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Marcelo Chaves Soares
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Marcelo Nicomedes dos Reis Silva Filho
Universidade Católica de Brasília, Brasil
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Marco Antonio Moreira de Oliveira
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Marcos dos Reis Batista
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Universidade Federal de Ouro Preto, Brasil
Maria Letícia Macêdo Bezerra
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Mariana do Carmo Marola Marques
Universidade Estadual de Campinas, Brasil
Mariana Pinkoski de Souza Centro
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Mariane Souza Melo de Liz
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Marina Bezerra da Silva
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Natasha Moraes de Albuquerque
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Universidade Metodista de São Paulo, Brasil
Pamela da Silva Rosin
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Patricia Flavia Mota
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
Paulo Alexandre Filho
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Brasil
Paulo Roberto Barros Gomes
Universidade Federal do Maranhão, Brasil
Pollyanna Araújo Carvalho
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Raick de Jesus Souza
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Railson Pereira Souza
Universidade Federal do Piauí, Brasil
Raissa Pereira Baptista
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Ricardo Moura Marques
Colégio Pedro II, Brasil
Rita de Cassia Almeida Silva
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Roberta Rodrigues Ponciano
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Robson Santos da Silva
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Tayson Ribeiro Teles
Rosangela Colares Lavand
Thais Karina Souza do Nascimento
Samara Castro da Silva
Valdemar Valente Júnior
Samuel André Pompeo
Viviane Gil da Silva Oliveira
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PARECER E REVISÃO POR PARES
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Editora executiva Patricia Bieging
Assistente editorial
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Revisão Os organizadores
Organizadores
Giovane Fernandes Oliveira
Fábio Aresi
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
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O115 O universo benvenistiano: enunciação, sociedade, semiologia.
Giovane Fernandes Oliveira, Fábio Aresi - organizadores.
São Paulo: Pimenta Cultural, 2020. 424p..
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-5939-028-1 (eBook)
1. Linguagem. 2. Teoria. 3. Enunciação. 4.Linguística.
5. Signos. 6. Narrativa. I. Oliveira, Giovane Fernandes. II. Aresi,
Fábio. III. Título.
CDU: 81.1
CDD: 400
DOI: 10.31560/pimentacultural/2020.281
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Telefone: +55 (11) 96766 2200
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SUMÁRIO
Apresentação:
Ou sobre as aberturas de uma teoria da linguagem.......................... 14
Giovane Fernandes Oliveira & Fábio Aresi
Parte 1
A ENUNCIAÇÃO
Capítulo 1
A condição figurativa na enunciação
(por uma linguística dos seres falantes)....................................... 30
Valdir do Nascimento Flores
Capítulo 2
Dos universos aos aparelhos:
transformações da teorização benvenisteana.................................... 46
Paula Ávila Nunes
Capítulo 3
Às voltas com o tu em Benveniste:
uma reflexão sobre a noção de escuta em linguística........................ 75
Luiza Milano
Capítulo 4
A dêixis e a referência como diferentes
modos de relação entre os signos e a enunciação...................... 92
Alena Ciulla
Capítulo 5
Blasfemia: um outro modo de enunciação................................. 121
Elisa Marchioro Stumpf
Capítulo 6
De Benveniste às pesquisas prospectivas:
a noção de deslocamento e seu valor teórico-metodológico........... 141
Carolina Knack
Capítulo 7
A relação entre o biológico e o cultural
na aquisição da linguagem e a instauração
da criança na interdependência entre
forma-sentido na língua materna................................................. 164
Carmem Luci da Costa Silva
Capítulo 8
A criança e suas narrativas:
a experiência constituída nos ruidozinhos vocais...................... 204
Marlete Sandra Diedrich
Capítulo 9
A relação teoria-empiria e o problema do dado
na pesquisa em aquisição da escrita:
um olhar enunciativo.......................................................................... 221
Giovane Fernandes Oliveira
Parte 2
A SOCIEDADE
Capítulo 10
A reciprocidade como noção estruturante em Benveniste........ 274
Fábio Aresi
Capítulo 11
A relação entre sociedade e língua em Benveniste:
três hipóteses e uma alternativa........................................................ 308
Silvana Silva
Capítulo 12
Afinal, o que é a comunhão fática?
Ensaio sobre a enunciação em tempos de isolamento social.......... 325
Patrícia da Silva Valério
Capítulo 13
A realização da enunciação:
um estudo dos instrumentos no ensino da leitura............................ 342
Claudia Toldo
Parte 3
A SEMIOLOGIA
Capítulo 14
A relação língua-língua e a relação língua-sociedade:
algumas observações com vistas à reflexão
semiológica de Benveniste................................................................ 364
Heloisa Monteiro Rosário
Capítulo 15
A significância e a tradução......................................................... 393
Daiane Neumann
Sobre os autores e as autoras..................................................... 412
Índice Remissivo.......................................................................... 419
APRESENTAÇÃO
OU SOBRE AS ABERTURAS DE
UMA TEORIA DA LINGUAGEM
Fui encarregado, pelo comitê editorial da revista Langages,
de “editar” um número sobre o estudo da enunciação. Propus
esse tema pensando particularmente nos trabalhos que você
dedicou a isso e na perspectiva que você traçou. Espero, profundamente, que você possa colaborar neste número; ainda
mais porque ele só faz sentido se você puder nos conceder
essa colaboração. A razão disso é dupla: por um lado, você
sabe da admiração que tenho por seus trabalhos, por outro
lado, você é literalmente aquele que introduziu este tema na
linguística contemporânea.
Trecho de carta de Tzvetan Todorov a Émile Benveniste, divulgada
em francês por Irène Fenoglio e traduzida em português por
Valdir do Nascimento Flores (FLORES, 2013, p. 162).
SUMÁRIO
14
Em 2020, completam-se cinquenta anos da publicação de O
aparelho formal da enunciação, contribuição de Émile Benveniste (19021976)1 ao número 17 da revista Langages, intitulado L’énonciation,
conforme atesta o trecho epistolar em epígrafe – um verdadeiro
documento da história das ideias linguísticas. Tal artigo (originalmente
publicado em 1970 e, posteriormente, republicado como capítulo 5
dos Problemas de linguística geral II em 1974) consiste em um dos
últimos escritos assinados pelo grande linguista antes da afasia que o
acometeu, privando-lhe da fala e abreviando sua magistral produção.
Passadas cinco décadas, o texto em questão segue produzindo
efeitos em estudos que não ignoram o postulado benvenistiano
segundo o qual a linguagem, bem antes de servir para a comunicação,
serve para o homem se reconhecer em sua humanidade e vivenciar
as práticas humanas cujo acesso lhe é facultado pela capacidade
1 De família judia e poliglota, Émile Benveniste, nascido Ezra Benveniste, em Alepo, Síria, em
27 de maio de 1902, muda-se para a França em 1913 e, lá, naturaliza-se francês em 1924,
modificando seu primeiro nome de Ezra para Émile. Conclui seus estudos secundários na
École Rabbinique de France e, em seguida, ingressa nos estudos universitários públicos.
Em 1918, inscreve-se no curso de Antoine Meillet, na École Pratique de Hautes Études
(EPHE), obtendo, nessa instituição, em 1920, o Diplome d’Études Supérieures, com
o trabalho Les futurs et subjonctifs sigmatiques du latin archaïque, dirigido por Joseph
Vendryes. Em 1922, na École de Langues Orientales, obtém a Agrégation de Grammaire.
Em 1927, torna-se diretor de estudos na EPHE, cargo que ocupa até 1969, sucedendo
Meillet na cátedra de Grammaire Comparée tanto na EPHE quanto, a partir de 1937, no
Collège de France. Em 1935, torna-se doutor em Letras, com a tese Origine de la formation
des noms en indo-européen. Dentre outros cargos, ocupa, entre 1959 e 1970, o de
secretário da Société Linguistique de Paris, além de ser o primeiro presidente, em 1968, em
Varsóvia, do primeiro Symposium Internacional de Sémiotique e, em 1969, da International
Association for Semiotic Studies e do Cercle de Sémiotique de Paris. Em 9 de dezembro
de 1956, devido à sobrecarga de trabalho, sofre um grave infarto. Em 6 de dezembro
de 1969, é vítima de um acidente vascular cerebral, que o deixa afásico e imobilizado,
ainda que não inconsciente dos acontecimentos à sua volta. Em 3 de outubro de 1976,
acometido por uma embolia, vem a óbito na casa de saúde Claire-Demeure, em Versalhes,
onde estava internado desde maio desse mesmo ano. Conforme Milner (2008 [2002], p.
121), a biografia de Émile Benveniste perpassa inúmeras esferas da história da França
do século XX – as comunidades judaicas europeias, os movimentos revolucionários, a
escola linguística de Paris, o estruturalismo, o declínio das instituições intelectuais de língua
francesa –, assim como é marcada por infortúnios: o banimento do magistério superior
público por sua origem judia em 1940, a invasão de seu apartamento e a perda de todos os
seus trabalhos manuscritos durante a Ocupação nazista em Paris, a deportação e a morte
de seu irmão mais velho em Auschwitz em 1942, a sua própria prisão e fuga para a Suíça,
a doença, a solidão, a afasia definitiva em 1969. Para maiores informações sobre a vida e a
obra de Benveniste, conferir Milner (2002), Kristeva (2012, 2016), Coquet e Fenoglio (2012),
Redard (2012), Todorov (2012), Flores (2013), Fenoglio (2016b) e Rosário (2018).
SUMÁRIO
15
linguageira. A fim de comemorar o cinquentenário desse célebre título,
a Editora Pimenta Cultural aceitou a proposta que a ela submetemos de
uma coletânea em homenagem a tal marco dos estudos enunciativos.
Equivoca-se, porém, quem porventura pense que o tributo ao
referido artigo circunscreve o escopo da presente obra à temática
da enunciação. A esse respeito, cabe lembrar que O aparelho formal
da enunciação, ao mesmo tempo em que coroa uma trajetória de
estudos sobre o fenômeno enunciativo por Benveniste desenvolvidos
entre as décadas de 1940 e 1970, também descortina um horizonte de
possibilidades aos estudos da linguagem:
Muitos outros desdobramentos deveriam ser estudados
no contexto da enunciação. Ter-se-ia que considerar as
alterações lexicais que a enunciação determina, a fraseologia,
que é a marca frequente, talvez necessária, da “oralidade”.
Seria preciso também distinguir a enunciação falada da
enunciação escrita. Esta se situa em dois planos: o que
escreve se enuncia ao escrever e, no interior de sua escrita,
ele faz os indivíduos se enunciarem. Amplas perspectivas se
abrem para a análise das formas complexas do discurso, a
partir do quadro formal esboçado aqui. (BENVENISTE, 2006
[1970], p. 90, aspas do autor).
O desfecho do texto de 1970 assemelha-se à conclusão de
dois outros estudos, a ele cronologicamente próximos. Trata-se dos
trabalhos Estrutura da língua e estrutura da sociedade (apresentado
como conferência em 1968, publicado como artigo em 1970 e
republicado como capítulo 6 dos PLG II em 1974) e Semiologia da
língua (publicado em duas partes em 1969, mais tarde reunidas em um
só texto, republicado como capítulo 3 dos PLG II em 1974):
É na prática social, comum no exercício da língua, nesta relação
de comunicação inter-humana que os traços comuns de seu
funcionamento deverão ser descobertos, pois o homem é
ainda e cada vez mais um objeto para ser descoberto, na dupla
natureza [individual e social] que a linguagem fundamenta e
instaura nele. (BENVENISTE, 2006 [1968/1970], p. 104).
SUMÁRIO
16
Em conclusão, é necessário ultrapassar a noção saussuriana do
signo como princípio único, do qual dependeria simultaneamente
a estrutura e o funcionamento da língua. Esta ultrapassagem farse-á por duas vias:
– na análise intralingüística, pela abertura de uma nova dimensão
de significância, a do discurso, que denominamos semântica,
de hoje em diante distinta da que está ligada ao signo, e que
será semiótica;
– na análise translingüística dos textos, das obras, pela
elaboração de uma metassemântica que se construirá sobre a
semântica da enunciação.
Esta será uma semiologia de “segunda geração”, cujos
instrumentos e o método poderão também concorrer para o
desenvolvimento das outras ramificações da semiologia geral.
(BENVENISTE, 2006 [1969], p. 67, aspas do autor).
Certamente, um dos traços que melhor explica a proximidade
entre os três artigos de Benveniste citados acima pode ser definido,
resguardadas as particularidades de cada um deles, como a
característica, comum aos três, de constituírem textos nos quais o
linguista sintetiza os resultados de seus estudos mais analíticos de
descrição linguística, ao mesmo tempo em que abre as reflexões neles
teorizadas de forma programática, propondo novas perspectivas de
análise. Nesse sentido, tais artigos figuram, simultaneamente, como
textos de síntese, organização e abertura teórica (cf. ARESI, 2012), o
que explica, em parte, a sua importância e a sua potência no interior
do pensamento benvenistiano.
Além disso, esses três trechos finais dos derradeiros escritos
de Benveniste não deixam dúvidas: no crepúsculo de sua carreira,
o linguista estava às voltas, sim, com os mistérios em torno da
passagem da língua ao discurso, mas não menos intrigado estava
com os fenômenos linguageiros passíveis de estudo a partir de uma
compreensão mais acurada de tais mistérios. Enunciação, sociedade
SUMÁRIO
17
e semiologia parecem constituir, pois, três termos nucleares da agenda
de pesquisas pelo linguista aberta em seus últimos trabalhos, agenda
esta que não é senão uma parte do vasto universo benvenistiano.
Por meio desse termo, Teixeira e Messa (2015) referemse metaforicamente ao conjunto da obra de Benveniste, cujas
densidade e diversidade se fazem notar em termos tanto numéricos
quanto temáticos. Em termos numéricos, segundo o sempre citado
levantamento bibliográfico de Mohammed Djafar Moïnfar, Benveniste
publicou 18 obras, 291 artigos, 300 resenhas e 34 comunicações na
Société Linguistique de Paris. Em termos temáticos, seus interesses
de pesquisa recobrem campos como os estudos iranianos e indoeuropeus, os estudos das línguas clássicas e ameríndias, os estudos
sobre a epistemologia e a história das ideias linguísticas, os estudos
sobre a enunciação e o discurso – que consagraram seu nome no
âmbito das humanidades – e, como ilustram publicações póstumas
surgidas na última década, os estudos inacabados sobre a semiologia,
a escrita e a linguagem poética2.
2 Para maiores informações sobre a pluralidade dos temas investigados por Benveniste e
sobre a atualidade de seu pensamento, além da fortuna crítica referida na nota nº 1, vale
conferir artigos de estudiosos brasileiros como os de Teixeira (2012a, 2012b), Flores e
Teixeira (2013), Teixeira e Messa (2015), Flores (2017b), Aresi (2019) e Rosário e Flores
(2020), bem como coletâneas organizadas tanto por pesquisadores franceses, como as de
Brunet e Mahrer (2011), Laplantine e Pinault (2015), Fenoglio (2016a) e D’Ottavi e Fenoglio
(2019), quanto por pesquisadores brasileiros, como as de Neumann e Diedrich (2012),
Cayser, Diedrich e Valério (2014), Silva e Cavalheiro (2016) e Agustini e Rodrigues (2018).
Merecem ser mencionados ainda os livros de Dessons (2006), Ono (2007), Normand (2009),
Silva (2009), Flores (2017a, 2019) e Fenoglio (2019), assim como o volume 11/número 4,
de 2017, da Revista Domínios de Lingu@gem (intitulado Os estudos enunciativos no Brasil:
limites, perspectivas e contribuições), o volume 14/número 11, de 2016, da Revista Virtual
de Estudos da Linguagem – ReVEL (intitulado Uma homenagem à Profa. Marlene Teixeira
– Re-leitura do pensamento benvenistiano orientada por perspectivas antropológicas de
linguagem e pelo estudo das formas complexas do discurso) e, também da ReVEL, o
volume 18/número 34, de 2020 (intitulado A enunciação em perspectiva na atualidade).
Por fim, não podemos deixar de recordar os trabalhos apresentados em dois recentes
eventos, a saber, a segunda e a terceira edições do Colóquio Leituras de Émile Benveniste:
a segunda edição, realizada na Universidade de Passo Fundo (UPF), entre os dias 9 e 10
de agosto de 2018, contou com trabalhos mais tarde publicados no volume 14/número 3
da Revista Desenredo; já a terceira edição, realizada na Universidade Federal de Pelotas
(UFPel), entre os dias 10 e 11 de outubro de 2019, deu a conhecer estudos que serão em
breve divulgados pela Revista Linguagem & Ensino.
SUMÁRIO
18
Dessa multiplicidade de interesses, dá testemunho o próprio
Benveniste no prefácio dos PLG I, ao caracterizar os temas tratados
nos estudos reunidos nessa obra como problemas que contribuem
para a reflexão sobre a grande problemática da linguagem3. Tais
problemas são também definidos em termos de relações: “[...]
encaram-se [nos PLG I] as relações entre o biológico e o cultural,
entre a subjetividade e a socialidade, entre o signo e o objeto, entre
o símbolo e o pensamento, e também os problemas da análise
intralinguística” (BENVENISTE, 2005 [1966], s./p.). A divisão dos PLG
I – mais tarde reproduzida nos PLG II – igualmente dá uma amostra da
heterogeneidade dos estudos benvenistianos, distribuídos, nesses
dois volumes, em seis seções: (1ª) Transformações da linguística; (2ª)
A comunicação; (3ª) Estruturas e análises; (4ª) Funções sintáticas;
(5ª) O homem na língua; (6ª) Léxico e cultura.
Ainda no prefácio dos PLG I, Benveniste observa que
a unidade e a coerência do conjunto da obra ressaltarão dos
estudos aí compilados. De fato, como pontua Ono (2007), embora
Benveniste, distintamente de Saussure, nunca tenha sido relutante
em publicar suas descobertas, ele jamais dedicou um livro à
linguística geral. A despeito de seus títulos, os PLG I e II, como se
sabe, não foram planejados como livros acabados, com início, meio
e fim. Trata-se, conforme Flores (2013), de coletâneas que reúnem
textos publicados ao longo de mais de trinta anos, em revistas de
linguística e de outras áreas (psicologia, sociologia, filosofia), com
interlocutores linguistas e não linguistas, sobre temas linguísticos e
não linguísticos. Tem razão, então, Ono (2007) ao comentar que as
pesquisas que integram os PLG I e II são todas e cada uma delas
3 O termo grande problématique du langage, presente na versão francesa, é traduzido,
na edição brasileira, como grande problema da linguagem. Quanto a essa diferença,
preferimos o termo problemática, por este nos parecer – além de uma tradução mais
equivalente de problématique – um hiperônimo que subsume o termo hipônimo problemas,
empregado pouco antes no parágrafo, de modo que, na visão benvenistiana, a linguagem
é uma problemática geral, para cuja compreensão concorrem problemas específicos como
os abordados nos PLG.
SUMÁRIO
19
testemunhos de um pensamento multiforme, de modo que “Publicar
em coletâneas terá sido a única iniciativa de Benveniste para dar
forma a uma linguística geral” (ONO, 2007, p. 20).
No entanto, como adverte o próprio linguista, pode-se
depreender, do conjunto de seus PLG, a unidade e a coerência que
se espera de uma teoria da linguagem. Isso é possível mesmo sendo
a teoria benvenistiana marcada por uma incompletude que, de acordo
com Flores (2013), inviabiliza tomá-la enquanto modelo acabado, vale
dizer, enquanto conjunto coeso de proposições teórico-metodológicas,
rigorosamente elaboradas e reelaboradas no decorrer dos anos, caso
de outras teorias linguísticas. E quais seriam, afinal, tais unidade e
coerência do conjunto?
A resposta a essa questão é dada por Benveniste, em carta
disponível na Bibliothèque Nationale de France e na qual o linguista
situa a preocupação com a significação como ponto de convergência
de sua diversificada produção. Nessa carta, tornada publicada em
língua francesa por Brunet e Mahrer (2011) e traduzida em língua
portuguesa por Teixeira e Messa (2015, p. 104), diz Benveniste:
[...] Todas as pesquisas que fiz nesses últimos anos e o projeto
que criei têm em vista o mesmo propósito. [...] Em resumo,
minha preocupação é saber como a língua “significa” e como
ela “simboliza”. As tendências atuais de uma certa escola de
linguistas querem analisar a língua sobre a base da distribuição
e das combinações formais. Parece-me que é tempo de
abordar com métodos novos o conteúdo dessas formas e ver
segundo quais princípios ele é organizado. (BENVENISTE, apud
BRUNET; MAHRER, 2011, p. 35).
Com efeito, a significação como princípio transversal
ao pensamento benvenistiano é o que contribuiu para uma
reinterpretação deste nos anos recentes. De uma leitura indicial,
hegemônica na segunda metade do século XX e focada no estudo
dos vestígios da enunciação no enunciado (os índices de pessoa,
SUMÁRIO
20
tempo e espaço) como limite da teorização e da análise da
subjetividade na linguagem, passou-se a uma leitura antropológica,
que deslocou – sem dispensá-las – a ênfase das marcas formais
para uma reflexão de natureza mais ampla sobre as relações entre
o homem e a linguagem (cf. DESSONS, 2006).
Ao discutir mais detalhadamente os aspectos antropológicos da
teoria da linguagem de Benveniste e de sua teorização enunciativa,
Flores (2017b) defende a possibilidade de se abordar o antropológico, na obra do linguista, a partir de dois axiomas, um geral (o homem
na linguagem) e um específico (o homem na língua). Para o Flores
(2017b), o primeiro axioma contém o segundo: de um lado, a generalidade; de outro, a especificidade (ou concretude). A generalidade do
primeiro axioma remete a uma condição imanente e constitutiva do humano que tem uma anterioridade lógica ao ato mesmo de falar, isto é,
antes de se tornar falante, o homem já está na linguagem, sendo essa
uma condição para que ele fale. Já a especificidade ou concretude do
segundo axioma remete a uma materialidade que reflete na língua a
presença humana na linguagem, ou seja, o homem na linguagem se
apresenta na língua através da significância das formas linguísticas.
É justamente a significância o operador que, segundo Flores
(2017b), permite a Benveniste, em seus estudos, fazer a passagem
do axioma geral ao axioma específico: “A significância faz o axioma
geral o homem na linguagem operar no axioma específico o homem
na língua” (FLORES, 2017b, p. 14, itálicos do autor). São as formas
significantes da língua que possibilitam vislumbrar a presença humana
nela e, por conseguinte, na linguagem. Dentre as possibilidades
de abordagem dessas formas das quais Benveniste se ocupou
diretamente ou cuja pertinência sublinhou, Flores (2017b) cita as
categorias enunciativas de pessoa, não pessoa e tempo, os estudos
de léxico, cultura e sociedade, a semiologia da língua, a escrita e as
formas complexas do discurso.
SUMÁRIO
21
Os capítulos reunidos neste livro se inscrevem e se escrevem
nessa linha interpretativa do universo benvenistiano, centrada nas
proposições axiomáticas (o homem na linguagem/na língua) e no
princípio operacional (a significância) abordados por Flores (2017b).
Mais precisamente, como já antecipado, a obra que ora apresentamos
circunscreve-se a três eixos temáticos desse universo: as ideias de
Émile Benveniste sobre a enunciação, a sociedade e a semiologia.
Esses eixos não são independentes uns dos outros, entrecruzandose a todo momento, embora haja, em cada um, a predominância
de uma dessas três aberturas da teoria da linguagem benvenistiana
que têm interessado, nos últimos anos, os estudiosos que integram
a presente coletânea.
Tais pesquisadores do pensamento benvenistiano desenvolvem
seus estudos em distintas instituições do sul do país (UFRGS, UFPel,
UPF e UTFPR), estando todos ligados a programas de pós-graduação,
de modo que este livro é resultante de pesquisas afins e de grupos de
pesquisas em rede. A unidade do conjunto é perceptível não apenas
na divisão da obra em três partes, cada qual ligada a um eixo temático
(Parte I – A enunciação; Parte II – A sociedade; Parte 3 – A semiologia),
uma clivagem proposta inicialmente pelos organizadores aos autores
convidados, que poderiam escolher a parte em que desejassem inserir
seu capítulo. A referida unidade faz-se notar também numa segunda
clivagem, que surgiu posteriormente, quando, já com todos os capítulos
recebidos, percebemos que eles se reorganizaram, no interior de cada
parte, em dois grupos: um grupo de estudos intrateóricos e um grupo
de estudos teórico-analíticos.
O desenho original da obra, então, alterou-se, de forma que, além
da divisão maior em três partes, a configuração final do livro passou a
contar também com uma divisão menor, interna a cada parte. É assim
que vemos, de um lado, textos que apresentam proposições teóricas
originais, dissecando a intrincada rede conceitual benvenistiana (cf. os
SUMÁRIO
22
capítulos de Valdir do Nascimento Flores, Paula Ávila Nunes, Luiza Ely
Milano, Alena Ciulla e Elisa Marchioro Stumpf, na Parte I; os capítulos
de Fábio Aresi, Silvana Silva e Patrícia da Silva Valério, na Parte II; o
capítulo de Heloisa Monteiro Rosário, na Parte III) e, de outro lado,
textos que articulam teoria e empiria, atestando a fecundidade das
ideias benvenistianas e a potencialidade de deslocamento destas para
a investigação de variados fenômenos linguageiros (cf. os capítulos de
Carolina Knack, Carmem Luci da Costa Silva, Marlete Sandra Diedrich
e Giovane Fernandes Oliveira, na Parte I; o capítulo de Claudia Toldo,
na Parte II; o capítulo de Daiane Neumann, na parte III).
A despeito do eixo e do grupo em que se inserem, os capítulos
se esforçam para inovar na abordagem e nos métodos, apresentando
grande potencial de renovação para os estudos em torno do legado
de Émile Benveniste. Por isso, a coletânea que ora tornamos pública
destina-se a pesquisadores, docentes e especialistas do campo
benvenistiano e de campos afins. Contudo, em virtude da linguagem
acessível e do apreço que cada autor demonstra, em seu texto, para
com o leitor, cremos que o presente livro será de proveito também
para professores e alunos de graduação e pós-graduação que iniciam
suas incursões por tais campos, pois reúne todos os elementos para
aceder à condição de bibliografia de disciplinas e obra de referência
a pesquisas desenvolvidas em diferentes níveis (iniciação científica,
mestrado, doutorado).
Por fim, gostaríamos de registrar alguns agradecimentos. Ao
Prof. Dr. Valdir do Nascimento Flores, amigo e orientador, mestre e
mentor, a inspiração maior a todos nós que fazemos da pesquisa
em Benveniste, mais do que a opção teórica que se impõe a todo
estudioso, uma escolha de vida; obrigado, querido Valdir, por ter
contribuído, com sugestões e redirecionamentos, para a concepção
desta obra. À Dra. Patricia Bieging, diretora de planejamento da Editora
Pimenta Cultural, por ter acolhido nossa proposta e por sempre ser
SUMÁRIO
23
muito atenciosa nas interlocuções conosco. Às Profas. Dras. Daiane
Neumann e Silvana Silva, por terem partilhado conosco sua experiência
como organizadoras de coletâneas benvenistianas. A todos e cada
um dos autores que integram este livro, professores e pesquisadores
que muito nos inspiram e que nos honraram tanto com o aceite para
participar da presente obra quanto com os primorosos textos com os
quais contribuíram para ela. A todos, o nosso muito obrigado.
Giovane Fernandes Oliveira & Fábio Aresi
Canoas | Porto Alegre, junho de 2020
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SUMÁRIO
28
Parte 1
A ENUNCIAÇÃO
Parte
1
A ENUNCIAÇÃO
Capítulo 1
1
A CONDIÇÃO FIGURATIVA
NA ENUNCIAÇÃO (POR UMA
LINGUÍSTICA DOS SERES FALANTES)
Valdir do Nascimento Flores
Valdir do Nascimento Flores
A CONDIÇÃO
FIGURATIVA
NA ENUNCIAÇÃO
(POR UMA LINGUÍSTICA
DOS SERES FALANTES)
DOI: 10.31560/pimentacultural/2020.281.30-45
A FORMULAÇÃO DO PROBLEMA
O artigo “O aparelho formal da enunciação” (doravante, “O
aparelho”), publicado por Benveniste em 1970, é um daqueles
trabalhos emblemáticos aos quais sempre se volta seja em busca de
um esclarecimento, seja em busca de pontos de questionamento, seja
mesmo em busca de uma inspiração. E é, exatamente, a procura de
inspiração que nos faz voltar ao artigo seminal de Benveniste.
Não são poucos os trabalhos que o abordam tanto em
sua organização interna quanto em sua relação com o conjunto
do pensamento benvenistiano. A esse respeito, basta lembrar as
pesquisas de Ono (2007), Aresi (2012) e Flores (2013; 2019a), que
estudam aspectos históricos, teóricos e metodológicos do artigo.
Nossa perspectiva aqui, porém, vai em outra direção: tomamos
o “O aparelho” como pretexto para exercitar o “pensar”, no sentido
em que Meschonnic (1995, p. 17, tradução nossa) o utiliza a propósito
de Humboldt: “pensar Humboldt não é necessariamente se referir
a Humboldt”. É essa ideia que permite a Meschonnic (1995, p. 16,
tradução nossa) dizer que “se pode reconhecer aqui uma filiação
não expressamente reivindicada”. De que “filiação” fala Meschonnic?
Ora, para ele, é possível ver relações entre autores mesmo que não
se encontrem, nesses autores, referências mútuas explícitas. No
caso em questão, Meschonnic vê uma “filiação não expressamente
reivindicada” entre Humboldt, Saussure e Benveniste. Dito de outro
modo, a ausência de uma citação não impede ver que há problemas
instaurados que são da mesma ordem nesses autores. Eles podem,
portanto, ser “pensados” um em relação ao outro.
É esse “pensar” que nos autorizamos a trazer a partir de “O
aparelho”, especificamente relacionando Humboldt e Benveniste, e
isso pode ser colocado, aqui, nos seguintes termos.
SUMÁRIO
31
Humboldt, para desenvolver a sua antropologia filosófica (cf.
QUILLIEN, 2015), parte de uma discussão sobre o homem e, através dela,
encontra as línguas e, por essas, a linguagem: “a condição primeira da
compreensão da teoria humboldtiana da linguagem consiste, portanto,
na reconstrução do terreno arqueológico sobre o qual ela se constrói,
terreno filosófico, mais precisamente antropológico” (QUILLIEN, 2015,
p. 11, tradução nossa). Humboldt promove uma “redefinição do
conceito de homem por relação à língua” (CHABROLLE-CERRETINI,
2007, p. 35, itálico no original, tradução nossa). Ou ainda:
Na procura de uma compreensão da diversidade humana, que
era a finalidade de sua antropologia, Humboldt admitiu que é
a linguagem, esta faculdade universal que se especifica nas
línguas faladas por todos os indivíduos que povoam a terra,
que o conduzirá à caracterização dos homens. Convencido de
que a diversidade das línguas é o índice de uma diversidade
de pensamento, ele, finalmente, concebeu, entre 1801-1802,
a ideia de que, para circunscrever a diversidade humana, é
preciso apreender o conjunto dos desenvolvimentos possíveis
do espírito humano que a multiplicidade das línguas deixa
entrever (CHABROLLE-CERRETINI, 2007, p. 67, negritos
nossos, tradução nossa).
Nas palavras do próprio Humboldt: “a diversidade das línguas
é o tema a ser trabalhado por experiência e lado a lado com a história,
ou seja, em suas causas e seus efeitos, sua relação com a natureza,
com os destinos e objetivos da humanidade” (HUMBOLDT, 2006, p.
35). A diversidade das línguas pode ser observada como um fenômeno
histórico e ligado à diversidade humana.
Benveniste, para desenvolver sua teoria da linguagem, parte
de uma discussão sobre as línguas articulada à linguagem e, através
dessa discussão, encontra o homem. Isso se revela em todo o conjunto
de sua obra, não apenas em “O aparelho”. No “Prefácio” do primeiro
volume dos Problemas de linguística geral, Benveniste já anuncia:
SUMÁRIO
32
a reflexão sobre a linguagem só produz frutos quando se apoia,
primeiro sobre as línguas reais. O estudo desses organismos
empíricos, históricos, que são as línguas permanece o único
acesso possível à compreensão dos mecanismos gerais
e do funcionamento da linguagem (BENVENISTE, 1988,
“Prefácio”, s./p.).
Mais adiante, no mesmo “Prefácio”, ele dirá, se referindo à quinta
parte da obra: “‘O homem na linguagem’ é o título da parte seguinte; é
a marca do homem na linguagem, definida pelas formas linguísticas da
‘subjetividade’ e as categorias da pessoa, dos pronomes e do tempo”
(BENVENISTE, 1988, “Prefácio”, s./p., aspas do original). Dito de outro
modo, o homem se mostra constituído pela linguagem ao fazer uso
das formas linguísticas das línguas, no caso as categorias de pessoa
presentes em pronomes e verbos.
Indo-se dos homens às línguas (Humboldt) ou das línguas
aos homens (Benveniste), tanto faz, o fato é que se produz
uma antropologia da linguagem. Mas o que esses caminhos –
aparentemente antagônicos – podem, juntos, dar a ver, para além de
suas diferenças? Ou, em termos meschonniquianos: o que é possível
“pensar” sobre o sentido da linguagem e, consequentemente, sobre
o sentido da teoria da linguagem? Ora, que a base dessa antropologia
é o diálogo, ou a relação eu-tu, se se quiser. Quer dizer, antes de tudo,
há o diálogo; a relação eu-tu é o fundamento da linguagem: “É um
homem falando que encontramos no mundo, um homem falando com
outro homem, e a linguagem ensina a própria definição do homem”
(BENVENISTE, 1988, p. 285).
Esse fundamento da linguagem humana é colocado no centro
da reflexão de “O aparelho”, onde encontramos que “o que caracteriza
em geral a enunciação é acentuação da relação discursiva com o
parceiro” (BENVENISTE, 1989, p. 87, itálicos no original) e que essa
“característica coloca necessariamente o que se pode denominar o
quadro figurativo da enunciação” (BENVENISTE, 1989, p. 87, itálicos
SUMÁRIO
33
no original). São, na verdade, “duas ‘figuras’ igualmente necessárias,
uma, origem, a outra, fim da enunciação. É a estrutura do diálogo”
(BENVENISTE, 1989, p. 87, aspas e itálicos no original). E acrescenta:
“duas figuras na posição de parceiros são alternativamente
protagonistas da enunciação. Este quadro é dado necessariamente
com a definição da enunciação” (BENVENISTE, 1989, p. 87).
É exatamente com relação ao quadro figurativo que queremos
esboçar nossa discussão aqui porque, a partir dele, vemos se
apresentar uma fonte de inspiração para a abordagem de um tema que,
pensamos, não está integralmente contido na reflexão de Benveniste,
embora seja, pelo linguista, sugerida. Observe-se.
Benveniste, em “O aparelho”, produz um deslizamento de sentido
devido, primeiramente, ao uso de quadro figurativo e, posteriormente,
de condição figurativa.
O quadro figurativo, como apresentamos acima, é associado
à estrutura do diálogo e diz respeito a uma espécie de descrição
altamente generalizada da própria enunciação. A condição figurativa,
por sua vez, é uma expressão que Benveniste utiliza após avaliar
duas realidades linguísticas muito singulares: o hain-teny, uma
espécie de jogo praticado por Merinas em que há réplicas e tréplicas
de provérbios, e o monólogo, considerado um “diálogo interiorizado”.
Benveniste assim conclui sobre essas duas realidades: “essas
situações convocariam uma dupla descrição, de forma linguística e
de condição figurativa” (BENVENISTE, 1974, p. 86, tradução nossa4,
negritos nossos).
A essa observação, Benveniste acrescenta outra, sobre a
comunhão fática, estudada pelo antropólogo B. Malinowski:
4 Boa parte das vezes, usamos a versão brasileira dos Problemas de linguística geral;
no entanto, em algumas situações preferimos utilizar a versão francesa dos livros, com
tradução nossa. O sistema de referências indica cada um dos casos.
SUMÁRIO
34
Contenta-se demasiado facilmente em invocar a frequência e a
utilidade práticas da comunicação entre os indivíduos para admitir
a situação de diálogo como resultante de uma necessidade e
se dispensar de analisar as suas múltiplas variedades. Uma
delas se apresenta em uma condição social das mais banais na
aparência, mas das menos conhecidas de fato. B. Malinowski a
indicou sob o nome de comunhão fática, qualificando-a assim
como fenômeno psicossocial de funcionamento linguístico. Ele
traçou sua configuração partindo do papel que aí desempenha
a linguagem. Trata-se de um processo em que o discurso, sob a
forma de um diálogo, funda uma associação entre os indivíduos
(BENVENISTE, 1974, p. 86, itálicos no original, tradução nossa).
Benveniste, aqui, apresenta a comunhão fática como uma
das múltiplas variedades do diálogo e dá destaque ao fato de
Malinowski tê-la percebido como um fenômeno psicossocial com um
funcionamento linguístico.
É sabido de todos os que estudam Benveniste que, em “O
aparelho”, após essa passagem, segue uma longa citação de
Malinowski na qual o antropólogo analisa, de seu ponto de vista, a dita
comunhão fática. Na sequência, Benveniste conclui: “estamos aqui no
limite do ‘diálogo’. [...]. A análise formal desta troca linguística está por
se fazer” (BENVENISTE, 1989, p. 90, aspas no original).
Estão reunidos todos os elementos que motivam nossa
discussão aqui: se lemos bem Benveniste, é possível pensar que
o quadro figurativo da enunciação, entendido como estrutura do
diálogo, é propriamente a forma geral da enunciação. Nesse sentido,
é importante lembrar que o texto intitula-se “O aparelho formal da
enunciação”, logo o quadro figurativo faz parte dessa configuração
formal da enunciação. Decorre disso que a enunciação, para
Benveniste, supõe o diálogo. É a necessidade de colocar à prova essa
ideia que o leva a analisar o hain-teny, o monólogo e a comunhão fática.
Esses fenômenos parecem, sobretudo, permitir a Benveniste – mesmo
SUMÁRIO
35
que contrastivamente – apresentar a enunciação como diálogo5. No
entanto, a condição figurativa parece ter um outro estatuto: é algo que
acontece com o quadro figurativo, quer dizer, as figuras (protagonistas
da enunciação) assumem uma condição figurativa ao se enunciarem
no quadro figurativo. A descrição dessa condição comporia, juntamente
com a descrição da forma linguística (o quadro figurativo), uma dupla
descrição, o que permitiria analisar as múltiplas variedades do diálogo.
A julgar pelos exemplos dados por Benveniste – que, na verdade,
em sua argumentação, servem mesmo de contraexemplos –, a análise
da condição figurativa necessariamente leva a considerar o papel que
a língua (no caso, o discurso) desempenha quando vemos um homem
falando com outro homem. Dito de outro modo, não basta dizer que
o homem se marca na língua através das categorias da enunciação,
via ocupação dos lugares reservados para “eu” e “tu” no quadro
figurativo da enunciação: é preciso também ver como a língua – ao
desempenhar um papel que é, antes de tudo, social – determina esses
homens falantes.
Jogando um pouco com as palavras do próprio Benveniste:
não basta ver como o homem está na língua, é necessário também
ver como a língua está no homem. Ao estudo que visa essa segunda
possibilidade, chamamos de “Antropologia da enunciação” (cf.
FLORES, 2019b), o estudo de um saber do homem que advém do
fato de o homem falar. Esse estudo, por sua vez, pode se dar a partir
da análise de fenômenos que mostram a experiência do homem da
sua condição de falante: “os grandes fenômenos da linguagem [...],
quando vistos a partir da consideração da experiência que o falante
tem desses fenômenos, atestam o modo como a língua está presente
constitutivamente no homem” (FLORES, 2019b, p. 33).
5 Para uma discussão sobre enunciação e diálogo, ver o excelente trabalho de Martins (1990).
SUMÁRIO
36
Nos exemplos acima, tratados por Benveniste, é essa experiência
com a língua que dá ao quadro figurativo, aos protagonistas da
enunciação, a condição figurativa de jogadores, na disputa do hainteny, e de “mera” associação entre os indivíduos, na comunhão fática.
Nesse sentido, o estudo da condição figurativa seria necessariamente
atrelado ao estudo das línguas, da maneira como elas determinam os
seres falantes. E isso é autorizado pelo próprio Benveniste.
A DIVERSIDADE LINGUÍSTICA E A ENUNCIAÇÃO
Em “O aparelho”, Benveniste trata a diversidade linguística
de maneira resumida, uma vez que o próprio artigo é também muito
resumido, não excedendo, na versão francesa, dez páginas. Vemos,
porém, o assunto ser abordado no âmbito do que nomeia “línguas”, e,
muito especialmente, ao falar em “idioma”. Observe-se:
SUMÁRIO
a.
“Poder-se-ia mostrar pelas análises de sistemas temporais em
diversas línguas a posição central do presente” (BENVENISTE,
1989, p. 85, negrito nosso).
b.
“Haveria aí uma interessante tipologia dessas relações para
estabelecer; em algumas línguas ver-se-ia predominar o eu
ouvinte como substituto do locutor e se colocando por sua vez
como eu (francês, inglês), ou em outras, pondo-se como parceiro
de diálogo e empregando tu (alemão, russo)” (BENVENISTE,
1989, p. 88, itálicos no original, negrito nosso).
c.
“Os sons emitidos e percebidos, quer sejam estudados no
quadro de um idioma particular ou nas suas manifestações
gerais, como processo de aquisição, de difusão, de alteração –
são outras tantas ramificações da fonética – procedem sempre
de atos individuais” (BENVENISTE, 1989, p. 82, negrito nosso).
37
d.
“Tentaremos esboçar, no interior da língua, os caracteres formais
da enunciação a partir da manifestação individual que ela atualiza.
Estes caracteres são, uns necessários e permanentes, os outros
incidentais e ligados à particularidade do idioma escolhido. Por
comodidade, os dados utilizados aqui são tirados do português
[francês] usual e da língua da conversação” (BENVENISTE,
1989, p. 83, itálico no original, negrito nosso).
Em todas essas passagens, Benveniste, embora não desenvolva
o assunto, resguarda a especificidade das línguas em face do que está
propondo. Cada língua tem seus “sons”, seus “sistemas temporais”,
seus “caracteres formais da enunciação” etc. No entanto, ele não
chega a levar adiante sua discussão na direção que estamos tomando,
qual seja, a de ver como a experiência que os falantes têm com a
sua língua determina uma condição figurativa a esses falantes. Há uma
exceção, porém: a passagem de Malinowski. Voltemos a ela.
Vale a pena repetir uma pequena parte do anúncio que Benveniste faz da longa citação que virá do antropólogo: “É um processo
em que o discurso, sob a forma de um diálogo, funda uma associação
entre os indivíduos” (BENVENISTE, 1974, p. 86, tradução nossa). Quer
dizer, o papel que a língua desempenha ali funda – a palavra é fundamental aqui – uma condição de enunciação para as figuras.
Grosso modo, pelas características elencadas por Benveniste,
a comunhão fática tem o papel de associar enunciadores no
preenchimento de uma função social (o termo é de Malinowski). É isso
que é fundado aí.
Ora, não podemos negar que, desse ponto de vista, também
há uma “função social” no hain-teny; aliás, é inegável que, desde
que existam falantes, há função social. A questão, então, passa a
ser o que discurso, em uma dada língua, faz, quando as figuras o
enunciam, pois esse “fazer” parece determinar a condição figurativa
SUMÁRIO
38
dos protagonistas da enunciação. Na função fática, o discurso faz
com que os enunciadores se associem no preenchimento de uma
função, também no hain-teny a troca de provérbios faz com que os
enunciadores disputem6; eis uma função. Dito de outro modo, o que o
discurso faz com os falantes quando estes enunciam?
A CONDIÇÃO FIGURATIVA
OU A LÍNGUA NO HOMEM
A partir do que foi apresentado anteriormente, podemos
considerar que é possível pensar que “o que” se diz opera sobre
“quem” diz. Ou, ainda, se, em “O aparelho”, Benveniste parece
querer mostrar em que termos a enunciação se configura como
quadro formal de realização, nós, com base em uma argumentação,
digamos, paralela de “O aparelho”, queremos mostrar – de maneira
quase invertida à de Benveniste – como o discurso dá lugar à condição
figurativa dos falantes que ocupam o quadro figurativo.
Essa condição figurativa se traduz nas experiências do falante
de sua condição de falante – uma das múltiplas variedades do diálogo
– que podem, por sua vez, ser “captadas” quando o falante, em
um exercício metalinguístico natural, comenta essas experiências,
tomando-as em relação a si e ao outro no quadro figurativo.
Para entender melhor como acreditamos que essa “captação”
– uma análise de linguagem – é possível, precisamos nos deter na
citação de Malinowski, afinal Benveniste a toma como exemplar.
6 Observe-se que a análise que fazemos do hain-teny é bastante diferente da que faz
Benveniste. Isso não implica alguma crítica à análise benvenistiana. No contexto em
que Benveniste a desenvolve, ela é irretocável. Tivemos oportunidade de falar sobre
isso em Flores (2017).
SUMÁRIO
39
Para Malinowski, “o caso da linguagem empregada nas relações
sociais livres, sem objetivo, merece uma consideração especial”
(MALINOWSKI, 1923, p. 313 e ss., apud BENVENISTE, 1974, p. 87,
tradução nossa). Na análise do antropólogo, nesse caso, “estamos
frente a uma outra maneira de empregar a língua, com um outro
tipo de função de discurso” (MALINOWSKI, 1923, p. 313 e ss., apud
BENVENISTE, 1974, p. 87, tradução nossa). Trata-se de “um tipo de
discurso no qual os laços de união são criados por uma simples troca
de palavras” (MALINOWSKI, 1923, p. 313 e ss., apud BENVENISTE,
1974, p. 87, tradução nossa). Assim, esse uso não tem, aos olhos
de Malinowski, nem o papel de informar nem de “expressar” algum
pensamento; as palavras aí “desempenham uma função social e
esse é seu principal objetivo” (MALINOWSKI, 1923, p. 313 e ss., apud
BENVENISTE, 1974, p. 87, tradução nossa). Enfim, essa situação
“consiste em acontecimentos linguísticos. Cada enunciação é um ato
que visa diretamente a ligar o ouvinte ao locutor pelo laço de algum
sentimento, social ou outro” (MALINOWSKI, 1923, p. 313 e ss., apud
BENVENISTE, 1974, p. 87-88, tradução nossa). Trata-se de um modo de
ação que se dá pelas palavras, uma ação que coloca os protagonistas
da enunciação em posição de comungantes, sua condição figurativa
na comunhão fática.
Ora, a crença de Malinowski de que a comunhão fática merece
uma consideração especial se deve mais ao fato de ela não ter o
objetivo de informar ou de expressar um pensamento e mesmo assim
desempenhar uma função social do que ao fato de ela tão somente
desempenhar uma função social. Tudo indica que o discurso em geral
sempre tem uma função social; no entanto, no caso em exame, chama
atenção o fato de algo tão trivial preencher essa função. É isso que faz
Benveniste dizer, após a citação de Malinowski, que se trata de uma
relação pessoal criada, mantida, por uma forma convencional
de enunciação que se volta sobre si mesma, que se satisfaz em
sua realização, não comportando nem objeto, nem finalidade,
SUMÁRIO
40
nem mensagem, pura enunciação de palavras combinadas,
repetidas por cada um dos enunciadores (BENVENISTE, 1989,
p. 90, negrito nosso).
Essa função social que o discurso sempre desempenha é, para
nós, determinante da condição figurativa. Bem entendido, isso não está
em Benveniste, mas, cremos, pode ser derivado de sua argumentação.
É aí que vemos o “pensar” Benveniste a partir de Humboldt. Mais uma
vez, é Meschonnic quem melhor explica:
Se o discurso é a atividade, como diz Humboldt, de um
homem em vias de “falar” – “historicamente nós só temos
a ver com um homem em vias de falar” – implicando,
como Benveniste foi o primeiro a reconhecer e a analisar, a
inscrição gramatical daquele que diz eu em seu discurso, esta
enunciação não saberia se limitar a ser lógica ou ideológica.
Ela carrega consigo uma atividade do sujeito que, de sujeito
da enunciação, pode tornar-se uma subjetivação do contínuo
no contínuo do discurso, rítmico e prosódico (MESCHONNIC,
2010, p. xx, itálico no original).
A “inscrição gramatical” de que fala Meschonnic comparece em
“O aparelho”, segundo pensamos, de várias maneiras (aparelho formal
da língua, quadro formal de realização etc.). Tratamos aqui de uma,
a do quadro figurativo, o da estrutura do diálogo; mas há também a
“atividade do sujeito” que, para nós, comparece do lado da condição
figurativa. Aqui não se trata mais das marcas da língua, mas do que a
língua como discurso (como línguas, portanto) faz com esses sujeitos.
Ele lhes dá um lugar; executa uma função.
Assim, qualquer uso da língua possibilita o estabelecimento
de condições figurativas. E isso pode ser visto, por exemplo, nos
comentários que os falantes fazem de sua condição de falante (ou
da de outro). Quando o escritor português José Cardoso Pires inicia
a grande obra De profundis, Valsa Lenta – em que narra a perda de
memória de que fora acometido em função de um acidente vascular
cerebral – dizendo “Ainda hoje estou a ouvir aquele ‘é’. Espantoso
SUMÁRIO
41
como bruscamente meu eu se transformou ali noutro alguém, noutro
personagem menos imediato e menos concreto” (PIRES, 1998, p.
25, aspas e itálicos no original), não é de sua condição figurativa
na enunciação, de seu lugar no contínuo do discurso, que fala?
Observemos mais detidamente:
Nesta introdução à perda de identidade que um transtorno de
cérebro tinha acabado de desencadear, o que me parece desde
logo implacável e irreversível é a precisão com que em tão rápido
espaço de tempo fui desapossado das minhas relações com o
mundo e comigo próprio. Como se acabasse de dar início a um
processo de despersonalização, eu tinha-me transferido para
um sujeito na terceira pessoa (Ele, ou o meu nome, é) que ainda
por cima se tornava mais alheio e mais abstrato pela imprecisão
parece que (PIRES, 1998, p. 25, itálicos no original).
Se, nos exemplos tão corriqueiros como os trazidos por
Malinowski – frases de cortesia, perguntas sobre a saúde de alguém,
ou um simples cumprimento que seja –, vemos que o uso da língua
impõe, e mesmo exige, que os falantes assumam determinadas
condições figurativas em relação ao que está sendo dito, isso não seria
diferente em situações como a relatada pelo escritor português. Para
além (ou para aquém, tanto faz) do primor da escrita de Cardoso Pires,
há aqui uma evidente “tomada de consciência” dos termos pelos quais
um homem experiencia a sua condição de falante na relação com o
outro. Essa hermenêutica natural, produzida pelo falante a propósito
de sua condição de falante, é, para nós, índice importante da presença
da língua no homem, de como ela opera nele.
A situação a seguir pode ser outra, mas reencontramos,
aqui, também a necessidade de falar de si, ou do outro, em
relação à condição de falante. Leia-se o relato da escritora
argentina Sylvia Molloy:
Para simplificar, às vezes digo que sou trilíngue, que me criei
trilíngue, embora pensando bem a declaração complica
mais do que simplifica. Além do mais, não é de todo certa: a
SUMÁRIO
42
aquisição dos três idiomas não ocorreu de forma simultânea,
mas escalonada, e cada idioma passou a ocupar espaços
diferentes, colorindo-se de afetividades diversas, talvez
desencontradas. Primeiro falei espanhol, depois, aos três anos
e meio, meu pai começou a falar comigo em inglês. Também
quando eu tinha três anos e meio nasceu minha irmã: ao invés
de jogar os pratos pela janela, como o menino Goethe quando
nasce seu irmão Hermann Jakob, adquiri outra língua, que é
outra maneira de romper com o que é seguro. O francês veio
depois e não comemorou nenhum nascimento. Foi, antes, uma
recuperação (MOLLOY, 2018, p. 7).
Ora, bem entendido o que estamos propondo é que: seja no
jogo dos Merinas, no monólogo, na comunhão fática, na passagem de
“eu” a “ele” de Cardoso Pires, na vida entre línguas de Sylvia Molloy, o
fato é que dizer que o homem se marca na língua não é menos verdade
do que dizer que a língua o marca de alguma maneira. Quer dizer, não
é indiferente ao homem o fato de ele falar. Essa é sua condição.
Certamente, isso não está desconectado da constatação de
que há línguas. Quer dizer: são as línguas, os organismos empíricos
e históricos – ou, se se quiser manter os termos de Benveniste em “O
aparelho”, os idiomas – que os homens falam; nada do que dizem
independe do fato de que isso só existe porque encontra expressão
em uma dada língua. O próprio Benveniste assume a importância das
línguas ao contrapor o francês e o inglês, de um lado, ao alemão e o
russo, de outro, no estabelecimento das diferentes formas linguísticas
que o “eu” assume (como ouvinte ou como locutor) no monólogo.
É tempo, pois, de voltar a Humboldt para “pensar” Benveniste.
Dissemos acima que Humboldt e Benveniste se encontram –
mesmo que trilhando caminhos distintos – na visão antropológica da
linguagem, o que abre a teoria da linguagem a outras possibilidades.
Na interpretação que fazemos, isso significa minimizar a importância
do já tão desgastado estudo das marcas da enunciação no enunciado,
como consolidado no âmbito da linguística enunciativa, para enfocar
SUMÁRIO
43
a condição que faz do homo sapiens um homo sapiens loquendi, para
usar a linda formulação de Agamben (2008).
O deslizamento de Benveniste de quadro figurativo para
condição figurativa parece ser uma chave importante para que esse
antropológico dê um outro sentido à teoria da linguagem. Sempre
que o homem fala, a língua opera nele, está nele, concede-lhe uma
condição específica na relação com o(s) outro(s). Isso pode interessar
ao linguista na justa medida em que este, falante que é, percebe que
cada falante constantemente retorna sobre essa sua condição para
situar-se em relação ao outro e para situar o outro em relação a si. Um
estudo dessa natureza poderia voltar à célebre noção benvenistiana
de “pessoa” para reinterpretá-la no uso das línguas, e chegaríamos,
assim, a uma linguística dos seres falantes.
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Villeneuve d’Ascq: Presses Universitaires de Septentrion, 2015.
SUMÁRIO
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Capítulo 2
2
DOS UNIVERSOS AOS APARELHOS:
TRANSFORMAÇÕES DA
TEORIZAÇÃO BENVENISTEANA
Paula Ávila Nunes
Paula Ávila Nunes
DOS UNIVERSOS
AOS APARELHOS:
TRANSFORMAÇÕES
DA TEORIZAÇÃO
BENVENISTEANA
DOI: 10.31560/pimentacultural/2020.281.46-74
INTRODUÇÃO
O pequeno artigo O aparelho formal da enunciação (1970),
integrante da coletânea Problemas de Linguística Geral II, é muitas
vezes referido como um texto-síntese das teorizações de Benveniste.
Com efeito, vemos nele ecos de reflexões que remontam, curiosamente,
à década de 50, mesmo que, naquela época, cumprissem outra
função em sua obra. Visto por essa ótica, o texto, não restam dúvidas,
é mesmo um esforço por parte do autor para criar uma espécie de
compilação de suas formulações até aquele momento, num escrito
breve, mas extremamente complexo e, sobretudo, muito programático,
pois, se retoma algumas consolidações teóricas anteriores, segue, em
movimento análogo ao que faz em Semiologia da língua, à abertura da
Linguística para uma outra ordem de estudos da linguagem. O aparelho
formal da enunciação tem essa dupla característica, que apenas nas
mãos dos gênios pode se tornar aceitável e exequível: resume o que
fora elaborado teoricamente até então, ao mesmo tempo em que abre
grandes portas para teorizações futuras, que só poderão ser levadas
adiante pelos sucessores do linguista sírio. É um texto, portanto, de
retrospectiva e prospecção. Como bom saussuriano, Benveniste
também não escapa de sua epistemologia programática.
Há que se pontuar, entretanto, que, se Benveniste segue os
passos de seu mestre Saussure, de criação de uma construção teórica
inaugural e, portanto, ainda claudicante e lacunar, afasta-se muito do
genebrino ao publicar seus trabalhos e submetê-los paulatinamente à
crítica à medida que suas elucubrações avançam – como vemos, por
exemplo, na discussão em A forma e o sentido na linguagem (1966),
em que o linguista sublinha adotar um ponto de vista estritamente
pessoal. Benveniste nunca deixou de ter humildade intelectual, como
dá testemunho esse mesmo texto. Tampouco hesitou em compartilhar
com o público seus pensamentos em construção, como apenas os
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grandes pensadores têm a coragem de fazer, dedicando-se a um
empreendimento que, sabia ele, só poderia ser parado por motivos
de força maior. De fato, é o que acontece com o derradeiro AVC, em
1969, que lhe priva da capacidade de fala e da motricidade necessária
à escrita, mas não da arte de continuar problematizando, forma de
pensamento que o consagrou e singularizou dentro do campo dos
estudos da linguagem.
Considerando a cronologia exposta no volume Últimas aulas no
Collège de France, podemos intuir que O aparelho formal da enunciação,
publicado em março de 1970, já estava pronto quando Benveniste foi
acometido do trágico evento, em dezembro do ano anterior. Embora
saibamos, pelo testemunho de Georges Redard, o qual fecha o volume
das últimas aulas, que Benveniste, mesmo acamado e impossibilitado
de exprimir-se, continuou com suas faculdades mentais intactas e
pensando sobre “esse grande problema que é a linguagem”, é de se
notar que O aparelho formal da enunciação foi uma de suas últimas
publicações, ao lado de Estrutura da língua e estrutura da sociedade e
Dois modelos linguísticos de cidade, os três tornados públicos no ano
de 1970. Apenas o texto Para uma semântica da preposição alemã vor
é posterior (1972), mas certamente já estava também redigido quando
do acometimento do autor.
