Dom Casm urro
Text o de referência:
Obras Com plet as de Machado de Assis, vol. I ,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.
Publicado originalm ent e pela Edit ora Garnier, Rio de Janeiro, 1899.
CAPÍ TULO PRI M EI RO
D O TÍ TULO
Um a noit e dest as, vindo da cidade para o Engenho Novo, encont rei no t rem da
Cent ral um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vist a e de chapéu.
Cum prim ent ou- m e, sent ou- se ao pé de m im , falou da Lua e dos m inist ros, e
acabou recit ando- m e versos. A viagem era curt a, e os versos pode ser que não
fossem int eiram ent e m aus. Sucedeu, porém , que, com o eu est ava cansado, fechei
os olhos t rês ou quat ro vezes; t ant o bast ou para que ele int errom pesse a leit ura e
m et esse os versos no bolso.
— Cont inue, disse eu acordando.
— Já acabei, m urm urou ele.
— São m uit o bonit os.
Vi- lhe fazer um gest o para t irá- los out ra vez do bolso, m as não passou do gest o;
est ava am uado. No dia seguint e ent rou a dizer de m im nom es feios, e acabou
alcunhando- m e Dom Casm urro. Os vizinhos, que não gost am dos m eus hábit os
reclusos e calados, deram curso à alcunha, que afinal pegou. Nem por isso m e
zanguei. Cont ei a anedot a aos am igos da cidade, e eles, por graça, cham am - m e
assim , alguns em bilhet es: " Dom Casm urro, dom ingo vou j ant ar com você” .—
" Vou para Pet rópolis, Dom Casm urro; a casa é a m esm a da Renânia; vê se deixas
essa caverna do Engenho Novo, e vai lá passar uns quinze dias com igo” .— " Meu
caro Dom Casm urro, não cuide que o dispenso do t eat ro am anhã; venha e dorm irá
aqui na cidade; dou- lhe cam arot e, dou- lhe chá, dou- lhe cam a; só não lhe dou
m oça” .
Não consult es dicionários. Casm urro não est á aqui no sent ido que eles lhe dão,
m as no que lhe pôs o vulgo de hom em calado e m et ido consigo. Dom veio por
ironia, para at ribuir- m e fum os de fidalgo. Tudo por est ar cochilando! Tam bém não
achei m elhor t ít ulo para a m inha narração; se não t iver out ro daqui at é ao fim do
livro, vai est e m esm o. O m eu poet a do t rem ficará sabendo que não lhe guardo
rancor. E com pequeno esforço, sendo o t ít ulo seu, poderá cuidar que a obra é
sua. Há livros que apenas t erão isso dos seus aut ores; alguns nem t ant o.
CAPÍ TULO I I
D O LI VRO
Agora que expliquei o t ít ulo, passo a escrever o livro. Ant es disso, porém , digam os
os m ot ivos que m e põem a pena na m ão.
Vivo só, com um criado. A casa em que m oro é própria; fi- la const ruir de
propósit o, levado de um desej o t ão part icular que m e vexa im prim i- lo, m as vá lá.
Um dia, há bast ant es anos, lem brou- m e reproduzir no Engenho Novo a casa em
que m e criei na ant iga Rua de Mat a- cavalos, dando- lhe o m esm o aspect o e
econom ia daquela out ra, que desapareceu. Const rut or e pint or ent enderam bem
as indicações que lhes fiz: é o m esm o prédio assobradado, t rês j anelas de frent e,
varanda ao fundo, as m esm as alcovas e salas. Na principal dest as, a pint ura do
t et o e das paredes é m ais ou m enos igual, um as grinaldas de flores m iúdas e
grandes pássaros que as t om am nos bicos, de espaço a espaço. Nos quat ro cant os
do t et o as figuras das est ações, e ao cent ro das paredes os m edalhões de César,
August o, Nero e Massinissa, com os nom es por baixo... Não alcanço a razão de
t ais personagens. Quando fom os para a casa de Mat a- cavalos, j á ela est ava assim
decorada; vinha do decênio ant erior. Nat uralm ent e era gost o do t em po m et er
sabor clássico e figuras ant igas em pint uras am ericanas. O m ais é t am bém
análogo e parecido. Tenho chacarinha, flores, legum e, um a casuarina, um poço e
lavadouro. Uso louça velha e m obília velha. Enfim , agora, com o out rora, há aqui o
m esm o cont rast e da vida int erior, que é pacat a, com a ext erior, que é ruidosa.
O m eu fim evident e era at ar as duas pont as da vida, e rest aurar na velhice a
adolescência. Pois, senhor, não consegui recom por o que foi nem o que fui. Em
t udo, se o rost o é igual, a fisionom ia é diferent e. Se só m e falt assem os out ros,
vá; um hom em consola- se m ais ou m enos das pessoas que perde; m ais falt o eu
m esm o, e est a lacuna é t udo. O que aqui est á é, m al com parando, sem elhant e à
pint ura que se põe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o hábit o
ext erno, com o se diz nas aut ópsias; o int erno não agüent a t int a. Um a cert idão que
m e desse vint e anos de idade poderia enganar os est ranhos, com o t odos os
docum ent os falsos, m as não a m im . Os am igos que m e rest am são de dat a
recent e; t odos os ant igos foram est udar a geologia dos cam pos- sant os. Quant o às
am igas, algum as dat am de quinze anos, out ras de m enos, e quase t odas crêem na
m ocidade. Duas ou t rês fariam crer nela aos out ros, m as a língua que falam obriga
m uit a vez a consult ar os dicionários, e t al freqüência é cansat iva.
Ent ret ant o, vida diferent e não quer dizer vida pior; é out ra coisa. A cert os
respeit os, aquela vida ant iga aparece- m e despida de m uit os encant os que lhe
achei; m as é t am bém exat o que perdeu m uit o espinho que a fez m olest a, e, de
m em ória, conservo algum a recordação doce e feit iceira. Em verdade, pouco
apareço e m enos falo. Dist rações raras. O m ais do t em po é gast o em hort ar,
j ardinar e ler; com o bem e não durm o m al.
Ora, com o t udo cansa, est a m onot onia acabou por exaurir- m e t am bém . Quis
variar, e lem brou- m e escrever um livro. Jurisprudência, filosofia e polít ica
acudiram - m e, m as não m e acudiram as forças necessárias. Depois, pensei em
fazer um a Hist ória dos Subúrbios, m enos seca que as m em órias do padre Luís
Gonçalves dos Sant os, relat ivas à cidade; era obra m odest a, m as exigia
docum ent os e dat as, com o prelim inares, t udo árido e longo. Foi ent ão que os
bust os pint ados nas paredes ent raram a falar- m e e a dizer- m e que, um a vez que
eles não alcançavam reconst it uir- m e os t em pos idos, pegasse da pena e cont asse
alguns. Talvez a narração m e desse a ilusão, e as som bras viessem perpassar
ligeiras, com o ao poet a, não o do t rem , m as o do Faust o: Aí vindes out ra vez,
inquiet as som bras?...
Fiquei t ão alegre com est a idéia, que ainda agora m e t rem e a pena na m ão. Sim ,
Nero, August o, Massinissa, e t u, grande César, que m e incit as a fazer os m eus
com ent ários, agradeço- vos o conselho, e vou deit ar ao papel as rem iniscências
que m e vierem vindo. Dest e m odo, viverei o que vivi, e assent arei a m ão para
algum a obra de m aior t om o. Eia, com ecem os a evocação por um a célebre t arde de
novem bro, que nunca m e esqueceu. Tive out ras m uit as, m elhores, e piores, m as
aquela nunca se m e apagou do espírit o. É o que vais ent ender, lendo.
CAPÍ TULO I I I
A D EN ÚN CI A
I a a ent rar na sala de visit as, quando ouvi proferir o m eu nom e e escondi- m e
at rás da port a. A casa era a da rua de Mat a- cavalos, o m ês novem bro, o ano é que
é um t ant o rem ot o, m as eu não hei de t rocar as dat as à m inha vida só para
agradar às pessoas que não am am hist órias velhas; o ano era de 1857.
— D. Glória, a senhora persist e na idéia de m et er o nosso Bent inho no sem inário?
É m ais que t em po, e j á agora pode haver um a dificuldade.
— Que dificuldade?
— Um a grande dificuldade.
Minha m ãe quis saber o que era. José Dias, depois de alguns inst ant es de
concent ração, veio ver se havia alguém no corredor; não deu por m im , volt ou e,
abafando a voz, disse que a dificuldade est ava na casa ao pé, a gent e do Pádua.
— A gent e do Pádua?
— Há algum t em po est ou para lhe dizer ist o, m as não m e at revia. Não m e parece
bonit o que o nosso Bent inho ande m et ido nos cant os com a filha do Tart aruga, e
est a é a dificuldade, porque se eles pegam de nam oro, a senhora t erá m uit o que
lut ar para separá- los.
— Não acho. Met idos nos cant os?
— É um m odo de falar. Em segredinhos, sem pre j unt os. Bent inho quase não sai de
lá. A pequena é um a desm iolada; o pai faz que não vê; t om ara ele que as coisas
corressem de m aneira que... Com preendo o seu gest o; a senhora não crê em t ais
cálculos, parece- lhe que t odos t êm a alm a cândida...
— Mas, Sr. José Dias, t enho vist o os pequenos brincando, e nunca vi nada que
faça desconfiar. Bast a a idade; Bent inho m al t em quinze anos. Capit u fez quat orze
à sem ana passada; são dois criançolas. Não se esqueça que foram criados j unt os,
desde aquela grande enchent e, há dez anos, em que a fam ília Pádua perdeu t ant a
coisa; daí vieram as nossas relações. Pois eu hei de crer? ... Mano Cosm e, você
que acha?
Tio Cosm e respondeu com um " Ora! " que, t raduzido em vulgar, queria dizer: " São
im aginações do José Dias; os pequenos divert em - se, eu divirt o- m e; onde est á o
gam ão?"
— Sim , creio que o senhor est á enganado.
— Pode ser, m inha senhora. Oxalá t enham razão; m as creia que não falei senão
depois de m uit o exam inar...
— Em t odo caso, vai sendo t em po, int errom peu m inha m ãe; vou t rat ar de m et ê- lo
no sem inário quant o ant es.
— Bem , um a vez que não perdeu a idéia de o fazer padre, t em - se ganho o
principal. Bent inho há de sat isfazer os desej os de sua m ãe. E depois a igrej a
brasileira t em alt os dest inos. Não esqueçam os que um bispo presidiu a
Const it uint e, e que o padre Feij ó governou o I m pério...
— Governo com o a cara dele! at alhou t io Cosm e, cedendo a ant igos rancores
polít icos.
— Perdão, dout or, não est ou defendendo ninguém , est ou cit ando. O que eu quero
é dizer que o clero ainda t em grande papel no Brasil.
— Você o que quer é um capot e; ande, vá buscar o gam ão. Quant o ao pequeno,
se t em de ser padre, realm ent e é m elhor que não com ece a dizer m issa at rás das
port as. Mas, olhe cá, m ana Glória, há m esm o necessidade de fazê- lo padre?
— É prom essa, há de cum prir- se.
— Sei que você fez prom essa... m as um a prom essa assim ... não sei... Creio que,
bem pensado... Você que acha, prim a Just ina?
— Eu?
— Verdade é que cada um sabe m elhor de si, cont inuou t io Cosm e; Deus é que
sabe de t odos. Cont udo, um a prom essa de t ant os anos... Mas, que é isso, m ana
Glória? Est á chorando? Ora est a! Pois ist o é coisa de lágrim as?
Minha m ãe assoou- se sem responder. Prim a Just ina creio que se levant ou e foi t er
com ela. Seguiu- se um alt o silêncio, durant e o qual est ive a pique de ent rar na
sala, m as out ra força m aior, out ra em oção... Não pude ouvir as palavras que t io
Cosm e ent rou a dizer. Prim a Just ina exort ava: " Prim a Glória! Prim a Glória! " José
Dias desculpava- se: " Se soubesse, não t eria falado, m as falei pela veneração, pela
est im a, pelo afet o, para cum prir um dever am argo, um dever am aríssim o...”
CAPÍ TULO I V
UM D EVER AM ARÍ SSI M O!
José Dias am ava os superlat ivos. Era um m odo de dar feição m onum ent al às
idéias; não as havendo, servia a prolongar as frases. Levant ou- se para ir buscar o
gam ão, que est ava no int erior da casa. Cosi- m e m uit o à parede, e vi- o passar com
as suas calças brancas engom adas, presilhas, rodaque e gravat a de m ola. Foi dos
últ im os que usaram presilhas no Rio de Janeiro, e t alvez nest e m undo. Trazia as
calças curt as para que lhe ficassem bem est icadas. A gravat a de cet im pret o, com
um arco de aço por dent ro, im obilizava- lhe o pescoço; era ent ão m oda. O rodaque
de chit a, vest e caseira e leve, parecia nele um a casaca de cerim ônia. Era m agro,
chupado, com um princípio de calva; t eria os seus cinqüent a e cinco anos.
Levant ou- se com o passo vagaroso do cost um e, não aquele vagar arrast ado dos
preguiçosos, m as um vagar calculado e deduzido, um silogism o com plet o, a
prem issa ant es da conseqüência, a conseqüência ant es da conclusão. Um dever
am aríssim o!
CAPÍ TULO V
O AGREGAD O
Nem sem pre ia naquele passo vagaroso e rígido. Tam bém se descom punha em
acionados, era m uit a vez rápido e lépido nos m ovim ent os, t ão nat ural nest a com o
naquela m aneira. Out rossim , ria largo, se era preciso, de um grande riso sem
vont ade, m as com unicat ivo, a t al pont o as bochechas, os dent es, os olhos, t oda a
cara, t oda a pessoa, t odo o m undo pareciam rir nele. Nos lances graves,
gravíssim o.
Era nosso agregado desde m uit os anos; m eu pai ainda est ava na ant iga fazenda
de I t aguaí, e eu acabava de nascer. Um dia apareceu ali vendendo- se por m édico
hom eopat a; levava um Manual e um a bot ica. Havia ent ão um andaço de febres;
José Dias curou o feit or e um a escrava, e não quis receber nenhum a rem uneração.
Ent ão m eu pai propôs- lhe ficar ali vivendo, com pequeno ordenado. José Dias
recusou, dizendo que era j ust o levar a saúde à casa de sapé do pobre.
— Quem lhe im pede que vá a out ras part es? Vá aonde quiser, m as fique m orando
conosco.
— Volt arei daqui a t rês m eses.
Volt ou dali a duas sem anas, aceit ou casa e com ida sem out ro est ipêndio, salvo o
que quisessem dar por fest as. Quando m eu pai foi eleit o deput ado e veio para o
Rio de Janeiro com a fam ília, ele veio t am bém , e t eve o seu quart o ao fundo da
chácara. Um dia, reinando out ra vez febres em I t aguaí, disse- lhe m eu pai que
fosse ver a nossa escravat ura. José Dias deixou- se est ar calado, suspirou e acabou
confessando que não era m édico. Tom ara est e t ít ulo para aj udar a propaganda da
nova escola, e não o fez sem est udar m uit o e m uit o; m as a consciência não lhe
perm it ia aceit ar m ais doent es.
— Mas, você curou das out ras vezes.
— Creio que sim ; o m ais acert ado, porém , é dizer que foram os rem édios
indicados nos livros. Eles, sim ; eles, abaixo de Deus. Eu era um charlat ão... Não
negue; os m ot ivos do m eu procedim ent o podiam ser e eram dignos; a hom eopat ia
é a verdade, e, para servir à verdade, m ent i; m as é t em po de rest abelecer t udo.
Não foi despedido, com o pedia ent ão; m eu pai j á não podia dispensá- lo. Tinha o
dom de se fazer aceit o e necessário; dava- se por falt a dele, com o de pessoa da
fam ília. Quando m eu pai m orreu, a dor que o pungiu foi enorm e, disseram - m e,
não m e lem bra. Minha m ãe ficou- lhe m uit o grat a, e não consent iu que ele
deixasse o quart o da chácara; ao sét im o dia, depois da m issa, ele foi despedir- se
dela.
— Fique, José Dias.
— Obedeço, m inha senhora.
Teve um pequeno legado no t est am ent o, um a apólice e quat ro palavras de louvor.
Copiou as palavras, encaixilhou- as e pendurou- as no quart o, por cim a da cam a.
" Est a é a m elhor apólice", dizia ele m uit a vez. Com o t em po, adquiriu cert a
aut oridade na fam ília, cert a audiência, ao m enos; não abusava, e sabia opinar
obedecendo. Ao cabo, era am igo, não direi ót im o, m as nem t udo é ót im o nest e
m undo. E não lhe suponhas alm a subalt erna; as cort esias que fizesse vinham
ant es do cálculo que da índole. A roupa durava- lhe m uit o; ao cont rário das
pessoas que enxovalham depressa o vest ido novo, ele t razia o velho escovado e
liso, cerzido, abot oado, de um a elegância pobre e m odest a. Era lido, post o que de
at ropelo, o bast ant e para divert ir ao serão e à sobrem esa, ou explicar algum
fenôm eno, falar dos efeit os do calor e do frio, dos pólos e de Robespierre. Cont ava
m uit a vez um a viagem que fizera à Europa, e confessava que a não serm os nós, j á
t eria volt ado para lá; t inha am igos em Lisboa, m as a nossa fam ília, dizia ele,
abaixo de Deus, era t udo.
— Abaixo ou acim a? pergunt ou- lhe t io Cosm e um dia.
— Abaixo, repet iu José Dias cheio de veneração.
E m inha m ãe, que era religiosa, gost ou de ver que ele punha Deus no devido
lugar, e sorriu aprovando. José Dias agradeceu de cabeça. Minha m ãe dava- lhe de
quando em quando alguns cobres. Tio Cosm e, que era advogado, confiava- lhe a
cópia de papéis de aut os.
CAPÍ TULO VI
TI O COSM E
Tio Cosm e vivia com m inha m ãe, desde que ela enviuvou. Já ent ão era viúvo,
com o prim a Just ina; era a casa dos t rês viúvos.
A fort una t roca m uit a vez as m ãos à nat ureza. Form ado para as serenas funções
do capit alism o, t io Cosm e não enriquecia no foro: ia com endo. Tinha o escrit ório
na ant iga rua das Violas, pert o do j úri, que era no ext int o Alj ube. Trabalhava no
crim e. José Dias não perdia as defesas orais de t io Cosm e. Era quem lhe vest ia e
despia a t oga, com m uit os cum prim ent os no fim . Em casa, referia os debat es. Tio
Cosm e, por m ais m odest o que quisesse ser, sorria de persuasão.
Era gordo e pesado, t inha a respiração curt a e os olhos dorm inhocos. Um a das
m inhas recordações m ais ant igas era vê- lo m ont ar t odas as m anhãs a best a que
m inha m ãe lhe deu e que o levava ao escrit ório. O pret o que a t inha ido buscar à
cocheira, segurava o freio, enquant o ele erguia o pé e pousava no est ribo; a ist o
seguia- se um m inut o de descanso ou reflexão. Depois, dava um im pulso, o
prim eiro, o corpo am eaçava subir, m as não subia; segundo im pulso, igual efeit o.
Enfim , após alguns inst ant es largos, t io Cosm e enfeixava t odas as forças físicas e
m orais, dava o últ im o surt o da t erra, e dest a vez caía em cim a do selim .
Raram ent e a best a deixava de m ost rar por um gest o que acabava de receber o
m undo. Tio Cosm e acom odava as carnes, e a best a part ia a t rot e.
Tam bém não m e esqueceu o que ele m e fez um a t arde. Post o que nascido na roça
( donde vim com dois anos) e apesar dos cost um es do t em po, eu não sabia
m ont ar, e t inha m edo ao cavalo. Tio Cosm e pegou em m im e escanchou- m e em
cim a da best a. Quando m e vi no alt o ( t inha nove anos) , sozinho e desam parado, o
chão lá em baixo, ent rei a grit ar desesperadam ent e: " Mam ãe! m am ãe! " Ela acudiu,
pálida e t rêm ula, cuidou que m e est ivessem m at ando, apeou- m e, afagou- m e,
enquant o o irm ão pergunt ava:
— Mana Glória, pois um t am anhão dest es t em m edo de best a m ansa?
— Não est á acost um ado.
— Deve acost um ar- se. Padre que sej a, se for vigário na roça, é preciso que m ont e
a cavalo; e, aqui m esm o, ainda não sendo padre, se quiser florear com o os out ros
rapazes, e não souber, há de queixar- se de você, m ana Glória.
— Pois que se queixe; t enho m edo.
— Medo! Ora, m edo!
A verdade é que eu só vim a aprender equit ação m ais t arde, m enos por gost o que
por vergonha de dizer que não sabia m ont ar. " Agora é que ele vai nam orar
deveras" , disseram quando eu com ecei as lições. Não se diria o m esm o de t io
Cosm e. Nele era velho cost um e e necessidade. Já não dava para nam oros.
Cont am que, em rapaz, foi aceit o de m uit as dam as, além de part idário exalt ado;
m as os anos levaram - lhe o m ais do ardor polít ico e sexual, e a gordura acabou
com o rest o de idéias públicas e específicas. Agora só cum pria as obrigações do
ofício e sem am or. Nas horas de lazer vivia olhando ou j ogava. Um a ou out ra vez
dizia pilhérias.
CAPÍ TULO VI I
D . GLÓRI A
Minha m ãe era boa criat ura. Quando lhe m orreu o m arido, Pedro de Albuquerque
Sant iago, cont ava t rint a e um anos de idade, e podia volt ar para I t aguaí. Não
quis; preferiu ficar pert o da igrej a em que m eu pai fora sepult ado. Vendeu a
fazendola e os escravos, com prou alguns que pôs ao ganho ou alugou, um a dúzia
de prédios, cert o núm ero de apólices, e deixou- se est ar na casa de Mat a- cavalos,
onde vivera os dois últ im os anos de casada. Era filha de um a senhora m ineira,
descendent e de out ra paulist a, a fam ília Fernandes.
Ora, pois, naquele ano da graça de 1857, D. Maria da Glória Fernandes Sant iago
cont ava quarent a e dois anos de idade. Era ainda bonit a e m oça, m as t eim ava em
esconder os saldos da j uvent ude, por m ais que a nat ureza quisesse preservá- la da
ação do t em po. Vivia m et ida em um et erno vest ido escuro, sem adornos, com um
xale pret o, dobrado em t riângulo e abrochado ao peit o por um cam afeu. Os
cabelos, em bandós, eram apanhados sobre a nuca por um velho pent e de
t art aruga; algum a vez t razia a t ouca branca de folhos. Lidava assim , com os seus
sapat os de cordovão rasos e surdos, a um lado e out ro, vendo e guiando os
serviços t odos da casa int eira, desde m anhã at é à noit e.
Tenho ali na parede o ret rat o dela, ao lado do m arido, t ais quais na out ra casa. A
pint ura escureceu m uit o, m as ainda dá idéia de am bos. Não m e lem bra nada dele,
a não ser vagam ent e que era alt o e usava cabeleira grande; o ret rat o m ost ra uns
olhos redondos, que m e acom panham para t odos os lados, efeit o da pint ura que
m e assom brava em pequeno. O pescoço sai de um a gravat a pret a de m uit as
volt as, a cara é t oda rapada, salvo um t rechozinho pegado às orelhas. O de m inha
m ãe m ost ra que era linda. Cont ava ent ão vint e anos, e t inha um a flor ent re os
dedos. No painel parece oferecer a flor ao m arido. O que se lê na cara de am bos é
que, se a felicidade conj ugal pode ser com parada à sort e grande, eles a t iraram no
bilhet e com prado de sociedade.
Concluo que não se devem abolir as lot erias. Nenhum prem iado as acusou ainda
de im orais, com o ninguém t achou de m á a bocet a de Pandora, por lhe t er ficado a
esperança no fundo; em algum a part e há de ela ficar. Aqui os t enho aos dois bem
casados de out rora, os bem - am ados, os bem - avent urados, que se foram dest a
para a out ra vida, cont inuar um sonho provavelm ent e. Quando a lot eria e Pandora
m e aborrecem , ergo os olhos para eles, e esqueço os bilhet es brancos e a bocet a
fat ídica. São ret rat os que valem por originais. O de m inha m ãe, est endendo a flor
ao m arido, parece dizer: " Sou t oda sua, m eu guapo cavalheiro! " O de m eu pai,
olhando para a gent e, faz est e com ent ário: " Vej am com o est a m oça m e quer..."
Se padeceram m olést ias, não sei, com o não sei se t iveram desgost os: era criança
e com ecei por não ser nascido. Depois da m ort e dele, lem bra- m e que ela chorou
m uit o; m as aqui est ão os ret rat os de am bos, sem que o encardido do t em po lhes
t irasse a prim eira expressão. São com o fot ografias inst ant âneas da felicidade.
CAPÍ TULO VI I I
É TEM PO
Mas é t em po de t ornar àquela t arde de novem bro, um a t arde clara e fresca,
sossegada com o a nossa casa e o t recho da rua em que m orávam os.
Verdadeiram ent e foi o princípio da m inha vida; t udo o que sucedera ant es foi
com o o pint ar e vest ir das pessoas que t inham de ent rar em cena, o acender das
luzes, o preparo das rabecas, a sinfonia... Agora é que eu ia com eçar a m inha
ópera. " A vida é um a ópera", dizia- m e um velho t enor it aliano que aqui viveu e
m orreu... E explicou- m e um dia a definição, em t al m aneira que m e fez crer nela.
Talvez valha a pena dá- la; é só um capít ulo.
CAPÍ TULO I X
A ÓPERA
Já não t inha voz, m as t eim ava em dizer que a t inha. " O desuso é que m e faz m al" ,
acrescent ava. Sem pre que um a com panhia nova chegava da Europa, ia ao
em presário e expunha- lhe t odas as inj ust iças da Terra e do Céu; o em presário
com et ia m ais um a, e ele saía a bradar cont ra a iniqüidade. Trazia ainda os bigodes
dos seus papéis. Quando andava, apesar de velho, parecia cort ej ar um a princesa
de Babilônia. Às vezes, cant arolava, sem abrir a boca, algum t recho ainda m ais
idoso que ele ou t ant o; vozes assim abafadas são sem pre possíveis. Vinha aqui
j ant ar com igo algum as vezes. Um a noit e, depois de m uit o Chiant i, repet iu- m e a
definição do cost um e, e com o eu lhe dissesse que a vida t ant o podia ser um a
ópera com o um a viagem de m ar ou um a bat alha, abanou a cabeça e replicou:
— A vida é um a ópera e um a grande ópera. O t enor e o barít ono lut am pelo
soprano, em presença do baixo e dos com prim ários, quando não são o soprano e o
cont ralt o que lut am pelo t enor, em presença do m esm o baixo e dos m esm os
com prim ários. Há coros num erosos, m uit os bailados, e a orquest ração é
excelent e...
— Mas, m eu caro Marcolini...
— Quê?...
E, depois, de beber um gole de licor, pousou o cálice, e expôs- m e a hist ória da
criação, com palavras que vou resum ir.
Deus é o poet a. A m úsica é de Sat anás, j ovem m aest ro de m uit o fut uro, que
aprendeu no conservat ório do céu. Rival de Miguel, Rafael e Gabriel, não t olerava
a precedência que eles t inham na dist ribuição dos prêm ios. Pode ser t am bém que
a m úsica em dem asia doce e m íst ica daqueles out ros condiscípulos fosse
aborrecível ao seu gênio essencialm ent e t rágico. Tram ou um a rebelião que foi
descobert a a t em po, e ele expulso do conservat ório. Tudo se t eria passado sem
m ais nada, se Deus não houvesse escrit o um libret o de ópera, do qual abrira m ão,
por ent ender que t al gênero de recreio era im próprio da sua et ernidade. Sat anás
levou o m anuscrit o consigo para o inferno. Com o fim de m ost rar que valia m ais
que os out ros, — e acaso para reconciliar- se com o céu, — com pôs a part it ura, e
logo que a acabou foi levá- la ao Padre Et erno.
— Senhor, não desaprendi as lições recebidas, disse- lhe. Aqui t endes a part it ura,
escut ai- a, em endai- a, fazei- a execut ar, e se a achardes digna das alt uras, adm it im e com ela a vossos pés...
— Não, ret orquiu o Senhor, não quero ouvir nada.
— Mas, Senhor...
— Nada! nada!
Sat anás suplicou ainda, sem m elhor fort una, at é que Deus, cansado e cheio de
m isericórdia, consent iu em que a ópera fosse execut ada, m as fora do céu. Criou
um t eat ro especial, est e planet a, e invent ou um a com panhia int eira, com t odas as
part es, prim árias e com prim árias, coros e bailarinos.
— Ouvi agora alguns ensaios!
— Não, não quero saber de ensaios. Bast a- m e haver com post o o libret o; est ou
pront o a dividir cont igo os direit os de aut or.
Foi t alvez um m al est a recusa; dela result aram alguns desconcert os que a
audiência prévia e a colaboração am iga t eriam evit ado. Com efeit o, há lugares em
que o verso vai para a direit a e a m úsica, para a esquerda. Não falt a quem diga
que nisso m esm o est á a beleza da com posição, fugindo à m onot onia, e assim
explicam o t ercet o do Éden, a ária de Abel, os coros da guilhot ina e da escravidão.
Não é raro que os m esm os lances se reproduzam , sem razão suficient e. Cert os
m ot ivos cansam à força de repet ição. Tam bém há obscuridades; o m aest ro abusa
das m assas corais, encobrindo m uit a vez o sent ido por um m odo confuso. As
part es orquest rais são aliás t rat adas com grande perícia. Tal é a opinião dos
im parciais.
Os am igos do m aest ro querem que dificilm ent e se possa acha obra t ão bem
acabada. Um ou out ro adm it e cert as rudezas e t ais ou quais lacunas, m as com o
andar da ópera é provável que est as sej am preenchidas ou explicadas, e aquelas
desapareçam int eiram ent e, não se negando o m aest ro a em endar a obra onde
achar que não responde de t odo ao pensam ent o sublim e do poet a. Já não dizem o
m esm o os am igos dest e. Juram que o libret o foi sacrificado, que a part it ura
corrom peu o sent ido da let ra, e, post o sej a bonit a em alguns lugares, e t rabalhada
com art e em out ros, é absolut am ent e diversa e at é cont rária ao dram a. O
grot esco, por exem plo, não est á no t ext o do poet a; é um a excrescência para
im it ar as Mulheres Pat uscas de Windsor. Est e pont o é cont est ado pelos sat anist as
com algum a aparência de razão. Dizem eles que, ao t em po em que o j ovem
Sat anás com pôs a grande ópera, nem essa farsa nem Shakespeare eram nascidos.
Chegam a afirm ar que o poet a inglês não t eve out ro gênio senão t ranscrever a
let ra da ópera, com t al art e e fidelidade, que parece ele próprio o aut or da
com posição; m as, evident em ent e, é um plagiário.
— Est a peça, concluiu o velho t enor, durará enquant o durar o t eat ro, não se
podendo calcular em que t em po será ele dem olido por ut ilidade ast ronôm ica. O
êxit o é crescent e. Poet a e m úsico recebem pont ualm ent e os seus direit os aut orais,
que não são os m esm os, porque a regra da divisão é aquilo da Escrit ura: " Muit os
são os cham ados, poucos os escolhidos" . Deus recebe em ouro, Sat anás em papel.
— Tem graça...
— Graça? bradou ele com fúria; m as aquiet ou- se logo, e replicou: Caro Sant iago,
eu não t enho graça, eu t enho horror à graça. I st o que digo é a verdade pura e
últ im a. Um dia, quando t odos os livros forem queim ados por inút eis, há de haver
alguém , pode ser que t enor, e t alvez it aliano, que ensine est a verdade aos
hom ens. Tudo é m úsica, m eu am igo. No princípio era o dó, e do dó fez- se ré, et c.
Est e cálice ( e enchia- o novam ent e) , est e cálice é um breve est ribilho. Não se
ouve? Tam bém não se ouve o pau nem a pedra, m as t udo cabe na m esm a
ópera...
CAPÍ TULO X
ACEI TO A TEORI A
Que é dem asiada m et afísica para um só t enor, não há dúvida; m as a perda da voz
explica t udo, e há filósofos que são, em resum o, t enores desem pregados.
Eu, leit or am igo, aceit o a t eoria do m eu velho Marcolini, não só pela
verossim ilhança, que é m uit a vez t oda a verdade, m as porque a m inha vida se
casa bem à definição. Cant ei um duo t erníssim o, depois um t rio, depois um
quat uor... Mas não adiant em os; vam os à prim eira part e, em que eu vim a saber
que j á cant ava, porque a denúncia de José Dias, m eu caro leit or, foi dada
principalm ent e a m im . A m im é que ele m e denunciou.
CAPÍ TULO XI
A PROM ESSA
Tão depressa vi desaparecer o agregado no corredor, deixei o esconderij o, e corri
à varanda do fundo. Não quis saber de lágrim as nem da causa que as fazia vert er
a m inha m ãe. A causa eram provavelm ent e os seus proj et os eclesiást icos, e a
ocasião dest es é a que vou dizer, por ser j á ent ão hist ória velha; dat ava de
dezesseis anos.
Os proj et os vinham do t em po em que fui concebido. Tendo- lhe nascido m ort o o
prim eiro filho, m inha m ãe pegou- se com Deus para que o segundo vingasse,
prom et endo, se fosse varão, m et ê- lo na igrej a. Talvez esperasse um a m enina.
Não disse nada a m eu pai, nem ant es, nem depois de m e dar à luz; cont ava fazêlo quando eu ent rasse para a escola, m as enviuvou ant es disso. Viúva, sent iu o
t error de separar- se de m im ; m as era t ão devot a, t ão t em ent e a Deus, que
buscou t est em unhas da obrigação, confiando a prom essa a parent es e fam iliares.
Unicam ent e, para que nos separássem os o m ais t arde possível, fez- m e aprender
em casa prim eiras let ras, lat im e dout rina, por aquele padre Cabral, velho am igo
do t io Cosm e, que ia lá j ogar às noit es.
Prazos largos são fáceis de subscrever; a im aginação os faz infinit os. Minha m ãe
esperou que os anos viessem vindo. Ent ret ant o, ia- m e afeiçoando à idéia da
igrej a; brincos de criança, livros devot os, im agens de sant os, conversações de
casa, t udo convergia para o alt ar. Quando íam os à m issa, dizia- m e sem pre que
era para aprender a ser padre, e que reparasse no padre, não t irasse os olhos do
padre. Em casa, brincava de m issa, — um t ant o às escondidas, porque m inha m ãe
dizia que m issa não era coisa de brincadeira. Arranj ávam os um alt ar, Capit u e eu.
Ela servia de sacrist ão, e alt erávam os o rit ual, no sent ido de dividirm os a hóst ia
ent re nós; a hóst ia era sem pre um doce. No t em po em que brincávam os assim ,
era m uit o com um ouvir à m inha vizinha: " Hoj e há m issa?" Eu j á sabia o que ist o
queria dizer, respondia afirm at ivam ent e, e ia pedir hóst ia por out ro nom e. Volt ava
com ela, arranj ávam os o alt ar, engrolávam os o lat im e precipit ávam os as
cerim ônias. Dom inus, non sum dignus... I st o, que eu devia dizer t rês vezes, penso
que só dizia um a, t al era a gulodice do padre e do sacrist ão. Não bebíam os vinho
nem água; não t ínham os o prim eiro, e a segunda viria t irar- nos o gost o do
sacrifício.
Ult im am ent e não m e falavam j á do sem inário, a t al pont o que eu supunha ser
negócio findo. Quinze anos, não havendo vocação, pediam ant es o sem inário do
m undo que o de São José. Minha m ãe ficava m uit a vez a olhar para m im , com o
alm a perdida, ou pegava- m e na m ão, a pret ext o de nada, para apert á- la m uit o.
CAPÍ TULO XI I
N A VARAN D A
Parei na varanda; ia t ont o, at ordoado, as pernas bam bas, o coração parecendo
querer sair- m e pela boca fora. Não m e at revia a descer à chácara, e passar ao
quint al vizinho. Com ecei a andar de um lado para out ro, est acando para am pararm e, e andava out ra vez e est acava. Vozes confusas repet iam o discurso do José
Dias:
" Sem pre j unt os..."
" Em segredinhos..."
" Se eles pegam de nam oro..."
Tij olos que pisei e repisei naquela t arde, colunas am areladas que m e passast es à
direit a ou à esquerda, segundo eu ia ou vinha, em vós m e ficou a m elhor part e da
crise, a sensação de um gozo novo, que m e envolvia em m im m esm o, e logo m e
dispersava, e m e t razia arrepios, e m e derram ava não sei que bálsam o int erior. Às
vezes dava por m im , sorrindo, um ar de riso de sat isfação, que desm ent ia a
abom inação do m eu pecado. E as vozes repet iam - se confusas:
" Em segredinhos..."
" Sem pre j unt os..."
" Se eles pegam de nam oro..."
Um coqueiro, vendo- m e inquiet o e adivinhando a causa, m urm urou de cim a de si
que não era feio que os m eninos de quinze anos andassem nos cant os com as
m eninas de quat orze; ao cont rário, os adolescent es daquela idade não t inham
out ro ofício, nem os cant os out ra ut ilidade. Era um coqueiro velho, e eu cria nos
coqueiros velhos, m ais ainda que nos velhos livros. Pássaros, borbolet as, um a
cigarra que ensaiava o est io, t oda a gent e viva do ar era da m esm a opinião.
Com que ent ão eu am ava Capit u, e Capit u a m im ? Realm ent e, andava cosido às
saias dela, m as não m e ocorria nada ent re nós que fosse deveras secret o. Ant es
dela ir para o colégio, eram t udo t ravessuras de criança; depois que saiu do
colégio, é cert o que não rest abelecem os logo a ant iga int im idade, m as est a volt ou
pouco a pouco, e no últ im o ano era com plet a. Ent ret ant o, a m at éria das nossas
conversações era a de sem pre. Capit u cham ava- m e às vezes bonit o, m ocet ão,
um a flor; out ras pegava- m e nas m ãos para cont ar- m e os dedos. E com ecei a
recordar esses e out ros gest os e palavras, o prazer que sent ia quando ela m e
passava a m ão pelos cabelos, dizendo que os achava lindíssim os. Eu, sem fazer o
m esm o aos dela, dizia que os dela eram m uit o m ais lindos que os m eus. Ent ão
Capit u abanava a cabeça com um a grande expressão de desengano e m elancolia,
t ant o m ais de espant ar quant o que t inha os cabelos realm ent e adm iráveis; m as eu
ret orquia cham ando- lhe m aluca. Quando m e pergunt ava se sonhara com ela na
véspera, e eu dizia que não, ouvia- lhe cont ar que sonhara com igo, e eram
avent uras ext raordinárias, que subíam os ao Corcovado pelo ar, que dançávam os
na Lua, ou ent ão que os anj os vinham pergunt ar- nos pelos nom es, a fim de os dar
a out ros anj os que acabavam de nascer. Em t odos esses sonhos andávam os
unidinhos. Os que eu t inha com ela não eram assim , apenas reproduziam a nossa
fam iliaridade, e m uit a vez não passavam da sim ples repet ição do dia, algum a
frase, algum gest o. Tam bém eu os cont ava. Capit u um dia not ou a diferença,
dizendo que os dela eram m ais bonit os que os m eus; eu, depois de cert a
hesit ação, disse- lhe que eram com o a pessoa que sonhava... Fez- se cor de
pit anga.
Pois, francam ent e, só agora ent endia a com oção que m e davam essas e out ras
confidências. A em oção era doce e nova, m as a causa dela fugia- m e, sem que eu
a buscasse nem suspeit asse. Os silêncios dos últ im os dias, que m e não
descobriam nada, agora os sent ia com o sinais de algum a coisa, e assim as m eias
palavras, as pergunt as curiosas, as respost as vagas, os cuidados, o gost o de
recordar a infância. Tam bém advert i que era fenôm eno recent e acordar com o
pensam ent o em Capit u, e escut á- la de m em ória, e est rem ecer quando lhe ouvia
os passos. Se se falava nela, em m inha casa, prest ava m ais at enção que dant es,
e, segundo era louvor ou crít ica, assim m e t razia gost o ou desgost o m ais int ensos
que out rora, quando éram os som ent e com panheiros de t ravessuras. Cheguei a
pensar nela durant e as m issas daquele m ês, com int ervalos, é verdade, m as com
exclusivism o t am bém .
Tudo ist o m e era agora apresent ado pela boca de José Dias, que m e denunciara a
m im m esm o, e a quem eu perdoava t udo, o m al que dissera, o m al que fizera, e o
que pudesse vir de um e de out ro. Naquele inst ant e, a et erna Verdade não valeria
m ais que ele, nem a et erna Bondade, nem as dem ais Virt udes et ernas. Eu am ava
Capit u! Capit u am ava- m e! E as m inhas pernas andavam , desandavam ,
est acavam , t rêm ulas e crent es de abarcar o m undo. Esse prim eiro palpit ar da
seiva, essa revelação da consciência a si própria, nunca m ais m e esqueceu, nem
achei que lhe fosse com parável qualquer out ra sensação da m esm a espécie.
Nat uralm ent e por ser m inha. Nat uralm ent e t am bém por ser a prim eira.
CAPÍ TULO XI I I
CAPI TU
De repent e, ouvi bradar um a voz de dent ro da casa ao pé:
— Capit u!
E no quint al:
— Mam ãe!
E out ra vez na casa:
— Vem cá!
Não m e pude t er. As pernas desceram - m e os t rês degraus que davam para a
chácara, e cam inharam para o quint al vizinho. Era cost um e delas, às t ardes, e às
m anhãs t am bém . Que as pernas t am bém são pessoas, apenas inferiores aos
braços, e valem de si m esm as, quando a cabeça não as rege por m eio de idéias.
As m inhas chegaram ao pé do m uro. Havia ali um a port a de com unicação
m andada rasgar por m inha m ãe, quando Capit u e eu éram os pequenos. A port a
não t inha chave nem t aram ela; abria- se em purrando de um lado ou puxando de
out ro, e fechava- se ao peso de um a pedra pendent e de um a corda. Era quase que
exclusivam ent e nossa. Em crianças, fazíam os visit a bat endo de um lado, e sendo
recebidos do out ro com m uit as m esuras. Quando as bonecas de Capit u adoeciam ,
o m édico era eu. Ent rava no quint al dela com um pau debaixo do braço, para
im it ar o bengalão do dout or João da Cost a; t om ava o pulso à doent e, e pedia- lhe
que m ost rasse a língua. " É surda, coit ada! " , exclam ava Capit u. Ent ão eu coçava o
queixo, com o o dout or, e acabava m andando aplicar- lhe um as sanguessugas ou
dar- lhe um vom it ório: era a t erapêut ica habit ual do m édico.
— Capit u!
— Mam ãe!
— Deixa de est ar esburacando o m uro; vem cá.
A voz da m ãe era agora m ais pert o, com o se viesse j á da port a dos fundos. Quis
passar ao quint al, m as as pernas, há pouco t ão andarilhas, pareciam agora presas
ao chão. Afinal fiz um esforço, em purrei a port a, e ent rei. Capit u est ava ao pé do
m uro front eiro, volt ada para ele, riscando com um prego. O rum or da port a fê- la
olhar para t rás; ao dar com igo, encost ou- se ao m uro, com o se quisesse esconder
algum a coisa. Cam inhei para ela; nat uralm ent e levava o gest o m udado, porque
ela veio a m im , e pergunt ou- m e inquiet a:
— Que é que você t em ?
— Eu? Nada.
— Nada, não; você t em algum a coisa.
Quis insist ir que nada, m as não achei língua. Todo eu era olhos e coração, um
coração que dest a vez ia sair, com cert eza, pela boca fora. Não podia t irar os
olhos daquela criat ura de quat orze anos, alt a, fort e e cheia, apert ada em um
vest ido de chit a, m eio desbot ado. Os cabelos grossos, feit os em duas t ranças, com
as pont as at adas um a à out ra, à m oda do t em po, desciam - lhe pelas cost as.
Morena, olhos claros e grandes, nariz ret o e com prido, t inha a boca fina e o queixo
largo. As m ãos, a despeit o de alguns ofícios rudes, eram curadas com am or; não
cheiravam a sabões finos nem águas de t oucador, m as com água do poço e sabão
com um t razia- as sem m ácula. Calçava sapat os de duraque, rasos e velhos, a que
ela m esm a dera alguns pont os.
— Que é que você t em ? repet iu.
— Não é nada, balbuciei finalm ent e.
E em endei logo:
— É um a not ícia.
— Not ícia de quê?
Pensei em dizer- lhe que ia ent rar para o sem inário e espreit ar a im pressão que lhe
faria. Se a const ernasse é que realm ent e gost ava de m im ; se não, é que não
gost ava. Mas t odo esse cálculo foi obscuro e rápido; sent i que não poderia falar
claram ent e, t inha agora a vist a não sei com o...
— Ent ão?
— Você sabe...
Nist o olhei para o m uro, o lugar em que ela est ivera riscando, escrevendo ou
esburacando, com o dissera a m ãe. Vi uns riscos abert os, e lem brou- m e o gest o
que ela fizera para cobri- los. Ent ão quis vê- los de pert o, e dei um passo. Capit u
agarrou- m e, m as, ou por t em er que eu acabasse fugindo, ou por negar de out ra
m aneira, correu adiant e e apagou o escrit o. Foi o m esm o que acender em m im o
desej o de ler o que era.
CAPÍ TULO XI V
A I N SCRI ÇÃO
Tudo o que cont ei no fim do out ro capít ulo foi obra de um inst ant e. O que se lhe
seguiu foi ainda m ais rápido. Dei um pulo, e ant es que ela raspasse o m uro, li
est es dois nom es, abert os ao prego, e assim dispost os:
BENTO
CAPI TOLI NA
Volt ei- m e para ela; Capit u t inha os olhos no chão. Ergueu- os logo, devagar, e
ficam os a olhar um para o out ro... Confissão de crianças, t u valias bem duas ou
t rês páginas, m as quero ser poupado. Em verdade, não falam os nada; o m uro
falou por nós. Não nos m ovem os, as m ãos é que se est enderam pouco a pouco,
t odas quat ro, pegando- se, apert ando- se, fundindo- se. Não m arquei a hora exat a
daquele gest o. Devia t ê- la m arcado; sint o a falt a de um a not a escrit a naquela
m esm a noit e, e que eu poria aqui com os erros de ort ografia que t rouxesse, m as
não t raria nenhum , t al era a diferença ent re o est udant e e o adolescent e.
Conhecia as regras do escrever, sem suspeit ar as do am ar; t inha orgias de lat im e
era virgem de m ulheres.
Não solt am os as m ãos, nem elas se deixaram cair de cansadas ou de esquecidas.
Os olhos fit avam - se e desfit avam - se, e depois de vagarem ao pert o, t ornavam a
m et er- se uns pelos out ros... Padre fut uro, est ava assim diant e dela com o de um
alt ar, sendo um a das faces a Epíst ola e a out ra o Evangelho. A boca podia ser o
cálice, os lábios a pat ena. Falt ava dizer a m issa nova, por um lat im que ninguém
aprende, e é a língua cat ólica dos hom ens. Não m e t enhas por sacrílego, leit ora
m inha devot a; a lim peza da int enção lava o que puder haver m enos curial no
est ilo. Est ávam os ali com o céu em nós. As m ãos, unindo os nervos, faziam das
duas criat uras um a só, m as um a só criat ura seráfica. Os olhos cont inuaram a dizer
coisas infinit as, as palavras de boca é que nem t ent avam sair, t ornavam ao
coração caladas com o vinham ...
CAPÍ TULO XV
OUTRA VOZ REPEN TI N A
Out ra voz repent ina, m as dest a vez um a voz de hom em :
— Vocês est ão j ogando o siso?
Era o pai de Capit u, que est ava à port a dos fundos, ao pé da m ulher. Solt am os as
m ãos depressa, e ficam os at rapalhados. Capit u foi ao m uro, e, com o prego,
disfarçadam ent e, apagou os nossos nom es escrit os.
— Capit u!
— Papai!
— Não m e est ragues o reboco do m uro.
Capit u riscava sobre o riscado, para apagar bem o escrit o. Pádua saiu ao quint al, a
ver o que era, m as j á a filha t inha com eçado out ra coisa, um perfil, que disse ser o
ret rat o dele, e t ant o podia ser dele com o da m ãe; fê- lo rir, era o essencial. De
rest o, ele chegou sem cólera, t odo m eigo, apesar do gest o duvidoso ou m enos que
duvidoso em que nos apanhou. Era um hom em baixo e grosso, pernas e braços
curt os, cost as abauladas, donde lhe veio a alcunha de Tart aruga, que José Dias lhe
pôs. Ninguém lhe cham ava assim lá em casa; era só o agregado.
— Vocês est avam j ogando o siso? pergunt ou.
Olhei para um pé de sabugueiro que ficava pert o; Capit u respondeu por am bos.
— Est ávam os, sim , senhor; m as Bent inho ri logo, não agüent a.
— Quando eu cheguei à port a, não ria.
— Já t inha rido das out ras vezes; não pode. Papai quer ver?
E séria, fit ou em m im os olhos, convidando- m e ao j ogo. O sust o é nat uralm ent e
sério; eu est ava ainda sob a ação do que t rouxe a ent rada de Pádua, e não fui
capaz de rir, por m ais que devesse fazê- lo, para legit im ar a respost a de Capit u.
Est a, cansada de esperar, desviou o rost o, dizendo que eu não ria daquela vez por
est ar ao pé do pai. E nem assim ri. Há coisas que só se aprendem t arde; é m ist er
nascer com elas para fazê- las cedo. E m elhor é nat uralm ent e cedo que
art ificialm ent e t arde. Capit u, após duas volt as, foi t er com a m ãe, que cont inuava
à port a da casa, deixando- nos a m im e ao pai encant ados dela; o pai, olhando
para ela e para m im , dizia- m e, cheio de t ernura:
— Quem dirá que est a pequena t em quat orze anos? Parece dezesset e. Mam ãe
est á boa? cont inuou volt ando- se int eiram ent e para m im .
— Est á.
— Há m uit os dias que não a vej o. Est ou com vont ade de dar um capot e ao dout or,
m as não t enho podido, ando com t rabalhos da repart ição em casa; escrevo t odas
as noit es que é um desespero; negócio de relat ório. Você j á viu o m eu gat uram o?
Est á ali no fundo. I a agora m esm o buscar a gaiola; ande ver.
Que o m eu desej o era nenhum , crê- se facilm ent e, sem ser preciso j urar pelo Céu
nem pela Terra. Meu desej o era ir at rás de Capit u e falar- lhe agora do m al que nos
esperava; m as o pai era o pai, e dem ais am ava part icularm ent e os passarinhos.
Tinha- os de vária espécie, cor e t am anho. A área que havia no cent ro da casa era
cercada de gaiolas de canários, que faziam cant ando um barulho de t odos os
diabos. Trocava pássaros com out ros am adores, com prava- os, apanhava alguns,
no próprio quint al, arm ando alçapões. Tam bém , se adoeciam , t rat ava deles com o
se fossem gent e.
CAPÍ TULO XVI
O AD M I N I STRAD OR I N TERI N O
Pádua era em pregado em repart ição dependent e do m inist ério da guerra. Não
ganhava m uit o, m as a m ulher gast ava pouco, e a vida era barat a. Dem ais, a casa
em que m orava, assobradada com o a nossa, post o que m enor, era propriedade
dele. Com prou- a com a sort e grande que lhe saiu num m eio bilhet e de lot eria, dez
cont os de réis. A prim eira idéia do Pádua, quando lhe saiu o prêm io, foi com prar
um cavalo do Cabo, um adereço de brilhant es para a m ulher, um a sepult ura
perpét ua de fam ília, m andar vir da Europa alguns pássaros, et c.; m as a m ulher,
est a D. Fort unat a que ali est á à port a dos fundos da casa, em pé, falando à filha,
alt a, fort e, cheia, com o a filha, a m esm a cabeça, os m esm os olhos claros, a
m ulher é que lhe disse que o m elhor era com prar a casa, e guardar o que
sobrasse para acudir às m olést ias grandes. Pádua hesit ou m uit o; afinal, t eve de
ceder aos conselhos de m inha m ãe, a quem D. Fort unat a pediu auxílio. Nem foi só
nessa ocasião que m inha m ãe lhes valeu; um dia chegou a salvar a vida do Pádua.
Escut ai; a anedot a é curt a.
O adm inist rador da repart ição em que Pádua t rabalhava t eve de ir ao Nort e, em
com issão. Pádua, ou por ordem regulam ent ar, ou por especial designação, ficou
subst it uindo o adm inist rador com os respect ivos honorários. Est a m udança de
fort una t rouxe- lhe cert a vert igem ; era ant es dos dez cont os. Não se cont ent ou de
reform ar a roupa e a copa, at irou- se às despesas supérfluas, deu j óias à m ulher,
nos dias de fest a m at ava um leit ão, era vist o em t eat ros, chegou aos sapat os de
verniz. Viveu assim vint e e dois m eses na suposição de um a et erna int erinidade.
Um a t arde ent rou em nossa casa, aflit o e desvairado, ia perder o lugar, porque
chegara o efet ivo naquela m anhã. Pediu à m inha m ãe que velasse pelas infelizes
que deixava; não podia sofrer a desgraça, m at ava- se. Minha m ãe falou- lhe com
bondade, m as ele não at endia a coisa nenhum a.
— Não, m inha senhora, não consent irei em t al vergonha! Fazer descer a fam ília,
t ornar at rás... Já disse, m at o- m e! Não hei de confessar à m inha gent e est a
m iséria. E os out ros? Que dirão os vizinhos? E os am igos? E o público?
— Que público, Sr. Pádua? Deixe- se disso; sej a hom em . Lem bre- se que sua
m ulher não t em out ra pessoa... e que há de fazer? Pois um hom em ... Sej a
hom em , ande.
Pádua enxugou os olhos e foi para casa, onde viveu prost rado alguns dias, m udo,
fechado na alcova, — ou ent ão no quint al, ao pé do poço, com o se a idéia da
m ort e t eim asse nele. D. Fort unat a ralhava:
— Joãozinho, você é criança?
Mas, t ant o lhe ouviu falar em m ort e que t eve m edo, e um dia correu a pedir à
m inha m ãe que lhe fizesse o favor de ver se lhe salvava o m arido que se queria
m at ar. Minha m ãe foi achá- lo à beira do poço, e int im ou- lhe que vivesse. Que
m aluquice era aquela de parecer que ia ficar desgraçado, por causa de um a
grat ificação m enos, e perder um em prego int erino? Não, senhor, devia ser
hom em , pai de fam ília, im it ar a m ulher e a filha... Pádua obedeceu; confessou que
acharia forças para cum prir a vont ade de m inha m ãe.
— Vont ade m inha, não; obrigação sua.
— Pois sej a obrigação; não desconheço que é assim m esm o.
Nos dias seguint es, cont inuou a ent rar e sair de casa, cosido à parede, cara no
chão. Não era o m esm o hom em que est ragava o chapéu em cort ej ar a vizinhança,
risonho, olhos no ar, ant es m esm o da adm inist ração int erina. Vieram as sem anas,
a ferida foi sarando. Pádua com eçou a int eressar- se pelos negócios dom ést icos, a
cuidar dos passarinhos, a dorm ir t ranqüilo as noit es e as t ardes, a conversar e dar
not ícias da rua. A serenidade regressou; at rás dela veio a alegria, um dom ingo, na
figura de dois am igos, que iam j ogar o solo, a t ent os. Já ele ria, j á brincava, t inha
o ar do cost um e; a ferida sarou de t odo.
