, Bagé também apresentou as maiores cifras de abate de gado vacum na década de 1910, com uma média de 130 mil cabeças nos anos em que esteve na frente, muito acima dos demais municípios (BICA, 2017, p. 21). Se os Barões do charque pelotenses dos anos 1850 a 1880 diversificavam seus negócios, os seu congêneres das décadas de 1910 e 1920 o faziam ainda mais, pois os ramos favoráveis aos investimentos de capital eram os mais variados. Emílio Guilayn, por exemplo, também inverteu capitais em uma casa de câmbio, foi proprietário da empresa que fornecia energia elétrica na cidade, teve uma companhia de seguros, um moinho, entre outros investimentos. 294 SUMÁRIO Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha: o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930) Fundador da Associação Comercial de Bagé, em 1898, ele também foi deputado estadual pelo PRR. A maior parte dos charqueadores também atuava na criação e/ou no comércio, mas nenhum deles se comparava ao Visconde Ribeiro Magalhães. Em 1906, Antônio Nunes Ribeiro Magalhães recebeu esse título de nobreza do Rei de Portugal, seu país de origem. Em 1907, foi classificado como um dos 20 maiores industriais do Brasil. Sua trajetória exibia muita riqueza e ostentação, tendo construído um grande palacete na cidade de Bagé. Exercendo amplamente a caridade, ele também “construiu um amplo complexo urbano e industrial, composto por vila de operários, indústrias, igreja, teatro, hospital, quadra de tênis, serralharia, olaria”, entre outros, além de armazém e padaria que empregavam 140 pessoas (ASSUMPÇÃO NETO, 2015, p. 54). Em 1914, ele foi apontado como um dos maiores criadores de gado do Rio Grande do Sul, com 15.600 cabeças bovinas (PESAVENTO, 1980, p. 119).22 Apesar das impressionantes trajetórias empresarias como a do Visconde, a era de ouro das charqueadas bageenses durou pouco se comparada a outros ciclos econômicos regionais na história do Brasil. É possível perceber isso comparando a presença dos charqueadores bageenses arrolados no Almanack em 1911 com os anos de 1921 e 1931. No primeiro ano foram listados os seguintes estabelecimentos: Companhias Anonimas (Saladero S. Domingos), Freitas, Guilayn & Cia (Saladero S. Antonio), Serafim Gomes & Irmão (Saladero S. Martin), Saladeros Industrial e Santa Tereza (ambos do Visconde de Magalhães). Em 1921, continuavam a funcionar os mesmos estabelecimentos. No entanto, compilando dados de 1920, Sandra Pesavento também lista mais uma charqueada nesse ano, a São Miguel, de propriedade de Miguel Vinhas & Cia, que havia sido fundada em 1914.23 Contudo, em 1931 é possível notar uma reconfiguração do setor. Com o falecimento do Visconde Ribeiro Magalhães, em 1926, outros empresários surgiram como proprietários de novas charqueadas: Augusto Dupont & Cia. (Charqueada Santa Rosa), Custodio Gomes & Cia (São Miguel, Rio Negro), Prates, Moglia & Cia. Ltd. (Santa Teresa), Cia. Saladeril Bageense, Industrial (São Matheus), Suñe & Cia (São Domingos), Saraiva & Cia (Santo Antônio), Sicca Blois & Cia (Apheby), B. Lignon (no Rio Negro). Portanto, é visível que alguns 22. Sobre as charqueadas do visconde, ver também BOUCINHA (1993) e SOARES (2006). 23. O Visconde Magalhães havia fundado a Santa Teresa em 1897 e a Industrial em 1908. A San Martin era de 1900, a Santo Antônio de 1904, mesmo ano da S. Domingos, que pertencia à Tamborindeguy & Costa. (PESAVENTO, 1980, p. 170-171) 295 SUMÁRIO Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha: o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930) empresários não conseguiam ficar muito tempo nesse ramo de atividades. Talvez, tal permanência nem fosse do interesse de alguns, podendo os saladeros serem tidos como alvos de inversões sazonais. No entanto, a impressão passada pelos principais estudiosos do tema sugere que as charqueadas dessa época nunca foram um investimento muito seguro para a maioria dos seus proprietários, pois, apesar de enriquecer alguns dos maiores investidores, eles sempre tiveram o “fantasma” dos frigoríficos os rondando.24 De acordo com Pesavento, a pecuária regional vivenciou diversas crises ao longo das primeiras décadas do século XX, com pequenos momentos de euforia. E ao longo de todo esse período, vários criadores com visão mais progressista alertaram para a necessidade de superar-se o ciclo das charqueadas e iniciar uma nova etapa. Os frigoríficos já eram uma realidade no Uruguai e na Argentina, que lentamente foram diminuindo sua produção de charque. Em 1916, esses pecuaristas gaúchos se associaram a partir da União dos Criadores, e promoveram a fundação da Companhia Frigorífica Rio Grande, em Pelotas. Em 1920, o próprio frigorífico ainda fabricava charque, mas um ano depois, por ausência de capital e investidores, foi vendido para uma firma inglesa.25 A entrada das companhias frigoríficas estrangeiras, como Armour, Swift e Anglo, em vários municípios da fronteira, foi lentamente destruindo a resistência dos charqueadores da região da campanha. Os anos 1940 foram derradeiros e com a expansão dos frigoríficos, as charqueadas passaram a diminuir cada vez mais a sua produção, abastecendo somente o mercado local, até que a democratização das geladeiras domésticas fosse um dos últimos golpes no setor (BARRAN; NAHUM, 1967). É importante considerar que os charqueadores de Bagé eram um grupo distinto de investidores locais. A maioria não pertencia às tradicionais famílias criadoras de gado do século XIX. Tratavam-se de comerciantes e capitalistas (muitos deles estrangeiros), com negócios na pecuária, que tinham na charqueada um dos seus investimentos. Contudo, eles não se constituíam em um grupo apartado social e economicamente dos criadores bageenses. O pecuarista Dr. José F. Freitas, por exemplo, era sócio da charqueada de Emílio Guilayn e ambos tinham como gerente outro pecuarista: Pedro Candido Borba. Os Moglia, que aparecem como grandes criadores em 1931, tinham 24. Refiro-me aqui principalmente aos estudos de PESAVENTO (1980), BELL (1988) e VOLKMER (2017). 25. Em 1924, tornou-se o conhecido Frigorífico Anglo. Para maiores detalhes ver MICHELON (2012). 296 SUMÁRIO Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha: o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930) em Rodolpho Moglia o gerente das charqueadas do Visconde Ribeiro Magalhães. Além disso, muitos dos charqueadores também eram criadores, como o próprio Visconde. As mesmas informações reunidas a respeito dos charqueadores podem ser expostas para os estancieiros bageenses. Em 1911, o Almanack elencou como os “Principais fazendeiros e criadores” de Bagé os proprietários Leonardo Collares Sobrinho, Henrique Silveira da Rosa, Dr. Orlando Pereira Brasil, Eugenio M. de Sousa, Manoel Alves Sarmento, o Visconde Ribeiro Magalhães, Antonio Torrescasana, Alvaro José Correa, J. José Silveira, Comendador Candido Xavier de Azambuja e Pedro Candido B. Borba. Somam-se a esses os coronéis José Octaviano Gonçalves, Thomas Mercio Pereira, Antônio Barbosa Netto e José Bonifácio da Silva Tavares. Em 1921, todos os proprietários acima mantiveram-se entre os principais, com exceção do coronel José O. Gonçalves. Contudo, somavam-se a esses outros, como Andre Aribilaga, Antonio A. de Assumpção, Antonio Costa & C., Antonio Paiva, Feliciano G. Vieira, Francisco e Leopoldina Paiva, Henrique Neto, Ismael Pereira, Manoel Zeferino Pardomo, Nepomuceno Saraiva, Raulino Teixeira, Sá & Filho, Viúva Gervasio & Filhos e o Dr. José Francisco de Freitas. Agora examinamos o Almanack de 1931. Dos 15 listados em 1911, apenas Leonardo Collares Sobrinho, Henrique Silveira da Rosa, Dr. Orlando Pereira Brasil, Eugenio M. de Souza, Manoel Alves Sarmento, Coronel Antonio Barbosa Netto e J. José Silveira permaneceram entre os principais fazendeiros e criadores. Dos novos 14 proprietários que ingressaram na lista de 1921, somente Andre Aribilaga, Antonio A. de Assumpção e Feliciano G. Vieira surgem com os mesmos nomes sociais em 1931.26 Contudo, engana-se quem pensa se tratar de uma substituição dos principais estancieiros por outros. Quando se olha para as famílias ao invés dos indivíduos, é possível perceber que os patrimônios estavam nas mãos das mesmas parentelas, podendo ser constituídos por venda, casamento, sociedade ou herança. Antonio Torrescana, por exemplo, agora era representado somente pela Viúva Torrescana. Ao lado da Viúva Gervásio & Filho ela era uma das duas únicas mulheres da lista. Nesse meio tempo, outros 26. Os Assumpção, de rica família charqueadora pelotense, estavam fortemente vinculados por laços matrimoniais aos Silva Tavares, que além de criadores em Bagé também tinham um membro de sua família que era charqueador em Pelotas, o Barão de Santa Tecla. Feliciano Gonçalves Vieira, por sua vez, era herdeiro do advogado dos Silva Tavares e que também se tornou estancieiro em terras que daquela família. Quando Feliciano “criava seu gado leiteiro “Shortorner”, em 1903, inaugurou uma moderna queijaria com produção de queijos vendidos na cidade de Bagé”. (FONTTES; VIEIRA, 2005, p. 96-99). 297 SUMÁRIO Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha: o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930) fazendeiros faleceram e o Doutor Freitas agora era representado pelos “Herdeiros de José Francisco de Freitas”. Um outro Freitas agora aparecia como Freitas Mercio & Cia, justificando a saída de Thomas Mercio Pereira da lista. O comendador Candido X. de Azambuja deu lugar a Armando Xavier de Azambuja, Ismael Pereira deu lugar aos Irmãos Pereira, enquanto Manoel Pardomo agora era Manoel Zeferino Pardomo, Sá & Filho. Os Paiva, que antes tinham Francisco e Leopoldina, agora estavam acompanhados de Antônio Paiva. A família Netto continuava com Antônio B. Netto e Henrique Netto. Os Collares, além de ter a permanência de Leonardo, agora também tinham Thomaz Collares e João Cirne Collares. E o coronel Silva Tavares agora estava representado por Carlos A. Silva Tavares. Portanto, quando se toma as três listagens em conjunto, é possível verificar a presença de algumas famílias entre os “principais criadores”. Não é possível saber se somente os critérios de riqueza foram acionados para a composição dessa relação, uma vez que o prestígio social e o pertencimento a famílias tradicionais do lugar também deviam afetar as classificações sociais a respeito de quem era a elite pecuarista de determinado local. Mas o que se pode perceber é uma relativa permanência de algumas famílias entre os maiores fazendeiros e criadores de gado de Bagé desde meados do século XIX até as primeiras décadas do século XX. Famílias como os Silva Tavares, Souza Netto, Silveira da Rosa, Corrêa, Collares, Brasil e Mércio (que eram grandes criadores em Dom Pedrito) apresentam um ou mais representantes. Chama atenção a ausência dos Martins nessas listas. Contudo, recorrendo a uma análise da história das estâncias de Bagé pude verificar que eles estavam ali, com muitas propriedades, incluindo terras em Aceguá e Candiota.27 A compilação de estâncias de Bagé realizada por pesquisadores do município acabam contribuindo bastante para a reconstituição da história dessas propriedades, assim como de sua transmissão para herdeiros e outros proprietários. Ao reconstruírem as genealogias dessas principais famílias, fica evidente as alianças matrimoniais, o que poderia colaborar para tornar o grupo bastante coeso em termos de interesses políticos e econômicos. Nesse sentido, considerando27. Algumas terras dos Martins foram vendidas para outros proprietários, como o Visconde Ribeiro Magalhães, por exemplo. Os muitos laços matrimoniais das herdeiras colocaram outras propriedades como pertencentes a outras famílias. Esse foi o caso dos Sarmento, apenas para dar um exemplo. Além disso, havia terras que posteriormente passaram a pertencer aos municípios vizinhos, o que justifica sua ausência no Almanack. No entanto, Fonttes e Vieira arrolam as estâncias “Cinco Salsos” e São José” como pertencentes a essa família durante a Primeira República (FONTTES; VIEIRA, 2005). 298 SUMÁRIO Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha: o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930) se a permanência de muitas dessas famílias enquanto grandes pecuaristas desde o início do século XIX, quando ainda criavam seu gado em vastas terras sem aramado e explorando o trabalho escravizado, pode-se considerar que a sua história se confunde com a própria história do município. No entanto, não devemos esquecer que existem outras histórias que também precisam ser contadas, envolvendo a maior parte da população do local, muitos dos quais já estavam vivendo naquelas terras antes da chegada dessas famílias. Considerações finais O presente capítulo investigou os mais ricos criadores de gado em Bagé no meado do oitocentos, época no qual a criação extensiva era realizada com a utilização do trabalho escravizado, em fronteiras ainda mal definidas e em meio a muitas guerras. Muitas das famílias mais ricas no período haviam recebido sesmarias ainda no período colonial, mas outras vieram décadas depois, atraídas pela demanda por gado provocada pelas charqueadas pelotenses. A sociedade bajeense nessa época apresentou altos índices de concentração de riqueza nas mãos de poucos proprietários, expressando uma estrutura socioeconômica comum em todo o Brasil. Na virada do século XIX para o XX, uma onda de modernização capitalista e inovações técnicas atingiu todas a região platina, chegando primeiro na Argentina e no Uruguai. Os motivos do atraso gaúcho eram estruturais, desde as precariedades nos meios de transporte, no sistema de crédito e na falta de apoio do governo, mas também refletiam o conservadorismo de boa parte dos grandes proprietários rurais. A incorporação das inovações técnicas passou pelo contato com os fazendeiros estrangeiros, pelas iniciativas individuais de alguns pecuaristas e pelas associações rurais locais. Nesse sentido, como na maior parte do Brasil, a modernização capitalista do período ocorreu de forma conservadora, mantendo boa parte das estruturas sociais tradicionais. Participando e conduzindo todo o processo, as principais famílias pecuaristas do oitocentos conseguiram manter-se no topo da hierarquia social local até as primeiras décadas do século XX, sendo que várias delas ainda possuem seus estabelecimentos nos dias atuais. Tal fenômeno é bem distinto do ocorrido com as charqueadas bageenses. Apesar de ter atraído muitos investimentos ao longo da Primeira República e ter contribuído com a modernização da cidade, o ciclo do charque em Bagé durou apenas algumas décadas e sempre esteve sob a sombra ameaçadora dos frigoríficos. 299 SUMÁRIO Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha: o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930) Referências ALADREN, Gabriel. Sem respeitar fé nem tratados: escravidão e Guerra na formação histórica da fronteira sul do Brasil (Rio Grande de São Pedro, c. 1777-1835). Tese de Doutorado. PPG-História, UFF, 2012. ANDRADE, Gustavo F. A trajetória política do general João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares): família, comunicação e fronteira. São Leopoldo: Oikos, 2017. ASSUMPÇÃO NETO, Fernando A. A economia saladeiril desenvolvida em Pelotas e Bagé: diferenças e peculiaridades. Porto Alegre, UFRGS, Trabalho de Conclusão de Curso em História, 2015. BARRAN, José Pedro; NAHUM, Benjamin. Historia Rural del Uruguay moderno (1851-1885). Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental, 1967. BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Historia del capitalismo agrario pampeano. La expansión ganadera hasta 1895. Buenos Aires: Universidad de Belgrano/Siglo XXI, 2003. BELL, Stephen. Campanha Gaúcha: a brazilian ranching system, 1850-1920. Stanford: Stanford University Press, 1998. BICA, Alessandro C. Uma miragem sobre o processo de formação do município de Bagé no contexto riograndense e fronteiriço. Revista Estudios Historicos, Rivera, n. 18, 2017, p. 1-23. BOUCINHA, Cláudio A. A História das Charqueadas de Bagé (1891 – 1940) na Literatura. Dissertação de Mestrado em História, PUCRS, 1993. BRASIL, Carlos Roberto Martins. Sesmarias em São Sebastião de Bagé: primórdios do povoamento. Porto Alegre: Renascença, 2009. CORSETTI, Berenice. Estudo da charqueada escravista gaúcha no século XIX. Dissertação (Mestrado História). – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1983. DALMAZO, Renato; CARVANTES, Roberto. As relações de comércio do Rio Grande do Sul: do século XIX a 1930. Porto Alegre: FEE, 2004, p. 109. FARINATTI, Luis Augusto. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na fronteira sul do Brasil (1825-1865). Santa Maria: Ed. UFSM, 2010. FONTTES, Carlos; VIEIRA, Yara Botelho. As estâncias contam a história: Bagé. Santa Maria: Palotti, 2005. GARCIA, Graciela. O Domínio da Terra: conflitos e estrutura agrária na Campanha Rio-grandense Oitocentista. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: PPG-História da UFRGS, 2005. GARCIA, Graciela. Terra, trabalho e propriedade: a Estrutura agrária da campanha rio-grandense nas décadas finais do período imperial (1870-1890). Tese de Doutorado em História: UFF, 2010. HOBSBAWM, Eric. A Era do Capital (1848-1875). São Paulo: Paz e Terra, 2000. 300 SUMÁRIO Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha: o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930) LEIPNITZ, Guinter T. Entre contratos, direitos e conflitos: arrendamentos e relações de propriedade na transformação da campanha rio-grandense: Uruguaiana (1847-1910). Dissertação de Mestrado. PPG-História da UFRGS, 2010. MARTIREN, Juan Luis. La transformación farmer: colonización agrícola y crecimiento económico em la Provincia de santa Fe durante la segunda mitad del siglo XIX. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2016. MATHEUS, Marcelo S. A produção da diferença: escravidão e desigualdade social ao sul do Império brasileiro (Bagé, c. 1820-1870). Rio de Janeiro. Tese de Doutorado. PPG-História Social, UFRJ, 2016. MARQUES, Alvarino da Fontoura. Episódios do Ciclo do Charque. Porto Alegre: Edigal, 1987. MENDONÇA, Sonia Regina de. O ruralismo brasileiro. São Paulo: Hucitec, 1997. MENEGAT, Carla. “Transportando fortunas para povoar deserta e inculta campanha”: atuação política e negócios dos brasileiros no norte do Estado Oriental do Uruguai (1845-1865). Tese de Doutorado em História. PPGH-UFRGS, 2015. MICHELON, Francisca. Sociedade Anônima Frigorífico Anglo de Pelotas: o trabalho do passado nas fotografias do presente. Pelotas: Editora da UFPel, 2012. OLIVEIRA, Leandro da Rosa. Nas veredas do Império: guerra, política e mobilidades através da trajetória do Visconde de Serro Alegre (Rio Grande do Sul, 17901870). Dissertação de Mestrado. PPGH-PUCRS, 2016. OSÓRIO, Helen. O império português no sul da fronteira: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto Alegre: UFRGS, 2007. PESAVENTO, Sandra. República Velha Gaúcha: frigoríficos, charqueadas, criadores. Porto Alegre: Movimento/IEL, 1980. PIMENTEL, Fortunato. Aspectos Gerais de Bagé. Porto Alegre: Typographia Gundlach, 1940. PIMENTEL, Fortunato. Charqueadas e frigoríficos: aspectos gerais da indústria pastoril do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Livraria Continental, s/d. SABATO, Hilda. Capitalismo y ganadería en Buenos Aires: la fiebre del lanar (18501890), Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1989. SOARES, Fernanda Codevilla. Santa Thereza: Um Estudo sobre as Charqueadas da Fronteira Brasil-Uruguai. Dissertação de Mestrado em Integração Latino Americana, UFSM, 2006. TABORDA, Attila. Bajé na História. Bajé: Tipografia Cetuba, 1959. THOMSPON FLORES, Mariana F. C. Crimes de Fronteira: a criminalidade na fronteira meridional do Brasil (1845-1889). Porto Alegre: EdiPucrs, 2014. VARGAS, Jonas. Uma fonte, muitas possibilidades: as relações sociais por trás dos inventários post-mortem. In: APERS. Anais da Mostra de Pesquisa do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Corag, 2013, p. 155-180. 301 SUMÁRIO Elites, famílias e riqueza na pecuária gaúcha: o caso dos estancieiros e charqueadores de Bagé ( C. 1850-1930) VARGAS, Jonas. “Os Barões do charque e suas fortunas”: um estudo sobre as elites regionais brasileiras a partir de uma análise dos charqueadores de Pelotas (RS, século XIX). São Leopoldo: Editora Oikos, 2016. VARGAS, Jonas; PERES, Jéssica Rodrigues. Os usos do Almanack Laemmert para o estudo da cidade de Pelotas, seus habitantes e suas elites (c. 1907-1936). Revista Estudios Históricos, Rivera, n. 24, dez 2020, p. 1-16. VARGAS, Jonas. Escola de Agronomia e Veterinária de Pelotas: diretores, professores, alunos e suas relações com a elite agrária regional (1883-1934). In: VARGAS, Jonas; KORNDORFER, Ana Paula; VIANNA, Marcelo. Profissão, Burocracias e Saberes: perspectivas históricas (Brasil/Argentina/Chile – séculos XIX e XX). Jundiaí: Paco Editorial, 2019, p. 43-82. VARGAS, Jonas. Nos caminhos de São Gregório: as hierarquias sociais na Fronteira do Brasil com o Uruguai e o Comando Regional do Brigadeiro David Canabarro (c. 1831-1865). Revista Almanack, São Paulo, 2021, no prelo. VOLKMER, Márcia S. “Onde começa ou termina o território pátrio”: os estrategistas da fronteira: empresários uruguaios, política e indústria do charque no extremo oeste do Rio Grande do Sul (Quaraí, 1893-1928). Dissertação de Mestrado. PPG-História, Unisinos, 2017. ZARTH, Paulo Afonso. História Agrária do Planalto Gaúcho. Ijuí: Editora da UNIJUÍ, 1997. 302 SUMÁRIO 303 SUMÁRIO A FAMÍLIA DELABARY Claudio Antunes Boucinha1 304 SUMÁRIO A família Delebary 1 Introdução A chegada dos irmãos franceses Martin Delabary e Bernard Delabary, em 1844, estava associada a uma significativa onda migratória que coincidiu com o fim da guerra civil de 1835-1845, na então província de São Pedro do Rio Grande do Sul (BETEMPS, 2021a) . O registro dessa chegada de imigrantes franceses, em 1844, em parte, estava registrada (BETEMPS, 2021b). Sobre o nome da família Delabary, é de origem basca (PATRONYME LABARY, 2021; CAMPIÓN, 2021). No caso de Domingas Landabouro Delabary, o sobrenome Landabouro, versão francesa de “Landaburu”,de origem basca, possivelmente também de “Anhaux, Baigorry, Basse Navarre” ( LOS VASCOS EN LA ARGENTINA BUSCADOR DE APELLIDOS VASCOS (2021) ; STATISTICS AND MEANING OF NAME LANDABURU , 2021 ; PATRONYME: LANDABURU ,2021; LANDABURU, 2021). Note-se que os descendentes da família Delabary, acabam por arrendar terras na região que foi fronteira entre Espanha e Portugal, no Tratado de Madrid, em 1750, ocupação do território que se intensifica em 1801 ( LANGBECKER e PERLEBERG, 2021; CAMARGO, 2021b) . A linha demarcatória do Tratado de Madrid possivelmente foi decisiva na ocupação do território que seria, mais tarde, Torquato Severo, Parada Pons, Vila de São Sebastião (MORONI, 2021). No planejamento da 1. Mestre em História do Brasil(PUCRS). Licenciado em História(UFSM). Com contribuições e análises, arquivos pessoais, pesquisa, de Diego Teixeira Delabary; Viviane Dias Borges; Leandro Betemps. 305 SUMÁRIO A família Delebary futura estrada de ferro entre Bagé e S . Gabriel, publicados em 1876, na escolha da direção da estrada, um dos caminhos elencados era o da coxilha,”no Martin Delabary, a 37 km de Bage”(MORSING, 2021a). A história da família Delabary ajuda a esclarecer como foi a ocupação da terra, na fronteira, bem como a formação de ideias políticas na região da campanha gaúcha, os vínculos, próximos ou não, com os maragatos. O impacto, os efeitos, dessa adesão aos partidários de Gaspar Silveira Martins, pode-se avaliar na figura de Anselmo Ibalburri Garrastazu, associado também à Aparício Saravia. Anselmo Garrastazu, foi um antigo “maragato” (DIAS, 2021; SÁ, 1973, p. 25; SARAVIA e GARCIA, 1956, p. 574; MONEGAL, 1942, p. 400; MAIZTEGUI CASAS, 2005, p. 138; RELA, 2000, p.60; RELA, 2004, p. 211; GIORGIS, 2021a; GIORGIS, 2021b; GIORGIS, 2021c), fazendeiro em Dom Pedrito (SULIANI, 2021). O trabalho de pesquisa denominado de “Biografia de Martin Delabary”, de Diego Teixeira Delabary, tem características especiais. Corresponde a uma preocupação antiga de muitas famílias que, antes da Internet e da World Wide Web, centravase nas buscas em cartórios e organizações especializadas em genealogia. Agora, são livros de origem europeia, antes inacessíveis, combinados com documentos oficiais, fotografias e outros guardados da família. Em mensagem eletrônica, Diego Teixeira Delabary esclarece como foi feita a pesquisa: “Eu sempre tive interesse em montar a árvore genealógica da família Delabary, mas o meu pai só sabia que éramos descendentes de franceses, sem muitas informações adicionais. Um dia em 2003, quando estava indo no ônibus de linha de Lavras do Sul a Bagé para uma aula prática da faculdade de direito na Urcamp, embarcou em São Sebastião um senhor grisalho que sentou ao meu lado. Ele me perguntou como eu me chamava. Ao responder, ele quis saber se eu era dos Delabary de Lavras. Com a resposta afirmativa, ele então me falou que escrevera um livro sobre São Sebastião que mencionava a minha família, o qual estava em suas mãos. Ele me mostrou o livro, no qual havia um pequeno mapa com a casa das correntes e o túmulo dos imigrantes franceses Delabary (era o túmulo de Martin Delabary). Ele contou que a tradição oral de São Sebastião dizia que os primeiros Delabary eram conhecidos no local como os Labary. O homem do livro se chamava João Francisco Trein Leite e suas pesquisas me ajudariam muito a desvendar a minha árvore genealógica. Posteriormente, lembrei que minha prima Gabriela 306 SUMÁRIO A família Delebary Delabary uma vez me disse que encontrou um livro sobre imigração no Brasil em uma biblioteca pública em Itajaí (Santa Catarina) onde era dito que os irmãos bascos franceses Martin e Bernard Delabary emigraram para o Brasil via Uruguai. Ela fotografou a passagem do livro e me encaminhou. Não tenho o nome do livro. Pelos idos de 2015, comecei a buscar informações sobre a história da família Delabary. Fui até São Sebastião, mas o senhor Trein Leite já havia falecido. Falei com ex-funcionários e parentes dele e consegui cópias de alguns livros, bem como do mapa. A seguir, um morador da Vila me mostrou o túmulo de Martin Delabary, atrás da Casa das Correntes e bati algumas fotos dele. Pesquisando sobre imigração francesa no Rio Grande do Sul, encontrei artigos de Leandro Betemps. Consegui o contato dele, o qual me indicou alguns livros e sites de genealogia basca. O professor Leandro Betemps me indicou o livro “Franceses no Rio Grande do Sul”, de Armindo Beux, no qual era informado que Martin Delabary, um basco francês emigrou para o Uruguai e entrou no Brasil por Pelotas em 1844. O professor Betemps encontrou o registro original do setor de imigração da época e me mandou uma foto. Nos sites franceses de genealogia encontrei várias certidões digitalizadas de Martin Delabary, Bernard, Jean Delabary, dentre outras na comuna de Anhaux na França. Em um dos sites, consegui o contato do pesquisador basco, senhor Claude Lesgourgues, que obteve para mim as certidões originais dos Delabary em Anhaux nos registros municipais que se encontram bem conservados. Após, busquei as certidões de Pedro Delabary no cartório de registro Civil de Lavras, o qual indicava que Pedro era filho de Bernard Delabary e Joana Salduberry. Com essas informações, parti em busca de várias certidões da família Delabary no Bispado de Bagé. Em complemento, fiz várias viagens ao Uruguai, localizando certidões em Salto, informações em Montevideo e Tacuarembó, nos registros civis e nos registros das igrejas. Obtive com familiares uma antiga carta de Martin Delabary datada de 1877, que pertencia ao meu bisavô, José Cacildo Delabary. Logrei encontrar no livro Os Diários da Revolução de 1893 de Joca Tavares mais informações sobre os Delabary na casa das correntes. Os principais livros pesquisados foram Coxilha de São Sebastião de João Francisco Trein Leite, Diários da Revolução de Joca Tavares e Franceses no Rio Grande do Sul de Armindo Beux. Como o processo de pesquisa durou muitos anos e foi feito de forma amadora, não tenho bem certeza da ordem cronológica e da sucessão dos eventos”. 307 SUMÁRIO A família Delebary Biografia de Martin Delabary “Martin Labary nasceu em Anhaux (França) no dia 1 de setembro de 1816, filho de Jean Labary da casa de Pantxot de Lasse e de Louise Castilla, filha mais velha da casa de Etcheverrybehere de Anhaux, bairro Chubitoa. Anhaux é uma pequena comuna do país basco francês, na Região da Baixa Navarra. Jean Labary, pai de Martin, nasceu no dia 13 de outubro de 1786, na casa da família em Lasse, chamada Pantxot, filho de Pierre ou Pedro de Labary (lavrador) e de Jeanne Camino. Jean era lavrador e depois se tornou funcionário da aduana na fronteira com a Espanha. Louise Castilla, mãe de Martin, nasceu em 3 de dezembro de 1797, na casa de Etcheverry, filha de Martin Castilla (nascido por 1754), de profissão tosador de mulas e de Marie Etchebarne. Os Castilla possuíam duas casas em Anhaux, a casa Etcheverry e a casa Etchebarne, no mesmo quarteirão Chubitoa, hoje desaparecida. A casa Etchebarne foi vendida em setembro de 1799. Jean Labary e Louise Castilla se casaram em 6 de setembro de 1815, indo morar na casa Etcheverry, dos pais de Louise. A família de Martin Delabary enfrentou um período perturbado por duas guerras: da França contra a Espanha (1791 a 1796) e as guerras napoleônicas (até 1815), sendo que a região de Anhaux sofreu pilhagens e morte de gado pelos espanhóis, sendo também forçados a alimentar as tropas de Napoleão. Na mesma época a região sofreu com variações climáticas que afetaram as colheitas e com doenças que mataram o gado, empobrecendo sobremaneira a região. Por outro lado, a tradição basca era contrária à submissão dos jovens ao alistamento militar obrigatório e muitos conscritos emigraram para fugir do Exército. O costume de passar toda a herança para o filho ou filha mais velha foi outro fator que contribuiu para a diáspora basca. Nesse período, as Províncias Unidas do Rio da Prata na América do Sul obtiveram a independência da Coroa Espanhola, passando a buscar imigrantes, em especial no país basco, para povoarem as grandes extensões de terra e para o trabalho braçal. Foi nesse contexto que Martin Delabary resolveu emigrar para a América do Sul, embarcando em 18382 em Bordeaux e desembarcando em Montevidéu no mesmo ano. Seis anos depois, em 1844, Martin Delabary ingressou no Brasil. No livro de registro de estrangeiros da cidade de Pelotas foi apontada a chegada de Martin Delabary a já então cidade de Pelo- 2. Conforme data no “passe-port” de Martin. Arquivo particular de Diego Teixeira Delabary. 308 SUMÁRIO A família Delebary tas em 20/09/1844 3, conforme informação extraída de Armindo Beux (BEUX, 1976). Em 1845 Martin Delabary casou-se com Dominique Landabourou ou Gandabourou, sendo pais de Maria Doroteia Delabary (nascida em 28/03/1846) e de José Delabary (não identificada data de nascimento). Maria Dorothea Delabary casou com Cadet Laurent Bordagorry em 23/09/1865, sendo pais de Laurent Bordagorry, Eulalie Bordagorry e Maria Haydée Bordagorry. Martin Delabary fixou-se na Vila de São Sebastião (também chamada de Torquato Severo), hoje pertencente ao município de Dom Pedrito/RS. Em São Sebastião Martin e sua esposa (chamada, no Brasil, de Domingas) construíram os primeiros ranchos no local denominado ‘Casa das Correntes’ ou ‘Estância das Correntes’, instalando lá um armazém de secos e molhados, onde o casal negociava todo o gênero de produtos necessários para a vida rural. A ‘Casa das Correntes’ de Martin Delabary e Domingas Delabary foi o primeiro núcleo de comércio da Vila de São Sebastião, conforme expôs João Francisco Trein Leite no livro ‘Coxilha de São Sebastião’. Em 1870 Martin Delabary escreveu uma carta em português para o seu genro Cadet Laurent Bordagorry, o que permite concluir que além do francês e do basco, ele dominava a língua portuguesa. Considerando que Martin viveu seis anos no Uruguai antes de partir para o Brasil, é possível que falasse espanhol também. Mantendo a tradição basca, Martin desempenhava o papel de chefe da família Delabary figurando como testemunha em todos os registros de casamento de seus parentes. Bernardo Delabary, irmão de Martin, nascido em 6 de dezembro de 1818, casou em 1839 com Jeanne Salduberri (dita Joana no Brasil), emigrando para a América do Sul por volta de 1850 e indo morar como o irmão no Brasil, trabalhando nas terras arrendadas por Martin. Bernardo era sapateiro de profissão. Bernardo e Joana tiveram dois filhos nascidos no Uruguai: Joana Delabary e Pedro Delabary. Martin Delabary tornou-se um próspero comerciante na Casa das Correntes, sendo arrendatário de terras no Distrito do Piraí em Bagé. Precisando de um caixeiro para o seu comércio, Martin Delabary foi a Rio Grande em busca de um profissional, encontrando no Mercado Público local o jovem Antônio Nunes Ribeiro Magalhães (futuro Visconde de Ribeiro Magalhães), o qual foi contratado por Martin. Posteriormente, Antônio Nunes Ribeiro Magalhães tornou-se sócio de Martin Delabary no armazém de secos e molhados, conforme informa o professor Cláudio Antunes Boucinha em sua 3. Martin acabava de completar aniversário. 309 SUMÁRIO A família Delebary dissertação de mestrado ‘A história das Charqueadas de Bagé (1891-1940) na literatura’. Ao contrário do que se pensava anteriormente, o comércio de Martin Delabary não ficava nas Três Vendas em Lavras do Sul, mas sim na «Casa das Correntes», na coxilha de São Sebastião. Na verdade, a localidade de Três Vendas em Lavras do Sul só recebeu esse nome muito tempo depois, por volta de 1930, quando José Cacildo Delabary (sobrinho-neto de Martin Delabary, filho de Pedro Delabary e neto de Bernardo Delabary) construiu uma casa de comércio na localidade do Tabuleiro, juntando-se aos estabelecimentos comerciais de Alcides Munhoz e de Odorico Soares, que ficavam bem próximos uns dos outros. Daí o nome Três Vendas4. Martin Delabary ou apenas Delabary, como era conhecido na região, foi citado no livro ‘Diários da Revolução de 1893’, do General Joca Tavares (AXT; CABEDA; SEELIG,2004), sendo informado que as tropas do General Menna Barreto passaram pela Coxilha de São Sebastião em 23 de abril de 1895, acampando no Delabary5. O comerciante Martin Delabary faleceu entre 1880 e 1895 e seu túmulo está localizado nos fundos da ‘Casa das Correntes’, antigo local em que exercia sua atividade de comerciante. O túmulo de Martin Delabary está localizado na vila de São Sebastião (também chamada de Torquato Severo), na estrada que liga Bagé à cidade de Lavras do Sul. Existem fotos da sepultura, com o nome de Martin Delabary e a homenagem de sua esposa Domingas Delabary (Dominique).6 Após a morte de Martin, sua esposa Domingas Delabary ingressou com uma ação judicial contra a Fazenda Nacional, pedindo uma indenização7 pelos prejuízos decorrentes da ocupação militar das terras que ela arrendava no Distrito do Piraí, em Bagé-RS. O Supremo Tribunal Federal confirmou o pagamento da indenização devida pela apropriação de cavalos, éguas, potros, potrilhos e mulas, e pela destruição de postes, aramados e plantações. Para pagamento da referida indenização foi editado o decreto n° 3.247 de 4 de abril de 1899. O valor da indenização 4. Qual a relação da sepultura com a localidade de “Três vendas”, em Lavras? “Não tem nenhuma relação. A localidade de Três Vendas fica bem antes da Vila de São Sebastião, onde está o túmulo de Martin Delabary. Segundo o livro ‘Lavras do sul na Bateia do Tempo’, de Edilberto Teixeira, a localidade de três vendas fica na estrada para o Ibaré, e consagrou-se com este nome por existirem, por um longo período, três casas comerciais vizinhas, respectivamente de propriedade de José Cacildo Delabary, Alcides Munhoz e Odorico Antônio Soares”. Viviane Delabary. 5. No “labari” ou delabari. 6. Datas? “Na sepultura eu não localizei data, somente a homenagem de Domingas para o Martin”. Viviane Delabary. 7. Seria interessante ver quantos pediram indenização para o governo federal. 310 SUMÁRIO A família Delebary foi de 400:750$030 (quatrocentos contos, setecentos e cinquenta mil e trinta réis)”(DELABARY, 2021c). Família Delabary: Genealogia 8 “A família Delabary ( DELABARY, 2021b) ou de Labary (de Labari em basco) é originária da comuna de Anhaux, na Baixa Navarra, no País basco francês, departamento de Pirineus-Atlânticos, na hoje denominada Região de Nova Aquitânia (França). Dentre os ancestrais mais antigos da família, há notícia de Arnalt Ochoa de Labari (ou Lavari), ‘señor de Cabañas’ de vacas em 1358 no Vale de Salazar, Reino de Navarra. Em 1522, durante a Guerra de Navarra, Martin de Labari, um escudeiro (mais baixo grau de nobreza no Reino de Navarra, aspirante a cavaleiro) alistado em outra capitania espanhola, recusou-se a participar do assédio ao Castelo de Amaiur, de acordo com o registro, ‘porque era apaixonado por Navarra’. Ele foi imediatamente despedido (MONTEANO,2010). Em 1551 em Pamplona na cerimônia de juramento dos foros perante as Cortes de Navarra pelo Príncipe Filipe (futuro Rei Filipe II da Espanha), filho do Imperador Carlos V, Rei das Espanhas, Don Miguel Perez de Labari foi o Procurador (representante) da Boa Villa de Lumbier (FUEROS DEL REYNO DE NAVARRA, 2021, p. 219), da Merindade de Sangüesa, sendo que as boas vilas (burgos ou cidades livres), também chamadas Universidades, eram um dos braços das Cortes de Navarra, junto com os Braços Militar e Eclesiástico. Há a referência ao padre Bernard D›Aldax de Labary, ordenado padre em 1732, vigário de Bussunarits e que se tornou presbítero em Irouleguy. Especificamente no tocante à nossa9 família em linha reta, apurei a existência de Pierre de Labary (nascido em 1748, em Lasse), que casou com Jeanne Camino em junho de 1784 (em Lasse) e tiveram um filho, Jean de Labary (nascido em 13/10/1786, Lasse, na França). Jean de Labary casou com Louise Castilla (nascida em 03/12/1797, Anhaux, na França) em Anhaux no dia 06/09/1815 e tiveram dois filhos: 8. Pesquisas de Diego Teixeira Delabary. 9. Pesquisas de Diego Teixeira Delabary. 311 SUMÁRIO A família Delebary Martin de Labary (nascido em 01/09/1816, Anhaux, na França) e Bernard de Labary (nascido em 06/12/1818, Anhaux, na França). Os irmãos franceses Martin Delabary e Bernard Delabary (registrados com esses sobrenomes nos documentos brasileiros) provavelmente embarcaram em Bordeaux, em dezembro de 1838 e desembarcaram na América do Sul (em Montevidéu no Uruguai) , em 183810. Martin Delabary casou em 1845 11 com Dominique Gendaburry (dita Domingas). O casal Martin e Dominique teve, até onde foi apurado, dois filhos: Maria Dorothea Delabary (nascida em 28/03/1846, em Bagé-RS) e José Delabary (não identificado o ano de nascimento), que teria morrido12 sem deixar descendência. Maria Dorothea Delabary casou com Cadet Laurent Bordagorry em 23/09/1865, sendo pais de Laurent Bordagorry, Eulalie Bordagorry e Maria Haydée Bordagorry. Bernard Delabary (dito Bernardo no Brasil) casou com Jeanne (dita Joana) Salaberry (ou Salduberry) em Anhaux na França em 1839 13. Há uma informação não confirmada que o casal teria celebrado novo matrimônio na América do Sul em 1852 14 (em Salto, no Uruguai). O casal Bernard Delabary e Jeanne Delabary (Bernardo e Joana) teve, até onde consegui apurar, dois filhos: Joanna Delabary e Pedro Delabary. Joanna (ou Juana) Delabary, (nascida em 1850, no Uruguai, e falecida em 28/11/1911, Bagé-RS, com sessenta e 10. Conforme data no “passe-port” de Martin. Arquivo particular de Diego Teixeira Delabary. 11. Martin, com 29 anos. 12. Atestado de óbito? Batismo? “Não procurei o atestado de óbito, nem o de batismo no Bispado de Bagé, por não ter uma data referência. Essa informação foi obtida no livro do João Trein Leite”. Viviane Delabary. 13. Bernard, com 21 anos. 14. Então, Bernard teria supostamente 34 anos. 312 SUMÁRIO A família Delebary um anos) casou com Anselmo Garrastazu (nascido em 24/02/1854, em Dom Pedrito/RS) em 20/10/1873 em Lavras do Sul/RS, sendo pais de Júlia Garrastazu (nascida em 1881), que casou com Emílio Grastattaro Médici em 1901, sendo pais do expresidente 1. Emílio Garrastazu Médici, nascido em 04/12/1905. Pedro Delabary (nascido em 1851 e falecido em 12/11/1921, Lavras do Sul-RS, com setenta anos), casou com Maria da Conceição Soares e tiveram treze filhos: Altamira Delabary (nascida por volta de 1881), Trajano Delabary (nascido por volta de 1882), Aidé Delabary (nascida por volta de 1883), Corinna Delabary (nascida por volta de 1884), José Cacildo Delabary (nascido em 28/03/1885), Celina Delabary (nascida por volta de 1886), Julieta Delabary (nascida por volta de 1885), Breno Delabary (nascido por volta de 1889), Octávio Delabary (nascido por volta de 1890) Ercília Delabary (nascida por volta de 1891), Loreta Delabary (nascida por volta de 1892), Amadeu Delabary (nascido por volta de 1897), Celso Delabary (nascido por volta de 1899) . José Cacildo Delabary (nascido em 28/03/1885, em Lavras do Sul/RS e falecido em 18/05/1975, em Lavras do Sul/RS, com noventa anos) casou com Hermozinda Antunes em 30/07/1906. O casal teve os seguintes filhos: Nelson Antunes Delabary (nascido em 16/11/1907), Idorilda Antunes Delabary, Nereu Antunes Delabary (01/03/1912), Nadir Antunes Delabary (1915), Napoleão Antunes Delabary (27/04/1919), Nair Antunes Delabary e Idelcina Antunes Delabary. 313 SUMÁRIO A família Delebary Do segundo casamento de José Cacildo Delabary, com Zeferina Vargas de Freitas em 29/07/1936, nasceram os seguintes filhos: Maria Helenita Freitas Delabary, Nezio Freitas Delabary, Maria Edenar Freitas Delabary, Noé Freitas Delabary e Nairo Freitas Delabary. Napoleão Antunes Delabary (27/04/1919) casou com Maria Amália Leal Soares em 1945, sendo pais de Boris Soares Delabary (09/10/1947), Alan Tadeu Soares Delabary (1948), Helio Napoleão Soares Delabary (26/11/1953), Tasso Caubi Soares Delabary (30/11/1957) e Tirso Soares Delabary (30/10/1960). Helio Napoleão Soares Delabary (26/11/1953) casou em 07/01/1983, com Ceres Denise Oliveira Teixeira, em Lavras do Sul/RS e tiveram dois filhos: Diego Teixeira Delabary (nascido em 19/06/1984, Feira de Santana/BA) e Marcio Teixeira Delabary (nascido em 19/02/1984, Feira de Santana/BA)”.15 Guerra Civil de 1893 Ao aprofundar os dados fornecidos, o assunto invade outro, a guerra civil de 1893 – 1895, no Estado do Rio Grande do Sul, especialmente uma parte dos ataques à propriedade, durante o conflito, com indenizações requeridas, posteriormente, aos cofres públicos da nação. O general João Nunes da Silva Tavares, em 1895, na pacificação, entre as condições enumeradas, estava a indenização dos proprietários: “solicitava o direito de ‘requerer indenização por prejuízos que sofreram com o abastecimento de forças do Governo e outros em suas propriedades’’’(FRANCO, 1996, p. 143. Citado por: PISTOIA, 2021, p. 132). O presidente Prudente de Moraes, respondeu “Quanto à 3.ª condição - Cessada a luta armada no sul, não só os rebeldes como os que lutaram pela legalidade e os que não tomaram 15. Pesquisa de Diego Teixeira Delabary. 314 SUMÁRIO A família Delebary parte na luta, ficarão todos com o direito salvo para reclamar, pelos trâmites legais (...) a indenização (...)” ( ROSA, 1930, p. 208. Citado por: PISTOIA, 2021, p. 133). Como se observa, o direito à propriedade estava garantido; e era o Estado que garantia as indenizações para todos os envolvidos. O tema dos ataques à propriedade, multas, muito caro para Escobar (1983), foi abordado por Cristiane Debus Pistoia (PISTOIA, 2021). Os efeitos econômicos e sociais desses ataques a propriedade ainda exigem uma análise mais apurada para que se possa observar a amplitude da destruição do Estado de direito, no pós-guerra, especialmente sobre a garantia do direito de propriedade que foi sonegada a muitos, enquanto milhares de gaúchos foram em direção a fronteira, sem eira e nem beira, deixando tudo para trás, para salvar as suas vidas, fato denunciado por Escobar. No caso de Domingas Landabouro Delabary, arrendatária ou subarrendatária, chama a atenção todo o longo processo até receber a indenização. É preciso compreender o que realmente foi considerado saque das propriedades e por qual viés foi feito o combate político por parte dos maragatos. Geralmente, ao atacar as propriedades, supostamente os castilhistas atacavam o ideário liberal. Embora tenha um passado escravista, Castilhos não parecia romper com o liberalismo, do ponto de vista da garantia da propriedade. O que é denominado de saque, por parte dos maragatos, é apenas a aplicação da lei em tempos de guerra, de “comoção interna”, para os castilhistas, para a legalidade. O direito de guerra justifica tudo? Aparentemente, os maragatos argumentavam alguma categoria de direito consuetudinário, um acordo tácito subliminar em torno do direito à propriedade? Existia a ideia de uma certa igualdade entre os estancieiros, enquanto produtores, proprietários, como um acordo de cavalheiros, de que a propriedade não deveria ser tocada, por ser “naturalmente” intocável? Nas leis brasileiras em voga, o direito à propriedade não estava acima das razões de Estado. A ideia de atribuir responsabilidades à legalidade, em tempos de guerra, na visão dos maragatos, implicava em defender o direito à propriedade, primeiro, como uma justiça de mão única, irracional, desmedida, quando se sabia que ambos os lados não respeitaram tal direito? Até que ponto a guerra civil de 1893 é um prolongamento de práticas de violência já existentes? ( BARETTA, S. & MARKOFF, J. 1978. Citado por: YOUNGER, 2021, p.8). Motivadas principalmente pela disputa em torno da posse da terra, visto a falta de um marco regulatório da propriedade, desde 1822, quando o regime sesmarial foi extinto? Sem entrar na discussão sobre teoria da história, o fato é que as diferenças entre legalidade e maragato não estavam 315 SUMÁRIO A família Delebary necessariamente na origem de classe, e nem é o objetivo somente um olhar economicista da sociedade (SACCOL, 2021). Governo e oposição estavam num mesmo universo ideológico, numa mesma estrutura agrária (TRINDADE, 1979, p. 119. Citado por: ROUSTON JUNIOR, 2021, p. 30). Conforme Helga Piccolo (1993, 2021), Escobar (1983) utilizou amplamente o livro de Antonio Ferreira Prestes Guimarães (1987) sem mencioná-lo (citado por: SÊGA, 2021). A denúncia de saques a propriedade continha uma sugestão de que deveria haver novas indenizações por parte do governo federal? Nada evidencia tal pensamento; no entanto, a publicação do livro de Wenceslau Escobar (1983), vinte e cinco anos depois, em 1920, demonstrava que as cicatrizes da guerra civil ainda estavam abertas. (PISTOIA, 2021b). Wenceslau reconhecia-se como liberal, mas até que ponto suas idéias diferiam do projeto político oposto, em 1930? (ROSENFIELD, 2021a; ROSENFIELD, 2021b; MARTINS, 2021). Wenceslau Escobar era defensor da monarquia, que acreditava ser mais democrática do que a República (ESCOBAR, 2021). “Também há em Escobar (1922; 1930), um elogio às instituições monárquicas” (AXT, 2021). A lei, de 1826, utilizada para justificar os ataques à propriedade, por parte da legalidade, estava assente na ordem do Império, em uma Constituição outorgada, autocrática. O Art 8.º da lei de 1826, suspendia todas as formalidades sobre a propriedade privada, “no caso de perigo iminente, como de guerra, ou comoção” interna (Coleção de Leis do Império do Brasil, 2021). O suposto liberalismo da Constituição de 1824 esbarra numa premissa básica: a formação escravista (VASCONCELOS, 2021). O uso de leis do Império, depois da instalação da República, coloca os limites da intervenção militar, em 1889, que não tiveram pruridos em usar desse ou daquele instrumento, quando lhe apetecia (QUEIROZ, 2021). Ou seja, o direito à propriedade foi suspenso. A ideia de uma “comoção intestina” demonstrava o que estava em jogo, no que se referia a política interna. “A Constituição brasileira do Império também garantiu “o direito de propriedade em toda a sua plenitude” (art. 179, n.o 22), acrescentado que, se o bem público, legalmente verificado, exigisse “o uso e emprego da propriedade do cidadão”, seria ele previamente indenizado do valor dela. Regulando o modo por que se devia executar a disposição constitucional, a lei de 9 de setembro de 1826 distinguiu os casos de utilidade e de necessidades públicas que tomariam legítima a desapropriação, mas estabeleceu, afinal, que, no caso de perigo iminente, como de guerra, ou comoção, cessariam todas as formalidades, e poder-se-ia “tomar posse do uso”, quanto bas- 316 SUMÁRIO A família Delebary tasse (art. 8.°). Compreende-se que cessassem todas as formalidades exigidas na desapropriação, pois a guerra ou a comoção intestina eram motivos para justificar a dispensa das formalidades que garantiam a propriedade individual (Constituição citada, art. 179, n.º 35). Ficou, deste modo, admitida a requisição, que, no entanto, só depois de quase um século foi extensamente regulada”. (GUIMARÃES, 2021). Veja-se que o cessamento, a dispensa, das garantias da propriedade, implicava, inclusive, na negação da ideia de «laisser faire, laisser passer ». “Que ninguém seja constrangido a vender. Cada um poderá vender o seu a quem quiser, e pelo melhor preço que puder: e não será obrigado a vender a seu irmão ou outro parente; nem ninguém poderá dizer que o quer tanto por tanto, porque foi de seu avoengo. (Exceto para utilidade pública. Const. , art. 179, § 22. Lei de 9 de setembro de 1826. E veja - se o Alvará de 27 de novembro de 1804, extensivo ao Brasil pelo Alvará de 4 de março de 1819)”. (SUSANO, 2021). Somente em 1916, ao que parece, observa-se alguma evolução, no que tange às ideias liberais e a questão da terra (ESTEFANI, 2021). Interessante nisso tudo é a tentativa, hegemônica ou não, de circunscrever o conflito no território do Estado do Rio Grande do Sul, colocando de fora, exteriormente, o Estado Nacional, como se este não estivesse afinado com os interesses castilhistas. No julgamento do Supremo Tribunal Federal, a tensão entre a quem deve-se atribuir as responsabilidades com as indenizações de guerra, se o Estado do Rio Grande do Sul, se a União, ficava claro que existia uma tentativa de limitar a guerra civil à fronteira de uma das unidades da República. Veja-se que são debates pós-guerra, em que ambos os lados, por diferentes interesses, procuram um suposto e esperado Estado de Direito que, durante a guerra, parecia estar extinto. Não é à toa que Castilhos ficou com a pecha de ditador, não necessariamente pelas ideias positivistas. Igualmente, Floriano Peixoto, o Marechal de ferro, foi chamado de tirano, e não foi assim, por acaso, durante a guerra civil. A ocupação da terra, na fronteira brasileira, por parte de Martin Delabary e sua esposa Domingas, na Vila de São Sebastião (Torquato Severo), como arrendatário de terras no no então Distrito do Piraí em Bagé, foi, possivelmente, expressão de contrato de arrendamento anteriormente a Lei de Terras de 1850, pois 317 SUMÁRIO A família Delebary “Após a Independência do Brasil, o regime sesmarial foi extinto e o país ficou sem uma legislação para regulamentar o acesso à terra. Até o surgimento da Lei de Terras (Lei n. 601 de 18 de setembro de 1850), a posse da terra era facilmente realizada sem uma autorização oficial. ‘No período colonial, uma das principais formas de apropriar-se da terra e dos recursos naturais deu-se por meio do apossamento primário da terra e dos recursos naturais renováveis, com base em uma agricultura móvel, predatória e rudimentar’(BENATTI, 2003,p. 54. Citado por: ALMEIDA; BUAINAIN, 2021)”. e posteriormente a Lei de Terras de 1850, pois “com o alvará de 3 de novembro de 1857 e lei de 4 de julho de 1776 a locação foi reduzida à condição de contrato pessoal, ‘ainda que fosse de cem anos’ (MEIRA, 1983, p. 120. Citado por:ALMEIDA; BUAINAIN, 2021), enquanto marco legal, além de demonstrar uma das maneiras de incluir os estrangeiros, já que o sistema escravista era dominante, como “forma de o proprietário colocar as terras em utilização, essencial para conservar a propriedade”, bem como “via de substituição do trabalho escravo, visto parecer quase impossível a existência do trabalho assalariado naquele tempo na sociedade brasileira” (PETTERSEN; MARQUES, 1977. Citado por: ALMEIDA; BUAINAIN, 2021); e, ainda, “para atender a procura de terras dos imigrantes no país, que viam na parceria uma forma de acumular riquezas e uma etapa para se tornar proprietários” (ALMEIDA; BUAINAIN, 2021). “Embora as desvantagens dessas relações contratuais fossem notórias, o surgimento dos contratos de arrendamento e parceria contribuiu para conciliar os interesses dos proprietários e dos imigrantes” ( SALINAS,2021). “Assim, o arrendamento rural servia como uma forma de conservação da grande propriedade sem a necessidade de vendas de terras que se buscavam manter como reserva especulativa e de valor” (PETTERSEN E MARQUES, 1977. Citado por: CASTRO, 2021). Os terrenos atravessados pela linha são em geral de sesmaria. Diz o engenheiro Camargo no seu quadro estatístico e geographico CAMARGO, 2021a) o seguinte:« Póde-se dizer que, exceptuando as serras do Uruguay e as ramificações da serra geral, que cortam diferentes municípios da província, e que se acham devolutos, todas as outras pertencem a domínio particular. Toda a propriedade de terras foi adquirida por posse, ou por cartas de sesmaria, concedidas pelos antigos Governadores e capitães Generais. O trabalho relativo à verificação e descriminação das terras públicas e particulares, assim como a descriminação das posses e sesmarias 318 SUMÁRIO A família Delebary entre si, tem causado nesta província graves inconvenientes em relação à administração e tranquilidade pública» (MORSING, 2021b). Em 13 de dezembro de 1895, no requerimento de Domingas Laudabouro Delabari foi indeferido, o que prova que existia algum processo, alguma reclamação já em curso. No requerimento, ficava clara a condição de arrendatária da requerente. Interessante é que, nesse primeiro momento, conforme o parecer do procurador-geral da República, Antônio de Sousa Martins, faltou competência para fazer a reclamação: “visto não ser em direito, considerada arrendatária da fazenda Pirahy, já por não fazerem prova os documentos por ela exibidos” (BRASIL, 2021d). O Supremo Tribunal Federal, em 8 de dezembro de 1897, em decisão, resgatou uma lei do tempo do Império, especificamente o art. 8. ° da lei de 9 de setembro de 1826, para pagar a indenização. “ Vistos, expostos e discutidos estes autos de apelação cível, em que são partes: 1.ª apelante, a Fazenda Federal, por seu procurador de seção do Rio Grande do Sul; 2.ª apelante, d. Domingas Landabouro Delabary, e apeladas as mesmas, e considerando que é obrigação do Estado pagar a propriedade particular de que se utilizou em tempo de guerra por agentes seus, órgãos de sua ação e autoridade (art. 8. ° da lei de 9 de setembro de 1826 ); que forças legais ao mando de autoridades militares federais se apropriaram de gados e benfeitorias pertencentes à 2.ª apelante; que a sentença apelada, admitido tais premissas, não conclui tão rigorosamente quanto devera, e restringe a condenação pelo fundamento de que a ré 1.ª apelante já pagou todas as vantagens de campanha às forças que operaram no Estado do Rio Grande do Sul no período a que se refere o pedido; que tal facto não perime a obrigação da ré de indenizar a autora, a qual nada tem com aquele pagamento, que não lhe foi aplicado; que, entretanto, não está cumpridamente provado o número de cabeças de gado consumidas, nem o respectivo valor, nem tão pouco o valor das benfeitorias destruídas, sendo, além disso, certo que do pedido referente ao gado não se deduziram as reses de que se utilizaram as forças revolucionárias capitaneadas pelo general Silva Tavares: Acordam, negando provimento à primeira apelação e dando á segunda, confirmar a sentença apelada na parte em que condena a Fazenda Federal a pagar à autora a indenização devida pela apropriação de cavalos, eguas, poldros, potrilhos e mulas, e pela destruição de postes, aramados e plantações, como 319 SUMÁRIO A família Delebary liquidado for na execução e reformar no mais a mesma sentença, para condenar também a ré a pagar à autora o justo preço das reses abatidas e levantadas pelas forças legais da estância de que esta era sub arrendatária, devendo igualmente o respectivo número e preço liquidarse na execução. Custas pela primeira apelante. Supremo Tribunal Federal, 8 de dezembro de 1897. — Aquino e Castro, P. ; — Lúcio de Mendonça. — Ribeiro de Almeida. — Piza e Almeida. — Augusto Olyntho. — Macedo Soares. — João Barbalho. — Pereira Franco. — Américo Lobo. — Bernardino Ferreira. — André Cavalcante. — Manoel Murtinho, vencido: reformava a sentença apelada para absolver a ré de todo o pedido, pela improcedência deste, nos termos em que foi proposto. Havendo entre as forças que se apropriaram para sua mobilização e sustendo do gado cavalar e vacum da autora, corpos de milícia cívica e outros pertencentes ao Estado do Rio Grande do Sul, os quais no decurso de 1893, em que se deu tal apropriação, não eram mantidos à custa da União, não podia correr por conta dessa à correspondente indenização, entretanto que a autora pretende responsabilizar por ela a Fazenda Nacional, exigindo judicialmente o respectivo pagamento, que deveria ser demandado a quem custeava as aludidas forças civis e estaduais. Na ação proposta, pois, confundiram-se responsabilidades distintas, pelo que era inadmissível essa ação e, portanto, no caso de ser julgada improcedente. — Pindahiba de Mattos, vencido pelos mesmos fundamentos de voto do sr. ministro Manoel Murtinho. Fui presente, João Pedro”. (MENDONÇA, 2021). O Decreto nº. 3247, de 4 de Abril de 1899, estabelecia um crédito especial de 400:750$030 para ocorrer ao pagamento reclamado por D. Domingas Landabouro Delabary como indenização. Reconhecia Domingas como arrendatária da fazenda situada no Piray, 2.