Filipa Ramalhete
Margarida Tavares da Conceição
Inês Lobo
Júlia Varela
2020
Atlas
Almirante Reis
Almirante Reis:
(como construir)
uma avenida em seis
etapas
Hélia Silva
João Guilherme Appleton
Margarida Tavares da Conceição
Rita Mégre
Tiago Borges Lourenço
22
limite
1
Lisboa, Avenida Almirante Reis,
vista sul-norte, 1945. CML, AML,
PT/AMLSB/POR/052561.
23
Alinhar os principais dados históricos e urbanísticos da Avenida Almirante Reis e dar
a conhecer as características globais da sua evolução é o objetivo deste texto. Eixo viário
fundamental desde a sua mais antiga delimitação no terreno e resultado de um complexo processo de planeamento e realização, a avenida apresenta hoje uma soma de
espaços consolidados e estruturados, mas ainda não estabilizados (caso da ligação a
sul através da Praça Martim Moniz). A fim de permitir uma visão de conjunto sobre
os diferentes tempos deste longo caminho, que assume o sentido profundo de avenida
como sinónimo de vinda ou via de chegada, identificam-se seis etapas distintas, pensadas como um caminho alternativo de entrada e saída da cidade. De certa maneira,
cada uma delas corresponde a um arruamento independente de uma via compósita,
reflexo da atualização dos modelos urbanísticos que foram guiando a sua expansão e
imagem urbanas.
Assim, esta «avenida em seis etapas» — expressão que procura desafiar a ideia de
unidade deste eixo — corresponde a seis momentos construtivos/definidores que, em
bom rigor, se prolongam por quase quatro séculos: a primeira via, rasgada ainda no
século XVI (Rua Nova da Palma), que, numa interessante operação urbanística, retificou o traçado que ligava o Convento de São Domingos à muralha fernandina, no vale
da Mouraria; já em meados de Oitocentos e depois de alargada cerca de um século antes,
identifica-se o prolongamento dessa rua até ao Largo do Intendente, aí entroncando
na Rua Direita dos Anjos; seguiram-se os três troços da Avenida Almirante Reis, um
ainda sob a designação de Avenida dos Anjos até à confrontação com a Estrada da
Circunvalação (no local da atual Praça do Chile), um outro de pequenas dimensões
(parcialmente aberto na cerca do Hospital de Arroios) que se estende até ao local da
nova alameda, e o seu derradeiro prolongamento até ao Areeiro, em cujo topo se delineou uma praça enquadrada por um monumental conjunto arquitetónico.
( c o m o c o n s t r u i r ) u m a av e n i d a
2
Lisboa, topografia com marcação
do Eixo da Avenida Almirante Reis
e Avenida Gago Coutinho, a partir
de Lxi-Lisboa Interactiva.
No entanto, este eixo formado pela Rua da Palma e pela Avenida Almirante Reis
não se esgota em si mesmo, nem se extingue com o remate da nova praça, conforme
prova o seu prolongamento até à Portela de Sacavém, já prevista pelo menos desde
o início do século XX. Trata-se de um último troço com outro topónimo — Avenida
Gago Coutinho — e já com um diferente programa arquitetónico que, datado de finais da década de 1940, corresponde neste esquema à sexta e última etapa de uma via
com mais de 5,5 quilómetros de extensão.
O que se sabia sobre a avenida…
24
A falta de distanciamento temporal terá impedido os historiadores e olisipógrafos
dos três primeiros quartéis de Novecentos de produzirem obra sobre a «Lisboa de
Ressano Garcia», um dos esteios do moderno planeamento e desenvolvimento da cidade, a par da do Marquês de Pombal («Lisboa Pombalina») e da de Duarte Pacheco
(«Lisboa do Estado Novo»). Daí que só a partir da década de 1980 tenha surgido
um conjunto de estudos dedicados a este período, de entre os quais se destaca a tese
de mestrado de Raquel Henriques da Silva (Silva, 1985), ainda hoje o mais completo
e relevante trabalho sobre as Avenidas Novas. O tema mereceu igualmente destaque
em capítulos de obras de José-Augusto França (França, 1980 e 2008), no catálogo da
exposição dedicada a Ressano Garcia (Silva, 1989) e em obras de autores vários sobre
a cidade, sua história e urbanismo (nomeadamente em Silva, 1994).
Embora desde então o estudo do desenvolvimento urbano da Lisboa de entre os
séculos tenha vindo a captar a atenção dos investigadores, está ainda por desbravar o
conhecimento da Avenida Almirante Reis e zona envolvente, nas vertentes histórica,
urbanística e habitacional. Neste contexto específico, destacam-se os estudos de Pedro
Azevedo (Azevedo, 1899-1900) e Maria da Luz Mouta (Mouta, 1958), importantes
para compreender as preexistências do local, e os dois trabalhos de Maria de Lurdes
Ribeiro publicados nos Cadernos do Arquivo Municipal (Ribeiro, 2000 e 2001), o segundo integralmente dedicado ao processo de rasgamento da nova artéria. A relevância
deste estudo deve-se principalmente à transcrição integral da memória descritiva do
projeto da Avenida dos Anjos, datado de 1892.
limite
Recentemente, o projeto LxConventos1, que tem vindo a estudar o impacto urbano
da extinção das casas religiosas de Lisboa decretada a 30 de maio de 1834, trouxe à
luz dados importantes sobre esta área da cidade, na sequência do estudo da história,
arquitetura e evolução urbanística do Mosteiro de Nossa Senhora do Desterro e do
Convento de Nossa Senhora da Luz a Arroios, em cujas cercas a Avenida Almirante
Reis se rasga parcialmente. Em data ainda mais recente, a tese de doutoramento de
João Guilherme Appleton (2018) permite compreender em profundidade o processo
evolutivo da tipologia arquitetónica que deu corpo aos sucessivos momentos da avenida.
Devemos mencionar igualmente a investigação de doutoramento de Tiago Borges
Lourenço2, atualmente em curso, que se centra no desenvolvimento das primeiras
etapas da avenida e das áreas urbanas adjacentes.
Antes da avenida: as preexistências
25
Muito antes de surgir a ideia moderna de avenida, a função urbanística primária
já se encontrava presente: a ligação do centro à periferia norte-nordeste é muito antiga, provavelmente quase tanto quanto o próprio povoamento deste território. Esta
espécie de preexistência funcional, estrutural do ponto de vista urbanístico, ficou impressa na designação tipológica do eixo como avenida. Na sua aceção corrente, o termo
aparece obviamente por influência do francês avenue, enquanto rua importante, larga
e arborizada (moderna no século XIX), mas a verdade é que a designação francesa
reflete essa matriz ancestral do caminho e do acesso à cidade: à venir 3.
Pelo menos desde a conquista cristã medieval, se não antes, a ligação entre o esteiro oriental da Baixa e os caminhos de saída para nordeste (em direção a Sacavém)
coincidia com esta linha de talvegue, constituindo o equivalente simétrico oriental
de Valverde, que marcava um caminho para noroeste (em direção a São Sebastião da
Pedreira – Benfica).
