SEÇÃO TEMA LIVRE
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/2316-4018596
Editor de seção: Igor Ximenes Graciano
e-ISSN: 2316-4018
Recebido em 25 de outubro de 2018.
Aprovado em 13 de agosto de 2019.
Corpo caligráfico, voz: as escritas em performance
de Manoel Ricardo de Lima e Sérgio Medeiros
Calligraphic Body, Voice: The Performance Writings
of Manoel Ricardo de Lima and Sérgio Medeiros
Cuerpo caligráfico, voz: los escritos en performance
de Manoel Ricardo de Lima y Sérgio Medeiros
Annita Costa Malufe*
Resumo
O artigo busca apresentar e comentar obras de dois autores contemporâneos e brasileiros, os poetas e
escritores Manoel Ricardo de Lima e Sérgio Medeiros, buscando, através de suas escritas, definir aquilo
que poderia ser considerado um traço “performático”, marcante em algumas tendências da literatura de
hoje. A principal característica dessas escritas performáticas seria a presença do corpo do próprio escrito e
a mescla e indistinção de gêneros artísticos. Para tanto, parte-se do conceito de “performance” de Paul
Zumthor, para estendê-lo à leitura crítica de alguns textos dos autores Lima e Medeiros, em diálogo com
outros artistas e pensadores do teatro, como Antonin Artaud, Samuel Beckett e Hans-Thies Lehmann.
Palavras-chave: performance, corpo, Manoel Ricardo de Lima, Sérgio Medeiros.
Abstract
Resumen
This article deals with the works of two
contemporary Brazilian writers, Manoel
Ricardo de Lima and Sérgio Medeiros, seeking
to define, through the analysis of their work,
what today may be called a “performatic” trace
in
contemporary
literature.
The
main
characteristics of these performatic writings
would include the presence of the body in
writing, together with the intermingling and
indistinction of artistic genres. Paul Zumthor’s
concept of “performance” followed by readings
of Artaud, Beckett and Hans-Thies Lehman are
used to think through Lima and Medeiros’
work in light of a “performatic literature.”
El artículo busca presentar y comentar las obras
de dos autores contemporáneos y brasileños, los
poetas y escritores Manoel Ricardo de Lima y
Sérgio Medeiros, buscando, a través de sus
escrituras, definir lo que podría considerarse una
característica “performativa”, sobresaliente en
algunas tendencias de la literatura de nuestros
días. La principal característica de esas escrituras
performativas sería la presencia del cuerpo del
escrito y la mezcla e indistinción de géneros
artísticos. Para esto, partimos del concepto de
“performance”, de Paul Zumthor, para
extenderlo a la lectura crítica de algunos textos de
los autores Lima y Medeiros, en diálogo con otros
artistas y pensadores de teatro, como Antonin
Artaud, Samuel Beckett y Hans-Thies Lehmann.
Keywords: performance, body, Manoel Ricardo
de Lima, Sérgio Medeiros.
Palabras clave: performance, cuerpo, Manoel
Ricardo de Lima, Sérgio Medeiros.
O corpo da voz
Na tentativa de aproximação a determinados textos literários contemporâneos, um termo
parece impor-se com força: performance. E, ao seu redor, diversos fatos contextuais,
manifestações artísticas históricas, bem como diferentes teorizações, advindas de diversos
lugares e mesmo campos disciplinares (o teatro, a dança, as artes visuais, a música, a
*
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, SP, Brasil.
[email protected]
orcid.org/0000-0002-6843-197X. E-mail:
estud. lit. bras. contemp., Brasília, n. 59, e596, 2020.
1
Corpo caligráfico, voz
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antropologia, a história da arte), vêm juntar-se.1 Um campo grande se abre na exploração de um
traço, que este artigo definirá por performático, característico de certas escritas de hoje. 2 Escritas
que, em geral, não se fixam em um gênero literário específico, bem como não se localizam em
apenas uma modalidade de discurso, tampouco linguagem. Escritas que, ao mesmo tempo,
colocam em pauta diversas naturezas de presença: a de seu próprio corpo, enquanto
materialidade, a do corpo do leitor-receptor e, ainda, a do tempo presente, o instante em que se
dá seu próprio acontecimento enquanto obra.
Dizer que determinados traços de uma obra poderiam se reunir em torno do adjetivo
“performático” exige ao menos uma breve explicação do que aqui compreenderemos pelo termo
“performance”. Como base principal e ponto de partida, tenho em vista algo que, em literatura e
em poesia, foi bastante trabalhado pelo medievalista Paul Zumthor, ao explorar a prática das
poéticas orais nas canções medievais. Não tanto por sua extensa e consistente pesquisa dessa
espécie de origem do que virá a ser a nossa poesia escrita, mas muito por aquilo que foi capaz de
teorizar a respeito da própria natureza dessas manifestações. Zumthor é um dos raros estudiosos
a conceituar a performance, ou seja, a fazer do termo de fato um conceito e não somente a
descrição de um fato empírico. Em Zumthor, embora a audição pública de um poema possa ser
chamada de performance, o termo não se restringe ao gênero de uma manifestação artística, mas
vai além, dizendo respeito à natureza de um dado acontecimento dito poético.3 Atrelando o
literário à experiência de escuta e vivência do texto, ele desloca o eixo dos estudos por demais
centrados na estrutura textual, propondo a ênfase na relação intrínseca entre Performance, recepção,
leitura (título de uma de suas obras), enquanto três termos de uma mesma experiência, poética ou
artística, da qual o texto literário não existiria jamais separadamente.
