A unidade
múltipla:
ensaios sobre
a paisagem
organização
Altamiro Sérgio
Mol Bessa
A unidade múltipla:
ensaios sobre a paisagem
Altamiro Sergio Mol Bessa
organizador
[cc]
[cc] autores
primeira edição, janeiro de 2021
Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo
Escola de Arquitetura | Universidade Federal de Minas Gerais
Rua Paraíba, 697 | Belo Horizonte, MG, Brasil | CEP 30.130–141
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esta obra, desde que cite a autoria e não faça uso comercial.
U58
A unidade múltipla: ensaios sobre a paisagem / organizador :
Altamiro Sergio Mol Bessa. - Belo Horizonte : Escola de Arquitetura da
UFMG, 2021.
272 p. : il.- (npgau)
ISBN: 978-65-89221-00-5
1. Arquitetura paisagística 2. Arquitetura. 3. Arte. 4. Filosofia. I. Bessa,
Altamiro Sergio Mol. II. Universidade Federal de Minas Gerais. Escola de
Arquitetura. III. Título.
CDD 712
Ficha catalográfica: Biblioteca Raffaello Berti, Escola de Arquitetura/UFMG
A unidade múltipla:
ensaios sobre a paisagem
Altamiro Sergio Mol Bessa
organizador
Belo Horizonte
2021
coleção npgau
A coleção npgau integra a política de visibilidade e impacto social do Programa de
Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo
da UFMG (NPGAU), promovendo a divulgação
da produção de excelência de seus docentes,
discentes e egressos. Compõem a coleção livros
autorais e coletâneas submetidos a uma chamada
anual. Os títulos que melhor expressam a diversidade teórica, crítica e temática da produção
do Programa são selecionados por um Conselho
editorial e publicados pelo selo npgau, um
dos selos editoriais da Editora da Escola de
Arquitetura. Para os trabalhos de revisão, projeto
gráfico e diagramação da coleção são contratados
estudantes do Programa. Cada título tem tiragem
mínima de 300 exemplares, prioritariamente
distribuídos de forma gratuita para bibliotecas
de programas de pós-graduação do país e para
professores visitantes e convidados. Todos os
títulos são disponibilizados para livre acesso no
sítio eletrônico do Programa.
Sumário
08 Apresentação
abertura
14 Criar paisagens:
expressão artística ou instrumento civilizatório?
Maria Angela Faggin Pereira Leite
por arquiteturas e cidades
26 Paisagens em mundos sensíveis: entre a sutileza e a usura
Altamiro Sergio Mol Bessa
01
62 Podemos ultrapassar o espaço-lixo (junkspace)
da Baixa Modernidade?
Augustin Berque
02
86 Natureza, paisagem e cidade
Vladimir Bartalini
03
campos, serras, desertos
110 A temporalidade da paisagem
Tim Ingold
04
158 Pelo caminho
Claudia Ribeiro
05
180 Os Sussuarões de Riobaldo:
olhares, realidades, paisagens
Frederico de Paula Tofani
06
e jardins
204 Da essência do jardim
07
Adriana Veríssimo Serrão
230 O jardim de Epicuro e sua atualidade
Altamiro Sergio Mol Bessa
08
238 Praça do Papa
Marieta Cardoso Maciel
09
254 Paisagens da escuta
Rogério Vasconcelos Barbosa
268 Sobre os autores
10
Apresentação
8
Reúnem-se neste livro dez autores de distintas especialidades e nacionalidades, cujas reflexões convergem para um ponto comum: a paisagem. O resultado não é uma simples soma de diferentes pontos de
vista ou tampouco um conceito ultimado, mas uma unidade múltipla,
aberta a acolher em diálogo os leitores segundo seus particulares
entendimentos. Assim como o é a própria paisagem, essa totalidade
de sentidos na qual cada um, na sua sensibilidade individual, organiza um fragmento de mundo num todo compreensível e cuja circunscrição, barreiras por nós autotraçadas, é constantemente deslocada
e dissolvida, como nos diz Georg Simmel. Paisagem e conhecimento
exigem um posicionamento tático que não é o das certezas, mas sim
da abertura. Ambos são respostas ao novo e têm como ato inaugural
justamente o estranhamento.
Os textos foram organizados em uma abertura e três blocos:
Por Arquiteturas e Cidades; Campos, serras, desertos; e Jardins.
Percorrendo-os, o leitor caminhará por diferentes zonas sensíveis da
emaranhada trama do tempo, desde as metrópoles contemporâneas
e o seu espaço-lixo, onde ainda, felizmente, podemos encontrar certo
alento em raras e resistentes arquiteturas, seguindo pelos caminhos
de campos, serras e desertos até alcançar o mundo protegido dos jardins e os mais íntimos deles, revelados pela escuta musical.
Maria Angela Faggin Pereira Leite, em Criar paisagens: expressão
artística ou instrumento civilizatório, entende a paisagem como uma
formação social plural e contraditória, organizada não só pela economia, a política, a arte e a filosofia, mas principalmente pela dimensão
onírica que sempre a alimentou. Para ela, são “a imaginação, os fluxos
de crenças, as ilusões ou as imagens os reais instrumentos civilizatórios
à nossa disposição na conformação de paisagens e organização dos
nossos lugares de vida”. Bens de uso comum, para a autora, as paisagens são expressões sintomáticas do sentido ou perda dele, da nossa
relação com a natureza, a sociedade e a arte.
Em Paisagens em mundos sensíveis: entre a sutileza e a usura,
começo por apresentar as duas principais matrizes paisagísticas mundiais, a chinesa e a ocidental, seus pressupostos históricos, culturais,
artísticos e filosóficos, evidenciando suas profundas diferenças e
raras aproximações. Sigo discutindo como a adoção dos pressupostos
da matriz ocidental — ambiental e sensorialmente destrutiva — na
construção das imensas megalópoles que têm surgido rapidamente
desde o advento do socialismo de mercado na China pós-socialista
tem produzido lá, como faz no Ocidente há tempos, imensos desertos paisagísticos, denunciados pelo artista chinês Yang Yongliang. Em
seu trabalho, Yang sobrepõe formas típicas das paisagens urbanas
das insustentáveis metrópoles ocidentais sobre um substrato de pintura da paisagem da dinastia Song do Sul, produzindo um impactante
resultado visual, que termina por ser uma contundente reflexão crítica
sobre como as temporaneidades estranhas ao lugar podem violentar
profundamente sua temporalidade lentamente edificada.