Tal como neste último se formou a Rua das Portas de Santo Antão, a partir da
porta homónima aberta na cerca fernandina, no lado oriental existia uma porta da cidade, a Porta de São Vicente da Mouraria, marcando o início da ligação com o exterior.
O eixo iniciava-se na Rua Direita da Mouraria, paralela à Rua Nova da Palma, seguindo
continuamente pela Rua do Paço do Benformoso e pela Rua Direita dos Anjos (troço
hoje equivalente à Rua do Benformoso), alargando-se no Largo do Intendente, configurado a partir do século XVIII. O topónimo Rua Direita dos Anjos, na qual se implantava a Igreja dos Anjos (no exato ponto a partir do qual o regueirão, ainda no
século XIX, seguia a céu aberto), mantinha-se até ao Campo de Santa Bárbara. Daí
em diante, e já como Rua Direita de Arroios, o caminho desembocava no Largo de
Arroios (Igreja de São Jorge), de onde partiam três caminhos: a poente, a Calçada de
Arroios (em direção ao Campo Pequeno); ao centro, a Estrada da Charneca (em direção a Alvalade); e a nascente, a Estrada de Sacavém4.
A importância desta trifurcação reside no cruzamento das três vias com a primeira
Estrada da Circunvalação, que, coincidindo com a Linha Fundamental da Fortificação
(tal como implantada no século XVII), delimitou até fins do século XIX o perímetro
urbano de Lisboa. De facto, a Rua Direita dos Anjos/Arroios, formada a partir da
sedimentação do caminho, já em finais do século XVIII apresentava algumas frentes
urbanizadas, mas era ainda uma área ocupada maioritariamente por quintas, mostrando
um característico crescimento linear não planeado e muito descontínuo.
O local e o trajeto escolhidos para a implantação da via moderna não causam qualquer surpresa. De facto, no contexto de final de Oitocentos, a cidade era feita segundo
novas preocupações higienistas e funcionalistas, as quais se conjugavam com outras
de natureza mais pragmática e economicista, levando ao rasgamento de novas ruas e
avenidas como duplicação das antigas vias, num quase integral respeito e manutenção
( c o m o c o n s t r u i r ) u m a av e n i d a
3
Vista de Lisboa, observando-se
ao centro o Rossio e Hospital de
Todos-os-Santos, tendo do lado
direito a linha do vale dos Anjos.
Lisboa amplissima lusitaniæ civitas,
totius indiæ orientalis et occidental:
emporium celeberrimum, 1619.
Amesterdão: Judocus Hondius.
destas últimas. Só assim se justifica que, em pleno século XXI, se consigam encontrar
quase intactas as preexistências viárias da antiga saída para Sacavém, de que esta nova
avenida praticamente copia o trajeto, desde a Rua do Paço do Benformoso até à antiga
Portela de Sacavém.
Primeira etapa: a primitiva Rua Nova da Palma
(1554-1555)
26
Em princípios de Quinhentos, grande parte das terras do vale da Mouraria pertencia aos cónegos regrantes de Santo Agostinho do Mosteiro de São Vicente de Fora.
As suas propriedades principiariam a sul, no caminho fronteiro à fachada lateral da
Igreja do Convento de São Domingos, e estender-se-iam para além da muralha fernandina que separava fisicamente as hortas de dentro e de fora.
No interior da muralha, a quase totalidade dos terrenos da horta foi aforada a
Catarina Pires e seu marido, Fernão Dias da Palma, que em 1515 negociaram com
os religiosos de São Vicente de Fora a divisão de parte deste seu terreno e o respetivo
aforamento. Resultando na génese do processo de consolidação do antigo caminho
que passava à ilharga do Convento de São Domingos, esta operação seria o prelúdio
para outra de maiores dimensões, concretizada por João da Palma5 no início da segunda metade do século e que resultaria na consolidação definitiva do vale da Mouraria,
por via da abertura de dois novos arruamentos no sentido sul-norte, a Rua Nova da
Palma e a Rua dos Canos:
«[Em 1552]6, vendo os frades e os novos foreiros que dera bom resultado o aforamento da faixa sul da horta […], intensificaram o trabalho de estudo da abertura
de uma outra rua que atravessasse a horta no sentido norte-sul. Mediu-se o terreno, fizeram-se cálculos, e chegou-se à conclusão de que se poderiam fazer mais
de trinta casas, com chão para quintal, e que, além disto, o assentamento de casas
da horta ficaria com poço de nora e tanque. […] Levantou-se uma planta, mediram-se os chãos, e a nova rua foi traçada a cordel para seguir a direito, mais ou
menos paralela à dos Canos da Moiraria, ‘da maneira e pela ordenança que já está
feita no debuxo mostrado pelo dito João da Palma’.» (Sequeira, 1949: 38)
Através de um desenho que consta de um livro de foros do cartório do Mosteiro
de São Vicente de Fora7, é possível perceber a exata extensão desta iniciativa, que
limite
27
contava com um total de 45 foros quase totalmente implantados nas duas frontarias
da Rua Nova da Palma e do lado norte da Rua do Canos. No espaço de quarenta anos
e em duas operações contíguas, o aforamento de mais de sessenta chãos por parte dos
cónegos de São Vicente de Fora contribuiu definitivamente para a consolidação urbanística da área.
O facto de ter sido rasgada no interior de uma horta terá permitido dar à Rua
Nova da Palma uma maior largura e desafogo (15 palmos, cerca de 3,30 metros de
largura), assim servindo de alternativa no escoamento do tráfego de saída para norte,
cronicamente dificultado pelo afunilamento do lado de dentro da muralha. Até então,
esse escoamento era feito por intermédio da Rua da Mouraria, que encaminhava o
trânsito vindo da zona do rio para a Porta de São Vicente da Mouraria e daí pela Rua
do Boy Formoso (atual Rua do Benformoso) e pela Rua Direita dos Anjos em direção
a norte. Permitindo um acesso mais direto por São Domingos, a nova via começou
desde logo a ser encarada como uma alternativa, comprovada pela abertura quase
imediata de um postigo na muralha no seu enfiamento (daí em diante conhecido como
o Postigo da Rua da Palma8), assim como pelo teor do decreto de 2 de dezembro de
1562, assinado pela regente D. Catarina, considerando que junto da «porta de São
vycente da mouraria e [d]o postigo que se abrio ao jogo da pella da parte de fora [era]
muyto necessareo fazer hua ponte de pedra […] por se [ter] ab[erto] a Rua nova da
palma da parte de dentro e […] se abrir o dito postigo»9. Um mapa que consta do
primeiro volume de A Cerca Fernandina de Lisboa de Augusto Vieira da Silva (Silva,
1948, mapa II, [s.p.]) permite perceber a estreita ligação entre a Rua Nova da Palma
e o recém-aberto postigo com esta ponte, parecendo os três elementos resultado de
uma (primeira) tentativa de operação de regularização urbanística na zona.