O que vemos em comum nos três textos publicados em 1970
é um esforço de Benveniste para articular língua e sociedade. Dois
modelos linguísticos da cidade, inclusive, parece levar a cabo, em
uma análise linguística no estilo característico e singular do autor, o
postulado do artigo Estrutura da língua e estrutura da sociedade,
segundo o qual “a língua é o interpretante da sociedade; e, em segundo
lugar, a língua contém a sociedade” (BENVENISTE, 1989, p. 97). Mas
O aparelho… é um tanto diferente. Trata-se de um texto particular nos
escritos benvenisteanos por, entre outras coisas, ser o primeiro e único
momento em que o linguista arrisca algum tipo de metodologia de
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análise disso que passou a chamar de enunciação. Tal como sua obra,
a empreitada de articular uma abordagem metodológica da enunciação
permanece inacabada, relegada a seus leitores e estudiosos. E isso,
como bem lembra Kristeva, em seu prefácio ao livro Últimas aulas no
Collège de France, não se dá apenas pela impossibilidade física de
Benveniste, mas metaforiza o cerne mesmo do ensinamento desse
homem que “fez da linguagem o caminho de uma vida” (KRISTEVA,
2014, p. 33). O inacabamento se dá
também num sentido absolutamente necessário, porque tal é
a experiência da linguagem que ele teorizou em um século em
que a diversidade de correntes de pensamento, multiplicando
as pistas e as interrogações tanto epistemológicas quanto
estéticas, impunham ao homem ancorado em seu tempo
que ele foi a recusa heraclitiana de “dizer”, de construir uma
“mensagem” fechada, encerrada, dada definitivamente em um
sistema acabado (KRISTEVA, 2014, p. 33-4).
Se a obra de Benveniste pode ser lida como um sistema, à moda
saussuriana, um organismo vivo, que vai se modificando à medida
que suas unidades vão também se transformando, o que temos em
O aparelho… não pode, embora seja um texto-síntese, ser exatamente
o mesmo que encontramos em seus artigos pregressos. Por isso,
este capítulo tem o objetivo de, dentro das inúmeras possibilidades
abertas pela leitura desse artigo que completa 50 anos, circunscrever
uma questão que só pode encontrar resposta na leitura diacrônica
da obra do sírio, qual seja: por que não vemos, em O aparelho…,
remissão às noções de semiótico e semântico, malgrado a referência,
em nota de rodapé, ao texto de 1969, Semiologia da língua, um dos
que mais teoriza sobre esses dois conceitos? Ora, se O aparelho… é
um texto que retoma muito das considerações do professor até aquele
momento, é no mínimo intrigante que seus conceitos mais difíceis de
serem explicados – e, no entanto, ou justamente por isso, os de maior
alcance, talvez a contribuição mais autoral de Benveniste à Linguística
– não tenham sido contemplados. É bem verdade que encontramos
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alusões a essa temática, como na referência à “semantização” da
língua. Contudo, em nenhuma das 10 páginas que compõem o texto,
na edição brasileira, encontramos propriamente o emprego dos termos
semiótico e semântico, como vinha sendo feito desde 1966, a partir do
texto A forma e o sentido na linguagem.
Frente a esse fato provocante, ensaio a seguinte resposta: a partir
de 1969, Benveniste parece abandonar a nomenclatura de semiótico
e semântico para investir nos processos de (auto)semiotização e
semantização da língua. A hipótese, que tento evidenciar aqui, é a de
que essa mudança de direção talvez seja fruto da instigante questão
que J.-C. Piguet lhe impõe no debate transcrito ao final do texto A forma
e o sentido na linguagem. Piguet pontua, acertadamente, seguindo os
ensinamentos do próprio Benveniste, que os domínios semiótico e
semântico, ao exigirem duas linguísticas distintas, como afirma o sírio,
exigem também dois aparelhos conceituais distintos, um global, para
o universo semântico, um analítico, para o semiótico. Nesta leitura,
proponho que o método analítico a que se refere Piguet foi proposto
por Benveniste no texto Os níveis da análise linguística. Mas esse
mesmo texto deixa um “resto”, de que Benveniste se ocupa em artigos
posteriores: a passagem da palavra7 à frase. Por mais que Benveniste
tenha se dedicado a discorrer sobre esse “hiato”, ele não lhe havia
dedicado atenção metodológica em termos de análise linguística,
numa forma espelhada, para o semântico, do que faz para o semiótico
n’Os níveis…. Se, em 1966, Benveniste responde à pergunta de Piguet
rotulando-a como “fortemente antecipadora”, não deixa também de
enfatizar que esse é um assunto cujas proposições “precisam ser
discutidas, precisadas, estendidas, circunscritas” (BENVENISTE,
7 Com efeito, Benveniste, em Semiologia da língua, não emprega mais o termo “palavra”,
e discorre sobre a passagem do signo à frase. Mantenho o emprego de “palavra” aqui
porque, no texto em questão, é Benveniste mesmo quem o faz: “para comodidade da
nossa análise, podemos negligenciar essa diferença [entre forma livre e forma conjunta]
e classificar os signos como uma só espécie, que coincidirá praticamente com a palavra.
Permitam-nos, sempre para a comodidade, conservar esse termo desacreditado – e
insubstituível” (BENVENISTE, 1995, p. 131, grifo no original).
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1995, p. 240). O momento da discussão do modelo global de análise
do domínio semântico se dá, portanto, ainda que de forma incipiente,
em O aparelho….
Para comprovar essa hipótese, proponho que leiamos o
texto em questão na sua diacronia com cinco outros artigos que lhe
antecederam: A natureza dos pronomes, de 1956; Da subjetividade na
linguagem, de 1958; Os níveis da análise linguística, de 1964; A forma
e o sentido na linguagem, de 1966; e Semiologia da língua, de 1969.
Considerando apenas os três últimos, a proximidade das datas já nos
deixa entrever que se trata de um momento mais ou menos específico
da elaboração teórica do linguista. A consideração desses quatro
textos (O aparelho… e os demais da década de 60) em conjunto,
ademais, é quase um caminho incontornável quando pensamos em
traçar uma leitura que nos leve ao entendimento dos conceitos de
semiótico e semântico. A remissão aos dois primeiros (da década de
50), entretanto – procedimento talvez um tanto inquietante para o leitor
não familiarizado com o autor –, se justifica pelo fato de que é nos
textos desse período, como é proposto adiante, que encontramos as
chaves de interpretação para o texto da década de 70.
O que me interessa aqui, com essa linha do tempo, é evidenciar
como O aparelho… é um ponto de chegada para um pensamento
que vinha sendo gestado desde, pelo menos, 14 anos antes de sua
publicação. Além disso, intento evidenciar que esse texto, que dá
corpo quase que às últimas palavras que Benveniste pode enunciar,
realiza aquilo que se mostra como um “resto” nos outros textos. Se
partirmos d’Os níveis…, veremos que há sempre algo que Benveniste
projeta para o futuro. O próprio O aparelho… termina dessa forma. O
que é de meu intuito mostrar aqui é, portanto, como esse “resto” se
materializa nos textos seguintes, culminando no texto de 1970, que
não só resume os precedentes, mas faz um acréscimo extremamente
importante, criando três conceitos (o aparelho formal da enunciação, o
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aparelho formal da língua e o aparelho linguístico da enunciação) que
não apenas não se recobrem, segundo leitura pessoal que faço de seu
texto, como lançam inovações teóricas importantes.
Este capítulo, portanto, segue esse raciocínio, tomando cada
um desses termos, nascidos, mas pouco teorizados, n’O aparelho…,
para, lendo-os na remissão às teorizações que os precederam, tentar
evidenciar que não há erro de emprego, por parte de Benveniste, ou
mesmo homologia conceitual nessa tríade. Trata-se, propriamente,
de um grande resumo, mas com acréscimos e, sobretudo, com forte
abertura para o futuro dos estudos em Enunciação, pois inaugura
propriamente isso que ficou conhecido como estudos enunciativos da
linguagem, que não existia, como tal, em sua obra até então.
O APARELHO FORMAL: RETOMADAS
E PROSPECÇÕES
Sigamos, pois, o texto d’O aparelho formal da enunciação
para encontrarmos as pistas sobre as transformações imprimidas
aos conceitos de semiótico e semântico, como anunciado
anteriormente. Benveniste inicia seu texto enfatizando que “todas as
nossas descrições linguísticas consagram um lugar frequentemente
importante ao ‘emprego das formas’” (BENVENISTE, 1989, p. 81). Ao
se referir às “nossas descrições linguísticas”, o conhecedor do trabalho
benvenisteano subentende que o autor não alude às suas próprias
descrições. Antes, parece se incluir na classe maior dos linguistas para,
a partir dessa posição, criticar o que era feito na época. Lembremos
que, nas décadas de 50 e 60, durante as quais o sírio desenvolve a
maior parte de suas reflexões, a linguística consagrada era aquela
dedicada à forma, seja pela exclusão expressa de qualquer sujeito
falante real, como no caso do distribucionalismo norte-americano, seja
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pela opção por um falante/ouvinte ideal, como aquele postulado pelo
programa gerativista, que, naquela época, já se consolidava no cenário
global dos estudos da linguagem.
Benveniste, é, no entanto, tributário de uma outra linha de
abordagem do fenômeno linguageiro. É por isso que, logo no
parágrafo seguinte ao de abertura, localiza sua contrariedade à
“linguística da forma”, sublinhando um de seus postulados mais
importantes e abrangentes:
as condições de emprego das formas não são, em nosso modo
de entender, idênticas às condições de emprego da língua. São,
em realidade, dois mundos diferentes, e pode ser útil insistir
nessa diferença, a qual implica uma outra maneira de ver as
mesmas coisas, uma outra maneira de as descrever e de as
interpretar (BENVENISTE, 1989, p. 81).
Essa citação é, parece-me, a chave para a compreensão
de todo o artigo em questão. Podemos lê-la numa espécie de
metonímia para o exercício empreendido ao longo de todo o texto:
ela retoma alguns postulados lançados desde A natureza dos
pronomes, ao mesmo tempo em que também anuncia que esses
conceitos configuram uma outra maneira de descrever e interpretar
os fenômenos linguísticos, o que ele formalizaria mais detidamente
em O aparelho…. Ou seja, essas ideias inauguram uma nova forma
de fazer linguística, que Benveniste irá perscrutar em seu ensaio.
Comecemos com a análise dessa retomada de algumas noções
desenvolvidas em textos anteriores.
O texto segue, no terceiro parágrafo, com a asserção de que “o
emprego das formas, parte necessária de toda descrição, tem dado
lugar a um grande número de modelos” (BENVENISTE, 1989, p. 81-2,
grifos meus). Observe-se que Benveniste enfatiza que toda a linguística,
inclusive a que ele inaugura, precisa resolver-se com o emprego das
formas, pois essa é uma etapa necessária à toda descrição. Com
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efeito, é o que o linguista leva a cabo, mais verticalmente, em seu texto
de 1964, Os níveis da análise linguística. Nele, o autor propõe mais
um modelo de análise, entre tantos a que alude no texto de 1970. A
inovação capital do artigo de 1964 reside no fato de que, ao analisar
a forma, Benveniste não apenas não a dissocia do sentido, tal como
era de praxe na linguística, como ainda é categórico: “forma e sentido
devem definir-se um pelo outro e devem articular-se juntos em toda a
extensão da língua” (BENVENISTE, 1995, p. 135).
A questão é que o modelo de Benveniste, de integração e
distribuição, das quais se derivam o sentido e a forma, respectivamente,
impõe limites inferiores e superiores. É no limite superior que Benveniste
encontra, naquele momento, um problema, que não faz mais do que
anunciar: “esse é o último nível que a nossa análise atinge, o da frase,
de que dissemos acima que não representava simplesmente um
degrau a mais na extensão do segmento considerado. Com a frase,
transpomos um limite, entramos num novo domínio” (BENVENISTE,
1995, p. 137). Que domínio seria esse? Benveniste mesmo responde:
“concluímos que se deixa com a frase o domínio da língua como sistema
de signos e se entra num outro universo, o da língua como instrumento
de comunicação, cuja expressão é o discurso” (BENVENISTE, 1995, p.
139). A isso, ainda acrescenta: “eis aí verdadeiramente dois universos
diferentes, embora abarquem a mesma realidade, e possibilitem
duas linguísticas diferentes, embora seus caminhos se cruzem a todo
instante” (BENVENISTE, 1995, p. 139).
Observemos alguns usos lexicais de Benveniste. No texto
de 1964, ele não havia teorizado ainda um nome para esses dois
domínios, que, em 1966, no texto A forma e o sentido na linguagem,
são batizados de semiótico, para o domínio intrassistêmico da língua
como sistema de signos, e de semântico, para a língua em emprego.
Mas ele já os anunciava nos mesmos termos: universos, domínios,
linguísticas diferentes. Benveniste coloca o sistema semiótico na base
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do sistema semântico, da mesma forma como abre o texto O aparelho
formal da enunciação enfatizando que o emprego das formas é parte
necessária de toda a descrição linguística. Ora, é necessária porque,
“na base, há o sistema semiótico” (BENVENISTE, 1989, p. 233), sobre
o qual se assenta o semântico, e porque os dois domínios se cruzam
o tempo todo, “se superpõem assim na língua tal como a utilizamos”
(BENVENISTE, 1989, p. 233).
Em Os níveis…, Benveniste trata de estabelecer princípios
que balizem a análise disso que veio a ser conhecido como domínio
semiótico, ainda sem ser nomeado dessa maneira. Em A forma e o
sentido…, o linguista passa a teorizar sobre as especificidades de cada
domínio. Em Semiologia…, recorre a outros sistemas de signos para
postular que esses dois universos de significação são tão essenciais
para o funcionamento específico das línguas humanas que não há
qualquer outro sistema semiológico que opere da mesma forma. Se
“única é a condição do homem na linguagem” (BENVENISTE, 1995, p.
287) é porque, antes de tudo, única é a condição da linguagem frente
a outros sistemas de signos.
Em O aparelho…, temos, finamente, algumas palavras de
Benveniste sobre a passagem de um domínio a outro, que se dá pela
apropriação, por parte do falante, da língua toda, conforme comento
na próxima seção. Essa descrição pormenorizada de Benveniste só é
possível porque, em momento anterior, ele se dedicou a uma extensa
investigação e teorização sobre o domínio semiótico, e, inclusive – é
imperativo que se observe –, sobre uma classe especial de signos
dentro desse universo, aqueles que são literalmente promovidos à
existência na e pela enunciação. Tais ideias, o leitor benvenisteano
deve lembrar, vêm desde textos da década de 50, como os célebres
A natureza dos pronomes (1956) e Da subjetividade na linguagem
(1958), dos quais vemos inúmeros reflexos em O aparelho…. A partir
desses artigos, o linguista evidencia que a organização semiótica da
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língua humana é tal que permite o exercício mesmo da subjetividade:
“a linguagem está de tal forma organizada que permite cada locutor
apropriar-se da língua toda designando-se como eu. Os pronomes
pessoais [e todos os signos “móveis”] são o primeiro ponto de apoio
para essa revelação da subjetividade na linguagem” (BENVENISTE,
1995, p. 288, grifos no original). Em outras palavras, sem a organização
semiótica específica da língua, sem o sistema de base, no qual se
encontram determinados signos de caráter especial, a que Benveniste
chamou de “vazios” ou “móveis” no texto de 1956, o domínio semântico
não poderia existir, pois não encontraria os pontos de ancoragem (o
“sistema de referências internas”, como ele chamou no mesmo texto)
necessários à sua existência.
Com efeito, boa parte das teorizações que o sírio empreende a
partir de A natureza… tem como propósito descrever as condições do
domínio semiótico que permitem a emergência do domínio semântico.
É o próprio Benveniste quem nos autoriza essa leitura, pois, já em
1956, alertava para os fenômenos que só iria nomear posteriormente:
“o hábito nos torna facilmente insensíveis a essa diferença profunda
entre a linguagem como sistema de signos e a linguagem assumida
como exercício pelo indivíduo” (BENVENISTE, 1995, p. 281). Vemos,
claramente, que o texto de 1970 não abandona em uma só linha
os postulados de seu artigo de 14 anos antes. Ao contrário, o que
Benveniste faz é tratar, nos anos seguintes, de nomear com maior rigor
e distinção aquilo que apenas anunciava no texto de 1956.
O ato de nomear, para enfatizar a distinção entre os dois
universos de significância, torna claro que Benveniste enxergava os
limites da linguística descritiva e do próprio modelo que propusera em
Os níveis… Restava, portanto, aliar aquilo que ele já havia descrito
sobre o domínio semiótico para estabelecer um novo modelo, dessa
vez um que desse conta desse “resto” que ficara pendente desde
1964, qual seja, tudo aquilo que está além do limite da frase. A esse
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“além” e às condições de sua possibilidade, Benveniste dá o nome de
enunciação, que, bem entendido, não equivale ao universo semântico.
A enunciação é precisamente a articulação, feita pelo locutor, entre
os planos semiótico e semântico. Isso é textual n’O aparelho…: a
enunciação deve ser considerada “como o fato do locutor, que toma
a língua [plano semiótico] por instrumento [plano semântico], e nos
caracteres linguísticos que marcam esta relação” (BENVENISTE, 1989,
p. 82). Ainda: a questão “é ver como o ‘sentido’ [semiótico] se forma
em ‘palavras’ [semântico]” (BENVENISTE, 1989, p. 83).
Se “há para a língua duas maneiras de ser língua no sentido e
na forma” (BENVENISTE, 1989, p. 229), é preciso entender o caminho
que Benveniste percorre. Primeiramente, ele descreve, desde a
década de 50, como é o sentido e a forma no plano semiótico. A partir
disso, pensa no limite que se atinge com esse modelo (saussuriano),
para o qual propõe, em 1969, a célebre ultrapassagem. A teorização
sobre a forma e o sentido do plano semântico, um “resto” que sobra
e que não é mais do que anunciado n’Os níveis…, é feita em A forma
e o sentido… e em Semiologia…. O que “resta” ainda a ser feito? O
que “resta” para O aparelho…? Justamente fazer a articulação entre
os dois domínios.
Benveniste, ao postular a ideia de aparelho formal, não está
descrevendo nenhum dos dois universos de significância em particular.
Antes, está olhando para uma terceira coisa: a articulação entre os dois,
ou, se quisermos, a passagem, feita pelo locutor, do plano semiótico
para o plano semântico. É essa passagem – a qual, como bem lembra
o sírio, não é apenas uma mudança de nível, mas de dimensão – que
está no centro das investigações em O aparelho… Mais uma vez,
Benveniste é explícito (faço inserções entre colchetes apenas para
tornar mais claro o ponto de vista defendido aqui): “é a semantização
da língua [ou seja, a passagem do semiótico ao semântico] que está
no centro deste aspecto da enunciação, e ela conduz à teoria do signo
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[saussuriana, intrassistêmica, que ele denominou de semiótico] e
à análise da significância [que ele mesmo propõe e que chama de
semântico]” (BENVENISTE, 1989, p. 83).
Fica claro, portanto, que é justo chamar O aparelho… de
texto-síntese, mas apenas se entendermos “síntese” no sentido de
uma dialética8 específica: no texto de 1970, a “síntese” proposta por
Benveniste é a junção de duas linguísticas, assentadas sobre dois
universos distintos. O que Benveniste propõe, em última análise, é a
“síntese” (o estudo da enunciação) da “tese” (linguística do emprego
das formas) com a “antítese” (linguística do emprego da língua). É
isso que ele nomeou como enunciação. Portanto, embora o linguista
acreditasse que seriam necessárias duas linguísticas para levar a
cabo esse empreendimento, seu gesto mesmo nos mostra que o que
ele faz é instituir uma terceira linguística, uma espécie de caminho
intermediário, que articula essas duas.
Este é, com efeito, o grande vórtice em torno do qual giram, n’O
aparelho…, retrospectiva e prospecção, movimentos tão frequentes na
obra benvenistiana. A genialidade do mestre se encontra, porém, no
fato de que o texto de 1970 já estava abstratamente concebido por ele
muito tempo antes, mesmo que ainda não tivesse sido sistematizado.
Em última instância, é por essa razão que concebo a escrita d’O
aparelho… como uma retrospectiva que remonta a um tempo tão
anterior quanto a década de 50, mas também, e talvez ainda mais
evidentemente, como uma resposta à questão interposta por JeanClaude Piguet em 1966. Pergunta o filósofo a Benveniste:
a semântica pressuporia um método global de apreensão
do sentido. Por oposição, o método ou a direção do
espírito requerido pela semiótica seria de composição
8 Benveniste, aliás, parece ser adepto dessa ideia, ao postular que “é numa realidade
dialética que englobe os dois termos [eu e tu] e os defina pela relação mútua que se
descobre o fundamento linguístico da subjetividade” (1995, p. 287). É a essa mesma
dialética que estou me referindo neste texto.
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ou de decomposição, portanto analítico e não global.
(…) Como estes dois métodos se reúnem no interior da
linguística? Como a semiótica e a semântica podem coexistir
metodologicamente, se uma é do tipo analítico e a outra de
tipo global não-analítico? Qual deve ser, então, finalmente
o método fundamental que orienta a linguística em seu
conjunto? (BENVENISTE, 1989, p. 240).
Observe-se que a indagação de Piguet, como talvez seja
próprio a um filósofo, é sobre como justamente fazer a síntese de
dois elementos antitéticos. Benveniste responde com o que tinha até
aquele momento: “concebo então duas linguísticas distintas. Esta é, no
estágio presente de estudos, uma fase necessária desta reconstrução
que somente começamos a empreender” (1989, p. 240, grifos
meus). Benveniste sabia que sua ideia de duas linguísticas distintas
era uma etapa necessária para o empreendimento de unificá-las. A
Linguística da Enunciação não é, portanto, a linguística do semântico,
mas a linguística que resulta da união entre as duas linguísticas que
Benveniste separou, para fins didáticos, para depois articulá-las em
uma terceira abordagem:
no estágio presente, é necessário elaborar métodos e
conjuntos conceptuais distintos, estritamente apropriados
a seu objeto. Acho totalmente e altamente vantajoso, para
clarificação das noções pelas quais nos interessamos,
que se avance por linguísticas diferentes, se elas devem,
separadas, conquistar cada uma maior rigor, deixando para
ver em seguida como elas podem se juntar e se articular
(BENVENISTE, 1989, p. 240, grifos meus).
Como é próprio aos sábios, Benveniste apenas antecipa, com
prudência, uma possibilidade. Ele demora quatro anos, mas responde
Piguet. A resposta, que une o método analítico ao global, que junta e
articula os dois universos de significação e as duas linguísticas que,
até então, eram concebidas separadamente, é redigida em O aparelho
formal da enunciação.
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APARELHO, APARELHOS
Instituída a leitura de O aparelho… como um gesto simultâneo
de retomada e prospecção na obra de Benveniste, passemos então à
questão lançada no início deste capítulo: por que, ao fazer a síntese
de seu pensamento, elaborado, até então, em mais de 2 décadas,
Benveniste não utiliza mais os termos semiótico e semântico, que
empregava até o ano anterior, e por quais novos termos esses conceitos
são substituídos?
Para responder essas indagações, é necessário, inicialmente,
observar uma particularidade que pode, por vezes, passar imperceptível
para o leitor desatento ou estudioso iniciante dos textos do autor:
embora Benveniste intitule o artigo como O aparelho formal da
enunciação, esse sintagma não aparece, dessa forma, em nenhuma
linha do texto em si. Entretanto, observamos o emprego de três outros
termos, todos igualmente hápax legomena, os quais parecem fazer
concorrência àquele que o linguista toma como título: aparelho formal
da língua, à página 84; aparelho linguístico da enunciação, à página
88; e quadro figurativo, à página 87, com uma variação para quadro
formal, na última página. A hipótese que gostaria de perseguir é a de
que tais termos não foram aleatoriamente empregados pelo autor,
embora haja, como sabemos, certa frouxidão terminológica em sua
obra. Antes, sustento a possibilidade de que cada um desses termos
remete a uma noção específica da teorização do sírio, que amplia ou
sistematiza conceitos anteriormente operativos em sua obra. Vejamos
cada um desses casos.
Inicialmente, observemos que as definições de semiótico
e semântico, no escopo da obra em pauta, referem-se a domínios,
universos de significância. São abstrações descritivas para uma
idealização didática do funcionamento linguístico. No entanto, como
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Benveniste deixa claro no início d’O aparelho…, se a enunciação,
entendida como um “colocar a língua em funcionamento” é, ao
mesmo tempo, ato e processo, observa-se que o autor não está mais,
como mencionado, descrevendo os domínios semiótico e semântico
enquanto tais. Sua investigação recai sobre a passagem de um para
outro. Observemos bem os termos: funcionamento, ato, processo,
conversão, semantização. Todos esses substantivos remetem a uma
ideia de movimento, de algo vivo. A descrição dos planos semiótico e
semântico, ao contrário, assentava-se sobre a “estaticidade” desses
dois domínios. Não estava em jogo esse processo de que Benveniste
se ocupa no texto de 1970. Portanto, não só o objetivo do artigo é
outro, como também o é seu objeto, o que exige um quadro conceitual
diferenciado, original.
Assim, a própria noção de “aparelho” é, salvo engano, um
ineditismo no texto benvenisteano. Considerando as ocorrências e
o contexto textual e epistemológico em que se inserem, parece ser
perfeitamente admissível que o termo tenha sido tomado emprestado
da anatomia geral, campo em que “aparelho” se refere a um conjunto de
sistemas, ou ainda, a um conjunto de órgãos ou partes que concorrem
para uma mesma função. Se a leitura que proponho estiver correta,
temos que cada emprego de “aparelho” no artigo em pauta se refere
tanto a um sistema específico quanto a uma função desempenhada
por esse sistema. Sigamos de perto cada uma das ocorrências,
iniciando, por motivos de clareza didática que se darão a ver a seguir,
pelo emprego de “aparelho formal da língua”.
À página 84, lemos: “o locutor se apropria do aparelho formal
da língua e enuncia sua posição de locutor por meio de índices
específicos, de um lado, e por meio de procedimentos acessórios,
de outro”. Se lembrarmos bem dos dois textos já mencionados, A
natureza dos pronomes e Da subjetividade na linguagem, vemos
que a ideia de apropriação já estava lá anunciada exatamente com
SUMÁRIO
61
esse mesmo substantivo, porém em sua forma verbal. No primeiro,
temos que “quando o indivíduo se apropria dela, a linguagem se
torna em instâncias de discurso, caracterizadas por esse sistema
de referências internas cuja chave é eu, e que define o indivíduo
pela construção linguística particular de que ele se serve quando
se enuncia como locutor” (BENVENISTE, 1995, p. 281, grifo no
original). No segundo, somos lembrados de que “a linguagem está
de tal forma organizada que permite a cada locutor apropriar-se da
língua toda designando-se como eu (BENVENISTE, 1995, p. 288,
grifos no original). Analisemos a proposição do texto de 1970 à luz
da remissão a esses dois outros textos.
As semelhanças entre os postulados transcritos nesses três
excertos são inquestionáveis. No entanto, mais de uma década os
separam. Em Da subjetividade…, Benveniste afirma que o locutor se
apropria da língua toda. Portanto, no texto de 1970, quando lemos que
o locutor se apropria do aparelho formal da língua, é possível entender
que isso a que Benveniste chama de aparelho formal da língua (não
da enunciação, bem entendido) é propriamente a língua inteira como
sistema de signos, isto é, a língua em seu domínio semiótico. Mas por
que, em 1956, o locutor se apropriava da linguagem, em 1958, da língua
toda, e em 1970 do aparelho formal da língua? Porque o que separa
esses textos é justamente a teorização do linguista sobre a forma e o
sentido na linguagem nos dois universos de significância. Lembremos
que, na década de 50, essa formalização não existia. Benveniste usa,
então, termos “comuns” para se referir a isso que veio a ser conhecido
como domínio semiótico.
Além disso, se tomarmos a ideia de “aparelho” conforme
indicado anteriormente, no sentido da anatomia, temos que o aparelho
formal da língua, ou seja, em minha leitura, o domínio semiótico, deve se
referir a um sistema e desempenhar uma função. Na verdade, a noção
de “aparelho”, no sintagma “aparelho formal da língua”, engloba dois
SUMÁRIO
62
sistemas, possibilidade que já prevíamos: o sistema da língua como um
todo, isto é, o plano semiótico, e o sistema particular que existe dentro
desse sistema mais geral, isto é, o sistema composto pelos signos
“móveis” ou “vazios”, conforme nomenclatura empregada no texto de
1956, configurando uma classe que não é unitária, mas composta por
signos de “espécies diferentes segundo o modo de linguagem9 do
qual são signos” (BENVENISTE, 1995, p. 277). Os índices de ostensão,
os pontos de apoio da subjetividade, os indicadores de dêixis, os
criadores do centro de referência interna são todas formas de alusão a
esse subsistema específico, a essa classe especial de signos, dentro
do plano semiótico geral da língua.
Quando Benveniste postula que o locutor se enuncia por meio
de “índices específicos, de um lado”, é a esse conjunto específico
de signos que parece aludir, aqueles que se prendem “ao próprio
rocessos da enunciação linguística” (BENVENISTE, 1995, p. 278) e
referem-se “unicamente [a] uma ‘realidade de discurso’, que é coisa
muito singular” (BENVENISTE, 1995, p. 278). Com efeito, é a esse grupo
que Benveniste se refere na mesma página quando cita os índices
específicos. Segue ele: “a presença do locutor em sua enunciação faz
com que cada instância de discurso constitua um centro de referência
interno. Esta situação vai se manifestar por um jogo de formas
específicas cuja função é de colocar o locutor em relação constante e
necessária com sua enunciação” (BENVENISTE, 1989, p. 84).
É interessante observar, no entanto, que, mais para o final do
texto, ao discutir os limites do diálogo e a condição do monólogo,
modalidade em que o que está em jogo diz respeito justamente à
possibilidade do “ego” de “se divid[ir] em dois, ou assumi[ir] dois
9 Registre-se que a expressão “modo de linguagem” pode muito bem ser um termo
“comum” para referência aos domínios semiótico e semântico, ou, para usar os termos
d’O aparelho, para as condições de emprego das formas e as condições de emprego
da língua. Se assim for, isso corroboraria minha hipótese de que, em A natureza dos
pronomes, já temos a proposta final que veremos em O aparelho formal da enunciação,
porém com emprego bem menos rigoroso de terminologia específica.
SUMÁRIO
63
papeis”, Benveniste atribui essa possibilidade ao que ele chama de
“aparelho linguístico da enunciação, sui-reflexivo, que compreende um
jogo de oposições do pronome e do antônimo” (1989, p. 88). Não restam
dúvidas de que Benveniste, ao empregar o termo “sui-reflexivo”, o faz
da mesma forma que afirma que “o tempo linguístico é sui-referencial”
(BENVENISTE, 1995, p. 289, grifo no original), isto é, só pode referirse à instância de discurso, ao tempo em que se fala. Ora, sabemos
que, para Benveniste, não só o tempo é sui-referencial e promovido à
existência pelo discurso, isto é, pela enunciação como ato individual
e circunstanciado num aqui e agora. Isso vale também para todo
“esse sistema de referências internas cuja chave é eu” (BENVENISTE,
1995, p. 281, grifo no original). Portanto, não parece absurdo postular
que isso a que Benveniste chama, em 1970, de aparelho linguístico
da enunciação equivalha a esse conjunto específico de signos, um
grupo particular no conjunto maior dos signos da língua, este último
anteriormente denominado de semiótico. Em outras palavras, o
aparelho formal da língua refere-se à língua como sistema de signos,
ou seja, ao domínio semiótico. “Dentro” dele, temos um aparelho
linguístico da enunciação, que rotula esse grupo de signos que só
encontram realidade na instância de discurso em que são proferidos.
Restaria indagarmos: por que Benveniste chama o primeiro
de “aparelho de formas”, ao passo que o segundo é intitulado como
“aparelho linguístico”? Mais, ainda: por que o primeiro é da língua e
o segundo, da enunciação? Para a primeira questão, responderia: os
signos que compõem o aparelho linguístico não são considerados
como formais porque, lembrando o texto Os níveis da análise linguística,
não podem ser decompostos da mesma maneira que outros signos
da língua, tampouco substituídos, condição esta (ser substituível
e distribuível ao mesmo tempo) necessária para delimitação das
unidades linguísticas: “os elementos identificam-se em função de
outros segmentos com os quais estão em relação de capacidade
de substituição” (BENVENISTE, 1995, p. 128). Ora, se o sentido, isto
SUMÁRIO
64
é, a capacidade de se integrar um nível superior, na concepção que
Benveniste propõe em Os níveis…, “é de fato a condição fundamental
que todas as unidades de todos os níveis devem preencher para obter
status linguístico” (BENVENISTE, 1995, p. 130), como considerar essa
classe de signos “vazios”, “móveis”, que são promovidos à existência
somente na e pela enunciação? Decerto, eles são signos da língua, mas
não podem ser integrados em um nível superior da mesma maneira que
os outros signos: “desprovidos de referência material, não podem ser
mal empregados; não afirmando nada, não são submetidos à condição
de verdade e escapam a toda negação” (BENVENISTE, 1995, p. 280).
Analogamente, não podem ser decompostos em segmentos menores,
de nível inferior, o que nos daria sua forma: “estamos na presença
de uma classe de palavras […] que escapam ao status de todos os
outros signos da linguagem” (BENVENISTE, 1995, p. 288). Portanto,
Benveniste parece ser cuidadoso ao manter esses signos dentro do
que chamou de um aparelho formal, mas nomeou-os dentro de uma
categoria em que a forma não é o aspecto preponderante.
O que é preponderante, pois, para a definição desses signos?
Justamente o complemento que o linguista dá ao aparelho linguístico:
eles são signos da língua, evidentemente, mas seu aspecto distintivo
não se dá por integração e distribuição, como para os outros signos.
Seu aspecto distintivo se dá pelo fato de que são signos da enunciação,
isto é, nascem e só têm existência na e pela enunciação, entendida
como “o ato mesmo de produzir um enunciado” (BENVENISTE,
1989, p. 82). Em vez de serem definidos por sua forma, portanto, são
definidos por sua função, tal como se espera em um aparelho: “o seu
papel [dos signos “vazios”] consiste em fornecer o instrumento de
uma conversão, a que se pode chamar a conversão da linguagem em
discurso” (BENVENISTE, 1995, p. 280).
Entendida a ideia de sistema, que justificaria o emprego de
“aparelho” por parte do linguista, é necessário ainda preencher
SUMÁRIO
65
mais um requisito: qual a função a que concorrem as partes desse
sistema? Sobre o aparelho formal da língua, que aqui entendo como
equivalente ao domínio semiótico, já sabemos: ele serve de base para
o domínio semântico, conforme Benveniste nos ensina em A forma e o
sentido na linguagem. Ou seja, a função do aparelho formal da língua
é permitir que a língua-discurso construa uma semântica própria,
conforme ainda o texto de 1966. E quanto à função do aparelho
linguístico da enunciação? Benveniste nos é mais gentil, fornecendo,
ele mesmo, a resposta no próprio artigo: “a presença do locutor em
sua enunciação faz com que cada instância de discurso constitua
um centro de referência interno. Esta situação vai se manifestar por
um jogo de formas cuja função é de colocar o locutor em relação
constante e necessária com sua enunciação” (BENVENISTE, 1989, p.
84, grifos meus). Ou seja, o aparelho linguístico da enunciação tem,
essencialmente, duas funções: estabelecer um centro de referência
interno, a partir dos signos do paradigma do eu, e colocar o locutor
em relação com seu próprio dizer, como uma espécie de ponto de
ancoragem da subjetividade, permitindo-lhe ocupar a posição de eu e,
com isso, fazer a conversão da possibilidade de língua10 em discurso
pela apropriação do aparelho formal da língua.
Resta-nos, agora, dar conta propriamente do título do texto
em questão. O que é o aparelho formal da enunciação, que não
só intitula o artigo, mas que deveria, idealmente, ser o objeto de
definição desse texto? Se minha interpretação até aqui estiver
correta, poderíamos inferir que o aparelho formal da enunciação
é o conjunto de formas que resultam da enunciação, mas que não
equivale aos índices de ostensão, posto que estes, como citado,
não constituem forma. Dito de outra maneira, os índices de ostensão
permitem a enunciação, uma vez que são os pontos de apoio para o
exercício da subjetividade. Em contrapartida, o aparelho formal da
10 Lemos, n’O aparelho formal da enunciação, que “antes da enunciação, a língua não é
senão possibilidade da língua” (p. 83).
SUMÁRIO
66
enunciação é aquilo que se produz a partir da apropriação desses
dois outros aparelhos. Ou seja, o aparelho formal da enunciação é
um efeito da apropriação que o locutor faz da língua, nos moldes
como Flores (2013) entende que o sujeito da enunciação é um efeito
semântico que advém da sintaxe da enunciação.
Indo mais além, diria que o aparelho formal da enunciação, que
Benveniste se esforça por definir no artigo homônimo, é aquilo que
resulta do que o sírio chama de “procedimentos acessórios”. Se os
índices específicos são aqueles que pertencem ao quadro da língua,
os procedimentos acessórios dizem respeito à forma específica como
o locutor se apropria do aparelho formal da língua toda, mas que
extrapola esses índices específicos. Dito ainda de outra maneira, é
como o locutor faz com que o sentido se forme em palavras, ou seja,
é como o locutor produz a semantização da língua. É por isso que
Benveniste intitula seu artigo da forma como o faz, sem nunca retomar
a terminologia. O autor trata de evidenciar que existem outros dois
aparelhos, mas o ato, ou o processo, de colocá-los em funcionamento,
resulta em um efeito, em um terceiro aparelho, que só é possível pela
arquitetura particular que estabelece em relação aos outros dois. A
isso, nomeou de aparelho formal da enunciação, o conjunto formal do
arranjo linguístico produzido pelo locutor.
Se assim for, é necessário entender a função que esse sistema
desempenha. Novamente, o próprio linguista trata de nos informar:
“além das formas que comanda, a enunciação fornece as condições
necessárias às grandes funções sintáticas. Desde o momento em
que o enunciador se serve da língua para influenciar de algum modo
o comportamento do alocutário, ele dispõe para este fim de um
aparelho de funções” (BENVENISTE, 1989, p. 86). A interpretação
parece clara: a enunciação comanda algumas formas (o aparelho
formal da língua), ancorando-se nas possibilidades abertas pelo
aparelho linguístico da enunciação, a partir das quais o locutor
SUMÁRIO
67
pode pôr em funcionamento as grandes funções sintáticas, que têm
como objetivo influenciar o alocutário. É por isso que Benveniste
ainda acrescenta que “o que em geral caracteriza a enunciação é a
acentuação discursiva com o parceiro, seja este real ou imaginado,
individual ou coletivo” (BENVENISTE, 1989, p. 87). A função do
aparelho formal da enunciação é, pois, agir sobre o outro.
É tempo, finalmente, de articularmos tudo isso a um último
conceito que aparece nesse texto tão denso: o quadro figurativo. O
que Benveniste chama de quadro figurativo é a instituição das figuras
necessárias ao diálogo: locutor e alocutário. Como sabemos, a
enunciação só ocorre em um enquadramento específico, que pressupõe
esse par, mas também um tempo e espaço determinados, sempre
presente, sempre aqui. É a famosa equação eu-tu-aqui-agora. Portanto,
esse jogo entre sistemas, iniciando pela apropriação do aparelho formal
da língua, por parte do locutor, que implanta um alocutário diante de
si, tendo como ponto de apoio o aparelho linguístico da enunciação, e
produzindo o aparelho formal da enunciação, só ocorre dentro de um
quadro específico: o figurativo. Eis porque o objetivo do linguista era
“definir a enunciação no quadro formal de sua realização”, tentando
“esboçar, no interior da língua, os caracteres formais da enunciação a
partir da manifestação individual que ela atualiza” (BENVENISTE, 1989,
p. 83). Esse é, com efeito, o que Benveniste logra com seu artigo.
Vemos, assim, como toda essa nomenclatura específica, tal
como prevíamos, não é empregada aleatoriamente pelo autor. Seu
esforço encerra, na verdade, uma teorização complexa e pormenorizada
do funcionamento mesmo da linguagem humana, pautada em seus
estudos realizados até aquele momento, tarefa cuja monta só poderia
ser assumida por um linguista da envergadura de Benveniste.
SUMÁRIO
68
CONCLUSÃO
Do exposto, podemos finalmente observar como O aparelho
formal da enunciação é um texto complexo, que só pode ser lido e
interpretado no conjunto maior da obra do linguista sírio. Acima de
tudo, o que se tentou mostrar aqui é que há uma mudança significativa
nesse texto em relação aos que lhe precedem, embora os escritos
anteriores sejam fundamentais para compreendê-lo. A mudança que
Benveniste opera ao abandonar, ao menos textualmente, as noções de
semiótico e semântico para empregar a ideia de aparelho não é apenas
um capricho terminológico. Antes, encarna uma mudança de objeto e
de perspectiva sobre a língua.
Até A forma e o sentido na linguagem, Benveniste se ateve a
tentar mapear e descrever as características que faziam com que a
língua funcionasse da forma como funciona. Descobriu – e essa é,
sem dúvida, sua maior contribuição – que a arquitetura singular das
línguas humanas, que operam por dois sistemas interligados, é única
e sem paralelos em quaisquer outros sistemas semiológicos. Tratou de
descrever minuciosamente cada um desses universos de significação.
O ano de 1969, porém, parece ser aquele que funda uma nova
possibilidade para o professor: tendo descrito esses dois universos,
Benveniste passa a observá-los não mais em seus “estados”, como
abstrações teóricas, mas passa a investigar os processos que
suscitam. É por isso que vemos, nas aulas de fevereiro e março no
Collège de France, um linguista comprometido com o estudo da
autossemiotização da língua pela escrita (que, como bem nos lembra,
não deve ser confundida com a língua escrita, ou com a língua sob
forma escrita). Benveniste (2014) se interessa por como “a escrita
revela uma semiótica da língua” (p. 150), ou seja, pelo fato de que “a
escrita foi sempre e por toda parte o instrumento que permitiu à língua
semiotizar a si mesma” (p. 155). Não é mais do domínio semiótico que
fala Benveniste, mas de um processo que opera sobre o semiótico.
SUMÁRIO
69
De forma análoga, segue o mesmo raciocínio, finalmente, em
1970, para investigar o processo que permitia à língua ser apropriada
por um locutor. Os índices linguísticos dessa possibilidade já haviam
há muito sido descritos pelo mestre, mas é somente com o conceito
de aparelho linguístico da enunciação que ele deixa clara justamente
o que veio a ser conhecida como sua teoria: a enunciação, esse
processo de conversão da língua em discurso. Entendida como
esse colocar em funcionamento a língua por um ato individual de
utilização, a enunciação é, para o semântico, o processo equivalente
ao que a escrita faz em relação ao semiótico. Se a escrita permite a
autossemiotização da língua, a enunciação permite sua semantização.
Esses dois grandes processos englobam, portanto, o cerne
mesmo da investigação de Benveniste, na tentativa de evidenciar
não uma descrição de uma língua abstrata, estática e não falada por
ninguém – forma de pensamento da qual era herdeiro e coetâneo
–, mas da língua em funcionamento, como ele sempre a entendeu.
Benveniste foi, nesse sentido, um herdeiro rigoroso11. Diz Derrida, sobre
sua própria filiação teórica, em entrevista a Roudinesco, reproduzida
no livro De que amanhã, que um herdeiro deve sempre “responder
a uma espécie de dupla injunção”, aparentemente contraditória: “é
preciso primeiro saber e saber reafirmar o que vem ‘antes de nós’, e
que portanto recebemos antes mesmo de escolhê-lo, e nos comportar
sob esse aspecto como um sujeito livre” (DERRIDA; ROUDINESCO,
2004, p. 12, grifo no original). Herdar, assim, é “não apenas aceitar essa
herança, mas relançá-la de outra maneira e mantê-la viva” (DERRIDA;
ROUDINESCO, 2004, p. 12). Ora, Benveniste nunca negou seus
mestres, Saussure e Antoine Meillet. Nunca recusou sua formação em
filologia, seu conhecimento singular sobre os idiomas do mundo, sua
formação em uma linguística comparativista. Mas soube, como poucos,
reafirmar essa herança na justa medida em que, a considerando,
11 Uso aqui a ideia da herança intelectual que um linguista recebe e se incumbe de ensinar,
conforme pontuaram Barbisan e Flores (2009).
SUMÁRIO
70
também a ultrapassa e a subverte. A teoria benvenisteana é a teoria
de um sujeito livre frente à sua herança e que, justamente por isso, a
mantém viva, relançando a língua para o olhar dos linguistas desde um
outro ponto de vista, que cria um outro objeto, tudo o que, na verdade,
um linguista pode fazer, como tão bem nos ensinou Saussure.
Na abordagem desse novo objeto, a exposição feita até aqui
nos conduziu a uma análise do artigo O aparelho formal da enunciação
como uma manifestação derradeira de um duplo movimento,
recorrente na obra benvenisteana: o de retrospectiva e o de abertura
ou prospecção. Conforme visto, esse texto-síntese retoma algumas
ideias que já estavam, de forma embrionária, na ordem do dia das
teorizações do sírio, remontando até mesmo ao período em que
suas análises eram mais atomísticas, isto é, analisavam detidamente
elementos específicos das línguas, como os pronomes e a série
dêitica. Essa retomada nos mostra que há várias maneiras de ler
a obra de Benveniste. Podemos contemplá-la na leitura capítulo
a capítulo, conforme proposta em suas duas compilações mais
famosas, seguindo a sequência de agrupamento idealizada pelo
próprio autor. Podemos também ler seus textos perseguindo um
conceito específico, realizando cortes temporais etc. Mas, sem
dúvidas, uma forma muito profícua de visitar o texto benvenisteano
é em sua diacronia. Ler seus artigos na ordem cronológica de
publicação pode levar-nos à surpresa de encontrarmos rastros muito
longínquos para conceitos que julgávamos nascer em um período
específico. O que a proposta deste texto tenta evidenciar é que
nada na obra de Benveniste se perde. Seus conceitos, elaborados
inicialmente relativamente a aspectos muito circunscritos da língua,
não ganham novo nome apenas, mas ampliam-se. Essa ampliação,
contudo, não deve ser vista como uma teorização completamente
nova, como se os antigos conceitos não fossem mais operativos.
Ao contrário: se podemos ler O aparelho formal da enunciação da
forma como proponho aqui é porque, muitos anos antes, o linguista
SUMÁRIO
71
preparou o terreno para compreendermos as minúcias desse texto tão
complexo. Em última análise, ler Benveniste é, em si, uma experiência
de execução do método a que Piguet se referia: é preciso unir o
analítico, o “linha a linha” do texto em estudo, ao global, a tudo que
o precede. Benveniste não apenas teorizou sobre esse método, que
conjuga duas linguísticas de abordagens distintas: ele o fez operar
no coração mesmo de sua obra.
Essa síntese, no entanto, como aprendemos pela visão de
Heráclito, é sempre a união que condensa dois contrários, mas que
gera algo novo, num eterno devir. Cada texto de Benveniste, sobretudo
O aparelho…, parece cumprir isso a rigor: sintetiza o que precede,
mas desloca e vai além, produzindo não só algo novo, mas propondo
também um constante devir. Tanto é verdade que ainda estamos, após
50 anos, debruçando-nos sobre um artigo de poucas páginas, que não
cessa de instigar e de causar novas reflexões.
Gostaria de encerrar, a título anedótico, em um texto em que
tantos “aparelhos” foram mencionados, referindo ao lapso de Kristeva
no prefácio já citado ao livro Últimas aulas no Collège de France.
Acompanhemos seu texto:
Em meio a essa farta diversidade à qual sempre esteve
atento (…) ele [Benveniste] praticou o que deve ser chamado
de estilo de pensamento benvenistiano, no qual o detalhe
morfossintático encontra a interrogação permanente das
categorias fundamentais, linguística e/ou filosóficas, que se
caracteriza tanto pela recusa de “dizer” quanto por uma recusa
de esteticismo que “oculta” (…), pela vontade de “significar”
(abrir ao pensamento, problematizar, questionar) e de determinar
como significar se engendra no aparelho formal da linguagem
(KRISTEVA, 2014, p. 34, grifos no original).
Para o leitor que chegou até aqui, salta aos olhos que Kristeva
emprega uma formulação que não aparece em nenhum lugar na
obra benvenisteana: o “aparelho formal da linguagem”. Talvez esse
SUMÁRIO
72
seja um equívoco à la sujeito da enunciação, sintagma tão atribuído
a Benveniste, sem que este jamais o tenha empregado. O que o
lapso de Kristeva nos diz, entretanto – como ela, psicanalista, bem
poderia atestar –, é que ele revela algo que não poderia ser dito de
outra forma, abrindo para uma nova interpretação: talvez o aparelho
formal da linguagem a que ela se refere seja o conjunto de todos
esses aparelhos (o formal da língua, o linguístico da enunciação e o
formal da enunciação). Para um autor tão comprometido em estudar
os meandros da linguagem, em explicar não como ela diz ou oculta,
mas como ela significa, parece uma bonita homenagem dispensar
a ele um pequeno lapso, que lhe atribui a honra de ter elaborado
um aparelho conceitual que explica o próprio funcionamento da
linguagem humana. Benveniste teria ficado lisonjeado.
REFERÊNCIAS
BARBISAN, Leci Borges; FLORES, Valdir do Nascimento. Sobre Saussure,
Benveniste e outras histórias da linguística. In: NORMAND, Claudine. Convite
à linguística. São Paulo: Contexto, 2009.
BENVENISTE, Émile. Últimas aulas no Collège de France (1968 e 1969). São
Paulo: Editora UNESP, 2014.
BENVENISTE, Émile. Os níveis da análise linguística (1964). In: BENVENISTE,
Émile. Problemas de linguística geral I. Campinas: Pontes, 1995.
BENVENISTE, Émile. Da subjetividade na linguagem (1958). In: BENVENISTE,
Émile. Problemas de linguística geral I. Campinas: Pontes, 1995.
BENVENISTE, Émile. A natureza dos pronomes (1956). In: BENVENISTE,
Émile. Problemas de linguística geral I. Campinas: Pontes, 1995.
BENVENISTE, Émile. O aparelho formal da enunciação (1970). In:
BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral II. Campinas: Pontes, 1989.
BENVENISTE, Émile. Semiologia da língua (1969). In: BENVENISTE, Émile.
Problemas de linguística geral II. Campinas: Pontes, 1989.
SUMÁRIO
73
BENVENISTE, Émile. A forma e o sentido na linguagem. (1966). In:
BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral II. Campinas: Pontes, 1989.
DERRIDA, Jacques; ROUDINESCO, Elisabeth. De que amanhã: diálogo. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
FLORES, Valdir do Nascimento. Sujeito da enunciação: singularidade
que advém da sintaxe da enunciação. DELTA [online]. 2013, vol.29, n.1,
pp.95-120. Disponível em: < https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
abstract&pid=S0102-44502013000100005&lng=en&nrm=iso&tlng=pt>.
Acesso em 01/05/2020.
KRISTEVA, Julia. Émile Benveniste, um linguista que não diz nem oculta, mas
significa. In: BENVENISTE, Émile. Últimas aulas no Collège de France (1968 e
1969). São Paulo: Editora UNESP, 2014.
SUMÁRIO
74
Capítulo 3
3
ÀS VOLTAS COM O TU EM
BENVENISTE: UMA REFLEXÃO
SOBRE A NOÇÃO DE ESCUTA
EM LINGUÍSTICA
Luiza Milano
Luiza Milano
ÀS VOLTAS COM O TU
EM BENVENISTE:
UMA REFLEXÃO SOBRE
A NOÇÃO DE ESCUTA
EM LINGUÍSTICA
DOI: 10.31560/pimentacultural/2020.281.75-91
O silêncio do ouvinte será tão ativo como a palavra
do locutor: poder-se-ia dizer que a escuta fala.
Roland Barthes (1987, p. 141)
INTRODUÇÃO
A frase que elegi como epígrafe para o presente texto
acompanha-me já há algum tempo, sob forma de indagação. Na
verdade, é por absolutamente concordar com ela, na condição de
falante-ouvinte inquieta, que me indago sobre a questão da escuta, e
isso já desde os tempos em que fiz um mergulho em pesquisas sobre
as possibilidades de significação do(s) silêncio(s)12.
Quem é esse tu que escuta (ativamente, segundo Barthes)?
Qual seu estatuto no campo dos estudos da linguagem? O que ele
diz sobre o eu e o ele, em uma cena enunciativa? Como a linguística
tributária de Émile Benveniste lida com o tu?
Esse conjunto de indagações seguiu me acompanhando em
meu percurso nesta última década. Para buscar o fio do raciocínio
que hoje me faz estudar mais detalhadamente a questão do tu e da
escuta, retomarei o que até aqui já tentei costurar sobre o tema a
partir do viés benvenistiano.
Nesse sentido, o presente capítulo é uma tentativa de fazer
avançar minha reflexão sobre o lugar que ocupa o tu no contexto
da teoria da enunciação de Émile Benveniste (1991, 1989). Sendo
assim, partirei de reflexões embrionárias sobre o tema presentes
em minha tese de doutorado (SURREAUX, 2006), visitarei alguns
avanços que apontei em minhas publicações seguintes (SURREAUX,
12 Minhas incursões em estudos sobre o silêncio começaram há duas décadas, na época de
meu mestrado, e podem ser consultadas em Surreaux (1999, 2000, 2001, 2003) e também
em Milano (2016c).
SUMÁRIO
76
2011; SURREAUX; BENDER, 2011) e, finalmente, encaminharei
deslocamentos sobre o tema, que venho operando mais recentemente.
Em síntese, meu percurso neste texto, como o leitor poderá constatar,
busca investigar qual o estatuto do tu na teoria benvenistiana. Para
tanto, o caminho a ser trilhado será acompanhado de minhas
indagações e constatações sobre possíveis interpretações acerca
da noção de escuta na obra desse autor.
SOBRE O TU E A ESCUTA: MEU
PONTO DE PARTIDA
Em trabalhos anteriores (SURREAUX, 2006; SURREAUX; DEUS,
2010; SURREAUX; BENDER, 2011, SURREAUX; OLIVEIRA, 2013),
com o objetivo de dar destaque à transcrição de base enunciativa
como uma modalidade de registro de falas de pacientes na clínica
de linguagem, busquei, em parceria com orientandas da área da
fonoaudiologia, configurar um dizer sobre aquilo que se escuta
(ou não se escuta) no âmbito da análise linguística de falas ditas
sintomáticas. Naquela época, já era possível perceber que, na clínica
de linguagem, muitas vezes, o recurso da escrita funciona como
uma “ferramenta” que permite “ouvir os dados”, perceber o que
uma dada enunciação evoca. Tal constatação me levou a dizer que a
transcrição da fala sintomática toma contornos peculiares, ao evocar
particularmente a noção de escuta, conforme destaco a seguir:
Trata-se de um ponto de partida que possibilitará a leitura de falas
em relação. Esse ponto de vista mostra que a particularidade
de uma análise deve necessariamente levar em consideração
o efeito que uma fala (desviante ou não) produz no outro
(interlocutor). É o efeito disso que se verá em uma transcrição.
Não se trata da necessidade literal de transpor uma fala para
o escrito como condição da posição de escuta daquela fala.
Trata-se, antes disso, de levar em consideração: (a) o paciente
SUMÁRIO
77
que apresenta fala sintomática como um locutor passível de
ocupar a posição de enunciador; (b) os enunciados do paciente
como produto de uma enunciação. É a partir disso que se estará
sob o “efeito de transcrição”, o que significa escutar partindo
do pressuposto que se está frente a falas em relação. Muitas
variáveis estão em jogo naquilo que o transcritor parece poder
ouvir (ou não) no momento de uma transcrição. Lidar com a
fala de um paciente em atendimento fonoaudiológico como
a fala de um interlocutor em condições singulares de ocupar
um lugar enunciativo parece ser determinante na escuta que o
transcritor imprime. É isso que nomeio de “efeito de transcrição”.
(SURREAUX, 2011, p. 335).
A noção de efeito de transcrição, portanto, foi um ponto de
chegada de uma reflexão teórico-clínica que empreendi por bastante
tempo em meu percurso investigativo. Após isso, em uma segunda fase,
acompanhada de orientandos da área da letras e da fonoaudiologia,
dediquei-me a estudos já então voltados para a especificidade de
uma concepção de escuta no campo da linguística. Esses trabalhos
(STAWINSKI, 2016; MILANO, STAWINSKI, GOMES, 2016; SILVEIRA,
2017) inicialmente tangenciaram reflexões sobre aspectos linguísticos
da escuta em três importantes autores: Saussure, Jakobson,
Benveniste. É a partir desse percurso, que envolve um conjunto de
reflexões sobre como se constitui uma interpretação do estatuto da
escuta no campo da linguística, que nasce o presente capítulo. Mais
especificamente, chama minha atenção a seguinte passagem do texto
O aparelho formal da enunciação:
Antes da enunciação, a língua não é senão possibilidade da
língua. Depois da enunciação, a língua é efetuada em uma
instância de discurso, que emana de um locutor, forma sonora
que atinge o ouvinte e que suscita uma outra enunciação de
retorno. (BENVENISTE, 1989, p. 83-84, itálicos meus).
Eu diria que essa é uma das passagens que mais fica ecoando
em minhas reflexões, quando se trata de pensar o estatuto do tu e
da escuta em Benveniste. Esse ouvinte acima apontado, o tal tu, na
SUMÁRIO
78
medida em que se sente instigado a produzir uma enunciação de
retorno, não me parece ser passivo. Mas se diz também que o tu é a
condição imaginária para quem o eu fala. Sendo assim, podemos dizer
que o tu é uma miragem? O tu, sendo pessoa não subjetiva, pode ser
ativo? A escuta pertence à instância do eu ou do tu? Eis uma pequena
amostra de minhas recorrentes inquietações, as quais impulsionam as
considerações que apresentarei a seguir.
SAUSSURE, BRÉAL, BENVENISTE:
CONSIDERAÇÕES ACERCA DO
LUGAR DO TU NA LINGUÍSTICA
A questão da escuta no âmbito da linguística parece ter
acompanhado muitas das reflexões daquele que é conhecido como
o pai da linguística moderna. Há, em várias fontes saussurianas,
indícios de que o ouvinte e a escuta foram objetos de interesse do
mestre genebrino. Os inovadores estudos de Coursil (2000), D’Ottavi
(2010) e Parret (2014) nos ajudam a sustentar essa hipótese de
trabalho. A partir dos indícios apontados por esses pesquisadores
contemporâneos, temos buscado aprofundar nossas investigações
sobre a escuta a partir do legado de Ferdinand de Saussure
(cf. MILANO; STAWINSKI, no prelo). O percurso de estudos até
aqui trilhado suscita uma retomada da linguística da fala (parole)
repensando-se o estatuto do falante-ouvinte. Tudo indica que, para
seguir investigando a noção de valor linguístico na apropriação da
língua pelo sujeito falante, pode ser extremamente útil discutir o
estatuto do tu e da escuta. Por esse motivo, sublinho que meu ponto
de partida são os estudos linguísticos que antecederam e inspiraram
Benveniste, tais como os de Saussure e de Bréal.