O capítulo de Vladimir Bartalini, Natureza, paisagem e cidade, nas
palavras dele, desenvolve-se no entrelaçamento dos três termos que
lhe servem de título. A identidade, culturalmente e esteticamente
construída, da paisagem com a natureza e com o campo cultivado,
manteve sua validade em pleno meio urbano, quando da concepção
dos grandes parques públicos nas principais cidades do século XIX.
Com a crescente artificialização do ambiente de vida, aquela identidade forjada sofreu abalos, exigindo novos posicionamentos. Para
facear as novas demandas, o arquiteto envolvido nas questões da
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paisagem não pode satisfazer-se com os conhecimentos positivos já
acumulados sobre o assunto. A visada poética é tida como fundamental no sentido de atualizar, nas condições contemporâneas, a experiência da paisagem.
Augustin Berque, atendendo gentilmente a especial convite, comparece com o capítulo Podemos ultrapassar o espaço-lixo (junkspace) da baixa modernidade?, que é versão em português da conferência inaugural que proferiu em japonês, no Instituto Japonês dos
Arquitetos, em Okayama, em 25 de setembro de 2014. Berque inicia
por mostrar-nos que todas as civilizações, cada uma a seu modo, criavam suas próprias espacialidades como forma de organizar o espaço,
a cosmicidade, procurando integrar os três valores humanos: o Bem, o
Belo, o Verdadeiro, que respectivamente fundam a ética, a estética, e
a religião ou a ciência. Mas o dualismo moderno dissociou esses valores, levando assim à acosmia, o contrário da cosmicidade, sendo o
espaço-lixo, conceito criado por Rem Koolhaas, um exemplo paradigmático disso. Como forma de superar essa acosmia, Berque defende
uma revolução ontológica e lógica que restabeleça o vínculo entre
a física, a biologia e os valores humanos, para além do dualismo
moderno, como o faz a mesologia nova, derivada da Umweltlehre de
Uexküll e do fûdoron de Watsuji. Para essa via conceitual, a realidade
não está nem do lado do sujeito ontológico (o cogito cartesiano), nem
do lado do objeto, mas entre os dois, cabendo à arquitetura o papel
de criativamente combinar os ecossistemas com os sistemas técnicos
e simbólicos próprios à humanidade, exatamente o contrário do que
faz a do espaço-lixo.
Convidamos o Professor Tim Ingold a participar desta coletânea
com a Temporalidade das Paisagens, já anteriormente publicado, pela
reconhecida relevância desse artigo para o campo da antropologia da
paisagem. Nele, Ingold argumenta ser a paisagem fundamentalmente
temporal, um trabalho em processo inacabado. Ao criticar as visões
dicotômicas entre paisagem naturalista e culturalista, instala-a no que
denominou de perspectiva de habitação, domínio familiar de nosso
habitar no qual a paisagem é constituída como um registro duradouro
— e testemunho — das vidas e dos trabalhos das gerações que nela
habitaram e, ao fazê-lo, deixaram lá algo de si. Vamos nos tornando
parte da paisagem e ela de nós na própria trajetória da existência. Ao
final, com o objetivo de ilustrar as ideias que desenvolve nas seções
anteriores, Ingold analisa a pintura Os Ceifeiros, de Pieter Bruegel, que
em sua opinião captura vividamente, mais do que qualquer outro, um
sentido de temporalidade da paisagem.
Claudia Ribeiro, em Pelo Caminho, apresenta-nos uma síntese do
marco teórico da sua tese de doutoramento que lhe permitiu construir
sua inovadora etnografia deambulante por certas comunidades predominantemente rurais dos Campos de Cima da Serra no Rio Grande
do Sul. É principalmente de Tim Ingold e Augustin Berque, e da convergência entre seus pensamentos, que a autora coleta os valiosos subsídios teóricos e processuais para acessar a memória coletiva daquelas
comunidades, em sua poética luta cotidiana em defesa da sua temporalidade, bem como para realizar sua narrativa compartilhada. São
lições valiosas para os que pretendem, como ela o fez, também trilhar
caminhos na paisagem.
No capítulo Os Sussuarões de Riobaldo: olhares, realidades, paisagens, Frederico de Paula Tofani captura, da complexa trama literária de Guimarães Rosa, os sentidos enunciativos para a construção
da sua discussão teórica sobre a paisagem, que supera a dicotomia
entre as visões realista e subjetivista, concedendo ao olhar, mediado
pelo encontro com o outro, no âmbito da cultura, a prerrogativa da
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sua constituição. Um olhar capaz de criar múltiplas paisagens, múltiplos Sussuarões, em busca daquela capaz de apascentar o protagonista, Riobaldo, no uso de si e uso do mundo, como fazemos todos nós
no enfrentamento dos nossos desertos diários.
Adriana Veríssimo Serrão dedica-se aos estudos da filosofia da
paisagem e tem desenvolvido investigações desse campo do conhecimento em interface com a arquitetura paisagística. A nosso convite
enriquece este livro com o trabalho Da essência do Jardim, no qual
ele é encarado como uma categoria de pensamento, um problema da
filosofia: o “Jardim precede os jardins”, nos diz a autora. Sob essa perspectiva, analisa alguns jardins ocidentais a partir da Modernidade em
suas correspondências com os respectivos princípios estéticos de cada
época (Renascimento, Barroco, Iluminismo), até alcançar a atualidade,
onde o Jardim está a demandar uma renovação ontológica e ética.
Em O Jardim de Epicuro e sua atualidade, apresento o pensamento
desse filósofo que viveu na Grécia sob o jugo do império macedônico,
onde a democracia e as leis das póleis haviam sido substituídas pela
vontade tirana imperial. Nesse mundo em que os valores clássicos
estavam sendo fortemente confrontados por pensamentos e práticas
obscuras e irracionais, ele funda a comunidade filosófica do Jardim.
O pensamento de resistência ali construído, centrado na busca da
felicidade na experiência de um cotidiano simples, foi redescoberto
em diversos períodos da história por importantes pensadores e, ainda
hoje, oferece lições para sobrevivência em tempos adversos.
Em 2013, convidei Marieta Cardoso Maciel a relatar para o II
Colóquio Uponto a memória do seu emblemático projeto em forma
de anfiteatro, que, aos pés da Serra do Curral, abraça Belo Horizonte,
que a população carinhosamente adotou como a Praça do Papa.