º distrito do termo de Bagé”. Aparentemente, a reclamação de indenização estava orçada em 720:000$, pela ocupação das forças legais, que acamparam na fazenda. “(...) Intentando ação contra a Fazenda Federal, por ter sido indeferida tal reclamação para haver a quantia de 545:255$, como indenização de prejuízos provenientes da perda de gado vacum, cavalar e muar consumido o levantado pelas mesmas forças, da falta de produção das crias de gado vacum durante três anos e da destruição do cercas e plantações, foi a referida ação julgada, na 1.ª instância, procedente quanto ao gado cavalar e muar, cercas e plantações, e improcedente quanto ao gado vacum, inclusive a produção das crias consumi- 320 SUMÁRIO A família Delebary das. Apelaram ambas as partes para o Supremo Tribunal Federal, que deu provimento à autora, não incluindo, porém, nesse provimento a indenização relativa à falta de produção das crias durante três anos. A liquidação apurou em favor da liquidante a quantia do 518:360$700. Abatido, porém, o valor da produção de três anos, fica reduzida a responsabilidade da Fazenda Federal a 398:255$700, aceitos como juridicamente o foram pela sentença respectiva os preços dados pela liquidante, quantia esta que se eleva a 400:750$030, atendendo-se ao engano que houve na contagem das custas. (...)”. ( BRASIL, 2021a). Manuel Ferraz de Campos Sales, quarto presidente da República, entre 1898 e 1902, em mensagem ao Congresso Nacional, em 30 de abril de 1899, solicitava autorização para o pagamento de Domingas Landabouro Delabary. (BRASIL, 2021b). João Nepomuceno de Medeiros Mallet, Rio de Janeiro, 4 de maio de 1899, reiterou o pagamento de 400:750$030 (BRASIL, 2021c) . Em seis de outubro de 1899, o Presidente da República assinou o decreto de pagamento de Domingas Landabouro Delabary, de 400:750$030 (Coleção de Leis do Brasil, 2021b) . O jornal O Paiz, do Rio De Janeiro, Sábado, 7 de outubro de 1899, noticiou o decreto do Presidente Manuel Ferraz de Campos Sales que autorizava o pagamento de 400:750$030, com erro gráfico. (O Paiz, 2021). THE RIO NEWS, 7 de novembro de 1899, sugere que houve algum tipo de negociação com Domingas Landabouro Delabary, a partir de Joaquim Duarte Murtinho, ministro das finanças, em que Domingas aceitava receber menos, em vez de 520.574 $870, receberia 374.163$. O jornal perguntava, “Como essas reduções são arranjadas? Os credores são obrigados a aceitar o que o ministro oferece para escapar da espera indefinida, ou são oferecidos voluntariamente?” (THE RIO NEWS, 2021a). O jornal “THE RIO NEWS”, de 14 de novembro de 1899, anunciava o pagamento para Domingas, em menor valor, com mais detalhes da suposta negociação. Aparentemente o Tribunal de Contas foi acionado por Domingas Laudabouro Delabary para que houvesse o pagamento de 400.750$030; mas não ganhou. Aparentemente, o Tribunal de Contas lavou as mãos, “o tribunal não tem nada a ver com o menor montante agora especificado pelo ministro”, pondo a culpa no ministro das Finanças, Joaquim Duarte Murtinho, que ganhou fama por restaurar as finanças republicanas no governo Campos Sales. Joaquim Duarte Murtinho era irmão de Manuel José Murtinho, ministro do Supremo Tribunal Federal (JOAQUIM MURTINHO, 2021), que já havia votado contra a indenização. O pedido original era 520.574$880, o Congresso 321 SUMÁRIO A família Delebary aceitou 400.750$030, e Murtinho pagou 374.163$. O jornal afirmava: “- O ministro das Finanças aparentemente se superou em sua política de “apertar” os credores” (THE RIO NEWS, 2021b). Aliás, a política econômica de Joaquim Murtinho, “um liberal convicto, que tachava de socialista a tradição brasileira de interferência do Estado na economia” (CARVALHO, 2021. LYNCH, 2021), também expressava-se no caso da indenização de Domingas, como demonstração de força política, contra uma viúva de um estrangeiro, de uma imigrante, por isso, não foi a toa que o jornal “THE RIO NEWS” se manifestou, manifestando um posicionamento crítico com relação ao governo, algo que não era novo, visto que “graças a suas iniciativas, o jornal se engajou na luta abolicionista, servindo mesmo de ponte entre os brasileiros e estrangeiros envolvidos com o tema, notadamente com a British and Foreign Anti-Slavery Society” (MELO, 2021). Considerações finais O estudo da família Delabary, especialmente a história de Martin Delabary, por um lado, por suas vinculações diretas com a vida do Visconde de Ribeiro Magalhães, apresentado por Diego Delabary, foi fundamental para esclarecer exatamente onde o jovem Antônio Nunes de Ribeiro Magalhães trabalhou como caixeiro, no interior da Freguesia recém elevada à Vila de Bagé, em 1846. Também é importante a exploração geográfica, a espacialidade, o desenho do mapa da ocupação do território, após o Tratado de Madrid. A inserção da região dentro de uma nova realidade nacional em que constava o imigrante, enquanto arrendatário de uma posse ou propriedade. A forma como o exército da legalidade atuava com relação ao estatuto da propriedade e as indenizações decorrentes. As origens da violência na guerra civil de 1893, como produto histórico de uma insegurança jurídica acerca da garantia da propriedade. Os vínculos políticos de um imigrante com os maragatos. As diferenças e semelhanças de discursos com relação à garantia da propriedade e as incongruências do liberalismo. As práticas militares semelhantes de Maragatos e Legalistas, pertencentes ao mesmo segmento social. Enfim, a política econômica do liberal Joaquim Murtinho com relação ao pagamento de uma indenização a uma viúva de um imigrante pós-guerra civil de 1893. 322 SUMÁRIO A família Delebary Referências ALMEIDA, Patrícia José de; BUAINAIN, Antônio Márcio. “Os contratos de arrendamento e parceria no Brasil”. Rev. Direito GV, São Paulo , v. 9, n. 1, p. 319-343, June 2013 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1808-24322013000100012&lng=en&nrm=iso> . access on 05 Mar. 2021. http://dx.doi.org/10.1590/S1808-24322013000100012 . ALVES, Francisco das N. & TORRES, Luiz H. (orgs.). Pensar a Revolução Federalista. Rio Grande: Editora da FURG, 1993. AXT, Gunter. “Contribuições ao debate historiográfico concernente ao nexo entre Estado e sociedade para o Rio Grande do Sul castilhista-borgista”. MÉTIS: história & cultura – v. 1, n. 1, p. 39-69, jan./jun. 2002. Disponível em: http://www. ucs.br/etc/revistas/index.php/metis/article/download/1058/722 . Acesso em: 10/02/2021. AXT, Gunter; CABEDA, Coralio Bragança Pardo; SEELIG, Ricardo Vaz (orgs.). TAVARES, Joca; TAVARES, Francisco da Silva. Diários da Revolução de 1893. Porto Alegre: Memorial do Ministério Público/ Ed. Nova Prova, 2 vols., 2004. BARETTA, S., & MARKOFF, J. (1978). “Civilization and Barbarism: Cattle Frontiers in Latin America”. Comparative Studies in Society and History, 20(4), 587-620. doi:10.1017/S0010417500012561 . BENATTI, J. H. Direito de propriedade e proteção ambiental no Brasil: apropriação e uso dos recursos naturais no imóvel rural. Tese (Doutorado) - NAEA/ UFPA, Belém, 2003. BETEMPS, Leandro Ramos. A Colônia Francesa de Pelotas e seus Acervos Culturais: Memória, História e Etnia. Dissertação de Mestre em Memória Social e Patrimônio Cultural. Universidade Federal de Pelotas Instituto de Ciências Humanas Curso de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural. Pelotas, 30 de junho de 2009, pp. 60-61. Disponível em: http://guaiaca.ufpel.edu.br/handle/123456789/1053 . Acesso em: 08/02/2021a. BETEMPS, Leandro Ramos. “Aspectos da Colonização Francesa em Pelotas”. Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/HistRev/article/ download/12082/7629 . Acesso em: 07/02/2021b. BEUX, Armindo, coord. Franceses no Rio Grande do Sul. Porto Alegre, A Nação, [1976]. BOUCINHA, Cláudio Antunes. A história das charqueadas de Bagé (1891-1940) na literatura. Dissertação (Mestrado em história) Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,1993. BRILHANTE, Ismael de Oliveira . No Ápice da Glória: Heróis da Brigada Militar. Volume I. Porto Alegre, 1979. Obra patrocinada pelo Montepio MBM. Publicado em 28 de março de 2011. Disponível em: https://issuu.com/brigadiano/docs/ no_apice_da_gloria . Acesso em: 08/02/2021. CAMARGO, Antonio Eleuterio de. (Org.). Quadro Estatístico e Geográfico da Província de S. Pedro do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Typographia do Jornal do Commercio, 1868, p. 79. Disponível em: http://acervo.redememoria.bn.br/redeMemoria/handle/20.500.12156.2/305443 . Acesso em: 07/03/2021a. 323 SUMÁRIO A família Delebary CAMARGO, Fernando. O Malón de 1801: a Guerra das Laranjas e suas implicações na América Meridional / Fernando Camargo. – Passo Fundo: Clio, 2001. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/fernandocamargo/files/2017/08/Mal%C3%B3n-de-1801.pdf . Acesso em: 07/02/2021b. CAMPIÓN, Arturo. “CELTAS, IBEROS Y EUSKAROS”. pp. 12-13-427. Revista Bascongada. Disponível em: http://w390w.gipuzkoa.net/WAS/CORP/DBKVisorBibliotecaWEB/visor.do?ver&amicus=178878&amicusArt=317406 . Acesso em: 07/02/2021. CARVALHO, José Murilo De. “Aconteceu em um fim de século”. Brasil 500 d.c.-José Murilo de Carvalho: Aconteceu em um fim de século. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs21029903.htm . Acesso em: 05/03/2021. CASTRO, Luís Felipe Perdigão de. “Os Contratos de Arrendamento Rural no Brasil: Origens Históricas e Marcos Jurídicos”. Revista Brasileira de História do Direito. DOI: 10.21902 | e-ISSN: 2526-009x| Brasília | v. 2 | n. 1 | p. 197-217| Jan/ Jun.2016. Disponível em: https://www.indexlaw.org/index.php/historiadireito/article/view/725/pdf . Acesso em: 05/03/2021. COSTA, Antônio Luiz M. C. Títulos de Nobreza e Hierarquias: um guia sobre as graduações sociais na história / Antônio M. C. Costa. São Paulo: Draco, 2014. DELABARY, Diego. “Bernardo Delabary”. Bernardo Delabary (1818-c.1880) - Genealogy. Disponível em: https://www.geni.com/people/Bernardo-Delabary/6000000052107439827 . Acesso em: 08/02/2021a. DELABARY, Diego. “Informações genealógicas e história familiar de Delabary”. Delabary surname. Disponível em: https://www.geni.com/surnames/delabary . Acesso em: 08/02/2021b. DELABARY, Diego. “Martin Delabary”. Martin Delabary ( 1816-1870) - Genealogy. Disponível em: https://www.geni.com/people/Martin-Delabary/6000000052107677935 . Acesso em: 08/02/2021c. DIAS, Sônia. “Verbete”. “Médici, Emilio Garrastazzu”. Disponível em: http:// www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/medici-emilio-garrastazzu . Acesso: 09/02/2021. DURÃO, Saygino Borrêa. Memoria justificativa sobre os estudos definitivos para a estrada de ferro do rio grande ao entroncamento no cacequy mandados executar por hygino corrêa durão. [por João Frick]. Rio de JANEIRO: Typ . de G . Leuzinger & Filhos , Ouvidor 31 . [Rio de Janeiro , 29 de Agosto de 1876]; 1876. Disponível em: http://memoria.org.br/ia_visualiza_bd/ia_vdados.php?cd=meb000000065&m=811&n=00147 . Acesso em: 07/03/2021. ESCOBAR, Wenceslau Pereira. Anais da Câmara dos Deputados (ACD), 1908, v. II. p. 352. Citado por: ROUSTON JUNIOR (2021). ESCOBAR, Wenceslau Pereira. Apontamentos para a História da Revolução Rio-grandense de 1893. Brasília: UnB, 1983. ESCOBAR, Wenceslau Pereira. Finanças e política. Discursos proferidos na Câmara dos Deputados e artigos publicados na imprensa nos anos de 1926 a 1929. Porto Alegre: Globo, 1930. 324 SUMÁRIO A família Delebary ESCOBAR, Wenceslau Pereira. 30 anos de ditadura rio-grandense. Rio de Janeiro: Canton. & Beyer, 1922. ESTEFANI, Daniel. A Evolução Histórica da Propriedade, o Surgimento de Sua Função Social e a Usucapião Extrajudicial enquanto Propulsora do Conteúdo Existencial Mínimo. Monografia apresentada ao curso de Bacharelado em Direito, Escola de Direito, do Centro Universitário Autônomo do Brasil – UniBrasil ( Bacharel em Direito). Curitiba, 2018. Disponível em: https://doc.academicoo.com/user/ Daniel+Estefani/monografia.pdf . Acesso em: 07/02/2021. FAGUNDES, Elizabeth Macedo de. Inventário Cultural de Bagé: Um Passeio pela História. Bagé: Praça da Matriz Editora, 2012. Disponível em: http://qrcodebagecitytour.wixsite.com/qrcodebagecitytour/palacete-pedro-osrio . Acesso em: 08/02/2021. FLORES, Alfredo de J.; MONTIEL, Alejandro; ANDERSON, Alvarez; FELONIUK, Vichinkeski Teixeira Wagner. (Organizadores). Perspectivas do discurso jurídico: Contribuições da história e filosofia ao direito contemporâneo . Rio Grande: Ed. da FURG, 2020. - (Coleção direito e justiça social ; v. 12). Disponível em: http://repositorio.furg.br/bitstream/handle/1/8844/FELONIVolume12.pdf ?sequence=3 . Acesso em: 10/02/2021. FRANCO, Sérgio da Costa. Júlio de Castilhos e sua época. 4. ed. Porto Alegre: UFRGS, 1996. FRANCO, Sérgio da Costa “O Partido Federalista do Rio Grande Do Sul (18921928)”. Cadernos de História. Memorial Do Rio Grande Do Sul, Nº 13. Disponível em: https://web.archive.org/web/20140325191016/http://www.memorial.rs.gov. br/cadernos/maragatos.pdf . Acesso em: 10/02/2021. GIORGIS, José Carlos Teixeira. Bagé e Aparício Saraiva: a carta que não chegou. Postado em: 09/05/2020. Disponível em: Disponível em: http://www.jornalminuano.com.br/noticia/2020/05/09/bage-e-aparicio-saraiva-a-carta-que-nao-chegou . Acesso: 09/02/2021a. GIORGIS, José Carlos Teixeira. Bagé e Aparício Saravia: a carta que não chegou (2). Postado em: 16/05/2020 Disponível em: http://www.jornalminuano.com. br/noticia/2020/05/16/bage-e-aparicio-saravia-a-carta-que-nao-chegou-2 . Acesso: 09/02/2021b. GIORGIS, José Carlos Teixeira. Bagé e Aparício Saravia: a carta que não chegou (3). Chácara ‘Gentil’, no Piraí. Postado em: 23/05/2020. Disponível em: http:// www.jornalminuano.com.br/noticia/2020/05/23/bage-e-aparicio-saravia-a-carta-que-nao-chegou-3 . Acesso: 09/02/2021c. GONZAGA, S.; DACANAL, J. H. (Orgs.). Rs: Economia e Política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1979. GUIMARÃES, Antonio Ferreira Prestes. A Revolução Federalista em cima da serra. Diário de Campanha. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1987. GUIMARÃES, Hahnemann. Requisições Civis. Revista do Direito Administrativo. v. 1 n. 2 (1945). DOI: https://doi.org/10.12660/rda.v1.1945.8415 ; 01-04-1945. [Consultor Geral da República]. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/ 325 SUMÁRIO A família Delebary index.php/rda/article/view/8415 . Acesso em: 27/02/2021. Informações genealógicas e história familiar de Delabary. Disponível em: https://www.geni.com/surnames/delabary . Acesso em: 08/02/2021. JOAQUIM MURTINHO. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Joaquim_Murtinho . Acesso em: 08/02/2021. LANDABURU. Pagina nueva 1. Disponível em: http://www.euskalnet.net/laviana/gen_bascas/landaburu.htm . Acesso em: 08/02/2021. LANGBECKER, Tatielle Belem e PERLEBERG, Cleiton Stigger. A Contribuição Da Mulher Pecuarista Como Potencial Ator na Preservação da Atividade Pecuária de Corte no Município De Dom Pedrito-RS. Disponível em: http://seer. fclar.unesp.br/redd/article/viewFile/6962/5610 . Acesso em: 08/02/2021. LAS ENCARTACIONES. Disponível em: https://es.wikipedia.org/wiki/Las_ Encartaciones . Acesso em: 08/02/2021 . LEITE, João Francisco Trein. Coxilha de São Sebastião. Bagé, EdURCamp, 1997. LYNCH, Christian. “‘Nada de NOVO sob o Sol’: teoria e prática do neoliberalismo brasileiro”. Insight Inteligência , 2020. Edição 91. Disponível em; https:// insightinteligencia.com.br/nada-de-novo-sob-o-sol-teoria-e-pratica-do-neoliberalismo-brasileiro/ . Acesso em: 06/03/2021. LOS VASCOS EN LA ARGENTINA BUSCADOR DE APELLIDOS VASCOS. Disponível em: http://losvascosenlaargentina.blogspot.com.br/2012/10/ landaburu-landeras.html . Acesso em: 18/02/2021. . MAIZTEGUI CASAS, Lincoln R.Orientales. Una Historia Política del Uruguay. De 1865 a 1938. Tomo II. Montevideo: Planeta, 2005, p. 138. MARTINS, José Júlio Silveira. Silveira Martins. Rio: Tip. São Benedito, 1929. Citado por: FRANCO, Sérgio Da Costa. “O Partido Federalista do Rio Grande Do Sul (1892-1928)”. CADERNOS DE HISTÓRIA. MEMORIAL DO RIO GRANDE DO SUL, Nº 13. Disponível em: https://web.archive.org/web/20140325191016/ http://www.memorial.rs.gov.br/cadernos/maragatos.pdf . Acesso em: 10/02/2021. MEIRA, Sílvio. Teixeira de Freitas o jurisconsulto do império: vida e obra. 2a. ed. revista e aumentada. Brasília: Cegraf, 1983. MELO, Victor Andrade de. “A sociabilidade britânica no Rio de Janeiro do século XIX: os clubes de Cricket”. Almanack, Guarulhos , n. 16, p. 168-205, Aug. 2017 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2236-46332017000200168&lng=en&nrm=iso> . access on 16 Feb. 2021. http://dx.doi.org/10.1590/2236-463320171604. MENDONÇA, Lúcio de. Páginas Jurídicas, Estudos, Pareceres e Decisões. GARNIER, LIVREIRO EDITOR. RUA DO OUVIDOR, 71 /6, RUE DES SAINTSPÈRES, 6/RIO DE JANEIRO/ PARIS, 1903, pp. 217-218. Disponível em: 18/02/2021. Disponível em: http://www.stf.jus.br/bibliotecadigital/DominioPublico/44327/pdf/44327.pdf .Acesso em: 18/02/2021. MONEGAL, José. Vida de Aparicio Saravia. Montevideo: A. Monteverde y Cía., 1942, p. 400. 326 SUMÁRIO A família Delebary MORSING, Carlos Alberto. “Justificação do traçado” . In: DURÃO, Saygino Borrêa . Memória justificativa sobre os estudos definitivos para a estrada de ferro do rio grande ao entroncamento no Cacequy mandados executar por Hygino Corrêa Durão. [por João Frick]. Rio de JANEIRO: Typ . de G . Leuzinger & Filhos , Ouvidor 31 . [Rio de Janeiro , 29 de Agosto de 1876]; 1876, p. 52. Disponível em: https://play.google.com/books/reader?id=V_9KAAAAYAAJ&hl=pt-BR&printsec=frontcover&pg=GBS.PA52 . Acesso em:08/03/2021a. MORSING, Carlos Alberto. “Posse de terras”. In: DURÃO, Saygino Borrêa. Memória justificativa sobre os estudos definitivos para a estrada de ferro do rio grande ao entroncamento no Cacequy mandados executar por Hygino Corrêa Durão. [por João Frick]. Rio de JANEIRO: Typ . de G . Leuzinger & Filhos , Ouvidor 31 . [Rio de Janeiro , 29 de Agosto de 1876]; 1876, p. 56. Disponível em: http://memoria.org.br/ia_visualiza_bd/ia_vdados.php?cd=meb000000065&m=811&n=00147 . Acesso em: 07/03/2021b. MORONI, Alberto Yates. Fronteira ibero-americana pelo Tratado de Madri (1750). XVI SEUR DOM PEDRITO - RS. Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu. br/ojs2/index.php/seur/article/viewFile/19823/12708 . Acesso em: 08/02/2021. MONTEANO, Peio J. La guerra de Navarra (1512-1529) Crónica de la conquista española. Pamplona. España:Pamiela Argitaletxea, 2010. NOGUEIRA, Nerci. As fronteiras de Bagé. Postado em 20 de setembro de 2015. Disponível em: https://nosprimordiosdebage.blogspot.com/2015/09/as-fronteiras-de-bage-os-reinos-de.html . Acesso em: 15/02/2021. “PATRONYME LABARY”. LABARY: Popularité du nom de famille, La généalogie des LABARY. Disponível em: https://www.filae.com/nom-de-famille/ LABARY.html . Acesso em: 07/02/2021. “PATRONYME: LANDABURU”. Anhaux [Pyrénées-Atlantiques]: Table des naissances/baptêmes. Disponível em; http://www.geneoweb.org/actes/tab_naiss. php/Anhaux+%5BPyr%E9n%E9es-Atlantiques%5D/LANDABURU?xord=M . Acesso em: 08/02/2021. PETTERSEN, A.; MARQUES, N. Uso e Posse temporária da terra (arrendamento e parceria). Doutrina, legislação, jurisprudência. São Paulo: Pró-Livro, 1977. PICCOLO, Helga I. L. “A História da História da Revolução Federalista no Rio Grande do Sul”. Conferência de Posse, de sócia correspondente do IHGB, pronunciada no IHGB, em 13 de outubro de 1993. II - Conferências e Discursos. 5. Revista IHGB, Rio de Janeiro, 154 (381): 123-340, Out./Dez. 1993, pp. 197-212. Disponível em: https://www.ihgb.org.br/publicacoes/revista-ihgb/itemlist/filter.html?category=9&moduleId=147&start=100 . Acesso em: 26/02/2021. PICCOLO, Helga I. L. “A Revolução Federalista no Rio Grande do Sul: considerações historiográficas”. In: ALVES, Francisco das N. & TORRES, Luiz H. (orgs.). Pensar a Revolução Federalista. Rio Grande: Editora da FURG, 1993. PISTOIA, Cristiane Debus. Violência Física, Material e Moral no Rio Grande do Sul (1889-1920) / Cristiane Debus Pistoia. – Porto Alegre, 2009. 209 f. Diss. (Mestrado) – Faculdade de Ciências Humanas, Pós-graduação em História das Sociedades 327 SUMÁRIO A família Delebary Ibéricas e Americanas, PUCRS. Orientador: Prof. Dr. Moacyr Flores. Disponível em: http://tede2.pucrs.br/tede2/handle/tede/2291 . Acesso em: 05/02/2021a. PISTOIA, Cristiane Debus. “Os Apontamentos do Dr. Escobar: Um Discurso, Uma Crítica”. OPSIS, Catalão, v. 9, n. 13, p. 58-80, jul-dez 2009. Revista OPSIS_jul-dez 2009-final.pmd. Disponível em: https://www.revistas.ufg.br/Opsis/article/download/10119/6814/. Acesso em: 10/02/2021b. QUEIROZ, Olívia Pinto de Oliveira Bayas. O Direito de Família no Brasil-Império. 18/10/2010. Disponível em: https://ibdfam.org.br/artigos/687/O+Direito+de+Fam%C3%ADlia+no+Brasil-Imp%C3%A9rio . Acessado em: 07/02/2021. RELA, Walter. Uruguay: Cronologia Historica Documentada, New York : Norman Ross Pub. Inc. 2000, p.60. RELA, Walter. Aparicio Saravia. 1856-1904: Cronologia Documentada. Ediciones de la Plaza, 2004, p. 211. ROSA, Othelo. Júlio de Castilhos: Perfil Biográfico e Escritos Políticos. II Parte. Porto Alegre: Globo, 1930, p. 208. Citado por: PISTOIA, 2021. ROSENFIELD, Luis. “Projetos Constitucionais Esquecidos: As Propostas Intelectuais de Reconstitucionalização do Brasil no Governo Provisório (1930-1934)”. In: FLORES, Alfredo de J.; MONTIEL, Alejandro; ANDERSON, Alvarez; FELONIUK, Vichinkeski Teixeira Wagner. (Organizadores). Perspectivas do discurso jurídico: Contribuições da história e filosofia ao direito contemporâneo . Rio Grande: Ed. da FURG, 2020. - (Coleção direito e justiça social ; v. 12). Disponível em: http://repositorio.furg.br/bitstream/handle/1/8844/FELONIVolume12.pdf ?sequence=3 . Acesso em: 10/02/2021a. ROSENFIELD, Luis. Transformações do pensamento constitucional brasileiro: a história intelectual dos juristas da Era Vargas (1930-1945) / Luis Rosenfield; orientador Anderson Vichinkeski Teixeira; coorientador Dieter Grimm – Tese (doutorado) – Universidade Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo/RS, 2019. Disponível em: http://www.repositorio.jesuita.org.br/bitstream/handle/UNISINOS/9105/ Luis%20Rosenfield_.pdf ?sequence=1&isAllowed=y . Acesso em: 10/02/2021b. ROUSTON JUNIOR, Eduardo. O Partido Federalista na Primeira República Brasileira: Imprensa e Discursos Parlamentares. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Programa de Pós-graduação em História. Tese apresentada como requisito para a obtenção do grau de Doutor. Porto Alegre, 2016. Disponível em: https://tede2.pucrs.br/tede2/bitstream/tede/7063/2/TES_EDUARDO_ROUSTON_JUNIOR_COMPLETO.pdf . Acesso em: 10/02/2021. SÁ, Mem de. A Politização do Rio Grande. Porto Alegre: Tabajara, 1973, p. 25. SACCOL, Tassiana Maria Parcianello. Um propagandista da república: política, letras e família na trajetória de Joaquim Francisco de Assis Brasil (década de 1880) / Tassiana Maria Parcianello Saccol. – Porto Alegre, 2013. 210 f. Diss. (Mestrado) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Pós-Graduação em História, PUCRS. Orientador: Prof. Dr. Flavio Madureira Heinz. Disponível em: https://tede2. pucrs.br/tede2/bitstream/tede/2455/1/447097.pdf . Acesso em: 10/02/2021. 328 SUMÁRIO A família Delebary SALINAS, Patricia Jose de Almeida. Arrendamento e parceria na agricultura brasileira: condicionantes, contratos e funcionamento / Patricia Jose de Almeida Salinas. Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Economia. – Campinas, SP:[s.n.]. 2009. Disponível em: http://repositorio.unicamp. br/jspui/bitstream/REPOSIP/285707/1/Salinas_PatriciaJosedeAlmeida_D.pdf . Acesso em: 05/03/2021. SARAVIA, Nepomuceno H e GARCIA, Nepomuceno Saravia. Memorias de Aparicio Saravia. Relato Histórico Biográfico de su Hijo Nepomuceno, Ilustrado con la Documentación del Archivo del General. Montevideo: Editorial Medina, 1956, p. 574. SÊGA, Rafael Augustus. “Revolução Federalista, 110 Anos”. História & Perspectivas, Uberlândia, (29 e30) : 177-215, Jul./Dez. 2003/Jan./Jun. 2004, p. 209. Disponível em: http://www.seer.ufu.br/index.php/historiaperspectivas/article/download/19148/10295 . Acesso em: 10/02/2021. “AND MEANING OF NAME LANDABURU”. Disponível em: http://www.namespedia.com/details/Landaburu . Acesso em: 08/02/2021 . SULIANI, Antônio. Etnias & carisma: poliantéia em homenagem a Rovílio Costa. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001, p. 1059. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=Bv_x5z13fD4C&hl=pt-BR&source=gbs_navlinks_s . Acesso: 09/02/2021. SUSANO, Luiz da Silva Alves de Azambuja. “Digesto brasileiro, EXTRATO E COMENTÁRIO DO LIVRO 4 . DAS ORDENAÇÕES , TÍTULO 11º . Que ninguém seja constrangido a vender” . In: Digesto brasileiro ou extracto e comentário das ordenações e leis posteriores até o ano 1841. OBRA ÚTIL A TODOS OS CIDADÃOS PORQUE TODOS DEVEM SABER QUAIS SÃO AS LEIS DO SEU PAIZ. Obra Posthuma de um antigo Desembargador do Porto , emigrado no Brasil. Parte I; Parte II; Parte III;APPENDICE. RIO DE JANEIRO, EM CASA DE EDUARDO E HENRIQUE LAEMMERT, RUA DA QUITANDA , N . ° 77; Rio de Janeiro , 1843-1845 . Typographia Universal de LAEMMERT , rua do Lavradio, 63; 1943, pp. 21-22(357-358). Disponível em: https://play.google.com/books/reader?id=UA83AAAAIAAJ&hl=pt&pg=GBS.RA2-PA22 . Acesso em: 28/02/2021. DIREITO CIVIL, CRIMINAL E COMMERCIAL. II- LÍNGUA PORTUGUESA; (234) Digesto Brasileiro ou extracto e comentário das Ordenações e Leis posteriores até ao presente. Obra útil a todos os cidadãos; por um antigo Desembargador do Porto. Rio de Janeiro, 1843, in-8. gr. CATÁLOGO DOS LIVROS DA BIBLIOTECA FLUMINENSE. RIO DE JANEIRO: TYPOGRAPHIA THEVENET & C. RUA D’AJUDA, nº 16, 1866, p. 19. Disponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_obrasraras/or1292572/or1292572.pdf . Acesso em: 28/02/2021. SUSANO, Luiz da Silva Alves de Azambuja. Digesto brasileiro, ou, extracto e comentário das ordenações e leis posteriores até ao presente. 2 ed., rev. e acrescentada. Rio de Janeiro: Typ. Universal de Laemmert, 1855. 3 v. em 1, 21 cm. “A primeira edição saiu com a indicação de ‘Obra posthuma de um antigo Desembargador do Porto, emigrado no Brasil’. Muitos julgaram então que o trabalho era, com efeito, da autoria do desembargador Venâncio Bernardo de Ochoa, deputado em Portugal nas Cortes constituintes de 1837 mais tarde residente no Rio de Janeiro. Porém, Luiz da Silva Alves de Azambuja Susano declarou que a obra foi de fato escrita por ele e que a referida indicação 329 SUMÁRIO A família Delebary fora posta pelos editores, a fim de torná-la mais conceituada pelo público. A presente edição, considerada a segunda, traz a autoria correta”. Disponível em: http://www. stf.jus.br/bibliotecadigital/PublicacoesInstitucionais/1071975/PDF/1071975.pdf . Acesso em: 28/02/2021. TEIXEIRA, Edilberto. Lavras do Sul na Bateia do Tempo. Santa Maria: UFSM, 1992. TRINDADE, Hélgio. “Aspectos políticos do Sistema Partidário Republicano Rio-Grandense (1882-1937)”. In: GONZAGA, S.; DACANAL, J. H. (Orgs.). RS: Economia e Política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1979, p. 119. VASCONCELOS, Diego de Paiva. O liberalismo na constituição brasileira de 1824 / Diego de Paiva Vasconcelos. - 2008. 83 f. “Orientação: Prof. Dr. Paulo Menezes de Albuquerque.” Cópia de computador. Dissertação (mestrado) – Universidade de Fortaleza, 2008. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/ teste/arqs/cp049092.pdf . Acesso em: 07/02/2021. YOUNGER, Joseph (2009). “Políticas Partidarias y Propiedades Nebulosas: Coacción y Derecho en las Fronteras del Río de la Plata (1845-1865)”. XII Jornadas Interescuelas/Departamentos de Historia. Departamento de Historia, Facultad de Humanidades y Centro Regional Universitario Bariloche. Universidad Nacional del Comahue, San Carlos de Bariloche. Disponível em: https://cdsa.aacademica. org/000-008/386.pdf . Acesso em: 10/02/2021. Arquivo consultado Arquivo particular de Diego Teixeira Delabary. Periódicos O Paiz. RIO DE JANEIRO, Sábado, 7 de Outubro de 1899. Ano XVI. Nº 5480. Disponível em: http://memoria.bn.br/pdf/178691/per178691_1899_05480.pdf . Acesso em: 11/02/2021. THE RIO NEWS. November 7th, 1899, P. 8 . Disponível em: http://memoria. bn.br/pdf/349070/per349070_1899_00045.pdf . Acesso em: 08/02/2021a. “THE RIO NEWS, November 14th, 1899”, p. 8. Disponível em: https://ia801701. us.archive.org/32/items/1899therionews46/189911-Vol.25N.4614novTheRioNews. pdf . http://memoria.bn.br/pdf/349070/per349070_1899_00046.pdf . Acesso em: 08/02/2021b. Legislação BRASIL. Câmara dos Deputados. CONGRESSO NACIONAL. ANAIS DA CÂMARA DOS DEPUTADOS. TERCEIRA SESSÃO DA TERCEIRA LEGISLATURA. SESSÕES DE 27 DE ABRIL A 31 DE MAIO DE 1899. VOLUME I E APÊNDICE. RIO DE JANEIRO. IMPRENSA NACIONAL, 1899, P. 26. Dispo- 330 SUMÁRIO A família Delebary nível em: http://www.archive.org/stream/anais37consgoog/anais37consgoog_djvu. txt. Acesso em: 08/02/2021a. BRASIL. Diário Oficial da União (DOU) de 7 de Maio de 1899. P. 6379. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/diarios/1630558/ . Acesso em: 08/02/2021b. BRASIL. Ministério da Guerra. DECRETO N. 3247 — DE 4 DE ABRIL DE 1899. RELATÓRIO APRESENTADO AO PRESIDENTE DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL PELO GENERAL DE DIVISÃO, J. N. DE MEDEIROS MALLET, MINISTRO DE ESTADO DA GUERRA, EM MAIO DE 1899. RIO DE JANEIRO. IMPRENSA NACIONAL, 1899, PP. 124-125. Disponível em: http://fortalezas.org/index.php?ct=bibliografia&id_bibliografia=3743 . http://memoria.bn.br/ pdf/720950/per720950_1899_00001.pdf . Acesso em:08/02/2021c. BRASIL. Requerimentos despachados, de 13 de dezembro de 1895. Diário Oficial da União (DOU), Seção 1, Pg. 14. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/ diarios/1699350/pg-14-secao-1-diario-oficial-da-uniao-dou-de-14-12-1895 . Acesso em: 27/02/2021d. Coleção de Leis do Império do Brasil - 1826, p. 5 Vol. 1 pt. I. LEI DE 9 DE SETEMBRO DE 1826. Marca os casos em que terá que logar a desapropriação da propriedade particular por necessidade, e utilidade pública e as formalidades que devem preceder a mesma desapropriação. Portal da Câmara dos Deputados. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-38538-9-setembro-1826-567032-publicacaooriginal-90476-pl.html . Acesso em: 27/02/2021. Coleção das Leis do Brasil. DECRETO N. 597- DE 29 DE AGOSTO DE 1899. Autoriza o Poder Executivo a fazer as necessárias operações de crédito para dar execução às sentenças da .Justiça federal, passadas em julgado, mediante acordo com os respectivos credores sobre o quantum a liquidar. Disponível em: https://bd.camara. leg.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/19120/colleccao_leis_1899_parte1.pdf ?sequence=5&isAllowed=y . Acesso em: 11/02/2021a. Coleção de Leis do Brasil de 31/12/1899 - vol. 002, p. 1275, col. 1. DECRETO N. 3430 – DE 6 DE OUTUBRO DE 1899. Relatório : Ministério da Guerra (RJ) - 1828 a 1940. Abre ao Ministério da Guerra o crédito especial da quantia de 400:750$030 para ocorrer ao pagamento reclamado por D. Domingas Landabouro Delabary, como indemnização por prejuízos e danos causados pelas forças legais que operaram no Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em: http://legis.senado.leg.br/ norma/400738/publicacao/15799729 . Acesso em: 11/02/2021. Disponível em: http://legis.senado.leg.br/norma/400738 . Acesso em: 11/02/2021. Disponível em: http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-digital/relatorio-ministerio-guerra/ . Acesso em: 11/02/2021b. FUEROS DEL REYNO DE NAVARRA. RECOPILACIÓN de todas las leyes del reyno de Navarra concedidas y juradas por los Señores Reyes á suplicación de los tres Estados de dicho reyno, por el licenciado Armendariz. Pamplona: Carlos de Labayen Impressor, 1614. Disponível em: http://www.liburuklik.euskadi.eus/handle/10771/9234 . Acesso em: 14/03/2021. 331 SUMÁRIO O CASO DOS VALDENSES: IMIGRAÇÃO E REDES DE RELAÇÃO DE UMA COMUNIDADE ITALINA PROTESTANTE A PARTIR DA FRONTEIRA SUL Arthur Engster Varreira1 332 SUMÁRIO O caso dos Valdenses: imigração e redes de relação de uma comunidade italiana protestante a partir da frenteira Sul 1 Introdução É bem conhecido o fato de que a Societa Italiana de Soccorso Mutuo e Beneficnza in Bagé, atual Sociedade Italiana de Beneficência Anita Garibaldi, foi a primeira organização assistencialista do seu tipo organizada por imigrantes italianos no Brasil, tendo sido inaugurada já a 150 anos. Quando da sua fundação oficial, em primeiro de janeiro de 1871, registravam-se em Bagé cerca de 122 italianos residentes, de maneira que a comunidade italiana local antecede até mesmo o período comumente associado ao início da imigração italiana para o Brasil, entre os anos de 1874 e 1875. O trajeto destes imigrantes, porém, não foi dos mais diretos, pois não chegavam ao Rio Grande do Sul vindos diretamente da Itália. Tendo se assentado em Bagé entre os anos finais da década de 1850 e ao longo da década de 1860, estes italianos faziam parte de grupos imigrantes inseridos nos movimentos de imigração oficial para o Uruguai e a Argentina, que começaram a ser promovidos na região com o final da Guerra Grande em 1852. Dessa forma, a primeira organização italiana do Brasil e a comunidade italiana de Bagé tem sua história fortemente vinculada a esse processo migratório platino, que por sua vez nos permite relaciona-la com um grupo de imigrantes italianos que é comumente negligenciado pela historiografia brasileira da imigração: o dos Valdenses. Originalmente um movimento cristão de reforma religiosa iniciado na cidade de Lion, no sul da França, nas últimas décadas do século XII em torno da figura semi-mítica de um certo Pedro Valdo, os Valdenses foram condenados enquanto heresia pela Igreja 1. Mestre em História, UFSM/Brasil. 333 SUMÁRIO O caso dos Valdenses: imigração e redes de relação de uma comunidade italiana protestante a partir da frenteira Sul Católica entre 1184 e 1215, tendo sobrevivido à anos de perseguições e massacres apenas em núcleos isolados nas regiões alpinas do norte da Itália. Entre os séculos XIII e XIV essas comunidades também se relacionaram com diversos outros movimentos religiosos e sociais do período, somando muitas das vivências destes as suas. De maneira geral, procuravam retornar as escrituras e acreditavam no direito a pregação laica, na igualdade de espírito entre homens e mulheres, na alfabetização para a leitura da Bíblia, no desapego aos bens materiais e na procura por uma vida comunitária pacífica e autônoma. O grupo se juntou ao movimento protestante europeu já na primeira metade do século XVI, filiando-se a tradição calvinista que já era popular na Suíça e em diversas cidades do sul da França. Ainda assim, até o século XIX, os Valdenses representavam a única comunidade evangélica da península itálica, tendo consolidado suas comunidades ao longo dos vales de São Martim, Luserna e Perosa (coletivamente conhecidos por Vales Valdenses), na atual fronteira entre a Itália e a França. Durante esse período ainda foram submetidos ao chamado Gueto Alpino2, em que se submeteram a uma série de restrições3 (as chamadas Leis do Gueto e os Editos Anti-Valdenses) em troca da garantias de proteção limitada por parte da monarquia dos Saboia, que se estendeu desde 1890 até 1848, quando tiveram suas liberdades civis e religiosas asseguradas pelo Edito de Emancipação. Por esta época os Vales já se encontravam com um grande excedente populacional (uma vez que a região se sustentava por meio da agricultura subsistência e pela limitada pecuária local) e muitos jovens Valdenses vinham adotando práticas de migração sazonal para poderem sustentar suas famílias, procurando trabalho em centros urbanos próximo e especialmente na Costa Azul da França, aonde atuavam nos ramos hoteleiro, comerciário e ferroviário durante a temporada turística local nos meses de inverno. Esse movimento migratório apenas se intensificou com a emancipação de 1848 e muitos grupos passaram a procurar por emigrar em caráter definitivo. Por diversas razões (desde sua religião até sua experiência agrícola), os Valdenses também chamaram a atenção de diversas empresas de colonização, recebendo propostas para estabelecer 2. Esse conceito foi cunhado por historiadores Valdenses a partir da segunda metade do século XIX e não aparece em nenhum registro contemporâneo do período (VILLANI, 2019, p.118). 3. Não eram necessariamente proibidos de sair dos seus Vales, mas as garantias de proteção e de tolerância religiosa que lhes eram asseguradas neles, não valiam em nenhuma outra parte. Fora dos Vales não podiam entrar em relações legais com católicos (casamentos, parcerias comerciais, etc.), registrar bens ou terras em seu nome e nem praticar de forma privada sua religião, por exemplo. 334 SUMÁRIO O caso dos Valdenses: imigração e redes de relação de uma comunidade italiana protestante a partir da frenteira Sul colônias próprias em locais tão diversos quanto o Canadá, a Argélia, os Estados Unidos e a Argentina, mas nenhuma destas conseguiu convencer as autoridades dos Vales4 a se comprometer com a imigração. Essa relutância se baseava em elementos culturais do grupo, bem como nas expectativas que detinham para com suas colônias: os Valdenses esperam ter a posse imediata (ou no menor tempo possível) das terras as quais eram alocados e exigiam que lhes garantissem pelo menos uma escola e um templo, bem como o pagamento dos vencimentos dos professores e do pastor. Um fluxo migratório definitivo para fora dos Vales se desenvolveu apenas a partir do final de 1856, graças à intervenção de dois jovens Valdenses que vinham trabalhando em um hotel no centro de Montevidéu5. Sabendo da disposição de muitos Valdenses em emigrar e tendo se informado dos interesses do governo uruguaio em organizar colônias agrícolas no interior do país, bem como da ampla oferta de terras a bons preços para os colonos, eles escreveram a seus familiares ainda na Europa, incentivando-os a imigração para a região. Um deles, Juan Pedro Planchón, escreveu ao irmão dizendo “creo que más vale ser agricultor ó proprietario aqui que em los Valles” (JOURDAN, 1901, p. 194). Estas cartas, por sua vez, foram rapidamente publicizadas nos Vales e criaram um novo estímulo para a imigração. Em consequência disso, um período inicial de imigração informal se desenvolveu nos anos seguintes, com os primeiros contingentes de imigrantes Valdenses chegando ao Uruguai entre os anos de 1857 e 1858. Os Valdenses se tornaram alguns dos primeiros grupos de imigrantes de origem itálica a chegar a região platina e, a partir da década de 1860, seu processo migratório passou a ser gerido de maneira oficial, sendo dirigido de maneira bilateral pelas autoridades dos Vales e pelos governos do Prata. Assim, a imigração Valdense para a América não ficou limitada a República Oriental e contou ainda com o estabelecimento de colônias na Argentina (a partir de 1860) e mesmo no Rio Grande do Sul (a partir de 1880), isso sem mencionar os processos migratórios internos que levaram grupos Valdenses a centros como Rio de Janeiro e São Paulo. 4. Ainda que respondessem aos governos locais, as comunidades Valdenses se organizavam de maneira autônoma, cada qual sendo dirigida por um Consistório local de representantes eleitos que responde a uma Mesa (ou Távola) geral dos Vales que é eleita anualmente por um Sínodo (JOURDAN, 1901, p.12-13). 5. Tendo originalmente participado da migração sazonal para o sul da França, eles teriam trabalhado em um hotel em Marselha antes de embarcarem de maneira clandestina para a América do Sul, se assentando em Montevidéu por volta de 1852 ou 1853 (JOURDAN, 1901, p.195; DAVIT & GILLES, 2018, p.4). 335 SUMÁRIO O caso dos Valdenses: imigração e redes de relação de uma comunidade italiana protestante a partir da frenteira Sul Os movimentos migratórios de grupos europeus para a espaço da fronteira platina de maneira geral (incluindo a região da campanha sul) procuravam atender a uma distinta política de Estado que vinha se desenvolvendo na região desde os primeiros anos de independência das repúblicas platinas, entre as décadas de 1810 e 1830, e que ganhou força com o final da chamada Guerra Grande no começo da década de 1850. A baixa densidade populacional e, como consequência disso, os baixos índices de produtividade e desenvolvimento da agroindústria regional se encontravam presentes em todos os lados da fronteira, de maneira que a imigração e o desenvolvimento de colônias agrícolas e de ocupação do espaço6 se tornaram elementos comuns aos processos de estruturação e de modernização dos Estados Nacionais da região. Para além disso, haviam ainda especificidades locais que incentivavam o subsídio à imigração, desde o combate do governo provincial do Rio Grande do Sul aos latifúndios e a má distribuição de terras até o esforço do Estado argentino em repelir as comunidades indígenas da região central do país. No Uruguai, contudo, a preocupação principal dizia respeito a fronteira com o Brasil. Os acordos de fronteiras e limites que ambos os países assinaram em 1851 havia sido largamente desfavoráveis aos interesses uruguaios e, como consequência disso, o governo oriental passou a segunda metade do século XIX fazendo um esforço constante para nacionalizar a região de fronteira (SEGARRA, 1969, p.38). Um censo realizado pelo governo brasileiro antes da assinatura dos acordos, em 1850, dava conta que cerca de 33% de todas as terras do lado uruguaio da fronteira com o Brasil pertenciam a fazendeiros brasileiros (NAHUM, 2003, p.47)7. Pelos tratados de 1851 esses proprietários brasileiros que controlavam a fronteira também dispunham de privilégios em ambos os lados da linha demarcatória. Não ficava explícito nos acordos até que ponto as leis uruguaias vigoravam ou não em terras brasileiras dentro do Uruguai e os estancieiros com terras contínuas de uma lado ao outro da fronteira também podiam facilmente manobrar suas posses para evitar impostos e taxações. Mais grave ainda para o governo da República Oriental, estes acordas reafirmaram o princípio do uti possidetis 6. Diferentemente dos fluxos migratórios que se desenvolveram, no mesmo período, em direção aos estados da região sudeste do Brasil, por exemplo, que visavam a substituição da mão-de-obra escrava. 7. Os dados não são muito precisos quanto a que parcela do território uruguaio essa porcentagem diz respeito. É possível que esses dados estejam se referindo a quantidade de terra ocupada por brasileiro em toda a República Oriental, o que seria ainda mais alarmante para as autoridades nacionais, mas o mais provável é que ela se aplique apenas à parcela de terras dentro do território nacional uruguaio localizadas ao norte do rio Negro (MENEGAT, 2015, p.12). 336 SUMÁRIO O caso dos Valdenses: imigração e redes de relação de uma comunidade italiana protestante a partir da frenteira Sul à região, que concedia posse legal da terra a quem a ocupasse efetivamente (SEGARRA, 1969, p.16;33) – o que fez com que o Uruguai desenvolvesse um interesse pioneiro para com o estabelecimento de colônias na região, procurando conter o avanço brasileiro. A preferência, de modo geral, residia nos imigrantes de origem alemã e italiana, que atuariam também enquanto mecanismo de defesa contra as influencias imperialistas europeias, no sentido de que se temia que a presença de certos grupos de imigrantes, como ingleses e franceses, pudesse levar ao surgimento de uma forte influência destas nações nas políticas nacionais, visto que ambas detinham especial interesse sobre o comércio que transitava pelo Rio da Prata. Lucas Moreno, que foi membro da comissão para imigração do governo uruguaio nos primeiros anos da década de 1850, escreveu para um colega sobre o interesse nas populações vindas da península itálica dizendo que “[...] la misma falta de unidad en aquela nación, es una garantia para nosotros” (MELLO, 1948, p. 343). No Uruguai havia ainda uma aparente preferência por grupos protestantes, num esforço de coibir a forte influência católica que se opunha ao projeto de Estado Nacional liberal que o país procurava desenvolver (MAGGIS, 2017, p.4-5). Os últimos anos do período colonial haviam sido associados ao declínio da autoridade da Igreja Católica na região e muitos esperavam que o período do pós-independência pudesse permitir a volta do catolicismo a vida política local. Desta forma, os Valdenses correspondiam a muitas das preferências do governo uruguaio para com os imigrantes que se esperava receber. Outra vantagem oferecida pelos Valdenses que pode ser observada a partir de suas colônias diz respeito ao idioma. Diferentemente de outros grupos imigrantes, a identidade étnica e cultural dos Valdenses não se encontrava diretamente vinculada a questões como a língua ou o fenótipo, se apoiando mais no elemento religioso e na atuação comunitária (GEYMONAT, 1995, p.34), de maneira que não só adotavam rapidamente8 o idioma do local como também procuravam preservar suas estruturas comunitárias se relacionando e buscando inserção em diversos elementos da sociedade local. Essa particularidade, por sua vez, se apresenta como um desafio para o historiador que procura trabalhar com os Valdenses, uma vez que os nomes dos indivíduos e de suas famílias podem aparecer não apenas com distintas grafias (como normalmente ocorre em fontes documentas) como também com distintas traduções. 8. A primeira geração de Valdenses nascidos no Uruguai, por exemplo, já falava de forma majoritária o espanhol. Em 1901, pouco mais de 40 anos depois do início da imigração, eram apenas os mais velhos que ainda falavam o dialeto patois comumente utilizado nos Vales (JOURDAN, 1901, p.227-228). 337 SUMÁRIO O caso dos Valdenses: imigração e redes de relação de uma comunidade italiana protestante a partir da frenteira Sul Os Valdenses que chegaram ao Uruguai vindos dos Vales no século XIX, por exemplo, eram em sua maioria bilíngues e falavam tanto o provençal patois (ou em alguns casos o francês) quanto o italiano, de maneira que seus nomes, e mesmo sobrenomes em alguns casos, aparecem em ambas as variações idiomáticas, as quais se somariam ainda versões em espanhol e em português por meio dos processos de colonização. Entre as diversas famílias Valdenses que imigraram para o prata, destaca-se que os sobrenomes ArmandUgon e Armand-Hugon, por exemplo, não correspondem a um mesmo núcleo familiar, não sendo originários da mesma região dos Vales. No caso de sobrenomes como Morel e Morelli, uma avaliação mais atenta se faz necessária, uma vez que podem ou não corresponder à mesma família, com a exceção talvez dos Chollet e Cholante que parecem se referenciar a uma mesma linhagem9. Figura Nº1 – Lista incompleta de sobrenomes de famílias Valdenses na América recolhidos por Louis Jourdan para a escrita do Compendio de Historia de los Valdenses. Fonte: JOURDAN, Luis. Compendio de Historia de los Valdenses. Colonia Valdense: Tipografia Claudiana, 1901, p.231-232. 9. Pelo que parece sinalizado em listagens mais antigas de sobrenomes Valdenses como no Compendio de Historia de los Valdenses (ver Figura Nº1) de Luis Jourdan (1901). 338 SUMÁRIO O caso dos Valdenses: imigração e redes de relação de uma comunidade italiana protestante a partir da frenteira Sul Enfim, esse grupo singular de imigrantes italianos protestantes (ou mesmo hereges como eram conhecidos pelos católicos do século XIX), foi um dos primeiros a se assentar na região da fronteira platina e, em consequência disso, um dos primeiros a chegar ao sul do Brasil, adentrando o Rio Grande do Sul pela disputada região da campanha meridional. Famílias Valdenses se estabeleceram em Pelotas, Porto Alegre, Bento Gonçalves e Bagé entre 1860 e 1880, com estudos mais recentes publicados por autores como Vicente Dalla Chiesa (2014) e Nuncia Santoro de Constantino (2006) enfocando nos desenvolvimentos posteriores dessas comunidades sem se aprofundar em sua trajetória dentro do espaço da fronteira platina – o que já é notável diante do fato de que até poucos anos a presença Valdense dentro da imigração italiana para o Brasil era comumente refutada10. Para as comunidades Valdenses na América do Sul de forma geral, esse espaço de fronteira não apenas permitiu esse tipo de circularidade como também se mostrou central ao desenvolvimento de redes de relação e de troca amplas, diversas e de grande alcance, que foram essenciais para garantir a estabilidade e a prosperidade das famílias e núcleos imigrantes tanto na região quanto em outras localidades que serviram de destino à grupos menores e a imigrantes independentes em processos migratórios informais. Trabalhos que relacionam redes de relação e correntes migratórias se tornaram mais numerosos em anos recentes, especialmente a partir da popularização dos jogos de escala de análise que nos permitem relacionar associações de grupo ou individuais próximas com redes de contato abrangentes estruturadas a partir de uma multitude de ralações. Dito isso, procuramos então relacionar algumas das redes de relação construídas por imigrantes Valdenses com e a partir do espaço platino, especialmente com e a partir da região de fronteira entre Brasil e Uruguai. Estas redes, de maneira geral, puderam ser identificadas a partir de produções acadêmicas dispersas sobre o processo de imigração italiana para o Brasil, contando com a região fronteiriça platina como o principal elo entre as relações aparentemente dispersas e acidentais desenvolvidas por esses imigrantes. Será apresentado aqui com especial destaque o caso dos irmãos Jannuzzi, residentes no Rio de Janeiro nas últimas 10. Pode-se citar como exemplo a publicação “Italianos no protestantismo brasileiro: a face esquecida da imigração”, de 2004, aonde o autor comenta que “No tocante aos italianos, registre-se que o Brasil, a rigor, não recebeu imigrantes Valdenses [...]. Sabe-se da vinda de uma ou duas famílias que se radicaram em São Paulo e frequentavam a I Igreja Presbiteriana Independente do Brasil” (PEREIRA, 2004, p. 89). 339 SUMÁRIO O caso dos Valdenses: imigração e redes de relação de uma comunidade italiana protestante a partir da frenteira Sul décadas do século XIX, cujas parcerias comerciais foram fortemente influenciadas por laços religiosos e políticos que se desenvolveram a partir da fronteira. Redes de relação e contatos fronteiriços Para muitos dos italianos Valdenses que chegavam a América, o ambiente não era dos mais acolhedores. Apesar dos esforços em prol da laicização do Estado, as sociedades locais ainda eram uma de forte ascendência católica e os colonos que chegavam a região logo se destinavam a assentamentos isolados que os deixavam ainda mais distantes do modelo de vida comunitária ao qual eles haviam se associado ao longo de sua trajetória. Para solucionar estas problemáticas os Valdenses recorreram a uma estratégia que já lhes era bem conhecida: a das redes de relação. Em consequência dos anos de repressão na Europa, os Valdenses tinham uma boa noção de como habitar às margens da sociedade. Eles buscavam em suas redes de relação externas apoio necessário para garantir presença contínua em distintos espaços políticos, sociais e mesmo geográficos, enquanto que mantinham suas próprias comunidades coesas em constante contato umas com as outras. Os imigrantes procuravam manter seu sistema organizacional próprio por meio de instituições políticas, associacionistas, filantrópicas e de beneficência. Também se aproximaram das denominações Metodista e Presbiteriana, uma vez que estas dispunham de uma presença mais bem estabelecida na região platina de maneira geral e, no Brasil, dos interesses políticos do Partido Liberal, que lutava pela garantia da liberdade de culto e do direito de voto aos acatólicos. A região da fronteira como um todo, com certo destaque aos espaços de circulação estabelecidos entre as cidades de Bagé e Melo no caso da fronteira com o Brasil, foi um elemento central ao desenvolvimento de muitas das redes de relação construídas por esses imigrantes uma vez que sua presença ficou assegurada de ambos os lados da fronteira. Já do primeiro contingente de Valdenses que chegou ao Uruguai em 1857, um número ainda indefinido de famílias partiu em direção aos departamentos de Salto e Tacuarembó, mais próximos a fronteira com o Brasil e a Argentina em 1858 (JOURDAN, 1901, p.199), com grupos menores chegando até e cruzando a fronteira ainda na década de 1860, de maneira que as relações mantidas e construídas pelos Valdenses enquanto 340 SUMÁRIO O caso dos Valdenses: imigração e redes de relação de uma comunidade italiana protestante a partir da frenteira Sul indivíduos e enquanto grupo tiveram seu alcance constantemente estendido na medida em que estes imigrantes avançavam e se inseriam em novos espaços. O historiador italiano Vittorio Cappelli (2014) é um que apresenta um estudo de caso curioso, dedicado a trajetória de dois imigrantes italianos radicados no Rio de Janeiro que possuem um forte vínculo com essas rede que se estabeleceu na região Platina. Em específico o autor procura trabalhar com a trajetória dos irmãos Jannuzzi, dois Valdenses que a partir dos anos finais do Império comandaram a maior empresa de construção da capital brasileira (CAPPELLI, 2014, p.117). Antonio e Giuseppe Jannuzzi11 imigraram em direção ao Uruguai em 187212, se assentando em Montevidéu até 1874 (CAPPELLI, 2014, p.118), tendo escolhido o Uruguai em consequência da marcada presença Valdense local e do já bem estabelecido fluxo migratório para a região. Em 1874, em razão da falta de perspectivas promissoras no ramo da construção na capital uruguaia, os irmãos se dirigiram ao Rio de Janeiro (AUGUSTO, 1893, p. 265), aonde Antônio passou a trabalhar para a Companhia Ferro-Carril Carioca. Já em 1875 Antônio deixou a empresa ferro-carril e organizou, junto do irmão, a firma de arquitetura e engenharia Antonio Jannuzzi, Fratello & Cia., por meio da qual os irmãos atuaram em diversos projetos de construção na cidade do Rio de Janeiro e região ao longo de mais de cinquenta anos (FIGUEIRA, 2015, p.01). Sendo que é a partir de alguns desses trabalhos que passamos a investigar a rede de relação em que eles se inseriam, uma rede que, ainda que centrada em indivíduo residentes na corte brasileira no Rio de Janeiro, foi articulada graças a sua ampla circulação pelos espaços fronteiriços, contando com braços capazes de se estender desde Montevidéu, no Uruguai, e das cidades de Bagé e Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, até os Estados Unidos e a Europa. Na segunda metade da década de 1880, figuravam entre o corpo de diretores da empresa dos Jannuzzi outros dois irmãos: os Gianelli, donos da Gianelli & Comp., que foram responsáveis por fundar o Moinho Fluminense, a primeira fábrica de moagem de trigo do Brasil. Tal como os Jannuzzi, Carlos e Leopoldo Gianelli, que também eram de 11. Daqui em diante passaremos a usar a grafia portuguesa de “Antônio” e “José” para nos referirmos aos primeiros nomes dos irmãos, uma vez que a maior parte da bibliografia, bem como dos documentos e reportagens do período que mencionaremos aqui, faz o mesmo. 12. Um retrato biográfico de Antõnio Jannuzzi publicado pela revista O Album, em agosto de 1893, dá a data de chegada dos irmãos em montevidéu como 1870, mas a maior parte das demais referências coloca mesmo em 1872, daí nossa preferência pela manutenção desta última data no corpo do texto. 