SUMÁRIO
79
Sabe-se que, em 1897, em Ensaio de Semântica, Bréal
apresentou a questão da subjetividade na linguagem através da noção
de pessoa. Em O elemento subjetivo, o autor já se referia ao tu como
submetido ao eu:
Sobre as três pessoas do verbo, há uma que ele se reserva
de modo absoluto (a que se convencionou chamar a
primeira). Desse modo, ele opõe sua individualidade ao
resto do universo. Quanto à segunda pessoa ela não nos
distancia muito de nós mesmos, já que a segunda pessoa
não tem outra razão de ser que a de achar-se interpelada
pela primeira. Pode-se, pois, dizer que só a terceira pessoa
representa a porção objetiva da linguagem (BRÉAL, 2008, p.
161, itálico do autor).
Essa passagem apresenta uma matriz instigante que
provavelmente foi inspiradora do conhecido artigo de Benveniste Da
subjetividade na linguagem, o qual, junto com A natureza dos pronomes,
forma a base inicial para qualquer estudo acerca da relação da tríade
eu-tu-ele no autor sírio-francês. O que eu gostaria de destacar dessa
passagem é a suposta submissão do tu; afinal, a “segunda pessoa não
tem outra razão de ser que a de achar-se interpelada pela primeira”. É
nesse ponto que lembro também das oportunas palavras de Marlene
Teixeira ao falar sobre Benveniste e a subjetividade na linguagem:
[...] mais do que uma descrição de categorias fundamentais da
língua, seu estudo sobre os pronomes coloca-nos no âmago
de uma problemática da interlocução, pois essas categorias
são precisamente aquelas em que se amarram as relações do
eu com aquilo que é privado da marca do eu. E, mais do que
isso, coloca em evidência a relação radical da linguagem com o
homem. (TEIXEIRA, 2012, p. 79).
A autora mostra que a tese benvenistiana possibilita entender
que as posições ocupadas pelos sujeitos que constituem o ato
enunciativo, instaurando a categoria de pessoa e definindo as
pessoas do discurso, ganham seu verdadeiro estatuto quando
SUMÁRIO
80
assumidas por um falante. Assim, as palavras de Teixeira destacam
que a teoria da enunciação benvenistiana se estrutura em função do
eu, pois, como bem sabemos, “desde que ele se declare locutor, e
assume a língua, ele implanta o outro diante de si” (BENVENISTE,
1989, p. 84, itálico do autor).
No entanto, Teixeira igualmente nos lembra da condição
constitutiva da alteridade na proposta benvenistiana:
Usar eu é reconhecer-se com direito à fala, ou seja, é dar-se
um lugar no espaço simbólico, mas para isso é necessário
que alguém se institua como tu. Se o outro falta ou se não dá
crédito a meu dizer, minha fala se transforma em pura fonação
desprovida de eficácia. (TEIXEIRA, 2012, p. 79).
E essa interdependência da díade eu-tu pode ser constatada
nas palavras do próprio Benveniste, ao apresentar o par dialógico:
Quando saio de ‘mim’ para estabelecer uma relação viva com
um ser, encontro ou proponho necessariamente um ‘tu’ que é,
fora de mim, a única ‘pessoa imaginável’. Essas qualidades de
interioridade e de transcendência pertencem particularmente ao
‘eu’ e se invertem em ‘tu’. Poder-se-á, então, definir o tu como
a pessoa não subjetiva, em face da pessoa subjetiva que eu
representa. (BENVENISTE, 1991, p. 255, aspas do autor).
Como se pode ler acima, para Benveniste, eu é transcendente a
tu no sentido em que é sempre eu que enuncia e implanta o tu diante
de si. Mas o autor lembra que essas posições são inversíveis, isto é, os
lugares de eu e de tu são intercambiáveis nas trocas verbais.
Conforme a interpretação de Teixeira (2012) sobre o tema,
essa transcendência apontada por Benveniste seria temporal, o que
não implicaria necessariamente uma hegemonia de eu sobre tu. E é
justamente esse apontamento de Teixeira que me fez levantar a seguinte
questão: segundo prevê a inversão/reversibilidade intersubjetiva,
a díade eu-tu valeria (até certo ponto) o mesmo que a díade tu-eu?
SUMÁRIO
81
Embora possa parecer um tanto óbvia, a proposição não me soa
equânime. Afinal, eu-tu é posição enunciativa de fala, enquanto tueu seria posição enunciativa de escuta. No meu entender, esse é um
detalhe significativo.
Problematizo essa questão porque, como se sabe, segundo
Benveniste, enquanto o eu é pessoa subjetiva, o tu é pessoa não
subjetiva. Sempre me intrigou o “pessoa não -subjetiva” contrastando
com a necessária “intersubjetividade” na proposta do autor. Então, para
se ter intersubjetividade, teremos que lidar com duas subjetividades, ou
dois eus. Minha pergunta acima anunciada é, então, voltada ao lugar
(ou à função) do tu no escopo da proposta enunciativa benvenistiana.
E é por isso que venho problematizar a instância do tu, aparentemente
tão passivo em Benveniste... Resumindo, questiono: o tu é pessoa?
Se é pessoa, como é que pessoa não subjetiva se enquadra numa
instância intersubjetiva?
A tendência imediata é recorrer à noção de reversibilidade,
lembrando que o enunciador, em Benveniste, é sempre dotado
simultaneamente da possibilidade intercambiável eu-tu. Afinal, o
fundamento da subjetividade é determinado pelo “status linguístico
de ‘pessoa’”, visto que “a consciência de si mesmo só é possível se
experimentada por contraste” (BENVENISTE, 1991, p. 286, itálico e
aspas do autor).
O eu que usa a língua, em Benveniste, é garantido pela atitude
de sujeito e pela instauração da situação enunciativa. Por isso é
pessoa subjetiva. Mas e o tu? O que ele escuta de eu não seria também
uma posição ou atitude de sujeito em relação à situação enunciativa?
Mesmo silente e/ou (aparentemente) não responsivo, ainda ali está o
tu sob efeito de uma instanciação de discurso. Claramente, ele não
está assumindo a palavra para enunciar, mas está em plena atividade
interpretativa daquilo que seu interlocutor proferiu. Nessa condição, o
alocutário, ao sofrer ativamente os efeitos produzidos por um (inter)
SUMÁRIO
82
locutor, é um eu (subjetivo, portanto) ou é um tu (pessoa não subjetiva,
nesse caso)?
Essas são perguntas que me faço ao refletir sobre qual o lugar
que o tu toma nos atos enunciativos. Pela complexidade da questão,
tudo indica que a linguística de inspiração benvenistiana pode seguir
propiciando uma discussão instigante, quando se trata de abordar o
fato de o tu se apropriar dos enunciados evocados pelo eu.
Ao conjunto de indagações que até aqui apresentei, somamse outras oriundas do diálogo interdisciplinar. É hora, então, de
experimentar conhecer o escopo dessa problemática em terrenos
vizinhos à linguística.
DIÁLOGOS DE FRONTEIRA – OU SOBRE O
QUE A LINGUÍSTICA PODE APRENDER COM
OUTROS CAMPOS A RESPEITO DO TU
A interlocução com outros campos sempre implica riscos,
tanto o de superficialidade na abordagem teórica como o de desvio
de foco temático. Sabendo de antemão dessas possibilidades, aviso
ao leitor que as incursões que farei a seguir são fruto de efeitos
provocados por leituras que realizei, e não propriamente de uma
pesquisa bibliográfica exaustiva. Ou seja, o que trarei a seguir é uma
tentativa de começo de conversa acerca do estatuto do tu, em um
pretendido diálogo com a filosofia e a antropologia. Obviamente,
não foram quaisquer autores que elegi. Fui justamente buscar auxílio
naqueles pesquisadores que, em algum momento, referem ter se
inspirado em textos de Émile Benveniste.
SUMÁRIO
83
Ao retornar a Os Mistérios da Trindade, interessante obra em
que o filósofo Dany-Robert Dufour realiza uma leitura fértil da proposta
benvenistiana sobre a triangulação enunciativa eu-tu-ele, deparei-me
com duas importantes observações acerca da posição do tu.
A primeira é uma constatação: a díade eu-tu é aquela que é mais
evidente em termos fenomenológicos: “Basta que se abra a boca e já
se está interpelando alocutário em “tu”” (DUFOUR, 2000, p. 73, aspas
do autor). Ou seja, se há um falante que enuncia, há também alguém
a quem ele se dirige.
Mas, sobre a segunda observação, a constatação é bem menos
visível. A díade, embora evidente em sua instauração fenomenológica,
constitui-se a partir dos efeitos que produz: “Mas, o que se troca,
exatamente, nessa inversão? Um conteúdo, informações? Talvez, mas
segundo um efeito de só-depois” (DUFOUR, 2000, p. 73). Para Dufour,
o que acontece nessa circunstância é uma espécie de acordo tácito:
“Em suma, o par dos dois primeiros pronomes pessoais da tríade é
um dispositivo de troca e de gestão dos efeitos da realização autoreferencial de “eu”” (DUFOUR, 2000, p. 74, aspas do autor).
Assim, essa espécie de gestão da reversibilidade eutu é regulada através dos efeitos que eu e tu fazem repercutir
reciprocamente. Chamo atenção para o fato de que esse efeito se
dá sempre no “só-depois”, ou seja, trata-se de um efeito de escuta.
Afinal, eu se constitui como autor daquela enunciação somente a
partir do efeito de escuta produzido pelo testemunho de um tu
copresente. Assim, ““eu” e “tu” se asseguram, mutuamente e por
contraste, de sua presença, referindo-se a uma indexação que eles
mesmos criaram” (DUFOUR, 2000, p. 87, aspas do autor).
Extraio da leitura de Dufour, então, um par de constatações que
quase soam contraditórias. Por um lado, temos a observação acerca
da evidência fenomenológica da díade eu-tu. O tu pode até ser uma
SUMÁRIO
84
miragem, mas, se assim for, trata-se de uma miragem que se agrega ao
fato de que o eu fala, de fato, para um outro. Por outro lado, sublinho a
importância de que a confirmação da existência de um eu que enuncia,
no aqui e agora, dá-se a partir do efeito de escuta produzido em um
tu, no só-depois. Com essas importantes contribuições advindas do
diálogo com as ideias do filósofo, parto para a conversa com outro
campo, o da antropologia.
Foi lendo o artigo da colega linguista referida mais acima
(TEIXEIRA, 2012) que me encorajei a revisitar o clássico texto “Os
pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio”, do antropólogo
Eduardo Viveiros de Castro, para pensar de forma um pouco mais
desafiadora em outras possíveis acepções de tu. A passagem é um
pouco extensa, mas ainda assim incontornável:
Seguindo a analogia com a série pronominal (Benveniste
1966a; 1966b), vê-se que, entre o “eu” reflexivo da cultura
(gerador do conceito de alma ou espírito) e o “ele” impessoal
da natureza (marcador da relação com a alteridade somática),
há uma posição faltante, a do “tu”, a segunda pessoa, ou o
outro tomado como outro sujeito, cujo ponto de vista serve
de eco latente ao do “eu”. Penso que esse conceito pode
auxiliar na determinação do contexto sobrenatural. Contexto
anormal no qual o sujeito é capturado por um outro ponto
de vista cosmológico dominante, onde ele é o “tu” de uma
perspectiva não-humana, a Sobrenatureza é a forma do Outro
como Sujeito, implicando a objetivação do eu humano como
um “tu” para este Outro.
O contexto “sobrenatural” típico no mundo ameríndio é o
encontro, na floresta, entre um homem — sempre sozinho —
e um ser que, visto primeiramente como um mero animal ou
uma pessoa, revela-se como um espírito ou um morto, e fala
com o homem (a dinâmica dessa comunicação é muito bem
analisada por Taylor 1993a). Esses encontros podem ser letais
para o interlocutor, que, subjugado pela subjetividade nãohumana, passa para o lado dela, transformando-se em um ser
da mesma espécie que o “locutor”: morto, espírito ou animal.
SUMÁRIO
85
Quem responde a um “tu” dito por um não-humano aceita a
condição de ser sua “segunda pessoa”, e ao assumir por sua
vez a posição de “eu” já o fará como um não-humano. A forma
canônica desses encontros sobrenaturais consiste, assim, em
intuir subitamente que o outro é “humano”, entenda-se, que
ele é o humano, o que desumaniza e aliena automaticamente
o interlocutor, transformando-o em presa, isto é, em animal.
Apenas os xamãs, pessoas multinaturais por definição e ofício,
são capazes de transitar entre as perspectivas, tuteando e
sendo tuteados pelas subjetividades extra-humanas sem perder
a própria condição de sujeito.” (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p.
134-135, aspas e itálicos do autor).
Essa passagem me deixou imobilizada por uns dias. Passado
o primeiro impacto de uma possibilidade outra de leitura da relação
do homem com a natureza, resolvi tentar me ocupar de alguns
desdobramentos linguísticos desse trecho. Essa posição faltante,
eco do eu, da qual fala Viveiros de Castro, talvez possa ensinar
muito sobre como não nos assustarmos tanto com o estatuto do
tu. Conforme diz o antropólogo, essa posição pode ensinar sobre o
conceito de sobrenatural (no perspectivismo ameríndio), no qual a
instância do tu aponta para o risco de objetivização do par discursivo;
daí a necessidade da intermediação do xamã. Parece-me que, na cena
discursiva predominantemente analisada no escopo da linguística,
o foco no falante acaba sendo muitas vezes uma confortável saída
para nos protegermos dos riscos que os inúmeros efeitos de sentido
passíveis de ser evocados por uma enunciação sugerem. Ou seja,
talvez a ênfase no eu atenue a angústia de não saber sobre os efeitos
que uma fala pode produzir no tu.
Outro aspecto que soa absolutamente ameaçador, e daí a
importância de tomarmos o cuidado de ler o recorte acima com a
devida parcimônia, é que, ao se instituir o tu como instância alienada
ao eu, reconhece-se o risco de se ser devorado como “presa fácil”.
Nesse sentido, tudo indica que a necessidade de contar com a
SUMÁRIO
86
instância terceira fora da relação (o ele? o xamã?) é um anteparo que
resguarda a instauração da relação trina.
Tomo o cuidado de não querer fazer uma aproximação forçada
das hipóteses de Viveiros de Castro às análises que empreendemos
no campo da linguística da enunciação contemporânea. Antes, meu
objetivo, ao instaurar esse diálogo, é o de buscar ampliar as formas
de pensar o “lugar de fala” dos sujeitos, a partir de outro(s) ponto(s)
de vista. Cabe ainda sublinhar que o artigo de Viveiros de Castro traz
outras tantas questões vistas pelo viés da antropologia que merecem
ser ainda mais bem contempladas pelo campo dos estudos da
linguagem, mas que extrapolam os objetivos deste capítulo, tais como
as noções de cultura, corpo, alteridade.
Da conversa que empreendi com a filosofia de Dufour e com
a antropologia de Viveiros de Castro, saio renovada. Possibilidades
e limites se anunciam de forma atualizada; afinal, são esses autores
contemporâneos que estão aí a nos devolver generosamente a leitura
que fizeram do grande linguista Émile Benveniste.
ENCAMINHAMENTOS
Desde o lugar de quem vem se perguntando sobre a presença
do falante na língua, através da consideração daquilo que tenho
chamado de experiência de escuta, acredito que o eu (da enunciação)
pode ser entendido como aquilo que foi ouvido no ouvido do outro.
Nesse sentido, acredito que a assimetria evidenciada na relação eu-tu
merece ser repensada, considerando o efeito dos dizeres de eu no tu.
Admito que essa investigação acerca da posição do tu
problematiza-se um tanto frente à natureza do(s) dado(s) que
analisamos. Tentar circunscrever os efeitos que uma fala produz
SUMÁRIO
87
é um desafio ainda mais complexo que lidar com a enunciação de
um eu. No entanto, independentemente daquilo que acreditamos ser
metodologicamente analisável no campo da linguística da enunciação,
poder lidar com o estatuto enunciativo do tu, ou seja, considerar a
instância da escuta é já um passo bastante importante.
Finalmente, gostaria de encaminhar, em forma de síntese,
algumas reflexões frutos da trajetória de escrita deste texto: na história
da linguística moderna, será que teria a linguística da língua (langue)
priorizado a instância do ele, e a linguística da fala (parole) priorizado
a instância do eu? Se assim foi, quem afinal se ocupou da instância
do tu? Qual linguística deveria se ocupar dos efeitos produzidos
por aquilo que é escutado? Será que, no campo dos estudos da
linguagem, só é possível mesmo lidar com a falante falando (eu) e
com a língua já registrada (ele), aquilo que a massa de falantes falou?
Será que o conceito de escuta, ou seja, os efeitos que um conjunto de
dizeres provoca no outro, não é matéria a ser desbravada unicamente
no campo dos estudos linguísticos, sendo, assim, um tema que
exige abordagem necessariamente interdisciplinar? Como se deve
proceder com o fato de um falante ter dito algo e um alucutário ter
entendido outra coisa?
Como anunciado inicialmente, este escrito foi fortemente
inspirado no jeito de pensar e fazer linguística de nossa saudosa
colega Marlene Teixeira. Como dizia ela na abertura do I Colóquio
Leituras de Émile Benveniste, precisamos seguir abertos ao exercício
da escuta do outro. Nas palavras de Marlene, “ali estávamos não
como plateia, mas como atores comprometidos em colocar a ‘mão
na massa’” (TEIXEIRA, 2004, p. 7). Nos faz muita falta a colega e
amiga Marlene. Inspiremo-nos nela para seguirmos abertos à escuta
do outro, seja ele a categoria linguística do alocutário, o colega com
quem partilhamos e aprendemos, ou aquilo que fala em nós mesmos
e resistimos tanto a ouvir.
SUMÁRIO
88
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SUMÁRIO
90
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SUMÁRIO
91
Capítulo 4
4
A DÊIXIS E A REFERÊNCIA
COMO DIFERENTES MODOS
DE RELAÇÃO ENTRE OS
SIGNOS E A ENUNCIAÇÃO
Alena Ciulla
Alena Ciulla
A DÊIXIS E A REFERÊNCIA
COMO DIFERENTES
MODOS DE RELAÇÃO
ENTRE OS SIGNOS
E A ENUNCIAÇÃO
DOI: 10.31560/pimentacultural/2020.281.92-120
INTRODUÇÃO
Neste capítulo, tratamos da referência e da dêixis, questões
amplamente discutidas e presentes na obra de grandes linguistas e
filósofos, o que torna bastante difícil a empreitada de dizer algo novo.
Ainda assim, acreditamos ser pertinente a retomada da discussão,
com a missão específica de se aprofundar naquilo que Benveniste tem
a dizer sobre o assunto e que, a nosso ver, é bastante revelador do
funcionamento da linguagem – o que não é o centro dos estudos sobre
a referência, na maior parte das abordagens, em especial no Brasil,
conforme vimos assinalando desde Ciulla (2018a). Encontramos aí a
nossa lacuna e o nosso interesse pela investigação.
Comecemos por alguns breves comentários sobre o que nos
parece não ser o que Benveniste enfatizou em sua obra, mas que
é amplamente explorado por outros autores. Quando o assunto é
referência, linguistas e filósofos tentam responder a duas principais
questões, quais sejam, a que se refere a expressão indicial e como
a expressão permite especificar seu referente. Assim, para um
enunciado, como
Esta cidade é realmente bonita.
Levinson (1983, p. 64) explica que os usos de demonstrativos,
como em “esta cidade”, requerem, para sua interpretação, o
conhecimento dos parâmetros espaciais e temporais básicos, além
do papel dos participantes e destinatários potenciais, como fica mais
evidente em um enunciado, como
Vocês todos podem vir comigo.
Sendo um dos principais autores a propor uma análise
pragmática da linguagem, Levinson afirma que
SUMÁRIO
93
A maneira mais óbvia de relação entre a linguagem e o
contexto, que se reflete na própria estrutura das línguas, pode
ser observada através do fenômeno da dêixis. Essencialmente,
a dêixis diz respeito ao modo pelo qual as línguas codificam
ou gramaticalizam traços do contexto de enunciação ou
evento de fala e, também, ao modo como a interpretação dos
enunciados depende da análise do contexto de enunciação.
Assim, o pronome “esta” não nomeia ou refere nenhuma
entidade particular em qualquer situação de uso, mas é, antes,
uma variável ou um nome temporário para alguma entidade
particular dada pelo contexto (p.ex. por um gesto). Os fatos
dêiticos devem agir como constante lembrança da linguística
teórica, sobre o simples, mas imensamente importante fato de
que línguas naturais são projetadas, por assim dizer, para o uso
em interações face a face e, assim, há limitações na extensão
sobre sua análise sem que se leve isso em consideração13.
(LEVINSON, 1983, p. 54).
Do trecho que citamos acima, destacamos alguns pontos.
O autor observa que a dêixis é tão fundamental na relação entre
“linguagem e contexto” que está inscrita na língua – uma característica
que é amplamente aceita, de modo geral. Contudo, acreditamos
que a explicação sobre a relação da linguagem com o mundo não é
unívoca e depende da perspectiva epistemológica que se adota. Daí
uma das grandes divergências que fizeram e fazem florescer tantos
estudos sobre o assunto. E, assim, vemos que dêixis, para Levinson,
tomada como “expressão indicial”, é quase um sinônimo de referência
– ou, ainda: vemos que o papel indicial da dêixis é o de “uma variável
ou um nome temporário para alguma entidade particular dada pelo
contexto (p.ex. por um gesto)”. Por essa perspectiva, então, salientase a atribuição de um papel semântico de representar ou substituir
referentes, identificando-os através de um apontamento – que pode
ser até mesmo o de um gesto –, o que faz da dêixis um aspecto
da ostensão a objetos, conforme podemos confirmar, ainda, nas
palavras do autor:
13 A tradução desse trecho, bem como de todas as obras citadas que foram consultadas nas
suas línguas originais, é de responsabilidade da autora deste capítulo.
SUMÁRIO
94
Usarei os termos ‘deixis’ e ‘indexicalidade’ de maneira
basicamente coextensiva – eles simplesmente têm origem
em diferentes tradições (Bühler 1934 e Peirce 1955)
e vêm sendo associados às abordagens linguística e
filosófica, respectivamente. Mas farei a seguinte distinção:
‘indexicalidade’ será usado para rotular o fenômeno mais
abrangente de dependência contextual e ‘dêixis’, para os
aspectos linguisticamente relevantes da indexicalidade.
(LEVINSON 2006, p. 97).
Transcrevemos abaixo mais um conhecido exemplo, em que
somos chamados a imaginar alguém que se depara com o seguinte
dizer em um bilhete afixado na porta fechada de uma oficina:
Volto em 1 hora.
Sem saber quando foi escrito, observa Levinson (1983, p.56)
sobre o exemplo acima, obviamente não se pode saber quando voltará
a pessoa que escreveu a mensagem. Novamente, pelo que enfatiza
nessa explicação, Levinson visa, então, a interpretação semântica
propiciada (ou oculta, neste caso) pelas coordenadas de pessoa,
tempo e espaço. Além disso, o autor acrescenta:
As múltiplas facetas da dêixis são tão onipresentes nas línguas
naturais e estão tão profundamente gramaticalizadas, que é
difícil considerá-las como outra coisa que não seja uma parte
essencial da semântica. Se a semântica se interpreta de maneira
que inclua todos os aspectos convencionais do significado,
então é talvez correto considerar a maioria dos fenômenos
dêiticos como semânticos. Sem dúvida, de acordo com alguns
pontos que revisamos no capítulo 1, a dêixis pertence ao domínio
da pragmática, porque concerne diretamente à relação entre
a estrutura das línguas e os contextos em que são utilizadas.
Mas essas categorizações são dependentes da teoria e, de
acordo com o ponto de vista que temos adotado, a saber,
que a pragmática se ocupa dos aspectos do significado e da
estrutura da linguagem que não podem ser compreendidos em
uma teoria semântica veritativa, vemo-nos diante do fato de que
provavelmente a categoria da dêixis esteja numa fronteira entre
a semântica e a pragmática. (LEVINSON, 1983, p. 55).
SUMÁRIO
95
Por esse trecho, fica clara, então, a posição do autor, que coloca
a dêixis no domínio referencial – semântico e pragmático. A perspectiva
de análise da referência adotada por Levinson (1983) é a mesma que
guia, de modo geral, Lyons (1977; 1979) e Fillmore (1971; 1977), dois
outros dos grandes nomes que influenciaram fortemente os estudos
sobre dêixis no mundo. Assim, voltadas a solucionar a “equação
referencial”, essas abordagens têm em comum a busca pelo referente
– não mais no mundo, pela comprovação vericondicional, como na
tradição da Filosofia Analítica, mas na sua construção em situações
comunicativas, como se observa na evolução dos estudos linguísticos,
em especial os encampados ou influenciados pela pragmática.
O Dicionário Enciclopédico das Ciências da Linguagem também
registra, no verbete sobre os dêiticos:
OS DÊITICOS. Entendem-se por esse termo expressões cujo
referente só pode ser determinado em relação aos interlocutores
(R.Jakobson chama-as SHIFTERS, EMBRAYEURS). Assim os
pronomes da 1ª. e da 2ª. pessoa designam respectivamente
a pessoa que fala e aquela a quem se fala. [...] E. Benveniste
mostrou que os dêiticos constituem uma irrupção do discurso
no interior da língua, pois seu próprio sentido (o método a
empregar para encontrar seu referente), apesar de depender da
língua, só se pode definir por alusão ao seu emprego. (DUCROT
e TODOROV, [1972] 2010, p. 232-233)14.
Ducrot e Todorov se posicionam bem quanto à questão de
os dêiticos referirem unicamente o próprio emprego, porém não nos
parece que Benveniste tenha definido a dêixis, em momento algum,
14 Os autores sugerem, além disso, a leitura de Bar-Hillel (1954), para a abordagem lógica
do problema, e Brugmann (1904), para uma teoria mais geral da dêixis. Observamos que
Bar-Hillel foi um dos pioneiros em tradução automática, e seus estudos são bastante
formalistas, voltados para a resolução computacional de identificação de referentes. Já a
visão de Brugmann é a da situação de comunicação, em que objetos seriam apontados
por diferentes modos dêiticos, de acordo com a localização dos falantes – Bühler (1934)
inspirou-se fortemente neste modelo para a sua teoria sobre a dêixis. Nosso ponto, aqui, é
o fato de que, mesmo sugerindo diversas abordagens para o fenômeno, o que condiz com
o caráter enciclopédico da obra, Ducrot e Todorov oferecem indicação do tratamento da
dêixis somente como um aspecto da referência, ao auxiliar na função de identificar objetos.
SUMÁRIO
96
quanto a um “método para encontrar seu referente”. Para Benveniste,
as questões parecem ser bem outras. Em primeiro lugar, é preciso
dizer que não há, na obra que se conhece de Benveniste, um texto
sobre referência, em especial. Sobre a dêixis, ainda que o termo não
apareça com muita frequência na obra e nem figure como título de
nenhum texto conhecido, esse conceito tem uma grande importância
para Benveniste, pois é uma característica fundamental relacionada à
categoria de pessoa, como veremos neste capítulo.
As preocupações do autor são, de modo geral, orientadas
por questões que poderiam ser formuladas da seguinte maneira: o
que é a linguagem? Como significamos na linguagem e pela língua?
Como as línguas funcionam e de que mecanismos as línguas dispõem
para funcionar do modo como o fazem? No que diz respeito mais
especificamente à referência, então, as perguntas que podemos buscar,
sob a ótica benvenistiana, seriam: que papel a referência cumpre na
linguagem? De que maneira referimos e que dispositivos as línguas
nos oferecem que nos permitem referir? Assim, a primeira diferença,
em relação às abordagens semântico-pragmáticas que mencionamos
anteriormente, diz respeito à busca do linguista, que está muito mais
para uma explicação sobre a linguagem e sobre os recursos de que
dispomos e criamos para produzir sentido na linguagem, do que sobre
os sentidos efetivamente produzidos em situações de comunicação.
Mas há outras diferenças mais profundas e sutis. Uma delas é a própria
definição de dêixis que Benveniste propõe, dentro da perspectiva que
lhe é peculiar, problematizando o funcionamento da linguagem:
Não adianta nada definir esses termos e os demonstrativos
em geral pela dêixis, como se costuma fazer, se não se
acrescenta que a dêixis é contemporânea da instância de
discurso que contém o indicador de pessoa; dessa referência
o demonstrativo tira o seu caráter cada vez único e particular,
que é a unidade da instância de discurso à qual se refere.
(BENVENISTE, 2005, p. 279-280).
SUMÁRIO
97
Nesse trecho, desponta aquilo que deve ser considerado como
a principal característica da dêixis para Benveniste e que “retira” a
dêixis da ostensão a objetos, atribuindo a ela uma única função de
indiciamento, que é a de remeter à situação de enunciação. Assim,
se nessas duas grandes abordagens, uma representada, aqui, por
Levinson e outra por Benveniste, conserva-se o valor de indexicalidade
da dêixis, na primeira, a indicação é principalmente um apontamento
para objetos, e, na segunda, trata-se de um apontamento para a
própria instância de discurso de quem diz “eu”.
Com essa diferença no eixo de percepção do que seja dêixis,
surge uma outra questão, então, do que seria referência, para
Benveniste. Se pela dêixis não referimos, como é que se dá, então, a
referência? Para chegar nessas duas questões centrais, objetivo último
deste trabalho, escolhemos um percurso, que inicia com a célebre
distinção de pessoa e não pessoa. De acordo com Lahud (1979), a
definição da categoria de pessoa constitui a peça principal a que se
prendem todas as outras, na obra de Benveniste, e, conforme também
percebemos em nossa investigação, fundamenta duas funções
distintas da linguagem a que vão estar relacionadas as questões sobre
a dêixis e sobre a referência.
Para a nossa tarefa, recorremos a pelo menos dois trabalhos
que ventilam alguns dos diversos enfoques dados à questão da
referência e da dêixis, incluindo uma interpretação daquilo que está
em Benveniste, e de que nos valeremos para entender melhor o
assunto neste capítulo. Um deles é o de Kleiber (1986) sobre como
definir dêiticos, embrayeurs, símbolos indexicais, token-reflexives etc.,
em que o autor separa as abordagens em dois tipos, de acordo com
a ênfase a) no lugar e objeto de referência e b) no modo de referência
(ou modo de “entrega” do referente). Ainda que se aperceba, então,
de uma diferença de enfoque na definição dos dêiticos e reconheça
a necessidade de discutir a autorreferência – que, como veremos, é
SUMÁRIO
98
central para entender a questão em Benveniste –, Kleiber tem o objetivo
de chegar a uma melhor compreensão da especificidade semânticoreferencial desses elementos. De certa maneira, os dois tipos de
abordagem identificados por Kleiber perseguem, ainda, o referente e a
constituição do valor semântico que lhe é atribuído na referência.
Outro autor importante, já mencionado, é Lahud (1979),
que astutamente diferencia a abordagem da dêixis 1) associada
intimamente à categoria de pessoa, 2) definida pela sua função
semântico-referencial, 3) como sinônimo de ostensão e 4) como uma
problemática do sujeito da enunciação. Lahud, ao que tudo indica
a leitura que fizemos dos dois autores, aproxima-se da reflexão de
Benveniste em 1) e em 4), conforme pretendemos demonstrar aqui.
Assim, após essa breve apresentação que justifica o interesse
pelo que Benveniste tem a nos dizer sobre o assunto, passemos a ele.
Seguindo a sugestão de Flores (2013), nosso corpus de investigação
será composto principalmente pelos textos Estrutura das relações de
pessoa no verbo (1946), As relações de tempo no verbo francês (1959),
A natureza dos pronomes (1956) e Da subjetividade na linguagem
(1958), publicados em Benveniste (1966). Nesses trabalhos, que
constroem uma oposição entre a categoria de pessoa e não pessoa,
Benveniste identifica as características desses elementos, e, a partir
disso, sugerimos a distinção de dois domínios, o autorreferencial e
o referencial, em que os signos se relacionam com a enunciação e
em relação aos quais podemos compreender também como o autor
permite dimensionar a dêixis e a referência propriamente dita.
SUMÁRIO
99
A HETEROGENEIDADE DA
CATEGORIA DE PESSOA
Iniciamos com Estrutura das relações de pessoa no verbo
(1946), em que são alinhavados os primeiros pontos da reflexão
que fundamenta uma distinção importantíssima para a nossa
pesquisa e que está relacionada a diferentes modos de atuação
dos elementos linguísticos.
No texto de 1946, Benveniste trata de distinguir as pessoas
do discurso, abordando a questão, inicialmente, de que, para todas
as línguas dotadas de verbos, seguindo-se a tradição grega, são
consideradas sempre três pessoas, as quais regem a forma de
conjugação desses verbos. No entanto, alerta Benveniste, essa divisão
tem caráter sumário e não linguístico:
Ao alinharmos numa ordem constante e num plano uniforme
“pessoas” definidas pela sua sucessão e relacionadas com
esses seres que são “eu”, “tu” e “ele”, não fazemos senão
transpor para uma teoria pseudolinguística diferenças de
natureza lexical. Essas denominações não nos informam nem
sobre a necessidade da categoria, nem sobre o conteúdo que
ela implica, nem sobre as relações que reúnem as diferentes
pessoas. É preciso, portanto, investigar como cada pessoa se
opõe ao conjunto das outras e sobre qual princípio se funda a
sua oposição, já que não podemos atingi-las a não ser pelo que
as diferencia. (BENVENISTE, 1966, p. 226).
Observamos que, desde essa primeira distinção, Benveniste
aponta para o fato de que eu e tu são categorias da língua e tomálos como indivíduos empíricos do mundo, para uma classificação
gramatical, seria um critério pseudolinguístico. Assim, para o autor,
uma teoria linguística da pessoa verbal somente poderá se constituir
com base nas oposições de natureza linguística que diferenciam
as pessoas. Na gramática do árabe, é revelada a primeira grande
SUMÁRIO
100
disparidade entre as pessoas, pelo próprio modo como são definidas: a
primeira pessoa é al-mutakallimu, “aquele que fala”, a segunda pessoa
é al-muhatabu, “aquele a quem nos dirigimos”, mas a terceira pessoa
é al-ya’ibu, “aquele que está ausente”. Nota-se, então, que, ao passo
que nas duas primeiras pessoas há realmente uma pessoa implicada
e, concomitantemente, um discurso sobre essa pessoa, na terceira há
apenas um predicado que é enunciado, fora da relação eu-tu:
Nas duas primeiras pessoas, há simultaneamente uma pessoa
implicada e um discurso sobre essa pessoa. “Eu” designa
aquele que fala e implica ao mesmo tempo um enunciado
imputado a “eu”: dizendo “eu”, eu não posso não falar de mim.
Na segunda pessoa, “tu” é necessariamente designado por
“eu” e não pode ser pensado fora de uma situação apresentada
a partir do “eu”; e, ao mesmo tempo, “eu” enuncia algo como
predicado de “tu”. Mas da terceira pessoa, um predicado é
bem enunciado somente fora do “eu-tu”; essa forma é assim
excetuada da relação pela qual “eu” e “tu” se especificam. Daí
a legitimidade dessa forma como “pessoa” ser questionável.
(BENVENISTE, 1966, p. 228).
Se, por um lado, na relação eu-tu, quando alguém toma a
palavra e enuncia “eu”, essas pessoas não podem ser excluídas, pois
estão implicadas compulsoriamente no que é dito, por outro lado, ele
será sempre o ausente da relação eu-tu e, por isso, o seu enunciado
será somente um predicado não imputável a eu. Para o autor:
Estamos aqui no centro do problema. A forma dita de terceira
pessoa comporta uma indicação de enunciado sobre alguém
ou alguma coisa, mas não que está relacionada a uma “pessoa”
específica. O elemento variável e propriamente “pessoal” dessas
denominações falta aqui. É bem o ausente dos gramáticos
árabes. Só apresenta o invariante inerente a toda forma de uma
conjugação. (BENVENISTE, 1966, p. 228).
Após exemplificar o fato em diversas línguas, incluindo o
semítico, o turco, o ugro-fínico, o georgiano, o caucásico, o gravídico,
o esquimó, o burushaski, algumas línguas ameríndias e as indo-
SUMÁRIO
101
europeias, Benveniste postula, então, que a “terceira pessoa” não
é, na verdade, “pessoa” e que a tendência da forma verbal é a de
“colocar em relevo o índice de sujeito, o único que pode manifestar.
Temos aqui uma regularidade de caráter extremo e excepcional”
(BENVENISTE, 1966, p. 230).
Uma outra característica singular, somente averiguada entre
eu-tu, é o fato de que são inversíveis: a cada vez que um eu toma
a palavra, seu interlocutor torna-se um tu, o que pode ser repetido a
cada troca. Com ele não é possível fazer essa troca, pois ele nem pode
tomar a palavra e se dirigir a um tu, nem pode ser o alocutário de eu.
Chamamos atenção, ainda, sobre o que Benveniste chama
de unicidade específica das pessoas eu e tu. Eu e tu são únicos,
pois, a cada vez que alguém diz “eu” e, necessariamente, aloca um
tu, é preciso deslocar esses papéis, de acordo com cada situação
específica em que, quem quer que seja, diz “eu”, ao passo que ele
pode ser uma infinidade de coisas e indivíduos.
É importante frisar também que, se eu e tu compartilham da
característica de pessoalidade, por um lado, por outro, não são
homogêneos: o tu está em relação de polaridade com eu no discurso
e, por isso, é não eu ou não subjetivo. A única pessoa marcada pelo
traço da subjetividade é eu.
A “terceira pessoa”, ou não pessoa, por sua vez, “é a única
pela qual uma coisa é predicada verbalmente” (BENVENISTE,1966, p.
230). Por essa afirmação, temos, então, que a primeira pessoa não
tem a função de predicar coisas, o que é particularmente central para
constituir as noções de referência e dêixis que pretendemos resgatar
ao longo do trabalho.
Com essas oposições fundamentais, Benveniste desfaz a
aparente homogeneidade em que a terminologia da nossa tradição
SUMÁRIO
102
gramatical nos faz acreditar. Essa crítica, entretanto, não tem apenas
consequências superficiais sobre os nomes das categorias, mas
aponta para uma regularidade das línguas em enfatizar o sujeito,
“o único que pode manifestar” – outra característica importante que
distingue as funções das categorias de pessoa e não pessoa.
Estabelecidas essas distinções fundamentais, trataremos de
aprofundar alguns aspectos da oposição entre pessoa e não pessoa,
que dizem respeito à atuação em diferentes instâncias, configurando
diferentes modos de linguagem.
DIFERENTES MODOS DE LINGUAGEM
Em A natureza dos pronomes (1956), Benveniste reafirma
a questão da oposição entre as categorias envolvendo a pessoa e
acrescenta que
Os pronomes não constituem uma classe unitária, mas
espécies diferentes, conforme o modo de linguagem do qual
são signos. Uns pertencem à sintaxe da língua, os outros são
característicos do que chamaremos “as instâncias de discurso”,
ou seja, os atos discretos e cada vez únicos pelos quais a língua
é atualizada na fala por um locutor. (BENVENISTE, 1966, p. 251).
Aqui novos elementos aparecem, configurando dois modos de
linguagem em que atuam pessoa e não pessoa. Os pronomes que
pertencem à sintaxe da língua, de acordo com Benveniste, são os de
não pessoa, que remetem a uma situação “objetiva”, como no exemplo
dado pelo autor:
Assim, na classe formal dos pronomes, os chamados
“terceira pessoa” são inteiramente diferentes de eu e
pela sua função e pela sua natureza. Como já se viu
muito tempo, as formas como ele, o, isso, etc só servem
SUMÁRIO
de
tu,
há
na
103
qualidade de substitutivos abreviativos: Pedro está doente;
ele está com febre; substituem-se um ou outro dos elementos
materiais do enunciado ou revezam com eles. (...) É uma
função de “representação” sintática que se estende assim
a termos tomados às diferentes “partes do discurso”; e que
corresponde a uma necessidade de economia, substituindo
um segmento do enunciado e até um enunciado inteiro, por
um substituto mais maleável. Assim, não há nada de comum
entre a função desses substitutos e a dos indicadores de
pessoa. (BENVENISTE, 1966, p. 256).
O pronome “ele”, no exemplo, encontra o referente que
representa na própria linearidade do enunciado, ao associar-se a
“Pedro”. Esse funcionamento dos pronomes de terceira pessoa
realiza-se no âmbito mesmo da sintaxe, sem a ancoragem na
situação enunciativa e, por isso, trata-se de uma situação “objetiva”,
nas palavras de Benveniste. O pronome não pessoal ele substitui
algo objetivamente em relação ao que foi enunciado.
Os pronomes pessoais têm outra função, são indicadores
de pessoa:
Eu somente pode ser definido em termos de locução, não em
termos de objetos, como o signo nominal. Eu significa ‘a pessoa
que enuncia a presente instância de discurso que contém eu’.
Instância única por definição e válida somente na sua unicidade.
(BENVENISTE, 1966, p. 252).
O pronome pessoal eu não substitui nem representa nada no
enunciado que o contém, mas relaciona o enunciado à própria alocução.
Assim, remissões operadas pela não pessoa e pela pessoa
concernem a dois diferentes modos de linguagem, em diferentes
instâncias, uma da sintaxe dos enunciados, outra do ato de enunciação.
Uma das grandes razões e importância, para o nosso estudo,
de propor a oposição entre as pessoas eu-tu, de um lado, e a não
pessoa ele/nomes lexicais, de outro, está em fazer emergir o “tipo de
SUMÁRIO
104
realidade” a que remetem, conforme expressão de Lahud (1979). A
não pessoa remete a toda e qualquer coisa, exceto à própria instância
de discurso que a contém, daí a sua “objetividade”. Já a realidade
a que se aplicam eu e tu é a própria instância de discurso, o que se
configura como outro tipo de realidade, pois a pessoa somente é
pessoa enquanto e durante o momento em que um eu fala e marca
sua fala, dizendo “eu”. Assim, esse outro tipo de realidade somente
se define no que diz respeito à própria locução, no instante e pelo
instante em que ela acontece. Eu e tu pertencem, portanto, a uma
realidade diferente, criada pelo próprio eu que diz “eu” e, por isso,
é uma realidade de discurso, existindo somente ali e efemeramente.
Assim, podemos falar, junto com Benveniste (1966), de uma
“referência objetiva”, operada pelos nomes, e de uma “referência
própria”, operada por eu. Se os nomes lexicais constituem uma classe
de referência a objetos, “eu” refere a própria alocução e corresponde,
a cada vez, a um ser único.
Outras relações, que abarcam a amplitude dos textos,
decorrem desses diferentes modos de linguagem, em que se
operam referências “objetivas” e “próprias” e podem também ser
compreendidas à luz da distinção entre pessoa e nomes lexicais:
Entre eu e um nome referente a uma noção lexical, não há
somente as diferenças formais, muito variáveis, que a estrutura
morfológica e sintática das línguas particulares impõe. Há
outras, que se devem ao próprio processus de enunciação
linguística e que são de uma natureza mais geral e mais
profunda. O enunciado que contém eu pertence ao nível ou tipo
de linguagem que Charles Morris chama de pragmático, que
inclui, com os signos, aqueles que os empregam. Podemos
imaginar um texto linguístico de grande extensão – um tratado
científico, por exemplo – em que eu e tu não apareceriam uma
única vez; inversamente, seria difícil conceber um curto texto
falado em que não fossem empregados. Mas os outros signos
da língua se repartiriam indiferentemente entre esses dois
gêneros de textos. (BENVENISTE, 1966, p. 251-252).
SUMÁRIO
105
Benveniste observa que, se, por um lado, eu inclui aqueles que o
empregam, e, por isso, num diálogo oral, é praticamente uma condição
obrigatória, por outro lado, num tratado científico, essa condição é
dispensável. Mas o que isso revela, além de diferentes gêneros de
textos? Pelo que entendemos, revela a relação que a categoria de
pessoa estabelece com o processus de enunciação linguística.
Destacamos, primeiramente, o uso do termo processus, que
mantivemos na tradução, justamente pela definição encontrada no Petit
Robert: “ensemble de phénomènes, conçu comme actif et organisé
dans le temps” (ROBERT; REY; REY-DEBOVE, 1987). O interessante
aí é que, nesse verbete, aguça-se o sentido de processo, não apenas
como sequência de ações na realização de algo, mas como “conjunto
de fenômenos, ativo e organizado no tempo”. Na explicação de
Benveniste, o nível “pragmático”, de Morris, é aquele em que se
instauram no processus ações em que eu comanda e/ou participa e/
ou organiza, relacionando-as à instância presente de eu. Em um outro
nível, que não inclui eu, as ações se desenvolvem num tempo e modo
“objetivos”, dados pelo próprio enunciado.
O tempo, como fica evidente no texto As relações de tempo
no verbo francês (1959), é também uma marca de subjetividade,
ao relacionar-se sempre a uma categoria de pessoa. Assim, o
processus de enunciação linguística que se verifica nos textos é
marcado ou não pela presença do eu e do tempo de eu, como
nos exemplos citados, entre um diálogo oral e um texto científico.
A solidariedade à instância de discurso de quem fala, ou a sua
ausência, revela dois planos, respectivamente: o discursivo e o
histórico. Alguns exemplos típicos do plano histórico são as narrativas
de acontecimentos passados, em que fatos são apresentados sem
nenhuma intervenção do locutor. É o caso dos contos de fadas, de
“Era uma vez...”, e também da maior parte dos livros didáticos de
história, por exemplo, em que não aparecem análises explícitas de
SUMÁRIO
106
historiadores, mas apenas o relato impessoal, como se os fatos
se produzissem “natural e objetivamente”. O plano do discurso
encampa toda e qualquer enunciação que suponha um locutor e
um ouvinte, além da marca de um engajamento, ou do convite ao
engajamento, partindo do locutor. Encaixam-se nessa descrição,
segundo Benveniste (1966), todos os gêneros orais de texto, em
que o locutor organiza sua fala na categoria de pessoa. Podemos
pensar aqui nos discursos políticos, em que um orador fala em
primeira pessoa, dirigindo-se a sua audiência, convocando-a a se
posicionar favoravelmente, conforme os valores e julgamentos que
imprime em sua fala.
Vê-se desenhar, então, na proposta de Benveniste, uma
série de importantes papéis na linguagem, desempenhados pelos
diferentes tipos de pessoa. Até aqui, as oposições engendradas pelas
categorias de pessoa e não pessoa e os domínios em que atuam ou
que distinguem, podem ser resumidos assim:
Quadro 1 – Relações de distinção.
Forma
eu/tu
ele/nomes lexicais
categoria da língua
pessoa
não pessoa
Instância
de discurso
da sintaxe do enunciado
Referência
própria
objetiva
Realidade
discursiva/subjetiva
objetiva
plano enunciativo
discursivo
histórico
Fonte: Elaborado pela autora.
Se os diferentes elementos da língua se relacionam a diferentes
instâncias, da sintaxe e do discurso, e ao processus de enunciação,
organizado ou não pela presença e pelo tempo de eu, definindo
diferentes planos enunciativos dos textos, conforme acabamos de
expor, as propriedades de eu/tu, em comparação com os nomes
lexicais e pronomes de não pessoa, podem revelar ainda outro tipo
SUMÁRIO
107
de disparidade que diz respeito à relação de sentido que cada um
dos grupos de signos comporta e estabelece com a enunciação. De
acordo com Lahud:
A distinção entre pessoa e não pessoa reflete, portanto, uma
oposição mais profunda, cujo traço distintivo essencial é a relação
do sentido dos signos com a enunciação: é a ausência de uma
tal relação que faz do “ele” um elemento pertencente àquilo que
Benveniste denomina esfera “cognitiva” da linguagem e, por
isso, um signo adequado para designar coisas da “realidade
objetiva”; e é a impossibilidade de se conceber a natureza
semântica de “eu-tu” fora de uma remissão à enunciação que
os torna não-referenciais em relação à realidade”: pode-se,
quando muito, dizer que são autorreferenciais, no sentido de
elementos refletindo seu próprio emprego em cada instância de
discurso onde sua presença imprime no enunciado uma marca
da apropriação da língua por um sujeito. (LAHUD, 1979, p. 110)
Além de chamar a atenção para essa disparidade mais ampla
e profunda em que estão implicados os signos e suas funções na
linguagem, na relação de sentido que estabelecem com a enunciação,
mais duas questões podem ser encetadas, a partir desse trecho. Uma
delas é a característica autorreferencial atribuída aos signos de pessoa,
que, de acordo com Benveniste (1966), os define como dêiticos. A
outra é sobre a afirmação de que os signos da esfera “cognitiva” da
linguagem são os elementos apropriados para designar coisas da
“realidade objetiva”, ao passo que os elementos eu e tu, porque não
podem ser concebidos a não ser com referência à própria enunciação,
não pertencem a essa realidade objetiva. As perguntas que lançamos
são: o que torna os elementos de não pessoa “apropriados” para
designar a realidade objetiva e, por outro lado, o que caracteriza os
elementos de pessoa como autorreferenciais, pertencentes unicamente
à realidade discursiva?
Com isso, chegamos no ponto alto de nossa discussão. Para
examinar mais de perto essas questões, começaremos pelo estatuto
referencial dos elementos de pessoa.
SUMÁRIO
108
O ESTATUTO NÃO REFERENCIAL DE EU
Conforme descrito nas seções anteriores, as diferentes pessoas
estão vinculadas a diferentes funções da linguagem. De acordo com
Lahud (1979), o principal papel de eu é o de assegurar aos locutores
a possibilidade de se colocarem no instante e pelo instante em que
dizem “eu” na posição de sujeito do seu próprio discurso. A ele está
reservado o lugar de representar uma invariante não pessoal e apenas
isso. Estão associados a esses papéis os modos pelos quais os signos
de pessoa e não pessoa se relacionam, ora com a alocução, ora com
os objetos, respectivamente.
É exatamente neste ponto que precisamos nos aprofundar para
prosseguir nessa distinção, pois é aí que podemos encontrar alguma
luz sobre as características dos signos que permitem as diferentes
relações com a enunciação, conforme nossa indagação no final da
seção anterior. Essas características nem sempre ficam muito evidentes
no texto de Benveniste:
[...] é também como instância de forma eu que deve ser
tomado; a forma eu somente tem existência linguística no ato
de fala que a profere. Há, pois, nesse processo uma dupla
instância conjugada: instância de eu como referente e instância
de discurso eu, como referido. A definição pode, então, ser
assim especificada: eu é o “indivíduo que enuncia a presente
instância de discurso que contém a instância linguística eu”.
(BENVENISTE, 1966, p. 252-253).
Há uma sobreposição, aqui, causada pela atribuição do papel
de referente e referido e que pode causar um imbróglio sobre o papel
de eu, a princípio. Tentemos deslindar primeiramente o que é a dupla
instância que se conjuga entre língua e discurso. Em uma, há a forma
linguística eu que é proferida, no ato de fala, na outra, há o eu como
referente, no enunciado: “‘eu’ designa aquele que fala e implica ao
SUMÁRIO
109
mesmo tempo um enunciado imputado a ‘eu’: dizendo ‘eu’ não posso
deixar de falar de mim” (BENVENISTE, 1966, p. 228). Entretanto,
a dúvida que pode surgir é: se ao dizer “eu”, além da remissão à
instância de discurso, é designado aquele que fala, não estamos aí a
falar do referente da realidade objetiva? Apesar de ressaltar o papel de
eu, como o que pode manifestar, e o de ele, como o único que pode
referir coisas, Benveniste realmente não nega o referente eu que está
indissociavelmente ligado à forma eu enunciada, mas lhe atribui um
outro estatuto, não referencial:
[...] uma propriedade fundamental e, além disso, manifesta,
de eu e tu na organização referencial dos signos linguísticos.
Cada instância de emprego de um nome se refere a uma
noção constante e “objetiva”, apta a permanecer virtual ou a se
atualizar em um objeto singular, que perdura sempre idêntica
na representação que desperta. Mas as instâncias de emprego
de eu não se constituem em uma classe de referência, já
que não há objeto definível como eu, ao qual possa remeter
identicamente essas instâncias. Cada eu tem sua referência
própria e corresponde a cada vez a um ser único, posto como
tal. (BENVENISTE, 1966, p. 252).
Conforme nossa interpretação do trecho citado acima, sendo
os nomes signos “fixos”, por fazerem parte do conjunto do léxico da
língua, estão sempre disponíveis virtualmente aos falantes. Na sua
instância de emprego, prestam-se para atualizar a referência a um
objeto singular, que se mantém, contudo, idêntica na representação
que desperta nos falantes, pelas suas propriedades extensionais.
Pertencem, assim, a uma esfera “cognitiva”.
Muito diferente é o comportamento das instâncias de
emprego de eu e tu. Em primeiro lugar, para Benveniste, eu e
tu não podem referir identicamente, pois referem, a cada nova
enunciação, um eu e um tu únicos. Não existiriam, portanto, como
signos virtuais. Essa característica leva Benveniste a chamá-los de
SUMÁRIO
110
signos vazios, pois somente são “preenchidos” quando atualizados
na instância de discurso.
É preciso sinalizar, porém, um problema em considerarmos
a inexistência desses elementos como signos virtuais. O fato de eu
designar o locutor, e não outra coisa ou indivíduo, e tu, o alocutário,
e não outra coisa ou indivíduo, enfraquece a noção de signo vazio15.
Assim, Kleiber (1986), por exemplo, argumenta a favor da ideia de que o
denotatum de elementos como eu e tu é mais vago, mas não inexistente.
A nosso ver, nem é o caso de ser exatamente vago, já que, a cada
instância, eu e tu têm papéis e referentes bem definidos. A questão é
que o denotatum desses elementos é apenas a sua função gramatical,
o que lhes caracteriza como variáveis, cuja definição somente é dada
no e pelo instante do ato de enunciação, diferentemente dos nomes,
que têm suas descrições fixadas pelo léxico. Essa seria, então, nossa
alternativa, para diferenciar os signos de pessoa dos signos lexicais,
sem recorrer ao conceito de signos vazios.
Ao discutir sobre a “pureza” da noção de autorreferencialidade,
Kleiber (1986) explica suas versões fortes e mais flexíveis, em
associação à token reflexivity, e problematiza essa dupla função
de um elemento, como eu, em remeter à própria instância, mas
simultaneamente também ao referente “eu”. Aqui, além de mergulhar
mais fundo no que diz respeito ao estatuto não referencial dos
dêiticos, vemos também a oportunidade de especificar melhor o que
é autorreferência. Nesta altura, e para o alcance a que nos propomos
aqui, ao depararmo-nos com a argumentação de Kleiber (1986), fica
ainda mais evidente o quanto a função designativa dos dêiticos não
é propriamente referencial, pois, como o próprio Kleiber observa,
as instruções fornecidas, indicando a instância de discurso de eu,
não são suficientes para encontrar o referente ao qual a expressão
15 A noção de signo vazio remonta a Husserl (1969 [1913]), de quem Bühler (1932) já teria
tomado emprestado inclusive o termo Bedeutungerfüllung (preenchimento de significação).
SUMÁRIO
111
dêitica corresponde. A identidade de conexão entre a ocorrência e o
referente não garantem a sua identificação ou, em outras palavras, a
informação de que uma determinada ocorrência de “eu” ou “aqui” que,
sabemos, remete à presente instância temporal e espacial de “eu”,
não nos oferece, por si só, uma precisa identificação dos referentes
que correspondem a esse indivíduo ou lugar. Quando o objetivo é
encontrar o referente, então, é preciso de alguma outra informação
não fornecida pelo dêitico, como um gesto, uma imagem ou algum
outro tipo de percepção sensorial associada aos objetos e lugares
“reais”. Seguindo no raciocínio que nos oferece Kleiber (1986), a sua
definição, próxima à de símbolo indexical, é a de que “os dêiticos são
expressões que remetem a um referente, cuja identificação só pode ser
operada pelo entorno espaço-temporal de sua ocorrência”. Ora, esse
entorno espaço-temporal, também mencionado como contexto, não é
o da realidade do discurso, mas o da realidade objetiva. Para Lahud
(1979), que também se alinha a Benveniste, a dêixis é “quando muito”
autorreferencial, no sentido de que não diz respeito à realidade dos
objetos. Ainda para o autor, se “eu” refere, é única e exclusivamente a
sua própria instância.
As explicações de Kleiber (1986), portanto, só vêm corroborar
o postulado de que o aspecto referencial não está no dêitico, mas
em algo do entorno objetivo de sua ocorrência e não representado
pela expressão dêitica em si. A designação realizada por eu não
identifica quem fala, porque não há nada na mera menção de “eu” que
aponte para o indivíduo eu no mundo, mas há apenas a sinalização
de um eu que fala no mundo, conforme explicamos antes, o que se
deve ao conteúdo limitado do denotatum desses signos. E, por isso,
Benveniste afirma que eu não pode ser definido em termos de “objeto”,
mas apenas em termos de “locução”.
Por tudo isso, evidentemente, não faz sentido, para nós, definir
os dêiticos como “expressões que remetem a um referente”. Eu e
SUMÁRIO
112
tu são categorias da língua que remetem ao discurso e é somente
nessa realidade que intervêm: está aí, aliás, o próprio traço distintivo
da dêixis, qual seja, o de ser “contemporânea da instância de discurso
que contém o indicador de pessoa” (BENVENISTE, 1966, p.253).
Encerrando esta seção, acrescentamos os novos elementos
discutidos no quadro, em que sumarizamos a reflexão por tópicos:
Quadro 2 – Relações de distinção.
Forma
eu/tu
ele/nomes lexicais
categoria da língua
pessoa
não pessoa
Instância
de discurso
da sintaxe do enunciado
Referência
própria
objetiva
Realidade
discursiva/subjetiva
objetiva
plano enunciativo
discursivo
histórico
Esfera
locução
“cognitiva”
Signo
vazios ou “variáveis”
virtuais ou “fixos”
Denotatum
inexistente/vago/
função gramatical
disponível no léxico
estatuto/domínio
não referencial/
autorreferencial
referencial
Fonte: Elaborada pela autora.
DÊIXIS E REFERÊNCIA
Há outros indicadores que se unem a eu/tu por compartilharem
da característica de ser contemporâneos da instância de discurso
que contém o indicador de pessoa. Vemos, então, porque a dêixis,
em Benveniste, não diz respeito ao domínio referencial, mas funciona
justamente como o indicador do outro domínio, que é autorreferencial.
Os indicadores que se organizam correlativamente a eu/tu, conforme
SUMÁRIO
113
Benveniste, são, primeiramente, os demonstrativos, como os do latim
hic/iste (designando algo mais próximo de quem fala ou mais próximo
do interlocutor, respectivamente). De acordo com o autor, ainda,
“fora dessa classe, mas no mesmo plano e associados à mesma
referência, encontramos os advérbios aqui e agora”16 (BENVENISTE,
1966, p. 253), delimitando a instância espacial e temporal coextensiva
e contemporânea da presente instância de discurso que contém eu.