Nessa experiência, encontra-se sobretudo o fato de que o corpo está implicado desde o início: a
experiência poética/artística se define justamente por uma forte implicação corporal, por uma
mistura de corpos que acontece no instante da leitura/audição/recepção da obra: “A performance é
a ação complexa pela qual uma mensagem poética é simultaneamente, aqui e agora, transmitida e
percebida. Locutor, destinatários e circunstâncias [...] se encontram concretamente confrontados”
(Zumthor, 1997, p. 33). Instante em que os corpos do leitor, auditor, espectador e aquele do
próprio texto, do som, dos materiais envolvidos em todo contexto, encontram-se e, em conexão,
criam esse espaço-tempo da performance.4 Trata-se de um ato teatral, dirá Zumthor (2005, p. 69),
“em que se integram todos os elementos visuais, auditivos e táteis que constituem a presença de
um corpo e as circunstâncias nas quais ele existe”.
Entre esses elementos físicos e sensíveis que se integram na performance, a voz ocuparia um
lugar especial para Zumthor. A voz é corpo presente, material: “A voz é presença” (Zumthor,
2005, p. 93), diz. E muito da singularidade de seu conceito de performance vem desta
centralidade da voz; daí decorre a constatação de que: “A performance não pode ser outra coisa
senão presente” (Zumthor, 2005, p. 93). A voz, fonte da poesia em seus primórdios e desejo
latente nas poéticas de hoje, marcaria a experiência poética enquanto busca de fazer corpo,
desejo e “nostalgia da voz viva” (Zumthor, 2005, p. 69), em sua materialidade de som,
respiração, sopro, evidência física.
Como bem observa Edélcio Mostaço (2009), no artigo “Fazendo cena, a performatividade”, os estudos performáticos nasceram no
ambiente teatral, mas o extrapolaram de tal modo que, hoje, numa espécie de inversão, o teatro é tomado como uma parte desses estudos.
1
2
Cito como exemplo a proximidade com o conceito de escrita performativa, apontado por Ana Bernstein, enquanto um
desdobramento de relações entre a teoria de Austin dos atos de fala e os estudos da performance: “Della Pollock define a escrita
performativa como uma escrita que opera ‘no intervalo entre escrita e performance’. A escrita performativa visa a fazer o texto
atuar. Se a característica da ação é transformar o mundo de alguma forma, a escrita performativa deve ser capaz de intervir e
transformar a realidade” (Bernstein, 2004, p. 66). Entretanto, sobretudo no que concerne à questão do modo de subjetivação aí
operado, há diferenças com o que proponho neste artigo, de modo que não irei me deter no presente texto nas proximidades e
distâncias com tal noção.
3
Ao mesmo tempo, vale salientar que, nos escritos de Zumthor, a performance nada tem a ver com desempenho (de um papel
social, por exemplo), como em algumas teorias da antropologia ou da psicologia social.
4
Assim, é esse instante que define o espaço-tempo da performance; não há obra sem esse instante ou, ainda, é “obra” aquilo que se
fará nesse instante de seu acontecimento. Sendo toda obra, para Zumthor, dependente de sua performance e, portanto, atrelada ao
que se compreende por recepção, mas que, aqui, inclui também todos os elementos contextuais.
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É nesse sentido que, dentre as poéticas brasileiras significativas de hoje, somos remetidos
àquela de Manoel Ricardo de Lima,5 na qual encontramos um caso singular desse trabalho com
o fluxo da voz viva, presentificando o corpo da escrita e convocando o corpo do leitor. Em
Manoel Ricardo de Lima, o caráter performático muitas vezes está na presença concreta de
vozes, frequentemente marcadas pela urgência de dizer ou gritar, de se tornar corpo que salte
da página para o corpo do leitor. Sendo, assim, a presença da voz em seu movimento e, ao
mesmo tempo, a presença do corpo do livro que marcam o espaço de performance aberto pela
experiência dessa obra.
Tal trabalho se dá em praticamente todos seus livros, mas é em Onde você está, que o caráter
performático salta-nos aos olhos e aos ouvidos, de forma emblemática: desde o projeto gráfico, a
constituição das manchas do texto, o título que nos convoca com um “você” impresso em
vermelho e as vozes que se fazem presentes de modo eloquente e incisivo, tudo nesta poética
nos remete ao fluxo vocal e seu ritmo:
onde mora jonah hex
abro a boca na sua frente. enfie o nariz dentro dela até onde conseguir. sinta o cheiro das
minhas gengivas banguelas, é o mesmo do intestino grosso, guarda de muco, consistência
do bolo de merda, da morte e da fumaça acre do cano das pistolas no peito, no olho. não
sei se entende, entende? às vezes até acho que sim, muito pouco, me iludo que sim, mas sei
que não consegue. isto é uma pena, meu desejo é ir embora, with the man, ser poeta no
oeste, livre e no século passado, liberdade para traçar meu endereço, numa cidade pequena, cheia
de buracos de bala e porres de uísque, lugar em que todo homem tem um preço, uma cabeça a
prêmio. paulo leminski nunca quis nada, também podia ter outro nome, lapaxipapakiki ou
bagundalagagun. é como se estivesse pensando em mim, em você, boca aberta e suspensa, a
pele solta. o mesmo homem de cidade nenhuma, moído, um dia homero, sopa rala, noutro
navio sem rota, senhorita chuva (Lima, 2016, s.p.).