Com o t em po veio um fenôm eno int eressant e. Pádua com eçou a falar da
adm inist ração int erina, não som ent e sem as saudades dos honorários, nem o
vexam e da perda, m as at é com desvanecim ent o e orgulho. A adm inist ração ficou
sendo a hégira, donde ele cont ava para diant e e para t rás.
— No t em po em que eu era adm inist rador...
Ou ent ão:
— Ah! sim , lem bra- m e, foi ant es da m inha adm inist ração, um ou dois m eses
ant es... Ora espere; a m inha adm inist ração com eçou... É ist o, m ês e m eio ant es;
foi m ês e m eio ant es, não foi m ais.
Ou ainda:
— Just am ent e; havia j á seis m eses que eu adm inist rava...
Tal é o sabor póst um o das glórias int erinas. José Dias bradava que era a vaidade
sobrevivent e; m as o padre Cabral, que levava t udo para a Escrit ura, dizia que com
o vizinho Pádua se dava a lição de Elifás a Jó: " Não desprezes a correção do
Senhor; Ele fere e cura" .
CAPÍ TULO XVI I
OS VERM ES
" Ele fere e cura! " . Quando, m ais t arde, vim a saber que a lança de Aquiles
t am bém curou um a ferida que fez, t ive t ais ou quais veleidades de escrever um a
dissert ação a est e propósit o. Cheguei a pegar em livros velhos, livros m ort os,
livros ent errados, a abri- los, a com pará- los, cat ando o t ext o e o sent ido, para
achar a origem com um do oráculo pagão e do pensam ent o israelit a. Cat ei os
próprios verm es dos livros, para que m e dissessem o que havia nos t ext os roídos
por eles.
— Meu senhor, respondeu- m e um longo verm e gordo, nós não sabem os
absolut am ent e nada dos t ext os que roem os, nem escolhem os o que roem os, nem
am am os ou det est am os o que roem os; nós roem os.
Não lhe arranquei m ais nada. Os out ros t odos, com o se houvessem passado
palavra, repet iam a m esm a cant ilena. Talvez esse discret o silêncio sobre os t ext os
roídos fosse ainda um m odo de roer o roído.
CAPÍ TULO XVI I I
UM PLAN O
Pai nem m ãe foram t er conosco, quando Capit u e eu, na sala de visit as, falávam os
do sem inário. Com os olhos em m im , Capit u queria saber que not ícia era a que m e
afligia t ant o. Quando lhe disse o que era, fez- se cor de cera.
— Mas eu não quero, acudi logo, não quero ent rar em sem inários; não ent ro, é
escusado t eim arem com igo; não ent ro.
Capit u, a princípio, não disse nada. Recolheu os olhos, m et eu- os em si e deixou- se
est ar com as pupilas vagas e surdas, a boca ent reabert a, t oda parada. Ent ão eu,
para dar força às afirm ações, com ecei a j urar que não seria padre. Naquele t em po
j urava m uit o e rij o, pela vida e pela m ort e. Jurei pela hora da m ort e. Que a luz m e
falt asse na hora da m ort e se fosse para o sem inário. Capit u não parecia crer nem
descrer, não parecia sequer ouvir; era um a figura de pau. Quis cham á- la, sacudila, m as falt ou- m e ânim o. Essa criat ura que brincara com igo, que pulara, dançara,
creio at é que dorm ira com igo, deixava- m e agora com os braços at ados e
m edrosos. Enfim , t ornou a si, m as t inha a cara lívida, e rom peu nest as palavras
furiosas:
— Beat a! carola! papa- m issas!
Fiquei at urdido. Capit u gost ava t ant o de m inha m ãe, e m inha m ãe dela, que eu
não podia ent ender t am anha explosão. É verdade que t am bém gost ava de m im , e
nat uralm ent e m ais, ou m elhor, ou de out ra m aneira, coisa bast ant e a explicar o
despeit o que lhe t razia a am eaça da separação; m as os im propérios, com o
ent ender que lhe cham asse nom es t ão feios, e principalm ent e para deprim ir
cost um es religiosos, que eram os seus? Que ela t am bém ia à m issa, e t rês ou
quat ro vezes m inha m ãe é que a levou, na nossa velha sege. Tam bém lhe dera
um rosário, um a cruz de ouro e um livro de Horas... Quis defendê- la, m as Capit u
não m e deixou, cont inuou a cham ar- lhe beat a e carola, em voz t ão alt a que t ive
m edo fosse ouvida dos pais. Nunca a vi t ão irrit ada com o ent ão; parecia dispost a
a dizer t udo a t odos. Cerrava os dent es, abanava a cabeça... Eu, assust ado, não
sabia que fizesse; repet ia os j uram ent os, prom et ia ir naquela m esm a noit e
declarar em casa que, por nada nest e m undo, ent raria no sem inário.
— Você? Você ent ra.
— Não ent ro.
— Você verá se ent ra ou não.
Calou- se out ra vez. Quando t ornou a falar, t inha m udado; não era ainda a Capit u
do cost um e, m as quase. Est ava séria, sem aflição, falava baixo. Quis saber a
conversação da m inha casa; eu cont ei- lha t oda, m enos a part e que lhe dizia
respeit o.
— E que int eresse t em José Dias em lem brar ist o? pergunt ou- m e no fim .
— Acho que nenhum ; foi só para fazer m al. É um suj eit o m uit o ruim ; m as, deixe
est ar que m e há de pagar. Quando eu for dono da casa, quem vai para a rua é
ele, você verá; não m e fica um inst ant e. Mam ãe é boa dem ais; dá- lhe at enção
dem ais. Parece at é que chorou.
— José Dias?
— Não, m am ãe.
— Chorou por quê?
— Não sei; ouvi só dizer que ela não chorasse, que não era coisa de choro... Ele
chegou a m ost rar- se arrependido, e saiu; eu ent ão, para não ser apanhado, deixei
o cant o e corri para a varanda. Mas, deixe est ar, que ele m e paga!
Disse ist o fechando o punho, e proferi out ras am eaças. Ao relem brá- las, não m e
acho ridículo; a adolescência e a infância não são, nest e pont o, ridículas; é um dos
seus privilégios. Est e m al ou est e perigo com eça na m ocidade, cresce na
m adureza e at inge o m aior grau na velhice. Aos quinze anos, há at é cert a graça
em am eaçar m uit o e não execut ar nada.
Capit u reflet ia. A reflexão não era coisa rara nela, e conheciam - se as ocasiões pelo
apert ado dos olhos. Pediu- m e algum as circunst âncias m ais, as próprias palavras
de uns e de out ros, e o t om delas. Com o eu não queria dizer o pont o inicial da
conversa, que era ela m esm a, não lhe pude dar t oda a significação. A at enção de
Capit u est ava agora part icularm ent e nas lágrim as de m inha m ãe; não acabava de
ent endê- las. Em m eio dist o, confessou que cert am ent e não era por m al que m inha
m ãe m e queria fazer padre; era a prom essa ant iga, que ela, t em ent e a Deus, não
podia deixar de cum prir. Fiquei t ão sat isfeit o de ver que assim espont aneam ent e
reparava as inj úrias que lhe saíram do peit o, pouco ant es, que peguei da m ão dela
e apert ei- a m uit o. Capit u deixou- se ir, rindo; depois a conversa ent rou a cochilar e
dorm ir. Tínham os chegado à j anela; um pret o, que, desde algum t em po, vinha
apregoando cocadas, parou em frent e e pergunt ou:
— Sinhazinha, qué cocada hoj e?
— Não, respondeu Capit u.
— Cocadinha t á boa.
— Vá- se em bora, replicou ela sem rispidez.
— Dê cá! disse eu descendo o braço para receber duas.
Com prei- as, m as t ive de as com er sozinho; Capit u recusou. Vi que, em m eio da
crise, eu conservava um cant o para as cocadas, o que t ant o pode ser perfeição
com o im perfeição, m as o m om ent o não é para definições t ais; fiquem os em que a
m inha am iga, apesar de equilibrada e lúcida, não quis saber de doce, e gost ava
m uit o de doce. Ao cont rário, o pregão que o pret o foi cant ando, o pregão das
velhas t ardes, t ão sabido do bairro e da nossa infância:
Chora, m enina, chora,
Chora, porque não t em
Vint ém ,
a m odo que lhe deixara um a im pressão aborrecida. Da t oada não era; ela a sabia
de cor e de longe, usava repet i- la nos nossos j ogos da puerícia, rindo, salt ando,
t rocando os papéis com igo, ora vendendo, ora com prando um doce ausent e. Creio
que a let ra, dest inada a picar a vaidade das crianças, foi que a enoj ou agora,
porque logo depois m e disse:
— Se eu fosse rica, você fugia, m et ia- se no paquet e e ia para a Europa.
Dit o ist o, espreit ou- m e os olhos, m as creio que eles não lhe disseram nada, ou só
agradeceram a boa int enção. Com efeit o, o sent im ent o era t ão am igo que eu
podia escusar o ext raordinário da avent ura.
Com o vês, Capit u, aos quat orze anos, t inha j á idéias at revidas, m uit o m enos que
out ras que lhe vieram depois; m as eram só at revidas em si, na prát ica faziam - se
hábeis, sinuosas, surdas, e alcançavam o fim propost o, não de salt o, m as aos
salt inhos. Não sei se m e explico bem . Suponde um a concepção grande execut ada
por m eios pequenos. Assim , para não sair do desej o vago e hipot ét ico de m e
m andar para a Europa, Capit u, se pudesse cum pri- lo, não m e faria em barcar no
paquet e e fugir; est enderia um a fila de canoas daqui at é lá, por onde eu,
parecendo ir à fort aleza da Laj e em pont e m ovediça, iria realm ent e at é Bordéus,
deixando m inha m ãe na praia, à espera. Tal era a feição part icular do carát er da
m inha am iga; pelo que, não adm ira que, com bat endo os m eus proj et os de
resist ência franca, fosse ant es pelos m eios brandos, pela ação do em penho, da
palavra, da persuasão lent a e diut urna, e exam inasse ant es as pessoas com quem
podíam os cont ar. Rej eit ou t io Cosm e; era um " boa- vida" ; se não aprovava a
m inha ordenação, não era capaz de dar um passo para suspendê- la. Prim a Just ina
era m elhor que ele, e m elhor que os dois seria o Padre Cabral, pela aut oridade,
m as o padre não havia de t rabalhar cont ra a igrej a; só se eu lhe confessasse que
não t inha vocação...
— Posso confessar?
— Pois, sim , m as seria aparecer francam ent e, e o m elhor é out ra coisa. José
Dias...
— Que t em José Dias?
— Pode ser um bom em penho.
— Mas se foi ele m esm o que falou...
— Não im port a, cont inuou Capit u; dirá agora out ra coisa. Ele gost a m uit o de você.
Não lhe fale acanhado. Tudo é que você não t enha m edo, m ost re que há de vir a
ser dono da casa, m ost re que quer e que pode. Dê- lhe bem a ent ender que não é
favor. Faça- lhe t am bém elogios; ele gost a m uit o de ser elogiado. D. Glória prest alhe at enção; m as o principal não é isso; é que ele, t endo de servir a você, falará
com m uit o m ais calor que out ra pessoa.
— Não acho, não, Capit u.
— Ent ão vá para o sem inário.
— I sso não.
— Mas que se perde em experim ent ar? Experim ent em os; faça o que lhe digo.
Dona Glória pode ser que m ude de resolução; se não m udar, faz- se out ra coisa,
m et e- se ent ão o Padre Cabral. Você não se lem bra com o é que foi ao t eat ro pela
prim eira vez, há dois m eses? D. Glória não queria, e bast ava isso para que José
Dias não t eim asse; m as ele queria ir, e fez um discurso, lem bra- se?
— Lem bra- m e; disse que o t eat ro era um a escola de cost um es.
— Just o; t ant o falou que sua m ãe acabou consent indo, e pagou a ent rada aos
dois... Ande, peça, m ande. Olhe; diga- lhe que est á pront o a ir est udar leis em São
Paulo.
Est rem eci de prazer. São Paulo era um frágil biom bo, dest inado a ser arredado um
dia, em vez da grossa parede espirit ual e et erna. Prom et i falar a José Dias nos
t erm os propost os. Capit u repet iu- os, acent uando alguns, com o principais; e
inquiria- m e depois sobre eles, a ver se ent endera bem , se não t rocara uns por
out ros. E insist ia em que pedisse com boa cara, m as assim com o quem pede um
copo de água a pessoa que t em obrigação de o t razer. Cont o est as m inúcias para
que m elhor se ent enda aquela m anhã da m inha am iga; logo virá a t arde, e da
m anhã e da t arde se fará o prim eiro dia, com o no Gênesis, onde se fizeram
sucessivam ent e set e.
CAPÍ TULO XI X
SEM FALTA
Quando volt ei a casa era noit e. Vim depressa, não t ant o, porém , que não
pensasse nos t erm os em que falaria ao agregado. Form ulei o pedido de cabeça,
escolhendo as palavras que diria e o t om delas, ent re seco e benévolo. Na
chácara, ant es de ent rar em casa, repet i- as com igo, depois em voz alt a, para ver
se eram adequadas e se obedeciam às recom endações de Capit u: " Preciso falarlhe, sem falt a, am anhã; escolha o lugar e diga- m e" . Proferi- as lent am ent e, e m ais
lent am ent e ainda as palavras sem falt a, com o para sublinhá- las. Repet i- as ainda,
e ent ão achei- as secas dem ais, quase ríspidas, e, francam ent e, im próprias de um
criançola para um hom em m aduro. Cuidei de escolher out ras, e parei.
Afinal disse com igo que as palavras podiam servir, t udo era dizê- las em t om que
não ofendesse. E a prova é que, repet indo- as novam ent e, saíram - m e quase
súplices. Bast ava não carregar t ant o, nem adoçar m uit o, um m eio- t erm o. " E
Capit u t em razão, pensei, a casa é m inha, ele é um sim ples agregado... Jeit oso é,
pode m uit o bem t rabalhar por m im , e desfazer o plano de m am ãe."
CAPÍ TULO XX
M I L PAD RE- N OSSOS E M I L AVE- M ARI AS
Levant ei os olhos ao céu, que com eçava a em bruscar- se, m as não foi para vê- lo
cobert o ou descobert o. Era ao out ro Céu que eu erguia a m inha alm a; era ao m eu
refúgio, ao m eu am igo. E ent ão disse de m im para m im : " Prom et o rezar m il
padre- nossos e m il ave- m arias, se José Dias arranj ar que eu não vá para o
sem inário" .
A som a era enorm e. A razão é que eu andava carregado de prom essas não
cum pridas. A últ im a foi de duzent os padre- nossos e duzent as ave- m arias, se não
chovesse em cert a t arde de passeio a Sant a Teresa. Não choveu, m as eu não rezei
as orações. Desde pequenino acost um ara- m e a pedir ao Céu os seus favores,
m ediant e orações que diria, se eles viessem . Disse as prim eiras, as out ras foram
adiadas, e à m edida que se am ont oavam iam sendo esquecidas. Assim cheguei
aos núm eros vint e, t rint a, cinqüent a. Ent rei nas cent enas e agora no m ilhar. Era
um m odo de peit ar a vont ade divina pela quant ia das orações; além disso, cada
prom essa nova era feit a e j urada no sent ido de pagar a dívida ant iga. Mas vão lá
m at ar a preguiça de um a alm a que a t razia do berço e não a sent ia at enuada pela
vida! O Céu fazia- m e o favor, eu adiava a paga. Afinal perdi- m e nas cont as.
— Mil, m il, repet i com igo.
Realm ent e, a m at éria do benefício era agora im ensa, não m enos que a salvação
ou o naufrágio da m inha exist ência int eira. Mil, m il, m il. Era preciso um a som a que
pagasse os at rasados t odos. Deus podia m uit o bem , irrit ado com os
esquecim ent os, negar- se a ouvir- m e sem m uit o dinheiro... Hom em grave, é
possível que est as agit ações de m enino t e enfadem , se é que não as achas
ridículas. Sublim es não eram . Cogit ei m uit o no m odo de resgat ar a dívida
espirit ual. Não achava out ra espécie em que, m ediant e a int enção, t udo se
cum prisse, fechando a escrit uração da m inha consciência m oral sem deficit .
Mandar dizer cem m issas, ou subir de j oelhos a ladeira da Glória para ouvir um a,
ir à Terra Sant a, t udo o que as velhas escravas m e cont avam de prom essas
célebres, t udo m e acudia sem se fixar de vez no espírit o. Era m uit o duro subir
um a ladeira de j oelhos; devia feri- los por força. A Terra Sant a ficava m uit o longe.
As m issas eram num erosas, podiam em penhar- m e out ra vez a alm a...
CAPÍ TULO XXI
PRI M A JUSTI N A
Na varanda achei prim a Just ina, passeando de um lado para out ro. Veio ao
pat am ar e pergunt ou- m e onde est ivera.
— Est ive aqui ao pé, conversando com D. Fort unat a, e dist raí- m e. É t arde, não é?
Mam ãe pergunt ou por m im ?
— Pergunt ou, m as eu disse que você j á t inha vindo.
A m ent ira espant ou- m e, não m enos que a franqueza da not ícia. Não é que prim a
Just ina fosse de biocos, dizia francam ent e a Pedro o m al que pensava de Paulo, e
a Paulo o que pensava de Pedro; m as, confessar que m ent ira é que m e pareceu
novidade. Era quadragenária, m agra e pálida, boca fina e olhos curiosos. Vivia
conosco por favor de m inha m ãe, e t am bém por int eresse; m inha m ãe queria t er
um a senhora ínt im a ao pé de si, e ant es parent a que est ranha.
Passeam os alguns m inut os na varanda, alum iada por um lam pião. Quis saber se
eu não esquecera os proj et os eclesiást icos de m inha m ãe, e dizendo- lhe eu que
não, inquiriu- m e sobre o gost o que eu t inha à vida de padre. Respondi esquivo:
— Vida de padre é m uit o bonit a.
— Sim , é bonit a; m as o que pergunt o é se você gost aria de ser padre, explicou
rindo.
— Eu gost o do que m am ãe quiser.
— Prim a Glória desej a m uit o que você se ordene, m as ainda que não desej asse,
há cá em casa quem lhe m et a isso na cabeça.
— Quem é?
— Ora, quem ! Quem é que há de ser? Prim o Cosm e não é, que não se im port a
com isso; eu t am bém não.
— José Dias? concluí.
— Nat uralm ent e.
Enruguei a t est a int errogat ivam ent e, com o se não soubesse nada. Prim a Just ina
com plet ou a not ícia dizendo que ainda naquela t arde José Dias lem brara a m inha
m ãe a prom essa ant iga.
— Prim a Glória pode ser que, em passando os dias, vá esquecendo a prom essa;
m as com o há de esquecer se um a pessoa est iver sem pre, nos ouvidos, zás que
darás, falando do sem inário? E os discursos que ele faz, os elogios da igrej a, e que
a vida de padre é ist o e aquilo, t udo com aquelas palavras que só ele conhece, e
aquela afet ação... Not e que é só para fazer m al, porque ele é t ão religioso com o
est e lam pião. Pois é verdade, ainda hoj e. Você não se dê por achado... Hoj e de
t arde falou com o você não im agina...
— Mas falou à t oa? pergunt ei, a ver se ela cont ava a denúncia do m eu nam oro
com a vizinha.
Não cont ou; fez apenas um gest o com o indicando que havia out ra coisa que não
podia dizer. Novam ent e m e recom endou que não m e desse por achado, e
recapit ulou t odo o m al que pensava de José Dias, e não era pouco, um int rigant e,
um baj ulador, um especulador, e, apesar da casca de polidez, um grosseirão. Eu,
passados alguns inst ant es, disse:
— Prim a Just ina, a senhora era capaz de um a coisa?
— De quê?
— Era capaz de... Suponha que eu não gost asse de ser padre... a senhora podia
pedir a m am ãe...
— I sso não, at alhou pront am ent e; prim a Glória t em est e negócio firm e na cabeça,
e não há nada no m undo que a faça m udar de resolução; só o t em po. Você ainda
era pequenino, j á ela cont ava ist o a t odas as pessoas da nossa am izade, ou só
conhecidas. Lá avivar- lhe a m em ória, não, que eu não t rabalho para a desgraça
dos out ros; m as t am bém , pedir out ra coisa, não peço. Se ela m e consult asse,
bem ; se ela m e dissesse: " Prim a Just ina, você que acha?" , a m inha respost a era:
" Prim a Glória, eu penso que, se ele gost a de ser padre, pode ir; m as, se não
gost a, o m elhor é ficar" . É o que eu diria e direi se ela m e consult ar algum dia.
Agora, ir falar- lhe sem ser cham ada, não faço.
CAPÍ TULO XXI I
SEN SAÇÕES ALH EI AS
Não alcancei m ais nada, e para o fim arrependi- m e do pedido: devia t er seguido o
conselho de Capit u. Ent ão, com o eu quisesse ir para dent ro, prim a Just ina ret evem e alguns m inut os, falando do calor e da próxim a fest a da Conceição, dos m eus
velhos orat órios, e finalm ent e de Capit u. Não disse m al dela; ao cont rário,
insinuou- m e que podia vir a ser um a m oça bonit a. Eu, que j á a achava lindíssim a,
bradaria que era a m ais bela criat ura do m undo, se o receio m e não fizesse
discret o. Ent ret ant o, com o prim a Just ina se m et esse a elogiar- lhe os m odos, a
gravidade, os cost um es, o t rabalhar para os seus, o am or que t inha a m inha m ãe,
t udo ist o m e acendeu a pont o de elogiá- la t am bém . Quando não era com palavras,
era com o gest o de aprovação que dava a cada um a das asserções da out ra, e
cert am ent e com a felicidade que devia ilum inar- m e a cara. Não advert i que assim
confirm ava a denúncia de José Dias, ouvida por ela, à t arde, na sala de visit as, se
é que t am bém ela não desconfiava j á. Só pensei nisso na cam a. Só ent ão sent i
que os olhos de prim a Just ina, quando eu falava, pareciam apalpar- m e, ouvir- m e,
cheirar- m e, gost ar- m e, fazer o ofício de t odos os sent idos. Ciúm es não podiam
ser; ent re um pirralho da m inha idade e um a viúva quarent ona não havia lugar
para ciúm es. É cert o que, após algum t em po, m odificou os elogios a Capit u, e at é
lhe fez algum as crít icas, disse- m e que era um pouco t rêfega e olhava por baixo;
m as ainda assim , não creio que fossem ciúm es. Creio ant es... sim ... sim , creio
ist o. Creio que prim a Just ina achou no espet áculo das sensações alheias um a
ressurreição vaga das próprias. Tam bém se goza por influição dos lábios que
narram .
CAPÍ TULO XXI I I
PRAZO D AD O
— Preciso falar- lhe am anhã, sem falt a; escolha o lugar e diga- m e.
Creio que José Dias achou desusado est e m eu falar. O t om não m e saíra t ão
im perat ivo com o eu receava, m as as palavras o eram , e o não int errogar, não
pedir, não hesit ar, com o era próprio da criança e do m eu est ilo habit ual,
cert am ent e lhe deu idéia de um a pessoa nova e de um a nova sit uação. Foi no
corredor, quando íam os para o chá; José Dias vinha andando cheio da leit ura de
Walt er Scot t que fizera a m inha m ãe e a prim a Just ina. Lia cant ado e com passado.
Os cast elos e os parques saíam m aiores da boca dele, os lagos t inham m ais água
e a " abóbada celest e" cont ava alguns m ilhares m ais de est relas cint ilant es. Nos
diálogos, alt ernava o som das vozes, que eram levem ent e grossas ou finas,
conform e o sexo dos int erlocut ores, e reproduziam com m oderação a t ernura e a
cólera.
Ao despedir- se de m im , na varanda, disse- m e ele:
— Am anhã, na rua. Tenho um as com pras que fazer, você pode ir com igo, pedirei a
m am ãe. É dia de lição?
— A lição foi hoj e.
— Perfeit am ent e. Não lhe pergunt o o que é; afirm o desde j á que é m at éria grave
e pura.
— Sim , senhor.
— At é am anhã.
Fez- se t udo o m elhor possível. Houve só um a alt eração; m inha m ãe achou o dia
quent e e não consent iu que eu fosse a pé; ent ram os no ônibus, à port a de casa.
— Não im port a, disse- m e José Dias; podem os apear- nos à port a do Passeio
Público.
CAPÍ TULO XXI V
D E M ÃE E D E SERVO
José Dias t rat ava- m e com ext rem os de m ãe e at enções de servo. A prim eira coisa
que conseguiu logo que com ecei a andar fora, foi dispensar- m e o paj em ; fez- se
paj em , ia com igo à rua. Cuidava dos m eus arranj os em casa, dos m eus livros, dos
m eus sapat os, da m inha higiene e da m inha prosódia. Aos oit o anos os m eus
plurais careciam , algum a vez, da desinência exat a, ele a corrigia, m eio sério para
dar aut oridade à lição, m eio risonho para obt er o perdão da em enda. Aj udava
assim o m est re de prim eiras let ras. Mais t arde, quando o Padre Cabral m e
ensinava lat im , dout rina e hist ória sagrada, ele assist ia às lições, fazia reflexões
eclesiást icas, e, no fim , pergunt ava ao padre: " Não é verdade que o nosso j ovem
am igo cam inha depressa?" Cham ava- m e " um prodígio" ; dizia a m inha m ãe t er
conhecido out rora m eninos m uit o int eligent es, m as que eu excedia a t odos esses,
sem cont ar que, para a m inha idade, possuía j á cert o núm ero de qualidades
m orais sólidas. Eu, post o não avaliasse t odo o valor dest e out ro elogio, gost ava do
elogio; era um elogio.
CAPÍ TULO XXV
N O PASSEI O PÚBLI CO
Ent ram os no Passeio Público. Algum as caras velhas, out ras doent es ou só vadias
espalhavam - se m elancolicam ent e no cam inho que vai da port a ao t erraço.
Seguim os para o t erraço. Andando, para m e dar ânim o, falei do j ardim :
— Há m uit o t em po que não venho aqui, t alvez um ano.
— Perdoe- m e, at alhou ele, não há t rês m eses que est eve aqui com o nosso vizinho
Pádua; não se lem bra?
— É verdade, m as foi t ão de passagem . . .
— Ele pediu a sua m ãe que o deixasse t razer consigo, e ela, que é boa com o a
m ãe de Deus, consent iu; m as ouça- m e, j á que falam os nist o, não é bonit o que
você ande com o Pádua na rua.
— Mas eu andei algum as vezes...
— Quando era m ais j ovem ; era criança, era nat ural, ele podia passar por criado.
Mas você est á ficando m oço e ele vai t om ando confiança. D. Glória, afinal, não
pode gost ar disso. A gent e Pádua não é de t odo m á. Capit u, apesar daqueles olhos
que o Diabo lhe deu... Você j á reparou nos olhos dela? São assim de cigana
oblíqua e dissim ulada. Pois, apesar deles, poderia passar, se não fosse a vaidade e
a adulação. Oh! a adulação! D. Fort unat a m erece est im a, e ele não nego que sej a
honest o, t em um bom em prego, possui a casa em que m ora, m as honest idade e
est im a não bast am , e as out ras qualidades perdem m uit o de valor com as m ás
com panhias em que ele anda. Pádua t em um a t endência para gent e reles. Em lhe
cheirando a hom em chulo é com ele. Não digo ist o por ódio, nem porque ele fale
m al de m im e se ria, com o se riu, há dias, dos m eus sapat os acalcanhados...
— Perdão, int errom pi suspendendo o passo, nunca ouvi que falasse m al do
senhor; pelo cont rário, um dia, não há m uit o t em po, disse ele a um suj eit o, em
m inha presença, que o senhor era " um hom em de capacidade e sabia falar com o
um deput ado nas câm aras."
José Dias sorriu deliciosam ent e, m as fez um esforço grande e fechou out ra vez o
rost o; depois replicou:
— Não lhe agradeço nada. Out ros, de m elhor sangue, m e t êm feit o o favor de
j uízos alt os. E nada disso im pede que ele sej a o que lhe digo.
Tínham os out ra vez andado, subim os ao t erraço, e olham os para o m ar.
— Vej o que o senhor não quer senão o m eu benefício, disse eu depois de alguns
inst ant es.
— Pois que out ra coisa, Bent inho?
— Nest e caso, peço- lhe um favor.
— Um favor? Mande, ordene, que é?
— Mam ãe...
Durant e algum t em po não pude dizer o rest o, que era pouco, e vinha de cor. José
Dias t ornou a pergunt ar o que era, sacudia- m e com brandura, levant ava- m e o
queixo e espet ava os olhos em m im , ansioso t am bém , com o a prim a Just ina na
véspera.
— Mam ãe quê? Que é que t em m am ãe?
— Mam ãe quer que eu sej a padre, m as eu não posso ser padre, disse finalm ent e.
José Dias endireit ou- se pasm ado.
— Não posso, cont inuei eu, não m enos pasm ado que ele, não t enho j eit o, não
gost o da vida de padre. Est ou por t udo o que ela quiser; m am ãe sabe que eu faço
t udo o que ela m anda; est ou pront o a ser o que for do seu agrado, at é cocheiro de
ônibus. Padre, não; não posso ser padre. A carreira é bonit a, m as não é para m im .
Todo esse discurso não m e saiu assim , de vez, enfiado nat uralm ent e, perem pt ório,
com o pode parecer do t ext o, m as aos pedaços, m ast igado, em voz um pouco
surda e t ím ida. Não obst ant e, José Dias ouvira- o espant ado. Não cont ava
cert am ent e com a resist ência, por m ais acanhada que fosse; m as o que ainda
m ais o assom brou foi est a conclusão:
— Cont o com o senhor para salvar- m e.
Os olhos do agregado escancararam - se, as sobrancelhas arquearam - se, e o prazer
que eu cont ava dar- lhe com a escolha da prot eção não se m ost rou em nenhum
dos m úsculos. Toda a cara dele era pouca para a est upefação. Realm ent e, a
m at éria do discurso revelara em m im um a alm a nova; eu próprio não m e
conhecia. Mas a palavra final é que t rouxe um vigor único. José Dias ficou
at urdido. Quando os olhos t ornaram às dim ensões ordinárias:
— Mas que posso eu fazer? pergunt ou.
— Pode m uit o. O senhor sabe que, em nossa casa, t odos o apreciam . Mam ãe pede
m uit a vez os seus conselhos, não é? Tio Cosm e diz que o senhor é pessoa de
t alent o...
— São bondades, ret orquiu lisonj eado. São favores de pessoas dignas, que
m erecem t udo... Aí est á! nunca ninguém m e há de ouvir dizer nada de pessoas
t ais; por quê? porque são ilust res e virt uosas. Sua m ãe é um a sant a, seu t io é um
cavalheiro perfeit íssim o. Tenho conhecido fam ílias dist int as; nenhum a poderá
vencer a sua em nobreza de sent im ent os. O t alent o que seu t io acha em m im
confesso que o t enho, m as é só um , — é o t alent o de saber o que é bom e digno
de adm iração e de apreço.
— Há de t er t am bém o de prot eger os am igos, com o eu.
— Em que lhe posso valer, anj o do céu? Não hei de dissuadir sua m ãe de um
proj et o que é, além de prom essa, a am bição e o sonho de longos anos. Quando
pudesse, é t arde. Ainda ont em fez- m e o favor de dizer: " José Dias, preciso m et er
Bent inho no sem inário" .
Tim idez não é t ão ruim m oeda, com o parece. Se eu fosse dest em ido, é provável
que, com a indignação que experim ent ei, rom pesse a cham ar- lhe m ent iroso, m as
ent ão seria preciso confessar- lhe que est ivera à escut a, at rás da port a, e um a
ação valia out ra. Cont ent ei- m e de responder que não era t arde.
— Não é t arde, ainda é t em po, se o senhor quiser.
— Se eu quiser? Mas que out ra coisa quero eu, senão servi- lo. Que desej o, senão
que sej a feliz, com o m erece?
— Pois ainda é t em po. Olhe, não é por vadiação. Est ou pront o para t udo; se ela
quiser que eu est ude leis, vou para São Paulo...
CAPÍ TULO XXVI
AS LEI S SÃO BELAS
Pela cara de José Dias passou algo parecido com o reflexo de um a idéia, — um a
idéia que o alegrou ext raordinariam ent e. Calou- se alguns inst ant es; eu t inha os
olhos nele, ele volt ara os seus para o lado da barra. Com o insist isse:
— É t arde, disse ele; m as, para lhe provar que não há falt a de vont ade, irei falar a
sua m ãe. Não prom et o vencer, m as lut ar; t rabalharei com alm a. Deveras, não
quer ser padre? As leis são belas, m eu querido... Pode ir a São Paulo, a
Pernam buco, ou ainda m ais longe. Há boas universidades por esse m undo fora. Vá
para as leis, se t al é a sua vocação. Vou falar a Dona Glória, m as não cont e só
com igo; fale t am bém a seu t io.
— Hei de falar.
— Pegue- se t am bém com Deus, — com Deus e a Virgem Sant íssim a, concluiu
apont ando para o céu.
O céu est ava m eio enfarruscado. No ar, pert o da praia, grandes pássaros negros
faziam giros, avançando ou pairando, e desciam a roçar os pés na água, e
t ornavam a erguer- se para descer novam ent e. Mas nem as som bras do céu, nem
as danças fant ást icas dos pássaros m e desviavam o espírit o do m eu int erlocut or.
Depois de lhe responder que sim , em endei- m e:
— Deus fará o que o senhor quiser.
— Não blasfem e. Deus é dono de t udo; ele é, só por si, a Terra e o Céu, o
passado, o present e e o fut uro. Peça- lhe a sua felicidade, que eu não faço out ra
coisa... Um a vez que você não pode ser padre, e prefere as leis... As leis são
belas, sem desfazer na t eologia, que é m elhor que t udo, com o a vida eclesiást ica é
a m ais sant a. Por que não há de ir est udar leis fora daqui? Melhor é ir logo para
algum a universidade, e ao m esm o t em po que est uda, viaj a. Podem os ir j unt os;
verem os as t erras est rangeiras, ouvirem os inglês, francês, it aliano, espanhol,
russo e at é sueco. Dona Glória provavelm ent e não poderá acom panhá- lo; ainda
que possa e vá, não quererá guiar os negócios, papéis, m at rículas, e cuidar de
hospedarias, e andar com você de um lado para out ro... Oh! as leis são
belíssim as!
— Est á dit o, pede a m am ãe que m e não m et a no sem inário?
— Pedir, peço, m as pedir não é alcançar. Anj o do m eu coração, se vont ade de
servir é poder de m andar, est am os aqui, est am os a bordo. Ah! você não im agina o
que é a Europa; oh! a Europa...
Levant ou a perna e fez um a piruet a. Um a das suas am bições era t ornar à Europa,
falava dela m uit as vezes, sem acabar de t ent ar m inha m ãe nem t io Cosm e, por
m ais que louvasse os ares e as belezas... Não cont ava com est a possibilidade de ir
com igo, e lá ficar durant e a et ernidade dos m eus est udos.
— Est am os a bordo, Bent inho, est am os a bordo!
CAPÍ TULO XXVI I
AO PORTÃO
No port ão do Passeio, um m endigo est endeu- nos a m ão. José Dias passou adiant e,
m as eu pensei em Capit u e no sem inário, t irei dois vint éns do bolso e dei- os ao
m endigo. Est e beij ou a m oeda; eu pedi- lhe que rogasse a Deus por m im , a fim de
que eu pudesse sat isfazer t odos os m eus desej os.
— Sim , m eu devot o!
— Cham o- m e Bent o, acrescent ei para esclarecê- lo.
CAPÍ TULO XXVI I I
N A RUA
José Dias ia t ão cont ent e que t rocou o hom em dos m om ent os graves, com o era na
rua, pelo hom em dobradiço e inquiet o. Mexia- se t odo, falava de t udo, fazia- m e
parar a cada passo diant e de um m ost rador ou de um cart az de t eat ro. Cont avam e o enredo de algum as peças, recit ava m onólogos em verso. Fez os recados
t odos, pagou cont as, recebeu aluguéis de casa; para si com prou um vigésim o de
lot eria. Afinal, o hom em t eso rendeu o flexível, e passou a falar pausado, com
superlat ivos. Não vi que a m udança era nat ural; t em i que houvesse m udado a
resolução assent ada, e ent rei a t rat á- lo com palavras e gest os carinhosos, at é
ent rarm os no ônibus.
CAPÍ TULO XXI X
O I M PERAD OR
Em cam inho, encont ram os o I m perador, que vinha da Escola de Medicina. O
ônibus em que íam os parou, com o t odos os veículos; os passageiros desceram à
rua e t iraram o chapéu, at é que o coche im perial passasse. Quando t ornei ao m eu
lugar, t razia um a idéia fant ást ica, a idéia de ir t er com o I m perador, cont ar- lhe
t udo e pedir- lhe a int ervenção. Não confiaria est a idéia a Capit u. " Sua Maj est ade
pedindo, m am ãe cede" , pensei com igo.
Vi ent ão o I m perador escut ando- m e, reflet indo e acabando por dizer que sim , que
iria falar a m inha m ãe; eu beij ava- lhe a m ão, com lágrim as. E logo m e achei em
casa, à esperar, at é que ouvi os bat edores e o piquet e de cavalaria; é o
I m perador! é o I m perador! t oda a gent e chegava às j anelas para vê- lo passar,
m as não passava, o coche parava à nossa port a, o I m perador apeava- se e
ent rava. Grande alvoroço na vizinhança: " O I m perador ent rou em casa de D.
Glória! Que será? Que não será?" A nossa fam ília saía a recebê- lo; m inha m ãe era
a prim eira que lhe beij ava a m ão. Ent ão o I m perador, t odo risonho, sem ent rar na
sala ou ent rando, — não m e lem bra bem , os sonhos são m uit a vez confusos, —
pedia a m inha m ãe que m e não fizesse padre, — e ela, lisonj eada e obedient e,
prom et ia que não.
— A Medicina, — por que lhe não m anda ensinar Medicina?
— Um a vez que é do agrado de Vossa Maj est ade...
— Mande ensinar- lhe Medicina; é um a bonit a carreira, e nós t em os aqui bons
professores. Nunca foi à nossa Escola? É um a bela Escola. Já t em os m édicos de
prim eira ordem , que podem om brear com os m elhores de out ras t erras. A
Medicina é um a grande ciência; bast a só ist o de dar a saúde aos out ros, conhecer
as m olést ias, com bat ê- las, vencê- 1as... A senhora m esm a há de t er vist o
m ilagres. Seu m arido m orreu, m as a doença era fat al, e ele não t inha cuidado em
si... É um a bonit a carreira; m ande- o para a nossa Escola. Faça isso por m im , sim ?
Você quer, Bent inho?
— Mam ãe querendo...
— Quero, m eu filho. Sua Maj est ade m anda.
Ent ão o I m perador dava out ra vez a m ão a beij ar, e saía, acom panhado de t odos
nós, a rua cheia de gent e, as j anelas at opet adas, um silêncio de assom bro; o
I m perador ent rava no coche, inclinava- se e fazia um gest o de adeus, dizendo
ainda: " A Medicina, a nossa Escola." E o coche part ia ent re invej as e
agradecim ent os.
Tudo isso vi e ouvi. Não, a im aginação de Ariost o não é m ais fért il que a das
crianças e dos nam orados, nem a visão do im possível precisa m ais que de um
recant o de ônibus. Consolei- m e por inst ant es, digam os m inut os, at é dest ruir- se o
plano e volt ar- m e para as caras sem sonhos dos m eus com panheiros.
CAPÍ TULO XXX
O SAN TÍ SSI M O
Terás ent endido que aquela lem brança do I m perador acerca da Medicina não era
m ais que a sugest ão da m inha pouca vont ade de sair do Rio de Janeiro. Os sonhos
do acordado são com o os out ros sonhos, t ecem - se pelo desenho das nossas
inclinações e das nossas recordações. Vá que fosse para São Paulo, m as a
Europa... Era m uit o longe, m uit o m ar e m uit o t em po. Viva a Medicina! I ria cont ar
est as esperanças a Capit u.
— Parece que vai sair o Sant íssim o, disse alguém no ônibus. Ouço um sino; é,
creio que é em Sant o Ant ônio dos Pobres. Pare, Sr. recebedor!
O recebedor das passagens puxou a correia que ia t er ao braço do cocheiro, o
ônibus parou, e o hom em desceu. José Dias deu duas volt as rápidas à cabeça,
pegou- m e no braço e fez- m e descer consigo. I ríam os t am bém acom panhar o
Sant íssim o. Efet ivam ent e, o sino cham ava os fiéis àquele serviço da últ im a hora.
Já havia algum as pessoas na sacrist ia. Era a prim eira vez que m e achava em
m om ent o t ão grave; obedeci, a princípio const rangido, m as logo depois sat isfeit o,
m enos pela caridade do serviço que por m e dar um ofício de hom em . Quando o
sacrist ão com eçou a dist ribuir as opas, ent rou um suj eit o esbaforido; era o m eu
vizinho Pádua, que t am bém ia acom panhar o Sant íssim o. Deu conosco, veio
cum prim ent ar- nos. José Dias fez um gest o de aborrecido, e apenas lhe respondeu
com um a palavra seca, olhando para o padre, que lavava as m ãos. Depois, com o
Pádua falasse ao sacrist ão, baixinho, aproxim ou- se deles; eu fiz a m esm a coisa.
Pádua solicit ava ao sacrist ão um a das varas do pálio. José Dias pediu um a para si.
— Há só um a disponível, disse o sacrist ão.
— Pois essa, disse José Dias.
— Mas eu t inha pedido prim eiro, avent urou Pádua.
— Pediu prim eiro, m as ent rou t arde, ret orquiu José Dias; eu j á cá est ava. Leve
um a t ocha.
Pádua, apesar do m edo que t inha ao out ro, t eim ava em querer a vara, t udo ist o
em voz baixa e surda. O sacrist ão achou m eio de conciliar a rivalidade, t om ando a
si obt er de um dos out ros seguradores do pálio que cedesse a vara ao Pádua,
conhecido na paróquia, com o José Dias. Assim fez; m as José Dias t ranst ornou
ainda est a com binação. Não, um a vez que t ínham os out ra vara disponível, pedia- a
para m im , " j ovem sem inarist a" , a quem est a dist inção cabia m ais diret am ent e.
Pádua ficou pálido, com o as t ochas. Era pôr à prova o coração de um pai. O
sacrist ão, que m e conhecia de m e ver ali com m inha m ãe, aos dom ingos,
pergunt ou de curioso se eu era deveras sem inarist a.
— Ainda não, m ais vai sê- lo, respondeu José Dias, piscando o olho esquerdo para
m im , que, apesar do aviso, fiquei zangado.
— Bem , cedo ao nosso Bent inho, suspirou o pai de Capit u.
Pela m inha part e, quis ceder- lhe a vara; lem brou- m e que ele cost um ava
acom panhar o Sant íssim o Sacram ent o aos m oribundos, levando um a t ocha, m as
que a últ im a vez conseguira um a vara do pálio. A dist inção especial do pálio vinha
de cobrir o vigário e o sacram ent o; para t ocha qualquer pessoa servia. Foi ele
m esm o que m e cont ou e explicou ist o, cheio de um a glória pia e risonha. Assim
fica ent endido o alvoroço com que ent rara na igrej a; era a segunda vez do pálio,
t ant o que cuidou logo de ir pedi- lo. E nada! E t ornava à t ocha com um , out ra vez a
int erinidade int errom pida; o adm inist rador regressava ao ant igo cargo... Quis
ceder- lhe a vara; o agregado t olheu- m e esse at o de generosidade, e pediu ao
sacrist ão que nos pusesse, a ele e a m im , com as duas varas da frent e, rom pendo
a m archa do pálio.
Opas enfiadas, t ochas dist ribuídas e acesas, padre e cibório pront os, o sacrist ão de
hissope e cam painha nas m ãos, saiu o prést it o à rua. Quando m e vi com um a das
varas, passando pelos fiéis, que se aj oelhavam , fiquei com ovido. Pádua roía a
t ocha am argam ent e. É um a m et áfora, não acho out ra form a m ais viva de dizer a
dor e a hum ilhação do m eu vizinho. De rest o, não pude m irá- lo por m uit o t em po,
nem ao agregado, que, paralelam ent e a m im , erguia a cabeça com o ar de ser ele
próprio o Deus dos exércit os. Com pouco, sent i- m e m e cansado; os braços caíam m e, felizm ent e a casa era pert o, na Rua do Senado.
A enferm a era um a senhora viúva, t ísica, t inha um a filha de quinze ou dezesseis
anos, que est ava chorando à port a do quart o. A m oça não era form osa, t alvez
nem t ivesse graça; os cabelos caíam despent eados, e as lágrim as faziam - lhe
encarquilhar os olhos. Não obst ant e, o t ot al falava e cat ivava o coração. O vigário
confessou a doent e, deu- lhe a com unhão e os sant os óleos. O prant o da m oça
redobrou t ant o que sent i os m eus olhos m olhados e fugi. Vim para pert o de um a
j anela. Pobre criat ura! A dor era com unicat iva em si m esm a; com plicada da
lem brança de m inha m ãe, doeu- m e m ais, e, quando enfim pensei em Capit u, sent i
um ím pet o de soluçar t am bém , enfiei pelo corredor, e ouvi alguém dizer- m e:
— Não chore assim !
A im agem de Capit u ia com igo, e a m inha im aginação, assim com o lhe at ribuíra
lágrim as, há pouco, assim lhe encheu a boca de riso agora; vi- a escrever no m uro,
falar- m e, andar à volt a, com os braços no ar; ouvi dist int am ent e o m eu nom e, de
um a doçura que m e em briagou, e a voz era dela. As t ochas acesas, t ão lúgubres
na ocasião, t inham - m e ares de um lust re nupcial... Que era lust re nupcial? Não
sei; era algum a coisa cont rária à m ort e, e não vej o out ra m ais que bodas. Est a
nova sensação m e dom inou t ant o que José Dias veio a m im , e m e disse ao ouvido,
em voz baixa:
— Não ria assim !
Fiquei sério depressa. Era o m om ent o da saída. Peguei da m inha vara; e, com o j á
conhecia a dist ância, e agora volt ávam os para a igrej a, o que fazia a dist ância
m enor, — o peso da vara era m uit o pequeno. Dem ais, o sol cá fora, a anim ação
da rua, os rapazes da m inha idade que m e fit avam cheios de invej a, as devot as
que chegavam às j anelas ou ent ravam nos corredores e se aj oelhavam à nossa
passagem , t udo m e enchia a alm a de lepidez nova.
Pádua, ao cont rário, ia m ais hum ilhado. Apesar de subst it uído por m im , não
acabava de se consolar da t ocha, da m iserável t ocha. E cont udo havia out ros que
t am bém t raziam t ocha, e apenas m ost ravam a com post ura do at o; não iam
garridos, m as t am bém não iam t rist es. Via- se que cam inhavam com honra.
CAPÍ TULO XXXI
AS CURI OSI D AD ES D E CAPI TU
Capit u preferia t udo ao sem inário. Em vez de ficar abat ida com a am eaça da larga
separação, se vingasse a idéia da Europa, m ost rou- se sat isfeit a. E quando eu lhe
cont ei o m eu sonho im perial:
— Não, Bent inho, deixem os o I m perador sossegado, replicou; fiquem os por ora
com a prom essa de José Dias. Quando é que ele disse que falaria a sua m ãe?
— Não m arcou dia; prom et eu que ia ver, que falaria logo que pudesse, e que m e
pegasse com Deus.
Capit u quis que lhe repet isse as respost as t odas do agregado, as alt erações do
gest o e at é a piruet a, que apenas lhe cont ara. Pedia o som das palavras. Era
m inuciosa e at ent a; a narração e o diálogo, t udo parecia rem oer consigo. Tam bém
se pode dizer que conferia, rot ulava e pregava na m em ória a m inha exposição.
Est a im agem é porvent ura m elhor que a out ra, m as a ót im a delas é nenhum a.
Capit u era Capit u, ist o é, um a criat ura m uit o part icular, m ais m ulher do que eu
era hom em . Se ainda o não disse, aí fica. Se disse, fica t am bém . Há conceit os que
se devem incut ir na alm a do leit or, à força de repet ição.
Era t am bém m ais curiosa. As curiosidades de Capit u dão para um capít ulo. Eram
de vária espécie, explicáveis e inexplicáveis, assim út eis com o inút eis, um as
graves, out ras frívolas; gost ava de saber t udo. No colégio onde, desde os set e
anos, aprendera a ler, escrever e cont ar, francês, dout rina e obras de agulha, não
aprendeu, por exem plo, a fazer renda; por isso m esm o, quis que prim a Just ina lhe
ensinasse. Se não est udou lat im com o Padre Cabral foi porque o padre, depois de
lhe propor gracej ando, acabou dizendo que lat im não era língua de m eninas.
Capit u confessou- m e um dia que est a razão acendeu nela o desej o de o saber. Em
com pensação, quis aprender inglês com um velho professor am igo do pai e
parceiro dest e ao solo, m as não foi adiant e. Tio Cosm e ensinou- lhe gam ão.
— Anda apanhar um capot inho, Capit u, dizia- lhe ele.
Capit u obedecia e j ogava com facilidade, com at enção, não sei se diga com am or.
Um dia fui achá- la desenhando a lápis um ret rat o; dava os últ im os rasgos, e
pediu- m e que esperasse para ver se est ava parecido. Era o de m eu pai, copiado
da t ela que m inha m ãe t inha na sala e que ainda agora est á com igo. Perfeição não
era; ao cont rário, os olhos saíram esbugalhados, e os cabelos eram pequenos
círculos uns sobre out ros. Mas, não t endo ela rudim ent o algum de art e, e havendo
feit o aquilo de m em ória em poucos m inut os, achei que era obra de m uit o
m erecim ent o; descont ai- m e a idade e a sim pat ia. Ainda assim , est ou que
aprenderia facilm ent e pint ura, com o aprendeu m úsica m ais t arde. Já ent ão
nam orava o piano da nossa casa, velho t rast e inút il, apenas de est im ação. Lia os
nossos rom ances, folheava os nossos livros de gravuras, querendo saber das
ruínas, das pessoas, das cam panhas, o nom e, a hist ória, o lugar. José Dias davalhe essas not ícias com cert o orgulho de erudit o. A erudição dest e não avult ava
m uit o m ais que a sua hom eopat ia de Cant agalo.
Um dia, Capit u quis saber o que eram as figuras da sala de visit as. O agregado
disse- lho sum ariam ent e, dem orando- se um pouco m ais em César, com
exclam ações e lat ins:
— César! Júlio César! Grande hom em ! Tu quoque, Brut e?
Capit u não achava bonit o o perfil de César, m as as ações cit adas por José Dias
davam - lhe gest os de adm iração. Ficou m uit o t em po com a cara virada para ele.
Um hom em que podia t udo! que fazia t udo! Um hom em que dava a um a senhora
um a pérola do valor de seis m ilhões de sest ércios!
— E quant o valia cada sest ércio?
José Dias, não t endo present e o valor do sest ércio, respondeu ent usiasm ado:
— É o m aior hom em da hist ória!
A pérola de César acendia os olhos de Capit u. Foi nessa ocasião que ela pergunt ou
a m inha m ãe por que é que j á não usava as j óias do ret rat o; referia- se ao que
est ava na sala, com o de m eu pai; t inha um grande colar, um diadem a e brincos.
— São j óias viúvas, com o eu, Capit u.
— Quando é que bot ou est as?
— Foi pelas fest as da Coroação.
— Oh! cont e- m e as fest as da Coroação!
Sabia j á o que os pais lhe haviam dit o, m as nat uralm ent e t inha para si que eles
pouco m ais conheceriam do que o que se passou nas ruas. Queria a not ícia das
t ribunas da Capela I m perial e dos salões dos bailes. Nascera m uit o depois
daquelas fest as célebres. Ouvindo falar várias vezes da Maioridade, t eim ou um dia
em saber o que fora est e acont ecim ent o; disseram - lho, e achou que o I m perador
fizera m uit o bem em querer subir ao t rono aos quinze anos. Tudo era m at éria às
curiosidades de Capit u, m obílias ant igas, alfaias velhas, cost um es, not ícias de
I t aguaí, a infância e a m ocidade de m inha m ãe, um dit o daqui, um a lem brança
dali, um adágio dacolá...
CAPÍ TULO XXXI I
OLH OS D E RESSACA
Tudo era m at éria às curiosidades de Capit u. Caso houve, porém , no qual não sei
se aprendeu ou ensinou, ou se fez am bas as coisas, com o eu. É o que cont arei no
out ro capít ulo. Nest e direi som ent e que, passados alguns dias do aj ust e com o
agregado, fui ver a m inha am iga; eram dez horas da m anhã. D. Fort unat a, que
est ava no quint al, nem esperou que eu lhe pergunt asse pela filha.
— Est á na sala, pent eando o cabelo, disse- m e; vá devagarzinho para lhe pregar
um sust o.
Fui devagar, m as ou o pé ou o espelho t raiu- m e. Est e pode ser que não fosse; era
um espelhinho de pat aca ( perdoai a barat eza) , com prado a um m ascat e it aliano,
m oldura t osca, argolinha de lat ão, pendent e da parede, ent re as duas j anelas. Se
não foi ele, foi o pé. Um ou out ro, a verdade é que, apenas ent rei na sala, pent e,
cabelos, t oda ela voou pelos ares, e só lhe ouvi est a pergunt a:
— Há algum a coisa?
— Não há nada, respondi; vim ver você ant es que o Padre Cabral chegue para a
lição. Com o passou a noit e?
— Eu bem . José Dias ainda não falou?
— Parece que não.
— Mas ent ão quando fala?
— Disse- m e que hoj e ou am anhã pret ende t ocar no assunt o; não vai logo de
pancada, falará assim por alt o e por longe, um t oque. Depois, ent rará em m at éria.
Quer prim eiro ver se m am ãe t em a resolução feit a...
— Que t em , t em , int errom peu Capit u. E se não fosse preciso alguém para vencer
j á, e de t odo, não se lhe falaria. Eu j á nem sei se José Dias poderá influir t ant o;
acho que fará t udo, se sent ir que você realm ent e não quer ser padre, m as poderá
alcançar?... Ele é at endido; se, porém ... É um inferno ist o! Você t eim e com ele,
Bent inho.
— Teim o; hoj e m esm o ele há de falar.
— Você j ura?
— Juro! Deixe ver os olhos, Capit u.
Tinha- m e lem brado a definição que José Dias dera deles, " olhos de cigana oblíqua
e dissim ulada." Eu não sabia o que era oblíqua, m as dissim ulada sabia, e queria
ver se podiam cham ar assim . Capit u deixou- se fit ar e exam inar. Só m e
pergunt ava o que era, se nunca os vira; eu nada achei ext raordinário; a cor e a
doçura eram m inhas conhecidas. A dem ora da cont em plação creio que lhe deu
out ra idéia do m eu int ent o; im aginou que era um pret ext o para m irá- los m ais de
pert o, com os m eus olhos longos, const ant es, enfiados neles, e a ist o at ribuo que
ent rassem a ficar crescidos, crescidos e som brios, com t al expressão que...
Ret órica dos nam orados, dá- m e um a com paração exat a e poét ica para dizer o que
foram aqueles olhos de Capit u. Não m e acode im agem capaz de dizer, sem quebra
da dignidade do est ilo, o que eles foram e m e fizeram . Olhos de ressaca? Vá, de
ressaca. É o que m e dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido
m ist erioso e enérgico, um a força que arrast ava para dent ro, com o a vaga que se
ret ira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrast ado, agarrei- m e às out ras
part es vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos om bros; m as
t ão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e
escura, am eaçando envolver- m e, puxar- m e e t ragar- m e. Quant os m inut os
gast am os naquele j ogo? Só os relógios do Céu t erão m arcado esse t em po infinit o
e breve. A et ernidade t em as suas pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de
querer saber a duração das felicidades e dos suplícios. Há de dobrar o gozo aos
bem - avent urados do Céu conhecer a som a dos t orm ent os que j á t erão padecido
no inferno os seus inim igos; assim t am bém a quant idade das delícias que t erão
gozado no Céu os seus desafet os aum ent ará as dores aos condenados do inferno.