Lahud (1979) afirma:
Os dêiticos provam que o sujeito está na língua e que, por
conseguinte, a descrição semântica desta nos informa
necessariamente alguma coisa sobre uma outra realidade
que não ela própria: não sobre aquilo de que se fala, mas
[...] sobre “nós mesmos enquanto pessoas que falam”.
(LAHUD, 1979, p. 124).
É em informar “sobre nós mesmos enquanto pessoas que
falam” que Benveniste deposita a autorreferencialidade que atribui aos
dêiticos, pois aí está a sua necessidade de existir. E, assim, pode-se
identificar a função dos signos autorreferenciais em indicar a relação
que estabelece entre o enunciado e o eu-aqui-agora da enunciação,
distinta da função dos signos referenciais, os quais, por sua vez, têm
um papel representativo em relação ao objeto que designam.
Um dêitico só pode ser definido, então, conforme Benveniste
(1966, p. 253), levando-se em conta seu papel essencial, que é realizar
“a relação entre o indicador (de pessoa, de tempo, de lugar, de objeto
mostrado etc.) e a presente instância de discurso”. Por outro lado,
quando não se visa mais a essa indicação, a língua recorre a uma série
de outros termos, que não se referem mais à instância de discurso,
mas aos objetos “reais”, aos tempos e lugares “históricos”.
16 Dos advérbios aqui e agora, por sua vez, derivam uma outra série que procede da mesma
relação, quais sejam, hoje, ontem, em quinze dias etc. Não nos deteremos aqui nos tipos
dêiticos, mas apenas naquilo que pode definir um dêitico.
SUMÁRIO
114
É nessa passagem que buscamos apoio para afirmar que a
linguagem nos oferece dois diferentes modos de referir: um associado
à dêixis, autorreferencial, outro associado aos elementos que permitem
referir objetos e, portanto, referencial, propriamente dito.
Pelo raciocínio que foi construído até aqui, podemos ir além,
no que concerne ao domínio da referência, especulando um pouco
mais sobre os elementos que aí atuam. Como vimos, os elementos
que evocam objetos, numa função de representação desses objetos,
pertencem ao domínio da não pessoa e são recorrentemente os
pronomes de não pessoa e os nomes lexicais. Todo elemento que
assim se comporta atua em relações anafóricas, especialmente
em sequências de enunciados e nos textos, já que um termo que
remete a um referente, uma vez empregado, serve de fonte para
que outras referências sejam realizadas, a partir dele17. Reforça
nossa afirmação Lahud (1979, p. 116): “denomina-se anafórico todo
segmento do discurso que remete, por uma relação dita ‘substitutiva’
ou ‘representativa’, a um outro segmento (palavra, sintagma, frase),
em geral antecedente, da mesma sequência”. Apesar de partir de
um conceito limitado sobre anáfora, meramente sobre o seu papel
sintático, vislumbra-se, a seguir, uma certa percepção da precariedade
desse conceito, quando o autor critica a concepção de anáfora como
um procedimento puramente retórico, desempenhando uma função de
“pura e simples substituição”, e ressalta a necessidade de investigar
“os valores funcionais que as unidades substituídas devem assumir”
no novo segmento em que aparecem. Ora, sabemos que, nesse
hiato entre uma ocorrência e o novo segmento em que aparecem os
elementos anafóricos, estão questões que ultrapassam a sintaxe da
frase e vão em direção ao texto e toda a complexidade que isso implica.
Contudo, para o ponto em que queremos chegar, mantendo-nos no
escopo deste capítulo, podemos desprezar, por ora, o alcance textual
17 Ver Ciulla (2008) sobre a definição e o funcionamento da anáfora e sobre as diversas
funções dos processos referenciais anafóricos nos textos.
SUMÁRIO
115
da anáfora. A característica desses elementos que cabe aqui ressaltar
é o fato de que “essa função “representativa” (semântica ou sintática)
constitui os anafóricos num subsistema da língua, por oposição aos
elementos propriamente apresentativos desta” (LAHUD, 1979, p. 117).
Com isso, trazemos novamente à baila a problematização
benvenistiana das teorias pronominais clássicas, que tentam reunir,
sob uma única classe dos pronomes, elementos distintos: de um
lado, os elementos “representativos” da língua (pronome = para um
nome) e os da dimensão mais propriamente significativa (pronome
= como um nome), e, de outro lado, os que têm o caráter específico
de marcar uma relação ao ato de fala. Esses elementos distintos não
são nada mais do que, de um lado, a anáfora, de outro, a dêixis.
Conforme Benveniste, ainda:
[...] na classe formal dos pronomes, aqueles ditos de “terceira
pessoa” são totalmente diferentes de eu e tu, pela sua função
e pela sua natureza. Como vimos, desde há muito tempo, as
formas, como ele, o, aquilo, etc. somente servem na qualidade
de substitutivo abreviativo (Pedro está doente. Ele tem
febre.); eles substituem ou revezam algum elemento material
do enunciado. Mas essa função não está ligada somente aos
pronomes [...] É uma função de “representação” sintática
que se estende assim a termos relacionados a diferentes
“partes do discurso” e que responde a uma necessidade
de economia [...]. Não há nada de comum entre a função
desses substitutos e aquela dos indicadores de pessoa.
(BENVENISTE, 1966, p. 256).
Afora as dificuldades de lidar com a especificidade das
representações operadas pelos anafóricos, fica patente nesse trecho
e neste ponto do nosso trabalho que “ele não é pessoal na exata
medida em que é anafórico; ou que a disparidade entre eu/tu e
ele, sobre a qual tanto insistimos, corresponde ao fato de que ele
‘representa’, ao passo que eu/tu são signos de uma ‘relação ao ato
de fala’” (LAHUD, 1979, p. 118).
SUMÁRIO
116
E, assim, dentro dessa perspectiva que apresentamos, o
fenômeno da dêixis se opõe ao domínio da referência, por ser não
referencial e se caracterizar pela autorreferência, mas também se
encontra num plano de oposição em relação à anáfora. Na função
de referir objetos, os signos lexicais e pronominais de não pessoa,
por atuarem na sintaxe dos enunciados e na esfera “cognitiva”, se
prestam para representar e simbolizar tais objetos, que ficam, assim,
disponíveis para o funcionamento anafórico. Na função de informar
sobre nós mesmos como as pessoas que falam, isto é, na função
autorreferencial, os signos de pessoa, que se definem somente em
termos de locução, se prestam para indicar a presente instância de eu
e se constituem como dêiticos.
O plano de oposição entre dêixis e anáfora revela, então, o tipo
de relação que os signos estabelecem com a enunciação: a dêixis,
no domínio da autorreferência, com a função de indicar a relação
ao ato de fala, e a anáfora, no domínio referencial, com a função de
representar objetos.
Nos quadros abaixo, resumimos as oposições que propomos.
No quadro 3, constam os tópicos com os termos-chave das
distinções desta seção:
Quadro 3 – Relações de distinção.
domínio
autorreferência
referência
categoria da língua
pessoa
não pessoa
tipo de relação com a
enunciação
dêixis
anáfora
função
indicação da relação
ao ato de fala
representação
de objetos
Fonte: Elaborado pela autora.
No quadro seguinte, reunimos todas as distinções, com
base nas discussões que apresentamos neste capítulo, sempre em
SUMÁRIO
117
tópicos, com os termos-chave e a relação com a esfera ou domínio
em que atuam:
Quadro 4 – Relações de distinção.
forma
eu/tu
ele/nomes lexicais
categoria da língua
Pessoa
não pessoa
instância
de discurso
da sintaxe do
enunciado
referência
Própria
objetiva
realidade
discursiva/subjetiva
objetiva
plano enunciativo
Discursivo
histórico
esfera
Locução
“cognitiva”
signo
vazios/“variáveis”
virtuais/“fixos”
denotatum
inexistente/vago/
função gramatical
disponível no léxico
domínio
autorreferência
referência
tipo de relação com a
enunciação
Dêixis
anáfora
função
indicação da relação
ao ato de fala
representação
de objetos
Fonte: Elaborado pela autora.
CONCLUSÃO
Cada um dos itens discutidos e cada oposição sugerida por
Benveniste comporta detalhes que renderiam novas discussões
e desenvolvimentos, num verdadeiro labirinto de inquietações e
conhecimento, o que comprova a riqueza do pensamento deste autor.
Limitamo-nos aqui a fazer um recorte daquilo que pode nos levar a
compreender melhor a contribuição de Benveniste à discussão sobre
a dêixis e sobre a referência. Ancorando nosso estudo em uma antiga
SUMÁRIO
118
problemática envolvendo esses conceitos, apresentamos, então, um
estudo bastante inicial, em que, em primeiro lugar, defendemos, ao
lado de Benveniste, uma noção “pura” de dêixis, no sentido de que
um dêitico é somente indexical em relação à instância de discurso que
contém “eu”, definindo-se, portanto, pela autorreferência. O dêitico
não refere, mesmo contendo a menção ao referente, pois a única
informação que carrega é a de remeter à sua própria realidade de
discurso. O referente de “eu” no mundo, para ser identificado, precisa
de recursos de outro domínio, que escapam à autorreferência.
Tomando sempre a reflexão de Benveniste sobre a categoria
de pessoa como eixo condutor, identificamos, de um lado, a dêixis e
as suas propriedades autorreferenciais, e, de outro, a anáfora e suas
funções referenciais, associadas a dois distintos modos de relacionar
os signos com a enunciação.
Como trabalhos futuros, sugerimos uma investigação aprofundada
sobre o funcionamento das anáforas, o que implicaria também em
considerar o texto, à luz dos pressupostos teóricos de Benveniste.
REFERÊNCIAS
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v. 63, n.251, p.359-379, 1954.
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Gallimard, 1966.
BÜHLER, Karl. Sprachtheorie: Die Darstellungsfunktion der Sprache. Jena:
Fischer, 1934.
BRUGMANN, Karl. Kurze vergleichende Grammatik der indogermanischen
Sprachen. Strasbourg : K.J.Trübner, 1904.
CIULLA, Alena. Os processos de referência e suas funções discursivas: o
universo literário dos contos. 2008. 201p. Tese (Doutorado em Linguística) –
Universidade Federal do Ceará, Fortaleza.
SUMÁRIO
119
CIULLA, Alena. Um lugar para a referência, sob um ponto de vista da
enunciação. Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, v.60, n.3,
p.1-18, 2018a.
CIULLA, Alena. Sobre a definição de dêixis a partir de “A natureza dos
pronomes”. Desenredo, v.14, n.3, p.364-379, 2018b.
DUCROT, Oswald e TODOROV, Tzvetan. Dicionário enciclopédico das
ciências da linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2010.
FILLMORE, C. Lectures on deixis. Berkeley: University of California, 1971.
FILLMORE, C. Lectures on deixis. California: CSLI Publications, 1977.
FLORES, Valdir do Nascimento. Introdução à teoria de Benveniste. São Paulo:
Parábola, 2013.
HUSSERL, Edmund. Recherches logiques. tII/I, Paris : PUF, [1913]1969.
KLEIBER, George. Déictiques, embrayeurs, “token-reflexives”,
symboles indexicaux, etc.-comment les définir ? L’Information
Grammaticale, n.30, 1986, p.3-22.
LAHUD, M. A propósito da noção de dêixis. São Paulo: Ática, 1979.
LEVINSON, S. C. Pragmatics. Cambridge: Cambridge University Press, 1983.
LYONS, J. Semantics. London: Cambridge University Press. 2.v., 1977.
ROBERT, Paul; REY, Alain; REY-DEBOVE, Josette. Le Petit Robert. Paris:
Dictionnaires Le Robert, 1988.
SUMÁRIO
120
Capítulo 5
5
BLASFEMIA: UM OUTRO
MODO DE ENUNCIAÇÃO
Elisa Marchioro Stumpf
Elisa Marchioro Stumpf
BLASFEMIA:
UM OUTRO MODO
DE ENUNCIAÇÃO
DOI: 10.31560/pimentacultural/2020.281.121-140
INTRODUÇÃO
O aniversário de cinquenta anos da publicação do texto “O
aparelho formal da enunciação”, um dos mais célebres textos do
linguista Émile Benveniste, foi o estímulo para levarmos a cabo uma
análise de um artigo cronologicamente próximo, embora menos
reconhecido, intitulado “A blasfemia e a eufemia”, publicado em
1969. Se, em outras ocasiões (STUMPF, 2017, no prelo), nossa leitura
buscou nele subsídios para estudarmos a dimensão antropológica
da enunciação18 (DESSONS, 2006, ONO, 2007, LAPLANTINE, 2008;
TEIXEIRA, 2012; FLORES, 2013), na tentativa de compreender
fenômenos como o eufemismo, a blasfemia e o juramento, nosso
objetivo neste texto é elencar e sistematizar suas contribuições para
a caracterização da enunciação no pensamento de Benveniste. Tal
propósito é semelhante ao de Ono (2012), que destaca algumas
reflexões pertinentes à temática da enunciação ao estudar as notas
preparatórias de “A blasfemia e a eufemia”. Entretanto, procuramos
dar um passo além e responder a uma observação feita pela autora no
texto(ONO, 2012, p. 78): seria a blasfemia um modo de enunciação?
18 Conforme explicamos em nossa tese de doutorado (STUMPF, 2017, p. 37-38), “nos trabalhos
mais recentes da área de enunciação, pode-se perceber uma passagem de estudos mais
restritos à descrição de marcas de subjetividade em enunciados em direção a pesquisas
que procuram mostrar que: a) há uma teoria da linguagem presente na obra benvenistiana,
e não apenas uma teoria da enunciação, e b) ela fornece subsídios para pensar um projeto
de uma ciência geral do homem. Sustenta-se, assim, que essa nova forma de pensar a
teoria mostra-se útil em diversos estudos sobre as ‘atividades significantes dos homens
em qualquer tipo de interação social’ (TEIXEIRA, 2012, p. 72). Toma-se como axioma dessa
nova visada a ideia de que ‘o homem está na língua’. Esse princípio não é algo inédito nas
pesquisas enunciativas, pois, como dissemos anteriormente, elas têm tradicionalmente se
ocupado em mostrar as marcas de subjetividade em diversas manifestações linguísticas.
Entretanto, acreditamos que eleger esse princípio como norteador da leitura da obra
benvenistiana revela e dá destaque a nuances do pensamento do autor até então poucos
exploradas, o que permite ver não apenas uma teoria da enunciação, mas uma reflexão
dedicada à importância da linguagem na constituição do homem e o funcionamento da
língua na sociedade, em especial no que diz respeito ao seu caráter significante.”
SUMÁRIO
122
Publicado nas atas de um colóquio voltado para a linguagem
teológica (L’analyse du langage théologique: le nom de Dieu), ocorrido
em Roma, em janeiro de 1969, “A blasfemia e a eufemia” encontra-se
na sexta parte de Problemas de Linguística Geral II, intitulada “Léxico
e cultura”. No prefácio de Problemas de Linguística Geral I, Benveniste
(2005, s./p.) explica que, nesta seção, “o que se destaca é o papel da
significação e da cultura: estudam-se aí os métodos da reconstrução
semântica, assim como a gênese de alguns termos importantes da
cultura moderna”. O artigo trata de um tema fundamental para a cultura
judaico-cristã – a interdição da pronúncia do nome de Deus –, mas
suas reflexões não se esgotam nesse tópico. Para Ono (2012, p. 77),
“as ideias expostas se situam no cruzamento de várias problemáticas
interessantes e podem fornecer um rico material para nossa reflexão
sobre alguns conceitos-chave da linguística benvenistiana”19. Às voltas
com os mecanismos envolvidos na blasfemia, Benveniste depara-se
constantemente com a questão da enunciação, uma relação que está
mais evidente nas notas preparatórias e merece ser mais detalhada.
Para tanto, iniciamos nosso texto com a análise de “A blasfemia
e a eufemia”, que retoma reflexões anteriores (STUMPF, 2017, no prelo)
e é enriquecida com o estudo realizado por Ono (2012). A seguir,
destacamos três aspectos que podem contribuir para o conceito de
enunciação e que, em nossa opinião, merecem ser mais explorados
para uma maior compreensão das densas temáticas tratadas por
Benveniste em seus últimos textos. Os três aspectos aqui analisados
justificam nossa resposta à pergunta feita anteriormente: a blasfemia
constituiria um outro modo de enunciação, cuja descrição e análise
ainda está por ser feita.
19 Do original: “les idées qu’il expose se situent au croisement de plusieurs problématiques
intéressantes et peuvent fournir de riches matières à notre réflexion sur certains concepts
clefs de la linguistique benvenistienne”. Tradução de nossa responsabilidade, bem como
as demais presentes neste capítulo.
SUMÁRIO
123
“A BLASFEMIA E A EUFEMIA”
É necessário compreender o vocabulário criado por Benveniste,
que afirma, no início do texto, que os termos “blasfemia” e “eufemia”
são neologismos motivados por duas questões. Primeiramente, servem
para evitar a confusão entre “blasfemia” com “blasfêmia” (embora em
português sua semelhança seja mais evidente do que em francês).
Blasfêmia é definida como “asserção difamante relativamente à religião
ou à divindade” (BENVENISTE, 2006, p. 259), ou seja, uma fala de
teor ofensivo que envolve o âmbito religioso. Já a blasfemia é definida
como “um processo de fala ... [que] consiste, de uma certa maneira,
em substituir o nome de Deus por sua injúria” (BENVENISTE, 2006, p.
260). Em segundo lugar, o neologismo “blasfemia” relaciona-se com
o outro termo introduzido pelo autor: “eufemia”. A semelhança entre
esses dois vocábulos tem por função associar os dois termos e propôlos como atividades simétricas. De acordo com Benveniste, blasfemia
e eufemia são atividades correspondentes, mas que se dão em forças
opostas, e cujo resultado é a imprecação, chamada de “expressão
blasfêmica por excelência” (2006, p. 259).
Nas notas preparatórias, percebe-se que, para Benveniste,
tais fenômenos dizem respeito ao domínio da linguagem, embora
seu estudo também perpasse outras áreas do conhecimento, como
religião, literatura e psicanálise. Para Ono (2012, p. 77), isso se
comprova mediante a presença de diferentes autores pertencentes
a tais domínios nas notas20. Entretanto, nos estudos linguísticos, “não
se retém da imprecação senão os aspectos pitorescos, anedóticos,
sem prender-se à motivação profunda nem às formas específicas da
expressão” (BENVENISTE, 2006, p. 259). É justamente esse o objetivo
20 Um fato anedótico interessante é a constatação de que, atualmente, o artigo “A blasfemia e
a eufemia” encontra-se presente como referência em estudos advindos de diversas áreas
do conhecimento, provando a importância das reflexões de Benveniste sobre o assunto.
SUMÁRIO
124
de Benveniste: explicar as causas da blasfemia e seu quadro locucional,
ou seja, como e em que circunstâncias ela se manifesta no discurso.
Iniciando pela motivação, Benveniste explica que, nas línguas
ocidentais, a blasfemia e suas manifestações linguísticas provêm da
“necessidade de violar a interdição bíblica de pronunciar o nome de
Deus” (BENVENISTE, 2006, p. 260). Deve-se ressaltar o objeto da
proibição, que não é falar sobre Deus, mas sim pronunciar o seu
próprio nome. Resulta disso a supressão dessa palavra do repertório
linguístico, o que o linguista afirma ser um paradoxo próprio dos
tabus: “este nome deve ao mesmo tempo continuar a existir enquanto
‘interdito’” (BENVENISTE, 2006, p. 260). Outras evidências apontam
que a pronúncia do nome de Deus seria o interdito máximo: as
consequências negativas (incluindo castigos corporais)21 que a
acompanham e a observação de tal interdição mesmo em sociedades
que ignoram o tabu a respeito da pronúncia do nome dos mortos22.
Isso vem da crença segundo a qual a simples pronúncia de tais
nomes poderia fazer o morto voltar ao mundo dos vivos. Constata-se
o mesmo princípio por trás de tais interdições: a identificação entre
falar e existir (ONO, 2012).
Benveniste recorre a Freud para explicar a natureza do tabu, que
seria uma proibição antiga contra os desejos mais fortes do homem,
determinado por alguma autoridade exterior. Ao profundo desejo
21 Embora Benveniste não as especifique, a tradição judaico-cristã estipulava desde
mutilações até a morte para quem pronunciasse o nome de Deus, conforme Nash (2007)
aponta no seu estudo sobre as leis contra blasfêmia na sociedade francesa entre os
séculos XIV e XVII.
22 Em “Totem e Tabu”, originalmente publicado em 1913, Freud discorre sobre a ocorrência
em diversos povos, afirmando que “a evitação do nome do falecido geralmente é aplicada
com um rigor extraordinário” (2013, p. 103). Além disso, de acordo com o autor, “para os
selvagens o nome é uma parte essencial e um patrimônio importante da personalidade
de que eles atribuem à palavra um pleno significado de coisa” (FREUD, 2013, p. 104). O
nome se identifica ao ser, portanto “pronunciar seu nome lhes parece uma invocação à qual
se seguirá de imediato sua presença” (FREUD, 2013, p. 106). Decorrem disso inúmeras
tentativas de modificar o nome para que ele não seja proferido.
SUMÁRIO
125
humano de profanar o sagrado, sobrepõe-se o interdito do nome de
Deus, visto que
[...] a tradição religiosa não quis reter senão o sagrado divino e
excluir o sagrado maldito. A blasfemia, à sua maneira, pretende
restabelecer essa totalidade, profanando o próprio nome
de Deus. Blasfema-se o nome de Deus, pois tudo o que se
possui de Deus é o seu nome. É só por aí que se pode atingilo, para comovê-lo ou para feri-lo: pronunciando seu nome
(BENVENISTE, 2006, p. 260, grifos do autor).
Para explicar o quadro locucional da blasfemia, Benveniste
ressalta a própria forma de expressão, que implica falar da expressão
emocional, um campo com suas regras e sua organização próprias. De
acordo com o linguista, “a blasfemia se manifesta como exclamação,
ela tem a sintaxe das interjeições, das quais constitui a variedade
mais típica” (2006, p. 261, grifo do autor). A classificação como
exclamação é importante, pois a “imprecação é bem uma palavra que
se ‘deixa escapar’, sob a pressão de um sentimento brusco e violento,
impaciência, furor, desventura”.
Conforme explicamos em Stumpf (2017, p. 80),
De maneira distinta das interjeições onomatopeicas (oh!,
ai! etc.), a blasfemia utiliza formas significantes. Por formas
significantes, entende-se palavras que pertençam a um dado
sistema linguístico compartilhado por uma comunidade. Ainda
que tenham um sentido, essas palavras não comunicam,
mas somente expressam, pois não se referem a nenhuma
situação particular. [...] Sendo assim, a mesma palavra pode
ser pronunciada em várias circunstâncias distintas e exprime
tão somente a intensidade de uma reação a tais circunstâncias.
Elas são utilizadas não com a intenção de declarar algo a
respeito da situação, mas sim para indicar a atitude do locutor
em relação a esta.
A descrição do quadro locucional é complementada com a
descrição feita pelo linguista:
SUMÁRIO
126
Ela não se refere também ao parceiro ou à terceira pessoa. Ela
não transmite nenhuma mensagem, ela não abre diálogo, não
suscita resposta, a presença de um interlocutor nem mesmo
é necessária. Ela não descreve também aquele que a emite.
Este se trai mais do que se revela. A imprecação lhe escapa, é
uma descarga emotiva. No entanto, esta descarga se realiza em
fórmulas fixas, inteligíveis e descritíveis (BENVENISTE, 2006, p.
261, grifos do autor).
Em francês, a fórmula fixa consiste na exclamação “nome de
Deus”, geralmente com a presença de um epíteto que ressalta a
transgressão: “sagrado nome de Deus”. Pode-se substituir “Deus”
por alguma outra entidade religiosa, tal como “madona” ou “virgem”.
Também é possível ressaltar a imprecação utilizando, no lugar do
“nome”, o “corpo” ou algum órgão, ou ainda a sua “morte”. Finalmente,
pode-se simplesmente invocar o nome do anti-Deus, ou seja, do Diabo.
No entanto, Benveniste explica que “esta exclamação suscita
imediatamente uma censura” (2006, p. 262). A tentativa de pronúncia
da blasfemia é acompanhada de uma modificação, chamada pelo
linguista de eufemia. Mantém-se o quadro locucional da blasfemia,
mas a forma pode sofrer três tipos de modificações:1) substituição
do nome de “Deus” por outro termo qualquer, 2) mutilação da palavra
“Deus”, com a supressão da sílaba final ou substituição por uma sílaba
de mesma assonância, e 3) criação de uma forma nonsense no lugar
da expressão blasfêmica.
É por conta deste mecanismo que se pode afirmar que a
blasfemia e a eufemia são “atividades simétricas” que funcionam
como “forças opostas”. Para Benveniste (2006, p. 262), “a blasfemia
subsiste, mas é mascarada pela eufemia que lhe substrai a realidade
fêmica, portanto sua eficácia sêmica, tornando-a literalmente
destituída de sentido”. Assim, a modificação na forma faz com que
a blasfemia não se realize, embora continue a haver uma alusão à
profanação de linguagem.
SUMÁRIO
127
AS FORMAS DE ESTAR NA LÍNGUA
Como primeira contribuição para o estudo da enunciação,
ressaltamos o próprio assunto do texto, algo que causa dificuldades
para os linguistas até hoje, o que leva à sua pouca representatividade nos
estudos linguísticos23. Benveniste reforça que a blasfemia pertence ao
domínio da linguagem, ainda que seu estudo seja geralmente relegado
ao léxico e à fraseologia. Nas notas preparatórias ao texto “A blasfemia
e a eufemia”, pode-se observar como esse tema leva Benveniste a
colocar em xeque os estudos linguísticos de então, pois, no escopo
da linguística que se intitulava “moderna”, esse tipo de questão não
era contemplado; entretanto, “a linguística não pode negligenciar o
homem na língua”24 (ONO, 2012, p. 79). A linguística que Benveniste
idealiza deveria, sim, tratar das diversas relações estabelecidas entre
homem e linguagem e, dessa forma, incluir em sua gama fenômenos
considerados “marginais”, tais como a blasfemia.
Podemos estender o raciocínio e lembrar que os estudos da
linguagem, por muito tempo, eram prescritivos e funcionavam como
uma forma de regular o que significa “falar bem”. Nessa perspectiva,
a inclusão de fenômenos como a blasfemia e outros relacionados à
expressão de emoções, uma “empreitada perigosa” à época segundo
Ono (2012, p. 80), envolve defrontar-se com uma contestação das leis
fundamentais da língua, com uma espécie de “antigramática” que iria
de encontro a uma linguística preocupada em estabelecer regras de
23 Ao estudar a linguagem obscena no Rio de Janeiro do início do século XX, Preti (1983, p.
3, grifos nossos), afirma que “o estudo da linguagem erótica, como não poderia deixar de
ser, situa-se no campo dos tabus linguísticos morais e abrange áreas sobre as quais, quase
sempre e por motivos óbvios, se tem preferido calar, como, por exemplo a dos vocábulos
obscenos, a dos ‘palavrões’ e blasfêmias, a da gíria, a do discurso malicioso”. Orsi (2011, p.
345), em estudo mais recente sobre a lexia obscena, reforça essa constatação, afirmando
que é um tema “ainda menosprezado por linguistas”, sendo “quase nula a referência aos
palavrões em obras lexicológicas e lexicográficas”, apesar da riqueza que este recorte
lexical oferece aos linguistas.
24 Do original: “la linguistique ne doit pas négliger l’homme dans la langue”.
SUMÁRIO
128
bom uso da língua (ONO, 2012, p. 79). Podemos conjecturar que o
tema analisado pode ter sido revestido de legitimação e destaque,
visto que foi tratado por um linguista com o prestígio de Benveniste.
A LÍNGUA COMO POTÊNCIA CRIADORA
Para os conhecedores da obra de Benveniste, não é novidade
que “a língua se acha empregada para a expressão de uma certa
relação com o mundo” (2006, p. 84) e que essa expressão é uma
atividade criadora por parte do locutor que mobiliza a língua. Isso
se deve, entre outros fatores, à possibilidade de a língua oferecer ao
homem um sistema de signos por meio do qual ele exerce a faculdade
inerente à condição humana, que é a de simbolizar, cuja forma mais
alta é representada pela linguagem (BENVENISTE, 2005).
Para o linguista, simbolizar consiste na capacidade de
“representar o real por um ‘signo’ e de compreender o ‘signo’
como representante do real, de estabelecer, pois, uma relação de
‘significação’ entre algo e algo diferente” (BENVENISTE, 2005, p.
27, grifos do autor). Como não há relação direta entre o homem
e o mundo, há a necessidade de um intermediário – e “o símbolo
linguístico25 é mediatizante” (BENVENISTE, 2005, p. 30, grifos do
autor). É aí que encontramos a linguagem, que serve para reproduzir
a realidade, o que Benveniste entende da seguinte maneira: “a
realidade é produzida novamente por intermédio da linguagem”
(BENVENISTE, 2005, p. 26).
Ao enunciar, o homem simboliza suas experiências, recriando
a realidade para seu parceiro de interlocução. Conforme a explicação
25 Nesse trecho, retirado do texto “Vista d’olhos sobre o desenvolvimento da linguística”
(1963), quando a palavra “símbolo” está relacionada à língua, entendemos como “signo”.
SUMÁRIO
129
do linguista, “a situação inerente ao exercício da linguagem, que é a
da troca e do diálogo, confere ao ato de discurso dupla função: para
o locutor, representa a realidade; para o ouvinte, recria a realidade”
(BENVENISTE, 2005, p. 26), o que “faz da linguagem o próprio
instrumento26 da comunicação intersubjetiva”.
Entretanto, isso soa diferente do que Benveniste escreveu nas
notas preparatórias ao texto. Ono apresenta o seguinte trecho: “o
nome de Deus não pode passar pela boca, pois o ato de pronunciar
imprime um traço no mundo, e o nome é o ser”27 (2012, p. 83), notando,
inicialmente, a forma imagética como a enunciação é descrita.
Entretanto, após uma leitura mais cuidadosa, cabe perscrutar esse
trecho, visto que essa impressão física pareceria, à primeira vista,
incongruente com a caracterização que Benveniste faz da enunciação
como algo evanescente. Se toda enunciação se apaga logo depois do
seu proferimento, como entender a caracterização da blasfemia como
algo que “imprime um traço no mundo”?
De acordo com Ono, tal característica não se restringiria
apenas à pronúncia do nome de Deus, já que toda enunciação
imprimiria algo no mundo. Embora a enunciação se realize em uma
instância de tempo e seja irrecuperável, ela age sobre o mundo e
nele deixa seus traços. Para a linguista, uma vez que alguém enuncia
algo, não se pode voltar atrás. É pela palavra que a existência dos
seres é assegurada – a começar pela nossa, enquanto sujeitos, visto
que “é na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui
como sujeito” (BENVENISTE, 2005, p. 288). Dito de outro modo,
ainda que a enunciação seja evanescente, ela cria algo no mundo
através da palavra.
26 Entendemos “instrumento”, nessa passagem, como o meio através do qual a
comunicação se realiza.
27 Do original: “le nom de Dieu ne doit pas passer par la bouche, car l’acte de prononcer
imprime une trace dans le monde, et le nom c’est l’être”.
SUMÁRIO
130
Está em jogo aqui o caráter performativo da linguagem, do qual
a blasfemia seria um exemplo. A nomeação torna-se o paradigma
de uma série de outros casos em que a realização mesma de um ato
se dá através da enunciação, evocando um poder quase mágico
da palavra. Isso é um dos fatores que nos leva a postular que a
blasfemia pode ser um outro modo de enunciação, que funciona
diferentemente do aspecto denotativo que permeia os empregos
mais usuais da língua.
A EMOÇÃO NA ENUNCIAÇÃO
Conforme mencionamos anteriormente, a data de publicação
do texto situa-o como contemporâneo de “O aparelho formal da
enunciação” e ambos tratam de um mesmo objeto: o ato de enunciar.
Embora não conste na versão publicada do texto, o termo enunciação
aparece de forma constante nas notas preparatórias, nas quais a
blasfemia é entendida como um ato de enunciação (ONO, 2012, p.
78). Ono afirma que algumas notas de ambos os artigos caracterizam
a blasfemia e a enunciação como atos repentinos e expressivos, como
pode-se notar no trecho abaixo, retirado do manuscrito de “O aparelho
formal da enunciação”:
Na realidade, é uma mudança, - não uma mudança na própria
matéria da língua. Uma mudança <mais sutil, mais profunda>
visto que ela é colocada em movimento, que alguém dela se
apoderou e que a movimenta, a coloca em ação, que esse
aparelho que estava imobilizado, potencial, mas inerte,
consistindo de signos por um lado (signos lexicais e outros)
e de modelos flexionais e sintáticos por outro <se anima
repentinamente, torna-se repentinamente atual> de repente
passa a existir a língua se forma em discurso restituindo ao
seu redor um mundo vivo. Algo nasce no mundo então. Um
homem se expressa (lat. exprimere fazer sair por meio de uma
SUMÁRIO
131
pressão, fazer jorrar para o exterior), ele faz jorrar a língua na
enunciação28 (ONO, 2012, p. 80).
Voltando às notas de “A blasfemia e a eufemia”, podemos
também observar o aspecto intempestivo, próprio da classificação das
imprecações como uma forma de exclamação. Segundo Ono (2012),
essa característica ocupa um espaço maior nas notas preparatórias,
tendo sido enfraquecida no texto final: “a nota do folio 348 do nosso
arquivo chega mesmo a utilizar a imagem de um vulcão para descrever
a imprecação como uma ‘explosão’, assinalando que é esta a sua
‘natureza primeira’”29 (2012, p. 81, grifo da autora).
Encontramos aqui uma pessoa que, tomado por emoções
fortes30, é levada a enunciar, talvez de maneira não intencional –
lembremo-nos que “este se trai mais do que se revela” (BENVENISTE,
2006, p. 261). Tomada bruscamente pela paixão, pode-se afirmar
que a pessoa é convidada ou até mesmo impelida pela linguagem a
enunciar, ao mesmo tempo que dela se apropria. Como afirma Ono
(2007, p. 165), “a linguagem conduz cada locutor a se apropriar da
língua. Dito de outra maneira, o locutor se deixa levar pela linguagem
no seio do processo de enunciação. O locutor é convidado a falar e,
28 Do original: “en réalité c’est un changement, – non, pas un changement dans la matière
même de la langue. Un changement <plus subtil, plus profond> du fait qu’elle est mise
en mouvement, que quelqu’un s’en est emparé et qu’elle la meut, la met en action, que cet
appareil qui gisait, potentiel, mais inerte, consistant en signes d’un côté (signes lexicaux et
autres), en modèles flexionnels et syntaxiques de l’autre <s’anime soudain, devient soudain
actuel> prend soudain existence de langue se forme en discours restituant autour de lui
un monde vivant. Quelque chose naît au monde alors. Un homme s’exprime (lat. exprimere
« faire sortir en pressant, faire jaillir à l’extérieur »), il fait jaillir la langue dans l’énonciation.
29 Do original: “la note du folio 348 de notre dossier va d’ailleurs jusqu’à utiliser l’image du volcan
pour décrire le juron comme une ‘explosion’, soulignant que c’est là son ‘premier caractère’”.
30 Coquet (1997) também inclui o artigo em questão em seu estudo sobre as emoções em
Benveniste. Além de retomar a caracterização da blasfemia e da eufemia como “forças”,
o linguista chama a atenção para a caracterização da imprecação como uma descarga
emotiva, ou seja, como uma força que atinge o sujeito, mas que nele não se interrompe,
pois ele a faz repercurtir em seu ambiente.
SUMÁRIO
132
como consequência, se apropria da língua”31. De acordo com Ono,
seguindo esse raciocínio, poder-se-ia conceber a língua como algo
que surge do próprio ato de falar, algo que toca o indivíduo de forma
tão forte que o ultrapassa.
Parece evidente que a enunciação que ocorre em tais
circunstâncias tem suas particularidades, ainda que estas não tenham
sido totalmente descritas. O próprio fato de a blasfemia ter a sintaxe
das interjeições já a situa no domínio da expressão emocional, ou “um
reduto de pura emotividade na linguagem” (MARTINS, 1993, p. 105).
Aqui, recorremos às ideias expostas por Martins32 em um
breve texto que analisa as interjeições não por meio de critérios
formais, mas sim por meio do princípio da intersubjetividade, ou
seja, da relação entre eu-tu. Distinguindo interjeições como “bravo!”
de outras como “oh!”, a autora classifica as últimas como não
intersubjetivas, visto que, por não haver um signo linguístico que
sustente a enunciação, “a enunciação de ‘oh’ não cria um contexto
dialógico, não provoca uma resposta lingüística [e] não instaura o
tu de natureza lingüística”33 (MARTINS, 1993, p. 108-109, grifo da
autora). Ainda segundo a proposta de Martins (1993, p. 105), a falta
do tu significa que haveria um “reduto monológico na linguagem
[que] pode até ser visto como questão tabu”. Tal referência a um
reduto monológico nos leva à nossa última contribuição.
31 Do original: “le language conduit chaque locuteur à s’approrier la langue. Autrement dit, le
locuteur se laisse entraîner par le langage au sein du procès d’énonciation. Le locuteur est
invité a parler et, en conséquence, s’approprie la langue”.
32 Agradecemos imensamente a indicação do texto, feita pelo professor Valdir do
Nascimento Flores.
33 Não ignoramos a distinção feita por Benveniste entre o que ele chama de interjeições
onomatopeicas e a blasfemia, que utiliza formas significantes, embora não tenham
referência específica e, portanto, não comuniquem. Embora a forma seja justamente
um critério apontado por Martins na sua proposta de classificação e diferenciação,
há outros aspectos em jogo que ajudam a determinar a natureza não intersubjetiva
de tais interjeições.
SUMÁRIO
133
ENUNCIAÇÃO E MONOLOGISMO
A caracterização da blasfemia parece ir de encontro a
aspectos importantes para conceitualizar a enunciação em “O
aparelho formal da enunciação”, estreitamente relacionada com a
ideia de diálogo, e é reminiscente de outro trecho do mesmo artigo:
a longa citação de Malinowski e o breve comentário de Benveniste
sobre “o limite do diálogo”.
Em “O aparelho formal da enunciação”, encontramos a seguinte
afirmação: “o que em geral caracteriza a enunciação é a acentuação
da relação discursiva com o parceiro, seja este real ou imaginado,
individual ou coletivo” (BENVENISTE, 2006, p, 87, grifos do autor).
Disso decorre o quadro figurativo da enunciação, ou seja, a estrutura
do diálogo, composta por duas figuras que se colocam como origem
e fim da enunciação de maneira alternada. Ao se enunciar como “eu”,
o locutor instaura um “tu” diante de si; o alocutário, por sua vez, ao
assumir a palavra, torna-se “eu” e coloca o outro na posição de “tu” e
assim sucessivamente.
Haveria, entretanto, diálogo fora da enunciação ou uma
enunciação sem diálogo? Benveniste analisa três casos: o hain-teny
dos Merinas, o monólogo e um tipo de troca verbal que Malinowski
classificou como comunhão fática34. No primeiro caso, uma troca de
provérbios entre os participantes, há uma alternância de posições
de locução, mas “não há uma única referência explícita ao objeto
do debate” (BENVENISTE, 2006, p. 87), ou seja, os provérbios são
enunciados aleatoriamente. Benveniste é enfático ao dizer que, nesse
caso, temos apenas a aparência de um diálogo, mas ele não ocorre.
Consequentemente, não haveria enunciação. Disso depreende-se uma
34 Para uma análise detalhada destes exemplos, parte de uma cuidadosa leitura do texto “O
aparelho formal da enunciação”, recomendamos a leitura de Aresi (2012).
SUMÁRIO
134
condição para o diálogo: a enunciação deve fazer alguma referência
ao objeto do debate, ou seja, à situação de discurso. Por sua vez, o
monólogo, embora realizado por uma única pessoa, desdobra-se em
duas posições: um eu locutor e um eu ouvinte. O eu ouvinte, muitas
vezes, pode participar do diálogo; em outras, apenas o eu locutor fala.
Em ambos os casos, temos um diálogo e, portanto, enunciação.
Temos uma situação mais complexa no caso da comunhão
fática descrita por Malinowski35, em que a linguagem desempenha
o papel de estabelecer uma cooperação entre os indivíduos. Em
primeiro lugar, destacamos a situação em que esse tipo de troca
verbal pode ocorrer:
quando várias pessoas sentam-se juntas em torno da fogueira
da aldeia, depois de terminadas as tarefas quotidianas, ou
quando batem papo, descansando do trabalho, ou quando
acompanham algum simples trabalho manual com um tagarelar
que nada tem a ver com o que estão fazendo. (MALINOWSKI,
1923, p. 313 apud BENVENISTE, 2006, p. 89).
Em segundo lugar, o conteúdo de tais trocas, que podem
versar sobre: “uma simples frase de cortesia [...] as perguntas sobre
a saúde, os comentários sobre o tempo, as afirmações de algum
estado de coisas absolutamente óbvio” (MALINOWSKI, 1923, p. 313
apud BENVENISTE, 2006, p. 89). Para o antropólogo, a comunhão
fática parece ter como objetivo o estabelecimento de um laço entre
os interlocutores por meio da troca de palavras; ela “consiste, apenas,
nessa atmosfera de sociabilidade e no fato de uma comunhão pessoal
dessas pessoas” (MALINOWSKI, 1923, p. 313 apud BENVENISTE,
2006, p. 90). Ela é caracterizada por:
35 Conforme a explicação de Ono (2007), o texto de Malinowski faz uma crítica à linguística
da época por não incluir o contexto de situação de discurso. Ele se opõe à ideia de que a
linguagem seja utilizada apenas para expressar o pensamento ou comunicar informações.
Para o antropólogo, falar é um ato social que tem uma intenção, estando o sentido
necessariamente ligado à situação em que um enunciado ocorre.
SUMÁRIO
135
1.
não estar relacionada ao contexto imediato;
2.
não ter a influência do comportamento e da intenção dos
participantes no seu sentido;
3.
não ter como objetivos informar algo, ordenar a alguém ou
expressar um pensamento.
Sobre a comunhão fática, Benveniste (2006, p. 90) afirma que:
estamos aqui no limite do “diálogo”. Uma relação pessoal
criada, mantida, por uma forma convencional de enunciação
que se volta sobre si mesma, que se satisfaz em sua realização,
não comportando nem objeto, nem finalidade, nem mensagem,
pura enunciação de palavras combinadas, repetidas por cada
um dos enunciadores.
Ou seja, o linguista parece indicar que não há diálogo, pois a
enunciação toma a si mesma como objeto, não fazendo referência à
realidade do discurso. Além disso, de acordo com Ono (2007, p. 101,
grifos da autora), a comunhão fática “une, de fato, duas pessoas, mas
como um jogo, um ritual, sem essa implicação linguística pessoal entre
eu locutor e eu ouvinte”36.
Retomando a explicação do quadro locucional da blasfemia,
podemos constatar que suas características soam bastante similares
à descrição das formas nas quais não há diálogo nem, portanto,
enunciação, pois:
1.
não há referência a uma situação particular;
2.
não há referência a um parceiro ou a uma terceira pessoa;
3.
não há transmissão de mensagem;
4.
não há abertura para diálogo.
36 Do original: “elle unit, certes, deux personnes, mais comme un jeu, un rituel, sans cette
implication linguistique personnelle entre je parlant et je écoutant».
SUMÁRIO
136
Conforme discutido anteriormente, a blasfemia emprega fórmulas
que podem ser utilizadas em qualquer situação, não estando atrelada
a nenhuma situação objetiva no sentido em que ela descreveria tal
contexto. Ela é somente uma manifestação da intensidade da emoção
do locutor a respeito da circunstância vivenciada por ele. Assim, ela
poderia ser substituída por fórmulas de blasfemia, intercambiáveis entre
si ou pronunciadas uma após a outra. Por não fazer da situação uma
referência no discurso, ela não comunica algo a um interlocutor, apenas
expressa o sentimento do locutor. Sem a ancoragem na realidade de
discurso, o que caracterizaria a subjetividade, não há como instaurar
um “tu” diante do “eu”. O fato de não haver comunicação significa
que não há transmissão de mensagem. Toda comunicação implica um
outro, mas, na ausência desta, não há instauração de um alocutário.
A blasfemia parece dificultar a instauração de um diálogo entre “eu”
e “tu”, apontando para um resíduo monológico da linguagem, nas
palavras de Martins (1993).
Acreditamos ter aqui mais um argumento para defender que
a blasfemia constitui um outro modo de enunciação. Sua posição
“no limite do diálogo” parece situá-la no extremo de um continuum
que contempla os diversos modos em relação à sua característica
dialógica. A blasfemia marca sua diferença ao subverter a estrutura
clássica do diálogo, marcada pela reversibilidade entre os papéis de
“eu” e “tu”, com uma fala que está totalmente centrada no “eu”, não
implicando nem convocando um outro na instância de discurso.
CONCLUSÃO
Nosso objetivo neste texto foi de fazer uma leitura do artigo
“A blasfemia e a eufemia” de forma a evidenciar suas contribuições
para a compreensão de temáticas relacionadas ao conceito de
SUMÁRIO
137
enunciação, principalmente na sua elaboração em “O aparelho formal
da enunciação”. Além da proximidade cronológica entre esses textos,
verifica-se, por meio da análise das notas preparatórias ao primeiro,
que há mais pontos de contato do que uma leitura superficial poderia
supor, visto que ambos tematizam o mesmo objeto: o ato de falar.
Nossa leitura destacou três contribuições importantes para o
construto teórico de Benveniste. Em primeiro lugar, o próprio objeto
de estudo, que coloca em jogo relações complexas entre o sujeito,
a língua e a sociedade, e é até hoje menosprezado pela linguística.
Entretanto, não há justificativa para a sua exclusão que não seja um
julgamento normativo; sendo assim, a blasfemia e os fenômenos
associados são objetos legítimos de estudos linguísticos. Em segundo
lugar, um destaque para a propriedade de a língua criar uma realidade,
e de a enunciação, ainda que evanescente, deixar suas marcas no
mundo. Isso corrobora a ideia de que, com a blasfemia, estamos em
um outro modo de enunciação, típico dos enunciados performativos,
em que a realização de uma ação só se dá acompanhada de um
proferimento verbal. Em terceiro lugar, a influência das emoções na
enunciação, tema complexo cujo tratamento vai além do linguístico
stricto sensu. Deparamo-nos com um homem tomado por uma forte
emoção, cuja intensidade leva-o a enunciar e, potencialmente, a se
deixar levar pela linguagem nesse processo. Com o apoio de Martins
(1993), mostramos como a discussão sobre a interjeição, fenômeno
típico do domínio da emoção na linguagem, ajuda a caracterizar esse
outro modo, com o predomínio da emoção. Por fim, mostramos como
as semelhanças entre a caracterização do quadro locucional da
blasfemia e a descrição da comunhão fática de Malinowski, avaliada
por Benveniste, autoriza traçar um paralelo e situar a blasfemia no
limite do diálogo, outro motivo pelo qual ela constitui um modo
diferente de enunciação.
SUMÁRIO
138
A descrição desse modo, bem como a discussão sobre
suas potencialidades e seus limites, ainda está por ser feita. Ainda
que tenhamos dado um passo inicial (STUMPF, 2017, no prelo),
acreditamos que mais fenômenos contemporâneos no cruzamento
entre língua e sociedade, como (im)polidez e discurso de ódio, podem
ser estudados dentro deste arcabouço teórico. Tais pesquisas, por sua
vez, podem contribuir para aproximar a discussão sobre a linguagem
na perspectiva benvenistiana do debate atual, necessário e urgente,
sobre os efeitos desse outro modo de enunciação na sociedade.
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SUMÁRIO
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– Instituto de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade
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SUMÁRIO
140
Capítulo 6
6
DE BENVENISTE ÀS PESQUISAS
PROSPECTIVAS: A NOÇÃO DE
DESLOCAMENTO E SEU VALOR
TEÓRICO-METODOLÓGICO
Carolina Knack
Carolina Knack
DE BENVENISTE
ÀS PESQUISAS
PROSPECTIVAS:
A NOÇÃO DE DESLOCAMENTO
E SEU VALOR
TEÓRICO-METODOLÓGICO
DOI: 10.31560/pimentacultural/2020.281.141-163
Cada leitor tem que achar sua forma de estar em/com
Benveniste. Há várias vias de acesso: algumas já bastante
trilhadas; outras menos óbvias. Há provavelmente outras
tantas que estão por ser descobertas.
Marlene Teixeira (2012a, p. 442)
INTRODUÇÃO, OU DO PONTO DE PARTIDA
Encontrar um itinerário próprio para ler Benveniste é uma tarefa
que se impõe aos que se dedicam a estudar a obra do linguista na
atualidade. É disso que está a falar Teixeira (2012) no trecho reproduzido
em epígrafe: cada leitor tem que achar sua forma de estar em/com
Benveniste. Na busca por essa forma singular, há que se definir um
modo de entrada no universo benvenistiano: são as vias de acesso de
que fala Teixeira.
Essa exigência, derivada de fatores diversos, como a amplitude
da obra benvenistiana e a multiplicidade de interesses do linguista,
foi também registrada por outros autores: Ono (2007), em estudo que
investiga a noção de enunciação no construto de Benveniste, remetenos à necessidade de estabelecer um recorte no conjunto de textos do
autor e a um modo de ler tais textos; Normand (2009a) nos adverte de
que a própria seleção de textos é constitutiva do ato de leitura; Flores
(2013b), por sua vez, dá corpo metodológico a essas observações ao
formular a noção de corpus textual de pesquisa – a ser constituído com
base em objetivos específicos formulados pelo pesquisador – e ao
demarcar um princípio epistemológico geral de leitura, o qual consiste
em considerar a reflexão benvenistiana como uma rede de termos,
conceitos e noções que estão relacionados entre si, rede que será (re)
tramada pelo leitor.
SUMÁRIO
142
Como se pode perceber, essas diretrizes metodológicas
evidenciam como o pesquisador está implicado em seu percurso
de leitura – e não poderia ser diferente. Seu protagonismo pode
ser visualizado em diferentes instâncias. Por exemplo, em estudos
intrateóricos, com a proposição de interpretações para termos e
noções que não são explicitamente definidos por Benveniste e cujos
sentidos podem ser depreendidos de um exercício interpretativo
dos textos. Um exemplo desse tipo de percurso pode ser ilustrado
com a expressão formas complexas do discurso, presente ao final
do artigo O aparelho formal da enunciação (BENVENISTE, 2006, p.
90, grifos nossos): “Amplas perspectivas se abrem para a análise
das formas complexas do discurso, a partir do quadro formal
esboçado aqui”. Mas em que consistem essas formas complexas
do discurso? Como Benveniste não utiliza tal expressão em nenhum
de seus artigos e tampouco a define neste, é preciso construir uma
hipótese de leitura. Flores e Teixeira (2013) relacionam, por exemplo,
formas complexas do discurso com complexas formas de expressão,
esta última presente em Vista d’olhos sobre o desenvolvimento da
linguística (BENVENISTE, 2005), e com o final (também programático)
de Semiologia da língua (BENVENISTE, 2006). Em trabalhos
intrateóricos, que buscam esclarecer termos e noções, produzindo
“uma espécie de hermenêutica da teoria” (FLORES, 2017b, p. 77),
a proposição de caminhos interpretativos revela a singularidade da
leitura empreendida.
Tal singularidade é também evidente em estudos teóricos
e teórico-analíticos. No primeiro caso, além da necessidade de
proposição de “caminhos interpretativos” a partir dos textos de
Benveniste, há a apresentação de suposições inferenciais e projeções
com propostas de reinterpretação em vista de um “alargamento” do
quadro teórico do linguista. No segundo caso, acrescenta-se a isso a
proposição de análises de fatos de linguagem, que demandam ainda
a construção de um método para operacionalizá-las. Valendo-nos
SUMÁRIO
143
novamente da expressão formas complexas do discurso, tomemos o
exemplo do trabalho de Nunes e Flores (2012), o qual, além de construir
uma hipótese de leitura para interpretá-la, propõe deslocá-la para outro
contexto: os pesquisadores relacionam formas complexas do discurso
à enunciação escrita, teorizando a respeito dessa interpretação, e,
em seguida, deslocam-na para o ensino de escrita na Universidade,
contexto no qual analisam produções textuais (resumos) de alunos
de pós-graduação matriculados na oficina de Língua Portuguesa do
Programa de Apoio à Graduação (PAG) da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul.
Ao apontar essas possibilidades, nosso propósito não é o de
inventariar modos de empreender pesquisas, mas nelas evidenciar o
protagonismo do leitor-pesquisador, protagonismo este facultado pelas
próprias características dos textos de Benveniste. Basta que olhemos
para o modo como o linguista finaliza os dois artigos clássicos aos
quais antes nos referimos – Semiologia da língua e O aparelho formal
da enunciação – para percebermos que neles há uma espécie de
convite para irmos além do ponto ao qual ele mesmo chegou. Esse
convite a ir além é uma abertura à inventividade do leitor-pesquisador,
o que parece ser uma das razões que leva Flores (2005, p. 135) a
declarar seu apreço pelo linguista: “[...] gosto de Benveniste porque
posso derivar de seu raciocínio questões fundamentais para os meus
próprios objetivos”. Por isso, a necessidade de buscar uma via própria
de leitura se impõe.
É justamente o modo de ler Benveniste que parece estar no
centro da caracterização da recepção do pensamento do autor
no Brasil. Flores (2017b) considera que tal recepção pode ser
compreendida em dois momentos, nomeados por ele de primeira
recepção e segunda recepção. A primeira ocorreu de 1960 à metade
de 1990; é caracterizada pelo autor como parcial e fragmentada, em
vista do modo como Benveniste foi lido à época: por intermédio de
SUMÁRIO
144
textos de terceiros, mediado por outras perspectivas de estudos da
linguagem que se valeram de seu aparato metodológico sem incorporar
os fundamentos a ele subjacentes. Já a segunda iniciou-se na metade
final dos anos 1990 e perdura até hoje; é caracterizada pela busca em
ler os próprios textos de Benveniste e obras que os comentam e os
interpretam, pelo estudo de diferentes aspectos da reflexão do autor –
não apenas daqueles relativos à enunciação – e pelo interesse de áreas
conexas à linguística (como filosofia, antropologia) por Benveniste.
Esses três indícios, para Flores (2017b, p. 74, grifos do autor), revelam
um elemento em comum: “[...] a preocupação em ler Benveniste”.
Essa atual recepção do pensamento de Benveniste no Brasil
pode fomentar, por um lado, estudos de natureza retrospectiva e,
por outro lado, estudos de natureza prospectiva. Reconhecendo a
pertinência daqueles, Flores (2017b) nos convoca a pensar sobre
estes: “Ora, a recepção de um pensamento não implicaria avaliar
as potencialidades que ele tem de dar horizontes ao campo do
qual ele mesmo se origina?”. Ainda, “A recepção da teoria não
implicaria produzir um saber prospectivo?” (FLORES, 2017b, p.
31, grifo do autor) 37.
Provocativas, as perguntas nos conduzem a analisar em que
medida temos lido e relido Benveniste de modo a trazer à tona a
potência de seu pensamento, descortinando horizontes promissores
(ONO, 2007). Nessa introspecção questionadora, somos levados a
uma outra noção abordada por Flores (2017b) com base em Derrida,
a de herança e, consequentemente, a de herdeiro. Este carrega uma
dupla exigência: a do saber e a do saber reafirmar um legado. É, pois,
na escolha da reafirmação de uma herança que a prospecção de um
saber encontra seu esteio, já que sua reinterpretação “[...] é a condição
37 Essas perguntas, extraídas da obra em que Flores (2017b) avalia a recepção tanto
de Saussure quanto de Benveniste no Brasil, são formuladas na parte em que o
pesquisador se dedica a Saussure. No entanto, pensamos que podem ser também
aplicadas a Benveniste.
SUMÁRIO
145
para lhe dar um lugar na atualidade” (FLORES, 2017b, p. 34). Eis aí o
protagonismo do leitor-pesquisador.
Podemos afirmar, portanto, que a escolha por uma via própria
de leitura materializa uma forma singular de estar em/com Benveniste,
o que pode resultar na “prospecção de um saber”, em “um olhar
para a frente” que tenha “potencial de inovação” (FLORES, 2017b,
p. 32). Parece ser nessa linha que seguem muitas das pesquisas
contemporâneas que buscam deslocar fundamentos da teorização
benvenistiana para propor o exame de fenômenos ou aspectos não
abordados por Benveniste, tais como o ensino-aprendizagem de
língua materna com foco na relação entre leitura e produção textual
(CREMONESE, 2014) e entre escrita e reescrita (JUCHEM, 2012), o
ensino-aprendizagem de língua adicional (MACHADO, 2013; FARIAS,
2014), o estudo do texto (KNACK, 2012; SILVA, 2018), apenas para citar
alguns poucos exemplos.
A breve incursão por tais pesquisas revela que, das bases do
pensamento de Émile Benveniste aos estudos prospectivos propostos,
há um empreendimento singular de ressignificação dos fundamentos
benvenistianos sob a responsabilidade do leitor-pesquisador. Esse
movimento de ressignificação frequentemente vem sinalizado pelo
termo deslocamento, que parece desempenhar um importante papel
em tais pesquisas, recobrindo-se de valor teórico-metodológico
(KNACK, 2018). Essa hipótese foi por nós aventada como “ponto de
chegada” quando, aos discutirmos os desdobramentos da relação
entre língua e sociedade a partir do artigo Estrutura da língua e estrutura
da sociedade (BENVENISTE, 2006), questionamo-nos a respeito das
implicações de assumir uma concepção de língua como prática
humana, considerando-a como um ponto de ancoragem para formular
SUMÁRIO
146
caminhos teórico-metodológicos e com ela transitar para a abordagem
de problemáticas ligadas às práticas sociais38.
Desse contexto, retomamos a hipótese de que o deslocamento
apresenta valor teórico-metodológico em pesquisas prospectivas
para explorá-la no presente texto. Esse é nosso objetivo. Ao
especialista no campo, esse percurso pode repisar obviedades;
porém, em tempos de renovação de leituras de Émile Benveniste
e de discussão sobre o amplo alcance de suas reflexões, pode ser
útil, como ele mesmo nos ensina, “[...] pedir à evidência que se
justifique [...]” (BENVENISTE, 2005, p. 284).