No decorrer dos séculos seguintes, a Rua Nova da Palma e o seu postigo passaram
a ser largamente utilizados como troço inicial da saída para norte, sendo logo em 1673
considerada «hua das principais serventias desta Cidade, assi pela grande parte dos
moradores desta, como para os do Termos, e maiormente em dias de Feira»10. O natural aumento do fluxo de tráfego foi tornando a sua configuração limitada, embora
as tentativas de regularização e alargamento do seu traçado tenham surgido apenas na
sequência do terramoto de 1755 e dos planos de modificação e expansão da cidade.
Após uma sequência de projetos não concretizados (caso da construção de uma nova
( c o m o c o n s t r u i r ) u m a av e n i d a
4
Carta Topográfica de Lisboa (1856-1858) com
a marcação da Rua da Palma e da Rua Nova
da Palma. CML, Atlas da Carta Topográfica
de Lisboa, Dir. Filipe Folque, folhas 28 e 36,
PT/AMLSB/CMLSB/UROB-PU/05/01/30 e
PT/AMLSB/CMLSB/UROB-PU/05/01/30.
28
limite
rua à ilharga do Convento de São Domingos, que desembocaria num largo octogonal
em plena Rua Nova da Palma), a 9 de maio de 1776, D. José ordenou o alargamento
da «Rua Nova da Palma, para o bem commum que rezulta de se desembaraçar a
communicação da Parte Setentrional, para a outra parte Meridional da Cidade de
Lisboa athe agora impedida pela estreiteza da sobredita Rua, que não dando lugar
mais do que ao transito de huma so carruagem cauzava encontros de perniciosas consequencias e ferquentes impedimentos ao Serviço Publico»11. Para o efeito, o Senado
da Câmara foi autorizado a comprar um conjunto de propriedades sitas «do lado
norte da rua […] pagandose com dinheiro à vista as importancias dos cortes que não
excederem a quatro centos mil reis»12.
Ainda que naturalmente seja impreciso afirmar que as operações de abertura e
alargamento da Rua Nova da Palma estejam na génese da futura Avenida Almirante
Reis, é inegável que foram o ponto de partida na tentativa de regularização viária do
vale da Mouraria, cujo objetivo era abrir uma nova via que mais facilmente escoasse
o tráfego de pessoas e veículos. Ou seja, assentavam nas mesmas premissas que, três
séculos depois, levariam os serviços camarários a traçar, no seu seguimento, uma
grande avenida.
Segunda etapa: o prolongamento
da Rua da Nova da Palma (1858-1860)
29
No final da década de 1850 começou a ganhar corpo a ideia da abertura de uma
nova via de saída para norte a partir do vale da Mouraria, ainda que sem a pretensão
de uma grande avenida, pelo menos no que concerne à sua designação13. Pretendia-se
prolongar a Rua Nova da Palma até ao Largo do Intendente, em alternativa à já então
saturada Rua do Benformoso. Esta intervenção ajudaria igualmente a resolver o problema de saúde pública do insalubre Bairro da Mouraria:
«A abertura de[sta] […] rua espaçosa é obra da maior commodidade pública para
o indispensavel trânsito de tanta concorrencia como a que por alli há, vendo-se obrigados os trens, carros, carroagens, e mais vehiculos a todo o momento embaraçados,
para poderem atravessar ruas estreitissimas e tortuosas o que tem dado causa a algumas desgraças como é bem notorio, isto alem de serem em diversos sitios circundadas
de predios velhos e arruinados. Sobre estas especiaes circunstancias, há outra ainda
mais importante, que é a da salubridade pública, por quanto aquelles sitios immundos
tem dado motivo a serem os mais atacados nas ultimas epidemias causando a devastação dos seus moradores.»14
De traçado tendencialmente reto e passando ao redor da Igreja de Nossa Senhora
do Socorro e do Palácio dos Condes de Folgosa, o processo de prolongamento da rua
obrigou a diversas expropriações e demolições, ainda que em menor número do que
as verificadas cerca de um século depois, aquando do desaparecimento de grande parte
do edificado do vale da Mouraria para a abertura da Praça Martim Moniz. Neste contexto, destaca-se a destruição da pequena Ermida de Nossa Senhora da Guia,
o primeiro de três edifícios religiosos demolidos nesta área no espaço de um século
devido a questões urbanísticas15.
Aberto entre 1859 e 1860, este novo arruamento, com cerca de um quilómetro de
extensão, constituía um dos mais importantes projetos urbanísticos da Lisboa coeva.
No entanto, não pressupunha qualquer futuro prolongamento para zonas não urbanizadas, nem tinha ainda a ambição urbana das grandes avenidas projetadas por Ressano
Garcia a partir de finais da década de 1870. Apesar disso, constitui inequivocamente
a génese da futura Avenida dos Anjos (depois Avenida Almirante Reis), que dela
aproveita o alinhamento e a lógica expansionista para norte, como alternativa ao velho
caminho de saída pela Rua Direita dos Anjos/Arroios.
( c o m o c o n s t r u i r ) u m a av e n i d a
5
Rua da Palma, esquina com a Rua
Dom Duarte, Eduardo Portugal, 1950.
CML, AML, PT/AMLSB/CMLSBAH/
PCSP/004/EDP/001060.
6
«Lisboa 1900. Planta mostrando o
troço completo da Avenida dos Anjos
e das Ruas Adjacentes…», 1906
[Serviço Geral de Obras Públicas],
Frederico Ressano Garcia. CML, AML.
30
Terceira etapa: o projeto da Avenida dos Anjos,
da Rua Nova da Palma à Estrada da Circunvalação
(1877/1892/1895-1903)
Uma parte importante dos planos de expansão da Lisboa da segunda metade de
Oitocentos foi delineada no contexto da colaboração entre o Ministério das Obras
Públicas e a Câmara Municipal de Lisboa16. A década de 1850 é marcada pelo rasgamento da Estrada da Circunvalação (simultaneamente via de circulação e fronteira
fiscal e administrativa da cidade), representando a de 1860 um momento de viragem
na forma como, pela primeira vez desde a Lisboa pombalina, foram dados à cidade
mecanismos de planeamento global que contrariavam a tendência há muito verificada
da simples regularização de traçados e resolução de impasses urbanos.
Ainda que na prática inconsequente, o decreto-lei de 31 de dezembro de 1864
simbolizou esta nova forma de pensar a cidade, ao impor uma «ordem na organização
da cidade: ‘superintendia’ o Governo na ‘construção’ das ruas, na sua normalização,
de dimensões de largura e cérceas, conservação e sanidade, e também na sua ‘decoração’
e ordenando um ‘plano geral de melhoramentos’» (França, 2008: 539). Coincide
cronologicamente com a Memóire sur les Études d’Amélioration et embellissements de
Lisbonne (1865), o estudo que Pezerat elaborou após o seu regresso da Paris haussmaniana que tanto o inspirou. Profundamente preocupado com as questões higienistas,
este documento propunha uma cidade com novos bairros servidos por grandes avenidas
arborizadas, empreendimentos de iniciativa privada desenvolvidos por companhias
edificadoras que beneficiariam de importante proteção estatal. De aplicabilidade prática nula, serviu essencialmente como paradigma do crescente fervilhar teórico sobre
a cidade, assente em modelos estrangeiros.