Est e out ro suplício escapou ao divino Dant e; m as eu não est ou aqui para em endar
poet as. Est ou para cont ar que, ao cabo de um t em po não m arcado, agarrei- m e
definit ivam ent e aos cabelos de Capit u, m as ent ão com as m ãos, e disse- lhe, —
para dizer algum a coisa, — que era capaz de os pent ear, se quisesse.
— Você?
— Eu m esm o.
— Vai em baraçar- m e o cabelo t odo, isso sim .
— Se em baraçar, você desem baraça depois.
— Vam os ver.
CAPÍ TULO XXXI I I
O PEN TEAD O
Capit u deu- m e as cost as, volt ando- se para o espelhinho. Peguei- lhe dos cabelos,
colhi- os t odos e ent rei a alisá- los com o pent e, desde a t est a at é as últ im as
pont as, que lhe desciam à cint ura. Em pé não dava j eit o: não esquecest es que ela
era um nadinha m ais alt a que eu, m as ainda que fosse da m esm a alt ura. Pedi- lhe
que se sent asse.
— Sent a aqui, é m elhor.
Sent ou- se. " Vam os ver o grande cabeleireiro" , disse- m e rindo. Cont inuei a alisar
os cabelos, com m uit o cuidado, e dividi- os em duas porções iguais, para com por
as duas t ranças. Não as fiz logo, nem assim depressa, com o podem supor os
cabeleireiros de ofício, m as devagar, devagarinho, saboreando pelo t at o aqueles
fios grossos, que eram part e dela. O t rabalho era at rapalhado, às vezes por
desazo, out ras de propósit o para desfazer o feit o e refazê- lo. Os dedos roçavam
na nuca da pequena ou nas espáduas vest idas de chit a, e a sensação era um
deleit e. Mas, enfim , os cabelos iam acabando, por m ais que eu os quisesse
int erm ináveis. Não pedi ao Céu que eles fossem t ão longos com o os da Aurora,
porque não conhecia ainda est a divindade que os velhos poet as m e apresent aram
depois; m as, desej ei pent eá- los por t odos os séculos dos séculos, t ecer duas
t ranças que pudessem envolver o infinit o por um núm ero inom inável de vezes. Se
ist o vos parecer enfát ico, desgraçado leit or, é que nunca pent east es um a
pequena, nunca pusest es as m ãos adolescent es na j ovem cabeça de um a ninfa...
Um a ninfa! Todo eu est ou m it ológico. Ainda há pouco, falando dos seus olhos de
ressaca, cheguei a escrever Tét is; risquei Tét is, risquem os ninfa; digam os
som ent e um a criat ura am ada, palavra que envolve t odas as pot ências crist ãs e
pagãs. Enfim , acabei as duas t ranças. Onde est ava a fit a para at ar- lhes as pont as?
Em cim a da m esa, um t rist e pedaço de fit a enxovalhada. Junt ei as pont as das
t ranças, uni- as por um laço, ret oquei a obra alargando aqui, achat ando ali, at é
que exclam ei:
— Pront o!
— Est ará bom ?
— Vej a no espelho.
Em vez de ir ao espelho, que pensais que fez Capit u? Não vos esqueçais que
est ava sent ada, de cost as para m im . Capit u derreou a cabeça, a t al pont o que m e
foi preciso acudir com as m ãos e am pará- la; o espaldar da cadeira era baixo.
I nclinei- m e depois sobre ela, rost o a rost o, m as t rocados, os olhos de um a na
linha da boca do out ro. Pedi- lhe que levant asse a cabeça, podia ficar t ont a,
m achucar o pescoço. Cheguei a dizer- lhe que est ava feia; m as nem est a razão a
m oveu.
— Levant a, Capit u!
Não quis, não levant ou a cabeça, e ficam os assim a olhar um para o out ro, at é
que ela abrochou os lábios, eu desci os m eus, e...
Grande foi a sensação do beij o; Capit u ergueu- se, rápida, eu recuei at é à parede
com um a espécie de vert igem , sem fala, os olhos escuros. Quando eles m e
clarearam , vi que Capit u t inha os seus no chão. Não m e at revi a dizer nada; ainda
que quisesse, falt ava- m e língua. Preso, at ordoado, não achava gest o nem ím pet o
que m e descolasse da parede e m e at irasse a ela com m il palavras cálidas e
m im osas... Não m ofes dos m eus quinze anos, leit or precoce. Com dezesset e, Des
Grieux ( e m ais era Des Grieux) não pensava ainda na diferença dos sexos.
CAPÍ TULO XXXI V
SOU H OM EM !
Ouvim os passos no corredor; era D. Fort unat a. Capit u com pôs- se depressa, t ão
depressa que, quando a m ãe apont ou à port a, ela abanava a cabeça e ria.
Nenhum laivo am arelo, nenhum a cont ração de acanham ent o, um riso espont âneo
e claro, que ela explicou por est as palavras alegres:
— Mam ãe, olhe com o est e senhor cabeleireiro m e pent eou; pediu- m e para acabar
o pent eado, e fez ist o. Vej a que t ranças!
— Que t em ? acudiu a m ãe, t ransbordando de benevolência . Est á m uit o bem ,
ninguém dirá que é de pessoa que não sabe pent ear.
— O que, m am ãe? I st o? redargüiu Capit u, desfazendo as t ranças. Ora, m am ãe!
E com um enfadam ent o gracioso e volunt ário que às vezes t inha, pegou do pent e
e alisou os cabelos para renovar o pent eado. D. Fort unat a cham ou- lhe t ont a, e
disse- m e que não fizesse caso, não era nada, m aluquices da filha. Olhava com
t ernura para m im e para ela. Depois, parece- m e que desconfiou. Vendo- m e
calado, enfiado, cosido à parede, achou t alvez que houvera ent re nós algo m ais
que pent eado, e sorriu por dissim ulação...
Com o eu quisesse falar t am bém para disfarçar o m eu est ado, cham ei algum as
palavras cá de dent ro, e elas acudiram de pront o, m as de at ropelo, e encheram m e a boca sem poder sair nenhum a. O beij o de Capit u fechava- m e os lábios. Um a
exclam ação, um sim ples art igo, por m ais que invest issem com força, não
logravam rom per de dent ro. E t odas as palavras recolheram - se ao coração,
m urm urando: " Eis aqui um que não fará grande carreira no m undo, por m enos
que as em oções o dom inem ..."
Assim , apanhados pela m ãe, éram os dois e cont rários, ela encobrindo com a
palavra o que eu publicava pelo silêncio. D. Fort unat a t irou- m e daquela hesit ação,
dizendo que m inha m ãe m e m andara cham ar para a lição de lat im ; o Padre Cabral
est ava à m inha espera. Era um a saída; despedi- m e e enfiei pelo corredor.
Andando, ouvi que a m ãe censurava as m aneira da filha, m as a filha não dizia
nada.
Corri ao m eu quart o, peguei dos livros, m as não passei à sala da lição; sent ei- m e
na cam a, recordando o pent eado e o rest o. Tinha est rem eções, t inha uns
esquecim ent os em que perdia a consciência de m im e das coisas que m e
rodeavam , para viver não sei onde nem com o. E t ornava a m im , e via a cam a, as
paredes, os livros, o chão, ouvia algum som de fora, vago, próxim o ou rem ot o, e
logo perdia t udo para sent ir som ent e os beiços de Capit u... Sent ia- os est irados,
em baixo dos m eus, igualm ent e est icados para os dela, e unindo- se uns aos
out ros. De repent e, sem querer, sem pensar, saiu- m e da boca est a palavra de
orgulho:
— Sou hom em !
Supus que m e t ivessem ouvido, porque a palavra saiu em voz alt a, e corri à port a
da alcova. Não havia ninguém fora. Volt ei para dent ro e, baixinho, repet i que era
hom em . Ainda agora t enho o eco aos m eus ouvidos. O gost o que ist o m e deu foi
enorm e. Colom bo não o t eve m aior, descobrindo a Am érica, e perdoai a
banalidade em favor do cabim ent o; com efeit o, há em cada adolescent e um
m undo encobert o, um alm irant e e um Sol de out ubro. Fiz out ros achados m ais
t arde; nenhum m e deslum brou t ant o. A denúncia de José Dias alvoroçara- m e, a
lição do velho coqueiro t am bém , a vist a dos nossos nom es abert os por ela no
m uro do quint al deu- m e grande abalo, com o vist es; nada disso valeu a sensação
do beij o. Podiam ser m ent ira ou ilusão. Sendo verdade, eram os ossos da verdade,
não eram a carne e o sangue dela. As próprias m ãos, t ocadas, apert adas, com o
que fundidas, não podiam dizer t udo.
— Sou hom em !
Quando repet i ist o, pela t erceira vez, pensei no sem inário, m as com o se pensa em
perigo que passou, um m al abort ado, um pesadelo ext int o; t odos os m eus nervos
m e disseram que hom ens não são padres. O sangue era da m esm a opinião. Out ra
vez sent i os beiços de Capit u. Talvez abuso um pouco das rem iniscências
osculares; m as a saudade é ist o m esm o; é o passar e repassar das m em órias
ant igas. Ora, de t odas as daquele t em po creio que a m ais doce é est a, a m ais
nova, a m ais com preensiva, a que int eiram ent e m e revelou a m im m esm o. Out ras
t enho, vast as e num erosas, doces t am bém , de vária espécie, m uit as int elect uais,
igualm ent e int ensas. Grande hom em que fosse, a recordação era m enor que est a.
CAPÍ TULO XXXV
O PROTON OTÁRI O APOSTÓLI CO
Enfim , peguei dos livros e corri à lição. Não corri precisam ent e; a m eio cam inho
parei, advert indo que devia ser m uit o t arde, e podiam ler- m e no sem blant e
algum a coisa. Tive idéia de m ent ir, alegar um a vert igem que m e houvesse deit ado
ao chão; m as o sust o que causaria a m inha m ãe fez- m e rej eit á- la. Pensei em
prom et er algum as dezenas de padre- nossos; t inha, porém , out ra prom essa em
abert o e out ro favor pendent e... Não, vam os ver; fui andando, ouvi vozes alegres,
conversavam ruidosam ent e. Quando ent rei na sala, ninguém ralhou com igo.
O Padre Cabral recebera na véspera um recado do int ernúncio; foi t er com ele, e
soube que, por decret o pont ifício, acabava de ser nom eado prot onot ário
apost ólico. Est a dist inção do papa dera- lhe grande cont ent am ent o e a t odos os
nossos. Tio Cosm e e prim a Just ina repet iam o t ít ulo com adm iração; era a
prim eira vez que ele soava aos nossos ouvidos, acost um ados a cônegos,
m onsenhores, bispos, núncios, e int ernúncios; m as que era prot onot ário
apost ólico? O Padre Cabral explicou que não era propriam ent e o cargo da cúria,
m as as honras dele. Tio Cosm e viu exalçar- se no parceiro de volt aret e, e repet ia:
— Prot onot ário apost ólico!
E volt ando- se para m im :
— Prepara- t e, Bent inho; t u podes vir a ser prot onot ário apost ólico.
Cabral ouvia com gost o a repet ição do t ít ulo. Est ava em pé, dava alguns passos,
sorria ou t am borilava na t am pa da bocet a. O t am anho do t ít ulo com o que lhe
dobrava a m agnificência, post o que, para ligá- lo ao nom e, era dem asiado
com prido; est a segunda reflexão foi t io Cosm e que a fez. Padre Cabral acudiu que
não era preciso dizê- lo t odo, bast ava que lhe cham assem o prot onot ário Cabral.
Subent endia- se apost ólico.
— Prot onot ário Cabral.
— Sim , t em razão; prot onot ário Cabral.
— Mas, Sr. prot onot ário, — acudiu prim a Just ina para se ir acost um ando ao uso do
t ít ulo, — ist o o obriga a ir a Rom a?
— Não, D. Just ina.
— Não, são só as honras, observou m inha m ãe.
— Agora, não im pede — disse Cabral, que cont inuava a reflet ir, — não im pede que
nos casos de m aior form alidade, at os públicos, cart as de cerim ônia, et c; se
em pregue o t ít ulo int eiro: prot onot ário apost ólico. No uso com um , bast a
prot onot ário.
— Just am ent e, assent iram t odos.
José Dias, que ent rou pouco depois de m im , aplaudia a dist inção, e recordou, a
propósit o, os prim eiros at os polít icos de Pio I X, grandes esperanças da I t ália; m as
ninguém pegou do assunt o; o principal da hora e do lugar era o m eu velho m est re
de lat im . Eu, volt ando a m im do receio, ent endi que devia cum prim ent á- lo
t am bém , e est e aplauso não lhe foi m enos ao coração que os out ros. Bat eu- m e na
bochecha pat ernalm ent e, e acabou dando- m e férias. Era m uit a felicidade para
um a só hora. Um beij o e férias! Creio que o m eu rost o disse ist o m esm o, porque
t io Cosm e, sacudindo a barriga, cham ou- m e peralt a; m as José Dias corrigiu a
alegria:
— Não t em que fest ej ar a vadiação; o lat im sem pre lhe há de ser preciso, ainda
que não venha a ser padre.
Conheci aqui o m eu hom em . Era a prim eira palavra, a sem ent e lançada à t erra,
assim de passagem , com o para acost um ar os ouvidos da fam ília. Minha m ãe sorriu
para m im , cheia de am or e de t rist eza, m as respondeu logo:
— Há de ser padre, e padre bonit o.
— Não se esqueça, m ana Glória, e prot onot ário t am bém . Prot onot ário apost ólico.
— O prot onot ário Sant iago, acent uou Cabral.
Se a int enção do m eu m est re de lat im era ir acost um ando ao uso do t ít ulo com o
nom e, não sei bem ; o que sei é que quando ouvi o m eu nom e ligado a t al t ít ulo,
deu- m e vont ade de dizer um desaforo. Mas a vont ade aqui foi ant es um a idéia,
um a idéia sem língua, que se deixou ficar quiet a e m uda, t al com o daí a pouco
out ras idéias... Mas essas pedem um capít ulo especial. Rem at em os est e dizendo
que o m est re de lat im falou algum t em po da m inha ordenação eclesiást ica, ainda
que sem grande int eresse. Ele buscava um assunt o alheio para se m ost rar
esquecido da própria glória, m as era est a que o deslum brava na ocasião. Era um
velho m agro, sereno, dot ado de qualidades boas. Alguns defeit os t inha; o m ais
excelso deles era ser guloso, não propriam ent e glut ão; com ia pouco, m as
est im ava o fino e o raro, e a nossa cozinha, se era sim ples, era m enos pobre que
a dele. Assim , quando m inha m ãe lhe disse que viesse j ant ar, a fim de se lhe fazer
um a saúde, os olhos com que aceit ou seriam de prot onot ário, m as não eram
apost ólicos. E para agradar a m inha m ãe, novam ent e pegou em m im ,
descrevendo o m eu fut uro eclesiást ico, e queria saber se ia para o sem inário
agora, no ano próxim o, e oferecia- se a falar ao " senhor bispo" , t udo m archet ado
do " prot onot ário Sant iago."
CAPÍ TULO XXXVI
I D ÉI A SEM PERN AS E I D ÉI A SEM BRAÇOS
Deixei- os, a pret ext o de brincar, e fui- m e out ra vez a pensar na avent ura da
m anhã. Era o que m elhor podia fazer, sem lat im , e at é com lat im . Ao cabo de
cinco m inut os, lem brou- m e ir correndo à casa vizinha, agarrar Capit u, desfazer- lhe
as t ranças, refazê- las e concluí- las daquela m aneira part icular, boca sobre boca. É
ist o, vam os, é ist o... I déia só! idéia sem pernas! As out ras pernas não queriam
correr nem andar. Muit o depois é que saíram vagarosam ent e e levaram - m e à casa
de Capit u. Quando ali cheguei, dei com ela na sala, na m esm a sala, sent ada na
m arquesa, alm ofada no regaço, cosendo em paz. Não m e olhou de rost o, m as a
furt o e a m edo, ou, se preferes a fraseologia do agregado, oblíqua e dissim ulada.
As m ãos pararam , depois de encravada a agulha no pano. Eu, do lado opost o da
m esa, não sabia que fizesse; e out ra vez m e fugiram as palavras que t razia. Assim
gast am os alguns m inut os com pridos, at é que ela deixou int eiram ent e a cost ura,
ergueu- se e esperou- m e. Fui t er com ela, e pergunt ei se a m ãe havia dit o algum a
coisa; respondeu- m e que não. A boca com que respondeu era t al que cuido haverm e provocado um gest o de aproxim ação. Cert o é que Capit u recuou um pouco.
Era ocasião de pegá- la, puxá- la, beij á- la... I déia só! idéia sem braços! Os m eus
ficaram caídos e m ort os. Não conhecia nada da Escrit ura. Se conhecesse, é
provável que o espírit o de Sat anás m e fizesse dar à língua m íst ica do Cânt ico um
sent ido diret o e nat ural. Ent ão obedeceria ao prim eiro versículo: " Aplique ele os
lábios, dando- m e o ósculo da sua boca" . E pelo que respeit a aos braços, que t inha
inert es, bast aria cum prir o vers. 6.° do cap. I I : " A sua m ão esquerda se pôs j á
debaixo da m inha cabeça, e a sua m ão direit a m e abraçará depois" . Vedes aí a
cronologia dos gest os. Era só execut á- la; m as ainda que eu conhecesse o t ext o, as
at it udes de Capit u eram agora t ão ret raídas, que não sei se não cont inuaria
parado. Foi ela, ent ret ant o, que m e t irou daquela sit uação.
CAPÍ TULO XXXVI I
A ALM A É CH EI A D E M I STÉRI OS
— Padre Cabral est ava esperando há m uit o t em po?
— Hoj e não dei lição; t ive férias.
Expliquei- lhe o m ot ivo das férias. Cont ei- lhe t am bém que o Padre Cabral falara da
m inha ent rada no sem inário, apoiando a resolução de m inha m ãe, e disse dele
coisas feias e duras. Capit u reflet iu algum t em po, e acabou pergunt ando- m e se
podia ir cum prim ent ar o padre, à t arde, em m inha casa.
— Pode, m as para quê?
— Papai nat uralm ent e há de querer ir t am bém , m as é m elhor que ele vá à casa do
padre, é m ais bonit o. Eu não, que j á sou m eia m oça, concluiu rindo.
O riso anim ou- m e. As palavras pareciam ser um a t roça consigo m esm a, um a vez
que, desde m anhã, era m ulher, com o eu era hom em . Achei- lhe graça e, para dizer
t udo, quis provar- lhe que era m oça int eira. Peguei- lhe levem ent e na m ão direit a,
depois na esquerda, e fiquei assim pasm ado e t rêm ulo. Era a idéia com m ãos.
Quis puxar as de Capit u, para obrigá- la a vir at rás delas, m as ainda agora a ação
não respondeu à int enção. Cont udo, achei- m e fort e e at revido. Não im it ava
ninguém ; não vivia com rapazes, que m e ensinassem anedot as de am or. Não
conhecia a violação de Lucrécia. Dos rom anos apenas sabia que falavam pela
art inha do Padre Pereira e eram pat rícios de Pôncio Pilat os. Não nego que o final
do pent eado da m anhã era um grande passo no cam inho da m ovim ent ação
am orosa, m as o gest o de ent ão foi j ust am ent e o cont rário dest e. De m anhã, ela
derreou a cabeça, agora fugia- m e; nem é só nisso que os lances diferiam ; em
out ro pont o, parecendo haver repet ição, houve cont rast e.
Penso que am eacei puxá- la a m im . Não j uro, com eçava a est ar t ão alvoroçado,
que não pude t er t oda a consciência dos m eus at os; m as concluo que sim , porque
ela recuou e quis t irar as m ãos das m inhas; depois, t alvez por não poder recuar
m ais, colocou um dos pés adiant e e o out ro at rás, e fugiu com o bust o. Foi est e
gest o que m e obrigou a ret er- lhe as m ãos com força. O bust o afinal cansou e
cedeu, m as a cabeça não quis ceder t am bém , e caída para t rás, inut ilizava t odos
os m eus esforços, porque eu j á fazia esforços, leit or am igo. Não conhecendo a
lição do Cânt ico, não m e acudiu est ender a m ão esquerda por baixo da cabeça
dela; dem ais, est e gest o supõe um acordo de vont ades, e Capit u, que m e resist ia
agora, aproveit aria o gest o para arrancar- se à out ra m ão e fugir- m e int eiram ent e.
Ficam os naquela lut a, sem est répit o, porque apesar do at aque e da defesa, não
perdíam os a caut ela necessária para não serm os ouvidos lá de dent ro; a alm a é
cheia de m ist érios. Agora sei que a puxava; a cabeça cont inuou a recuar; at é que
cansou; m as ent ão foi a vez da boca. A boca de Capit u iniciou um m ovim ent o
inverso, relat ivam ent e à m inha, indo para um lado, quando eu a buscava do out ro
opost o. Naquele desencont ro est ivem os, sem que ousasse um pouco m ais, e
bast aria um pouco m ais...
Nist o ouvim os bat er à port a e falar no corredor. Era o pai de Capit u, que volt ava
da repart ição um pouco m ais cedo, com o usava às vezes. " Abre, Nanat a! Capit u,
abre! " Aparent em ent e era o m esm o lance da m anhã, quando a m ãe deu conosco,
m as só aparent em ent e; verdade, era out ro. Considerai que de m anhã t udo est ava
acabado, e o passo de D. Fort unat a foi um aviso para que nos com puséssem os.
Agora lut ávam os com as m ãos presas, e nada est ava sequer com eçado.
Ouvim os o ferrolho da port a que dava para o corredor int erno; era a m ãe que
abria. Eu, um a vez que confesso t udo, digo aqui que não t ive t em po de solt ar as
m ãos da m inha am iga; pensei nisso, cheguei a t ent á- lo, m as Capit u, ant es que o
pai acabasse de ent rar, fez um gest o inesperado, pousou a boca na m inha boca, e
deu de vont ade o que est ava a recusar à força. Repit o, a alm a é cheia de
m ist érios.
CAPÍ TULO XXXVI I I
QUE SUSTO, M EU D EUS!
Quando Pádua, vindo pelo int erior, ent rou na sala de visit as, Capit u, em pé, de
cost as para m im , inclinada sobre a cost ura, com o a recolhê- la, pergunt ava em voz
alt a:
— Mas, Bent inho, que é prot onot ário apost ólico?
— Ora, vivam ! exclam ou o pai.
— Que sust o, m eu Deus!
Agora é que o lance é o m esm o; m as se cont o aqui, t ais quais, ou dois lances de
há quarent a anos, é para m ost rar que Capit u não se dom inava só em presença da
m ãe; o pai não lhe m et eu m ais m edo. No m eio de um a sit uação que m e at ava a
língua, usava da palavra com a m aior ingenuidade dest e m undo. A m inha
persuasão é que o coração não lhe bat ia m ais nem m enos. Alegou sust o, e deu à
cara um ar m eio enfiado; m as eu, que sabia t udo, vi que era m ent ira e fiquei com
invej a. Foi logo falar ao pai, que apert ou a m inha m ão, e quis saber por que a filha
falava em prot onot ário apost ólico. Capit u repet iu- lhe o que ouvira de m im , e
opinou logo que o pai devia ir cum prim ent ar o padre em casa dele; ela iria à
m inha. E coligindo os pet rechos da cost ura, enfiou pelo corredor, bradando
infant ilm ent e:
— Mam ãe, j ant ar, papai chegou!
CAPÍ TULO XXXI X
A VOCAÇÃO
Padre Cabral est ava naquela prim eira hora das honras em que as m ínim as
congrat ulações valem por odes. Tem po chega em que os dignificados recebem os
louvores com o um t ribut o usual, cara m ort a, sem agradecim ent os. O alvoroço da
prim eira hora é m elhor; esse est ado de alm a que vê na inclinação do arbust o,
t ocado do vent o, um parabém da flora universal, t raz sensações m ais ínt im as e
finas que qualquer out ro. Cabral ouviu as palavras de Capit u com infinit o prazer.
— Obrigado, Capit u, m uit o obrigado; est im o que você gost e t am bém . Papai est á
bom ? E m am ãe? A você não se pergunt a; essa cara é m esm o de quem vende
saúde. E com o vam os de rezas?
A t odas as pergunt as, Capit u ia respondendo pront am ent e e bem . Trazia um
vest idinho m elhor e os sapat os de sair. Não ent rou com a fam iliaridade do
cost um e, det eve- se um inst ant e à port a da sala, ant es de ir beij ar a m ão a m inha
m ãe e ao padre. Com o desse a est e, duas vezes em cinco m inut os, o t ít ulo de
prot onot ário, José Dias, para se desforrar da concorrência, fez um pequeno
discurso em honra " ao coração pat ernal e august íssim o de Pio I X."
— Você é um grande prosa, disse t io Cosm e, quando ele acabou.
José Dias sorriu sem vexam e. Padre Cabral confirm ou os louvores do agregado,
sem os seus superlat ivos; ao que est e acrescent ou que o Cardeal Mast ai
evident em ent e fora t alhado para a t iara desde o princípio dos t em pos. E,
piscando- m e o olho, concluiu:
— A vocação é t udo. O est ado eclesiást ico é perfeit íssim o, cont ant o que o
sacerdot e venha j á dest inado do berço. Não havendo vocação, falo de vocação
sincera e real, um j ovem pode m uit o bem est udar as let ras hum anas, que t am bém
são út eis e honradas.
Padre Cabral ret orquia:
— A vocação é m uit o, m as o poder de Deus é soberano. Um hom em pode não t er
gost o à igrej a e at é persegui- la, e um dia a voz de Deus lhe fala, e ele sai
apóst olo; vej a São Paulo.
— Não cont est o, m as o que eu digo é out ra coisa. O que eu digo é que se pode
m uit o bem servir a Deus sem ser padre, cá fora; pode- se ou não se pode?
— Pode- se.
— Pois ent ão! exclam ou José Dias t riunfalm ent e, olhando em volt a de si. Sem
vocação é que não há bom padre, e em qualquer profissão liberal se serve a Deus,
com o t odos devem os.
— Perfeit am ent e, m as vocação não é só do berço que se t raz.
— Hom em , é a m elhor.
— Um m oço sem gost o nenhum à vida eclesiást ica pode acabar por ser m uit o bom
padre; t udo é que Deus o det erm ine. Não m e quero dar por m odelo, m as aqui
est ou eu que nasci com a vocação da Medicina; m eu padrinho, que era coadj ut or
de Sant a Rit a, t eim ou com m eu pai para que m e m et esse no sem inário; m eu pai
cedeu. Pois, senhor, t om ei t al gost o aos est udos e à com panhia dos padres, que
acabei ordenando- m e. Mas, suponha que não acont ecia assim , e que eu não
m udava de vocação, o que é que acont ecia? Tinha est udado no sem inário algum as
m at érias que é bom saber, e são sem pre m elhor ensinadas naquelas casas.
Prim a Just ina int erveio:
— Com o? Ent ão pode- se ent rar para o sem inário e não sair padre?
Padre Cabral respondeu que sim , que se podia, e, volt ando- se para m im , falou da
m inha vocação, que era m anifest a; os m eus brinquedos foram sem pre de igrej a, e
eu adorava os ofícios divinos. A prova não provava; t odas as crianças do m eu
t em po eram devot as. Cabral acrescent ou que o reit or de São José, a quem cont ara
ult im am ent e a prom essa de m inha m ãe, t inha o m eu nascim ent o por m ilagre; ele
era da m esm a opinião. Capit u, cosida às saias de m inha m ãe, não at endia aos
olhos ansiosos que eu lhe m andava; t am bém não parecia escut ar a conversação
sobre o sem inário e suas conseqüências, e, aliás, decorou o principal, com o vim a
saber depois. Duas vezes fui à j anela, esperando que ela fosse t am bém , e
ficássem os à vont ade, sozinhos, at é acabar o m undo, se acabasse, m as Capit u
não m e apareceu. Não deixou m inha m ãe, senão para ir em bora. Eram avem arias, despediu- se.
— Vai com ela, Bent inho, disse m inha m ãe.
— Não precisa, não, D. Glória, acudiu ela rindo, eu sei o cam inho. Adeus, Sr.
prot onot ário...
— Adeus, Capit u.
Tendo dado um passo no sent ido de at ravessar a sala, é claro que o m eu dever, o
m eu gost o, t odos os im pulsos da idade e da ocasião eram at ravessá- la de t odo,
seguir a vizinha corredor fora, descer à chácara, ent rar no quint al, dar- lhe t erceiro
beij o, e despedir- m e. Não m e im port ou a recusa, que cuidei sim ulada, e enfiei
pelo corredor; m as, Capit u que ia depressa, est acou e fez- m e sinal que volt asse.
Não obedeci; cheguei- m e a ela.
— Não venha, não; am anhã falarem os.
— Mas eu queria dizer a você...
— Am anhã.
— Escut a!
— Fica!
Falava baixinho; pegou- m e na m ão, e pôs o dedo na boca. Um a pret a, que veio de
dent ro acender o lam pião do corredor, vendo- nos naquela at it ude quase às
escuras, riu de sim pat ia e m urm urou, em t om que ouvíssem os, algum a coisa que
não ent endi bem nem m al. Capit u segredou- m e que a escrava desconfiara, e ia
t alvez cont ar às out ras. Novam ent e m e int im ou que ficasse, e ret irou- se; eu
deixei- m e est ar parado, pregado, agarrado ao chão.
CAPÍ TULO XL
UM A ÉGUA
Ficando só, reflet i algum t em po, e t ive um a fant asia. Já conheceis as m inhas
fant asias. Cont ei- vos a da visit a im perial; disse- vos a dest a casa do Engenho
Novo, reproduzindo a de Mat a- cavalos... A im aginação foi a com panheira de t oda
a m inha exist ência, viva, rápida, inquiet a, algum a vez t ím ida e am iga de em pacar,
as m ais delas capaz de engolir cam panhas e cam panhas, correndo. Creio haver
lido em Tácit o que as éguas iberas concebiam pelo vent o; se não foi nele, foi
nout ro aut or ant igo, que ent endeu guardar essa crendice nos seus livros. Nest e
part icular, a m inha im aginação era um a grande égua ibera; a m enor brisa lhe
dava um pot ro, que saía logo cavalo de Alexandre; m as deixem os de m et áforas
at revidas e im próprias dos m eus quinze anos. Digam os o caso sim plesm ent e. A
fant asia daquela hora foi confessar a m inha m ãe os m eus am ores para lhe dizer
que não t inha vocação eclesiást ica. A conversa sobre vocação t ornava- m e agora
t oda int eira, e, ao passo que m e assust ava, abria- m e um a port a de saída. " Sim , é
ist o, pensei; vou dizer a m am ãe que não t enho vocação, e confesso o nosso
nam oro; se ela duvidar, cont o- lhe o que se passou out ro dia, o pent eado e o
rest o..."
CAPÍ TULO XLI
A AUD I ÊN CI A SECRETA
O rest o fez- m e ficar m ais algum t em po, no corredor, pensando. Vi ent rar o Dout or
João da Cost a, e preparou- se logo o volt aret e do cost um e. Minha m ãe saiu da
sala, e, dando com igo, pergunt ou se acom panhara Capit u.
— Não, senhora, ela foi só.
E quase invest indo para ela:
— Mam ãe, eu queria dizer- lhe um a coisa.
— Que é?
Toda assust ada, quis saber o que é que m e doía, se a cabeça, se o peit o, se o
est ôm ago, e apalpava- m e a t est a para ver se t inha febre.
— Não t enho nada, não, senhora.
— Mas ent ão que é?
— É um a coisa, m am ãe... Mas, escut e, olhe, é m elhor depois do chá; logo... Não é
nada m au; m am ãe assust a- se por t udo; não é coisa de cuidado.
— Não é m olést ia?
— Não, senhora.
— É, isso é volt a de const ipação. Disfarças para não t om ar suadouro, m as t u est ás
const ipado; conhece- se pela voz.
Tent ei rir, para m ost rar que não t inha nada. Nem por isso perm it iu adiar a
confidência, pegou em m im , levou- m e ao quart o dela, acendeu vela, e ordenoum e que lhe dissesse t udo. Ent ão eu pergunt ei- lhe, para principiar, quando é que ia
para o sem inário.
— Agora só para o ano, depois das férias.
— Vou... para ficar?
— Com o ficar?
— Não volt o para casa?
— Volt as aos sábados e pelas férias; é m elhor. Quando t e ordenares padre, vens
m orar com igo.
Enxuguei os olhos e o nariz. Ela afagou- m e, depois quis repreender- m e, m as creio
que a voz lhe t rem ia, e pareceu- m e que t inha os olhos úm idos. Disse- lhe que
t am bém sent ia a nossa separação. Negou que fosse separação; era só algum a
ausência, por causa dos est udos; só os prim eiros dias. Em pouco t em po eu m e
acost um aria aos com panheiros e aos m est res, e acabaria gost ando de viver com
eles.
— Eu só gost o de m am ãe.
Não houve cálculo nest a palavra, m as est im ei dizê- la, por fazer crer que ela era a
m inha única afeição; desviava as suspeit as de cim a de Capit u. Quant as int enções
viciosas há assim que em barcam , a m eio cam inho, num a frase inocent e e pura!
Chega a fazer suspeit ar que a m ent ira é, m uit a vez, t ão involunt ária com o a
t ranspiração. Por out ro lado, leit or am igo, not a que eu queria desviar as suspeit as
de cim a de Capit u, quando havia cham ado m inha m ãe j ust am ent e para confirm álas; m as as cont radições são dest e m undo. A verdade é que m inha m ãe era
cândida com o a prim eira aurora, ant erior ao prim eiro pecado; nem por sim ples
int uição era capaz de deduzir um a coisa de out ra, ist o é, não concluiria da m inha
repent ina oposição que eu andasse em segredinhos com Capit u, com o lhe dissera
José Dias. Calou- se durant e alguns inst ant es; depois replicou- m e sem im posição
nem aut oridade, o que m e veio anim ando à resist ência. Daí o falar- lhe na vocação
que se discut ira naquela t arde, e que eu confessei não sent ir em m im .
— Mas t u gost avas t ant o de ser padre, disse ela; não t e lem bras que at é pedias
para ir ver sair os sem inarist as de São José, com as suas bat inas? Em casa,
quando José Dias t e cham ava Reverendíssim o, t u rias com t ant o gost o! Com o é
que agora?... Não creio, não, Bent inho. E depois... Vocação? Mas a vocação vem
com o cost um e, cont inuou repet indo as reflexões que ouvira ao m eu professor de
lat im .
Com o eu buscasse cont est á- la, repreendeu- m e sem aspereza, m as com algum a
força, e eu t ornei ao filho subm isso que era. Depois, ainda falou gravem ent e e
longam ent e sobre a prom essa que fizera; não m e disse as circunst âncias, nem a
ocasião, nem os m ot ivos dela, coisas que só vim a saber m ais t arde. Afirm ou o
principal, ist o é, que a havia de cum prir, em pagam ent o a Deus.
— Nosso Senhor m e acudiu, salvando a t ua exist ência, não lhe hei de m ent ir nem
falt ar, Bent inho; são coisas que não se fazem sem pecado, e Deus que é grande e
poderoso, não m e deixaria assim , não, Bent inho; eu sei que seria cast igada e bem
cast igada. Ser padre é bom e sant o; você conhece m uit os, com o o Padre Cabral,
que vive t ão feliz com a irm ã; um t io m eu t am bém foi padre, e escapou de ser
bispo, dizem ... Deixa de m anha, Bent inho.
Creio que os olhos que lhe deit ei foram t ão queixosos, que ela em endou logo a
palavra; m anha, não, não podia ser m anha, sabia m uit o bem que eu era am igo
dela, e não seria capaz de fingir um sent im ent o que não t ivesse. Moleza é o que
queria dizer, que m e deixasse de m oleza, que m e fizesse hom em e obedecesse ao
que cum pria, em benefício dela e para bem da m inha alm a. Todas essas coisas e
out ras foram dit as um pouco at ropeladam ent e, e a voz não lhe saía clara, m as
velada e esganada. Vi que a em oção dela era out ra vez grande, m as não recuava
dos seus propósit os, e avent urei- m e a pergunt ar- lhe:
— E se m am ãe pedisse a Deus que a dispensasse da prom essa?
— Não, não peço. Est ás t ont o, Bent inho? E com o havia de saber que Deus m e
dispensava?
— Talvez em sonho; eu sonho às vezes com anj os e sant os.
— Tam bém eu, m eu filho; m as é inút il... Vam os, é t arde; vam os para a sala. Est á
ent endido: no prim eiro ou no segundo m ês do ano que vem , irás para o sem inário.
O que eu quero é que saibas bem os livros que est ás est udando; é bonit o, não só
para t i, com o para o Padre Cabral. No sem inário há int eresse em conhecer- t e,
porque o Padre Cabral fala de t i com ent usiasm o.
Cam inhou para a port a, saím os am bos. Ant es de sair, volt ou- se para m im , e quase
a vi salt ar- m e ao colo e dizer- m e que não seria padre. Est e era j á o seu desej o
ínt im o, à proporção que se aproxim ava o t em po. Quisera um m odo de pagar a
dívida cont raída, out ra m oeda, que valesse t ant o ou m ais, e não achava nenhum a.
CAPÍ TULO XLI I
CAPI TU REFLETI N D O
No dia seguint e fui à casa vizinha, logo que pude. Capit u despedia- se de duas
am igas que t inham ido visit á- la, Paula e Sancha, com panheiras de colégio, aquela
de quinze, est a de dezesset e anos, a prim eira filha de um m édico, a segunda de
um com erciant e de obj et os am ericanos. Est ava abat ida, t razia um lenço at ado na
cabeça; a m ãe cont ou- m e que fora excesso de leit ura na véspera, ant es e depois
do chá, na sala e na cam a, at é m uit o depois da m eia- noit e, e com lam parina...
— Se eu acendesse vela, m am ãe zangava- se. Já est ou boa.
E com o desat asse o lenço, a m ãe disse- lhe t im idam ent e que era m elhor at á- lo,
m as Capit u respondeu que não era preciso, est ava boa.
Ficam os sós na sala; Capit u confirm ou a narração da m ãe, acrescent ando que
passara m al por causa do que ouvira em m inha casa. Tam bém eu lhe cont ei o que
se dera com igo, a ent revist a com m inha m ãe, as m inhas súplicas, as lágrim as
dela, e por fim as últ im as respost as decisivas; dent ro de dois ou t rês m eses iria
para o sem inário. Que faríam os agora? Capit u ouvia- m e com at enção sôfrega,
depois som bria; quando acabei, respirava a cust o, com o prest es a est alar de
cólera, m as cont eve- se.
Há t ant o t em po que ist o sucedeu que não posso dizer com segurança se chorou
deveras, ou se som ent e enxugou os olhos; cuido que os enxugou som ent e. Vendolhe o gest o, peguei- lhe na m ão para anim á- la, m as t am bém eu precisava ser
anim ado. Caím os no canapé, e ficam os a olhar para o ar. Mint o; ela olhava para o
chão. Fiz o m esm o, logo que a vi assim ... Mas eu creio que Capit u olhava para
dent ro de si m esm a, enquant o que eu fit ava deveras o chão, o roído das fendas,
duas m oscas andando e um pé de cadeira lascada. Era pouco, m as dist raía- m e da
aflição. Quando t ornei a olhar para Capit u, vi que não se m exia, e fiquei com t al
m edo que a sacudi brandam ent e. Capit u t ornou cá fora e pediu- m e que out ra vez
lhe cont asse o que se passara com m inha m ãe. Sat isfi- la, at enuando o t ext o dest a
vez, para não am ofiná- la. Não m e cham es dissim ulado, cham a- m e com passivo; é
cert o que receava perder Capit u, se lhe m orressem as esperanças t odas, m as
doía- m e vê- la padecer. Agora, a verdade últ im a, a verdade das verdades, é que j á
m e arrependia de haver falado a m inha m ãe, ant es de qualquer t rabalho efet ivo
por part e de José Dias; exam inando bem , não quisera t er ouvido um desengano
que eu reput ava cert o, ainda que dem orado. Capit u reflet ia, reflet ia, reflet ia...
CAPÍ TULO XLI I I
VOCÊ TEM M ED O?
De repent e, cessando a reflexão, fit ou em m im os olhos de ressaca, e pergunt oum e se t inha m edo.
— Medo?
— Sim , pergunt o se você t em m edo.
— Medo de quê?
— Medo de apanhar, de ser preso, de brigar, de andar, de t rabalhar...
Não ent endi. Se ela t em dit o sim plesm ent e: " Vam os em bora! " pode ser que eu
obedecesse ou não; em t odo caso, ent enderia. Mas aquela pergunt a assim , vaga e
solt a, não pude at inar o que era.
— Mas... não ent endo. De apanhar?
— Sim .
— Apanhar de quem ? Quem é que m e dá pancada?
Capit u fez um gest o de im paciência. Os olhos de ressaca não se m exiam e
pareciam crescer. Sem saber de m im , e, não querendo int errogá- la novam ent e,
ent rei a cogit ar donde m e viriam pancadas, e por que, e t am bém por que é que
seria preso, e quem é que m e havia de prender. Valha- m e Deus! vi de im aginação
o alj ube, um a casa escura e infect a. Tam bém vi a presiganga, o quart el dos
Barbonos e a Casa de Correção. Todas essas belas inst it uições sociais m e
envolviam no seu m ist ério, sem que os olhos de ressaca de Capit u deixassem de
crescer para m im , a t al pont o que as fizeram esquecer de t odo. O erro de Capit u
foi não deixá- los crescer infinit am ent e, ant es dim inuir at é às dim ensões norm ais, e
dar- lhes o m ovim ent o do cost um e. Capit u t ornou ao que era, disse- m e que est ava
brincando, não precisava afligir- m e, e, com um gest o cheio de graça, bat eu- m e na
cara, sorrindo, e disse:
— Medroso!
— Eu? Mas...
— Não é nada, Bent inho. Pois quem é que há de dar pancada ao prender você?
Desculpe, que eu hoj e est ou m eia m aluca; quero brincar, e...
— Não, Capit u; você não est á brincando; nest a ocasião, nenhum de nós t em
vont ade de brincar.
— Tem razão, foi só m aluquice; at é logo.
— Com o at é logo?
— Est á- m e volt ando a dor de cabeça; vou bot ar um a rodela de lim ão nas font es.
Fez o que disse, e at ou o lenço out ra vez na t est a. Em seguida, acom panhou- m e
ao quint al para se despedir de m im ; m as, ainda aí nos det ivem os por alguns
m inut os, sent ados sobre a borda do poço. Vent ava, o céu est ava cobert o. Capit u
falou novam ent e da nossa separação, com o de um fat o cert o e definit ivo, por m ais
que eu, receoso disso m esm o, buscasse agora razões para anim á- la. Capit u,
quando não falava, riscava no chão, com um pedaço de t aquara, narizes e perfis.
Desde que se m et era a desenhar, era um a das suas diversões; t udo lhe servia de
papel e lápis. Com o m e lem brassem os nossos nom es abert os por ela no m uro,
quis fazer o m esm o no chão, e pedi- lhe a t aquara. Não m e ouviu ou não m e
at endeu.
CAPÍ TULO XLI V
O PRI M EI RO FI LH O
— Dê cá, deixe escrever um a coisa.
Capit u olhou para m im , m as de um m odo que m e fez lem brar a definição de José
Dias, oblíquo e dissim ulado; levant ou o olhar, sem levant ar os olhos. A voz, um
t ant o sum ida, pergunt ou- m e:
— Diga- m e um a coisa, m as fale verdade, não quero disfarce; há de responder com
o coração na m ão.
— Que é? Diga.
— Se você t ivesse de escolher ent re m im e sua m ãe, a quem é que escolhia?
— Eu?
Fez- m e sinal que sim .
— Eu escolhia... m as para que escolher? Mam ãe não é capaz de m e pergunt ar
isso.
— Pois sim , m as eu pergunt o. Suponha você que est á no sem inário e recebe a
not ícia de que eu vou m orrer...
— Não diga isso!
—... Ou que m e m at o de saudades, se você não vier logo, e sua m ãe não quiser
que você venha, diga- m e, você vem ?
— Venho.
— Cont ra a ordem de sua m ãe?
— Cont ra a ordem de m am ãe.
— Você deixa sem inário, deixa sua m ãe, deixa t udo, para m e ver m orrer?
— Não fale em m orrer, Capit u!
Capit u t eve um risinho descorado e incrédulo, e com a t aquara escreveu um a
palavra no chão, inclinei- m e e li: m ent iroso.
Era t ão est ranho t udo aquilo, que não achei respost a. Não at inava com a razão do
escrit o, com o não at inava com a do falado. Se m e acudisse ali um a inj úria grande
ou pequena, é possível que a escrevesse t am bém , com a m esm a t aquara, m as
não m e lem brava nada. Tinha a cabeça vazia. Ao m esm o t em po t om ei- m e de
receio de que alguém nos pudesse ouvir ou ler. Quem , se éram os sós? D.
Fort unat a chegara um a vez à port a da casa, m as ent rou logo depois. A solidão era
com plet a. Lem bra- m e que um as andorinhas passaram por cim a do quint al e foram
para os lados do m orro de Sant a Teresa; ninguém m ais. Ao longe, vozes vagas e
confusas, na rua um t ropel de best as, do lado da casa o chilrear dos passarinhos
do Pádua. Nada m ais, ou som ent e est e fenôm eno curioso, que o nom e escrit o por
ela não só m e espiava do chão com gest o escarninho, m as at é m e pareceu que
repercut ia no ar. Tive ent ão um a idéia ruim ; disse- lhe que, afinal de cont as, a vida
de padre não era m á, e eu podia aceit á- la sem grande pena. Com o desforço, era
pueril; m as eu sent ia a secret a esperança de vê- la at irar- se a m im lavada em
lágrim as. Capit u lim it ou- se a arregalar m uit o os olhos, e acabou por dizer:
— Padre é bom , não há dúvida; m elhor que padre só cônego, por causa das m eias
roxas. O roxo é cor m uit o bonit a. Pensando bem , é m elhor cônego.
— Mas não se pode ser cônego sem ser prim eiram ent e padre, disse- lhe eu
m ordendo os beiços.
— Bem ; com ece pelas m eias pret as, depois virão as roxas. O que eu não quero
perder é a sua m issa nova; avise- m e a t em po para fazer um vest ido à m oda, saia
balão e babados grandes. . . Mas t alvez nesse t em po a m oda sej a out ra. A igrej a
há de ser grande, Carm o ou São Francisco.
— Ou Candelária.
— Candelária t am bém . Qualquer serve, cont ant o que eu ouça a m issa nova. Hei
de fazer um figurão. Muit a gent e há de pergunt ar: "Quem é aquela m oça faceira
que ali est á com um vest ido t ão bonit o?" — " Aquela é D. Capit olina, um a m oça
que m orou na Rua de Mat a- cavalos...”
— Que m orou? Você vai m udar- se?
— Quem sabe onde é que há de m orar am anhã? disse ela com um t om leve de
m elancolia; m as, t ornando logo ao sarcasm o: E você no alt ar, m et ido na alva, com
a capa de ouro por cim a, cant ando... Pat er nost er...
Ah! com o eu sint o não ser um poet a rom ânt ico para dizer que ist o era um duelo
de ironias! Cont aria os m eus bot es e os dela, a graça de um e a pront idão de
out ro, e o sangue correndo, e o furor na alm a, at é ao m eu golpe final que foi est e:
— Pois sim , Capit u, você ouvirá a m inha m issa nova, m as com um a condição.
Ao que ela respondeu:
— Vossa Reverendíssim a pode falar.
— Prom et e um a coisa?
— Que é?
— Diga se prom et e.
— Não sabendo o que é, não prom et o.
— A falar verdade são duas coisas, cont inuei eu, por haver- m e acudido out ra
idéia.
— Duas? Diga quais são.
— A prim eira é que só se há de confessar com igo, para eu lhe dar a penit ência e a
absolvição. A segunda é que...
— A prim eira est á prom et ida, disse ela vendo- m e hesit ar, e acrescent ou que
esperava a segunda.
Palavra que m e cust ou, e ant es não m e chegasse a sair da boca; não ouviria o que
ouvi, e não escreveria aqui um a coisa que vai t alvez achar incrédulos.
— A segunda... sim ... é que... Prom et e- m e que sej a eu o padre que case você?
— Que m e case? disse ela um t ant o com ovida.
Logo depois fez descair os lábios, e abanou a cabeça.
— Não, Bent inho, disse, seria esperar m uit o t em po; você não vai ser padre j á
am anhã, leva m uit os anos... Olhe, prom et o out ra coisa; prom et o que há de
bat izar o m eu prim eiro filho.
CAPÍ TULO XLV
ABAN E A CABEÇA, LEI TOR
Abane a cabeça leit or; faça t odos os gest os de incredulidade. Chegue a deit ar fora
est e livro, se o t édio j á o não obrigou a isso ant es; t udo é possível. Mas, se o não
fez ant es e só agora, fio que t orne a pegar do livro e que o abra na m esm a
página, sem crer por isso na veracidade do aut or. Todavia, não há nada m ais
exat o. Foi assim m esm o que Capit u falou, com t ais palavras e m aneiras. Falou do
prim eiro filho, com o se fosse a prim eira boneca.
Quant o ao m eu espant o, se t am bém foi grande, veio de m ist ura com um a
sensação esquisit a. Percorreu- m e um fluido. Aquela am eaça de um prim eiro filho,
o prim eiro filho de Capit u, o casam ent o dela com out ro, port ant o, a separação
absolut a, a perda, a aniquilação, t udo isso produzia um t al efeit o, que não achei
palavra nem gest o; fiquei est úpido. Capit u sorria; eu via o prim eiro filho brincando
no chão...
CAPÍ TULO XLVI
AS PAZES
As pazes fizeram - se com o a guerra, depressa. Buscasse eu nest e livro a m inha
glória, e diria que as negociações part iram de m im ; m as não, foi ela que as
iniciou. Alguns inst ant es depois, com o eu est ivesse cabisbaixo, ela abaixou
t am bém a cabeça, m as volt ando os olhos para cim a a fim de ver os m eus. Fiz- m e
de rogado; depois quis levant ar- m e para ir em bora, m as nem m e levant ei, nem
sei se iria. Capit u fit ou- m e uns olhos t ão t ernos, e a posição os fazia t ão súplices,
que m e deixei ficar, passei- lhe o braço pela cint ura, ela pegou- m e na pont a dos
dedos, e...
Out ra vez D. Fort unat a apareceu à port a da casa; não sei para que, se nem m e
deixou t em po de puxar o braço; desapareceu logo. Podia ser um sim ples descargo
de consciência, um a cerim ônia, com o as rezas de obrigação, sem devoção, que se
dizem de t ropel; a não ser que fosse para cert ificar aos próprios olhos a realidade
que o coração lhe dizia...
Fosse o que fosse, o m eu braço cont inuou a apert ar a cint ura da filha, e foi assim
que nos pacificam os. O bonit o é que cada um de nós queria agora as culpas para
si, e pedíam os reciprocam ent e perdão. Capit u alegava a insônia, a dor de cabeça,
o abat im ent o do espírit o, e finalm ent e " os seus calundus” .Eu, que era m uit o
chorão por esse t em po, sent ia os olhos m olhados... Era am or puro, era efeit o dos
padecim ent os da am iguinha, era a t ernura da reconciliação.
CAPÍ TULO XLVI I
" A SEN H ORA SAI U”
— Est á bom , acabou, disse eu finalm ent e; m as, explique- m e só um a coisa, por
que é que você m e pergunt ou se eu t inha m edo de apanhar?
— Não foi por nada, respondeu Capit u, depois de algum a hesit ação... Para que
bulir nisso?
— Diga sem pre. Foi por causa do sem inário?
— Foi; ouvi dizer que lá dão pancada... Não? Eu t am bém não creio.
A explicação agradou- m e; não t inha out ra. Se, com o penso, Capit u não disse a
verdade, força é reconhecer que não podia dizê- la, e a m ent ira é dessas criadas
que se dão pressa em responder às visit as que " a senhora saiu" , quando a
senhora não quer falar a ninguém . Há nessa cum plicidade um gost o part icular; o
pecado em com um iguala por inst ant es a condição das pessoas, não cont ando o
prazer que dá a cara das visit as enganadas, e as cost as com que elas descem ... A
verdade não saiu, ficou em casa, no coração de Capit u, cochilando o seu
arrependim ent o. E eu não desci t rist e nem zangado; achei a criada galant e,
apet ecível, m elhor que a am a.
As andorinhas vinham agora em sent ido cont rário, ou não seriam as m esm as. Nós
é que éram os os m esm os; ali ficam os, som ando as nossas ilusões, os nossos
t em ores, com eçando j á a som ar as nossas saudades.
CAPÍ TULO XLVI I I
JURAM EN TO D O POÇO
— Não! exclam ei de repent e.
— Não quê?
Tinha havido alguns m inut os de silêncio, durant e os quais reflet i m uit o e acabei
por um a idéia; o t om da exclam ação, porém , foi t ão alt o que espant ou a m inha
vizinha.
— Não há de ser assim , cont inuei. Dizem que não est am os em idade de casar, que
som os crianças, criançolas, — j á ouvi dizer criançolas. Bem ; m as dois ou t rês anos
passam depressa. Você j ura um a coisa? Jura que só há de casar com igo?
Capit u não hesit ou em j urar, e at é lhe vi as faces verm elhas de prazer. Jurou duas
vezes e um a t erceira:
— Ainda que você case com out ra, cum prirei o m eu j uram ent o, não casando
nunca.
— Que eu case com out ra?
— Tudo pode ser, Bent inho. Você pode achar out ra m oça que lhe queira,
apaixonar- se por ela e casar. Quem sou eu para você lem brar- se de m im nessa
ocasião?
— Mas eu t am bém j uro! Juro, Capit u, j uro por Deus Nosso Senhor que só m e
casarei com você. Bast a ist o?
— Devia bast ar, disse ela; eu não m e at revo a pedir m ais. Sim , você j ura... Mas
j urem os por out ro m odo; j urem os que nos havem os de casar um com out ro, haj a
o que houver.
Com preendeis a diferença; era m ais que a eleição do cônj uge, era a afirm ação do
m at rim ônio. A cabeça da m inha am iga sabia pensar claro e depressa. Realm ent e,
a fórm ula ant erior era lim it ada, apenas exclusiva. Podíam os acabar solt eirões,
com o o sol e a lua, sem m ent ir ao j uram ent o do poço. Est a fórm ula era m elhor, e
t inha a vant agem de m e fort alecer o coração cont ra a invest idura eclesiást ica.
Juram os pela segunda fórm ula, e ficam os t ão felizes que t odo receio de perigo
desapareceu. Éram os religiosos, t ínham os o céu por t est em unha. Eu nem j á t em ia
o sem inário.
— Se t eim arem m uit o, irei; m as faço de cont a que é um colégio qualquer; não
t om o ordens.
Capit u t em ia a nossa separação, m as acabou aceit ando est e alvit re, que era o
m elhor. Não afligíam os m inha m ãe, e o t em po correria at é o pont o em que o
casam ent o pudesse fazer- se. Ao cont rário, qualquer resist ência ao sem inário
confirm aria a denúncia de José Dias. Est a reflexão não foi m inha, m as dela.