Para alcançar o objetivo descrito, primeiro, buscamos reunir
elementos para situar uma noção de deslocamento, o que fazemos a
partir do exame de duas teses de doutorado que propõem deslocar o
construto enunciativo para a aquisição da linguagem (SILVA, 2007; 2009)
e para a leitura (NAUJORKS, 2011). A partir dos exemplos, discutimos
o estatuto da noção em pesquisas consideradas prospectivas.
UMA FORMA DE ESTAR EM/COM BENVENISTE:
A FORMULAÇÃO DE DESLOCAMENTOS
Tratar de deslocamentos requer tratar de uma relação inventiva
que se instaura entre a obra e o leitor. Mas essa relação só se viabiliza
se nos posicionarmos, junto com Barthes (2012, p. 27), contra a
38 “Essa questão mostra um caminho aberto para trilharmos, um caminho que revela que a
busca por ‘transitar com Benveniste para o âmbito do discurso socialmente situado’ (cf.
Teixeira, 2012, p. 62) exige a noção de deslocamento teórico-metodológico, a qual denuncia
o protagonismo do pesquisador, na medida em que é este quem se responsabiliza pelo ato
enunciativo que ressignifica o dizer de base do teórico de referência e a partir do qual deriva
elementos para não só empreender estudos descritivos e explicativos da língua-discurso
sob o prisma de seu funcionamento enunciativo, mas também ‘produzir conhecimento
sobre o homem’, pois o que se sabe sobre a linguagem é indissociável daquilo que se sabe
sobre o homem, como defende Dessons (2006)” (KNACK, 2018, p. 403, grifos da autora).
SUMÁRIO
147
ideia de que “[...] o autor é considerado o proprietário eterno de sua
obra, e nós, seus leitores, simples usufrutuários [...]”. Nós, leitores
de Benveniste, sabemos bem que não somos simples usufrutuários
de seus textos. Se assim fôssemos, estaríamos sempre às voltas de
“[...] estabelecer o que o autor quis dizer, e de modo algum o que o
leitor entende” (BARTHES, 2012, p. 28, grifos do autor). Ora, falar de
deslocamentos implica justamente falar daquilo que o leitor entende,
ou melhor, daquilo que o leitor formula a partir do que entende; falar de
deslocamentos implica falar, sobretudo, de efeitos de leitura.
A respeito de efeitos de leitura, é inevitável lembrar o belo texto
de Claudine Normand, intitulado Alguns efeitos da teoria saussuriana
sobre uma descrição semântica (2009b). O estudo, conforme a própria
linguista, não apresenta uma reflexão sobre um possível método de
análise a partir de Saussure, mas mostra a relação entre o que ela
escreveu sobre o mestre – caminho no qual encontra Benveniste – e
as descrições semânticas publicadas por ela, ou seja, mostra efeitos
que, em certa medida, ambos os autores produziram sobre ela, o que
resultou em seu modo absolutamente singular de ver a linguagem e de
explicar fenômenos linguísticos. Com esse texto, Normand demonstra
que, quando somos tocados por algo, há também algo que se produz
a partir do efeito desse toque.
É nesse ponto que pensamos poder situar os deslocamentos. O
que é um deslocamento senão aquilo que se produz a partir do efeito
de uma leitura? O deslocamento, formulado a partir daquilo que o leitor
entende, envolve não a aplicação de noções teóricas para a descrição
de um fenômeno, mas sim a produção de um novo saber teórico e/ou
metodológico para explicar um fenômeno.
A fim de refletir com mais concretude a respeito de tal termo e
de sua noção, julgamos relevante investigar o modo como o termo tem
comparecido em pesquisas vinculadas a Émile Benveniste. Frente à
variedade de exemplos, estabelecemos três critérios para selecionar
SUMÁRIO
148
dois estudos: (i) eles deveriam ser de mesma natureza e de mesmo
gênero discursivo; (ii) apresentar um mesmo elemento da teorização
benvenistiana como um de seus objetos de deslocamento; mas,
evidentemente, (iii) deslocá-lo de modos distintos.
Duas pesquisas foram, então, escolhidas: a tese de doutorado
de Silva (2007, 2009)39, que inaugura uma abordagem enunciativa
da aquisição da linguagem pela criança; e a tese de doutorado de
Naujorks (2011), que, por sua vez, propõe uma abordagem enunciativa
da leitura. Ambas (i) são teses teórico-analíticas; (ii) deslocam, dentre
outras noções benvenistianas, uma em comum – a de enunciação;
porém, (iii) diferem quanto ao modo de deslocá-la, proporcionandonos visualizar a singularidade de cada percurso interpretativo.
A fim de dar visibilidade a essa singularidade, optamos por
apresentar vieses distintos dos deslocamentos operados pelas autoras:
da pesquisa de Naujorks (2011), destacamos um deslocamento com
implicações teóricas; da pesquisa de Silva (2009), um deslocamento
com implicações metodológicas40.
Consideramos que essas pesquisas, ao revelarem o modo
como cada leitora-pesquisadora produz deslocamentos da
teorização benvenistiana, permitem-nos não só reunir elementos
para situar uma noção para o termo como também para problematizar
o seu estatuto.
39 A tese de Carmem Luci da Costa Silva, intitulada A instauração da criança na linguagem:
princípios para uma teoria enunciativa em aquisição da linguagem, data de 2007; porém,
para fins de citação neste trabalho, será utilizada a versão publicada em livro, em 2009, sob
o título A criança na linguagem: enunciação e aquisição.
40 De antemão, cabe destacar que, em ambas as pesquisas, há deslocamentos tanto
teóricos quanto metodológicos, os dois produzindo implicações para a abordagem dos
fenômenos. Porém, para fins de nossa pesquisa, buscamos enfatizar vieses distintos
dessas implicações. A despeito da cronologia relativa à publicação das teses – Silva (2007;
2009) e Naujorks (2011) –, apresentaremos, primeiro, o exemplo de deslocamento a partir
do qual destacamos implicações teóricas (NAUJORKS, 2011) e, em seguida, o exemplo
a partir do qual destacamos implicações metodológicas (SILVA, 2007; 2009), às quais,
evidentemente, subjazem implicações teóricas.
SUMÁRIO
149
Da noção de enunciação à noção de leitura: deslocamentos
para a definição de leitura como ato/processo enunciativo
Apresentar a leitura como uma modalidade de enunciação é o
objetivo geral da tese de Jane da Costa Naujorks, intitulada Leitura
e enunciação: princípios para uma análise do sentido na linguagem.
A autora afirma que, para isso, é preciso, primeiro, resgatar dos
estudos de Émile Benveniste “[...] alguns dos principais conceitos
que permeiam sua teoria, reconhecendo uma interdependência entre
eles, para, a partir daí, compreender como a leitura, mesmo não
explicitamente prevista em seus estudos, pode ser vista como uma
modalidade de enunciação” (NAUJORKS, 2011, p. 14, grifos nossos).
Com esse apontamento inicial, a autora deixa claro que Benveniste
não se dedica a refletir sobre o tema da leitura, de tal modo que as
ressignificações para produzir tanto um percurso teórico quanto um
percurso metodológico para uma análise enunciativa da leitura41 são
de sua própria responsabilidade.
É no segundo capítulo de sua tese que as noções básicas
da teorização enunciativa benvenistiana são sistematizadas, como
intersubjetividade e subjetividade, categorias de pessoa, tempo e
espaço, forma e sentido, semiótico e semântico. Há uma subseção
específica para tratar da noção de enunciação. Evidentemente, é
central para a proposta da autora discutir o estatuto da enunciação
em Benveniste. O percurso interpretativo da subseção, em que recebe
destaque o artigo O aparelho formal da enunciação (BENVENISTE,
2006), leva Naujorks (2011, p. 82) a concluir que “É preciso, pois,
compreender enunciação como ato individual de utilização e como
processo de apropriação da língua”.
41 Após o percurso teórico, Naujorks (2011) propõe um percurso metodológico para
analisar, enunciativamente, textos produzidos por candidatos do Concurso Vestibular da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul de 2011 (CV/UFRGS/2011).
SUMÁRIO
150
Esse conceito benvenistiano, e outros tantos, precisam ser
ressignificados pela autora para que possam ser direcionados para o
fenômeno da leitura. É, de fato, este o propósito do terceiro capítulo de
sua tese, capítulo organizado a partir da seguinte pergunta: “Enfim, que
deslocamentos devemos operar na teoria enunciativa de Benveniste,
tal como a apresentamos no capítulo anterior, para produzirmos uma
perspectiva de análise do ato/processo de leitura?” (NAUJORKS, 2011,
p. 88, grifos nossos).
A proposição de respostas a essa questão é o que move a
elaboração de quatro deslocamentos, assim nomeados pela autora:
“Primeiro deslocamento: a passagem de locutor a sujeito na leitura”
(p. 89); “Segundo deslocamento: a intersubjetividade/ subjetividade
na leitura” (p. 91); “Terceiro deslocamento: a relação entre a forma e
o sentido na leitura” (p. 97); “Quarto deslocamento: a enunciação e a
leitura” (p. 102).
É o quarto deslocamento teórico produzido a partir da noção de
enunciação que buscamos destacar. A dupla concepção da enunciação
– como ato e como processo – é deslocada pela autora em direção à
leitura: “Falamos em ato/processo de leitura com base em Benveniste,
que, em ‘O aparelho’, define a enunciação simultaneamente como ato
e como grande processo” (NAUJORKS, 2011, p. 103, grifos da autora).
Assim, a leitura, conforme a autora, é concebida como uma modalidade
de enunciação; é, simultaneamente, um ato e um processo enunciativo
por meio do qual o locutor-leitor passa, via relação interlocutiva com o
texto/enunciado, a sujeito-leitor.
Embora seja neste quarto deslocamento que a autora sistematize
a passagem da noção de enunciação à noção de leitura como ato de
enunciar, ao longo dos deslocamentos anteriores, a rede de conceitos
já foi sendo alinhavada para demarcar que a leitura é tanto apropriação
quanto atualização de sentidos: “[...] há um enunciado que, construído
previamente por um locutor anterior, ao ser tomado pelo locutor leitor,
SUMÁRIO
151
se atualiza a partir de suas referências. Na leitura surge sempre
um significado novo, que resulta da relação de um locutor e de um
interlocutor” (NAUJORKS, 2011, p. 94). O caminho teórico proposto
pela autora, que culmina nos deslocamentos por ela formulados,
permite-lhe fundamentar a tese de que ler é enunciar.
Da enunciação como instância teórica à enunciação
como instância metodológica: deslocamentos para
a análise dos dados em aquisição da linguagem
Propor uma abordagem enunciativa para a aquisição da
linguagem é o objetivo da pesquisa de doutorado de Silva (2009).
A autora, na introdução ao seu estudo, anuncia que seu desafio
é, de um lado, inserir no campo Aquisição da Linguagem um olhar
enunciativo para a fala da criança e, de outro lado, inserir a aquisição
da linguagem como objeto de estudo no campo da Enunciação. Para
tanto, a pesquisadora elabora um construto teórico-metodológico que,
segundo destaca, é inspirado no trabalho de Émile Benveniste.
Essa inspiração deriva do fato de o linguista não apresentar um
modelo teórico-metodológico “pré-existente” e “acabado” – o qual
poderia ser supostamente “aplicado” aos dados –, mas princípios
que norteiam uma concepção enunciativa de linguagem. Quanto
a esses princípios, a autora alerta que tampouco eles podem ser
“aplicados” diretamente aos dados da criança, pois, ainda que a
aquisição seja tema da reflexão de Benveniste – comparecendo em
diferentes textos para ilustrar algum aspecto por ele discutido –, não
é seu objeto de investigação.
Especificamente, é isto que propõe a pesquisadora: inscrever
a aquisição da linguagem como objeto de estudo no quadro da
Linguística da Enunciação. Desvela-se, nesse objetivo, a posição
SUMÁRIO
152
inventiva de Silva (2009, p. 18, grifo nosso): “E aí ousamos produzir
princípios para uma teoria enunciativa em aquisição da linguagem
para, a partir de tais princípios, analisar a fala da criança”. E essa
produção de princípios, desenvolvida nos capítulos 5 e 6 de sua tese,
dá-se a partir de deslocamentos: “[...] propomos, nos diferentes itens
[dos capítulos], deslocamentos dos aspectos envolvidos no ato de
enunciação para o de aquisição da linguagem” (SILVA, 2009, p. 133,
grifos nossos).
Tais deslocamentos, primeiramente de ordem teórica,
possibilitam à autora formular um dispositivo enunciativo que recebe a
seguinte notação: (eu-tu/ele)-ELE. Esse dispositivo, de acordo com a
autora, congrega as relações enunciativas constitutivas do próprio ato
de enunciação e, por conseguinte, do ato de aquisição de linguagem:
o locutor (eu) instancia-se como tal ao postular um alocutário (tu) para
produzir referências (ele, lugar simbólico da língua) sob os efeitos da
cultura (ELE). As relações constitutivas desse dispositivo são diádicas
(eu-tu, eu/tu, (eu-tu)/ele) e trinitárias (eu-tu/ele e (eu-tu/ele)-ELE)42,
cada uma delas apresentando características que geram reflexões
específicas quanto à aquisição de linguagem.
Valendo-se desse dispositivo, Silva (2009, p. 133, grifo nosso)
dedica-se a “[...] construir uma metodologia enunciativa para tratar a
aquisição da linguagem [...]”. Nessa passagem da teorização para
a metodologia, salientamos um dos deslocamentos propostos pela
autora, o qual é necessário para fazer operar o dispositivo formulado
42 Embora não seja nosso propósito recuperar, em detalhes, o percurso reflexivo de Silva
(2009) para gerar tal ferramenta teórica, cabe referir que tanto a discussão proposta por
Dufour (cf. Os mistérios da trindade. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2000) acerca
do trabalho de Benveniste quanto a de Flores (cf. Linguística e Psicanálise: princípios de
uma semântica da enunciação. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999) também são deslocadas
pela autora para o contexto da aquisição de linguagem e contribuem para a formulação
do dispositivo enunciativo no que se refere às relações diádicas – a conjunção eu-tu,
a disjunção eu/tu e a distinção entre pessoa (eu-tu) e não pessoa (ele) – e trinitárias –
constituídas a partir de duas alteridades, a com o tu e a com o ELE. No capítulo 6 de sua
tese, Silva (2009) apresenta o modo como lê as reflexões de Dufour e de Flores e como as
desloca para o contexto aquisicional.
SUMÁRIO
153
por ela: trata-se da consideração da enunciação como instância
metodológica definidora da análise dos dados. Segundo a autora, as
interlocuções da criança com o(s) outros(s) constituem um conjunto
de fatos de linguagem que será examinado via recortes enunciativos:
“Tais recortes são descritos a partir de dois planos simultâneos: o da
enunciação como ato e o da enunciação como atualização da língua
em discurso” (SILVA, 2009, p. 225).
A noção de enunciação, antes instância teórica constitutiva
da elaboração do dispositivo (eu-tu/ele)-ELE, passa a ser instância
metodológica, pois operacionaliza a análise, nesta comparecendo de
dois modos: como ato e como discurso. Como ato, são as relações
diádicas e trinitárias dele constitutivas que estão em foco, de modo a
mostrar como ocorre a instanciação da intersubjetividade na linguagem
pela conversão da língua em discurso. Como discurso, são as formas e
os mecanismos agenciados para produzir sentido que estão em foco,
de modo a mostrar como se dá a instauração de referência pelo locutor
e de correferência pelo alocutário.
Silva (2009) considera que, nesse tratamento da enunciação
como ato e como discurso, é possível visualizar como o sentido
se forma em palavras, o que permite traçar uma “trajetória de
semantização” pela qual se pode atestar os movimentos de entrada
da criança no semiótico, a língua como sistema de signos.
Dos exemplos à noção de deslocamento e
seu estatuto em pesquisas prospectivas
Ao percorrermos diferentes estudos prospectivos que requerem
pertença ao campo da linguística benvenistiana, constatamos que
neles há um empreendimento singular de ressignificação dos princípios
benvenistianos sob a responsabilidade do leitor-pesquisador, fato que,
SUMÁRIO
154
em muitos desses estudos, vem assinalado pelo termo deslocamento.
O exame mais detalhado das pesquisas de Naujorks (2011) e Silva
(2009) reafirma essa percepção. Deslocar um aspecto, uma noção,
um termo, um método implica um empreendimento singular de
ressignificação teórica sob a responsabilidade do leitor-pesquisador
para, na relação entre teoria e fenômeno, produzir um novo saber.
A síntese por nós feita nas subseções anteriores demonstra
que uma mesma noção benvenistiana, a de enunciação, foi lida
singularmente por cada pesquisadora e deslocada de modo distinto em
direção a seus objetos de estudo, e isso só se torna possível porque,
como já frisamos (cf. Introdução), os próprios textos de Benveniste nos
conferem certa liberdade para sua interpretação, além, evidentemente,
de não haver a proposição, pelo linguista, de um único e acabado
“modelo” de análise enunciativa43.
Assim, da tese de Naujorks (2011), salientamos o deslocamento
da noção de enunciação e suas implicações teóricas para a
proposição de uma concepção de leitura como ato de enunciar;
da tese de Silva (2009), salientamos o deslocamento da noção de
enunciação e suas implicações, primeiro teóricas, para a constituição
do dispositivo (eu-tu/ele)-ELE e, em seguida, metodológicas, para a
operacionalização de tal dispositivo pela proposição de dois planos
descritivos – enunciação como ato e enunciação como discurso – a
fim de analisar a fala da criança.
Evidentemente, a discussão desses e dos demais
deslocamentos propostos pelas autoras não se esgota aqui. Por
43 Flores (2013b, p. 29) esmiúça essa constatação: “[...] não há a proposição explícita de um
modelo a partir do qual Benveniste teria feito todas as suas análises. A consequência disso
é que os textos nos quais Benveniste estuda a enunciação não podem ser tomados como
se constituíssem um conjunto coeso de proposições teórico-metodológicas. Ao contrário,
cada texto de Benveniste propõe categorias de análise, teoriza sobre elas e desenvolve as
análises dentro desse limite. Cada texto encerra, em si, maneiras específicas de analisar
as língua, a língua e a linguagem.”
SUMÁRIO
155
ora, nos satisfazemos em dar a ver o modo como cada uma delas
estabelece a sua via própria de leitura, o que lhes permite desvelar a
potencialidade das teorizações de Benveniste e, assim, prospectar
novos horizontes de estudo tanto para os fenômenos por elas
selecionados quanto para a própria linguística benvenistiana.
Assumindo uma herança, a escolha do herdeiro, para fazê-la
frutificar, só pode ser a da reinterpretação. E reinterpretar implica a
relação inventiva que se instaura entre a obra e o leitor – não o leitor
usufrutuário (BARTHES, 2012), mas aquele que lê nas entrelinhas as
indicações programáticas, como nos lembra Flores (2013a); aquele
que desvela os implícitos onde tudo parece estar claro, como nos
desafia Barthes (2012b); aquele que encontra sua forma de estar
em/com Benveniste, como nos inspira Teixeira (2012a).
Sem dúvida, uma dessas formas de estar em/com Benveniste
consiste na formulação de deslocamentos. A respeito da formulação
destes, as pesquisas analisadas apresentam, de modo global,
percursos similares. Ambas as pesquisas:
SUMÁRIO
a.
sinalizam que Benveniste apresenta não um “modelo teóricometodológico” acabado, mas princípios que fundamentam sua
visada sobre a linguagem;
b.
indicam a necessidade de recuperar dos estudos de Benveniste
os conceitos que dão forma a esses princípios, sistematizando-os;
c.
esclarecem que a proposta que será elaborada não está
explicitamente prevista nos estudos de Benveniste, mas neles
inscrita em potencial;
d.
esclarecem que devem ser operados deslocamentos em
relação aos princípios identificados para que seja construída
uma perspectiva própria de abordagem do fenômeno eleito
para investigação;
156
e.
propõem um construto teórico-metodológico próprio, a partir de
variados deslocamentos, a fim de abordar o fenômeno eleito
para investigação;
f.
constituem um novo saber acerca do fenômeno estudado, visto
ser este abordado sob um ponto de vista ainda não explorado.
Esses apontamentos demonstram a preocupação das
pesquisadoras em sinalizar ao seu leitor o necessário redimensionamento
da reflexão benvenistiana a ser empreendido com base em seus
interesses particulares de pesquisa. Essas constatações deixam
transparecer, portanto, um rigor metodológico, o qual comparece não
só nos dois estudos examinados, mas em todos os trabalhos que
atentam para os termos da relação entre a obra e o leitor-pesquisador,
preocupação que deriva da consciência de que, “[...] entre afirmar a
existência de termos, noções e conceitos em um autor e depreender
algo da leitura que se faz de sua obra há uma diferença de natureza
epistemológica” (FLORES, 2013a, p. 97).
A demarcação dessa diferença de natureza epistemológica
resulta, obviamente, do conjunto das observações listadas
anteriormente. Porém, não parece o termo deslocamento reuni-las?
Amplamente empregado pelas autoras, o termo demarca a diferença
entre aquilo que está inscrito na própria obra e aquilo que é dela
derivado pelo leitor-pesquisador, em outras palavras, demarca o modo
como o saber é constituído. Se assim o compreendemos, o termo
deslocamento assume um estatuto epistemológico.
No entanto, cumpre registrar que nem sempre o termo se faz
presente textualmente, embora a diferença de natureza epistemológica
a que nos referimos esteja, de fato, minuciosamente explicada, como é
o caso do estudo de Flores (2013a): o autor esclarece que toma como
base o pensamento benvenistiano a fim de formular uma perspectiva
própria de análise da linguagem que considere uma noção de sujeito
da enunciação como uma singularidade que advém da sintaxe da
SUMÁRIO
157
enunciação. Para isso, segundo Flores (2013a, p. 96), é necessário
“[...] produzir uma reflexão que, embora não oposta à formulação
teórica de Benveniste, não pode ser, pari passu, identificada a ela”.
Flores (2013a) também se preocupa em sinalizar ao seu leitor a
maneira como formulará sua proposta:
O leitor verá, então, que este texto se constrói na simultaneidade
de dois movimentos: de um lado, busca identificar em
Benveniste princípios que, mesmo não admitidos pelo autor,
autorizariam falar em sujeito (ao qual, creio, se poderá
acrescentar o restritivo da enunciação); de outro lado, busca
reinterpretá-los, estendendo-os a uma outra perspectiva
de análise do fatos de língua, a da sintaxe da enunciação.
(FLORES, 2013a, p.98, grifos do autor).
Esses dois movimentos descritos pelo autor – a busca
por identificar princípios e por reinterpretá-los – alinham-se às
constatações listadas anteriormente quanto às pesquisas de Silva
(2009) e Naujorks (2011).
Poderíamos, diante dessa trajetória protagonizada pelos
pesquisadores para abordar a aquisição da linguagem, a leitura,
a sintaxe da enunciação, perguntarmo-nos: o que lhes permite
passar dos princípios benvenistianos ao contexto específico de cada
pesquisa prospectiva proposta? Em outras palavras, o que permite
operacionalizar a passagem dos princípios benvenistianos aos
princípios de cada pesquisa prospectiva? Pensamos que seja a noção
de deslocamento. O deslocamento parece configurar-se como um
operador em pesquisas prospectivas44.
44 Esse raciocínio é livremente inspirado no de Flores (2017a) acerca da passagem do
axioma geral ao axioma específico na reflexão de Émile Benveniste. O autor explica
que vê, no pensamento benvenistiano, dois axiomas que estão conectados à natureza
antropológica da reflexão do linguista: o homem na linguagem, axioma de caráter geral;
e o homem na língua, axioma de caráter específico. Este está contido naquele. Diante
disso, Flores se pergunta a respeito de como operam esses axiomas, concluindo que é
a noção de significância que permite passar do axioma geral ao axioma específico. Por
isso, para Flores (2017a, p. 12), tal noção é um operador: “O operador por excelência de
Benveniste é a significância”.
SUMÁRIO
158
Mas o que é um operador? Recorremos, mais uma vez, a Flores
(2017a). O autor explica que entende “[...] o operador de uma teoria
como o mecanismo que contém um modo de funcionamento; ele
é um instrumento que exerce um modo de pensamento” (FLORES,
2017a, p. 12).
Valendo-nos dessa definição, consideramos que, no contexto
das pesquisas analisadas, o deslocamento, de fato, comporta-se
como um operador, porque ele é um instrumento que exerce um
modo de pensamento, qual seja, o da reinterpretação dos princípios
benvenistianos quando da proposição de trabalhos prospectivos.
Como mecanismo que contém um modo de funcionamento, o
deslocamento apresenta um modus operandi que implica os dois
movimentos descritos por Flores (2013a), dos quais aqui livremente
nos apropriamos: de um lado, é preciso identificar em Benveniste
princípios que autorizariam abordar determinado fenômeno, princípios
que podem ser ou não admitidos pelo linguista, devendo ser sinalizados
os termos dessa admissão, quando for o caso; de outro lado, é
preciso reinterpretar tais princípios no contexto do fenômeno eleito
para pesquisa, elaborando uma perspectiva própria de abordagem do
fenômeno. Sob esse prisma, o termo deslocamento assume também
um estatuto operatório, configurando-se como um mecanismo, como
um instrumento que exerce um modo de pensamento.
Desse conjunto de considerações decorre, portanto, o valor
teórico-metodológico do deslocamento em pesquisas prospectivas.
Reencontramos, enfim, a hipótese que mobilizou a escritura deste
texto. Pensamos ter apresentado elementos que a sustentem.
Em síntese: o deslocamento, concebido como um ato de
ressignificação dos fundamentos benvenistianos empreendido pelo
leitor-pesquisador a fim de abordar determinado fenômeno, assume
um duplo e simultâneo estatuto, epistemológico e operatório, do qual
resulta o seu valor teórico-metodológico em pesquisas prospectivas.
SUMÁRIO
159
CONSIDERAÇÕES FINAIS, OU
DO PONTO DE CHEGADA
Se a leitura de um autor e a recepção de seu pensamento
implicam não só desvelar “as potencialidades que ele tem de dar
horizontes ao campo do qual ele mesmo se origina”, mas também
“produzir um saber prospectivo” (FLORES, 2017b, p. 31), pensamos
que a formulação de deslocamentos contribui sobremaneira para esse
“olhar para a frente”.
A hipótese de que a noção de deslocamento tem valor teóricometodológico em pesquisas prospectivas (KNACK, 2018) foi por nós
tomada como ponto de partida para um percurso analítico em estudos
do campo a fim de averiguar de que modo o termo deslocamento
neles comparecia.
A partir dos empregos ilustrativos do termo, reunimos elementos
que possibilitaram situar a noção de deslocamento como um ato de
ressignificação dos fundamentos benvenistianos empreendido pelo
leitor-pesquisador a fim de explorar determinado fenômeno, de modo
a produzir um novo saber. Examinando o percurso para a formulação
de deslocamentos, constatamos, de um lado, um rigor metodológico
relativo à demarcação da natureza epistemológica dos fundamentos
mobilizados – se existentes nos próprios textos benvenistianos, se
formulados pelo pesquisador –, e, de outro lado, o estabelecimento de
um modus operandi para tal formulação. Tais constatações nos levaram
a conjecturar que o termo, empregado justamente para sinalizar esses
movimentos, assume um duplo estatuto: epistemológico e operatório.
Embora os estudos aqui explorados estejam vinculados à
visada enunciativa do universo benvenistiano, pensamos que as
considerações esboçadas no que se refere ao termo deslocamento
possam ser estendidas a outros domínios desse universo.
SUMÁRIO
160
Isso porque, em síntese, a consideração da noção de
deslocamento e seu duplo estatuto – epistemológico e operatório –
dá a ver o seu valor teórico-metodológico em pesquisas prospectivas.
Mais que isso, “[...] denuncia o protagonismo do pesquisador, na
medida em que é este quem se responsabiliza pelo ato enunciativo
que ressignifica o dizer de base do teórico de referência e a partir do
qual deriva elementos [...]” (KNACK, 2018, p. 403, grifo da autora) para,
na relação entre teoria e fenômeno, produzir um novo saber.
Retomando a epígrafe que inspirou este trabalho, se cada
leitor precisa encontrar sua forma de estar em/com Benveniste, a
proposição de deslocamentos parece ser uma dessas formas, e uma
das mais inventivas. Há, como nos lembra Teixeira (2012a), várias vias
de acesso ao universo benvenistiano, muitas delas ainda por serem
descobertas. Que cada leitor descubra a sua via é um imperativo para
as pesquisas prospectivas.
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SUMÁRIO
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SUMÁRIO
163
Capítulo 7
7
A RELAÇÃO ENTRE O BIOLÓGICO
E O CULTURAL NA AQUISIÇÃO DA
LINGUAGEM E A INSTAURAÇÃO DA
CRIANÇA NA INTERDEPENDÊNCIA
ENTRE FORMA-SENTIDO
NA LÍNGUA MATERNA
Carmem Luci da CostaCarmem
Silva Luci da Costa Silva
A RELAÇÃO ENTRE
O BIOLÓGICO E O CULTURAL
NA AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM
E A INSTAURAÇÃO DA CRIANÇA
NA INTERDEPENDÊNCIA ENTRE
FORMA-SENTIDO NA LÍNGUA MATERNA
DOI: 10.31560/pimentacultural/2020.281.164-203
INTRODUÇÃO45
Este texto apresenta uma reflexão sobre o aspecto vocal
na linguagem, por meio da exploração da integração entre forma
e sentido no ato de aquisição de uma língua materna. Retomar a
discussão acerca do aspecto vocal é um modo de homenagear
não somente o grande linguista Émile Benveniste, mas também
estudiosos de sua obra. Aqui é recuperada um pouco de uma história
teórica na linguagem de pesquisadores ligados à sua perspectiva
que estudaram esse aspecto em relação com o campo aquisição da
linguagem, pois, como lemos nas belas palavras de Valter Hugo Mãe
(2011, p. 188): “Somos o resultado de tanta gente, de tanta história,
de tão grandes sonhos que vão passando de pessoa a pessoa, que
nunca estaremos sós”. Assim, este texto apresenta algo singular
sobre o aspecto vocal, vinculado à dupla forma e sentido, como
resultado de abordagens de “tanta gente” que produziu história em
torno da teorização benvenistiana sobre a linguagem/língua.
Como pontuamos em Silva (no prelo), as grandes oposições
consideradas em distintos paradigmas científicos (entre o biológico e o
cultural, entre a subjetividade e a socialidade, entre o signo e o objeto,
entre o símbolo e o pensamento) são concebidas por Benveniste em
termos de relações. Por isso, este texto destaca a relação entre o
biológico e o cultural na aquisição de língua materna, via observação
da imbricação das noções gêmeas de forma e sentido nas vocalizações
de uma criança em seus primeiros onze meses.
Émile Benveniste, no prefácio da obra Problemas de Linguística
Geral I, nomeia os grandes temas tratados no campo da linguagem
como problemas. Para o linguista, dentre esses problemas,
45 Este texto faz parte de um conjunto de reflexões empreendidas no estudo de PósDoutorado A escuta em uma antropologia da enunciação: o que escuta e como se escuta
uma criança?, realizado sob a supervisão do Prof. Dr. Lourenço Chacon no PPG-Linguística
da UNESP, campus São José do Rio Preto.
SUMÁRIO
165
está a relação entre o biológico e o cultural, relação que encara,
principalmente, valendo-se do fenômeno de entrada da criança em
uma língua. Observar essa entrada parece-me ser, valendo-me das
palavras do linguista sobre as línguas como organismos históricos
e empíricos, o “acesso possível à compreensão dos mecanismos
gerais e do funcionamento da linguagem” (BENVENISTE, 1966/1995,
Prefácio). Um dos mecanismos gerais de organização das línguas
está vinculado ao problema da relação entre forma e sentido no
funcionamento da língua.
Neste texto, assumo que a gênese do engendramento entre
forma e sentido na aquisição de uma língua pela criança dá mostras
de como a relação entre o biológico e o cultural pode ser encarada
na perspectiva de uma antropologia da linguagem ou de uma
antropologia da enunciação, conforme atribuições de Dessons (2006)
e Flores (2013), respectivamente, à teorização sobre linguagem de
Émile Benveniste.
Assim, o problema tratado neste texto envolve responder às
seguintes questões: 1) como comparecem as relações entre o biológico
e o cultural no engendramento entre forma e sentido na aquisição
da linguagem nas relações enunciativas criança e outro? 2) Como a
criança engendra a relação forma e sentido nos primeiros onze meses
do processo de instauração em sua língua materna?
Para responder às questões, o texto organiza-se do seguinte
modo: uma primeira seção, teórica, com a abordagem da teorização
linguística de Émile Benveniste em relação com a aquisição da
linguagem; uma segunda seção, metodológica, com a apresentação
dos fatos de linguagem e a formulação dos procedimentos de análise;
uma terceira seção, analítica, com a análise dos fatos de linguagem e
a reflexão sobre os interrogantes do estudo.
SUMÁRIO
166
DO BIOLÓGICO E DO CULTURAL NA
CONDIÇÃO HUMANA DE FALANTES
E OUVINTES DE UMA LÍNGUA
A condição humana na linguagem em seu
duplo aspecto: biológico e cultural
A linguagem, considerada em seu aspecto vocal-fônico, coloca
em cena a comunicação intersubjetiva, que envolve a inversibilidade
enunciativa de emissões e de escutas, pois tanto quem emite formas
fônicas se inverte do lugar de falante para o de ouvinte quanto quem
ouve inverte-se do lugar de ouvinte para o de falante. Trata-se,
conforme Silva (2009), de preenchimentos de lugares enunciativos.
Esse preenchimento de lugar enunciativo acontece por meio tanto
de aparelhos biológicos quanto do aparelho de uma língua com o
aparato cultural da sociedade a que essa língua se vincula. Quando
a criança ainda não se instaurou em uma língua, é seu aparelho
fonador e o outro, com seu duplo aparelho (fonador e o da língua),
que asseguram esse lugar enunciativo e possibilitam a integração de
um aparelho no outro.
Por um lado, somos seres vivos, com todo o aparato biológico,
que nos permite ver, ouvir, cheirar, enfim, sentir indícios do aqui e do
agora onde nos situamos; por outro lado, há algo que nos cerceia a
não apreender todo o espaço onde estamos nem pela visão, nem pela
audição nem pelo olfato. Na verdade, operamos uma seleção, um
recorte dentro de nosso campo de visão, de audição e, até mesmo, de
olfato. Como, ao nos valermos de nosso aparato biológico, entramos
na história humana de uma língua?
SUMÁRIO
167
Parece estar na entrada humana em uma língua a grande
resposta a essa questão. Neste trabalho, interessa-me tratar o
que está em nossa condição biológica de emitir e perceber sons
e o que está para além dessa condição. Como reflete Benveniste
(1966/1995), nossa ascensão da série animal a homo sapiens pode
ter sido favorecida por nossa estrutura corporal ou organização
nervosa, mas vai além das nossas condições biológicas herdadas
da natureza. Com efeito, o linguista chama a atenção para o fato
de que essa ascensão se deve, antes de tudo, à nossa faculdade
de representação simbólica, faculdade essa que possibilita a nossa
constituição como falantes de uma língua.
Com base na ideia de Benveniste (1996/1995) de que, entre a
função sensório-motora e a função representativa, há um limiar que só a
humanidade transpôs, torna-se interessante verificar essa transposição
na relação entre essas duas funções: a biológica (sensório-motora)
e a representativa (simbólica) nas formas vocais-fônicas iniciais e na
constituição de sentido.
Benveniste concebe que há diferentes reações aos sinais por
parte do homem e do animal e é nessas diferenças que o linguista situa
nossa condição humana de seres simbólicos:
O homem também, enquanto animal, reage a um sinal. Mas
utiliza o símbolo que é instituído pelo homem; é preciso
aprender o sentido do símbolo, é preciso ser capaz de
interpretá-lo na sua função significativa e não mais, apenas,
de percebê-lo como impressão sensorial, pois o símbolo não
tem relação natural com o que simboliza. O homem inventa
e compreende símbolos; o animal, não. Tudo decorre daí.
(BENVENISTE, 1966/1995, p. 29, itálico do autor).
O signo, assim, como unidade significativa, porque distintiva, é
constituído via relação de significação por meio do estabelecimento
de diferenças. Embora no caso das abelhas, conforme Benveniste,
compareça uma diferenciação de danças, que indicam e comunicam
SUMÁRIO
168
algo, seus sinais diferenciados se repetem em conteúdos fixos que
remetem às mesmas situações. Ocorre, nessa comunicação, a
relação mensagem-ação motora e não mensagem-mensagem como
nos humanos. Portanto, segundo Benveniste (1966/1995), a relação
entre mensagem-mensagem no humano, embora envolva ações
motoras, está relacionada a uma faculdade humana simbolizante e à
propriedade simbólica da linguagem. O simbólico, base das funções
conceptuais, somente aparece no humano e é o que garante a
possibilidade de língua e de discurso em uma sociedade definida e
particular. O simbólico é, assim, o que possibilita o engendramento
entre forma e sentido no funcionamento de uma língua.
Essas duas instituições – língua e sociedade – são dadas aos
humanos, porque nascemos em um mundo de palavras, o que faz
Benveniste defender nosso nascimento na cultura, e não na natureza.
Assim, considero, a partir de Benveniste (1966/1995), que a passagem
da criança de infans a falante envolve emissão e percepção (escuta) de
formas e sentidos que lhe são “inculcados”, pois “[...] a criança nasce
e desenvolve-se na sociedade dos homens. São homens adultos, seus
pais, que lhe inculcam o uso da palavra” (BENVENISTE, 1966/1995,
p. 31). O termo “inculcar” comparece em Benveniste, quando faz
referência à aquisição da língua materna pela criança. No entanto, não
se deve entender do uso do termo a ideia de que o linguista defende a
criança como passiva sob a imposição da palavra do outro. A criança
é ativa no processo e também constituída por essa língua, porque,
como diz Benveniste (1974/1989), não é possível alguém inventar um
sistema sozinho, visto se entrar no mundo com um sistema linguístico
e social já organizados:
[...] não há aparelho de expressão tal que se possa imaginar
que um ser humano possa inventar sozinho. As histórias de
língua inventada, espontânea, fora de qualquer aprendizagem
humana são fábulas. A linguagem tem sempre sido inculcada
nas crianças pequenas, e sempre em relação ao que se tem
SUMÁRIO
169
chamado as realidades que são realidades definidas como
elementos de cultura, necessariamente. (BENVENISTE,
1974/1989, grifo meu).
Se a criança apreende o mundo do homem pela linguagem,
como ela o apreende? Como se constituem suas primeiras formas
vocais/fônicas? Se considerarmos, conforme Benveniste, forma e
sentido como noções gêmeas, como se dá o nascimento conjunto de
formas fônicas e sentidos?
É em sua história na linguagem que o humano é alçado a uma
condição de “agarrar significantes”, expressão de Barthes (1976),
ao que eu complementaria, em diálogo com o termo “inculcar” de
Benveniste, que o humano é também agarrado por significantes
do outro. Tanto o “agarrar significantes” quanto o ser agarrado por
significantes do outro vinculam-se ao fato de a criança viver enredada
na teia de sua língua materna via enunciações com os interlocutores de
seu convívio, enunciações que carregam todas as coerções da língua
e dos valores culturais de uma sociedade impregnados nessa língua. É
no jogo entre emissão-percepção (escuta) que o silêncio e as pausas
também comparecem como significativos.
Considero que a antropologia da linguagem, derivada da
reflexão benvenistiana, encontra na aquisição um dos seus grandes
fundamentos, porque a instauração da criança em uma língua se
atrela a sua entrada na sociedade humana. Essa instauração envolve a
emissão e a escuta como lugares de trânsito por meio do qual a criança
é constituída pelo próprio simbólico e pelos princípios organizacionais
de sua língua ao mesmo tempo que os constitui. É por estar imersa
em enunciações que as emissões e as escutas da criança e do outro
possibilitam ao infans se constituir e ser constituído por sua língua
materna, com os valores linguísticos e culturais constitutivos dessa
língua. Essa instauração se torna possível no exercício da linguagem,
espaço em que a criança e o outro podem estar na dupla função
SUMÁRIO
170
mediadora da linguagem: como locutor que emite para criar uma
realidade de discurso e como locutor que (se) escuta para recriar a
realidade de discurso. É nesse movimento que a linguagem exerce
a sua função mediadora homem-homem e homem-mundo, conforme
reflexão benvenistiana.
Em “Vista d´olhos sobre o desenvolvimento da linguística”,
ao trazer o desenvolvimento da linguística de seu tempo, Benveniste
defende que a linguística é ciência da linguagem e ciência das línguas.
Por isso, a linguagem, considerada faculdade humana, característica
universal e imutável do homem, não é a mesma coisa que as línguas,
sempre particulares e variáveis, nas quais se realiza. Para o linguista, a
língua põe em jogo unidades discretas, marcadas pela distintividade: os
lexemas, os morfemas, os fonemas e os merismas (traços distintivos).
Essa distintividade entre as formas é concebida pelo linguista como
ligada à significação ou à função das partes para a constituição do
todo (da língua).
A indissociabilidade humana à linguagem, com seu aparato
simbólico como base de as línguas significarem, recebe neste texto de
Benveniste especial atenção, texto em que o linguista recorre muitas
vezes à criança em aquisição:
Na verdade o homem não foi criado duas vezes, uma vez sem
linguagem, e uma vez com linguagem. A ascensão de Homo
na série animal pode haver sido favorizada pela sua estrutura
corporal ou pela sua organização nervosa; deve-se antes de
tudo à sua faculdade de representação simbólica, fonte comum
do pensamento, da linguagem e da sociedade.
Essa capacidade simbólica está na base das funções
conceptuais. (BENVENISTE, 1966/1995, p. 29).
É a faculdade simbolizante, para o linguista, que permite o
fundamento da abstração e, ao mesmo tempo, o princípio da imaginação
criadora. Essa capacidade de abstração ou representativa, de essência
SUMÁRIO
171
simbólica, base da significação, segundo Benveniste, aparece no
homem e desperta muito cedo na criança. Como ocorre esse despertar
na criança? Talvez a observação do empírico da aquisição, as emissões
vocais-fônicas da criança em relação com seus interlocutores, possa
oferecer pistas para responder a esse questionamento. Como em
outros textos, Benveniste problematiza nesse a diferença entre o
animal e o humano, diferença que parece estar ligada à relação entre
o biológico/natural/instintivo e o cultural/simbólico, visto defender que
o símbolo, no humano, é interpretado em uma função significativa e
não apenas percebido como impressão sensorial de um sinal, como
fazem os animais. Por isso, o linguista argumenta que, “Fora da esfera
biológica, a capacidade simbólica é a capacidade mais específica do
ser humano” (BENVENISTE, 1966/1995, p. 31).
A linguagem, para Benveniste (1966/1995), é um sistema
simbólico especial organizado em dois planos:
De um lado é um fato físico: utiliza a mediação do aparelho vocal
para produzir-se, do aparelho auditivo para ser percebida. Sob
esse aspecto material presta-se à observação, à descrição e ao
registro. De outro lado, é uma estrutura imaterial, comunicação
de significados, substituindo os acontecimentos ou a
experiência pela sua “evocação”. (BENVENISTE, 1966/1995,
p. 30, aspas do autor).
Como fato físico, a linguagem manifesta-se em uma língua
particular, tornando-se discurso e podendo ser escutada na interlocução.
Sob esse aspecto é que o analista da linguagem observa, descreve e
registra as cenas com uma escuta permeada por determinado ponto
de vista. Como fato simbólico, acontecimentos são recriados e, nesse
caso, jamais se tem acesso a uma realidade de acontecimentos senão
pela evocação de sentidos que se podem escutar do discurso, discurso
que dá existência, via mediação dos aparelhos vocal e auditivo, à
produção e à percepção (escuta).
SUMÁRIO
172
A passagem citada anteriormente revela a importância dada por
Benveniste (1966/1995) ao aspecto vocal/fônico como aparato material
mediador da relação entre falante e ouvinte. Pensando-a como registro
material, Benveniste parece relacionar esse aspecto ao trabalho do
linguista. Pensando-a como recriação de realidade, Benveniste parece
conceber a linguagem como evocação de sentidos entre interlocutores
em uma realidade objetiva extralinguística inacessível porque sempre
permeada pela subjetividade inscrita na linguagem.
O linguista, ao trazer suas concepções de linguagem e língua,
nesse texto, pontua conclusões, as quais considero importante destacar:
1) “Língua e sociedade não se concebem uma sem a outra. Uma e
outra são dadas, mas também uma e outra são aprendidas pelo ser
humano que não lhes possui um conhecimento inato” (BENVENISTE,
1966/1995, p. 31). Portanto, língua e sociedade são, em um movimento
de imbricação, recebidas e impostas, mas também constituídas pelo
humano. A criança, por isso, é constituída pela língua com os valores
distintivos de suas unidades e com os valores de cultura da sociedade
nela impregnados, mas a criança também constitui (apreende) valores
particulares desse duplo aparato que lhe é dado – língua e sociedade.
2) “A criança nasce e se desenvolve na sociedade dos homens.
São homens adultos, seus pais que lhe inculcam o uso da palavra”
(BENVENISTE, 1966/1995, p. 31). Portanto, a organização da língua
se impõe para a criança via relações com outros de seu convívio, mas
também a criança, de modo particular, organiza a sua língua, questão
que aparece em “Estruturalismo e linguística”: “Trata-se antes de tudo
da língua como organização e do homem como capaz de organizar
sua língua” (BENVENISTE, 1974/1989, p. 19).
Portanto, a aquisição apresenta-se como o ato inaugural de
entrada da criança na sociedade de homens falantes e ouvintes
de uma língua, porque, mergulhada em discursos, a criança acaba
ficando “molhada” por essa língua. A criança instaura-se na língua por
SUMÁRIO
173
estar na linguagem desde sempre, mergulhada em discursos. Esse
mergulho na linguagem possibilita-lhe entrar no seu rio, em sua língua
materna, com a complexidade envolvida no engendramento entre
formas e sentidos, questão a ser tratada no item a seguir.
A interdependência na língua entre a forma fônica e o
sentido: o fenômeno da aquisição da língua materna
A pesquisa linguística sobre determinado fenômeno, no caso
deste estudo sobre o som a partir de fatos empíricos de linguagem,
requer o afunilamento do ponto de vista de abordagem desses fatos
empíricos por parte do analista. Como diz Benveniste, “[...] um tal
ponto de vista que seja comum ao conjunto ou ao menos a uma
maioria de linguistas não existe” (BENVENISTE, 1974/1989, p. 221).
Ao falar para filósofos sobre a forma e o sentido na linguagem,
Benveniste situa-se como linguista e ressalta: “Quem fala aqui o faz
em seu nome pessoal e propõe pontos de vista que lhes são próprios”
(BENVENISTE, 1974/1989, p. 221). Parto de estudos desenvolvidos
com base em ideias de Benveniste sobre o vocal/fônico e me desloco
para textos do linguista nos quais o aspecto vocal/fônico da língua
é abordado. Como a preocupação neste estudo envolve a temática
do vocal/fônico, em seu estatuto embrionário, porque ligado ao
fenômeno de aquisição da linguagem, caminho com Benveniste,
mas procuro produzir, a exemplo dele, posições próprias sobre o
tema no sentido de afunilar o ponto de vista de estudo dos fatos
de linguagem de uma criança na linguagem e na língua “em estado
nascente”, expressão de Jakobson (1956/2003, p. 34).
Pensar o aspecto vocal/fônico tem sido uma das inquietações
dos estudiosos da obra de Émile Benveniste, visto ser esse aspecto
uma das grandes marcas de presença humana na linguagem. Por
isso, a tematização sobre o aspecto vocal/fônico da enunciação
SUMÁRIO
174
já foi objeto de reflexão tanto no campo da clínica de linguagem
fonoaudiológica quanto no de aquisição da linguagem. No projeto
O aspecto vocal/fônico da enunciação nos distúrbios da linguagem:
um estudo enunciativo dos distúrbios articulatórios com etiologia
orgânica definida, coordenado por Valdir do Nascimento Flores,
buscou-se desenvolver uma proposta de base linguístico-enunciativa
para a análise de dados de distúrbios de linguagem decorrentes
de distúrbios articulatórios com etiologia orgânica definida. Esse
projeto, do qual participei, contou também com a participação de
professores, de fonoaudiólogos e de alunos dos cursos de Letras e
de Fonoaudiologia. As reflexões presentes nesse projeto permitiram
eleger a categoria de transversalidade enunciativa (FLORES, 2009,
2010) como o principal operador de análise, visto entendermos que as
unidades de todos os níveis da língua (fonologia, morfologia, sintaxe
etc.), tomadas separadamente e/ou em inter-relação, apresentam
marcas do “eu” que enuncia.
As reflexões sobre o aspecto vocal/fônico da enunciação
encaminharam o grupo, em estudos posteriores, a refletir sobre a voz,
relacionando o campo da enunciação benvenistiana a outros campos,
como o da Filosofia, o da Antropologia e o da Psicanálise46. Ao tratarem
da voz na aquisição da linguagem, Silva e Milano (2013), por meio
da análise de fatos de linguagem de uma criança dos 11 meses a
1;2.22, produziram as seguintes problematizações: “Qual o papel da
voz nas vocalizações aparentemente semelhantes manifestadas nas
três diferentes cenas pela criança? Como as formas vocais que se
assemelham evocam sentidos distintos para o outro?” (SILVA; MILANO,
2013, p. 127). Uma das constatações provisórias a que chegamos foi
a de que a criança parece preencher seu lugar enunciativo e produzir
sentidos para o outro por meio da voz e de aspectos para além de
unidades segmentáveis da língua.
46 Dentre os trabalhos estudados, cito os de Agamben (2008a; 2008b), Bologna (1987),
Cavarero (2011), Le Breton (2011), Zumthor (2010) e Jerusalinsky (2009).
SUMÁRIO
175
Um dos grandes movimentos observados na análise foi o de
que a criança muda de lugar: de convocada pelo outro passa a
convocar o outro ao perceber o efeito que a entonação ascendente
de sua voz no discurso, juntamente com seu gesto, tem sobre o
outro. O estudo de Milano e Silva (2013) retoma o estudo de Silva
e Stumpf (2012), pois, nesse momento lógico de preenchimento
de lugar enunciativo (cf. SILVA, 2009), os procedimentos acessórios
da enunciação relacionados à voz (entonação, ritmo, dentre outros
aspectos prosódicos) e aos gestos produzem efeitos de sentido na
intersubjetividade enunciativa criança-outro. Ainda que Silva e Stumpf
(2012) e Silva e Milano (2013) não tenham abordado o modo como o
fônico comparece em seus aspectos biológicos (motores) e em seus
aspectos simbólicos (o sentido) no ato de aquisição da linguagem, a
conclusão a que Silva e Milano (2013) chegam atesta a reflexão sobre
a relação criança-outro e sobre o papel da voz nessa intersubjetividade
constitutiva da enunciação:
A abordagem enunciativa de aquisição da linguagem, ao
considerar as relações intersubjetivas, possibilita tomar as
enunciações da criança como instâncias de referência e de
sentido antes da adequação da forma da língua, já que, ainda
que esteja constituindo língua e por ela sendo constituída, a
criança está imersa na linguagem com sua voz como um meio
pelo qual assegura sua presença no mundo do homem. (SILVA,
MILANO, 2013, p. 128).
Com efeito, ainda que as formas fônicas apresentem, ao que me
parece, uma protodistintividade, ou seja, um embrião da distintividade,
há vocalização como modo de presença da criança na enunciação e,
consequentemente, na linguagem.
Silva e Flores (2015), ao tratarem da passagem da criança de
não falante a falante de uma língua com a consideração de que há,
na reflexão de Émile Benveniste, uma Antropologia da enunciação
– conforme proposição de Flores (2013) –, consideram que a
SUMÁRIO
176
aquisição de uma língua materna registra uma experiência única da
especificidade do humano na linguagem. Essa especificidade se
liga à capacidade simbólica, base da significação para Benveniste
(1966/1995; 1974/1989) e lugar de integração humana à linguagem.
Nesse estudo, consideramos que a aquisição da linguagem é a face
mais aparente da função simbólica no homem, e, por isso, essa função
permite à criança fazer a passagem da natureza à cultura e marcar a
sua presença e história na língua\linguagem. Por isso, defendemos
a transversalidade do fato simbólico na aquisição da linguagem, por
ser responsável pelo significar humano via enunciações. Valendo-se
também de Jakobson (1967), em seu texto “Por que ‘mama’ e ‘papa’?”,
para quem a interação entre a criança e o adulto produz, em ambos,
efeitos importantes, consideramos que o outro tem papel importante
por introduzir a criança no simbólico de sua língua. Por isso, considero
fundamental, aqui, retomar a interessante passagem de Jakobson:
as criações léxicas, socialmente convencionalizadas, dessa
fala de bebê, conhecidas pelo nome de linguagem de berço, se
adaptam de propósito deliberado ao padrão fonêmico infantil
e à construção usual das primeiras palavras que a criança diz;
e, por outro lado, tendem a impor à criança uma delimitação
mais nítida e uma estabilidade mais elevada da significação
vocabular (JAKOBSON, 1967, p. 76).
Diante disso, o tema da “escuta” entrou em nossa reflexão
naquele momento:
É a escuta que o adulto tem da especificidade do que é
vocalizado (no período do balbucio, por exemplo) que configura
uma base para produção da fala de retorno acerca do que ouve
do bebê. Para nós, essa escuta introduz cotidianamente a
criança no mundo do símbolo. (SILVA; FLORES, 2015, p. 141).
Com efeito, no estudo atual, a reflexão que produzo envolve
pensar que, considerada a aquisição na perspectiva de uma
Antropologia da linguagem ou da enunciação atribuída à reflexão
SUMÁRIO
177
sobre linguagem de Émile Benveniste, o simbólico, ao possibilitar
a passagem da criança da natureza à cultura, permite-lhe caminhar
rumo à distintividade de formas como condição de delimitação de
sentido dessas formas. Para Flores (2019), considerando a reflexão
de Jakobson, “[...] a passagem do balbucio às primeiras oposições
fonológicas atesta o que a entrada em uma dada língua impõe de
restrição ao falante” (FLORES, 2019, p. 211). E, desse modo, a relação
entre emissão vocal e percepção, considerada aqui como escuta,
torna-se fundamental nessa passagem da criança da natureza à
cultura, pois, como argumentam Silva e Oliveira (no prelo) acerca
da relação entre escuta e aquisição da linguagem, é “situando-se e
sendo situada como ouvinte do outro, bem como o situando como
seu ouvinte, que a criança apreende a língua materna”.
O fato simbólico, colocado como central nessas passagens,
permite-me reafirmar com Benveniste (1974/1989, p. 222) que “[...] o
próprio da linguagem é, antes de tudo, significar”. Por isso, a pontuação
de Silva e Flores (2015) torna-se importante por levar em conta não
somente o biológico, mas principalmente o mundo-cultura, o qual a
criança encontra ao nascer e no qual passa a viver via enunciações de
sua língua materna:
Ora, se acedemos à condição de homem pela faculdade de
simbolizar e essa faculdade realiza-se de maneira “suprema
na linguagem, que é a expressão simbólica por excelência”
(BENVENISTE, 1974/1988, p. 30), então a simbolização é a
capacidade única que tem o homem de construir sentidos
cuja percepção não pode ser esgotada pelo sistema
sensorial humano. Não basta ter visão, olfato, paladar, tato e
audição para construir sentidos. Aliás, esses sentidos estão
presentes, também, em outros animais e, nem por isso,
atribuímo-los [sic] capacidade de construir sentidos, em uma
palavra, de ter linguagem.
[...]
SUMÁRIO
178
Há muito para se desenvolver nesse campo: está por surgir uma
antropologia da enunciação que mostrará como a cultura está
constitutivamente presente na linguagem humana. E a criança
é talvez a melhor testemunha de tudo isso. Benveniste tem
razão em falar na criança, quando fala de cultura e linguagem.
Pois isso só é menos invisível pelo testemunho de uma criança.
(SILVA; FLORES, 2015, p. 147-148).
Ao observar o funcionamento do aspecto vocal/fônico na
criança, busco no estudo atual justamente comentar como o infante
pode indiciar47 de que modo a significação, atrelada ao simbólico da
linguagem, pode possibilitar-lhe produzir “contornos”48 às suas formas
enunciativas fônicas, produzindo para si e para o outro sentidos de
modo duplo: pela distintividade das unidades fônicas (intrassistema) e
pela referência constituída no discurso (interlocução).
O aspecto vocal da enunciação é também explorado em Diedrich
(2015). Ao investigar o papel do aspecto vocal da enunciação na
manifestação da experiência da criança na linguagem, a autora mostra
que, se a enunciação, enquanto fenômeno geral, é a apropriação da
língua pelo locutor, o qual, assumindo sua posição de sujeito, implanta
o outro diante de si, há, na aquisição da linguagem, um funcionamento
particular do aspecto vocal da enunciação, enquanto fenômeno
específico, constitutivo da relação de cada criança com o(s) outro(s).
Considerados os estudos anteriores com o quais este trabalho
dialoga, a especificidade deste estudo relaciona-se à abordagem
do aspecto vocal/fônico, em sua relação de engendramento entre
forma e sentido, considerada a gênese desse engendramento na
47 Questão a ser tratada na próxima seção.
48 O termo “contorno” é utilizado por Flores (2015), ao defender que, em nível de percepção e
do ponto de vista fenomenológico, o falante realiza comentários sobre a face significante da
língua por meio de contornos de sentido. Assim, o falante faz interpretações, uma espécie
de tradução, ao comentar a materialidade significante. Para fazer isso, realiza contornos de
sentido. Uso o termo de Flores (2015), mas em outra acepção, ao considerar que a criança
e outro, via escuta, atribuem sentidos que lhe possibilitam dar contorno às formas vocais. É
o aspecto de semantização da língua possibilitando que o sentido forme unidades fônicas.
SUMÁRIO
179
interdependência dos aspectos biológicos e culturais no ato de aquisição
da linguagem como vinculado à emissão e à percepção (escuta).
Para isso, revisito o texto “Os níveis da análise linguística”, da
obra Problemas de Linguística Geral I, e os textos “Estruturalismo e
linguística” e “A forma e o sentido na linguagem”, da obra Problemas
de Linguística Geral II.