Disponibilizar aqui esse texto inédito é uma maneira de homenagear
6
Os Sussuarões de
Riobaldo: olhares,
realidades, paisagens
Frederico de Paula Tofani – UFMG
Minha Senhora Dona: um menino
nasceu – o mundo tornou a começar!...
João Guimarães Rosa
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Riobaldo, herói trágico de Guimarães Rosa, misto de Jasão, Galahad e
Fausto, viajou por todas as larguezas e recônditos do sertão e de seu
coração, conheceu deuses e demônios, descobriu o amor, venceu o
deserto, amargou sua dor maior e se fez sábio. Sabedoria essa que ilumina sua velhice e lhe permite concluir que “o real não está na saída
nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”
(Rosa, 2001, p.80). Dessarte, o sertão, enquanto mera coisa imensa
esparramada por aí, não existe. O sertão existe mesmo é no olhar; ele
se principia e se transforma é no olhar do ser humano. “Sertão: é dentro da gente” (Rosa, 2001, p.325).
Por meio dessas máximas, com elementos tão caros ao existencialismo, o idoso sertanejo, postado então como um Sartre das barrancas do Urucuia, coloca-nos uma questão ontológica fundamental: será
que existe algo, afora o olhar, que seja capaz de instituir o real — e de
criar paisagens? Este breve ensaio, cujas origens remontam há mais de
uma década (ToFani, 2005), arrisca-se a discutir tal questão tomando
como argumento central o olhar de Riobaldo, suas transformações e
suas implicações. Sobretudo, debruçamo-nos aqui sobre as relações
de nosso herói com um significante fundamental na determinação de
seu destino e na construção de sua narrativa, oferecida a um senhor
que pacientemente a escuta: o mítico deserto do Liso do Sussuarão.
Para Riobaldo, enquanto personificação do herói, na acepção
épica, transpassar esse deserto, que “não concedia passagem a gente
viva” (Rosa, 2001, p.65), não era simples opção. Era sumo ritual no qual
ele e seus companheiros teriam de transpor a soleira entre o conhecido e o desconhecido, pisar em terras nunca vistas, decifrar obscuros
enigmas, enfrentar grandes perigos e humanizar ermos e confins. E,
assim como Galahad, o cavaleiro arturiano que reencontrou o Santo
Graal, Riobaldo teria de se despir de si mesmo, atingir a pura transparência e se converter no reflexo do objeto de sua busca. Só dessa
maneira, ele surpreenderia seu arqui-inimigo Hermógenes Saranhó
Rodrigue Felipes nos gerais da Bahia, selaria sua vingança e encerraria
uma sangrenta guerra fratricida. Só assim ele purificaria o sertão, cumpriria a derradeira travessia de sua vida, transformar-se-ia em herói e
conquistaria a imortalidade.
As investidas desse Jasão sertanejo e seus argonautas sobre o
Sussuarão, bem como suas jornadas através de outras geografias e
dramas nos sertões de Minas Gerais, Bahia e Goiás versam sobre muito
mais do que determinação e coragem, é claro. Elas versam sobre a
própria condição humana e, em particular, sobre como o olhar institui
realidades e cria paisagens. Grande Sertão: Veredas, por sua extraordinária sensibilidade, elaboração e universalidade pode ser considerado como uma ontologia do ser humano e, por extensão, como uma
ontologia da realidade e da paisagem. Esses e outros méritos dessa
obra-prima de Guimarães Rosa — reconhecida como uma das mais
formidáveis da literatura moderna e vertida para diversos idiomas,
não obstante sua complexidade sintática e semântica — emprestamnos uma base privilegiada sobre a qual podemos ensaiar uma reflexão
acerca de como as realidades e as paisagens são, em essência, criações de nossos olhares e, como tal, existem, antes de tudo, “é dentro
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da gente”. Portanto, revisitar os Sussuarões de Riobaldo — e compreender como seus diferentes olhares, em diferentes momentos, criam
diferentes Sussuarões — configura-se, também, como um convite para
que reflitamos sobre as realidades instituídas pelos nossos próprios
olhares e sobre os triunfos e as tragédias que eles engendram.
DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL
184
Poucos espaços, ou significantes espaciais, suportam uma diversidade
de significados tão ampla e possibilitam uma discussão sobre o olhar,
a realidade e a paisagem tão rica quanto o deserto. Em termos de significados extremos, identifica-se os que são atribuídos por dois sistemas de significação — ou olhares — absolutamente antagônicos.
O primeiro sistema, reproduzido por culturas que não têm o deserto
como um espaço de familiaridade, atribui a ele significados tais como
o de espaço de esterilidade e morte, de não realização da vida, de não
lugar e de morada ou manifestação de forças sobrenaturais como o
Diabo. A paisagem do deserto é concebida, então, como uma infindável extensão de solo estéril, indiferenciado e monótono, submetida
a uma vertiginosa imensidão celeste, assolada por uma insolação e
luminosidade inclementes e varrida por um ar terrivelmente quente e
seco. Lá, a visão e a respiração são um sofrimento, a vida é inconcebível e os horizontes desmaterializam e confundem terra e céu.
O segundo sistema de significação, reproduzido principalmente por
povos do deserto como Tuaregues, Bejas, Beduínos, Khoisan e Anangu,
atribui a ele significados tais como o de espaço fundamental para a realização da vida, de lugar de identidade e pertencimento e de morada
ou manifestação suprema de Deus. A paisagem do deserto é concebida
como um mundo estruturado por uma arrebatadora abóboda celeste
que, tal e qual uma redoma, protege o solo, as diversas criaturas que o
habitam, o alimento e a água que lá se encontram e as muitas sutilezas
que ali jazem. Essa paisagem, denominada “cósmica” por alguns autores, é regida por uma ordem natural absoluta, dada sobretudo pelos
astros que, em seu curso na abóboda celeste, dividem e organizam o
espaço quantitativa e qualitativamente, e determinam os sentidos de
orientação e territorialidade, bem como de identidade e pertencimento.