341 SUMÁRIO O caso dos Valdenses: imigração e redes de relação de uma comunidade italiana protestante a partir da frenteira Sul ascendência Valdense, vinham do Uruguai, tendo ambos nascido em Montevidéu, mas seu pai, Giacomo Gianelli, havia emigrado da Itália em 1849. Este Giacomo Gianelli, ou Santiago Gianelli como passou a ser conhecido no Uruguai, também foi fundador e proprietário de uma indústria de moagem que realizou negócios no interior do país e na região da fronteira com o Brasil e na campanha sul ente 1850 e 1860 (CURI, 1996, p.55). Mais do que isso, Santiago também foi um dos patronos do associativismo italiano pelo Uruguai, bem como um dos principais defensores do movimento sindical no país tanto no campo quanto nas fábricas (CURI, 2014, p.03). Outra parceria de destaque dos Jannuzzi foi com os empresários gaúchos Eduardo Palassin Guinle, descendente de imigrantes franceses fixados em Porto Alegre, e Cândido Gaffrée, também descende de imigrantes franceses e natural da cidade de Bagé, aonde a família reside até hoje. A partir das décadas finais do século XIX e do começo do século XX, a Antonio Jannuzai, Fratello & Cia foi a empresa responsável pela construção de, pelo menos, quatro edifícios na Avenida Central do Rio de Janeiro para os empreendimentos do grupo Gaffrée, Guinle & Cia., que ademais dirigia a Companhia Docas de Santos, responsável pela construção e pelo gerenciamento do porto de Santos entre 1886 e 1980 (CAPPELLI, 2014, p.120). No tocante ao elemento religioso, a família de Eduardo Guinle, cujos pais haviam emigrado da França para Montevidéu na década de 1840, vinha da isolada comuna de Bazet, nos Altos Pirineus, região conhecida pela forte influência religiosa cátara e huguenote (DO CARMO, 2008, p.36), enquanto que os Gaffrée parecem ser um dos únicos elementos católicos dessa rede. Na verdade, muitas das relações construídas pelos Jannuzzi dentro de seu espaço de trabalho eram permeadas por sua religiosidade. Uma vez estabelecidos na então capital brasileira, os irmãos se vincularam a Igreja Presbiteriana do Brasil, atuando ativamente enquanto benfeitores da instituição (FIGUEIRA, 2015, p.01-02). Também patrocinaram as igrejas Metodista, Anglicana e Congrecgacionista, com sua empresa sendo responsável pela construção de um total de 8 templos na cidade do Rio de Janeiro e região. O mesmo padrão de relacionamento pode ser observado nas comunidades Valdenses do prata, com um dos primeiros protetores da comunidade e patrocinadores do seu processo migratório sendo o Reverendo Frederick Snow Pendleton, da Ingreja Anglicana, e com a vinculação das Igrejas Valdense e Metodista a partir das décadas de 1870 e 1880, de maneira que um evento não é necessariamente um 342 SUMÁRIO O caso dos Valdenses: imigração e redes de relação de uma comunidade italiana protestante a partir da frenteira Sul reflexo ou uma consequência do outro, mas sim que ambos fazem parte de um processo mais amplo de inserção Valdense no espaço. Fator curioso também em relativo a vinculação protestante foi a filiação maçônica do grupo (CAPELLI, 2014, p.120), com o nome de Antônio Jannuzzi figurando entre os 33 fundadores originais da Loggia Capitolare Massonica Fratellanza Italiana em 1892, loja maçônica fundada por iniciativa de imigrantes italianos com apoio da Società Italiana di Beneficenza e Mutuo Soccorso (da qual o próprio Antônio era o presidente) do Rio de Janeiro. É mais do que certo que a inserção dos irmãos nestes espaços garantiu a expansão de seus contatos e influência e é provável que essa inserção tenha se tornado possível a partir de relações estabelecidas dentro da Igreja Presbiteriana, tal como ocorreu no Rio Grande do Sul com imigrantes Valdenses filiados a igreja Metodista e loja maçônica do Grande Oriente do Rio Grande do Sul. Aqui, a comunidade Valdense mais proeminente foi provavelmente a estabelecida a partir das Colônia Dona Isabel e Alfredo Chaves, nos atuais municípios de Bento Gonçalves e Veranópolis a partir das quais observamos outra vez este vínculo entre protestantismo e maçonaria. Vicente Dalla-Chiesa (2018, p.182), por exemplo, comenta o caso do imigrante Angelo Dal’Acqua, Valdense maçom reside de Bento Gonçalves, que em 1903 se realocou para Bagé a convite de um companheiro maçom que já residia na cidade, o também Valdense Silvestre Benvengú. Mas de volta as relações estabelecidas pelas parcerias comercias dos Jannuzzi, passamos então a dar um rápido olhar ao sócio de Pallasin Guinle, o bajeense Cândido Gaffrée. Embora sua família também tivesse origem francesa, os Gaffrée – ao que parece – não possuíam vinculação religiosa protestante, tanto que o próprio Cândido destinou em seu testamento o montante de cem mil contos de réis as igrejas matrizes das cidades do Rio de Janeiro, Santos, Porto Alegre e Bagé. Na verdade, sabe-se pouco da trajetória da família Gaffrée externo a sua influência em nível local, dado que trabalhos dedicados a trajetória desses dois imigrantes parecem colocar os Guinle enquanto objeto central de pesquisa na maior parte da vezes. O que sabemos com certeza é que o pai de Cândido, Antônio Gaffrée, era natural de Dunquerque no norte da França13, imigrou para a América do Sul em algum momento na primeira metade do século XIX , tendo se estabelecido na cidade de Bagé até o ano de 13. Conforme informado pelo registro de Batismo do próprio Cândido Gaffrée e de seus irmãos. 343 SUMÁRIO O caso dos Valdenses: imigração e redes de relação de uma comunidade italiana protestante a partir da frenteira Sul 184814 na companhia da esposa, Juliana de Azambuja Gaffrée (de provável ascendência portuguesa). De fato, Cândido parece ter sido o único dos filhos do casal que se dirigiu para fora da região, tendo chegado ao Rio de Janeiro em 1870, com cerca de 17 anos (BULCÃO, 2015, s/p), aonde abriu a loja de tecidos Aux Tuileries, a qual Eduardo Guinle entrou em sociedade logo em 1871 (DO CARMO, 2008, p.36), dando as bases para o desenvolvimento do chamado Polvo-do-Rio. O sobrinho e afilhado de Cândido, Cândido Lucas Gaffrée, que deixou Bagé para estudar no Rio de Janeiro no começo do século XX, também entrou em negócios com a Antonio Jannuzzi, Fratello & Cia. Uma última relação de trabalho que vale explorar aqui devido a seus vínculos com a fronteira é a que os Jannuzzi mantiveram como o político e jornalista carioca José Carlos Rodrigues, dono e diretor do Jornal do Comércio – para o qual os irmãos edificaram uma nova sede em 1908, junto a Avenida Central do Rio de Janeiro (CAPPELLI, 2014, p.120) – que, para além da parceira comercial, também amigo pessoal íntimo dos irmãos. Essa amizade, por sua vez, parece ter sido possibilitada pela circularidade comum que ambos tinham em espaços de cunho religioso e político. Rodrigues era amigo de longa data do reverendo americano George Whithill Chamberlain, pastor presbiteriano que foi um dos encarregados da organização da primeira congregação da Igreja Presbiteriana no Brasil e, posteriormente, um dos líderes do processo de difusão do presbiterianismo pelo estado de São Paulo15 (ASCIUTTI, 2010, p.40). Mais do que isso, Chamberlain foi o responsável pela “conversão”16 de José Carlos Rodrigues ao Protestantismo, ainda na década de 1870. Mas é dentro do campo político que Rodrigues ganha especial destaque, sendo conhecido por suas opiniões e filiações de cunho liberal e tendo trabalhado como Oficial de Gabinete para o ministro João da Silva Carrão, enquanto Ministro da Fazenda (1866), durante o Gabinete Olinda (1865-1866) e tendo sido um amigo pessoal de Gaspar Silveira Martins (ROSSATO, 2016, p.147-148), também conhecido dos Jannuzzi. 14. Data de nascimento do primeiro filho do casal, Joaquim Gaffrée, irmão mais velho de Cândido, nascido em 26 de abril daquele ano. 15. Em 1870, Chamberlain ainda se tornou fundador da “Escola Americana de São Paulo”, atualmente a Universidade Presbiteriana Mackenzie (DE PAULA, 1953, p.429). 16. Rodrigues nunca se converteu a uma corrente religiosa em específico, mas ao longo de sua vida atuou ativamente nas igrejas Presbiteriana, Anglicana e Metodista, sendo comumente referenciado na bibliografia como “de fé protestante”. 344 SUMÁRIO O caso dos Valdenses: imigração e redes de relação de uma comunidade italiana protestante a partir da frenteira Sul As redes de relações de Silveira Martins, cidadão fronteiriço nascido em Melo (no Uruguai) de pais brasileiros naturais de Bagé, e sua atuação social e política em defesa da imigração e dos imigrantes, reforma eleitoral e da inclusão dos acatólicos na vida política nacional são bem conhecidas, tendo sido largamente trabalhadas por pesquisadoras como Mônica Rossato (2013; 2016) em trabalhos recentes. A vinculação política dos Jannuzzi a um posicionamento de ordem liberal também se faz central ao processo de construção de suas redes de relação. Autores confessionais de origem Valdense como Giorgio Tourn (1983) vinculam ainda mais o quadro religioso ao seu posicionamento político de maneira geral, defendendo que o grupo já se encontrava, desde o século XVIII, inserido “dentro de el modelo mercantil-burgués-protestante, enfrentando al absolutismo catolico” (1983, p.248-249), de maneira que as relações estabelecidas por eles procuravam reproduzir esta linha de pensamento político, econômico e social. É curioso pensa nos indivíduos que compunham alguns dos braços que a rede de relação estabelecida pelos Jannuzzi era capaz de estender. Ao longo de seus contatos eles formavam um grupo consideravelmente diverso de pessoas que dispunham de uma vasta capacidade de circulação que, por coincidência, irradiava a partir de um espaço singular como o da região da fronteira platina. A maioria dos sujeitos pertencentes a essa rede de protestantes cariocas (que não obstante incluía católicos, paulistas, gaúchos e imigrantes europeus e americanos) transitaram e/ou tinha acesso a contatos diretos que transitavam pela fronteira Brasil/Uruguai entre as décadas de 1850 e 1890 e a própria rede era baseada em fatores de ordem política, religiosa, fraternal e comunitária características. Durante este período de maneira geral podemos dizer que esta região de fronteira parece ter sido central ao itinerário daqueles de trajetória imigrante. A partir dos seus contatos com Silveira Martins, por exemplo, tanto Rodrigues quanto os irmãos Jannuzzi poderiam chegar ao interior do Uruguai e a cidade de Bagé, onde poderiam encontrar com os Gianelli e com os Gaffrée, se ligando ainda aos Guinle a partir destes. Também a partir de Silveira Martins, e de sua defesa da inclusão política e eleitoral dos grupos acatólicos, os elementos de elite protestante dessa rede, como Rodrigues e os próprios Jannuzzi e Guinle, poderiam encontrar voz para garantir sua inserção nos processos políticos locais e nacionais que em grande parte garantiram sua ascensão comercial e social. 345 SUMÁRIO O caso dos Valdenses: imigração e redes de relação de uma comunidade italiana protestante a partir da frenteira Sul A partir da maçonaria, tanto de suas lojas vinculadas ao Grande Oriente da Itália quanto daquelas vinculadas ao Grande Oriente do Rio Grande do Sul, e das associações de mútuo socorro capitaneadas e promovidas pela imigração italiana de modo geral e em espacial pelos imigrantes Valdenses, bem como das instituições de filantropia e doação, por sua vez, era possível também assegurar uma maior inserção em diversos setores da sociedade que pudessem auxiliar na sua própria adaptação, desde as demais comunidades imigrantes e protestantes, a grupos políticos e intelectuais de cunho liberal. Mais do que isso, como a própria rede era centrada em um espaço externo a região de fronteira em que se concentrava a maior parte da influência Valdense na América, era mesmo necessário que ela se desenvolvesse de maneira tão ampla quanto possível para que os contatos pudessem adquirir maior utilidade a estes imigrantes. Dito isso, vale aqui comentar que essa percepção das relações imigrantes só foi possível a partir da inclusão dos Valdenses na historiografia da imigração e na história da fronteira sul e do Rio Grande do Sul. Inserindo esse grupo longamente negligenciado na pesquisa histórica é possível, então, observar uma região ainda mais ativa e interconectada, na qual a cidade de Bagé, enquanto centro urbano, comercial e político tem considerável destaque. Para além disso, o pioneirismo imigrante e associativista na região parecem indicar que os Valdenses e a influência de suas redes e instituições já se encontravam mais inseridos na sociedade local do que originalmente proposto. Referências ALVES, Leonardo Marcondes. Valdenses no Brasil. Ensaios e Notas, 2017. Disponível em <https://wp.me/pHDzN-SN> Acesso em 21 setembro de 2020. AUGUSTO, Paulo. Antonio Jannuzzi. O Álbum. Rio de Janeiro: vol.2, n.34, ago./1893, p.265. Disponível em <http://memoria.bn.br/pdf/706841/per706841_1893_00034. pdf>. Acesso em: janeiro, 2021. BULCÃO, Clóvis. Os Guinle. Rio de Janeiro: Editora Intrinseca, 2015. CAPELLI, Vittorio. Imigração Italiana e Empreendedorismo no Brasil: dois estudos de caso. In. FAY, Claudia, & RUGGERIO, Antonio de. Imigrantes empreendedores na história do Brasil: estudos de caso. Porto Alegre: EDIPUCRS, pp.115-127. CONSTANTINO, Núncia Santoro de. Italianidade(s): imigrantes no Brasil meridional. In. CARBONI, Florence (org.), & MAESTRI, Mario (org.). Raízes Italianas do Rio Grande do Sul. Passo Fundo: UPF, 2000, pp.67-82. 346 SUMÁRIO O caso dos Valdenses: imigração e redes de relação de uma comunidade italiana protestante a partir da frenteira Sul CONSTANTINO, Núncia Santoro de. O que aconteceu com os Valdenses?: italianos e italianos no Brasil meridional. In. RIBEIRO, Cleodes Maria Piazza Julio (org.), & POZENATO, José Clemente (org.). Cultura, Imigração e Memória. Caxias do Sul: Editora da Universidade de Caxias do Sul, 2006, pp. 177-188. CURI, Alcides Beretta. Inmigración europea e industria: Uruguay en la región (1870-1915). Montevidéu: Ediciones Universitarias, 2014, p.156. DALLA CHIESA, Vicente. A Igreja Metodista na antiga região colonial italiana donordeste do Rio Grande do Sul. In. RAMOS, Eloisa Helena Capovilla da Luz et al. (org.). Anais do Seminário Internacional Festas, comemorações e rememorações na imigração e XXI Simpósio de História da Imigração e Colonização. São Leopoldo: Oikos, 2014, pp.1702-1718. DALLA CHIESA, Vicente. A Igreja Metodista e a maçonaria em Bento Gonçalves/ RS. In: DE RUGGERIO, Antônio (org.). A Voz do Imigrante: Memórias e oralidade nos estudos históricos das migrações. Porto Alegre: Editoras Fi, 2018, p.171-190. DAVIT, Malena; GILLES, Oscar. Daniel Bertinat, Redescubriendo su Historia. Precursor de la colonización Valdnese em el Río de la Plata. Cuestión de Memoria. Colônia Valdense, nº2 dec/2018, pp.4-6 DRIVER, Juan. Pedro Valdo y los Valdenses, in.: ______. La fe en la periferia de la historia. Cidade da Guatemala: Ediciones Semilla, 1997, p.93-107. DO CARMO, Gustavo Reinaldo Alves. O Palácio das Laranjeiras e a Belle Époque no Rio de Janeiro (1909-1914). Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) – Escola de Belas Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2008. FIGUEIRA, Luis Francisco. Antônio Jannuzi: Edificador de Templos. História, Arte e Cultura, n.08, maio/2015. GEYMONAT, Roger. El templo y la escuela: los Valdenses en el Uruguay. OBSUR, 1994. GEYMONAT, Roger. Aproximaciones a la identidad cultural valdense. Sociedad y Religión, v. 13, 1995, p. 33-36. GEYMONAT, Roger. Colonización valdense-uruguaya en Argentina: Colonia Iris. Estudios Migratorios Latinoamericanos, v. 30, 1995, p. 357-369. HUGARTE, Renzo Pi e VIDART, Daniel. Nuetra Tierra XXIX: El Legado de los inmigrantes I. Montevidéu: Nuetra Tierra, 1969. JOURDAN, Luis. Compendio de Historia de los Valdenses. Colonia Valdense: Tipografia Claudiana, 1901. MAGGIS, Gustavo A. La Paz y su templo: antecedentes. Cuestión de Fe. Colônia Valdense, nº4 set/2018, p.5-6. MARTINEZ, Rossana Vitelli. Capital social, participação e cidadania no meio rural: uma perspectiva de gênero. 2010. Tese (Doutorado em Sociologia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2010, p.290. 347 SUMÁRIO O caso dos Valdenses: imigração e redes de relação de uma comunidade italiana protestante a partir da frenteira Sul MELO, Mateo J. Magariños. El gobierno del Cerrito: poder ejecutivo. Montevidéu: El Siglo lustrado, 1948. NAHUM, Benjamin. Breve História Del Uruguay Independiente. Montevidéu: Banda Oriental, 2003. PADOIN, Maria M.; FENALTI, Naiani Machado da Silva, & ROSSATO, Mônica. A imigração italiana para o Rio Grande do Sul e a atuação política de Gaspar Silveira Martins. Latinidade. Rio de Janeiro, vol. 3, 2011, pp.135-154. PEREIRA, João Batista Borges. Italianos no protestantismo brasileiro: a face esquecida de imigração. Revista USP, n.63, setembro/novembro de 2004, p. 6-93. RINALDI ASCIUTTI, Mônica Maria. Um lugar para o periódico O Novo Mundo (Nova Iorque, 1870-1879). 2010. Dissertação (Mestrado em Letras) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2010, p.123. ROSSATO, Monica, & PADOIN, Maria Medianeira. A trajetória de Gaspar Silveira Martins: relações de poder entre a região fronteiriça platina e a Europa. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: n.151, dez/2016, pp.139-159. ROSSATO, Monica, & PADOIN, Maria Medianeira. Gaspar Silveira Martins. Porto Alegre: Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, 2013, p.256. SCIRGALEA, Sebastián Rivero. Visiones agrarias Valdenses en Colonia durante la segunda presidencia de J. Batlle y Ordóñez (1911-1915): El caso de “La Unión Valdense”. Estudios Historicos. Rivera/Uruguai: n.20, dec/2018, p.21. SEGARRA, Enrique Mena. Nuetra Tierra XLII: Frontera y Limites. Montevidéu/ Uruguai: Nuestra Tierra, 1969, p.64. SCHMUKER, Eric Morales. Los Valdenses de Colonia Iris: génesis de un “pueblo-iglesia” en el Territorio Nacional de la Pampa Central, 1901-1926. In. Anais da XII Jornadas Interescuelas-Departamentos de Historia. Bariloche, vol. 28, 2009, p.21. TOURN, Giorgio. Los Valdenses: El singular acontecer de un pueblo-iglesia (11701980), 3 vol. Montevideo: Editora da Igreja Valdense, 1983. VANGELISTA, Chiara. L´emigrazione valdense. Parte I, Persecuzioni ed emigrazione. In Corti, Py Sanfilippo, M. (a cura de). Migrazionei, Storia d’ Italia. Annali 24, Torino, Einaudi, 2009, pp.161-172. VILLANI, Stefano. To be a foreigner in early modern Italy. Were there ghettos for non-Catholic Christians?. In: Global Reformations: Transforming Early Modern Religions, Societies, and Cultures. Nova Iorque: Routledge, 2019, p.115-133. 348 SUMÁRIO 349 SUMÁRIO OS ALEMÃES-RUSSOS DE ACEGUÁ: AS MIGRAÇÕES DOS MENONITAS Carlos Eduardo Piassini1 350 SUMÁRIO Os alemães-russos de Aceguá: as migrações dos menonitas 1 Introdução As primeiras levas de imigrantes alemães chegaram no Rio Grande do Sul em 1824, instalando-se na área da Real Feitoria do Linho Cânhamo, atual São Leopoldo. Ao longo dos séculos XIX e XX, outras regiões gaúchas conheceram aquele processo colonizatório baseado na pequena propriedade. Os objetivos eram diversos: contar com soldados para a defesa da independência brasileira; produzir alimentos; adensar a população; ocupar o território para que os espanhóis, e depois as Repúblicas vizinhas recentemente independentes, não o fizessem; expulsar os grupos indígenas presentes naquelas regiões; branquear a população; valorizar as terras pouco interessantes aos grandes proprietários da fronteira meridional; e garantir a construção e manutenção de estradas, conectando diferentes regiões do Rio Grande do Sul (KLUG, 2009; PIASSINI, 2014). A colonização alemã começou a partir de uma política intencional do governo imperial brasileiro. Inicialmente, a principal preocupação de D. Pedro I era fortalecer o poder militar do Império, pois a independência ainda não estava garantida, uma vez que Portugal não havia a aceitado e nem reconhecido. Assim, foram recrutados mercenários alemães sob o disfarce de colonos para burlar a imposição do Congresso de Viena (1814-1815) de proibir a formação de tropas militares de mercenários, afinal, acreditava-se que essa medida poderia impedir que outro Napoleão Bonaparte pudesse 1. Professor Mestre pela Universidade Federal de Santa Maria. 351 SUMÁRIO Os alemães-russos de Aceguá: as migrações dos menonitas surgir e ameaçar as monarquias europeias. Ao mesmo tempo, as pressões inglesas para o fim do tráfico de escravos impeliram o governo imperial a tomar medidas para, paulatinamente, substituir a mão-de-obra negra e cativa pela livre e branca. Assim, em São Pedro do Rio Grande do Sul, houve a colonização alemã baseada na pequena propriedade agrícola, uma proposta de organização econômica distinta daquela predominante na referida província, ou seja, do modelo das grandes propriedades oriundas, sobretudo, da distribuição de sesmarias (CUNHA, 2017). Segundo Lando e Barros (1992, p. 19), Os imigrantes que se dirigiam para o Rio Grande do Sul eram atraídos por uma política governamental que pretendia, fixando-os à terra, formar colônias que produzissem gêneros necessários ao consumo interno. Localizavam-se próximos de um centro urbano, mas suficientemente distantes das áreas da grande propriedade, de modo a não apresentar uma ameaça à sua hegemonia política e econômica. Recebiam terras do governo imperial, as quais exploravam de modo independente, dedicando-se primeiramente à agricultura [...]. A colonização alemã no Rio Grande do Sul, portanto, começou no Vale do Rio dos Sinos, estendendo-se durante o século XIX para as regiões do Litoral, Vale do Taquari, Vale do Rio Pardo, Paranhana Encosta da Serra, Vale do Caí, Central, Metropolitana Delta do Jacuí, Hortênsias, Jacuí Centro e Sul. Houve a tentativa de instalação de uma Colônia alemã nas Missões, mas não logrou êxito. Durante muito tempo, houve o entendimento de que a escolha daqueles locais se deu porque os imigrantes alemães teriam procurado áreas semelhantes à sua terra de origem, ou seja, zonas de mata e serraria. Porém, o que ocorreu, é que “A Fronteira, os Campos de Cima da Serra, o Distrito das Missões e o Litoral – em resumo, todas as terras próprias para pecuária e, posteriormente, para o arroz – estavam ocupadas” (DACANAL, 1980, p. 274), restando apenas as regiões de mato, em que as melhores terras eram aquelas próximas aos rios navegáveis. Essas regiões, que foram rapidamente colonizados ao longo do séc. XIX, contavam com terras de origem vulcânica, potencialmente aptas para a agricultura, e áreas de planície que recompunham sua fertilidade periodicamente, a partir das inundações dos rios, como o Caí, o Sinos e o Rio Pardo. As terras florestais do Rio Grande do Sul, diferentemente daquelas do Sudeste, eram menos valorizadas, pois a principal atividade econômica da província meridional era a pecuária, desenvolvida em áreas de campo. Assim, a colonização 352 SUMÁRIO Os alemães-russos de Aceguá: as migrações dos menonitas alemã foi dirigida para as áreas de mata para não criar concorrência ao latifúndio exportador, como era o caso da Campanha. Outros fatores, porém, devem ser considerados. Diferentemente da abundância das terras florestais, o solo arenoso da Campanha era escasso em recursos, com baixa fertilidade e acentuada acidez, o que dificultaria a implantação de colônias agrícolas. Também o acesso a água era difícil. Os fazendeiros deslocavam seus rebanhos para os locais próximos dos cursos d’água, mas esse movimento não seria possível às atividades agrícolas dos colonos alemães. Outro recurso escasso era a madeira, fundamental para o assentamento das Colônias, pois era matéria-prima para a construção de casas, galpões, cercados e utensílios, ao mesmo tempo em que servia como combustível doméstico (CHRISTILLINO, 2010). Desde o início do séc. XIX, as áreas de fronteira do Rio Grande do Sul com a Argentina e o Uruguai estavam ocupadas com estâncias, portanto, a instalação de Colônias naquela região exigiria gastos e desgaste político da Coroa junto aos fazendeiros locais com a compra e desapropriação de terras, algo desnecessário, uma vez que existiam terras devolutas nas áreas florestais da província. Assim, explica Christillino (2010), as Câmaras de Vereadores de municípios da fronteira rejeitaram a criação de Colônias na região, o que levou o Governo Imperial a escolher as regiões de mata, onde, diferentemente da Campanha, parte da elite local recebeu com entusiasmo o empreendimento colonizador. Outro fator que repeliu a colonização alemã na Campanha esteve relacionado ao seu aspecto fronteiriço: Geopoliticamente era importante o povoamento das províncias de fronteira. Contudo, a Coroa e o Governo Provincial do Rio Grande do Sul evitaram, entre as décadas de 1850 e 1880, a instalação de colônias próximas às divisas com os países platinos. Não era seguro ocupar os limites políticos do Império com elementos estrangeiros estranhos ao poder local e nacional. Além do mais, as divisas meridionais do Brasil não estavam solidamente afirmadas, e os colonos poderiam se voltar contra o Império numa eventual revolta e, incentivados pelos governos dos países vizinhos, poderiam criar problemas quanto ao território ocupado (CHRISTILLINO, 2010, p. 161). Todos esses fatores, portanto, afastaram a colonização alemã da região da Campanha. Ainda assim, grupos de origem alemã, como os descendentes das primeiras levas de imigrantes e novos grupos que vieram para o Brasil no séc. XX, acabaram espalhando núcleos 353 SUMÁRIO Os alemães-russos de Aceguá: as migrações dos menonitas colonizatórios em grande parte do Rio Grande do Sul, para além das regiões iniciais, vindo até mesmo a marcar presença na Fronteira Oeste e na Campanha. Em Aceguá, município pertencente a Bagé até 1996, houve a presença de alemães-russos, instalados na Colônia Nova, fundada em 1949. A história desse núcleo está relacionada com diferentes momentos históricos de elevada importância, como a Reforma Luterana do séc. XVI e a Revolução Russa do séc. XX. A Reforma Luterana e os Menonitas A partir do séc. XIV, quando a Europa foi assolada pela Grande Peste, que dizimou cerca de 30% a 60% de sua população, ou seja, entre 75 e 200 milhões de pessoas, o poder da Igreja Católica passou a ser questionado. Os conhecimentos científicos ainda não eram suficientemente avançados e disseminados para que as pessoas pudessem compreender a origem e as causas daquela peste tão mortal. As respostas vieram carregadas com os elementos da mentalidade daquela época: seria um castigo divino, um forte sinal do fim dos tempos. A cristandade pecadora havia decepcionado o criador, que enviara a peste para separar os bons dos maus. A dimensão catastrófica daquele cenário trouxe consequências para a Igreja Católica: o penoso castigo, muitos tiveram a coragem de pensar, não seria necessariamente voltado aos cristãos pecadores, mas sim para o clero desviante, que havia se afastado dos preceitos originais do catolicismo; ao mesmo tempo, as soluções religiosas, como preces, flagelos e peregrinações, não faziam a peste passar, de modo que a Igreja deixou de conseguir oferecer a muitos fiéis respostas para suas angustias existenciais; ainda, com o fim da peste, percebeu-se que o mundo não havia acabado e que não acabaria, colocando em dúvida a ideia do juízo final e da remissão dos pecados. Apesar de tudo, a Igreja Católica sobreviveu àquele contexto dificílimo e continuou imensamente poderosa. Por outro lado, ganhou forma o gérmen das reformas religiosas do séc. XVI (FOSIER, 1988; FRANCO JÚNIOR, 2001). Em várias partes da Europa, ainda no começo do séc. XVI, eram comuns procissões de flagelantes penitentes que, entre açoites e gemidos, suplicavam o perdão de seus pecados. Aquele era um sinal da desesperança que tomava muitos europeus. O processe de crise da cristandade fez ganhar corpo um movimento constituído de religiosos devotados à pureza da espiritualidade cristã, que passaram a defender uma religiosidade mais sincera e intimista, para além dos sacramentos e distante dos luxos de Roma. O maior exemplo disso 354 SUMÁRIO Os alemães-russos de Aceguá: as migrações dos menonitas esteve em Martinho Lutero, um monge alemão que mudou os rumos da religião no mundo Ocidental (FEBVRE, 2012). As maiores críticas a Igreja eram em relação ao nicolaísmo, que era a prática de muitos clérigos de viver com mulheres e/ou ter relações sexuais, burlando o celibato e ao simonismo, que era a prática de realizar negociatas ou tráfico envolvendo assuntos e objetos sagrados, como a compra de cargos eclesiásticos e a venda de indulgências. A Igreja Católica parecia indiferente as críticas e os papas pouco ou nada faziam pela fé católica, bastando fazer valer os sacramentos, a autoridade dos bispos nas dioceses e dos padres nas paróquias. Esperava-se que os fiéis batizassem seus filhos, casassem com a benção do pároco, fizessem a confissão dos pecados e pagassem o dízimo e as missas pelas almas no purgatório. Portanto, pouco importava a relação íntima dos fiéis com a religiosidade, desde que cumprissem os ritos católicos. No séc. XVI, a Igreja passou a vender indulgências como nunca havia feito antes, assegurando que quem pagasse por elas teria seus pecados mortais abolidos e garantiria um lugar no paraíso (FEBVRE, 2012). Em 1517, o papa Leão X autorizou a venda de indulgências para a construção da nova basílica de São Pedro, no Vaticano, cujo valor estava afundando a igreja em dívidas. Como reação, o monge Martinho Lutero enviou 95 teses críticas as práticas da igreja anexadas a cartas endereçadas a Alberto de Mainz, Arcebispo de Mainz, ao papa Leão X e à diversos de seus amigos e professores universitários, em 31 de outubro de 1517, data considerada como o início da Reforma Protestante e comemorada anualmente como o Dia da Reforma Protestante. Sem respostas dos altos eclesiásticos, Martinho Lutero, ou um pequeno grupo de seus estudantes, teria afixado as 95 teses na porta da igreja do Castelo de Wittenberg, Alemanha. Lutero criticava as indulgências e diversos abusos do clero que afastavam os fiéis da igreja e, portanto, da salvação eterna. Aquela ação resultou no início do movimento reformista. Lutero não desejava romper com a Igreja Católica, mas apenas ver realizada uma reforma interna (FEBVRE, 2012). O alto clero exigiu retratação de Lutero, mas o monge não recuou, pelo contrário, reafirmou suas posições. Em 1520, o papado publicou a Bula Exsurge Domine ameaçando Lutero de excomunhão. O monge queimou uma cópia da Bula em claro aviso de que não iria ceder às pressões. Assim, em 1521, ele acabou excomungado pelo papa Leão X. Também o imperador do Sacro Império Romano Germânico, Carlos V, procurou pressionar Lutero para que retirasse suas críticas ao clero católico, convocando para isso uma assembleia, a Dieta de Worms. Naquela ocasião, mais uma vez, Lutero afirmou 355 SUMÁRIO Os alemães-russos de Aceguá: as migrações dos menonitas suas convicções e desafiou os presentes a provarem, com base nas escrituras, que ele estava errado (FEBVRE, 2012). O pensamento reformista de Lutero pode ser resumido em três doutrinas: a justificação ou salvação pela fé, o sacerdócio universal e a infalibilidade da bíblia. A primeira doutrina estabelecia que o bom cristão deveria, antes de tudo, ter fé em deus, pouco importando as boas obras que ele pudesse fazer na vida terrena para salvar sua alma após a morte, pois a graça provinha da fé interior, não de gestos externos ou da compra de indulgências. A segunda doutrina estabelecia que todo bom cristão poderia ser pastor de seu rebanho, desde que estudasse as escrituras. Não deveria existir uma separação radical entre o clero e a massa de cristãos. A terceira doutrina contrariava frontalmente o poder de Roma, pois, no lugar da infalibilidade do papa, Lutero pregava a infalibilidade da bíblia, daí a necessidade de traduzi-la do latim para as línguas vernáculas (línguas correntes). Ainda, Lutero considerava o celibato uma hipocrisia, de modo a aceitar o casamento como uma possibilidade real (FEBVRE, 2012). A invenção da imprensa no séc. XV, por Gutemberg, permitiu a rápida difusão das ideias de Lutero em toda a Europa, o que inspirou novos movimentos reformistas e deu argumentos para ações revolucionárias, como algumas revoltas camponesas. Assim, teve origem o Movimento Anabatista, a Reforma de João Calvino, o puritanismo inglês, o Movimento Huguenote francês, e o Movimento Menonita, entre outros. Surgiram várias correntes com diversos nomes e doutrinas, quase todas derivadas, em maior ou menor grau, das versões luterana e calvinista. Teve grande destaque a doutrina anabatista, considerada como uma corrente radical da Reforma Protestante, adotada por diferentes grupos, com crenças e práticas próprias, unidos pelo entendimento de que o batizado deveria ocorrer na vida adulta, como uma escolha consciente dos convertidos. Desconsideravam, portanto, o batismo católico, luterano e anglicano (SNYDER, 2004). O anabatismo da Reforma Protestante esteve baseado nos princípios de justificação pela fé e do sacerdócio universal, ou seja, partiu do princípio de que deveria existir a adesão voluntária do crente à Igreja. Contudo, Lutero, Calvino e outros reformadores mantiveram o batismo infantil, o que ia de encontro ao ideal da liberdade de escolha dos anabatistas. Em 1523, em Zurique, na Suíça, o ex-padre Ulrich Zwingli, passou a reformar os preceitos religiosos da Igreja local. Alguns de seus discípulos, Georg Blaurock, Conrad Grebel e Félix Manz, discordaram da perspectiva de Ulrich ao desejarem uma reforma mais radical, tanto na questão do batismo, quanto em 356 SUMÁRIO Os alemães-russos de Aceguá: as migrações dos menonitas relação a vinculação da Igreja e do Estado. Eles defenderam a ideia de que não havia nenhuma justificativa para a igreja estar atrelada ao Estado e que os cristãos eram uma comunidade de crentes que deveria seguir Cristo por meio de uma escolha consciente, expressa em testemunho público através do batismo adulto. Em 21 de janeiro de 1525, em Zollikon, um subúrbio de Zurique, o grupo realizou seu batismo, ou como definiram, seu “re-batismo”, considerado como batismo de fé, iniciando um movimento que se espalhou rapidamente por toda a Europa, especialmente nos territórios do Sacro Império Romano-Germânico. Aquela data acabou escolhida como o marco de fundação da Igreja Anabatista (SNYDER, 2004). Assim como ocorreu dentro do movimento protestante, também entre os anabatistas surgiram ramificações e novas denominações, algumas mais radicais do que outras. O episódio da Rebelião de Münster (1534-1535), resultado do radicalismo ideológico de seus realizadores, teve importante impacto na história dos anabatistas. Seguidor de Lutero e profundo conhecedor da Bíblia, Melchior Hoffman conquistou notoriedade com suas pregações críticas à Igreja Católica. Camponeses e grupos sociais desfavorecidos foram atraídos por suas palavras, que os inspiraram a lutar por mudanças, gerando distúrbios sociais. Assim, Hoffman foi expulso de algumas cidades, até chegar em Estrasburgo, onde teve contato com o movimento anabatista, ao qual se converteu. A grande preocupação de Hoffman dizia respeito ao retorno de Cristo, sobretudo em relação ao local em que isso ocorreria: dizendo ter revelações de deus, ele acabou convencido de que Estrasburgo seria esse lugar. Hoffman acabou preso e, após quase uma década nessa condição, morreu. As ideias dele, porém, influenciaram outros pregadores, como o holandês Jan Matthijs, que se mudou para a cidade alemã de Münster, na Vestfália, em 1534 (DICK e AUGUST, 2019). Para Matthijs, diferentemente de Hoffman, a cidade em que ocorreria o retorno de Cristo seria em Münster, por ele chamada de “Nova Jerusalém”. Assim, caberia aos fiéis preparar esse grande evento, o que compreenderia a perseguição e execução daqueles que não estivessem alinhados aos dogmas anabatistas. Junto de Matthijs, atuaram outros fervorosos anabatistas, como o pastor luterano Bernhard Rothmann, e o alfaiate Jan Leiden. Oponente incansável do catolicismo, o pastor Bernhard Rothmann escreveu panfletos que, inicialmente, traziam fortes críticas à Igreja Católica e que, depois, defendiam que a Bíblia clamava pela igualdade absoluta dos homens em todas as questões, inclusive quanto a distribuição da riqueza. Os panfletos, distribuídos em todo o norte do território 357 SUMÁRIO Os alemães-russos de Aceguá: as migrações dos menonitas alemão, atraíram muitos pobres da região para a cidade de Münster, com a ilusão de que lá teriam acesso a distribuição de sua riqueza. A presença daquelas pessoas ajudou Rothmann e seus aliados a colocarem o comerciante de lã, Bernhard Knipperdolling, como prefeito de Münster. Aquele grupo anabatista, ligado as ideias de Matthijs, portanto, havia chegado ao poder. Houve a instauração de uma nova ordem. A população foi forçada a escolher entre o rebatismo ou a morte, mosteiros foram tomados, as riquezas e bens da cidade foram confiscados e distribuídos igualitariamente e luteranos e católicos foram vigorosamente perseguidos, de modo que muitos fugiram (DICK e AUGUST, 2019). O bispo de Münster conseguiu reunir forças militares e sitiar a cidade por longo período, até lograr êxito em sua retomada. Houve um terrível massacre de muitos dos habitantes remanescentes da cidade, assim como a tortura e execução dos líderes anabatistas. Seguiu-se uma grande onda de perseguição contra os anabatistas por toda a Europa, uma vez que acabaram associados com aquele episódio. Aliás, tal estado de coisas já era constante desde a década de 1520, pois os anabatistas, além de contestarem o catolicismo, o luteranismo e o calvinismo, traziam em suas ideias traços de contestação da ordem política e social vigente nos países de língua alemã no início do séc. XVI. Assim, tiveram contra eles poderosas forças políticas e religiosas, que usaram a Rebelião de Münster como pretexto para intensificar o combate que faziam aos anabatistas. Inclusive Martinho Lutero recomendou o uso da força para dar fim ao movimento anabatista. Houve prisões, multas, torturas e, até mesmo, julgamentos e execuções por heresia (DICK e AUGUST, 2019). O cenário pouco amigável resultou na migração de grupos anabatistas para regiões menos hostis ao seu modo de vida e pensamento religioso. Alguns soberanos europeus aceitaram de bom grado a vinda desses grupos para povoar suas possessões escassamente habitadas. Os territórios de maior atração para os anabatistas foram o Palatinado, a Alsácia e a Morávia. Essa migração permitiu a sobrevivência do anabatismo e sua difusão para outras regiões da Europa, como os Países Baixos, onde desde o século XIV, já existia uma forte tendência para a reforma da Igreja por meio de movimentos como o dos sacramentários, a Devotio Moderna e os Irmãos da Vida Comum. Na Holanda, desenvolveu-se a ramificação dos anabatistas denominada de Menonitas, sob a liderança do expadre católico Menno Simons. Para fugir da ligação existente entre o termo “anabatista” e o episódio de Münster, o grupo holandês 358 SUMÁRIO Os alemães-russos de Aceguá: as migrações dos menonitas adotou a denominação de Menonita, como uma homenagem ao seu líder (MASKE, 2013). As migrações Menonitas A vida religiosa dos Menonitas os fez se isolarem por meio do estabelecimento de colônias autossuficientes, com pouco contato com o mundo exterior. Inclusive, esse comportamento deu origem a ramificação anabatista dos Amish, estabelecida nos Estados Unidos e Canadá, conhecida até os dias de hoje por seus costumes ultraconservadores. Ao mesmo tempo, esse isolamento era uma resposta as perseguições que sofriam. Como explica Maske (2013, p. 258) Regiões inóspitas e pouco povoadas foram sendo procuradas e colônias menonitas foram sendo estabelecidas, muitas vezes com o beneplácito dos soberanos dessas regiões, desejosos de povoar seus territórios com camponeses ativos, para aumentar a riqueza de seus domínios. Várias localidades da Europa acolheram refugiados menonitas, concedendo-lhes liberdade de religião, isenção de prestação de juramentos e de servir nos exércitos do rei. Regiões do centro e do leste da Europa, Prússia, Polônia e Rússia foram sendo ocupadas num período de quase trezentos anos, entre 1549 e 1763. Portanto, as perseguições e guerras religiosas da época moderna levaram os Menonitas a procurarem regiões que os aceitassem, fechando-se enquanto comunidades em colônias isoladas. Com a conquista da América pelos europeus e sua colonização, muitos Menonitas acabaram emigrando para os Estados Unidos, inclusive, foram alguns dos primeiros alemães a migrarem para lá. Espalharamse pelo mundo, com presença significativa no continente africano, no Paraguai e no México. Outros continuaram isolados no Velho Mundo (MASKE, 2013). Adeptos de uma rotina de trabalho e honestidade, muitos grupos Menonitas conseguiram transformar terras pouco produtivas em áreas atrativas, com granjas e fazendas rentáveis. Tornaram-se especialistas na produção de queijos e laticínios, sobretudo pela experiência com pecuária leiteira e no cultivo de cereais. Por conta disso, no final do séc. XVIII, um grupo Menonita estabelecido na Prússia, então território germânico, recebeu o convite da Imperatriz da Rússia, Catarina, a Grande, para povoar uma região conquistada pelos russos com as Guerras Russo-Turcas (1768-1774), hoje Ucrânia. 359 SUMÁRIO Os alemães-russos de Aceguá: as migrações dos menonitas Os que aceitaram o convite foram assentados em Chortitza, em 1789, e Molotschna, em 1804. Mantiveram-se, entretanto, como estrangeiros, pois não professavam a religião oficial do Império Russo, a católica ortodoxa. Receberam a autorização de manter sua fé e modo de vida anabatista, desde que não tentassem converter o povo russo. Assim, puderam viver alguns anos em relativa tranquilidade, dedicando-se a atividades agrícolas, além disso, ergueram importantes instituições médicas. Com o passar do tempo, frente a diminuta oferta de terras em relação ao crescimento da população, os Menonitas se espalharam para diversas regiões do Império Russo. No começo do séc. XX, especificamente quando da eclosão da Primeira Guerra Mundial, os Menonitas já somavam 120.000 membros na Rússia (MASKE, 2013; LUNELLI, 2001). As primeiras décadas daquele século trouxeram desafios aos Menonitas russos. A Grande Guerra fez pairar sobre eles a desconfiança de que haviam colaborado com a Alemanha, pois legalmente eram considerados como uma minoria alemã dentro da Rússia, inclusive tendo o alemão como língua principal. Isso se deu apesar de uma maior integração com a sociedade receptora, uma vez que os hospitais e lazaretos das comunidades Menonitas atenderam muitos pacientes que não pertenciam a elas, ao mesmo tempo, a prosperidade econômica de suas colônias impulsionou o contato deles com a sociedade russa, já que dela vinham muitos de seus empregados em fazendas, fábricas e residências. A prosperidade dos núcleos Menonitas dentro de um país cheio de miséria desagradava alguns grupos, como os nacionalistas. Assim, acabaram sofrendo graves consequências com as transformações resultantes da Revolução Russa de 1917 (MASKE, 2013). Fortemente ligados às atividades capitalistas e proprietários de importantes extensões de terra, acabaram sendo considerados como inimigos dos revolucionários. A guerra civil entre os exércitos Vermelho e Branco levou a invasão de suas propriedades, com sérios prejuízos financeiros. Além disso, bandos armados apareceram para roubar, matar e queimar o pouco que restou. Assim, em 1923, um grande contingente de Menonitas passou a emigrar para o Canadá, a partir de contatos com conhecidos lá estabelecidos desde a década de 1870. Aqueles que permaneceram em território russo tiveram de reconstruir suas vidas e defender seus interesses dentro de uma nova realidade (MASKE, 2013). Apesar de ter se implantado um regime socialista na Rússia, até 1928 não houve uma ação do governo revolucionário no sentido de confiscar a propriedade rural. 360 SUMÁRIO Os alemães-russos de Aceguá: as migrações dos menonitas Isso se devia à NEP (New Economic Policy), que não implantava ainda o confisco generalizado de todos os bens de produção. Era um tipo de socialismo de Estado que somente encampou as grandes fábricas, os bancos, a produção de energia, a mineração e as comunicações. O comércio, os pequenos empreendimentos industriais e todo o setor agrícola ficaram na mão da iniciativa privada. Inicialmente, com exceção da perseguição religiosa pelo Estado ateísta, as colônias foram menos atingidas (MASKE, 2013, p. 260). Entretanto, tudo mudou quando Stalin chegou ao poder. O primeiro plano quinquenal do ditador estabeleceu o confisco compulsório das terras agrícolas e sua coletivização, o que retirou dos Menonitas sua maior riqueza. A partir de 1928, as comunidades Menonitas russas procuraram alternativas, entre elas a migração em massa para o Canadá, o Paraguai e o Brasil. Desesperados, cerca de 13 mil Menonitas foram para os arredores de Moscou e aguardaram permissão para deixar o território russo. O governo alemão, defendendo aquele grupo de origem germânica, conseguiu negociar a permissão para que praticamente a metade dele deixasse a Rússia. Os que ficaram, acabaram deportados para o interior do país. Quem seguiu, teve de passar algum tempo em um campo de refugiados na localidade de Mölln, próximo a Hamburgo, enquanto as autoridades negociavam com outros países para que recebessem aquele grupo. O Brasil aceitou, mas sem a garantia de nenhum privilégio, como a isenção de serviço militar e fiscal. Assim, recebeu um contingente de cerca de 1.300 Menonitas. O Paraguai, por sua vez, concordou com todas as reivindicações e para lá foi a maior parte do grupo refugiado, que estabeleceu uma grande e participativa comunidade (MASKE, 2013). Os Menonitas que vieram para o Brasil se instalaram no Estado de Santa Catarina e foram instalados no Alto Vale do Rio Itajaí, na região de Ibirama, pela Sociedade Colonizadora Hanseática (SCH), que naquele contexto colonizava largas faixas de terra no sul do Brasil. Acostumados ao relevo plano da Rússia, aqueles imigrantes se depararam com as montanhas da Serra do Mar. Alguns não conseguiram se adaptar as grandes diferenças geográficas e culturais, de modo que retornaram para a Europa ou seguiram para a Argentina. Como a maioria daqueles Menonitas era de trabalhadores urbanos, não mostraram interesse no trabalho agrícola, o que gerou sérias críticas a eles por parte da empresa colonizadora SCH. Os colonos, por sua vez, alegavam que não tinham recebido benefícios prometidos pela SCH. Assim, houve muitos deles que abandonaram as colônias 361 SUMÁRIO Os alemães-russos de Aceguá: as migrações dos menonitas e foram morar em cidades maiores, como Blumenau, Joinville, Florianópolis, São Paulo e Curitiba (MASKE, 2013; LUNELLI, 2001). Aqueles que permaneceram nas colônias, dedicaram-se ao cultivo do milho e da mandioca. Eram, na verdade, especialistas na plantação de trigo, o que levou alguns deles a migrarem para os Estados Unidos e o Canadá. O restante, que permaneceu, passou a buscar terras adequadas ao plantio do trigo. Assim, depois de toda essa verdadeira saga, chegou até os Menonitas estabelecidos em Santa Catarina informações sobre o avanço da triticultura no Rio Grande do Sul, na fronteira com o Uruguai. Houve a formação de uma delegação que foi visitar aquela região, retornando com entusiasmo. Em assembleia, os Menonitas decidiram arrendar uma área de 400 ha em Seival, então pertencente a Bagé, hoje município de Candiota, em 1949. Passaram a produzir trigo com recursos próprios, além de procurar mais terras. Assim, encontraram o local que passou a ser a Colônia Nova (LUNELLI, 2001). Iniciou-se a negociação com o Sr. Plínio A. Silveira da Rosa, proprietário de 2.256 ha (26 quadras de sesmaria), no sub-distrito de Aceguá – Bagé, cerca de 45 km da sede do município e 30 km da fronteira com o Uruguai. Foi efetivada, em 19.07.1949, a aquisição de parte dessa área (1.000 há) pelo preço de U$ 6.000,00 a quadra, a ser pago em dois (2) anos, sendo que os 1.256 ha restantes foram arrendados por quatro anos, com o compromisso de compra e venda. O então proprietário confiou na palavra dos colonos; não houve aval, nem garantia, nem pagamento de entrada (LUNELLI, 2001, p. 46). A área foi dividida entre as famílias Menonitas, em lotes de 15 e 30 ha. Receberam auxílios por meio de empréstimos de Menonitas holandeses e americanos, durante quatro anos. O empreendimento obteve grande êxito. Logo adquiriram mais terras e puderam receber novas famílias, mecanizando a produção. Infelizmente, a partir do final da década de 1950, passaram a enfrentar problemas com a comercialização do trigo, além de condições climáticas e sanitárias adversas que afetaram a produção. Com isso, vieram dívidas e a venda de propriedades. Fundaram a Cooperativa Tritícola de Aceguá Ltda., para administrar aquela crise. Mesmo assim, cerca de 110 famílias deixaram a região e migraram para outros Estados e até mesmo para o exterior (LUNELLI, 2001). Os que permaneceram resolveram investir em outro ramo agrícola, a pecuária leiteira. As lideranças da comunidade se uniram e, em 1959, fundaram a Cooperativa Agrícola Mista Aceguá Ltda., hoje CAMAL. A partir dessa estrutura, reuniram rebanhos de gado holandês 362 SUMÁRIO Os alemães-russos de Aceguá: as migrações dos menonitas e cultivaram pastagens artificiais, além de construir uma fábrica de laticínios para a produção de queijos e manteiga. A produção leiteira consolidou a presença Menonita em Aceguá e garantiu o progresso local nas décadas seguintes. Os avanços tecnológicos na pecuária leiteira, por exemplo, movimentaram a comunidade para a criação de uma cooperativa para o fornecimento de energia elétrica, isso nos anos 1960, que mais tarde daria origem a Cooperativa Regional de Eletrificação Rural Fronteira Sul Ltda (COOPERSUL). Também na Colônia Nova houve a fundação de um hospital, que veio a atender a população da região. Ainda, novas terras foram sendo adquiridas e novas famílias assentadas, originando as localidades de Colônia Médici e Colônia Pioneira (LUNELLI, 2001). Hoje o novo município de Aceguá, desmembrado de Bagé em 2000, tem uma área territorial de 1.551 km² e uma população de aproximadamente 7.000 habitantes, sendo que o seu principal distrito é a comunidade de Colônia Nova, onde se situa o hospital da cidade. O novo município faz divisa com Bagé, município-mãe, com Hulha Negra e tem uma grande fronteira seca com o Uruguai. [...]. Os vários núcleos Menonitas compõe, atualmente (2001), 213 domicílios (famílias), com 747 habitantes e 86 estabelecimentos agropecuários, responsáveis [...] por 90% da produção leiteira da região de Bagé [...]. (LUNELLI, 2001, p. 48-49). Os Menonitas da região da Campanha, portanto, percorreram um longo caminho histórico até chegarem e se estabelecerem lá. Ainda que tenham passado muitos anos em território russo, a origem de seus antepassados é germânica. A história desse grupo retrata muito bem o mecanismo das migrações humanas em diferentes épocas. Inicialmente, os Menonitas migraram dentro da Europa, para regiões que aceitavam sua condição religiosa de cunho anabatista. Sofreram perseguições e enfrentaram conflitos religiosos, de modo a se isolarem em pequenas comunidades e desenvolverem um estilo de vida voltado ao trabalho comunal. A prosperidade de um desses grupos, residente em território alemão, resultou em convite da Imperatriz russa para colonizarem áreas recém conquistadas por seu Império. No que hoje é a Ucrânia, implementaram o mesmo estilo de vida referido. Tudo ia bem, até que a Primeira Guerra Mundial e as consequências da Revolução Russa os obrigaram a buscar refúgio em outros países, como o Paraguai, Estados Unidos, Canadá e Brasil. No caso brasileiro, instalaram-se em Santa Catarina, mas o desejo de produzir trigo os levou até a Campanha Sul-rio-grandense, onde fundaram a Colônia Nova. Temos, assim, a história de um grupo 363 SUMÁRIO Os alemães-russos de Aceguá: as migrações dos menonitas humano identificado por sua religiosidade que migrou diversas vezes, sempre cultivando um estilo de vida comunitário. Referências CHRISTILLINO, Cristiano Luís. Litígios ao sul do Império: a Lei de Terras e a consolidação política da Coroa no Rio Grande do Sul (1850-1880). 2010. 353 f. Tese (Doutorado em História)-Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010. CUNHA, Jorge Luiz da. A Colônia de São Leopoldo: a primeira fase da colonização alemã no Rio Grande do Sul. Revista Acadêmica Licencia&acturas, Ivoti, v. 5, n. 2, jul./dez. 2017, p. 37-43. DACANAL, José Hildebrando. A imigração e a história do Rio Grande do Sul. In: ______; GONZAGA, Sérgius. RS: Imigração e Colonização, 1980. DYCK, João Guilherme; AUGUST, Hartmut. Anabatismo e as três dimensões da vida cristã. Revista Cógnito, Curitiba, v. 1:2, dez/2019, p. 177-194. FEBVRE, Lucien. Martinho Luterno: um destino. São Paulo: Três Estrelas, 2012. FOSSIER, Robert. La Edad Media: El tiempo de las crisis, 1250-1520. Barcelona: Editorial Crítica, 1988. FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média: Nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2001. KLUG, João. Imigração no Sul do Brasil. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (org.). O Brasil Imperial, volume III: 1870-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p.199-231. LANDO, Aldair Marli; BARROS, Eliane Cruxên. Capitalismo e Colonização: os alemães no Rio Grande do Sul. In: LANDO, Aldair Marli et. al. (Org.). RS: Imigração & Colonização. 2ª ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1992, p. 9-46. LUNELLI, João Paulo. Razões do desenvolvimento sócio-econômico distintivo de Colônia Nova, distrito do município de Aceguá – RS. 2001. 112 f. Dissertação (Mestrado em Administração de Empresas)-Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2001. MASKE, Wilson. Anabatistas sob o Cruzeiro do Sul: a experiência Menonita no Brasil (1930-1945). Revista Pistis Praxis, Curitiba, v. 5, n. 1, jan./jun. 2013, p. 253-273. PIASSINI, Carlos Eduardo. A Biografia de um Barão: Karl von Kahlden, o Diretor da Colônia Santo Ângelo, 1857-1882. 2014. 68 f. Monografia (Graduação em História)-Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2014. SNYDER, Arnold. Anabaptism and Reformation in Switzerland: An Historical and Theological Analysis of the Dialogues Between Anabaptist and Reformers. Kitchener: Pandora Press, 2004. 364 SUMÁRIO 365 SUMÁRIO OS “TURCOS” ESTÃO CHEGANDO: OS IMIGRANTES SÍRIOS E LIBANESES EM BAGÉ Júlio Bittencourt-Francisco 1 366 SUMÁRIO Os “turcos” estão chegando: os imigrantes sírios e libaneses em Bagé 1 Introdução O capítulo trata da história da imigração de sírios e libaneses em Bagé. Levantamos aqui a origem desses imigrantes, os motivos que os levaram a emigrar e como chegaram ao Brasil, ao Rio Grande do Sul e a Bagé, mas sobretudo porque escolheram a Rainha da Fronteira para fincar os empreendimentos que desenvolveram na cidade, incluindo suas principais contribuições para sociedade bageense. Neste trabalho, vale frisar, referimo-nos à imigração de sírios e libaneses para Bagé entre 1890 e 1930. A proximidade com os vizinhos Uruguai e Argentina e a realidade econômica que encontraram na cidade, principalmente nas primeiras décadas do século XX, traçaram a sua estratégia de inserção e a sua adaptação nesse território. O comércio representou a principal atividade do grupo, o que lhes proporcionou escapar do desemprego. Agindo individualmente, mas cooperando em bloco com outros patrícios, eles iniciaram um movimento de ascensão social que observamos em seus descendentes na atualidade. No Sul do Brasil, os sírios e libaneses não são tão numerosos e característicos2 como em São Paulo ou no Sudeste, de uma forma geral, e mesmo em estados do Norte, Nordeste (LAMARÃO, 2007) e Centro-Oeste do Brasil, regiões onde eles são, muitas vezes, ao lado dos portugueses, os únicos imigrantes. No Rio Grande do Sul, 1. Doutor em História pela PUCRS, Mestre em Memória Social UNIRIO, Especialista em História do Direito no Brasil UNESA. Professor de museologia. 2. Característicos no sul do Brasil são as imigrações de alemães e italianos, ou a europeia de uma forma geral. 367 SUMÁRIO Os “turcos” estão chegando: os imigrantes sírios e libaneses em Bagé superada a fase de estabilização econômica do grupo, seus esforços se concentraram na fundação de entidades de assistência e clubes étnicos. Isso fez com que a memória escrita das etnias não fosse contemplada de uma forma sistemática pelos próprios imigrantes e seus descendentes, como foram os de outras levas migratórias mais numerosas, fazendo com que o acesso as fontes de pesquisa sobre a trajetória dos sírios e libaneses no estado gaúcho se tornasse uma tarefa desafiadora para o pesquisador. Sendo assim, recorremos a todas as fontes possíveis para elaborar este capítulo. Utilizamos revisão da bibliografia, pesquisa em arquivos públicos e periódicos, além de entrevistas com descendentes de imigrantes. A novidade que trazemos aqui é o enfoque local sobre uma leva migratória minoritária, mas que foi e ainda é importante no desenvolvimento econômico e para a formação étnica e cultural da cidade de Bagé. Na terra de origem: o que levou à emigração No fim do século XIX e início do XX, grandes levas de emigrantes árabes fugiram das províncias otomanas da Síria, Palestina e Monte Líbano e se estabeleceram nas Américas, mas também na África e na Oceania. Muitos deles haviam partido com a intenção de voltar. Esses emigrantes eram, em sua maioria, libaneses maronitas e ortodoxos gregos e sírios católicos greco-antioquinos (melquitas), e em menor número, muçulmanos e judeus vindos do Oriente Médio. No início do século XX, os esforços do Império Otomano para manter a hegemonia em suas províncias árabes, através de reformas de caráter político-confessionais, precipitaram sobremaneira a continuidade da saída de cristãos da Grande Síria3. Além disso, a aproximação do conflito mundial (1914-18) e a decisão dos turcos de recrutar cristãos para seus exércitos aumentaram ainda mais a saída dessas populações em direção a outros países, especialmente Brasil e Argentina. Diversos autores creditam à educação religiosa de jovens sírios e libaneses, patrocinadas por escolas cristãs e missões religiosas do Ocidente, o fato de elas terem inculcado no imaginário cultural da classe média valores ocidentais que predispôs esses jovens a emigrar. Muitos intelectuais sírios e libaneses, por sua vez, formados nessas escolas, diante da impossibilidade de se 3. Até 1920, ano da repartição anglo-francesa das províncias otomanas, a Grande Síria correspondia aos atuais Líbano, Síria e Palestina. 