Em “Os níveis da análise linguística”, Benveniste (1966/1995)
destaca a natureza articulada da linguagem e o caráter discreto de
seus elementos manifesto na língua como sistema orgânico de signos
linguísticos. Esse caráter discreto dos elementos na organização da
língua é visto pela segmentação e pela substituição. O autor concebe
os fonemas e os traços distintivos como elementos mínimos, porém
diferenciados, justamente pelo fato de os fonemas serem segmentáveis
e substituíveis, enquanto os traços distintivos (merismas) são somente
substituíveis. Os fonemas formam o nível fonemático e os traços
distintivos, o nível hipofonemático ou merismático. O elemento de
cada nível se integra ao superior, formando nova unidade dotada de
sentido; é o caso do fonema, que integra o morfema. As unidades
são delimitadas pela condição do sentido ao tornarem possível a
constituição de uma nova unidade de nível superior. O fonema se
define, assim, como constituinte do morfema.
Por isso, o linguista defende que a identificação de uma
unidade como tal ocorre se essa unidade participar de uma unidade
mais alta. Nessa linha de argumentação, considera a palavra em
uma posição intermediária, que se prende a sua dupla natureza: por
um lado, decompõe-se em unidades fonemáticas, que são de nível
inferior; por outro lado, integra com outras unidades significantes um
nível superior, a frase.
Uma unidade, nesse caso, será reconhecida como distintiva
num determinado nível se puder identificar-se como parte integrante
SUMÁRIO
180
da unidade de nível superior, da qual se torna o integrante. O limite
superior da análise linguística, para o autor, é a frase, que comporta
constituintes; o limite inferior é o do merisma, que, traço distintivo
do fonema, não comporta nenhum outro componente de natureza
linguística. A frase define-se pelos seus constituintes e o merisma (traço
distintivo) somente se define como integrante. Para Benveniste, assim,
as unidades dos diferentes níveis relacionam-se em forma e sentido.
Desse modo, o sentido intralinguístico da forma envolve a pergunta:
tem sentido na língua? Ou seja, no caso das formas fônicas/vocais,
o falante nativo identifica o elemento vocal como distintivo, opositivo
e delimitado por outras unidades. O sentido do nível mais alto
(categoremático), da frase, envolve o fato de a língua referir o mundo.
A pergunta envolvida, nesse caso, é: qual o sentido? A frase – seja
entendida como segmento do discurso, seja como o próprio discurso
– não apresenta significação por ser distintiva em relação a outras
frases, mas por trazer, ao mesmo tempo, sentido (ser enformada de
significação) e referência (remeter a uma determinada situação).
Os merismas – traços distintivos – cumprem função integrativa
por serem constituintes dos fonemas. A realização desses traços
depende de elementos biológicos do aparelho fonador para
realizarem abertura, fechamento, oclusão, fricção etc. No entanto,
para que a realização motora de um traço possa integrar uma forma
fonêmica, precisa ser reconhecida como produtora de sentido nas
relações enunciativas entre os parceiros da interlocução. É por esse
caminho que, na aquisição, as formas motoras da criança podem ter
atribuição de sentido e ir integrando-se ao repertório fonemático da
língua materna nas relações enunciativas criança e outro. Isso porque
o sentido se organiza “desde que haja dois indivíduos que possa
manejá-la [a língua] como nativos” em um exercício que transcende
a “uma faculdade natural” para caminhar em direção ao “mundo do
homem” (BENVENISTE, 1974/1989, p. 20, 21).
SUMÁRIO
181
Interessante é o fato de Benveniste finalizar esse texto com
a dupla propriedade da frase e sua relação com o locutor e com o
linguista. Essa relação é ilustrada novamente com o caso da aquisição,
pois, segundo ele, a criança, em seu exercício incessante do discurso,
torna-se sensível à frase como transmitindo algum sentido/conteúdo.
E é a partir da frase que ela passa a reconhecer unidades idênticas em
contextos diferentes ou unidades diferentes substituídas em contexto
idêntico. Por aí, Benveniste percebe que o locutor, ao reconhecer
a identidade e a diferença de unidades, está realizando análise
linguística, análise que posso derivar como relacionada, de modo geral,
à percepção/escuta como condição de a criança se tornar falante de
sua língua materna. Por isso, a unidade mais alta é o caminho para
o locutor-criança perceber as unidades menores como idênticas e
diferentes, ou seja, para alinhar o sentido global do discurso ao sentido
intralinguístico das unidades. No final do texto, Benveniste fornece
mais subsídios a essa argumentação: “É no discurso atualizado em
frases que a língua se forma e se configura. Aí começa a linguagem”
(BENVENISTE, 1966/1995, p. 140).
Atesto, nesse rápido percurso pelo texto “Os níveis da
análise linguística”, novamente a importância do vocal/fônico, para
Benveniste, pois as formas fonemáticas são condição para as
unidades maiores, as frases, que, como discurso, são lugares de
encontro da criança com o outro e com a língua via enunciação.
É pela frase que comparecem os comportamentos humanos “[...]
do homem falando e agindo pelo discurso sobre o seu interlocutor:
quer transmitir-lhe uma informação, ou obter dele uma informação,
ou dar-lhe uma ordem” (BENVENISTE, 1966/1995, p. 139). Esses
comportamentos, para o linguista, realizam-se por meio de frases
assertivas, interrogativas e imperativas, que revelam funções interhumanas em correspondências com as atitudes do locutor.
SUMÁRIO
182
O interessante desse texto para a investigação que desenvolvo
em aquisição da linguagem, a partir da teoria da linguagem de
Benveniste, diz respeito ao fato de que o estudo de toda e qualquer
unidade linguística, para o linguista, requer identificar essa unidade
como integrando outra, com a consideração do último nível da análise,
o da frase/discurso em contexto de interlocução. Como as crianças,
em sua “aurora” de vida, identificam unidades? Como o interlocutor da
criança identifica unidades em suas emissões? A criança, que ainda
não apresenta unidades distintivas, não apresentaria embriões de
distintividades fônicas? Não seriam esses embriões indícios do nível
hipofonemático ou merismático, ou seja, indícios de protodistintividade
em sua entrada para os sentidos intralinguísticos?
É importante pontuar que todo locutor usa a língua para
significar, produzindo sentidos e referências para o outro. Nesse
caso, parece-me que a criança produz e escuta unidades mais
altas, frases, que revelam sua atitude de locutor e manifestam seus
comportamentos humanos na linguagem, com sentido e referência,
antes da adequação das formas fônicas com sentidos intralinguísticos.
Assim, a criança talvez possa, em sua aurora na linguagem-língua,
evocar sentidos no discurso, nas relações enunciativas com o outro,
e realizar protodistintividade do sistema intralinguístico, que se
tornarão unidades distintivas de sua língua materna. É o seu início
da análise linguística, pela percepção/escuta, a partir da frase e no
exercício do discurso.
Com efeito, a natureza articulada da linguagem e o caráter
discreto de seus elementos impõem-se à criança no exercício do
discurso e lhe possibilitam se instaurar no sistema de relações
distribucionais (entre elementos de mesmo nível) e integrativas (entre
elementos de nível diferente). Em outras palavras, a discretização
de unidades é condição para entrada do falante em uma língua.
Conforme Benveniste, a percepção de diferenças e de identidades
SUMÁRIO
183
dos elementos, condição para a identificação de elementos como
unidades discretas, torna-se possível a partir do discurso e da
interlocução, princípio que considero fundamental nos estudos de
aquisição por essa abordagem de linguagem.
A questão da unidade, constituída em forma e sentido, e a
tematização do aspecto vocal/fônico da língua retorna no texto “A
forma e o sentido na linguagem”, no qual Benveniste (1974/1989) trata
da propriedade formal do signo. Nesse texto, Benveniste insiste que o
trabalho do linguista envolve definir quais são suas unidades. Para ele,
o signo é unidade do domínio semiótico (do sistema intralinguístico) e
a palavra é a unidade do domínio semântico (da frase/discurso). Ora,
sabe-se que a grande questão da aquisição é justamente a criança se
instaurar nesse duplo domínio. Em “Os níveis de análise linguística”,
como já evidenciado, o linguista destaca que a criança entra no mundo
do signo a partir do mundo do discurso. Deslocando a relação signodiscurso para o contexto da reflexão do texto “A forma e o sentido na
linguagem”, posso deduzir que o fato de a criança estar no universo
da palavra com o outro – no semântico com o semiótico – é o que
lhe permite ser constituída e constituir-se no universo do signo e do
discurso – no semiótico e no semântico de sua língua materna.
Benveniste destaca que a distintividade está ligada à
significação, pois todas as unidades formais do semiótico têm por
critério justamente o limite da significação. Ao se perder a significação,
perde-se a unidade e o seu caráter sígnico, visto que “Cada signo
tem de próprio o que o distingue dos outros signos. Ser distintivo e
ser significativo é a mesma coisa” (BENVENISTE, 1974/1989, p. 228).
Com a consideração do signo saussuriano, Benveniste examina
a organização do significante, com destaque, inicial, para as suas
formas sonoras:
SUMÁRIO
184
O significante não é apenas uma sequência dada de sons
que a natureza falada, vocal, da língua exigiria; ele é a forma
sonora que condiciona e determina o significado, o aspecto
formal da entidade chamada signo. Sabe-se que toda a forma
linguística é constituída em última análise de um número restrito
de unidades sonoras, chamadas fonemas; mas é preciso ver
que o signo não se decompõe imediatamente em fonemas e
que uma sequência de fonemas não compõe imediatamente
um signo. A análise semiótica, diferentemente da análise
fonética, exige que introduzamos, antes do nível dos fonemas,
o nível da estrutura fonemática do significante. (BENVENISTE,
1974/1989, p. 225, grifo do autor).
Nesta passagem, em diálogo com o texto “Os níveis da análise
linguística”, Benveniste volta a refletir sobre a organização da língua em
níveis com unidades que se integram. Assim, do fonema não podemos
passar diretamente para o signo lexical, pois há o nível morfemático
intermediário. O autor ainda destaca, fato que me chamou a atenção,
haver o nível da estrutura fonemática do significante anterior ao
fonema. Parece-me que a criança, ao produzir sons que o outro não
identifica como sendo da língua materna, pode estar produzindo sons
que apresentam indícios da organização fonemática do significante,
com aspectos motores necessários a essa organização (abertura
e fechamento de boca/pausas para respiração) que se tornarão
sentidos diferenciadores de formas fônicas na língua em nível anterior
à delimitação da unidade formal fonemática de sua língua, questão a
ser tratada nos fatos de linguagem da criança na seção de análise.
Para que a forma tenha sentido na ordem semiótica, também
precisa ser identificada como tendo ou não sentido. Essa identificação
na aquisição parece estar muito ligada ao adulto com o qual a criança
partilha vocalizações, pois é comum que as vocalizações da criança,
que Silva (2009) considera como formas enunciativas – já que estão
no discurso, mas não são identificáveis como da língua –, tenham
vocalizações de retorno do adulto com formas da língua. É nesse vai e
vem de unidades vocais/fônicas que a criança parece ir modelando as
SUMÁRIO
185
unidades fonemáticas de sua língua. Nesse caso, pontuo novamente
a importância dos sons presentes no semântico (discursos) e de sua
escuta como lugar de atribuição de sentido, condição para a criança
ingressar no semiótico de sua língua materna.
O outro da criança em aquisição, com a sua “escuta atenta”,
funciona, muitas vezes, como um tradutor49, que se vale do semantismo
das situações de interlocução, para constituir o semioticismo possível
para os discursos presentes nessas interlocuções, visto que esse
outro jamais conseguirá interagir com a criança com vocalizações
semelhantes às dela, por mais que produza formas aproximadas,
reconhecidas na literatura do campo de aquisição da linguagem como
manhês, conforme Snow (1978, 1986, 1989).
É no mundo da frase, com sua unidade, a palavra – no domínio
semântico –, que a criança vive acontecimentos de linguagem em sua
língua materna. Frases que podem “[...] ser truncadas, embrionárias,
incompletas, mas sempre frases” (BENVENISTE, 1974/1989, 228).
Por isso, observar fatos de linguagem do infans, que ainda não se
instaurou em sua língua materna, pode ser revelador da seguinte
formulação: não há unidades intermediárias, como o morfema, entre
as formas fônicas e a frase. Isso porque, no infans, o som, por não
ter a organização fonemática da língua materna, constitui diretamente
a unidade superior, a frase, sem que se identifiquem unidades
intermediárias. A frase implica referência à situação de discurso e à
atitude do locutor e contém, em um agenciamento sintagmático, uma
ideia (um sentido global), que provoca, na situação de discurso, a
inversibilidade de parceiros.
49 Benveniste, em “A forma e o sentido na linguagem”, tematiza a tradução com a seguinte
reflexão: “Pode-se transpor o semantismo de uma língua para o de uma outra, ‘salva
veritate’; é a possibilidade de tradução; mas não se pode transpor o semiotismo de uma
língua para o de uma outra, é a impossibilidade de tradução.” (BENVENISTE, 1974/1989,
p. 233). Estamos aqui operando deslocamentos e aproximações sem relacionar as formas
vocais e sentidos na relação criança-outro ipsis litteris com a operação e o campo de
tradução por não estarem em paralelo formas e sentidos de dois sistemas linguísticos.
SUMÁRIO
186
É no semântico que a língua, ainda que falte no infans (LEMOS,
2002), comparece como função mediadora entre os humanos e entre
os humanos e o mundo: “[...] transmitindo a informação, comunicando
a experiência, impondo a adesão, suscitando a resposta, implorando,
constrangendo; em resumo, organizando toda a vida dos homens”
(BENVENISTE, 1974/1989, p. 229). Novamente, Benveniste parece
trazer os modos de atualização da frase – assertiva, interrogativa e
imperativa – como meios de integração dos parceiros via linguagem.
O som, como elemento integrante primário das frases do infans,
além de ser o revelador da atitude de locutor da criança, possibilitalhe convocar o outro, por meio de contornos entonacionais de frases
assertivas, frases interrogativas e frases imperativas, que evocam esse
chamado ao outro.
Vemos Benveniste novamente, em “A forma e o sentido na
linguagem”, ressaltar o poder de significação da língua, “[...] que é
anterior ao dizer qualquer coisa” (BENVENISTE, 1974/1989, p. 234).
Assim, antes de dizer qualquer coisa em sua língua materna, a
criança está sempre presente nesse poder simbólico da linguagem
e de significação da língua, o que lhe permite passar dos sons
protofonemáticos para sons fonemáticos. Nesse caso, a atribuição
de sentidos às formas – via escutas sejam da criança, sejam do
adulto – possibilita o “afunilamento”50 das unidades como condição
de a criança fazer a passagem das formas enunciativas, sem traços
específicos, para as formas da língua, com traços específicos.
As reflexões presentes nesta seção retornam na seção de
análise a seguir.
50 A ideia da enunciação como “funil” “por onde o locutor faz passar a língua na tentativa
de assegurar o sentido” comparece em Flores (2013, p. 115). A ideia de afunilamento,
neste artigo, envolve a ideia de que as formas fônicas da criança vão se restringindo para
chegarem a formas fônicas com sentidos sistêmicos de sua língua materna.
SUMÁRIO
187
A CRIANÇA NO IMBRICAMENTO ENTRE
O BIOLÓGICO E O CULTURAL NA
CONSTITUIÇÃO DE FORMA E SENTIDO
Constituir fatos de linguagem para análise requer pensar
movimentos de observação do pesquisador, com a consideração da
singularidade constitutiva do fazer desse pesquisador.
Os dados da criança a ser escutada pertencem ao acervo do
grupo de pesquisa interinstitucional NALíngua (Núcleo de Estudos em
Aquisição da Linguagem), coordenado pelas Profas. Dras. Alessandra
Del Ré (UNESP) e Márcia Romero Lopes (UNIFESP). Esse grupo
conta com corpora de aquisição da linguagem, constituídos por
dados de crianças acompanhadas longitudinalmente, em situações
naturalísticas. Os dados selecionados para análise pertencem ao
corpus de Gustavo, criança acompanhada do 1º mês aos 6 anos e
11 meses. Desse período, foram recortadas cenas dos primeiros onze
meses para a constituição dos fatos de análise deste estudo.
A partir do modo de o pesquisador observar esses fatos de
linguagem é que serão destacados os vestígios ligados aos aspectos
de forma e sentido das vocalizações e das escutas que terão relevo
nas cenas ligadas ao exercício de linguagem/língua de Gustavo com
seus interlocutores. Essa reflexão sobre os vestígios/indícios da língua
nas emissões vocais da criança dialoga com a abordagem de Flores
(2019), visto, para o autor, “o que passa com a língua – e mesmo
na língua – quando uma criança fala nem mostra, nem oculta51: a
face aparente da passagem a falante apenas indica, logo significa”
(FLORES, 2019, p. 182, grifos do autor). A partir disso, o autor
51 Flores aqui menciona a passagem evocada por Benveniste (1974/1989, p. 234) a propósito
da linguagem presente na fala Heráclito, atribuída ao Senhor do Oráculo de Delfos: “Ela
não diz nem oculta, mas ela significa”.
SUMÁRIO
188
argumenta que, nessa perspectiva, “sai-se do campo da ‘mostração’
e passa-se ao campo da ‘indicação’” (FLORES, 2019, p. 182,
aspas do autor). Tais argumentos levam Flores (2019) à importante
conclusão de que “a fala da criança indica os termos pelos quais a
língua tem lugar nela” (FLORES, 2019, p. 187, grifos do autor). Indicar
esse lugar da língua nas emissões da criança envolve a escuta e o
olhar do linguista como uma testemunha52, um terceiro desse vir a ser
falante de uma criança. Assim, essa indicação do linguista envolve
“um ato de linguagem” e, nesse caso, seu testemunho é de “natureza
discursiva” (FLORES, 2019, p. 178).
Essa “natureza discursiva” atrela-se à escuta do pesquisador –
a terceira orelha (NORMAND, 2009) –, que considero já impregnada de
um ponto de vista sobre a linguagem. Disso não podemos fugir, visto
os fatos serem frutos desse ponto de vista. Nesse sentido, a seleção
de fatos de linguagem e os registros para a constituição dos fatos de
análise são produtos desse ponto de vista. Esses registros, se tomados
como transcrição ortográfica, ainda que tenham certa proximidade
com o fônico das enunciações faladas, ou como relato de cena, vão
envolver a subjetividade do observador e a perda constitutiva ligada à
escolha do que será olhado, escutado e comentado.
Aqui, considero um locutor descritor das cenas enunciativas.
Essa descrição é, portanto, uma enunciação que advém de outra
enunciação. Há, nesse processo, uma perda, porque o analista não
pode apreender o todo, assim como não poderá analisar o todo do
sentido (SILVA, 2009). Há sempre algo que escapa, o que é constitutivo
do ato tanto de transcrever quanto de relatar um fato de linguagem e,
ainda, do próprio ato de analisar.
52 A discussão sobre o lugar do linguista como testemunha (lugar de testis) e da criança como
supertes (o que vive a experiência de entrar em uma língua) pode ser aprofundada com
a leitura do capítulo 5 da obra de Flores (2019), que se vale das reflexões de Agamben
(2008b) e Ricoeur (2007) para a elaboração das noções de testemunho e testemunha
no campo da linguística, especialmente para desenvolver reflexões sobre a relação do
linguista com a fala da criança.
SUMÁRIO
189
Como a linguagem, conforme Benveniste (1966/1995), é um
sistema organizado em dois planos: como fato físico que possibilita o
registro e como estrutura imaterial que “evoca” sentidos, lido justamente
com esse duplo aspecto, pois procuro, de um lado, registrar o que
percebo pela mediação de meu aparelho auditivo; de outro lado, atento
para os vestígios do que é evocado nos fatos de linguagem de Gustavo
do 1º mês aos 11 meses. Por isso, não opero uma transcrição formal,
mas registros do que seja saliente nos modos de escuta da criança e
de seus interlocutores, registros estes produzidos ao “escutar” e “olhar”
atentamente Gustavo e seus parceiros em cada sessão, em situações
de interlocução com recortes de cenas enunciativas relevantes para
este estudo, que são descritas do seguinte modo: primeiramente, com
um quadro, no qual há um cabeçalho com uma descrição geral da
cena da criança com seus interlocutores. Na sequência, são inseridas
duas colunas: uma para as ações na linguagem da criança – verbais e
não verbais – e outra para a ação de seus interlocutores na linguagem
– verbais e não verbais. As setas, entre uma coluna e outra, indicam
a inversibilidade enunciativa dos parceiros na linguagem, por meio de
ações verbais e não verbais.
A afirmação de que “Falamos com outros que falam, essa
é a realidade humana” (BENVENISTE, 1966/1995, p. 65) carrega
o pressuposto antropológico transversal, atribuído à abordagem
linguística de Benveniste que nos serve como base e nos convoca a
pensar como a criança, enquanto infans, entra nesse mundo falante.
Esse mundo falante com uma língua, a qual, nas palavras de Chacon e
Villega (2012), mostra-se como um outro “turbulento” para as crianças.
A partir dessas pontuações metodológicas, encaminho-me para
as análises. Nos movimentos analíticos, duas cenas são analisadas.
Após a descrição e a análise de cada cena enunciativa, apresento
uma reflexão sobre a relação entre forma e sentido do aspecto vocal/
fônico, com a discussão sobre a relação entre o biológico e o cultural
SUMÁRIO
190
implicados na intersubjetividade de emissões e percepções (escutas)
na aquisição de língua materna pela criança.
A cena enunciativa I: descrição e análise
Quadro1: Descrição da cena enunciativa I.
Fonte: Elaborado pela autora.
Nesta cena, os pais, na inversibilidade enunciativa com Gustavo,
assumem diferentes papéis. A mãe vocaliza em nome de Gustavo
com asserções e interrogações, que o implantam como tu (“tá bom aí
Gustavo?”) e eu (“tô bem relaxadinho”) na inversibilidade enunciativa.
Também o pai enuncia no lugar de Gustavo (“tô bem relaxadinhu meu,
bem relaxadinhu”). No entanto, como a mãe está atravessada pela
câmera, Gustavo não a olha diretamente e não se manifesta. Já quando o
pai enuncia, principalmente quando este modifica a voz, Gustavo reage
direcionando o olhar para o pai e fazendo movimentos de abertura de
boca, o que evidencia a importância do aspecto fisiológico/biológico
para Gustavo ocupar um lugar enunciativo em uma emissão de retorno
SUMÁRIO
191
ao seu interlocutor. Esse movimento encaminha Gustavo a produzir “é..
gu”, que o pai passa a simular numa espécie de espelhamento com a
criança. São formas fônicas que produzem sentido na interlocução e
apresentam um embrião de sentido intralinguístico (distintividade entre
vogal e consoante).
Importante nessa cena enunciativa é o fato de que o pai
promove esse espelhamento ao mudar o registro na dinâmica de
sua voz (ABERCROMBIE, 1967), elevando bastante sua frequência
fundamental – fato que provoca em Gustavo a continuidade de
movimentos na boca para a produção de sons. Nesse sentido, parece
que, ao se escutar, de algum modo, nessa mudança de registro
vocal do pai, Gustavo reconhece um lugar de enunciação para si na
inversibilidade enunciativa.
A cena enunciativa mostra que Gustavo, ao olhar para o pai
e não para a mãe (que interage com ele e o filma), postula, como
alocutário, o pai. Ao implantar esse outro diante de si, produz, pelos
movimentos da boca, formas com contrastes fônicos (sentidos
intralinguísticos) importantes como fechado/aberto, que resultam no
embrião de uma sílaba que se percebe como /gu/, já com o padrão
silábico universal consoante + vogal (CV) preenchido por fonemas
que se podem reconhecer no português brasileiro (PB). Ou seja,
nessa cena, observam-se indícios do nascimento conjunto de forma
e sentido, como possibilidade de a criança, por estar na imbricação
semiótico-semântico via relações enunciativas com o outro, instaurarse no sistema de sua língua materna.
Além disso, ainda em seu segundo mês de vida, Gustavo dá
mostras, por meio da presença de elementos importantes na troca
intersubjetiva – como a pausa –, de que ocupa um lugar de escuta
das emissões vocais do outro. Seus contrastes ora comparecem com
pausa, ora sem pausa. Assim, a pausa apresenta-se como o germe
da relação emissão vocal/respiração, aspecto biológico/fisiológico
SUMÁRIO
192
importante para as enunciações vocais. A presença e a ausência de
pausas também marcam a necessária relação de diferença para a
produção de sons como germe de frase/enunciados e produção de
sentidos na relação discursiva eu-tu. As formas fônicas emitidas e
suas pausas marcam, em síntese, a intersubjetividade constitutiva da
linguagem, presente na relação entre emissões e escutas.
No caso dessa cena, Gustavo implanta seu pai como
interlocutor principal justamente quando este muda o registro de
(sua) enunciação, alternando trechos de fala nesse novo registro com
pausas e convocando enunciações de retorno por parte de Gustavo.
Desse modo, as pausas parecem cumprir funções importantes:
biológica/fisiológica (respiração), linguística (estabelecimento de
unidades com interface entre sintaxe e prosódia) e enunciativa
(escuta e espera de retorno do interlocutor). Aqui, biológico e cultural
se implicam para a entrada da criança nos dois modos de ser língua:
no semiótico, com seu sistema de distintividades, e no semântico,
língua em ação no discurso.
Essa reflexão dialoga com Milano e Flores (2015), que, com base
no texto “Por que ‘mama’ e ‘papa’?”, de Jakobson, assumem que, do
ponto de vista da interlocução, a ‘fala do bebê’ indica uma relação
simultânea entre continuidade e descontinuidade53, com a pontuação
de que, nessa simultaneidade, diferentes aspectos – físico, fisiológico,
cognitivo, psíquico e linguístico – encontram sentido na “fala do bebê”,
simultaneidade que permite a passagem do homem da condição de
infans à de falante. No estudo que aqui apresento, considero que,
para além das formas de parentesco (“papa” e “mama”), as primeiras
formas vocais do bebê, com seus movimentos articulatórios de ordem
53 Milano e Flores (2015) propõem uma leitura da hipótese de descontinuidade na passagem
do balbucio à organização do sistema fonológico da língua materna do falante. Para os
autores, com base na leitura de textos de Jakobson como “Por que ‘papa’ e ‘mama’?”, há
uma concomitância entre o que é da ordem do contínuo e do descontínuo na passagem
do balbucio ao sistema fonológico de uma dada língua.
SUMÁRIO
193
biológica, apontam traços vocais com potencialidade de contrastes
e oposições, base do sentido intralinguístico das formas vocais. É a
simultaneidade do biológico e do simbólico como condição de entrada
da criança na língua, em seu duplo modo de significância: semiótico e
semântico. Os ecos das formas vocais da criança na fala do outro dão
mostras do papel da escuta e da interlocução como potências do que
se tornará sons com contrastes (sentidos intralinguísticos) no sistema
da língua materna, questão corroborada por Milano e Flores (2015):
Tudo indica, então, que a escuta, por parte do adulto, das
particularidades do que é vocalizado no período do balbucio
configura-se um alicerce para a produção de fala de retorno
que o adulto utiliza ao se dirigir ao bebê. Consequentemente,
nada impede pensar que essa escuta possa ser, por sua
vez, matriz para as primeiras palavras do bebê. (MILANO;
FLORES, 2015, p. 66).
Interessante pontuar, ainda, nessa cena, não somente a escuta
do outro, mas também a escuta da criança quanto às emissões do outro,
visto a mudança de dinâmica do vocal por parte do pai encaminhar
a continuidade de emissões de formas vocais da criança, com um
olhar e um sorriso dirigidos a seu interlocutor como indícios do “prazer”
da criança em se reconhecer no vocal do outro. É o funcionamento
intersubjetivo da linguagem – entre escutas e emissões de formas
vocais – propiciando o encontro humano implicado na relação entre
formas e sentidos. Essa intersubjetividade inscrita em nossa cultura
de linguagem de berço, ou “manhês”, parece ser lugar de garantia
de passagem do balbucio a dado sistema linguístico e reveladora do
quanto o biológico e o cultural54 estão implicados na instauração da
criança em uma língua materna.
54 É claro que aspectos físicos, fisiológicos, cognitivos, psíquicos e linguísticos são simultâneos
e encontram-se na passagem da criança de infans à falante, como bem lembram Milano e
Flores (2015), no entanto, neste estudo, com base na reflexão benvenistiana, centro-me na
relação entre aspectos biológicos e culturais.
SUMÁRIO
194
A cena enunciativa II: descrição e análise
Quadro 2 – Descrição da cena enunciativa II.
Fonte: Elaborado pela autora.
A cena enunciativa II é reveladora da presença de Gustavo na
linguagem, que olha e vocaliza para seu interlocutor ainda que este
não lhe produza enunciação de retorno. Essa cena concede relevo à
criança na enunciação, realizando a combinação entre dois tipos de
contrastes nas formas fônicas passíveis de serem significativos na
língua: volume + qualidade vocálica. Além disso, essa cena apresenta
as pausas cumprindo papéis importantes: (1) distinguir o volume de
sons vocálicos (“uh uh”) de sons com presença de consoante +
vogal (“ga”), sílaba que, além da altura, é marcada pelo alongamento
da vogal “a”; (2) distinguir a qualidade das vogais: fechamento (/u/)
e abertura (/a/).
Nessa cena, há indícios de a criança escutar suas próprias
emissões, fato marcado pela alternância e pela repetição de formas
fônicas. Há, aqui, elementos embrionários da distintividade dos sons
na passagem do biológico (o ouvir da orelha) para uma escuta que
SUMÁRIO
195
capta regularidades com potencial para a determinação dos sentidos
por meio de diferenciações fônicas possíveis do sistema linguístico de
sua língua materna.
O escutar os sons por parte da criança coloca em destaque
sua relação com o vocal e o possível prazer ou descoberta de se
fazer presente nessa experiência em que se inverte do lugar de quem
emite para o lugar de quem (se) escuta – inversibilidade que se
pode indiciar não apenas pelos contrastes fônicos já apresentados,
como, ainda, pelo contraste entre a produção do som e o silêncio
(nos momentos de pausa que delimitam as organizações de formas
fônicas que emergem em suas enunciações). Há, aqui, a criança
experienciando um novo modo de enunciação, uma espécie de
enunciação em “monólogo”, que, conforme Benveniste (1974/1989),
funciona como uma relação entre um eu locutor, que emite, e um eu
ouvinte, que escuta o que emite. Como diz esse autor, às “[...] vezes
o eu locutor é o único a falar; o eu ouvinte permanece, entretanto,
presente; sua presença é necessária e suficiente para tornar
significante a enunciação do eu locutor” (BENVENISTE, 1974/1989,
p. 87, 88). Com efeito, ainda que o interlocutor da criança não
produza enunciações de retorno, sua presença torna significativa
as emissões da criança, pois ela, em sua relação possivelmente
prazerosa com os sons, mantém o olhar para esse interlocutor.
Assim, antes de referir pelo discurso (SILVA, 2009), o que é
relevante para a criança, de início, parece ser essa relação com os
sons a que se entrega com prazer diante da sustentação do outro. Com
isso, carrega o tu em seu apelo, ao apresentar uma dominância do
eu, fato que é, para Dufour (2000), uma das condições fundamentais
para a produção de um espaço de simbolização, determinando a
assunção do indivíduo como sujeito falante. Essa assunção, nesta
cena, parece ligar-se ao lugar enunciativo ocupado pela criança, pois
seu movimento entre a emissão e a escuta traz indícios de contrastes
SUMÁRIO
196
que potencializarão sentidos intralinguísticos ou sistêmicos, condição
para se instaurar nas formas fônicas de sua língua materna. A entrada
da criança no sentido sistêmico envolve as restrições impostas pela
língua materna, pois, como argumenta Flores (2019, p, 210), ao
“abrir mão de uma potencialidade aparentemente desmedida de
articulação fônica para entrar no mundo específico de uma língua,
a criança [...] coloca em evidência que a língua materna, antes de
qualquer coisa, restringe”.
As análises das duas cenas apontam a relação entre o
biológico e o cultural como condição para o nascimento da criança
em sua língua materna, com formas que atestam a constituição dupla
do sentido (sistêmico e discursivo). Se o biológico é condição de
entrada para uma língua, o simbólico da linguagem, como base de
a língua com a sua cultura significar, é condição não somente de
entrada humana na língua, mas de continuidade nessa língua, com
a mudança constante na relação de cada locutor com o sistema de
valores de sua língua, impregnada dos valores da cultura, pois é “no
meio humano” que há tudo “o que, do outro lado do cumprimento das
funções biológicas, dá à vida e a atividade humana, forma, sentido e
conteúdo” (BENVENISTE, 1966/1995, p. 31).
CONCLUSÃO
Neste texto, aliando teoria e empiria, procurei responder às
seguintes questões: 1) como comparecem as relações entre o biológico
e o cultural no engendramento entre forma e sentido na aquisição
da linguagem nas relações enunciativas criança e outro? 2) Como a
criança engendra a relação forma e sentido nos primeiros onze meses
do processo de instauração em sua língua materna?
SUMÁRIO
197
Benveniste problematiza a linguagem em todos os aspectos
ao estudar línguas reais como organismos empíricos. Combateu
sempre, em seus estudos, uma linguística centrada na “atomização”
da língua com classificação e descrição de partes isoladas, visto
defender que
a língua empírica é o resultado de um processo de simbolização
em muitos níveis [...] o “dado” linguístico não é, sob esse
aspecto, um dado primeiro, do qual bastaria dissociar partes
constitutivas: é já, um complexo, cujos valores resultam nas
propriedades particulares de cada elemento, outros das
condições de sua organização, outros ainda da situação
objetiva. (BENVENISTE, 1966/1995, p. 13, aspas do autor).
Os “dados” de aquisição relevam desse processo de simbolização
com a complexidade envolvida em diferentes aspectos. Neste estudo,
considerando as condições da situação objetiva em que emergiram –
juntamente com elementos biológicos e culturais –, procurei dar especial
atenção ao modo como as formas fônicas embrionárias da criança
vinculadas a aspectos fisiológicos e biológicos, ao responderem os
apelos dos pais e ao serem interpretadas como formas linguísticas,
recebem sentidos e instauram-se nesse processo simbólico. As formas
fônicas adquirem sentido, nas relações enunciativas, para caminharem
em direção a um sentido intralinguístico (com distintividade).
Se um fechamento e uma abertura de boca envolvem
realizações motoras ligadas às condições fisiológicas e biológicas
da criança, o sentido atribuído a esse fechar e abrir boca relacionase ao simbólico da linguagem e ao fato de que enunciar é significar.
Se há elementos contínuos e descontínuos na passagem do balbucio
ao sistema fonológico de uma dada língua, conforme Milano e Flores
(2015) propõem a partir de Jakobson, penso, a partir de Benveniste,
que há, nos aspectos biológicos (como abertura/fechamento de
boca), embriões do nível hipofonemático ou merismático (aspectos
linguísticos), que integrarão o sistema de sons de dada língua. Nesse
SUMÁRIO
198
caso, o aspecto biológico integra-se ao linguístico para compor a
distintividade (sentido) das formas no sistema semiótico de uma língua,
constituição possível via relações enunciativas da criança com o outro,
lugar onde as particularidades fônicas, morfológicas e sintáticas da
língua vão ganhando contornos de sentidos intralinguístico e discursivo,
fatos que integram o biológico e o cultural nos diferentes modos de
presença da criança com o outro na linguagem. Por isso, o biológico
e o cultural integram-se nesse “afunilamento” de formas e sentidos
na aquisição da língua materna, pois, para além de continuidades e
descontinuidades, há mudanças e integrações sistêmicas e discursivas
nas formas vocais para a instauração da criança nos dois modos de
existência de sua língua materna, o semântico e o semiótico.
O outro, ao atribuir sentido e ao dar um lugar enunciativo
para a criança, possibilita, de um lado, o encontro intersubjetivo na
linguagem, de outro lado, o encontro da criança com as formas fônicas
de sua língua materna. O fato de a criança usar órgãos do aparelho
fonador (aspecto biológico) movimenta um conjunto de valores de
ordem simbólica, em um processo de integração da língua com a
cultura. A enunciação vocal, com os elementos biológicos implicados
em sua realização, significa. Dar um lugar de significação para as
formas enunciativas fônicas da criança é garantir um lugar para que
compareçam as formas da língua em sua abertura para os sentidos
sistêmico e discursivo.
Talvez seja importante, neste momento, aventurar-me para pensar
o alcance da reflexão sobre integração na abordagem benvenistiana,
pois tal noção garante o sentido às formas de diferentes níveis. Se as
emissões vocais da criança dependem de um aparato biológico para se
realizarem e se essas emissões já apresentam traços hipofonemáticos,
como embrião do sistema fonemático, é possível considerar que, na
relação da criança com o outro e com o mundo, devido à propriedade
simbólica da linguagem e à função mediadora da língua, essas formas
SUMÁRIO
199
motoras iniciais passam a ter “status” linguístico. O biológico, assim,
integra-se à língua, que, por sua vez, integra a cultura. É nesse jogo de
relação integrativa entre biológico-linguístico-cultural, em enunciações
criança-outro, que forma e sentido, como noções gêmeas, nascem
para viverem juntas na presença humana na linguagem. O semiótico
– formas do sistema intralinguístico – adquire contornos de sentido
ao ser engendrado no semântico – sentidos singulares envolvidos na
produção dos discursos –, o que permite à criança sua integração à
sociedade e sua adequação ao mundo.
Com Benveniste, entendo que “os problemas inerentes
à análise da língua, de um lado, da cultura de outro, e os da
‘significação’, que lhes são comuns” (BENVENISTE, 1966/1995,
p.17), encontram-se. Se “entre a função sensório-motora e a
função representativa há um limiar que só a humanidade transpôs”
(BENVENISTE, 1966/1995, p. 29), a teorização e a análise dos fatos
de linguagem da criança presentes neste estudo talvez sejam uma
pequena ilustração de como essa transposição vai acontecendo
na aquisição da uma língua materna. As ações motoras da criança
marcam a presença da criança na linguagem e se tornam ações
linguísticas em encontros na linguagem com o outro, encontros
enredados em teias de significação da língua materna.
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SUMÁRIO
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SUMÁRIO
203
Capítulo 8
8
A CRIANÇA E SUAS NARRATIVAS:
A EXPERIÊNCIA CONSTITUÍDA
NOS RUIDOZINHOS VOCAIS
Marlete Sandra Diedrich
Marlete Sandra Diedrich
A CRIANÇA
E SUAS NARRATIVAS:
A EXPERIÊNCIA
CONSTITUÍDA
NOS RUIDOZINHOS VOCAIS
DOI: 10.31560/pimentacultural/2020.281.204-220
INTRODUÇÃO
Aprendemos com Benveniste a ver a linguagem significar no
seio da sociedade, no seio da cultura. Vivemos um período na história
da humanidade em que os significados, a sociedade e a cultura, tais
como os conhecemos, passam por profundas transformações55, e o
poder significante da linguagem, mais uma vez, nos faz refletir:
Imaginemos o que seria a tarefa de representar visualmente
a “criação do mundo” se fosse possível figurá-la em imagens
pintadas, esculpidas ou semelhantes à custa de um trabalho
insano; depois vejamos no que se torna a mesma história
quando se realiza na narrativa, sucessão de ruidozinhos vocais
que se dissipam apenas emitidos, apenas percebidos; mas
toda a alma se exalta com eles, as gerações os repetem e cada
vez que a palavra expõe o acontecimento, cada vez o mundo
recomeça. Nenhum poder se igualará jamais a esse, que faz
tanto com tão pouco. (BENVENISTE, 1963/200556, p. 30-31,
grifos do autor).
Benveniste aborda a questão da narrativa como “sucessão
de ruidozinhos vocais que se dissipam apenas emitidos, apenas
percebidos”, mas que revelam um poder de significação extraordinário:
o poder da palavra que expõe o acontecimento. Em O aparelho formal
da enunciação, texto motivador do presente livro, o autor (1970/1989,
p. 82) volta a fazer referência aos “sons emitidos e percebidos”,
ao abordar a realização vocal da língua como um dos aspectos da
enunciação, constatação que contribui para aguçar nosso interesse em
torno do tema. Em nossos projetos de pesquisa, temos nos ocupado
justamente desse poder significante revelado no vocal que marca a
experiência de aquisição da linguagem vivida pela criança. Somos
55 Este capítulo foi escrito durante o isolamento social em função da ameaça do
novo coronavírus.
56 Estamos usando o seguinte sistema de citação das referências dos textos de Benveniste
publicados em Problemas de Linguística Geral I e II: ano de publicação do artigo na França/
ano de publicação da obra no Brasil.
SUMÁRIO
205
inspirados pela nossa própria vivência de aquisição de linguagem, da
qual, é claro, não conseguimos dar um testemunho completo, conforme
nos explicam Flores e Milano (2014, p. 1)57 ao problematizarem a
passagem da criança de infans a falante: “a criança passa a figurar
como um superstes, como testemunha de uma experiência que não
é mais acessível a nenhum de nós, embora todos tenhamos passado
por ela”. Ainda assim, dividimos com o leitor o nosso esforço para
acessar parte desta experiência. E este esforço nos leva à nossa
própria infância na roça, marcada por narrativas de acontecimentos
fictícios, como a vida doméstica dos amigos imaginários, mas nem por
isso inomináveis, D. Oma e seu filho Nélio; e, muitas vezes, também
por narrativas de acontecimentos reais, como aquelas originárias
das diversas ocasiões em que o galpão de nossa casa era habitado
por andarilhos que pediam abrigo e eram acolhidos pelo nosso pai,
ou quando nossas terras serviam de terreno para as barracas dos
ciganos, para desespero de nossa mãe, o que, sem dúvida, sempre
gerava relatos inusitados entre nós, crianças curiosas de quatro, cinco
anos, e ávidas por aventuras, reais ou imaginárias, que tomavam corpo
no entrelaçamento das relações sociais.
Pois bem, não podemos mais acessar esta experiência pessoal
de aquisição, da qual temos apenas lembranças esparsas e relatos
das testemunhas familiares, mas voltamo-nos para a experiência
das crianças cuja linguagem investigamos, talvez numa tentativa
ilusória de acessarmos a nossa própria entrada na linguagem. Assim,
ocupamo-nos, neste capítulo, dos “ruidozinhos vocais emitidos e
percebidos”, os quais são abordados nesta reflexão como os arranjos
vocais característicos das narrativas produzidas pela criança na sua
experiência de aquisição da linguagem.
57 Os autores se referem à noção de testemunho, desenvolvida por Giorgio Agamben em
O que resta de Auschwitz (2008); também se pautam na discussão empreendida por
Benveniste acerca da etimologia das palavras testis e superstes em O vocabulário das
instituições indo-européias (1995).
SUMÁRIO
206
Partimos do princípio de que, como um sistema de valores que é,
a língua, em situações de discurso, traz traços culturais que se referem
a um modo específico, na prática social, de se narrarem determinadas
experiências vividas em eventos particulares. Ao narrar experiências
vividas ou imaginadas, a criança se apropria das formas da língua para
simbolizar, por meio da linguagem, diferentes mundos, instanciandoos no aqui-agora da enunciação. Trata-se da “experiência repetida em
detalhe” a que se refere Benveniste (1970/1989, p. 83), constituída
na dupla natureza da língua: social, manifestada nos esquemas
culturais que determinam a mobilização dos arranjos vocais; individual,
manifestada nas escolhas particulares da criança a cada ato. Nosso viés
teórico-metodológico se pauta na perspectiva enunciativa aquisicional,
conforme Silva (2009). Segundo a autora (2009), nesta perspectiva,
assume-se o dispositivo teórico-metodológico (eu-tu/ele)-ELE, o qual
comporta a criança (eu), o outro de seu convívio (tu), a língua (ele) e a
cultura (ELE) instanciados no ato de aquisição da linguagem.
Com essa concepção, olhamos para a manifestação discursiva
da criança e nos perguntamos: Por meio de que arranjos vocais
a criança instancia, no aqui-agora da enunciação de narrativas,
as experiências vividas em eventos particulares? Para ilustrar o
fenômeno, apresentamos um dado de linguagem, público, de uma
criança de três anos de idade e voltamo-nos para ele com o objetivo
de descrever o modo como, via arranjos vocais na enunciação
de narrativas, a criança vivencia a experiência do acontecimento,
a experiência repetida em detalhe. Não temos a pretensão de
apresentar resultados conclusivos, pois não se trata de um projeto
de pesquisa em andamento, mas de uma motivação para um olhar
mais detalhado e cuidadoso para o fenômeno.
Na sequência, apresentamos o dado de linguagem, constituído
pela narrativa da criança, para, a partir dos “ruidozinhos vocais”
que lhe dão forma e sentido, discutirmos os conceitos e princípios
SUMÁRIO
207
enunciativos aquisicionais que definem esta experiência e podermos
refletir, também por caminhos conexos, acerca do que seja de fato uma
experiência humana na linguagem.
A ESPECIFICIDADE DO ASPECTO
VOCAL DA ENUNCIAÇÃO REVELADA
NOS ARRANJOS VOCAIS
No final da tarde de quinze de abril de dois mil e dezenove, um
triste acontecimento marca a história da França: em Paris, a catedral
de Notre Dame era consumida pelas chamas de um incêndio, que
levava embora tesouros materiais e imateriais de um ícone imortalizado
na obra de Victor Hugo. Sem dúvida, esse episódio suscitou diversas
narrativas nos jornais e revistas do mundo inteiro, ávidos pela cobertura
do evento. No entanto, voltamo-nos aqui para a narrativa de M.L., uma
menina brasileira, de três anos de idade, que, por uma ironia do destino,
havia visitado a Catedral no mesmo dia do incêndio e que, ao chegar
ao apartamento em que estava hospedada com a família em Paris,
fica sabendo, pela televisão, do acontecimento. Sua primeira reação,
segundo a mãe relata no programa televisivo Universidade Aberta58,
da UPFTV, é afirmar: “Tenho de contar pra profe e pros meus colegas”.
A mãe liga para a professora, que está no Brasil, e o relato produzido
por M.L., via telefone celular, é o que segue, transcrito aqui de forma a
facilitar o olhar do leitor para a linearidade da narrativa, mas também
para os fenômenos que atrelamos, no decorrer de nossa reflexão, ao
aspecto vocal da enunciação. Com esse intuito, usamos as seguintes
normas de transcrição:
58 O programa, com apresentação de Bibiana Friderichs, foi exibido em 29 de abril de 2019 e
encontra-se disponível em https://www.youtube.com/watch?v=S7pGuAQP4kM&t=117s.
SUMÁRIO
208
Quadro 1: Normas de transcrição.
Fenômeno vocal
Registro de transcrição
Alongamento
Repetição da letra representativa
do som alongado
Tom ascendente
Letra maiúscula
Interrupção brusca do enunciado
Barra
Pausa breve com duração de até 3s
Reticências
Fonte: a autora.
Seguindo essas normas, apresentamos o dado de linguagem
que ilustra nossa reflexão.
Dado de linguagem: Eu tenho um problema.
M.L. : Prô e colegas, eu tenho um problema. A igreja do Frère Jacques pegou fogo.
Daí os bombeiro, TODOs os bombeiro foram lá apagar o fogo. Daí tem de pegá de
noite e vo/ e vai demorá MUItos anos
Mãe: Como é que é o nome da igreja, filha?
M.L.: NOTRE Dame
Mãe: é... E a gente foi lá?
M.L.: A gente foi, mas a gente voltou pra casa e a mãe tava no banheiro daí quando
eu viii tava pegando fogo
Mãe: É... E o que tu acha que aconteceu pra pegá fogo? O que tu acha que houve?
M.L.: Eu acho que foi porque por causa que queee que ah tava acendendo tooodas
as velas muita vela daí pegô isso.
A partir dessa narrativa, apresentamos algumas considerações
que conduzem nossa reflexão de cunho teórico-analítico.
Consideração 1: A criança narra o acontecimento
para um outro: a professora e os colegas.
M.L. vive a experiência de um acontecimento extremamente
significativo para ela: A igreja de Frère Jacques pega fogo. Por ser um
fato tão significativo, surge a necessidade de tornar essa experiência
conhecida também daqueles com quem ela, provavelmente, na maior
SUMÁRIO
209
parte do tempo, convive: a professora e os colegas. Assim, surge
a enunciação: “este colocar em funcionamento a língua por um ato
individual de utilização“ (BENVENISTE, 1970/1989, p. 82), o que,
segundo o mesmo autor (1963/2005, p. 27), só é possível porque cada
locutor, para propor-se como sujeito, precisa do outro, “o parceiro
que, dotado da mesma língua, tem em comum o mesmo repertório de
formas, a mesma sintaxe da enunciação e igual maneira de organizar
o conteúdo”. Esta descrição de quem seja o “parceiro” da enunciação
se reveste de um sentido muito particular quando pensamos nas
rodas de conversas que marcam o cotidiano escolar da Educação
Infantil, quando crianças de três, quatro anos de idade se reúnem com
outras crianças e com a professora para narrar eventos, vividos ou
imaginados, já que o importante é estar com os parceiros e “torna(r)
a experiência interior de um sujeito acessível a outro numa expressão
articulada e representativa, e não por meio de um sinal como um
grito modulado” (BENVENISTE, 1963/2005, p. 30). Efetiva-se, nessas
rodas de conversa, a relação de subjetividade e intersubjetividade, e a
criança vivencia o fato de que a linguagem, em sua ação simbolizante,
realiza-se numa determinada língua.
A narrativa apresentada pela criança ganha contornos de sentido
levando em conta o outro. É para este outro que M.L. anuncia, já no
início do telefonema: “eu tenho um problema”. Faz isso porque resgata
modos de narrar vivenciados em esquemas culturais constituídos em
suas relações sociais. Nessas relações, os telefonemas a pessoas
queridas são efetuados, em geral, para a transmissão de boas novas,
diferentemente do acontecimento em questão. O incêndio da catedral,
por sua natureza, exige o anúncio inicial que, como um rótulo, anuncia
a experiência da criança com o evento vivido.
Ao enunciar, M.L. elege seus parceiros, os quais comungam
do mesmo repertório de formas e referências, como retrata o uso da
expressão “a igreja de Frère Jacques”, o qual, sem dúvidas, evoca
SUMÁRIO
210
vivências anteriores estabelecidas no cotidiano da escola, marcado
por canções infantis. Há, portanto, a atualização de formas e sentidos,
na singularidade do ato enunciativo. De que forma tal singularidade
afeta a emissão de formas vocais da língua-discurso? Em função do
outro, os elementos vocais da língua passam a ser vistos no escopo da
experiência intersubjetiva: “impondo a adesão, suscitando a resposta,
implorando, constrangendo; em resumo, organizando toda a vida dos
homens” (BENVENISTE, 1967/1989, p. 229).
Na narrativa do evento, a criança vive a experiência de locutor
e sua passagem a sujeito da linguagem: a sintagmatização que dá
vida à narrativa é dependente da atitude do locutor. É esta atitude que
imprime à narrativa traços vocais tão específicos que revelam modos
de narrar constituídos por formas cujo sentido é particular, constatação
que nos leva à segunda consideração.
Consideração 2: A criança usa, na narrativa,
arranjos vocais específicos para evocar sua
experiência particular com o acontecimento.
Em estudos anteriores (DIEDRICH, 2015, 2017), buscamos
situar o aspecto vocal como um aspecto da enunciação, uma vez
que, em O aparelho formal da enunciação, Benveniste (1970/1989:
p. 82) aborda a “realização vocal da língua” como um dos aspectos
a partir dos quais pode ser estudada a enunciação. Entendemos
que a realização vocal da língua no discurso promove o que se
convencionou chamar, no universo dos estudos enunciativos, de
aspecto vocal da enunciação. Levando em conta que neste mesmo
texto o autor apresenta um conceito para enunciação: “A enunciação
é este colocar em funcionamento a língua por um ato individual de
utilização“ (BENVENISTE, 1970/1989, p. 82), elegemos a emissão de
sons em atos individuais como questão central em nossa discussão,
SUMÁRIO
211
conforme o próprio autor define: “Os sons emitidos e percebidos,
quer sejam estudados no quadro de um idioma particular ou nas suas
manifestações gerais procedem sempre de atos individuais, que o
linguista surpreende sempre que possível, numa produção nativa, no
interior da fala” (BENVENISTE, 1970/1989, p. 82).
Os elementos que constituem o aspecto vocal da enunciação
situam-se tanto no domínio semiótico como no semântico, uma vez
que se tratam dos mesmos elementos que se encontram em um e
em outro domínio, “dotados, no entanto, de estatutos diferentes”
(BENVENISTE, 1967/1989, p. 229): o que é do domínio do semiótico
precisa ser apenas identificado “no interior e no uso da língua”
(BENVENISTE, 1970/1989, p. 227). Para tanto, basta ser distinto
dos demais signos. Os sons da língua são, portanto, reconhecidos
no universo da língua e se unem para formar o signo, cujo valor é
genérico. No domínio semântico, os signos são convertidos em
palavras pelo locutor que se apropria da língua.
Entendemos, com Benveniste (1970/1989, p. 83), que “os
mesmos sons não são jamais reproduzidos exatamente” e que “as
diferenças dizem respeito à diversidade das situações nas quais
a enunciação é produzida”. É dessa singularidade, portanto, que
falamos: a realização vocal da língua se converte em aspecto vocal
da enunciação na medida em que seu sentido é particularizado,
circunstanciado de forma a implicar referência à situação de discurso
e à atitude do locutor:
Dizer bom dia todos os dias da vida a alguém é cada vez uma
reinvenção. Com muito mais razão, quando se trata de frases,
não são os elementos constitutivos que contam, é a organização
do conjunto completo, o arranjo original, então, cujo modelo
não pode ter sido dado diretamente, que o indivíduo fabrica.
(BENVENISTE, 1968/1989, p. 18 e 19, grifos nossos).
SUMÁRIO
212
Ao apresentar essa ideia, o linguista a relaciona ao tema da
aquisição da linguagem, afirmando que a criança usa estruturas
dadas, mas renovando-as. Essa renovação se deve ao trabalho de
mobilizar novas referências no discurso, o que envolve a atitude do
locutor. Lembramos, ao referir a ideia de “renovação”, que o uso do
prefixo “re”, em Benveniste, conforme atestado por Dessons (2006),
marca um duplo valor, a saber: por um lado, refere a iteração, ou
seja, o que acontece novamente; de outro lado, refere a ideia de
invenção, de novidade.
A partir dessa constatação, voltamo-nos para os arranjos
vocais, noção que derivamos da compreensão do aspecto vocal
da enunciação, o qual, em nossas investigações, diz respeito ao
“arranjo integralizador do discurso implicado na emissão e na
percepção dos elementos vocais da língua em atos individuais”
(DIEDRICH, 2015, p. 138).
M.L. assume os elementos vocais da língua e mobiliza sentidos
particulares no intuito de recuperar o evento vivido, mas, mais do que
o evento em si, ela recupera também sua experiência com o evento.
O incêndio da catedral teve proporções gigantescas, alarmando o
mundo. É possível imaginar o que isso representou para uma criança
pequena, levando-a, em sua narrativa, a evocar o acontecimento e
sua experiência com o acontecimento. Relacionamos o conceito de
evocação à ideia de experiência: “Aquele que fala faz renascer pelo
seu discurso o acontecimento e a sua experiência do acontecimento.
Aquele que o ouve apreende primeiro o discurso e através desse
discurso, o acontecimento reproduzido” (BENVENISTE, 1963/2005, p.
26). A ideia de evocação, assim, é derivada da noção de que, pela
linguagem, o falante tem a capacidade de simbolizar sua vivência e,
ao fazer uso dessa capacidade, não consegue recuperar a vivência do
acontecimento em si, mas evoca tal acontecimento e tal vivência, numa
tentativa de representação do fato.
SUMÁRIO
213
Associamos esta realidade à noção de referência. Segundo
Oliveira e Chitollina (2019), para Benveniste, o discurso resultante da
enunciação tem um duplo funcionamento: (inter)subjetivo e referencial.
Em nossa análise, vemos esse duplo funcionamento se manifestar na
tentativa de M.L. recuperar na narrativa apresentada ao outro o fato
de que grande número de bombeiros acorreu à catedral, o que se
produz em seu discurso por meio do uso de um pronome indefinido
com caráter generalizador, “TODOs os bombeiro”. Destacamos, no
entanto, a atitude do locutor em relação a esta forma: M.L. reveste a
forma pronominal de tons ascendentes, os quais cumprem o papel de
intensificar a informação a ser mobilizada no ato. Atitude semelhante
ocorre em: “vai demorá MUItos anos”, enunciado em que novamente
um pronome indefinido por si só parece não bastar para compor o
sentido pretendido, levando M.L. a usar tons ascendentes na busca
de intensificar o sentido de tal forma na sintagmatização do discurso.
É importante lembrar que as referências mobilizadas na
narrativa envolvem a noção de tempo. Para tanto, pautamo-nos na
noção de temporalidade que Valério (2017) deriva da leitura de
Benveniste. Segundo a autora, da enunciação emergem dois níveis
de temporalidade concomitantemente: um primeiro nível ligado ao
acontecimento – aqui e agora – e outro promovido por ele, numa
tentativa de retorno ao evento, tal qual ocorre na narrativa. Esse
segundo nível, dependente do primeiro, torna possível a inscrição
de um sujeito na linguagem. No caso que estamos analisando aqui,
é por meio de narrativas de acontecimentos que esse sujeito se
inscreve no presente: “Quando alguém enuncia – aqui e agora – a
noção de tempo está assinalada; isso porque o sujeito fala no tempo,
mas também do tempo (do passado, do presente ou do futuro) e
fala para um outro com quem irá alternar o papel de protagonista na
enunciação” (VALÉRIO, 2017, p. 221).
SUMÁRIO
214
Tal qual percebe Valério (2017) nas narrativas dos adultos com
mais de sessenta anos, também na narrativa de M.L., uma criança de
três anos, há uma temporalidade que evoca a experiência passada e
que se marca na enunciação por meio de formas diversas. Entre essas
formas, encontram-se os arranjos vocais, revelados nos alongamentos
vocálicos e nos tons ascendentes que marcam a enunciação de M.L.
e que resgatam, no aqui-agora estabelecido com o outro, professora e
colegas, a vivência particular de M.L., a qual não pode ser experimentada
de fato por esse outro, mas apenas evocada no discurso.
Essa relação entre a vivência do evento passado e a tentativa
de resgatá-la no aqui-agora da enunciação nos leva à terceira
consideração, a qual é da ordem da linguagem como elemento
definidor do homem e do seu caráter social.
Consideração 3: Os arranjos vocais mobilizados
na narrativa de eventos permitem à criança
se historicizar na vida em sociedade.