A única surpresa que se pode encontrar em alguns desertos é a tempestade de areia, o habub dos árabes. Entretanto, ela não constitui uma
forma diferente de ordem, mas apenas a oculta momentaneamente. A
propósito, a vivência das intensas propriedades cósmicas dessa ordem
natural absoluta pode ser uma das razões de grandes religiões monoteístas terem se originado nessas paisagens. No Islamismo, porém, o
deserto alcançou sua suprema expressão, uma vez que, para os muçulmanos, a concepção de um único Deus é o único dogma e, cinco vezes
ao dia, voltam-se em oração a Meca e professam: La ilaha illallah! —
Não há nenhum Deus a não ser Alá! Proclamando a unidade de Alá, os
muçulmanos confirmam a unidade de seu mundo; um mundo que tem o
deserto como modelo natural, como base existencial. O Islamismo ratifica, desse modo, que o ser humano deve ser amigo do deserto, deve
entendê-lo como base para a vida (noRBeRg-sChulz, 1980, p.45).
Entretanto, a maioria dos significados atribuídos ao deserto não é
determinada por esses dois olhares antagônicos. Ela é determinada
pela dialética que se estabelece entre esses olhares e, consequentemente, tanto possui elementos de ambos quanto reproduz a tensão
entre eles. Assim sendo, a maioria dos significados comunga o entendimento de que o deserto é onde Deus e o Diabo travam uma luta perpétua — e que é em sua extensão que se deve buscar a verdade, a realidade. Isso é patente, por exemplo, na Bíblia, quando Jesus Cristo, ungido
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pelo Batismo, é conduzido ao deserto pelo Espírito Santo para enfrentar o Demônio, que o tentará de todas as maneiras. O deserto é, então,
espaço de penitência e purificação, de solidão e revelação, de privação
e graça, de renúncia e transcendência, para onde se retiram aqueles
que buscam a Deus ou a si mesmos e onde se recolhem os eremitas (do
grego éremos, “deserto”) (ChevalieR; gheeRBRanT, 1992, p.331).
Em Grande Sertão: Veredas, o Liso do Sussuarão também é objeto
de significados antagônicos e tensão dialética, atribuídos e experimentados por Riobaldo em suas investidas sobre esse deserto, e revelados
e esmiuçados na narrativa que ele produz quando idoso. Essas investidas demonstram magnificamente como diferentes olhares podem
instituir diferentes realidades, criar diferentes paisagens e selar diferentes destinos, ao passo que sua narrativa evidencia o quão potente
pode ser uma história que toma como fio condutor as transformações,
permanências, acertos e desacertos do olhar de quem a protagoniza.
Transpassar o Sussuarão até alcançar os gerais da Bahia, e lá surpreender o atroz Chefe Hermógenes, responsável pela guerra jagunça que
assolava os sertões e pelo assassinato à traição de Chefe Joca Ramiro
— pai de Diadorim, amor impossível de Riobaldo —, não era tarefa para
simples mortais. Era trabalho para criaturas sobrenaturais, fossem deuses ou demônios, e homens extraordinários sob sua proteção. Riobaldo,
porém, não nasceu sendo mais do que um menino sertanejo pobre e
sem um pai. Perdeu cedo sua mãe, foi criado por um padrinho, pôde
estudar “gramática, as operações, regra-de-três, até geografia e estudo
pátrio” (Rosa, 2001, p.30) e se tornou professor. Preferiu, no entanto, a
vida de jagunço, onde ganhou a alcunha de “Tatarana, [a] lagarta-defogo” (Rosa, 2001, p.178) pelo gatilho e pontaria. E, só depois de muito,
fez-se o Chefe Urutu-Branco que rivalizaria Hermógenes, mesmo sem
saber se sob as graças de Nossa Senhora da Abadia ou do Cramulhão.
Em sua primeira investida sobre o Sussuarão, Riobaldo, ainda
jagunço do bando de Chefe Medeiro Vaz, concebe esse deserto como,
nas suas próprias palavras, “um escampo dos infernos. [...] Nada, nada
vezes, e o demo: [...] é o mais longe — pra lá, pra lá, nos ermos. Se
emenda com si mesmo. Água, não tem. Crer que quando a gente
entesta com aquilo o mundo se acaba: carece de se dar volta, sempre.
[...] Não tem excrementos. Não tem pássaros” (Rosa, 2001, p.50). Esse
Sussuarão de Riobaldo evidencia, obviamente, um olhar que o toma
como um espaço de esterilidade e morte, de não realização da vida,
de não lugar e de morada e manifestação do Diabo. Como tal, cruzá-lo só poderia ser tentado trazendo de seu exterior tudo que supostamente lhe faltava. Assim ordena Medeiro Vaz a seus comandados, que
providenciam enorme “quantidade de comidas e mantimentos [...] em
tantos burros cargueiros: e que era despropósito, por amor daquela
fartura — as carnes e farinhas, e rapadura, nem faltava sal, nem café”
(Rosa, 2001, p.59). Ademais, esse Sussuarão, uma vez concebido como
um vazio, um nada, também não poderia se constituir em um campo
de experimentação e aprendizado. E então, Riobaldo, à medida que
avança e pena, abaixa seus olhos “para não reter os horizontes, que
trancados não alternavam, circunstavam” (Rosa, 2001, p.425) e se
entrega à melancolia, arrependimento e solidão.
O sol não deixava olhar rumo nenhum. Via a luz, castigo. [...] Era uma
terra diferente, louca, e lagoa de areia. Onde é que seria o sobejo
dela, confinante? O sol vertia no chão, com sal, esfaiscava. De longe
vez, capins mortos; e uns tufos de seca planta — feito cabeleira sem
cabeça. As-exalastrava a distância, adiante, um amarelo vapor. E fogo
começou a entrar, com o ar, nos pobres peitos da gente. [...] Só saiba:
o Liso do Sussuarão concebia silêncio, e produzia uma maldade —
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feito pessoa! [...] Se ia, o pesadêlo. Pesadêlo mesmo, de delírios. Os
cavalos gemiam descrença. Já pouco forneciam. E nós estávamos
perdidos. Nenhum pôço não se achava. Aquela gente toda sapirava
de olhos vermelhos, arroxeavam as caras. A luz assassinava demais.
[...] Já tinha quem beijava os bentinhos, se rezava. De mim, entreguei
alma no corpo, debruçado para a sela, numa quebreira. Até minhas
testas formaram de chumbo. Valentia vale em todas horas? [...] “Saio
daqui com vida, deserteio de jaguncismo, vou e me caso com Otacília”
— eu jurei, do propôsto de meus todos sofrimentos. Mas mesmo depois,
naquela hora, eu não gostava mais de ninguém: só gostava de mim, de
mim! (Rosa, 2001, pp.64–68).