No entanto, só na década de 1870 surgiram e proliferaram os primeiros grandes
planos de melhoramentos que, replicados até ao início do século seguinte e limitados
na sua concretização, estiveram na génese do desenvolvimento urbanístico da Lisboa
limite
de entre séculos. Ainda que o trabalho das sucessivas comissões criadas a este respeito17
nunca se tivesse materializado plenamente, dos seus relatórios e planos surgiram algumas das ideias futuramente efetivadas, de entre as quais o prolongamento da Rua
Nova da Palma até à Estrada da Circunvalação, inicialmente delineada sob a forma de
um anteprojeto da comissão de 1876 e consubstanciada nos projetos de 1892 e 1895,
realizados pela repartição técnica da Câmara Municipal de Lisboa.
A Avenida dos Anjos (rebatizada Avenida Dona Amélia em 1903 e Avenida Almirante Reis nos primeiros dias da República18) enquadra-se, assim, no primeiro grande
ciclo de renovação da imagem urbana e expansão da cidade depois do plano pombalino, de que a abertura da Avenida da Liberdade (1879) constitui um dos exemplos
mais citados, sendo também contemporânea do lançamento do Plano das Avenidas
Novas (cuja primeira apresentação ocorreu em 1888).
Aprovado a 9 de março de 1877, o Anteprojecto da Avenida dos Anjos e Ruas Adjacentes pressupunha a construção de «três ruas longitudinais, separadas entre si d’eixo
a eixo por 80.50m, tendo a central 25,0m de largura, e as laterais 16.00m, e oito ruas
transversais de 16.00m de largo que se ligam pelo lado oriental com a calçada do Forno
do Tijolo e Monte da Penha de França, e pelo lado ocidental com a rua direita dos
Anjos, largo de Santa Bárbara, rua direita de Arroios e estrada de Sacavém»19. Percebe-se a lógica de um plano integrado no qual, a propósito da abertura de uma nova avenida, se rasgava também um pequeno conjunto de novos arruamentos com o intuito
de fazer crescer o parque habitacional, confirmando-se a ideia de que estas novas avenidas eram vistas como oportunidades de promoção imobiliária. Deduzindo-se o valor
obtido com a venda dos terrenos nas franjas dos novos arruamentos, o valor do orçamento deste projeto ascendia a mais de 360 contos de réis.
Aproveitando grande parte das considerações deste Anteprojecto, o projeto definitivo foi apresentado em 1892. Nos quinze anos que os separam, um conjunto de novos
bairros surgiu nas áreas limítrofes da Rua Direita de Arroios (Estefânia) e da Estrada
da Circunvalação (Alto do Pina), incrementando a necessidade de uma nova via que,
de forma eficaz, conseguisse dar vazão ao crescente fluxo de tráfego, cada vez mais estrangulado nas seculares vias de ligação a sul. Assim, a acompanhar a nova avenida foi
também projetado um conjunto de «ruas adjacentes» que não só serviriam para potenciar o caráter estruturador da via, mas também para ligar a nova avenida a estes bairros20.
7
Lisboa, Avenida Almirante Reis no
cruzamento com a Rua dos Anjos, 2018.
CML, DPC, ©José Vicente.
31
( c o m o c o n s t r u i r ) u m a av e n i d a
8
Anteprojecto de novos arruamentos
compreendidos entre as avenidas
Defensores de Chaves, Carvalho
Araujo, Visconde de Santarém e Bairro
Social do Arco do Cego, 1927. CML,
AML, UROB/PU/10/005, f. 64.
9
Projecto de novos arruamentos entre
a Avenida Defensores de Chaves,
Visconde de Santarém e Bairro Social
Arco do Cego. Planta de expropriações,
1928. CML, AML, UROB/PU/10/008,
f. 49.
À semelhança do que à época se verificava noutros empreendimentos do género
em Lisboa, por questões essencialmente economicistas e pragmáticas, este projeto
demonstrava um quase integral respeito pelas preexistências. Destacam-se como
principais exceções a abertura de uma nova praça em substituição do Largo do Intendente (nunca concretizada) e a demolição21 e reconstrução da Igreja dos Anjos num
novo talhão integralmente a si dedicado e voltado à nova avenida22. A igreja passou
a estar enquadrada por um largo/adro e um pequeno jardim, assim ganhando um
destaque e solenidade no contexto da Avenida dos Anjos que nunca havia tido na estreita e saturada Rua Direita dos Anjos. Também por questões orçamentais, o alargamento da Rua Nova da Palma (a norte do cruzamento com a Rua de São Lázaro) não
estava contemplado, sendo necessário esperar pelo final da década de 1920 para a sua
concretização.
A nova avenida foi inaugurada a 20 de julho de 190323, ainda que só mais de uma
década depois fosse possível terminar todo o processo de expropriações e concluí-la
em toda a sua extensão.
Quarta etapa: o troço Arroios-Alameda (1927-1928)
32
O projeto de 1892 pressupunha a possibilidade de prolongar a avenida «em
665.0m com uma rampa uniforme de 0.02 a encontrar o trajecto da estrada de Sacavem
ao Areeiro dando o comprimento total de 2:466.60m»24, desembocando numa zona
ligeiramente a sul da atual Praça João do Rio. No entanto, o facto de a Câmara só ter
decidido avançar com o processo de expropriação da cerca do então Hospital de Arroios
em 1915, assim como a turbulência política e económica dos anos posteriores à Primeira Guerra Mundial, estarão na origem do compasso de espera para a concretização
do prolongamento da Avenida Almirante Reis até à Alameda.
Após a queda da Primeira República e a pretexto da compra do Bairro do Arco
do Cego pela Câmara de Lisboa ao Estado, foi apresentado em 1927 o Anteprojecto
limite
de novos arruamentos compreendidos entre as avenidas Defensores de Chaves, Carvalho
Araújo, Visconde de Santarém e Bairro Social do Arco do Cego. No ano seguinte surgiu
o projeto com mesmo nome25, assinado pelo engenheiro António Emídio Abrantes
(1888-1970), que na memória descritiva o descreve como o plano de melhoramentos
mais importante depois do elaborado «pelo notável e sempre lembrado engenheiro
Ressano Garcia»26. Dele constava o prolongamento da Avenida Almirante Reis, para
cujo novo troço se propunha o topónimo Fernão de Magalhães27.
Apesar de os documentos oficiais e memórias descritivas enfatizarem a importância
do Bairro do Arco do Cego e terem como referência a obra de Ressano Garcia, é inegável a importância dada ao Instituto Superior Técnico (IST) no âmbito deste plano:
desde logo pelo tratamento simétrico das vias envolventes ao bairro e ao IST e pelo
enquadramento que é conferido a este último pela Alameda D. Afonso Henriques.