CAPÍ TULO XLI X
UM A VELA AOS SÁBAD OS
Eis aqui com o, após t ant as canseiras, t ocávam os o port o a que nos devíam os t er
abrigado logo. Não nos censures, pilot o de m á m ort e, não se navegam corações
com o os out ros m ares dest e m undo. Est ávam os cont ent es, ent ram os a falar do
fut uro. Eu prom et ia à m inha esposa um a vida sossegada e bela, na roça ou fora
da cidade. Viríam os aqui um a vez por ano. Se fosse em arrabalde, seria longe,
onde ninguém nos fosse aborrecer. A casa, na m inha opinião, não devia ser
grande nem pequena, um m eio- t erm o; plant ei- lhe flores, escolhi m óveis, um a
sege e um orat ório. Sim , havíam os de t er um orat ório bonit o, alt o, de j acarandá,
com a im agem de Nossa Senhora da Conceição. Dem orei- m e m ais nist o que no
rest o, em part e porque éram os religiosos, em part e para com pensar a bat ina que
eu ia deit ar às urt igas; m as ainda rest ava um a part e que at ribuo ao int uit o secret o
e inconscient e de capt ar a prot eção do céu. Havíam os de acender um a vela aos
sábados...
CAPÍ TULO L
UM M EI O- TERM O
Meses depois fui para o sem inário de São José. Se eu pudesse cont ar as lágrim as
que chorei na véspera e na m anhã, som aria m ais que t odas as vert idas desde
Adão e Eva. Há nist o algum a exageração; m as é bom ser enfát ico, um a ou out ra
vez, para com pensar est e escrúpulo de exat idão que m e aflige. Ent ret ant o, se eu
m e at iver só à lem brança da sensação, não fico longe da verdade; aos quinze
anos, t udo é infinit o. Realm ent e, por m ais preparado que est ivesse, padecia
m uit o. Minha m ãe t am bém padeceu, m as sofria com alm a e coração; dem ais, o
Padre Cabral achara um m eio- t erm o: experim ent ar- m e a vocação; se no fim de
dois anos, eu não revelasse vocação eclesiást ica, seguiria out ra carreira.
— As prom essas devem ser cum pridas conform e Deus quer. Suponha que Nosso
Senhor nega disposição a seu filho, e que o cost um e do sem inário não lhe dá o
gost o que m e concedeu a m im , é que a vont ade divina é out ra. A senhora não
podia pôr em seu filho, ant es de nascido, um a vocação que Nosso Senhor lhe
recusou...
Era um a concessão do padre. Dava a m inha m ãe um perdão ant ecipado, fazendo
vir do credor a relevação da dívida. Os olhos dela brilharam , m as a boca disse que
não. José Dias, não t endo alcançado ir com igo para a Europa, agarrou- se ao m ais
próxim o, e apoiou o " alvit re do Sr. prot onot ário" ; só lhe parecia que um ano era
bast ant e.
— Est ou cert o, disse ele, piscando- m e o olho, que dent ro de um ano a vocação
eclesiást ica do nosso Bent inho se m anifest a clara e decisiva. Há de dar um padre
de m ão- cheia. Tam bém , se não vier em um ano...
E a m im , m ais t arde, em part icular:
— Vá por um ano; um ano passa depressa. Se não sent ir gost o nenhum , é que
Deus não quer, com o diz o padre, e nesse caso, m eu am iguinho, o m elhor rem édio
é a Europa.
Capit u deu- m e igual conselho, quando m inha m ãe lhe anunciou a m inha ida
definit iva para o sem inário:
— Minha filha, você vai perder o seu com panheiro de criança...
Fez- lhe t ão bem est e t rat am ent o de filha ( era a prim eira vez que m inha m ãe lho
dava) , que nem t eve t em po de ficar t rist e; beij ou- lhe a m ão, e disse- lhe que j á
sabia disso por m im m esm o. Em part icular anim ou- m e a suport ar t udo com
paciência; no fim de um ano as coisas est ariam m udadas, e um ano andava
depressa. Não foi ainda a nossa despedida; est a fez- se na véspera, por um m odo
que pede capít ulo especial. O que unicam ent e digo aqui é que, ao passo que nos
prendíam os um ao out ro, ela ia prendendo m inha m ãe, fez- se m ais assídua e
t erna, vivia ao pé dela, com os olhos nela. Minha m ãe era de nat ural sim pát ico, e
igualm ent e sensível; t ant o se doía com o se aprazia de qualquer coisa. Ent rou a
achar em Capit u um a porção de graças novas, de dot es finos e raros; deu- lhe um
anel dos seus e algum as galant erias. Não consent iu em fot ografar- se, com o a
pequena lhe pedia, para lhe dar um ret rat o; m as t inha um a m iniat ura, feit a aos
vint e e cinco anos, e, depois de algum as hesit ações, resolveu dar- lha. Os olhos de
Capit u, quando recebeu o m im o, não se descrevem ; não eram oblíquos, nem de
ressaca, eram direit os, claros, lúcidos. Beij ou o ret rat o com paixão, m inha m ãe
fez- lhe a m esm a coisa a ela. Tudo ist o m e lem bra a nossa despedida.
CAPÍ TULO LI
EN TRE LUZ E FUSCO
Ent re luz e fusco, t udo há de ser breve com o esse inst ant e. Nem durou m uit o a
nossa despedida, foi o m ais que pôde, em casa dela, na sala de visit as, ant es do
acender das velas; aí é que nos despedim os de um a vez. Juram os novam ent e que
havíam os de casar um com o out ro, e não foi só o apert o de m ão que selou o
cont rat o, com o no quint al, foi a conj unção das nossas bocas am orosas... Talvez
risque ist o na im pressão, se at é lá não pensar de out ra m aneira; se pensar, fica. E
desde j á fica, porque, em verdade, é a nossa defesa. O que o m andam ent o divino
quer é que não j urem os em vão pelo sant o nom e de Deus. Eu não ia m ent ir ao
sem inário, um a vez que levava um cont rat o feit o no próprio cart ório do céu.
Quant o ao selo, Deus, com o fez as m ãos lim pas, assim fez os lábios lim pos, e a
m alícia est á ant es na t ua cabeça perversa que na daquele casal de adolescent es...
Oh! m inha doce com panheira da m eninice, eu era puro, e puro fiquei, e puro
ent rei na aula de São José, a buscar de aparência a invest idura sacerdot al, e ant es
dela a vocação. Mas a vocação eras t u, a invest idura eras t u.
CAPÍ TULO LI I
O VELH O PÁD UA
Já agora cont o t am bém os adeuses do velho Pádua. Logo cedo veio à nossa casa.
Minha m ãe disse- lhe que fosse falar- m e ao quart o.
— Dá licença? pergunt ou m et endo a cabeça pela port a.
Fui apert ar- lhe a m ão; ele abraçou- m e com t ernura.
— Sej a feliz! disse- m e. A m im e a t oda a m inha gent e creia que ficam m uit as
saudades. Todos nós est im am os m uit o ao senhor, com o m erece. Se lhe disserem
out ra coisa, não acredit e. São int rigas. Tam bém eu, quando m e casei, fui vít im a
de int rigas; desfizeram - se. Deus é grande e descobre a verdade. Se algum dia
perder sua m ãe e seu t io, — coisa que eu, por est a luz que m e alum ia, não desej o,
porque são boas pessoas, excelent es pessoas, e eu sou grat o às finezas
recebidas... Não, eu não sou com o out ros, cert os parasit as, vindos de fora para
desunião das fam ílias, aduladores baixos, não; eu sou de out ra espécie; não vivo
papando os j ant ares nem m orando em casa alheia... Enfim , são os m ais felizes!
— Por que falará assim ? pensei. Nat uralm ent e sabe que José Dias diz m al dele."
— Mas, com o ia dizendo, se algum dia perder os seus parent es, pode cont ar com a
nossa com panhia. Não é suficient e em im port ância, m as a afeição é im ensa, creia.
Padre que sej a, a nossa casa est á às suas ordens. Quero só que m e não esqueça;
não esqueça o velho Pádua...
Suspirou e cont inuou:
— Não esqueça o seu velho Pádua, e, se t em algum t rapinho que m e deixe em
lem brança, um caderno lat ino, qualquer coisa, um bot ão de colet e, coisa que j á
lhe não prest e para nada. O valor é a lem brança.
Tive um sobressalt o. Havia em brulhado em um papel um cacho dos m eus cabelos,
t ão grandes e t ão bonit os, cort ados na véspera. A int enção era levá- los a Capit u,
ao sair; m as t ive idéia de dá- lo ao pai, a filha saberia t om á- lo e guardá- lo. Peguei
do em brulho e dei- lho.
— Aqui est á, guarde.
— Um cachinho dos seus cabelos! exclam ou Pádua abrindo e fechando o
em brulho. Oh! obrigado! obrigado por m im e pela m inha gent e! Vou dá- lo à velha,
para guardá- lo, ou à pequena, que é m ais cuidadosa que a m ãe. Que lindos que
são! Com o é que se cort a um a beleza dest as? Dê cá um abraço! out ro! m ais out ro!
adeus!
Tinha os olhos úm idos deveras; levava a cara dos desenganados, com o quem
em pregou em um só bilhet e t odas as suas econom ias de esperanças, e vê sair
branco o m aldit o núm ero, — um núm ero t ão bonit o!
CAPÍ TULO LI I I
A CAM I N H O!
Fui para o sem inário. Poupa- m e as out ras despedidas. Minha m ãe apert ava- m e ao
peit o. Prim a Just ina suspirava. Talvez chorasse m al ou nada. Há pessoas a quem
as lágrim as não acodem logo nem nunca; diz- se que padecem m ais que as out ras.
Prim a Just ina disfarçava nat uralm ent e os seus padecim ent os ínt im os, em endando
os descuidos de m inha m ãe, fazendo- m e recom endações, dando ordens. Tio
Cosm e, quando eu lhe beij ei a m ão em despedida, disse- m e rindo:
— Anda lá, rapaz, volt a- m e papa!
José Dias, com post o e grave, não dizia nada a princípio; t ínham os falado na
véspera, no quart o dele, onde fui ver se era ainda possível evit ar o sem inário. Já
não era, m as deu- m e esperanças e principalm ent e anim ou- m e m uit o. Ant es de um
ano est aríam os a bordo. Com o eu achasse m uit o breve, explicou- se.
— Dizem que não é bom t em po de at ravessar o At lânt ico, vou indagar; se não for,
irem os em m arço ou abril.
— Posso est udar Medicina aqui m esm o.
José Dias correu os dedos pelos suspensórios com um gest o de im paciência,
apert ou os beiços, at é que form alm ent e rej eit ou o alvit re.
— Não duvidaria aprovar a idéia, disse ele, se na Escola de Medicina não
ensinassem , exclusivam ent e, a podridão alopat a. A alopat ia é o erro dos séculos, e
vai m orrer; é o assassinat o, é a m ent ira, é a ilusão. Se lhe disserem que pode
aprender na Escola de Medicina aquela part e da ciência com um a t odos os
sist em as, é verdade; a alopat ia é erro na t erapêut ica. Fisiologia, anat om ia,
pat ologia, não são alopát icas nem hom eopát icas, m as é m elhor aprender logo
t udo de um a vez, por livros e por língua de hom ens cult ores da verdade...
Assim falara na véspera e no quart o. Agora não dizia nada, ou proferia algum
aforism o sobre a religião e a fam ília; lem bro- m e dest e: " Dividi- lo com Deus é
ainda possuí- lo" . Quando m inha m ãe m e deu o últ im o beij o: " Quadro
am ant íssim o! " suspirou ele. Era m anhã de um lindo dia. Os m oleques
cochichavam ; as escravas t om avam a bênção: " Bênção, nhô Bent inho! não se
esqueça de sua Joana! Sua Miquelina fica rezando por você! " Na rua, José Dias
insist iu nas esperanças:
— Agüent e um ano; at é lá t udo est ará arranj ado.
CAPÍ TULO LI V
PAN EGÍ RI CO D E SAN TA M ÔN I CA
No sem inário... Ah! não vou cont ar o sem inário, nem m e bast aria a isso um
capít ulo. Não, senhor m eu am igo; algum dia, sim , é possível que com ponha um
abreviado do que ali vi e vivi, das pessoas que t rat ei, dos cost um es, de t odo o
rest o. Est a sarna de escrever, quando pega aos cinqüent a anos, não despega
m ais. Na m ocidade é possível curar- se um hom em dela; e, sem ir m ais longe, aqui
m esm o no sem inário t ive um com panheiro que com pôs versos, à m aneira dos de
Junqueira Freire, cuj o livro de frade- poet a era recent e. Ordenou- se; anos depois
encont rei- o no coro de São Pedro e pedi- lhe que m e m ost rasse os versos novos.
— Que versos? pergunt ou m eio espant ado.
— Os seus. Pois não se lem bra que no sem inário...
— Ah! sorriu ele.
Sorriu, e cont inuando a procurar num livro abert o a hora em que t inha de cant ar
no dia seguint e, confessou- m e que não fizera m ais versos depois de ordenado.
Foram cócegas da m ocidade; coçou- se, passou, est ava bom . E falou- m e em prosa
de um a infinidade de coisas do dia, a vida cara, um serm ão do Padre X..., um a
vigairaria m ineira...
Cont rário a isso foi um sem inarist a que não seguiu a carreira. Cham ava- se... Não
é preciso dizer o nom e; bast e o caso. Tinha com post o um Panegírico de Sant a
Mônica, elogiado por algum as pessoas e ent ão lido ent re os sem inarist as. Alcançou
licença de im prim i- lo, e dedicou- o a Sant o Agost inho. Tudo isso é hist ória velha; o
que é m ais m oço é que um dia, em 1882, indo ver cert o negócio em repart ição de
m arinha, ali dei com est e m eu colega, feit o chefe de um a seção adm inist rat iva.
Deixara sem inário, deixara let ras, casara e esquecera t udo, m enos o Panegírico de
Sant a Mônica, um as vint e e nove páginas, que veio dist ribuindo pela vida fora.
Com o eu precisasse de algum as inform ações, fui pedir- lhas, e seria im possível
achar m elhor nem m ais pront a vont ade; deu- m e t udo, claro, cert o, copioso.
Nat uralm ent e conversam os do passado, m em órias pessoais, casos de est udo,
incident es de nada, um livro, um verbo, um m ot e, t oda a velha palhada saiu cá
fora, e rim os j unt os, e suspiram os de com panhia. Vivem os algum t em po do nosso
velho sem inário. Ou porque eram dele, ou porque éram os ent ão m oços, as
recordações t raziam t al poder de felicidade que, se algum a som bra cont rária
houve ent ão, não apareceu agora. Ele confessou- m e que perdera de vist a t odos os
com panheiros do sem inário.
— Tam bém eu, quase t odos; um a vez ordenados, volt aram nat uralm ent e às suas
províncias, e os daqui t om aram vigairarias fora.
— Bom t em po! suspirou ele.
E, após algum a reflexão, fit ando em m im uns olhos m urchos e t eim osos,
pergunt ou- m e:
— Conservou o m eu Panegírico?
Não achei nada que dizer; t ent ei m over os beiços, m as não t inha palavra; afinal,
pergunt ei:
— Panegírico? Que panegírico?
— O m eu Panegírico de Sant a Mônica.
Não m e lem brou logo, m as a explicação devia bast ar; e depois de alguns inst ant es
de pesquisa m ent al, respondi que por m uit o t em po o conservara, m as as
m udanças, as viagens...
— Hei de levar- lhe um exem plar.
Ant es de vint e e quat ro horas est ava em m inha casa, com o folhet o, um velho
folhet o de vint e e seis anos, encardido, m anchado do t em po, m as sem lacuna,
com um a dedicat ória m anuscrit a e respeit osa.
— É o penúlt im o exem plar, disse- m e; agora só m e rest a um , que não posso dar a
ninguém .
E com o m e visse folhear o opúsculo:
— Vej a se lhe lem bra algum pedaço, disse- m e.
Vint e e seis anos de int ervalo fazem m orrer am izades m ais est reit as e assíduas,
m as era cort esia, era quase caridade recordar algum a lauda; li um a delas,
acent uando cert as frases para lhe dar a im pressão de que achavam eco em m inha
m em ória. Concordou que fossem belas, m as preferia out ras, e apont ou- as.
— Recorda- se bem ?
— Perfeit am ent e. Panegírico de Sant a Mônica! Com o ist o m e faz rem ont ar os anos
da m inha m ocidade! Nunca m e esqueceu o sem inário, creia. Os anos passam , os
acont ecim ent os vêm uns sobre out ros, e as sensações t am bém , e vieram
am izades novas, que t am bém se foram depois, com o é lei da vida... Pois, m eu
caro colega, nada fez apagar aquele t em po da nossa convivência, os padres, as
lições, os recreios... os nossos recreios, lem bra- se? o Padre Lopes, oh! o Padre
Lopes...
Ele, com os olhos no ar, devia est ar ouvindo, e nat uralm ent e ouvia, m as só m e
disse um a palavra, e ainda assim depois de algum t em po de silêncio, recolhendo
os olhos e um suspiro!
— Tem agradado m uit o est e m eu Panegírico!
CAPÍ TULO LV
UM SON ETO
Dit a a palavra, apert ou- m e as m ãos com as forças t odas de um vast o
agradecim ent o, despediu- se e saiu. Fiquei só com o Panegírico, e o que as folhas
dele m e lem braram foi t al que m erece um capít ulo ou m ais. Ant es, porém , e
porque t am bém eu t ive o m eu Panegírico, cont arei a hist ória de um sonet o que
nunca fiz. Era no t em po do sem inário, e o prim eiro verso é o que ides ler:
Oh! flor do céu! oh! flor cândida e pura!
Com o e por que m e saiu est e verso da cabeça, não sei; saiu assim , est ando eu na
cam a, com o um a exclam ação solt a, e, ao not ar que t inha a m edida de verso,
pensei em com por com ele algum a coisa, um sonet o. A insônia, m usa de olhos
arregalados, não m e deixou dorm ir um a longa hora ou duas; as cócegas pediam m e unhas, e eu coçava- m e com alm a. Não escolhi logo, logo, o sonet o; a princípio
cuidei de out ra form a, e t ant o de rim a com o de verso solt o, m as afinal at ive- m e
ao sonet o. Era um poem a breve e prest adio. Quant o à idéia, o prim eiro verso não
era ainda um a idéia, era um a exclam ação; a idéia viria depois. Assim na cam a,
envolvido no lençol, t rat ei de poet ar. Tinha o alvoroço da m ãe que sent e o filho, e
o prim eiro filho. I a ser poet a, ia com pet ir com aquele m onge da Bahia, pouco
ant es revelado, e ent ão na m oda; eu, sem inarist a, diria em verso as m inhas
t rist ezas, com o ele dissera as suas no claust ro. Decorei bem o verso, e repet ia- o
em voz baixa, aos lençóis; francam ent e, achava- o bonit o, e ainda agora não m e
parece m au:
Oh! flor do céu! oh! flor cândida e pura!
Quem era a flor? Capit u, nat uralm ent e; m as podia ser a virt ude, a poesia, a
religião, qualquer out ro conceit o a que coubesse a m et áfora da flor, e flor do céu.
Aguardei o rest o, recit ando sem pre o verso, e deit ado ora sobre o lado direit o, ora
sobre o esquerdo; afinal deixei- m e est ar de cost as, com os olhos no t et o, m as
nem assim vinha m ais nada. Ent ão advert i que os sonet os m ais gabados eram os
que concluíam com chave de ouro, ist o é, um desses versos capit ais no sent ido e
na form a. Pensei em forj ar um a de t ais chaves, considerando que o verso final,
saindo cronologicam ent e dos t reze ant eriores, com dificuldade t raria a perfeição
louvada; im aginei que t ais chaves eram fundidas ant es da fechadura. Assim foi
que m e det erm inei a com por o últ im o verso do sonet o e, depois de m uit o suar,
saiu est e:
Perde- se a vida, ganha- se a bat alha!
Sem vaidade, e falando com o se fosse de out ro, era um verso m agnífico. Sonoro,
não há dúvida. E t inha um pensam ent o, a vit ória ganha à cust a da própria vida,
pensam ent o alevant ado e nobre. Que não fosse novidade, é possível, m as t am bém
não era vulgar; e ainda agora não explico por que via m ist eriosa ent rou num a
cabeça de t ão poucos anos. Naquela ocasião achei- o sublim e. Recit ei um a e
m uit as vezes a chave de ouro; depois repet i os dois versos seguidam ent e, e
dispus- m e a ligá- los pelos doze cent rais. A idéia agora, à vist a do últ im o verso,
pareceu- m e m elhor não ser Capit u; seria a j ust iça. Era m ais próprio dizer que, na
pugna pela j ust iça, perder- se- ia acaso a vida, m as a bat alha ficava ganha.
Tam bém m e ocorreu aceit ar a bat alha, no sent ido nat ural, e fazer dela a lut a pela
pát ria, por exem plo; nesse caso a flor do céu seria a liberdade. Est a acepção,
porém , sendo o poet a um sem inarist a, podia não caber t ant o com o a prim eira, e
gast ei alguns m inut os em escolher um a ou out ra. Achei m elhor a j ust iça, m as
afinal aceit ei definit ivam ent e um a idéia nova, a caridade, e recit ei os dois versos,
cada um a seu m odo, um languidam ent e:
Oh! flor do céu! oh! flor cândida e pura!
e o out ro com grande brio:
Perde- se a vida, ganha- se a bat alha!
A sensação que t ive é que ia sair um sonet o perfeit o. Com eçar bem e acabar bem
não era pouco. Para m e dar um banho de inspiração, evoquei alguns sonet os
célebres, e not ei que os m ais deles eram facílim os; os versos saíam uns dos
out ros, com a idéia em si, t ão nat uralm ent e, que se não acabava de crer se ela é
que os fizera, se eles é que a suscit avam . Ent ão t ornava ao m eu sonet o, e
novam ent e repet ia o prim eiro verso e esperava o segundo; o segundo não vinha,
nem t erceiro, nem quart o; não vinha nenhum . Tive alguns ím pet os de raiva, e
m ais de um a vez pensei em sair da cam a e ir ver t int a e papel; pode ser que,
escrevendo, os versos acudissem , m as...
Cansado de esperar, lem brou- m e alt erar o sent ido do últ im o verso, com a sim ples
t ransposição de duas palavras, assim :
Ganha- se a vida, perde- se a bat alha!
O sent ido vinha a ser j ust am ent e o cont rário, m as t alvez isso m esm o t rouxesse a
inspiração. Nest e caso, era um a ironia: não exercendo a caridade, pode- se ganhar
a vida, m as perde- se a bat alha do Céu. Criei forças novas e esperei. Não t inha
j anela; se t ivesse, é possível que fosse pedir um a idéia à noit e. E quem sabe se os
vaga- lum es, luzindo cá em baixo, não seriam para m im com o rim as das est relas, e
est a viva m et áfora não m e daria os versos esquivos, com os seus consoant es e
sent idos próprios?
Trabalhei em vão, busquei, cat ei, esperei, não vieram os versos. Pelo t em po
adiant e escrevi algum as páginas em prosa, e agora est ou com pondo est a
narração, não achando m aior dificuldade que escrever, bem ou m al. Pois,
senhores, nada m e consola daquele sonet o que não fiz. Mas, com o eu creio que os
sonet os exist em feit os, com o as odes e os dram as, e as dem ais obras de art e, por
um a razão de ordem m et afísica, dou esses dois versos ao prim eiro desocupado
que os quiser. Ao dom ingo, ou se est iver chovendo, ou na roça, em qualquer
ocasião de lazer, pode t ent ar ver se o sonet o sai. Tudo é dar- lhe um a idéia e
encher o cent ro que falt a.
CAPÍ TULO LVI
UM SEM I N ARI STA
Tudo m e ia repet indo o diabo do opúsculo, com as suas let ras velhas e cit ações
lat inas. Vi sair daquelas folhas m uit os perfis de sem inarist as, os irm ãos
Albuquerques, por exem plo, um dos quais é cônego na Bahia, enquant o o out ro
seguiu Medicina e dizem haver descobert o um específico cont ra a febre am arela.
Vi o Bast os, um m agricela, que est á de vigário em Meia- Pont e, se não m orreu j á;
Luís Borges, apesar de padre, fez- se polít ico, e acabou senador do im pério...
Quant as out ras caras m e fit avam das páginas frias do Panegírico! Não, não eram
frias; t raziam o calor da j uvent ude nascent e, o calor do passado, o m eu próprio
calor. Queria lê- las out ra vez, e lograva ent ender algum t ext o, t ão recent e com o
no prim eiro dia, ainda que m ais breve. Era um encant o ir por ele; às vezes,
inconscient em ent e, dobrava a folha com o se est ivesse lendo de verdade; creio que
era quando os olhos m e caíam na palavra do fim da página, e a m ão, acost um ada
a aj udá- los, fazia o seu ofício...
Eis aqui out ro sem inarist a. Cham ava- se Ezequiel de Sousa Escobar. Era um rapaz
esbelt o, olhos claros, um pouco fugit ivos, com o as m ãos, com o os pés, com o a
fala, com o t udo. Quem não est ivesse acost um ado com ele podia acaso sent ir- se
m al, não sabendo por onde lhe pegasse. Não fit ava de rost o, não falava claro nem
seguido; as m ãos não apert avam as out ras, nem se deixavam apert ar delas,
porque os dedos, sendo delgados e curt os, quando a gent e cuidava t ê- los ent re os
seus, j á não t inha nada. O m esm o digo dos pés, que t ão depressa est avam aqui
com o lá. Est a dificuldade em pousar foi a m aior obst áculo que achou para t om ar
os cost um es do sem inário. O sorriso era inst ant âneo, m as t am bém ria folgado e
largo. Um a coisa não seria t ão fugit iva com o o rest o, a reflexão; íam os dar com
ele, m uit a vez, olhos enfiados em si, cogit ando. Respondia- nos sem pre que
m edit ava algum pont o espirit ual, ou ent ão que recordava a lição da véspera.
Quando ele ent rou na m inha int im idade pedia- m e freqüent em ent e explicações e
repet ições m iúdas, e t inha m em ória para guardá- las t odas, at é as palavras. Talvez
est a faculdade prej udicasse algum a out ra.
Era m ais velho que eu t rês anos, filho de um advogado de Curit iba, aparent ado
com um com erciant e do Rio de Janeiro, que servia de correspondent e ao pai. Est e
era hom em de fort es sent im ent os cat ólicos. Escobar t inha um a irm ã, que era um
anj o, dizia ele.
— Não é só na beleza que é um anj o, m as t am bém na bondade. Não im agina que
boa criat ura que ela é. Escreve- m e m uit a vez, hei de m ost rar- lhe as cart as dela.
De fat o, eram sim ples e afet uosas, cheias de carícias e conselhos. Escobar
cont ava- m e hist órias dela, int eressant es, t odas as quais vinham a dar na bondade
e no espírit o daquela criat ura; t ais eram que m e fariam capaz de acabar casando
com ela, se não fosse Capit u. Morreu pouco depois. Eu, seduzido pelas palavras
dele, est ive quase a cont ar- lhe logo, logo, a m inha hist ória. A princípio fui t ím ido,
m as ele fez- se ent rado na m inha confiança. Aqueles m odos fugit ivos cessavam
quando ele queria, e o m eio e o t em po os fizeram m ais pousados. Escobar veio
abrindo a alm a t oda, desde a port a da rua at é ao fundo do quint al. A alm a da
gent e, com o sabes, é um a casa assim dispost a, não raro com j anelas para t odos
os lados, m uit a luz e ar puro. Tam bém as há fechadas e escuras, sem j anelas, ou
com poucas e gradeadas, à sem elhança de convent os e prisões. Out rossim ,
capelas e bazares, sim ples alpendres ou paços sunt uosos.
Não sei o que era a m inha. Eu não era ainda casm urro, nem dom casm urro; o
receio é que m e t olhia a franqueza, m as com o as port as não t inham chaves nem
fechaduras, bast ava em purrá- las, e Escobar em purrou- as e ent rou. Cá o achei
dent ro, cá ficou, at é que...
CAPÍ TULO LVI I
D E PREPARAÇÃO
Ah! m as não eram só os sem inarist as que m e iam saindo daquelas folhas velhas
do Panegírico. Elas m e t rouxeram t am bém sensações passadas, t ais e t ant as que
eu não poderia dizê- las t odas, sem t irar espaço ao rest o. Um a dessas, e das
prim eiras, quisera cont á- la aqui em lat im . Não é que a m at éria não ache t erm os
honest os em nossa língua, que é cast a para os cast os, com o pode ser t orpe para
os t orpes. Sim , leit ora cast íssim a, com o diria o m eu finado José Dias, podeis ler o
capít ulo at é ao fim , sem sust o nem vexam e.
Já agora m et o a hist ória em out ro capít ulo. Por m ais com post o que est e m e saia,
há sem pre no assunt o algum a coisa m enos aust era, que pede um as linhas de
repouso e preparação. Sirva est e de preparação. E ist o é m uit o, leit or m eu am igo;
o coração, quando exam ina a possibilidade do que há de vir, as proporções dos
acont ecim ent os e a cópia deles, fica robust o e dispost o, e o m al é m enor m al.
Tam bém , se não fica ent ão, não fica nunca. E aqui verás t al ou qual espert eza
m inha; porquant o, ao ler o que vais ler, é provável que o aches m enos cru do que
esperavas.
CAPÍ TULO LVI I I
O TRATAD O
Foi o caso que, um a segunda- feira, volt ando eu para o sem inário, vi cair na rua
um a senhora. O m eu prim eiro gest o, em t al caso, devia ser de pena ou de riso;
não foi um a nem out ra coisa, porquant o ( e é ist o que eu quisera dizer em lat im ) ,
porquant o a senhora t inha as m eias m uit o lavadas, e não as suj ou, levava ligas de
seda, e não as perdeu. Várias pessoas acudiram , m as não t iveram t em po de a
levant ar; ela ergueu- se m uit o vexada, sacudiu- se, agradeceu, e enfiou pela rua
próxim a.
— Est e gost o de im it ar as francesas da Rua do Ouvidor, dizia- m e José Dias
andando e com ent ando a queda, é evident em ent e um erro. As nossas m oças
devem andar com o sem pre andaram , com seu vagar e paciência, e não est e t iquet ique afrancesado...
Eu m al podia ouvi- lo. As m eias e as ligas da senhora branqueavam e enroscavam se diant e de m im , e andavam , caíam , erguiam - se e iam - se em bora. Quando
chegam os à esquina, olhei para a out ra rua, e vi, a dist ância, a nossa desast rada,
que ia no m esm o passo, t ique- t ique, t ique- t ique...
— Parece que não se m achucou, disse eu.
— Tant o m elhor para ela, m as é im possível que não t enha arranhado os j oelhos;
aquela prest eza é m anha...
Creio que foi " m anha" que ele disse; eu fiquei " nos j oelhos arranhados" . Dali em
diant e, at é o sem inário, não vi m ulher na rua, a quem não desej asse um a queda;
a algum as adivinhei que t raziam as m eias est icadas e as ligas j ust as... Tal haveria
que nem levasse m eias... Mas eu as via com elas... Ou ent ão... Tam bém é
possível...
Vou esgarçando ist o com ret icências, para dar um a idéia das m inhas idéias, que
eram assim difusas e confusas; com cert eza não dou nada. A cabeça ia- m e
quent e, e o andar não era seguro. No sem inário, a prim eira hora foi insuport ável.
As bat inas t raziam ar de saias, e lem bravam - m e a queda da senhora. Já não era
um a só que eu via cair; t odas as que eu encont rara na rua, m ost ravam - m e agora
de relance as ligas azuis; eram azuis. De noit e, sonhei com elas. Um a m ult idão de
abom ináveis criat uras veio andar à roda de m im , t ique- t ique... Eram belas, um as
finas, out ras grossas, t odas ágeis com o o diabo. Acordei, busquei afugent á- las
com esconj uros e out ros m ét odos, m as t ão depressa dorm i com o t ornaram , e,
com as m ãos presas em volt a de m im , faziam um vast o círculo de saias, ou,
t repadas no ar, choviam pés e pernas sobre a m inha cabeça. Assim fui at é
m adrugada. Não dorm i m ais; rezei padre- nossos, ave- m arias, e credos, e sendo
est e livro a verdade pura, é força confessar que t ive de int errom per m ais de um a
vez as m inhas orações para acom panhar no escuro um a figura ao longe, t iquet ique, t ique- t ique... Pegava depressa na oração, sem pre no m eio para concert á- la
bem , com o se não t ivesse havido int errupção, m as cert am ent e não unia a frase
nova à ant iga.
Vindo o m al pela m anhã adiant e, t ent ei vencê- lo, m as por um m odo que o não
perdesse de t odo. Sábios da Escrit ura, adivinhai o que podia ser. Foi ist o. Não
podendo rej eit ar de m im aqueles quadros, recorri a um t rat ado ent re a m inha
consciência e a m inha im aginação. As visões fem inis seriam de ora avant e
consideradas com o sim ples encarnações dos vícios, e por isso m esm o
cont em pláveis, com o o m elhor m odo de t em perar o carát er e aguerri- lo para os
com bat es ásperos da vida. Não form ulei ist o por palavras, nem foi preciso; o
cont rat o fez- se t acit am ent e, com algum a repugnância, m as fez- se. E por alguns
dias, era eu m esm o que evocava as visões para fort alecer- m e, e não as rej eit ava,
senão quando elas m esm as, de cansadas, se iam em bora.
CAPÍ TULO LI X
CON VI VAS D E BOA M EM ÓRI A
Há dessas rem iniscências que não descansam ant es que a pena ou a língua as
publique. Um ant igo dizia arrenegar de conviva que t em boa m em ória. A vida é
cheia de t ais convivas, e eu sou acaso um deles, conquant o a prova de t er a
m em ória fraca sej a exat am ent e não m e acudir agora o nom e de t al ant igo; m as
era um ant igo, e bast a.
Não, não, a m inha m em ória não é boa. Ao cont rário, é com parável a alguém que
t ivesse vivido por hospedarias, sem guardar delas nem caras nem nom es, e
som ent e raras circunst âncias. A quem passe a vida na m esm a casa de fam ília,
com os seus et ernos m óveis e cost um es, pessoas e afeições, é que se lhe grava
t udo pela cont inuidade e repet ição. Com o eu invej o os que não esqueceram a cor
das prim eiras calças que vest iram ! Eu não at ino com a das que enfiei ont em . Juro
só que não eram am arelas porque execro essa cor; m as isso m esm o pode ser
olvido e confusão.
E ant es sej a olvido que confusão; explico- m e. Nada se em enda bem nos livros
confusos, m as t udo se pode m et er nos livros om issos. Eu, quando leio algum
dest a out ra cast a, não m e aflij o nunca. O que faço, em chegando ao fim , é cerrar
os olhos e evocar t odas as coisas que não achei nele. Quant as idéias finas m e
acodem ent ão! Que de reflexões profundas! Os rios, as m ont anhas, as igrej as que
não vi nas folhas lidas, t odos m e aparecem agora com as suas águas, as suas
árvores, os seus alt ares; e os generais sacam das espadas que t inham ficado na
bainha, e os clarins solt am as not as que dorm iam no m et al, e t udo m archa com
um a alm a im previst a.
É que t udo se acha fora de um livro falho, leit or am igo. Assim preencho as lacunas
alheias; assim podes t am bém preencher as m inhas.
CAPÍ TULO LX
QUERI D O OPÚSCULO
Assim fiz eu ao Panegírico de Sant a Mônica, e fiz m ais: pus- lhe não só o que
falt ava da sant a, m as ainda coisas que não eram dela. Vist e o sonet o, as m eias,
as ligas, o sem inarist a Escobar e vários out ros. Vais agora ver o m ais que naquele
dia m e foi saindo das páginas am arelas do opúsculo.
Querido opúsculo, t u não prest avas para nada, m as que m ais prest a um velho par
de chinelas? Ent ret ant o, há m uit a vez no casal de chinelas um com o arom a e calor
de dois pés. Gast as e rot as, não deixam de lem brar que um a pessoa as calçava de
m anhã, ao erguer da cam a, ou as descalçava à noit e, ao ent rar nela. E se a
com paração não vale, porque as chinelas são ainda um a part e da pessoa e
t iveram o cont at o dos pés, aqui est ão out ras lem branças, com o a pedra da rua, a
port a da casa, um assobio part icular, um pregão de quit anda, com o aquele das
cocadas que cont ei no cap. XVI I I . Just am ent e, quando cont ei o pregão das
cocadas, fiquei t ão curt ido de saudades que m e lem brou fazê- lo escrever por um
am igo, m est re de m úsica, e grudá- lo às pernas do capít ulo. Se depois j arret ei o
capít ulo, foi porque out ro m úsico, a quem o m ost rei, m e confessou ingenuam ent e
não achar no t recho escrit o nada que lhe acordasse saudades. Para que não
acont eça o m esm o aos out ros profissionais que porvent ura m e lerem , m elhor é
poupar ao edit or do livro o t rabalho e a despesa da gravura. Vês que não pus
nada, nem ponho. Já agora creio que não bast a que os pregões de rua, com o os
opúsculos de sem inário, encerrem casos, pessoas e sensações; é preciso que a
gent e os t enha conhecido e padecido no t em po, sem o que t udo é calado e incolor.
Mas, vam os ao m ais que m e foi saindo das páginas am arelas.
CAPÍ TULO LXI
A VACA D E H OM ERO
O m ais foi m uit o. Vi saírem os prim eiros dias da separação, duros e opacos, sem
em bargo das palavras de confort o que m e deram os padres e os sem inarist as, e
as de m inha m ãe e t io Cosm e, t razidas por José Dias ao sem inário.
— Todos est ão saudosos, disse- m e est e, m as a m aior saudade est á nat uralm ent e
no m aior dos corações; e qual é ele? pergunt ou escrevendo a respost a nos olhos.
— Mam ãe, acudi eu.
José Dias apert ou- m e as m ãos com alvoroço, e logo pint ou a t rist eza de m inha
m ãe, que falava de m im t odos os dias, quase a t odas as horas. Com o a aprovasse
sem pre, e acrescent asse algum a palavra relat ivam ent e aos dot es que Deus lhe
dera, o desvanecim ent o de m inha m ãe nessas ocasiões era indescrit ível; e
cont ava- m e t udo isso cheio de um a adm iração lacrim osa. Tio Cosm e t am bém se
ent ernecia m uit o.
— Ont em at é se deu um caso int eressant e. Tendo eu dit o à Excelent íssim a que
Deus lhe dera, não um filho, m as um anj o do céu, o dout or ficou t ão com ovido que
não achou out ro m odo de vencer o choro senão fazendo- m e um daqueles elogios
de galhofa que só ele sabe. Não é preciso dizer que D. Glória enxugou
furt ivam ent e um a lágrim a. Ou ela não fosse m ãe! Que coração am ant íssim o!
— Mas, Sr. José Dias, e a m inha saída daqui?
— I sso é negócio m eu. A viagem à Europa é o que é preciso, m as pode fazer- se
daqui a um ou dois anos, em 1859 ou 1860...
— Tão t arde!
— Era m elhor que fosse est e m esm o ano, m as dem os t em po ao t em po. Tenha
paciência, vá est udando, não se perde nada em ir sabendo j á daqui algum a coisa;
e, dem ais, ainda não acabando padre, a vida do sem inário é út il, e vale sem pre
ent rar no m undo ungido com os sant os óleos da t eologia...
Nest e pont o, — lem bra- m e com o se fosse hoj e, — os olhos de José Dias
fulguraram t ão int ensam ent e que m e encheram de espant o. As pálpebras caíram
depois, e assim ficaram por alguns inst ant es, at é que novam ent e se ergueram , e
os olhos fixaram - se na parede do pát io, com o que em bebidos em algum a coisa, se
não era em si m esm os; depois despegaram - se da parede e ent raram a vagar pelo
pát io t odo. Podia com pará- lo aqui à vaca de Hom ero; andava e gem ia em volt a da
cria que acabava de parir. Não lhe pergunt ei o que é que t inha, j á por
acanham ent o, j á porque dois lent es, um deles de t eologia, vinham cam inhando na
nossa direção. Ao passarem por nós, o agregado, que os conhecia, cort ej ou- os
com as deferências devidas, e pediu- lhes not ícias m inhas.
— Por ora nada se pode afiançar, disse um deles, m as parece que dará cont a da
m ão.
— É o que eu lhe dizia agora m esm o, acudiu José Dias. Cont o ouvir- lhe a m issa
nova; m as ainda que não chegue a ordenar- se, não pode t er m elhores est udos
que os que fizer aqui. Para a viagem da exist ência, concluiu dem orando m ais as
palavras, irá ungido com os sant os óleos da t eologia...
Dest a vez a fulguração dos olhos foi m enor, as pálpebras não lhe caíram nem as
pupilas fizeram os m ovim ent os ant eriores. Ao cont rário, t odo ele era at enção e
int errogação; quando m uit o, um sorriso claro e am igo lhe errava nos lábios. O
lent e de t eologia gost ou da m et áfora, e disse- lho; ele agradeceu, explicando que
eram idéias que lhe escapavam no correr da conversação; não escrevia nem
orava. Eu é que não gost ei nada; e logo que os lent es se foram , sacudi a cabeça:
— Não quero saber dos sant os óleos da t eologia; desej o sair daqui o m ais cedo
que puder, ou j á...
— Já, m eu anj o, não pode ser; m as pode suceder que m uit o ant es do que
im aginam os. Quem sabe se est e m esm o ano de 58? Tenho um plano feit o, e
penso j á nas palavras com que hei de expô- lo a D. Glória; est ou cert o que ela
cederá e irá conosco.
— Duvido que m am ãe em barque.
— Verem os. Mãe é capaz de t udo; m as, com ela ou sem ela, t enho por cert a a
nossa ida, e não haverá esforço que eu não em pregue, deixe est ar. Paciência é
que é preciso. E não faça aqui nada que dê lugar a censuras ou queixas; m uit a
docilidade e t oda a aparent e sat isfação. Não ouviu o elogio do lent e? É que você
t em - se port ado bem . Pois cont inue.
— Mas, 1859 ou 1860 é m uit o t arde.
— Será est e ano, replicou José Dias.
— Daqui a t rês m eses?
— Ou seis.
— Não; t rês m eses.
— Pois sim . Tenho agora um plano, que m e parece m elhor que out ro qualquer. É
com binar a ausência de vocação eclesiást ica e a necessidade de m udar de ares.
Você por que não t osse?
— Por que não t usso?
— Já, j á, não, m as eu hei de avisar você para t ossir, quando for preciso, aos
poucos, um a t ossezinha seca, e algum fast io; eu irei preparando a
Excelent íssim a... Oh! t udo ist o é em benefício dela. Um a vez que o filho não pode
servir a I grej a, com o deve ser servida, o m elhor m odo de cum prir a vont ade de
Deus é dedicá- lo a out ra coisa. O m undo t am bém é igrej a para os bons...
Pareceu- m e out ra vez a vaca de Hom ero, com o se est e " m undo t am bém é igrej a
para os bons" , fosse out ro bezerro, irm ão dos " sant os óleos da t eologia” .Mas não
dei t em po à t ernura m at erna, e repliquei:
— Ah! ent endo! m ost rar que est ou doent e para em barcar, não é?
José Dias hesit ou um pouco, depois explicou- se:
— Most rar a verdade, porque, francam ent e, Bent inho, eu há m eses que desconfio
do seu peit o. Você não anda bom do peit o. Em pequeno, t eve um as febres e um a
ronqueira... Passou t udo, m as há dias em que est á m ais descorado. Não digo que
j á sej a o m al, m as o m al pode vir depressa. Num a hora cai a casa. Por isso, se
aquela sant a senhora não quiser ir conosco, — ou para que vá m ais depressa,
acho que um a boa t osse... Se a t osse há de vir de verdade, m elhor é apressá- la...
Deixe est ar, eu aviso...
— Bem , m as em saindo daqui não há de ser para em barcar logo; saio prim eiro,
depois cuidarem os do em barque; o em barque é que pode ficar para o ano. Não
dizem que o m elhor t em po é abril ou m aio? Pois sej a m aio. Prim eiro deixo o
sem inário, daqui a dois m eses...
E porque a palavra m e est ivesse a pigarrear na gargant a, dei um a volt a rápida, e
pergunt ei- lhe à queim a- roupa:
— Capit u com o vai?
CAPÍ TULO LXI I
UM A PON TA D E I AGO
A pergunt a era im prudent e, na ocasião em que eu cuidava de t ransferir o
em barque. Equivalia a confessar que o m ot ivo principal ou único da m inha repulsa
ao sem inário era Capit u, e fazer crer im provável a viagem . Com preendi ist o depois
que falei; quis em endar- m e, m as nem soube com o, nem ele m e deu t em po.
— Tem andado alegre, com o sem pre; é um a t ont inha. Aquilo, enquant o não pegar
algum peralt a da vizinhança, que case com ela...
Est ou que em palideci; pelo m enos, sent i correr um frio pelo corpo t odo. A not ícia
de que ela vivia alegre, quando eu chorava t odas as noit es, produziu- m e aquele
efeit o, acom panhado de um bat er de coração, t ão violent o, que ainda agora cuido
ouvi- lo. Há algum a exageração nist o; m as o discurso hum ano é assim m esm o, um
com post o de part es excessivas e part es dim inut as, que se com pensam , aj ust andose. Por out ro lado, se ent enderm os que a audiência aqui não é das orelhas, senão
da m em ória, chegarem os à exat a verdade. A m inha m em ória ouve ainda agora as
pancadas do coração naquele inst ant e. Não esqueças que era a em oção do
prim eiro am or. Est ive quase a pergunt ar a José Dias que m e explicasse a alegria
de Capit u, o que é que ela fazia, se vivia rindo, cant ando ou pulando, m as ret ivem e a t em po, e depois out ra idéia...
Out ra idéia, não, — um sent im ent o cruel e desconhecido, o puro ciúm e, leit or das
m inhas ent ranhas. Tal foi o que m e m ordeu, ao repet ir com igo as palavras de José
Dias: " Algum peralt a da vizinhança” .Em verdade, nunca pensara em t al desast re.
Vivia t ão nela, dela e para ela, que a int ervenção de um peralt a era com o um a
noção sem realidade; nunca m e acudiu que havia peralt as na vizinhança, vária
idade e feit io, grandes passeadores das t ardes. Agora lem brava- m e que alguns
olhavam para Capit u, — e t ão senhor m e sent ia dela que era com o se olhassem
para m im , um sim ples dever de adm iração e de invej a. Separados um do out ro
pelo espaço e pelo dest ino, o m al aparecia- m e agora, não só possível, m as cert o.
E a alegria de Capit u confirm ava a suspeit a; se ela vivia alegre é que j á nam orava
a out ro, acom panhá- lo- ia com os olhos na rua, falar- lhe- ia à j anela, às avem arias, t rocariam flores e...
E... quê? Sabes o que é que t rocariam m ais; se o não achas por t i m esm o,
escusado é ler o rest o do capít ulo e do livro, não acharás m ais nada, ainda que eu
o diga com t odas as let ras da et im ologia. Mas se o achast e, com preenderás que
eu, depois de est rem ecer, t ivesse um ím pet o de at irar- m e pelo port ão fora, descer
o rest o da ladeira, correr, chegar à casa do Pádua, agarrar Capit u e int im ar- lhe
que m e confessasse quant os, quant os, quant os j á lhe dera o peralt a da
vizinhança. Não fiz nada. Os m esm os sonhos que ora cont o não t iveram , naqueles
t rês ou quat ro m inut os, est a lógica de m ovim ent os e pensam ent os. Eram solt os,
em endados e m al em endados, com o desenho t runcado e t ort o, um a confusão, um
t urbilhão, que m e cegava e ensurdecia. Quando t ornei a m im , José Dias concluía
um a frase, cuj o princípio não ouvi, e o m esm o fim era vago: " A cont a que dará de
si” .Que cont a e quem ? Cuidei nat uralm ent e que falava ainda de Capit u, e quis
pergunt ar- lho, m as a vont ade m orreu ao nascer, com o t ant as out ras gerações
delas. Lim it ei- m e a inquirir do agregado quando é que iria a casa ver m inha m ãe.
— Est ou com saudades de m am ãe. Posso ir j á est a sem ana?
— Vai sábado.
— Sábado? Ah! sim ! sim ! Peça a m am ãe que m e m ande buscar sábado! Sábado!
Est e sábado, não? Que m e m ande buscar, sem falt a.
CAPÍ TULO LXI I I
M ETAD ES D E UM SON H O
Fiquei ansioso pelo sábado. At é lá os sonhos perseguiam - m e, ainda acordado, e
não os digo aqui para não alongar est a part e do livro. Um só ponho, e no m enor
núm ero de palavras, ou ant es porei dois, porque um nasceu de out ro, a não ser
que am bos form em duas m et ades de um só. Tudo ist o é obscuro, dona leit ora,
m as a culpa é do vosso sexo, que pert urbava assim a adolescência de um pobre
sem inarist a. Não fosse ele, e est e livro seria t alvez um a sim ples prát ica paroquial,
se eu fosse padre, ou um a past oral, se bispo, ou um a encíclica, se papa, com o m e
recom endara t io Cosm e: " Anda lá, m eu rapaz, volt a- m e papa! " Ah! por que não
cum pri esse desej o? Depois de Napoleão, t enent e e im perador, t odos os dest inos
est ão nest e século.
Quant o ao sonho foi ist o. Com o est ivesse a espiar os peralt as da vizinhança, vi um
dest es que conversava com a m inha am iga ao pé da j anela. Corri ao lugar, ele
fugiu; avancei para Capit u, m as não est ava só, t inha o pai ao pé de si, enxugando
os olhos e m irando um t rist e bilhet e de lot eria. Não m e parecendo ist o claro, ia
pedir a explicação, quando ele de si m esm o a deu; o peralt a fora levar- lhe a list a
dos prêm ios da lot eria, e o bilhet e saíra branco. Tinha o núm ero 4004. Disse- m e
que est a sim et ria de algarism os era m ist eriosa e bela, e provavelm ent e a roda
andara m al; era im possível que não devesse t er a sort e grande. Enquant o ele
falava, Capit u dava- m e com os olhos t odas as sort es grandes e pequenas. A m aior
dest as devia ser dada com a boca. E aqui ent ra a segunda part e do sonho. Pádua
desapareceu, com o as suas esperanças do bilhet e, Capit u inclinou- se para fora, eu
relancei os olhos pela rua, est ava desert a. Peguei- lhe nas m ãos, resm unguei não
sei que palavras, e acordei sozinho no dorm it ório.
O int eresse do que acabas de ler não est á na m at éria do sonho, m as nos esforços
que fiz para ver se dorm ia novam ent e e pegava nele out ra vez. Nunca dos nuncas
poderás saber a energia e obst inação que em preguei em fechar os olhos, apert álos bem , esquecer t udo para dorm ir, m as não dorm ia. Esse m esm o t rabalho fezm e perder o sono at é à m adrugada. Sobre a m adrugada, consegui conciliá- lo, m as
ent ão nem peralt as, nem bilhet es de lot eria, nem sort es grandes ou pequenas, —
nada dos nadas veio t er com igo. Não sonhei m ais aquela noit e, e dei m al as lições
daquele dia.
CAPÍ TULO LXI V
UM A I D ÉI A E UM ESCRÚPULO
Relendo o capít ulo passado, acode- m e um a idéia e um escrúpulo. O escrúpulo é
j ust am ent e de escrever a idéia, não a havendo m ais banal na t erra, post o que
daquela banalidade do sol e da lua, que o Céu nos dá t odos os dias e t odos os
m eses. Deixei o m anuscrit o, e olhei para as paredes. Sabes que est a casa do
Engenho Novo, nas dim ensões, disposições e pint uras, é reprodução da m inha
ant iga casa de Mat a- cavalos. Out rossim , com o t e disse no capít ulo I I , o m eu fim
em im it ar a out ra foi ligar as duas pont as da vida, o que aliás não alcancei. Pois o
m esm o sucedeu àquele sonho do sem inário, por m ais que t ent asse dorm ir e
dorm isse. Donde concluo que um dos ofícios do hom em é fechar e apert ar m uit o
os olhos, e ver se cont inua pela noit e velha o sonho t runcado na noit e m oça. Tal é
a idéia banal e nova que eu não quisera pôr aqui, e só provisoriam ent e a escrevo.
Ant es de concluir est e capít ulo, fui à j anela indagar da noit e por que razão os
sonhos hão de ser assim t ão t ênues que se esgarçam ao m enor abrir de olhos ou
volt ar de corpo, e não cont inuam m ais. A noit e não m e respondeu logo. Est ava
deliciosam ent e bela, os m orros palej avam de luar e o espaço m orria de silêncio.
Com o eu insist isse, declarou- m e que os sonhos j á não pert encem à sua j urisdição.
Quando eles m oravam na ilha que Luciano lhes deu, onde ela t inha o seu palácio,
e donde os fazia sair com as suas caras de vária feição, dar- m e- ia explicações
possíveis. Mas os t em pos m udaram t udo. Os sonhos ant igos foram aposent ados, e
os m odernos m oram no cérebro da pessoa. Est es, ainda que quisessem im it ar os
out ros, não poderiam fazê- lo; a ilha dos sonhos, com o a dos am ores, com o t odas
as ilhas de t odos os m ares, são agora obj et o da am bição e da rivalidade da Europa
e dos Est ados Unidos.
Era um a alusão às Filipinas. Pois que não am o a polít ica, e ainda m enos a polít ica
int ernacional, fechei a j anela e vim acabar est e capít ulo para ir dorm ir. Não peço
agora os sonhos de Luciano, nem out ros, filhos da m em ória ou da digest ão; bast am e um sono quiet o e apagado. De m anhã, com a fresca, irei dizendo o m ais da
m inha hist ória e suas pessoas.
CAPÍ TULO LXV
A D I SSI M ULAÇÃO
Chegou o sábado, chegaram out ros sábados, e eu acabei afeiçoando- m e à vida
nova. I a alt ernando a casa e o sem inário. Os padres gost avam de m im , os rapazes
t am bém , e Escobar m ais que os rapazes e os padres. No fim de cinco sem anas
est ive quase a cont ar a est e as m inhas penas e esperanças; Capit u refreou- m e.
— Escobar é m uit o m eu am igo, Capit u!
— Mas não é m eu am igo.
— Pode vir a ser; ele j á m e disse que há de vir cá para conhecer m am ãe.
— Não im port a; você não t em direit o de cont ar um segredo que não é só seu, m as
t am bém m eu, e eu não lhe dou licença de dizer nada a pessoa nenhum a.
Era j ust o, calei- m e e obedeci. Out ra coisa em que obedeci às suas reflexões foi
logo no prim eiro sábado, quando eu fui à casa dela, e, após alguns m inut os de
conversa, m e aconselhou a ir em bora.
— Hoj e não fique aqui m ais t em po; vá para casa, que eu lá vou logo. É nat ural
que D. Glória queira est ar com você m uit o t em po, ou t odo, se puder.
Em t udo isso m ost rava a m inha am iga t ant a lucidez que eu bem podia deixar de
cit ar um t erceiro exem plo, m as os exem plos não se fizeram senão para ser
cit ados, e est e é t ão bom que a om issão seria um crim e. Foi à m inha t erceira ou
quart a vinda à casa. Minha m ãe, depois que lhe respondi as m il pergunt as que m e
fez sobre o t rat am ent o que m e davam , os est udos, as relações, a disciplina, e se
m e doía algum a coisa, e se dorm ia bem , t udo o que a t ernura das m ães invent a
para cansar a paciência de um filho, concluiu volt ando- se para José Dias:
— Sr. José Dias, ainda duvida que saia daqui um bom padre?
— Excelent íssim a...
— E você, Capit u, int errom peu m inha m ãe volt ando- se para a filha do Pádua que
est ava na sala, com ela, — você não acha que o nosso Bent inho dará um bom
padre?
— Acho que sim , senhora, respondeu Capit u cheia de convicção.