368 SUMÁRIO Os “turcos” estão chegando: os imigrantes sírios e libaneses em Bagé tornarem profissionais liberais em seus países, e dos obstáculos a sua incorporação à administração muçulmana, também preferiam emigrar em busca de melhores oportunidades de vida. Segundo André Gattaz (2015), as motivações que levaram os árabes a emigrar durante a dominação turco-otomana entre 1880 e 1920, foram basicamente as seguintes: O século XIX presenciou importantes mudanças no contexto econômico e social das províncias árabes do Império Turco-Otomano. De um modo geral houve aumento da agricultura em detrimento do pastoreio, com a consequente diminuição do nomadismo e aumento da urbanização. Os portos também se desenvolveram após a abertura do Canal de Suez (1869) e a infraestrutura da região foi alterada com a presença de serviços públicos financiados e operados por empresas europeias. Houve ainda um grande crescimento populacional, porém sem melhorias no padrão de vida, a não ser para os setores superiores das populações urbanas, ligadas ao governo ou aos setores em expansão da economia (GATTAZ, 2015, p.70). Já após a saída dos turcos e a continuação do regime colonial, agora sob o domínio francês, a principal motivação que impeliu os sírios e libaneses a deixar seus países foi a indefinição política. De acordo com Thibaut (2009), líderes cristãos e muçulmanos tentaram, na época, encontrar uma fórmula consensual de divisão do poder no Líbano e na Síria, mas a evolução do componente demográfico entre as diferentes comunidades confessionais libanesas4 terminou por inviabilizar a iniciativa. Considerada uma das principais causas das crises políticas do país, ela também terminou por gerar expressivos deslocamentos de sua população. Os períodos dos dois conflitos mundiais registram um declínio, de modo geral, nos fluxos migratórios que só seriam retomados no início da década de 1950 (palestinos), na década de 1970 (libaneses) e mais recentemente, já no século XXI, por conta da guerra civil da Síria. 4. Por exemplo, no Líbano a população maronita cresceu mais do que a de outras etnias, passando a ser maioria em uma população multiétnica, e por consequência reivindicava maior parte do poder, o que gerou grandes conflitos. Já na Síria os cristãos em minoria numérica passaram a ser vistos com desconfiança pelos muçulmanos, o que também gerou conflitos. 369 SUMÁRIO Os “turcos” estão chegando: os imigrantes sírios e libaneses em Bagé Os sírios e libaneses no Brasil Os imigrantes da primeira geração, que vieram no bojo de uma imigração de caráter espontâneo, entraram no Brasil no período que vai desde 1870, quando se inicia o forte deslocamento internacional de sírios e libaneses, até 1914. Cabe destacar que essa vaga migratória foi constituída, em grande parte, por indivíduos que não escolheram o Brasil como destino precípuo de sua migração, conforme Fígoli e Vilela (2004) detalham abaixo: De fato, em primeiro lugar, temos aqueles indivíduos que, por razões sanitárias, não foram aceitos pelos Estados Unidos e foram desviados para o Brasil, aceito como destino alternativo. Depois, aqueles que chegaram ao Brasil enganados pelas companhias marítimas que com a promessa de levá-los a Américado Norte os entregaram na América do Sul, dizendo não haver diferença; ainda, há uns poucos aventureiros que, almejando vir para a América, não se importavam em que país iriam aportar; e, por último, por um número pequeno que veio intencionalmente ao Brasil, pois detinham informações que os levaram a tomar a decisão de migrar diretamente para o país. (FÍGOLI &VILELA, 2004, p.6) No período da Grande Guerra, poucos foram os sírios e libaneses que puderam deixar seus países. Mais tarde, entre 1920 e 1930, a imigração experimentou uma flutuação anual entre mil e cinco mil indivíduos, alcançando um pico de 7.308 em 1926. Neste período, se destaca uma segunda geração de imigrantes sírios e libaneses, caracterizada como uma migração em massa para o Brasil, escolhido como destino em virtude das notícias obtidas junto aos primeiros imigrantes. Essa geração de imigrantes contou, em sua grande maioria, com uma rede social (social network) ampla e estruturada, constituída por conhecidos e parentes já inseridos, mesmo que em alguns casos de forma precária, no meio social e econômico, rural ou urbano, do país. Essa rede ofereceu ampla assistência para o estabelecimento dos novos imigrantes ¬– moradia, obtenção de trabalho, aprendizado da língua, entre outros recursos vitais para a sobrevivência no novo local. A depressão econômica dos anos 1930 e a adoção, pelo Brasil, do sistema de quotas para entrada de imigrantes, contudo, reduziram a imigração a níveis bastante baixos. Com a deflagração da Segunda Guerra Mundial, esse número caiu ainda mais (KNOWLTON, 1961). 370 SUMÁRIO Os “turcos” estão chegando: os imigrantes sírios e libaneses em Bagé A imigração e os sírios e libaneses no Rio Grande do Sul O estado gaúcho se destaca pela forte marca migratória, principalmente a europeia. Açorianos5 e alemães foram os primeiros a ocupar seu território6 já no início do século XIX, seguidos por italianos e poloneses nas últimas décadas do século citado. O grosso da imigração europeia, incluindo a maior parte das levas de alemães, italianos, portugueses, poloneses, espanhóis, russos e austríacos, fixaram-se no Rio Grande do Sul entre 1880 e 1920. A maioria desses contingentes migratórios, contabilizados em dezenas de milhares, veio ocupar pequenas glebas rurais, as chamadas colônias, o que tornou o estado sulino um caso único no país onde o latifúndio, dedicado à monocultura, praticamente não existia. Prevalecia ali a pequena propriedade familiar, que comercializava seus excedentes agrícolas, que viria a se tornar o berço do cooperativismo no país e que, posteriormente, pelo acúmulo da produção de matériaprima, faria do Rio Grande do Sul um dos estados pioneiros na industrialização no Brasil. Diferentemente do resto do país, onde a imigração árabe deve muito aos portos de Santos e do Rio de Janeiro, essa corrente migratória foi fortemente influenciada, em terras gaúchas, pela proximidade com os países platinos. Com efeito, já na virada para o século XX, o Rio Grande do Sul dispunha de uma rede de ferrovias que ligava a capital Porto Alegre às cidades do sul do estado, e daí se chegava ao Uruguai e à Argentina. Além disso, havia ligações marítimas e fluviais com aqueles países. Os sírios e libaneses já estavam presente em grande número no Uruguai e na Argentina devido ao forte desenvolvimento econômico que esses países experimentavam naquela época. Havia mesmo uma saturação de mascates árabes no Uruguai, a tal ponto que o governo local chegou a proibir o desembarque de “asiáticos” em Montevidéu, em 1890 (ODDONE, 1966). Na Argentina, houve um quebra-quebra em Buenos Aires em 1914, promovido por cerca de 500 árabes em 5. Junto com os luso-brasileiros trouxeram ao Rio Grande do Sul, desde o fim do século XVIII, os escravos negros, os quais podemos chamar de ‘imigrantes forçados’. Eles foram trazidos em grande número para trabalhar nas charqueadas do Sul do estado, sendo que segundo Saint-Hilare (1987), perfazia metade da população da província em 1820, que era de 110 mil habitantes. 6. Sabemos que os indígenas guaranis e tupis já estavam no território muito antes de qualquer europeu ou africano, no entanto, para nossos fins, fazemos apenas essa ressalva. 371 SUMÁRIO Os “turcos” estão chegando: os imigrantes sírios e libaneses em Bagé protesto contra o desemprego7. Evidentemente, levando-se em conta este cenário, o Rio Grande do Sul atraiu muitos desses imigrantes que, inclusive, podiam se deslocar a pé através da fronteira seca com o Uruguai, chegando a Bagé, Jaguarão ou Livramento, ou de barco, desembarcando no porto de Rio Grande, ou ainda por via fluvial desde Buenos Aires ou Montevideo, aportando em Uruguaiana e São Borja, na fronteira com a Argentina. Os imigrantes vindos do Oriente Médio, libaneses e sírios (além de palestinos), começaram a chegar ao Rio Grande do Sul em maior número a partir de 1890, juntamente com a maior parte dos outros imigrantes europeus, e são, respectivamente, a quinta e a sexta etnias quantitativamente mais expressivas de imigrantes no estado8. Jovens imigrantes sírios e libaneses, com nenhuma ou pouca instrução e sem nenhum capital se concentraram nas cidades maiores e mais prósperas, mas também, em números mais discretos, em municípios menores. Segundo o censo de 1920, havia no Rio Grande do Sul cerca de 2,5 mil imigrantes árabes9 e, possivelmente, de acordo com nossas projeções, um número três vezes maior de descendentes de sírios e libaneses, já nascidos no estado. Eles se dedicaram ao comércio, primeiramente como mascates, vendendo de porta-a-porta, depois estabelecidos com pequenas lojas e armazéns. Diferentemente desse componente majoritário, também vieram, em menor número, profissionais liberais formados nas universidades das missões estrangeiras da Síria e do Líbano, intelectuais e jornalistas perseguidos pela repressão otomana e, por fim, famílias inteiras que vendiam seus bens ou joias e já chegavam à terra da imigração com algum capital. Sírios e libaneses na fronteira e no Sul do estado O primeiro texto dedicado especificamente à imigração síriolibanesa no Rio Grande do Sul é o de Tanus Bastani. Ele conta as memórias do pai libanês, que foi mascate no Rio Grande do Sul no início do século XX. Em “Os libaneses no Brasil”, publicado no Álbum 7. Essa informação foi retirada de uma nota publicada no jornal porto-alegrense A Federação, datada de 29 de setembro de 1914. 8. Depois de alemães, italianos, portugueses, poloneses e espanhóis. 9. O censo federal de 1920 apontou um total de 2.565 imigrantes árabes no Rio Grande do Sul. (cf. PIMENTEL, 1986, p. 56). 372 SUMÁRIO Os “turcos” estão chegando: os imigrantes sírios e libaneses em Bagé da colônia sírio-libanesa no Brasil, organizado por Salomão Jorge, Bastani, de forma ufanista e saudosa, assim se refere ao pai: Quando, no findar do século XIX, o inesquecível pai do autor deste livro mascateava pelo interior do estado sulino, por muitas ocasiões, livrou-se da sanha sanguinária dos ladrões que infestavam a zona de São Francisco Xavier, em direção a Vacaria. Certa vez, indo em companhia de seu fiel animal, uma mula de carga chamada Catarina, em direção à Bento Gonçalves, o animal que já estava acostumado a abrir as porteiras que encontrava no caminho empurrando-as com a cabeça, em dado momento, em virtude de um disparo de espingarda, estranhou o seu dono, e recorcoveando deu-lhe um coice no calcanhar, abrindo enorme ferida nos pés. Ali, curtindo dores atrozes durante quase todo o dia, ficou ao abandono, onde foi socorrido pelo boticário do lugar. Perdeu sua mercadoria e seu animal, tendo que recomeçar novamente a ganhar avida. Não reclamou de ninguém, nunca se queixou das barbaridades que contra ele praticaram (BASTANI, 1948, p.130). Fontes diversas10 revelam que os sírios e libaneses estiveram presentes na fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai e a Argentina desde a segunda metade do século XIX. A proximidade com os países do Rio da Prata conferiu características peculiares à presença sírio-libanesa no Rio Grande do Sul, se comparada com esta mesma imigração em outras partes do território nacional. No Sul, a imigração árabe diferencia-se pela convivência de seus membros com outros grupos de imigrantes, especialmente alemães e italianos, mas também com o gaúcho. Becker (1958, p.315) destaca a importância e significado da presença de sírios e libaneses na região: E, diga-se de passagem, que a influência econômica deles, na fronteira é grande. E merecidamente, pois por volta de 1900 os representantes de outras etnias, com exceção, talvez, dos portugueses, não se animaram a penetrar naquela região. Os árabes, por sua vez, viam a dificuldade de iniciar com êxito sua vida na região de colonização alemã, italiana e polonesa. Naquele momento, um contingente razoável de mascates árabes circulava pelo interior do Uruguai e da Argentina, mas também pelo sul do estado, especialmente por Bagé, Alegrete, São Gabriel, Herval, Lavras do Sul, Jaguarão, Arroio Grande, Quaraí, Santa Vitória 10. Ver, por exemplo, Annuario Estatístico do Estado do Rio Grande do Sul (1924); Becker (1958); Fersan (2005) e Rosa (2005). 373 SUMÁRIO Os “turcos” estão chegando: os imigrantes sírios e libaneses em Bagé do Palmar, Cerrito, Pedro Osório e Santana do Livramento, visitando seus clientes nas estâncias, entre peões, colonos e capatazes. Relatos de filhos e netos de imigrantes libaneses e sírios dão conta que seus avós entraram a pé pela fronteira do Rio Grande do Sul, tendo ido se estabelecer em lugares distantes como Tupanciretã11 ou Santo Ângelo, nas Missões. A movimentação através da fronteira seca, entre o norte do Uruguai e a região de Bagé, Livramento e Jaguarão, era especialmente intensa. Uruguaiana e São Borja, por suas conexões fluviais e ferroviárias, também eram muito frequentadas pelos mascates sírios vindos da Argentina ou para lá passando desde o Brasil, na virada do século XX. Essa movimentação foi sustentável durante as décadas subsequentes, e, pelo bom momento econômico daquelas regiões do estado, um número razoável de famílias árabes radicou-se nesses locais (BASTANI, 1946; BECKER, 1958; ROSA, 2005). Mascateando por toda a faixa de fronteira, os imigrantes árabes conviveram durante décadas com o gaúcho peão de estância, participando das “carreiras em cancha reta”12 e aprendendo a montar à moda dos peões da fronteira, usando bombachas e esporas, cavalgando por cima de um pelego, como confirma a literatura de Cheuiche, (2003) que descreve a participação de um libanês, vindo do Uruguai, ao cerco de Bagé em 1893. De fato, o envolvimento dos sírios e libaneses estabelecidos no sul do estado com os entreveros entre os partidários dos diferentes segmentos da oligarquia gaúcha foi inevitável. A Revolução Federalista eclodiu em 1893, quando os maragatos, tendo como líder Gaspar Silveira Martins, chefe do Partido Federalista Riograndense, rebelaram-se contra o Partido Republicano do Rio Grande do Sul13, que dominava o cenário político estadual através de seu líder máximo, Júlio de Castilhos desde 1891. No sul do estado, o maior representante dos maragatos era Luís Gonçalves das Chagas, o barão de Candiota, cujas terras se estendiam “das coxilhas de Santa Maria à cidade de Bagé sem cruzar por outros campos que não fossem os de sua exclusiva propriedade” (CALLAGE, 1929, p.29). 11. Assim nos relatou Cirne Chamun, nascido em Tupãciretã, em 1935, e ex-presidente da Sociedade Libanesa, ao narrar a trajetória de seu pai, Antônio Mansur. 12. Esporte equestre muito popular na região do pampa. Para uma descrição detalhada de suas características, ver Golin (1999). 13. Enquanto os republicanos se estabeleciam com força política em Porto Alegre e eram especializados no uso da máquina administrativa em seu favor, a oposição federalista mantinha suas bases rurais de sustentação na região da fronteira, dando continuidade à tradição caudilhista e rebelde do Rio Grande (LOVE, 1971). 374 SUMÁRIO Os “turcos” estão chegando: os imigrantes sírios e libaneses em Bagé Nessa época, centenas de mascates árabes percorriam vastas áreas do sul do Rio Grande do Sul, especialmente as sedes das grandes estâncias, e não seria improvável que, devido a sua intensa mobilidade, eles acabassem assumindo o papel de mensageiros e arautos dos acontecimentos, dentro e fora das terras dos estancieiros. Isso poderia lhes valer de moeda de troca, garantindo, por exemplo, proteção nas estradas pelos peões das estâncias ou autorização para fazer comércio naquelas terras, junto aos seus empregados, peões e senhoras dos agregados. Bastani (1946, p.129) refere-se à amizade dos imigrantes com o barão de Candiota: “Quando, ao findar do século XIX, o inesquecível pai do autor deste livro mascateava pelo interior do estado sulino, teve o amparo do inolvidável gaúcho Barão de Candiota, um dos veteranos heroicos da grandeza sul-rio-grandense.” Sírios e Libaneses em Bagé O surgimento das charqueadas associado aos melhoramentos urbanos ocorridos no município de Bagé entre os anos de 1890 até a década de 1930, ocasionaram o que podemos chamar de “apogeu econômico” da cidade, estes acontecimentos são também descritos por pesquisadores bageenses. Sobre as mudanças que ocorreram neste período, o historiador Claudio Lemieszek (1997, p.35-36), tece os seguintes comentários: “Indiscutivelmente, Bagé gozava de uma condição invejável no Estado. Nas estatísticas relativas às arrecadações das receitas municipais realizada em 1908, Bagé ostentava um belo quarto lugar”. E prossegue: Para que se tenha ideia do que era Bagé, no ano que consideramos o ponto de partida de sua arrancada para o desenvolvimento, basta dizer que em 1895 sua população beirava os trinta mil habitantes, sendo servida por duas casas bancárias, sete lojas de fazenda, quatro ferragens, um bazar de louça, seis joalherias, cinquenta e nove armazéns de secos e molhados, nove hotéis, seis farmácias, cento e três oficinas de pequenas indústrias, oito escolas públicas e quatro particulares, duas charqueadas, três curtumes, uma fábrica de sabão, duas de cerveja, uma de água mineral, afora fábricas de massas, velas e outras utilidades, bem como dois moinho. (LEMIESZEK 1997, p.35-36) De fato, a cidade no final do século XIX, já possuía um dos mais aperfeiçoados códigos de posturas municipais, com grande 375 SUMÁRIO Os “turcos” estão chegando: os imigrantes sírios e libaneses em Bagé ênfase para o saneamento básico e saúde pública. As praças, passeios públicos e ruas despertavam a atenção de todos pela beleza e pela amplitude. Além disso, em 1872, conforme informa Monastério e Zell (2004) Bagé era a segunda cidade mais populosa da província com 21.768 habitantes, só perdendo para a capital que contava 24.916 moradores. Aproveitando-se do momento econômico que Bagé passava no início do século XX, muitos imigrantes sírios e libaneses abriram “bolichos”14 no meio do pampa para vender aos gaúchos. Nossas pesquisas revelaram que no período da Primeira Guerra Mundial havia um importante contingente de libaneses, palestinos e sírios circulando entre Argentina, Uruguai e Brasil, na mascateação, ou já com suas lojinhas. Impedidos de retornar ao Oriente Médio por via marítima por causa da guerra, esses árabes circulavam pelo interior e por Pelotas, Rio Grande e Bagé até Montevidéu e Buenos Aires. A consolidação das oligarquias em torno do vitorioso Partido Republicano, no poder desde a última revolução [1893], precipitou outra revolta em 1923 pela união das oposições em torno da figura de Assis Brasil, representante dos fazendeiros do sul do estado não satisfeitos com as fraudes observadas nas últimas eleições, ganhas novamente por Borges de Medeiros, que contava com o apoio do governo federal. Sob o sul do Rio Grande do Sul se abateu pesadamente a revolução e a insegurança social, justamente em um momento de crise econômica e recessão mundial, em um contexto pós-Primeira Grande Guerra, quando estancieiros e criadores haviam contraído empréstimos para investir em suas propriedades agropastoris, esperando o fim da demanda reprimida para iniciar período de prosperidade. Por isso investiram em melhores instalações e na qualidade dos rebanhos (FLORES, 2004, 167). Antônio Karan, nascido em Bagé em 1915, residente na cidade de Pelotas, com 100 anos de idade na época em que foi entrevistado, em 22/06/2015, confirmou que seu pai, Francisco Karan, nasceu no Líbano e que, aos 18 anos, trabalhava diariamente arando o solo seco e pedregulhos nas terras da família. Diante disso, sabe que o pai entrou num navio de transporte italiano, juntamente com outros patrícios, em 1894, e desembarcou em Montevideo. No Uruguai, dirigiu-se a uma pequena cidade no centro do país, “Santa Clara de Olimar, um 14. Pequeno estabelecimento comercial em área rural ou à beira de estradas onde o viajante encontra de tudo, especialmente secos e molhados, fumo, sal, banha etc. 376 SUMÁRIO Os “turcos” estão chegando: os imigrantes sírios e libaneses em Bagé reduto de Karans”. Contou que o pai passou 12 anos como mascate, visitando fazendas e estâncias pela fronteira, “desbravando lugares onde não havia nenhum comércio” até juntar dinheiro e passar ao Brasil. Assim disse Antônio Karan: Soube disso muito depois... através de um antigo capataz dele. Ele me contou, disse assim: “teu pai entrou no Brasil: Montado num cavalo zaino15”! Meu pai atravessou o Passo do Salso em 1908. Foi lá que eu nasci, numa casa de torrão, chão batido e telhado de zinco, na época, era 4º distrito de Bagé, ele comprou muitas quadras de terras lá..., mas então, o capataz termina de descrever meu pai quando entrou no Brasil: “de botas pretas, esporas de prata presas por correntes de ouro”. (Entrevista com Antônio Karan, 2015). Foi justamente ali, no Passo do Salso, na “campanha bruta” de Bagé, que estava radicado, numa pequena estância no meio do Pampa, Francisco Karam, imigrante e comerciante libanês. Seu filho, Antônio Karam, com pouco menos de dez anos de idade à época, presenciou a Revolução de 1923: Eu nasci em 1915, no Passo do Salso. O meu pai tinha um comércio forte, à luz de vela e querosene. (...) Ali, com 32 anos, minha mãe morreu de convulsão cerebral, deixando meu pai com uma penca de filhos. (...) Meu irmão Luiz ainda mamava. Mas a vida prosseguiu. Em 1923, a Revolução era mais fraca, mas era perigosa também16. Estávamos lá no Salso e passou o pessoal do governo, que eram os chimangos e levaram todos os nossos cavalos. Nós ficamos a pé. Pouco tempo depois passaram os maragatos, cujo chefe foi muito generoso, muito simpático e respeitoso. Aí aconselharam ao papai que fosse para o Uruguai e levasse a família. E um dia fomos todos de carroça para ao Passo Santa Maria Isabel, no Uruguai. No final de 192417, já estávamos voltando para Pelotas, onde tirei o ginásio no Gonzaga. (KARAM, 2015). 15. Zaino é uma tonalidade rica e brilhante de castanho, aproximando-se da cor do mogno polido. Os cavalos dessa pelagem são tidos como muito espertos e são geralmente fortes e bem dispostos. Fonte: https://www.facebook.com/Mundo-dos-Cavalos-352786828163241/ (acesso em 14.03.2021) 16. O entrevistado provavelmente estava fazendo uma alusão à Revolução de 1893, que foi mais violenta. 17. Em dezembro de 1923, a revolução terminou. Pelo acordo, o chamado Pacto de Pedras Altas, Borges pôde permanecer até o fim de seu mandato em 1928, mas a Constituição gaúcha de 1891 foi reformada, impedindo nova reeleição. 377 SUMÁRIO Os “turcos” estão chegando: os imigrantes sírios e libaneses em Bagé Foto 1 Shimona Karam, Bagé (início do século XX) A fotografia ao lado revela o expressivo olhar e o elegante porte da Sra. Karam, pouco antes de sua morte no início da década de 1920. Ela posa vestindo uma blusa de seda, provavelmente encarnada, que é finamente bordada. O detalhe do chapéu, um acessório indispensável na época, o colar e o crucifixo aparecendo no peito mostra a todos sua fé cristã. Completa o seu look a pequena bolsa de mão decorada com contas, que segura com as pontas dos dedos, mostrando uma pulseira em um braço e, no outro, um delicado relógio, o que evidencia a prosperidade dos Karam. Acervo pessoal de Antônio Karam (reprodução da foto feita em junho de 2015) Pelo que vimos acima, a fronteira – área de ocupação antiga, mas em termos demográficos relativamente despovoada devido à natureza da sua principal atividade econômica, a pecuária extensiva – merece destaque. Becker (1958) faz uma digressão interessante sobre as andanças desses “comerciantes-viajantes” pela região. Segundo o autor, eles desempenharam o papel de regulador de preços, comprando mercadorias diretamente em São Paulo e vendendo-as mais barato que os comerciantes já estabelecidos, que eram em pequeno número e, talvez por causa disso, exploravam a clientela. Foi nessa ocasião que os ambulantes sírios e libaneses chegaram à região, alcançando até mesmo os locais mais remotos, vendendo os tecidos e miudezas em geral a preços mais baixos ou facilitando o pagamento. A frequente referência a Bagé nas diferentes fontes consultadas revela sua importância no contexto da imigração síria e libanesa para as terras gaúchas. Em Bagé, segundo informa Becker (1958, p.316), havia “forte posição econômica dos árabes e de seus descendentes”. O autor narra que “segundo informações de certo Antônio Mansur, todos os sírios de Bagé eram provenientes da cidade de Homs”, 378 SUMÁRIO Os “turcos” estão chegando: os imigrantes sírios e libaneses em Bagé inclusive “Fellipe Hallabe, que lá chegou em 1898, e os irmãos Miguel e Jorge Nicolau, que chegaram em 1901 e 1902, respectivamente”. Ainda de acordo com Becker, entre os libaneses encontravam-se “Jacob Fenianos e José Nicolau Schehim como os mais antigos, chegados em 1890”. Outra informação reveladora consta do Annuario estatistico do Rio Grande do Sul, de 1924, que menciona a Associação Beneficente Sírio-Libanesa de Bagé, a qual contava com 65 membros em 1923. Maria Helena Daibler Mansur, hoje com 83 anos, informa que uma parte da sua família chegou à Bagé no fim do século XIX vindos de Homs na Síria. Na foto abaixo, vemos pelo menos três gerações da família Mansur. As poses e o cenário mostram a estabilidade econômica da família. A seriedade mostrada por todos que estão na foto, em seus mais distintos trajes, desde os sapatos até as gravatas, reflete os costumes da época e confunde um dispositivo fotográfico com a tela de uma pintura, traduzindo a formalidade e a importância do momento. Sentada, à direita, temos a matriarca Joana Daibler, comerciante em Bagé, proprietária da Casa da Boneca. Foto 2 Família Mansur, Bagé (início do século XX) Acervo pessoal de Maria Helena Daibler Mansur (reprodução da foto feita em fevereiro de 2021) Em seu artigo “Os Árabes!”, no livro A saga dos povoadores e outros contos de Bagé (2005), Maria Helena Mansur informa que sua avó, Joana Daibler, que já chegou a Bagé viúva, em 1886, “não encontrou na cidade uma casa para o seu comércio nas proporções desejadas. Construiu então um prédio na Avenida 7 de Setembro, esquina com a atual Presidente Vargas” (p. 31). E continua a autora: “Com uma 379 SUMÁRIO Os “turcos” estão chegando: os imigrantes sírios e libaneses em Bagé particularidade, mandou colocar no topo da construção uma escultura em forma de boneca, já que a loja que ali se instalaria iria chamar-se Casa da Boneca, que se encontra até hoje no mesmo local”. (p.31). Esta realidade nos faz acreditar que, ao contrário de muitos sírios que chegaram sem nenhum capital, a viúva Daibler contava com poder de investimento e liquidez, além de saber onde investir. Este fato está normalmente ligado a redes de colaboração e cooperação, quando outros imigrantes já estabelecidos abriam caminho para outras famílias recém-chegadas. Alguns desses imigrantes vendiam suas joias ou propriedades na terra de origem para emigrar e quando chegavam ao seu destino contavam com redes sociais ou de parentesco, que evidentemente já conheciam o potencial, as facilidades e as carências do local. Isso era, certamente, decisivo para o sucesso desses novos empreendimentos. Famílias sírio-libanesas em Bagé no início do século XX Através das pesquisas que realizamos no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, em maio de 2015, mais precisamente no arquivo referente ao prontuário de estrangeiros radicados em Bagé, cadastrados a partir de 1938, encontramos 17 nomes, que transcrevemos abaixo. As informações trazem o nome do imigrante, origem, data de nascimento (nasc.) e filiação (fl.). Há ainda informações sobre o endereço, o ano que preencheu o cadastro e o ano da chegada a Bagé. Além disso, alguns nomes trazem informações sobre o estado civil e a profissão desses imigrantes. 01 ABDALLAH, Nasir nasc. 17/01/1894 Monte Líbano fl. A. Moussi e Farid Kalil Saad Rua General Netto, Bagé, Bagé/RS. 1942 chegou em 1911 Comércio, Bagé/RS 1942. 02 AZÁRIO, Mocaiber nasc. Líbano fl. Emílio e Amália M. R, Marcílio Dias, 719 R. Bagé, RS Viúva, do lar. 1948. Chegou em 1924. 03 BECHARA, José Mussa Canaan nasc. 20/06/1882 Líbano fl. M.C. e Mantora B. Rua Mal. Floriano, 1062, Bagé/RS. 1939. Comerciante Mercado Municipal de Bagé/RS 1952. Chegou em 1899. 04 FADEL, Carim nasc. 25/01/1887 Líbano fl. Ayub F. e Najme F. Rua Alberto Torres, 86 Bagé/RS 1951. Casado, comercio. Apresentou certidão de casamento de maio de 1916 realizado em Bagé. Chegou em 1909. 380 SUMÁRIO Os “turcos” estão chegando: os imigrantes sírios e libaneses em Bagé 05 FAYAD, Hind nasc. 13/06/1913 Líbano fl. Nassif e Chafica Fayad Av. Farrapos, 31/2º andar modista. 1949 POA. Solteira, modista. Passaporte visado no Consulado brasileiro em Marselha em 06/1923. (ano de sua chegada). Registro de estrangeiro de Bagé/RS 1939. Naturalizada brasileira em 10/03/1965. 06 FERRES, Carim Sad Musi nasc. 09/03/1897 fl. M.F. e Masa M. Sffet Rua 24 de Maio. Rio Grande/RS 1940. Chegou em 1916. Casado, comerciante. Casou em Vila José Otávio 5º distrito de Bagé/RS 1939. 07 HABIB, Moussa Abi nasc. 1921 Roumié Líbano fl. Georges e Lina Abi H. Rua Hipólito Ribeiro, 74 Báge/RS 1957 Solteiro, Alfaiate. Bagé/RS. Chegou em 1935. 08 HABIB, Doumit Sakr Bon nasc. 04/01/1904 Líbano fl. Sakr B.H. Rua Salgado Filho, 798 Bagé/RS 1961. Casado, comerciante. Bagé/RS, 1961. Chegou em 1928. 09 HARB, Elias João nasc. 19/06/1896 Líbano fl. João e Sada H. Comercio Município de Bage/RS 1943. Rua Marcilio Dias, 1385 Casado, vendedor ambulante, 1946. Chegou em 1912. Aposentado 1965. Apresentou certidão de nascimento 29/05/1929 filho Ely de Santa Maria/RS. 10 IEFFETE, Salomão David nasc. 20/03/1894 Síria S. D. e Rafka José Rua 7 de setembro, 1079 Bagé/RS 1948. Chegou em 1911. Casado, comerciante. Certidão de casamento de 1921 Bagé/RS 1948. 11 KALIL, Felipe Kalil nasc. 01/05/1919 Uruguai fl. José Kalil e Badra K. Rua Gal. Netto, 26. Bagé/RS 1951. Chegou em 1936. Solteiro, comerciante. Bagé/RS 1951. 12 KALIL, Salim nasc. 10/1887 Líbano Kalil Moussi e Hetum K. Rua Gal. Netto, 56. Bagé/RS 1942. Chegou em 1911. Casado, comerciante Bagé/RS 1942. 13 KARAM, Nagem nasc. 08/01/1893 Líbano fl. José e Nura K. Rua Câncio Gomes, 601 Floresta POA 1954. Chegou em 1918. Viúvo, mecânico. Certidão de nascimento de filha, ocorrido em 08/01/1929 do 3º distrito de Bagé/RS. 1954. 14 MANSUR, Miguel Lutfe nasc. 18/10/1906 Síria fl. Jorge e Maria Lutfe M. Rua 3 de fevereiro. Bagé/RS 1950 chegou em 1926. Casado, comerciante. Certidão de estrangeiro tirada em Bagé/RS em 1939. 15 MANSUR, Rosala Jorge nasc. 02/01/1891 Síria fl. Jorge e Maria Lutfe M. Rua 7 de setembro, 778 R. 1953. Bagé/RS chegou em 1913. Casado, comerciante à rua Gal Sampaio, 176 Bagé/RS. 1953. Certidão de estrangeiro tirada em Bagé/RS em 1939. 381 SUMÁRIO Os “turcos” estão chegando: os imigrantes sírios e libaneses em Bagé 16 MELIK, Melinda Macul nasc. 03/08/1900 Síria Antônio e Maza M. Rua Tupi Silveira 1698. Bagé/RS 1961. Chegou em 1925. Casada, do lar. Bagé/RS 1961. 17 SAADI, Isaias masc. 07/04/1902 Síria fl. Antônio e Barbara S. Rua Mal. Floriano, 965 Bagé/RS 1965. Chegou em 1921. Bagé/RS 1965. Considerações finais Existem, no sul do Brasil, dois tipos de imigração: a rural, quando a família do imigrante tem acesso a um lote de terra para trabalhar e produzir; e a urbana, quando o estrangeiro se estabelece em uma cidade e lá exerce a função de operário, ou é empregado em uma empresa ou ganha a vida como vendedor ambulante. Historicamente, italianos, alemães e poloneses aderiram à primeira forma, enquanto portugueses, espanhóis, italianos (calabreses e sicilianos), gregos, armênios, judeus e sírios e libaneses preferiram se radicar nas cidades, especialmente nas maiores e mais prósperas. É claro que esta fórmula não é totalmente inflexível, podendo haver casos de alemães nas cidades e sírios e libaneses em estâncias, no entanto o mais comum é que ocorra o que narramos, pelo menos na primeira geração desses imigrantes. Uma investigação que ainda carece dedicação por parte dos pesquisadores da imigração urbana é a que localiza as diversas etnias em uma cidade, para entender a trajetória de cada uma dessas etnias comparando as suas estratégias e os investimentos que lançaram mão para se integrar e se adaptar, em termos de pauta matrimonial, sociabilidades, lideranças e escolha de seus nichos comerciais. Sabemos que, em Bagé, os sírios e libaneses organizaram-se em torno do comércio de têxteis e da venda de roupas prontas, e que muitos chegaram sem nenhum capital, repetindo a mesma fórmula que usaram em todo país, ou seja, os que chegaram com pouco ou nenhum capital se entregaram a mascateação, sempre por conta própria, em uma trajetória que incluía a cooperação com os patrícios já estabelecidos para o acesso às mercadorias, muita austeridade e economia e a posterior abertura de uma pequena loja em zona periférica. Depois disso, para aqueles que sobreviveram à concorrência e aos riscos impostos pelo comércio, uma eventual escalada a uma loja maior em um ponto comercial mais caro18. A 18. A trajetória está descrita no livro do ex-prefeito de Bagé, Luís Simão Kalil (2007) “Salim faz preço, freguês, Samuel também faz, senhor”. 382 SUMÁRIO Os “turcos” estão chegando: os imigrantes sírios e libaneses em Bagé trajetória desses imigrantes está quase sempre ligada ao foco no investimento da educação dos filhos, que eram estimulados a abraçar uma carreira liberal, quase sempre longe do comércio. Mas o que atraiu esses imigrantes a Bagé? Historiadores afirmam que a produção de charque entre os anos de 1890 e 1930, constituiu-se como imprescindível e como estrutura necessária para o desenvolvimento urbano e econômico da cidade19. Tal fato destacou a cidade entre muitas outras atraindo os imigrantes sírios20 que formaram uma cadeia migratória entre o Oriente Médio e Bagé, trazendo para a região parentes, vizinhos e conhecidos de cidades da Síria e do Líbano. Ali já contavam com uma rede de apoio para se estabelecer, empregar e aprender a língua. Evidenciou-se, assim, o modelo da chamada migração ‘em corrente’, trazendo pessoas do Oriente Médio, como é o caso da cidade síria de Homs, para a região fronteiriça do Rio Grande do Sul, especialmente Bagé, Evidentemente, como já destacamos, sírios e libaneses vindos do Uruguai, Argentina e do resto do Brasil também foram atraídos a fincar comércio na próspera Rainha da Fronteira entre 1890 e 1930. Atualmente, quando observamos a integração desses imigrantes e seus descendentes à vida gaúcha nas regiões de fronteira e metade sul do estado, especialmente em Pelotas, Rio Grande e Bagé, não devemos considerar que houve uma diminuição ou esvaziamento da influência árabe, nem do número de descendentes de sírios e libaneses nessas regiões por não serem mais tão evidentemente visíveis. Na verdade trata-se antes de uma integração e diluição completa desses imigrantes e seus descendentes na população de brasileiros e descendentes de outros imigrantes, por meio, por exemplo, de casamentos inter-raciais. Devemos também atentar para o fato de que os descendentes já estão na terceira, quarta e até mesmo quinta geração, completamente integrados à vida nacional, e que muitos desses descendentes foram perdendo seus sobrenomes árabes com o passar do tempo. Talvez por isso encontremos apenas alguns sobrenomes sírio-libaneses na política municipal de Bagé, com a participação de pelo menos oito 19. Segundo os estudos realizados por Taborda (1955), Boucinhas (1993), Lemieszek (1997) e Soares (2006), a produção saladeiril desencadeou uma série de mudanças estruturais extremamente importantes na configuração urbana, econômica, política e sócio cultural da cidade de Bagé, tornando-a uma das principais cidades do Estado entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX. (BICA, 2017, p.18) 20. Até 1926, quando do estabelecimento oficial do Líbano, separado da Síria e sob protetorado francês, sírios e libaneses eram tidos como Sírios, genericamente, termo que utilizo aqui. 383 SUMÁRIO Os “turcos” estão chegando: os imigrantes sírios e libaneses em Bagé vereadores21 desde a década de 1950 e um prefeito na década de 199022, eleito pelo povo de Bagé. É visível o aumento do número de sírios e libaneses na região de Bagé até 1930. Entretanto, a partir dessa década, verificamos uma diminuição da presença desses imigrantes em todo o sul do estado23, incluindo Pelotas e Rio Grande. Tal fato pode estar ligado ao declínio das atividades econômicas na região, especialmente depois da crise de 1929, à medida que se apresentavam mais oportunidades em outras zonas e cidades rio-grandenses, especialmente na capital e nas áreas coloniais do estado, mas também fora do território gaúcho, em cidades do Paraná e de São Paulo. Referências BASTANI, Tanus Jorge. A emigração libanesa para o Brasil. In: JORGE, Salomão. Álbum da colônia sírio-libanesa no Brasil. São Paulo: Sociedade Impressora Brasileira, 1946. BECKER, Klaus. Sírios e outros imigrantes árabes. In: ______. Enciclopédia riograndense. Canoas: Editora Regional, 1958. BICA, Alessandro Carvalho. Uma miragem sobre o processo de formação do município de Bagé no contexto riograndense e fronteiriço. Estudios Históricos CDHRPyB Año IX Julio Diciembre 2017 Nº 18. Uruguay. BOUCINHAS, Cláudio A. A história das charqueadas de Bagé (1891-1940) na literatura. Porto Alegre: PUCRS, 1993 (Dissertação de Mestrado em História). CALLAGE, Roque. No fogão gaúcho. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1929. CHEUICHE, Alcy Jabal Lubnàn: as aventuras de um mascate libanês. Porto Alegre: Sulina, 2003. FERSAN, Eliane. Syro-Lebanese Migration (1880-Present): “Push” and “Pull” Factors. Middle East Institute, Apr 19, 2010. Disponível em: http://www.mei.edu/ content/syro lebanese-migration-1880-present-%E2%80%9Cpush%E2%80%9D-and-%E2%80%9Cpull%E2%80%9D-factors. Acesso em: 15.11.2015. 21. Vereadores de origem sírio-libanesa em Bagé: Abbib Leffet (1956-59); Jorge Mansur (196063/68); Luiz Simão Kalil (1977-82); Antônio Fayad (1983-88/92/96/2000); Luiz Carlos Deibler (1989-92); Nasser Yussuf (1997-2000); Claudio Deibler (2001-04); Omar Soares Abdel Ghani (2013-16/atual). Este último talvez seja um representante de levas migratórias mais recentes. Fontes: http://cassioglopes.blogspot.com/2018/06/luis-simao-kalil.html e http://www.camvbage.rs.gov.br/ Acesso em 05.03.2021. 22. Trata-se de Luiz Simão Kalil, que foi prefeito municipal entre 1989 e 1992. 23. Não nos referimos aos palestinos chegados no fim da década de 1940 em diante, tão pouco aos libaneses que vieram nas décadas de 1970 em diante, quando muitos se estabeleceram no Chuí, mas que hoje já estão presentes em todo sul do Brasil. 384 SUMÁRIO Os “turcos” estão chegando: os imigrantes sírios e libaneses em Bagé FÍGOLI, Leonardo H. G. & VILELA, Elaine M. Migração internacional, multiculturalismo e identidade: sírios e libaneses em Minas Gerais.Trabalho apresentado no XIV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, Caxambu/MG, setembro de 2004. FLORES, Hilda. História da imigração alemã no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Est, 2004. GATTAZ, André. Periodizando a imigração libanesa para o Brasil, 1880-2000 IN: ________ & FERNANDEZ Vanessa (orgs.). Imigrações e imigrantes: reflexões e experiências. Salvador: Pontocom, 2015. GOLIN, Tau. O povo do pampa. Porto Alegre: Sulina, 1999. KALIL, Luiz. Salim faz preço, freguês, Samuel também faz, senhor. Porto Alegre: Evangraf, 2007. KNOWLTON, Clark S. Sírios e libaneses em São Paulo: ascensão social e mobilidade espacial. São Paulo: Anhembi, 1961. LAMARÃO, Sergio. A dimensão nacional do processo imigratório dos sírios e libaneses no Brasil: os patrícios no Nordeste. In: JARDIM Denise Fagundes e OLIVEIRA Marco Aurélio Machado de. (Org.). Os árabes e suas Américas. Corumbá: Editora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, 2007. LEMIESZEK, Claúdio de Leão. Bagé: relatos de sua história. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1997. LOVE, Joseph L. O regionalismo gaúcho e as origens da Revolução de 1930. São Paulo: Perspectiva, 1971. MANSUR, Maria Helena D. Os árabes IN: CHEUICHE, Alcy (org.) A saga dos povoadores... e outros contos de Bagé. Porto Alegre: Metrópole, 2005. MONASTERIO, Leonardo; ZELL, Davi. Estimativa de renda per capita no Rio Grande do Sul de 1872. Pelotas: Universidade Federal de Pelotas, 2004. Mimeografado. ODDONE, Juan. La formación del Uruguay moderno. Buenos Aires: EUDEBA, 1966. PIMENTEL, Valderez Cavalcante. A aculturação do imigrante sírio no Piauí. Teresina: Projeto Petrônio Portela, 1986. ROSA, Carla Rosane Silveira da. Primeiros imigrantes sírios e libaneses na cidade de Pelotas: final do século XIX e início do século XX. 2005. Pelotas: Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal de Pelotas, 2005 (Monografia - Especialização em História do Brasil). SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem ao Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Editor, 1987. SOARES, Fernanda Codevilla. Santa Thereza: um estudo sobre as charqueadas da Fronteira Brasil-Uruguai. Santa Maria: Universidade Federal de Santa Maria, 2006 (Dissertação de Mestrado em Integração Latino Americana). TABORDA, Attila. Bajé na História. Bagé: Tipografia Cetuba, 1959. 385 SUMÁRIO Os “turcos” estão chegando: os imigrantes sírios e libaneses em Bagé THIBAUT, Jaulin. Démographie et politique au Liban sous le Mandat, Histoire & Mesure . Paris: Edition Ehess, 2009. Disponível em: http://histoiremesure.revues. org/3895. Acesso em: 13.03.2021. Referências Iconográficas Foto 1: Sra. Shimona Karam. Foto original em preto&branco do acervo pessoal de Antônio Karam. Junho de 2015. Pelotas, RS. Foto 2: Família Mansur. Foto original em preto&branco do acervo pessoal de Maria Helena Deibler Mansur. Fevereiro de 2021. Bagé RS. Fontes Documentais MEMORIAL DO RIO GRANDE DO SUL, Annuário Estatístico do Rio Grande do Sul, 1924. Documento disponível no Arquivo do Memorial do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, pesquisa realizada em junho de 2014. Porto Alegre. ARQUIVO NACIONAL DO RIO DE JANEIRO. Arquivo referente ao Ministério da Justiça, Arquivo referente ao Ministério da Justiça, Série Fundo Polícia Federal. Prontuários de imigrantes. Rio de Janeiro, 1939-1969. Pesquisa realizada em maio de 2015. Rio de Janeiro Fontes Orais CHAMUN, Cirne. [Depoimento ao autor] Porto Alegre, 2014. KARAM, Antônio. [Depoimento ao autor]. Pelotas (RS), 2015. 386 SUMÁRIO 387 SUMÁRIO UMA REGIÃO EM ARMAS: A DELIMITAÇÃO DE UMA REGIÃO CONFORMADA PELA GUERRA DURANTE O SÉCULO XIX NO ESPAÇO PLATINO Gustavo Figueira Andrade 1 388 SUMÁRIO Uma região em armas: a delimitação de uma região conformada pela guerra durante o século XIX no espaço platino 1 Introdução Por muito tempo, a historiografia que tratou da Revolução Federalista (1891-1896)2 delimitou a compreensão sobre os eventos, influenciada por uma matriz de compreensão que rejeitava as influências do Prata, restringindo as narrativas aos limites políticos dos Estados nacionais. Isso trouxe uma série de limitações no que tange ao acesso às fontes e, por conseguinte, à própria compreensão da dimensão que determinados eventos históricos tiveram. Na historiografia rio-grandense, até a década de 1970, segundo Ieda Gutfreind (1988), pode-se falar na existência de uma “matriz platina”, a qual defendia a existência de ligações relevantes entre as sociedades rio-grandense e platina, em oposição à perspectiva de “matriz lusitana”, que a dissociava do espaço platino. A partir dessa perspectiva que compreende o Rio Grande do Sul como parte de um espaço platino, surgiu, nas últimas décadas do século XX e começo do XXI, um movimento do qual participam diversos autores, que contribuiu não só para um alargamento da compreensão do conceito de fronteira3, mas também possibilitou 1. Doutor em História pela Universidade Federal de Santa Maria. 2 Sobre uma nova cronologia acerca da Revolução Federalista ver: ANDRADE, Gustavo. Fronteira e territorialização: uma cartografia da Revolução Federalista (1891-1896) a partir das redes de relações de poder da família Silva Tavares na região platina. Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria, 2021. 3. Pablo Rodrigues Dobke. Caudilhismo, território e relações sociais de poder: o caso de Aparício Saraiva na região fronteiriça entre Brasil e Uruguai (1896-1904). (Dissertação de Mestrado em História, Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria, 2015), p. 97. De acordo com o autor, a “fronteira” se encontra no próprio sujeito, isto é, o ator, através de suas relações, tem a capacidade de ampliar sua malha territorial, mesmo que 389 SUMÁRIO Uma região em armas: a delimitação de uma região conformada pela guerra durante o século XIX no espaço platino uma maior compreensão das interações e contingências existentes nesse espaço. Além dessas perspectivas, permitiu a compreensão da existência de um espaço fronteiriço platino, definido por Maria Medianeira Padoin, como sendo um “espaço social e economicamente construído que adquiriu um perfil de região, com um sentido totalizador (mas não homogêneo) enquanto espaço de circulação de homens, de ideias e de mercadorias” (PADOIN, 1999, p.33). A existência dessa região platina é fortemente caracterizada pela presença de semelhanças nos aspectos geográficos, históricos, culturais, sociais, econômicos e políticos, que agiram no sentido de criar identidades, modus operandi e modus vivendi típicos, que se perpetuam no tempo e no espaço (KOSELLECK, 2014) e são compreensíveis a partir de uma análise que contemple a longa duração histórica. Nesse sentido, procuraremos defender a existência de uma região marcada pela guerra, durante o século XIX − na qual Bagé está inserida – bem como apresentar algumas de suas características. Tal compreensão surgiu a partir da análise das correspondências4 do general João Nunes da Silva Tavares5 (Joca Tavares), trocadas durante a Revolução Federalista, nas quais foi possível identificar a territorialização de um espaço platinado que formava uma região, através das suas redes de relações sociais. A região constituída, no período da Revolução, apresenta elementos comuns a outros existentes nas várias guerras ocorridas no Prata, principalmente nas esferas econômica, cultural, militar, política e social, que se tornam compreensíveis numa perspectiva que contempla a longa duração histórica. O desenvolvimento do conceito de região e a importância das redes de relações sociais para a territorialização e formação de espaços de poder não esteja pessoalmente no referido território, fazendo de suas relações sociais de poder o principal subsídio na conformação desta. 4. Pesquisa realizada no acervo documental da família Silva Tavares, Bagé, Rio Grade do Sul. Agradecemos a amizade, a gentileza e a cordialidade com que a Sr.ª Yara Maria Botelho Vieira, bisneta de José Bonifácio da Silva Tavares (irmão do general Joca Tavares), nos recebeu, concedendo permissão e constante apoio às nossas pesquisas. 5. ANDRADE, Gustavo Figueira. A trajetória política do General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares): família, comunicação e fronteira. Dissertação (Mestrado História) – Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2017. 390 SUMÁRIO Uma região em armas: a delimitação de uma região conformada pela guerra durante o século XIX no espaço platino As pesquisas que aproximam História e Geografia tiveram forte crescimento entre os anos de 1960 e 1970, conduzindo ao desenvolvimento de uma história regional. Considerando a região enquanto categoria analítica, tais estudos ganharam forte impulso com as pesquisas realizadas pela chamada Segunda Geração dos Annales, com base nos trabalhos desenvolvidos por Fernand Braudel, passando por Vidal de La Blache, Pierre Villar e Emmanuel Le Roy Ladurie. A partir da década de 1970, essas pesquisas passaram a se utilizar de um enfoque que privilegiasse a longa duração para análise de grupos sociais e para os aspectos econômicos, demográficos, ideológicos e mentais (CARDOSO, 1990, p.474), com grande ênfase em análises de dados quantitativos. O desenvolvimento dessas perspectivas decorre, de acordo com Janaina Amado (1990), do “esgotamento das grandes sínteses que predominaram durante muito tempo, macroabordagens que não foram capazes de apontar uma explicação plausível quando cotejadas com questões mais particularizadas” (p.11). A história regional passa, então, a despontar como uma resposta para superar os discursos hegemônicos, homogeneizantes e generalizantes, construídos pelas historiografias nacionais pensadas a partir do centro, em detrimento das diversas realidades existentes entre o local e o nacional (BANDIERI, 2001; MARCHIONI, 2015). Muito além de apenas aspectos econômicos, as regiões possuem uma temporalidade e estão investidas de aspectos simbólicos e representativos (HEREDIA, 1998), como também podem se sobrepor e mesmo coexistir no mesmo espaço geográfico (CARDOSO; BRIGNOLLI, 1982, p.83). Ao considerarmos que as regiões são imaginadas e construídas a partir da ação humana, de sua relação com o espaço no decorrer de diferentes contextos históricos, o homem e a cultura agem no sentido de modificar esse espaço, enquanto este também exerce influência sobre a sociedade, a cultura e a economia desses espaços, através de elementos meta-históricos (KOSELLECK, 2014; BANDIERI, 2001). Para Arturo Taracena Arriola (2008), a região pode ser compreendida como “um espaço e território com características próprias” que preexiste à organização do Estado Nacional e que pode ser desorganizada por este (p.188). De acordo com o autor, a região pode ser entendida, também, como um espaço que geograficamente se estende além das fronteiras políticas, vindo a abranger um espaço 391 SUMÁRIO Uma região em armas: a delimitação de uma região conformada pela guerra durante o século XIX no espaço platino regional e ser ela mesma entendida como uma zona de fronteira (TARACENA, 2008, p.193). Ainda segundo Taracena (2008), a região se constitui enquanto espaço que não está isolado por limites artificiais; ao contrário, está em contato por meio de diversos elementos, desde comerciais, políticos, econômicos, sociais ou mesmo culturais. Portanto, está constantemente “sujeita ao tempo e à capacidade de territorialização das elites regionais e dos grupos sociais dominantes, assim como a efeitos provocados pelos movimentos de população e por lógicas particulares nascidas de processos econômicos internos” (TARACENA, 2008, p.193; KOSELLECK, 2014). No que diz respeito ao território que compõe uma região, Taracena (2008) defende que não precisa ser homogêneo, pois sua formação depende muito mais de sua definição de “territorialidade” como elemento fundamental para sua demarcação, ou seja, seria a “forma de se apropriar dele – como operaram sobre ele seus habitantes e os atores sociais coletivos internos e externos” (TARACENA, 2008, p.189). Ao encontro dessas afirmações, Mariana Thompson Flores (2012) demonstra em sua tese a atuação dos fronteiriços ao se apropriar do espaço de fronteira ou mesmo de uma região, manejando-a6, vindo a lhe atribuir sentido de acordo com seus interesses durante o período de conflito ou devido a necessidades políticas e econômicas. Uma das formas de identificar a territorialização de um espaço e delimitar a existência de uma região passa pela compreensão das relações de poder dos indivíduos e, nesse sentido, as correspondências são fontes privilegiadas para essa análise. O retorno do interesse pelos indivíduos, no âmbito históriapolítica, despertou a vontade de compreender o “comportamento social dos membros de determinado segmento social, no caso as elites, as estratégias pessoais, seu contexto sociorrelacional e familiar” (BERTRAND, 1999, p. 112). Nesse sentido, as correspondências constituem importantes fontes capazes de expressar a complexidade dos processos políticos, permitindo um olhar não só sobre as 6. Ao desenvolver o conceito de “fronteira manejada”, Mariana Thompson Flores (2012, p.68) passa a pensar “fronteira” a partir das experiências pessoais e grupais dos habitantes desse espaço, constituída como espaço dinâmico, podendo ter diversos significados para diferentes agentes, que a partir de suas condições sociais, construíam estratégias para manejar com ela no seu cotidiano. Defende, ainda, que a fronteira é construída por meio das ações e decisões dos indivíduos no dia a dia, nem sempre pautadas por uma racionalidade (THOMPSON FLORES, 2012, p. 68). Nesse sentido, a fronteira manejada também seria um espaço que possibilitaria aos indivíduos a utilização de recursos identitários, dependendo do lado da fronteira em que estivessem, para que dessa forma se beneficiassem das distintas soberanias (THOMPSON FLORES, 2012, p. 117). 392 SUMÁRIO Uma região em armas: a delimitação de uma região conformada pela guerra durante o século XIX no espaço platino estratégias e as relações de poder, mas também sobre a mentalidade e a cultura política de uma época. É através das redes de relações sociais que os indivíduos agem no sentido de criar, no tempo e no espaço, “um todo dialético articulado e profundamente entrelaçados, onde o homem converte o espaço natural em espaço social” (BANDIERI, 2001, p.99). Para Eugenia Molina (2011), as redes criam laços pelos quais circularão bens e serviços, os quais podem ser tanto materiais quanto imateriais. Tais laços tornam-se mais fortes ao longo do tempo, conferindo aos indivíduos pertencentes a uma rede, acesso a “vinculações diversas, horizontais, verticais e transversais que, por um lado, dão-lhe uma determinada margem de ação e recursos para suas atividades” (MOLINA, 2011, p.20). Por sua vez, Jacques Revel (1995) sustenta que, por meio do estudo de redes, torna-se possível compreender as “estratégias sociais desenvolvidas pelos diferentes atores em função de sua posição e de seus recursos respectivos, individuais, familiares, de grupos, etc. [...]” (p.130). Destaca Molina (2011), ainda, que o pertencimento a diversos espaços de sociabilidade ajuda a conformar redes de relações que, enquanto práticas associativas, “geram solidariedades e cooperação entre as elites, importantes para servir de base para suas atividades políticas e públicas” (p. 31), além de conferir-lhes determinada identidade. Tais elementos confluem no sentido de permitir a compreensão da amplitude que pode ter a influência dos indivíduos e dos mecanismos que permitem não só estabelecer, mas também fortalecer suas relações de poder sobre determinada região que ultrapassa os limites políticos, principalmente porque os “grupos humanos não respeitam limites ou fronteiras que pretendam impor os aparatos administrativos dos Estados” (RECKZIEGEL, 2016, p.144). As regiões construídas a partir da ação humana estão sempre em movimento, “modificam-se de acordo com a época e as finalidades de seu estudo” (VILLAR, 1976, p.36-37). Dessa forma, são as preocupações de compreender determinados eventos, a partir do presente, que levam o historiador a identificar e delimitar espacialmente um espaço geográfico e atribuir a ele a qualidade de ser uma região, tornando-a uma possibilidade a ser demonstrada (VAN YOUNG, 1987) 393 SUMÁRIO Uma região em armas: a delimitação de uma região conformada pela guerra durante o século XIX no espaço platino Uma região pensada a partir da guerra A partir das pesquisas realizadas nas correspondências pessoais do General João Nunes da Silva Tavares7 (Joca Tavares), pudemos identificar uma série de localidades das quais provinham cartas e telegramas trocados entre os chefes federalistas e seus colaboradores, num espaço que se estendia pelo Rio Grande do Sul, por diversos Departamentos da República Oriental do Uruguai e por Províncias da República Argentina, no período que abrange a Revolução Federalista. Essa delimitação das localidades e dos trajetos que as correspondências percorriam permitiu que realizássemos a delimitação de um espaço territorializado pelo General Tavares e por outras lideranças federalistas. Com isso, foi possível cartografar as rotas utilizadas para suprir as forças do Exército Libertador federalista, demarcando não só as principais rotas de suprimento de munições, armamentos, cavalos, roupas, mas também os principais pontos de reunião de tropas e de colaboradores da Revolução, de onde partiam para realizar incursões sobre o Rio Grande do Sul. Com relação a essas localidades, foi possível identificar, nas correspondências enviadas do Uruguai, que provinham de lugares como Rivera, San Eugênio (del Cuareim − atualmente cidade de Artigas), Tacuarembó, Melo, Aceguá, Salto, Paysandú, Tranqueras, Laureles, Minas de Corrales e Montevidéu. Tais correspondências eram remetidas por chefes federalistas que atuavam nessas localidades, muitos imigrados fugidos das perseguições de Júlio de Castilhos, que se utilizavam do território uruguaio para reorganizar e suprir as forças (ANDRADE, 2017). Já as correspondências originadas da Argentina eram enviadas de localidades como Buenos Aires, Concórdia e Alvear, por alguns dos líderes federalistas que atuavam nesses pontos, e reportavam os acontecimentos para serem repassados ao General Tavares. A partir dessa amplitude de localidades identificadas, evidencia-se a existência de um espaço territorializado pelas relações de poder do General Joca Tavares, durante o conflito que conformou uma região platina, conforme a figura 1. Nela, são apresentados os trajetos utilizados pelos federalistas para suprir suas forças durante 7. Gustavo Figueira Andrade, 2017. “A trajetória política do General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares): família, comunicação e fronteira” (Dissertação de Mestrado em História, Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria). 