É na experiência do simbólico da língua que se dá a relação
entre o homem e o mundo, entre os homens, estabelecendo-se, por
meio da linguagem, a vida em sociedade. Na mobilização dos arranjos
vocais, o falante busca atingir o outro e suscitar uma enunciação de
retorno, pois falamos com outros que falam. M.L. elege os parceiros
da enunciação, os quais estão para além das relações familiares com
a mãe, por exemplo. O incêndio da catedral de Notre Dame, a igreja
de Frère Jacques, é tão significativo para M.L. que não cabe nas
narrativas familiares apenas: precisa atingir outros. Mas não quaisquer
outros, esses outros são representantes da vida de M.L. em sociedade,
constituindo as relações sociais estabelecidas pela criança no universo
da escola, as quais acabam também por definir sua historicidade, seu
SUMÁRIO
215
lugar no mundo, assumido a cada ato de enunciação, na vivência da
experiência humana inscrita na linguagem.
Flores e Surreaux (2012, p. 94), ao abordarem a temática da voz
na enunciação, afirmam que a criança vive a “necessidade de falar à
sua maneira” a língua que se constitui como sua língua materna. Em
Últimas Aulas no Collège de France (BENVENISTE, 2014, p. 130, grifos
do autor), Benveniste, referindo-se à relação existente entre fala e escrita,
afirma: “O locutor deve tomar consciência de que, quando fala, coloca
em ação uma ‘língua’ que o outro também possui e maneja; que cada
um fala, mas que cada um, ao falar e ao falar diferentemente com uma
voz diferente, entonações diferentes, circunstâncias diferentes, usa a
mesma ‘língua’”. Vemos que nessa relação entre o social da língua, o
que é convencional a todos, e a particularidade do discurso, marcada
pelo ato do locutor que se apropria da língua, há um deslocamento
do geral para o específico, o qual marca a historicidade da criança
na linguagem. Ou, nas palavras do autor que homenageamos neste
livro: “É esta presença no mundo que somente o ato de enunciação
torna possível, porque, é necessário refletir bem sobre isso, o homem
não dispõe de nenhum outro meio de viver o ‘agora’ e de tornálo atual senão realizando-o pela inserção do discurso no mundo”.
(BENVENISTE, 1970/1989, p. 85).
M.L. se insere, pelo discurso, no mundo. Sua narrativa do
incêndio da catedral de Notre Dame à professora e aos colegas é
singular, difere das narrativas do Le Monde Diplomatique, do El País e,
até mesmo, da narrativa da mãe, por exemplo, como podemos perceber
no dado apresentado: a mãe quer construir outra narrativa, mais rica
em determinados detalhes e, por isso, exerce papel de condutora de
uma linearidade narrativa esperada no mundo dos adultos, mas, muito
provavelmente, não tão importante no mundo da criança.
Por isso, vemos a narrativa de eventos como um modo de
enunciar capaz de garantir à criança elementos importantes para seu
SUMÁRIO
216
deslocamento na língua e no mundo que lhe é apresentado com essa
língua. Não encontramos melhor forma para explicitar essa importância
e esse lugar que a criança ocupa no mundo ao narrar os eventos
vividos ou fictícios a não ser em outra narrativa, a literária, nas palavras
da Boneca Emília, de Lobato (2007, p. 47):
− Não estou entendendo nada de nada, Emília. Explique-se.
− São as minhas memórias, D. Benta.
− Que memórias, Emília?
− As memórias que o Visconde começou e eu estou concluindo.
Neste momento estou contando o que se passou comigo em
Hollywood, com a Shirley...
− Emília! Exclamou D. Benta. − Você quer nos tapear. Em
memórias a gente só conta a verdade, o que houve, o que se
passou. Você nunca esteve em Hollywood, nem conhece a
Shirley. Como então se põe a inventar tudo isso?
− São memórias. Explicou Emília.
− São diferentes de todas as outras. Eu conto o que houve e o
que devia haver.
CONCLUSÃO
Encaminhamos a conclusão deste capítulo com um ponto de
abertura, na concepção de Teixeira (2012, p. 440), grande conhecedora
da obra de Benveniste e que situa o autor como um estudioso que
“promove pontos de abertura de seus estudos enunciativos ao diálogo
com domínios conexos”. Propomos este diálogo com o conceito de
experiência de Larrossa (2012, p. 5): “A experiência é isto que me
passa”. O autor discute, há alguns anos, o conceito de experiência
no universo da educação, da leitura, entre outros. Propomos, agora,
uma relação deste conceito com a enunciação da narrativa de M.L.:
SUMÁRIO
217
o incêndio da catedral de Notre Dame não é apenas um evento que
passou na vida da criança, mas um evento que a marcou, como aponta
o pronome me na definição de experiência proposta pelo filósofo.
Segundo Larossa (2012, p. 5, grifos do autor):
A experiência supõe, em primeiro lugar, um acontecimento
ou, dito de outro modo, o passar de algo que não sou eu. E
“algo que não sou eu” significa também algo que não depende
de mim, que não é uma projeção de mim mesmo, que não é
resultado de minhas palavras, nem de minhas ideias, nem de
minhas representações, nem de meus sentimentos, nem de
meus projetos, nem de minhas intenções, que não depende
nem do meu saber, nem de meu poder, nem de minha vontade.
“Que não sou eu” significa que é “outra coisa que eu”.
Esta relação da experiência com uma exterioridade para além
do eu permite a associação tanto com o evento narrado pela criança
como com a língua que ela mobiliza em sua narrativa: na aquisição da
linguagem, a criança vive uma experiência com elementos exteriores.
Para tanto, lembramos o dispositivo enunciativo de Silva (2009)
apresentado na introdução deste capítulo: a aquisição da linguagem
se dá na relação do eu com um tu, mas também com outros elementos,
como a língua e a cultura.
Mas as associações vão além. Retornamos a Larossa (2012, p.
6) para completar o raciocínio acerca da experiência como realidade
que “me passa”:
A experiência supõe, como já vimos, que algo que não sou eu,
um acontecimento, passa. Mas supõe também, em segundo
lugar, que algo me passa. Não que passe ante mim, ou frente
a mim, mas a mim, quer dizer, em mim. A experiência supõe,
como já afirmei, um acontecimento exterior a mim. Mas o lugar
da experiência sou eu. É em mim (ou em minhas palavras, ou
em minhas ideias, ou em minhas representações, ou em meus
sentimentos, ou em meus projetos, ou em minhas intenções, ou
em meu saber, ou em meu poder, ou em minha vontade) onde
se dá a experiência, onde a experiência tem lugar.
SUMÁRIO
218
O evento narrado pela criança revela essa experiência, a qual
se dá a conhecer em suas palavras, em sua narrativa marcada por
um modo particular de estar na língua e estar no mundo, seja na
escolha dos seus parceiros enunciativos, seja na escolha dos arranjos
vocais que marcam seu dizer, seja na alteração da voz embargada
pela emoção, enfim, há uma experiência particular vivida por esse
sujeito, e ela se dá a conhecer na linguagem. É com esse olhar, o
qual permite pontos de abertura a partir dos estudos benvenistianos,
que entendemos ser possível conhecer mais acerca da linguagem, da
criança e de sua experiência de aquisição. Afinal, acreditamos que “a
experiência, isto que me passa” tem lugar na sucessão de ruidozinhos
vocais emitidos e percebidos, os quais fazem a alma exaltar.
REFERÊNCIAS
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(Homo Sacer III). São Paulo: Boitempo, 2008.
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Editores, 1989.
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BENVENISTE, Émile. Problemas de Linguística Geral II. Campinas, SP: Pontes
Editores, 1989.
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BENVENISTE, Émile. Problemas de Linguística Geral II. Campinas, SP:
Pontes Editores, 1989.
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linguística. In: BENVENISTE, Émile. Problemas de Linguística Geral I. 5. ed.
Campinas: Pontes, 2005.
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Paulo: Unesp, 2014.
SUMÁRIO
219
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Universidade Federal do Rio Grande Do Sul, Porto Alegre.
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da enunciação. DELTA. Documentação de Estudos em Linguística Teórica e
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In: NEUMANN, Daiane; DIEDRICH, Marlete Sandra (Orgs.). Estudos da
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OLIVEIRA, Giovane Fernandes; CHITTOLINA, Raphaela Machado Monteiro.
Do redigir ao revisar: uma reflexão enunciativa sobre a revisão textual e
seus efeitos na escrita. In: LAU, Héliton Diego Lau; Michalkiewicz, Zuleica
Aparecida (org.). Pesquisar em tempos de resistência: a balbúrdia de quem
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Sociedade, 18(2), p. 214-233, 2017.
SUMÁRIO
220
Capítulo 9
9
A RELAÇÃO TEORIA-EMPIRIA
E O PROBLEMA DO DADO NA
PESQUISA EM AQUISIÇÃO DA
ESCRITA: UM OLHAR ENUNCIATIVO
Giovane Fernandes Oliveira
Giovane Fernandes Oliveira
A RELAÇÃO TEORIA-EMPIRIA
E O PROBLEMA
DO DADO NA PESQUISA
EM AQUISIÇÃO DA ESCRITA:
UM OLHAR ENUNCIATIVO
DOI: 10.31560/pimentacultural/2020.281.221-272
1.ª Qual é a tarefa do lingüista, a que ponto quer ele chegar,
e o que descreverá sob o nome de língua? É o próprio objeto
da lingüística que é posto em pauta. 2.ª Como se descreverá
esse objeto? [...] Isso mostra a importância que assume a
técnica linguística.
Émile Benveniste (2005 [1954], p. 8)
APONTAMENTOS INICIAIS
Nos dois interrogantes que constam em epígrafe, presentes no
artigo Tendências recentes em linguística geral – texto de 1954 sobre
os rumos da linguística pós-saussuriana na primeira metade do século
XX –, Émile Benveniste coloca em cena as noções de objeto e método.
Tais noções são centrais na área da linguística, notadamente em um
campo que, embora não abordado pelo autor em seu trabalho, é aqui
focalizado: o da aquisição da linguagem, fiel que é ao seu compromisso
com o teórico e o empírico.
Esse duplo compromisso é também assumido em seus estudos
por Benveniste, o qual, segundo Fenoglio (2019), não é nem um
filósofo nem um linguista puramente especulativo. Isso porque “ele
pesquisa, ensaia e inventa, mas numa combinação sempre medida de
empiria e reflexões teóricas” (FENOGLIO, 2019, p. 26, tradução minha).
A autora ressalta ainda que, em Benveniste, não há, de uma parte,
os fatos e, de outra, o método, pois “a descrição dos fatos é já uma
construção metódica”, de modo que “o linguista constrói seu objeto”,
devendo “‘definir’, ‘explicitar’, ‘justificar’ [esse objeto] em virtude
de um ‘procedimento de análise’” (FENOGLIO, 2019, p. 29, aspas
da autora, tradução minha). Um dos recursos por meio dos quais
Fenoglio (2019) ilustra seu argumento é um documento inédito por ela
trazido à público, uma carta datada de 1930 e endereçada ao diretor
do Círculo Linguístico de Praga, em que Benveniste declara que não
SUMÁRIO
222
basta descrever formalmente os fatos linguísticos, sendo necessário
analisá-los, compará-los e interpretá-los. Teoria e empiria são, pois,
indivorciáveis na prática científica do linguista.
Movida, de um lado, pelos interrogantes benvenistianos sobre
objeto e método e, de outro, pelo compromisso do campo aquisicional
com o teórico e com o empírico, Silva (2012) formula três questões para
o linguista que se situa nesse campo, das quais as duas primeiras me
interessam sobremaneira aqui: “1ª) Qual a tarefa do pesquisador de
Aquisição de Linguagem e o que descreverá sob o nome ‘aquisição da
linguagem’?; 2ª) Como descreverá o seu objeto de estudo, o processo
de aquisição da linguagem?” (SILVA, 2012, p. 349, aspas da autora).
À primeira questão, a autora assim responde: “Parece-me
que a tarefa desse pesquisador é a explicação de como ocorre essa
travessia da ‘falta’ para a presença, mostrando, nas aparentes ‘falhas’,
a relação da criança com sua língua” (SILVA, 2012, p. 350, aspas da
autora). A esse respeito, Silva (2012) pontua a distinção entre um
estudo de aquisição da linguagem – comprometido com a explicação
da mudança no processo aquisicional – e um estudo de linguagem
da criança – interessado pelos usos que ela faz da língua. Para a
pesquisadora, a primeira questão pode ser respondida apenas por
um estudo de aquisição, pois este não busca somente caracterizar os
usos linguísticos da criança, mas também – e sobretudo – explicá-los
em termos de mudanças que sofrem no decorrer da aquisição59.
59 Essa distinção entre os dois grupos de estudos é tomada por Silva (2012, 2009)
de empréstimo a David Ingram. Como explica Silva (2009, p. 96-97), na obra First
language acquisition (1989), a partir da distinção proposta por Wasow entre estudos
de “linguagem da criança” (child langage) e estudos de “aquisição da linguagem”
(langage acquisition), Ingram defende que os primeiros tendem para a psicolinguística
e têm orientação descritiva, centrando-se no dado e, consequentemente, em fatores de
desempenho na aquisição (memória, limitações de processamento etc.); já os segundos
o autor relaciona à linguística e afirma terem orientação explicativa, buscando examinar
a relação entre o desempenho linguístico da criança e a sua competência, a fim de
sustentarem questões e testarem hipóteses da teoria linguística de Noam Chomsky.
A despeito de sua inscrição epistemológica no quadro chomskiano, a qual distancia
os interesses de Ingram dos de Silva (2012, 2009) e dos meus, filiados teoricamente
ao pensamento benvenistiano e, por conseguinte, inscritos epistemologicamente no
quadro saussuriano, a distinção proposta pelo autor pode ajudar-me a situar minha
proposta, de maneira que a retomarei mais adiante.
SUMÁRIO
223
Sobre a segunda questão, Silva (2012) observa que esta põe
em relevo os dois já mencionados compromissos assumidos pelo
pesquisador de aquisição da linguagem: o compromisso com o teórico
(o ponto de vista interno da pesquisa) e o compromisso com o empírico
(a fala/escrita da criança). Conforme a autora, é a perspectiva teórica
abraçada pelo pesquisador para explicar a aquisição da linguagem
que direciona todas as suas escolhas atreladas a “diferentes modos
de coleta (experimental e naturalístico), diferentes tipos de coleta
(transversal e longitudinal) e diferentes procedimentos de análise
(quantitativo e qualitativo)” (SILVA, 2012, p. 354, itálicos da autora).
Essas decisões não estão, todavia, na dependência unicamente da
filiação teórica do estudioso, mas igualmente da preocupação com o
dado empírico, a qual é uma especificidade do campo aquisicional.
Inserido nesse contexto teórico e temático, o texto ora
apresentado tem por objetivo problematizar a metodologia de coleta e
tratamento de dados mais adequada a uma investigação em aquisição
da escrita orientada pela teorização enunciativa de Émile Benveniste.
Trata-se, pois, de um trabalho que ensaia uma primeira aproximação
entre dois campos – os estudos de aquisição da escrita e os estudos
benvenistianos –, na tentativa de produzir um novo saber: uma
abordagem da aquisição da escrita a partir da teoria da linguagem de
Émile Benveniste60.
Para tanto, organizo este texto em duas partes: na primeira, de
caráter mais abrangente, procedo a uma reflexão sobre a natureza e
a constituição do dado em aquisição da linguagem; na segunda, de
60 Em minha tese em desenvolvimento, refiro-me à perspectiva teórica de Émile Benveniste
como teoria da linguagem, pois lá não me restrinjo à sua famosa teorização enunciativa
(constante nos capítulos que integram as partes O homem na língua e A comunicação, dos
Problemas de linguística geral I e II), incluindo também sua menos conhecida teorização
semiológica (presente no artigo Semiologia da língua e na obra póstuma intitulada
Últimas aulas no Collège de France – 1968 e 1969). Como, porém, o escopo deste texto
circunscreve-se a uma reflexão metodológica que parte de pressupostos enunciativos,
referir-me-ei, aqui, à perspectiva benvenistiana como teorização enunciativa.
SUMÁRIO
224
caráter mais restrito, detalho algumas informações relativas ao trabalho
de campo que tenho empreendido na montagem do corpus empírico
de minha tese61.
DA NATUREZA À CONSTITUIÇÃO DOS DADOS
NA PESQUISA EM AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM
O que é um dado na área da linguística, em geral, e no campo da
aquisição da linguagem, em particular? Por certo, uma resposta a essa
indagação – se viável ela for em tais termos – não pode contornar um
caractere definidor do fazer linguístico desde que Saussure esforçouse para mostrar ao linguista o que ele faz, determinando teoricamente a
natureza do objeto de estudo da linguística. Essa determinação teórica
era pelo linguista suíço compreendida como uma operação elementar,
sem a qual “uma ciência é incapaz de estabelecer um método para si
própria” (SAUSSURE, 2012 [1916], p. 34). Deve-se também a Saussure
o esclarecimento sobre a não anterioridade do objeto em relação ao
ponto de vista a partir do qual ele é estudado: “Bem longe de dizer
que o objeto precede o ponto de vista, diríamos que é o ponto de
vista que cria o objeto” (SAUSSURE, 2012 [1916], p. 38). Em outras
palavras: tanto um quanto outro, tanto o objeto quanto o método em
linguística estão na dependência do ponto de vista teórico ao qual se
filia o linguista e/ou daquele por ele construído na pesquisa.
No campo da aquisição da linguagem, não é menor a sujeição
do objeto e do método – e, ipso facto, do dado – ao ponto de vista.
61 A discussão a ser empreendida deter-se-á, portanto, na primeira grande etapa de uma
pesquisa empírica em linguística, aquela que se convencionou chamar de coleta de dados.
Assim, devido ao exíguo espaço deste capítulo, não abordarei por ora a segunda grande
etapa, relativa à análise dos dados coletados, o que demandaria um aprofundamento
em questões impossíveis de serem aqui tratadas com o vagar que merecem, como os
procedimentos de transcrição, descrição e explicação do material na coleta constituído.
SUMÁRIO
225
A esse propósito, Pereira de Castro (1996, p. 8, itálicos da autora)
adverte que “o dado não é o fenômeno, mas um recorte deste. Entre
a constituição do primeiro e o segundo, há um gesto teórico”. De
maneira similar, Perroni (1996, p. 25) observa que, assim como é
gerada pela teoria, “a metodologia gera o dado”. Uma tal geração
não é sem consequências para os resultados da investigação, como
advoga Arantes (2019, p. 42, aspas da autora), para quem “não há
continuidade entre ‘fala viva’ e ‘registro de fala’”, mas uma “diferença
marcante entre essas duas instâncias [que] determina seja a natureza
dos aparatos descritivos que serão projetados sobre os corpora, seja
o tratamento analítico a ser realizado”.
Entretanto, se entre o dado e o seu registro não há senão
descontinuidade, penso ser possível sustentar uma certa continuidade
no interior mesmo dos processos de registro. Tal continuidade deverse-ia à indissociabilidade entre os gestos teórico e metodológico, como
tentarei demonstrar na seção seguinte. Antes, contudo, de apresentar
mais detalhadamente as relações entre teoria e metodologia e seus
efeitos no tratamento do dado empírico em minha pesquisa de
doutoramento em curso (cf. terceira seção), retomarei os principais
modos e tipos de coleta em aquisição da linguagem.
Silva (2009) reconstitui a gênese metodológica do campo
aquisicional, delineando, a partir de Ingram (1989)62, as três espécies
de estudos ligados ao tratamento do dado em aquisição da linguagem.
A primeira espécie diz respeito ao estudo dos diários,
predominante no fim do século XIX e no início do século XX, antes,
portanto, da instituição da linguística como ciência. Tratava-se de um
fazer metodológico caracterizado pela observação rotineira da fala
infantil e por notas acerca dessa observação registradas em diários
pelos investigadores e, também, pais das crianças investigadas.
62 Conforme a obra já citada em nota anterior: INGRAM, David. First language acquisition.
Cambriddge: Cambridge University Press, 1989.
SUMÁRIO
226
Segundo Silva (2009), embora esses estudos tenham fornecido ao
campo uma base descritiva, contribuído para a percepção da criança
como um sujeito criativo na descoberta de sua língua materna e
projetado para as pesquisas futuras o tipo de coleta longitudinal, eles
não apresentavam uma preocupação teórica em termos de explicação
da passagem do infante de não falante a falante.
Já a segunda espécie refere-se ao estudo das grandes
amostras, predominante entre 1926 e 1957 e coincidente com o
prestígio do behaviorismo no cenário científico. Silva (2009) sublinha
as diferenças entre os pesquisadores dessa fase e os chamados
diaristas, estudiosos da fase anterior:
SUMÁRIO
a.
a concepção de criança como um sujeito passivo, cujo
comportamento verbal modifica-se na exposição às condições
de seu ambiente, ao qual é submetido e pelo qual é controlado,
ao contrário do comportamento espontâneo ativo da criança
enfatizado pelos diaristas;
b.
o foco no comportamento observável e na influência
nele exercida pelo meio, em detrimento das tentativas de
explicação dos diaristas sobre as estruturas internas e as
habilidades da criança;
c.
o recurso ao tipo de coleta transversal, com o estudo de diversas
crianças, de diferentes idades, separadas de acordo com a
classe socioeconômica, o sexo e a faixa etária, diferentemente
do tipo de coleta longitudinal privilegiado pelos diaristas e
centrados no acompanhamento de uma mesma criança ao
longo de um dado período de tempo;
d.
o apelo ao procedimento de análise quantitativo, com quadros
e estatísticas em termos de proporções e porcentagens, na
contramão do procedimento qualitativo dos diaristas.
227
Tratava-se de um fazer metodológico que, a despeito da
representatividade de suas amostras e do fato de ter projetado para o
campo o método de coleta transversal (adotado atualmente em estudos
que investigam detalhadamente elementos mais isolados, buscando
a generalidade e a padronização dos resultados via comparação de
dados de várias crianças), encontrou sérias dificuldades oriundas de
seu caráter limitado – limitação tributária da restrição de sua análise à
expansão lexical, à extensão gramatical e à correção articulatória, como
se a tais questões restrita fosse a linguagem – e de seu tratamento
superficial do corpus – superficialidade decorrente de sua metodologia
de coleta, com a recolha de dados a partir de breves anotações, sem
equipamento de gravação (INGRAM, 1989 apud SILVA, 2009, p. 86).
Por fim, a terceira espécie consiste no estudo longitudinal,
predominante a partir de 195763. De acordo com Silva (2009), em
um estudo dessa natureza, a criança é acompanhada em visitas
periódicas, durante um determinado intervalado temporal, a fim
de se obter uma amostra representativa de dados. Como elucida
a autora, os estudos longitudinais distinguem-se dos estudos dos
diários por – além de filmarem e, posteriormente, transcreverem os
dados coletados – produzirem uma amostra mais representativa de
dados do que os diaristas, na medida em que estes acompanhavam
somente uma criança, enquanto os pesquisadores dessa terceira
fase acompanham geralmente três crianças. Isso é realizado “com o
propósito de o investigador poder determinar padrões de aquisição,
já que, com esse número, torna-se possível tomar decisões acerca
63 Não é gratuito o fato de o fim da década de 1950 ser o período do crepúsculo dos
estudos das grandes amostras e do alvorecer dos estudos longitudinais. A esse propósito,
recordemo-nos que os primeiros estudos, ligados que eram ao behaviorismo, não poderiam
seguir predominantes por muito tempo após a – para usar uma expressão de Scarpa
(2001, p. 206-207) – devastadora resenha que Chomsky publica em 1959 sobre o livro
Comportamento verbal, de Skinner. Nessa resenha, o linguista posiciona-se contra a visão
comportamentalista da aprendizagem da linguagem proposta pelo psicólogo, acirrando a
dicotomia behaviorismo vs. inatismo, avatar linguístico-psicológico da dicotomia filosófica
empirismo vs. racionalismo.
SUMÁRIO
228
das escolhas feitas por cada criança, verificando se são típicas ou
raras” (SILVA, 2009, p. 87).
Silva (2009) destaca ainda duas outras características dos
estudos longitudinais:
a.
a projeção para o campo da criação de grandes projetos
de pesquisa, com a reunião de muitos pesquisadores e a
constituição de extensos bancos de dados longitudinais,
modelo que influenciou a formação de grupos de
investigadores e a composição de corpora infantis no Brasil
durante a década de 1990;
b.
o fornecimento de amostras de dados cuja riqueza impulsionou
a ampliação dos interesses dos estudiosos da aquisição da
linguagem, ampliação oriunda da mudança paradigmática
promovida na linguística pelo gerativismo chomskiano, com
o deslocamento da ênfase na descrição de características
particulares e superficiais da fala de uma criança para a
busca de explicação da aquisição das regras sintáticas pelas
crianças em geral.
Duas outras linguistas que problematizam aspectos
metodológicos da pesquisa em aquisição da linguagem são Scarpa
(2001) e Perroni (1996).
Scarpa (2001, p. 204) define o tipo de coleta longitudinal como
o “estudo que acompanha o desenvolvimento da linguagem de
uma criança ao longo do tempo”, associando-o ao modo de coleta
naturalístico, que tem lugar “em situação naturalística (isto é, em
ambiente natural, em atividades cotidianas)”. A autora igualmente
sinaliza a transformação da forma de registro dos dados com o
avanço tecnológico: das anotações em diários às gravações em
áudio ou vídeo: “Assim, grava-se a fala de uma criança por um período
SUMÁRIO
229
de tempo preestabelecido (por exemplo, meia hora, 40 minutos, 1
hora etc.), em intervalos regulares (sessões semanais, quinzenais,
mensais etc.), dependendo do tema a ser pesquisado” (SCARPA,
2001, p. 204). No cerne dessa metodologia de coleta longitudinal
e naturalística, reside o pressuposto de que, “registrando-se uma
quantidade razoável da fala da criança de cada vez, pode-se ter
uma amostra bastante representativa para se estudar como o
conhecimento da língua pela criança é adquirido e/ou como muda
no tempo” (SCARPA, 2001, p. 204).
Outra metodologia de coleta descrita por Scarpa (2001, p. 204)
é a transversal, baseada “no registro de um número relativamente
grande de sujeitos, muitas vezes classificados por faixas etárias”.
Segundo a autora, “Embora não exclusivamente, a pesquisa de tipo
transversal geralmente também é do tipo experimental (por oposição
a naturalístico), em que os fatores e as variáveis intervenientes no fato
analisado são isolados e controlados e depois testados” (SCARPA,
2001, p. 204-205, itálicos da autora). Conforme Scarpa (2001),
enquanto a análise dos dados naturalísticos focaliza a produção, a
análise dos dados experimentais enfoca a percepção, a compreensão
e o processamento da linguagem pela criança.
Seja qual for a metodologia escolhida, a pesquisadora alerta
para a visão ingênua de que os dados falam por si só, ratificando
o imbricamento – marca distintiva do campo aquisicional – entre o
teórico e o empírico: “A metodologia adotada e a própria seleção
dos dados dependem da postura teórica que norteia a pesquisa”
(SCARPA, 2001, p. 205).
Também Perroni (1996) contrasta as metodologias aquisicionais,
partindo, para tanto, de um questionamento sobre a natureza e a
constituição do dado na ciência. De acordo com a autora, na ótica
empirista, os dados da experiência são considerados como evidências
empíricas anteriores às teorias, cujos princípios seriam, então,
SUMÁRIO
230
desenvolvidos para explicá-los por generalização. Disso, resultam duas
consequências: de um lado, os dados são vistos como fatos brutos,
existentes apriorística e independentemente do ponto de vista teórico
adotado pelo pesquisador para estudá-los; de outro lado, a predição e
a validação, isto é, a formulação e a testagem para a comprovação ou
a refutação de hipóteses são tomadas como técnicas indispensáveis
no fazer científico.
No entanto, Perroni (1996) recorda que uma das conquistas
da filosofia da ciência – conquista que, inclusive, ecoa no campo
aquisicional – remete à problematização do papel desempenhado
pelas terminologias e pelas abstrações científicas na interpretação dos
ditos “fenômenos”:
Assim, levando em conta o ponto de vista de que não há pesquisa
ateórica, portanto, nem metodologia ateórica, lembre-se aqui
da noção de recorte, segundo a qual os dados não podem ser
vistos como “evidências empíricas”. Essa perspectiva contraria
a concepção tradicional ocidental do conhecimento como
objetivo, individualista e aistórico, independente da condição
humana. Contraria também a suposição da possibilidade de
acesso direto a um mundo dito bruto, conhecido diretamente,
com conseqüente obscurecimento do fato de que os critérios
chamados “objetivos” de identificação de “comportamentos”,
“eventos”, “entidades” têm sido altamente circunscritos pela
cultura, história ou contexto social.
Nos estudos recentes de aquisição da linguagem começa
a crescer o reconhecimento de que qualquer metodologia é
determinada pela teoria eleita pelo investigador, assim como é a
natureza da unidade de análise (PERRONI, 1996, p. 17, aspas
da autora, negritos meus).
Além de reiterar o que as outras linguistas até aqui
convocadas já pontuaram sobre submissão do dado – tanto em sua
apreensibilidade quanto em sua interpretabilidade – a uma opção
teórica prévia, essa tão extensa quanto contundente citação de Perroni
(1996) põe em relevo um termo capital em um estudo enunciativo
SUMÁRIO
231
que, como este, aceita e enfrenta o desafio da coleta e da análise
de dados. Trata-se do termo recorte e de sua íntima relação com o
entendimento da unidade de análise numa pesquisa embasada na
teorização enunciativa benvenistiana. A isso, mais adiante voltarei –
ainda que brevemente, visto que transborda os limites impostos ao
presente texto uma discussão a respeito da unidade analítica. Por
ora, retornemos à comparação entre as metodologias de coleta em
aquisição da linguagem.
Quanto ao método experimental, Perroni (1996) assinala suas
vantagens e suas dificuldades. Dentre as vantagens apregoadas por
seus partidários, constam as seguintes:
a.
a replicabilidade (decorrente da possibilidade de outros
pesquisadores reaplicarem os testes com vistas à obtenção de
informações similares);
b.
a generalidade (resultante da possibilidade de avaliar
grandes populações, a partir do controle das variáveis e da
homogeneização dos sujeitos);
c.
a objetividade (concretizada através das estatísticas, dos
números e das porcentagens).
A tais supostas vantagens, a autora contrapõe as seguintes
dificuldades:
SUMÁRIO
a.
o privilégio concedido à compreensão em detrimento da
produção, bem como a consequente obscuridade da alegada
intuição linguística da criança em relação ao seu próprio
funcionamento e ao funcionamento da intuição adulta;
b.
a inviabilidade de avaliar, em casos que não o do exato
cumprimento da instrução pela criança, a realização adequada
ou parcial do teste por parte dela, o que se deve a um
esquecimento de que “medidas da tendência geral são antes
232
uma criação do investigador e podem não servir para nenhuma
criança em particular” (PERRONI, 1996, p. 19-20);
c.
a nebulosa função das porcentagens como medida (permitirem
comparações entre as crianças a título de explicação do seu
desenvolvimento linguageiro ou validarem-se a si próprias?),
assim como a da distinção entre significância estatística e
confiabilidade, cujas consequências seriam o estabelecimento
de uma normalidade/normatividade abstrata e de relações
causais que anulariam as diferenças individuais e históricas;
d.
a atitude simplista de atribuir, à criança que não interpreta o
teste aplicado conforme as expectativas do investigador, a
ausência ou o déficit do conhecimento em questão, o que gera
“monstros” na literatura especializada, “cheia de expressões
como ‘narrativas empobrecidas’, ‘narrativas desorientadas’,
‘narrativas sem nenhuma estrutura’, ‘crianças menos inteligentes
que outras’ (todas em Peterson & McCabe)”, do que se poderia
concluir que “uma tal metodologia é forte candidata a gerar
dados não propriamente ‘brutos’, mas antes ‘embrutecidos’
pelo investigador” (PERRONI, 1996, p. 21, aspas da autora);
e.
a impossibilidade de se saber o que, efetivamente, subjaz
à resposta da criança, cuja compreensão pode, quando da
realização do experimento, basear-se em fatores aleatórios que
não a linguagem.
A severa crítica de Perroni (1996) ao método experimental tem
como corolário o seguinte excerto:
Todas as críticas ou problemas mencionados acima apontam
o fato de que, no método experimental, o objeto de
estudo não é propriamente o desenvolvimento. Baseada
numa visão estática da língua, é a metodologia que mais
facilmente cai na ilusão da objetividade, vista como sinônimo
de descrição do fenômeno lingüistico, depurado de toda e
SUMÁRIO
233
qualquer ‘excrescência’ que, teimosa e indesejavelmente,
insiste em caracterizar suas manifestações. Com isto, volta-se
à discussão da validade/interesse da distinção competência x
performance, já iniciada dentro da lingüística e interdisciplinas,
há alguns anos. Na verdade, questiona-se o valor do estudo
da língua dissociada do homem, o que caracteriza uma certa
lingüística antropofóbica (Perroni, inédito), como se pode
questionar a utilidade da noção de competência stricto sensu,
nos estudos do desenvolvimento lingüístico. (PERRONI, 1996,
aspas e itálicos da autora, negritos meus).
Dessa outra tão longa quanto necessária citação, destaco
dois pontos. O primeiro relaciona-se à afirmação de que o método
experimental não se ocupa, de fato, do desenvolvimento da linguagem
infantil, vale dizer, não tem em relação a esse processo uma
preocupação explicativa, caindo na ilusão da objetividade de uma
descrição linguística asséptica e higienizadora. Já o segundo ponto
liga-se à aparente antropofobia que parece definir uma tal linguística
que, na busca ilusória de uma pretensa cientificidade, arranca da
linguagem aquilo que lhe é mais próprio: o homem.
Quanto ao método naturalístico – também referido por Perroni
(1996) como naturalista/observacional –, a autora igualmente esmiúça
suas potencialidades e suas limitações. Antes, entretanto, de fazê-lo,
ela atenta para o fato de que os estudos que aderem a esse método
podem, conforme sua lente teórica, ter dois focos distintos: ou miram a
produção da criança, independentemente da produção do interlocutor,
ou tomam como alvo a relação entre a produção infantil e a produção
adulta. São as vantagens potenciais desse segundo grupo de estudos
naturalísticos as elencadas pela pesquisadora, para a qual neles:
SUMÁRIO
a.
a quantidade cede lugar à qualidade, deixando-se a criança falar
em vez de tentar-se provocar suas respostas;
b.
a restrita descrição de produtos estáticos cede lugar a uma análise
mais detalhada e completa do processo de desenvolvimento,
234
reconhecido como dinâmico, em constante fluxo e estruturado
por estágios continuamente relacionados entre si;
c.
a definição apriorística de categorias analíticas cede lugar à
possibilidade de as categorias emergirem dos próprios dados;
d.
a recuperação da história do dado, através da descrição das
condições em que foi produzido, torna possível a identificação
da constituição histórica do sentido;
e.
o objeto de estudo passa a ser a língua em atividade e a relação
que a criança com ela vai estabelecendo;
f.
o não controle de variáveis permite uma maior aproximação da
naturalidade, reconhecendo-se que “o dado é o que acontece,
não o que deveria acontecer, nem o que está faltando”
(PERRONI, 1996, p. 22).
Dentre as limitações do método naturalístico, Perroni (1996) lista
as seguintes:
SUMÁRIO
a.
a raridade de um estudo inteiramente observacional, com
a ausência total de controle pretendida, o que não isenta o
investigador de tentar interferir o mínimo possível no contexto
investigado, sob o risco de alterá-lo a ponto de o dado não
ser representativo;
b.
a seleção, no interior do conjunto de todo o material obtido nas
coletas, daqueles que constituirão os dados da análise, com a
“eliminação de material que passa a ser descartado, ou seja,
tudo aquilo que tem enchido a lata de lixo da psicolingüística há
décadas” (PERRONI, 1996, p. 23);
235
c.
o tempo e o trabalho braçal demandados por todas as etapas
do estudo, desde as periódicas sessões de coleta até as
numerosas horas de seleção e transcrição dos dados.
Além dessas limitações com as quais concorda, Perroni
(1996) menciona outras críticas ao método naturalístico, como a
assistematicidade e o descontrole, que impediriam a replicabilidade,
a generalização e a confiabilidade dos resultados, além de
impossibilitarem respostas a questões de compreensão e causação.
Tais críticas são contestadas pela linguista a partir dos seguintes
contra-argumentos:
SUMÁRIO
a.
quanto à assistematicidade, embora os estudos observacionais
lidem com a língua em atividade, o que pode conduzir a uma
variação dos dados a cada sessão, a falta de sistematicidade
pode ser reduzida com a manutenção, por parte do investigador,
de uma rotina de coleta que torne possível a apreensão das
atividades cotidianas da criança com os outros de seu convívio;
b.
quanto ao descontrole, o ideal de controle de estruturas
é mesmo incompatível com o ideal de naturalidade das
interações, não sendo possível assegurá-lo em situações
naturais de uso da língua;
c.
quanto à não resposta a questões de compreensão e causação,
Perroni (1996) flagra nessas críticas a persistência do modelo
preconizado pelo método experimental, questionando, de um
lado, a separação entre a compreensão e a produção como
se dois aspectos da habilidade linguística completamente
independentes elas fossem e, de outro, a insistência na
identificação das causas do desenvolvimento, nos moldes das
teorias psicológicas, em detrimento da variedade de fatores do
processo aquisicional;
236
d.
quanto à não replicabilidade e à não generalidade, a autora assim
responde àqueles que acusam os estudos observacionais de
mostrarem o que é possível, mas não informarem se os padrões
identificados em casos particulares podem ser generalizados:
“Trata-se mais uma vez da inquietação diante da possibilidade
da diversidade, da crença cega na uniformidade da mente
em desenvolvimento”, limitação que “não é exclusiva de uma
determinada metodologia; parece, antes de tudo, ligada à
interpretação que se faz dos dados, a qual releva da teoria
defendida” (PERRONI, 1996, p. 25)64.
Essa minuciosa caracterização dos métodos experimental e
naturalístico conduz Perroni (1996, p. 23) à conclusão de que a diferença
básica entre ambos “consiste no fato de que o experimental acaba
estudando a linguagem da criança, ao passo que o observacional
pode estudar o próprio desenvolvimento da linguagem”, cabendo,
pois, ao pesquisador em aquisição da linguagem a escolha do método
de coleta que melhor convém ao seu ponto de vista teórico e aos
seus objetivos investigatórios. Note-se, aqui, a distinção pela autora
feita entre linguagem da criança e desenvolvimento da linguagem,
semelhante à distinção entre linguagem da criança e aquisição da
linguagem, que Silva (2012, 2009) retoma de Ingram (1989). Voltarei a
essa distinção a seguir, ao finalmente adentrar minha pesquisa.
Nesta seção, a partir de Silva (2009), inicialmente procurei traçar
as grandes linhas da gênese metodológica do campo aquisicional
e, em seguida, a partir de Scarpa (2001) e Perroni (1996), busquei
64 Com efeito, as críticas desferidas por Perroni (1996) ao ideal de cientificidade que move
alguns estudos aquisicionais parecem se aplicar menos às abordagens metodológicas
tomadas em si mesmas do que às perspectivas teóricas que norteiam tais estudos. Ora,
não seria justo nem correto desprezar o fato de que há pesquisas sobre a escrita da
criança, por exemplo, que recorrem ao modo de coleta experimental e ao tipo de coleta
transversal, no entanto são orientadas por abordagens enunciativas e discursivas em tudo
distantes de algo como uma “antropofobia”, a exemplo de alguns trabalhos desenvolvidos
no Brasil por linguistas como Eduardo Calil (cf. CALIL; BORÉ; AMORIM, 2014) e Lourenço
Chacon (cf. CHACON, 2017).
SUMÁRIO
237
detalhar os modos e os tipos de coleta mais empregados pelos
pesquisadores de aquisição da linguagem. Após o percurso trilhado,
creio estar em condições de responder a algumas questões relativas
à minha pesquisa de doutoramento, aqui tomada como ad exemplum
das dificuldades metodológicas que se apresentam ao linguista
interessado pelo fascinante fenômeno do vir a ser escrevente. Eis a
finalidade da seção seguinte.
DA COLETA DOS DADOS À GERAÇÃO DOS
FATOS NUMA PESQUISA ENUNCIATIVA
EM AQUISIÇÃO DA ESCRITA
Antes de passar às questões metodológicas de minha tese,
retomo, uma vez mais, palavras de Silva (2012, p. 354, itálicos da
autora), segundo a qual “é necessário o pesquisador perguntar-se: de
acordo com minha concepção de linguagem e de sujeito que modo
e tipo de coleta serão relevantes?”. Apesar de não ter espaço, neste
texto, para problematizar mais profundamente as noções de linguagem
e sujeito que assumo, posso dizer que a noção de linguagem é, aqui,
indissociável das noções de língua e línguas (cf. BENVENISTE, 1963),
enquanto a noção de sujeito é, também aqui, igualmente indissociável
das noções de homem e locutor (cf. BENVENISTE, 1958; SILVA, 2009,
FLORES, 2013).
Em Vista d’olhos sobre o desenvolvimento da linguística
(1963), a linguagem é por Benveniste concebida como a expressão
suprema da faculdade humana de simbolizar, que permite ao homem
representar e compreender o real através de signos (linguagem como
faculdade simbólica). Nesse mesmo artigo, a língua é definida pelo
autor como um todo organizado sistemicamente em partes (língua
como sistema de signos). Já as línguas são tomadas pelo linguista
SUMÁRIO
238
como manifestações concretas e variáveis da linguagem, próprias
a sociedades e culturas particulares (línguas como organismos
históricos e empíricos).
Em Da subjetividade na linguagem (1958), ao rechaçar uma visão
instrumental de linguagem reduzida à ferramenta de comunicação,
Benveniste situa na linguagem a possibilidade de o homem constituirse sujeito. A constituição do homem como sujeito é, conforme Flores
(2013), garantida por uma figura intermediária, o locutor, aquele que
se apropria da língua ao enunciar, o que conduz o autor a sustentar
que essas três noções – homem, locutor e sujeito – não se recobrem
teoricamente na perspectiva benvenistiana: enquanto homem é
uma noção antropológica, locutor e sujeito são noções linguísticas,
sendo o locutor a fonte da apropriação da língua e o sujeito, o efeito
dessa apropriação, cujos traços no discurso remetem às marcas da
enunciação no enunciado.
Ao tratar da constituição do sujeito da/na enunciação e da/na
aquisição da linguagem, Silva (2009) postula a existência de três
instâncias de intersubjetividade, simultâneas e interdependentes
na constituição da subjetividade: (a) a instância cultural, vinculada
a uma relação homem-homem inscrita socialmente na cultura
(instância que pode ser relacionada à noção antropológica de
homem); (b) a instância da alocução ou dialógica, atrelada a uma
relação locutor-alocutário situada interlocutivamente no diálogo
(instância que pode ser associada à noção linguística de locutor);
(c) a instância linguístico-enunciativa, ligada a uma relação eutu marcada linguisticamente no discurso (instância que pode ser
aproximada da noção linguística de sujeito).
Para Silva (2009), o sujeito da aquisição da linguagem é cultural,
na medida em que a criança nasce e desenvolve-se numa sociedade
específica, com uma cultura e uma língua também específicas;
alocucional ou dialógico, pois sua constituição dá-se em situações de
SUMÁRIO
239
diálogo, nas quais a criança se declara locutor e implanta o outro como
alocutário, assim como é por ele implantada como tal; e linguísticoenunciativo, porque a enunciação – enquanto ato de apropriação e
atualização da língua (sistema) em discurso (uso) – introduz a criança
em sua fala e marca sua presença na materialidade linguística do
enunciado, sobretudo – mas não só – através do pronome eu e de
outros signos pertencentes à categoria de pessoa. Conforme a autora,
“Por meio das instâncias intersubjetivas (cultural, da alocução ou
dialógica e lingüístico-enunciativa), a criança opera a conversão do
discurso em língua e da língua em discurso” e “se instaura como
sujeito de linguagem” (SILVA, 2009, p. 223).
Apresentadas – muito brevemente, é verdade – as concepções
de linguagem e sujeito que alicerçam esta investigação, passo às
questões metodológicas propriamente ditas, a primeira das quais é a
seguinte: um estudo sobre a instauração da criança na escrita de sua
língua materna a partir da teorização enunciativa de Émile Benveniste
seria um estudo de linguagem da criança ou um estudo de aquisição/
desenvolvimento da linguagem?
Embora também não seja aqui possível tratar mais
detidamente dos termos aquisição e desenvolvimento, explicitando
como podem ser interpretados à luz de meu ponto de vista teórico65,
posso responder que considero este um estudo sobre a aquisição/
desenvolvimento da escrita, e não sobre a escrita da criança. Afinal,
minha preocupação nuclear não é investigar as manifestações
escriturais infantis per se, mas o que muda e como muda na relação
inicial da criança com a escrita, bem como os efeitos dessas
mudanças em sua constituição como sujeito de linguagem. Logo,
minha finalidade é, à luz da teorização enunciativa de Benveniste,
“explicar um processo, no qual a fala [a escrita] da criança atesta a
65 Isso acarretaria a necessidade – impossível de ser aqui contemplada com a atenção que
lhe é devida – de encarar a espinhosa questão desenvolvimental e o problema da definição
de estágios de aquisição da escrita. Deixo, por ora, suspensa uma tal discussão.
SUMÁRIO
240
passagem de uma ausência para uma presença” (SILVA, 2012, p.
350, acréscimo meu). Tenho, dessa maneira, uma preocupação não
apenas descritiva, mas também – e principalmente – explicativa.
A segunda questão é a seguinte: quais seriam o modo e o tipo
de coleta mais pertinentes a uma investigação em aquisição da escrita
orientada pela teorização enunciativa benvenistiana?
Quanto ao modo de coleta, aquele escolhido neste estudo,
a julgar por sua teoria de referência (com a qual são as produções
linguageiras espontâneas, que brotam no cotidiano das relações
humanas, as que mais condizem) e por seu objetivo geral (proporcionar
uma nova explicação teórica para a trajetória da criança de não
escrevente a escrevente em sua língua materna), é o naturalístico.
Essa escolha se deve ao fato de tal modo privilegiar coletas em
atividades rotineiras, que têm lugar em ambientes domésticos, quer
dizer, em situações não controladas como em sessões conduzidas
sob a égide do modo de coleta experimental. É em contextos
familiares e informais como esses que se pode testemunhar a relação
homem-língua da forma mais natural possível, apesar de sabermos
que a naturalidade plena é impossibilitada em virtude de ser a língua,
ela mesma, o objeto em foco, o que pode constranger os usos que
dela fazem os participantes da pesquisa.
A respeito da naturalidade das interações nesta investigação,
vale pontuar um desafio que tem sido enfrentado e o que tem se
mostrado uma aparente vantagem.
O desafio diz respeito ao fato de que, numa coleta de aquisição
da língua em sua realização escritural, o grau de naturalidade reduz-se
sensivelmente se comparado àquele de uma coleta de aquisição da
língua em sua realização vocal. Nesta, o investigador pode contentarse em observar a criança interagindo com os outros de seu convívio ou
mesmo interagir ele próprio com ela – como frequentemente é o caso
SUMÁRIO
241
–, deixando o fluxo do diálogo correr livremente durante a sessão. Não
é incomum, por exemplo, a criança deslocar-se fisicamente enquanto
“tagarela” pelo espaço doméstico e o pesquisador, de filmadora em
punho, acompanhá-la em seu deslocamento.
Em contrapartida, numa coleta naturalística de aquisição da
escrita, tudo se passa diferentemente. É necessário sentar-se com a
criança a uma mesa (para escrever) ou ainda – apesar de a ênfase
do trabalho residir na produção mais do que na compreensão – em
um sofá (para ler). Isso coloca, de antemão, duas necessidades de
ordem prática.
Por um lado, é preciso encontrar a criança em momentos em que
ela esteja descansada e disposta a participar de atividades de escrita e
leitura. A título de ilustração, a experiência deste estudo já provou que
coletas ocorridas ao fim de um dia útil, após a criança ter passado um
ou dois turnos de sua jornada diária na escola, são contraproducentes,
tais como encontros sediados em ambientes ruidosos. Sessões
realizadas em fins de semana e em locais silenciosos têm sido, pois,
mais exitosas em termos de participação das crianças (são duas,
conforme descrito adiante) nas atividades propostas.
Por outro lado, é preciso promover situações de escrita e
leitura que façam sentido à criança. Acerca disso, a vivência desta
pesquisa já atestou também ser infrutífero solicitar-lhe (em busca de
uma espontaneidade utópica se tivermos em mente sua relação ainda
tímida com o escrito) que escreva aquilo que desejar. É imprescindível
situar a criança em um contexto preciso, com um interlocutor definido
e um propósito significativo, como a produção de uma carta ao Papai
Noel pedindo-lhe um presente de Natal ou a escrita de uma mensagem
ao primo convidando-lhe para ir ao cinema.
Já a aparente vantagem – que vem, inclusive, ajudando-me
a contornar eventuais dificuldades que emergem nos encontros,
SUMÁRIO
242
como as acima reportadas – refere-se ao vínculo afetivo que tenho
com as duas crianças participantes de minha pesquisa: a menina
é minha afilhada; o menino, meu primo de primeiro grau. Aqueles
na comunidade acadêmica ciosos de uma “concepção tradicional
ocidental do conhecimento como objetivo, individualista e aistórico,
independente da condição humana” – inclinados a uma “linguística
antropofóbica”? –, para retomar as palavras de Perroni (1996, p. 17),
podem pôr em xeque a validade científica de semelhante vínculo em
um empreendimento de tal porte. A esse propósito, é novamente à
linguista que recorro, quando, sobre casos nos quais os investigadores
acumulam também os cargos de pais das crianças investigadas, ela se
manifesta declarando que, nesses casos, “a validade dos resultados
será confirmada com base em uma cuidadosa descrição de como o
adulto agiu nas trocas com a criança, no processo de coleta dos dados”
(PERRONI, 1996, p. 24). Deixo, então, aos meus potenciais leitores a
avaliação de minhas ações como interlocutor adulto das crianças.
Quanto ao tipo de coleta, aquele eleito nesta pesquisa
é o longitudinal. Isso porque se filiar à teorização enunciativa
benvenistiana impõe reconhecer a contínua mudança a que está
sujeita a relação homem-língua, característica ainda mais marcada
na aquisição da língua, na qual as mudanças presentificam algo
antes inexistente: a fala e a escrita. Tal presentificação não se efetiva
senão no curso do tempo e, por isso, exige um acompanhamento
longitudinal para ser apreendida.
Se a relação homem-língua é um permanente devir, estando
em constante mutação, é porque “todo homem inventa sua língua
e a inventa durante toda sua vida. E todos os homens inventam
sua própria língua a cada instante e cada um de maneira distintiva,
e a cada vez de maneira nova” (BENVENISTE, 2006 [1968a], p. 18).
Ainda que socialmente partilhada (portanto, uma herança cultural) e
semiologicamente estabelecida (logo, um sistema estruturado), a
SUMÁRIO
243
língua é por cada homem apropriada muito singularmente, seja em sua
passagem inicial de não falante e não escrevente a alguém que fala e
escreve, seja a cada vez que abre a boca para falar ou move as mãos
para escrever ao longo da vida. Isso porque tanto a enunciação infantil
de uma língua ainda em constituição quanto a enunciação adulta de
uma língua já constituída são atos discursivos que registram no mundo
a marca e o selo da singularidade humana. É por isso que a relação
homem-língua é reinventada a cada instante, por cada falante: “Dizer
bom dia todos os dias da vida a alguém é cada vez uma reinvenção”
(BENVENISTE, 2006 [1968a], p. 18).
Todavia, se é verdade que o homem transforma a cada vez
e sempre a sua relação com a língua, é também verdade que tal
transformação é ainda mais aparente na aquisição, em que “não
ocorre somente uma modificação, mas a passagem de uma ausência
para uma presença de língua, presença essa que parece não ocorrer
de modo instantâneo” (SILVA, 2009, p. 284). O apontamento de
Silva (2009) acerca da aquisição da língua em sua realização vocal
é igualmente válido para a aquisição da língua em sua realização
escritural, uma vez que tanto a fala quanto a escrita são adquiridas
pelo homem em processos que modificam totalmente seus modos de
estar na língua e, por conseguinte, seus modos de ser pela língua. Em
especial, ao aceder à condição de escrevente, o homem transforma
sua própria condição de falante, mudando radicalmente sua relação
com o simbólico. Daí a opção, nesta investigação, pelo tipo de coleta
longitudinal para tentar-se testemunhar, temporalmente, essa mudança
radical na aquisição da escrita.
Minha pesquisa doutoral em andamento66 envolve sessões de
coleta naturalística e longitudinal, realizadas em ambiente doméstico,
66 A presente pesquisa foi aprovada, quanto aos seus aspectos éticos e metodológicos, pela
Comissão de Pesquisa em Letras (COMPESQ) e pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP)
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), credenciado junto à Comissão
Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP).
SUMÁRIO
244
de uma a duas vezes por mês, ao longo de dois anos e seis meses, com
duas crianças de classe média, falantes monolíngues do português
brasileiro e residentes na região metropolitana de Porto Alegre (RS).
A primeira criança, uma menina, está sendo acompanhada dos três
anos e três meses aos cinco anos e nove meses, antes de alfabetizarse. A segunda criança, um menino, está sendo acompanhada dos
seis anos e três meses aos oito anos e nove meses, durante o ciclo
da alfabetização. Trata-se, pois, do registro de cinco anos iniciais da
relação criança-escrita.
Embora os estudos longitudinais acompanhem em geral três
crianças, a fim de, a partir desse número, estabelecerem padrões
aquisicionais por meio da verificação de escolhas típicas ou raras –
conforme a caracterização desses estudos feita por Silva (2009)
e resgatada na seção anterior –, não faz parte dos objetivos desta
investigação o estabelecimento de padrões, ao menos não de padrões
definidos em termos de tipicidade ou raridade67. É também essa autora
quem atenta para o fato de que mesmo os estudos longitudinais,
apesar de mais qualitativos do que os transversais, ao buscarem a
sistematicidade nos dados, tendem a excluir, de um lado, a linguagem
da criança como irregular e heterogênea e, de outro, o seu percurso
linguístico como único e singular: “Na verdade, a descrição lingüística
dos dados submete a fala da criança a uma ‘dessubjetivação’ e, nesse
sentido, língua e sujeito continuam separados e não marcados pela
‘falta’” (SILVA, 2009, p. 90, aspas da autora).
Em suma, um trabalho como este, que tem como pedra angular a
relação mutuamente constitutiva entre língua e homem, não pode primar
senão pela singularidade do discurso – uma singularidade vinculada,
sim, à sistematicidade da língua, mas nela não enclausurada. Em
realidade, o ideal aos propósitos desta pesquisa seria acompanhar uma
67 A relação geral-particular e o problema do método de análise numa pesquisa enunciativa
em aquisição da escrita recebe mais atenção na tese da qual deriva o texto em tela, de
modo que disso aqui não tratarei.
SUMÁRIO
245
mesma e única criança ao longo de, pelo menos, cinco anos, dois préalfabetização e três durante o início da aprendizagem institucionalizada
da escrita, com vistas a registrar as mudanças de sua relação com
a língua nesse ínterim. Entretanto, a julgar pela inviabilidade de uma
coleta assim configurada nos limites do calendário de um curso de
doutorado, a alternativa encontrada foi a opção por duas crianças em
faixas etárias e níveis de escolaridade distintos.
Tal escolha decorre do pressuposto, comum às diferentes
perspectivas teóricas de aquisição da escrita, de que esta não começa
necessariamente no primeiro ano do Ensino Fundamental I. As crianças
nascidas em sociedades modernas, notadamente aquelas oriundas de
famílias de classe média, que convivem no seu dia a dia com materiais
impressos (livros, revistas, gibis) e aparelhos eletrônicos (televisões,
computadores, celulares) diversos, crescem em meios culturais nos
quais a escrita é uma presença constante e indelével, de modo que a
aquisição da escrita não se confunde com a alfabetização.
Contudo, se a aquisição da escrita não está limitada ao tempo
da escola e ao espaço da sala de aula, não se pode negar que é
nessa instituição social que o advir da grande maioria das crianças
como escreventes acontece de fato. Dessa maneira, um estudo de
aquisição da escrita como este se propõe a ser não poderia deixar
de acompanhar uma criança no princípio da escolarização formal. Tal
acompanhando não está sendo, no entanto, realizado em ambiente
escolar. Isso por três motivos:
SUMÁRIO
1.
Não é o processo institucional de ensino-aprendizagem da
escrita (a alfabetização) o foco desta investigação, mas a
relação inicial da criança com a escrita (a aquisição da escrita),
não circunscrita à escola.
2.
O contexto doméstico parece ser mais propício a coletas
naturalísticas do que o contexto educacional, em função das
246
coerções mais acentuadas que particularizam o segundo,
como, por exemplo, as vinculadas às práticas avaliativas.
3.
O ingresso em sala de aula, face à necessidade de filmar as
sessões, tornaria mais complexos os aspectos éticos da pesquisa
e poderia eventualmente comprometer a própria continuidade
do trabalho de campo. Esse risco deve-se à obrigatoriedade de
solicitar a autorização dos pais ou responsáveis pelas crianças
filmadas a cada renovação do quadro discente, seja na turma
do ano em questão (com o ingresso de um ou mais alunos no
transcorrer do ano letivo), seja na formação de uma nova turma
na passagem de um ano a outro. Nesse sentido, poderiam
surgir contratempos, como a não autorização para filmagem
por um pai ou responsável, ou então a desistência de um ou
mais deles durante os dois anos e meio de acompanhamento.
Em ambos os casos, a coleta precisaria ser interrompida e
os dados, possivelmente descartados; ou seria necessário
tomar medidas – falíveis em sua execução, dado o dinamismo
característico da sala de aula de anos iniciais – para assegurar
o não aparecimento das crianças não autorizadas no campo de
alcance da câmera filmadora. Por isso e pela opção pelo modo
de coleta naturalístico, julguei mais prudente a realização das
sessões em contexto doméstico, com um número reduzido
de crianças, no caso duas, ambas – conforme já exposto –
com um vínculo comigo enquanto pesquisador, o que torna
mais segura a continuidade da coleta longitudinal, embora a
interrupção desta, no decorrer da pesquisa, tenha sido uma
possibilidade informada aos responsáveis pelos participantes
quando da assinatura por eles do Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido.
Hilário e Del Ré (2015) também defendem a opção por coletas
naturalísticas e longitudinais em estudos de aquisição da linguagem
SUMÁRIO
247
guiados por abordagens discursivas. Em artigo no qual descrevem
as diretrizes metodológicas que conduzem o trabalho de coleta,
transcrição e análise dos dados constituídos pelo grupo NALíngua68, as
autoras relatam que este acompanha “6 crianças brasileiras, filmadas
mensalmente, em situações cotidianas [...] trata-se de coletas mensais
de cerca de uma hora de duração com cada uma das crianças”
(HILÁRIO; DEL RÉ, 2015, p. 59).