Esse personagem, Jonah Hex, é um dos que são convocados nos sete textos (poemas-emprosa ou prosas poéticas) que compõem o livro. Cada um dos blocos compactos de texto,
manchas quadradas ou retangulares como esse acima, inicia-se com o título: Onde mora...,
seguido de nomes próprios que remetem a nomes de super-heróis de quadrinhos, em suas
identidades secretas. Neste caso, um pistoleiro, anti-herói de quadrinhos western, e também
personagem de minissérie, que possui a face deformada. “Abro a boca na sua frente”, ele nos
diz e, em seguida, comanda: “enfie o nariz dentro dela até onde conseguir.” Um comando
direto e incômodo, um convite para que adentremos suas entranhas, seu mal cheiro e
precariedade, fedor de gengivas banguelas e fezes. Um misto de asco e violência: a imagem do
intestino ecoando naquela do cano da pistola, postas em uma mesma frase, mesmo fluxo, as
imagens se entrelaçando e se jogando sobre aquele que lê: “sinta o cheiro das minhas gengivas
banguelas, é o mesmo do intestino grosso, guarda de muco, consistência do bolo de merda, da
morte e da fumaça acre do cano das pistolas no peito, no olho.”
A escolha dessas imagens, extremamente sensoriais e corpóreas, fala do tipo de lugar
construído por essa poética: lugar de mistura de corpos, em que escrita e carne se entremeiam.
A palavra que é voz é também corpo, pois é garganta, corda vocal, língua, e percorre as mesmas
paredes e mucosas pelas quais percorrem os alimentos, a água, a saliva. É por isso que essa
poética nos lembra que a voz é experiência do corpo, ainda que estranhamente a tradição escrita
muitas vezes tenda a se esquecer disso. Cabe à palavra da poesia tornar sensível, como diz
Zumthor, da tatilidade das palavras, o contato real que elas implicam: “Toda palavra poética
aspira a dizer-se, a ser ouvida, a passar por essas vias corporais que são as mesmas pelas quais
5
Poeta nascido em 1970 em Parnaíba (Piauí) e desde 2010 residindo no Rio de Janeiro, Manoel Ricardo de Lima é doutor pela
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e professor da Escola de Letras e no Programa de Pós-Graduação em Memória
Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Juntamente com seu trabalho de escritor, no qual se destacam
os livros As mãos / The hands (2003); Quando todos os acidentes acontecem (2009); Jogo de varetas (2012) e Geografia aérea
(2014), desenvolve um intenso trabalho crítico e reflexivo acerca da literatura, encontrado em seus diversos ensaios publicados,
como por exemplo: Fazer, lugar: a poesia de Ruy Belo (2011) e A forma-formante: ensaios com Joaquim Cardoso (2014).
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Corpo caligráfico, voz
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se absorvem […] a alimentação, a bebida: como meu pão e digo meu poema, e você escuta
ruídos da natureza. E essas palavras entre nós são táteis” (Zumthor, 2005, p. 69).
Como neste poema, há em cada texto do livro de Lima uma voz que se coloca e que se dirige
a um interlocutor não determinado: “não sei se entende, entende?”. É uma voz que se coloca
presente, diante de nós, na leitura, e nos interpela. As expressões interrogativas que se dirigem
a alguém podem ser insistentes, ritmando o texto, como o “você consegue ouvir”, em:
onde mora bruce wayne
você pode até dar um tiro na cabeça a qualquer momento, um poema-suicídio. bum, pra
dentro. este mesmo, ali, ou outro. um que não tenha sentido nem nada. não vale a pena
nem a raiva nem estrebuchar nem nada. agora escute iessiênin acordado no meio da noite.
ele sufoca. ele morre. ele é rápido demais. você consegue ouvir? leningrado e marienhof,
zinaida e isadora são nomes esgotados. como é também iessiênin. você consegue ouvir? e
estamos todos muito cansados, e estamos todos muito cansados disso tudo. nenhum deles
move a quantidade desta hora. nem eu nem você. mas um ruído pode me contar que não
demora o lembrete do quarto claro e aberto de iessiênin. você consegue ouvir? está rasurado:
uma dançarina americana é muito pouco. andar despenteado é quase nada. amar um
campo ou um corpo é extenso, mas é como amar capim, mas é como quem tenta dizer
alguma coisa com ternura. parece que a vida ou morrer, vá saber (Lima, 2013/2016, s/n).
Além da intensa presença dessas interpelações diretas, há um ritmo que encarna aquele da
vocalidade, que é criado por essas expressões orais que são postas em encadeamento contínuo,
sem a presença de maiúsculas em seu início; ou seja, ainda que haja os pontos finais marcando
as pausas entre elas, a ausência de caixas altas contribui para suavizar essas quebras e fazer
eclodir o escoamento entre as frases. Há uma ênfase no encadeamento, criando esse fluxo
contínuo vocal, que ressoa em nós, com sua palpabilidade de voz, com seu fluxo, seu ritmo,
suas imagens, seu corpo. Lembramo-nos aqui da afirmação de Zumthor de que a poesia é mais
voz do que palavra: “a voz ultrapassa a palavra” (Zumthor, 1997, p. 13), a voz é ela mesma um
corpo concreto. É o que ocorre em muitos poemas de Manoel Ricardo de Lima: sentimos saltar o
corpo próprio da voz, nesse fluxo vocal que se autonomiza na leitura. Há aqui algo de uma
experiência próxima àquela de leitura dos textos em prosa de Samuel Beckett, especialmente
aqueles depois de O inominável, em que uma voz se autonomiza dos personagens e se torna ela
mesma, em sua materialidade de voz, a personagem principal do romance. Como diz essa voz
em Beckett, “não se deve esquecer, algumas vezes esqueço, que tudo é uma questão de voz”:
Não se deve esquecer, às vezes esqueço, que tudo é uma questão de voz. O que se passa
são palavras. Digo o que me dizem para dizer, na esperança de que um dia deixarão de
falar comigo. Apenas, digo-o mal, não tendo orelha, nem cabeça, nem memória. Agora
escuto-me dizer que é a voz de Worm que começa, transmito a notícia, pelo que ela vale.