Também é relevante a operação financeira efetuada pelo IST através da compra e venda
de terrenos na nova zona a urbanizar, potenciada pelo patrocínio de Duarte Pacheco
(1900-1943), figura de grande importância no novo regime político, que tinha acesso
a toda a informação e também a influência necessária para garantir o sucesso da iniciativa (Costa, 2012: 68-70).
O anteprojeto de 1927 veio articular as Avenidas Novas com a Almirante Reis, a
grande via radial oriental. Fê-lo através do prolongamento das atuais avenidas Duque
de Ávila, Miguel Bombarda e Elias Garcia (depois continuadas em curva pelas avenidas Rovisco Pais e António José de Almeida, que circundam o IST e desembocam na
Alameda), mas também através das avenidas do México e Marconi, que rematariam
numa grande rotunda, a oriente do Bairro do Arco do Cego. Desta rotunda com 120
metros de diâmetro partiriam avenidas radiais, uma das quais ligando a outra rotunda
de menores dimensões e que deveria ficar situada no final previsto da Almirante Reis,
algumas dezenas de metros a sul da atual Praça do Areeiro.
O projeto de 1928 mantém os pressupostos do anteprojeto, embora enfatize a importância da Alameda (prolongada para a encosta do outro lado da Almirante Reis)
e esboce as futuras avenidas de Roma e João XXI (respetivamente em direção a norte
e à Palhavã). Ficava por resolver todo o quadrante nordeste do plano, pelo facto de esta
zona estar reservada à construção de uma gare ferroviária central da cidade de Lisboa
e não se pretender condicionar a sua localização precisa. O desenho radial e o intrincado dos seus arruamentos criariam uma malha de quarteirões de dimensão relativamente pequena e com formas pouco regulares (Appleton, 2018: 153).
Este projeto redesenha ainda alguns arruamentos que estavam previstos no anteprojeto e apresenta o «Cálculo de volumes do 1.º troço do prolongamento da Avenida
Almirante Reis», ou seja, entre a Praça do Chile e a Alameda28. A sua análise permite
tirar algumas conclusões: em primeiro lugar, a Avenida Almirante Reis é aqui entendida como um simples prolongamento, quase uma premissa a incorporar nos futuros
planos, que se focam em novos problemas urbanos (a referência a um «1.º troço» de
10
Planta de projeto para a Alameda
D. Afonso Henriques, 1937, Manuel
Machado. CML, AML, CMLSBAH-PURB-002-03877-Folha 23.
33
( c o m o c o n s t r u i r ) u m a av e n i d a
11
Lisboa, Avenida Almirante Reis,
Alameda e Bairro dos Atores.
Abreu Nunes, c. 1950. CML, AML,
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/
ABR/000014.
prolongamento significa que estavam previstos outros); em segundo lugar, na data da
sua apresentação, as ruas a nascente da Almirante Reis não estavam concluídas, pois
a localização prevista para o mercado de Arroios foi ligeiramente alterada; finalmente,
compreende-se o desenho triangular do quarteirão confinado pelas avenidas Guerra
Junqueiro e Manuel da Maia, testemunho da malha radial dos planos da década de
1920, ainda fortemente influenciados pelo desenho urbano oitocentista. Já um pouco
antiquada na década de 1930, essa malha será inteligentemente aproveitada a partir
de 1938, no contexto dos estudos de Étienne de Groër (1882-1952) e de João Faria
da Costa (1906-1971) para a capital e para o Bairro do Areeiro.
Quinta etapa: a Alameda e o prolongamento
até à Praça do Areeiro (1938-1946) 29
34
O ano de 1938 foi marcante na história da capital. Duarte Pacheco tornou-se presidente da Câmara de Lisboa e mais tarde ministro das Obras Públicas e Comunicações,
Étienne de Groër foi contratado para dar início aos estudos que culminaram dez anos
depois no Plano Geral de Urbanização e Expansão de Lisboa e Faria da Costa iniciou
os seus trabalhos para o (re)desenho do «Bairro do Areeiro» (Tereno, 2013: 1). Talvez
a reformulação do plano também tenha contribuído para que, nos dois ou três anos
que se seguiram ao início da Segunda Guerra Mundial, poucos edifícios tenham sido
licenciados na Avenida Almirante Reis.
No Esboceto dum Bairro Residencial para a Zona Norte de Lisboa (Figura 12) pode
observar-se que Faria da Costa «coseu» o seu plano de Alvalade, ainda incipiente, ao
plano de 1928 para a zona da Alameda e Areeiro. Neste desenho preliminar mantém-se
o remate da Almirante Reis numa rotunda a sul do Areeiro, de onde partem artérias
radiais para ligar a Palhavã ao futuro Bairro de Alvalade e também ao aeroporto.
Neste esboceto já desapareceu a avenida que articulava diretamente as duas rotundas,
mas ainda subsistem muitas ambiguidades no desenho, que irão ser clarificadas na
versão definitiva.
limite
12
Esboceto dum Bairro Residencial
para a Zona Norte da Cidade de Lisboa.
CML, AML, CMLSB-UROB-[PFC]-002-Folha 1.
35
É através dos processos de licenciamento do início da década de 1940 que se podem
perceber as alterações que o desenho de 1928 foi sofrendo sucessivamente30. Através
destes documentos, constata-se que a praça/rotunda de remate da Almirante Reis foi
deslocada para norte, fixando-se no local do atual Areeiro; verifica-se igualmente o
aparecimento de uma praceta (primeiro designada Almirante Reis e, mais tarde, João
do Rio) e a alteração da configuração dos quarteirões a poente da avenida, divididos
por uma artéria de desenho parcialmente curvilíneo (a Avenida de Paris, então Actriz
Virgínia) que faz a ligação à atual praça de Londres, já não uma rotunda, mas sim uma
longa «placa» ajardinada. Do plano de 1927-1928 resta a configuração do Bairro
dos Atores (então em construção) e o já mencionado quarteirão triangular a poente.
Este conjunto de alterações decorre de uma moderna visão global da cidade e permite integrar de forma muito clara o novo Bairro do Areeiro, destinado às elites, no
resto da capital. A deslocação para norte da Praça do Areeiro transformou-a numa
rótula entre a antiga radial formada pela Almirante Reis e a nova circular criada pelas
atuais avenidas João XXI e de Berna. O alargamento dos quarteirões do Bairro do
Areeiro permitiu criar francos logradouros e possibilitou o traçado dos lotes onde se
implantaram grandes prédios de rendimento, por contraponto aos quarteirões do
Bairro dos Atores ou da envolvente do Mercado de Arroios.