394 SUMÁRIO Uma região em armas: a delimitação de uma região conformada pela guerra durante o século XIX no espaço platino a Revolução Federalista de (1891-1896), envolvendo localidades do Brasil, Uruguai e Argentina. Figura 1: Trajetos utilizados pelos federalistas para suprir suas forças durante a Revolução Federalista, envolvendo localidades do Brasil, Uruguai e Argentina. Fonte: ANDRADE, Gustavo Figueira. A trajetória política do General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares): família, comunicação e fronteira. Dissertação (Mestrado em História), Santa Maria: UFSM, 2017, p.151. Ao analisarmos essa região, a partir de suas relações de poder durante a Revolução Federalista, chamou-nos a atenção o fato de que as rotas utilizadas, os trajetos das forças militares, as estratégias empregadas, indissociáveis à fronteira, e a expertise em manejálas durante confrontos, eram coincidentes com os roteiros dos conflitos anteriores, principalmente, os acontecidos no decorrer do século XIX , que envolveram as elites políticas e militares sul-riograndenses, conforme procuraremos apresentar a seguir. Em 1811, ocorreu a chamada expedição “pacificadora” da Banda Oriental, ordenada por Dom João VI, e comandada pelo capitãogeneral da Capitania-Geral do Rio Grande de São Pedro, Dom Diogo de Sousa, diante do pedido de socorro emitido por Dom Francisco Javier Elío, representante das forças fieis à Espanha, sitiadas em Montevidéu, cujo mapa das operações pode ser observado na figura 2. Este sítio foi estabelecido pelas forças da Junta de Buenos Aires, 395 SUMÁRIO Uma região em armas: a delimitação de uma região conformada pela guerra durante o século XIX no espaço platino comandadas por Don Jose Rondeau e de Jose Gervasio Artigas, os quais procuravam a anexação da Banda Oriental às Províncias Unidas do Rio da Prata (WIEDERSPAHN, 1979; ISLAS, 2009). Figura 2 – Mapa das operações da campanha de 1811. Fonte – WIEDERSPAHN, Henrique Oscar. Bento Gonçalves e as guerras de Artigas. Caxias do Sul, UCS, 1979. Em outro momento, tanto durante as campanhas de intervenção na Banda Oriental, de 1816 a 1821, que terminaram com a anexação dessa província ao Reino Unido do Brasil, Portugal e Algarves, quanto posteriormente, durante a Guerra da Cisplatina ou Guerra del Brasil (1825-1828), estavam presentes fortes compreensões sobre um espaço regional ligado por interesses em comum e por um entremeado de redes de relações. A convivência e o espaço de experiência (KOSELLECK, 2006), nessa região, em estado de constante belicosidade, de cujos conflitos haviam participado a maioria dos líderes políticos e militares sul-rio-grandenses que atuariam política e militarmente, durante boa parte do século XIX, criavam vínculos e estratégias sociais e políticas eivados de interesses econômicos. Tais elementos teriam confluído, também, para a criação de outros entendimentos de regiões em cena, como o Sistema de Pueblos Libres, pelo qual qual José Artigas estabeleceu a Liga Federal, criando um projeto de configuração nacional alternativo, tanto ao do Rio de Janeiro, quanto ao de Buenos Aires, projeto este que teria sobrevivido 396 SUMÁRIO Uma região em armas: a delimitação de uma região conformada pela guerra durante o século XIX no espaço platino na longa duração histórica, sendo relembrado em diversos momentos de crise e revoluções. Na Revolução Farroupilha de 1835-1845, período em que a província do Rio Grande do Sul havia levantado em armas contra o Império do Brasil, os líderes da Farroupilha contavam com uma ampla e densa rede de relações no Prata, sem a qual a Revolução não teria subsistido por tanto tempo (LEITMAN, 1979; ETCHECHURY BARRERA, 2013; GUAZZELLI, 2013). Nesse conflito, vários dos líderes que haviam participado das campanhas militares anteriores, no Prata, chegaram a aventar a possibilidade de formação de um país independente que unisse o Rio Grande do Sul ao Uruguai e às províncias argentinas de Entre Rios e Corrientes (GUAZZELLI, 2013; ETCHECHURY BARRERA, 2013). Parte das movimentações militares e dos conflitos, durante a Revolução Farroupilha de 1835-1845, pode ser observado na figura 3. Figura 3 - Movimentações das forças farroupilhas e imperiais durante a Revolução Farroupilha de 1835-1845 Fonte: https://www.sohistoria.com.br/ef2/revolucaofarroupilha/ No período que compreende a chamada Guerra Grande (1839 – 1851), ocorrida entre os partidos Blanco e Colorado, ambos da República do Uruguai, os interesses dos estancieiros rio-grandenses foram prejudicados, provocando, assim, a intervenção do governo brasileiro, o que desencadeou a Guerra de 1851 contra Manuel Oribe e o argentino Juan Manuel de Rosas. Após o conflito, o número de 397 SUMÁRIO Uma região em armas: a delimitação de uma região conformada pela guerra durante o século XIX no espaço platino propriedades brasileiras aumentou, bem como os privilégios aos senhores da fronteira, devido às imposições feitas ao Uruguai no Tratado de Paz que deu fim a esta contenda. No entanto, mesmo com o término da intervenção brasileira contra Oribe, as querelas uruguaias não só prosseguiam, como também conflitavam com os interesses dos estancieiros brasileiros e com a política externa do Império de evitar conflitos, nesse período. Em 1865, novos desentendimentos ocorreram, envolvendo os interesses dos estancieiros brasileiros, residentes no Uruguai, sob a alegação daquele governo de que teriam vencido os privilégios que lhes tinham sido concedidos pelo tratado, após o conflito de 1851. A esse fator, somou-se a tentativa do governo oriental, sob o comando de Atanásio Aguirre, de estabelecer um novo equilíbrio de forças no Prata. Aliando-se ao Paraguai e fazendo frente aos interesses brasileiros e argentinos, veio de encontro a uma política externa mais agressiva do Império do Brasil, a partir de 1850 (CERVO; BUENO, 2015). As ações militares que se seguiram, neste período, as movimentações pelo espaço platino e, novamente, a utilização de espaços semelhantes aos conflitos anteriores podem ser observadas no mapa da figura 4: Figura 4: Conflitos na Bacia do Prata (1850-1867) Fonte: https://atlas.fgv.br/marcos/guerra-do-paraguai/mapas/conflitos-na-baciado-prata-1850-1867 Acessado em: 25/11/2018. Observa-se, no mapa acima, a presença dessas similaridades nas ações militares que se utilizam das mesmas localidades e 398 SUMÁRIO Uma região em armas: a delimitação de uma região conformada pela guerra durante o século XIX no espaço platino situações diversas. Tais semelhanças podem ser decorrentes de três elementos: da qualidade do terreno utilizado, com poucos cursos de água, o que facilitaria a movimentação das tropas; da presença de redes de relações e de ligações criadas ao longo dos processos históricos, nesses locais e; por último, das práticas econômicas e das rotas comerciais pré-existentes, já conhecidas. A territorialização desse espaço em um estado de guerra quase permanente, durante o século XIX, teria aproximado as populações, estabelecendo relevantes vínculos políticos, sociais, culturais e econômicos, constantemente ativados, atuando na conformação de uma região. Tais vínculos parecem estar sempre sendo reativados nos momentos de crise e revoluções, trazendo à baila as ideias federalistas e separatistas que apresentam alguma semelhança com os projetos separatistas de Artigas e de Rivera. Essas práticas buscavam garantir a possibilidade de negociação em pé de igualdade frente aos poderes centrais e à defesa dos interesses das elites políticas fronteiriças. Por outro lado, evidenciam a longa duração das ideias no Prata, pois a opção por uma aliança com Uruguai e Corrientes também estava presente na forma de pensar dos líderes políticos e militares sulrio-grandenses, durante a Revolução Federalista (ANDRADE, 2017; COSTA, 2006; RECKZIEGEL, 1999). No final do século XIX, ainda que por motivos bem distintos, a eclosão da Revolução Federalista de (1891-1896), no Rio Grande do Sul, coincidiu com a existência, no mesmo período, das Revoluções Radicais na Argentina8. Nesse sentido, existem indícios de ampla colaboração entre brasileiros e correntinos, como foi possível compreender com base nos trabalhos de Marcus Vinícius Costa (2006) e Gustavo Andrade (2017). Em relação ao ponto de vista correntino, María del Mar Solís Carnicer (2005) destaca que, durante os anos de 1893 e 1895, existiram diversos conflitos com revolucionários, muitos deles ocorridos nas cidades fronteiriças com o Brasil, como Santo Tomé, Paso de los Libres e Alvear. Nessas cidades, a autora destaca o emprego de forças recrutadas no Brasil e, além disso, a utilização da fronteira para refúgio, no Brasil, quando necessário. Isso vem evidenciar o manejo desse espaço fronteiriço, à semelhança do que já ocorria com o da fronteira com o Uruguai, fato que merece destaque, principalmente porque, para uma força cruzar a fronteira com homens em armas, é 8. ALONSO, Paula. “La Unión Cívica Radical. Fundación, oposición y triunfo (1890-1916). In: LOBATO, M. (Dir.) Nueva Historia Argentina. Buenos Aires, Sudamericana, 2000, p. 208-260. 399 SUMÁRIO Uma região em armas: a delimitação de uma região conformada pela guerra durante o século XIX no espaço platino preciso conhecer o espaço para dele tirar melhor proveito, esquivarse dos obstáculos e receber apoio das forças militares do país vizinho. Em ambos os casos, é preciso que alguém os esteja apoiando e lhes garanta refúgio, o que serve para reforçar a ideia da existência de amplas redes de relações supranacionais que agiram no sentido de territorializar um espaço. No sentido da busca por caracterizar a existência de elementos comuns, durante os conflitos, nesse espaço platino, no século XIX, sob a perspectiva da longa duração da guerra, procuraremos apresentar, a seguir, algumas características que contribuíram para a formação de uma região da guerra. A convivência e a circulação de indivíduos, nesse espaço platino, criou espaços de sociabilidades e favoreceu o estabelecimento de relações sociais para além dos territórios nacionais, tais como o convívio em decorrência da participação em longos períodos de guerras (cabe destacar que era uma sociedade em constante estado de guerra, durante o século XIX, com poucos hiatos de paz, portanto militarizada), no âmbito militar, a prática da pecuária e o pertencimento a instituições como a Maçonaria. A existência dessas sociabilidades aponta o complexo mundo das relações e estratégias sociais e político/militares entre os caudilhos dessa região platina, denominados senhores da guerra. Evidencia, ainda, a presença de intrincadas solidariedades e lealdades entre as lideranças rio-grandenses, orientais e correntinas, muitas delas, já velhas conhecidas das campanhas da Invasão da Banda Oriental de 1811, 1817, da Guerra da Cisplatina (1825-1828), da Revolução Farroupilha (1835-1845), da Guerra contra Oribe e Rosas, em 1851, e posteriormente, da Guerra do Paraguai. Nesse sentido, a partir da análise das correspondências do General Joca Tavares, durante a Revolução Federalista, constatamos que muitos de seus companheiros de armas haviam combatido juntos, durante a Guerra do Paraguai, o que leva a crer ser plausível considerar a guerra como um dos principais espaços de sociabilidades, capaz de criar solidariedades na sociedade oitocentista sul-rio-grandense enquanto parte de um universo de referências culturais e sociais comuns aos indivíduos que atuam para além das fronteiras nacionais9. 9. Alejandro Grimson, 2003. La Nación en sus límites: contrabandistas y exilados en la frontera Argentina-Brasil (Barcelona: Editorial Gedisa). Nesta obra o autor destaca que até o final do séc. XIX, os estados nacionais e seus limites ainda estavam em processo de consolidação. Neste sentido, as relações desenvolvidas nestes instáveis limites nacionais poderiam ser chamadas “transfronteiriças”. 400 SUMÁRIO Uma região em armas: a delimitação de uma região conformada pela guerra durante o século XIX no espaço platino Dentre os aspectos destes referenciais culturais e sociais comuns a um sujeito fronteiriço, a maneira de fazer a guerra é uma importante característica que apresenta elementos que se tornaram semelhantes nesse espaço. Tal maneira de guerrear teria se constituído pela apropriação de táticas indígenas de confronto preexistentes à formação dos Estados platinos, acostumadas a se utilizarem do espaço, desconsiderando limites dos Estados. Táticas essas que teriam sido mescladas às maneiras de combater trazidas por portugueses e espanhóis, criando uma maneira característica de se fazer a guerra. Esta maneira de lutar, que teria sido empregada desde o período colonial, utilizava-se das soberanias dos territórios pertencentes a Portugal e Espanha, ainda em demarcação, principalmente por indivíduos que habitavam esse espaço, beneficiando-se dessa condição para obter vantagens de terras e ganhos comerciais e militares. Num período posterior, esse modo de lutar continuaria sendo aplicado e adaptado a novas realidades existentes no contexto das independências e, posteriormente, no processo de consolidação dos Estados nacionais, influenciando nas formas de pensar e os utilizar os “limites”, quanto na maneira de manejá-los para a guerra. No Rio Grande do Sul, esta tática de guerra é conhecida como “Guerra à Gaúcha”, caracterizada por movimentos rápidos, geralmente a cavalo, e conduzida por indivíduos que eram exímios conhecedores do terreno onde atuavam. Nesse tipo de guerra, forças em menor número enfrentam forças mais numerosas e melhor organizadas. No entanto, evitam oferecer combate direto, ou seja, procuram extenuar o moral, os recursos do inimigo ou sabotar seus recursos estratégicos. Na América do Sul, essa forma de guerrear também era empregada pelas Montoneras e teria sido uma maneira de fazer guerra, tanto antes do surgimento dos exércitos nacionais quanto depois destes (RABINOVICH, 2018). Pode ser entendida, ainda, de acordo com Valentina Ayrolo, como sendo “diversas formas de ação militar, também de base popular, desde tumultos armados, a exércitos não profissionalizados e mal organizados, cuja ação poderia prolongar-se por alguns meses” (AYROLO, 2012, p. 1). Esse manejo das jurisdições e das soberanias das fronteiras, de acordo com as necessidades políticas e econômicas das populações que viviam nesses espaços fronteiriços ainda em demarcação, pode ser destacado como uma das características da região da guerra, 401 SUMÁRIO Uma região em armas: a delimitação de uma região conformada pela guerra durante o século XIX no espaço platino apontando para a recorrência dessa prática em contextos distintos, durante o século XIX. Tal prática de manejar fronteiras não constitui uma especificidade apenas dos rio-grandenses. É também largamente utilizada por uruguaios e argentinos como, por exemplo, no caso dos líderes Fructuoso Rivera e Juan Antonio Lavalleja, os quais mantinham redes de relações pessoais com líderes fronteiriços do Rio Grande do Sul, Entre Rios e Corrientes, no período da Revolução Farroupilha. A historiografia argentina aponta para práticas semelhantes como, por exemplo, a fuga de diversos intelectuais e políticos argentinos para Montevidéu, durante o governo de Juan Manuel de Rosas (SHUMWAY, 1993, p.131) e para a atuação de políticos, como a do correntino Ángel Blanco, durante o período da Revolução de 1893, na Argentina (SOLÍS CARNICER, 2003). A partir do ponto de vista social e econômico, essa região conta com uma forte ligação entre brasileiros residentes e/ou com propriedades rurais no Uruguai e na Argentina, bem como entre uruguaios residentes e com propriedades no Brasil, e argentinos residentes no Uruguai e no Brasil. A circulação das pessoas nesse espaço também pode ser interligada a questões econômicas e comerciais, muito relacionadas a um mundo da pecuária10. Nesse sentido, o comércio de fronteira lícito e ilícito/ contrabando desempenhou importante função na economia platina e na interligação dessa região, não só criando espaços de sociabilidade, como também propiciando espaços de experiência dos indivíduos no manejo do espaço geográfico. Cabe ressaltar que a prática do contrabando foi uma prática amplamente utilizada pelos fronteiriços, a partir do século XVIII, segundo afirma Tiago Gil (2007), envolvendo desde muares, bovinos e equinos, até o comércio de importação de diversos produtos. Esta prática perdurou pelo século XIX, conforme afirma Mariana Thompson Flores (2012), demonstrando a complexidade, as diversas formas pelas quais era realizada e a amplitude que assumia a articulação em torno dessas práticas comerciais que ligavam o Rio Grande do Sul ao espaço platino, onde circulavam produtos vindos dos portos de Montevidéu e de Buenos Aires, e do Brasil em direção ao Uruguai e à Argentina. 10. Ao nos referirmos a um mundo da Pecuária, fazemos alusão à existência de diversos aspectos históricos, sociais, culturais e políticos que envolvem essa prática econômica, durante o século XIX. Podem variar desde o estabelecimento de matrimônios, compadrios, até alianças políticas entre famílias da elite, muito associadas a necessidades estratégicas e de poder de uma sociedade agropastoril fronteiriça. 402 SUMÁRIO Uma região em armas: a delimitação de uma região conformada pela guerra durante o século XIX no espaço platino A partir dos espaços de sociabilidade criados pela articulação de interesses econômicos da guerra, destacamos o pertencimento a sociedades secretas, como a Maçonaria, enquanto elemento capaz de favorecer a atuação dos indivíduos nesse espaço, além das fronteiras, o que lhes garantiria acesso a recursos materiais e imateriais que seriam estratégicos para sua atuação política e militar. A Ordem Maçônica11 pode ser entendida como importante espaço de sociabilidade que favorecia o trânsito dos indivíduos por espaços internacionais, no espaço platino, assim como poderia ter atuado, também, no sentido de facilitar o acesso a determinados grupos sociais ou círculos de poder. Como importante espaço de atuação política, a Maçonaria facilitava o estabelecimento de rede de relações e tinha abrangência internacional, o que propiciava o contato com pessoas e ideias de diversas origens, principalmente numa região de fronteira como é o Rio Grande do Sul (PADOIN, 1999). O vai e vem devido aos negócios comerciais, pecuários, e às participações em guerras, levava os indivíduos a circular por territórios diversos e, não raro, pode lhes ter suscitado a necessidade de estabelecer relações pautadas por confiança mútua e lealdade que lhes proporcionassem confiabilidades fora de suas localidades e estabelecessem vínculos com pessoas das localidades que visitavam, além de poder realizar negócios. Como exemplo, citamos a atuação de Antonio Lavalleja, no sentido de conseguir apoio para seus objetivos políticos através da Maçonaria, conforme destacou Cesar Guazzelli, ao apresentar documento de um representante do governo imperial brasileiro, em Montevidéu, Manoel d’Almeida Vasconcellos, o qual teria afirmado, em carta datada de 25 de março de 1833, endereçada ao governo brasileiro, “a afiliação de Lavalleja à Maçonaria, que ainda em 1832, entrara ‘em uma sociedade secreta do Rio Grande [do Sul], com o fim de adquirir partidaristas’” (GUAZZELLI, 2013, p.65). A busca por fazer propaganda e procurar apoio nas lojas maçônicas era comum, uma vez que a Maçonaria era importante espaço de atuação política do período, tanto que sua existência, em diversas localidades, “trouxe e difundiu informações políticas, culturais e ideológicas correntes no mundo, criando um espaço para o debate dessas questões” (COLUSSI, 1998, p. 260). Um exemplo dessa atuação regional em busca de apoio e divulgação de ideias, a partir da Maçonaria, também foi citado por Cesar Guazzelli (2013), ao afirmar que Bento Gonçalves era amigo 11. BLANC, Claudio. Dicionário Completo de Maçonaria. Editora Online, 2016. COLUSSI, E. L. A Maçonaria gaúcha no século XIX. 3. ed. Passo Fundo: UPF, 2003. 403 SUMÁRIO Uma região em armas: a delimitação de uma região conformada pela guerra durante o século XIX no espaço platino e compadre de Antonio Lavalleja e já havia lhe oferecido armas, empréstimos e apoio militar desde 1832 (GUAZZELLI, 2013, p.64), ou seja, três anos antes do período da eclosão da Revolução Farroupilha de 1835. No entanto, a proximidade entre essas lideranças estava além dos laços de amizade e compadrio, principalmente pelo fato de ambos pertencerem à Maçonaria e serem liberais, assim como outros líderes farroupilhas. Num segundo exemplo, alguns anos mais tarde, durante a Revolução Federalista de Federalista (1891-1896), semelhante acordo parece ter sido firmado entre o líder político federalista Gaspar Silveira Martins e Leandro Alem, um dos líderes da União Cívica Radical, na Argentina. Este teria oferecido, no período entre 1893 e 1894, “armamentos e munição aos pontos da fronteira com o Brasil em troca de apoio dos federalistas brasileiros ao movimento revolucionário” (RECKZIEGEL, 1999, p.114; COSTA, 2006). Sobre o encontro que possa ter possibilitado o acordo entre essas duas lideranças, Marcos Vinícius Costa ressalta a possibilidade de que tenha ocorrido em 1892, em Montevidéu, período em que os dois chefes políticos estavam exilados na cidade, ou mesmo em 1894, quando Silveira Martins esteve exilado em Buenos Aires (COSTA, 2006, p176). Importante asseverar que também nesse episódio a Maçonaria pode ter estado presente, pois tanto Silveira Martins (ROSSATO, 2014) quanto Alem12 haviam sido Grão-Mestres da Maçonaria em seus países, condição essa que lhes permitiria não só circular e atuar furtivamente em ambientes de grande prestígio, como também obter apoio e proteção. Por outro lado, a Maçonaria, além dessa estrutura que favoreceria a movimentação de indivíduos, também poderia funcionar como importante instrumento de circulação de ideias, principalmente, em torno do federalismo13, aproximando e articulando indivíduos nessa região conformada pela guerra. Nesse sentido, Maria Medianeira Padoin (1999) destaca não só a importância dessa instituição e a complexidade que envolveu a circulação de ideias no Prata, como 12. Alem e Perón. Gran Lojia de la Argentina le Libres y Aceptos Masones, http://www.masoneria-argentina.org.ar/novedades-y-eventos/87-alem-y-peron (Consultada el 11 de Abril de 2019). 13. Sobre federalismos ver: José Murilo Carvalho. Federalismo y centralización em el Império Brasileño: história y argumento, In: CARMAGNANI, Marcelo. Federalismos latino-americanos: México, Brasil, Argentina, 1ª Ed. Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 51-80. CHIARAMONTE José Carlos. El federalismo argentino em la primera mitad del siglo XIX. In: Federalismos latino-americanos: México, Brasil, Argentina, coord. Marcelo Carmagnani, 1ª Ed. Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 81-132. CORTINA Manuel Suárez (Coordinador). Federalismos: Europa del sur y América Latina em perspectiva histórica. Grananda, España: Editora Comares, 2016. 404 SUMÁRIO Uma região em armas: a delimitação de uma região conformada pela guerra durante o século XIX no espaço platino também sua importância fulcral para o entendimento da Revolução Farroupilha e de suas lideranças. Evidentemente, essa prática não era apenas rio-grandense; ela circulava por todo o espaço platino e teve forte apelo e conotações distintas, tanto nas Repúblicas do Uruguai e da Argentina, quanto no Império do Brasil, durante o século XIX (CARVALHO, 1996; CHIARAMONTE, 1996). Os federalismos também podem ser entendidos como característica presente na cultura política e nas elites políticas, na longa duração histórica platina, desde ideias em torno do Protetorado de Artigas até a Revolução Federalista (18911896), no Brasil. O fenômeno social do caudilhismo, ainda que não seja exclusivo do Prata, constitui-se importante variável para a compreensão das relações sociais, durante o século XIX, neste espaço que abrange Brasil, Uruguai e Argentina, Estados que seriam abrangidos pela região conformada pela guerra. Ana Frega (1998) salienta que a compreensão acerca da origem dos caudilhos estaria associada ao ponto de vista espanhol, segundo o qual, o caudilho seria “guia e condutor de homens em tempos de guerra” (FREGA, 1998, p.105), até a busca pela ordem nas províncias e reivindicações por autonomias locais (CHIARAMONTE, 1991). Foram, os caudilhos, importantes atores no processo de formação das nações, durante o século XIX, e seu poder foi, em grande parte, obliterado a partir da consolidação dos Estados Nacionais, na década de 1880. Os caudilhos também haviam se destacado na defesa das autonomias locais (CHIARAMONTE, 2012), posicionando-se em oposição aos anseios centralistas das antigas capitais vice-reinais e defendendo ideais de federalismo. Valentina Ayrolo (2012) enfatiza a atuação dos caudilhos, no âmbito de suas relações de poder, como importantes articuladores de redes de relações e mediadores. Essas informações trazidas pelas autoras vêm ao encontro de nossa hipótese, principalmente pelo fato de que as articulações políticas e militares dos caudilhos, na condução da guerra, não se restringiam às fronteiras nacionais. Ao contrário, abrangiam espaços supranacionais, interligavam-se a outros caudilhos e ativavam suas redes de solidariedade de acordo com seus interesses quando necessário. 405 SUMÁRIO Uma região em armas: a delimitação de uma região conformada pela guerra durante o século XIX no espaço platino Considerações finais Através da apresentação de elementos que evidenciariam a existência de uma região da guerra, procuramos apresentar diversos aspectos que permitem pensá-la a partir de uma perspectiva de longa duração, vindo ao encontro dos estudos desenvolvidos no âmbito da história regional. Essa região possui elementos que possibilitam estabelecer uma identidade típica, que agrega e está relacionada com aspectos econômicos, sociais e culturais que podem sobrepor, interseccionar outras regiões, coexistindo e se apropriando de formas distintas pelos múltiplos atores e interesses existentes. Trata-se de um espaço onde os conflitos, as redes de relações dos indivíduos, práticas econômicas e fenômenos sociais permitem perceber mais aspectos comuns do que antagônicos, nas comunidades fronteiriças, possibilitando compreender a conformação dos processos históricos e das identidades regionais. No que se refere à atuação e à vivência dos indivíduos na região platina, as correspondências do general Tavares, durante a Revolução Federalista, permitiram identificar os vínculos regionais e a importância das relações sociais para territorialização de um espaço que identificamos comum a diversas campanhas militares. Da mesma forma, ainda a partir da Revolução Federalista, mostramos a recorrência de ideias e projetos defendidos em momentos de crise, no decorrer do século XIX, e o quanto os espaços de rotas de comércio e contrabando, convertidos em rotas de suprimento regionais, eram utilizados durante os períodos de guerra. Outros aspectos também foram relevantes para caracterizar essa região platina. Assim, evidenciamos os conflitos como espaços de sociabilidades guerreiras na sociedade oitocentista, capazes de preservar uma forma de pensar o espaço e a guerra que antecedem os Estados Nacionais no Prata, que perdura nas ações dos indivíduos para além dos limites políticos delimitados pelos projetos e interesses dos Estados. Ressaltamos, ainda, a existência de uma matriz produtiva semelhante, voltada para a pecuária, além do comércio, do contrabando e das experiências dos indivíduos nesse espaço, sem deixar de considerar o importante fato do pertencimento a determinadas instituições como, por exemplo, a Maçonaria. Esses elementos criaram espaços de sociabilidades, contribuíram para a 406 SUMÁRIO Uma região em armas: a delimitação de uma região conformada pela guerra durante o século XIX no espaço platino circulação de valores, ideias e indivíduos, interligaram populações desse espaço platino, confluíram para o estabelecimento de vínculos, solidariedades e de identidade típica de um indivíduo platino. Tal mentalidade compreende uma forma peculiar de os indivíduos pensarem o espaço, atuarem e se relacionarem com ele, que permaneceu ao longo do século XIX. Envolve, ainda, o fato de saberem utilizá-lo estrategicamente, de forma mais ou menos semelhante, criando um ethos muito ligado às zonas de fronteiras em momentos de guerra e revoluções, concebendo uma maneira típica de fazer a guerra nesse espaço. Referências ALONSO, Paula. La Unión Cívica Radical. Fundación, oposición y triunfo (18901916). In: LOBATO, M. (Dir.) Nueva Historia Argentina. Buenos Aires, Sudamericana, 2000, p. 208-260. AMADO, Janaína. História e região: reconhecendo e construindo espaços. In: MARCOS, A. (Coord.). República em migalhas: história regional e local, São Paulo, Marco Zero. 1990 ANDRADE, Gustavo Figueira. A trajetória política do General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares): família, comunicação e fronteira. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em História, UFSM, 2017. AYROLO, Valentina; MÍGUEZ, Eduardo.. Reconstruction of the Socio-Political Order after Independence in Latin America. A Reconsideration of Caudillo Politics in the River Plate, Jahrbuch für Geschichte Lateinamerikas. Anuario de Historia de America Latina, v. 49, n. 1, (Decembro), 2012, p.1-16. BANDIERI, Susana.. La posibilidad operativa de la construcción histórica regional o cómo contribuir a una história nacional más complejizada. In: FERNANDEZ, Sandra; DALLA CORTE, Gabriela (Cords.). Lugares para la história espacio, historia regional y historia local em los estúdios contemporâneos, Rosario, Argentina, 2001, p.91-117. BERTRAND, M.. De la família a la red de solidariedade. Revista Mexicana de Sociología, v. 61, n. 2, (Abril-Junio), 1999, p.108-135. BLANC, Claudio. Dicionário Completo de Maçonaria. Editora Online, 2016. BRASCHI, Dardo Ramírez. La Guerra del Paraguay em la Província de Corrientes: impactos políticos, daños y consequências em la población civil. Corrientes: Moglia Ediciones, 2014. CARDOSO, Ciro Flamarion; BRIGNOLI, Hector. Os métodos da história. 5ª Ed. Rio de Janeiros: Graal, 1990. CARVALHO, José Murilo.. Federalismo y centralización em el Império Brasileño: história y argumento. In: CARMAGNANI, Marcelo (Coord.). Federalismos latino-americanos: México, Brasil, Argentina. 1ª Ed. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1993, p.51-80. 407 SUMÁRIO Uma região em armas: a delimitação de uma região conformada pela guerra durante o século XIX no espaço platino CHIARAMONTE, José Carlos. La cuestión regional en el proceso de gestación del estado nacional argentino. In: CHIARAMONTE, José Carlos. Mercaderes del litoral: economia y sociedade em la província de Corrientes, primera mitad del siglo XIX. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica., 1991, p.21-56. CHIARAMONTE, José Carlos. José Carlos. Sobre el uso historiográfico del concepto de región. Estudios Sociales. Ano XVIII, n.35, Santa Fe, Argentina, Universidad Nacional del Litoral, 2008, p.7-21. CHIARAMONTE, José Carlos. El federalismo argentino em la primera mitad del siglo XIX. In: CARMAGNANI, Marcelo (Coord.). Federalismos latino-americanos: México, Brasil, Argentina. 1ª Ed., Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1993, p.81-132. CHIARAMONTE, José Carlos. Sobre el uso historiográfico del concepto de región. Estudios Sociales, Revista Universitária Semestral, ano XVIII, n. 35, Santa Fé, Argentina, Universidad Nacional del Litoral, 2008, p.7-21. CHIARAMONTE, José Carlos. La antigua constitución luego de las independencias, 1808-1852. In: História, regiões e fronteiras. Orgs. Ana Frega Novales, Maria Medianeira Padoin,Padoin; KÜHN, Fábio; BRAVO, María Celia; TEDESCHI, Sonia Rosa. Santa Maria, FACOS-UFSM, 2012, p. 9-45. COLUSSI, Eliane. L. A Maçonaria gaúcha no século XIX. 3. ed. Passo Fundo: UPF, 2003. CORTINA, Manuel Suárez.. Federalismos: Europa del sur y América Latina en perspectiva histórica. Grananda, España, Editora Comares, 2016. COSTA, Marcus Vinicius. A Revolução Federalista de (1893-1895): o contexto platino, as redes, os discursos e os projetos políticos Liberal-Federalistas. Dissertação de Mestrado, Mestrado em Integração Latino-Americana, 2006. DOBKE, Pablo R. Caudilhismo, território e relações sociais de poder: o caso de Aparício Saraiva na região fronteiriça entre Brasil e Uruguai (1896-1904). Dissertação de Mestrado em História, Programa de Pós-Graduação em História, UFSM, 2015. ETCHECHURY BARRERA, Mario. Una Guerra en busca de sus autores: algunas notas metodológicas sobre la conflictividad regional en el Río de la Plata (1835-1845). Illes i Imperis, n. 15, 2013, p.75-100. GIL, Tiago. Infiéis transgressores: elites contrabandistas nas fronteiras do Rio Grande e do Rio Pardo (1760-1810). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007. GRIMSON, Alejandro. La Nación en sus límites: contrabandistas y exilados en la frontera Argentina-Brasil. Barcelona: Editorial Gedisa, 2003. GUTFREIND, Ieda. A Historiografia Rio-grandense. Porto Alegre: EDUFRGS, 1998. GUAZZELLI, César. O horizonte da Província: a República Rio-grandense e os caudilhos do Prata (1835-1845). Porto Alegre, Linus, 2013. HEREDIA, E. O Cone Sul e a América Latina: Interações, en História do Cone Sul. Orgs. Amado Cervo y M. Rapoport,118-160. Brasília: Ed. UnB, 1998. KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/Ed. PUCRJ, 2006. 408 SUMÁRIO Uma região em armas: a delimitação de uma região conformada pela guerra durante o século XIX no espaço platino KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre história. Rio de Janeiro: Contraponto/Ed. PUCRJ, 2014. MAEDER, Ernesto J. A.; Gutierrez, Ramon. Atlas Histórico del Nordeste Argentino. Resistência, Chaco: Ed. Instituto de Investigaciones Geohistoricas, Universidad Nacional del Nordeste, 1995. MARCHIONI, Marcelo Daniel. Historias provinciales, locales y regionales. Reflexiones acerca de la construcción de los espacios para la interpretación de os procesos históricos em Salta y em NOA. ANDES, v. 26, n. 2, 2015, p. 1-16. MOLINA, Eugenia. Sociabilidad y redes politico-intelectuales: algunos casos entre 1800 y 1852. Cuadernos del CILHA, v.12, n. 14, 2011, p.19-53. NOVALES, Ana Frega. La virtude y el poder: la soberania particular de los pueblos em el proyecto artiguista,. In: GOLDMAN, Noemi; SALVATORE, Ricardo (Orgs.). Caudillismos rioplatenses: Nuevas miradas a un viejo problema. Buenos Aires: Eudeba, 1998, p.101-134... PADOIN, Maria Medianeira. O federalismo no espaço fronteiriço platino. Tese (Doutorado em História) Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1999. RABINOVICH, Alejandro; MCEVOY, Carmen (Editores). Tiempo de guerra: Estado, nación y conflicto armado en el Perú, siglos XVII-XIX. Lima, Instituto de Estudios Peruanos, 2018. RECKZIEGEL, Ana Luisa. A diplomacia marginal: vinculações políticas entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai (1893-1904). Passo Fundo, UPF, 1999. RECKZIEGEL, Ana Luisa.. A região como protagonista nas relações internacionais. In: HEINSFELDT, Adelar; RECKZIEGEL, Ana Luiza (Orgs.). América de múltiplas regiões. Passo Fundo: Editora UPF, 2016, p.114-127. ROSSATO, Monica. Relações de poder na região fronteiriça platina: família, trajetória e atuação política de Gaspar Silveira Martins. Dissertação (Mestrado em História), Programa de Pós-Graduação em História, UFSM, 2014. SHUMWAY, N. La Generación de 1837. In:_______. (Cord.). La invención de la Argentina: historia de una idea. Buenos Aires: Emecé Editores, 1993, p. 131- 163. CARNICER, Solís, Maria del Mar. Liderazgo y política em Corrientes, Juan Ramón Vidal (1883-1940). 1ª Ed. Corrientes, Moglia Ediciones, 2005. THOMPSON FLORES, Mariana. F. da C. Crimes na Fronteira: a criminalidade na fronteira meridional do Brasil (1845-1889). Tese (Doutorado em História), Pontifica Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012. TARACENA, Arturo. Propuesta de definición histórica para región. Estudios de Historia Moderna y Contemporánea de México, n. 35, (enero-junio), 2008, p.181-204. VAN YOUNG, Eric. Haciendo Historia Regional: Consideraciones metodológicas y teóricas Región e historia en México (1700-1850. Anuario del IEHS, Universidad Nacional del Centro de la Provincia de Buenos Aires, Tandil, n.2, 1987, pp 255-281. WIEDERSPAHN, Henrique Oscar. Bento Gonçalves e as guerras de Artigas. Caxias do Sul, UCS, 1979. 409 SUMÁRIO O GENERAL JOÃO NUNES DA SILVA TAVARES (JOCA TAVARES) E A CIDADE DE BAGÉ: DO CONTEXTO DA PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA À REVOLUÇÃO FEDERALISTA Gustavo Figueira Andrade1 Aristeu Elisandro Machado Lopes2 410 SUMÁRIO O General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares) e a cidade de Bagé: do contexto da Proclamação da República à Revolução Federalista 1 2 Introdução Os primeiros anos da República no Brasil foram caracterizados por um contexto de crise política, econômica e social e, em razão desse cenário conturbado, a consolidação do novo regime envolveu graves conflitos, entre os quais eclosão da Revolução Federalista3. No estado do Rio Grande do Sul, a cidade de Bagé esteve no epicentro dos embates políticos e revolucionários, devido a sua proximidade com a fronteira com o Uruguai, o que permitiria estabelecer a sede de um governo beligerante e, ainda, obter melhor abastecimento logístico vindo dos federalistas brasileiros, estabelecidos ou exilados no país vizinho. Esse conflito contou com grande envolvimento de seus concidadãos nas refregas políticas daqueles anos. Acontecimentos esses, que deixaram marcas na sociedade e até hoje estão preservados4 1. Doutor em História pela Universidade Federal de Santa Maria. 2. Doutor em História/UFRGS. Professor Associado II do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pelotas. 3. A Revolução Federalista (1891-1896) foi uma guerra civil ocorrida no período pós Proclamação da República, no Brasil, que opôs liberais federalistas e castilhistas. Abrangeu não só os estados meridionais brasileiros do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, mas também um espaço regional platino constituído por Uruguai e Argentina. Pode-se afirmar que esta Revolução foi um dos conflitos mais violentos ocorridos no. A Revolução pode ser entendida como um movimento contestatório por parte das antigas elites políticas liberais que possuíam preponderância no cenário político, durante o regime monárquico no Brasil. Dentre os motivos, estavam a taxação do comércio de fronteira e a repressão ao contrabando. No Rio Grande do Sul, o conflito envolveu a contestação do modelo político de características positivistas que passou a vigorar com a República. Impediu, ainda, o acesso das elites liberais às estruturas do poder do Estado, tanto em nível nacional quanto estadual, trazendo consequências ao poder local dessas elites, opondo concepções federalistas distintas. 4. Percebemos a inexistência e a necessidade de um memorial, no local dos conflitos, em homenagem àqueles homens, mulheres e crianças anônimos, que perderam suas vidas naquela guerra civil fratricida, na defesa de suas casas, famílias ou ideais. 411 SUMÁRIO O General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares) e a cidade de Bagé: do contexto da Proclamação da República à Revolução Federalista na memória coletiva (HALBWACHS, 1990) dos bajeenses e dos habitantes da Região da Campanha sul-rio-grandense. Estabelecer uma análise sobre os eventos ocorridos nesse período, em Bagé, permite compreender o contexto de violência a que estava submetida a população urbana. Nesse sentido, o objetivo deste capítulo será averiguar o contexto econômico, político e social da cidade, no período da Proclamação da República e da Revolução Federalista, e como Bagé e sua população foram atingidas pela violência do conflito. Dessa forma, procuraremos responder algumas questões como: Qual era o contexto econômico, político e social da cidade de Bagé nesse período? Quais foram os aspectos que marcaram a ligação entre Bagé e o contexto político estadual e nacional? Quais eventos permitem compreender as relações existentes entre Bagé e o processo de consolidação da República? E, por fim, o que aconteceu na cidade durante a Revolução Federalista e de que forma isso afetou a população civil? Para responder a essas questões, utilizamo-nos de fontes como censos e jornais contemporâneos aos eventos que tratam sobre a cidade de Bagé, especialmente o Diário Popular e A Reforma, ambos de Pelotas, e Cidade do Rio, do Rio de Janeiro. Utilizamo-nos, também, dos diários pessoais do General João Nunes da Silva Tavares5, correspondências pessoais e obras facsímiles acerca dos eventos. 5. Nascido em Herval, em 1818, filho de João da Silva Tavares, Visconde do Cerro Alegre, e de Umbelina Bernarda Assumpção Nunes, casou-se com Flora Vieira Nunes e começou sua vida militar na Revolução Farroupilha de 1835-1845. Neste conflito, lutou ao lado de seu pai na defesa do Império do Brasil. Mudou-se com sua família para a cidade de Bagé, na segunda metade do século XIX, onde passou a dedicar-se à pecuária e à atividade charqueadora. Participou ativamente da vida política e militar da cidade, incorporou-se à Guarda Nacional e participou de diversas campanhas militares posteriores, como a Guerra de 1851, contra Manoel Oribe e Juan Manuel de Rosas. Posteriormente,em 1864,lutou na Campanha do Uruguai e organizou forças para lutar na Guerra do Paraguai, conflito em que se destacou, principalmente, por comandar o piquete que derrotou e matou Francisco Solano López, na batalha de Aquidabã. Ao regressar do conflito, recebeu o título de Barão do Itaqui e o título de General Honorário do Exército Brasileiro, tendo logo assumido o comando da Guarda Nacional, Guarnição e Fronteira de Bagé, após o falecimento de seu pai. No aspecto político, assumiu a chefia política do Partido Conservador em Bagé. Ocupou cargos em nível provincial, chegando a ser 3º Vice-Presidente da Província, em 1885, durante o período da Monarquia no Brasil. Com a República, ao lado de seus irmãos, teve intensa atuação política na fundação dos partidos da União Nacional, Partido Republicano Federal e Partido Federalista, chegando a ser governador do estado por breves dias. Durante a Revolução Federalista, foi Comandante-em-Chefe das forças do Exército Libertador federalista, tendo, mais adiante, auxiliado o comando do almirante Luís Felipe Saldanha da Gama, até a assinatura do tratado de pacificação, em 23 de agosto de 1895 (ANDRADE, 2017). 412 SUMÁRIO O General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares) e a cidade de Bagé: do contexto da Proclamação da República à Revolução Federalista A cidade de Bagé e o contexto da Revolução Federalista Durante a segunda metade do século XIX, devido ao intenso desenvolvimento econômico, comercial, artístico e cultural impulsionado pela atividade pecuária, Bagé foi elevada à categoria de cidade, em 18596. Para se ter noção da pujança econômica, citamos o primeiro recenseamento promovido pelo Império do Brasil, realizado em 1872, segundo o qual, a cidade estava posicionada entre as mais ricas e populosas da Província do Rio Grande do Sul, tendo passado, em 1872, de uma população total de 15.037, entre pessoas livres e escravizadas, para uma população total de 22.692, em 18907. A cidade tornara-se, em 1890, a maior cidade da região da Campanha, graças à economia agropecuária, mas, apesar da evidência obtida, nos primeiros anos da República e durante a Revolução, as ruas ainda não eram calçadas. Afora isso, as principais áreas da cidade contavam com avenidas largas, embelezadas por pequenas árvores na parte central e por postes de iluminação. Além de praças e jardins que constituíam passeios públicos, podiam-se visualizar os postes das linhas do telégrafo, presentes na cidade desde 1881, que revolucionaram as comunicações (SALIS, 1955). Entretanto, no período que antecedeu a eclosão do conflito, a cidade enfrentou dificuldades no âmbito econômico e político. Enquanto no contexto nacional, assinalado por forte crise política e econômica, materializava-se a desvalorização da moeda, fato conhecido como “encilhamento”, e acontecia a Revolta da Armada (1893-1894), o cenário político do Rio Grande do Sul também era marcado por forte instabilidade e crise política (MORITZ, 2005; ANDRADE, 2017). Após a Proclamação da República, no que se refere à esfera econômica, a região da Campanha foi prejudicada em diversos aspectos pelas políticas promovidas por Júlio de Castilhos enquanto secretário dos governos que se seguiram. Dentre eles, podemos citar a mudança de regime em relação a um maior controle sobre a fronteira em decorrência da política fiscal implementada (PESAVENTO, 1983; TARGA,2008; SOUZA, 1993). Da mesma forma, a política intervencionista promovida por Castilhos interferiu no 6. Fundação de Economia e Estatística De Província de São Pedro a Estado do Rio Grande do Sul. Censos do RS 1803-1950. Porto Alegre, 1981. 7. Fundação de Economia e Estatística De Província de São Pedro a Estado do Rio Grande do Sul. Censos do RS 1803-1950. Porto Alegre, 1981. 413 SUMÁRIO O General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares) e a cidade de Bagé: do contexto da Proclamação da República à Revolução Federalista andamento da vida política, nas localidades, substituindo o comando das Câmaras Municipais e da Guarda Nacional, destituindo antigos chefes liberais e conservadores dos cargos públicos, substituindo-os por membros do PRR (PESAVENTO, 1983; FLORES; FLORES 1999; FRANCO, 1996; 2012) No âmbito rural, já eram sentidos os ventos da mudança vindos da outra banda da fronteira, como bem destaca John Chasteen (2003), ao apresentar o contexto de uma época em que o aumento populacional, o cercamento das propriedades e a introdução de raças de gado europeias teriam ocasionado a diminuição da oferta de empregos, desenhando uma situação de penúria e até mesmo de fome para a população rural pobre, não só do Uruguai, como também do lado brasileiro (CHASTEEN, 2003, p.89-105). Por se tratar de uma área de fronteira, as mudanças que prejudicaram a economia rural e a sociedade uruguaia trouxeram, por sua vez, consequências para a Campanha rio-grandense. De acordo com Ana Luiza Reckziegel, tais mudanças teriam criado um “excedente de desemprego, principalmente entre a população masculina que, na Revolução Federalista, se alistou em busca de oportunidades, até mesmo de sobrevivência” (RECKZIEGEL, 2007, p. 32). Nesse sentido, a crise teria afetado muito mais a população rural pobre que os grandes proprietários e os ricos comerciantes (RECKZIEGEL, 1999), fato que pode ser observado na fundação de charqueadas pelo interior do Rio Grande do Sul, como, por exemplo, a Charqueada Industrial Bajeense, em 1891 (BOUCINHA, 1993), devido ao enfraquecimento da produção charqueadora em Pelotas. Como exemplo do envolvimento político e militar de personagens políticos bajeenses, nos primeiros anos da República, e sua relação com o aspecto político estadual e nacional, citamos o caso do general João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares), o qual recebeu diretamente do Presidente da República o comando da Fronteira e Guarnição de Bagé,em 1890(ANDRADE, 2017). No aspecto político estadual, destacava-se a família Silva Tavares, importante representante de interesses políticos de grupos fronteiriços, dentre eles, pecuaristas, charqueadores e comerciantes da metade sul-rio-grandense, da qual faziam parte Joca e seus irmãos José Facundo, José Bonifácio (Zeca), Dr. Francisco e Joaquim (Barão de Santa Tecla). Este grupo, junto a outros políticos do Rio Grande do Sul, esteve envolvido tanto na Fundação do Partido União Nacional, em 1890, quanto na fundação do Partido Republicano Federal, em 414 SUMÁRIO O General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares) e a cidade de Bagé: do contexto da Proclamação da República à Revolução Federalista 1891, ambos oposicionistas a Júlio de Castilhos (ESCOBAR, 1983; MORITZ, 2005; VILLALBA, 2017). Em 1891, ainda, o cenário no âmbito da política nacional e estadual apresentava-se conturbado, principalmente devido aos desentendimentos do Presidente Deodoro da Fonseca com o Congresso, envolvendo embates em torno do autoritarismo de Deodoro e de questões acerca de um risco de restauração da Monarquia (JANOTTI, 1986). O resultado desta contenda entre os poderes Executivo e Legislativo foi a tentativa de fechamento do Congresso, por parte de Deodoro, fato que configurou um ensaio de golpe de Estado, em novembro de 1891, iniciativa que foi aprovada por Júlio de Castilhos, então governador eleito do Rio Grande do Sul (FLORES; FLORES, 1999). Essa situação levou à resistência em diversas partes do país e, em Bagé, não era diferente. O general Tavares, secundado pelas forças da guarnição sob seu comando, manifestava-se junto a outros líderes políticos do Rio Grande do Sul, contexto no qual forças aquarteladas no estado também se levantaram, intimando à renúncia o Presidente da República e Castilhos8.Tal cenário, ocasionado pela renúncia de ambos os mandatários, tornou insustentável a posição do governo, tendo sido conduzido ao poder Floriano Peixoto, vice-presidente da República, e uma junta governativa, no Rio Grande do Sul. Esses episódios marcados por deposições e perseguições passaram a ocorrer em todo o estado, configurando um período de conflitos políticos, golpes e contragolpes que marcaram a eclosão da Revolução Federalista (ANDRADE, 2021). Em Bagé, por ter comandado a resistência na metade sul do Estado e saído do conflito como um dos principais líderes que ocasionaram a queda de Deodoro e Castilhos, o general Tavares manteve o comando da Fronteira e Guarnição de Bagé, até 1892. A cidade esteve envolvida no centro das decisões políticas estaduais, em 1892, período em que sediou um congresso político, convocado pelo general Tavares, ao qual compareceu Gaspar Silveira Martins9 e chefes políticos oposicionistas de todo o estado. A 8. TAVARES, João Nunes da Silva. Ordem do Dia n.1 do Comando em Chefe das Forças Revolucionárias do Sul do Estado. Bagé, 8 dez. 1891. Arquivo Público Municipal de Bagé (grifos nossos).Arquivo Público Municipal de Bagé, RS. TAVARES, João Nunes da Silva. [Carta] 12 nov.1891, Bagé. [Para] CASTILHOS, Júlio Prates de. Porto Alegre, 1 folha. Ultimato dado pela junta revolucionária ao governador Júlio de Castilhos. Arquivo Público Municipal de Bagé, RS. 9. Sobre esse personagem ver: ROSSATO, Monica. Gaspar Silveira Martins e a Revolução Federalista (1893-1895): que federalismo é esse? Tese (Doutorado em História). Programa 415 SUMÁRIO O General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares) e a cidade de Bagé: do contexto da Proclamação da República à Revolução Federalista reunião resultou na fundação de um novo partido político, o Partido Federalista, o qual se desvinculava dos republicanos históricos dissidentes (FRANCO, 1996; 2012; ANDRADE, 2017). Nesse contexto revolucionário de intolerância política e perseguições, o acirramento da crise se dá com o contragolpe de estado perpetrado pelo Partido Republicano Rio-Grandense contra José Antônio Correia da Câmara, Visconde de Pelotas. Em 17 de junho de 1892, Joca Tavares, segundo vice-governador do Rio Grande do Sul e membro do Partido Federalista, recebeu um telegrama do então governador deposto, transferindo-lhe o governo do estado. Com essa decisão, Bagé torna-se sede do governo estadual por breves dias. O general Tavares, acusando Júlio de Castilhos e Vitorino Monteiro de promoverem um golpe de estado, passou a reunir forças oposicionistas e federalistas com o propósito de instaurar a resistência em Bagé. Dentre as forças que acudiram ao chamado em defesa do governo de Tavares, estavam personagens que já haviam ocupado importantes cargos políticos e militares durante o Período Imperial no Brasil. Parte deles, já com experiência militar, mantinha relações de amizade com Tavares, ao menos, desde a Guerra do Paraguai (ANDRADE, 2021). Nesse contexto, o Exército Brasileiro, por ordens de Floriano Peixoto e, em acordo com Júlio de Castilhos, quebrou o princípio de não intervenção federal em questões internas dos estados, previsto pela Constituição Brasileira de 189110, e interveio em favor de Castilhos, causando a rendição do general Tavares, em 4 de julho de 1892 (VILLALBA, 2017). Em Bagé, esse fato desencadeou uma série de eventos de violência e perseguições implementadas por forças castilhistas que adentraram a cidade após a rendição, conforme observamos a seguir: O povo desta cidade e município é testemunha diretamente, tem enchido de pavor e desânimo a todas as famílias, a todos os homens honestos, mesmo aqueles que neste lugar mais sacrifícios fizeram pela elevação de Sr. Júlio de Castilhos ao poder. [...]. A desolação do povo é enorme. Narrar todas as violências, todos os fatos cride Pós Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria, 2021. PADOIN, Maria Medianeira. República, federalismo e fronteira. História Unisinos. n. 14, v.1, Janeiro/Abril, 2010, p.49-54. Disponível em: http://revistas.unisinos.br/index.php/ historia/article/view/4705 Acesso em: 18/12/2020. 10. Sobre a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 1891 ver: https:// www2.camara.leg.br/legin/fed/consti/1824-1899/constituicao-35081-24-fevereiro-1891-532699-publicacaooriginal-15017-pl.html Acessado em: 26/03/2021. 416 SUMÁRIO O General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares) e a cidade de Bagé: do contexto da Proclamação da República à Revolução Federalista minosos que o Proconsul [sic] do Sr. Júlio de Castilhos e sua gente têm cometido em Bagé, é atualmente um perigo, porque a ameaça de morte paira sobre aquele que ousar divulgar qualquer ato selvagem desse sujeito (Reforma. Pelotas.6 ago. 1892, p.1.). Restava, assim, ao general Tavares e a outros líderes federalistas o êxodo para o Uruguai, juntamente com suas famílias, escapando da vendeta das forças castilhistas e do Exército brasileiro que retomaram a cidade e passaram a exercer controle e domínio sobre ela a partir desse momento até o término do conflito11. Em 1893, no que se refere ao aspecto político e social, a cidade de Bagé passava por um período de fortes tensões e acirramento dos ânimos. Essa situação, de acordo com John Chasteen, chegou a tal ponto que “uma briga qualquer em um baile nos subúrbios da cidade podia causar a mobilização da guarnição, que ficava em pânico, pois ninguém ignorava que a maior parte da população da cidade estava do lado dos federalistas” (CHASTEEN, 2003, p.56). Ao encontro dessa afirmação de John Chasteen (2003), um recorte de jornal guardado junto a correspondências pessoais da família Silva Tavares, em Bagé, permite observar as agressões que estavam sendo cometidas pelas autoridades militares contra a população civil, inclusive com perseguição ao Dr. Francisco Tavares. [...] O coronel Carlos Telles12 nega-o como negará o atentado cometido contra o ilustre cidadão Dr. Francisco da Silva Tavares, atacado por praças do 31º de infantaria, numa das principais ruas de Bagé, em pleno dia, e por ordem do comandante daquela guarnição, para ser conduzido ao quartel do comando, raspar-lhe a cabeça e meter-se-o [sic] na cadeia, segundo informações militares. O fato é público e notório, foi testemunhado pela população bajeense, que assistiu, sem surpresa mas indignada, às cenas de repugnante tropelia [...]. Não fora o correto procedimento que teve o Sr. Tenente-coronel Francisco de Paula Alencastro, comandante 11. As forças federalistas comandadas pelo general Joca Tavares tentavam reaver Bagé, ainda que tivessem falhado na tentativa de tomá-la, após prolongado sítio em que as forças do Exército e castilhistas estiveram entrincheiradas em torno da praça da igreja Matriz (ANDRADE, 2014). As cartas do general Tavares (2004b, p.92) citam o fato de que a cidade esteve por breve momento tomada pelas forças de Zeca Tavares − a guarnição de Bagé saíra em defesa da cidade de Rio Grande que estava sob ataque dos federalistas − ocasião em que foram destruídas as trincheiras construídas pelos governistas, conseguindo obter suprimentos que foram escondidos nas residências. 12. Irmão do General João Telles, comandou o 31º Batalhão de Infantaria; foi também Comandante da Fronteira e Guarnição de Bagé, durante o cerco da cidade, resistindo às investidas federalistas (PORTO ALEGRE, 1917). 