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Esse Sussuarão, ao invés de possibilitar a esses sertanejos liquidarem
com Hermógenes, quase liquida é com eles mesmos. Água e alimentos
se esgotaram, homens e animais sucumbiram e pereceram, o desamparo e a desesperança se instalaram e, como “nada campou viável”
(Rosa, 2001, p.69), desistiram dessa investida e retornaram derrotados.
Seriam necessários a Riobaldo bastante tempo, diferentes experiências e assaz amadurecimento até que seu olhar fosse capaz de conceber o Sussuarão como bem mais do que um “sol em vazios” (Rosa,
2001, p.65) onde “o vento se sabe sozinho” (Rosa, 2001, p.50), e como
bem melhor do que “o raso pior havente” (Rosa, 2001, p.50) onde “o
miôlo mal do sertão residia” (Rosa, 2001, p.50). Só assim, o Sussuarão
concederia passagem a nosso herói, em uma experiência fascinantemente distinta da primeira. A segunda investida de Riobaldo sobre
o Sussuarão, empreendida logo após ser proclamado Chefe UrutuBranco por seus companheiros, dá-se sobre os auspícios desse novo
olhar e de tal modo que seria possível transpassar esse deserto “sem
preparativos nenhuns, nem cargueiros repletos de bom mantimento,
nem bois tangidos para carneação, nem bogós de couro-crú derramando de cheios, nem tropa de jegues para carregar água” (Rosa,
2001, p.522).
Para que eu carecia de tantos embaraços? [...] E nem enviei adiante
nenhuma patrulha de farejadores [...]. Ah, jagunço não despreza
quem dá ordens diabradas. [...] Valentes que eram, e como foram se
animando. Ao que me obedeciam, ao meu melhor em redor. A gente
andou no comum, até ao fim do grameal. Aí, se estava, se esbarrava,
frente a frente com o Liso. Rédeas às ordens. A gente se moveu. Sol
em glória. [...] Ah, nem eu não tive incerteza em mente. Assim fomos.
Aí eu em frente adiante. [...] Rasgamos sertão. Só o real. Se passou
como se passou, nem refiro que fosse difícil-ah; essa vez não podia
ser! Sobrelégios? Tudo ajudou a gente, o caminho mesmo se economizava. [...] Nos nove dias, atravessamos (Rosa, 2001, pp.522–524).
Tal façanha só foi possível em virtude do olhar de Riobaldo ter sido
capaz de conceber o deserto como um espaço capaz de oferecer
abertura, sustento e abrigo, bem como de despertar seus sentidos e
de seus comandados para desvelar as sutilezas desse espaço. Nosso
herói perceberia também que o Sussuarão, mesmo não sendo o
melhor dos mundos e recebendo a visita do Das Trevas de quando
em vez, não era tão terrível assim e, talvez, estivesse é sob os auspícios de Deus. Riobaldo alcançou a velhice sem saber ao certo se
creditava o sucesso da travessia a si mesmo ou a alguma proteção sobrenatural. “Será — mal pergunto eu ao senhor — que viajei
este sertão com o Outro sendo meu sócio? Vá retro!” (Rosa, 2001,
p.497). Entretanto, ele é, sem dúvida, o grande maestro dessa proeza, pois foi seu olhar que possibilitou, entre outros feitos, encontrar
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carrapatos no Sussuarão e perceber que eram parte de uma cadeia
ecológica, ampla e diversificada, que garantiu a sobrevivência do
bando. É mérito seu, também, constituir-se em um exemplo que,
tendo sido seguido por seus companheiros, possibilitou a ampliação da ciência desses argonautas e seu sucesso na travessia.
O que era — que o raso não era tão terrível? Ou foi por graças que
achamos todo o carecido, nãostante no ir em rumos incertos, sem
mesmo se percurar? De melhor em bom, sem os maiores notáveis
sofrimentos, sem em-errar ponto. O que era, no cujo interior, o Liso
do Sussuarão? — era um feio mundo, por si exagerado. [...] Com tudo,
que tinha de tudo. [...] Ali tinha carrapato... Que é que chupavam, por
seu miudinho viver? Eh, achamos rêses bravas — gado escorraçado
fugido, que se acostumaram por lá [...]. Mas também dois veados a
gente caçou — e tinham achado jeito de estarem gordos... Ali, então,
tinha de tudo? Afiguro que tinha. Sempre ouvi zum de abêlha. O dar
de aranhas, formigas, abêlhas do mato que indicavam flores. Todo o
tanto, que de sede não se penou demais. [...] Cavalos iam pisando no
quipá, que até rebaixado, esgarço no chão, e começavam as folhagens
— que eram urtigão e assa-peixe, e o neves, mas depois a tinta-dos-gentíos de flôr belazul, que é o anil-trepador, e até essas sertaneja-assim e a maria-zipe, amarelas, pespingue de orvalhosas, e a sinhazinha, muito melindrosa flôr, que também guarda muito orvalho [...].
Digo — se achava água. O que não em-apenas água de touceira de
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gravatá, conservada. Mas, em lugar onde foi córrego morto, cacimba
d’água, viável, para os cavalos. Então, alegria. E tinha até uns embrejados [...] pelas veredas. E buraco-pôço, água que dava prazer em se
olhar (Rosa, 2001, pp.524–525).
Bem, mas o que teria causado tamanha transformação no olhar de
Riobaldo e sua concepção do Sussuarão? Aqueles que estudam
Guimarães Rosa e, em específico Grande Sertão: Veredas, reconhecem
que a análise dessa obra é praticamente inesgotável e pouco afeta
a simplificações. No entanto, é notória, na narrativa de Riobaldo, a
recorrência de uma dimensão de sua subjetividade que pode explicar
a transformação de seu olhar: suas relações com o outro e consigo, e
suas transformações. Avancemos, então.