Não gost ei da convicção. Assim lhe disse, na m anhã seguint e, no quint al dela,
recordando as palavras da véspera, e lançando- lhe em rost o, pela prim eira vez, a
alegria que ela m ost rara desde a m inha ent rada no sem inário, quando eu vivia
curt ido de saudades. Capit u fez- se m uit o séria, e pergunt ou- m e com o é que
queria que se port asse, um a vez que suspeit avam de nós; t am bém t ivera noit es
desconsoladas, e os dias, em casa dela, foram t ão t rist es com o os m eus; podia
indagá- lo do pai e da m ãe. A m ãe chegou a dizer- lhe, por palavras encobert as,
que não pensasse m ais em m im .
— Com D. Glória e D. Just ina m ost ro- m e nat uralm ent e alegre, para que não
pareça que a denúncia de José Dias é verdadeira. Se parecesse, elas t rat ariam de
separar- nos m ais, e t alvez acabassem não m e recebendo... Para m im , bast a o
nosso j uram ent o de que nos havem os de casar um com out ro.
Era ist o m esm o; devíam os dissim ular para m at ar qualquer suspeit a, e ao m esm o
t em po gozar t oda a liberdade ant erior, e const ruir t ranqüilos o nosso fut uro. Mas o
exem plo com plet a- se com o que ouvi no dia seguint e, ao alm oço; m inha m ãe,
dizendo t io Cosm e que ainda queria ver com que m ão havia eu de abençoar o
povo à m issa, cont ou que, dias ant es, est ando a falar de m oças que se casam
cedo, Capit u lhe dissera: "Pois a m im quem m e há de casar há de ser o Padre
Bent inho; eu espero que ele se ordene! " Tio Cosm e riu da graça, José Dias não
dessorriu, só prim a Just ina é que franziu a t est a, e olhou para m im
int errogat ivam ent e. Eu, que havia olhado para t odos, não pude resist ir ao gest o
da prim a, e t rat ei de com er. Mas com i m al; est ava t ão cont ent e com aquela
grande dissim ulação de Capit u que não vi m ais nada, e, logo que alm ocei, corri a
referir- lhe a conversa e a louvar- lhe a ast úcia. Capit u sorriu de agradecida.
— Você t em razão, Capit u, concluí eu; vam os enganar t oda est a gent e.
— Não é? disse ela com ingenuidade.
CAPÍ TULO LXVI
I N TI M I D AD E
Capit u ia agora ent rando na alm a de m inha m ãe. Viviam o m ais do t em po j unt as,
falando de m im , a propósit o do sol e da chuva, ou de nada; Capit u ia lá coser, às
m anhãs; algum a vez ficava para j ant ar.
Prim a Just ina não acom panhava a parent a naquelas finezas, m as não t rat ava de
t odo m al a m inha am iga. Era assaz sincera para dizer o m al que sent ia de alguém ,
e não sent ia bem de pessoa algum a. Talvez do m arido, m as o m arido era m ort o;
em t odo caso, não exist ira hom em capaz de com pet ir com ele na afeição, no
t rabalho e na honest idade, nas m aneiras e na agudeza de espírit o. Est a opinião,
segundo t io Cosm e, era póst um a, pois em vida andavam às brigas, e os últ im os
seis m eses acabaram separados. Tant o m elhor para a j ust iça dela; o louvor dos
m ort os é um m odo de orar por eles. Tam bém gost aria de m inha m ãe, ou se algum
m al pensou dela foi ent re si e o t ravesseiro. Com preende- se que, de aparência,
lhe desse a est im a devida. Não penso que ela aspirasse a algum legado; as
pessoas assim dispost as excedem os serviços nat urais, fazem - se m ais risonhas,
m ais assíduas, m ult iplicam os cuidados, precedem os fâm ulos. Tudo isso era
cont rário à nat ureza de prim a Just ina, feit a de azedum e e de im plicância. Com o
vivesse de favor na casa, explica- se que não desest im asse a dona e calasse os
seus ressent im ent os, ou só dissesse m al dela a Deus e ao Diabo.
Caso t ivesse ressent im ent os de m inha m ãe, não era um a razão m ais para det est ar
Capit u, nem ela precisava de razões suplem ent ares. Cont udo, a int im idade de
Capit u fê- la m ais aborrecível à m inha parent a. Se a princípio não a t rat ava m al,
com o t em po t rocou de m aneiras e acabou fugindo- lhe. Capit u, at ent a, desde que
a não via, indagava dela e ia procurá- la. Prim a Just ina t olerava esses cuidados. A
vida é cheia de obrigações que a gent e cum pre, por m ais vont ade que t enha de as
infringir deslavadam ent e. Dem ais, Capit u usava cert a m agia que cat iva; prim a
Just ina acabava sorrindo, ainda que azedo, m as a sós com m inha m ãe achava
algum a palavra ruim que dizer da m enina.
Com o m inha m ãe adoecesse de um a febre, que a pôs às port as da m ort e, quis que
Capit u lhe servisse de enferm eira. Prim a Just ina, post o que ist o a aliviasse de
cuidados penosos, não perdoou à m inha am iga a int ervenção. Um dia, pergunt oulhe se não t inha que fazer em casa; out ro dia, rindo, solt ou- lhe est e epigram a:
" Não precisa correr t ant o; o que t iver de ser seu às m ãos lhe há de ir" .
CAPÍ TULO LXVI I
UM PECAD O
Já agora não t iro a doent e da cam a sem cont ar o que se deu com igo. Ao cabo de
cinco dias, m inha m ãe am anheceu t ão t ranst ornada que ordenou m e m andassem
buscar ao sem inário. Em vão t io Cosm e:
— Mana Glória, você assust a- se sem m ot ivo, a febre passa...
— Não! não! m andem buscá- lo! Posso m orrer, e a m inha alm a não se salva, se
Bent inho não est iver ao pé de m im .
— Vam os assust á- lo.
— Pois não lhe digam nada, m as vão buscá- lo, j á, j á, não se dem orem .
Cuidaram fosse delírio; m as, não cust ando nada t razer- m e, José Dias foi
incum bido do recado. Ent rou t ão at ordoado que m e assust ou. Cont ou
part icularm ent e ao reit or o que havia, e recebi licença para ir a casa. Na rua,
íam os calados, ele não alt erando o passo do cost um e, — a prem issa ant es da
conseqüência, a conseqüência ant es da conclusão, — m as cabisbaixo e
suspirando, eu t em endo ler no rost o dele algum a not ícia dura e definit iva. Só m e
falara na doença, com o negócio sim ples; m as o cham ado, o silêncio, os suspiros
podiam dizer algum a coisa m ais. O coração bat ia- m e com força, as pernas
bam beavam - m e, m ais de um a vez cuidei cair...
O anseio de escut ar a verdade com plicava- se em m im com o t em or de a saber.
Era a prim eira vez que a m ort e m e aparecia assim pert o, m e envolvia, m e
encarava com os olhos furados e escuros. Quant o m ais andava aquela Rua dos
Barbonos, m ais m e at errava a idéia de chegar a casa, de ent rar, de ouvir os
prant os, de ver um corpo defunt o... Oh! eu não poderia nunca expor aqui t udo o
que sent i naqueles t erríveis m inut os. A rua, por m ais que José Dias andasse
superlat ivam ent e devagar, parecia fugir- m e debaixo dos pés, as casas voavam de
um e out ro lado, e um a cornet a que nessa ocasião t ocava no quart el dos
Municipais Perm anent es ressoava aos m eus ouvidos com o a t rom bet a do j uízo
final.
Fui, cheguei aos Arcos, ent rei na Rua de Mat a- cavalos. A casa não era logo ali,
m as m uit o além da dos I nválidos, pert o da do Senado. Três ou quat ro vezes,
quisera int errogar o m eu com panheiro, sem ousar abrir a boca; m as agora, j á
nem t inha t al desej o. I a só andando, aceit ando o pior, com o um gest o do dest ino,
com o um a necessidade da obra hum ana, e foi ent ão que a Esperança, para
com bat er o Terror, m e segredou ao coração, não est as palavras, pois nada
art iculou parecido com palavras, m as um a idéia que poderia ser t raduzida por
elas: " Mam ãe defunt a, acaba o sem inário" .
Leit or, foi um relâm pago. Tão depressa alum iou a noit e, com o se esvaiu, e a
escuridão fez- se m ais cerrada, pelo efeit o do rem orso que m e ficou. Foi um a
sugest ão da luxúria e do egoísm o. A piedade filial desm aiou um inst ant e, com a
perspect iva da liberdade cert a, pelo desaparecim ent o da dívida e do devedor; foi
um inst ant e, m enos que um inst ant e, o cent ésim o de um inst ant e, ainda assim o
suficient e para com plicar a m inha aflição com um rem orso.
José Dias suspirava. Um a vez olhou para m im t ão cheio de pena que m e pareceu
haver- m e adivinhado, e eu quis pedir- lhe que não dissesse nada a ninguém , que
eu ia cast igar- m e, et c. Mas a pena t razia t ant o am or, que não podia ser pesar do
m eu pecado; m as ent ão era sem pre a m ort e de m inha m ãe... Sent i um a angúst ia
grande, um nó na gargant a, e não pude m ais, chorei de um a vez.
— Que é, Bent inho?
— Mam ãe...?
— Não! não! Que idéia é essa? O est ado dela é gravíssim o, m as não é m al de
m ort e, e Deus pode t udo. Enxugue os olhos, que é feio um m ocinho da sua idade
andar chorando na rua. Não há de ser nada, um a febre... As febres, assim com o
dão com força, assim t am bém se vão em bora... Com os dedos, não; onde est á o
lenço?
Enxuguei os olhos, post o que de t odas as palavras de José Dias um a só m e ficasse
no coração; foi aquele gravíssim o. Vi depois que ele só queria dizer grave, m as o
uso do superlat ivo faz a boca longa, e, por am or do período, José Dias fez crescer
a m inha t rist eza. Se achares nest e livro algum caso da m esm a fam ília, avisa- m e,
leit or, para que o em ende na segunda edição; nada há m ais feio que dar pernas
longuíssim as a idéias brevíssim as. Enxuguei os olhos, repit o, e fui andando,
ansioso agora por chegar a casa, e pedir perdão a m inha m ãe do ruim
pensam ent o que t ive. Enfim , chegam os, ent ram os, subi t rêm ulo os seis degraus
da escada, e daí a pouco, debruçado sobre a cam a, ouvia as palavras t ernas de
m inha m ãe que m e apert ava m uit o as m ãos, cham ando- m e seu filho. Est ava
queim ando, os olhos ardiam nos m eus, t oda ela parecia consum ida por um vulcão
int erno. Aj oelhei- m e ao pé do leit o, m as com o est e era alt o, fiquei longe das suas
carícias:
— Não, m eu filho, levant a, levant a!
Capit u, que est ava na alcova, gost ou de ver a m inha ent rada, os m eus gest os,
palavras e lágrim as, segundo m e disse depois; m as não suspeit ou nat uralm ent e
t odas as causas da m inha aflição. Ent rando no m eu quart o, pensei em dizer t udo a
m inha m ãe, logo que ela ficasse boa, m as est a idéia não m e m ordia, era um a
veleidade pura, um a ação que eu não faria nunca, por m ais que o pecado m e
doesse. Ent ão, levado do rem orso, usei ainda um a vez do m eu velho m eio das
prom essas espirit uais, e pedi a Deus que m e perdoasse e salvasse a vida de
m inha m ãe, e eu lhe rezaria dois m il padre- nossos. Padre que m e lês, perdoa est e
recurso; foi a últ im a vez que o em preguei. A crise em que m e achava, não m enos
que o cost um e e a fé, explica t udo. Eram m ais dois m il; onde iam os ant igos? Não
paguei uns nem out ros, m as saindo de alm as cândidas e verdadeiras t ais
prom essas são com o a m oeda fiduciária, — ainda que o devedor as não pague,
valem a som a que dizem .
CAPÍ TULO LXVI I I
AD I EM OS A VI RTUD E
Poucos t eriam ânim o de confessar aquele m eu pensam ent o da Rua de Mat acavalos. Eu confessarei t udo o que im port ar à m inha hist ória. Mont aigne escreveu
de si: ce ne sont pas m es gest es que j 'escris; c'est m oi, c'est m on essence. Ora,
há só um m odo de escrever a própria essência, é cont á- la t oda, o bem e o m al.
Tal faço eu, à m edida que m e vai lem brando e convidando à const rução ou
reconst rução de m im m esm o. Por exem plo, agora que cont ei um pecado, diria
com m uit o gost o algum a bela ação cont em porânea, se m e lem brasse, m as não m e
lem bra; fica t ransferida a m elhor oport unidade.
Nem perderás em esperar, m eu am igo; ao cont rário, acode- m e agora que... Não
só as belas ações são belas em qualquer ocasião, com o são t am bém possíveis e
prováveis, pela t eoria que t enho dos pecados e das virt udes, não m enos sim ples
que clara. Reduz- se a ist o que cada pessoa nasce com cert o núm ero deles e delas,
aliados por m at rim ônio para se com pensarem na vida. Quando um de t ais
cônj uges é m ais fort e que o out ro, ele só guia o indivíduo, sem que est e, por não
haver prat icado t al virt ude ou com et ido t al pecado, se possa dizer isent o de um ou
de out ro; m as a regra é dar- se a prát ica sim ult ânea dos dois, com vant agem do
port ador de am bos, e algum a vez com resplendor m aior da Terra e do Céu. É pena
que eu não possa fundam ent ar ist o com um ou m ais casos est ranhos; falt a- m e
t em po.
Pelo que m e t oca, é cert o que nasci com alguns daqueles casais, e nat uralm ent e
ainda os possuo. Já m e sucedeu, aqui no Engenho Novo, por est ar um a noit e com
m uit a dor de cabeça, desej ar que o t rem da Cent ral est ourasse longe dos m eus
ouvidos e int errom pesse a linha por m uit as horas, ainda que m orresse alguém ; e
no dia seguint e perdi o t rem da m esm a est rada, por t er ido dar a m inha bengala a
um cego que não t razia bordão. Voilà m es gest es, voilà m on essence.
CAPÍ TULO LXI X
A M I SSA
Um dos gest os que m elhor exprim em a m inha essência foi a devoção com que
corri no dom ingo próxim o a ouvir m issa em São Ant ônio dos Pobres. O agregado
quis ir com igo, e principiou a vest ir- se, m as era t ão lent o nos suspensórios e nas
presilhas, que não pude esperar por ele. Dem ais, eu queria est ar só. Sent ia
necessidade de evit ar qualquer conversação que m e desviasse o pensam ent o do
fim a que ia, e era reconciliar- m e com Deus, depois do que se passou no capít ulo
LXVI I . Nem era só pedir- lhe perdão do pecado, era t am bém agradecer o
rest abelecim ent o de m inha m ãe, e, vist o que digo t udo, fazê- lo renunciar ao
pagam ent o da m inha prom essa. Jeová, post o que divino, ou por isso m esm o, é
um Rot hschild m uit o m ais hum ano, e não faz m orat órias, perdoa as dívidas
int egralm ent e, um a vez que o devedor queira deveras em endar a vida e cort ar nas
despesas. Ora, eu não queria out ra coisa; dali em diant e não faria m ais prom essas
que não pudesse pagar, e pagaria logo as que fizesse.
Ouvi m issa; ao levant ar a Deus, agradeci a vida e saúde de m inha m ãe; depois
pedi perdão do pecado e revelação da dívida, e recebi a bênção final do oficiant e
com o um at o solene de reconciliação. No fim , lem brou- m e que a I grej a
est abeleceu no confessionário um cart ório seguro, e na confissão o m ais aut ênt ico
dos inst rum ent os para o aj ust e de cont as m orais ent re o hom em e Deus. Mas a
m inha incorrigível t im idez m e fechou essa port a cert a; receei não achar palavras
com que dizer ao confessor o m eu segredo. Com o o hom em m uda! Hoj e chego a
publicá- lo.
CAPÍ TULO LXX
D EPOI S D A M I SSA
Rezei ainda, persignei- m e, fechei o livro de m issa e cam inhei para a port a. A
gent e não era m uit a, m as a igrej a t am bém não é grande, e não pude sair logo,
logo, m as devagar. Havia hom ens e m ulheres, velhos e m oços, sedas e chit as, e
provavelm ent e olhos feios e belos, m as eu não vi uns nem out ros. I a na direção
da port a, com a onda, ouvindo as saudações e os cochichos. No adro, onde se fez
claro, parei e olhei para t odos. Vi ent ão um a m oça e um hom em , que saíam da
igrej a e pararam ; e a m oça olhava para m im falando ao hom em , e o hom em
olhava para m im , ouvindo a m oça. E chegaram - m e est as palavras:
— Mas que queres?
— Queria saber dela; papai pergunt e.
Era sinhazinha Sancha, a com panheira de colégio de Capit u, que queria not ícias de
m inha m ãe. O pai veio a m im ; disse- lhe que est ava rest abelecida. Depois saím os,
m ost rou- m e a casa dele, e, com o eu vinha na m esm a direção, viem os j unt os.
Gurgel era hom em de quarent a anos ou pouco m ais, com propensão a engrossar o
vent re; era m uit o obsequioso; chegando à port a da casa, quis por força que eu
fosse alm oçar com ele.
— Obrigado; m am ãe espera- m e.
— Manda- se lá um pret o dizer que o senhor fica alm oçando, e irá m ais t arde.
— Venho out ro dia.
Sinhazinha Sancha, volt ada para o pai, ouvia e esperava. Não era feia; só se lhe
podia not ar a sem elhança do nariz, que t am bém acabava grosso, m as há feições
que t iram a graça de uns para dá- la a out ros. Vest ia sim ples. Gurgel era viúvo e
m orria pela filha. Com o eu recusasse o alm oço, quis que descansasse alguns
m inut os. Não pude recusar e subi. Quis saber a m inha idade, os m eus est udos, a
m inha fé, e dava- m e conselhos para o caso de vir a ser padre; disse- m e o núm ero
do arm azém , Rua da Quit anda. Enfim , despedi- m e, veio ao pat am ar da escada; a
filha deu- m e recom endações para Capit u e para m inha m ãe. Da rua olhei para
cim a; o pai est ava à j anela e fez- m e um gest o largo de despedida.
CAPÍ TULO LXXI
VI SI TA D E ESCOBAR
Em casa, t inham j á m ent ido dizendo a m inha m ãe que eu volt ara e est ava
m udando de roupa.
" A m issa das oit o j á há de t er acabado... Bent inho devia est ar de volt a... Teria
acont ecido algum a coisa, m ano Cosm e?... Mandem ver..." Assim falava ela, de
m inut o a m inut o, m as eu ent rei e com igo a t ranqüilidade.
Era o dia das boas sensações. Escobar foi visit ar- m e e saber da saúde de m inha
m ãe. Nunca m e visit ara at é ali, nem as nossas relações est avam j á t ão est reit as,
com o vieram a ser depois; m as, sabendo a razão da m inha saída, t rês dias ant es,
aproveit ou o dom ingo para ir t er com igo e pergunt ar se cont inuava o perigo ou
não. Quando lhe disse que não, respirou.
— Tive receio, disse ele.
— Os out ros souberam ?
— Parece que sim : alguns souberam .
Tio Cosm e e José Dias gost aram do m oço; o agregado disse- lhe que vira um a vez
o pai no Rio de Janeiro. Escobar era m uit o polido; e, conquant o falasse m ais do
que veio a falar depois, ainda assim não era t ant o com o os rapazes da nossa
idade; naquele dia achei- o um pouco m ais expansivo que de cost um e. Tio Cosm e
quis que j ant asse conosco. Escobar reflet iu um inst ant e e acabou dizendo que o
correspondent e do pai esperava por ele. Eu, lem brando- m e das palavras do
Gurgel, repet i- as:
— Manda- se lá um pret o dizer que o senhor j ant a aqui, e irá depois.
— Tant o incôm odo!
— I ncôm odo nenhum , int erveio t io Cosm e.
Escobar aceit ou, e j ant ou. Not ei que os m ovim ent os rápidos que t inha e dom inava
na aula, t am bém os dom inava agora, na sala com o na m esa. A hora que passou
com igo foi de franca am izade. Most rei- lhe os poucos livros que possuía. Gost ou
m uit o do ret rat o de m eu pai; depois de alguns inst ant es de cont em plação, virouse e disse- m e:
— Vê- se que era um coração puro!
Os olhos de Escobar, claros com o j á disse, eram dulcíssim os; assim os definiu José
Dias, depois que ele saiu, e m ant enho est a palavra, apesar dos quarent a anos que
t raz em cim a de si. Nist o não houve exageração do agregado. A cara rapada
m ost rava um a pele alva e lisa. A t est a é que era um pouco baixa, vindo a risca do
cabelo quase em cim a da sobrancelha esquerda; m as t inha sem pre a alt ura
necessária para não afront ar as out ras feições, nem dim inuir a graça delas.
Realm ent e, era int eressant e de rost o, a boca fina e chocarreira, o nariz curvo e
delgado. Tinha o sest ro de sacudir o om bro direit o, de quando em quando, e veio
a perdê- lo, desde que um de nós lho not ou, um dia, no sem inário; prim eiro
exem plo que vi de que um hom em pode corrigir- se m uit o bem dos defeit os
m iúdos.
Nunca deixei de sent ir t al ou qual desvanecim ent o em que os m eus am igos
agradassem a t odos. Em casa, ficaram querendo bem a Escobar; a m esm a prim a
Just ina achou que era um m oço m uit o apreciável, apesar... — Apesar de quê?
pergunt ou- lhe José Dias, vendo que ela não acabava a frase. Não t eve respost a,
nem podia t ê- la; prim a Just ina provavelm ent e não viu defeit o claro ou im port ant e
no nosso hóspede; o apesar era um a espécie de ressalva para algum que lhe
viesse a descobrir um dia; ou ent ão foi obra de uso velho, que a levou a rest ringir,
onde não achara rest rição.
Escobar despediu- se logo depois de j ant ar; fui levá- lo à port a, onde esperam os a
passagem de um ônibus. Disse- m e que o arm azém do correspondent e era na Rua
dos Pescadores, e ficava abert o at é às nove horas: ele é que se não queria
dem orar fora. Separam o- nos com m uit o afet o: ele, de dent ro do ônibus, ainda m e
disse adeus, com a m ão. Conservei- m e à port a, a ver se, ao longe, ainda olharia
para t rás, m as não olhou.
— Que am igo é esse t am anho? pergunt ou alguém de um a j anela ao pé.
Não é preciso dizer que era Capit u. São coisas que se adivinham na vida, com o
nos livros, sej am rom ances, sej am hist órias verdadeiras. Era Capit u, que nos
espreit ara desde algum t em po, por dent ro da veneziana, e agora abrira
int eiram ent e a j anela, e aparecera. Viu as nossas despedidas t ão rasgadas e
afet uosas, e quis saber quem era que m e m erecia t ant o.
— É o Escobar, disse eu indo pôr- m e em baixo da j anela, a olhar para cim a.
CAPÍ TULO LXXI I
UM A REFORM A D RAM ÁTI CA
Nem eu, nem t u, nem ela, nem qualquer out ra pessoa dest a hist ória poderia
responder m ais, t ão cert o é que o dest ino, com o t odos os dram at urgos, não
anuncia as peripécias nem o desfecho. Eles chegam a seu t em po, at é que o pano
cai, apagam - se as luzes, e os espect adores vão dorm ir. Nesse gênero há
porvent ura algum a coisa que reform ar, e eu proporia, com o ensaio, que as peças
com eçassem pelo fim . Ot elo m at aria a si e a Desdêm ona no prim eiro at o, os t rês
seguint es seriam dados à ação lent a e decrescent e do ciúm e, e o últ im o ficaria só
com as cenas iniciais da am eaça dos t urcos, as explicações de Ot elo e Desdêm ona,
e o bom conselho do fino I ago: "Met e dinheiro na bolsa” .Dest a m aneira, o
espect ador, por um lado, acharia no t eat ro a charada habit ual que os periódicos
lhe dão, por que os últ im os at os explicam o desfecho do prim eiro, espécie de
conceit o, e, por out ro lado, ia para a cam a com um a boa im pressão de t ernura e
de am or:
Ela am ou o que m e afligira,
Eu am ei a piedade dela.
CAPÍ TULO LXXI I I
O CON TRA- REGRA
O dest ino não é só dram at urgo, é t am bém o seu próprio cont ra- regra, ist o é,
designa a ent rada dos personagens em cena, dá- lhes as cart as e out ros obj et os, e
execut a dent ro os sinais correspondent es ao diálogo, um a t rovoada, um carro, um
t iro. Quando eu era m oço, represent ou- se aí, em não sei que t eat ro, um dram a
que acabava pelo j uízo final. O principal personagem era Asaverus, que no últ im o
quadro concluía um m onólogo por est a exclam ação: " Ouço a t rom bet a do
arcanj o! " Não se ouviu t rom bet a nenhum a. Asaverus, envergonhado, repet iu a
palavra, agora m ais alt o, para advert ir o cont ra- regra, m as ainda nada. Ent ão
cam inhou para o fundo, disfarçadam ent e t rágico, m as efet ivam ent e com o fim de
falar ao bast idor, e dizer em voz surda: " O pist ão! o pist ão! o pist ão! " O público
ouviu est a palavra e desat ou a rir, at é que, quando a t rom bet a soou deveras, e
Asaverus bradou pela t erceira vez que era a do arcanj o, um gaiat o da plat éia
corrigiu cá de baixo: " Não, senhor, é o pist ão do arcanj o! "
Assim se explicam a m inha est ada debaixo da j anela de Capit u e a passagem de
um cavaleiro, um dandi, com o ent ão dizíam os. Mont ava um belo cavalo alazão,
firm e na sela, rédea na m ão esquerda, a direit a à cint a, bot as de verniz, figura e
post ura esbelt as: a cara não m e era desconhecida. Tinham passado out ros, e
ainda out ros viriam at rás; t odos iam às suas nam oradas. Era uso do t em po
nam orar a cavalo. Relê Alencar: " Porque um est udant e ( dizia um dos seus
personagens de t eat ro de 1858) não pode est ar sem est as duas coisas, um cavalo
e um a nam orada” .Relê Álvares de Azevedo. Um a das suas poesias é dest inada a
cont ar ( 1851) que residia em Cat um bi, e, para ver a nam orada no Cat et e, alugara
um cavalo por t rês m il- réis... Três m il- réis! t udo se perde na noit e dos t em pos!
Ora, o dandi do cavalo baio não passou com o os out ros; era a t rom bet a do j uízo
final e soou a t em po; assim faz o Dest ino, que é o seu próprio cont ra- regra. O
cavaleiro não se cont ent ou de ir andando, m as volt ou a cabeça para o nosso lado,
o lado de Capit u, e olhou para Capit u, e Capit u para ele; o cavalo andava, a
cabeça do hom em deixava- se ir volt ando para t rás. Tal foi o segundo dent e de
ciúm e que m e m ordeu. A rigor, era nat ural adm irar as belas figuras; m as aquele
suj eit o cost um ava passar ali, às t ardes; m orava no ant igo Cam po da Aclam ação, e
depois... e depois... Vão lá raciocinar com um coração de brasa, com o era o m eu!
Nem disse nada a Capit u; saí da rua à pressa, enfiei pelo m eu corredor, e, quando
dei por m im , est ava na sala de visit as.
CAPÍ TULO LXXI V
A PRESI LH A
Na sala de visit as, t io Cosm e e José Dias conversavam , um sent ado, out ro
andando e parando. A vist a de José Dias lem brou- m e o que ele m e dissera no
sem inário: " Aquilo, enquant o não pegar algum peralt a da vizinhança que case com
ela..." Era cert am ent e alusão ao cavaleiro. Tal recordação agravou a im pressão
que eu t razia da rua; m as não seria essa palavra, inconscient em ent e guardada,
que m e dispôs a crer na m alícia dos seus olhares? A vont ade que t ive foi pegar em
José Dias pela gola, levá- lo ao corredor e pergunt ar- lhe se falara de verdade ou
por hipót ese; m as José Dias, que parara ao ver- m e ent rar, cont inuou a andar e a
falar. Eu, im pacient e, queria ir à casa ao pé, im aginava que Capit u saísse da
j anela assust ada e não t ardasse a aparecer, para indagar e explicar... E os dois
falavam , at é que t io Cosm e ergueu- se para ir ver a doent e, e José Dias veio t er
com igo, ao vão da out ra j anela.
Há um inst ant e t inha eu desej o de lhe pergunt ar o que havia ent re Capit u e os
peralt as do bairro; agora, im aginando que vinha j ust am ent e dizer- m o, fiquei com
m edo de ouvi- lo. Quis t apar- lhe a boca. José Dias viu no m eu rost o algum sinal
diferent e da expressão habit ual, e pergunt ou- m e com int eresse:
— Que é, Bent inho?
Para não fit á- lo, deixei cair os olhos. Os olhos, caindo, viram que um a das
presilhas das calças do agregado est ava desabot oada, e, com o ele insist isse em
saber o que é que eu t inha, respondi apont ando com o dedo:
— Olhe a presilha, abot oe a presilha.
José Dias inclinou- se, eu saí correndo.
CAPÍ TULO LXXV
O D ESESPERO
Escapei ao agregado, escapei a m inha m ãe não indo ao quart o dela, m as não
escapei a m im m esm o. Corri ao m eu quart o, e ent rei at rás de m im . Eu falava- m e,
eu perseguia- m e, eu at irava- m e à cam a, e rolava com igo, e chorava, e abafava os
soluços com a pont a do lençol. Jurei não ir ver Capit u aquela t arde, nem nunca
m ais, e fazer- m e padre de um a vez. Via- m e j á ordenado, diant e dela, que choraria
de arrependim ent o e m e pediria perdão, m as eu, frio e sereno, não t eria m ais que
desprezo, m uit o desprezo; volt ava- lhe as cost as. Cham ava- lhe perversa. Duas
vezes dei por m im m ordendo os dent es, com o se a t ivesse ent re eles.
Da cam a ouvi a voz dela, que viera passar o rest o da t arde com m inha m ãe, e
nat uralm ent e com igo, com o das out ras vezes; m as, por m aior que fosse o abalo
que m e deu, não m e fez sair do quart o. Capit u ria alt o, falava alt o, com o se m e
avisasse; eu cont inuava surdo, a sós com igo e o m eu desprezo. A vont ade que m e
dava era cravar- lhe as unhas no pescoço, ent errá- las bem , at é ver- lhe sair a vida
com o sangue...
CAPÍ TULO LXXVI
EXPLI CAÇÃO
Ao fim de algum t em po, est ava sossegado, m as abat ido. Com o m e achasse
est irado na cam a, com os olhos no t et o, lem brou- m e a recom endação que m inha
m ãe fazia de m e não deit ar depois do j ant ar para evit ar algum a congest ão. Erguim e de golpe, m as não saí do quart o. Capit u ria agora m enos e falava m ais baixo;
est aria aflit a com a m inha reclusão, m as nem por isso m e abalou.
Não ceei e dorm i m al. Na m anhã seguint e não est ava m elhor, est ava diferent e. A
m inha dor agora com plicava- se do receio de haver ido além do que convinha,
deixando de exam inar o negócio. Post o que a cabeça m e doesse um pouco,
sim ulei m aior incôm odo, com o fim de não ir ao sem inário e falar a Capit u. Podia
est ar zangada com igo, podia não querer- m e agora e preferir o cavaleiro. Quis
resolver t udo, ouvi- la e j ulgá- la; podia ser que t ivesse defesa e explicação.
Tinha am bas as coisas. Quando soube a causa da m inha reclusão da véspera,
disse- m e que era grande inj úria que lhe fazia; não podia crer que depois da nossa
t roca de j uram ent os, t ão leviana a j ulgasse que pudesse crer... E aqui rom peram lhe lágrim as, e fez um gest o de separação; m as eu acudi de pront o, peguei- lhe
das m ãos e beij ei- as com t ant a alm a e calor que as sent i est rem ecer. Enxugou os
olhos com os dedos, eu os beij ei de novo, por eles e pelas lágrim as; depois
suspirou, depois abanou a cabeça. Confessou- m e que não conhecia o rapaz, senão
com o os out ros que ali passavam às t ardes, a cavalo ou a pé. Se olhara para ele,
era prova exat am ent e de não haver nada ent re am bos; se houvesse, era nat ural
dissim ular.
— E que poderia haver, se ele vai casar? concluiu.
— Vai casar?
I a casar, disse- m e com quem , com um a m oça da Rua dos Barbonos. Est a razão
quadrou- m e m ais que t udo, e ela o sent iu no m eu gest o; nem por isso deixou de
dizer que, para evit ar nova equivocação, deixaria de ir m ais à j anela.
— Não! não! não! não lhe peço ist o!
Consent iu em ret irar a prom essa, m as fez out ra, e foi que, à prim eira suspeit a da
m inha part e, t udo est aria dissolvido ent re nós. Aceit ei a am eaça, e j urei que nunca
a haveria de cum prir; era a prim eira suspeit a e a últ im a.
CAPÍ TULO LXXVI I
PRAZER D AS D ORES VELH AS
Cont ando aquela crise do m eu am or adolescent e, sint o um a coisa que não sei se
explico bem , e é que as dores daquela quadra, a t al pont o se espirit ualizaram com
o t em po, que chegam a diluir- se no prazer. Não é claro ist o, m as nem t udo é claro
na vida ou nos livros. A verdade é que sint o um gost o part icular em referir t al
aborrecim ent o, quando é cert o que ele m e lem bra out ros que não quisera lem brar
por nada.
CAPÍ TULO LXXVI I I
SEGRED O POR SEGRED O
De rest o, naquele m esm o t em po sent i t al ou qual necessidade de cont ar a alguém
o que se passava ent re m im e Capit u. Não referi t udo, m as só um a part e, e foi
Escobar que a recebeu. Quando volt ei ao sem inário, na quart a- feira, achei- o
inquiet o; disse- m e que era sua int enção ir ver- m e, se eu m e dem orasse m ais um
dia em casa. Pergunt ava- m e com int eresse o que é que t ivera, e se est ava bom de
t odo.
— Est ou.
Ouvia, espet ando- m e os olhos. Três dias depois disse que m e est avam achando
m uit o dist raído; era bom disfarçar o m ais que pudesse. Ele, à sua part e, t inha
razões para andar dist raído t am bém , m as buscava ficar at ent o.
— Ent ão parece- lhe?...
— Sim , você às vezes est á que não ouve nada, olhando para ont em ; disfarce,
Sant iago.
— Tenho m ot ivos...
— Creio; ninguém se dist rai à t oa.
— Escobar...
Hesit ei; ele esperou.
— Que é?
— Escobar, você é m eu am igo, eu sou seu am igo t am bém ; aqui ao sem inário você
é a pessoa que m ais m e t em ent rado no coração, e lá fora, a não ser a gent e da
fam ília, não t enho propriam ent e um am igo.
— Se eu disser a m esm a coisa, ret orquiu ele sorrindo, perde a graça; parece que
est ou repet indo. Mas a verdade é que não t enho aqui relações com ninguém , você
é o prim eiro e creio que j á not aram ; m as eu não m e im port o com isso.
Com ovido, sent i que a voz se m e precipit ava da gargant a.
— Escobar, você é capaz de guardar um segredo?
— Você que pergunt a é porque duvida, e nesse caso...
— Desculpe, é um m odo de falar. Eu sei que é m oço sério, e faço de cont a que m e
confesso a um padre.
— Se precisa de absolvição, est á absolvido.
— Escobar, eu não posso ser padre. Est ou aqui, os m eus acredit am , e esperam ;
m as eu não posso ser padre.
— Nem eu, Sant iago.
— Nem você?
— Segredo por segredo; t am bém eu t enho o propósit o de não acabar o curso;
m eu desej o é o com ércio, m as não diga nada, absolut am ent e nada; fica só ent re
nós. E não é que eu não sej a religioso; sou religioso, m as o com ércio é a m inha
paixão.
— Só isso?
— Que m ais há de ser?
Dei duas volt as e sussurrei a prim eira palavra da m inha confidência, t ão escassa e
surda, que não a ouvi eu m esm o; sei porém que disse " um a pessoa..." com
ret icência. Um a pessoa?... Não foi preciso m ais para que ele ent endesse. Um a
pessoa devia ser um a m oça. Nem cuides que pasm ou de m e ver nam orado; achou
at é nat ural e espet ou- m e out ra vez os olhos. Ent ão cont ei- lhe por alt o o que
podia, m as dem oradam ent e para t er o gost o de repisar o assunt o. Escobar
escut ava com int eresse; no fim da nossa conversação, declarou- m e que era
segredo ent errado em cem it ério. Deu- m e de conselho que não m e fizesse padre.
Não podia levar para a igrej a um coração que não era do Céu, m as da Terra; seria
um m au padre, nem seria padre. Ao cont rário, Deus prot egia os sinceros; um a vez
que eu só podia servi- lo no m undo, aí m e cum pria ficar.
Não calculas o prazer que m e deu a confidência que lhe fiz. Era com o que um a
felicidade m ais. Aquele coração m oço que m e ouvia e m e dava razão, t razia a est e
m undo um aspect o ext raordinário. Era um grande e belo m undo, a vida um a
carreira excelent e, e eu nem m ais nem m enos um m im oso do céu; eis a m inha
sensação. Not a que eu não lhe disse t udo, nem o m elhor; não lhe referi o capít ulo
do pent eado, por exem plo, nem out ros assim ; m as o cont ado era m uit o.
Que volt am os ao assunt o, não é preciso dizê- lo. Volt am os um a e m uit as vezes; eu
louvava as qualidades m orais de Capit u, m at éria adequada à adm iração de um
sem inarist a, a sim pleza, a m odést ia, o am or do t rabalho e os cost um es religiosos.
Não lhe t ocava nas graças físicas, nem ele m e pergunt ava por elas; apenas
insinuei a conveniência de a conhecer de vist a.
— Agora não é possível, disse- lhe na prim eira sem ana, ao volt ar de casa; Capit u
vai passar uns dias com um a am iga da Rua dos I nválidos. Quando ela vier, você
irá lá; m as pode ir ant es, pode ir sem pre; por que não foi ont em j ant ar com igo?
— Você não m e convidou.
— Pois precisa convidar? Lá em casa t odos ficaram gost ando m uit o de você.
— Tam bém eu fiquei gost ando de t odos, m as se é possível fazer dist inção,
confesso- lhe que sua m ãe é um a senhora adorável.
— Não é verdade? ret orqui cheio de alvoroço.
CAPÍ TULO LXXI X
VAM OS AO CAPÍ TULO
Com efeit o, gost ei de ouvi- lo falar assim . Sabes a opinião que eu t inha de m inha
m ãe. Ainda agora, depois de int errom per est a linha para m irar- lhe o ret rat o que
pende da parede, acho que t razia no rost o im pressa aquela qualidade. Nem de
out ro m odo se explica a opinião de Escobar, que apenas t rocara com ela quat ro
palavras. Um a só bast ava a penet rar- lhe a essência ínt im a; sim , sim , m inha m ãe
era adorável. Por m ais que m e est ivesse ent ão obrigando a um a carreira que eu
não queria, não podia deixar de sent ir que era adorável, com o um a sant a.
E porvent ura era cert o que m e obrigava à carreira eclesiást ica? Aqui chego a um
pont o, que esperei viesse depois, t ant o que j á pesquisava em que alt ura lhe daria
um capít ulo. Realm ent e, não cabia dizer agora o que só m ais t arde presum i
descobrir; m as, um a vez que t oquei no pont o, m elhor é acabar com ele. É grave e
com plexo, delicado e sut il, um dest es em que o aut or t em de at ender ao filho, e o
filho há de ouvir o aut or, para que um e out ro digam a verdade, só a verdade,
m as t oda a verdade. Cabe ainda not ar que esse pont o é que t orna j ust am ent e a
sant a m ais adorável, sem prej uízo ( ao cont rário! ) da part e hum ana e t errest re que
havia nela. Bast a de prefácio ao capít ulo; vam os ao capít ulo.
CAPÍ TULO LXXX
VEN H AM OS AO CAPÍ TULO
Venham os ao capít ulo. Minha m ãe era t em ent e a Deus; sabes dist o, e das suas
prát icas religiosas, e da fé pura que as anim ava. Nem ignoras que a m inha
carreira eclesiást ica era obj et o de prom essa feit a quando fui concebido. Tudo est á
cont ado oport unam ent e. Out rossim , sabes que, para o fim de apert ar o vínculo
m oral da obrigação, confiou os seus proj et os e m ot ivos a parent es e fam iliares. A
prom essa, feit a com fervor, aceit a com m isericórdia, foi guardada por ela, com
alegria, no m ais ínt im o do coração. Penso que lhe sent i o sabor da felicidade no
leit e que m e deu a m am ar. Meu pai, se vivesse, é possível que alt erasse os
planos, e, com o t inha a vocação da polít ica, é provável que m e encam inhasse
som ent e à polít ica, em bora os dois ofícios não fossem nem sej am inconciliáveis, e
m ais de um padre ent re na lut a dos part idos e no governo dos hom ens. Mas m eu
pai m orrera sem saber nada, e ela ficou diant e do cont rat o, com o única devedora.
Um dos aforism os de Franklin é que, para quem t em de pagar na páscoa, a
quaresm a é curt a. A nossa quaresm a não foi m ais longa que as out ras, e m inha
m ãe, post o m e m andasse ensinar lat im e dout rina, com eçou a adiar a m inha
ent rada no sem inário. É o que se cham a, com ercialm ent e falando, reform ar um a
let ra. O credor era arquim ilionário, não dependia daquela quant ia para com er, e
consent iu nas t ransferências de pagam ent o, sem sequer agravar a t axa do j uro.
Um dia, porém , um dos fam iliares que serviam de endossant es da let ra, falou da
necessidade de ent regar o preço aj ust ado; est á num dos capít ulos prim eiros.
Minha m ãe concordou e recolhi- m e a São José.
Ora, nesse m esm o capít ulo, vert eu ela um as lágrim as, que enxugou sem explicar,
e que nenhum dos present es, nem t io Cosm e, nem prim a Just ina, nem o agregado
José Dias ent endeu absolut am ent e; eu, que est ava at rás da port a, não as ent endi
m ais que eles. Bem exam inadas, apesar da dist ância, vê- se que eram saudades
prévias, a m ágoa da separação, — e pode ser t am bém ( é o princípio do pont o) ,
pode ser que arrependim ent o da prom essa. Cat ólica e devot a, sent ia m uit o bem
que as prom essas se cum prem ; a quest ão é se é oport uno e adequado fazê- las
t odas, e nat uralm ent e inclinava- se à negat iva. Por que é que Deus a puniria,
negando- lhe um segundo filho? A vont ade divina podia ser a m inha vida, sem
necessidade de lhe dedicar ab ovo. Era um raciocínio t ardio; devia t er sido feit o no
dia em que fui gerado. Em t odo caso, era um a conclusão prim eira; m as, não
bast ando concluir para dest ruir, t udo se m ant eve, e eu fui para o sem inário.
Um cochilo da fé t eria resolvido a quest ão a m eu favor, m as a fé velava com os
seus grandes olhos ingênuos. Minha m ãe faria, se pudesse, um a t roca de
prom essa, dando part e dos seus anos para conservar- m e consigo, fora do clero,
casado e pai; é o que presum o, assim com o suponho que rej eit ou t al idéia, por lhe
parecer um a deslealdade. Assim a sent i sem pre na corrent e da vida ordinária.
Sucedeu que a m inha ausência foi logo t em perada pela assiduidade de Capit u.
Est a com eçou a fazer- se- lhe necessária. Pouco a pouco veio- lhe a persuasão de
que a pequena m e faria feliz. Ent ão ( é o final do pont o anunciá- lo) , a esperança de
que o nosso am or, t ornando- m e absolut am ent e incom pat ível com o sem inário, m e
levasse a não ficar lá nem por Deus nem pelo Diabo, est a esperança ínt im a e
secret a ent rou a invadir o coração de m inha m ãe. Nest e caso, eu rom peria o
cont rat o sem que ela t ivesse culpa. Ela ficava com igo sem at o propriam ent e seu.
Era com o se, t endo confiado a alguém a im port ância de um a dívida para levá- la ao
credor, o port ador guardasse o dinheiro consigo e não levasse nada. Na vida
com um , o at o de t erceiro não desobriga o cont rat ant e; m as a vant agem de
cont rat ar com o Céu é que int enção vale dinheiro.
Hás de t er t ido conflit os parecidos com esse, e, se és religioso, haverás buscado
algum a vez conciliar o Céu e a Terra, por m odo idênt ico ou análogo. O Céu e a
Terra acabam conciliando- se; eles são quase irm ãos gêm eos, t endo o Céu sido
feit o no segundo dia e a Terra no t erceiro. Com o Abraão, m inha m ãe levou o filho
ao m ont e da Visão, e m ais a lenha para o holocaust o, o fogo e o cut elo. E at ou
I saac em cim a do feixe de lenha, pegou do cut elo e levant ou- o ao alt o. No
m om ent o de fazê- lo cair, ouve a voz do anj o que lhe ordena da part e do Senhor:
" Não faças m al algum a t eu filho; conheci que t em es a Deus" . Tal seria a
esperança secret a de m inha m ãe.
Capit u era nat uralm ent e o anj o da Escrit ura. A verdade é que m inha m ãe não
podia t ê- la agora longe de si. A afeição crescent e era m anifest a por at os
ext raordinários. Capit u passou a ser a flor da casa, o sol das m anhãs, o frescor
das t ardes, a lua das noit es; lá vivia horas e horas, ouvindo, falando e cant ando.
Minha m ãe apalpava- lhe o coração, revolvia- lhe os olhos, e o m eu nom e era ent re
am bas com o a senha da vida fut ura.
CAPÍ TULO LXXXI
UM A PALAVRA
Assim cont ado o que descobri m ais t arde, posso t rasladar para aqui um a palavra
de m inha m ãe. Agora se ent enderá que ela m e dissesse, no prim eiro sábado,
quando eu cheguei a casa, e soube que Capit u est ava na Rua dos I nválidos, com
sinhazinha Gurgel:
— Por que não vais vê- la? Não m e dissest e que o pai de Sancha t e ofereceu a
casa?
— Ofereceu.
— Pois ent ão? Mas é se queres. Capit u devia t er volt ado hoj e para acabar um
t rabalho com igo; cert am ent e a am iga pediu- lhe que dorm isse lá.
— Talvez ficassem nam orando, insinuou prim a Just ina.
Não a m at ei por não t er à m ão ferro nem corda, pist ola nem punhal; m as os olhos
que lhe deit ei, se pudessem m at ar, t eriam suprido t udo. Um dos erros da
Providência foi deixar ao hom em unicam ent e os braços e os dent es, com o arm as
de at aque, e as pernas com o arm as de fuga ou de defesa. Os olhos bast avam ao
prim eiro efeit o. Um m over deles faria parar ou cair um inim igo ou um rival,
exerceriam vingança pront a, com est e acréscim o que, para desnort ear a j ust iça,
os m esm os olhos m at adores seriam olhos piedosos, e correriam a chorar a vít im a.
Prim a Just ina escapou aos m eus; eu é que não escapei ao efeit o da insinuação, e
no dom ingo, às onze horas, corri à Rua dos I nválidos.
O pai de Sancha recebeu- m e em desalinho e t rist e. A filha est ava enferm a; caíra
na véspera com um a febre, que se ia agravando. Com o ele queria m uit o à filha,
pensava j á vê- la m ort a, e anunciou- m e que se m at aria t am bém . Eis aqui um
capít ulo fúnebre com o um cem it ério, m ort es, suicídios e assassinat os. Eu ansiava
por um raio de luz clara e céu azul. Foi Capit u que os t rouxe à port a da sala, vindo
dizer ao pai de Sancha que a filha o m andara cham ar.
— Est á pior? pergunt ou Gurgel assust ado.
— Não, senhor, m as quer falar- lhe.
— Fique aqui um bocadinho, disse- lhe ele; e volt ando- se para m im :
enferm eira de Sancha, que não quer out ra; eu j á volt o.
É a
Capit u t razia sinais de fadiga e com oção, m as t ão depressa m e viu, ficou t oda
out ra, a m ocinha de sem pre, fresca e lépida, não m enos que espant ada. Cust oulhe a crer que fosse eu. Falou- m e, quis que lhe falasse, e efet ivam ent e
conversam os por alguns m inut os, m as t ão baixo e abafado que nem as paredes
ouviram , elas que t êm ouvidos. De rest o, se elas ouviram algo, nada ent enderam ,
nem elas nem os m óveis, que est avam t ão t rist es com o o dono.
CAPÍ TULO LXXXI I
O CAN APÉ
Deles, só o canapé pareceu haver com preendido a nossa sit uação m oral, vist o que
nos ofereceu os serviços da sua palhinha, com t al insist ência que os aceit am os e
nos sent am os. Dat a daí a opinião part icular que t enho do canapé. Ele faz aliar a
int im idade e o decoro, e m ost ra a casa t oda sem sair da sala. Dois hom ens
sent ados nele podem debat er o dest ino de um im pério, e duas m ulheres a graça
de um vest ido; m as, um hom em e um a m ulher só por aberração das leis nat urais
dirão out ra coisa que não sej a de si m esm os. Foi o que fizem os, Capit u e eu.
Vagam ent e lem bra- m e que lhe pergunt ei se a dem ora ali seria grande...
— Não sei; a febre parece que cede... m as...
Tam bém m e lem bra, vagam ent e, que lhe expliquei a m inha visit a à Rua dos
I nválidos, com a pura verdade, ist o é, a conselho de m inha m ãe.
— Conselho dela? m urm urou Capit u.
E acrescent ou com os olhos, que brilhavam ext raordinariam ent e:
— Serem os felizes!
Repet i est as palavras, com os sim ples dedos, apert ando os dela. O canapé, quer
visse ou não, cont inuou a prest ar os seus serviço às nossas m ãos presas e às
nossas cabeças j unt as ou quase j unt as.
CAPÍ TULO LXXXI I I
O RETRATO
Gurgel t ornou à sala e disse a Capit u que a filha cham ava por ela. Eu levant ei- m e
depressa e não achei com post ura; m et ia os olhos pelas cadeiras. Ao cont rário,
Capit u ergueu- se nat uralm ent e e pergunt ou- lhe se a febre aum ent ara.
— Não, disse ele.
Nem sobressalt o nem nada, nenhum ar de m ist ério da part e de Capit u; volt ou- se
para m im , e disse- m e que levasse lem branças a m inha m ãe e a prim a Just ina, e
que at é breve; est endeu- m e a m ão e enfiou pelo corredor. Todas as m inhas
invej as foram com ela. Com o era possível que Capit u se governasse t ão facilm ent e
e eu não?
— Est á um a m oça, observou Gurgel olhando t am bém para ela.
Murm urei que sim . Na verdade, Capit u ia crescendo às carreiras, as form as
arredondavam - se e avigoravam - se com grande int ensidade; m oralm ent e, a
m esm a coisa. Era m ulher por dent ro e por fora, m ulher à direit a e à esquerda,
m ulher por t odos os lados, e desde os pés at é à cabeça. Esse arvorecer era m ais
apressado, agora que eu a via de dias a dias; de cada vez que vinha a casa
achava- a m ais alt a e m ais cheia; os olhos pareciam t er out ra reflexão, e a boca
out ro im pério. Gurgel, volt ando- se para a parede da sala, onde pendia um ret rat o
de m oça, pergunt ou- m e se Capit u era parecida com o ret rat o.
Um dos cost um es da m inha vida foi sem pre concordar com a opinião provável do
m eu int erlocut or, desde que a m at éria não m e agrava, aborrece ou im põe. Ant es
de exam inar se efet ivam ent e Capit u era parecida com o ret rat o, fui respondendo
que sim . Ent ão ele disse que era o ret rat o da m ulher dele, e que as pessoas que a
conheceram diziam a m esm a coisa. Tam bém achava que as feições eram
sem elhant es, a t est a principalm ent e e os olhos. Quant o ao gênio, era um ;
pareciam irm ãs.
— Finalm ent e, at é a am izade que ela t em a Sanchinha; a m ãe não era m ais am iga
dela... Na vida há dessas sem elhanças assim esquisit as.
CAPÍ TULO LXXXI V
CH AM AD O
No saguão e na rua, exam inei ainda com igo se efet ivam ent e ele t eria desconfiado
algum a coisa, m as achei que não e pus- m e a andar. I a sat isfeit o com a visit a, com
a alegria de Capit u, com os louvores de Gurgel, a t al pont o que não acudi logo a
um a voz que m e cham ava:
— Sr. Bent inho! Sr. Bent inho!
Só depois que a voz cresceu e o dono dela chegou à port a é que eu parei e vi o
que era e onde est ava. Est ava j á na Rua de Mat a- cavalos. A casa era um a loj a de
louça, escassa e pobre; t inha as port as m eio cerradas, e a pessoa que m e
cham ava era um pobre hom em grisalho e m al vest ido.
— Sr. Bent inho, disse- m e ele chorando; sabe que m eu filho Manduca m orreu?
— Morreu?
— Morreu há m eia hora, ent erra- se am anhã. Mandei recado a sua m ãe agora
m esm o, e ela fez- m e a caridade de m andar algum as flores para bot ar no caixão.
Meu pobre filho! Tinha de m orrer, e foi bom que m orresse, coit ado, m as apesar de
t udo sem pre dói. Que vida que ele t eve! ... Um dia dest es ainda se lem brou do
senhor, e pergunt ou se est ava no sem inário... Quer vê- lo? Ent re, ande vê- lo...
Cust a- m e dizer ist o, m as ant es peque por excessivo que por dim inut o. Quis
responder que não, que não queria ver o Manduca, e fiz at é um gest o para fugir.
Não era m edo; nout ra ocasião pode ser at é que ent rasse com facilidade e
curiosidade, m as agora ia t ão cont ent e! Ver um defunt o ao volt ar de um a
nam orada... Há coisas que se não aj ust am nem com binam . A sim ples not ícia era
j á um a t urvação grande. As m inhas idéias de ouro perderam t odas a cor e o m et al
para se t rocarem em cinza escura e feia, e não dist ingui m ais nada. Penso que
cheguei a dizer que t inha pressa, m as provavelm ent e não falei por palavras claras,
nem sequer hum anas, porque ele, encost ado ao port al, abria- m e espaço com o
gest o, e eu, sem alm a para ent rar nem fugir, deixei ao corpo fazer o que pudesse,
e o corpo acabou ent rando.
Não culpo ao hom em ; para ele, a coisa m ais im port ant e do m om ent o era o filho.
Mas t am bém não m e culpem a m im ; para m im , a coisa m ais im port ant e era
Capit u. O m al foi que os dois casos se conj ugassem na m esm a t arde, e que a
m ort e de um viesse m et er o nariz na vida do out ro. Eis o m al t odo. Se eu
passasse ant es ou depois, ou se o Manduca esperasse algum as horas para m orrer,
nenhum a not a aborrecida viria int errom per as m elodias da m inha alm a. Por que
m orrer exat am ent e há m eia hora? Toda hora é apropriada ao óbit o; m orre- se
m uit o bem às seis ou set e horas da t arde.
CAPÍ TULO LXXXV
O D EFUN TO
Tal foi o sent im ent o confuso com que ent rei na loj a de louça. A loj a era escura, e o
int erior da casa m enos luz t inha, agora que as j anelas da área est avam cerradas.
A um cant o da sala de j ant ar vi a m ãe chorando; à port a da alcova duas crianças
olhavam espant adas para dent ro, com o dedo na boca. O cadáver j azia na cam a; a
cam a...