As adaptações que o plano sofreu — certamente em condições difíceis, pois estava
a ser desenhado em simultâneo com a sua concretização física — mostram uma grande
habilidade e capacidade de compromisso por parte do urbanista, Faria da Costa, patentes na aceitação de um conjunto de premissas ou preexistências, intervencionando
apenas onde tal era possível. Neste troço da Almirante Reis salienta-se o significado
da manutenção da sua largura inicial de 25 metros, não obstante ser já considerada
escassa desde o projeto de 1892. No entanto, se esta opção no troço intermédio terá
sido porventura devida ao respeito pelo desenho do troço inicial, no último parece
dever-se sobretudo a uma impossibilidade prática de a alterar. Nos seus sucessivos
prolongamentos, a Almirante Reis assume, então, o caráter de preexistência, mesmo
( c o m o c o n s t r u i r ) u m a av e n i d a
13
Lisboa, Avenida Almirante Reis a
partir do Areeiro, António Passaporte,
c. 1950. CML, AML, PT/AMLSB/PAS/
001732.
que virtual. Com extensão prevista desde o seu primeiro plano, a avenida é sempre
incorporada no desenho dos bairros posteriormente projetados a norte. No entanto,
a sequência de bolsas de descompressão que pontuam estes troços da avenida (Praça
do Chile, Alameda, Praça João do Rio e Praça do Areeiro), bem como a uniformidade
das suas arquiteturas, contribuem para uma perceção muito distinta em relação ao
troço inicial. A norte, a Almirante Reis parece ser mais larga, mais burguesa e mais
cenográfica do que a sul:
«Assim, se, no plano de 1892, a Avenida Almirante Reis é o objeto principal, no
de 1928 e no de 1938 já aparece como parte integrante de outros planos para
a cidade. O primeiro plano é todo estruturado em torno da avenida, o segundo
prolonga-a de acordo com as intenções iniciais e o terceiro remata-a.» (Appleton,
2018: 154).
Sexta Etapa: o «prolongamento da Avenida Almirante Reis»,
ou a Avenida para além da Avenida
36
Contrariamente à noção que atualmente se tem, a chegada ao Areeiro e a construção
de uma nova praça não eram entendidas como o ponto final da Avenida Almirante Reis.
Pelo menos desde o Plano de Melhoramentos de 1903, encontrava-se previsto o prolongamento da avenida até ao sítio da Portela de Sacavém, conforme se comprova pela descrição da proposta de planeamento de «uma extensa avenida de 25,00 m2 de largura e
4544 m, 66 de comprido, ligando a Luz com a Charneca […] [que] atravessa [ria] a avenida designada sob o n.º 3 [do plano] ao sul do Paço do Lumiar […], devendo seguir, pela
Portella […] [onde] deverá communicar com a [então] avenida D. Amelia, que é prolongada até esta povoação»31. Ou seja, ainda antes de a avenida se encontrar completamente
rasgada até à Estrada da Circunvalação, pressupunha-se já o seu prolongamento em mais
cerca de três quilómetros, sempre ao correr da antiga Estrada de Sacavém.
Seria necessário chegar a meados da década de 1940 para se concretizar o seu prolongamento, que ganhou particular pertinência com o projeto da instalação de um
aeroporto no local da antiga povoação da Portela de Sacavém. Assim, foi delineado
um plano que previa que a Avenida Almirante Reis desembocasse numa grande rotunda (atual Praça do Aeroporto, vulgo Rotunda do Relógio) com um conjunto de
vias de ligação a norte (continuação da Estrada de Sacavém), ao aeroporto e às áreas
poente (Avenida do Brasil) e nascente (Avenida de Cabo Ruivo, atual Avenida de
limite
Berlim) da cidade. Provisoriamente designado como Prolongamento da Avenida Almirante Reis, em 1947 este troço viu o seu topónimo alterado para Avenida do Aeroporto
(edital de 17 de outubro) e pouco mais de uma década depois para Avenida Gago
Coutinho (edital de 2 de janeiro de 1960)32.
No entanto, este entendimento de que, na realidade e em plano, se trata de um
troço de uma via estruturante com início na Rua da Palma é contrariado pela diferente
toponímia, inflexão do traçado e envolvente urbanística e arquitetónica33. Em última
análise, não deixa de se vislumbrar, pelo menos em meados do século XX, alguma perda
de vigor no modelo de avenida, tal como era entendida no projeto de 1892, pois a
direcionalidade essencial da Almirante Reis fica como que remetida à sua condição
de eixo viário estruturante, prolongável sempre que tal se tornasse necessário.
Da mesma maneira, essa relativa ambiguidade também é observável no limite sul.
A ligação com a Baixa continuava (e continua) desde há muito por resolver. Era necessário alargar a Rua Nova da Palma e resolver o imbróglio da estreiteza do seu troço
inicial, que partia junto da cabeceira da Igreja de São Domingos. Esta preocupação
era clara pelo menos desde 1859, altura em que a Câmara decidiu expropriar dois
edifícios no primeiro troço da Rua Nova da Palma, «para facilitar o transito entre a
dita rua e a rua Nova da Princeza, vulgò dos Fanqueiros» (Acta da Sessão de Câmara
do Anno de 1859, 473).
Ao longo da primeira metade do século XX multiplicaram-se os projetos e propostas para o local, que refletiam a evolução dos modelos urbanísticos. O problema
seria parcialmente resolvido na década de 1950 com a «truncada» abertura da Praça
D. João I (atual Praça Martim Moniz), projeto do arquiteto João Faria da Costa.
Porém, trata-se já de um processo cuja investigação ultrapassa o horizonte deste estudo. Deveremos principalmente sublinhar que, de um modo ou de outro, a Avenida
Almirante Reis manteve a sua função e desenho de base, suficientemente maleável
para ter sido capaz de acompanhar e de refletir o crescimento da cidade.
14
Lisboa, Avenida Almirante Reis
e Avenida Almirante Gago Coutinho
em último plano, posterior a 1952.
CML, AML, PT/AMLSB/CMLSBAH/
PCSP/003/FPP/000021.
37
( c o m o c o n s t r u i r ) u m a av e n i d a
n o ta s
1
6
13
20
Acessível em http://lxconventos.
cm-lisboa.pt. Projeto financiado pela
FCT, que teve como investigadora
principal Raquel Henriques da Silva
(PTDC/CPC-HAT/4703/2012).
Não obstante em 1552 já se encontrar
prevista a abertura da Rua Nova da
Palma, Matos Sequeira refere que o
contrato entre João da Palma e o
Mosteiro só terá sido assinado a 10 de
outubro de 1554, comprometendo-se
o primeiro a arranjar os foreiros e a
abrir a rua até final do ano seguinte.
O autor pressupõe que tal não tenha
acontecido visto os contratos de
aforamento terem sido assinados
em data posterior (Sequeira, 1949).
A par do grande plano do Bairro
da Boavista (apenas parcialmente
realizado), este foi o maior projeto
urbanístico de finais da década de
1850. Embora só surjam referências
específicas a este empreendimento
nas Atas da Sessão de Câmara de
1858, logo em 1856 foram debatidas
expropriações e permutas de terreno
na área compreendida entre a Rua
da Palma e o Largo do Intendente,
para se «levarem a effeito diversos
melhoramentos na viação publica»
(Actas da Sessão de Câmara do Anno
de 1856, pp. 73-74).