Será que eles creem que sou eu que falo? Isso é deles também. Para me fazer crer que tenho
um eu para mim e que posso falar dele para mim, assim como eles dos seus (Beckett, 1953,
p. 98, tradução nossa).
No fluxo vocal, elementos os mais díspares, das naturezas as mais distantes, são postos em
correnteza. Como diz Gilles Deleuze, sobre os textos de Samuel Beckett, “as vozes são as ondas ou
os fluxos que pilotam e distribuem os corpúsculos linguísticos” (Deleuze, 1992, p. 66). O texto é um
rio que carrega esses pedaços de imagens, e nossas sensações e memórias com eles. Vamos
constituindo assim um tempo-espaço comum com os corpúsculos do texto. E assim, ao ler, somos
tomados em um ritmo vocal, no qual nosso corpo faz (novo) corpo com aquele das palavras-vozes.
Assim, ocorre uma partilha de tempo entre texto e leitor: um mesmo fluxo de energia
percorre e conecta corpos – letra, sons, músculos, pele, cordas vocais, vibrações internas, fibras,
imagens, memórias, lugares, nomes. E aqui podemos nos lembrar da ideia de um “tempo real”
da performance, esse do qual partilham todos seus elementos constituintes. Tal tempo é
enfatizado tanto por Zumthor, que falará em um tempo corporalizado – “um tempo vivido no
corpo: aquilo que denomino um tempo real” (Zumthor, 2005, p. 83) –, quanto por Hans-Thies
Lehmann, ao se referir ao traço performático presente nas propostas do teatro (por ele
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denominado) pós-dramático. Para Lehmann, há na performance a criação de um tempo-espaço
em que todos, público, atores, texto, espaço, luzes, participam. Daí ela implicar: “uma radical
afirmação do tempo real como situação vivenciada em comum” (Lehmann, 2007, p. 304). É
dessa vivência temporal comum que emerge o caráter ritual e imersivo dessas propostas, de que
nos fala Lehmann, mas que podemos trazer para a experiência dessas escritas performáticas,
como a de Beckett, mas também a de Manoel Ricardo de Lima.
Neste ponto, ao apontar o traço de imersão e de ritual dessas escritas, cabe lembrar a
prerrogativa de que, aqui, a partir de Zumthor, considera-se que qualquer leitura –
independentemente de se realizada em silêncio ou na presença de um performer, autor ou ator
que a executa em público – é uma performance. De modo que há que se estender a noção do
ritual, quando se trata de pensar a natureza dessas escritas performáticas. A leitura literária
constrói um espaço de performance e lhe dá permanência, e esse se arma no instante da leitura,
independentemente de seu suporte. Espaço-tempo de partilha entre corpos, o do texto e o do
leitor. Algo do que já encontramos, mas em outros termos, na concepção de espaço literário, de
Maurice Blanchot:
A leitura do poema é o poema ele mesmo que se afirma obra na leitura que, no espaço mantido
aberto pelo leitor, dá nascimento à leitura que o acolhe, torna-se poder de ler, torna-se a
comunicação aberta entre o poder e a impossibilidade, entre o poder ligado ao momento da leitura
e a impossibilidade ligada ao momento da escrita (Blanchot, 1955, p. 263, tradução nossa).
Os corpos do texto e do livro
Interessante notar ainda que, em Onde você está, estamos diante de um livro-objeto. Trata-se
de uma tiragem pequena (160 exemplares) de uma produção artesanal: um caderno quadrado,
fino, costurado à mão, com linha vermelha, que vem solto dentro de uma capa de papel-cartão
preto, preso por um elástico. Abrimos o caderno, composto de folhas duplas, e encontramos
apenas esses sete textos, escritos em blocos compactos cada um deles, divididos por folhas de
papel cor creme de gramatura maior, sem paginação, nas quais se inserem os títulos de cada
texto, escritos em vermelho, em fontes grandes. De modo que outro traço do que podemos
chamar de performático estaria no próprio corpo do livro, em sua materialidade. 6 Livro que,
por si só, já solicita uma outra postura do leitor que o tem nas mãos. Não estamos diante de um
livro convencional. A fisicalidade do livro já pede nossa atenção, apela aos sentidos.
Além da fisicalidade, também na disposição dos textos, na sua forma, seus modos de se
encadear, logo notamos: não estamos tampouco diante de um livro convencional de poemas ou de
contos. Não são narrativas exatamente, mas, ao mesmo tempo, há traços narrativos. Não são
poemas, poderiam ser talvez poemas-em-prosa, há um tom que nos lembra a poesia, mas talvez
também nos lembre o teatro, o gênero dramático. Ou seja, a questão do gênero literário aqui parece
já não importar. Estamos em um terreno híbrido em que as relações entre diferentes elementos – e
poderíamos dizer, diferentes modos de corporalidade (textura do papel, linha de costura, cores,
manchas de texto, sons, falas de personagens, ritmos sonoros) se encontram e se misturam.