Suspendam os a pena e vam os à j anela espairecer a m em ória. Realm ent e, o
quadro era feio, j á pela m ort e, j á pelo defunt o, que era horrível... I st o aqui, sim , é
out ra coisa. Tudo o que vej o lá fora respira vida, a cabra que rum ina ao pé de
um a carroça, a galinha que m arisca no chão da rua, o t rem da Est rada Cent ral que
bufa, assobia, fum ega e passa, a palm eira que invest e para o céu, e finalm ent e
aquela t orre de igrej a, apesar de não t er m úsculos nem folhagem . Um rapaz, que
ali no beco em pina um papagaio de papel, não m orreu nem m orre, post o t am bém
se cham e Manduca.
Verdade é que o out ro Manduca era m ais velho que est e, pouco m ais velho. Teria
dezoit o ou dezenove anos, m as t ant o lhe darias quinze com o vint e e dois, a cara
não perm it ia t razer a idade à vist a, ant es a escondia nas dobras da... Vá, diga- se
t udo; é m ort o, os seus parent es são m ort os, se exist e algum não é em t al
evidência que se vexe ou doa. Diga- se t udo; Manduca padecia de um a cruel
enferm idade, nada m enos que a lepra. Vivo era feio; m ort o pareceu- m e horrível.
Quando eu vi, est endido na cam a, o t rist e corpo daquele m eu vizinho, fiquei
apavorado e desviei os olhos. Não sei que m ão ocult a m e com peliu a olhar out ra
vez, ainda que de fugida; cedi, olhei, t ornei a olhar, at é que recuei de t odo e saí
do quart o.
— Padeceu m uit o! suspirou o pai.
— Coit ado de Manduca! soluçava a m ãe.
Eu cuidei de sair, disse que era esperado em casa, e despedi- m e. O pai
pergunt ou- m e se lhe faria o favor de ir ao ent erro; respondi com a verdade, que
não sabia, faria o que m inha m ãe quisesse. E rápido saí, at ravessei a loj a, e salt ei
à rua.
CAPÍ TULO LXXXVI
AM AI , RAPAZES!
Era t ão pert o, que ant es de t rês m inut os m e achei em casa. Parei no corredor, a
t om ar fôlego; buscava esquecer o defunt o, pálido e disform e, e o m ais que não
disse para não dar a est as páginas um aspect o repugnant e, m as podes im aginá- lo.
Tudo arredei da vist a, em poucos segundos; bast ou- m e pensar na out ra casa, e
m ais na vida e na cara fresca e lépida de Capit u... Am ai, rapazes! e,
principalm ent e, am ai m oças lindas e graciosas; elas dão rem édio ao m al, arom a
ao infect o, t rocam a m ort e pela vida... Am ai, rapazes!
CAPÍ TULO LXXXVI I
A SEGE
Chegara ao últ im o degrau, e um a idéia m e ent rou no cérebro, com o se est ivesse a
esperar por m im , ent re as grades da cancela. Ouvi de m em ória as palavras do pai
de Manduca pedindo- m e que fosse ao ent erro no dia seguint e. Parei no degrau.
Reflet i um inst ant e; sim , podia ir ao ent erro, pediria a m inha m ãe que m e
alugasse um carro...
Não cuides que era o desej o de andar de carro, por m ais que t ivesse o gost o da
condução. Em pequeno, lem bra- m e que ia assim m uit a vez com m inha m ãe às
visit as de am izade ou de cerim ônia, e à m issa, se chovia. Era um a velha sege de
m eu pai, que ela conservou o m ais que pôde. O cocheiro, que era nosso escravo,
t ão velho com o a sege, quando m e via à port a, vest ido, esperando m inha m ãe,
dizia- m e rindo:
— Pai João vai levar nhonhô!
E era raro que eu não lhe recom endasse:
— João, dem ora m uit o as best as; vai devagar.
— Nhá Glória não gost a.
— Mas dem ora!
Fica ent endido que era para saborear a sege, não pela vaidade, porque ela não
perm it ia ver as pessoas que iam dent ro. Era um a velha sege obsolet a, de duas
rodas, est reit a e curt a, com duas cort inas de couro na frent e, que corriam para os
lados quando era preciso ent rar ou sair. Cada cort ina t inha um óculo de vidro, por
onde eu gost ava de espiar para fora.
— Sent a, Bent inho!
— Deixa espiar, m am ãe!
E em pé, quando era m ais pequeno, m et ia a cara no vidro, e via o cocheiro com as
suas grandes bot as, escanchado na m ula da esquerda, e segurando a rédea da
out ra; na m ão levava o chicot e grosso e com prido. Tudo incôm odo, as bot as, o
chicot e e as m ulas, m as ele gost ava e eu t am bém . Dos lados via passar as casas,
loj as ou não, abert as ou fechadas, com gent e ou sem ela, e na rua as pessoas que
iam e vinham , ou at ravessavam diant e da sege, com grandes pernadas ou passos
m iúdos. Quando havia im pedim ent o de gent e ou de anim ais, a sege parava, e
ent ão o espet áculo era part icularm ent e int eressant e; as pessoas paradas na
calçada ou à port a das casas, olhavam para a sege e falavam ent re si,
nat uralm ent e sobre quem iria dent ro. Quando fui crescendo em idade im aginei
que adivinhavam e diziam : " É aquela senhora da Rua de Mat a- cavalos, que t em
um filho, Bent inho...”
A sege ia t ant o com a vida recôndit a de m inha m ãe, que quando j á não havia
nenhum a out ra, cont inuam os a andar nela, e era conhecida na rua e no bairro
pela " sege ant iga” . Afinal m inha m ãe consent iu em deixá- la, sem a vender logo;
só abriu m ão dela porque as despesas de cocheira a obrigaram a isso. A razão de
a guardar inút il foi exclusivam ent e sent im ent al; era a lem brança do m arido. Tudo
o que vinha de m eu pai era conservado com o um pedaço dele, um rest o da
pessoa, a m esm a alm a int egral e pura. Mas o uso, esse era filho t am bém do
carrancism o que ela confessava aos am igos. Minha m ãe exprim ia bem a fidelidade
aos velhos hábit os, velhas m aneiras, velhas idéias, velhas m odas. Tinha o seu
m useu de relíquias, pent es desusados, um t recho de m ant ilha; um as m oedas de
cobre dat adas de 1824 e 1825, e, para que t udo fosse ant igo, a si m esm a se
queria fazer velha; m as j á deixei dit o que, nest e pont o, não alcançava t udo o que
queria.
CAPÍ TULO LXXXVI I I
UM PRETEXTO H ON ESTO
Não, a idéia de ir ao ent erro não vinha da lem brança do carro e suas doçuras. A
origem era out ra: era porque, acom panhando o ent erro no dia seguint e, não iria
ao sem inário, e podia fazer out ra visit a a Capit u, um t ant o m ais dem orada. Eis aí
o que era. A lem brança do carro podia vir acessoriam ent e depois, m as a principal
e im ediat a foi aquela. Volt aria à Rua dos I nválidos, a pret ext o de saber de
sinhazinha Gurgel. Cont ava que t udo m e saísse com o naquele dia. Gurgel aflit o,
Capit u com igo no canapé, as m ãos presas, o pent eado...
— Vou pedir a m am ãe.
Abri a cancela. Ant es de t ranspô- la, assim com o ouvira da m em ória a palavra do
pai do m ort o, ouvi agora a da m ãe, e repet i a m eia voz:
— Coit ado de Manduca!
CAPÍ TULO LXXXI X
A RECUSA
Minha m ãe ficou perplexa quando lhe pedi para ir ao ent erro.
— Perder um dia de sem inário...
Fiz- lhe not ar a am izade que o Manduca m e t inha, e depois era gent e pobre... Tudo
o que m e lem brou dizer, disse. Prim a Just ina opinou pela negat iva.
— Você acha que não deve ir? pergunt ou- lhe m inha m ãe.
— Acho que não. Que am izade é essa que eu nunca vi?
Prim a Just ina venceu. Quando referi o caso ao agregado, est e sorriu, e disse- m e
que o m ot ivo escondido da prim a era provavelm ent e não dar ao ent erro " o lust re
da m inha pessoa" . Fosse o que fosse, fiquei am uado; no dia seguint e, pensando
no m ot ivo, não m e desagradou; m ais t arde achei- lhe um sabor part icular.
CAPÍ TULO XC
A POLÊM I CA
No dia seguint e, passei pela casa do defunt o, sem ent rar nem parar, — ou, se
parei, foi só um inst ant e, ainda m ais breve que est e em que vo- lo digo. Se m e não
engano, andei at é m ais depressa, receando que m e cham assem com o na véspera.
Um a vez que não ia ao ent erro, ant es longe que próxim o. Fui andando e pensando
no pobre diabo.
Não éram os am igos, nem nos conhecíam os de m uit o. I nt im idade, que int im idade
podia haver ent re a doença dele e a m inha saúde? Tivem os relações breves e
dist ant es. Fui pensando nelas, recordando algum as. Reduziam - se t odas a um a
polêm ica, ent re nós, dois anos ant es, a propósit o... Mal podeis crer a que
propósit o foi. Foi a guerra da Crim éia.
Manduca vivia no int erior da casa, deit ado na cam a, lendo por desfast io. Ao
dom ingo, sobre a t arde, o pai enfiava- lhe um a cam isola escura, e t razia- o para o
fundo da loj a, donde ele espiava um palm o da rua e a gent e que passava. Era
t odo o seu recreio. Foi ali que o vi um a vez, e não fiquei pouco espant ado; a
doença ia- lhe com endo part e das carnes, os dedos queriam apert ar- se; o aspect o
não at raía, decert o. Tinha eu de t reze para quat orze anos. Da segunda vez que o
vi ali, com o falássem os da guerra da Crim éia, que ent ão ardia e andava nos
j ornais, Manduca disse que os aliados haviam de vencer, e eu respondi que não.
— Pois verem os, t ornou ele. Só se a j ust iça não vencer nest e m undo, o que é
im possível, e a j ust iça est á com os aliados.
— Não, senhor, a razão é dos russos.
Nat uralm ent e, íam os com o que nos diziam os j ornais da cidade, t ranscrevendo os
de fora, m as pode ser t am bém que cada um de nós t ivesse a opinião do seu
t em peram ent o. Fui sem pre um t ant o m oscovit a nas m inhas idéias. Defendi o
direit o da Rússia, Manduca fez o m esm o ao dos aliados, e o t erceiro dom ingo em
que ent rei na loj a t ocam os out ra vez no assunt o. Ent ão Manduca propôs que
t rocássem os a argum ent ação por escrit o, e na t erça ou quart a- feira recebi duas
folhas de papel cont endo a exposição e defesa do direit o dos aliados, e da
int egridade da Turquia, concluindo por est a frase profét ica:
" Os russos não hão de ent rar em Const ant inopla! ”
Li- a e m et i- m e a refut á- la. Não m e recorda um só dos argum ent os que em preguei,
nem t alvez int eresse conhecê- los, agora que o século est á a expirar; m as a idéia
que m e ficou deles é que eram irrespondíveis. Fui eu m esm o levar- lhe o m eu
papel. Fizeram - m e ent rar na alcova, onde ele j azia est irado na cam a, m al cobert o
por um a colcha de ret alhos. Ou gost o da polêm ica ou qualquer out ra causa que
não alcanço, não m e deixou sent ir t oda a repugnância que saía da cam a e do
doent e, e o prazer com que lhe dei o papel foi sincero. Manduca, pela sua part e,
por m ais noj osa que t ivesse ent ão a cara, o sorriso que a acendeu dissim ulou o
m al físico. A convicção com que m e recebeu o papel e disse que ia ler e
responderia é que não t em palavras nossas nem alheias que a digam de t odo e
com verdade; não era exalt ada, não era ruidosa, não t inha gest os, nem a m olést ia
os perm it iria; era sim ples, grande, profunda, um gozo infinit o de vit ória, ant es de
saber os m eus argum ent os. Tinha j á papel, pena e t int a ao pé da cam a. Dias
depois recebi a réplica; não m e lem bra se t razia coisas novas ou não; o calor é
que crescia, e o final era o m esm o:
" Os russos não hão de ent rar em Const ant inopla! ”
Trepliquei, e daí cont inuou por algum t em po um a polêm ica ardent e, em que
nenhum de nós cedia, defendendo cada um os seus client es com força e brio.
Manduca era m ais longo e pront o que eu. Nat uralm ent e a m im sobravam m il
coisas que dist raíam , o est udo, os recreios, a fam ília, e a própria saúde, que m e
cham ava a out ros exercícios. Manduca, salvo o palm o de rua ao dom ingo de t arde,
t inha só est a guerra, assunt o da cidade e do m undo, m as que ninguém ia t rat ar
com ele. O acaso dera- lhe em m im um adversário; ele, que t inha gost o à escrit a,
deit ou- se ao debat e, com o a um rem édio novo e radical. As horas t rist es e
com pridas eram agora breves e alegres; os olhos desaprenderam de chorar, se
porvent ura choravam ant es. Sent i est a m udança dele nas próprias m aneiras do
pai e da m ãe.
— Não im agina com o ele anda agora, depois que o senhor lhe escreve aqueles
papéis, dizia- m e o dono da loj a, um a vez, à port a da rua. Fala e ri m uit o. Logo
que eu m ando o caixeiro levar- lhe os papéis dele, ent ra a indagar da respost a, e
se dem orará m uit o, e que pergunt e ao m oleque, quando passar. Enquant o espera,
relê j ornais e t om a not as. Mas t am bém , apenas recebe os seus papéis, at ira- se a
lê- los, e com eça logo a escrever a respost a. Há ocasiões em que não com e ou
com e m al; t ant o que eu queria pedir- lhe um a coisa, é que não os m ande à hora
do alm oço ou de j ant ar...
Fui eu que cansei prim eiro. Com ecei a dem orar as respost as, at é que não dei m ais
nenhum a; ele ainda t eim ou duas ou t rês vezes depois do m eu silêncio, m as não
recebendo cont est ação algum a, por fadiga t am bém ou por não aborrecer, acabou
de t odo com as suas apologias. A últ im a, com o a prim eira, com o t odas, afirm ava a
m esm a predição et erna:
" Os russos não hão de ent rar em Const ant inopla! ”
Não ent raram , efet ivam ent e, nem ent ão, nem depois, nem at é agora. Mas a
predição será et erna? Não chegarão a ent rar algum dia? Problem a difícil. O próprio
Manduca, para ent rar na sepult ura, gast ou t rês anos de dissolução, t ão cert o é
que a nat ureza, com o a hist ória, não se faz brincando. A vida dele resist iu com o a
Turquia; se afinal cedeu foi porque lhe falt ou um a aliança com o a anglo- francesa,
não se podendo considerar t al o sim ples acordo da Medicina e da farm ácia. Morreu
afinal, com o os Est ados m orrem ; no nosso caso part icular, a quest ão é saber, não
se a Turquia m orrerá, porque a m ort e não poupa a ninguém , m as se os russos
ent rarão algum dia em Const ant inopla; essa era a quest ão para o m eu vizinho
leproso, debaixo da t rist e, rot a e infect a colcha de ret alhos...
CAPÍ TULO XCI
ACH AD O QUE CON SOLA
É claro que as reflexões que aí deixo não foram feit as ent ão, a cam inho do
sem inário, m as agora no gabinet e do Engenho Novo. Ent ão, não fiz propriam ent e
nenhum a, a não ser est a: que servi de alívio um dia ao m eu vizinho Manduca.
Hoj e, pensando m elhor, acho que não só servi de alívio, m as at é lhe dei felicidade.
E o achado consola- m e; j á agora não esquecerei m ais que dei dois ou t rês m eses
de felicidade a um pobre diabo, fazendo- lhe esquecer o m al e o rest o. É algum a
coisa na liquidação da m inha vida. Se há no out ro m undo t al ou qual prêm io para
as virt udes sem int enção, est a pagará um ou dois dos m eus m uit os pecados.
Quant o ao Manduca, não creio que fosse pecado opinar cont ra a Rússia, m as, se
era, ele est ará purgando há quarent a anos a felicidade que alcançou em dois ou
t rês m eses, — donde concluirá ( j á t arde) que era ainda m elhor haver gem ido
som ent e, sem opinar coisa nenhum a.
CAPÍ TULO XCI I
O D I ABO N ÃO É TÃO FEI O COM O SE PI N TA
Manduca ent errou- se sem m im . A m uit os out ros acont eceu a m esm a coisa, sem
que eu sent isse nada, m as est e caso afligiu- m e part icular m ent e pela razão j á
dit a. Tam bém sent i não sei que m elancolia ao recordar a prim eira polêm ica da
vida, o gost o com que ele recebia os m eus papéis e se propunha a refut á- los, não
cont ando o gost o do carro... Mas o t em po apagou depressa t odas essas saudades
e ressurreições. Nem foi só ele; duas pessoas vieram aj udá- lo: Capit u, cuj a
im agem dorm iu com igo na m esm a noit e, e out ra que direi no capít ulo que vem . O
rest o dest e capít ulo é só para pedir que, se alguém t iver de ler o m eu livro com
algum a at enção m ais da que lhe exigir o preço do exem plar, não deixe de concluir
que o Diabo não é t ão feio com o se pint a. Quero dizer...
Quero dizer que o m eu vizinho de Mat a- cavalos, t em perando o m al com a opinião
ant i- russa, dava à podridão das suas carnes um reflexo espirit ual que as
consolava. Há consolação m aiores, decert o, e um a das m ais excelent es é não
padecer esse nem out ro m al algum , m as a nat ureza é t ão divina que se divert e
com t ais cont rast es, e aos m ais noj ent os ou m ais aflit os acena com um a flor. E
t alvez saia assim a flor m ais bela; o m eu j ardineiro afirm a que as violet as, para
t erem um cheiro superior, hão m ist er de est rum e de porco. Não exam inei, m as
deve ser verdade.
CAPÍ TULO XCI I I
UM AM I GO POR UM D EFUN TO
Quant o à out ra pessoa que t eve a força oblit erat iva, foi o m eu colega Escobar que
no dom ingo, ant es do m eio- dia, veio t er a Mat a- cavalos. Um am igo supria assim
um defunt o, e t al am igo que durant e cerca de cinco m inut os est eve com a m inha
m ão ent re as suas, com o se m e não visse desde longos m eses.
— Você j ant a com igo, Escobar?
— Vim para ist o m esm o.
Minha m ãe agradeceu- lhe a am izade que m e t inha, e ele respondeu com m uit a
polidez, ainda que um t ant o at ado, com o se carecesse de palavra pront a. Já vist e
que não era assim , a palavra obedecia- lhe, m as o hom em não é sem pre o m esm o
em t odos os inst ant es. O que ele disse, em resum o, foi que m e est im ava pelas
m inhas boas qualidades e aprim orada educação; no sem inário t odos m e queriam
bem , nem podia deixar de ser assim , acrescent ou. I nsist ia na educação, nos bons
exem plos, " na doce e rara m ãe" que o céu m e deu... Tudo isso com a voz
engasgada e t rêm ula.
Todos ficaram gost ando dele. Eu est ava t ão cont ent e com o se Escobar fosse
invenção m inha. José Dias desfechou- lhe dois superlat ivos, t io Cosm e dois
capot es, e prim a Just ina não achou t acha que lhe pôr; depois, sim , no segundo ou
t erceiro dom ingo, veio ela confessar- nos que o m eu am igo Escobar era um t ant o
m et ediço e t inha uns olhos policiais a que não escapava nada.
— São os olhos dele, expliquei.
— Nem eu digo que sej am de out ro.
— São olhos reflet idos, opinou t io Cosm e.
— Seguram ent e, acudiu José Dias; ent ret ant o, pode ser que a senhora D. Just ina
t enha algum a razão. A verdade é que um a coisa não im pede out ra, e a reflexão
casa- se m uit o bem à curiosidade nat ural. Parece curioso, isso parece, m as...
— A m im parece- m e um m ocinho m uit o sério, disse m inha m ãe.
— Just am ent e! confirm ou José Dias para não discordar dela.
Quando eu referi a Escobar aquela opinião de m inha m ãe ( sem lhe cont ar as
out ras, nat uralm ent e) , vi que o prazer dele foi ext raordinário. Agradeceu, dizendo
que eram bondades, e elogiou t am bém m inha m ãe, senhora grave, dist int a e
m oça, m uit o m oça... Que idade t eria?
— Já fez quarent a, respondi eu vagam ent e por vaidade.
— Não é possível! exclam ou Escobar. Quarent a anos! Nem parece t rint a; est á
m uit o m oça e bonit a. Tam bém a alguém há de você sair, com esses olhos que
Deus lhe deu; são exat am ent e os dela. Enviuvou há m uit os anos?
Cont ei- lhe o que sabia da vida dela e de m eu pai. Escobar escut ava at ent o,
pergunt ando m ais, pedindo explicação das passagens om issas ou só escuras.
Quando eu lhe disse que não m e lem brava nada da roça, t ão pequenino viera,
cont ou- m e duas ou t rês rem iniscências dos seus t rês anos de idade, ainda agora
frescas. E não cont ávam os volt ar à roça?
— Não, agora não volt am os m ais. Olhe, aquele pret o que ali vai passando, é de lá.
Tom ás!
— Nhonhô!
Est ávam os na hort a da m inha casa, e o pret o andava em serviço; chegou- se a nós
e esperou.
— É casado, disse eu para Escobar. Maria onde est á?
— Est á socando m ilho, sim , senhor.
— Você ainda se lem bra da roça, Tom ás?
— Alem bra, sim , senhor.
— Bem , vá- se em bora.
Most rei out ro, m ais out ro, e ainda out ro, est e Pedro, aquele José, aquele out ro
Dam ião...
— Todas as let ras do alfabet o, int errom peu Escobar.
Com efeit o, eram diferent es let ras, e só ent ão reparei nist o; apont ei ainda out ros
escravos, alguns com os m esm os nom es, dist inguindo- se por um apelido, ou da
pessoa, com o João Fulo, Maria Gorda, ou de nação com o Pedro Benguela, Ant ônio
Moçam bique...
— E est ão t odos aqui em casa? pergunt ou ele.
— Não, alguns andam ganhando na rua, out ros est ão alugados. Não era possível
t er t odos em casa. Nem são t odos os da roça; a m aior part e ficou lá.
— O que m e adm ira é que D. Glória se acost um asse logo a viver em casa da
cidade, onde t udo é apert ado; a de lá é nat uralm ent e grande.
— Não sei, m as parece. Mam ãe t em out ras casas m aiores que est a; diz porém que
há de m orrer aqui. As out ras est ão alugadas. Algum as são bem grandes, com o a
da Rua da Quit anda...
— Conheço essa; é bonit a.
— Tem t am bém no Rio Com prido, na Cidade- Nova, um a no Cat et e...
— Não lhe hão de falt ar t et os, concluiu ele sorrindo com sim pat ia.
Cam inham os para o fundo. Passam os o lavadouro; ele parou um inst ant e aí,
m irando a pedra de bat er roupa e fazendo reflexões a propósit o do asseio; depois
cont inuam os. Quais foram as reflexões não m e lem bra agora; lem bra- m e só que
as achei engenhosas, e ri, ele riu t am bém . A m inha alegria acordava a dele, e o
céu est ava t ão azul, e o ar t ão claro, que a nat ureza parecia rir t am bém conosco.
São assim as boas horas dest e m undo. Escobar confessou esse acordo do int erno
com o ext erno, por palavras t ão finas e alt as que m e com overam ; depois, a
propósit o da beleza m oral que se aj ust a à física, t ornou a falar de m inha m ãe, " um
anj o dobrado" , disse ele.
CAPÍ TULO XCI V
I D ÉI AS ARI TM ÉTI CAS
Não digo o m ais, que foi m uit o. Nem ele sabia só elogiar é pensar, sabia t am bém
calcular depressa e bem . Era das cabeças arit m ét icas de Holm es ( 2 + 2 = 4) . Não
se im agina a facilidade com que ele som ava ou m ult iplicava de cor. A divisão, que
foi sem pre um a das operações difíceis para m im , era para ele com o nada: cerrava
um pouco os olhos, volt ados para cim a, e sussurrava as denom inações dos
algarism os; est ava pront o. I st o com set e, t reze, vint e algarism os. A vocação era
t al que o fazia am ar os próprios sinais das som as, e t inha est a opinião que os
algarism os, sendo poucos, eram m uit o m ais conceit uosos que as vint e e cinco
let ras do alfabet o.
— Há let ras inút eis e let ras dispensáveis, dizia ele. Que serviço diverso prest am o
d e o t ? Têm quase o m esm o som . O m esm o digo do b e do p, o m esm o do s, do c
e do z, o m esm o do k e do g, et c. São t rapalhices caligráficas. Vej a os algarism os:
não há dois que façam o m esm o ofício; 4 é 4, e 7 é 7. E adm ire a beleza com que
um 4 e um 7 form am est a coisa que se exprim e por 11. Agora dobre 11 e t erá 22;
m ult iplique por igual núm ero, dá 484, e assim por diant e. Mas onde a perfeição é
m aior é no em prego do zero. O valor do zero é, em si m esm o, nada; m as o ofício
dest e sinal negat ivo é j ust am ent e aum ent ar. Um 5 sozinho é um 5; ponha- lhe dois
00, é 500. Assim , o que não vale nada faz valer m uit o, coisa que não fazem as
let ras dobradas, pois eu t ant o aprovo com um p com o com dois pp.
Criado na ort ografia de m eus pais, cust ava- m e a ouvir t ais blasfêm ias, m as não
ousava refut á- lo. Cont udo, um dia, proferi algum as palavras de defesa, ao que ele
respondeu que era um preconceit o, e acrescent ou que as idéias arit m ét icas
podiam ir ao infinit o, com a vant agem que eram m ais fáceis de m enear. Assim
que, eu não era capaz de resolver de m om ent o um problem a filosófico ou
lingüíst ico, ao passo que ele podia som ar, em t rês m inut os, quaisquer quant ias.
— Por exem plo... dê- m e um caso, dê- m e um a porção de núm eros que eu não
saiba nem possa saber ant es... olhe, dê- m e o núm ero das casas de sua m ãe e os
aluguéis de cada um a, e se eu não disser a som a t ot al em dois, em um m inut o,
enforque- m e!
Aceit ei a apost a, e na sem ana seguint e levei- lhe escrit os em um papel os
algarism os das casas e dos aluguéis. Escobar pegou o papel, passou- os pelos
olhos a fim de os decorar, e enquant o eu fit ava o relógio, ele erguia as pupilas,
cerrava as pálpebras, e sussurrava... Oh! o vent o não é m ais rápido! Foi dit o e
feit o; em m eio m inut o bradava- m e:
— Dá t udo 1: 070$000 m ensais.
Fiquei pasm ado. Considera que eram não m enos de nove casas, e que os aluguéis
variavam de um a para out ra, indo de 70$000 a 180$000. Pois t udo ist o em que eu
gast aria t rês ou quat ro m inut os, — e havia de ser no papel, — fê- lo Escobar de
cor, brincando. Olhava- m e t riunfalm ent e, e pergunt ava se não era exat o. Eu, só
por lhe m ost rar que sim , t irei do bolso o papelzinho que levava com a som a t ot al,
e m ost rei- lho; era aquilo m esm o, nem um erro: 1: 070$000.
— I st o prova que as idéias arit m ét icas são m ais sim ples, e port ant o m ais nat urais.
A nat ureza é sim ples. A art e é at rapalhada.
Fiquei t ão ent usiasm ado com a facilidade m ent al do m eu am igo, que não pude
deixar de abraçá- lo. Era no pát io; out ros sem inarist as not aram a nossa efusão;
um padre que est ava com eles não gost ou.
— A m odést ia, disse- nos, não consent e esses gest os excessivos; podem est im arse com m oderação.
Escobar observou- m e que os out ros e o padre falavam de invej a e propôs- m e
viver separados. I nt errom pi- o dizendo que não; se era invej a, t ant o pior para eles.
— Quebrem os- lhe a cast anha na boca!
— Mas...
— Fiquem os ainda m ais am igos que at é aqui.
Escobar apert ou- m e a m ão às escondidas, com t al força que ainda m e doem os
dedos. É ilusão, decert o, se não é efeit o das longas horas que t enho est ado a
escrever sem parar. Suspendam os a pena por alguns inst ant es...
CAPÍ TULO XCV
O PAPA
A am izade de Escobar fez- se grande e fecunda; a de José Dias não lhe quis ficar
at rás. Na prim eira sem ana disse- m e est e em casa:
— Agora é cert o que você vai sair j á do sem inário.
— Com o?
— Espere at é am anhã. Vou j ogar com eles que m e cham aram ; am anhã, lá no
quart o, no quint al, ou na rua, indo à m issa, cont o- lhe o que há. A idéia é t ão sant a
que não est á m al no sant uário. Am anhã, Bent inho.
— Mas é coisa cert a?
— Cert íssim a!
No dia seguint e revelou- m e o m ist ério. Ao prim eiro aspect o, confesso que fiquei
deslum brado. Trazia um a not a de grandeza e de espirit ualidade que falava aos
m eus olhos de sem inarist a. Era não m enos que ist o. Minha m ãe, ao parecer dele,
est ava arrependida do que fizera, e desej aria ver- m e cá fora, m as ent endia que o
vínculo m oral da prom essa a prendia indissoluvelm ent e. Cum pria rom pê- lo, e para
t ant o valia a Escrit ura, com o poder de desligar dado aos apóst olos. Assim que, ele
e eu iríam os a Rom a pedir a absolvição do papa... Que m e parecia?
— Parece- m e bem , respondi depois de alguns segundos de reflexão. Pode ser um
bom rem édio.
— É o único, Bent inho, é o único! Vou j á hoj e conversar com D. Glória, exponholhe t udo, e podem os part ir daqui a dois m eses, ou ant es...
— Melhor é falar dom ingo que vem ; deixe- m e pensar prim eiro...
— Oh! Bent inho! int errom peu o agregado. Pensar em quê? Você o que quer...
Digo? Não se am ofina com o seu velho? Você o que quer é consult ar a um a
pessoa.
Rigorosam ent e, eram duas pessoas, Capit u e Escobar, m as eu
que quisesse consult ar ninguém . E que pessoa, o reit or? Não
confiasse t al assunt o. Não, nem reit or, nem professor, nem
t em po de reflet ir, um a sem ana, no dom ingo daria a respost a,
que a idéia não m e parecia m á.
neguei a pés j unt os
era nat ural que lhe
ninguém ; era só o
e desde j á lhe dizia
— Não?
— Não.
— Pois resolvam os hoj e m esm o.
— Não se vai a Rom a brincando.
— Quem t em boca vai a Rom a, e boca no nosso caso é a m oeda. Ora, você pode
m uit o bem gast ar consigo... Com igo, não; um par de calças, t rês cam isas e o pão
diário, não preciso m ais. Serei com o São Paulo, que vivia do ofício enquant o ia
pregando a palavra divina. Pois eu vou, não pregá- la, m as buscá- la. Levarem os
cart as do int ernúncio e do bispo, cart as para o nosso m inist ro, cart as de
capuchinhos... Bem sei a obj eção que se pode opor a est a idéia; dirão que é dado
pedir a dispensa cá de longe; m as, além do m ais que não digo, bast a reflet ir que é
m uit o m ais solene e bonit o ver ent rar no Vat icano, e prost rar - se aos pés do papa
o próprio obj et o do favor, o levit a prom et ido, que vai pedir para sua m ãe
t erníssim a e dulcíssim a a dispensa de Deus. Considere o quadro, você beij ando o
pé ao príncipe dos apóst olos; Sua Sant idade, com o sorriso evangélico, inclina- se,
int erroga, ouve, absolve e abençoa. Os anj os o cont em plam , a Virgem recom enda
ao sant íssim o filho que t odos os seus desej os, Bent inho, sej am sat isfeit os, e que o
que você am ar na Terra sej a igualm ent e am ado no Céu...
Não digo m ais, porque é preciso acabar o capít ulo, e ele não acabou o discurso.
Falou a t odos os m eus sent im ent os de cat ólico e de nam orado. Vi a alm a aliviada
de m inha m ãe, vi a alm a feliz de Capit u, am bas em casa, e eu com elas, e ele
conosco, t udo m ediant e um a pequena viagem a Rom a, que eu só geograficam ent e
sabia onde ficava; espirit ualm ent e, t am bém , m as a dist ância que est aria da
vont ade de Capit u é que não. Eis o pont o essencial. Se Capit u achasse longe, não
iria; m as era preciso ouvi- la, e assim t am bém a Escobar, que m e daria um bom
conselho.
CAPÍ TULO XCVI
UM SUBSTI TUTO
Expus a Capit u a idéia de José Dias. Ouviu- m e at ent am ent e, e acabou t rist e.
— Você indo, disse ela, esquece- m e int eiram ent e.
— Nunca!
— Esquece. A Europa dizem que é t ão bonit a, e a I t ália principalm ent e. Não é de
lá que vêm as cant oras? Você esquece- m e, Bent inho. E não haverá out ro m eio? D.
Glória est á m ort a para que você saia do sem inário.
— Sim , m as j ulga- se presa pela prom essa.
Capit u não achava out ra idéia, nem acabava de adot ar est a. De cam inho, pedium e que, se acaso fosse a Rom a, j urasse que no fim de seis m eses est aria de volt a.
— Juro.
— Por Deus?
— Por Deus, por t udo. Juro que no fim de seis m eses est arei de volt a.
— Mas se o papa não t iver ainda solt ado a você?
— Mando dizer isso m esm o.
— E se você m ent ir?
Est a palavra doeu- m e m uit o, e não achei logo que lhe replicasse. Capit u m et eu o
negócio à bulha, rindo e cham ando- m e disfarçado. Depois, declarou crer que eu
cum priria o j uram ent o, m as ainda assim não consent iu logo; ia ver se não haveria
out ra coisa, e eu que visse t am bém por m eu lado.
Quando volt ei ao sem inário, cont ei t udo ao m eu am igo Escobar, que m e ouviu com
igual at enção e acabou com a m esm a t rist eza da out ra. Os olhos, de cost um e
fugidios, quase m e com eram de cont em plação. De repent e, vi- lhe no rost o um
clarão, um reflexo de idéia. E ouvi- lhe dizer com volubilidade:
— Não, Bent inho, não é preciso isso. Há m elhor, — não digo m elhor, porque o
Sant o Padre vale sem pre m ais que t udo, — m as há coisa que produz o m esm o
efeit o.
— Que é?
— Sua m ãe fez prom essa a Deus de lhe dar um sacerdot e, não é? Pois bem , dêlhe um sacerdot e, que não sej a você. Ela pode m uit o bem t om ar a si algum
m ocinho órfão, fazê- lo ordenar à sua cust a, est á dado um padre ao alt ar, sem que
você...
— Ent endo, ent endo, é isso m esm o.
— Não acha? cont inuou ele. Consult e sobre ist o o prot onot ário; ele lhe dirá se não
é a m esm a coisa, ou eu m esm o consult o, se quer; e se ele hesit ar, fala- se ao Sr.
bispo.
Eu, reflet indo:
— Sim , parece que é isso; realm ent e, a prom essa cum pre- se, não se perdendo o
padre.
Escobar observou que, pelo lado econôm ico, a quest ão era fácil; m inha m ãe
gast aria o m esm o que com igo, e um órfão não precisaria grandes com odidades.
Cit ou a som a dos aluguéis das casas, 1.070$000, além dos escravos...
— Não há out ra coisa, disse eu.
— E saím os j unt os.
— Você t am bém ?
— Tam bém eu. Vou m elhorar o m eu lat im e saio; nem dou t eologia. O próprio
lat im não é preciso; para que no com ércio?
— I n hoc signo vinces, disse eu rindo.
Sent ia- m e pilhérico. Oh! com o a esperança alegra t udo. Escobar sorriu, parecendo
gost ar da respost a. Depois ficam os a cuidar de nós m esm os, cada um com os seus
olhos perdidos, provavelm ent e. Os dele est avam assim , quando t ornei de longe, e
agradeci de novo o plano lem brado; não podia havê- lo m elhor. Escobar ouviu- m e
cont ent íssim o.
— Ainda um a vez, disse ele gravem ent e, a religião e a liberdade fazem boa
com panhia.
CAPÍ TULO XCVI I
A SAÍ D A
Tudo se fez por esse t eor. Minha m ãe hesit ou um pouco, m as acabou cedendo,
depois que o Padre Cabral, t endo consult ado o bispo, volt ou a dizer- lhe que sim ,
que podia ser. Saí do sem inário no fim do ano.
Tinha ent ão pouco m ais de dezesset e... Aqui devia ser o m eio do livro, m as a
inexperiência fez- m e ir at rás da pena, e chego quase ao fim do papel, com o
m elhor da narração por dizer. Agora não há m ais que levá- la a grandes pernadas,
capít ulo sobre capít ulo, pouca em enda, pouca reflexão, t udo em resum o. Já est a
página vale por m eses, out ras valerão por anos, e assim chegarem os ao fim . Um
dos sacrifícios que faço a est a dura necessidade é a análise das m inhas em oções
dos dezesset e anos. Não sei se algum a vez t ivest e dezesset e anos. Se sim , deves
saber que é a idade em que a m et ade do hom em e a m et ade do m enino form am
um só curioso. Eu era um curiosíssim o, diria o m eu agregado José Dias, e não
diria m al. O que essa qualidade superlat iva m e rendeu não poderia nunca dizê- lo
aqui, sem cair no erro que acabo de condenar; a análise das m inhas em oções
daquele t em po é que ent rava no m eu plano. Post o que filho do sem inário e de
m inha m ãe, sent ia j á debaixo do recolhim ent o cast o uns assom os de pet ulância e
de at revim ent o; eram do sangue, m as eram t am bém das m oças que na rua ou da
j anela não m e deixavam viver sossegado. Achavam - m e lindo, e diziam - m o;
algum as queriam m irar de m ais pert o a m inha beleza, e a vaidade é um princípio
de corrupção.
CAPÍ TULO XCVI I I
CI N CO AN OS
Venceu a razão; fui- m e aos est udos.
Passei os dezoit o anos, os dezenove, os vint e, os vint e e um ; aos vint e e dois era
bacharel em Direit o.
Tudo m udara em volt a de m im . Minha m ãe resolvera- se a envelhecer; ainda assim
os cabelos brancos vinham de m á vont ade, aos poucos e espalhadam ent e; a
t ouca, os vest idos, os sapat os rasos e surdos eram os m esm os de out rora. Já não
andaria t ant o de um lado para out ro. Tio Cosm e padecia do coração e ia
descansar. A prim a Just ina apenas est ava m ais idosa. José Dias t am bém , não
t ant o que m e não fizesse a fineza de ir assist ir à m inha graduação, e descer
com igo a serra, lépido e viçoso, com o se o bacharel fosse ele. A m ãe de Capit u
falecera, o pai aposent ara- se no m esm o cargo em que quis dar dem issão da vida.
Escobar com eçava a negociar em café depois de haver t rabalhado quat ro anos em
um a das prim eiras casas do Rio de Janeiro. Era opinião de prim a Just ina que ele
afagara a idéia de convidar m inha m ãe a segundas núpcias; m as, se t al idéia
houve, cum pre não esquecer a grande diferença de idade. Talvez ele não pensasse
em m ais que associá- la aos seus prim eiros t ent âm ens com erciais, e de fat o, a
pedido m eu, m inha m ãe adiant ou- lhe alguns dinheiros, que ele lhe rest it uiu, logo
que pôde, não sem est e rem oque: " D. Glória é m edrosa e não t em am bição."
A separação não nos esfriou. Ele foi o t erceiro na t roca das cart as ent re m im e
Capit u. Desde que a viu anim ou- m e m uit o no nosso am or. As relações que t ravou
com o pai de Sancha est reit aram as que j á t razia com Capit u, e fê- lo servir a
am bos nós, com o am igo. A princípio, cust ou- lhe a ela aceit á- lo, preferia José Dias,
m as José Dias repugnava- m e por um rest o de respeit o de criança. Venceu
Escobar; post o que vexada, Capit u ent regou- lhe a prim eira cart a, que foi m ãe e
avó das out ras. Nem depois de casado suspendeu ele o obséquio... Que ele casou,
— adivinha com quem , — casou com a boa Sancha, a am iga de Capit u, quase irm ã
dela, t ant o que algum a vez, escrevendo- m e, cham ava a est a a " sua
cunhadinha” .Assim se form am as afeições e os parent escos, as avent uras e os
livros.
CAPÍ TULO XCI X
O FI LH O É A CARA D O PAI
Minha m ãe, quando eu regressei bacharel quase est alou de felicidade. Ainda ouço
a voz de José Dias, lem brando o evangelho de São João, e dizendo ao ver- nos
abraçados:
— Mulher, eis aí o t eu filho! Filho, eis aí a t ua m ãe!
Minha m ãe, ent re lágrim as:
— Mano Cosm e, é a cara do pai, não é?
— Sim , t em algum a coisa, os olhos, a disposição do rost o. É o pai, um pouco m ais
m oderno, concluiu por chalaça. E diga- m e agora, m ana Glória, não foi m elhor que
ele não t eim asse em ser padre? Vej a se est e peralt a daria um padre capaz.
— Com o vai o m eu subst it ut o?
— Vai indo, ordena- se para o ano, respondeu t io Cosm e. Hás de ir ver a
ordenação; eu t am bém , se o m eu senhor coração consent ir. É bom que t e sint as
na alm a do out ro, com o se recebesses em t i m esm o a sagração.
— Just am ent e! exclam ou m inha m ãe. Mas vej a bem , m ano Cosm e, vej a se não é
a figura do m eu defunt o. Olha, Bent inho, olha bem para m im . Sem pre achei que
t e parecias com ele, agora é m uit o m ais. O bigode é que desfaz um pouco...
— Sim , m ana Glória, o bigode realm ent e... m as é m uit o parecido.
E m inha m ãe beij ava- m e com um a t ernura que não sei escrever. Tio Cosm e, para
alegrá- la, cham ava- m e dout or, José Dias t am bém , e t odos em casa, a prim a, os
escravos, as visit as, Pádua, a filha, e ela m esm a repet iam - m e o t ít ulo.
CAPÍ TULO C
" TU SERÁS FELI Z, BEN TI N H O”
No quart o, desfazendo a m ala e t irando a cart a de bacharel de dent ro da lat a, ia
pensando na felicidade e na glória. Via o casam ent o e a carreira ilust re, enquant o
José Dias m e aj udava, calado e zeloso. Um a fada invisível desceu ali e m e disse
em voz igualm ent e m acia e cálida: " Tu serás feliz, Bent inho; t u vais ser feliz.”
— E por que não seria feliz? pergunt ou José Dias, endireit ando o t ronco e fit andom e.
— Você ouviu? pergunt ei eu erguendo- m e t am bém , espant ado.
— Ouviu o quê?
— Ouviu um a voz que dizia que eu serei feliz?
— É boa! Você m esm o é que est á dizendo...
Ainda agora sou capaz de j urar que a voz era da fada; nat uralm ent e as fadas,
expulsas dos cont os e dos versos, m et eram - se no coração da gent e e falam de
dent ro para fora. Est a, por exem plo, m uit a vez a ouvi clara e dist int a. Há de ser
prim a das feit iceiras da Escócia: " Tu serás rei, Macbet h! " — " Tu serás feliz,
Bent inho! " Ao cabo, é a m esm a predição, pela m esm a t oada universal e et erna.
Quando volt ei do m eu espant o, ouvi o rest o do discurso de José Dias:
—...Há de ser feliz, com o m erece, assim com o m ereceu esse diplom a que ali est á,
que não é favor de ninguém . A dist inção que t irou em t odas as m at érias é prova
disso; j á lhe cont ei que ouvi da boca dos lent es, em part icular, os m aiores elogios.
Dem ais, a felicidade não é só a glória, é t am bém out ra coisa... Ah! você não
confiou t udo ao velho José Dias! O pobre José Dias est á aí para um cant o, é caj u
chupado, não vale nada; agora são os novos, os Escobares... Não lhe nego que é
m oço m uit o dist int o, e t rabalhador, e m arido de t ruz; m as, enfim , velho t am bém
sabe am ar...
— Mas que é?
— Que há de ser? Quem é que não sabe t udo?... Aquela int im idade de vizinhos
t inha de acabar nist o, que é verdadeiram ent e um a bênção do céu, porque ela é
um anj o, é um anj íssim o... Perdoe a cincada, Bent inho, foi um m odo de acent uar a
perfeição daquela m oça. Cuidei o cont rário, out rora; confundi os m odos de criança
com expressões de carát er, e não vi que essa m enina t ravessa e j á de olhos
pensat ivos era a flor caprichosa de um frut o sadio e doce... Por que é que não m e
cont ou t am bém o que out ros sabem , e cá em casa est á m ais que adivinhado e
aprovado?
— Mam ãe aprova deveras?
— Pois ent ão? Tem os falado sobre isso, e ela fez- m e o favor de pedir a m inha
opinião. Pergunt e- lhe o que é que eu lhe disse em t erm os claros e posit ivos;
pergunt e- lhe. Disse- lhe que não podia desej ar m elhor nora para si, boa, discret a,
prendada, am iga da gent e... e um a dona de casa, que não lhe digo nada. Depois
da m ort e da m ãe, t om ou cont a de t udo. Pádua, agora que se aposent ou, não faz
m ais que receber o ordenado e ent regá- lo à filha. A filha é que dist ribui o dinheiro,
paga as cont as, faz o rol das despesas, cuida de t udo, m ant im ent o, roupa, luz;
você j á a viu o ano passado. E quant o à form osura você sabe m elhor que
ninguém ...
— Mas, deveras, m am ãe consult ou o senhor sobre o nosso casam ent o?
— Posit ivam ent e, não; fez- m e o favor de pergunt ar se Capit u não daria um a boa
esposa; eu é que, na respost a, falei em nora. D. Glória não negou e at é deu um ar
de riso.
— Mam ãe sem pre que m e escrevia, falava de Capit u.
— Você sabe que elas se dão m uit o, e por isso é que sua prim a anda cada vez
m ais am uada. Talvez agora case m ais depressa.
— Prim a Just ina?
— Não sabe? São cont os, nat uralm ent e; m as enfim , o Dout or João da Cost a
enviuvou há poucos m eses, e dizem ( não sei, o prot onot ário é que m e cont ou) ,
dizem que os dois andam m eio inclinados a acabar com a viuvez, ent re si,
casando- se. Há de ver que não há nada, m as não é fora de propósit o, conquant o
ela sem pre achasse que o dout or era um feixe de ossos... Só se ela é um
cem it ério, com ent ou rindo; e logo sério: Digo ist o por gracej o...
Não ouvi o rest o. Ouvia só a voz da m inha fada int erior, que m e repet ia, m as j á
ent ão sem palavras: " Tu serás feliz, Bent inho! " E a voz de Capit u m e disse a
m esm a coisa, com t erm os diversos, e assim t am bém a de Escobar, os quais
am bos m e confirm aram a not ícia de José Dias pela sua própria im pressão. Enfim ,
m inha m ãe, algum as sem anas depois, quando lhe fui pedir licença para casar,
além do consent im ent o, deu- m e igual profecia, salva a redação própria de m ãe:
" Tu serás feliz, m eu filho!
CAPÍ TULO CI
N O CÉU
Pois sej am os felizes de um a vez, ant es que o leit or pegue em si, m ort o de
esperar, e vá espairecer a out ra part e; casem o- nos. Foi em 1865, um a t arde de
m arço, por sinal que chovia. Quando chegam os ao alt o da Tij uca, onde era o
nosso ninho de noivos, o céu recolheu a chuva e acendeu as est relas, não só as j á
conhecidas, m as ainda as que só serão descobert as daqui a m uit os séculos. Foi
grande fineza e não foi única. São Pedro, que t em as chaves do Céu, abriu- nos as
port as dele, fez- nos ent rar, e depois de t ocar - nos com o báculo, recit ou alguns
versículos da sua prim eira epíst ola: " As m ulheres sej am suj eit as a seus m aridos...
Não sej a o adorno delas o enfeit e dos cabelos riçados ou as rendas de ouro, m as o
hom em que est á escondido no coração... Do m esm o m odo, vós, m aridos, coabit ai
com elas, t rat ando- as com honra, com o a vasos m ais fracos, e herdeiras convosco
da graça da vida..." Em seguida, fez sinal aos anj os, e eles ent oaram um t recho do
Cânt ico, t ão concert adam ent e, que desm ent iriam a hipót ese do t enor it aliano, se a
execução fosse na Terra; m as era no Céu. A m úsica ia com o t ext o, com o se
houvessem nascido j unt os, à m aneira de um a ópera de Wagner. Depois, visit am os
um a part e daquele lugar infinit o. Descansa que não farei descrição algum a, nem a
língua hum ana possui form as idôneas para t ant o.
Ao cabo, pode ser que t udo fosse um sonho; nada m ais nat ural a um exsem inarist a que ouvir por t oda a part e lat im e Escrit ura. É verdade que Capit u,
que não sabia Escrit ura nem lat im , decorou algum as palavras, com o est as, por
exem plo: " Sent ei- m e à som bra daquele que t ant o havia desej ado” .Quant o às de
São Pedro, disse- m e no dia seguint e que est ava por t udo, que eu era a única
renda e o único enfeit e que j am ais poria em si. Ao que eu repliquei que a m inha
esposa t eria sem pre as m ais finas rendas dest e m undo.
CAPÍ TULO CI I
D E CASAD A
I m agina um relógio que só t ivesse pêndulo, sem m ost rador, de m aneira que não
se vissem as horas escrit as. O pêndulo iria de um lado para out ro, m as nenhum
sinal ext erno m ost raria a m archa do t em po. Tal foi aquela sem ana da Tij uca.
De quando em quando, t ornávam os ao passado e divert íam o- nos em relem brar as
nossas t rist ezas e calam idades, m as isso m esm o era um m odo de não sairm os de
nós. Assim vivem os novam ent e a nossa longa espera de nam orados, os anos da
adolescência, a denúncia que est á nos prim eiros capít ulos, e ríam os de José Dias
que conspirou a nossa desunião, e acabou fest ej ando o nosso consórcio. Um a ou
out ra vez, falávam os em descer, m as as m anhãs m arcadas eram sem pre de chuva
ou de sol, e nós esperávam os um dia encobert o, que t eim ava em não vir.
Não obst ant e, achei que Capit u est ava um t ant o im pacient e por descer.
Concordava em ficar, m as ia falando do pai e de m inha m ãe, da falt a de not ícias
nossas, dist o e daquilo, a pont o que nos arrufam os um pouco. Pergunt ei- lhe se j á
est ava aborrecida de m im .
— Eu?
— Parece.
— Você há de ser sem pre criança, disse ela fechando- m e a cara ent re as m ãos e
chegando m uit o os olhos aos m eus. Ent ão eu esperei t ant os anos para aborrecerm e em set e dias? Não, Bent inho; digo ist o porque é realm ent e assim , creio que
eles podem est ar desej osos de ver- nos e im aginar algum a doença; e confesso,
pela m inha part e, que queria ver papai.
— Pois vam os am anhã.
— Não; há de ser com t em po encobert o, redargüiu rindo.
Peguei- lhe no riso e na palavra, m as a im paciência cont inuou, e descem os com
sol.
A alegria com que pôs o seu chapéu de casada, e o ar de casada com que m e deu
a m ão para ent rar e sair do carro, e o braço para andar na rua, t udo m e m ost rou
que a causa da im paciência de Capit u eram os sinais ext eriores do novo est ado.
Não lhe bast ava ser casada ent re quat ro paredes e algum as árvores; precisava do
rest o do m undo t am bém . E quando eu m e vi em baixo, pisando as ruas com ela,
parando, olhando, falando, sent i a m esm a coisa. I nvent ava passeios para que m e
vissem , m e confirm assem e m e invej assem . Na rua, m uit os volt avam a cabeça
curiosos, out ros paravam , alguns pergunt avam : " Quem são?" e um sabido
explicava: " Est e é o Dout or Sant iago, que casou há dias com aquela m oça, D.
Capit olina, depois de um a longa paixão de crianças; m oram na Glória, as fam ílias
residem em Mat a- cavalos." E am bos os dois: " É um a m ocet ona! "
CAPÍ TULO CI I I
A FELI CI D AD E TEM BOA ALM A
Mocet ona é vulgar; José Dias achou m elhor. Foi a única pessoa cá de baixo que
nos visit ou na Tij uca, levando abraços dos nossos e palavras suas, m as palavras
que eram m úsicas verdadeiras; não as ponho aqui para ir poupando papel, m as
foram deliciosas. Um dia, com parou- nos a aves criadas em dois vãos de t elhados
cont íguos. I m agina o rest o, as aves em plum ando as asas e subindo ao céu, e o
céu agora m ais largo para poder cont ê- las t am bém . Nenhum de nós riu; am bos
escut ávam os com ovidos e convencidos, esquecendo t udo, desde a t arde de
1857... A felicidade t em boa alm a.
CAPÍ TULO CI V
AS PI RÂM I D ES
José Dias dividia- se agora ent re m im e m inha m ãe, alt ernando os j ant ares da
Glória com os alm oços de Mat a- cavalos. Tudo corria bem . Ao fim de dois anos de
casado, salvo o desgost o grande de não t er um filho, t udo corria bem . Perdera
m eu sogro, é verdade, e o t io Cosm e est ava por pouco, m as a saúde de m inha
m ãe era boa; a nossa excelent e.
Eu era advogado de algum as casas ricas, e os processos vinham chegando.
Escobar cont ribuíra m uit o para as m inhas est réias no foro. I nt erveio com um
advogado célebre para que m e adm it isse à sua banca, e arranj ou- m e algum as
procurações, t udo espont aneam ent e.
Dem ais, as nossas relações de fam ília est avam previam ent e feit as; Sancha e
Capit u cont inuavam depois de casadas a am izade da escola, Escobar e eu a do
sem inário. Eles m oravam em Andaraí, aonde queriam que fôssem os m uit as vezes,
e, não podendo ser t ant as com o desej ávam os, íam os lá j ant ar alguns dom ingos,
ou eles vinham fazê- lo conosco. Jant ar é pouco. Í am os sem pre m uit o cedo, logo
depois do alm oço, para gozarm os o dia com pridam ent e, e só nos separávam os às
nove, dez e onze horas, quando não podia ser m ais. Agora que penso naqueles
dias de Andaraí e da Glória, sint o que a vida e o rest o não sej am t ão rij os com o as
Pirâm ides.
Escobar e a m ulher viviam felizes; t inham um a filhinha. Em t em po ouvi falar de
um a avent ura do m arido, negócio de t eat ro, não sei que at riz ou bailarina, m as se
foi cert o, não deu escândalo. Sancha era m odest a, o m arido t rabalhador. Com o eu
um dia dissesse a Escobar que last im ava não t er um filho, replicou- m e:
— Hom em , deixa lá. Deus os dará quando quiser, e se não der nenhum é que os
quer para si, e m elhor será que fiquem no Céu.
— Um a criança, um filho é o com plem ent o nat ural da vida.
— Virá, se for necessário.
Não vinha. Capit u pedia- o em suas orações, eu m ais de um a vez dava por m im a
rezar e a pedi- lo. Já não era com o em criança; agora pagava ant ecipadam ent e,
com o os aluguéis da casa.
CAPÍ TULO CV
OS BRAÇOS
No m ais, t udo corria bem . Capit u gost ava de rir e divert ir- se, e, nos prim eiros
t em pos, quando íam os a passeios ou espet áculos, era com o um pássaro que
saísse da gaiola. Arranj ava- se com graça e m odést ia. Em bora gost asse de j óias,
com o as out ras m oças, não queria que eu lhe com prasse m uit as nem caras, e um
dia afligiu- se t ant o que prom et i não com prar m ais nenhum a; m as foi só por pouco
t em po.