O OUTRO, EU E OS ERMOS
Anhangão, Aquele, Arrenegado, Austero, Azarape, Barzabu, Belzebu,
Bode-Preto, Careca, Canho, Cão, Cão Extremo, Capeta, Capiroto,
Carocho, Coisa-Má, Coisa-Ruim, Coxo, Cramulhão, Cujo, Dado, Danado,
Danador, Das Trevas, Debo, Demonião, Demo, Demônio, Diacho,
Dianho, Dião, Diogo, Dos-Fins, Drão, Dubá-Dubá, Ele, Figura, Galhardo,
Grão Tinhoso, Homem, Indivíduo, Lúcifer, Mafarro, Mal-Encarado,
Maligno, Manfarro, Morcegão, Muito-Sério, Não-Sei-Que-Diga, O,
O-Que-Não-Existe, O-Que-Nunca-Se-Ri, Ocultador, Pai da Mentira, Pai
do Mal, Pé-de-Pato, Pé-Preto, Que-Diga, Que-Não-Fala, Que-Não-Ri,
Rapaz, Rei-Diabo, Romãozinho, Satanão, Satanás, Satanazim, SemGracejos, Severo-Mor, Sempre-Sério, Solto-Eu, Sujo, Temba, Tendeiro,
Tentador, Tisnado, Tristonho, Tunes, Xu... e o Outro são denominações
utilizadas por Riobaldo para se referir àquele que é o personagem
mais importante de toda sua narrativa.
Em Grande Sertão: Veredas, o Coisa-Ruim, mesmo sendo o que
de pior pode haver, é mais do que simples e maniqueísta maldade.
Ele é quem participa de maneira mais formidável na conscientização
de Riobaldo sobre si mesmo, posto que atua como uma elaborada
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representação do outro. Ou seja, como aquele que um eu individual
ou social entende como um dessemelhante ou contrário e, a um só
tempo, como um possuinte ou depositário de algo que o eu não detém,
mas deseja, consciente ou inconscientemente. A relação de Riobaldo
com o Grão Tinhoso é pautada por essa tensão dialética, é objeto de
movimentos radicais, afeta seu olhar diretamente e se nutre de seu
desejo de liquidar Chefe Hermógenes.
Encarnação do mal, Hermógenes tinha sua força, astúcia e sorte
extraordinárias atribuídas a um pacto com o Coisa-Má, a quem “assinou a alma em pagamento” (Rosa, 2001, p.317). Riobaldo, após quase
perder a vida no Sussuarão, vai aos poucos percebendo que transpassar o deserto e derrotar Hermógenes exige, sobretudo, é ter o olhar
do outro, o poder do outro. E, para tanto, é imperioso o mais difícil
dos movimentos: ser também o outro. Esse movimento tem início na
decisão mais radical que Riobaldo toma em sua vida: vender a alma
para o Diabo em troca dos mesmos poderes que teria emprestado a
Hermógenes. Só assim, crê nosso Fausto dos sertões, ele somaria os
poderes do Severo-Mór aos seus próprios poderes, alcançaria a totalidade, poderia tudo e derrotaria “os Judas” (Rosa, 2001, p.82).
Deus é muito contrariado. Deus deixou que eu fosse, em pé, por meu
querer, como fui. Eu caminhei para as Veredas-Mortas. [...] Lugar meu
tinha de ser a concruz dos caminhos. A noite viesse rodeando. Aí, friazinha. E escolher onde ficar o que tinha de ser melhor debaixo dum
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pau-cardoso [...]. Ainda melhor era a capa-rosa — porque no chão
bem debaixo dela é que o Careca dansa, e por isso ali fica um círculo
de terra limpa, em que não cresce nem um fio de capim [...]. Eu não ia
tremer. O que eu estava tendo era o medo que ele estava tendo de
mim! [...] Viesse, viesse, vinha para me obedecer. Trato? Mas trato de
iguais com iguais. [...] E, o que era que eu queria? Ah, acho que não
queria mesmo nada, de tanto que eu queria só tudo. Uma coisa, a
coisa, esta coisa: eu somente queria era — ficar sendo! [...] Eu queria
ser mais do que eu (Rosa, 2001, pp.434–437).
Lúcifer não deu as caras nas Veredas-Mortas e Riobaldo passou o resto
de sua existência assolado por dúvidas sobre a existência ou não do
Dos-Fins e o destino de sua alma. Será que a presença do Cujo na encruzilhada seria condição necessária para o pacto se firmar? Será que sua
alma imortal iria para os Quintos? Será que Satanás teria cobrado em
vida o empréstimo de seus poderes tirando a vida de seu amor maior,
Diadorim? Ou será que “nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for...
Existe é homem humano. Travessia” (Rosa, 2001, p.624)?
A decisão de vender sua alma e a realização do ritual para tanto,
por mais que não tenham dado a Riobaldo certeza de sua concretização, acabaram por funcionar como uma catarse, como uma ab-reação que lhe possibilitou conhecer sua força interior, afirmar-se como
sujeito de sua vida e destino, encontrar a divindade que nele habita,
somar aos poderes que ela lhe confere os poderes do Diabo e, então,
fundar um novo olhar.
Os prazos principiavam... E, o que eu fazia, era que eu pensava sem
querer, o pensar das novidades. Tudo agora reluzia com clareza,
ocupando minhas idéias, e de tantas coisas passadas diversas eu inventava lembrança, de fatos esquecidos em muito remoto, neles eu topava
outra razão; sem nem que fosse por minha própria vontade. Até eu não
puxava por isso, e pensava o qual, assim mesmo, quase sem esbarrar, o
tempo todo. [...] E fui vendo que aos poucos eu entrava numa alegria
estrita, contente com o viver, mas apressadamente. (Rosa, 2001, p.440).
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Esse novo olhar de Riobaldo lhe proporcionaria, de início, conquistar
a liderança de seu grupo, retirada pacificamente das mãos de Chefe
Zé Bebelo, por meio de um movimento que remete a um processo psicanalítico fundamental para a constituição de um sujeito autônomo:
matar o pai. Feito isso, ele comanda a bem-sucedida travessia do Liso
do Sussuarão e, finalmente, surpreende e derrota Hermógenes e seu
bando em um combate que ceifa a vida de Diadorim e evidencia a
estrutura trágica de Grande Sertão: Veredas.
Todavia, o desdobramento mais importante desse olhar de
Riobaldo não é o conjunto de triunfos e tragédias que ele enseja: é
a reafirmação de que os seres humanos só alcançam sua plenitude
quando o eu e o outro se encontram, digladiam-se e se fundem nos
ermos de seus corações. Guimarães Rosa, ao reconhecer a imprescindibilidade do outro na formação e transformação do olhar e da
realidade, comunga com os grandes humanistas a convicção de que
o verdadeiro encontro é, em essência, um exercício de alteridade. E,
como tal, ele tem uma dimensão horizontal, objetiva, dada pelo deslocamento no espaço e no tempo que possibilita estar diante de um
outro; e uma dimensão vertical, subjetiva, dada pela transcendência
que advém da compreensão desse outro (ToFani, 2008, p.1).