417 SUMÁRIO O General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares) e a cidade de Bagé: do contexto da Proclamação da República à Revolução Federalista do 12º regimento, tirando do sítio, em carro, a vítima do energúmeno coronel Carlos Telles, e o Dr. Francisco Tavares estaria, talvez, morto, porque teria resistido, infalivelmente, à execução das ordens estupendas do comandante da guarnição, que há muito, com seus exemplos de despotismo, ensina a soldadesca ignorante a desrespeitar a sociedade civil. O coronel Carlos Telles igualmente negará a violência praticada para com o Clube Caixeral; mas Bagé, em peso, sabe das circunstâncias que ocorreram relativamente a mais esse descoco do comandante daquela guarnição, que dissolveu o simpático e futuroso [sic] Clube, obrigando-o a encaixotar sua rica biblioteca e objetos de valor, em quatro horas e entregar a chave ao senhorio, com a ordem de não mais reunirem-se os membros da associação violentada. Tudo isso por que não foi consentido, no baile do Clube Caixeral, um oficial intruso, alterego do comandante da guarnição [...]13. A partir desse episódio, as forças governistas passaram a ocupar a cidade de Bagé, mantendo efetivos militares do Exército, Brigada Militar e forças civis castilhistas em armas, para impedir a retomada da cidade e garantir “a ordem”. Importante ressaltarmos que, na cidade, não havia apenas federalistas, mas também relevante núcleo político de indivíduos ligados ao PRR, tais como o Dr. Líbio Vinhas, José Otávio Gonçalves, Jorge Reis, dentre outros, indivíduos bastante atuantes na vida política local nos anos seguintes (REIS, 1911; SALIS, 1955). Neste contexto, enquanto muitos líderes federalistas emigravam para o outro lado da fronteira, como foi o caso do general Joca Tavares e sua família, em busca de abrigo contra a perseguição castilhista, passando a organizar um contra-ataque, Bagé tornouse importante reduto governista que deveria ser defendido contra as tentativas de retomada pelos federalistas. No entanto, diversas outras famílias não tiveram a mesma sorte de poder abandonar a cidade e escapar do cenário de violência e de disputas pelo seu controle por parte de federalistas e castilhistas, contenda cujo maior exemplo foi o cerco a Bagé. 13. O Coronel Carlos Telles: seus telegramas. Foto de recorte de jornal encontrada junto à documentação do general Joca Tavares. Arquivo Público Municipal de Bagé, Rio Grande do Sul. 418 SUMÁRIO O General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares) e a cidade de Bagé: do contexto da Proclamação da República à Revolução Federalista Visões da barbárie: o embate entre governistas e federalistas pelo domínio de Bagé Um dos principais eventos que marcou a disputa pela cidade de Bagé, durante a Revolução Federalista, e que permite compreender o contexto e a sociedade frente às agruras e dificuldades que enfrentou a população civil de idosos, mulheres e crianças que vivenciou os horrores de uma guerra fratricida, foi o cerco a Bagé (LOPES, ANDRADE, BRASIL, 2021). Diversos trabalhos foram escritos por memorialistas acerca desse evento e, dentre os principais expoentes, cabe salientar os apontamentos realizados por Epaminondas Villalba (1897), Wenceslau Escobar (1983), Jorge Reis (1911) e José de Carvalho Lima (2009), além de outros pesquisadores que escreveram, posteriormente, na mesma linha, tais como Eurico Salis (1955), Tarcísio Taborda (1970) e Cláudio Moreira Bento (1993). Também vale destacar os diários e as correspondências do general João Nunes da Silva Tavares e do Dr. Francisco da Silva Tavares, enquanto fontes privilegiadas para compreender as vivências individuais e coletivas, as formas de vida e de percepções sobre a cultura e a sociedade de uma época (CUNHA, 2013). As memórias são obras que podem ser entendidas como escritas de si e constituem, enquanto processo de representação simbólica do sujeito, importante meio para entender o indivíduo e suas experiências vividas, a sociedade e a cultura de uma época (GOMES, 2004). Por se tratar de eventos ocorridos durante uma guerra civil, as memórias se apresentam carregadas de sofrimentos e traumas vivenciados direta ou indiretamente, levando à seletividade daquilo que deve ser lembrado ou esquecido em suas memórias (POLLAK, 1992; FARGE, 2001; CANDAU, 2012). Essas obras memorialísticas estão carregadas da subjetividade e das paixões políticas de seus autores, o que evidentemente influencia no teor de seus apontamentos e posicionamentos, na seleção e na construção de uma narrativa pautada por uma visão de história característica de seu período, de história enquanto mestra da vida (GOMES, 2004; OLIVEIRA, 2011; CANDAU, 2012). É preciso ressaltar que nenhuma fonte é inocente e, nesse sentido, alerta Jacques Le Goff (2013) acerca da atenção do historiador em evitar sedução ou ingenuidade pela fonte, devendo ter bem claro que a produção de um documento, assim como sua preservação, nunca ocorre de forma inocente ou por mero acaso. Esse processo envolve 419 SUMÁRIO O General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares) e a cidade de Bagé: do contexto da Proclamação da República à Revolução Federalista um procedimento de manipulação que se manifesta em todos os níveis da constituição do saber histórico; logo, “o documento é um monumento. Resulta, pois, do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si próprias” (LE GOFF, 2013, p. 496-497). Outras importantes fontes para compreender o contexto, a atuação dos personagens e os eventos que se seguiram são as notícias que ocupavam as primeiras páginas dos jornais contemporâneos aos acontecimentos, dentre os quais, o Diário Popular e A Reforma, de Pelotas, e Cidade do Rio, do Rio de Janeiro. Importante salientar que os jornais, enquanto fontes, são importantes ferramentas para a compreensão de diversas facetas da sociedade e da política de uma época em análise. Entretanto, não podem ser considerados de forma ingênua pelo historiador, confiando, sem crítica, em sua veracidade, mas, sim,como representações que devem ser analisadas a partir de seu lugar de produção, de sua origem, pensadas e produzidas para fins específicos e que representam grupos e interesses (DE LUCA, 2014). Os eventos que marcaram a violência sobre a cidade na região da Campanha começaram em 1891, com o levante de forças pelo general Tavares. Tinham o intuito de resistir ao golpe de Estado que resultaria na deposição de Manoel Deodoro da Fonseca, Presidente da República, e do governador Júlio de Castilhos, motivando a perseguição aos castilhistas que atuavam em defesa de seu representante. Importante destacar que tais eventos passaram a marcar o começo da Revolução Federalista. Após o êxodo federalista para o Uruguai, a partir de 1892, e com a incursão sobre o Brasil cruzando a fronteira, em fevereiro de 1893, tais acontecimentos tinham o objetivo de tomar cidades, conseguir recursos e organizar um governo, tarefa que se mostrou impossível devido não só ao estilo de guerra empregado pelos federalistas e de movimento que adotaram, mas também à falta de meios para defender as cidades contra forças melhor equipadas. Esse intento resultou, em um primeiro momento, na tentativa de tomar as cidades de Santana do Livramento e Dom Pedrito, que passaram a ser sitiadas14 (ANDRADE, 2017). 14. Ao longo do conflito, diversas cidades foram sitiadas ou invadidas pelos federalistas, no Rio Grande do Sul, como: Rosário do Sul, Santo Ângelo, Palmeira das Missões, Dom Pedrito, Cruz Alta e Rio Grande, dentre outras. 420 SUMÁRIO O General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares) e a cidade de Bagé: do contexto da Proclamação da República à Revolução Federalista Temendo o pior, ainda em março, cerca de quatrocentos homens da força do corpo de engenharia, pertencentes às forças governistas do Exército que estavam em Bagé, passaram a cavar trincheiras no entorno da praça da Igreja Matriz, buscando fortificar a posição e se manterem alerta (TAVARES, 2004a). Tratava-se de um conflito que poderia convulsionar o país e, por isso, o governo federal mobilizou homens de outros estados brasileiros para lutar no Sul do Brasil, inclusive deslocando-os para Bagé, como foi o caso do soldado cearense José de Carvalho Lima (2009), que serviu nas forças do 11º Batalhão de Infantaria. Deslocado de Fortaleza, no Ceará, para lutar contra os federalistas, no Rio Grande do Sul, o soldado chegou a Bagé no mês de junho de 1893 (ANDRADE, 2021). A narrativa de Carvalho Lima (2009) permite entender as dificuldades enfrentadas pelos soldados e o clima de tensão constante. Afirma, o autor, que nesse período em que chegara a Bagé, estavam aquartelados diferentes contingentes militares de infantaria, cavalaria, artilharia e de engenharia, constituídos por cearenses, cariocas e mineiros15, além de forças da Brigada Militar e de voluntários civis (LIMA, 2009). Enquanto isso, o outono de 1893 começava rigoroso, confirmando as impressões do Dr. Francisco Tavares (2004a) acerca dos gelados dias de março, relatadas em suas memórias. O excesso de chuvas era outra importante variável para compreender a movimentação e as condições das forças governistas e federalistas. Os rios transbordantes dificultavam a movimentação das tropas; rigorosas geadas aumentavam as agruras dos soldados que enfrentavam as intempéries com poucos suprimentos, a ponto de soldados federalistas, em junho de 1893, terem perecido congelados pela falta de roupas adequadas (TAVARES, 2004b). Muitos dos contingentes do Exército, vindos de outros estados brasileiros para lutar na campanha gaúcha contra os federalistas, sofreram com as intempéries e parte deles foi internada devido ao frio excessivo que enfrentara (CIDADE DO RIO, 07/04/1893, p.1). O telégrafo e a ferrovia Bagé/Pelotas eram constantemente sabotados pelos federalistas, dificultando a logística para suprimentos e a comunicação das forças governistas, em Bagé (LOPES; ANDRADE; BRASIL, 2021). Ao encontro dessa afirmação, o jornal pelotense Diário 15. Dentre as forças cariocas que estavam na cidade, ressaltamos o 19º Batalhão de Infantaria e o 31º Batalhão de Infantaria, de Ouro Preto. 421 SUMÁRIO O General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares) e a cidade de Bagé: do contexto da Proclamação da República à Revolução Federalista Popular, em fevereiro de 1894, noticiava que as forças governistas estavam em Bagé e contavam com pouca alimentação, esta composta apenas por alguns animais, fardos de charque, “sacos de bolacha e farinha entre outros” (DIÁRIO POPULAR, 03/02/1894, p.1). A situação de penúria dessas forças foi corroborada em uma comunicação enviada pelo marechal do Exército Isidoro de Oliveira ao governador do Rio Grande do Sul, Júlio de Castilhos, na qual afirmava: “tristíssima é a situação de Bagé, sem gêneros alimentícios, sem carne e sem meios de sair” (TAVARES, 2004a, p.144). As forças federalistas espalhavam-se por diversos pontos nos arredores de Bagé, vigiando a cidade. Algumas se posicionaram nos cerros de Bagé, fortificando-se em posição estratégica que permitia o controle sobre o horizonte das planícies da campanha. Outras forças federalistas, sob as ordens de José Bonifácio da Silva Tavares, permaneciam próximo à costa do rio Camaquã, no norte do município, enquanto aguardavam armas que viriam de Montevidéu (TAVARES, 2004a), ações que evidenciam intensa movimentação destas forças nos arredores da cidade. Essa movimentação e ações dos federalistas nos arredores da cidade buscando isolar Bagé e as forças que nela estavam aquarteladas, apontam para tentativas mal sucedidas de estabelecer um cerco à cidade, começando aproximadamente oito meses antes do que se convencionou na historiografia e obras de memorialistas escritas posteriores. Tal afirmação parte do próprio conceito do que seria a palavra cerco, pois de acordo com o Glossário de Termos e Expressões para uso no Exército (2009) o ato de cercar uma área ou grupamento inimigo, abrange de ações no sentido de envolver, buscando seu isolamento, seja de comunicações, reforço de outras forças ou suprimentos, cerceando sua movimentação, passos que foram seguidos pelos federalistas. No entanto, a imposição de um cerco total buscando completo isolamento dos sitiados, somente teria começado apenas em meados de dezembro de 1893, no que atribuímos ser a última parte deste episódio. Essa atribuição justifica-se pelo fato de que anteriormente a esta decisão dos federalistas de impor restrição total de movimentação aos sitiados, muitos civis conseguiram acessar os sitiados e levar alimentos, o que pode explicar a sua prolongada resistência (LOPES; ANDRADE; BRASIL, 2021). Nesse sentido, o pedido de socorro enviado pelas forças governistas sitiadas teria sido 422 SUMÁRIO O General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares) e a cidade de Bagé: do contexto da Proclamação da República à Revolução Federalista realizado por um sujeito que conseguiu escapar da praça, período a partir do qual foi acelerada a organização de uma força que deveria socorrer Bagé, isso exemplifica a dificuldade dos federalistas em conseguir um isolamento total das forças governistas. A partir desses aspectos apresentados, partimos da hipótese de que se a lógica empregada até então para estabelecer o período do começo do cerco, os meses de outubro/novembro de 1893, – interpretação que, a nosso ver, não leva em consideração que o cerco existiu efetivamente apenas a partir de meados de dezembro desse mesmo ano –, como válida, permite-nos defender a existência de tentativas de cerco pelos federalistas, desde março de 1893. Tal afirmação justifica-se pelo fato de que as tentativas federalistas de cercar a cidade e isolar a guarnição governista foram diversas, descontínuas, plano que enfrentou dificuldades entre março e novembro, uma vez que houve movimentação de forças governistas que entravam e saiam da cidade. As circunstâncias favoráveis para o intento federalista surgiram apenas alguns meses depois, o que não significa que não tenham existido. Enquanto isso, na cidade, as forças governistas permaneciam sob ameaça constante dos federalistas, ao mesmo tempo em que a munição continuava a tardar. Combates continuavam a ocorrer e forças governistas que tentavam romper o cerco eram fustigadas. A população civil, que permanecia em suas casas, vivia dias difíceis e testemunhava as agruras de uma luta fratricida. Nesse sentido, o jornal Diário Popular, filiado ao Partido Republicano Rio-Grandense, veiculou uma notícia afirmando que, quando as forças federalistas apertaram o cerco sobre a cidade, teriam promovido saques e desordens de todos os tipos: “[...] os maragatos, logo que penetraram a cidade, deram começo ao saque, em diversas casas comerciais, passando depois às casas particulares, donde levaram tudo, inclusive as panelas [...]. Bagé está completamente em ruínas: casas saqueadas, incendiadas, outras estragadas pelas balas de fuzilaria e artilharia, dá pena tantos estragos” (DIÁRIO POPULAR, 24/01/1894, p.1). As informações apresentadas pelo jornal evidenciam a perda do controle e as retaliações que ocorreram durante o cerco federalista. No entanto, tais informações não podem ser desconsideradas na análise crítica do contexto que as produziu, ou seja, o da filiação política de seus redatores. Confrontadas com o diário do general Joca Tavares (2004b) e com relatos obtidos em entrevistas de história 423 SUMÁRIO O General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares) e a cidade de Bagé: do contexto da Proclamação da República à Revolução Federalista oral16 com descendentes de famílias que vivenciaram o conflito em Bagé, é possível afirmar que forças governistas também realizaram saques contra propriedades dos federalistas. Portanto, a violência foi praticada por ambos os lados envolvidos na contenda. Ainda que o general Tavares tenha buscado manter a ordem e punir severamente os envolvidos em vandalismo, seria impossível impedir os excessos cometidos. Nesse sentido, afirma Raul Fradkin (2010) que a prática de saques era recorrente nos conflitos. No caso do cerco a Bagé, sem o intuito de justificar a violência, mas sim compreendê-la e explicá-la, é preciso entender o comportamento dos federalistas enquanto parte de uma forma de fazer a guerra e de manter os exércitos com poucos recursos (FRADKIN, 2010). É preciso considerarmos a composição e a disparidade de forças envolvidas no conflito do qual participaram corpos regulares e batalhões compostos por civis, alguns com pouca ou nenhuma instrução e disciplina. Muitos dos homens que compuseram as fileiras desses grupos possuíam objetivos distintos: alguns lutavam por sobrevivência; outros, por vingança. Ao estudar o caso das montoneras, na Argentina, Raul Fradkin (2010) ressalta que era comum que os comandantes desses destacamentos conferissem permissão aos saques das propriedades dos inimigos como uma forma de puni-los, o que parece ter sido, também, o caso dos federalistas rio-grandenses. Além do mais, os saques permitiriam obter recursos para indivíduos das forças que muitas vezes engajavam-se na luta para conseguir alimentos ou recursos para sobreviver. Em novembro de 1893, após os federalistas terem recebido suprimentos e munição, derrotaram as forças governistas comandadas pelo marechal Isidoro, no combate do Rio Negro, na época, pertencente ao município de Bagé. Os caminhos estavam abertos para os federalistas que passaram a aumentar gradualmente o cerco, invadindo a cidade de Bagé e tomando inicialmente posições ocupadas pelas forças governistas, dentre as quais o Teatro 28 de Setembro e o Mercado Público, enquanto famílias inteiras buscavam abrigo em chácaras nos arredores da cidade (TAVARES, 2004a; TAVARES, 2004b). As forças governistas ficaram restritas a seu último reduto, as trincheiras no entorno da praça da Igreja de São Sebastião, onde também foram abrigadas famílias de indivíduos ligados ao PRR dispostos a resistirem aos federalistas. A seu favor, as forças 16. Sobre essa temática ver: ANDRADE (2017). 424 SUMÁRIO O General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares) e a cidade de Bagé: do contexto da Proclamação da República à Revolução Federalista governistas possuíam maior poder de fogo, contando com quatro peças de artilharia de campanha Krupp, fortemente guarnecidas, assentadas nas trincheiras nas esquinas da praça, o que lhes conferia vantagens (DIÁRIO POPULAR, 30/01/1894, p.1). No começo de dezembro de 1893, o jornal Diário Popular, de Pelotas, veiculou uma notícia recebida por um correspondente que estava em Bagé, o qual descreve com detalhes uma tentativa frustrada dos federalistas de tomar a praça fortificada. Lançando um olhar sobre o contexto de violência que envolveu os combates, relata que, ao se aproximarem da cidade, as forças federalistas se dirigiram à praça onde estava situado o Mercado Público, e sem desconfiar de qualquer reação, [...] marcharam em coluna cerrada e, ao toque de clarins pela Rua Sete de Setembro, sendo então rechaçadas fortemente pela artilharia, postada na praça da igreja, onde se tinha fortificado a guarnição. A chuva de metralha e de lanternetas [sic] pelos bravos defensores contra o inimigo, os pôs em completa debandada, estabelecendo entre eles verdadeiro pânico. A Rua Sete de Setembro ficou juncada de cadáveres e de animais feridos, abandonados pelos assaltantes. Consta também que grande número de prédios daquela rua ficaram danificados. Segundo informações que nos foram ministradas, o inimigo retirou-se, parte para o Piraí e parte para a Carpintaria (DIÁRIO POPULAR, 08/12/1893, p.2). Nos arredores da praça da Matriz, na busca por proteger seus bens ou por não ter para onde fugir, parte da população civil que havia permanecido em Bagé, alheia às disputas políticas, acabou sendo ferida por “balas perdidas” nas ruas ou dentro de suas próprias casas (REIS, 1911; TABORDA, 1970). Os jornais publicavam notícias acerca de conflitos acirrados, pintando um cenário estarrecedor como, por exemplo, em relação à questão sanitária da cidade, que se tornou preocupante. Em razão da precariedade e da improvisação em meio aos combates, começaram a eclodir focos de varíola, tifo e outras doenças contagiosas, “devido à aglomeração de cadáveres enterrados pelos maragatos nos quintais, no mercado e nas ruas daquela cidade” (DIÁRIO POUPULAR, 06/02/1894, p.2), enquanto as forças sitiadas enterravam os corpos de seus camaradas em terreno próximo à catedral de São Sebastião (REIS, 1911). Com base no diário do general Tavares (2004b), é possível afirmar que os federalistas ocuparam posições no entorno daquelas 425 SUMÁRIO O General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares) e a cidade de Bagé: do contexto da Proclamação da República à Revolução Federalista dos governistas. Eles estabeleceram um cinturão de trincheiras, barricadas em casas, esquinas e bocas de ruas, localizadas 500 metros ao redor da praça fortificada, enquanto outra parte do contingente acampava nos arredores da cidade, tanto em estâncias quanto próximo aos rios e coxilhas, guarnecendo os acessos ao município para evitar surpresas (TAVARES, 2004b). Situada a alguns quilômetros da cidade, a Charqueada Industrial Bajeense foi utilizada, nesse período, como hospital de sangue pelos federalistas, onde atuavam médicos e farmacêuticos bajeenses, partidários dos federalistas, que cuidavam dos inúmeros feridos que chegavam, dentre eles, o próprio general Tavares que sofria de problemas de saúde (TAVARES, 2004b). O empenho em submeter as forças governistas pela fome e o cerco à cidade não obtiveram o efeito esperado pelos federalistas, ou seja, as cargas de infantaria foram realizadas, porém rechaçadas pelas forças entrincheiradas. A violência dos acontecimentos transparece ainda mais durante as tentativas de romper o cerco, as forças sitiadas contra-atacaram, tentando tomar as posições ocupadas pelos federalistas como, por exemplo, o mercado público, defendido por trincheiras federalistas na boca da rua próxima, ocasião em que atacaram “as trincheiras à baioneta calada a 1ª companhia, comandada pelo bravo capitão Carlos Costa, que foi ferido logo no começo da ação, assumindo o comando o igualmente bravo alferes Juvêncio Maximiliano Lemos, também ferido no ato de subir a trincheira” (DIÁRIO POPULAR, 03/02/1894, p. 1). A manobra final dos federalistas consistia em chegar ao interior da praça fortificada, derrubando os muros das casas do meio do quarteirão sem que precisassem passar pelas trincheiras e enfrentar as metralhas da artilharia, manobra que foi percebida e antecipada pelo comandante do Exército Brasileiro que defendia a praça, Carlos Maria da Silva Telles (TAVARES, 2004b). A munição começava a ficar escassa. Ao leste, forças governistas da Divisão do Sul, comandadas pelo coronel João Cesar Sampaio, e organizadas para ir ao socorro da guarnição de Bagé, aproximavamse do município (TAVARES, 2004b; ANDRADE, 2014). Enquanto isso, pelo oeste, forças da divisão comandada pelo general Hipólito Ribeiro também marchavam em direção a Bagé, buscando encurralar as forças do general Tavares, que pressentiu a gravidade da situação e ordenou o fim do cerco à cidade, retirando-se com suas forças. 426 SUMÁRIO O General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares) e a cidade de Bagé: do contexto da Proclamação da República à Revolução Federalista Considerações finais Através do presente estudo, procuramos apresentar o cenário econômico, político e social que configurou o contexto da Proclamação da República até a Revolução Federalista em Bagé. As transformações ocorridas no âmbito rural e urbano, em Bagé, desde a segunda metade do século XIX, colocaram-na em condição econômica favorável, demonstrando uma cidade próspera que se viu defrontada por um contexto de crise econômica, tanto no âmbito nacional como no estadual, que esteve muito vinculada aos conflitos políticos. Procuramos ressaltar, ainda, que as transformações políticas conduziram ao poder um grupo antagônico aos interesses econômicos e políticos dos antigos grupos políticos conservadores e liberais fronteiriços, muito associado à fronteira e a antigos benefícios alfandegários que foram cessados durante o governo de Júlio de Castilhos. Essas transformações também atingiram o aspecto político e resultaram na intervenção na vida política dos municípios. Nesse sentido, procuramos evidenciar, através da atuação política e militar do general Joca Tavares, o quanto Bagé esteve vinculada a forte ativismo e protagonismo políticos em oposição ao governo de Júlio de Castilhos, que julgavam ser uma ingerência na vida política e econômica dos municípios. Com base na atuação do general Tavares, no âmbito político e militar, comprovamos o quanto Bagé esteve vinculada, nesse período, aos eventos que culminaram com a renúncia do governador do Rio Grande do Sul, Júlio de Castilhos, e a do Presidente da República, Manoel Deodoro da Fonseca, em 1891, da mesma forma que com os eventos que ocasionaram a Revolução Federalista. Neste período da revolução, Bagé esteve no epicentro dos acontecimentos políticos, especialmente por sediar a conferência que levou à fundação do Partido Federalista, em 1892, e como sede do governo estadual em resistência ao golpe de estado que reconduziu Júlio de Castilhos ao poder, em julho de 1892. Nesse sentido, procuramos ressaltar que a violência no município tinha se acentuado em decorrência desses eventos de perseguições políticas, saques e violências contra a vida de castilhistas e federalistas. 427 SUMÁRIO O General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares) e a cidade de Bagé: do contexto da Proclamação da República à Revolução Federalista Para melhor exemplificar e compreender a violência que atingiu a cidade de Bagé, nesse período, citamos o caso do cerco imposto pelos federalistas à cidade, em 1893, utilizando-nos, para tal, de diários, jornais e memórias contemporâneas ao conflito. Dessa forma, procuramos salientar a gravidade dos eventos de violência e a questão sanitária que se abateu sobre a população civil que permaneceu na cidade. Considerando, ainda, os diários do general Tavares, apresentamos uma cronologia que permite afirmar que as tentativas de tomar Bagé estavam inseridas numa estratégia mais ampla dos federalistas de tomar outras cidades. Da mesma forma, ao reconstruirmos um contexto sobre o cerco à cidade, desde o começo de 1893, procuramos demonstrar que ele teria tido diversas fases, as quais teriam começado meses antes do que se supunha. Por fim, exemplificamos as dificuldades em relação à alimentação e às intempéries enfrentadas pela população civil e pelos soldados que estavam sitiados em Bagé, dentre os quais, aqueles vindos de outras partes do país e que enfrentaram as adversidades do clima, da paisagem, da alimentação e da violência. Nesse sentido, o cerco a Bagé pode ser entendido como um evento que adquiriu proporção nacional e, enquanto uma representação do conturbado cenário, configurou o contexto social e político da consolidação da República no sul do país. Referências ANDRADE, Gustavo Figueira. Memórias e conflitos: a Divisão do Sul e o levantamento do cerco a Bagé durante a Revolução Federalista de 1893. 2014. Monografia (Conclusão de Curso). Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2014. ANDRADE, Gustavo Figueira. A trajetória política do General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares): família, comunicação e fronteira. Dissertação (Mestrado História). Santa Maria: Programa de Pós-Graduação em História, UFSM, 2017. ANDRADE, Gustavo Figueira. A preservação da memória familiar sobre a atuação do general Joca Tavares durante a Revolução Federalista de 1893-1895.Revista do IHGRGS. Porto Alegre, n. 152, jul. 2017, p. 33-52. BENTO, Claudio Moreira. A Revolução de 93 e a arte militar. III Simpósio Fontes para a História da Revolução de 1893. Anais... Bagé: EDIURCAMP, 1993. BOUCINHA, Cláudio Antunes. A história das charqueadas em Bagé (1891-1940) na literatura. Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: PPGH-PUC/RS, 1993. 428 SUMÁRIO O General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares) e a cidade de Bagé: do contexto da Proclamação da República à Revolução Federalista BRASIL, Luísa Kuhl. Retratos em (re)vista: do estúdio à imprensa ilustrada em Bagé, 1890-1921. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013. BRASIL, Ministério da Defesa. Manual de Campanha C-20-1. Glossário de Termos e Expressões para uso no Exército. 4ª Edição, 2009. Disponível em: https://bdex.eb.mil.br/jspui/bitstream/123456789/298/1/C-20-1.pdf Acesso em: 20/01/2021. BRASIL.Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 1891. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/consti/1824-1899/constituicao-35081-24-fevereiro-1891-532699-publicacaooriginal-15017-pl.html. Acesso em: 10/02/2021. BRASIL. Recenseamento Geral do Império do Brasil de 1872. Diretoria Geral de Estatística. Typografia Comercial, Rio de Janeiro, 1876. CANDAU, Joel. Memória e identidade social. São Paulo: Contexto, 2012. CHASTEEN, John. Fronteira Rebelde: a vida e a época dos últimos caudilhos gaúchos. Porto Alegre: Movimento, 2003. DE LUCA, Tânia Regina. A história dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla Bassanezi. Fontes Históricas. 3.ed. São Paulo: Contexto, 2014, p.111-154. ESCOBAR, Wenceslau. Apontamentos sobre a Revolução Rio-Grandense de 1893. Brasília: Universidade de Brasília, 1983. FLORES, Moacyr; FLORES, Hilda H. Rio Grande do Sul: aspectos da Revolução de 1893. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1999. FRADKIN,Raúl. Las formas de hacerla guerra enel litoral riolatense. In: BANDIERI, Susana et al. La historia econômica y losprocesos de independência enla América hispana. Buenos Aires: PromoteoLibros, 2010, p.167-214. FARGE, Arlette. Do sofrimento. In:_______. Lugares para a história. Belo Horizonte: Autêntica, 2011, p.13-24. FRANCO, Sérgio da Costa. Júlio de Castilhos e sua época. Porto Alegre: UFRGS, 1996. FRANCO, Sérgio da Costa. A Guerra Civil de 1893. 2. ed. ampl. Porto Alegre: Edigal, 2012. GOMES, Ângela de Castro. Escrita de si, escrita da História. Rio de Janeiro: FGV, 2004. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Laurent Léon Schaffter – São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990. JANOTTI, Maria de Lourdes. Os subversivos da República. São Paulo: Brasiliense, 1986. LIMA, José Carvalho. Narrativas militares: a Revolução do Rio Grande do Sul. 2. ed. Porto Alegre: Casa dos Livros, 2009. 429 SUMÁRIO O General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares) e a cidade de Bagé: do contexto da Proclamação da República à Revolução Federalista LOPES, Aristeu Elisandro Machado; ANDRADE, Gustavo Figueira; BRASIL, Luísa Kuhl. O cerco de Bagé na Revolução Federalista de 1893: História, memória e fotografia. Paisagens Híbridas: Rio de Janeiro, 2021. MORITZ, G. Acontecimentos políticos do Rio Grande do Sul: parte I e II. Organização de GunterAxt et al. Porto Alegre: Procuradoria-Geral da Justiça, Projeto Memória, 2005. OLIVEIRA, M. da G. de. Escrever vidas, narrar a história: a biografia como problema historiográfico no Brasil oitocentista. Rio de Janeiro:FGV, 2011. PADOIN, Maria Medianeira. República, federalismo e fronteira. História Unisinos. n. 14, v.1, Janeiro/Abril, 2010, p.49-54. Disponível em: http://revistas.unisinos.br/ index.php/historia/article/view/4705 Acesso em: 18/12/2020. PESAVENTO, Sandra. A Revolução Federalista. São Paulo: Brasiliense, 1983. POLLAK, Michel. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos. v. 5, n. 10, p. 01-15, 1992. PORTO ALEGRE, Aquiles. Homens Ilustres do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Selbach, 1917. RECKZIEGEL, Ana Luísa Setti. A diplomacia marginal: vinculações políticas entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai (1893-1904). Passo Fundo: UPF, 1999. REIS, Jorge. Apontamentos Históricos e Estatísticos de Bagé. Bagé: Tipografia do Jornal Correio do Povo, 1911. RIO GRANDE DO SUL. Fundação de Economia e Estatística. De Província de São Pedro a Estado do Rio Grande do Sul. Censos do RS 1803-1950. Porto Alegre, 1981. ROSSATO, Monica. Gaspar Silveira Martins e a Revolução Federalista (1893-1895): que federalismo é esse? Tese (Doutorado em História). Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria, 2021. RÜSEN, Jörn. Teoria da História: uma teoria da história como ciência. Tradução de Estevão de Rezende Martins. Curitiba: UFPR, 2015. SALIS, Eurico J. História de Bagé. Porto Alegre: Globo, 1955. SOUZA, Susana Bleil de. A Fronteira na Revolução de 1893. In: POSSAMAI, Z. (Org.). Revolução Federalista de 1893. Porto Alegre: Secretaria Municipal de Cultura, 1993, p. 2534. Coleção Cadernos Ponto e Vírgula, n. 3. TABORDA, Tarcísio. O Sítio de Bagé: 1893-1894. Revista Militar Brasileira. v. 93, n.1, p. 73-87, jan./mar. 1970. TARGA, Paulo. A política fiscal modernizadora do Partido Republicano Rio-grandense na Primeira República (1889 –1930). Textos para Discussão FEE, n. 26, 2008, p. 1-20. TAVARES, Francisco da Silva. Diário da Revolução Federalista de 1893. CABEDA, Corálio Bragança Pardo; AXT, Gunter; SEELING, Ricardo Vaz. (Org.). Porto Alegre: Procuradoria Geral – Geral de Justiça, Projeto Memória, 2004a. Tomo I. (Memória Política e Jurídica do Rio Grande do Sul, 3). 430 SUMÁRIO O General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares) e a cidade de Bagé: do contexto da Proclamação da República à Revolução Federalista TAVARES, João Nunes da Silva. Diário da Revolução Federalista de 1893. CABEDA, Corálio Bragança Pardo; AXT, Gunter; SEELING, Ricardo Vaz(Org.). Porto Alegre: Procuradoria Geral de Justiça, Projeto Memória, 2004b. Tomo II. (Memória Política e Jurídica do Rio Grande do Sul, 3). VILLALBA, EPAMINONDAS. A Revolução Federalista no Rio Grande do Sul, documentos e comentários. Rio de Janeiro: Laemmert, 1897. Fontes hemerográficas: Jornal A Reforma, Pelotas. 06 ago. 1892, p.1. Jornal Cidade do Rio, Rio de Janeiro, 07 abr.1893, p.1. Jornal Diário Popular, Pelotas. 03 fev. 1894, p.1. Jornal Diário Popular, Pelotas. 06 fev. 1894, p.2. Jornal Diário Popular, Pelotas. 03 mar. 1894, p.1. Arquivo Público Municipal de Bagé: TAVARES, João Nunes da Silva. Ordem do Dia n.1 do Comando em Chefe das Forças Revolucionárias do Sul do Estado. Bagé, 8 dez. 1891. Arquivo Público Municipal de Bagé (grifos nossos). Arquivo Público Municipal de Bagé, RS. TAVARES, João Nunes da Silva. [Carta] 12 nov. 1891, Bagé. [Para] CASTILHOS, Júlio Prates de. Porto Alegre, 1 folha. Ultimado dado pela junta revolucionária ao governador Júlio de Castilhos. Arquivo Público Municipal de Bagé, RS. 431 SUMÁRIO DE BAGÉ À EUROPA: OS ESPAÇOS DE CIRCULAÇÃO DE GASPAR SILVEIRA MARTINS 1 Monica Rossato 2 432 SUMÁRIO De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins 1 2 Introdução No presente texto, buscamos averiguar os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins, entre a região fronteiriça platina, o Império brasileiro e a Europa, trajetória marcada por sua mobilidade e espaços sociais de atuação política, de redes de contato, leituras, liberais e maçônicas atuantes no século XIX. Sua inserção nesses diferentes espaços sociais marcou seu cosmopolitismo cultural e permite-nos complexificar a sua trajetória política vinculada às concepções básicas do liberalismo e defensor do federalismo, tendo sua base de formação e experiência, a região fronteiriça platina3. Nessa região, Bagé ocupou espaço importante em sua trajetória política, estando sempre presente ao longo desse processo e de sua mobilidade para além da fronteira. Sua ligação com Bagé foi marcada pelos vínculos familiares, de propriedades, de amizades, políticas e comerciais constantemente mobilizados em diferentes momentos ao longo de sua vida e especialmente, na transição da Monarquia para a República, na Revolução Federalista (1893-1895). Gaspar Silveira Martins, oriundo da região fronteiriça platina, exerceu sua atividade política durante o Império e, na transição para a 1. O presente texto faz parte das pesquisas de doutorado desenvolvidas junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria e junto a Universidade de Coimbra/Portugal através da bolsa de Doutorado Sanduíche no Exterior, Edital 019/2016 PDSE/CAPES. Integra também a Linha de Pesquisa História Platina: sociedade, poder e instituições (CNPq/UFSM). 2. Doutora em História pela Universidade Federal de Santa Maria. Professora de História da rede pública de ensino do município de Nova Palma/RS. 3. Região historicamente construída e que envolve os territórios do sul do Brasil e, entre eles Bagé (próxima à zona de fronteira com o Uruguai), Uruguai e Argentina, locais de atuação e vínculos de Gaspar Silveira Martins e da Revolução Federalista (1893-1895). 433 SUMÁRIO De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins República, foi exilado junto a outros políticos na Europa, seguindo os rastros do Imperador destronado, D. Pedro II. Sua atuação enquanto liderança de projeção nacional do Partido Liberal e por seus vínculos no Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina, levantavam suspeitas de sua conspiração e articulação fronteiriça em torno da restauração monárquica. Diante desses fatos, nos questionamos a respeito de como Silveira Martins construiu essa trajetória política, percorrendo uma diversidade de locais e estabelecendo uma vasta rede de contatos entre a região fronteiriça platina, o Império brasileiro e a Europa. Ademais, procuramos observar como Bagé esteve relacionada à sua trajetória e atuação enquanto político no Império e na República, em vínculos e ideias/projetos defendidos que contemplavam a fronteira, inclusa nela também Bagé. O Fronteiriço Gaspar Silveira Martins rumo ao Centro Político do Império Para compreendermos como Gaspar Silveira Martins migrou de sua região de origem aos mais altos postos de comando político do Império, chegando a ser desterrado à Europa pela representatividade que usufruía junto à Monarquia no Brasil, é preciso buscar as bases na sua família e região de origem que muito nos tem a dizer a respeito de sua formação política. As famílias Silveira e Martins possuíam grandes propriedades na zona de fronteira, próxima ao limite entre Uruguai (Aceguá) e Brasil (Bagé), na forma de estâncias de criação de gado, escravos e benfeitorias urbanas localizadas em Melo e Bagé, conforme os inventários post mortem ligados à suas famílias. Gaspar Silveira Martins era filho de pais brasileiros (Carlos Silveira e Maria das Dores Martins), nascido na Serra de Aceguá e batizado na Catedral de Melo em 1835. Assim, o registro do sobrenome materno “Martins” após o sobrenome paterno “Silveira” denota a influência espanhola em seu documento. Isso corroborou também para o exercício de sua dupla cidadania, brasileira e uruguaia, proporcionada pela presença da fronteira e das propriedades familiares4 que, em alguns momentos, fora utilizada para justificar sua presença no Uruguai5. 4. As questões da origem de Silveira Martins e a inserção de sua família no Uruguai foram discutidas no seguinte trabalho: ROSSATO, Monica. Relações de poder na região fronteiriça platina: família, trajetória e atuação política de Gaspar Silveira Martins. 2014. 163f. Dissertação (Mestrado em História) - UFSM, Santa Maria, RS, 2014. 5. Em 1894 durante a Revolução Federalista, o deputado do Partido Colorado, Alberto Palomeque buscou defender Silveira Martins do exílio por parte do governo uruguaio justifican- 434 SUMÁRIO De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins Ao crescer entre Aceguá e Bagé, vivenciou junto com sua família a presença dos ideais artiguistas, da Revolução Farroupilha (1835-1845) e o legado dessas ideias na região fronteiriça platina. Legado esse, marcado pelo liberalismo e federalismo, de pessoas que, por exemplo, atuaram na farroupilha e transitaram pela região como Giuseppe Garibaldi e Tito Lívio Zambeccari e que retornaram à Europa para atuar no Risorgimento Italiano6. Garibaldi pautavase nas ideias de Mazzini7, nomes os quais Gaspar Silveira Martins se reportou em discursos políticos. Deixaram aqui, seguidores de seus ideais de república, unidade e fraternidade entre os povos, como os círculos garibaldinos que apareceram no Uruguai, em referência à sua herança na região8. Junto a isso, soma-se o fato da região fronteiriça platina contar com a presença de considerável imigração estrangeira muitos deles atuantes na maçonaria, através de lojas maçônicas e dos periódicos. Assim, ideias liberais que estiveram em voga na Europa circularam por esses meios também na região fronteiriça platina. Da fronteira, Silveira Martins migrou para Pelotas (RS) a fim de realizar seus estudos no Colégio de Antônio José Domingues (MARTINS, 1929), local aonde sua família conduzia o gado para as charqueadas e também tinha propriedades. Ali, a família possuiu estreitos vínculos com comerciantes da indústria charqueadora como seu padrinho, o charqueador Heliodoro de Azevedo e Souza, o negociante português Antônio Ferreira Ramos e a família Antiqueira. Pelotas também era conhecida pela grande riqueza, desenvolvimento comercial e presença estrangeira proporcionada pelas indústrias charqueadoras. Para o abastecimento interno da do que Silveira Martins não era um refugiado político, mas alguém que possuía propriedades, negócios e interesses no país. Para ver mais, consultar a tese de Doutorado: ROSSATO, Monica. Gaspar Silveira Martins e a Revolução Federalista (1893-1895): que federalismo é esse?. 2020. 376f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Santa Maria, RS, 2020. 6. O Risorgimento Italiano refere-se ao processo histórico de construção da Unidade do Estado Nacional Italiano, pela luta contra o absolutismo monárquico e a dominação estrangeira do Império Austro-Húngaro. 7. Gioseppe Mazzini (1805-1872) formou-se em Direito na Universidade de Gênova e atuou na Carbonária Originária do Franco Condado, loja maçônica surgida na França contrária à maçonaria napoleônica no período do Congresso de Viena. A Carbonária apresentou em seu seio uma heterogeneidade de tendências, entre elas a diferenciação entre moderados (defendiam um regime constitucional) e radicais (defendiam a instauração da República), estes últimos sendo um grupo ao qual Mazzini identificava-se. A Unidade trazida pela República era garantia da associação dos povos livres em uma grande nação, como uma federação republicana de estados unitários (RIBEIRO, 1990). 8. CIRCULO GARIBALDINO. El Día, Montevideo, 09 mai. 1892. Hemeroteca do Palácio Legislativo do Uruguai, Montevidéu, Uruguai. A reportagem fala sobre a criação do círculo garibaldino, em que fazem parte antigos seguidores de Garibaldi, do Uruguai e da Itália. 435 SUMÁRIO De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins população, seu padrinho, Heliodoro de Azevedo e Souza, criou uma colônia de imigração chamada Santa Eulália, de acionistas charqueadores, a fim de que os colonos viessem a realizar o trabalho agrícola para o abastecimento da cidade que crescia com as atividades comerciais das charqueadas (VARGAS, 2016). Nota-se que, nesse caso, a imigração europeia atendia à demanda de uma elite estancieira que, charqueadora e comerciante, interessada em seus negócios, possibilitou o olhar cuidadoso de Silveira Martins a essas demandas, posteriormente como político, conhecido como um defensor da colonização e imigração europeia para o Brasil. Vale lembrar que a presença estrangeira na região fronteiriça platina inseria-o em um cosmopolitismo cultural aliado à sua formação liberal, agregando a imigração e colonização como chaves para o desenvolvimento e o progresso aos seus projetos de Estado. Rumo ao Rio de Janeiro, aos 13 anos de idade Silveira Martins foi à busca de dar seguimento aos seus estudos em preparação para o ingresso nas Academias de Direito do Império. O Colégio do Professor português Adolfo Manuel Victorio foi escolhido, estando Silveira Martins sob os cuidados do negociante e amigo da família, José Maria de Sá. Admitido nos exames preparatórios na Corte, deu início ao curso na Faculdade de Direito de Olinda (Província de Pernambuco) em 1852, transferindo-o para a Faculdade de Direito do Largo do São Francisco em 1854. Em Olinda, não esteve sozinho, havia viajado na companhia de seu escravo e sob os olhares de seu padrinho Heliodoro de Azevedo e Souza9. Pernambuco, assim como o Rio Grande do Sul com a Revolução Farroupilha havia vivenciado uma larga experiência de tradição republicana, liberal e federalista advinda com a Revolução Pernambucana (1817) e a Confederação do Equador (1824)10. A partir dessa experiência, iniciava aí o espaço de sociabilidade junto à Província de Pernambuco, bem como os contatos com as elites de outras províncias que ali realizavam seus estudos jurídicos. Em Recife, foi redator do jornal O Liberal. Mais tarde, quando do seu retorno 9. MOVIMENTO do Porto. Navios sahidos no mesmo dia. O Liberal republicano, 16 nov. 1853, p. 4. Acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Anteriormente, em 6 de fevereiro de 1851, o jornal Correio Mercantil na listagem da movimentação dos portos, registrou o nome de Silveira Martins saindo dos portos do norte. 10. Como elemento comum entre a Farroupilha e a Confederação do Equador, Padoin (1999) identificou a atuação do Padre José Antônio Caldas nos dois acontecimentos. Destacamos também que foi em Recife que se desenvolveu a Geração de 1870, intelectual, científica e republicana, sob forte viés evolucionista e seguidora das doutrinas de Spencer e relacionada à geração de intelectuais republicanos portugueses, na representação de Silvio Romero, Tobias Barreto e, no Rio Grande do Sul, por Karl von Koseritz, Graciano Alves de Azambuja e Alcides Cruz, pontos de contatos nutridos por Silveira Martins. 436 SUMÁRIO De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins do desterro europeu (janeiro de 1892), Silveira Martins realizou uma breve parada em Recife, reafirmando seus vínculos políticos liberais, antes de aportar no Rio Grande do Sul. Ir até Pernambuco ou São Paulo cursar a Faculdade de Direito exigiu certa capacidade de recursos por parte das famílias, que quisessem ver um de seus membros tornarem-se bacharel. José Murilo de Carvalho (2003) ao trabalhar com a elite formada nos cursos de Direito, demonstrou que os alunos das escolas de Direito provinham de famílias de recursos, pois as duas Escolas cobravam taxas de matrículas e os alunos que não eram de São Paulo e Recife tinham que se deslocar até essas cidades e permanecer por cinco anos. Em São Paulo, Silveira Martins ampliou suas redes de contatos interpessoais junto ao curso de Direito e na participação de agremiações estudantis, pois seus colegas e contemporâneos de Faculdade se tornariam, assim como ele, políticos de projeções provinciais e/ou nacionais. A elite política, ou seja, aqueles que ocupavam cargos políticos do Império estavam sendo formados nessas duas Academias de Direito. Assim, concluído o curso de bacharel em Direito no ano de 1856, casou-se com D. Adelaide Augusta de Freitas Coutinho, natural do Rio de Janeiro e filha do Dr. José Júlio de Freitas Coutinho, um reconhecido advogado da Corte Imperial11, aproximando-se ainda mais do núcleo político entorno do Imperador. Assim, pode mudar-se para o Rio de Janeiro e trabalhar no escritório de advocacia de seu sogro, até ser convidado pelo então Ministro da Justiça, Barão de Muritiba, para o cargo de juiz municipal (1859-1864). Muritiba era um homem de confiança do Imperador e foi Conselheiro de Estado, teve uma relação muito próxima com Silveira Martins, em que os dois estiveram juntos na Europa durante o exílio ao lado de D. Pedro II. Diante dos caminhos percorridos por Silveira Martins até chegar a Juiz Municipal percebemos que sua entrada no “mundo da política” a partir de 1860 representou a sua ascensão à representatividade nacional, levando os interesses locais/regional à esfera nacional. Assim, um uruguaio e brasileiro começou a ocupar posições de destaque no centro político do Império, mantendo seus 11. Registro de matrimonio de Adelaide Augusta de Freitas Coutinho e Gaspar Silveira Martins. 27 de novembro de 1856. Rio de Janeiro. Registros da Igreja Católica 1616-1980. Rio de Janeiro, Paróquia Sant’Ana, Matrimônios 1852, Jul-1861, Abr, imagem 128. Disponível em: https://familysearch.org/pal:/MM9.3.1/TH-1-14261-13538-55?cc=1719212&wc=M9W3-KJ6:n631073193.> Acesso em 30 jul. 2013. 437 SUMÁRIO De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins vínculos e relações com suas estâncias, família e comunidade na região fronteiriça platina. Entre os políticos do Império que se uniram à sua família por vias de matrimônios e apadrinhamento estavam o Manuel Pinto de Souza Dantas, Joaquim Pedro Salgado, João Antônio de Miranda, Lafayette Rodrigues Pereira, Felix da Cunha, Quintino Bocayuva, entre outros (ROSSATO, 2014). Nesse sentido, podemos visualizar as relações de poder, no âmbito familiar, em que os apadrinhamentos também fizeram parte, expandindo as teias sociais e políticas de Gaspar Silveira Martins no centro do Império. Os apadrinhamentos criavam compromissos recíprocos entre as partes fortalecendo o grupo da elite política. Além das relações familiares e políticas, evidenciamos a participação de Silveira Martins na maçonaria. A participação na ordem maçônica contribuiu na construção de uma trajetória política de integração junto à Corte e de socialização entre os participantes, já que na maçonaria participavam aqueles que tinham reconhecimento junto à sociedade. Isso evidencia que Gaspar Silveira Martins circulou por espaços restritos nesse período e que participar desse grupo proporcionou contato com outros indivíduos. Membro da maçonaria, Gaspar Silveira Martins recebeu o título de Grão-Mestre da Ordem Maçônica do Grande Oriente Brasileiro, no Rio de Janeiro, grau máximo no interior desta organização secreta.12 A década de 1860 marcou a entrada de Silveira Martins na política, inicialmente como Deputado Provincial pelo Partido Liberal a partir de 1862. Em termos gerais, na década de 1860 Silveira Martins demonstrou discursos e ideias ditas no período como “radicais” em referência a outra geração liberal que defendeu reformas brandas ao sistema político do Império, pois havia presenciado os perigos de separação e desintegração que as revoltas provinciais propuseram no período das Regências. Passada as revoltas regenciais, a unidade do Império foi construída e reformas profundas podiam pôr em risco tal estabilidade. Mesmo assim, uma ala do Partido Liberal a qual incluiu Gaspar Silveira Martins fundou o Clube Radical, no Rio de Janeiro em 1868 e proferiram discursos com ênfase em reformas estruturais como descentralização política e administrativa, maior autonomia provincial, Estado Laico, fim da vitaliciedade do Senado, eleição direita, entre outros. 12. Certidão de Gaspar Silveira Martins como Grão-Mestre da Ordem. Grande Oriente Brasileiro, 1883. Fonte: Acervo do Grande Oriente do Rio Grande do Sul (GORGS), Porto Alegre, RS. 438 SUMÁRIO De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins As conferencias, onde foram pronunciadas as ideias radicais e reformistas do sistema monárquico foram realizadas no Teatro da Fênix Dramática, Rio de Janeiro. Segundo José Murilo de Carvalho (2007) a conferencia que teve maior número de pessoas no Rio de Janeiro foi a do Gaspar Silveira Martins pronunciada no dia 16 de maio de 1869. Nessa ocasião, o discurso de Silveira Martins foi denominado de “Radicalismo” e nele foram expressas suas críticas ao sistema político do período, ao Senado vitalício, a eleição indireta, e ao sistema representativo monárquico, primando pela criação do Estado Laico, liberdades religiosas e civis e dos incentivos à imigração europeia.13 Defesas essas que permaneceram em sua atuação política no Partido Liberal como Deputado Provincial (1862-1889), Deputado Geral (1872-1879), Ministro da Fazenda (1878-1879) e Senador (18801889). Em diferentes momentos eles sobressaíram como, por exemplo, nos debates na Assembleia Provincial a respeito do que é ser liberal, soberania e autonomia das províncias14, nas discussões na Câmara dos Deputados a respeito da “Questão Religiosa” (defesa do Estado laico, liberdade civil, casamento civil, entre outros)15 e na “elegibilidade dos acatólicos” (direitos políticos àqueles que não eram católicos – religião oficial do Estado Imperial)16, além nas questões relacionadas a defesa da imigração, tarifa especial e estradas de ferro à Província do Rio Grande do Sul presentes também na Câmara e no Senado.17 Suas defesas, especialmente sobre imigração europeia, criação de colônias de imigrantes na Província, construção de estradas de ferro, o estabelecimento de liberdade religiosa e elegibilidade aos acatólicos, interligavam-se em uma visão liberal de sociedade e 13. MARTINS, Gaspar Silveira. Conferencia Radical, oitava sessão, 1869. Discurso proferido pelo Sr. Dr. Gaspar Silveira Martins sobre o Radicalismo. Rio de Janeiro: Typografia e Lithographia Esperança, 1869. Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. 14. MARTINS, Silveira. Anais da Assembleia Legislativa Provincial. Sessão de 21 abr. 1874, p. 421. Memorial da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS. 15. MARTINS, Silveira. Anais da Assembleia Legislativa Provincial. Sessão de 21 abr. 1874, p. 421. Memorial da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS. 16. MARTINS, Gaspar Silveira. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão de 10 fev. 1879, p. 418. 17. MARTINS, Gaspar Silveira. Anais da Câmara dos Deputados, 10 jan. 1879, p. 412 e 413; MARTINS, Gaspar Silveira. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão de 27 fev. 1879, p. 107 e 108; TRANSCRIPÇÃO Silveira Martins. A Reforma, Porto Alegre, 26 de nov. 1886. Acervo do Museu de Comunicação Hipólito José da Costa, Porto Alegre, RS; MARTINS, Gaspar Silveira. Anais do Senado Federal. Livro 4, Sessão de 11 ago. 1887, p. 183; MARTINS, Silveira. Anais do Senado, Livro 6. Sessão de 14 de nov. 1888, p. 554-560; MARTINS, Gaspar Silveira. Anais do Senado Federal. Sessão do dia 5 set. 1888. p. 554. 439 SUMÁRIO De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins de construção do Estado Nacional brasileiro, a fim de promover o desenvolvimento regional de sua comunidade local/provincial e integrar novos grupos sociais à sua base de apoio eleitoral. Assim, compreendemos como Silveira Martins construiu sua trajetória política, desde sua origem na região fronteiriça platina até os postos de comando mais altos do Império, como os de Ministro da Fazenda, Presidente de Província (1889) e Conselheiro do Imperador (1889) levando à Corte as demandas de sua região. Ao longo desse percurso, Bagé sempre esteve presente em sua vida política, como um importante reduto liberal e de alianças políticas, mesmo quando a Monarquia chegou ao seu fim. Passamos então a analisar o percurso de Silveira Martins na República brasileira, quando às vésperas do fim da Monarquia, se preparava para embarcar para o Rio de Janeiro para assumir o novo Gabinete a pedido do Imperador. Da região fronteiriça platina à Europa: as vivências de Gaspar Silveira Martins como desterrado político A experiência internacional de Silveira Martins perpassa uma trajetória de vínculos com a região fronteiriça platina e para além dela, quando pensamos em sua formação acadêmica e política, de cujo arcabouço intelectual leituras e autores citados em seus discursos no Império e no posterior desterro na Europa fizeram parte, contribuindo também para a construção do rol que aproximou esta região à Europa por meio da Revolução Federalista. O desterro de Silveira Martins para a Europa, na passagem da Monarquia para a República, foi emitido pelo Governo Provisório de Deodoro da Fonseca18, que nutria desavenças pessoais com o político liberal, que ajudam a explicar a decisão da proclamação da República, do Decreto de Desterro e da não aprovação de uma ajuda em dinheiro a Silveira Martins e à sua família na Europa (BARBOSA, 1890, p. 9). As desavenças entre os dois remontam a tempos anteriores, ainda no Império, quando em discursos no Senado Silveira Martins criticava a atuação do então chefe das forças armadas na fronteira da Província do Rio Grande do Sul, Deodoro da Fonseca. 18. BRASIL. Decreto nº 78, de 21 de dezembro de 1889. Coleção de Leis do Império do Brasil - 1889, Página 273 (Publicação Original). Disponível em: http://www2.camara.leg. br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-78- 21-dezembro-1889-542219-publicacaooriginal-50068-pe.html.> Acesso em: 28 set. 2015. 440 SUMÁRIO De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins A Europa foi definida como local de desterro de Silveira Martins a fim de tirá-lo de qualquer possibilidade de contato e organização de seus correligionários fronteiriços que pudessem ameaçar a República recém instaurada e o governo de Deodoro da Fonseca. Dessa maneira, Silveira Martins seguiu para a Europa unindo-se nos rastros do Imperador destronado e unindo-se à colônia brasileira estabelecida em Paris. Medida estratégica para afastá-lo da região fronteiriça platina, região que manifestou historicamente mobilização diante das crises institucionais dos Estados Nacionais em que a Revolução Federalista, consolidada com o retorno de Silveira Martins da Europa, representou a união de diferentes grupos políticos que questionaram a organização dos poderes do Estado Nacional brasileiro e do Rio Grande do Sul. Inicialmente, Silveira Martins e um de seus filhos viajaram rumo a Lisboa, seguindo para Paris. Alguns dias depois, sua esposa e filhos viajaram para encontrá-los. A família estabeleceu-se em Paris em janeiro de 1890, encontrando-se com políticos brasileiros e estrangeiros como Lafayette Rodrigues Pereira, Barão de Loreto, Visconde de Ouro Preto, Conde de Barral, André Rebouças, Giovanni Bovio, Eça de Queiroz, Afonso Celso Júnior, Ferreira Viana, Eduardo Prado, Rio Branco, Santa Anna Nery e com o próprio D. Pedro II. Silveira Martins esteve em Lisboa, onde concedeu entrevista ao periódico inglês Times pela Gazeta de Portugal.19 No mesmo mês, viajou rumo ao norte da Alemanha, em Hamburgo e Berlim20 e, em outubro do mesmo ano, para Frankfurt, a fim de tratar dos interesses da colônia alemã no Rio Grande do Sul.21 Na Europa, em maio de 1890, Silveira Martins esteve em Londres para obter encontro com José Carlos Rodrigues, reconhecido jornalista brasileiro, simpatizante da República e do poder monárquico no Brasil. No mesmo ano esteve também em Nápoles (Itália), em conferência com o jornalista, professor, filósofo e seguidor das ideias de Mazzini e Garibaldi, Giovanni Bovio.22 Devido a esse percurso e aos contatos estabelecidos 19. MARTINS, Gaspar Silveira. Entrevista do Senador Gaspar Silveira Martins ao Times em 23 de janeiro de 1890. Gazeta de Portugal, Lisboa, 28 jan. 1890. Periódico pesquisado no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), Rio de Janeiro. 