A nossa vida era m ais ou m enos plácida. Quando não est ávam os com a fam ília ou
com am igos, ou se não íam os a algum espet áculo ou serão part icular ( e est es
eram raros) , passávam os as noit es à nossa j anela da Glória, m irando o m ar e o
céu, a som bra das m ont anhas e dos navios, ou a gent e que passava na praia. Às
vezes, eu cont ava a Capit u a hist ória da cidade, out ras dava- lhe not ícias de
ast ronom ia; not ícias de am ador que ela escut ava at ent a e curiosa, nem sem pre
t ant o que não cochilasse um pouco. Não sabendo piano, aprendeu depois de
casada, e depressa, e daí a pouco t ocava nas casas de am izade. Na Glória era
um a das nossas recreações; t am bém cant ava, m as pouco e raro, por não t er voz;
um dia chegou a ent ender que era m elhor não cant ar nada e cum priu o alvit re. De
dançar gost ava, e enfeit ava- se com am or quando ia a um baile; os braços é que...
Os braços m erecem um período.
Eram belos, e na prim eira noit e que os levou nus a um baile, não creio que
houvesse iguais na cidade, nem os seus, leit ora, que eram ent ão de m enina, se
eram nascidos, m as provavelm ent e est ariam ainda no m árm ore, donde vieram , ou
nas m ãos do divino escult or. Eram os m ais belos da noit e, a pont o que m e
encheram de desvanecim ent o. Conversava m al com as out ras pessoas, só para
vê- los, por m ais que eles se ent relaçassem aos das casacas alheias. Já não foi
assim no segundo baile; nesse, quando vi que os hom ens não se fart avam de
olhar para eles, de os buscar, quase de os pedir, e que roçavam por eles as
m angas pret as, fiquei vexado e aborrecido. Ao t erceiro não fui, e aqui t ive o apoio
de Escobar, a quem confiei candidam ent e os m eus t édios; concordou logo com igo.
— Sanchinha t am bém não vai, ou irá de m angas com pridas; o cont rário parecem e indecent e.
— Não é? Mas não diga o m ot ivo; hão de cham ar- nos sem inarist as. Capit u j á m e
cham ou assim .
Nem por isso deixei de cont ar a Capit u a aprovação de Escobar. Ela sorriu e
respondeu que os braços de Sanchinha eram m al feit os, m as cedeu depressa, e
não foi ao baile; a out ros foi, m as levou- os m eio vest idos de escum ilha ou não sei
que, que nem cobria nem descobria int eiram ent e, com o o cendal de Cam ões.
CAPÍ TULO CVI
D EZ LI BRAS ESTERLI N AS
Já disse que era poupada, ou fica dit o agora, e não só de dinheiro m as t am bém de
coisas usadas, dessas que se guardam por t radição, por lem brança ou por
saudade. Uns sapat os, por exem plo, uns sapat inhos rasos de fit as pret as que se
cruzavam no peit o do pé e princípio da perna, os últ im os que usou ant es de calçar
bot inas, t rouxe- os para casa, e t irava- os de longe em longe da gavet a da côm oda,
com out ras velharias, dizendo- m e que eram pedaços de criança. Minha m ãe, que
t inha o m esm o gênio, gost ava de ouvir falar e fazer assim .
Quant o às puras econom ias de dinheiro, direi um caso, e bast a. Foi j ust am ent e
por ocasião de um a lição de ast ronom ia, à Praia da Glória. Sabes que algum a vez
a fiz cochilar um pouco. Um a noit e perdeu- se em fit ar o m ar, com t al força e
concent ração, que m e deu ciúm es.
— Você não m e ouve, Capit u.
— Eu? Ouço perfeit am ent e.
— O que é que eu dizia?
— Você...você falava de Sírius.
— Qual Sírius, Capit u. Há vint e m inut os que eu falei de Sírius.
— Falava de... falava de Mart e, em endou ela apressada.
Realm ent e, era de Mart e, m as é claro que só apanhara o som da palavra, não o
sent ido. Fiquei sério, e o ím pet o que m e deu foi deixar a sala; Capit u, ao percebêlo, fez- se a m ais m im osa das criat uras, pegou- m e na m ão, confessou- m e que
est ivera cont ando, ist o é, som ando uns dinheiros para descobrir cert a parcela que
não achava. Trat ava- se de um a conversão de papel em ouro. A princípio supus
que era um recurso para desenfadar- m e, m as daí a pouco est ava eu m esm o
calculando t am bém , j á ent ão com papel e lápis, sobre o j oelho, e dava a diferença
que ela buscava.
— Mas que libras são essas? pergunt ei- lhe no fim .
Capit u fit ou- m e rindo, e replicou que a culpa de rom per o segredo era m inha.
Ergueu- se, foi ao quart o e volt ou com dez libras est erlinas, na m ão; eram as
sobras do dinheiro que eu lhe dava m ensalm ent e para as despesas.
— Tudo ist o?
— Não é m uit o, dez libras só; é o que a avarent a de sua m ulher pôde arranj ar, em
alguns m eses, concluiu fazendo t inir o ouro na m ão.
— Quem foi o corret or?
— O seu am igo Escobar.
— Com o é que ele não m e disse nada?
— Foi hoj e m esm o.
— Ele est eve cá?
— Pouco ant es de você chegar; eu não disse para que você não desconfiasse.
Tive vont ade de gast ar o dobro do ouro em algum present e com em orat ivo, m as
Capit u det eve- m e. Ao cont rário, consult ou- m e sobre o que havíam os de fazer
daquelas libras.
— São suas, respondi.
— São nossas, em endou.
— Pois você guarde- as.
No dia seguint e, fui t er com Escobar ao arm azém , e ri- m e do segredo de am bos.
Escobar sorriu e disse- m e que est ava para ir ao m eu escrit ório cont ar- m e t udo. A
cunhadinha ( cont inuava a dar est e nom e a Capit u) t inha- lhe falado naquilo por
ocasião da nossa últ im a visit a a Andaraí, e disse- lhe a razão do segredo.
— Quando cont ei ist o a Sanchinha, concluiu ele, ficou espant ada: " Com o é que
Capit u pode econom izar, agor a que t udo est á t ão caro?” — " Não sei, filha; sei que
arranj ou dez libras.”
— Vê se ela aprende t am bém .
— Não creio; Sanchinha não é gast adeira, m as t am bém não é poupada; o que lhe
dou chega, m as só chega.
Eu, depois de alguns inst ant es de reflexão:
— Capit u é um anj o!
Escobar concordou de cabeça, m as sem ent usiasm o, com o quem sent ia não poder
dizer o m esm o da m ulher. Assim pensarias t u t am bém , t ão cert o é que as virt udes
das pessoas próxim as nos dão t al ou qual vaidade, orgulho ou consolação.
CAPÍ TULO CVI I
CI ÚM ES D O M AR
Se não fosse a ast ronom ia, não descobriria eu t ão cedo as dez libras de Capit u;
m as não é por isso que t orno a ela, é para que não cuides que a vaidade de
professor é que m e fez padecer com a desat enção de Capit u e t er ciúm es do m ar.
Não, m eu am igo. Venho explicar- t e que t ive t ais ciúm es pelo que podia est ar na
cabeça de m inha m ulher, não fora ou acim a dela. É sabido que as dist rações de
um a pessoa podem ser culpadas, m et ade culpadas, um t erço, um quint o, um
décim o de culpadas, pois que em m at éria de culpa a graduação é infinit a. A
recordação de uns sim ples olhos bast a para fixar out ros que os recordem e se
deleit em com a im aginação deles. Não é m ist er pecado efet ivo e m ort al, nem
papel t rocado, sim ples palavra, aceno, suspiro ou sinal ainda m ais m iúdo e leve.
Um anônim o ou anônim a que passe na esquina da rua faz com que m et am os
Sírius dent ro de Mart e, e t u sabes, leit or, a diferença que há de um a out ro na
dist ância e no t am anho, m as a ast ronom ia t em dessas confusões. Foi ist o que m e
fez em palidecer, calar e querer fugir da sala para volt ar, Deus sabe quando;
provavelm ent e, dez m inut os depois. Dez m inut os depois, est aria eu out ra vez na
sala, ao piano ou à j anela, cont inuando a lição int errom pida:
— Mart e est á à dist ância de...
Tão pouco t em po? Sim , t ão pouco t em po, dez m inut os. Os m eus ciúm es eram
int ensos, m as curt os; com pouco derrubaria t udo, m as com o m esm o pouco ou
m enos reconst ruiria o céu, a t erra e as est relas.
A verdade é que fiquei m ais am igo de Capit u, se era possível, ela ainda m ais
m eiga, o ar m ais brando, as noit es m ais claras, e Deus m ais Deus. E não foram
propriam ent e as dez libras est erlinas que fizeram ist o, nem o sent im ent o de
econom ia que revelavam e que eu conhecia, m as as caut elas que Capit u
em pregou para o fim de descobrir- m e um dia o cuidado de t odos os dias. Escobar
t am bém se m e fez m ais pegado ao coração. As nossas visit as foram - se t ornando
m ais próxim as, e as nossas conversações m ais ínt im as.
CAPÍ TULO CVI I I
UM FI LH O
Pois nem t udo isso m e m at ava a sede de um filho, um t rist e m enino que fosse,
am arelo e m agro, m as um filho, um filho próprio da m inha pessoa. Quando íam os
a Andaraí e víam os a filha de Escobar e Sancha, fam iliarm ent e Capit uzinha, por
diferençá- la de m inha m ulher, vist o que lhe deram o m esm o nom e à pia,
ficávam os cheios de invej as. A pequena era graciosa e gorducha, faladeira e
curiosa. Os pais, com o os out ros pais, cont avam as t ravessuras e agudezas da
m enina, e nós, quando volt ávam os à noit e para a Glória, vínham os suspirando as
nossas invej as, e pedindo m ent alm ent e ao Céu que no- las m at asse...
...As invej as m orreram , as esperanças nasceram , e não t ardou que viesse ao
m undo o frut o delas. Não era escasso nem feio, com o eu j á pedia, m as um
rapagão robust o e lindo.
A m inha alegria quando ele nasceu, não sei dizê- la; nunca a t ive igual, nem creio
que a possa haver idênt ica, ou que de longe ou de pert o se pareça com ela. Foi
um a vert igem e um a loucura. Não cant ava na rua por nat ural vergonha, nem em
casa para não afligir Capit u convalescent e. Tam bém não caía, porque há um deus
para os pais novos. Fora, vivia com o espírit o no m enino; em casa, com os olhos,
a observá- lo, a m irá- lo, a pergunt ar- lhe donde vinha, e por que é que eu est ava
t ão int eiram ent e nele, e várias out ras t olices sem palavras, m as pensadas ou
deliradas a cada inst ant e. Talvez perdi algum as causas no foro por descuido.
Capit u não era m enos t erna para ele e para m im . Dávam os as m ãos um ao out ro,
e, quando não olhávam os para o nosso filho, conversávam os de nós, do nosso
passado e do nosso fut uro. As horas de m aior encant o e m ist ério eram as de
am am ent ação. Quando eu via o m eu filho chupando o leit e da m ãe, e t oda aquela
união da nat ureza para a nut rição e vida de um ser que não fora nada, m as que o
nosso dest ino afirm ou que seria, e a nossa const ância e o nosso am or fizeram que
chegasse a ser, ficava que não sei dizer nem digo; posit ivam ent e não m e lem bra,
e receio que o que dissesse m e saísse escuro.
Escusai m inúcias. Assim que, não é preciso cont ar a dedicação de m inha m ãe e de
Sancha, que t am bém foi passar com Capit u os prim eiros dias e noit es. Quis
rej eit ar o obséquio de Sancha; respondeu- m e que eu não t inha nada com isso;
t am bém Capit u, em solt eira, fora t rat á- la à Rua dos I nválidos.
— Não se lem bra que o senhor foi lá vê- la?
— Lem bra- m e; m as Escobar...
— Eu virei j ant ar com vocês, e às noit es sigo para Andaraí; oit o dias, e est á t udo
passado. Bem se vê que você é pai de prim eira viagem .
— Tam bém você; onde est á a segunda?
Usávam os ent ão est as graças em fam ília. Hoj e, que m e recolhi à m inha
casm urrice, não sei se ainda há t al linguagem , m as deve haver. Escobar cum priu o
que disse; j ant ava conosco, e ia- se à noit e. Sobre t arde descíam os à praia ou
íam os ao Passeio Público, fazendo ele os seus cálculos, eu os m eus sonhos. Eu via
o m eu filho m édico, advogado, negociant e, m et i- o em várias universidades e
bancos, e at é aceit ei a hipót ese de ser poet a. A possibilidade de polít ico foi
consult ada, e cri que m e saísse orador, e grande orador.
— Pode ser, redargüia Escobar; ninguém diria o que veio a se Dem óst enes.
Escobar acom panhava m uit a vez as m inhas criancices; t am bém int errogava o
fut uro. Chegou a falar da hipót ese de casar o pequeno com a filha. A am izade
exist e; est eve t oda nas m ãos com que apert ei as de Escobar, ao ouvir- lhe ist o, e
na t ot al ausência de palavras com que ali assinei o pact o; est as vieram depois, de
at ropelo, afinadas pelo coração, que bat ia com grande força. Aceit ei a lem brança,
e propus que os encam inhássem os a est e fim , pela educação igual e com um , pela
infância unida e corret a.
Era m inha idéia que Escobar fosse padrinho do pequeno; a m adrinha devia ser e
seria m inha m ãe. Mas a prim eira part e se t rocou por int ervenção do t io Cosm e,
que, ao ver a criança, disse- lhe ent re out ros carinhos:
— Anda, t om a a bênção a t eu padrinho, velhaco.
E, volt ando- se para m im :
— Não desist o do favor; e há de ser depressa o bat izado, ant es que a m inha
doença m e leve de vez.
Cont ei discret am ent e a anedot a a Escobar, para que ele m e com preendesse e
desculpasse; riu- se e não se m agoou. Fez m ais, quis que o alm oço do bat izado
fosse na chácara dele, e foi. Eu ainda t ent ei espaçar a cerim ônia a ver se t io
Cosm e sucum bia prim eiro à doença, m as parece que est a era m ais de aborrecer
que de m at ar. Não houve rem édio senão levar o m enino à pia, onde se lhe deu o
nom e de Ezequiel; era o de Escobar, e eu quis suprir dest e m odo a falt a de
com padrio.
CAPÍ TULO CI X
UM FI LH O ÚN I CO
Ezequiel, quando com eçou o capít ulo ant erior, não era ainda gerado; quando
acabou era crist ão e cat ólico. Est e out ro é dest inado a fazer chegar o m eu Ezequiel
aos cinco anos, um rapagão bonit o, com os seus olhos claros, j á inquiet os, com o
se quisessem nam orar t odas as m oças da vizinhança, ou quase t odas.
Agora, se considerares que ele foi único, que nenhum out ro veio, cert o nem
incert o, m ort o nem vivo, um só e único, im aginarás os cuidados que nos deu, os
sonos que nos t irou, e que sust os nos m et eram as crises dos dent es e out ras, a
m enor febrícula, t oda a exist ência com um das crianças. A t udo acudíam os,
segundo cum pria e urgia, coisa que não era necessário dizer, m as há leit ores t ão
obt usos, que nada ent endem , se lhes não relat a t udo e o rest o. Vam os ao rest o.
CAPÍ TULO CX
RASGOS D A I N FÂN CI A
O rest o com e- m e ainda m uit os capít ulos; há vidas que os t êm m enos, e fazem - se
ainda assim com plet as e acabadas.
Aos cinco e seis anos, Ezequiel não parecia desm ent ir os m eus sonhos da Praia da
Glória; ao cont rário, adivinhavam - se nele t odas as vocações possíveis, desde
vadio at é apóst olo. Vadio é aqui post o no bom sent ido, no sent ido de hom em que
pensa e cala; m et ia- se às vezes consigo, e nist o fazia lem brar a m ãe, desde
pequena. Assim t am bém , agit ava- se t odo e inst ava por ir persuadir às vizinhas
que os doces que eu lhe t razia eram doces deveras; não o fazia ant es de fart o
deles, m as t am bém os apóst olos não levam a boa dout rina senão depois de a
t erem t oda no coração. Escobar, bom negociant e, opinava que a causa principal
dest a out ra inclinação, t alvez fosse convidar im plicit am ent e as vizinhas a igual
apost olado, quando os pais lhe t rouxessem doces; e ria- se da própria graça, e
anunciava- m e que o faria seu sócio.
Gost ava de m úsica, não m enos que de doce, e eu disse a Capit u que lhe t irasse ao
piano o pregão do pret o das cocadas de Mat a- cavalos...
— Não m e lem bra.
— Não diga isso; você não se lem bra daquele pret o que vendia doce, às t ardes...
— Lem bra- m e de um pret o que vendia doce, m as não sei m ais da t oada.
— Nem das palavras?
— Nem das palavras.
A leit ora, que ainda se lem brará das palavras, dado que m e t enha lido com
at enção, ficará espant ada de t am anho esquecim ent o, t ant o m ais que lhe
lem brarão ainda as vozes da sua infância e adolescência; haverá olvidado
algum as, m as nem t udo fica na cabeça. Assim m e replicou Capit u, e não achei
t réplica. Fiz, porém , o que ela não esperava; corri aos m eus papéis velhos. Em
São Paulo, quando est udant e, pedi a um professor de m úsica que m e
t ranscrevesse a t oada do pregão; ele o fez com prazer ( bast ou- m e repet ir- lho de
m em ória) , e eu guardei o papelzinho; fui procurá- lo. Daí a pouco int errom pi um
rom ance que ela t ocava, com o pedacinho de papel na m ão. Expliquei- lho; ela
t eclou as dezesseis not as.
Capit u achou à t oada um sabor part icular, quase delicioso; cont ou ao filho a
hist ória do pregão, e assim o cant ava e t eclava. Ezequiel aproveit ou a m úsica para
pedir- m e que desm ent isse o t ext o, dando- lhe algum dinheiro.
Fazia de m édico, de m ilit ar, de at or e bailarino. Nunca lhe dei orat órios; m as
cavalos de pau e espada à cint a eram com ele. Já não falo dos bat alhões que
passavam na rua, e que ele corria a ver; t odas as crianças o fazem . O que nem
t odas fazem é t er os olhos que est a t inha. Em nenhum a vi as ânsias de gost o com
que assist ia à passagem da t ropa e ouvia t ocar a m archa dos t am bores.
— Olha, papai! olha!
— Est ou vendo, m eu filho!
— Olha o com andant e! Olha o cavalo do com andant e! Olha os soldados!
Um dia am anheceu t ocando cornet a com a m ão; dei- lhe um a cornet inha de m et al.
Com prei- lhe soldadinhos de chum bo, gravuras de bat alhas que ele m irava por
m uit o t em po, querendo que lhe explicasse um a peça de art ilharia, um soldado
caído, out ro de espada alçada, e t odos os seus am ores iam para o de espada
alçada. Um dia ( ingênua idade! ) pergunt ou- m e im pacient e:
— Mas, papai, por que é que ele não deixa cair a espada de um a vez?
— Meu filho, é porque é pint ado.
— Mas ent ão por que é que ele se pint ou?
Ri- m e do engano e expliquei- lhe que não era o soldado que se t inha pint ado no
papel, m as o gravador, e t ive de explicar t am bém o que era gravador e o que era
gravura: as curiosidades de Capit u, em sum a.
Tais são os principais rasgos da infância: m ais um e acabo o capít ulo. Um dia, na
chácara de Escobar, deu com um gat o que t inha um rat o at ravessado na boca. O
gat o nem deixava a presa, nem via por onde fugisse. Ezequiel não disse nada,
det eve- se, acocorou- se, e ficou olhando. Ao vê- lo assim at ent o, pergunt am os- lhe
de longe o que era; fez- nos sinal que nos calássem os. Escobar concluiu:
— Vão ver que é o gat o que apanhou algum rat o. Os rat os cont inuam a infest arm e a casa, que é o diabo. Vam os ver.
Capit u quis t am bém ver o filho; acom panhei- os. Efet ivam ent e, era um gat o e um
rat o, lance banal, sem int eresse nem graça. A única circunst ância part icular era
est ar o rat o vivo, esperneando, e o m eu pequeno enlevado. De rest o, o inst ant e
foi curt o. O gat o, logo que sent iu m ais gent e, dispôs- se a correr; o m enino, sem
t irar- lhe os olhos de cim a, fez- nos out ro sinal de silêncio; e o silêncio não podia
ser m aior. I a dizer religioso, risquei a palavra, m as aqui a ponho out ra vez, não só
por significar a t ot alidade do silêncio, m as t am bém porque havia naquela ação do
gat o e do rat o algum a coisa que prendia com rit ual. O único rum or eram os
últ im os guinchos do rat o, aliás frouxíssim os; as pernas m al se lhe m oviam e
desordenadam ent e. Um t ant o aborrecido, bat i palm as para que o gat o fugisse, e o
gat o fugiu. Os out ros nem t iveram t em po de at alhar- m e, Ezequiel ficou abat ido.
— Ora, papai!
— Que foi? A est a hora o rat o est á com ido.
— Pois sim , m as eu queria ver.
Os dois riram - se; eu m esm o achei- lhe graça.
CAPÍ TULO CXI
CON TAD O D EPRESSA
Achei- lhe graça, e não lhe nego ainda agora, apesar do t em po passado, dos
sucessos ocorridos e da t al ou qual sim pat ia ao rat o que acho em m im ; t eve
graça. Não m e pesa dizê- lo; os que am am a nat ureza com o ela quer ser am ada,
sem repúdio parcial nem exclusões inj ust as, não acham nela nada inferior. Am o o
rat o, não desam o o gat o. Já pensei em os fazer viver j unt os, m as vi que são
incom pat íveis. Em verdade, um rói- m e os livros, out ro o queij o; m as não é m uit o
que eu lhes perdoe, se j á perdoei a um cachorro que m e levou o descanso em
piores circunst âncias. Cont arei o caso depressa.
Foi quando nasceu Ezequiel; a m ãe est ava com febre, Sancha vivia ao pé dela, e
t rês cães na rua lat iam t oda a noit e. Procurei o fiscal, e foi com o se procurasse o
leit or, que só agora sabe dist o. Ent ão resolvi m at á- los; com prei veneno, m andei
fazer t rês bolas de carne, e eu m esm o inseri nelas a droga. De noit e, saí; era um a
hora; nem a doent e, nem a enferm eira podiam dorm ir, com a bulha dos cães.
Quando eles m e viram , afast aram - se, dois desceram para o lado da Praia do
Flam engo, um ficou a curt a dist ância, com o que esperando. Fui- m e a ele,
assobiando e dando est alinhos com os dedos. O diabo ainda lat iu, m as fiado nos
sinais de am izade, foi- se calando, at é que se calou de t odo. Com o eu cont inuasse,
ele veio a m im , devagar, m exendo a cauda, que é o seu m odo de rir deles; eu
t inha j á na m ão as bolas envenenadas, e ia deit ar- lhe um a delas, quando aquele
riso especial, carinho, confiança ou o que quer que sej a, m e at ou a vont ade; fiquei
assim não sei com o, t ocado de pena e guardei as bolas no bolso. Ao leit or pode
parecer que foi o cheiro da carne que rem et eu o cão ao silêncio. Não digo que
não; eu cuido que ele não m e quis at ribuir perfídia ao gest o, e ent regou- se- m e. A
conclusão é que se livrou.
CAPÍ TULO CXI I
AS I M I TAÇÕES D E EZEQUI EL
Tal não faria Ezequiel. Não com poria bolas envenenadas, suponho, m as não as
recusaria t am bém . O que faria com cert eza era ir at rás dos cães, a pedrada, at é
onde lhe dessem as pernas. E se t ivesse um pau, iria a pau. Capit u m orria por
aquele bat alhador fut uro.
— Não sai a nós, que gost am os da paz, disse- m e ela um dia, m as papai em m oço
era assim t am bém ; m am ãe é que cont ava.
— Sim , não sairá m aricas, repliquei; eu só lhe descubro um defeit ozinho, gost a de
im it ar os out ros.
— I m it ar com o?
— I m it ar os gest os, os m odos, as at it udes; im it a prim a Just ina, im it a José Dias; j á
lhe achei at é um j eit o dos pés de Escobar e dos olhos...
Capit u deixou- se est ar pensando e olhando para m im , e disse afinal que era
preciso em endá- lo. Agora reparava que realm ent e era vezo do filho, m as parecialhe que era só im it ar por im it ar, com o sucede a m uit as pessoas grandes, que
t om am as m aneiras dos out ros; e para que não fosse m ais longe...
— Tam bém não vam os m ort ificá- lo. Sem pre há t em po de corrigi- lo.
— Há, vou ver. Você t am bém não era assim , quando se zangava com alguém ...
— Quando m e zangava, concordo; vingança de m enino.
— Sim , m as eu não gost o de im it ações em casa.
— E naquele t em po gost avas de m im ? disse eu bat endo- lhe na face.
A respost a de Capit u foi um riso doce de escárnio, um desses risos que não se
descrevem , e apenas se pint arão; depois est irou os braços e at irou- m os sobre os
om bros, t ão cheios de graça que pareciam ( velha im agem ! ) um colar de flores. Eu
fiz o m esm o aos m eus, e sent i não haver ali um escult or que nos t ransferisse a
at it ude a um pedaço de m árm ore. Só brilharia o art ist a, é cert o. Quando um a
pessoa ou um grupo saem bem , ninguém quer saber do m odelo, m as da obra, e a
obra é que fica. Não im port a; nós saberíam os que éram os nós.
CAPÍ TULO CXI I I
EM BARGOS D E TERCEI RO
Por falar nist o, é nat ural que m e pergunt es se, sendo ant es t ão cioso dela, não
cont inuei a sê- lo apesar do filho e dos anos. Sim , senhor, cont inuei. Cont inuei, a
t al pont o que o m enor gest o m e afligia, a m ais ínfim a palavra, um a insist ência
qualquer; m uit a vez só a indiferença bast ava. Cheguei a t er ciúm es de t udo e de
t odos. Um vizinho, um par de valsa, qualquer hom em , m oço ou m aduro, m e
enchia de t error ou desconfiança. É cert o que Capit u gost ava de ser vist a, e o
m eio m ais próprio a t al fim ( disse- m e um a senhora, um dia) é ver t am bém , e não
há ver sem m ost rar que se vê.
A senhora que m e disse ist o cuido que gost ou de m im , e foi nat uralm ent e por não
achar da m inha part e correspondência aos seus afet os que m e explicou daquela
m aneira os seus olhos t eim osos. Out ros olhos m e procuravam t am bém , não
m uit os, e não digo nada sobre eles, t endo aliás confessado a princípio as m inhas
avent uras vindouras, m as eram ainda vindouras. Naquele t em po, por m ais
m ulheres bonit as que achasse, nenhum a receberia a m ínim a part e do am or que
t inha a Capit u. A m inha própria m ãe não queria m ais que m et ade. Capit u era t udo
e m ais que t udo; não vivia nem t rabalhava que não fosse pensando nela. Ao
t eat ro íam os j unt os; só m e lem bra que fosse duas vezes sem ela, um benefício de
at or, e um a est réia de ópera, a que ela não foi por t er adoecido, m as quis por
força que eu fosse. Era t arde para m andar o cam arot e a Escobar; saí, m as volt ei
no fim do prim eiro at o. Encont rei Escobar à port a do corredor.
— Vinha falar- t e, disse- m e ele.
Expliquei- lhe que t inha saído para o t eat ro donde volt ara receoso de Capit u, que
ficara doent e.
— Doent e de quê? pergunt ou Escobar.
— Queixava- se da cabeça e do est ôm ago.
— Ent ão, vou- m e em bora. Vinha para aquele negócio dos em bargos...
Eram uns em bargos de t erceiro; ocorrera um incident e im port ant e, e, t endo ele
j ant ado na cidade, não quis ir para casa sem dizer- m e o que era, m as j á agora
falaria depois...
— Não, falem os j á, sobe; ela pode est ar m elhor. Se est iver pior, desces.
Capit u est ava m elhor e at é boa. Confessou- m e que apenas t ivera um a dor de
cabeça de nada, m as agravara o padecim ent o para que eu fosse divert ir- m e. Não
falava alegre, o que m e fez desconfiar que m ent ia, para m e não m et er m edo, m as
j urou que era a verdade pura. Escobar sorriu e disse:
— A cunhadinha est á t ão doent e com o você ou eu. Vam os aos em bargos.
CAPÍ TULO CXI V
EM QUE SE EXPLI CA O EXPLI CAD O
Ant es de ir aos em bargos, expliquem os ainda um pont o que j á ficou explicado,
m as não bem explicado. Vist e que eu pedi ( cap. CX) a um professor de m úsica de
São Paulo que m e escrevesse a t oada daquele pregão de doces de Mat a- cavalos.
Em si, a m at éria é chocha, e não vale a pena de um capít ulo, quant o m ais dois;
m as há m at érias t ais que t razem ensinam ent os int eressant es, senão agradáveis.
Expliquem os o explicado.
Capit u e eu t ínham os j urado não esquecer m ais aquele pregão; foi em m om ent o
de grande t ernura, e o t abelião divino sabe as coisas que se j uram em t ais
m om ent os, ele que as regist ra nos livros et ernos.
— Você j ura?
— Juro, disse ela est endendo t ragicam ent e o braço.
Aproveit ei o gest o para beij ar- lhe a m ão; est ava ainda no sem inário. Quando fui
para São Paulo, querendo um dia relem brar a t oada, vi que a ia perdendo
int eiram ent e; consegui recordá- la e corri ao professor, que m e fez o obséquio de a
escrever no pedacinho de papel. Foi para não falt ar ao j uram ent o que fiz ist o. Mas
hás de crer que, quando corri aos papéis velhos, naquela noit e da Glória, t am bém
não m e lem brava j á da t oada nem do t ext o? Fiz- m e de pont ual ao j uram ent o, e
est e é que foi o m eu pecado; esquecer, qualquer esquece.
Ao cert o, ninguém sabe se há de m ant er ou não um j uram ent o. Coisas fut uras!
Port ant o, a nossa const it uição polít ica, t ransferindo o j uram ent o à afirm ação
sim ples, é profundam ent e m oral. Acabou com um pecado t errível. Falt ar ao
com prom isso é sem pre infidelidade, m as a alguém que t enha m ais t em or a Deus
que aos hom ens não lhe im port ará m ent ir, um a vez ou out ra, desde que não m et e
a alm a no purgat ório. Não confundam purgat ório com inferno, que é o et erno
naufrágio. Purgat ório é um a casa de penhores, que em prest a sobre t odas as
virt udes, a j uro alt o e prazo curt o. Mas os prazos renovam - se, at é que um dia
um a ou duas virt udes m edianas pagam t odos os pecados grandes e pequenos.
CAPÍ TULO CXV
D ÚVI D AS SOBRE D ÚVI D AS
Vam os agora aos em bargos... E por que irem os aos em bargos? Deus sabe o que
cust a escrevê- los, quant o m ais cont á- los. Da circunst ância nova que Escobar m e
t razia apenas digo o que lhe disse ent ão, ist o é, que não valia nada.
— Nada?
— Quase nada.
— Ent ão vale algum a coisa.
— Para reforçar as razões que j á t em os vale m enos que o chá que você vai t om ar
com igo.
— É t arde para t om ar chá.
— Tom arem os depressa.
Tom am os depressa. Durant e ele, Escobar olhava para m im desconfiado, com o se
cuidasse que eu recusava a circunst ância nova por forrar- m e a escrevê- la; m as t al
suspeit a não ia com a nossa am izade.
Quando ele saiu, referi as m inhas dúvidas a Capit u; ela as desfez com a art e fina
que possuía, um j eit o, um a graça t oda sua, capaz de dissipar as m esm as t rist ezas
de Olím pio.
— Seria o negócio dos em bargos, concluiu; e ele que veio at é aqui, a est a hora, é
que est á im pressionado com a dem anda.
— Tens razão.
Palavra puxa palavra, falei de out ras dúvidas. Eu era ent ão um poço delas;
coaxavam dent ro de m im , com o verdadeiras rãs, a pont o de m e t irarem o sono
algum as vezes. Disse- lhe que com eçava a achar m inha m ãe um t ant o fria e
arredia com ela. Pois aqui m esm o valeu a art e fina de Capit u!
— Já disse a você o que é; coisas de sogra. Mam ãezinha t em ciúm es de você; logo
que eles passem e as saudades aum ent em , ela t orna a ser o que era. Em lhe
falt ando o net o...
— Mas eu t enho not ado que j á é fria t am bém com Ezequiel. Quando ele vai
com igo, m am ãe não lhe faz as m esm as graças.
— Quem sabe se não anda doent e?
— Vam os nós j ant ar com ela am anhã?
— Vam os... Não... Pois vam os.
Fom os j ant ar com a m inha velha. Já lhe podia cham ar assim , post o que os seus
cabelos brancos não o fossem t odos nem t ot alm ent e, e o rost o est ivesse
com parat ivam ent e fresco; era um a espécie de m ocidade qüinquagenária ou de
ancianidade viçosa, à escolha... Mas nada de m elancolias; não quero falar dos
olhos m olhados, à ent rada e à saída. Pouco ent rou na conversação. Tam bém não
era diferent e da cost um ada. José Dias falou do casam ent o e suas belezas, da
polít ica, da Europa e da hom eopat ia, t io Cosm e das suas m olést ias, prim a Just ina
da vizinhança, ou de José Dias, quando est e saía da sala.
Quando volt am os, à noit e, viem os por ali a pé, falando das m inhas dúvidas. Capit u
novam ent e m e aconselhou que esperássem os. Sogras eram t odas assim ; lá vinha
um dia e m udavam . Ao passo que m e falava, recrudescia de t ernura. Dali em
diant e foi cada vez m ais doce com igo; não m e ia esperar à j anela, para não
espert ar- m e os ciúm es, m as quando eu subia, via no alt o da escada, ent re as
grades da cancela, a cara deliciosa da m inha am iga e esposa, risonha com o t oda a
nossa infância. Ezequiel às vezes est ava com ela; nós o havíam os acost um ado a
ver o ósculo da chegada e da saída, e ele enchia- m e a cara de beij os.
CAPÍ TULO CXVI
FI LH O D O H OM EM
Apalpei José Dias sobre as m aneiras novas de m inha m ãe; ficou espant ado. Não
havia nada, nem podia haver coisa nenhum a, t ant os eram os louvores incessant es
que ele ouvia " à bela e virt uosa Capit u."
— Agora, quando os ouço, ent ro t am bém no coro; m as a princípio ficava
envergonhadíssim o. Para quem chegou, com o eu, a arrenegar dest e casam ent o,
era duro confessar que ele foi um a verdadeira bênção do Céu. Que digna senhora
nos saiu a criança t ravessa de Mat a- cavalos! O pai é que nos separou um pouco,
enquant o não nos conhecíam os, m as t udo acabou em bem . Pois, sim , senhor,
quando D. Glória elogia a sua nora e com adre...
— Ent ão, m am ãe?...
— Perfeit am ent e!
— Mas, por que é que não nos visit a há t ant o t em po?
— Creio que t em andado m ais achacada dos seus reum at ism os. Est e ano t em feit o
m uit o frio... I m agine a aflição dela, que andava o dia int eiro; agora é obrigada a
est ar quiet a, ao pé do irm ão, que lá t em o seu m al...
Quis observar- lhe que t al razão explicava a int errupção das visit as, e não a frieza
quando íam os nós a Mat a- cavalos; m as não est endi t ão longe a int im idade do
agregado. José Dias pediu para ver o nosso " profet azinho" ( assim cham ava a
Ezequiel) e fez- lhe as fest as do cost um e. Dest a vez falou ao m odo bíblico ( est ivera
na véspera a folhear o livro de Ezequiel, com o soube depois) e pergunt ava- lhe:
" Com o vai isso, filho do hom em ?" " Dize- m e, filho do hom em , onde est ão os t eus
brinquedos?" " Queres com er doce, filho do hom em ?”
— Que filho do hom em é esse? pergunt ou- lhe Capit u agast ada.
— São os m odos de dizer da Bíblia.
— Pois eu não gost o deles, replicou ela com aspereza.
— Tem razão, Capit u, concordou o agregado. Você não im agina com o a Bíblia é
cheia de expressões cruas e grosseiras. Eu falava assim para variar... Tu com o
vais, m eu anj o? Meu anj o, com o é que eu ando na rua?
— Não, at alhou Capit u; j á lhe vou t irando esse cost um e de im it ar os out ros.
— Mas t em m uit a graça; a m im , quando ele copia os m eus gest os, parece- m e que
sou eu m esm o, pequenino. Out ro dia chegou a fazer um gest o de D. Glória, t ão
bem que ela lhe deu um beij o em paga. Vam os, com o é que eu ando?
— Não, Ezequiel, disse eu, m am ãe não quer.
Eu m esm o achava feio t al sest ro. Alguns dos gest os j á lhe iam ficando m ais
repet idos, com o os das m ãos e pés de Escobar; ult im am ent e, at é apanhara o
m odo de volt ar a cabeça dest e, quando falava, e o de deixá- la cair, quando ria.
Capit u ralhava. Mas o m enino era t ravesso, com o o diabo; apenas com eçam os a
falar de out ra coisa, salt ou ao m eio da sala, dizendo a José Dias:
— O senhor anda assim .
Não podem os deixar de rir, eu m ais que ninguém . A prim eira pessoa que fechou a
cara, que o repreendeu e cham ou a si foi Capit u.
— Não quero isso, ouviu?
CAPÍ TULO CXVI I
AM I GOS PRÓXI M OS
Já ent ão Escobar deixara Andaraí e com prara um a casa no Flam engo, casa que
ainda ali vi, há dias, quando m e deu na gana experim ent ar se as sensações
ant igas est avam m ort as ou dorm iam só; não posso dizê- lo bem , porque os sonos,
quando são pesados, confundem vivos e defunt os, a não ser a respiração. Eu
respirava um pouco, m as pode ser que fosse do m ar, m eio agit ado. Enfim , passei,
acendi um charut o, e dei por m im no Cat et e; t inha subido pela Rua da Princesa,
um a rua ant iga... Ó ruas ant igas! ó casas ant igas! ó pernas ant igas! Todos nós
éram os ant igos, e não é preciso dizer que no m au sent ido, no sent ido de velho e
acabado.
Velha é a casa, m as não lhe alt eraram nada. Não sei at é se ainda t em o m esm o
núm ero. Não digo que núm ero é para não irem indagar e cavar a hist ória. Não é
que Escobar ainda lá m ore nem sequer viva; m orreu pouco depois, por um m odo
que hei de cont ar. Enquant o viveu, um a vez que est ávam os t ão próxim os,
t ínham os por assim dizer um a só casa, eu vivia na dele, ele na m inha, e o pedaço
de praia ent re a Glória e o Flam engo era com o um cam inho de uso próprio e
part icular. Fazia- m e pensar nas duas casas de Mat a- cavalos, com o seu m uro de
perm eio.
Um hist oriador da nossa língua, creio que João de Barros, põe na boca de um rei
bárbaro algum as palavras m ansas, quando os port ugueses lhe propunham
est abelecer ali ao pé um a fort aleza; dizia o rei que os bons am igos deviam ficar
longe uns dos out ros, não pert o, para se não zangarem com o as águas do m ar
que bat iam furiosas no rochedo que eles viam dali. Que a som bra do escrit or m e
perdoe, se eu duvido que o rei dissesse t al palavra nem que ela sej a verdadeira.
Provavelm ent e foi o m esm o escrit or que a invent ou para adornar o t ext o, e não
fez m al, porque é bonit a; realm ent e, é bonit a. Eu creio que o m ar ent ão bat ia na
pedra, com o é seu cost um e, desde Ulisses e ant es. Agora que a com paração sej a
verdadeira é que não. Seguram ent e há inim igos cont íguos, m as t am bém há
am igos de pert o e do peit o. E o escrit or esquecia ( salvo se ainda não era do seu
t em po) , esquecia o adágio: longe dos olhos, longe do coração. Nós não podíam os
t er os corações agora m ais pert o. As nossas m ulheres viviam na casa um a da
out ra, nós passávam os as noit es cá ou lá conversando, j ogando ou m irando o
m ar. Os dois pequenos passavam dias, ora no Flam engo, ora na Glória.
Com o eu observasse que podia acont ecer com eles o que se dera ent re m im e
Capit u, acharam t odos que sim , e Sancha acrescent ou que at é j á se iam
parecendo. Eu expliquei:
— Não; é porque Ezequiel im it a os gest os dos out ros.
Escobar concordou com igo, e insinuou que algum a vez as crianças que se
freqüent am m uit o acabam parecendo- se um as com as out ras. Opinei de cabeça,
com o m e sucedia nas m at érias que eu não sabia bem nem m al. Tudo podia ser. O
cert o é que eles se queriam m uit o, e podiam acabar casados, m as não acabaram
casados.
CAPÍ TULO CXVI I I
A M ÃO D E SAN CH A
Tudo acaba, leit or; é um velho t ruísm o, a que se pode acrescent ar que nem t udo o
que dura, dura m uit o t em po. Est a segunda part e não acha crent es fáceis; ao
cont rário, a idéia de que um cast elo de vent o dura m ais que o m esm o vent o de
que é feit o, dificilm ent e se despegará da cabeça, e é bom que sej a assim , para
que se não perca o cost um e daquelas const ruções quase et ernas.
O nosso cast elo era sólido, m as um dom ingo... Na véspera t ínham os passado a
noit e no Flam engo, não só os dois casais inseparáveis, com o ainda o agregado e
prim a Just ina. Foi ent ão que Escobar, falando- m e à j anela, disse- m e que fôssem os
lá j ant ar no dia seguint e; precisávam os falar de um proj et o em fam ília, um proj et o
para os quat ro.
— Para os quat ro? Um a cont radança.
— Não. Não és capaz de adivinhar o que sej a, nem eu digo. Vem am anhã.
Sancha não t irava os olhos de nós durant e a conversa, ao cant o da j anela. Quando
o m arido saiu, veio t er com igo. Pergunt ou- m e de que é que faláram os; disse- lhe
que de um proj et o que eu não sabia qual fosse; ela pediu- m e segredo, e reveloum e o que era: um a viagem à Europa dali a dois anos. Disse ist o de cost as para
dent ro, quase suspirando. O m ar bat ia com grande força na praia; havia ressaca.
— Vam os t odos? pergunt ei por fim .
— Vam os.
Sancha ergueu a cabeça e olhou para m im com t ant o prazer que eu, graças às
relações dela e Capit u, não se m e daria beij á- la na t est a. Ent ret ant o, os olhos de
Sancha não convidavam a expansões frat ernais, pareciam quent es e int im at ivos,
diziam out ra coisa, e não t ardou que se afast assem da j anela, onde eu fiquei
olhando para o m ar, pensat ivo. A noit e era clara.
Dali m esm o busquei os olhos de Sancha, ao pé do piano; encont rei- os em
cam inho. Pararam os quat ro e ficaram diant e uns dos out ros, uns esperando que
os out ros passassem , m as nenhuns passavam . Tal se dá na rua ent re dois
t eim osos. A caut ela desligou- nos; eu t ornei a volt ar- m e para fora. E assim post o
ent rei a cavar na m em ória se algum a vez olhara para ela com a m esm a
expressão, e fiquei incert o. Tive um a cert eza só, é que um dia pensei nela, com o
se pensa na bela desconhecida que passa; m as ent ão dar- se- ia que ela,
adivinhando... Talvez o sim ples pensam ent o m e t ransluzisse cá fora, e ela m e
fugisse out rora irrit ada ou acanhada, e agora por um m ovim ent o invencível...
I nvencível; est a palavra foi com o um a bênção de padre à m issa, que a gent e
recebe e repet e em si m esm a.
— O m ar am anhã est á de desafiar a gent e, disse- m e a voz de Escobar, ao pé de
m im .
— Você ent ra no m ar am anhã?
— Tenho ent rado com m ares m aiores, m uit o m aiores. Você não im agina o que é
um bom m ar em hora bravia. É preciso nadar bem , com o eu, e t er est es pulm ões,
disse ele bat endo no peit o, e est es braços; apalpa.
Apalpei- lhe os braços, com o se fossem os de Sancha. Cust a- m e est a confissão,
m as não posso suprim i- la; era j arret ar a verdade. Não só os apalpei com essa
idéia, m as ainda sent i out ra coisa; achei- os m ais grossos e fort es que os m eus, e
t ive- lhes invej a; acresce que sabiam nadar.
Quando saím os, t ornei a falar com os olhos à dona da casa. A m ão dela apert ou
m uit o a m inha, e dem orou- se m ais que de cost um e.
A m odést ia pedia ent ão, com o agora, que eu visse naquele gest o de Sancha um a
sanção ao proj et o do m arido e um agradecim ent o. Assim devia ser, m as um fluido
part icular que m e correu t odo o corpo desviou de m im a conclusão que deixo
escrit a. Sent i ainda os dedos de Sancha ent re os m eus, apert ando uns aos out ros.
Foi um inst ant e de vert igem e de pecado. Passou depressa no relógio do t em po;
quando cheguei o relógio ao ouvido t rabalhavam só os m inut os da virt ude e da
razão.
—... Um a senhora deliciosíssim a, concluiu José Dias um discurso que vinha
fazendo.
— Deliciosíssim a! repet i com algum ardor, que m oderei logo, em endando- m e:
Realm ent e, um a bela noit e!
— Com o devem ser t odas as daquela casa, cont inuou o agregado. Cá fora, não; cá
fora o m ar est á zangado; escut e.
Ouvia- se o m ar fort e, — com o j á se ouvia de casa, — a ressaca era grande e, a
dist ância, viam - se crescer as ondas. Capit u e prim a Just ina, que iam adiant e,
det iveram - se num a das volt as da praia, e fom os conversando os quat ro; m as eu
conversava m al. Não havia m eio de esquecer int eiram ent e a m ão de Sancha nem
os olhos que t rocam os. Agora achava- lhes ist o, agora aquilo. Os inst ant es do
Diabo int ercalavam - se nos m inut os de Deus, e o relógio foi assim m arcando
alt ernat ivam ent e a m inha perdição e a m inha salvação. José Dias despediu- se de
nós à port a. Prim a Just ina dorm iu em nossa casa; iria em bora, no dia seguint e,
depois do alm oço e da m issa. Eu recolhi- m e ao m eu gabinet e, onde m e dem orei
m ais que de cost um e.
O ret rat o de Escobar, que eu t inha ali, ao pé do de m inha m ãe, falou- m e com o se
fosse a própria pessoa. Com bat i sinceram ent e os im pulsos que t razia do
Flam engo; rej eit ei a figura da m ulher do m eu am igo, e cham ei- m e desleal.
Dem ais, quem m e afirm ava que houvesse algum a int enção daquela espécie no
gest o da despedida e nos ant eriores? Tudo podia ligar- se ao int eresse da nossa
viagem . Sancha e Capit u eram t ão am igas que seria um prazer m ais para elas
irem j unt as. Quando houvesse algum a int enção sexual, quem m e provaria que não
era m ais que um a sensação fulgurant e, dest inada a m orrer com a noit e e o sono?
Há rem orsos que não nascem de out ro pecado, nem t êm m aior duração. Agarreim e a est a hipót ese que se conciliava com a m ão de Sancha, que eu sent ia de
m em ória dent ro da m inha m ão, quent e e dem orada, apert ada e apert ando...
Sinceram ent e, eu achava- m e m al ent re um am igo e a at ração. A t im idez pode ser
que fosse out ra causa daquela crise; não é só o Céu que dá as nossas virt udes, a
t im idez t am bém , não cont ando o acaso, m as o acaso é um m ero acident e; a
m elhor origem delas é o céu. Ent ret ant o, com o a t im idez vem do céu, que nos dá
a com pleição, a virt ude, filha dela, é, genealogicam ent e, o m esm o sangue
celest ial. Assim reflet iria, se pudesse; m as a princípio vaguei à t oa. Paixão não
era, nem inclinação. Capricho seria, ou quê? Ao fim de vint e m inut os era nada,
int eiram ent e nada. O ret rat o de Escobar pareceu falar- m e; vi- lhe a at it ude franca
e sim ples, sacudi a cabeça e fui deit ar- m e.
CAPÍ TULO CXI X
N ÃO FAÇA I SSO, QUERI D A!
A leit ora, que é m inha am iga e abriu est e livro com o fim de descansar da cavat ina
de ont em para a valsa de hoj e, quer fechá- lo às pressas, ao ver que beiram os um
abism o. Não faça isso, querida; eu m udo de rum o.
CAPÍ TULO CXX
OS AUTOS
Na m anhã seguint e acordei livre das abom inações da véspera; cham ei- lhes
alucinações, t om ei café, percorri os j ornais e fui est udar uns aut os. Capit u e prim a
Just ina saíram para a m issa das nove, na Lapa. A figura de Sancha desapareceu
int eiram ent e no m eio das alegações da part e adversa, que eu ia lendo nos aut os,
alegações falsas, inadm issíveis, sem apoio na lei nem nas praxes. Vi que era fácil
ganhar a dem anda; consult ei Dalloz, Pereira e Sousa...
Um a só vez olhei para o ret rat o de Escobar. Era um a bela fot ografia t irada um ano
ant es. Est ava de pé, sobrecasaca abot oada, a m ão esquerda no dorso de um a
cadeira, a direit a m et ida ao peit o, o olhar ao longe para a esquerda do espect ador.
Tinha garbo e nat uralidade. A m oldura que lhe m andei pôr não encobria a
dedicat ória, escrit a em baixo, não nas cost as do cart ão: " Ao m eu querido Bent inho
o seu querido Escobar 20- 4- 70” .Est as palavras fort aleceram - m e os pensam ent os
daquela m anhã, e espancaram de t odo as recordações da véspera. Naquele t em po
a m inha vist a era boa; eu podia lê- las do lugar em que est ava. Tornei aos aut os.
CAPÍ TULO CXXI
A CATÁSTROFE
No m elhor deles, ouvi passos precipit ados na escada, a cam painha soou, soaram
palm as, golpes na cancela, vozes, acudiram t odos, acudi eu m esm o. Era um
escravo da casa de Sancha que m e cham ava:
— Para ir lá... sinhô nadando, sinhô m orrendo.
Não disse m ais nada, ou eu não lhe ouvi o rest o. Vest i- m e, deixei recado a Capit u
e corri ao Flam engo.
Em cam inho, fui adivinhando a verdade. Escobar m et eu- se a nadar, com o usava
fazer, arriscou- se um pouco m ais fora que de cost um e, apesar do m ar bravio, foi
enrolado e m orreu. As canoas que acudiram m al puderam t razer- lhe o cadáver.
CAPÍ TULO CXXI I
O EN TERRO
A viúva... Poupo- vos as lágrim as da viúva, as m inhas, as da out ra gent e. Saí de lá
cerca de onze horas; Capit u e prim a Just ina esperavam - m e, um a com o parecer
abat ido e est úpido, out ra enfast iada apenas.
— Vão fazer com panhia à pobre Sanchinha; eu vou cuidar do ent erro.
Assim fizem os. Quis que o ent erro fosse pom poso, e a afluência dos am igos foi
num erosa. Praia, ruas, Praça da Glória, t udo eram carros, m uit os deles
part iculares. A casa não sendo grande, não podiam lá caber t odos; m uit os
est avam na praia, falando do desast re, apont ando o lugar em que Escobar
falecera, ouvindo referir a chegada do m ort o. José Dias ouviu t am bém falar dos
negócios do finado, divergindo alguns na avaliação dos bens, m as havendo acordo
em que o passivo devia ser pequeno. Elogiavam as qualidades de Escobar, um ou
out ro discut ia o recent e gabinet e Rio Branco; est ávam os em m arço de 1871.
Nunca m e esqueceu o m ês nem o ano.
Com o eu houvesse resolvido falar no cem it ério, escrevi algum as linhas e m ost reias em casa a José Dias, que as achou realm ent e dignas do m ort o e de m im .
Pediu- m e o papel, recit ou lent am ent e o discurso, pesando as palavras, e
confirm ou a prim eira opinião; no Flam engo espalhou a not ícia. Alguns conhecidos
vieram int errogar- m e:
— Ent ão, vam os ouvi- lo?
— Quat ro palavras.
Poucas m ais seriam . Tinha- as escrit o com receio de que a em oção m e im pedisse
de im provisar. No t ílburi em que andei um a ou duas horas, não fizera m ais que
recordar o t em po do sem inário, as relações de Escobar, as nossas sim pat ias, a
nossa am izade, com eçada, cont inuada e nunca int errom pida, at é que um lance da
fort una fez separar para sem pre duas criat uras que prom et iam ficar por m uit o
t em po unidas. De quando em quando enxugava os olhos. O cocheiro avent urou
duas ou t rês pergunt as sobre a m inha sit uação m oral; não m e arrancando nada,
cont inuou o seu ofício. Chegando a casa, deit ei aquelas em oções ao papel; t al
seria o discurso.
CAPÍ TULO CXXI I I
OLH OS D E RESSACA
Enfim , chegou a hora da encom endação e da part ida. Sancha quis despedir- se do
m arido, e o desespero daquele lance const ernou a t odos. Muit os hom ens
choravam t am bém , as m ulheres t odas. Só Capit u, am parando a viúva, parecia
vencer- se a si m esm a. Consolava a out ra, queria arrancá- la dali. A confusão era
geral. No m eio dela, Capit u olhou alguns inst ant es para o cadáver t ão fixa, t ão
apaixonadam ent e fixa, que não adm ira lhe salt assem algum as lágrim as poucas e
caladas...
As m inhas cessaram logo. Fiquei a ver as dela; Capit u enxugou- as depressa,
olhando a furt o para a gent e que est ava na sala. Redobrou de carícias para a
am iga, e quis levá- la; m as o cadáver parece que a ret inha t am bém . Mom ent o
houve em que os olhos de Capit u fit aram o defunt o, quais os da viúva, sem o
prant o nem palavras dest a, m as grandes e abert os, com o a vaga do m ar lá fora,
com o se quisesse t ragar t am bém o nadador da m anhã.
CAPÍ TULO CXXI V
O D I SCURSO
— Vam os, são horas...
Era José Dias que m e convidava a fechar o at aúde. Fecham o- lo, e eu peguei num a
das argolas; rom peu o alarido final. Palavra que, quando cheguei à port a, vi o sol
claro, t udo gent e e carros, as cabeças descobert as, t ive um daqueles m eus
im pulsos que nunca chegavam à execução: foi at irar à rua caixão, defunt o e t udo.
No carro disse a José Dias que se calasse. No cem it ério t ive de repet ir a cerim ônia
da casa, desat ar as correias, e aj udar a levar o féret ro à cova. O que ist o m e
cust ou im agina. Descido o cadáver à cova, t rouxeram a cal e a pá; sabes dist o,
t erás ido a m ais de um ent erro, m as o que não sabes nem pode saber nenhum
dos t eus am igos, leit or, ou qualquer out ro est ranho, é a crise que m e t om ou
quando vi t odos os olhos em m im , os pés quiet os, as orelhas at ent as, e, ao cabo
de alguns inst ant es de t ot al silêncio, um sussurro vago, algum as vozes
int errogat ivas, sinais, e alguém , José Dias, que m e dizia ao ouvido:
— Ent ão, fale.
Era o discurso. Queriam o discurso. Tinham j us ao discurso anunciado.
Maquinalm ent e, m et i a m ão no bolso, saquei o papel e li- o aos t ram bolhões, não
t odo, nem seguido, nem claro; a voz parecia- m e ent rar em vez de sair, as m ãos
t rem iam - m e. Não era só a em oção nova que m e fazia assim , era o próprio t ext o,
as m em órias do am igo, as saudades confessadas, os louvores à pessoa e aos seus
m érit os; t udo ist o que eu era obrigado a dizer e dizia m al. Ao m esm o t em po,
t em endo que m e adivinhassem a verdade, forcej ava por escondê- la bem . Creio
que poucos m e ouviram , m as o gest o geral foi de com preensão e de aprovação.
As m ãos que m e deram a apert ar eram de solidariedade; alguns diziam : " Muit o
bonit o! m uit o bem ! m agnífico! " José Dias achou que a eloqüência est ivera na
alt ura da piedade. Um hom em , que m e pareceu j ornalist a, pediu- m e licença para
levar o m anuscrit o e im prim i- lo. Só a m inha grande t urvação recusaria um
obséquio t ão sim ples.