Podemos pensar, com Ana Cristina Cesar, que um texto performático é aquele que se joga
aos pés, ou nos braços, do leitor. Como ocorre no poema de Walt Whitman, tão lembrado e
apropriado por ela em seus poemas: “No final-despedida e chave de Leaves of Grass, ele [Walt
Whitman] chega a dizer que aquele não é um livro: ‘Sou eu que tu abraças e que te abraça’, e
mergulha com delícia nos braços de quem o lê – ou seja, de quem o toca” (Cesar, 1999, p. 252).
O livro mergulha nos braços do leitor. Walt Whitman, diz Ana Cristina, desejaria fazer “um
Livro materialmente presente que diz ser o próprio poeta” (Cesar, 1999, p. 252). Todo poema
seria movido por um desejo de ser materialmente presente, fisicamente palpável, corporalmente
sensível para o leitor. Portanto, concordemos com Ana Cristina: “Todo o texto desejaria não ser
texto” (Cesar, 1999, p. 266), desejaria ser carne, músculo, pele, hálito, respiração, tato. É essa
6
Vale salientar que o livro foi editado na coleção Elixir, da qual um dos editores é outro poeta bastante afeito à questão da
performance: o mineiro Ricardo Aleixo.
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presença, sempre marcada por um desejo alargado de corporalidade, que marcaria um traço
performático da escrita: não o escritor, mas, sim, ela mesma que quer ser presente, ser presença,
e explicita esse desejo em seus mais diferentes procedimentos.
Assim, o caráter performático da própria escrita pode expressar-se de muitas maneiras. E
um outro caso contundente hoje é o trabalho de Sérgio Medeiros. 7 De modo parecido com
Manoel Ricardo de Lima, seus livros são pensados como um todo, enquanto projetos integrais –
ou seja, não são coletâneas de poemas ou textos em prosa soltos –, e têm como traço marcante
sempre escaparem das determinações dos gêneros literários. Interessante notar que em
Medeiros cada obra possui uma forma e um projeto distinto, sempre mesclando e subvertendo
gêneros e formas literárias. Difícil seria encontrar um denominador comum ao conjunto de suas
obras, composto das mais diversas experimentações criativas. Apenas como exemplos, pode-se
citar: O sexo vegetal (2009, p. 9), que oferece uma coleção de cenas poéticas, de “inspiração
indígena”, mas também “oriental”, pelas quais passeia um mesmo personagem (Medeiros, 2009,
p. 9); Figurantes, obra formada por uma sequência de poemas que descrevem personagens de
uma estranha comunidade, em que cada título remete a um deles – “O primeiro a emergir”, “O
segundo”, “O terceiro” etc. (Medeiros, 2010); O desencontro dos canibais, livro de contos que são,
cada um, curiosamente separados em “capítulos”, trazendo ainda um teor aparentemente
infanto-juvenil – dos quais o personagem principal é um “canibalzinho” (Medeiros, 2013); As
emas do general Stroessner e outras peças, coletânea de peças breves, com remissões à arte teatral,
de teor político e extremamente irônico (Medeiros, 2017).
A experiência de se abrir um livro de Sérgio Medeiros é frequentemente desconcertante. Em
geral, ficamos sem saber de fato de que modalidade de escrita se trata, se estamos diante de um
conto, um ensaio, um poema, peça ou romance e, ainda, qual seu contexto, seu campo maior de
inserção, de diálogos. Há um nonsense que se coloca desde a forma, mas também desde os títulos: A
idolatria poética ou A febre de imagens, por exemplo, não se refere a um livro de ensaios teóricos como
pareceria, mas a um texto publicado na coleção de poesia da editora, escrito aparentemente em
prosa dialogada, como se notas de “respectivas cadernetas de descritos” dos personagens
“idólatras”, que comporão uma narrativa – escrita, no entanto, de forma mais próxima à dramática.
Em O choro da aranha etc., os textos se aproximam mais da forma poema; além do título curioso,
próximo de um tom infantil, traz subtítulos igualmente curiosos, que não parecem encaixar-se entre
si, como: “A canção das minhocas” e “Waiting for the second time through / Memórias póstumas de Brás
Cubas”. Interessante o nonsense que atua desde a determinação do “lugar” dessa escrita e de como
nos posicionarmos diante dela. Há sempre uma surpresa, um riso de estranhamento, uma sutil
ironia ou gesto humorado. Sempre nos vemos no esforço de buscar um reconhecimento, dar lugar a
uma escrita inquieta, que não se fixa.
Todas essas estratégias têm como efeito a intensificação da presença do corpo do texto, da
página, do livro e da escrita. São estratégias que afirmam o caráter performático, nos termos
aqui tratados, do projeto poético de Medeiros, sobretudo a partir do momento em que
salientam o tempo real de nosso contato corporal com a obra. Sublinho como exemplar, acerca
da presença desse forte traço de performance, o seu mais recente livro: Trio pagão (2018). Desde
o sumário, Trio pagão nos deixa em suspensão, no esforço de compreender sua estrutura, que
nos sugere serem três livros em um. Ao folhearmos, notamos que são, de fato, três partes bem
diferentes entre si e que possuem, cada uma, o seu próprio sumário. A primeira delas, composta
por desenhos/poemas visuais (“Esculturas de caligrafias”); a segunda, por uma narrativa
fragmentada, misto de prosa e poesia (“Enrique Flor, o novo”); e a terceira, por uma escrita
assemelhada a um diálogo (“[O] rio perdido”).