20. JORNAL DO COMMÉRCIO, RJ, 21 fev. 1890, p. 2. Hemeroteca da Biblioteca Nacional Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 21. O telegrama comunicou que o governo provisório confiou a Gaspar Silveira Martins a missão de tratar junto ao consulado brasileiro em Frankfurt de interesses à colônia alemã no Rio Grande do Sul. Fonte: Diário do Commércio, 13 out. 1890. Hemeroteca da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 22. Notícia publicada no jornal italiano Commercio di Genova, em 31 de dezembro de 1890, 441 SUMÁRIO De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins nesses diferentes locais, o governo brasileiro demonstrou suas desconfianças chegando a suspeitar de que gasparistas estavam articulando apoio e empréstimos em bancos alemães para uma possível revolução. Foi em Paris que a família permaneceu a maior parte do tempo durante o exílio. Mesmo após o retorno de Silveira Martins ao Brasil em fins de 1891, sua esposa Adelaide e a filha Gasparina permaneceram em Paris. Os demais filhos do casal permaneceram em trânsito na região fronteiriça platina, entre o Brasil e a Europa. Prova disso foi o fato de Silveira Martins ter um neto nascido em Paris em 1894, Carlos da Silveira Martins Ramos, que assumiu o cargo de secretário de diplomacia no exterior23, indicando a inserção da família na Europa. Na Europa, suas relações com D. Pedro II intensificaram-se no ano de 1891, quando as visitas e os encontros entre eles, juntamente com outros políticos, haviam se tornado mais frequentes, possibilitando um possível arranjo para que um herdeiro da Monarquia assumisse os negócios políticos no Brasil. Segundo Janotti (1986), o Conde D‘Eu mantinha intensa correspondência com Lafayette Rodrigues Pereira, cunhado de Silveira Martins e também exilado, atuando na promoção de um encontro com os exilados para discutir a restauração monárquica, sob a coordenação do Barão de Penedo. Este último político foi por muitos anos diplomata da Monarquia junto aos interesses brasileiros na Inglaterra, coincidindo com o período em que Silveira Martins foi Ministro da Fazenda do Império (1878). O Barão foi responsável por capitanear empréstimos em bancos ingleses para a construção de estradas de ferro no Brasil, o que tanto defendia Silveira Martins. Segundo a mesma autora, D. Pedro II mandou chamar Silveira Martins para ouvi-lo. Estando todos os que compareceram favoráveis ao movimento, Gaspar Silveira Martins os contrariou, dizendo estar tarde para isso. A ocasião foi relata pelo Barão de Penedo, que estava com Silveira Martins e Godofredo Escragnolle Taunay, juntos a D. Pedro em seu apartamento no Hotel Bedford, com o objetivo de discutir a possibilidade do retorno do Imperador em face à desordem e ao militarismo no Brasil.24 Nesse tema, o cunhado de Silveira e republicada pelo jornal O Brasil, em 15 de fevereiro de 1891: SILVEIRA MARTINS. O Brasil, 15 fev. 1890, p. 2. Hemeroteca da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 23. RAMOS, Carlos da Silveira Martins. Ministério das Relações Exteriores. Almanaque do pessoal para 1940, p. 270. Rio de Janeiro: Jornal do Commércio, 1940. Hemeroteca da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 24. As memórias do Barão de Penedo foram publicadas em: MENDONÇA, Renato Firmino 442 SUMÁRIO De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins Martins, Lafayette, estava entre os mais entusiastas da restauração, chegando inclusive a convidar Saldanha da Gama para o golpe de estado e para a derrubada do governo republicano (JANOTTI, 1986). Lafayette Rodrigues Pereira retornou ao Brasil em março de 1891, foi favorável à restauração da Monarquia sob a organização de uma regência. Para esse plano, o carro-chefe estaria no Rio Grande do Sul, onde a revolução se expandiria para outros estados e onde se estabeleceria um governo com representatividade monárquica, a ser decidida ainda. Além disso, orientava que a criação e a inserção de um partido monárquico se realizaria apenas quando o nome do sucessor monárquico fosse decidido, o que nos remete às interações entre Silveira Martins e seus companheiros na arregimentação partidária. Eis aqui um dos possíveis vínculos à influência de Gaspar Silveira Martins como liderança na região da fronteira e na Europa, sendo homem próximo a Lafayette e ao Imperador por seus vínculos políticos (ROSSATO, 2020). Essas rearticulações políticas da Monarquia acalmaram com a notícia da morte de D. Pedro II, em fins de 1891, pois ele representou um importante elo de articulação da elite brasileira na Europa. Silveira Martins, que já tinha o revogamento do seu Decreto de Banimento, em fins de 1890 decidiu retornar ao Brasil. Embarcou no paquete inglês Clyd em direção às terras brasileiras, em fins de 1891. Desacompanhado de parte da sua família, que permaneceu em Paris, desembarcou em Recife, capital de Pernambuco, no primeiro dia do ano de 1892, para reencontrar velhos amigos e políticos da época de Faculdade de Direito e do Partido Liberal. De Recife viajou para o Rio de Janeiro, onde realizou conferência com o Ministro da Guerra e da Agricultura, a convite do próprio Presidente da República, Floriano Peixoto. A conferência tratava de assuntos de interesse do Rio Grande do Sul como as estradas de ferro e a barra do Rio Grande, o que vem a demonstrar as tentativas de rearticulações políticas apresentadas por Silveira Martins junto ao governo brasileiro para a continuação de obras que estavam em andamento no Império. Da Capital brasileira, seguiu viagem para o Rio Grande do Sul, passando por Rio Grande, Pelotas e Bagé, onde foi recebido por amigos, políticos e população local. Permaneceu alguns dias em Bagé para tratar de assuntos particulares e logo transportouse para Porto Alegre, para dar seguimento às rearticulações políticas com seus antigos companheiros liberais e dissidentes republicanos Maia de. Um diplomata na Corte de Inglaterra: O Barão de Penedo e sua época. Brasília: Senado Federal; Conselho Editorial, 2006. 443 SUMÁRIO De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins em uma nova agremiação partidária, o Partido Federalista, criado em Congresso que foi realizado em Bagé no ano de 1892. Para Silveira Martins, como uma das lideranças da Revolução Federalista, era importante defender um Estado forte, unido no formato da já instalada República, compreendida como um Estado Federal Parlamentar a fim de evitar a fragmentação e o Presidencialismo que havia adquirido status militar e despótico nos primeiros anos da República com Deodoro da Fonseca, Floriano Peixoto e Júlio de Castilhos. As relações de Gaspar Silveira Martins com Bagé As relações de Gaspar Silveira Martins com Bagé foram manifestadas em diferentes momentos de sua trajetória política. Para demonstrar a incompetência do Ministério chefiado por José Maria da Silva Paranhos (Rio Branco) para com a nomeação de chefes de polícia e juízes de paz nas localidades, Silveira Martins fez uso do exemplo de Bagé, em relação ao assassinato de um estrangeiro italiano e a impunidade dos criminosos, decorrente dos funcionários nomeado por aquele Gabinete.25 Mais tarde, ainda na Câmara dos Deputados, denunciou a circulação de notas falsas em Bagé pedindo ao governo medidas protetivas contra a invasão de moedas falsas na Província do Rio Grande do Sul.26 Como Senador, atuou na defesa das estradas de ferro à sua Província, em especial a que ligava Rio Grande, Bagé e Cacequi.27 Ainda no Senado, denunciava a nomeação de funcionários públicos na fronteira adeptos do Partido Republicano, a exemplo da circular de 10 de dezembro de 1882, que criou o Clube Republicano de Bagé e dois de seus signatários nomeados aos cargos de Promotor em Santana do Livramento e delegado de polícia em Bagé.28 Da mesma forma, requereu esclarecimentos em relação à transferência do promotor que atuava em Pelotas para Bagé, depois que o mesmo investigava sobre o assassinato de um capitão a mando de um subdelegado de Pelotas.29 25. MARTINS, Gaspar Silveira. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão de 16 jan. 1873. 26. MARTINS, Gaspar Silveira. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão de 07 fev. 1877. 27. MARTINS, Gaspar Silveira. Anais do Senado Federal. Sessão de 08 jun. 1885. 28. MARTINS, Gaspar Silveira. Anais do Senado Federal. Sessão de 09 jun. 1883. 29. MARTINS, Gaspar Silveira. Anais do Senado Federal. Sessão de 04 ago. 1888. 444 SUMÁRIO De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins Pelo exposto nos discursos, evidencia-se que Bagé esteve sendo levada à representatividade nacional através da atuação de Silveira Martins que, circulava entre a Corte e a região fronteiriça platina, levando aos debates públicos diversas situações ocorridas em Bagé como instâncias que deviam ser reformadas e/ou melhoradas em termos políticos e administrativos no Império. No breve levantamento que realizamos em relação à Bagé no Parlamento percebem-se os vínculos que interligavam Silveira Martins a sua região. Logo após o Decreto de Revogação do Desterro de Silveira Martins na Europa, em Bagé, no Rio Grande do Sul, na zona de fronteira com o Uruguai, uma comissão foi nomeada para cuidar dos festejos populares, quando do retorno de Silveira Martins à pátria após seu período de exílio, a fim de angariar donativos para as comemorações. Entre os membros da comissão estavam os nomes de João Fecundo da Silva Tavares, Antônio Maria Martins, Júlio da Silva Flores, José Frederico Jardim e Luiz Alves Branco Muniz Barreto.30 Tal correspondência evidencia que a data ainda seria comunicada, em tempo, pelo autor da carta, o major Thomas Márcio Pereira, ao comerciante bageense João Lydio de Castro.31 A repercussão da possibilidade de retorno trazida pelo Decreto de Revogação não seria diferente, e a espera era aguardada por seus amigos e companheiros fronteiriços bageenses, os mesmos que, logo em seguida, fizeram parte do Partido Federalista (1892). O retorno de Silveira Martins da Europa para Bagé representou a união entre os antigos liberais e base política local. Sua liderança e capacidade de articulação política e circulação entre a região fronteiriça platina, o Rio de Janeiro chegando até mesmo a Europa possibilitou a projeção de um novo Partido e de levar adiante a ideia da Revolução contra a situação política local/estadual e federal, na qual o separatismo do Rio Grande do Sul esteve em jogo. Inicialmente, frente à projeção das eleições estaduais para o segundo semestre de 1892, a organização dos antigos liberais e 30. Encontramos informações apenas a respeito dos seguintes integrantes: João Fecundo da Silva Tavares era irmão do General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares), foi Coronel da Guarda Nacional e ocupou cargos políticos em Bagé/RS (ANDRADE, 2017); Antônio Maria Martins era fazendeiro e morador de Bagé (TROPEIRO ROUBADO. A Federação, Porto Alegre. 09 mai. 1903, p. 2. Hemeroteca da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ, Brasil); Luiz Alves Branco Muniz Barreto era natural da Bahia, em que aparece no Obituário do ano de 1891: OBITUÁRIO. Jornal do Commércio, RJ, 09 mar. 1891, p. 2. Hemeroteca da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 31. PEREIRA, Thomas Márcio. Carta a João Lydio de Castro. Bagé, 24 dez. 1890. Arquivo Público da cidade de Bagé, RS. Agradeço a gentileza do colega Gustavo Figueira Andrade pela disponibilidade desse documento. 445 SUMÁRIO De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins conservadores, que não haviam migrado ao Partido Republicano, somados aos dissidentes desse último, foi pensada no formato partidário que pudesse concorrer ao pleito estadual. Assim, o Partido Federalista foi criado às voltas de seu principal líder, Silveira Martins, em uma Convenção realizada na cidade de Bagé, Rio Grande do Sul, em 31 de março de 1892. Em reunião em Bagé naquela data, sob a presidência do general Joca Tavares e na presença de outros companheiros, repudiouse a Constituição Estadual, identificada como a Constituição de Júlio de Castilhos, definindo-se pontos importantes de defesa como: o presidente do Estado deveria ter mandato de quatro anos sem reeleição, estando ele sob a responsabilidade dos secretários (característica parlamentar); a Câmara deveria ser eleita por quatro anos por distrito e renovada pela metade a cada biênio; os municípios deveriam ter autonomia completa; a imprensa deveria ser livre; o governo deveria levar leis para serem discutidas na Câmara.32 Esses pontos, levantados no Congresso de Bagé e defendidos enquanto ideias do Partido Federalista e enquanto projeto de uma reforma na Constituição, tinham por objetivo oferecer uma possibilidade de organização constitucional frente às intempéries do período político que correspondia ao momento em que o Rio Grande do Sul era governado por uma Junta Governativa Provisória (de 12 de novembro de 1891 a 17 de junho de 1892), sob o predomínio do Partido Republicano Federal, dissidência do PRR, que revogou a Carta Constitucional de Júlio de Castilhos (TRINDADE, 1979). Esse partido contou com a redação do jornal O Rio Grande e com personalidades como Demétrio Ribeiro, Antão de Farias, Joaquim Pedro Soares, Barros Cassal, Adriano Ribeiro, Annibal Cardoso, Joaquim Pedro Salgado, entre outros (TRINDADE, 1979), que se uniram ao Partido Federalista e participaram da Revolução Federalista. Em uma segunda reunião do Partido Federalista, as bases do sistema jurídico ficaram acertadas, primando pela nomeação dos juízes de direito por meio do governo federal, e dos juízes municipais por meio das próprias câmaras municipais. Esses itens foram apresentados e votados em assembleia, coordenada por Joca Tavares33, Adriano 32. RIO GRANDE DO SUL. Telegrama. Bagé, 2. Gazeta da Tarde, RJ, 04 abr. 1892, p. 2. Hemeroteca da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 33. João Nunes da Silva Tavares (1818-1906) era antigo chefe político do Partido Conservador na cidade de Bagé durante o Império. Pertencia a uma família com propriedades rurais no Rio Grande do Sul e Uruguai, ocupando o posto de chefe militar, na qual participou da Revolução Farroupilha, em 1835, ao lado das forças imperiais, da campanha contra Oribe e Rosas em 1851, e posteriormente da Guerra do Paraguai em 1865. Fez parte do Partido 446 SUMÁRIO De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins Ribeiro e Francisco Tavares.34 Na mesma ocasião, Silveira Martins foi indicado à chefia do Partido Federalista, composto por um Diretório formado por ele, com Joca Tavares de vice- presidente, Adriano Ribeiro de secretário, Coronel Salgado, Apolinário Porto Alegre e o Sr. Bittencourt35 como membros, consolidando a aliança política entre o Partido Federalista e os dissidentes republicanos organizados sob a denominação de Partido Republicano Federal. O Partido Federalista contava ainda com a atuação de Francisco Antunes Maciel36, amigo de Gaspar Silveira Martins e importante liderança política em Pelotas. Nesse sentido, Bagé foi palco do movimento de rearticulação política federalista, de reformulação constitucional estadual e federal, pela primazia das liberdades locais (federalistas), limitação do Executivo Estadual e maior responsabilidade dos Secretários e da Assembleia estadual (parlamentarismo). Também foi local da Revolução Federalista (1893-1895), seja por suas principais lideranças envolvidas e por sua tradição política relacionada ao Partido Liberal e Partido Conservador, seja como palco de alguns confrontos armados entre federalistas e as forças governistas durante o período de 1893 a 1895. Durante a Revolução Federalista, Silveira Martins, sua família e companheiros do Partido Federalista, dissidentes republicanos, somando-se também os militares, civis e marinheiros da Revolta da Armada, estiveram em circulação política entre o Uruguai e a Argentina, nas condições de migrados políticos, pois no Rio Grande do Sul estavam sendo perseguidos por Júlio de Castilhos com apoio federal de Floriano Peixoto. Assim, a Revolução Federalista alcançou uma projeção internacional, envolvendo diferentes Estados Nacionais a partir do deslocamento, alianças e organização dos mantimentos Conservador e foi indicado pelo governo republicano provisório como Comandante Militar da fronteira, deixando o cargo pouco tempo depois, para juntar-se a outros chefes na organização do Partido Federalista. Para saber mais, ver trabalho de: ANDRADE, G. F. A trajetória política do General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares): família, comunicação e fronteira. 2017. 177f. Dissertação (Mestrado História) - UFSM, Santa Maria, RS, 2017. 34. Irmão de João Nunes da Silva Tavares, oriundo da fronteira sul do Brasil, ocupou cargos na política e na Guarda Nacional durante o Império, assim como foi nomeado governador do Rio Grande do Sul por Deodoro da Fonseca em 1890. Para saber mais, ver em: ANDRADE. G. F. Op. Cit. 35. RIO GRANDE DO SUL. Telegrama. Bagé, 2. Gazeta da Tarde, RJ, 04 abr. 1892, p. 2. Hemeroteca da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 36. Francisco Antunes Maciel (1844-1917) era natural de Pelotas (RS) e bacharel em Direito, alcançou altos cargos políticos junto ao Império como os de Deputado e Conselheiro do Imperador pelo Partido Liberal. Posteriormente, com a República, aderiu ao Partido Federalista, sendo companheiro e seguidor de Silveira Martins. Para saber mais a respeito dessa trajetória, ver a tese de Doutorado de: PAULA, Débora Clasen de. Família, Guerra, Política, Negócios e Fronteira: os Antunes Maciel desde o século XVIII aos inícios do século XX. 2019. 212f. Tese (Doutorado em História) – UFRGS, Porto Alegre, RS, 2019. 447 SUMÁRIO De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins para as tropas que os federalistas e seus aliados construíram ao longo da Revolução no Brasil, Uruguai, Argentina e até mesmo na Europa (ROSSATO, 2020). Após a Revolução Federalista, com a rendição dos federalistas e acordo de paz entre as partes, Silveira Martins retirou-se para sua estância no Uruguai, continuando transitando pela região fronteiriça platina, especialmente entre Bagé e Montevidéu. Suas terras no Uruguai, herdadas de sua família, compunham, nesse momento, sua principal fonte de renda; além de tudo, ocupava-se dos assuntos políticos que continuavam a agitar a fronteira, convulsionada naquele momento pelas agitações revolucionárias entre os grupos políticos uruguaios Blancos e Colorados, como ele mesmo declarou em carta, dias antes de falecer, a seu amigo e companheiro da Revolução Federalista, Barros Cassal: Ao J. Gabriel se devia fallar só em nome de Hipólito, nossos companheiros não podiam incomodar-se com isso. As cartas para os negócios do centro são meios perigosas em tempo de traições e em que parece que os homens perderam todo o pudor. Os adversários tem feito gde barulho com o negocio e o medo já lhe faz ver forças federalistas reunidas na fronteira sob a proteção do Presidente Oriental com a que ao mesmo tempo se desculpam do contrabando de armas que estão fazendo cautelosamente para os seus aliados, os blancos. Em breve tenciono conferenciar com o nosso novo amigo e para isso não deixarei de avisa-lo como me pede e é meu desejo. Não tenho em nossa pátria muita ambição do que a de sepultar-me nella – a terra livre como livre era quando nella residia-me. Não tenho podido desprender-me daqui pelas dificuldades da vida de estancieiro embaraçado por obrigações pessoais que contrahi na guerra e principalmente pelas que me foram creadas pela falta de juízo de meos dous filhos J. Júlio e Álvaro.37 Nesse sentido, os assuntos políticos do período continuavam na pauta de atuação de Gaspar Silveira Martins, e o temor da reorganização das forças federalistas permanecia entre as preocupações de seus antigos adversários. Isso vem a demonstrar a inserção política de Silveira Martins e sua importância no rol dos federalistas, posteriormente ao conflito armado, quando 37. MARTINS, Gaspar Silveira. Carta a Barros Cassal, 16 jun. 1901, Montevidéu. Fundo Gaspar Silveira Martins, Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/RS. 448 SUMÁRIO De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins preocupavam aos federalistas as consequências possíveis da guerra para os negócios familiares, que envolveram também seus filhos durante a guerra. A participação familiar de importantes personagens na Revolução Federalista era algo comum em se tratando de guerra e de fronteira, pois os negócios políticos (sociais, familiares, econômicos, entre outros) estão imbricados nesse processo. Os filhos de Silveira Martins, José Júlio e Álvaro, estavam mais integrados à estância da família no Uruguai, enquanto seus outros filhos, Adelaide, Francisca, Carlos e Gasparina, moravam no Rio de Janeiro. José Júlio e Álvaro estiveram junto nos corpos armados sob comando de Gumercindo Saraiva e Álvaro Silveira Martins envolveu-se também ao lado dos marinheiros na Revolta da Armada, iniciada em 6 de setembro de 1893, quando o mesmo teria tomado parte ao lado dos revolucionários.38 Obrigações pessoais mantinham Silveira Martins em sua propriedade no Uruguai, devido também ao envolvimento familiar na guerra. Silveira Martins faleceu em 24 de julho de 1901 na cidade de Montevidéu. Naquela mesma cidade foi sepultado e dezenove anos depois seus restos mortais foram trazidos para serem depositados junto à Catedral de São Sebastião, em Bagé, no túmulo localizado no interior da catedral, pertecente a seu pai Carlos Silveira. Isso comprova o pertencimento de Silveira Martins e sua família em Bagé, local escolhido para serem depositados seus restos mortais. Para essa representatividade que Silveira Martins e sua memória tiveram em Bagé, contribuiu sua atuação em favor dos comerciantes e estancieiros da fronteira em especial por sua luta em favor da aprovação de uma tarifa especial sobre produtos despachados em alfandegas da região que sofriam com a concorrencia do contrabando e dos similares das repúblicas visinhas.39 Da mesma forma, os caminhos 38. FALLECIMENTOS. Jornal do Commércio, RJ, 9 de jul. 1904, p. 2. Hemeroteca da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 39. Através do Decreto nº 7 101, de 30 de novembro de 1878, estabeleceu-se taxas especiais sobre mercadorias despachadas para consumo nas Alfândegas de Rio Grande, Porto Alegre, Uruguaiana (Província do Rio Grande do Sul), além da de Corumbá (Mato Grosso). Entre as mercadorias, específicas do Rio Grande do Sul e que sofriam a concorrência com produtos similares do Uruguai e com o contrabando, estavam itens como couros e peles, botinas e coturnos, chalés, mantas e lenços, tecidos e rendas de algodão, arames, roupas, entre outros. Fonte: MINISTÉRIO DA FAZENDA. Decreto nº 7.101, de 30 de Novembro de 1878. Câmara dos Deputados. Disponível em: www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/ decreto-7101-30-novembro-1878-548124-publicacaooriginal-63105-pe.html.> Acesso em 16 nov. 2013. Como Ministro da Fazenda, prorrogou, por mais um ano, as disposições do decreto que suspenderam a cobrança dos direitos de consumo de gado vacum e lanígero vindos dos países estrangeiros (Decreto nº 7077 de 9 de novembro de 1878), já previsto dentro da Lei Orçamentária, o que beneficiou, sobretudo, os estancieiros brasileiros que tinham propriedades no Uruguai e no Rio Grande do Sul, a exemplo de Silveira Martins e de sua família. 449 SUMÁRIO De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins de ferro eram parte do projeto de modernização de Silveira Martins interligando pontos estratégicos da Província do Rio Grande do Sul, aproximando a capital, litoral e fronteira facilitando as comunicações comerciais entre regiões produtora de gado, de produção de charque e exportadora e regiões de colonização europeia voltadas para uma economia diversificada e abastecimento local. Além dessas pautas que beneficiavam Bagé e a fronteira, contribui também para a construção da memória de Silveira Martins, o trabalho da maçonaria, como demonstramos nas imagens a seguir: Figura 1 – Quadro em homenagem a Gaspar Silveira Martins, presente na Loja Amizade, de Bagé. Figura 2 – Imagem do local onde se encontra o túmulo de Silveira Martins e das homenagens prestadas pela maçonaria, em nome da loja Amizade de Bagé e do federalismo bageense: Fonte: Fotografia do Acervo Pessoal de Monica Rossato. Catedral de São Sebastião, Bagé, RS, Brasil, 2017. 450 SUMÁRIO De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins Dessa maneira, Silveira Martins migrou de uma região fronteiriça platina para fazer história e ocupar os postos políticos e de poder mais importantes do Brasil do século XIX, enviado à Europa como ameaça ao novo regime republicano. Sua memória ligada a um federalista e parlamentarista perduram até hoje, de alguém que defendeu, sobretudo, os interesses de sua região e dos grupos que a ele estavam articulados como estancieiros, comerciantes e imigrantes. Viver em um espaço de fronteira foi crucial para a formação política, sua visão liberal e das autonomias locais, como forma de manter a unidade de um Estado Nacional e as liberdades individuais. Considerações finais Com o presente texto, procuramos demonstrar como o fronteiriço Gaspar Silveira Martins chegou a figurar entre os políticos mais conhecidos do Brasil do século XIX, na ocupação de cargos como os de Deputado Provincial, Deputado Geral, Senador, Ministro da Fazenda, Presidente de Província e Conselheiro do Imperador. Com a Proclamação da República em 1889, seus planos foram barrados e o desterro à Europa imposto por desavença entre ele e Deodoro da Fonseca a quem Silveira Martins criticava em razão do militarismo e despotismo com que a República foi construída. Na Europa, as vivências junto à colônia brasileira em Paris o aproximaram dos políticos mais influentes do período do âmbito brasileiro e europeu, assim como o estabelecimento de uma rede de contatos com periodistas e com o legado das ideias mazzinianas e liberais da Itália. Junto a isso, os vínculos que também o levaram à Alemanha, no que diz respeito aos interesses da imigração na sua região. Por toda essa trajetória política de Silveira Martins percebemos como a região fronteiriça platina fez parte de sua formação e enquanto político, nas ideias e projetos pensados para ela, projetando Bagé e sua região a um patamar nacional e internacional. Referências ANDRADE, G. F. A trajetória política do General João Nunes da Silva Tavares (Joca Tavares): família, comunicação e fronteira. 2017. 177f. Dissertação (Mestrado História) - UFSM, Santa Maria, RS, 2017. ARAÚJO, Naira Hofmeister de. Estudo sobre a vida e a obra de Apolinário Porto 451 SUMÁRIO De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins Alegre. 2018. 118f. Dissertação (Mestrado em Letras) - UFRGS, Porto Alegre, RS, 2018. BARBOSA, Rui. Obras Comp\letas de Rui Barbosa. Vol. XVII, Tomo II, 1890. BRASIL. Constituição da Republica dos Estados Unidos do Brasil, 24 de fev. 1891. In: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao91.htm>. Acesso em: 30/03/2019. BRASIL. Decreto nº 78, de 21 de dezembro de 1889. Coleção de Leis do Império do Brasil - 1889, Página 273 (Publicação Original). Disponível em: http://www2.camara. leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-78- 21-dezembro-1889-542219-publicacaooriginal-50068-pe.html.> Acesso em: 28/09/ 2015. CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem/ Teatro de sombras. São Paulo: Civilização Brasileira, 2003. CERTIDÃO de Gaspar Silveira Martins como Grão-Mestre da Ordem. Grande Oriente Brasileiro, 1883. Fonte: Acervo do Grande Oriente do Rio Grande do Sul (GORGS), Porto Alegre, RS. CIRCULO Garibaldino. El Día, Montevideo, 09 mai. 1892. Hemeroteca do Palácio Legislativo do Uruguai, Montevidéu, Uruguai. DIÁRIO DO COMMÉRCIO, 13 out. 1890. Hemeroteca da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. FALLECIMENTOS. Jornal do Commércio, RJ, 9 de jul. 1904, p. 2. Hemeroteca da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. Os subversivos da República. São Paulo: Brasiliense, 1986. JORNAL DO COMMÉRCIO, RJ, 21 fev. 1890, p. 2. Hemeroteca da Biblioteca Nacional Rio de Janeiro, RJ, Brasil. QUADRO EM HOMENAGEM A GASPAR SILVEIRA MARTINS. Acervo do Museu Líbio Vinhas, da Loja Amizade, Bagé, RS. Imagem gentilmente disponibilizada pelo Sr. Edegar Quintana, em 9 set. 2013. MARTINS, Silveira. Anais da Assembleia Legislativa Provincial. Sessão de 21 abr. 1874, p. 421. Memorial da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS. MARTINS, Gaspar Silveira. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão de 31 jul. 1873, p. 352. MARTINS, Gaspar Silveira. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão de 10 fev. 1879, p. 418. MARTINS, Gaspar Silveira. Anais da Câmara dos Deputados, 10 jan. 1879, p. 412 e 413. MARTINS, Gaspar Silveira. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão de 27 fev. 1879, p. 107 e 108. MARTINS, Gaspar Silveira. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão de 16 jan. 1873. 452 SUMÁRIO De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins MARTINS, Gaspar Silveira. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão de 07 fev. 1877. MARTINS, Gaspar Silveira. Anais do Senado Federal. Livro 4, Sessão de 11 ago. 1887, p. 183. MARTINS, Silveira. Anais do Senado, Livro 6. Sessão de 14 de nov. 1888, p. 554560. MARTINS, Gaspar Silveira. Anais do Senado Federal. Sessão do dia 5 set. 1888. p. 554. MARTINS, Gaspar Silveira. Anais do Senado Federal. Sessão de 08 jun. 1885. MARTINS, Gaspar Silveira. Anais do Senado Federal. Sessão de 09 jun. 1883. MARTINS, Gaspar Silveira. Anais do Senado Federal. Sessão de 04 ago. 1888. MARTINS, Gaspar Silveira. Carta a Barros Cassal, 16 jun. 1901, Montevidéu. Fundo Gaspar Silveira Martins, Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/ RS. MARTINS, Gaspar Silveira. Conferencia Radical, oitava sessão, 1869. Discurso proferido pelo Sr. Dr. Gaspar Silveira Martins sobre o Radicalismo. Rio de Janeiro: Typografia e Lithographia Esperança, 1869. Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. MARTINS, Gaspar Silveira. Entrevista do Senador Gaspar Silveira Martins ao Times em 23 de janeiro de 1890. Gazeta de Portugal, Lisboa, 28 jan. 1890. Periódico pesquisado no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), Rio de Janeiro. MARTINS, José Júlio Silveira. Silveira Martins. Rio de Janeiro: Typ. São Benedicto, 1929. MENDONÇA, Renato Firmino Maia de. Um diplomata na Corte de Inglaterra: O Barão de Penedo e sua época. Brasília: Senado Federal; Conselho Editorial, 2006. MINISTÉRIO DA FAZENDA. Decreto nº 7.101, de 30 de Novembro de 1878. Câmara dos Deputados. Disponível em: www2.camara.leg.br/legin/fed/ decret/1824-1899/decreto-7101-30-novembro-1878-548124-publicacaooriginal-63105-pe.html.> Acesso em 16 nov. 2013. MOVIMENTO do Porto. Navios sahidos no mesmo dia. O Liberal republicano, 16 nov. 1853, p. 4. Acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. OBITUÁRIO. Jornal do Commércio, RJ, 09 mar. 1891, p. 2. Hemeroteca da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. PADOIN, Maria Medianeira. O federalismo no espaço fronteiriço platino. A Revolução Farroupilha (1835-1845). Tese (Doutorado). Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS, Porto Alegre, 1999. PAULA, Débora Clasen de. Família, Guerra, Política, Negócios e Fronteira: os Antunes Maciel desde o século XVIII aos inícios do século XX. 2019. 212f. Tese (Doutorado em História) – UFRGS, Porto Alegre, RS, 2019. 453 SUMÁRIO De Bagé à Europa: os espaços de circulação de Gaspar Silveira Martins PEREIRA, Thomas Márcio. Carta a João Lydio de Castro. Bagé, 24 dez. 1890. Arquivo Público da cidade de Bagé, RS. RAMOS, Carlos da Silveira Martins. Ministério das Relações Exteriores. Almanaque do pessoal para 1940, p. 270. Rio de Janeiro: Jornal do Commércio, 1940. Hemeroteca da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. REGISTRO de matrimônio de Adelaide Augusta de Freitas Coutinho e Gaspar Silveira Martins. 27 de novembro de 1856. Rio de Janeiro. Registros da Igreja Católica 1616-1980. Rio de Janeiro, Paróquia Sant’Ana, Matrimônios 1852, Jul1861, Abr, imagem 128. Disponível em: https://familysearch.org/pal:/MM9.3.1/ TH-1-14261-13538-55?cc=1719212&wc=M9W3-KJ6:n631073193.> Acesso em 30/07/2013. RIBEIRO, Maria Manuela Tavares. Centralização – descentralização: uma polemica nos meados do século XIX. Revista de Ciências Históricas, Universidade Portucalense, Vol. V, 1990, pp. 343-352. La carbonária y la crisis europea (1848). Portugal y Espanã – Semejanzas. In: BENIMELI, J. A. Ferrer (Coord.). Masoneria, Revolucion y reaccion. IV Symposium Internacional de História de la Masoneria Española. Alicante, 1990. Portugal e a Revolução de 1848. Coimbra: Livraria Minerva, 1990. 574 p. RIO GRANDE DO SUL. Telegrama. Bagé, 2. Gazeta da Tarde, RJ, 04 abr. 1892, p. 2. Hemeroteca da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. ROSSATO, Monica. Relações de poder na região fronteiriça platina: família, trajetória e atuação política de Gaspar Silveira Martins. 2014. 163f. Dissertação (Mestrado em História) - UFSM, Santa Maria, RS, 2014. ROSSATO, Monica. Gaspar Silveira Martins e a Revolução Federalista (18931895): que federalismo é esse?. 2020. 376f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Santa Maria, RS, 2020. SILVEIRA MARTINS. O Brasil, 15 fev. 1890, p. 2. Hemeroteca da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. TRANSCRIPÇÃO Silveira Martins. A Reforma, Porto Alegre, 26 de nov. 1886. Acervo do Museu de Comunicação Hipólito José da Costa, Porto Alegre, RS. TRINDADE, Hélgio. Aspectos Políticos do Sistema Partidário Republicano Rio Grandense (1882-1937). Da confrontação autoritário – liberal à implosão da aliança político-revolucionária de 30. In: DACANAL, José H. e GONZAGA, Sérgius. RS: Economia e política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1979. TRINDADE, Helgio. Poder Legislativo e autoritarismo no Rio Grande do Sul: 1891- 1937. Porto Alegre, Sulina, 1980. TROPEIRO ROUBADO. A Federação, Porto Alegre. 09 mai. 1903, p. 2. Hemeroteca da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. VARGAS, Jonas Moreira. “Os barões do charque e suas fortunas”. Um estudo sobre as elites regionais brasileiras a partir de uma analise dos charqueadores de Pelotas (Rio Grande do Sul, século XIX). São Leopoldo: Oikos, 2016. 454 SUMÁRIO 455 SUMÁRIO O CAUDILHO E A RAINHA DA FRONTEIRA: APONTAMENTOS SOBRE A RELAÇÃO ENTRE APARÍCIO SARAIVA E O MUNICÍPIO DE BAGÉ DURANTE AS REVOLUÇÕES DE 1896 E 1904. Pablo Rodrigues Dobke1 456 SUMÁRIO O caudilho e a Rainha da Fronteira: apontamentos sobre a relação entre Aparício Saraiva e o município de Bagé durante as revoluções de 1896 e 1904 1 Introdução Não é de hoje que a região fronteiriça onde se encontra o munícipio de Bagé é motivo de estudos devido sua fundamental importância frente às atividades bélicas decorridas ao longo do século XIX e início do XX. Não somente as Coroas Portuguesa e Espanhola utilizaram-se da referida zona, sendo esta disputa apenas o embrião daquilo que se seguiu até finalizarem as contendas armadas, sejam as brasileiras, uruguaias e até mesmo entre as duas nações. Outro fator interessante naquilo que diz respeito às disputas fronteiriças, fica a cargo do estabelecimento dos Estados-nacionais de Brasil e Uruguai, visto que a linha que demarca territorialmente ambos os países é motivo de contestação política até os dias de hoje2. No entanto, antes de entrar no assunto aqui proposto, gostaria de frisar que este artigo tomou como base alguns trechos de minha Dissertação de Mestrado, “Caudilhismo, território e relações sociais de poder: o caso de Aparício Saraiva na região fronteiriça entre Brasil e Uruguai (1896 – 1904)”, defendida na Universidade Federal de Santa Maria no ano de 2015 e orientada pela professora doutora Maria Medianeira Padoin; observo também que a pesquisa referente à Dissertação foi financiada com bolsa de estudos FAPERGS/CAPES. Na Dissertação acima citada, a partir de uma pesquisa bibliográfica e documental na perspectiva da história política, procurei trabalhar com as relações sociais e de poder, tendo nas 1. Mestre em História (UFSM/Brasil). 2. Masoller (UY) ou Vila Albornoz (BR): Área reclamada pelo governo uruguaio a partir de 1934, contígua ao território brasileiro, sendo apropriada por este último desde 1861, pertencendo ao município de Santana do Livramento (RS), fronteira ao Departamento uruguaio de Rivera. Para mais, ver: https://web.archive.org/web/20070817200811/http://www.info. lncc.br/wrmkkk/masollee.html (Acesso em: 12 de jan. 2021). 457 SUMÁRIO O caudilho e a Rainha da Fronteira: apontamentos sobre a relação entre Aparício Saraiva e o município de Bagé durante as revoluções de 1896 e 1904 obras historiográficas do período, bem como em posteriores e, na análise da documentação (constituída de diários, correspondências e periódicos) a fundamentação para a referida pesquisa. Neste sentido, tive como objetivo a investigação acerca da atuação do caudilho fronteiriço uruguaio Aparício Saraiva a fins do século XIX e início do XX, considerando suas relações sociais na materialização de um território de poder e na territorialização deste mesmo poder. Assim, a região de fronteira, o indivíduo, o partido político e a sociedade, imprimiram um capital simbólico que acabou por caracterizar a liderança do caudilho. A saber, Aparício Saraiva, importante caudilho uruguaio que a fins do século XIX e início do XX monopolizou as atenções no cenário político da região fronteiriça entre o Uruguai e o estado brasileiro do Rio Grande do Sul, fazendo com que sua pessoa gozasse de enorme prestígio na referida região, concebendo assim um território de poder entre os dois Estados-nacionais. Aparício Saraiva era o quarto filho do casal Francisco Saraiva (que em solo uruguaio tornou-se Saravia) e Propícia da Rosa, sulrio-grandenses do atual município de Lavras que migraram para o Uruguai em uma data que segundo o historiador uruguaio Enrique Mena Segarra, oscila entre 1847 e 1854 (1998, p. 11). O lugar em que Francisco Saraiva fixou suas posses foi à extensão que compreende hoje os Departamentos fronteiriços de Cerro Largo e Treinta y Tres, este último, até o ano de 1884 ainda não havia se desmembrado do primeiro, levando a crer que Francisco era dono de uma grande extensão de terras dentro do até então Departamento de Cerro Largo. Foi então, que na Estância La Chilca, a quarta adquirida, próxima a Cuchilla Grande no atual Departamento de Treinta y Tres, que em 16 de agosto de 1856 nasceu Aparício Saraiva (MENA SEGARRA, 1998, p. 13). Aparício, juntamente com seus irmãos, passou a maior parte de sua infância entre os trabalhos rurais nas propriedades de seu pai. Estudou os primeiros anos em uma das sete escolas existentes no Departamento de Cerro Largo durante a década de 1860. No ano de 1869, foi encaminhado ao Colégio do educador Baltasar Montero Vidaurreta em Montevidéu, do qual acaba fugindo alguns meses depois com o objetivo de voltar a Cerro Largo (GÁLVEZ, 1942, p. 27). A fuga do Colégio tornou-se celebre entre as biografias de Aparício, pois, segundo a maioria delas, ao escapar da escola montevideana o jovem Aparício (contando com quatorze anos na 458 SUMÁRIO O caudilho e a Rainha da Fronteira: apontamentos sobre a relação entre Aparício Saraiva e o município de Bagé durante as revoluções de 1896 e 1904 época), acaba se incorporando a um contingente revolucionário do Partido Blanco, que neste momento, sob a liderança do caudilho Timoteo Aparicio convulsionava-se na chamada Revolución de las Lanzas3 (GÁLVEZ, 1942, p. 27). Finalizada esta sublevação, Aparício retorna a sua vida ordinária de trabalhador rural nas estâncias do pai, onde passa a tropear, comprar e vender bovinos, levando-os principalmente para Montevidéu. No entanto, durante o ano de 1875 estoura outro movimento armado, conhecido por Revolución Tricolor4. Além de Aparício, tomam parte desta outros dois de seus irmãos, Gumercindo e Antônio Floricio, todos sob o comando do caudilho cerrolarguense Angel Muniz. Contudo, esta revolta foi facilmente deliberada pelo Ministro de Guerra, o coronel Lorenzo Latorre (NAHUM, 2013, p. 56). No ano de 1877, contando com seus 21 anos, contrai matrimônio com Cândida Díaz que era vizinha de sua família nas paragens da Cuchilla Grande. O casal teve seis filhos: Aparício, Nepomuceno, Ramón, Mauro, Exaltación e Villanueva (MENA SEGARRA, 1998, p. 15). No ano de 1886, os irmãos Saraiva – Aparício, Gumercindo e Antônio Floricio – ainda teriam outra oportunidade de agirem contra o “Militarismo”. A Revolución del Quebracho5 resumiu-se a uma só batalha, onde os rebeldes derrotados dispersaram-se rapidamente, impossibilitando a participação dos irmãos que estavam a caminho da mobilização quando receberam a notícia da derrocada insurgente (GÁLVEZ, 1942, p. 46). 3. Movimento armado ocorrido entre os anos de 1870 e 1872. Tinha por objetivo a reivindicação de uma maior participação do então Partido Blanco no governo do Colorado Lorenzo Batlle. Após esta sublevação foi onde se acordaram pela primeira vez as bases para a chamada “política de coparticipação”, onde, em tese, haveria uma divisão dos direitos entre as duas principais facções políticas, os blancos e os colorados. Para mais, ver: CASTELLANOS, Alfredo. Timoteo Aparicio, el ocaso de las lanzas. Montevidéu: Ediciones de la Banda Oriental, 1998. 4. Este movimento teve como característica a união dos partidos políticos contra o incipiente “Militarismo”, como uma forma de reestabelecer a legalidade constitucional que já vinha combalida graças aos insucessos econômicos e a impopularidade do Presidente José Ellauri, eleito em 1873 que aos poucos abria brechas para a intervenção dos militares comandados pelo coronel Lorenzo Latorre. Para mais, ver: NAHUM, Benjamín. Breve historia del Uruguay independiente. 9ª edição. Montevidéu: Ediciones de la Banda Oriental, 2013. 5. Esta contenda reuniu mais uma vez os membros das distintas coletividades políticas com o objetivo de darem um fim aos governos militares. Por consequência, o então Presidente, o coronel Máximo Tajes iniciou o processo de transição conhecido como “Civilismo”, dando assim abertura aos partidos para atuarem em suas representatividades políticas. Para mais, ver: NAHUM, Bejamín. Manual de historia del Uruguay: 1830-1903. 20ª edição. Montevidéu: Ediciones de la Banda Oriental, 2013. 459 SUMÁRIO O caudilho e a Rainha da Fronteira: apontamentos sobre a relação entre Aparício Saraiva e o município de Bagé durante as revoluções de 1896 e 1904 Antes de completar seus 37 anos, Aparício engajou-se na Revolução Federalista (1893-95)6 em solo brasileiro ao lado de seu irmão, o comandante federalista Gumercindo Saraiva. Com a morte deste último em 1894, Aparício é elevado ao posto de novo comandante da Revolução, colocação que exerceu até o fim da revolta em 1895. Esta expedição revolucionária que se estendeu pelos três estados do sul do Brasil viabilizou a experiência necessária a Aparício para que mais tarde empreendesse uma série de revoltas no Uruguai (1896, 1897, 1903 e 1904), elevando-se a um posto de destaque dentro do Partido Nacional, figurando como um de seus principais líderes durante o período. Desta maneira, a partir do ano de 1896, Aparício passa a atuar efetivamente na política uruguaia empenhando-se em conturbar o cenário hegemônico protagonizado pelo Partido Colorado. Passadas as insurgências de 1896 e 1897, Saraiva estabelece-se como o grande chefe do Partido Nacional. Operando em consonância com o Presidente Lindolfo Cuestas acerca dos problemas do País, preocupava constantemente seus arqui-rivais colorados, principalmente o futuro Presidente José Batlle y Ordóñez, que mesmo antes de vencer as eleições já prometia acabar com o governo bicéfalo7 que se encontrava o Uruguai (NAHUM, 2013, p. 259). O ano de 1904 marca a última atuação rebelde do chefe blanco. Em setembro deste ano, Aparício foi gravemente ferido na chamada Batalha de Masoller, localidade esta situada na região fronteiriça entre Uruguai e Brasil, a poucos quilômetros do Município de Santana do Livramento. Levado para o lado brasileiro, o Comandante em Chefe da revolução veio a falecer no dia 10 do mencionado mês de setembro, na estância de Dona Luiza Pereira, mãe de seu colaborador João Francisco Pereira de Souza (UMPIÉRREZ, 2007, p. 127). Como visto nesta breve biografia, Aparício, detinha um interessante destaque na região fronteiriça, o que acabava por refletir em seus companheiros de partido, fazendo com que a fronteira brasileiro-uruguaia fosse um local de confluência entre o caudilho e aqueles que o acompanhavam. Neste sentido é que se encontra 6. Evento político-militar que teve como base a luta entre Federalistas, capitaneados pelo tribuno Gaspar Silveira Martins e por Republicanos, estes sob a tutela do Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, Júlio de Castilhos. (KÜHN, 2007, p. 106). Segundo a historiadora Helga Piccolo (1993), a Revolução Federalista foi significativa para o processo histórico brasileiro, no momento de transição entre a Monarquia para a República, transformando assim a conjuntura social do país (p. 65). 7. Em menção a já citada “política de coparticipação”. 460 SUMÁRIO O caudilho e a Rainha da Fronteira: apontamentos sobre a relação entre Aparício Saraiva e o município de Bagé durante as revoluções de 1896 e 1904 o munícipio de Bagé, cidade já destacada por diversas atividades políticas e, sobretudo, bélicas na virada entre os séculos XIX e XX. Assim, o objetivo principal deste texto é retratar determinados episódios que acabaram por envolver algumas figuras de destaque nas contendas comandadas por Saraiva e que tinham na fronteira e, sobretudo, no município de Bagé e arredores o sustentáculo para os movimentos uruguaios (1896 – 1904) e que tanto conturbaram a supra referida região, fazendo da “Rainha da Fronteira” um local especial, diria até mesmo, uma aliada e tanto para as pretensões revolucionárias. Para tal, estão apresentadas aqui algumas situações pertinentes dentre o período das “Revoluções Saraivistas” e que muito dizem a respeito da conexão de Saraiva com o município. Agentes blancos na fronteiriça bagé: contexto, situações e aliados Finalizada a Revolução Federalista (1893 – 95) em solo brasileiro, o então nomeado Comandante em Chefe desta Revolução retorna ao Uruguai e encontra o país mergulhado em uma crise administrativa que já se arrastava por anos e um mecanismo de governo que não abria brechas, calcado no conceito da “influência diretriz”8, criado pelo anterior presidente da República, o colorado Julio Herrera y Obes. Neste contexto, o Partido Nacional ansiava por algo que fizesse tremer a hegemonia colorada, buscando no recém-chegado Aparício Saraiva a solução para tal incômodo. Com a exclusão de seus antigos aliados do poder, os federalistas, e a nova configuração política do Estado do Rio Grande do Sul sendo comandada com mão de ferro por Júlio de Castilhos e os demais membros do PRR, obriga Saraiva a buscar algo que o relaciona-se aos novos “donos” do Rio Grande. Para isto, procura então o auxílio de dois agentes de fundamental importância para suas ambições na política uruguaia, o chefe político local de Rivera, Abelardo Márquez e o comandante geral da fronteira sul-rio-grandense, João Francisco Pereira de Souza (CAGGIANI, 1997, p. 87). A nova conformação política do Rio Grande do Sul, de fato, modificou as estruturas vigentes desde o Império, principalmente, na base social de apoio ao governo. Assim destaca Fábio Kühn (2007): 8. A “influência diretriz” tinha por conceito que o povo inculto não tinha capacidade intelectual para eleger seus governantes e que estes deveriam ser propostos pelo próprio governo, que se convertia assim em eleitor, isolando deste modo a vigência da democracia política (NAHUM, 2013, p. 69). 461 SUMÁRIO O caudilho e a Rainha da Fronteira: apontamentos sobre a relação entre Aparício Saraiva e o município de Bagé durante as revoluções de 1896 e 1904 Diferente dos governos liberais do Império, que tinham seu poder assentado no latifúndio pecuarista da região da campanha, os republicanos buscaram respaldo nos novos setores da oligarquia rural, estabelecidos na região litorânea e na serra, e nos profissionais liberais, comerciantes e funcionários públicos das zonas urbanas (p. 107). No entanto, a preocupação do PRR com a região da campanha era algo latente, pois, lá, ainda residia a maioria de seus desafetos políticos e uma reorganização das relações precisava ser feita, daí então a importância de articularem-se com Aparício nesta via de duas mãos. Onde Saraiva necessitava dos subsídios provindos do Rio Grande do Sul para impulsionar seus objetivos políticos e os perrepistas9 careciam de fortalecerem-se para um melhor controle da região. Ao tratar-se da mediação de Abelardo Márquez, mais do que por em contato antigos rivais, permitiu uma maior interação entre estes agentes, chegando às vias de uma relação de grande amistosidade. Márquez, foi um reconhecido chefe blanco, líder político da fronteira pelo Partido Nacional, atuando especialmente na região de Rivera, com grande participação nas mobilizações de 1896-97 e 1903-04, sendo nomeado Comandante Geral da fronteira durante os períodos belicosos. Após a tentativa de impedir as eleições de 1896, Aparício procura a ajuda de seu amigo e fiel companheiro político, o já mencionado Abelardo Márquez, para então refugiar-se em território brasileiro, fixando moradia na cidade de Bagé. No entanto, o receio de ser perseguido em solo brasileiro devido à participação na Revolução Federalista em oposição ao PRR fez com que Aparício solicitasse a proteção de João Francisco sendo intermediado por Márquez, visto que estes há anos já vinham mantendo estreita relação referente a negociações envolvendo, principalmente, cavalos (CAGGIANI, 1997, p. 87). Recebendo as devidas garantias de João Francisco, Aparício começa a articular seu plano no município de Bagé, posto de forma efetiva em 1897 com o estourar de mais uma contenda blanca. No entanto, vale lembrar a importância deste contato para a política do Partido Nacional personificada neste momento pelo caudilho Aparício Saraiva, assim como para os objetivos sul-rio-grandenses. Para compreender mais destas ações, o trabalho de Ana Luiza Reckziegel (1999), aponta diversos fatores que contribuíram para este enlace 9. Assim chamados os correligionários do Partido Republicano Rio-grandense. 462 SUMÁRIO O caudilho e a Rainha da Fronteira: apontamentos sobre a relação entre Aparício Saraiva e o município de Bagé durante as revoluções de 1896 e 1904 entre os chefes fronteiriços, analisando a conjuntura política vivida no momento igualmente, como as questões que fizeram desta relação dita pela autora como uma “diplomacia marginal” um importante subsídio para ambas às aspirações. Outro trabalho interessante e que tem basicamente o mesmo objetivo – o de mostrar as relações mantidas entre os insurgentes blancos e os governistas sul-rio-grandenses – é o de Luis Eduardo Coronel Maldonado (2009). Neste, o autor expande o estudo também para a fronteira argentina, porém, no entanto, limita-se apenas a elencar os fatos ocorridos relativos à revolução uruguaia de 1904. Quanto à abordagem, o autor opta por um olhar da diplomacia, trazendo suas tratativas, assim como um anexo documental que colabora para a compreensão dos episódios. Em ambos os trabalhos citados acima, o destaque está justamente na relação mantida entre Saraiva e João Francisco, sendo esta relação consentida pelo governo republicano do Rio Grande do Sul. Com o objetivo de elucidar a conjuntura das relações sociais mantidas por Aparício na região fronteiriça e, sobretudo com o município de Bagé, parto para a demonstração de alguns apontamentos fundamentais que basearam a atuação político-revolucionária do caudilho, conformando assim uma estrutura que possibilitava uma confortável mobilidade de ação. Gumercindo, mesmo que já falecido, continuou a fornecer o elo que mantinha Aparício ligado a seus antigos companheiros sul-riograndenses. Por meio de Gumercindo que Aparício aproximou-se de figuras como Torquato Severo, Estácio Azambuja e Manuel Macedo, personagens estes que foram de fundamental importância durante as campanhas militares de Aparício, como também, nas questões comerciais abarcando os rebanhos equinos e bovinos. Para elucidar um pouco deste envolvimento, trago momentos distintos onde aparecem envolvidos estes três personagens. O primeiro a ser referido é o general Torquato Severo, oriundo do município de Dom Pedrito, que no decorrer da Revolução Federalista (1893-95) comandou a vanguarda de Aparício Saraiva durante o cerco da cidade paranaense da Lapa. Em carta de 12 de maio de 1897, a esposa de Aparício, a senhora Cândida Diaz, que ainda vivia em sua chácara nas cercanias de Bagé, se diz preocupada com o alto índice de furtos as cavalhadas na região e que se Aparício precisar ela entrará em contato com Torquato para enviar-lhe uma tropilha. Assim ela escreve: “los caballos si tu quieres 463 SUMÁRIO O caudilho e a Rainha da Fronteira: apontamentos sobre a relação entre Aparício Saraiva e o município de Bagé durante as revoluções de 1896 e 1904 yo hablo con Torcuato y mando para ya”10 (DIAZ, 1897). Reforçando a participação de Severo na contenda de 1897, o documento intitulado “Lista de la distribución de ropa a las fuerzas de Saravia”11, mostra uma relação de roupas e apetrechos a serem enviados para o exército de Aparício, juntamente com 160 homens, supostamente para inseriremse na luta. É sabido, que a família de Aparício vivia na mencionada chácara no município de Bagé, adquirida ainda em 1896 para organizar o levante armado daquele ano e que para gozar de tranquilidade no lado brasileiro, Aparício deveria estabelecer novos contatos, como no caso de sua aproximação com o comandante de fronteira João Francisco Pereira de Souza (MENA SEGARRA, 1998, p. 60), assim como reafirmar antigos vínculos, especialmente no que toca ao chefe Federalista da região, o pedritense, Torquato Severo. Outra reafirmação de contato recai sobre o caudilho Federalista Estácio Azambuja, figura destacada nas revoluções de 1893 e 1923 e líder político na região de Bagé. De maneira mais discreta, este mantinha relações comerciais com Aparício, principalmente ao se tratar da reprodução e criação de equinos. Em carta de sua estância na Carpintaria12 datada de 25 de junho de 1897, Azambuja solicita a Aparício um bom reprodutor para procriação, e ao que tudo indica, seus reprodutores haviam sido levados para servirem de montaria na revolução do lado uruguaio (AZAMBUJA, 1897). No entanto, o intuito da correspondência não refere-se em primeiro momento a mencionada solicitação. Azambuja pede para que Aparício lhe envie uma portaria, autorizando o transporte de uma carroça com “miudezas” da casa de seu sogro na localidade de Mangrullo13 em Cerro Largo até a sua estância na Carpintaria. Neste sentido, Azambuja escreve: Tenho necessidade de mandar até a estância de meu sogro, nos Mangrulhos, uma carroça para trazer-me umas miudezas que lá tenho. Rogo-vos, pois, mandar-me uma 10. Os cavalos se tu quiseres eu falo com Torquato e os mando para já [Tradução nossa]. DIAZ, Cândida. Carta a Aparício Saraiva, 12 de maio de 1897. Archivo General de la Nación (AGN). Arquivo Aparício Saraiva. Caixa família de Aparício Saraiva, pasta correspondências. Documento sem número de indicação. 11. Lista de distribuição de roupas as forças de Saraiva [Tradução nossa]. SEVERO, Torquato. Lista de roupas e apetrechos, 1897. Archivo General de la Nación (AGN). Arquivo Aparício Saraiva. Pasta 2, documento 49. Na lista, estão presentes artigos como: camisas, bombachas, alpargatas, ceroulas, ponchos e arreios. 12. Localidade situada no município de Bagé, na margem direita do Rio Negro. 13. Localidade próxima ao hoje município de Aceguá. 464 SUMÁRIO O caudilho e a Rainha da Fronteira: apontamentos sobre a relação entre Aparício Saraiva e o município de Bagé durante as revoluções de 1896 e 1904 portaria para que gente de vosso exército respeitem o condutor e os cavalos que a puxam14 (AZAMBUJA, 1897). Esta situação evidencia com clareza o poder de Aparício sobre a região, e até onde as relações sociais de poder estão aptas a ir. Pois, além dos tramites comerciais relativos à procriação de equinos, Estácio Azambuja, notado chefe Federalista, reconhecendo o “domínio” de Aparício solicita a segurança do mesmo para moverse em seu território, reconhecendo assim sua influência. Por último, trazemos como exemplo, e talvez, o mais significativo deles a respeito da efetiva participação de Federalistas ligados primeiramente a Gumercindo nas insurreições de Aparício no Estado Oriental, trata-se do coronel Manuel Macedo, conhecido como Fulião. Macedo, nascido no interior do município de Bagé15, participou ativamente da Revolução de 1904, chegando até mesmo a ser destaque em reportagem da revista argentina Caras y Caretas de 7 de maio de 190416. Estes elos construídos primeiramente por Gumercindo foram herdados e mantidos por Aparício como uma maneira de continuidade no estabelecimento das relações. Mesmo que o poder houvesse trocado de lado no Rio Grande do Sul com a vitória Republicana sobre os Federalistas, e a fronteira fosse controlada com rigor pelo comandante João Francisco Pereira de Souza, os líderes e chefetes Maragatos continuavam a exercer sua influência mesmo que de maneira reduzida, porém, com eficácia e ativa participação. Nesta rede de auxílio provinda da região fronteiriça destaco também os coronéis Juan Francisco e Antonio Mena, especialmente durante a insurreição de 1897. Os irmãos Mena foram fundamentais agentes, sobretudo no Departamento uruguaio de Treinta y Tres, atuando também nas cidades sul-rio-grandenses de Bagé e Santana 14. AZAMBUJA, Estácio. Carta a Aparício Saraiva, 25 de junho de 1897. Museo Historico Nacional (MHN). Coleção Diego Lamas. Tomo 275, documento 106. 