O projeto final de 1895 incluiria
ainda um conjunto de novos
arruamentos localizados a nordeste
da avenida (ruas José Falcão,
Francisco Sanches, Cavaleiro de
Oliveira, Heróis de Quionga),
destinados a melhorar as ligações
desta à antiga Estrada da
Circunvalação, no troço que neste
contexto é alargado e rebatizado
como Rua Morais Soares.
2
Projeto de doutoramento intitulado
«Entre circular e habitar. Do Projecto
da Avenida dos Anjos e Ruas Adjacentes
à abertura da Avenida Almirante
Reis», atualmente a decorrer na
Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas da Universidade Nova de
Lisboa e financiado pela Fundação
para a Ciência e a Tecnologia
(SFRH/BD/110343/2015).
7
Reproduzido em Sequeira, 1949,
e mais recentemente em Lourenço,
2018.
3
8
A palavra avenida já estava em uso
em Portugal no século XVIII
(segundo Bluteau é «estrada ou
caminho, por onde se vay para huma
Cidade, Villa, Castello, &c.»),
como sinónimo de caminho para.
O vocábulo chegou à língua
portuguesa pelo francês avenue;
com origem no francês antigo
advenue, particípio passado na forma
feminina do verbo avenir (do latim
advenire, chegar) (Bluteau, 1712,
I: 664; Houaiss, 2001, I: 460;
Topalov et al., 2010: 49-59).
«Devia ser uma simples abertura na
muralha, em que se puseram portas
de madeira, e tinha por cima, em
1712, e em 1750, uma aceada capella
da invocação de N. Sª do Rosário.
[…] Por se julgar inconveniente, na
eventualidade de um ataque à cidade
que se previa na primeira metade
do século XVII, foi proposto o seu
entaipamento.» (Silva, 1948: 58)
4
Vestígios da Estrada de Sacavém
são legíveis na Rua Alves Torgo,
interrompida depois da Rua Quirino
da Fonseca e completamente apagada
na Alameda e no Bairro dos Atores;
conserva-se ainda com um pequeno
troço (que mantém o topónimo Alves
Torgo) entre o Areeiro e a Avenida
Gago Coutinho. A destruição
desta rua aparece documentada
nos volumes de obra de edifícios
localizados entre a Alameda
e o Areeiro.
9
Arquivo Municipal de Lisboa (AML)
[A rainha D. Catarina ordena que o
pagamento para a construção de uma
ponte junto da rua Nova da Palma
deve ser feito pelos moradores da
zona], AML-AH, Chancelaria Régia,
Livro 1º de consultas e decretos de
D. Sebastião, doc. 17 e 17 A, f. 28
e 28v. PT/AMLSB/CMLSBAH/
CHR/010/0001/0020.
10
AML [Consulta sobre a nova
serventia da rua dos Canos].
PT/AMLSB/CMLSBAH/CHR/
010/0017/0065.
11
5
Por essa altura, e falecidos os
aforadores originais, o referido foro
dos Palma ia já na segunda vida, para
a qual havia sido nomeada a neta
dos aforadores originais, Francisca
Coelho, casada com João da Palma,
tomando o último para si o ónus
desta operação, a ponto de numa
primeira fase a Rua Nova da Palma
se ter chegado a designar «Rua Nova
de João da Palma».
38
AML [Decreto de Alargamento
da Rua da Palma], AML-AH,
Chancelaria Régia, Livro 18.º
de consultas, decretos e avisos
de D. José I, f. 228 a 231v.,
PT/AMLSB/CMLSBAH/
CHR/010/0090/0063.
12
AML, Idem.
21
14
Esta iniciativa deveu-se ao facto
de a antiga igreja estar justamente
no enfiamento da nova avenida em
projeto.
Actas das Sessões de Câmara do
Anno de 1859, p. 292.
22
Lourenço e Silva, no prelo.
15
Casos das igrejas dos Anjos e do
Perpétuo Socorro (respetivamente
demolidas em 1908 e 1950).
23
Diário de Notícias, 21-07-1903.
24
16
Através da sua repartição técnica,
que teve como responsáveis o francês
Pierre-Joseph Pezerat (1801-1872)
e Frederico Ressano Garcia (1847-1911).
17
Formadas por técnicos do Ministério
das Obras Públicas e da Repartição
Técnica da Câmara Municipal de
Lisboa.
AML [Projeto da avenida dos Anjos
e ruas adjacentes], PT/AMLSB/
CMLSB/UROB-PU/13/01108,
f.78.
25
AML, UROB/PU/10/005, f. 64;
UROB/PU/10/008 f. 49.
26
AML, UROB-PU/10/008, f. 7.
27
18
O topónimo Avenida Almirante Reis
foi adotado logo após a implantação
da República, por deliberação
camarária de 13 de outubro
(edital de 5 de novembro de 1910),
substituindo o anterior, Avenida
Rainha Dona Amélia (atribuído em
sessão de Câmara de 18 de junho de
1903 — edital de 26 de novembro).
A designação inicial (Avenida dos
Anjos) foi oficialmente aprovada
pela vereação em sessão de 8 de julho
de 1895.
Esta designação é a que consta ainda
do Regulamento Geral das Construções
Urbanas da Cidade de Lisboa
(RGCUCL) de 1930, no qual o
arruamento é integrado na 1.ª Zona
ou Zona Principal, a de maior
importância no contexto urbano
da capital; compreendia as suas
principais vias e praças, que tinham
tratamento regulamentar diferenciado
em relação às restantes zonas.
28
AML, UROB-PU/10/008.
19
29
AML [Projeto da avenida dos Anjos
e ruas adjacentes], PT/AMLSB/
CMLSB/UROB-PU/13/01108,
f. 76-77.
1946 é a data do primeiro desenho
conhecido que apresenta uma versão
aproximada do Bairro do Areeiro
tal como este foi executado (AML,
UROB-EV/0930, f. 6).
limite
bibliografia
30
Com efeito, antes de 1946 não se
conhece nenhum plano oficial e
definitivo com o novo traçado para
a zona do Bairro do Areeiro. Assim,
é através das plantas de implantação
dos edifícios licenciados (em 1941
e 1942, ainda executadas à mão sobre
o plano anterior, e a partir de 1943 já
com o traçado correto) que se podem
entender as alterações em curso.
31
Plano Geral de Melhoramentos
da Capital. AML, PT/AMLSB/
CMLSB/UROB-PU/10/434.
32
Os vestígios da Estrada de Sacavém
e azinhagas truncadas são ainda hoje
identificáveis, como por exemplo
a Azinhaga das Teresinhas.
33
Neste contexto, os terrenos foram
divididos em lotes, que depois
eram alienados sem projeto,
para construção livre de moradias.
39
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2010.