RECONSTRUINDO NO DESERTO O PARAÍSO PERDIDO
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Grande Sertão: Veredas pode ser entendido como uma espetacular
representação de como o olhar — enquanto um sistema de significação
que se transforma no tempo e no espaço, individualmente e socialmente
— determina diferentes realidades, paisagens e destinos. Contudo, afora
o olhar, existe algo capaz de instituir o real? Os dois Sussuarões de
Riobaldo são reais? Um é mais real do que o outro? Nenhum é real?
Bem, por um lado, pode-se afirmar que nenhum deles é o real —
no sentido de totalidade física desvelada — pois Riobaldo apreendeu
apenas uma porção dessa totalidade, mesmo em sua segunda investida. Ou seja, por mais que seu olhar o tenha predisposto, então, a
perceber diversas dimensões da ecologia do deserto, e esse conhecimento tenha determinado o sucesso da travessia, ele não desvelou
a totalidade física do Liso do Sussuarão. Riobaldo não conheceu mais
do que uma pequena parte de seus componentes bióticos e abióticos,
não percebeu os complexos processos naturais que o formam e transformam, e sequer supôs que tudo ali, ele incluído, era composto por
matéria e energia com origens em distantes rincões do universo... E,
mesmo que Riobaldo fosse grande conhecedor de cosmogênese, geologia, biologia etc., seu conhecimento sobre o Sussuarão ainda seria
incompleto, seria irreal. E assim seria, pois o conhecimento das totalidades, ou melhor, o conhecimento da suposta totalidade em que consiste o universo ainda permanece distante do ser humano, ou pior, talvez nos seja inexoravelmente inacessível.
Por outro lado, pode-se também afirmar que os Sussuarões de
Riobaldo são reais, por meio de dois argumentos, resultantes de diferentes entendimentos acerca do que institui a realidade. O primeiro
argumento, frequente nas ciências exatas e biológicas, sustenta que
a realidade é coisa-em-si, dotada de pura objetividade, regida por leis
próprias e indiferente ao olhar do ser humano, a quem é facultado
tentar desvelar essa realidade. Portanto, conforme esse argumento, o
Sussuarão da primeira e malfadada investida de Riobaldo é tão real
quanto o Sussuarão da segunda e bem-sucedida investida, pois são o
mesmo deserto, real per se, indiferente aos olhares de nosso herói e
independente de ele ter ou não desvelado sua totalidade física. Como
tal, o topônimo desse liso não admite ser fletido para o plural; ele é
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invariavelmente no singular: o Sussuarão. E mais: afirmar que o sertão
ou qualquer paisagem “é dentro da gente” pode ser considerado sintoma de grave narcisismo e coisa mais afeta ao divã.
Já o segundo argumento, frequente nas ciências humanas e sociais
aplicadas, sustenta que a realidade é, em essência, um constructo
cultural, uma maneira de ver o que nos cerca e compõe, sejam coisas-em-si ou não. Como tal, a realidade é constituída por tudo aquilo
que o olhar, enquanto sistema de significação culturalmente determinado, retira do limbo do inexistente, do inominado, e pela palavra dá ao mundo sensível, ao existencial. Nesse sentido, ambos os
Sussuarões de Riobaldo são reais e, tendo sido instituídos por olhares distintos, são realidades distintas. E tudo aquilo que Riobaldo
não apreendeu desse deserto simplesmente não compunha sua realidade, não existia, afetando ou não sua vida.
O entendimento do real enquanto constructo cultural possibilita
afirmar, inclusive, e para espanto de muitos, que não existe uma natureza natural, que não existem paisagens naturais. Isso é possível pois o
ato de nominar algo como “natureza”, “natural” ou “paisagem” é um ato
eminentemente cultural. Ele atribui a algo um significado que, como
todo e qualquer significado, é culturalmente referenciado. E, ao fazer
isso, o ato de nominar culturaliza, de imediato, o que é nominado. A propósito, o significado de “natureza” varia bastante no tempo e no espaço,
e sequer existe uma palavra como tal em sociedades cujas cosmologias
não são estruturadas em torno da dicotomia natureza-cultura. E vale frisar que, à luz do entendimento do real enquanto constructo cultural, o
termo “paisagem cultural” é considerado um equívoco, pois consiste em
uma redundância. Ademais, esse entendimento permite afirmar, também, que a ciência cartesiana, em seu afã por verdades objetivas, neutras, cumulativas e universais, e não obstante suas muitas contribuições
para a humanidade, nada mais é do que um olhar sobre o que nos cerca
e compõe. E, no final das contas, até mesmo o entendimento de que a
realidade é coisa-em-si é apenas e tão somente um olhar.
Pois bem, tendo chegado aqui, cumpre-nos agora esclarecer o leitor, ou lembrá-lo, que o Liso do Sussuarão não é um constructo cultural
de Riobaldo, não é uma coisa-em-si indiferente ao ser humano e não é
uma totalidade física não desvelada. Ele é uma criação de Guimarães
Rosa, um espaço fictício, uma invenção à maneira dos lisos e rasos que
se estendem pelos sertões e imaginários sertanejos. Mas será que a condição ficcional do Sussuarão o destitui, por completo, de realidade? Ou
será que essa condição é irrelevante, pois o Sussuarão existe em Grande
Sertão: Veredas e tem, ao menos para os amantes dessa obra-prima da
literatura, uma capacidade de suscitar paisagens e realidades incomparavelmente superior à de espaços que pouco ou nada conhecemos e,
até mesmo, à de espaços cotidianos com os quais convivemos com indiferença? Afinal de contas, realidades, paisagens e literaturas são ou não
são, em essência, narrativas acerca do que nos cerca e compõe?
Enfim... por mais que tenhamos empreendido notáveis avanços
científicos e tecnológicos, e por menos que toleremos admitir, ainda
vivemos ignorantes, frágeis e finitos em nosso exílio do absoluto, neste
ermo que se estende pelos estreitos territórios entre céu e terra, nascimento e morte, memória e esquecimento. “Viver é muito perigoso...”
(Rosa, 2001, p.32). Todavia, não nos dobramos e, mesmo que sejamos
inexoravelmente incapazes de desvendar todos os segredos que nos
envolvem, buscamos transcender nossos limites e reconstruir o absoluto a partir de nós mesmos, de nossas lentes disformes, de nossos
instrumentos rudimentares. Reconstruir o absoluto significa criar um
cosmos que se imponha sobre o caos, ilumine as trevas e humanize
o universo. Para tanto, produzimos cosmologias que nos permitam,
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mesmo que provisoriamente, instituir o real, fundar o mundo e interagir com o que entendemos como o outro, como a natureza e como
nossas divindades. Só assim podemos estabelecer um lugar entre céu
e terra, uma base existencial onde possamos habitar.