Como veremos ao ler, a primeira parte é uma sequência do que poderíamos chamar de
poemas visuais, que no livro ganham o nome de “esculturas de caligrafias”, justamente por se
formarem a partir do traço caligráfico. Essa parte não parece ter necessariamente relações
7
Poeta nascido em Bela Vista (Mato Grosso do Sul) em 1959. É professor titular junto ao Departamento de Língua e Literatura
Vernáculas da UFSC. Ganhou o Prêmio Literário Biblioteca Nacional 2017 na categoria Poesia, com a obra A idolatria poética ou A
febre de imagens. Dentre seus livros, destacam-se também: O sexo vegetal (2009), Figurantes (2010) e Totens (2012). Também é
tradutor, tendo traduzido o poema clássico ameríndio Popol Vuh.
6
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prévias com a que se segue, ou seja, a narrativa em que Medeiros prossegue com a sua
personagem Enrique Flor,8 um “músico português” bastante “inspirado” pela natureza.
Veremos que a narrativa fragmentada é repleta de pequenos instantes cotidianos, de descrição
atenta a detalhes dos locais e, sobretudo, aos sons, como em “o sino jovial da catedral badala
longamente sem excesso de entusiasmo” (Medeiros, 2018, p. 94). A obra termina com um
apêndice visual: 15 fac-símiles de 15 folhas arrancadas de um pequeno caderno, cada uma com
uma pequena frase na base, referindo-se a elementos da natureza, como “Isto: uma bromélia
tocou” ou “Isto: os pinheiros fitaram” (Medeiros, 2018, p. 136 e 137) (figura 1).
Figura 1 – Páginas de Trio pagão (Medeiros, 2018)
E então, na terceira parte, encontramos o subtítulo “[prosopopeia pagã]” para esse texto que, na
nota inicial, o autor define como “um poema ou peça de teatro” – deixando claro aí, entre parênteses
que: “(às vezes me é difícil distinguir uma coisa da outra)” (Medeiros, 2018, p. 159). As imagens de
natureza, criadas a partir da sensorialidade corporal, lembram aquelas da narrativa precedente, de
Enrique Flor. No entanto, aqui é como se houvesse um diálogo entre personagens, designados pela
letra “[O]” (entre colchetes, como no título dessa parte), ora maiúscula, ora minúscula, e essas falas
se espalham pela página, ora alinhadas no topo, ora na base.
É necessário observarmos que, em uma rápida folheada, já se nota o caráter experimental desse
livro, na indecisão de gêneros, no seu hibridismo, nas variações inquietas das manchas de texto, da
pontuação, das divisões de sequências. É o tempo todo uma escrita que se faz presente, enquanto
materialidade, corpo, físico e movimento. Detenhamo-nos, neste sentido, um pouco na primeira
parte, “Esculturas de caligrafias – vinte e três esculturas”. Ela é precedida por uma nota introdutória
e, em seguida, um poema, que age como uma apresentação do que virá depois:
Um pescador
Eu vivo vendo peixes-folha diante da minha casa, numa praia
de Florianópolis. Esta foi uma das minhas últimas visões:
Diante do pescador sentado num banquinho na praia folhas
marrons giram na areia com sol; então algumas escapam da
roda e entram na água onde a linha do caniço mergulha.
Consegui pescar vinte e três peixes-folha, que são os poemas
visuais que compõem este livro (Medeiros, 2018, p. 17).
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Personagem que já aparecia como protagonista de Totens (livro de 2012), inspirado no Henry Flower de Ulisses, de James Joyce.
estud. lit. bras. contemp., Brasília, n. 59, e596, 2020.
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Corpo caligráfico, voz
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Essas “esculturas de caligrafias” – que o poema nomeia como “peixes-folha” e, em seguida,
“poemas visuais” –, tiveram origem em um manuscrito realizado e dado a ele por um índio
xavante, Jerônimo Tsawé, que se tornou seu amigo, conforme Sérgio Medeiros na nota
introdutória. Esse manuscrito (figura 2), que já foi capa do livro Figurantes, agora retorna como
inspiração para os 23 poemas-esculturas de Medeiros, que surgem como uma conversa
desdobrada com o corpo da escrita, grafismos, de seu amigo. Notamos como os traços das
supostas letras e frases, realizadas por Tsewé, vão se tornando, nos traços de Medeiros, um fluxo
contínuo, que vai passando por metamorfoses (ver como exemplos as figuras 3 e 4). Essas grafias
se tornam linhas, ziguezagueiam, acumulam-se e depois se separam, criam novelos na base e,
dela, em seguida saltam, em jorros verticais. Multiplicam-se em mais linhas e depois se rarefazem,
tornando-se uma só, que sobe sozinha para o alto. Para depois se acumularem, criarem blocos,
saturarem-se, e voltarem a se diluir. E, nessas suas mudanças, de página a página, essas linhas
caligráficas, em seus desenhos, ou “esculturas”, produzem um ritmo: ritmo de passagem entre
elas, como fotogramas. Como se essas esculturas, feitas de grafismo e de alusão ao fluxo da
escrita, dançassem nas páginas, e entre as páginas, à medida que folheamos o livro.
Figura 2 – Manuscrito do índio xavante Jerônimo Tsawé em Trio pagão (Medeiros, 2018)
Figuras 3 e 4 – “Esculturas de caligrafias” em Trio pagão (Medeiros, 2018, p. 23 e p. 31)
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estud. lit. bras. contemp., Brasília, n. 59, e596, 2020.
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Annita Costa Malufe
Há um corpo de palavras e de frases como que tornadas traços, movimentos, alternâncias de
brancos, percursos na página. Um fluxo visual que nos lembra dos poemas-desenhos de Henri
Michaux, nas obras Par des traits e Par la voie de rythmes, em que temos poemas visuais em um
sentido muito especial, de uma grafia que se torna ritmo e quase uma partitura para os olhos; a
busca de Michaux por construir uma língua mais íntima, livre das convenções e restrições dos
idiomas.9 Vê-se que, em ambos os casos, podemos dizer que há uma escrita, uma caligrafia, ainda
que não seja uma escrita da ordem da significação, na qual funciona a nossa linguagem verbal.