5
Prefácio
Raquel Henriques da Silva
9
Introdução
Filipa Ramalhete, Margarida Tavares da Conceição,
Inês Lobo, Júlia Varela
14
Limite: identificação de um território
Inês Lobo, Júlia Varela
22
Almirante Reis: (como construir)
uma avenida em seis etapas
Hélia Silva, João Appleton, Margarida Tavares
da Conceição, Rita Mégre, Tiago Borges Lourenço
42
Linha de água: ampliar
Inês Lobo, Júlia Varela
50
Da Rua da Palma à Estrada da
Circunvalação: a abertura da Avenida
dos Anjos (1877-1915)
Hélia Silva, Rita Mégre
64
Habitar à Almirante Reis: os Bairros
Andrade e dos Castelinhos
Tiago Borges Lourenço
78
Cinquenta anos de prédios
de rendimento
João Appleton, João Vieira Caldas
98
Três encomendas de arte pública
comemorativa no Estado Novo
Helena Elias, Sérgio Vicente
110
Linha de festo: articular
Inês Lobo, Júlia Varela
255
118
Divisões socioespaciais, coexistências
e (in)visibilidades urbanas
João Pedro Silva Nunes, Luís Vicente Baptista
146
Atividade comercial: quantificar
e mapear
Gonçalo Antunes, Nuno Pires Soares
156
Habitar: população e edifícios
Teresa Santos, Nuno Pires Soares
168
Novos regulamentos para velhos
hábitos: criadas e porteiras em meados
do século XX
Filipa Ramalhete, Maria Assunção Gato,
Raquel Vicente
182
Coletivos de criação e partilha artística:
um ensaio visual
Ágata Dourado Sequeira, Pedro Frade
208
Cartografia: Cidade e projeto
Inês Lobo, Júlia Varela
216
O pulsar político de um eixo dorsal
João Seixas, António Brito Guterres
228
Os mundos de uma avenida em Lisboa:
todos parte de um mesmo retrato?
Marluci Menezes
238
Séries fotográficas
Paulo Catrica
Título
Atlas Almirante Reis
Coordenação
Filipa Ramalhete
Inês Lobo
Margarida Tavares da Conceição
Revisão científica
Filipa Ramalhete
Margarida Tavares da Conceição
Revisão de texto
Tinta-da-china
Fotografia
A autoria das fotografias é identificada na
respetiva legenda, com exceção das séries
fotográficas de Paulo Catrica, realizadas no
âmbito de projetos em colaboração com o Atelier
Inês Lobo. As séries RE USE e QUESTA É UNA
FINESTRA integraram a exposição
AN-ARQUITECTURA, BESART (2014),
curadoria de Nuno Crespo. A série PALMA
& BEMFORMOSO foi exposta na Bienal
de Arquitetura de Veneza (2016).
Capa: Mfc547.8 * f45/4_3.04.2016_13:35h
(série PALMA & BEMFORMOSO, 2016)
Contracapa e abertura: série RE USE (2014)
Separadores: série QUESTA É UNA
FINESTRA (2014)
Pp. 239-252: série PALMA & BEMFORMOSO (2016)
Mfc547.12 * f45/4_3.04.2016_13:47 h
Mfc547.6 * f45/4_3.04.2016_13:05 h
Mfc546.8 * f32/15_2.04.2016_15:29 h
Mfc551.11 * f32/4segs._15.04.2016_12:09h
Mfc549.8 * f45/4_9.04.2016_14:53h
Mfc554.12 * f32/10segs_18.04.2016_17:44h
Mfc551.5 * f32/1:10min._3.04.2016_11:25h
Mfc554.6 * f22/30segs_18.04.2016_14:39h
Mfc552.4 * f16/5segs_18.04.2016_13:52h
Mfc552.7 * f16/7segs_18.04.2016_14:01h
Mfc552.10 * f16/5segs_18.04.2016_14:11h
Mfc553.5 * f22.5/45segs._18.04.2016_14:47h
Mfc553.4 * f22/30segs_18.04.2016_14:39h
Mfc553.12 * f32/1:00min_18.04.2016_15:10h
Desenho gráfico
Atelier Pedro Falcão
Proporção
[A4] – 21 × 29,7 cm
Tipos de letra
Garamond Pro; Akkurat; Mazagan
Instituições participantes
CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura,
Cidade e Território da Universidade Autónoma
de Lisboa
CICS.NOVA – Centro Interdisciplinar de Ciências
Sociais da Universidade Nova de Lisboa
CML – Câmara Municipal de Lisboa,
Direção Municipal de Cultura,
Departamento de Património Cultural
Agradecimentos
Arquivo Municipal de Lisboa
Fundação Calouste Gulbenkian – Biblioteca d
e Arte e Arquivos
Junta de Freguesia de Arroios
Impressão
Gráfica Maiadouro
Depósito legal
???????????
ISBN
978-989-671-560-1
Data de edição
2020
Edição
Tinta-da-China
As imagens presentes da obra pertencem aos
arquivos e autores indicados e não podem ser
reproduzidas a partir desta edição.
Atlas Almirante Reis / coord. Filipa Ramalhete:
coord. Inês Lobo; coord. Margarida Tavares da
Conceição. Lisboa: Tinta-da-China, 2020DOI: https://doi.org/10.26619/978-989-671-560-1
I. Ramalhete, Filipa. coord. II. Lobo, Inês, coord.
III Conceição, Margarida Tavares da, coord.
IV. Antunes, Gonçalo. V. Appleton, João Guilherme.
VI. Baptista, Luís Vicente. VII. Caldas, João Vieira.
VIII. Catrica, Paulo. IX. Elias, Helena. X. Frade,
Pedro. XI. Gato, Maria Assunção. XII. Guterres,
António Brito. XIII. Lourenço, Tiago Borges.
XIV. Mégre, Rita. XV. Menezes, Marluci.
XVI. Nunes, João Pedro. XVII. Santos, Teresa.
XVIII. Seixas, João. XIX. Sequeira, Ágata Dourado.
XX. Silva, Hélia. XXI. Soares, Nuno Pires.
XXII. Varela, Júlia. XXIII. Vicente, Raquel.
XXIV. Vicente, Sérgio.
Financiamento
CEU – Cooperativa de Ensino Universitário
A Cooperativa de Ensino Universitário, entidade
instituidora da Universidade Autónoma de
Lisboa, promove a produção científica em vários
segmentos culturais, valorizando a relação
entre a comunidade académica e a sociedade.
Desta forma, apoia a edição desta publicação,
contribuindo para a divulgação doconhecimento.
CML – Câmara Municipal de Lisboa,
Direção Municipal de Cultura, Departamento
de Património Cultural
CICS.NOVA – Centro Interdisciplinar de Ciências
Sociais da Universidade Nova de Lisboa
O CICS.NOVA – Centro Interdisciplinar
de Ciências Sociais da Universidade Nova
de Lisboa é financiado por fundos nacionais
através da FCT – Fundação para a Ciência
e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto
«UIDB/04647/2020».
Parceiros Institucionais
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