Estabelecer base existencial e habitar se dão quando produzimos
um espaço que não apenas nos proteja dos perigos que cremos nos
rondarem, mas onde possamos experimentar nossas vidas como significativas, ver a origem e trajetória de nossos antepassados, ver um destino e caminho para nossos descendentes e materializar nossas verdades. Ao concretizarmos valores, sentidos e concepções no espaço,
nele depositamos algo de nós, a ele dando vida, nele nos refletindo,
com ele nos identificando e a ele pertencendo. Dessa forma, as coisas transcendem sua pura materialidade, tornam-se existenciais e são
capazes de falar daqueles que as tocaram ou transformaram. Quando
habitamos, afirmamo-nos perante nosso mundo e corpo e alma encontram proteção para ser e sonhar em paz.
A necessidade de estabelecer base existencial e habitar é dada, inclusive, nas cosmogonias das grandes religiões abraâmicas, quando Deus,
ao expulsar Adão e Eva do Jardim do Éden (no judaísmo e cristianismo)
ou do Paraíso (no islamismo), expõe ao ser humano seu problema fundamental: atravessar o portão e reconstruir no deserto o paraíso perdido.
Esse entendimento do ser humano — enquanto sujeito destituído de
uma natureza, dotado de um intelecto e condenado a reconstruir o absoluto — é visível também em outras cosmogonias, mitológicas e científicas, e aponta para uma questão capital: qual é o fundamento ontológico
do ser humano? Não podendo contar com uma natureza que possamos
tomar como tal, admitindo nossa constituição biológica como incapaz de
desempenhar tamanho papel e excluindo as formulações deterministas
de foro principalmente religioso, parece-nos que nossa extraordinária
capacidade de produzir e reproduzir cultura é a melhor resposta.
Esse entendimento pode ser depreendido da própria etimologia da
palavra “cultura”, cujo sentido e potência originais remontam ao verbo
latino colo e seus particípios cultus e culturus. Esse verbo significa “cultivar, habitar, morar, cuidar, preparar, proteger, amar, estimar, cuidar
de, exercer, praticar, honrar, respeitar, venerar, adorar” (FiRmino, 1950,
p.106) e, como tal, denota o conjunto de atos e efeitos mais essenciais à
existência humana e, em particular, à produção do espaço e reprodução
social. Ademais, o verbo colo conota que nossa existência exige que realizemos esses atos e efeitos — pautados por nosso intelecto, obviamente
— e assim reconhece, também, nossa desnaturalização e necessidade de
reconstruir no deserto o paraíso perdido. Esse deserto, para deixar de
ser um nada e dar lugar ao nosso mundo, realidade e base existencial,
deverá, portanto, ser colonizado.
O particípio passado cultus, por sua vez, expande sensivelmente
as significações do verbo colo ao reconhecer que a sucessão e acumulação de tais atos e efeitos no tempo e no espaço proporciona
dois desdobramentos fundamentais: a constituição de uma memória
social e a consolidação de nosso mundo. Em outras palavras, quando
ele está cultivado, habitado, cuidado, preparado, protegido, amado,
estimado, exercido, praticado, honrado, respeitado, venerado e adorado, quando há tempos fornece o sustento dos vivos e o repouso dos
mortos, nosso mundo é culto, é cultuado.
A plenitude do verbo colo é alcançada, todavia, em seu particípio
futuro culturus, pois ele reconhece a importância basilar daqueles atos e
efeitos, bem como de sua sucessão e acumulação no tempo e no espaço,
mas vai além. Esse particípio aponta, como lhe é próprio, para o porvir
e nos indaga sobre como nos reproduziremos socialmente, qual legado
transmitiremos às novas gerações e o que é necessário para nosso mundo
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se perpetuar. Ao fazer isso, o particípio culturus reconhece que o futuro
é um projeto realizado por meio de atos e efeitos no presente, a partir
dos legados do passado. Sobretudo, ele reconhece que a existência de
qualquer sociedade depende da ininterrupta produção e reprodução de
um conjunto de valores, sentidos, concepções, saberes, símbolos, linguagens, práticas e obras que é compartilhado socialmente. A esse conjunto
e aos modos de sua produção e reprodução, denomina-se cultura. A cultura é o mais poderoso sistema de significação do ser humano, tomado
individualmente ou socialmente, e determina os modos de produção e
reprodução de sua realidade, de seu mundo e de sua base existencial. A
cultura é expressão plena do ser humano e seu fundamento ontológico
por excelência (ToFani, 2008, pp.24–26).
Riobaldo parece comungar com esse entendimento e o reafirma,
de forma sublime, em uma de suas mais belas máximas, oferecida em
uma passagem de Grande Sertão: Veredas, na qual auxilia uma sertaneja a dar à luz uma criança, e tomada emprestada com epígrafe deste
ensaio: “Minha Senhora Dona: um menino nasceu — o mundo tornou a
começar!...” (Rosa, 2001, p.484). Ao assim celebrar o nascimento dessa
criança, nosso herói celebra o que é para nós o real maior: que um
novo mundo e incontáveis paisagens são criados sempre que alguém
se abre para aquilo que o envolve.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos,
costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José
Olympio Editora, 1992.
FIRMINO, Nicolau. Dicionário Latino Português. São Paulo: Edições
Melhoramentos, 1950.
NORBERG-SCHULZ, Christian. Genius Loci: Towards a Phenomenology of
Architecture. New York: Rizzoli International Publications, 1980.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2001.
TOFANI, Frederico de Paula. “Sertão: é Dentro da Gente”: Um Breve Ensaio
sobre o Olhar, o Deserto e a Geografia. Boletim Mineiro de Geografia, Belo
Horizonte: Associação dos Geógrafos Brasileiros, a.8, n.13, julho de 2005,
pp.175–195.
______. Erejakasó piáng? As Culturas Sambaquieira, Aratu, Tupiguarani e
Portuguesa e a Produção do Espaço do Extremo Sul da Bahia, Brasil. Tese
(Doutorado em Geografia) — Programa de Pós-Graduação em Geografia,
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, 2008.
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