Mas há um corpo do escrito que é fluxo, e que é composto pela ligação criada entre as palavras e
entre as frases, em seus intervalos. E esse fluxo toma nosso corpo, buscando nos engajar em seu
percurso, fazendo-nos seguir seu movimento, suas circunvoluções e ziguezagues, seus momentos
de rarefação e condensação, seus encolhimentos e distensões (figura 5, notar as variações entre as
figuras). Tal movimento poderia ser comparado àquele que sentimos na dinâmica das vozes em
Manoel Ricardo de Lima: a voz tornada fluxo, seu fluxo tornado corpo material, que se corporifica
em nossa leitura. Quase como se pudéssemos sentir ecoar nas esculturas caligráficas de Medeiros
os movimentos e circunvoluções das vozes em Lima.
Figura 5 – Outra “Escultura de caligrafia”, em Trio pagão (Medeiros, 2018, p. 57)
O corpo do instante
Uma escrita performática passa por uma presença evidenciada do corpo no próprio escrito.
Independentemente de se este escrito vai ou não ser publicamente performado depois. Mas não se
trata aqui da presença do corpo daquele que escreve: não o corpo do poeta (biológico, fisiológico,
orgânico) enquanto a origem, para sempre perdida, do texto. Mas, sim, a presença do corpo do
próprio físico da palavra, que é som, traço, textura, visualidade e audibilidade. Corpo que se torna
ritmos, movimentos, respiração ao ser animado pelo corpo daquele que lê; o texto faz corpo no
corpo do leitor, no qual ele irá se encarnar, e se tornar vibração, e atualizar o seu fluxo. A
performance se dá, assim, no momento em que o texto, posto em movimento pelo leitor – mesmo
em uma leitura silenciosa –, atualiza seu potencial performático, que é precisamente esse potencial
de fazer proliferar fluxos corporais no aqui-agora do tempo da leitura.
A escrita performática se definiria por uma corporalidade e uma presença, em primeiro
lugar. Em segundo, ela implica uma ação: a linguagem aqui não opera mais apenas no regime
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Gonzalo Aguilar, que assina um breve texto introdutório a essa parte, menciona a proximidade com outro livro de Michaux,
Misérable miracle (1972), em que se tem sua experiência com a mescalina (e os desenhos desta decorrentes) entretanto, a
proximidade maior parece-me estar com esses outros, em que encontramos de fato aquilo que Michaux (1984) definiu por uma
escrita em estado nascente – ou seja, em um idioma ainda desconhecido, em estado de surgimento.
estud. lit. bras. contemp., Brasília, n. 59, e596, 2020.
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Corpo caligráfico, voz
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de representação, do isto quer dizer aquilo. Como nos poemas visuais ou esculturais caligráficas
de Sérgio Medeiros: não se trata de dizer algo, de passar uma mensagem ou significado. A
grafia pode nada significar. Antes de tudo, ela possui um movimento, um corpo que se move e
nos engaja em seu fluxo. Como vimos em Manoel Ricardo de Lima, a voz salta e se faz fluxo
vocal. E as imagens e anedotas são apenas secundárias em relação ao engajamento corporal
dessas vozes. A língua é aqui ação, é um fazer, um atuar no mundo, e não um “falar sobre” o
mundo e as coisas. E haveria algo político implícito aqui, em uma afirmação da língua enquanto
corpo e possibilidade de intervenção no mundo:
Quando a poesia está vinculada a uma aventura para nada e que tem a ver com o corpo
numa temporalidade política para intervir no mundo não apenas como uma tarefa
estratégica de escrita, mas como algo que pode provocar um desvio. Um palmo para o
lado, que seja. E aí, se a vinculo a uma imagem expandida de uma ação política, como
experiência e resistência, não posso entender a poesia apenas como literatura mas como
um fazer (Lima, 2014).
Em relação a esse fazer, e à literatura como ação, podemos pensar que, afinal, agir é estar
presente – como no teatro: “a ação só existe no presente, quando sob nossos olhos vemos uma
situação modificar-se pelas determinações dos personagens” (Touchard, 1978, p. 169). A ação teatral
é presente e se modifica, conforme já sublinhava Touchard em 1952, “sob nossos olhos”. Mesmo que
nos casos de que nos ocupamos aqui não se tenha personagens no sentido tradicional do termo, o
que destaco daí é a ideia de testemunho de uma ação que se dá em tempo presente: a ideia de se
presenciar em tempo real as modificações, as emergências de atos, falas, que se desenrolam no
instante único do acontecimento da apresentação.
O que definiria, assim, uma performance da própria escrita seria esse ato em que ela dá a ver
o tempo do instante, da irrupção das coisas, que é o tempo da ação, do devir, do “ao vivo”. 10
Trata-se de um ato em que se torna sensível o imprevisto de sua própria aparição, enquanto
corpo caligráfico, escrito, voz. Estou aqui-agora, ao vivo – nos diz o corpo do texto –, estamos
neste espaço partilhado que se cria neste instante, pela primeira e única vez. Intermezzo,
partilha deste espaço-tempo que irrompe no instante da leitura. Embate de presenças, mistura
de corpos. Como em cada encontro, em que sempre algo de inédito se dá, mesmo que nas
frestas, mesmo que naquilo que é o inapreensível – das singularidades, dos pequenos gestos,
daquilo que passa como se fosse secundário. Jamais um corpo repete o mesmo gesto no mesmo
espaço-tempo; se repetimos é porque ele já não é o mesmo, ele já inseriu uma diferença. Algo
próximo do que queria Antonin Artaud com seu teatro da crueldade: “Temos necessidade de
que o espetáculo ao qual assistimos seja único, que ele nos dê a impressão de ser tão imprevisto
e tão incapaz de se repetir quanto qualquer ato da vida, qualquer acontecimento trazido pelas
circunstâncias” (Artaud, 1995, p. 34).