CAPÍ TULO CXXV
UM A COM PARAÇÃO
Príam o j ulga- se o m ais infeliz dos hom ens, por beij ar a m ão daquele que lhe
m at ou o filho. Hom ero é que relat a ist o, e é um bom aut or, não obst ant e cont á- lo
em verso, m as há narrações exat as em verso, e at é m au verso. Com para t u a
sit uação de Príam o com a m inha; eu acabava de louvar as virt udes do hom em que
recebera, defunt o, aqueles olhos... É im possível que algum Hom ero não t irasse da
m inha sit uação m uit o m elhor efeit o, ou quando m enos, igual. Nem digas que nos
falt am Hom eros, pela causa apont ada em Cam ões; não, senhor, falt am - nos, é
cert o, m as é porque os Príam os procuram a som bra e o silêncio. As lágrim as, se
as t êm , são enxugadas at rás da port a, para que as caras apareçam lim pas e
serenas; os discursos são ant es de alegria que de m elancolia, e t udo passa com o
se Aquiles não m at asse Heit or.
CAPÍ TULO CXXVI
CI SM AN D O
Pouco depois de sair do cem it ério, rasguei o discurso e deit ei os pedaços pela
port inhola fora, sem em bargo dos esforços de José Dias para im pedi- lo.
— Não prest a para nada, disse- lhe eu, e com o posso t er a t ent ação de dá- lo a
im prim ir, fica j á dest ruído de um a vez. Não prest a, não vale nada.
José Dias dem onst rou longam ent e o cont rário, depois elogiou o ent erro, e por
últ im o fez o panegírico do m ort o, um a grande alm a, espírit o at ivo, coração ret o,
am igo, bom am igo, digno da esposa am ant íssim a que Deus lhe dera...
Nest e pont o do discurso, deixei- o falar sozinho e peguei a cism ar com igo. O que
cism ei foi t ão escuro e confuso que não m e deixou t om ar pé. No Cat et e m andei
parar o carro, disse a José Dias que fosse buscar as senhoras ao Flam engo e as
levasse para casa; eu iria a pé.
— Mas...
— Vou fazer um a visit a.
A razão dist o era acabar de cism ar, e escolher um a resolução que fosse adequada
ao m om ent o. O carro andaria m ais depressa que as pernas; est as iriam pausadas
ou não, podia afrouxar o passo, parar, arrepiar cam inho, e deixar que a cabeça
cism asse à vont ade. Fui andando e cism ando. Tinha j á com parado o gest o de
Sancha na véspera e o desespero daquele dia; eram inconciliáveis. A viúva era
realm ent e am ant íssim a. Assim se desvaneceu de t odo a ilusão da m inha vaidade.
Não seria o m esm o caso de Capit u? Cuidei de recom por- lhe os olhos, a posição em
que a vi, o aj unt am ent o de pessoas que devia nat uralm ent e im por- lhe a
dissim ulação, se houvesse algo que dissim ular. O que aqui vai por ordem lógica e
dedut iva, t inha sido ant es um a barafunda de idéias e sensações, graças aos
solavancos do carro e às int errupções de José Dias. Agora, porém , raciocinava e
evocava claro e bem . Concluí de m im para m im que era a ant iga paixão que m e
ofuscava ainda e m e fazia desvairar com o sem pre.
Quando cheguei a est a conclusão final, chegava t am bém à port a de casa, m as
volt ei para t rás, e subi out ra vez a Rua do Cat et e. Eram as dúvidas que m e
afligiam ou a necessidade de afligir Capit u com a m inha grande dem ora?
Ponham os que eram as duas causas; andei largo espaço, at é que m e sent i
sossegar, e endireit ei para casa. Bat iam oit o horas num a padaria.
CAPÍ TULO CXXVI I
O BARBEI RO
Pert o de casa, havia um barbeiro, que m e conhecia de vist a, am ava a rabeca e
não t ocava int eiram ent e m al. Na ocasião em que ia passando, execut ava não sei
que peça. Parei na calçada a ouvi- lo ( t udo são pret ext os a um coração agoniado) ,
ele viu- m e, e cont inuou a t ocar. Não at endeu a um freguês, e logo a out ro, que ali
foram , a despeit o da hora e de ser dom ingo, confiar- lhe as caras à navalha.
Perdeu- os sem perder um a not a; ia t ocando para m im . Est a consideração fez- m e
chegar francam ent e à port a da loj a, volt ado para ele. Ao fundo, levant ando a
cort ina de chit a que fechava o int erior da casa, vi apont ar um a m oça t rigueira,
vest ido claro, flor no cabelo. Era a m ulher dele; creio que m e descobriu de dent ro,
e veio agradecer- m e com a presença o favor que eu fazia ao m arido. Se m e não
engano, chegou a dizê- lo com os olhos. Quant o ao m arido, t ocava agora com m ais
calor; sem ver a m ulher, sem ver fregueses, grudava a face no inst rum ent o,
passava a alm a ao arco, e t ocava, t ocava...
Divina art e! I a- se form ando um grupo, deixei a port a da loj a e vim andando para
casa; enfiei pelo corredor e subi as escadas sem est répit o. Nunca m e esqueceu o
caso dest e barbeiro, ou por est ar ligado a um m om ent o grave da m inha vida, ou
por est a m áxim a, que os com piladores podem t irar daqui e inserir nos com pêndios
de escola. A m áxim a é que a gent e esquece devagar as boas ações que prat ica, e
verdadeiram ent e não as esquece nunca. Pobre barbeiro! perdeu duas barbas
naquela noit e, que eram o pão do dia seguint e, t udo para ser ouvido de um
t ranseunt e. Supõe agora que est e, em vez de ir- se em bora, com o eu fui, ficava à
port a a ouvi- lo e a enam orar- lhe a m ulher; ent ão é que ele, t odo arco, t odo
rabeca, t ocaria desesperadam ent e. Divina art e!
CAPÍ TULO CXXVI I I
PUN H AD O D E SUCESSOS
Com o ia dizendo, subi as escadas sem est répit o, em purrei a cancela, que est ava
apenas encost ada, e dei com prim a Just ina e José Dias j ogando cart as na salet a
próxim a. Capit u levant ou- se do canapé e veio a m im . O rost o dela era agora
sereno e puro. Os out ros suspenderam o j ogo, e t odos falam os do desast re e da
viúva. Capit u censurou a im prudência de Escobar, e não dissim ulou a t rist eza que
lhe t razia a dor da am iga. Pergunt ei- lhe por que não ficara com Sancha aquela
noit e.
— Tem lá m uit a gent e; ainda assim ofereci- m e, m as não quis. Tam bém lhe disse
que era m elhor vir para cá, e passar aqui uns dias conosco.
— Tam bém não quis?
— Tam bém não.
— Ent ret ant o, a vist a do m ar há de ser- lhe penosa, t odas as m anhãs, ponderou
José Dias, e não sei com o poderá...
— Mas passa; o que é que não passa? at alhou prim a Just ina.
E com o em t orno dest a idéia, com eçássem os um a t roca de palavras, Capit u saiu
para ver se o filho dorm ia. Ao passar pelo espelho, concert ou os cabelos t ão
dem oradam ent e que pareceria afet ação, se não soubéssem os que ela era m uit o
am iga de si. Quando t ornou t razia os olhos verm elhos; disse- nos que, ao m irar o
filho dorm indo, pensara na filhinha de Sancha, e na aflição da viúva. E, sem se lhe
dar das visit as, nem reparar se havia algum criado, abraçou- m e e disse- m e que,
se quisesse pensar nela, era preciso pensar prim eiro na m inha vida. José Dias
achou a frase " lindíssim a" , e pergunt ou a Capit u por que é que não fazia versos.
Tent ei m et er o caso à bulha, e assim acabam os a noit e.
No dia seguint e, arrependi- m e de haver rasgado o discurso, não que quisesse dálo a im prim ir, m as era lem brança do finado. Pensei em recom pô- lo, m as só achei
frases solt as, que um a vez j unt as não t inham sent ido. Tam bém pensei em fazer
out ro, m as era j á difícil, e podia ser apanhado em falso pelos que m e t inham
ouvido no cem it ério. Quant o a recolher os pedacinhos de papel deit ados à rua, era
t arde; est ariam j á varridos.
I nvent ariei as lem branças de Escobar, livros, um t int eiro de bronze, um a bengala
de m arfim , um pássaro, o álbum de Capit u, duas paisagens do Paraná e out ras.
Tam bém ele as possuía de m inha m ão. Vivem os assim a t rocar m em órias e
regalos, ora em dia de anos, ora sem razão part icular. Tudo isso m e em panava os
olhos... Vieram os j ornais do dia: davam not ícia do desast re e da m ort e de
Escobar, os est udos e os negócios dest e, as qualidades pessoais, a sim pat ia do
com ércio, e t am bém falavam dos bens deixados, da m ulher e da filha. Tudo isso
foi na segunda- feira. Na t erça- feira foi abert o o t est am ent o, que m e nom eava
segundo t est am ent eiro; o prim eiro lugar cabia à m ulher. Não m e deixava nada,
m as as palavras que m e escrevera em cart a separada eram sublim es de am izade
e est im a. Capit u dest a vez chorou m uit o; m as com pôs- se depressa.
Test am ent o, invent ário, t udo andou quase t ão depressa com o aqui vai dit o. Ao
cabo de pouco t em po, Sancha ret irou- se para a casa dos parent es no Paraná.
CAPÍ TULO CXXI X
A D . SAN CH A
D. Sancha, peço- lhe que não leia est e livro; ou, se o houver lido at é aqui,
abandone o rest o. Bast a fechá- lo; m elhor será queim á- lo, para lhe não dar
t ent ação e abri- lo out ra vez. Se, apesar do aviso, quiser ir at é o fim , a culpa é
sua; não respondo pelo m al que receber. O que j á lhe t iver feit o, cont ando os
gest os daquele sábado, esse acabou, um a vez que os acont ecim ent os, e eu com
eles, desm ent im os a m inha ilusão; m as o que agora a alcançar, esse é indelével.
Não, am iga m inha, não leia m ais. Vá envelhecendo, sem m arido nem filha, que eu
faço a m esm a coisa, e é ainda o m elhor que se pode fazer depois da m ocidade.
Um dia, irem os daqui at é à port a do Céu, onde nos encont rarem os renovados,
com o as plant as novas, com e piant e novelle,
Rinovellat e di novelle fronde.
O rest o em Dant e.
CAPÍ TULO CXXX
UM D I A...
Porquant o, um dia Capit u quis saber o que é que m e fazia andar calado e
aborrecido. E propôs- m e a Europa, Minas, Pet rópolis, um a série de bailes, m il
desses rem édios aconselhados aos m elancólicos. Eu não sabia que lhe
respondesse; recusei as diversões. Com o insist isse, repliquei- lhe que os m eus
negócios andavam m al. Capit u sorriu para anim ar- m e. E que t inha que andassem
m al? Tornariam a andar bem , e at é lá as j óias, os obj et os de algum valor seriam
vendidos, e iríam os residir em algum beco. Viveríam os sossegados e esquecidos;
depois t ornaríam os à t ona da água. A t ernura com que m e disse ist o era de
com over as pedras. Pois nem assim . Respondi- lhe secam ent e que não era preciso
vender nada. Deixei- m e est ar calado e aborrecido. Ela propôs- m e j ogar cart as ou
dam as, um passeio a pé, um a visit a a Mat a- cavalos; e, com o eu não aceit asse
nada, foi para a sala, abriu o piano, e com eçou a t ocar; eu aproveit ei a ausência,
peguei do chapéu e saí.
...Perdão, m as est e capít ulo devia ser precedido de out ro, em que cont asse um
incident e, ocorrido poucas sem anas ant es, dois m eses depois da part ida de
Sancha. Vou escrevê- lo; podia ant epô- lo a est e, ant es de m andar o livro ao prelo,
m as cust a m uit o alt erar o núm ero das páginas; vai assim m esm o, depois a
narração seguirá direit a at é o fim . Dem ais, é curt o.
CAPÍ TULO CXXXI
AN TERI OR AO AN TERI OR
Foi o caso que a m inha vida era out ra vez doce e plácida, a banca do advogado
rendia- m e bast ant e, Capit u est ava m ais bela, Ezequiel ia crescendo. Com eçava o
ano de 1872.
— Você j á reparou que Ezequiel t em nos olhos um a expressão esquisit a?
pergunt ou- m e Capit u. Só vi duas pessoas assim , um am igo de papai e o defunt o
Escobar. Olha, Ezequiel; olha firm e, assim , vira para o lado de papai, não precisa
revirar os olhos, assim , assim ...
Era depois de j ant ar; est ávam os ainda à m esa, Capit u brincava com o filho, ou ele
com ela, ou um com out ro, porque, em verdade, queriam - se m uit o, m as é
t am bém cert o que ele m e queria ainda m ais a m im . Aproxim ei- m e de Ezequiel,
achei que Capit u t inha razão; eram os olhos de Escobar, m as não m e pareceram
esquisit os por isso. Afinal não haveria m ais que m eia dúzia de expressões no
m undo, e m uit as sem elhanças se dariam nat uralm ent e. Ezequiel não ent endeu
nada, olhou espant ado para ela e para m im , e afinal salt ou- m e ao colo:
— Vam os passear, papai?
— Logo, m eu filho.
Capit u, alheia a am bos, fit ava agora a out ra borda da m esa; m as, dizendo- lhe eu
que, na beleza, os olhos de Ezequiel saíam aos da m ãe, Capit u sorriu, abanando a
cabeça com um ar que nunca achei em m ulher algum a, provavelm ent e porque não
gost ei t ant o das out ras. As pessoas valem o que vale a afeição da gent e, e é daí
que m est re Povo t irou aquele adágio que quem o feio am a bonit o lhe parece.
Capit u t inha m eia dúzia de gest os únicos na Terra. Aquele ent rou- m e pela alm a
dent ro. Assim fica explicado que eu corresse à m inha esposa e am iga e lhe
enchesse a cara de beij os; m as est e out ro incident e não é radicalm ent e necessário
à com preensão do capít ulo passado e dos fut uros; fiquem os nos olhos de Ezequiel.
CAPÍ TULO CXXXI I
O D EBUXO E O COLORI D O
Nem só os olhos, m as as rest ant es feições, a cara, o corpo, a pessoa int eira, iam se apurando com o t em po. Eram com o um debuxo prim it ivo que o art ist a vai
enchendo e colorindo aos poucos, e a figura ent ra a ver, sorrir, palpit ar, falar
quase, at é que a fam ília pendura o quadro na parede, em m em ória do que foi e j á
não pode ser. Aqui podia ser e era. O cost um e valeu m uit o cont ra o efeit o da
m udança; m as a m udança fez- se, não à m aneira de t eat ro, fez- se com o a m anhã
que apont a vagarosa, prim eiro que se possa ler um a cart a, depois lê- se a cart a na
rua, em casa, no gabinet e, sem abrir as j anelas; a luz coada pelas persianas bast a
a dist inguir as let ras. Li a cart a, m al a princípio e não t oda, depois fui lendo
m elhor. Fugia- lhe, é cert o, m et ia o papel no bolso, corria a casa, fechava- m e, não
abria as vidraças, chegava a fechar os olhos. Quando novam ent e abria os olhos e
a cart a, a let ra era clara e a not ícia claríssim a.
Escobar vinha assim surgindo da sepult ura, do sem inário e do Flam engo para se
sent ar com igo à m esa, receber- m e na escada, beij ar- m e no gabinet e de m anhã,
ou pedir- m e à noit e a bênção do cost um e. Todas essas ações eram repulsivas; eu
t olerava- as e prat icava- as, para m e não descobrir a m im m esm o e ao m undo. Mas
o que pudesse dissim ular ao m undo, não podia fazê- lo a m im , que vivia m ais
pert o de m im que ninguém . Quando nem m ãe nem filho est avam com igo o m eu
desespero era grande, e eu j urava m at á- los a am bos, ora de golpe, ora devagar,
para dividir pelo t em po da m ort e t odos os m inut os da vida em baçada e agoniada.
Quando, porém , t ornava a casa e via no alt o da escada a criat urinha que m e
queria e esperava, ficava desarm ado e diferia o cast igo de um dia para out ro.
O que se passava ent re m im e Capit u naqueles dias som brios, não se not ará aqui,
por ser t ão m iúdo e repet ido, e j á t ão t arde que não se poderá dizê- lo sem falha
nem canseira. Mas o principal irá. E o principal é que os nossos t em porais eram
agora cont ínuos e t erríveis. Ant es de descobert a aquela m á t erra da verdade,
t ivem os out ros de pouca dura; não t ardava que o céu se fizesse azul, o sol claro e
o m ar chão, por onde abríam os novam ent e as velas que nos levavam às ilhas e
cost as m ais belas do universo, at é que out ro pé de vent o desbarat ava t udo, e nós,
post os à capa, esperávam os out ra bonança, que não era t ardia nem dúbia, ant es
t ot al, próxim a e firm e.
Releva- m e est as m et áforas; cheiram ao m ar e à m aré que deram m ort e ao m eu
am igo e com borço Escobar. Cheiram t am bém aos olhos de ressaca de Capit u.
Assim , post o sem pre fosse hom em de t erra, cont o aquela part e da m inha vida,
com o um m aruj o cont aria o seu naufrágio.
Já ent re nós só falt ava dizer a palavra últ im a; nós a líam os, porém , nos olhos um
do out ro, vibrant e e decisiva, e sem pre que Ezequiel vinha para nós não fazia m ais
que separar- nos. Capit u propôs m et ê- lo em um colégio, donde só viesse aos
sábados; cust ou m uit o ao m enino aceit ar est a sit uação.
— Quero ir com papai! Papai há de ir com igo! bradava ele.
Fui eu m esm o que o levei um dia de m anhã, um a segunda- feira. Era no ant igo
Largo da Lapa, pert o da nossa casa. Levei- o a pé, pela m ão, com o levara o at aúde
do out ro. O pequeno ia chorando e fazendo pergunt as a cada passo, se volt aria
para casa, e quando, e se eu iria vê- lo...
— Vou.
— Papai não vai!
— Vou sim .
— Jura, papai!
— Pois sim .
— Papai não diz que j ura.
— Pois j uro.
E lá o levei e deixei. A ausência t em porária não at alhou o m al, e t oda a art e fina
de Capit u para fazê- lo at enuar, ao m enos, foi com o se não fosse; eu sent ia- m e
cada vez pior. A m esm a sit uação nova agravou a m inha paixão. Ezequiel vivia
agora m ais fora da m inha vist a; m as a volt a dele, ao fim das sem anas, ou pelo
descost um e em que eu ficava, ou porque o t em po fosse andando e com plet ando a
sem elhança, era a volt a de Escobar m ais vivo e ruidoso. At é a voz, dent ro de
pouco, j á m e parecia a m esm a. Aos sábados, buscava não j ant ar em casa e só
ent rar quando ele est ivesse dorm indo; m as não escapava ao dom ingo, no
gabinet e, quando eu m e achava ent re j ornais e aut os. Ezequiel ent rava t urbulent o,
expansivo, cheio de riso e de am or, porque o dem o do pequeno cada vez m orria
m ais por m im . Eu, a falar verdade, sent ia agora um a aversão que m al podia
disfarçar, t ant o a ela com o aos out ros. Não podendo encobrir int eiram ent e est a
disposição m oral, cuidava de m e não fazer encont radiço com ele, ou só o m enos
que pudesse; ora t inha t rabalho que m e obrigava a fechar o gabinet e, ora saía ao
dom ingo para ir passear pela cidade e arrabaldes o m eu m al secret o.
CAPÍ TULO CXXXI I I
UM A I D ÉI A
Um dia, — era um a sext a- feira, — não pude m ais. Cert a idéia, que negrej ava em
m im , abriu as asas e ent rou a bat ê- las de um lado para out ro, com o fazem as
idéias que querem sair. O ser sext a- feira creio que foi acaso, m as t am bém pode
t er sido propósit o; fui educado no t error daquele dia; ouvi cant ar baladas em casa,
vindas da roça e da ant iga m et rópole, nas quais a sext a- feira era o dia de agouro.
Ent ret ant o, não havendo alm anaques no cérebro, é provável que a idéia não
bat esse as asas senão pela necessidade que sent ia de vir ao ar e à vida. A vida é
t ão bela que a m esm a idéia da m ort e precisa de vir prim eiro a ela, ant es de se ver
cum prida. Já m e vais ent endendo; lê agora out ro capít ulo.
CAPÍ TULO CXXXI V
O D I A D E SÁBAD O
A idéia saiu finalm ent e do cérebro. Era noit e, e não pude dorm ir, por m ais que a
sacudisse de m im . Tam bém nenhum a noit e m e passou t ão curt a. Am anheceu,
quando cuidava não ser m ais que um a ou duas horas. Saí, supondo deixar a idéia
em casa; ela veio com igo. Cá fora t inha a m esm a cor escura, as m esm as asas
t repidas, e post o avoasse com elas, era com o se fosse fixa; eu a levava na ret ina,
não que m e encobrisse as coisas ext ernas, m as via- as at ravés dela, com a cor
m ais pálida que de cost um e, e sem se dem orarem nada.
Não m e lem bra bem o rest o do dia. Sei que escrevi algum as cart as, com prei um a
subst ância, que não digo, para não espert ar o desej o de prová- la. A farm ácia faliu,
é verdade; o dono fez- se banqueiro, e o banco prospera. Quando m e achei com a
m ort e no bolso sent i t am anha alegria com o se acabasse de t irar a sort e grande,
ou ainda m aior, porque o prêm io da lot eria gast a- se, e a m ort e não se gast a. Fui a
casa de m inha m ãe, com o fim de despedir- m e, a t ít ulo de visit a. Ou de verdade
ou por ilusão, t udo ali m e pareceu m elhor nesse dia, m inha m ãe m enos t rist e, t io
Cosm e esquecido do coração, prim a Just ina da língua. Passei um a hora em paz.
Cheguei a abrir m ão do proj et o. Que era preciso para viver? Nunca m ais deixar
aquela casa, ou prender aquela hora a m im m esm o...
CAPÍ TULO CXXXV
OTELO
Jant ei fora. De noit e fui ao t eat ro. Represent ava- se j ust am ent e Ot elo, que eu não
vira nem lera nunca; sabia apenas o assunt o, e est im ei a coincidência. Vi as
grandes raivas do m ouro, por causa de um lenço, — um sim ples lenço! — e aqui
dou m at éria à m edit ação dos psicólogos dest e e de out ros cont inent es, pois não
m e pude furt ar à observação de que um lenço bast ou a acender os ciúm es de
Ot elo e com por a m ais sublim e t ragédia dest e m undo. Os lenços perderam - se,
hoj e são precisos os próprios lençóis; algum a vez nem lençóis há, e valem só as
cam isas. Tais eram as idéias que m e iam passando pela cabeça, vagas e t urvas, à
m edida que o m ouro rolava convulso, e I ago dest ilava a sua calúnia. Nos
int ervalos não m e levant ava da cadeira; não queria expor- m e a encont rar algum
conhecido. As senhoras ficavam quase t odas nos cam arot es, enquant o os hom ens
iam fum ar. Ent ão eu pergunt ava a m im m esm o se algum a daquelas não t eria
am ado alguém que j azesse agora no cem it ério, e vinham out ras incoerências, at é
que o pano subia e cont inuava a peça. O últ im o at o m ost rou- m e que não eu, m as
Capit u devia m orrer. Ouvi as súplicas de Desdêm ona, as suas palavras am orosas e
puras, e a fúria do m ouro, e a m ort e que est e lhe deu ent re aplausos frenét icos do
público.
— E era inocent e, vinha eu dizendo rua abaixo; — que faria o público, se ela
deveras fosse culpada, t ão culpada com o Capit u? E que m ort e lhe daria o m ouro?
Um t ravesseiro não bast aria; era preciso sangue e fogo, um fogo int enso e vast o,
que a consum isse de t odo, e a reduzisse a pó, e o pó seria lançado ao vent o, com o
et erna ext inção...
Vaguei pelas ruas o rest o da noit e. Ceei, é verdade, um quase nada, m as o
bast ant e para ir at é à m anhã. Vi as últ im as horas da noit e e as prim eiras do dia, vi
os derradeiros passeadores e os prim eiros varredores, as prim eiras carroças, os
prim eiros ruídos, os prim eiros albores, um dia que vinha depois do out ro e m e
veria ir para nunca m ais volt ar. As ruas que eu andava com o que m e fugiam por si
m esm as. Não t ornaria a cont em plar o m ar da Glória, nem a serra dos Órgãos,
nem a fort aleza de Sant a Cruz e as out ras. A gent e que passava não era t ant a,
com o nos dias com uns da sem ana, m as era j á num erosa e ia a algum t rabalho,
que repet iria depois; eu é que não repet iria m ais nada.
Cheguei a casa, abri a port a devagarinho, subi pé ant e pé, e m et i- m e no gabinet e;
iam dar seis horas. Tirei o veneno do bolso, fiquei em m angas de cam isa, e escrevi
ainda um a cart a, a últ im a, dirigida a Capit u. Nenhum a das out ras era para ela;
sent i necessidade de lhe dizer um a palavra em que lhe ficasse o rem orso da m inha
m ort e. Escrevi dois t ext os. O prim eiro queim ei- o por ser longo e difuso. O segundo
cont inha só o necessário, claro e breve. Não lhe lem brava o nosso passado, nem
as lut as havidas, nem alegria algum a; falava- lhe só de Escobar e da necessidade
de m orrer.
CAPÍ TULO CXXXVI
A XÍ CARA D E CAFÉ
O m eu plano foi esperar o café, dissolver nele a droga e ingeri- la. At é lá, não
t endo esquecido de t odo a m inha hist ória rom ana, lem brou- m e que Cat ão, ant es
de se m at ar, leu e releu um livro de Plat ão. Não t inha Plat ão com igo; m as um
t om o t runcado de Plut arco, em que era narrada a vida do célebre rom ano, bast oum e a ocupar aquele pouco t em po, e, para em t udo im it á- lo, est irei- m e no canapé.
Nem era só im it á- lo nisso; t inha necessidade de incut ir em m im a coragem dele,
assim com o ele precisara dos sent im ent os do filósofo, para int repidam ent e m orrer.
Um dos m ales da ignorância é não t er est e rem édio à últ im a hora. Há m uit a gent e
que se m at a sem ele, e nobrem ent e expira; m as est ou que m uit a m ais gent e poria
t erm o aos seus dias, se pudesse achar essa espécie de cocaína m oral dos bons
livros. Ent ret ant o, querendo fugir a qualquer suspeit a de im it ação, lem bra- m e
bem que, para não ser encont rado ao pé de m im o livro de Plut arco, nem ser dada
a not ícia nas gazet as com a da cor das calças que eu ent ão vest ia, assent ei de pôlo novam ent e no seu lugar, ant es de beber o veneno.
O copeiro t rouxe o café. Ergui- m e, guardei o livro, e fui para a m esa onde ficara a
xícara. Já a casa est ava em rum ores; era t em po de acabar com igo. A m ão
t rem eu- m e ao abrir o papel em que t razia a droga em brulhada. Ainda assim t ive
ânim o de despej ar a subst ância na xícara, e com ecei a m exer o café, os olhos
vagos, a m em ória em Desdêm ona inocent e; o espet áculo da véspera vinha
int rom et er- se na realidade da m anhã. Mas a fot ografia de Escobar deu- m e o
anim o que m e ia falt ando; lá est ava ele, com a m ão nas cost as da cadeira, a olhar
ao longe...
" Acabem os com ist o" , pensei.
Quando ia a beber, cogit ei se não seria m elhor esperar que Capit u e o filho
saíssem para a m issa; beberia depois; era m elhor. Assim dispost o, ent rei a
passear no gabinet e. Ouvi a voz de Ezequiel no corredor, vi- o ent rar e correr a
m im bradando:
— Papai! papai!
Leit or, houve aqui um gest o que eu não descrevo por havê- lo int eiram ent e
esquecido, m as crê que foi belo e t rágico. Efet ivam ent e, a figura do pequeno fezm e recuar at é dar de cost as na est ant e. Ezequiel abraçou- m e os j oelhos, est icouse na pont a dos pés, com o querendo subir e dar - m e o beij o do cost um e; e repet ia,
puxando- m e:
— Papai! papai!
CAPÍ TULO CXXXVI I
SEGUN D O I M PULSO
Se eu não olhasse para Ezequiel, é provável que não est ivesse aqui escrevendo
est e livro, porque o m eu prim eiro ím pet o foi correr ao café e bebê- lo. Cheguei a
pegar na xícara, m as o pequeno beij ava- m e a m ão, com o de cost um e, e a vist a
dele, com o o gest o, deu- m e out ro im pulso que m e cust a dizer aqui; m as vá lá,
diga- se t udo. Cham em - m e em bora assassino; não serei eu que os desdiga ou
cont radiga; o m eu segundo im pulso foi crim inoso. I nclinei- m e e pergunt ei a
Ezequiel se j á t om ara café.
— Já, papai; vou à m issa com m am ãe.
— Tom a out ra xícara, m eia xícara só.
— E papai?
— Eu m ando vir m ais; anda, bebe!
Ezequiel abriu a boca. Cheguei- lhe a xícara, t ão t rêm ulo que quase a ent ornei,
m as dispost o a fazê- la cair pela goela abaixo, caso o sabor lhe repugnasse, ou a
t em perat ura, porque o café est ava frio... Mas não sei que sent i que m e fez recuar.
Pus a xícara em cim a da m esa, e dei por m im a beij ar doidam ent e a cabeça do
m enino.
— Papai! papai! exclam ava Ezequiel.
— Não, não, eu não sou t eu pai!
CAPÍ TULO CXXXVI I I
CAPI TU QUE EN TRA
Quando levant ei a cabeça, dei com a figura de Capit u diant e de m im . Eis aí out ro
lance, que parecerá de t eat ro, e é t ão nat ural com o o prim eiro, um a vez que a
m ãe e o filho iam à m issa, e Capit u não saía sem falar- m e. Era j á um falar seco e
breve; a m aior part e das vezes, eu nem olhava para ela. Ela olhava sem pre,
esperando.
Dest a vez, ao dar com ela, não sei se era dos m eus olhos, m as Capit u pareceu- m e
lívida. Seguiu- se um daqueles silêncios, a que, sem m ent ir, se pode cham ar de um
século, t al é a ext ensão do t em po nas grandes crises. Capit u recom pôs- se; disse
ao filho que se fosse em bora, e pediu- m e que lhe explicasse...
— Não há que explicar, disse eu.
— Há t udo; não ent endo as t uas lágrim as nem as de Ezequiel. Que houve ent re
vocês?
— Não ouviu o que lhe disse?
Capit u respondeu que ouvira choro e rum or de palavras. Eu creio que ouvira t udo
claram ent e, m as confessá- lo seria perder a esperança do silêncio e da
reconciliação; por isso negou a audiência e confirm ou unicam ent e a vist a. Sem lhe
cont ar o episódio do café, repet i- lhe as palavras do final do capít ulo.
— O quê? pergunt ou ela com o se ouvira m al.
— Que não é m eu filho.
Grande foi a est upefação de Capit u, e não m enor a indignação que lhe sucedeu,
t ão nat urais am bas que fariam duvidar as prim eiras t est em unhas de vist a do
nosso foro. Já ouvi que as há para vários casos, quest ão de preço; eu não creio,
t ant o m ais que a pessoa que m e cont ou ist o acabava de perder um a dem anda.
Mas, haj a ou não t est em unhas alugadas, a m inha era verdadeira; a própria
nat ureza j urava por si, e eu não queria duvidar dela. Assim que, sem at ender à
linguagem de Capit u, aos seus gest os, à dor que a ret orcia, a coisa nenhum a,
repet i as palavras dit as duas vezes com t al resolução que a fizeram afrouxar. Após
alguns inst ant es, disse- m e ela:
— Só se pode explicar t al inj úria pela convicção sincera; ent ret ant o, você que era
t ão cioso dos m enores gest os, nunca revelou a m enor som bra de desconfiança.
Que é que lhe deu t al idéia? Diga, — cont inuou vendo que eu não respondia nada,
— diga t udo; depois do que ouvi, posso ouvir o rest o, não pode ser m uit o. Que é
que lhe deu agora t al convicção? Ande, Bent inho, fale! fale! Despeça- m e daqui,
m as diga t udo prim eiro.
— Há coisas que se não dizem .
— Que se não dizem só m et ade; m as j á que disse m et ade, diga t udo.
Tinha- se sent ado num a cadeira ao pé da m esa. Podia est ar um t ant o confusa, o
port e não era de acusada. Pedi- lhe ainda um a vez que não t eim asse.
— Não, Bent inho, ou cont e o rest o, para que eu m e defenda, se você acha que
t enho defesa, ou peço- lhe desde j á a nossa separação: não posso m ais!
— A separação é coisa decidida, redargüi, pegando- lhe na propost a. Era m elhor
que a fizéssem os por m eias palavras ou em silêncio; cada um iria com a sua
ferida. Um a vez, porém , que a senhora insist e, aqui vai o que lhe posso dizer, e é
t udo.
Não disse t udo; m as pude aludir aos am ores de Escobar sem proferir- lhe o nom e.
Capit u não pôde deixar de rir, de um riso que eu sint o não poder t ranscrever aqui;
depois, em um t om j unt am ent e irônico e m elancólico:
— Pois at é os defunt os! Nem os m ort os escapam aos seus ciúm es!
Concert ou a capinha e ergueu- se. Suspirou, creio que suspirou, enquant o eu, que
não pedia out ra coisa m ais que a plena j ust ificação dela, disse- lhe não sei que
palavras adequadas a est e fim . Capit u olhou para m im com desdém , e m urm urou:
— Sei a razão dist o; é a casualidade da sem elhança... A vont ade de Deus
explicará t udo... Ri- se? É nat ural; apesar do sem inário, não acredit a em Deus; eu
creio... Mas não falem os nist o; não nos fica bem dizer m ais nada.
CAPÍ TULO CXXXI X
A FOTOGRAFI A
Palavra que est ive a pique de crer que era vít im a de um a grande ilusão, um a
fant asm agoria de alucinado; m as a ent rada repent ina de Ezequiel, grit ando: —
"Mam ãe! m am ãe! é hora da m issa! " rest it uiu- m e à consciência da realidade.
Capit u e eu, involunt ariam ent e, olham os para a fot ografia de Escobar, e depois um
para o out ro. Dest a vez a confusão dela fez- se confissão pura. Est e era aquele;
havia por força algum a fot ografia de Escobar pequeno que seria o nosso pequeno
Ezequiel. De boca, porém , não confessou nada; repet iu as últ im as palavras, puxou
do filho e saíram para a m issa.
CAPÍ TULO CXL
VOLTA D A I GREJA
Ficando só, era nat ural pegar do café e bebê- lo. Pois, não, senhor; t inha perdido o
gost o à m ort e. A m ort e era um a solução; eu acabava de achar out ra, t ant o m elhor
quant o que não era definit iva, e deixava a port a abert a à reparação, se devesse
havê- la. Não disse perdão, m as reparação, ist o é, j ust iça. Qualquer que fosse a
razão do at o, rej eit ei a m ort e, e esperei o regresso de Capit u. Est e foi m ais
dem orado que de cost um e; cheguei a t em er que ela houvesse ido à casa de m inha
m ãe, m as não foi.
— Confiei a Deus t odas as m inhas am arguras, disse- m e Capit u ao volt ar da igrej a;
ouvi dent ro de m im que a nossa separação é indispensável, e est ou às suas
ordens.
Os olhos com que m e disse ist o eram em buçados, com o espreit ando um gest o de
recusa ou de espera. Cont ava com a m inha debilidade ou com a própria incert eza
em que eu podia est ar da pat ernidade do out ro, m as falhou t udo. Acaso haveria
em m im um hom em novo, um que aparecia agora, desde que im pressões novas e
fort es o descobriam ? Nesse caso era um hom em apenas encobert o. Respondi- lhe
que ia pensar, e faríam os o que eu pensasse. Em verdade vos digo que t udo
est ava pensado e feit o.
No int ervalo, evocara as palavras do finado Gurgel, quando m e m ost rou em casa
dele o ret rat o da m ulher, parecido com Capit u. Hás de lem brar- t e delas; se não,
relê o capít ulo, cuj o núm ero não ponho aqui, por não m e lem brar j á qual sej a,
m as não fica longe. Reduzem - se a dizer que há t ais sem elhanças inexplicáveis...
Pelo dia adiant e, e nos out ros dias, Ezequiel ia t er com igo ao gabinet e, e as
feições do pequeno davam idéia clara das do out ro, ou eu ia at ent ando m ais nelas.
De envolt a, lem bravam - m e episódios vagos e rem ot os, palavras, encont ros e
incident es, t udo em que a m inha cegueira não pôs m alícia, e a que falt ou o m eu
velho ciúm e. Um a vez em que os fui achar sozinhos e calados, um segredo que m e
fez rir, um a palavra dela sonhando, t odas essas rem iniscências vieram vindo
agora, em t al at ropelo que m e at ordoaram ... E por que os não esganei um dia,
quando desviei os olhos da rua onde est avam duas andorinhas t repadas no fio
t elegráfico? Dent ro, as m inhas out ras andorinhas est avam t repadas no ar, os
olhos enfiados nos olhos, m as t ão caut elosos que se desenfiaram logo, dizendo- m e
um a palavra am iga e alegre. Cont ei- lhes o nam oro das andorinhas de fora, e
acharam - lhe graça; Escobar declarou que, para ele, seria m elhor se as andorinhas,
em vez de t repadas no fio de aram e, est ivessem à m esa do j ant ar cozidas. " Nunca
com i os ninhos delas, cont inuou, m as devem ser bons, se os chins os
invent aram ” .E ficam os a t rat ar dos chins e dos clássicos que falaram deles,
enquant o Capit u, confessando que a aborrecíam os, foi a out ros cuidados. Agora
lem brava- m e t udo o que ent ão m e pareceu nada.
CAPÍ TULO CXLI
A SOLUÇÃO
Aqui est á o que fizem os. Pegam os em nós e fom os para a Europa, não passear,
nem ver nada, novo nem velho; param os na Suíça. Um a professora do Rio
Grande, que foi conosco, ficou de com panhia a Capit u, ensinando a língua m at erna
a Ezequiel, que aprenderia o rest o nas escolas do país. Assim regulada a vida,
t ornei ao Brasil.
Ao cabo de alguns m eses, Capit u com eçara a escrever- m e cart as, a que respondi
com brevidade e sequidão. As dela eram subm issas, sem ódio, acaso afet uosas, e
para o fim saudosas; pedia- m e que a fosse ver. Em barquei um ano depois, m as
não a procurei, e repet i a viagem com o m esm o result ado. Na volt a, os que se
lem bravam dela, queriam not ícias, e eu dava- lhes, com o se acabasse de viver com
ela; nat uralm ent e as viagens eram feit as com o int uit o de sim ular ist o m esm o, e
enganar a opinião. Um dia, finalm ent e...
CAPÍ TULO CXLI I
UM A SAN TA
Ent enda- se que, se nas viagens que fiz à Europa, José Dias não foi com igo, não é
que lhe falt asse vont ade; ficava de com panhia a t io Cosm e, quase inválido, e a
m inha m ãe, que envelheceu depressa. Tam bém ele est ava velho, post o que rij o.
I a a bordo despedir- se de m im , e as palavras que m e dizia, os gest os de lenço, os
próprios olhos que enxugava eram t ais que m e com oviam t am bém . A últ im a vez
não foi a bordo.
— Venha...
— Não posso.
— Est á com m edo?
— Não; não posso. Agora, adeus, Bent inho, não sei se m e verá m ais; creio que
vou para a out ra Europa, a et erna...
Não foi logo; m inha m ãe em barcou prim eiro. Procura no cem it ério de São João
Bat ist a um a sepult ura sem nom e, com est a única indicação: Um a sant a. É aí. Fiz
fazer essa inscrição com algum a dificuldade. O escult or achou- a esquisit a; o
adm inist rador do cem it ério consult ou o vigário da paróquia; est e ponderou- m e
que as sant as est ão no alt ar e no Céu.
— Mas, perdão, at alhei, eu não quero dizer que naquela sepult ura est á um a
canonizada. A m inha idéia é dar com t al palavra um a definição t errena de t odas as
virt udes que a finada possuiu na vida. Tant o é assim que, sendo a m odést ia um a
delas, desej o conservá- la póst um a, não lhe escrevendo o nom e.
— Todavia, o nom e, a filiação, as dat as...
— Quem se im port ará com dat as, filiação, nem nom es, depois que eu acabar?
— Quer dizer que era um a sant a senhora, não?
— Just am ent e. O prot onot ário Cabral, se fosse vivo, confirm aria aqui o que lhe
digo.
— Nem eu cont est o a verdade, hesit o só na fórm ula. Conheceu ent ão o
prot onot ário?
— Conheci- o. Era um padre- m odelo.
— Bom canonist a, bom lat inist a, pio e caridoso, cont inuou o vigário.
— E possuía algum as prendas de sociedade, disse eu; lá em casa sem pre ouvi que
era insigne parceiro ao gam ão...
— Tinha m uit o bom dado! suspirou lent am ent e o vigário. Um dado de m est re!
— Ent ão, parece- lhe...?
— Um a vez que não há out ro sent ido, nem poderia havê- lo, sim , senhor, adm it ese...
José Dias assist iu a est as diligências, com grande m elancolia. No fim , quando
saím os, disse m al do padre, cham ou- lhe m et iculoso. Só lhe achava desculpa por
não t er conhecido m inha m ãe, nem ele nem os out ros hom ens do cem it ério.
— Não a conheceram ; se a conhecessem m andariam esculpir sant íssim a.
CAPÍ TULO CXLI I I
O ÚLTI M O SUPERLATI VO
Não foi o últ im o superlat ivo de José Dias. Out ros t eve que não vale a pena
escrever aqui, at é que veio o últ im o, o m elhor deles, o m ais doce, o que lhe fez da
m ort e um pedaço de vida. Já ent ão m orava com igo; post o que m inha m ãe lhe
deixasse um a pequena lem brança, veio dizer- m e que, com legado ou sem ele, não
se separaria de m im . Talvez a esperança dele fosse ent errar- m e. Correspondia- se
com Capit u, a que pedia que lhe m andasse o ret rat o de Ezequiel; m as Capit u ia
adiando a rem essa de correio a correio, at é que ele não pediu m ais nada, a não
ser o coração do j ovem est udant e; pedia- lhe t am bém que não deixasse de falar a
Ezequiel no velho am igo do pai e do avô, " dest inado pelo Céu a am ar o m esm o
sangue” .Era assim que ele preparava os cuidados da t erceira geração; m as a
m ort e veio ant es de Ezequiel. A doença foi rápida. Mandei cham ar um m édico
hom eopat a.
— Não, Bent inho, disse ele; bast a um alopat a; em t odas as escolas se m orre.
Dem ais, foram idéias da m ocidade, que o t em po levou; convert o- m e à fé de m eus
pais. A alopat ia é o cat olicism o da Medicina...
Morreu sereno, após um a agonia curt a. Pouco ant es ouviu que o céu est ava lindo,
e pediu que abríssem os a j anela.
— Não, o ar pode fazer- lhe m al.
— Que m al? Ar é vida.
Abrim os a j anela. Realm ent e, est ava um céu azul e claro. José Dias soergueu- se e
olhou para fora; após alguns inst ant es, deixou cair a cabeça, m urm urando:
Lindíssim o! Foi a últ im a palavra que proferiu nest e m undo. Pobre José Dias! Por
que hei de negar que chorei por ele?
CAPÍ TULO CXLI V
UM A PERGUN TA TARD I A
Assim chorem por m im t odos os olhos de am igos e am igas que deixo nest e
m undo, m as não é provável. Tenho- m e feit o esquecer. Moro longe e saio pouco.
Não é que haj a efet ivam ent e ligado as duas pont as da vida. Est a casa do Engenho
Novo, conquant o reproduza a de Mat a- cavalos, apenas m e lem bra aquela, e m ais
por efeit o de com paração e de reflexão que de sent im ent o. Já disse ist o m esm o.
Hão de pergunt ar- m e por que razão, t endo a própria casa velha, na m esm a rua
ant iga, não im pedi que a dem olissem e vim reproduzi- la nest a. A pergunt a devia
ser feit a a princípio, m as aqui vai a respost a. A razão é que, logo que m inha m ãe
m orreu, querendo ir para lá, fiz prim eiro um a longa visit a de inspeção por alguns
dias, e t oda a casa m e desconheceu. No quint al a aroeira e a pit angueira, o poço,
a caçam ba velha e o lavadouro, nada sabia de m im . A casuarina era a m esm a que
eu deixara ao fundo, m as o t ronco, em vez de ret o, com o out rora, t inha agora um
ar de pont o de int errogação; nat uralm ent e pasm ava do int ruso. Corri os olhos pelo
ar, buscando algum pensam ent o que ali deixasse, e não achei nenhum . Ao
cont rário, a ram agem com eçou a sussurrar algum a coisa que não ent endi logo, e
parece que era a cant iga das m anhãs novas. Ao pé dessa m úsica sonora e j ovial,
ouvi t am bém o grunhir dos porcos, espécie de t roça concent rada e filosófica.
Tudo m e era est ranho e adverso. Deixei que dem olissem a casa, e, m ais t arde,
quando vim para o Engenho Novo, lem brou- m e fazer est a reprodução por
explicações que dei ao arquit et o, segundo cont ei em t em po.
CAPÍ TULO CXLV
O REGRESSO
Ora, foi j á nest a casa que um dia, est ando a vest ir- m e para alm oçar, recebi um
cart ão com est e nom e:
Ezequiel A. de Sant iago
— A pessoa est á aí? pergunt ei ao criado.
— Sim , senhor; ficou esperando.
Não fui logo, logo; fi- lo esperar uns dez ou quinze m inut os na sala. Só depois é
que m e lem brou que cum pria t er cert o alvoroço e correr, abraçá- lo, falar- lhe na
m ãe. A m ãe, — creio que ainda não disse que est ava m ort a e ent errada. Est ava;
lá repousa na velha Suíça. Acabei de vest ir- m e às pressas. Quando saí do quart o,
t om ei ares de pai, um pai ent re m anso e crespo, m et ade Dom Casm urro. Ao
ent rar na sala, dei com um rapaz, de cost as, m irando o bust o de Massinissa,
pint ado na parede. Vim caut eloso, e não fiz rum or. Não obst ant e, ouviu- m e os
passos, e volt ou- se depressa. Conhece- m e pelos ret rat os e correu para m im . Não
m e m exi; era nem m ais nem m enos o m eu ant igo e j ovem com panheiro do
sem inário de São José, um pouco m ais baixo, m enos cheio de corpo e, salvo as
cores, que eram vivas, o m esm o rost o do m eu am igo. Traj ava à m oderna,
nat uralm ent e, e as m aneiras eram diferent es, m as o aspect o geral reproduzia a
pessoa m ort a. Era o próprio, o exat o, o verdadeiro Escobar. Era o m eu com borço;
era o filho de seu pai. Vest ia de lut o pela m ãe; eu t am bém est ava de pret o.
Sent am o- nos.
— Papai não faz diferença dos últ im os ret rat os, disse- m e ele.
A voz era a m esm a de Escobar, o sot aque era afrancesado. Expliquei- lhe que
realm ent e pouco diferia do que era, e com ecei um int errogat ório para t er m enos
que falar e dom inar assim a m inha em oção. Mas ist o m esm o dava anim ação à
cara dele, e o m eu colega do sem inário ia ressurgindo cada vez m ais do cem it ério.
Ei- lo aqui, diant e de m im , com igual riso e m aior respeit o; t ot al, o m esm o
obséquio e a m esm a graça. Ansiava por ver- m e. A m ãe falava m uit o em m im ,
louvando- m e ext raordinariam ent e, com o o hom em m ais puro do m undo, o m ais
digno de ser querido.
— Morreu bonit a, concluiu.
— Vam os alm oçar.
Se pensas que o alm oço foi am argo, enganas- t e. Teve seus m inut os de
aborrecim ent o, é verdade; a princípio doeu- m e que Ezequiel não fosse realm ent e
m eu filho, que m e não com plet asse e cont inuasse. Se o rapaz t em saído à m ãe, eu
acabava crendo t udo, t ant o m ais facilm ent e quando que ele parecia haver- m e
deixado na véspera, evocava a m eninice, cenas e palavras, a ida para o colégio...
— Papai ainda se lem bra quando m e levou para o colégio? pergunt ou rindo.
— Pois não hei de lem brar- m e?
— Era na Lapa; eu ia desesperado, e papai não parava, dava- m e cada puxão, e eu
com as perninhas... Sim , senhor, aceit o.
Est endeu o copo ao vinho que eu lhe oferecia, bebeu um gole, e cont inuou a
com er. Escobar com ia assim t am bém , com a cara m et ida no prat o. Cont ou- m e a
vida na Europa, os est udos, part icularm ent e os de arqueologia, que era a sua
paixão. Falava da ant iguidade com am or, cont ava o Egit o e os seus m ilhares de
séculos, sem se perder nos algarism os; t inha a cabeça arit m ét ica do pai. Eu, post o
que a idéia da pat ernidade do out ro m e est ivesse j á fam iliar, não gost ava da
ressurreição. Às vezes, fechava os olhos para não ver gest os nem nada, m as o
diabret e falava e ria, e o defunt o falava e ria por ele.
Não havendo rem édio senão ficar com ele, fiz- m e pai deveras. A idéia de que
pudesse t er vist o algum a fot ografia de Escobar, que Capit u por descuido levasse
consigo, não m e acudiu, nem , se acudisse, persist iria. Ezequiel cria em m im , com o
na m ãe. Se fosse vivo José Dias, acharia nele a m inha própria pessoa. Prim a
Just ina quis vê- lo; m as, est ando enferm a, pediu- m e que o levasse lá. Conhecia
aquela parent a. Creio que o desej o de ver Ezequiel era para o fim de verificar no
m oço o debuxo que porvent ura houvesse achado no m enino. Seria um regalo
últ im o; at alhei- o a t em po.
— Est á m uit o m al, disse eu a Ezequiel que queria ir vê- la, qualquer em oção pode
t razer- lhe a m ort e. I rem os vê- la, quando ficar m elhor.
Não fom os; a m ort e levou- a dent ro de poucos dias. Ela descansa no Senhor ou
com o quer que sej a. Ezequiel viu- lhe a cara no caixão e não a conheceu, nem
podia, t ão out ra a fizeram os anos e a m ort e. No cam inho para o cem it ério, iam lhe lem brando um a porção de coisas, algum a rua, algum a t orre, um t recho de
praia, e era t odo alegria. Assim acont ecia sem pre que volt ava para casa, ao fim do
dia; cont ava- m e as recordações que ia recebendo das ruas e das casas. Adm iravase que m uit as dest as fossem as m esm as que ele deixara, com o se as casas
m orressem m eninas.
Ao cabo de seis m eses, Ezequiel falou- m e em um a viagem à Grécia, ao Egit o, e à
Palest ina, viagem cient ífica, prom essa feit a a alguns am igos.
— De que sexo? pergunt ei rindo.
Sorriu, vexado, e respondeu- m e que as m ulheres eram criat uras t ão da m oda e do
dia que nunca haviam de ent ender um a ruína de t rint a séculos. Eram dois colegas
da universidade. Prom et i- lhe recursos, e dei- lhe logo os prim eiros dinheiros
precisos. Com o disse que um a das conseqüências dos am ores furt ivos do pai era
pagar eu as arqueologias do filho; ant es lhe pegasse a lepra... Quando est a idéia
m e at ravessou o cérebro, sent i- m e t ão cruel e perverso que peguei no rapaz, e
quis apert á- lo ao coração, m as recuei; encarei- o depois, com o se faz a um filho de
verdade; os olhos que ele m e deit ou foram t ernos e agradecidos.
CAPÍ TULO CXLVI
N ÃO H OUVE LEPRA
Não houve lepra, m as há febres por t odas essas t erras hum anas, sej am velhas ou
novas. Onze m eses depois, Ezequiel m orreu de um a febre t ifóide, e foi ent errado
nas im ediações de Jerusalém , onde os dois am igos da universidade lhe levant aram
um t úm ulo com est a inscrição, t irada do profet a Ezequiel, em grego: " Tu eras
perfeit o nos t eus cam inhos” .Mandaram - m e am bos os t ext os, grego e lat ino, o
desenho da sepult ura, a cont a das despesas e o rest o do dinheiro que ele levava;
pagaria o t riplo para não t ornar a vê- lo.
Com o quisesse verificar o t ext o, consult ei a m inha Vulgat a, e achei que era exat o,
m as t inha ainda um com plem ent o: " Tu eras perfeit o nos t eus cam inhos, desde o
dia da t ua criação” .Parei e pergunt ei calado: " Quando seria o dia da criação de
Ezequiel?" Ninguém m e respondeu. Eis aí m ais um m ist ério para aj unt ar aos
t ant os dest e m undo. Apesar de t udo, j ant ei bem e fui ao t eat ro.
CAPÍ TULO CXLVI I
A EXPOSI ÇÃO RETROSPECTI VA
Já sabes que a m inha alm a, por m ais lacerada que t enha sido, não ficou aí para
um cant o com o um a flor lívida e solit ária. Não lhe dei essa cor ou descor. Vivi o
m elhor que pude sem m e falt arem am igas que m e consolassem da prim eira.
Caprichos de pouca dura, é verdade. Elas é que m e deixavam com o pessoas que
assist em a um a exposição ret rospect iva, e, ou se fart am de vê- la, ou a luz da sala
esm orece. Um a só dessas visit as t inha carro à port a e cocheiro de libré. As out ras
iam m odest am ent e, calcant e pede, e, se chovia, eu é que ia buscar um carro de
praça, e as m et ia dent ro, com grandes despedidas, e m aiores recom endações.
— Levas o cat álogo?
— Levo; at é am anhã.
— At é am anhã.
Não volt avam m ais. Eu ficava à port a, esperando, ia at é à esquina, espiava,
consult ava o relógio, e não via nada nem ninguém . Ent ão, se aparecia out ra visit a,
dava- lhe o braço, ent rávam os, m ost rava- lhe as paisagens, os quadros hist óricos
ou de gênero, um a aquarela, um past el, um a gouache, e t am bém est a cansava, e
ia em bora com o cat álogo na m ão...
CAPÍ TULO CXLVI I I
E BEM , E O RESTO?
Agora, por que é que nenhum a dessas caprichosas m e fez esquecer a prim eira
am ada do m eu coração? Talvez porque nenhum a t inha os olhos de ressaca, nem
os de cigana oblíqua e dissim ulada. Mas não é est e propriam ent e o rest o do livro.
O rest o é saber se a Capit u da Praia da Glória j á est ava dent ro da de Mat acavalos, ou se est a foi m udada naquela por efeit o de algum caso incident e. Jesus,
filho de Sirach, se soubesse dos m eus prim eiros ciúm es, dir- m e- ia, com o no seu
cap. I X, vers. I : " Não t enhas ciúm es de t ua m ulher para que ela não se m et a a
enganar- t e com a m alícia que aprender de t i" . Mas eu creio que não, e t u
concordarás com igo; se t e lem bras bem da Capit u m enina, hás de reconhecer que
um a est ava dent ro da out ra, com o a frut a dent ro da casca.
E bem , qualquer que sej a a solução, um a coisa fica, e é a sum a das sum as, ou o
rest o dos rest os, a saber, que a m inha prim eira am iga e o m eu m aior am igo, t ão
ext rem osos am bos e t ão queridos t am bém , quis o dest ino que acabassem
j unt ando- se e enganando- m e... A t erra lhes sej a leve! Vam os à Hist ória dos
Subúrbios.
FI M