15. Manuel Rodrigues de Macedo (Fulião), nasceu em local desconhecido no interior de Bagé, era caracterizado como um homem que gozava de privilégios devido à hierarquia militar, pois, não era grande proprietário de terras, além de ser mestiço, fatos que lhe “garantiam ficar à vontade em meio aos soldados rasos”, dos quais se diferenciava unicamente devido ao seu posto militar (CHASTEEN, 2003, p. 84). 16. Na reportagem intitulada “La Revolución Oriental”, o coronel Fulião aparece de forma realçada em foto solo e em outra juntamente com seus três filhos. Coronel Fulião. In: Caras y Caretas. 7 de maio de 1904, nº 292, Ano VII, p. 46. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional da Espanha. Fonte: <http://hemerotecadigital.bne.es/issue.vm?id=0004175896&page=46&search=&lang=es>. Acesso em 06 jan. 2021. Coronel Manuel Macedo (Fulião) e seus filhos. In: Caras y Caretas. 7 de maio de 1904, nº 292, Ano VII, p. 46. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional da Espanha. Fonte: <http://hemerotecadigital.bne.es/issue. vm?id=0004175896&page=46&search=&lang=es>. Acesso em 06 jan. 2021. 465 SUMÁRIO O caudilho e a Rainha da Fronteira: apontamentos sobre a relação entre Aparício Saraiva e o município de Bagé durante as revoluções de 1896 e 1904 do Livramento onde possuíam propriedades e familiares, no intuito de levantarem recursos para o movimento nacionalista (FERNANDEZ SALDAÑA, 1945, p. 828). Os irmãos Mena, oriundos do mencionado Departamento de Treinta y Tres e com grande influência na região de Bagé no Rio Grande do Sul, tomaram parte na Revolução de 1897, tendo Juan Francisco deixado a insurreição após o combate de Aceguá a 8 de julho daquele ano por motivo de divergências com Aparício. Posteriormente, em 1903 juntou-se ao movimento liderado por Eduardo Acevedo Díaz em dissidência aos demais blancos que apoiavam Aparício a uma nova contenda, ladeando-se então ao governo do colorado José Batlle y Ordóñez (FERNADEZ SALDAÑA, 1945, p. 828). No entanto, Antônio, foi figura atuante em ambas as revoluções comandando a Divisão nº 17 de Rivera em conjunto com o coronel Antônio Saavedra. Por motivo de um tiro levado no pé, passou a acompanhar as tropas a bordo de uma charrete jardineira, como bem menciona Luis Alberto de Herrera (1898, p. 35). O coronel Antônio, mostrava-se como um agente independente, seguro de seus “domínios” e influências atuando por vezes na função de angariar recursos para a revolução. Em correspondência a Abelardo Márquez, Antônio comunica que está por mandar mais recursos do Brasil e pede que Márquez avise a Aparício sobre o caso. Assim Antônio escreve: Por mi parte ya está todo listo, abice (sic) el general que en cuanto tratan del armisticio me encuentro en Bracil (sic) reunindo recursos para darles al general y mis demás compañeros de causa. Quedo como siempre a sus ordenes17 (MENA, 1897). Além disso, por gozar de estabilidade, principalmente na cidade de Bagé, Antônio por muitas vezes agia como espião, avisando o Estado-Maior da revolução de alguma possível movimentação colorada pela região fronteiriça brasileira. Em telegrama, Antônio sugere a Aparício que se vigiem algumas estações férreas por motivo de uma remessa de munições vinda do Brasil a ser recebida pelo general adversário Justino Muniz18. 17. Da minha parte já está tudo pronto, avise o general que enquanto tratam do armistício em encontro no Brasil reunindo recursos para dar-lhes ao general e aos demais companheiros de causa. Fico como sempre a suas ordens [Tradução nossa]. MENA, Antônio. Carta a Abelardo Márquez, Bagé, 18 de julho de 1897. Museo Historico Nacional (MHN). Coleção Diego Lamas. Tomo 275, documento 096. 18. Nascido no Departamento de Treinta y Tres no ano de 1838, formou-se primeiramente no trabalho de campo em companhia de seu pai Julian Ramirez, um pequeno proprietário 466 SUMÁRIO O caudilho e a Rainha da Fronteira: apontamentos sobre a relação entre Aparício Saraiva e o município de Bagé durante as revoluções de 1896 e 1904 Neste sentido, Antônio observa: cuanto a la munición que puede recibir Muniz por via Rio Grande, supongo debe venir a esta o a estación Rio Negro. Digame se debo adoptar alguna medida de observación para comunicarle en seguida. Creo que seria muy conveniente se tuviera observación sobre la casas de Juan Francisco Barboza, Policarpo Barboza y Constantino Olano, en caso que las municiones para Muniz vengan por la estación Rio Negro o por esta. En caso de venir por la estación Santa Rosa o por Candiota la vigilancia debe tenerce sobre la casa de Hilácio dos Santos19 (MENA, 1897). A comunicação entre Antônio e Aparício acerca das munições continua por mais alguns dias, exatamente até o dia 30 de julho, quando Antônio comunica que as munições vieram pela estação de Candiota20 e que iria seguir a escolta para enfim subtraí-la no meio do caminho com o intuito de mandar parte para a divisão comandada por Ismael Velasquez no Rincão de Artigas, atual município de Rio Branco21. O demonstrado aqui foi justamente a articulação de Antônio Mena a serviço da revolução, tanto na captação de recursos como na qualidade de espião. Valendo-se de em um ponto estratégico, suas observações permitiram que o Exército Nacionalista mantivesse o controle sobre a região fronteiriça, regulando assim seu trânsito a partir de Bagé. dedicado a pecuária na região conhecida como Sauce de Olimar; no entanto, o tio materno de Justino, o caudilho nacionalista Ángel Muniz, procurou orientar os passos de seu sobrinho Assim, Justino seguiu a senda de seu tio e desde cedo se integrou a carreira militar participando de várias ações bélicas, contudo, sua constituição como líder político se dá a partir da sua nomeação para o cargo de comissário do Departamento de Cerro Largo, o que em seguida lhe proporcionaria o posto de comandante geral da fronteira. No entanto, por divergências pessoais com Aparício e a família Saraiva, atuou contra seu próprio partido durante as mencionadas revoltas. Faleceu no mesmo Departamento de Treinta y Tres em sua estância na localidade conhecida como Bañado de Medina no ano de 1914. 19. Quanto à munição que Muniz pode receber via Rio Grande, suponho que deva de vir por esta ou pela estação Rio Negro. Diga-me se devo adotar alguma medida de observação para comunicar-lhe em seguida. Creio que seria muito conveniente se houvesse observação sobre as casas de Juan Francisco Barboza, Policarpo Barboza e Constantino Olano, caso as munições para Muniz venham pela estação Rio Negro ou por esta. No caso de vir pela estação Santa Rosa ou Candiota a vigilância deve ser feita sobre a casa de Hilacio dos Santos [Tradução nossa]. MENA, Antônio. Carta a Aparício Saraiva, Bagé, 21 de julho de 1897. Museo Historico Nacional (MHN). Coleção Diego Lamas. Tomo 275, documento 100. 20. O atual município de Candiota, neste período ainda fazia parte do município de Bagé, vindo a desmembrar-se deste no ano de 1992. 21. MENA, Antônio. Carta a Aparício Saraiva, Bagé, 30 de julho de 1897. Museo Historico Nacional (MHN). Coleção Diego Lamas. Tomo 275, documento 110. 467 SUMÁRIO O caudilho e a Rainha da Fronteira: apontamentos sobre a relação entre Aparício Saraiva e o município de Bagé durante as revoluções de 1896 e 1904 Como já antes mencionado, o líder político Abelardo Márquez atuou de forma profícua junto a Aparício na conformação de estratégias e arrecadação de recursos pela fronteira, chegando até mesmo a ser considerado “amigo” do Rio Grande do Sul e a conceder entrevista à folha oficial do Estado, como bem expõe este jornal órgão do Partido Republicano Rio-grandense, A Federação22. Abelardo também recorria às cidades no Rio Grande do Sul livremente atrás de subsídios para a revolução. Em carta a Aparício, o chefe político da fronteira diz estar a caminho de Pelotas e Rio Grande para conseguir munições. Assim, Márquez escreve: inmediatamente iré a Bagé para conseguir de un amigo de alli transporte sin perdida de tiempo a Pelotas o Rio Grande em busca de díez mil tiros de winchester que me seguraron habia en una de estas ciudades. Dada la emergencia con que he hecho este pedido, espero tener esos tiros en Guavijú dentro de seis dias o poco más23 (MÁRQUEZ, 1897). Outra ação de Márquez era o recolhimento do dinheiro enviado pelo Comitê Revolucionário 24 sediado em Buenos Aires e respectivamente o seu uso comprando os víveres necessários para a ocasião. Em outra correspondência a Aparício, Márquez escreve neste sentido: hoy a las 4 pm recebi contestación a mi telegrama a Golfarini diciendome él que se remitia la suma pedida a Pelotas por no haber sucursal de banco en esta. Estoy disponiendo entonces la compra de los artículos que consisten en frezadas, bombachas, calzoncillos, camisas 22. A manchete noticia a compra de uma estância nas redondezas de Bagé por parte de Márquez, mencionando que este é “amigo de nossa terra”. “A Fazenda do Umbú”. A Federação, 5 de janeiro de 1904, nº 4, p. 1. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/ DocReader.aspx?bib= 388653&PagFis=14535&Pesq=abelardo%20marquez>. Acesso em 10 jan. 2021. A entrevista de Abelardo Márquez concedida em visita a Porto Alegre pode ser vista em “Emigrados Orientaes”. A Federação, 11 de fevereiro de 1904, nº 35, p. 2. Disponível em:<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=388653&PagFis=15019&Pesq=abelardo%20marquez>. Acesso em 10 jan. 2021. 23. Imediatamente irei a Bagé para conseguir de um amigo dali transporte sem perda de tempo para Pelotas ou Rio Grande em busca de dez mil tiros de winchester que me asseguraram que haveria em uma destas cidades. Dada à emergência com que fiz o pedido, espero ter estes tiros em Guavijú dentro de seis dias ou pouco mais [Tradução nossa]. MÁRQUEZ, Abelardo. Carta a Aparício Saraiva, Serrilhada, 17 de maio de 1897. Museo Historico Nacional (MHN). Coleção Diego Lamas. Tomo 275, documento 057. 24. O Comitê Revolucionário sediado em Buenos Aires durante a Revolução de 1897 foi presidido por Juan Angel Golfarini e tinha por objetivo reunir fundos e tratar politicamente as ações da revolução (FERNANDEZ SALDAÑA, 1945, p. 567). 468 SUMÁRIO O caudilho e a Rainha da Fronteira: apontamentos sobre a relação entre Aparício Saraiva e o município de Bagé durante as revoluções de 1896 e 1904 y tricotas cuyas clases y precios conocerá Su Excelencia cuando le lleve los detalles25 (MÁRQUEZ, 1897). Estes exemplos mostram tanto o envolvimento de Márquez com o movimento como também suas bem quistas relações com o Rio Grande do Sul. É percebido que o comandante geral da fronteira Abelardo Márquez foi peça de fundamental importância para as ações político-militares de Aparício, atuando como um verdadeiro “relações públicas” em prol do nacionalismo. Outro fato perceptível e mote deste texto é a inclusão de Bagé no contexto das relações, pois mesmo sendo citadas outras localidades, o município fronteiriço tem grande relevância, pois é sempre a partir dele que surgem as ações, seja na aquisição de transporte e até mesmo por não possuir uma agência bancária para depósitos vindos do exterior, em suma, Bagé era a porta de entrada e saída para os intentos revolucionários na terra uruguaia. Estes agentes envolveram-se e mobilizaram recursos diversos para as revoluções comandadas por Aparício, tendo em Bagé um baluarte para seus subsídios, desta maneira compreende-se o intercâmbio de relações existentes na sociedade fronteiriça e de como elas se afunilaram até convergirem na pessoa do general Aparício Saraiva e na mencionada localidade. Os exemplos mostrados aqui elucidam a constituição de uma sociedade imbuída a uma atuação comum e notadamente estruturada em uma esfera de poder local que dotada de estratégias canalizava em si a influência necessária para agir conforme a situação. No entanto, esta canalização convergia a um ponto que para compreendê-lo não basta apenas o exercício do poder por ele mesmo. Para Márcia da Silva (2008), “entender o local e as relações de poder nele existentes, não basta identificá-lo ao poder político. É preciso conceituá-lo como o poder exercido econômico, social, cultural e simbolicamente” (p.70). Os agentes mencionados acima se valeram destes atributos sem sombra de dúvida, no entanto, o exercício de poder atribuído ao contexto social, cultural e simbólico possui papel elementar neste caso, pois o meio em que viviam os mais distintos agentes conformava um só plano, fazendo da paisagem pampeana e fronteiriça o subsidio 25. Hoje às 16:00 recebi resposta ao meu telegrama para Golfarini dizendo-me que a soma pedida foi depositada em Pelotas por não haver agência bancária aqui. Então, começarei a organizar a compra dos artigos que consistem em cobertores, bombachas, roupas de baixo, camisas e blusas cujos modelos e preços conhecerá Sua Excelência quando eu lhe levar os detalhes [Tradução nossa]. MÁRQUEZ, Abelardo. Carta a Aparício Saraiva, Santana, 24 de maio de 1897. Museo Historico Nacional (MHN). Coleção Diego Lamas. Tomo 275, documento 077. 469 SUMÁRIO O caudilho e a Rainha da Fronteira: apontamentos sobre a relação entre Aparício Saraiva e o município de Bagé durante as revoluções de 1896 e 1904 das questões sociais e humanas atribuindo a elas o valor simbólico que influenciou no caudilhismo de Saraiva. Desta forma, foi neste espaço que Aparício Saraiva procurou organizar sua vida; a estreita relação com o Rio Grande do Sul e, principalmente com Bagé, ia muito mais além das posses e dos parentescos, fazendo com que o chefe político nacionalista percebesse o valor da região tanto para seus negócios quanto para suas guerras. O espaço fronteiriço entre Uruguai e Brasil desde longo tempo é caracterizado por uma profunda e dinâmica interação, aspecto este que o coloca em uma posição distinta onde a construção das relações e das identidades se faz de uma maneira peculiar, assim é importante enfatizar o colocado pela historiadora Ana Luiza Reckziegel (2010) no que toca essa relação entre o estado brasileiro Rio Grande do Sul e o Uruguai: é importante destacar que o relacionamento entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai foi estruturado em uma região na qual se reconhece uma identidade comum, se bem que subordinada a Estados distintos. Esta área compartilhada desde os primórdios de sua ocupação fez esta região uma zona comum, não propriamente pelo espaço que ocupa, mas sim pela história que as une. Para tanto, a noção conceitual de região com a qual imaginamos esta interação não pode ser vista como algo previamente estabelecido, mas a partir de uma perspectiva de que esta região foi construída ao longo do processo histórico concreto. Nesse sentido, verificamos que se formou nessa zona um espaço de autodeterminação que só pode ser completamente apreendido se levarmos em conta a posição diferenciada do Rio Grande do Sul em relação ao restante do país seja por seu modelo econômico, seja pela peculiaridade de sua fronteira viva em constante movimento (p. 1). Assim, o espaço fronteiriço, além de conformar por si só uma série de relações que ao longo do tempo vão se tornando características deste ambiente, permite que seus habitantes se relacionem em um dinâmica diferente de outros locais fazendo com que práticas sociais distintas e neste caso, em uma esfera que abarca as relações de poder que atuam em prol de objetivos, que por sua vez acabam por abarcar um elo de situações que se apresentam de diferentes maneiras, sendo a principal delas, a política. 470 SUMÁRIO O caudilho e a Rainha da Fronteira: apontamentos sobre a relação entre Aparício Saraiva e o município de Bagé durante as revoluções de 1896 e 1904 Considerações finais Muitos trabalhos já abordaram o aspecto regional fronteiriço em suas mais diferentes formas. O caso da fronteira entre o estado brasileiro do Rio Grande do Sul e a nação vizinha da República Oriental do Uruguai fomentou durante os últimos anos um número expressivo de pesquisas, que de modo geral refletiram acerca do papel político e social desta fronteira, acordando a mesma como um espaço de intenso movimento e conflitos constantes. Como é sabido, os blancos de Aparício Saraiva mantinham total controle sobre três dos cinco Departamentos fronteiriços26 entre Uruguai e Rio Grande do Sul, isto dava ao chefe nacionalista uma profunda mobilidade neste espaço, capaz de articular-se nos mais diversos setores, desde os negócios com o gado até os subsídios revolucionários. Para isto, Saraiva precisou organizar uma rede de relações que ultrapassava a linha imaginária do Estado-Nação que divide Uruguai e Brasil, passando a fazer parte de uma trama na qual o capacitava a territorializar esta região fronteiriça. Neste sentido, a trama de contatos desenhada nesta região conformava um tecido de influências que movidos em torno de distintos objetivos configuram nódulos de poder e neste contexto é que se configuram as relações sociais sendo profundamente marcadas por um discurso relacional condescendente a este determinado espaço social-geográfico onde as representações adquirem um importante papel dentro destas relações, sejam ela do cunho político, econômico ou meramente associativo. Em suma, a influência de Aparício só foi proporcionada pelas relações sociais mantidas nessa fronteira, tendo o município de Bagé como um potentado de seus arranjos, pautando desta forma, a configuração das relações sociais que organizada por um sistema de redes integradas a região fronteiriça entre Brasil e Uruguai tornaram possível à liderança de Aparício Saraiva a partir da territorialização deste espaço. Referências CAGGIANI, Ivo. João Francisco: a hiena do Cati. 2ª edição, Porto Alegre: Martins Livreiro, 1997. CASTELLANOS, Alfredo. Timoteo Aparicio, el ocaso de las lanzas. Montevidéu: Ediciones de la Banda Oriental, 1998. 26. A saber, os três Departamentos fronteiriços com domínio blanco eram: Rivera, Cerro Largo e Treinta y Tres. 471 SUMÁRIO O caudilho e a Rainha da Fronteira: apontamentos sobre a relação entre Aparício Saraiva e o município de Bagé durante as revoluções de 1896 e 1904 CHASTEEN, John Charles. Fronteira rebelde, a vida e a época dos últimos caudilhos gaúchos. Porto Alegre: Movimento, 2003. Tradução: Rafael Augustus Sêga, Thelma Belmonte, Élvio Funck. CORONEL MALDONADO, Luis Eduardo. 1904: Aparicio Saravia y los diplomáticos. Montevidéu: Trandico, 2009. DÍAZ, José Virginio. Historia de Saravia. Montevidéu: Talleres gráficos A. Barreiro y Ramos, 1920. DOBKE, Pablo Rodrigues. Caudilhismo, território e relações sociais de poder: o caso de aparício saraiva na região fronteiriça entre Brasil e Uruguai (18961904). Dissertação de Mestrado. Santa Maria: Universidade Federal de Santa Maria, 2015. Disponível em: <https://repositorio.ufsm.br/bitstream/handle/1/9661/DOBKE%2c%20 PABLO%20RODRIGUES.pdf ?sequence=1&isAllowed=y> Acesso em: 01/02/2021. FERNÁNDEZ SALDAÑA, José Maria. Diccionario uruguayo de biografias: 1810-1940. Montevidéu: Amerindia, 1945. Disponível em: <http://www.periodicas. edu.uy/Libros%20sobre%20pp/Fernandez_Saldana_Diccionario_uruguayo_biografias.pdf> Acesso em: 10/01/21. GÁLVEZ, Manuel. Vida de Aparicio Saravia. Buenos Aires: Editorial TOR, 1942. HERRERA, Luis Alberto de. Por la Patria. La Revolución de 1897 y sus antecedentes. Montevidéu: Tipografia uruguaya de Marcos Martinez, 1898. KÜHN, Fábio. O Rio Grande do Sul durante a República Velha. In: _________. Breve história do Rio Grande do Sul, 3ª edição. Porto Alegre: Leitura XXI, 2007, pp. 105-117. KRUKOSKI, Wilson R. M. Masoller/Vila Albornoz: breve nota histórica. Disponível em: <https://web.archive.org/web/20070817200811/http://www.info.lncc.br/ wrmkkk/ masollee.html> Acesso em 12/01/2021. MENA SEGARRA, Enrique. Aparicio Saravia, las ultimas patriadas. Montevidéu: Ediciones de la Banda Oriental, 1998. NAHUM, Benjamín. Breve historia del Uruguay independiente, 9ª edição. Montevidéu: Ediciones de la Banda Oriental, 2013. NAHUM, Benjamín. Manual de historia del Uruguay (1830-1903), 20ª edição. Montevidéu: Ediciones de la Banda Oriental, 2013. PICOLLO, Helga Iracema Landgraf. A Revolução Federalista no Rio Grande do Sul: considerações historiográficas. In: ALVES, Francisco das Neves; TORRES, Luiz Henrique. (Orgs.). Pensar a Revolução Federalista. Rio Grande: Editora da FURG, 1993, pp. 65-82. RECKZIEGEL, Ana Luiza. A diplomacia marginal. Vinculações políticas entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai (1893-1904). Passo Fundo: UPF Editora, 1999. RECKZIEGEL, Ana Luiza. Aparício Saravia: um caudilho de duas pátrias. Estudios Historicos. Ano: II, n. 4, Rivera: CDHRP (Edição digital), 2010, p. 1-20. Disponível em: <http://www.estudioshistoricos.org/edicion_4/ana-luiza-setti.pdf>. Acesso em: 05/01/21. 472 SUMÁRIO O caudilho e a Rainha da Fronteira: apontamentos sobre a relação entre Aparício Saraiva e o município de Bagé durante as revoluções de 1896 e 1904 SILVA, Márcia da. Poder local: conceito e exemplos de estudo no Brasil. Sociedade & Natureza, vol. 20, n. 2, dezembro, 2008, p. 69-78. Disponível em: <http://www. redalyc.org/articulo.oa?id=321327193015>. Acesso em: 08/01/21. UMPIÉRREZ, Alejo. La forja de la libertad. Montevidéu: Ediciones de La Plaza, 2007. Documentais AZAMBUJA, Estácio. Carta a Aparício Saraiva, 25 de junho de 1897. Museo Historico Nacional (MHN). Coleção Diego Lamas. Tomo 275, documento 106. DIAZ, Cândida. Carta a Aparício Saraiva, 12 de maio de 1897. Archivo General de la Nación (AGN). Arquivo Aparício Saraiva. Caixa família de Aparício Saraiva, pasta correspondências. Documento sem número de indicação. MÁRQUEZ, Abelardo. Carta a Aparício Saraiva, Serrilhada, 17 de maio de 1897. Museo Historico Nacional (MHN). Coleção Diego Lamas. Tomo 275, documento 057. MÁRQUEZ, Abelardo. Carta a Aparício Saraiva, Santana, 24 de maio de 1897. Museo Historico Nacional (MHN). Coleção Diego Lamas. Tomo 275, documento 077. MENA, Antônio. Carta a Abelardo Márquez, Bagé, 18 de julho de 1897. Museo Historico Nacional (MHN). Coleção Diego Lamas. Tomo 275, documento 096. MENA, Antônio. Carta a Aparício Saraiva, Bagé, 21 de julho de 1897. Museo Historico Nacional (MHN). Coleção Diego Lamas. Tomo 275, documento 100. MENA, Antônio. Carta a Aparício Saraiva, Bagé, 30 de julho de 1897. Museo Historico Nacional (MHN). Coleção Diego Lamas. Tomo 275, documento 110. SEVERO, Torquato. Lista de roupas e apetrechos, 1897. Archivo General de la Nación (AGN). Arquivo Aparício Saraiva. Pasta 2, documento 49. Periódicos A Fazenda do Umbú. A Federação, 5 de janeiro de 1904, nº 4, p. 1. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/ DocReader.aspx?bib=388653&PagFis=14535&Pesq=abelardo%20marquez>. Acesso em: 10/01/21. Emigrados Orientaes. A Federação, 11 de fevereiro de 1904, nº 35, p. 2. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/ DocReader.aspx?bib=388653&PagFis=15019&Pesq=abelardo%20marquez>. Acesso em: 10/01/21. La Revolución Oriental. Caras y Caretas. 7 de maio de 1904, nº 292, Ano VII, p. 46. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional da Espanha. Disponível em: <http:// hemerotecadigital.bne.es/issue.vm?id=0004175896&page=46&search=&lang=es>. Acesso em: 06/01/21. 473 SUMÁRIO POR UMA HISTÓRIA OPERÁRIA DE BAGÉ (RS): ASSOCIAÇÕES, IMPRENSA E MILITÂNCIA (1889-1930) André Vinicius Mossate Jobim1 474 SUMÁRIO Por uma história operária de Bagé (RS): associações, imprensa e militância (1889-1930) 1 Introdução Nos últimos anos foi possível observar uma ampliação no número de estudos sobre a história dos trabalhadores e trabalhadoras no Rio Grande do Sul2. Entretanto, muitos deles ainda estão concentrados nas cidades de Porto Alegre, Santa Maria, Pelotas e Rio Grande. Portanto, inúmeros municípios ainda exigem um estudo mais detalhado, de modo que se permita uma melhor compreensão sobre a constituição dos mundos do trabalho no estado como um todo. Esse é o caso de Bagé, cidade da região da Campanha, marcada historicamente por uma imagem associada à produção agropecuária. Embora esse imaginário esteja vinculado às práticas desenvolvidas em âmbito rural, nossa proposta nesse artigo é demonstrar que, entre os primeiros anos da República até meados da década de 1930, Bagé também teve uma vida operária e urbana intensa. Para isso, dividimos o texto em três momentos. No primeiro, iremos destacar o surgimento das primeiras associações operárias de Bagé: a Sociedade Protetora dos Artistas, a Liga Operária e a União Operária. No segundo, abordaremos a produção jornalística de grupos políticos e sindicais da cidade, sobretudo durante a Primeira República (1889-1930). No terceiro e último, trataremos brevemente da trajetória de vida de dois militantes: 1. Mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2. Uma observação a ser feita é de que, embora saibamos das críticas extremamente pertinentes sobre o uso do universal masculino para designar os diferentes gêneros, optamos por mantê-lo em grande parte do texto, por uma simples questão de fluência. Ao leitor deve ficar claro que ao utilizarmos palavras como “operário” ou “trabalhador”, estamos levando em consideração os gêneros diversos. 475 SUMÁRIO Por uma história operária de Bagé (RS): associações, imprensa e militância (1889-1930) Venâncio Pastorini Sobrinho e Dorval Lamotte, integrantes do grupo de “anarquistas históricos de Bagé”. Para levarmos a cabo esta tarefa, cabe salientar que nos orientamos pelas perspectivas teórico-metodológicas desenvolvidas pela História Social do Trabalho, que ganharam maior visibilidade a partir da década de 1960 com as obras de Edward Thompson e Eric Hobsbawm. Tais autores combateram uma determinada concepção de história que enfatizava somente fatos políticos e econômicos associados às elites dominantes, passando a valorizar uma “história vista de baixo”, que tratava os trabalhadores e trabalhadoras como protagonistas conscientes de suas ações. As documentações analisadas foram essencialmente livros, dissertações e teses sobre o operariado sul-rio-grandense, bem como textos, panfletos e jornais disponíveis no Arquivo Público e no Museu Dom Diogo de Souza, ambos localizados em Bagé. As primeiras sociedades operárias de Bagé Para falarmos sobre as primeiras sociedades operárias de Bagé, é necessário destacar que seu surgimento só pode ser compreendido se levarmos em consideração o processo gradual de extinção da escravidão no Brasil. Ainda no século XIX, Bagé contou com um considerável contingente de trabalhadores escravizados, utilizado principalmente nas atividades agropecuárias (MATHEUS, 2016). Especialmente a partir de 1850, iniciou-se o desenvolvimento e a consolidação das relações de trabalho livre, acompanhado de um intenso crescimento urbano. A transição do ciclo charqueador da Zona do Sul do estado para a Campanha marcou o desenvolvimento da indústria saladeril, assentada essencialmente na mão-de-obra assalariada. Tal fato, associado a outras circunstâncias, gerou um processo de modernização que tornou Bagé uma das cidades mais importantes do Rio Grande do Sul durante a Primeira República (1889-1930). Exemplos desse processo foram o surgimento de grupos expressivos de operários, a fundação de bancos, cinemas e teatros, além da criação de uma série de outros empreendimentos que giravam em torno das charqueadas, inclusive na área de transportes. Como atesta Fernanda Soares, a construção da estrada de ferro Bagé-Rio Grande, em 1884, responsável por atrair operários de várias cidades do estado, foi “indispensável na nova dinâmica econômica que as fronteiras adquiriram. [...]”, pois Bagé passou a absorver “rebanhos da 476 SUMÁRIO Por uma história operária de Bagé (RS): associações, imprensa e militância (1889-1930) fronteira e do planalto que se destinavam anteriormente para Pelotas ou para Montevidéu” (SOARES, 2006, p. 54-56). Cabe observar que essas alterações econômicas, além de modificarem o cenário do mercado de trabalho, fomentaram o surgimento e a expansão de novas profissões e grupos de trabalhadores e trabalhadoras. Esses aspectos acabaram por gerar uma significativa transformação no processo de institucionalização das disputas de classes em Bagé. O surgimento dessas novas profissões exigiu que os trabalhadores se organizassem para enfrentar tais mudanças. Entre essas formas de organização podemos destacar a fundação de associações operárias mutualistas, que serviam como entidades representativas desses novos grupos e buscavam garantir o mínimo de segurança aos trabalhadores, em um momento em que ainda não havia leis de proteção ao trabalho. Mesmo não tendo um caráter efetivamente “político”, essas associações mutuais e beneficentes foram fundamentais para construir uma ideia de classe e de solidariedade entre os operários. A primeira entidade desse tipo foi a Sociedade Protetora dos Artistas, fundada em 1883. Entre seus objetivos estavam a prestação de serviços médicos e funerários aos seus sócios. Embora possuísse a denominação “artistas”, isso não significava necessariamente que seus integrantes eram pessoas ligadas à cultura, como músicos, atores, etc, mas referia-se às “artes e ofícios”, ou seja, profissionais e artesãos. Essa constatação nos faz perceber que, embora congregasse trabalhadores, o termo “operário” ainda não era utilizado, o que demonstra que a condição de classe ainda não havia se definido claramente naquele contexto. Sua primeira diretoria foi formada por Augusto Celestino Loureiro Dias, José Augusto Souza, Francisco Credidio e Narciso Madramon. De acordo com Elizabeth Fagundes, a entidade existiu pelo menos até a década de 1990, abandonando seu caráter assistencial para tornar-se uma entidade recreativa (FAGUNDES, 2005, p. 414). A segunda a surgir foi a União Operária de Socorro Mútuo e Beneficente, em 1898. Essa chama a atenção pelo fato de possuir a expressão “operário” na sua designação, evidenciando que o conceito ganhava espaço no país nos primórdios da República. Assim como a Sociedade Protetora dos Artistas, a União Operária também possuía caráter assistencial e contava entre seus sócios com pessoas dos mais diversos espectros políticos e econômicos. Isso necessariamente demandava que seus integrantes tomassem posição no debate 477 SUMÁRIO Por uma história operária de Bagé (RS): associações, imprensa e militância (1889-1930) ideológico que passava a ganhar contornos mais claros no Rio Grande do Sul, com a criação de instituições e partidos políticos operários vinculados aos ideais socialistas3. Nesse contexto, é interessante refletir sobre o discurso de Ferdinando Martino, primeiro presidente da entidade, realizado no dia de sua fundação, 24 de abril de 1898: A Sociedade União Operária de Bagé, por não se achar plenamente versada sobre os fins das Ligas Operárias Socialistas e atendendo a que em Bagé não existem fábricas nem oficinas com número crescido de operários, e atendendo também ao louvável procedimento de quase todos os chefes das poucas oficinas de trabalho que pagam não só generosamente, mas que ainda tratam seus empregados com acatamento de verdadeiros amigos e protetores, convinha fundar-se a sociedade com o título de União Operária de Socorro Mútuo e Beneficente, pois que formando um pecúlio capaz, serviria para socorrer a todos aqueles sócios que por doença ou infortúnios da sorte se achavam sem recurso e sem trabalho (...) (CORREIO DO SUL, Bagé, 1º, mai. 1982, n.p). Esse trecho ilustra o cuidado que Martino tinha em sua fala, ao mencionar as Ligas Socialistas. Ao mesmo tempo que afirmava não se achar “plenamente versado” sobre os fins dessas ligas, também referiase positivamente ao “louvável” procedimento dos chefes, os quais “generosamente” pagavam salários e se colocavam como “protetores” de seus empregados. A partir disso é possível interpretar que a União Operária de Bagé não assumiu uma atitude de confronto com os patrões, e visou construir uma relação de harmonia entre chefes e operários, ao menos nos seus anos iniciais de funcionamento, como veremos mais adiante. Já no ano de 1913 foi fundada a Sociedade Beneficente Liga Operária de Bagé, nos mesmos moldes assistenciais. Entretanto, surge a seguinte dúvida: por que foi criada uma segunda associação assumidamente “operária” na cidade, se a própria União Operária já se colocava como representante dos setores vinculados ao trabalho? Uma possível resposta foi dada por Lebindo Vieira, articulista do jornal nacional A Voz do Trabalhador, em um artigo que publicou sobre a situação operária em Bagé. Ele relata que, desde sua fundação, em 1898, a União Operária vinha sendo controlada por um bloco de patrões. Porém, finalmente, em maio de 1913, um grupo de operários, conseguiu assumir a direção da entidade, fazendo com que esse bloco 3. Aqui fazemos referência ao Partido Socialista, criado em 1898 na cidade de Rio Grande, e à Sociedade União Operária, também de Rio Grande, fundada em 1893, que teve no socialista Antônio Guedes Coutinho uma de suas figuras mais destacadas. 478 SUMÁRIO Por uma história operária de Bagé (RS): associações, imprensa e militância (1889-1930) patronal, incomodado com a derrota, se desligasse da entidade para criar uma nova associação em novembro de 1913: a Liga Operária (A VOZ DO TRABALHADOR, Rio de Janeiro, 1. Abr. 1914, p. 3). Essa análise ganha importância no momento em que Adhemar da Silva Jr. salienta que a União Operária, ao longo de sua existência, ganhou notoriedade pelo seu empenho na propaganda socialista e na organização dos trabalhadores de Bagé (SILVA JR., 2002, p. 3). Assim, é provável que os militantes mais politizados no campo das lutas operárias estivessem concentrados na União, enquanto que na Liga estavam presentes os grupos patronais e seus respectivos empregados, numa relação de dominação mais visível. Por fim, em artigo sobre as Ligas Operárias no Rio Grande do Sul, Beatriz Loner destaca que nos primeiros anos da República, setores vinculados ao trabalho procuraram inserir-se nas instâncias políticas do país, como meio de expressar seus próprios interesses. Pelo fato desse setor ser ainda entendido de forma homogênea, as diferenciações de classe não eram tão visíveis (LONER, 2010, p. 116). Como demonstramos, o caso de Bagé não foi diferente, pois, mesmo tendo entidades autoidentificadas como “operárias”, essas acabaram por congregar, muitas vezes, interesses de amplos espectros políticos e econômicos. A imprensa operária em Bagé A produção jornalística operária em Bagé foi expressiva, quando comparada a outras cidades do interior. Entre os anos de 1889 e 1940 foi possível identificar ao menos cinco publicações de caráter classista, e muitas outras que contaram com a participação de militantes e integrantes das associações operárias locais. O primeiro desses periódicos foi o jornal A Defeza, publicado entre os anos de 1910 e 1911, dirigido por Álvaro Tavares Ribeiro e Amantino de Oliveira Santos. Nas suas edições há textos que discutem temas variados, tais como a necessidade de garantia de direitos trabalhistas, a saúde dos operários afetados pela tuberculose, e a importância dos trabalhadores se organizarem politicamente em um partido próprio. Nesse último, especificamente, os autores mencionam uma figura célebre para justificar a criação de um partido operário: “É preciso que os operários não esqueçam o que disse Karl Marx, o grande mestre do socialismo - que a emancipação da classe só virá por obra dela mesmo” (A DEFEZA, Bagé, 28. Ago. 1910, p. 2). 479 SUMÁRIO Por uma história operária de Bagé (RS): associações, imprensa e militância (1889-1930) Outro jornal de grande importância para o movimento operário de Bagé foi A Dor Humana, ligado à União Geral dos Trabalhadores, e editado por Venâncio Pastorini Sobrinho e Cecílio Vilar em 1920. O seu conteúdo centra-se basicamente em alguns artigos que fazem críticas à burguesia e ao capitalismo, e outros que elogiam algumas medidas tomadas pela Rússia revolucionária de então. Um, em especial, remete à questão do preconceito racial sofrido por um trabalhador que tentou se associar a um grupo de tiro em Curitiba, mas que foi proibido devido ao fato de ser negro. Também nos chama a atenção que o texto final dessa edição tem como autor o médico anarquista baiano Fábio Luz (A DOR HUMANA, Bagé, 28. Set. 1920, p. 4), o que nos dá indícios tanto sobre a rede de relações dos editores com outras partes do país, bem como sobre a orientação libertária predominante na UGT. Adhemar da Silva Jr. ressalta que esta agremiação política, além de ser comandada por anarquistas em várias cidades do estado como Santa Maria e Rio Grande, teve participação nos 2º e 3º Congressos Operários do Rio Grande do Sul, em 1920 e 1925 (SILVA JR., 2002, p. 2). Em 1913 surgiu uma nova publicação operária intitulada O Trabalho, que se definia como “órgão dos interesses e defesa do operariado”. Seu redator foi o militante negro Nicolau Tolentino Marques, que teve participação efetiva em diversas associações operárias e contribuiu em outros periódicos do município, incluindo a imprensa negra (SILVA, 2018, p. 140). Nessa edição de novembro de 1913, o jornal fez ironias à criação da Liga Operária em Bagé, afirmando que esta serviria somente para combater o operariado independente, tendo, inclusive, entre seus sócios beneméritos figuras importantes da elite econômica local (O TRABALHO, Bagé, 30. Nov. 1913, p. 1). Mesmo não tendo uma filiação ideológica clara, pois em sua página inicial podemos ler que os editores acolherão todas “as ideias liberais e modernas”, dois artigos em tom visivelmente anticlerical, e um texto de Piotr Kropotkine, importante anarquista russo, nos dão evidências sobre como as concepções libertárias ganhavam espaço nos jornais operários de Bagé. A penúltima publicação que gostaríamos de destacar é o jornal Emancipação, publicado no ano de 1929. Esse quinzenário se apresentava como uma publicação do Grupo Cultural Livres Pensadores, formado basicamente pelos anarquistas históricos de Bagé: Venâncio Pastorini Sobrinho, Cecílio dos Santos, e os irmãos Dorval e Sebastião Lamotte. Nas duas edições que foram preservadas, podemos encontrar diversos textos que procuram 480 SUMÁRIO Por uma história operária de Bagé (RS): associações, imprensa e militância (1889-1930) definir o que seria o chamado comunismo anarquista por eles defendido. Entre as características são destacadas a defesa da ciência, o combate à propriedade privada, a defesa do amor livre, o caráter internacionalista dos ideais operários, e a concepção de uma educação anticlerical. Por fim, chama a atenção um texto que debate questões relacionadas à exploração da mulher. Nele, o autor destaca que o sexo feminino é duplamente escravo: do homem e do capital; além disso, faz uma dura crítica à prostituição, seja através da venda do corpo ou por meios “legais” como o matrimônio (EMANCIPAÇÃO, Bagé, 1º mar. 1929, p. 1). Dentre os periódicos aqui citados, Emancipação é o único que se referia objetivamente à questão da desigualdade entre os gêneros. Por fim, analisaremos o jornal sindical Eco Padeiral, que embora tenha sido publicado em 1940, nos faz pensar sobre o alto nível de organização dos padeiros no município. De acordo com Adhemar da Silva Jr., eles formavam uma das categorias mais combativas do movimento operário em Bagé, tanto que se tornaram representantes da UGT no Segundo Congresso Operário do Rio Grande do Sul em 1925. Nessa edição de 1940 que foi preservada, podemos encontrar uma série de orientações sobre como o padeiro deveria agir para fortalecer o sindicato. Entre os títulos de algumas seções, podemos destacar “Como se acaba com uma entidade”, que sublinhava a importância de participar das reuniões do sindicato, ou então “Os dez mandamentos do operário panificador”, que alertava, entre outras coisas, para que o trabalhador, “quando recebe seu ordenado com a mensalidade do sindicato descontado” não deve “ficar contrariado, nem resmungar impropérios” (ECO PADEIRAL, Bagé, 1940, p. 3). Isso evidencia que a contribuição sindical era uma das grandes dificuldades enfrentadas pela categoria. Além dessas seções, há muitos esclarecimentos legais, que explicam detalhadamente o funcionamento da Lei de Férias, a criação da Justiça do Trabalho, etc. De forma geral, podemos afirmar que este periódico, por ser voltado a um grupo específico, pouco se referia a questões político-ideológicas mais amplas do proletariado, e para que se compreenda isso de forma adequada, é necessário ter em mente que o ano de 1940 marcava o auge da ditadura estadonovista de Getúlio Vargas. Para concluirmos esta seção sobre a imprensa operária de Bagé, é possível perceber inicialmente, que, embora não tenham restado muitas edições de cada um desses periódicos, eles permitem captar importantes aspectos da história operária local. 481 SUMÁRIO Por uma história operária de Bagé (RS): associações, imprensa e militância (1889-1930) O primeiro é o fato de que, embora Bagé estivesse localizada no interior do Rio Grande do Sul, autores e ideias circulavam com grande intensidade entre os militantes letrados da cidade. Conceitos como anarquismo, comunismo, socialismo, e autores como Karl Marx e Piotr Kropotkin apareciam com certa frequência nas páginas desses jornais. O segundo refere-se à ampla rede de comunicações estabelecida com militantes de outros estados. Foi possível identificar, por exemplo, artigos do médico baiano Fábio Luz e do professor carioca José Oiticica, figuras importantes do movimento operário em nível nacional. O terceiro e último aspecto que gostaríamos de trazer à reflexão é a variedade dos debates desenvolvidos nesses órgãos de imprensa. Temas como a necessidade ou não de um partido operário para a classe trabalhadora; os problemas gerados pelo preconceito racial; a dupla exploração sofrida pelas mulheres; o papel ideológico cumprido pela Igreja em associação com a dominação de classe, enfim, todas essas questões eram pensadas, refletidas e discutidas pelos operários bajeenses nas páginas de seus jornais. Vistas em conjunto, tais situações nos fazem perceber como a cidade de Bagé, embora tivesse sua economia sustentada pela agropecuária, também possuía uma vida intelectual e urbana pujante nas primeiras décadas da República. Militantes anarquistas em Bagé: as trajetórias de Dorval Lamotte e Venâncio Pastorini Sobrinho Dorval Lamotte nasceu em Bagé, no dia 21 de agosto de 1903. Foi acadêmico do curso de Direito, editor do jornal anticlerical O Confessado (1926), e redator do periódico O Teimoso, ligado ao clube carnavalesco negro As Teimosas. Após deixar Bagé, casou em 1931 com a poetisa Maura de Senna Pereira na cidade de Florianópolis, para a qual se mudou devido à Revolução de 1930, fixando-se posteriormente em Porto Alegre, em 1933. Foi integrante do Grupo Cultural dos Livres Pensadores, responsável pela publicação do jornal anarquista Emancipação, já mencionado anteriormente. Além de Lamotte, o grupo era constituído por seu irmão, Sebastião Lamotte, Cecílio dos Santos, Francisco Fernandes e Venâncio Pastorini, considerados os “anarquistas históricos” de Bagé (MARÇAL; MARTINS, 2008, p. 67). A trajetória de Dorval Lamotte abre espaço para se pensar diversas questões que dizem respeito à vida dos militantes operários 482 SUMÁRIO Por uma história operária de Bagé (RS): associações, imprensa e militância (1889-1930) gaúchos. Uma delas envolve a sua saída de Florianópolis para Porto Alegre. De acordo com as fontes pesquisadas, essa mudança ocorreu porque Lamotte passou a ocupar um cargo público na capital gaúcha após a Revolução de 1930 (SCHOREDER, 1997, p. 72). Pelas menções encontradas no jornal A Federação (Porto Alegre, 18. Jul. 1933, p. 4), ele ocuparia uma função no Poder Executivo do estado, ou seja, no governo de Flores da Cunha, que, naquele contexto, ainda era um aliado do presidente Getúlio Vargas. Como salienta Benito Schmidt, ao discutir a influência das teorias cientificistas e positivistas no movimento operário gaúcho no início do século XX, essas concepções parecem [...] ter contribuído para a adesão de alguns dos mais destacados líderes socialistas e comunistas - mas não dos anarquistas, entre os quais a influência desta doutrina era menor, pelo menos segundo as fontes consultadas - do estado ao PRR e, no pós-30, ao governo trabalhista de Vargas, oriundo das fileiras do PRR, e que também bebeu dos ensinamentos positivistas (SCHMIDT, 2001, p. 123) [grifo nosso]. Como se pode perceber, essa mudança de perspectiva política na trajetória de alguns militantes não era nova, porém, ganha relevância por se tratar de um caso raro de militante anarquista que aderiu ao governo varguista. A outra questão diz respeito às referências de violência cometidas por ele contra sua esposa, Maura de Senna Pereira, com quem foi casado até 1940. Em entrevista concedida no ano de 1990, a escritora revelou que Lamotte teria a ameaçado diversas vezes com um revólver, exigindo que se exonerasse do seu trabalho como professora em Santa Catarina (KALCKMANN, 2007, p. 60). Isso ilustra as limitações dos discursos de esquerda da época, que, embora defendessem lógicas de igualdade entre os sexos, eram marcados, em muitos casos, por práticas de controle e violência contra as mulheres. Esses dois fatores aqui referenciados abrem perspectivas para discutir as relações de gênero na vida de militantes de esquerda no Rio Grande do Sul, e a ambiguidade que envolve a ocupação de cargos públicos por anarquistas após a Revolução de 1930 no governo de Getúlio Vargas. Diferentemente de Lamotte, Venâncio Pastorini Sobrinho seguiu até o final de sua vida defendendo os ideais libertários. Nascido na cidade de Rio Grande (RS) em 12 de março de 1885, atuou na Liga Operária da cidade, e, ao mudar-se para Bagé, tornou-se fundador da 483 SUMÁRIO Por uma história operária de Bagé (RS): associações, imprensa e militância (1889-1930) União Geral dos Trabalhadores, em 1919. Foi editor do jornal A Dor Humana, também em 1919, e fundador de duas entidades culturais anarquistas: Os semeadores e o Grupo Cultural dos Livres-pensadores. Em 1931 foi redator do periódico Emancipação, e em 1946 tornou-se editor do jornal Novo Dealbar, juntamente com o anarquista espanhol Reduzindo Colmenero (MARÇAL, 1995, p. 137-138). Sua militância foi intensa e muitos panfletos dos quais foi o autor, se perderam. Nas fontes pesquisadas, duas obras foram identificadas. A primeira foi Cartilha libertária sem Máscara (1962), na qual o autor tece críticas pesadas ao capitalismo burguês e à Igreja Católica, entendidas como bases de sustentação do poder que impede a organização de um sistema social justo e harmonioso, que somente o anarquismo poderia proporcionar. O outro livreto tem o título de Em Marcha para o Socialismo (1946), em que Pastorini diferencia o socialismo soviético do socialismo libertário, destacando que a existência do Estado, sob qualquer forma, é algo nefasto aos trabalhadores. Sem uma lógica muito clara na sua escrita, o autor também faz avaliações sobre Borges de Medeiros, Getúlio Vargas e o Partido Trabalhista Brasileiro. A partir dos documentos em questão, fica evidente a defesa apaixonada de Pastorini pelo estudo e pela educação como meio de tomada de consciência e de transformação social: “o estudo forma homens livres, e a cultura forma coletividades conscientes de seus direitos e deveres” (SOBRINHO, 1962, p. 32). Esse traço, aliás, é uma característica histórica dos grupos libertários brasileiros, responsáveis, por exemplo, pela criação das chamadas Escolas Modernas, que existiram em São Paulo e Porto Alegre no começo do século XX. Nesse sentido, a impressionante produção escrita do autor, mostra sua crença na palavra como forma de difundir os ideais anarquistas. Allyson Viana destaca que, já na década de cinquenta, [...] além dos livros da [editora] Progresso, de Salvador, apenas as edições de autor do anarquista Venâncio Pastorini Sobrinho, de Bagé, Rio Grande do Sul, representaram exemplares de edição libertária fora das duas maiores capitais do país. Pastorini foi responsável, já destacamos, entre os anos 1940 e 1960, por dezenas de boletins, panfletos, folhetos e opúsculos escritos, editados e distribuídos por ele próprio na região Sul e que chegavam aos militantes de outras regiões via correspondência postal (VIANA, 2014, p. 258-259) Assim, quando comparamos as trajetórias de Pastorini e Lamotte, conseguimos vislumbrar de forma concreta como as circunstâncias 484 SUMÁRIO Por uma história operária de Bagé (RS): associações, imprensa e militância (1889-1930) particulares interferem nos rumos que cada indivíduo dá à sua própria vida. Mesmo tendo militado juntos, escrito para os mesmo jornais e frequentado as mesmas associações, ambos acabaram por tomar direções opostas em termos ideológicos: Pastorini manteve-se fiel aos ideais anarquistas até o seu falecimento, e Lamotte acabou se adaptando à nova realidade política que se estabeleceu no país após 1930. História operária em Bagé: um campo de estudos em aberto Evidentemente, todos esses indícios que buscamos sistematizar no presente artigo, por terem caráter introdutório, ainda necessitam de maior consistência e reflexão mais apurada por parte de outros historiadores. Mesmo assim, entendemos que os primeiros passos deviam ser dados, até mesmo para que novas pesquisas consigam trazer à luz elementos que corroborem ou questionem as hipóteses aqui levantadas. A primeira delas é a de que o surgimento das primeiras entidades operárias da cidade, que foram a Sociedade Protetora dos Artistas, mas, sobretudo, a Liga Operária e a União Operária, só ganharam importância com o processo de desenvolvimento urbano e com o estabelecimento de um mercado de trabalho assalariado na segunda metade do século XIX. A institucionalização dessas sociedades aponta não apenas a expansão do operariado local em termos numéricos, mas atesta um processo gradual de diferenciação interna das entidades de classe em Bagé, em que a União Operária parece representar os interesses de uma militância mais politizada e ideológica, que buscou valorizar a imagem o operário em detrimento do patrão, enquanto a Liga Operária estaria vinculada a uma concepção política que privilegiava uma visão mais harmônica entre capital e trabalho. A segunda hipótese é de que a intensa produção jornalística das associações sindicais e operárias de Bagé aponta como uma parte desses trabalhadores vivenciava e conhecia os grandes debates que ocorriam no centro do país e até mesmo fora dele, em outras partes do mundo, mantendo uma rede de relações políticas, de troca de ideias e de solidariedade, que ultrapassavam largamente os limites de uma cidade do interior do Rio Grande do Sul. A partir desses circuitos que foram constituídos, foi possível perceber vários aspectos que estavam presentes nas páginas dessas publicações, tais como as ideias 485 SUMÁRIO Por uma história operária de Bagé (RS): associações, imprensa e militância (1889-1930) anarquistas, os problemas enfrentados pelas mulheres, a necessidade de fortalecer os sindicatos, os casos evidentes de preconceito racial, a presença de sujeitos negros na direção dos jornais, os embates ideológicos travados internamente entre as entidades, e toda uma série de circunstâncias que se relacionavam diretamente com a vida desses trabalhadores. Em que pese o caráter lacunar dessa produção, quando observada em conjunto, pode oferecer evidências de profunda importância para o pesquisador da área de história do trabalho no Rio Grande do Sul Nossa terceira hipótese é a de que, embora tenhamos o costume de estudar os operários a partir de um viés coletivo, a análise de trajetórias individuais pode trazer informações novas, que colocam em xeque determinadas interpretações. Os casos de Venâncio Pastorini e Dorval Lamotte são exemplos que confirmam, mas também questionam certas leituras. A vida de Pastorini, por exemplo, reitera a ideia de que, em linhas gerais, poucos militantes anarquistas abandonaram suas concepções políticas, pois ele manteve-se libertário até o final de sua vida. Em contrapartida, seu camarada de lutas Dorval Lamotte considerou pertinente a entrada na vida política dentro da estrutura de poder que se organizou no país após 1930. Em outras palavras, mesmo sendo raro um anarquista mudar de posição política nesse período, foi exatamente o que ocorreu com esse militante. O que queremos deixar claro é que esse tipo de informação geralmente só pode ser obtida no momento em que nos debruçamos sobre os aspectos biográficos de determinados indivíduos. Esse mergulho nas particularidades de uma trajetória pode trazer à tona aquilo que uma análise mais ampla não conseguiria perceber. A nossa última hipótese é de que Bagé tornou-se o principal núcleo anarquista gaúcho no final da década de vinte. Os indícios já foram dados ao longo do texto, mas serão brevemente retomados aqui. Entre eles destacamos a fundação da União Geral dos Trabalhadores, em 1919, entidade esta que por muito tempo foi uma das instituições mais representativas do proletariado bageense, e que era comandada pelas principais lideranças anarquistas da cidade. Seus integrantes participaram de diversos congressos estaduais e nacionais, sempre pautados pelos ideais libertários. Além disso, três dos principais periódicos operários eram editados por militantes anarquistas ou publicavam textos de autores vinculados a essa corrente, como era o caso de O Trabalho, A Dor Humana, e Emancipação. Por fim, o município ficou conhecido pela existência de um grupo de 486 SUMÁRIO Por uma história operária de Bagé (RS): associações, imprensa e militância (1889-1930) anarquistas históricos formado por Venâncio Pastorini Sobrinho, Cecílio dos Santos, os irmãos Dorval e Sebastião Lamotte e Francisco Fernandes. Para acrescentar um último argumento, Beatriz Loner destaca que Bagé acabou por se tornar o maior centro libertário do estado no período, tendo recebido inclusive a sede da FORGS (Federação Operária do Rio Grande do Sul) entre 1927 e 1928, anos que demarcaram o declínio do anarquismo em nível nacional, em detrimento do avanço do comunismo, que rapidamente ganhava espaço (LONER, 2011, p. 193). Assim, levando em consideração as nossas proposições, tornase indispensável que novas pesquisas se realizem, pois, certamente, as hipóteses aqui desenvolvidas são de caráter introdutório, e exigem outras fontes e informações que possam revelar diferentes aspectos sobre a história do operariado em Bagé. Referências FAGUNDES, Elisabeth Macedo de. Inventário Cultural de Bagé: um passeio pela história. 2ª ed., Porto Alegre: Evangraf, 2005. LONER, Beatriz Ana. O projeto das ligas operárias do Rio Grande do Sul no início da República. Anos 90. Porto Alegre, v. 17, n. 31, pp. 111-143, jul. 2010. LONER, Beatriz Ana. O IV Congresso Operário Gaúcho e o ocaso do movimento anarquista no Rio Grande do Sul. Patrimônio e Memória. UNESP – FCLAs – CEDAP, v.7, n.2, p. 176-203, dez. 2011. MARÇAL, João Batista. A imprensa operária do Rio Grande do Sul (1873-1972). Porto Alegre, 2004. MARÇAL, João Batista Os anarquistas no Rio Grande do Sul: anotações biográficas, textos e fotos de velhos militantes da classe operária gaúcha. Porto Alegre: UE/Porto Alegre 1995. MARÇAL, João Batista; MARTINS, Marisângela. Dicionário ilustrado da esquerda gaúcha: anarquistas, comunistas, socialistas e trabalhistas. Porto Alegre: Libretos, 2008. MATHEUS, M. S.. A produção da diferença: escravidão e desigualdade social ao Sul do Império Brasileiro (Bagé, 1820-1870). Tese de doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ-PPGHIS, 2016. SCHMIDT, Benito Bisso. O Deus do progresso: a difusão do cientificismo no movimento operário gaúcho da I República. Revista Brasileira de História. Vol. 21. Nº 41. São Paulo: 2001. SCHROEDER, Rosa Maria Steiner. Uma mulher além de seu tempo: Maura de Senna Pereira. Dissertação de Mestrado. Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Curso de Mestrado em História. Universidade Federal de Santa Catarina, 1997. 487 SUMÁRIO Por uma história operária de Bagé (RS): associações, imprensa e militância (1889-1930) SILVA, Tiago Rosa da. Vivências e experiências associativas negras em Bagé-RS no Pós-abolição: imprensa, carnaval e Clubes Sociais Negros na fronteira sul do Brasil - 1913-1980. Dissertação de mestrado. Pelotas: PPGH/ICH - UFPEL, 2018. SILVA JR., Adhemar L. Notas sobre a organização operária em Bagé, Passo Fundo e Uruguaiana. In: Encontro Estadual de História. ANPUH-RS, 6, Passo Fundo. Anais. Passo Fundo, 2002. SOARES, Fernanda Codevilla. Santa Thereza: Um Estudo sobre as Charqueadas da Fronteira Brasil-Uruguai. Dissertação de Mestrado em Integração Latino Americana, UFSM, 2006. SOBRINHO, Venâncio Pastorini. Em marcha para o socialismo. Bagé: s/e, 1946. SOBRINHO, Venâncio Pastorini. Cartilha libertária, sem máscara. Bagé: s/e, 1962. VIANA, Allyson Bruno. Anarquismo em papel e tinta: imprensa, edição e cultura libertária (1945-1968). Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em História Social. UFC, 2014. Jornais consultados A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 18. jul. 1933. EMANCIPAÇÃO, Bagé, 1º mar. 1929. ECO PADEIRAL, Bagé, 1940. O TRABALHO, Bagé, 30. nov. 1913. A DOR HUMANA, Bagé, 28. set. 1920. A DEFEZA, Bagé, 28. ago. 1910. A VOZ DO TRABALHADOR, Rio de Janeiro, 1. abr. 1914. CORREIO DO SUL, Bagé, 1º, mai. 1982 488 SUMÁRIO TEXTO E CONTEXTO EDITORA 489 SUMÁRIO TEXTO E CONTEXTO EDITORA 490