A crueldade é, em Artaud, o retorno do corpo ao palco e ao texto. Estamos no
acontecimento, e ele se dá ao vivo – e é irrepetível, como qualquer ato ou fato da vida. Mas isso
pode ser assustador. Daí tantas estratégias da nossa cultura para fugir ao instante presente.
Fugir do corpo, de suas ameaças; fugir do tempo do devir, do imprevisto. A voz é presença;
mas é como se sempre, um pouco deslocados, nos retirássemos dela. Retiramo-nos da voz
através da significação, das abstrações – retiramo-nos pelas antecipações, previsões –,
ausentamo-nos da nossa própria voz indo ao passado ou ao futuro: a todo tempo saímos do
presente. Do presente da leitura, por exemplo. Retiramo-nos da presença do texto, de seu fluxo,
nos modos retóricos, nas convenções da língua, da comunicação, nas classificações de gênero,
nas interpretações de significados e conteúdos. Com isso, saímos do corpo, da presença e do
presente do corpo, por convenções e por hábitos da cultura. E para nós o mais imediato, o mais
evidente – a presença, o corpo, a voz – é o mais difícil. Simplesmente estar no acontecimento.
No tal aqui-agora, na presença plena do que se dá, no tempo-espaço do corpo, no corpo que se
Acerca da temporalidade “ao vivo” da performance da escrita, em outros autores contemporâneos, ver: “Ao vivo, performance da
voz em Tarkos e Aperghis” (Malufe e Ferraz, 2017).
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estud. lit. bras. contemp., Brasília, n. 59, e596, 2020.
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Annita Costa Malufe
move aqui-agora, irremediavelmente no presente. “A performance não pode ser outra coisa
senão presente”, dizia Zumthor (2005, p. 93).
Assim, algo ético e político se esboça no gesto performático da arte. Nessas propostas ocorre um
resgate do corpo enquanto sensação e vivência do fluxo do devir. E, nisso, talvez, encontremos nelas
um papel político e ético. Uma tarefa deixada por Nietzsche ao pensamento ocidental: não podemos
fugir ao corpo, somos antes de tudo carne, fome, desejo e necessidade de abrigo.
Referências
ARTAUD, Antonin (1995). Linguagem e vida. Tradução de J. Guinsburg et al. São Paulo: Perspectiva.
BECKETT, Samuel (1953). L’innommable. Paris: Minuit.
BERNSTEIN, Ana (2004). Atos da fala, representação teatral e teorias da performance. Folhetim, n. 20, jul./dez.
BLANCHOT, Maurice (1955). L’espace littéraire. Paris: Gallimard; Folio, 1955.
CESAR, Ana Cristina (1999). Crítica e tradução. São Paulo: Ática.
DELEUZE, Gilles (1992). L’épuisé. In: Beckett, Samuel. Quad: et autres pièces pour la télévision. Paris: Minuit.
LEHMANN, Hans-Thies (2007). Teatro pós-dramático. Tradução de Pedro Süssekind. São Paulo: Cosac
Naify.
LIMA, Manoel Ricardo (2014). La poesía como un hacer. [Entrevista cedida a] Aníbal Cristobo. Vallejo and
Co., Peru, 5 feb. Disponível em: https://bit.ly/2MQeYrT Acesso em: 20 set. 2018.
LIMA, Manoel Ricardo (2016). Onde você está. Belo Horizonte: Elixir.
MALUFE, Annita Costa; FERRAZ, Silvio (2017). Ao vivo, performance da voz em Tarkos e Aperghis. E-Lyra,
Porto, v. 10, p. 91-112, dez. Disponível em: http://www.elyra.org/index.php/elyra/article/view/206/252
Acesso em: 20 set. 2018.
MEDEIROS, Sérgio (2009). O sexo vegetal. São Paulo: Iluminuras.
MEDEIROS, Sérgio (2010). Figurantes. São Paulo: Iluminuras.
MEDEIROS, Sérgio (2018). Trio pagão. São Paulo: Iluminuras.
MICHAUX, Henri (1972). Misérable miracle. Paris: Galimmard; Folio.
MICHAUX, Henri (1974). Par la voie des rythmes. Paris: Fata Morgana.
MICHAUX, Henri (1984). Par des traits. Paris: Fata Morgana.
MOSTAÇO, Edélcio et al. (org.) (2009). Sobre performatividade. Florianópolis: Letras Contemporâneas.
TOUCHARD, Pierre-Aimé (1978). Dionísio e O amador de teatro. São Paulo: Cultrix.
ZUMTHOR, Paul (1997). Introdução à poesia oral. Tradução de Jerusa Pires Ferreira et al. São Paulo: Hucitec.
ZUMTHOR, Paul (2000). Performance, recepção, leitura. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich.
São Paulo: Educ.
ZUMTHOR, Paul (2005). Escritura e nomadismo. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Sonia Queiroz. Cotia: Ateliê.
estud. lit. bras. contemp., Brasília, n. 59, e596, 2020.
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