Com um desenho metodológico similar a este, as sessões de
coleta do presente estudo estão sendo realizadas de uma a duas vezes
por mês, sempre em ambientes familiares às crianças, seja em suas
casas ou na minha. Durante as sessões, que são filmadas e duram
de trinta a sessenta minutos, procuro colocar os participantes da
pesquisa em contato com materiais de diferentes naturezas e formatos
e adequados aos seus respectivos perfis e interesses (gibis, revistas
e livros infantis, lápis de escrever e colorir, canetas hidrocores, gizes
de cera, cadernos de escrever e desenhar etc.), a fim de promover as
condições necessárias ao seu engajamento em atividades de leitura e,
sobretudo, de escrita.
A terceira e última questão que esta seção busca responder
é a seguinte: qual é a natureza do dado numa pesquisa enunciativa
em aquisição da escrita norteada pela teorização benvenistiana e que
tratamento metodológico pode, a partir dessa perspectiva teórica, ser
dispensado ao corpus após sua coleta?
Emprego, aqui, o termo coleta, pois este está já consagrado
nos estudos linguísticos, em geral, e nos estudos aquisicionais, em
particular. Não ignoro, porém, propostas como a de Garcez, Bulla e
Loder (2014), os quais, embora alinhados a um referencial teórico outro
68 O grupo de pesquisa interinstitucional NALíngua (Núcleo de Estudos em Aquisição da
Linguagem), criado em 2008, é coordenado pelas Profas. Dras. Alessandra Del Ré (Unesp)
e Márcia Romero (Unifesp) e reúne pesquisadores de diferentes instituições do Brasil e
da França, inseridos em distintas abordagens teóricas, mas todos com um interesse em
comum: a relação da criança com a língua.
SUMÁRIO
248
que não o benvenistiano – a análise da conversa etnometodológica –,
produzem uma interessante reflexão sobre metodologia de pesquisa
em linguística.
Os autores sugerem a substituição do termo coleta pelo
termo geração de dados e argumentam em favor dessa mudança
terminológica sustentando que a vida social que lhes interessa
compreender é evanescente, não podendo ser integralmente
capturada por nenhum aparelho ou método de gravação. Segundo os
pesquisadores, os dados são efetivamente gerados, pois envolvem
desde a escolha e a disposição de um equipamento em um dado
ângulo, para registrar a interação dos atores sociais no ali-então do
contexto investigado, até procedimentos que submetem os registros
a grandes transformações antes de chegarem ao leitor do texto final
que coroa a trajetória da pesquisa.
Garcez, Bulla e Loder (2014) tratam ainda de outras duas
etapas além da geração dos dados, a segmentação e a transcrição,
sendo as três consideradas por eles procedimentos analíticos plenos,
por implicarem desde sempre tomadas de decisão por parte do
pesquisador. Para os autores, “A segmentação do fluxo contínuo
da interação para que se possa chegar a trechos transcritos é uma
operação analítica em si” (GARCEZ; BULLA; LODER, 2014, p. 265).
Essa etapa de segmentação corresponde àquela por Perroni (1996)
denominada etapa de seleção, a partir do material coletado, dos dados
a integrarem o corpus de análise. Trata-se de uma parte trabalhosa da
análise que precede a transcrição e que se faz necessária, haja vista
que os eventos interacionais por eles registrados têm longas durações,
sendo mais frequente a transcrição de segmentos específicos de um
evento do que a sua transcrição na íntegra. A transcrição é igualmente
uma atividade analítica plena, visto ter “implicações de ordem prática (a
transcrição deve registrar o mais próximo e reconhecivelmente possível
os fenômenos de interesse analítico central) e política (a transcrição
SUMÁRIO
249
constitui os participantes para os leitores da transcrição)” (GARCEZ;
BULLA; LODER, 2014, p. 267)69.
Já no campo da linguística da enunciação, ao tratar do lugar
do corpus em um estudo enunciativo da linguagem, Flores (2001)
afirma que este não comporta dados, mas fatos, pois “não se trata
de algo ‘dado’ enquanto evidência, mas do produto de um construto
teórico” (FLORES, 2001, p. 59, aspas do autor). Nessa direção, o fato
não precede a teoria adotada, mas é por ela configurado. Reafirmase, assim, a máxima saussuriana de que o ponto de vista assumido é
criador do objeto estudado.
Em trabalho mais recente, Nunes e Flores (2017) ampliam a
problematização acerca das noções de corpus, dado e banco de
dados no âmbito da linguística da enunciação, mais precisamente no
da teorização enunciativa benvenistiana. Os autores questionam um
aparente paradoxo: sendo a perspectiva enunciativa uma perspectiva
que estuda a língua do ponto de vista da sua singularidade, porque
relacionada ao uso particular que um locutor dela faz numa particular
instância espaço-temporal, não seria tal abordagem refratária a um
tratamento de dados com vistas à constituição de um corpus e, mais
ainda, de um banco de dados (BD)? Afinal, “singularidade evoca
irrepetibilidade; logo, é uma palavra que parece estar na contramão
do que subjaz a um BD, uma vez que a palavra banco evoca,
exatamente, a ideia de repetibilidade” (NUNES; FLORES, 2017, p.
402, itálicos dos autores).
Quanto à natureza do dado em enunciação, Nunes e Flores
(2017) pontuam inicialmente que a perspectiva enunciativa “tenta
devolver ao dado seu estatuto epistemológico de antecessor à
69 Além das implicações práticas e políticas da transcrição, Garcez, Bulla e Loder (2014)
apontam outras características e desafios impostos pelo ato de transcrever, os quais não
serão aqui retomados por limites de espaço, mas são tratados mais de perto na tese da
qual resulta este texto.
SUMÁRIO
250
teoria, já que os dados sempre advêm de uma língua em atividade,
semantizada na sua atualização” (NUNES; FLORES, 2017, p. 404,
itálicos dos autores, negritos meus). Desse modo, na concepção dos
linguistas, o que precede a teoria não é o fato – já submetido ao
tratamento teórico-metodológico –, mas o dado empírico – o qual eles
explicam ser constituído, ao mesmo tempo, pelo ato de enunciação e
por seu resultado, o enunciado.
No entanto, nesse mesmo artigo em que atentam para a
anterioridade do dado com relação à teoria, Nunes e Flores (2017)
traçam um percurso que parte do ato, transforma-o em fato e, por fim,
converte-o em dado: “O aporte teórico enunciativo propõe, então,
que um banco [de dados], na impossibilidade de armazenar atos
enunciativos, transforme-os em fatos”, a partir dos quais “o analista faz
seu recorte para análise. A esse recorte, daremos o nome de análise
do fato enunciativo” (NUNES; FLORES, 2017, p. 408, itálicos dos
autores, negrito meu). E prosseguem os pesquisadores: “Banco, por
seu turno, passa a ser visto como uma forma de acesso às diferentes
singularidades que o constituem, deixando de ser um fim, no qual todos
os dados convergem, para ser um meio de viabilizar a conversão de
fatos em dados” (NUNES; FLORES, 2017, p. 408, itálicos dos autores,
negritos meus). Dado, aqui, parece estar numa relação sinonímica
com o que os estudiosos designam, na citação anterior, de recorte ou
análise do fato enunciativo, sendo, portanto, o resultado da conversão
do ato em fato.
Se, em um primeiro momento, Nunes e Flores (2017) indicam
que o dado consiste tanto no ato enunciativo quanto no discurso
enunciado e que, justamente por advir da atividade linguística, ele
antecede a teoria, em um segundo momento, os autores o situam ao
final do trajeto ato-fato-dado. Ou seja: no primeiro momento, o dado
equivale ao ato e ao enunciado (o produto empírico), antecedendo,
pois, a teoria; no segundo momento, o dado equivale ao recorte do fato
para análise (o produto teórico-metodológico), sucedendo, portanto, a
SUMÁRIO
251
teoria. Teria o termo dado duas acepções na visão dos autores? Seria
ele visto, numa primeira acepção, como “a matéria-prima” (com uma
anterioridade lógica à teoria que apreende essa matéria-prima como
constituída conjuntamente pela enunciação e pelo enunciado) e, numa
segunda acepção, como a unidade de análise (o recorte do fato)?
Ainda sobre a natureza do dado, Nunes e Flores (2017) retomam
os três tipos de dados descritos por Coudry (1996): (a) o dadoevidência, que supõe a homogeneidade da língua e a exemplificação
de uma teoria por meio da quantificação; (b) o dado-exemplo, que é
construído para corroborar uma hipótese prévia; (c) o dado-achado,
que não é previamente construído e serve tanto para fins de ilustração
quanto para fomentar novas hipóteses e análises.
Para os autores, desses três tipos, apenas o terceiro é coerente
com uma abordagem enunciativa. O primeiro deve ser refutado por
ignorar a heterogeneidade própria à língua atualizada em discurso na
enunciação e, acrescentaria eu, por ignorar também a impossibilidade
de se enfatizar, em um estudo enunciativo benvenistiano, uma
metodologia quantitativa. O segundo, por prever um dado posterior à
teoria, o que contradiz aquela que parece ser a primeira acepção de
dado no estudo de Nunes e Flores (2017).
Conforme tais pesquisadores, o dado-achado é pertinente a uma
análise enunciativa, pois nela é do dado que decorrem os percursos
possíveis de serem empreendidos pelo analista. Isso os conduz a
rebatizarem o dado-achado como dado-determinante, “um dado que
determina o foco da análise e os rumos que ela tomará” (NUNES;
FLORES, 2017, p. 404). Esse dado, como já dito, é duplamente formado
pela enunciação e pelo enunciado.
Mas, se Benveniste postula que “é o ato mesmo de produzir
um enunciado, e não o texto do enunciado, que é o nosso objeto”
(BENVENISTE, 2006 [1970], p. 82), por que, então, considerar o
SUMÁRIO
252
enunciado? Ora, o ato de enunciação é um evento efêmero, condicionado
por circunstâncias de pessoa, espaço e tempo únicas e irrepetíveis. A
enunciação é “cada vez um acontecimento diferente; ela não existe
senão no instante em que é proferida e se apaga neste instante; é um
acontecimento que desaparece” (BENVENISTE, 2006 [1966/1967], p.
231). Dessa forma, o único canal de acesso à enunciação – e, ainda
assim, um acesso sempre parcial – é o enunciado, a manifestação
individual que ela atualiza. Mesmo se uma enunciação for filmada, ela
só se torna segmentável, transcritível e analisável quando apreendida
como enunciado, como um produto observável que retém as marcas
de seu fugaz processo de produção.
Benveniste preconiza também que “Na enunciação
consideraremos, sucessivamente, o próprio ato, as situações em
que ele se realiza, os instrumentos de sua realização” (BENVENISTE,
2006 [1970], p. 83). Eis o que o linguista denomina quadro formal de
realização da enunciação: o ato remete à categoria de pessoa (à relação
eu-tu), pois, ao enunciar, o locutor projeta um alocutário; as situações,
às categorias de espaço e tempo (ao aqui-agora), pois a enunciação é
sempre situada em um dado contexto; os instrumentos, aos recursos
linguísticos que materializam tais categorias e demarcam, no tecido
verbal do enunciado, a singular relação do locutor com a língua.
A partir dos princípios benvenistianos, Nunes e Flores (2017)
sustentam que um banco de dados enunciativo não pode comportar
somente enunciados falados e escritos. É preciso também fornecer
meios de acesso às enunciações que produziram esses enunciados,
bem como aos três critérios a partir dos quais devem ser consideradas –
o ato, a situação e os instrumentos. É por isso que a relação enunciaçãoenunciado pode ser pensada em termos de processo e produto: “[...]
analisar a enunciação é partir de seu produto, o enunciado, como fonte
de pistas que levem a compreender o funcionamento e a organização
SUMÁRIO
253
singular da enunciação para um determinado sujeito” (NUNES;
FLORES, 2017, p. 403).
Inspirado, de um lado, por Garcez, Bulla e Loder (2014) e, de
outro lado, por Nunes e Flores (2017), mas sem aderir inteiramente a
nenhuma dessas duas propostas, proponho uma releitura das noções
metodológicas em ambas discutidas.
Enquanto os analistas da conversa empregam o termo geração
no lugar de coleta, eu manterei o termo coleta dos dados para
nomear a etapa inicial de constituição de meu corpus (a filmagem in
loco) e reservarei o termo geração dos fatos às etapas seguintes (a
transformação do dado em fato, o armazenamento e a segmentação
dos fatos em recortes e a transcrição dos recortes para a análise).
Enquanto os enunciativistas parecem lidar com duas
noções de dado – uma que o situa anteriormente à teoria e outra,
posteriormente –, eu designarei por dado a produção linguageira dos
locutores (a enunciação) e o produto dela resultante (o enunciado),
compreendendo que esse dado é, desde já e sempre, submetido à
teoria e por ela transformado em fato enunciativo, tornando-se passível
de segmentação, transcrição e análise em recortes enunciativos.
Em síntese, a releitura que proponho é a seguinte:
•
A coleta dos dados é um processo de acompanhamento,
condução e filmagem por parte do pesquisador:
•
SUMÁRIO
Estão sendo acompanhadas duas crianças em processo
de aquisição da escrita ao longo de dois anos e meio, em
sessões individuais, realizadas de uma a duas vezes por
mês, em contexto doméstico e com duração entre meia
e uma hora, registradas com o auxílio de uma câmera
filmadora, disposta em pedestal, de modo a dispensar
o suporte manual, e em um ângulo adequado tanto para
254
garantir uma gravação de qualidade quanto para inibir ou
distrair as crianças o mínimo possível.
•
•
As sessões são conduzidas pelo diálogo com os
participantes da pesquisa, aos quais são propostas
atividades de escrita e leitura a partir de materiais de
diferentes naturezas e formatos e adequados aos seus
respectivos perfis e interesses (gibis, revistas e livros
infantis, lápis de escrever e colorir, canetas hidrocores,
gizes de cera, cadernos de escrever e desenhar etc.)
•
Tais atividades envolvem a criação de situações
enunciativas que convocam as crianças a falarem
e escreverem sobre um dado tema (funcionamento
referencial do discurso) para um dado interlocutor
(funcionamento intersubjetivo do discurso).
O dado empírico coletado nessas sessões naturalísticas
e longitudinais é de duas ordens, o dado-enunciação e o
dado-enunciado:
•
SUMÁRIO
O dado-enunciação existe, de fato, apenas no instante
de sua produção, esvanecendo nesse momento
mesmo, de maneira que a filmagem não fornece
acesso senão a um material que é já registro do ato
enunciativo, jamais o próprio ato. Esse primeiro tipo
de dado é constituído pelos registros audiovisuais dos
atos enunciativos de escrita e dos atos coeunciativos
de leitura protagonizados pelas crianças, mas também
dos atos enunciativos de fala e dos atos coenunciativos
255
de escuta70 sobre o escrever e o escrito, protagonizados
tanto pelas crianças quanto pelo pesquisador em
diálogo com elas durante as atividades propostas.
•
O dado-enunciado, produto do dado-enunciação, goza
de uma permanência desconhecida por este, consistindo
em enunciados escritos e falados, aqui entendidos como
discursos observáveis mesmo distantes espacial e
temporalmente das enunciações que os produziram. Por
exemplo, um enunciado escrito ou falado no aqui-agora
de uma sessão de coleta, se registrado, pode ser lido
ou visto/escutado pelo pesquisador em outras situações
enunciativas, como nas etapas de armazenamento,
segmentação e transcrição, que integram juntas a
geração dos fatos.
•
A geração dos fatos é um processo metodológico de
transformação dos atos (as enunciações) e dos discursos (os
enunciados) em fatos enunciativos, produtos armazenáveis e
recortáveis para a análise.
•
O recorte enunciativo é a unidade de análise, extraída do fato
enunciativo na fase de segmentação, que pode gerar um ou
mais recortes a partir de um mesmo fato, a depender dos
objetivos analíticos.
Mas como o dado empírico se torna um fato enunciativo e,
finalmente, um recorte analítico? A resposta a essa pergunta coloca
em cena as problemáticas do armazenamento e da segmentação
70 Não tenho espaço, neste capítulo, para problematizar o termo coenunciativo, que aqui
emprego para me referir aos atos de escuta e leitura. A esse propósito, uma teorização
mais detida está em curso na tese, mas adianto ao leitor que, diferentemente de meus
pares enunciativistas, ao menos daqueles que reivindicam filiação a Benveniste, não
atribuo ao escutar e ao ler o mesmo estatuto de ato de enunciação que caracteriza o
falar e o escrever.
SUMÁRIO
256
dos registros fílmicos produzidos nas coletas. Trata-se de desafios
que se impõem a todo linguista que se aventura a trabalhar com
corpora, especialmente ao linguista que se insere numa perspectiva
teórica erigida sobre o primado da singularidade, como a teorização
enunciativa benvenistiana.
Conforme já esclarecido, os dados que estão sendo coletados
nesta investigação são de natureza tanto gráfica quanto audiovisual.
Isso porque, mais do que o produto (o enunciado escrito e lido),
interessa a esta pesquisa investigar o processo (a produção de escrita
e leitura, que implica também a produção de fala e escuta sobre esse
escrever e esse ler). Tal processo resulta no/do produto, isto é, no/do
enunciado escrito e lido pela criança, desencadeando as mudanças
que se dão a ver nele. Daí a imprescindibilidade do recurso à filmagem
como forma de registro das sessões para posteriores segmentação e
transcrição. Antes, porém, dessas etapas, faz-se necessário operar a
passagem do dado ao fato, tendo-se em vista que somente o último
se deixa segmentar e transcrever.
Após cada sessão de coleta, para assegurar a preservação
dos registros audiovisuais e evitar uma eventual perda ou danificação
deles, eu os transfiro da câmera filmadora a quatro distintas fontes
de armazenamento: um computador pessoal, um HD externo, um
dispositivo de memória (pen drive) e uma plataforma digital (o Google
Drive), identificando-os com o número e a data da sessão. Já os registros
gráficos são digitalizados: as cópias digitais são transferidas para as
quatro referidas fontes e identificadas de igual maneira, enquanto as
cópias físicas originais são arquivadas em pastas plásticas etiquetadas
com os mesmos dados de identificação.
De posse dos dados convertidos em fatos enunciativos, ao
término dos dois anos e meio de coleta, terei à disposição um corpus
organizado de registros em imagem, som e grafia, a partir do qual
SUMÁRIO
257
poderei proceder à segmentação desses fatos em recortes transcritíveis
e analisáveis. E como segmentar um fato em um ou mais recortes?
Essa etapa pode ser assumida como já analítica, porque ela
produz a própria unidade de análise, o que se dá a partir de uma
tomada de decisão por parte do pesquisador sobre onde inicia e onde
acaba um recorte. Segundo Garcez, Bulla e Loder (2014, p. 266), “A
segmentação do registro audiovisual é um procedimento indutivo,
guiado pela atenção ao fato de que a ação social é composta de
unidades que têm divisas consensuais construídas pelos participantes
como parte da inteligibilidade que eles produzem”. Tais divisas
consensuais são definidas pelos autores como marcos divisórios
relevantes na interação.
Na proposta teórico-metodológica aqui em construção, esses
marcos divisórios relevantes na interação traçam os limites de um
recorte enunciativo, concebido por Silva (2009, p. 219) como “o
espaço de discurso em que determinado tema é referido e co-referido
na alocução”. O que delimita as fronteiras de um recorte é, portanto, a
estrutura do diálogo em que se inscrevem os parceiros da enunciação.
Nessa estrutura, que inclui o locutor (eu), o alocutário (tu), a língua
(ele) e a cultura (ELE)71, são produzidos e compreendidos sentidos
e referências que criam uma situação enunciativa cada vez singular,
mas sempre mergulhada em práticas sociais que supõem uma certa
regularidade de usos da língua e a produção de uma inteligibilidade
partilhada pelos participantes do diálogo.
71 Essa estrutura é formalizada por Silva (2009) a partir do dispositivo teórico-metodológico
(eu-tu/ele)-ELE, que sintetiza a explicação enunciativa pela autora produzida para a
aquisição da língua em sua realização vocal: a criança desloca-se numa estrutura que
comporta a si própria como locutor (eu), o outro como alocutário (tu), a língua como
sistema atualizado em discurso via enunciação (ele) e a cultura como conjunto de valores
simbólicos constitutivos da sociedade (ELE). Conforme Silva (2009), no desabrochar de sua
relação com a língua, a criança transita no interior desse dispositivo trinitário, deslocandose da enunciação para a língua e da língua para a enunciação, o que a leva a constituir uma
história de enunciações, por meio da qual advém como sujeito de linguagem.
SUMÁRIO
258
Todavia, se a concepção de recorte enunciativo de Silva (2009)
é um ponto de partida para a segmentação, a transcrição e a análise
a serem efetuadas no presente estudo, tal concepção precisa sofrer
modificações com vistas a se ajustar às especificidades deste. Afinal, a
autora investiga a aquisição da língua em sua realização vocal, de forma
que o corpus por ela estabelecido compõe-se de fatos enunciativos
provenientes de enunciações faladas. Como fazem parte do corpus
deste estudo fatos enunciativos oriundos das realizações tanto vocal
quanto escritural da língua, a noção de recorte enunciativo não pode
se restringir às trocas linguageiras entre os interlocutores da alocução
falada. Além dessa estrutura dialógica instanciada vocalmente,
também será recortado como unidade analítica o enunciado produzido
escrituralmente no interior dessa estrutura.
Isso me leva a redimensionar a noção formulada por Silva
(2009), redefinindo o recorte enunciativo como uma unidade de análise
que contempla, de um lado, o espaço de discurso em que determinado
tema é referido e correferido numa alocução falada e, de outro lado, o
enunciado escrito resultante dessa alocução e cujos limites são também
circunscritos por uma dada temática, a qual pode ou não coincidir
com a da alocução falada. Assim concebido, o recorte enunciativo é
uma unidade de análise desdobrada em dois planos enunciativos:
(a) um plano situacional, ligado à situação de enunciação em que a
criança, na relação com o outro da alocução falada e com o outro do
enunciado escrito (intersubjetividade), produz escrita e leitura sobre
um assunto específico (referência); (b) um plano discursivo, relativo
ao discurso escrito pela criança no plano situacional. Nessa direção,
o plano situacional envolve uma esfera “contextual” de análise (o aquiagora da alocução falada), enquanto o plano discursivo envolve uma
esfera “textual” de análise (o enunciado escrito pela criança nessa
alocução). Contemplam-se, dessa maneira, tanto o ato de enunciação
(o processo intersubjetivo e referencial) quanto o discurso enunciado
(o produto material de forma e sentido resultante desse processo).
SUMÁRIO
259
A título de ilustração, vejamos os recortes enunciativos a seguir e
um breve comentário72 do diálogo criança-outro que neles se instaura.
Na transcrição dos recortes, adoto as seguintes convenções (cf. SILVA,
2009): cabeçalho, com indicação (a) da idade da criança no momento
da coleta, no formato “ano;meses.dias”, (b) dos participantes, com as
três letras iniciais de seu nome nas trilhas de diálogo, (c) da situação da
coleta; “Com” para indicar comentários da situação ou interpretações
dos dizeres da criança; “(?)” para indicar dúvida de transcrição; “XXX”
para indicar palavra ou frase não compreendida pelo transcritor;
“sublinhado” para indicar tom descendente; “MAIÚSCULAS” para
indicar tom ascendente; “@” para indicar pausa curta; “@@@” para
indicar pausa longa; “[= ]” para indicar ações não verbais e breves
explicações; “[...]” para indicar segmentos não relevantes suprimidos
na transcrição; “/” para indicar interrupção brusca de alguma palavra
ou frase; “?” para indicar entonação de pergunta; “!” para indicar
entonação de exclamação; “...” para indicar enunciação em suspenso;
“,” para indicar organização de enunciações extensas ou enumerações.
72 Uso, aqui, o termo comentário em vez do termo análise, pois os recortes a seguir são
apresentados apenas a título de ilustração da configuração da unidade analítica deste
estudo, sem, portanto, pretensão de uma análise linguística mais minuciosa, relacionada a
uma teorização sobre algum fenômeno específico.
SUMÁRIO
260
Recorte enunciativo 1a – Alocução falada
Recorte enunciativo 1b – Enunciado escrito
SUMÁRIO
261
No recorte enunciativo 1a (da alocução falada), Helena, com 4
anos, 10 meses e 15 dias, já frequentando a Educação Infantil, mas
ainda não alfabetizada, é inicialmente convocada pelo outro a escrever
o nome dela, o que faz produzindo a sequência “AHE”, conforme
atesta o recorte enunciativo 1b (do enunciado escrito). Embora tal
sequência contenha somente alguns segmentos do nome e não os
ordene linearmente, além de atualizar o grafema “E” com vários traços
horizontais e não apenas três, como prevê a escrita alfabética, ela é
muito interessante, pois dá a ver um lampejo da relação inicial de HEL
com o signo que é, para a maioria das crianças, a sua porta de entrada
na escrita: o nome próprio.
Contudo, o que mais chama a atenção, neste recorte, é quando
GIO convoca HEL a escrever o nome dele, com cujos constituintes
ela ainda não está familiarizada, de forma que decide “desenhar GIO”
em vez de escrever seu nome. A tal desenho, materializado pelos
contornos verdes no recorte 1b, a criança atribui vocalmente diferentes
significações: ora, é “o dindo godo” e “uma minhoca”; ora, “um barco”;
ora, “um joelho”. Como há, aqui, uma escrita e um escrevente numa
relação de mútua constituição ainda muito inicial, a criança não está
ainda sob os efeitos (irreversíveis) do semiótico sobre o semântico,
do sistema sobre o discurso, da estrutura sobre o funcionamento da
língua em sua realização escritural.
Alheia a esses efeitos, HEL ignora tanto a “consubstancialidade
do significante e do significado [que] garante a unidade estrutural do
signo lingüístico” também na escrita quanto “o caráter evidentemente
não necessário, imotivado, do elo que une o signo à coisa significada”
(BENVENISTE, 2005 [1939], p. 58, itálico do autor). Afinal, esse elo – a
significação –, se é contingente, o é no âmbito da relação signo-objeto
e não no âmbito da relação locutor-língua, pois a língua é herdada
pelo falante/escrevente já com todas as suas necessidades (relações
significantes-significados) e contingências (relações signos-objetos)
SUMÁRIO
262
estabilizadas. A flutuação referencial, aqui, parece estar relacionada
ao fato de que não há ainda um signo formado, que seja “base
significante da língua, material necessário da enunciação”, que “Existe
quando é reconhecido como significante pelo conjunto dos membros
da comunidade lingüística, e evoca para cada um, a grosso modo, as
mesmas associações e as mesmas oposições” (BENVENISTE, 2006
[1966/1967], p. 65). Não havendo ainda estabilidade de associações
e oposições, a criança “cria” a sua própria zona do arbitrário e por ela
desliza em um trânsito ainda não regrado pela ordem própria da língua.
Recorte enunciativo 2a – Alocução falada
SUMÁRIO
263
Recorte enunciativo 2b – Enunciado escrito
No recorte enunciativo 2a (da alocução falada), Emanuel, com 8
anos, 1 mês e 14 dias, é provocado por GIO a escrever uma mensagem
a um primo dois anos mais novo, a fim de revelar-lhe a inexistência de
três personagens de histórias infantis: o Papai Noel, a Fada do Dente
e o Coelho da Páscoa. Diferentemente de HEL no primeiro recorte,
EMA, neste segundo recorte, já está no Ensino Fundamental, iniciando
o terceiro e último ano do ciclo da alfabetização. Temos, então, uma
escrita e um escrevente numa relação de mútua constituição não mais
inicial, mas já avançada.
É claro que o enunciado que configura o recorte enunciativo 2b
ainda guarda, em sua superfície, marcas de uma escrita en train de se
faire, de uma escrita em consolidação. Dentre tais marcas, constam
desvios ortográficos decorrentes da substituição de constituintes
(como “trabisseiro” em vez de “travesseiro”) ou da inversão de
SUMÁRIO
264
constituintes (como “proque” em vez de “porque”), além de
inadequações gramaticais oriundas da não concordância de número
(“os presente” em vez de “os presentes”) e de outras convenções
de escrita ainda não fixadas, a exemplo da segmentação gráfica via
espaços em branco (como na forma hipossegmentada “opapainoel”
em vez de “o papai noel”). Porém, é já uma escrita semiotizada e
semantizada, isto é, estruturada em níveis e unidades reconhecíveis
semioticamente – como formas virtuais (signos) do sistema – e
compreensíveis semanticamente – como formas atualizadas
(palavras) no discurso. Há, aqui, uma escrita já conformada “à natureza
articulada da linguagem [da língua] e ao caráter discreto dos seus
elementos”, o que “pode fazer-nos reconhecer, na complexidade das
formas, a arquitetura singular das partes e do todo” (BENVENISTE,
2005 [1962/1964], p. 127, itálicos do autor).
Com efeito, é bem com uma arquitetura singular das partes e do
todo que EMA nos brinda ao lançar mão de um procedimento enunciativo
complexo para organizar seu enunciado escrito: a enumeração. Isso
porque, para a surpresa do outro da alocução falada (GIO, o adulto
fisicamente presente), parte da própria criança a iniciativa de enumerar,
para o outro da alocução escrita (o primo caçula, fisicamente ausente),
as razões da não existência dos três personagens imaginários que
constituem, juntos, o tema do discurso escrito. Isso demonstra uma
relação mais madura de EMA com a escrita, à qual ele se submete ao
inscrever-se em sua regularidade sistêmica, mas na qual ele também se
subjetiva, ao nela inscrever sua singularidade enunciativa, recorrendo
a “procedimentos pelos quais as formas linguísticas da enunciação se
diversificam e se engendram” (BENVENISTE, 2006 [1970], p. 83) em
um arranjo discursivo complexo e singular.
Mas o que pode explicar o recurso, por parte da criança, ao
procedimento enumerativo? Aqui, a noção de esquemas culturais de
Diedrich (no prelo) é providencial. A partir das teses benvenistianas
SUMÁRIO
265
de que “não produzimos a língua fora de certos quadros, de certos
esquemas” (BENVENISTE, 2006 [1968], p. 27) e de que a cultura é
“um conjunto muito complexo de representações [...] um universo de
símbolos integrados numa estrutura específica e que a linguagem
[a língua] manifesta e transmite” (BENVENISTE, 2005 [1963], p. 32),
a autora concebe os esquemas culturais como “direcionadores da
atividade enunciativa do locutor, uma vez que não é possível ao
locutor enunciar sem tais direcionadores, os quais advém da relação
do homem com sua cultura numa sociedade particular” (DIEDRICH,
no prelo, p. 8).
À luz dessa noção de esquemas culturais, arrisco uma hipótese
para o uso do procedimento da enumeração por EMA. Um dos
programas de entretenimento que o menino mais vivenciava, à época
da sessão em que foi coletado o dado contido nos recortes 2a e 2b,
eram canais da plataforma virtual de compartilhamento de vídeos
YouTube. Dentre esses canais, muitos apresentavam conhecimentos
gerais e fatos curiosos, exibindo-os sob a forma de vídeos com cenas
enumeradas (não raro por meio de vinhetas chamativas, para atrair
audiência, do tipo “10 coisas que você precisa saber sobre X... 1ª...
2ª... 3ª...”). Por certo, trata-se de um conhecimento extralinguístico
de minha parte – enquanto pesquisador e familiar que convive com
a criança –, mas um conhecimento não menos legítimo, na medida
em que vai ao encontro tanto da noção de esquemas culturais de
Diedrich (no prelo) quanto da noção de história de enunciações de
Silva (2009). Tal conhecimento e sua mobilização nesse comentário
sobre os recortes de EMA vão ao encontro também de duas das
qualidades que Perroni (1996) atribui a coletas longitudinais como as
deste estudo, quais sejam: (a) a possibilidade de recuperar a história
do dado, por meio da descrição das condições em que foi produzido
e da identificação da constituição histórica do sentido; (b) a assunção,
SUMÁRIO
266
como objeto de estudo, da língua em atividade e da relação que a
criança com ela vai estabelecendo73.
Se minha hipótese procede, nos recortes em questão, EMA
recupera, de sua história de enunciações como ouvinte e espectador de
vídeos do YouTube, o esquema cultural da enumeração, atualizando-o
em sua história de enunciações como escrevente. É a criança
inserindo-se como sujeito no discurso escrito e como participante na
sociedade letrada, ao resgatar, no aqui-agora da escrita, vivências
anteriores na língua e na cultura que reverberam em suas vivências
atuais, direcionando sua atividade enunciativa nestas.
O que está implicado entre os primeiros dois recortes
(de Helena) e os dois últimos (de Emanuel)? Se, como vimos
anteriormente, um estudo de aquisição da linguagem busca
descrever e explicar mudanças na relação da criança com a língua,
como as mudanças na aquisição da escrita podem ser descritas e
explicadas à luz da teoria da linguagem de Émile Benveniste? Como
a escrita se forma e se configura em sistema a partir das relações
intersubjetivas e referenciais instauradas pelo discurso socialmente
situado? São respostas a tais interrogantes que busco em minha
tese de doutoramento, numa jornada de teorização e análise que
contempla não só a reflexão enunciativa benvenistiana, presente em
muitos capítulos dos Problemas de linguística geral I e II, mas também
sua reflexão semiológica, aprofundada no artigo Semiologia da língua
(1969) e nas Últimas aulas no Collège de France (1968 e 1969) – obra
em que a escrita é amplamente discutida por Benveniste.
73 Embora a hipótese aqui aventada para o recurso à enumeração por parte de EMA encontre
eco nas reflexões de Perroni (1996), Silva (2009) e Diedrich (no prelo), essa hipótese
não deixa de tocar em um “calcanhar de Aquiles” de todo estudioso da enunciação
interessado pela relação teoria-empiria, a saber: qual é o estatuto da exterioridade (ou
disso que se entende como “o social” e “o cultural”) numa análise enunciativa? Como
articular extralinguístico e intralinguístico sem despencar no abismo do essencialismo e do
determinismo? A busca por respostas a tais interrogantes deverá me ocupar em estudos
vindouros. Por ora, agradeço aos professores e amigos Valdir do Nascimento Flores e
Daiane Neumann por provocações e interpelações a esse respeito.
SUMÁRIO
267
APONTAMENTOS FINAIS
Neste capítulo, busquei problematizar a metodologia de
coleta e tratamento de dados mais adequada a uma investigação
em aquisição da escrita orientada pela teorização enunciativa de
Émile Benveniste. Tendo como pano de fundo o duplo compromisso
partilhado pelo campo aquisicional e pela perspectiva benvenistiana
– o compromisso com o teórico e com o empírico –, procurei justificar
a opção, em minha pesquisa doutoral, pelo modo naturalístico e pelo
tipo longitudinal, os quais possibilitam o registro da fala e da escrita
vivas, aquelas que irrompem no diálogo espontâneo entre a criança
e os seus parceiros de alocução.
Ainda que, entre tais fala e escrita e seus respectivos registros,
haja um hiato, um intervalo, uma descontinuidade fenomenológica (cf.
ARANTES, 2019, p. 42), defendo a possibilidade de uma continuidade
teórico-metodológica no âmago dos processos de registro. Essa
continuidade é garantida pela unidade constitutiva entre o ponto
de vista e o objeto: se este é por aquele criado, como bem nos
mostrou o mestre de Genebra, então a teoria sustém continuamente
o método, aí inclusos os procedimentos de coleta dos dados (com
o acompanhamento, a condução e a filmagem das sessões) e de
geração dos fatos (com o armazenamento, a segmentação e a
transcrição destes em recortes analíticos).
Mas também o método, numa relação dialética com a teoria,
pode nela produzir efeitos, levando-a a se remodelar para dar conta
das demandas emergentes da investigação em ato. Recordemo-nos
do redimensionamento da unidade de análise que, neste trabalho, fezse necessário: o recorte enunciativo, originalmente concebido por Silva
(2009) em seu estudo de aquisição da língua em sua realização vocal,
teve de ser aqui redefinido para comportar o registro não só da alocução
SUMÁRIO
268
falada entre a criança e o outro, mas também o do enunciado escrito
pela criança nessa alocução. Como esta investigação estabelece um
diálogo entre dois campos – os estudos de aquisição da escrita e os
estudos benvenistianos –, as reflexões teóricas de Benveniste e de
seus seguidores me levam a interrogar a escrita da criança, assim
como a escrita da criança me leva a interrogar tais reflexões. É o teórico
e o empírico se retroalimentando.
Claro está, a defesa de uma tal continuidade teóricometodológica não acarreta a suposição de qualquer coisa como um
“processo pacato”. Afinal, todo o percurso de tratamento do dado,
em um estudo de aquisição da linguagem, nada tem de tranquilo. Ao
pôr-se diante do observável da fala/escrita da criança, o investigador
é surpreendido, de um só golpe, por um efeito de apreensão total do
objeto – visto que “todas as questões se propõem ao mesmo tempo a
propósito de cada fato lingüístico, e que se propõem em primeiro lugar
relativamente ao que se deve admitir como fato, isto é, aos critérios
que o definem como tal” (BENVENISTE, 2005 [1962/1964], p. 127,
itálico do autor) – e por uma realidade marcada pela falta – visto que,
“com relação às regularidades da língua, a fala [a escrita] da criança é
constituída por irregularidades” (SILVA, 2012, p. 563, acréscimo meu).
Diante desse efeito totalitário e dessa realidade faltosa, que
acentuam a extrema complexidade dessa língua marcada por
“turbulências de (sua própria) sistematização” e por “instabilidades
resultantes justamente da instauração de uma ordem: de regulação
das relações entre (zonas da) língua e discurso” (CHACON, 2017,
p. 159-160, parênteses do autor), compete ao linguista “propor uma
ordem ao mesmo tempo nos fenômenos estudados, de maneira
a classificá-los segundo um princípio racional, e nos métodos de
análise, para construir uma descrição coerente, organizada segundo
os mesmos conceitos e os mesmos critérios” (BENVENISTE, 2005
[1962/1964], p. 127).
SUMÁRIO
269
Tais decisões metodológicas são, todas e cada uma delas,
teoricamente balizadas, de modo que é de se indagar – retomando
a mordaz expressão de Perroni (1996, p. 23) – se seria apenas a
psicolinguística que teria uma lata de lixo onde se deposita o
material que não é pela teoria forjado como dado. Ora, da adesão
a um prisma teórico, resulta a adesão aos interesses fenomênicos
desse prisma e a exclusão dos interesses de outros prismas. Assim,
parafraseando a metáfora benvenistiana sobre a relação línguarealidade (cf. BENVENISTE, 2006 [1965], p. 70) e pensando-a à luz da
relação teoria-empiria, não seria um equívoco concluir que os pontos
de vista teóricos, ao criarem seus objetos, não nos fornecem senão
construções diversas do real.
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SUMÁRIO
272
Parte 2
A SOCIEDADE
Parte
2
A SOCIEDADE
Capítulo 10
10
A RECIPROCIDADE COMO NOÇÃO
ESTRUTURANTE EM BENVENISTE
Fábio Aresi
Fábio Aresi
A RECIPROCIDADE
COMO NOÇÃO
ESTRUTURANTE
EM BENVENISTE
DOI: 10.31560/pimentacultural/2020.281.274-307
INTRODUÇÃO
Os estudos mais recentes que se voltam para a reflexão
linguística de Émile Benveniste, seja para dela tratar diretamente, seja
para buscar, nela, subsídios teóricos em suas próprias investigações,
têm, em seu conjunto, colocado em destaque um dado fundamental:
o pensamento benvenistiano é detentor de uma potência e de uma
amplitude teórica que, embora suponha sempre a enunciação, não
se deixa limitar ao estudo desta. O título dado aos dois volumes de
Problemas de linguística geral fornece o mais claro testemunho disso.
Como bem constata Gérard Dessons, “em Benveniste, a arte de
pensar é, antes de tudo, a arte do problema”, ao que complementa:
“É, portanto, enquanto problemas que os objetos da linguística são
tratados” (DESSONS, 2006, p. 10, traduções nossas)74. Vale lembrar
que, de certa forma, isto já se encontra posto logo no prefácio do
primeiro volume da obra acima mencionada, cuja assinatura é do
próprio Benveniste: “Se os apresentamos sob a denominação de
problemas, isso se deve ao fato de trazerem em conjunto, e cada um
em particular, uma contribuição ao grande problema da linguagem,
que se formula nos principais temas tratados” (BENVENISTE,
2005 [1966], prefácio, itálico do autor). Benveniste elenca, dentre
esses temas, “as relações entre o biológico e o cultural, entre a
subjetividade e a socialidade, entre o signo e o objeto, entre o
símbolo e o pensamento” (BENVENISTE, 2005 [1966], prefácio), o
que demonstra, desde já, a amplitude da reflexão proposta. Para
Flores (2017), este “grande problema da linguagem”, que se deixa
observar sob inúmeras perspectivas, pode ser tomado como o fato
de que, para Benveniste, “a linguagem está inextricavelmente ligada
ao homem” (FLORES, 2017, p. 10). Trata-se, portanto, de um princípio
74 No original: “Chez Benveniste, l’art de penser, c’est d’abord l’art du problème”;
“C’est donc en tant que problèmes que les objets de la linguistique sont traités”
(DESSONS, 2006, p. 10).
SUMÁRIO
275
geral, que perpassa toda sua produção intelectual e que, sintetizado
sob a proposição o homem está na língua/linguagem, é revelador do
caráter marcadamente antropológico de seu viés linguístico.
No presente estudo, buscamos contribuir com a visibilidade
desse aspecto antropológico do pensamento de Benveniste, através da
elucidação de uma noção pouco abordada em sua particularidade, mas
que, na hipótese que aqui assumimos, assume uma função estruturante
de sua reflexão linguística: a reciprocidade. A tarefa consiste, portanto,
em abordar o papel da reciprocidade em Benveniste, respondendo-se
à questão de como ela se apresenta em sua formulação teórica, e o que
permite dizer acerca da relação entre língua, homem e sociedade. É
importante ressaltar, de início, que a reciprocidade constitui uma noção
fundamental nos campos da sociologia e da antropologia, sendo a
base do pensamento de autores com os quais Benveniste estabelece
diálogo em alguns de seus estudos mais importantes.
Para dar conta desse objetivo, nosso trabalho se encontra
organizado em duas partes. Na primeira delas, buscamos mostrar
de que maneira a noção de reciprocidade é abordada na reflexão
sociológica e antropológica, através de um breve exame de
pesquisadores cujas ideias orbitam em torno de tal noção, como
é o caso de Georg Simmel, Marcel Mauss, Bronislaw Malinowski
e Claude Lévi-Strauss. Na segunda parte, nosso intuito é o de
demonstrar que um princípio de reciprocidade também subjaz ao
pensamento de Benveniste; e que se torna manifesto em diferentes
aspectos de sua investigação linguística. Em nosso entender, esse
princípio é caracterizador do papel fundante da língua na constituição
do humano. Assim, examinamos textos de Benveniste nos quais a
teorização supõe uma relação de reciprocidade constitutiva, tais
como os que tratam da questão da (inter)subjetividade (categorias
de pessoa e de tempo), do diálogo como instância de “troca”, bem
como os estudos do léxico nos quais a língua pode ser tomada
SUMÁRIO
276
enquanto testemunho da organização social. Por fim, concluímos o
estudo, procurando estabelecer, com base nas revisões efetuadas,
em que medida as relações de reciprocidade que se evidenciam no
pensamento linguístico de Benveniste são reveladoras de uma visão
original sobre o homem e a sociedade.
A RECIPROCIDADE ENQUANTO
PRINCÍPIO SOCIOANTROPOLÓGICO
Conforme afirmamos em nossa introdução, a reciprocidade
constitui uma noção fundamental na história da sociologia e da
antropologia, estando na base da formulação teórica de pesquisadores
consagrados do campo. Como destaca Gouldner (1960),
podemos imediatamente notar a importância atribuída ao
conceito de reciprocidade por pesquisadores como George
Homans, Claude Lévi-Strauss e Raymond Firth, assim como
autores anteriores como Durkheim, Marx, Mauss, Malinowski
e von Wiese, para citar apenas alguns mestres (GOULDNER,
1960, p. 162, tradução nossa)75.
No âmbito da sociologia, o primeiro a pensar a reciprocidade
enquanto o fundamento da realidade social é o sociólogo alemão
Georg Simmel (cf. SABOURIN, 2011). Para ele, as interações entre
os indivíduos supõem um princípio de reciprocidade que governa e
é responsável pela coesão social e pela manutenção da sociedade.
Trata-se, portanto, de um princípio explicativo, válido tanto para as
sociedades arcaicas como para as da modernidade. De fato, Simmel
concebe a sociedade como o resultado de processos de interação
75 No original: “[…] we can readily note the importance attributed to the concept of reciprocity
by such scholars as George Homans, Claude Lévi-Strauss, and Raymond Firth, as well as
by earlier writers as Durkheim, Marx, Mauss, Malinowski, and von Wiese, to name only a few
masters” (GOULDNER, 1960, p. 162).
SUMÁRIO
277
(Wechselwirkung), os quais formam, na consciência dos indivíduos
dessa interação, um sentimento de unidade. Nas palavras do próprio
autor: “Eu vejo uma sociedade sobretudo onde os homens se encontram
em reciprocidade de ação e constituem uma unidade permanente ou
passageira” (SIMMEL, 1896-1897, p. 73, tradução nossa)76. Ou ainda,
conforme explica Vandenberghe (2005): “É preciso que o indivíduo
saiba que, agindo com os outros, ele determina tanto suas ações
quanto é determinado por elas e que esteja consciente de que forma,
com eles, uma unidade de ordem social” (VANDENBERGHE, 2005, p.
87). Constituindo-se mutuamente enquanto indivíduos sociais nesse
processo de interação (o qual não se restringe a relações de interesse
mútuo, podendo também ser de ordem conflitiva ou de dominação),
os homens estabelecem entre si um vínculo ao qual Simmel nomeia
de Vergesellschaftung, ou “sociação”. Assim, a noção de sociedade
por ele instaurada não coincide com aquela que se define por uma
unidade delimitada no espaço, territorialmente, mas configura-se
como o produto das interações sociais de interdependência entre
os indivíduos, o que faz dela uma entidade não fixável no espaço,
e de caráter continuamente mutável. Sua forma de entendimento da
sociedade está, portanto, relacionada aos processos inter-humanos
que lhe são constitutivos. Citando novamente Vandenberghe (2005):
O que interessa a Simmel é o jogo das interações como substrato
vivo do social, como cadinho da sociedade. “A sociedade como
tal”, afirma ele um pouco prematuramente, “não existe” [GSG 11,
p. 24]; há somente indivíduos em interação. As interações são
a condição necessária e suficiente da sociedade. Necessária,
pois, “se suprimirmos todas elas pelo pensamento, não há
mais sociedade” [SE, p. 173, GSG 11, p. 24], e suficiente, pois,
se vários indivíduos entram em reciprocidade de ação, já há
sociedade. […] pode-se dizer que, para Simmel, “a sociedade
existe onde um número de indivíduos entra em interação” [GSG
1, p. 370, GSG 11, p. 17]. (VANDENBERGHE, 2005, p. 90-91).
76 No original: “Je vois une société partout où des hommes se trouvent en réciprocité d’action
et constituent une unité permanente ou passagère” (SIMMEL, 1896-1897, p. 73).
SUMÁRIO
278
Apesar da importância dada à reciprocidade no pensamento
sociológico de Simmel, a noção é normalmente vinculada às
investigações de caráter antropológico, notadamente aquelas
relativas aos fenômenos de “troca” em sociedades arcaicas, tomados
como objeto de estudo por pioneiros do campo, como Malinowski,
Mauss e Lévi-Strauss.
Malinowski é seguramente mais conhecido por sua
revolucionária obra Argonautas do Pacífico Ocidental, publicada
em 1922, produto de sua convivência e estudo de quatro anos (de
1914 a 1918) junto aos povos insulares das Ilhas Trobriand, na costa
leste da Nova Guiné. O principal objeto de seu estudo é o Kula, um
complexo sistema de trocas, o qual é descrito pelo antropólogo da
seguinte forma:
O Kula é uma forma de troca e tem caráter intertribal bastante
amplo; é praticado por comunidades localizadas num extenso
círculo de ilhas que formam um circuito fechado. […] Ao longo
dessa rota artigos de dois tipos – e somente desses dois
– viajam constantemente em direções opostas. No sentido
horário movimentam-se os longos colares feitos de conchas
vermelhas, chamados soulava […]. No sentido oposto, movemse os braceletes feitos de conchas brancas, chamados mwali
[…]. Cada um desses artigos, viajando em seu próprio sentido
no circuito fechado, encontra-se no caminho com os artigos
da classe oposta e é constantemente trocado por eles. Cada
movimento dos artigos do Kula, cada detalhe das transações
é fixado e regulado por uma série de regras e convenções
tradicionais; alguns dos atos do Kula são acompanhados de
elaboradas cerimônias públicas e rituais mágicos. Em cada ilha
e em cada aldeia, um número mais ou menos restrito de homens
participam do Kula – ou seja, recebem os artigos, conservam-nos
consigo durante algum tempo e, por fim, passam-nos adiante.
Cada um dos participantes do Kula recebe periodicamente (mas
não regularmente) um ou vários mwali (braceletes de concha)
ou um soulava (colar de discos feitos de conchas vermelhas)
que deve entregar a um de seus parceiros, do qual recebe em
troca o artigo oposto. Assim, ninguém jamais conserva nenhum
SUMÁRIO
279
artigo consigo por muito tempo. O fato de que uma transação
seja consumada não significa o fim da relação estabelecida
entre os parceiros: a regra é “uma vez no Kula, sempre no
Kula”. A parceria entre dois indivíduos no Kula é permanente,
para toda a vida. Os mwali e os soulava encontram-se sempre
em movimento, vão passando de mão em mão, e não há casos
em que esses artigos fiquem retidos com um só dono. Portanto,
o princípio de “uma vez no Kula, sempre no Kula” aplica-se de
igual forma aos próprios artigos (MALINOWSKI, 1978, p. 75,
aspas e itálicos do autor).
Apesar de a troca cerimonial de colares por braceletes ser o
aspecto central do Kula, esse ato se faz acompanhar, paralelamente,
de numerosas atividades secundárias, de caráter econômico, místico/
religioso, político e diplomático, que se encontram a ele subordinadas.
Através do Kula, “os nativos realizam um comércio comum, negociando
de uma ilha para a outra bens que, de modo geral, não são fabricados
pelo distrito que os importa, mas são indispensáveis à sua economia”
(MALINOWSKI, 1978, p. 75). Além disso, estão associadas ao Kula
atividades de suma importância, como “a construção das canoas
para navegação em alto-mar usadas nas expedições, certos tipos
de cerimônias mortuárias de grande pompa, e tabus preparatórios”
(MALINOWSKI, 1978, p. 75). Desse modo, Malinowski considera o Kula
como sendo uma instituição enorme e extraordinariamente complexa,
que não apenas engloba uma extensa área geográfica, mas também é
responsável por uma multiplicidade de funções: “Ela vincula um grande
número de tribos e abarca em enorme conjunto de atividades interrelacionadas e interdependentes de modo a formar um todo orgânico”
(MALINOWSKI, 1978, p. 76). Percebe-se então, o quanto a sociedade
organizada em torno do Kula constitui-se a partir de um princípio de
reciprocidade, que está na base dos atos de troca que tal sistema
mobiliza. A esse princípio de reciprocidade, inerente ao sistema de
trocas do Kula, estão indissociavelmente ligados todos os aspectos da
vida social dos povos que o praticam, desde os mais concretos, como
o desenvolvimento e circulação de ferramentas e meios materiais de
SUMÁRIO
280
subsistência (em uma palavra, a economia), até os mais simbólicos,
como as relações de hierarquia e prestígio social, os acordos de paz,
e as práticas religiosas.
Valendo-se das descobertas de Malinowski sobre o Kula na
Melanésia, além da descrição feita por Franz Boas, entre os nativos
ameríndios, do potlatch77, dentre outros, o sociólogo e antropólogo
francês Marcel Mauss concebe a organização social como o
resultado de uma tríplice obrigação do homem: a de dar, receber e
retribuir. A reciprocidade atua, assim, como um princípio explicativo
da organização social em seu Ensaio sobre a dádiva: forma e razão
da troca nas sociedades arcaicas, publicado em 192478. Para o autor,
a sociedade se organiza a partir do que denomina de “dom” ou
“dádiva”, entendidos como um sistema de reciprocidades de caráter
interpessoal, composto pelos atos de dar, receber e retribuir. Nas
palavras de Martins (2005):
Este sistema, que se expande ou se retrai a partir de uma tríplice
obrigação coletiva de doação, de recebimento e devolução de
bens simbólicos e materiais, é conhecido como dom ou dádiva.
[…] A compreensão da dádiva como o sistema de trocas básico
da vida social permite romper com o modelo dicotômico típico
77 O termo potlatch está relacionado a uma prática ritual de tribos ameríndias “na qual
homens usam presentes como maneira de indicar seu status em relação a outros homens.
É uma forma de bravata com a intenção de demonstrar como um dado homem é rico e
generoso, às expensas dos que recebem os presentes. Os contemplados, por seu lado,
sentem-se na obrigação de agir da mesma maneira em algum ponto do futuro, de modo a
poder assumir para uma posição superior” (JOHNSON, 1995, p. 209, tradução nossa). No
original: “potlatch is a ritual practice in which men use gifts as a way to indicate their status
in relation to other men. It is a form of boasting intended to show how wealthy and generous
a man is at the expense of those who receive the gifts. Recipients, in turn, feel compelled to
act as hosts of their own at some future time so that they might gain the upper hand”.
78 É importante destacar que “reciprocidade” não constitui um termo teórico para Mauss.
No entanto, reconhece-se o quanto a noção é estruturante em seu pensamento, o que
faz com que seja tradicionalmente atribuído a ele o nascimento da chamada “teoria
da reciprocidade”. Nas palavras de Sabourin (2011): “Mauss é mais conhecido por ter
redescoberto a dádiva nas sociedades primitivas, do que por sua contribuição à noção
de reciprocidade. […] Mas demonstra, igualmente, através da formulação da tríplice
obrigação – dar, receber e retribuir –, que é a reciprocidade que está no início dos ciclos de
dádiva” (SABOURIN, 2011, p. 26, itálicos do autor).
SUMÁRIO
281
da modernidade, pelo qual a sociedade ou seria fruto de uma
ação planificadora do Estado ou do movimento fluente do
mercado (MARTINS, 2005, p. 52-53).
Mauss reconhece, dessa maneira, na obrigação dos atos de
dar, receber e retribuir próprios das sociedades arcaicas, um princípio
geral, constitutivo da realidade humana, e do qual depende a sociedade
como um todo. Isso o leva a considerar a sociedade como um “sistema
de prestações totais”:
[…] o que eles trocam não são exclusivamente bens e riquezas,
bens móveis e imóveis, coisas úteis economicamente. São,
antes de tudo, amabilidades, banquetes, ritos, serviços
militares, mulheres, crianças, danças, festas, feiras, dos quais o
mercado é apenas um dos momentos, e nos quais a circulação
de riquezas não é senão um dos termos de um contrato bem
mais geral e bem mais permanente. Enfim, essas prestações
e contraprestações se estabelecem de uma forma sobretudo
voluntária, por meio de regalos, presentes, embora elas sejam
no fundo rigorosamente obrigatórias, sob pena de guerra
privada ou pública. Propusemos chamar tudo isso o sistema
das prestações totais (MAUSS, 2003, p. 191, itálicos do autor).
Ou seja, como aponta o antropólogo Claude Lévi-Strauss (1982),
[…] esta forma primitiva das trocas não tem somente, nem
essencialmente, caráter econômico, mas coloca-nos em face
do que chama, numa expressão feliz, “um fato social total”, isto
é, dotado de significação simultaneamente social e religiosa,
mágica e econômica, utilitária e sentimental, jurídica e moral
(LÉVI-STRAUSS, 1982, p. 92, aspas do autor).
Tal como notamos no caso dos povos melanésios estudados
por Malinowski, o sistema da troca reúne e articula todos os aspectos
da vida social de maneira indissociável, à moda de uma grande
instituição. Como afirma Martins (2005), “Mauss compreendeu que a
sociedade é primeiramente instituída por uma dimensão simbólica, e
que existe uma estreita ligação entre o simbolismo e a obrigação de
dar, receber e retribuir em todas as sociedades, independentemente
SUMÁRIO
282
de as mesmas serem modernas ou tradicionais” (MARTINS, 2005, p.
55). O contrato social do qual depende a sociedade assenta-se, pois,
sobre um princípio de reciprocidade que rege as relações de troca,
das quais as sociedades arcaicas oferecem o mais nítido testemunho.
A reflexão sobre a troca é levada adiante por Lévi-Strauss.
Inclusive, é ele próprio quem assina o Texto de introdução à obra
de Mauss, prefácio da obra maussiana Sociologia e antropologia,
publicada em 1950. Nele, Lévi-Strauss exalta o estudo de Mauss sobre
a dádiva, tomando-o como o primeiro esforço na história da etnologia
a “transcender a observação empírica e atingir realidades mais
profundas. Pela primeira vez, o social cessa de pertencer ao domínio
da qualidade pura […] e torna-se um sistema” (LÉVI-STRAUSS, in
MAUSS, 2003, p. 30). Uma simples vista d’olhos sobre a obra mais
célebre de Lévi-Strauss, As estruturas elementares do parentesco,
de 194979, é suficiente para atestar a presença e a importância das
noções de reciprocidade e de troca no pensamento do antropólogo.
Como bem constata Sabourin (2011), “Lévi-Strauss reconhece […] a
reciprocidade como estrutura elementar, pelo menos do parentesco,
mas para submetê-la a uma estrutura generalizada da troca, inclusive
sob suas formas simbólicas” (SABOURIN, 2011, p. 27). Também aqui,
o princípio de reciprocidade se manifesta através das relações de
troca. Identificamo-la na própria proibição do incesto e nas decorrentes
regras que regulam e estruturam as trocas matrimoniais e as relações
de parentesco, em suas mais diversas modalidades:
A proibição do uso sexual da filha ou da irmã obriga a dar em
casamento a filha ou a irmã a um outro homem e, ao mesmo
tempo, cria um direito sobre a filha ou a irmã desse outro
homem. Assim, todas as estipulações negativas da proibição
têm uma compensação positiva. A proibição equivale a uma
79 A título de curiosidade, é válido mencionar que a obra As estruturas elementares do
parentesco é resultado de uma tese de doutorado, defendida por Lévi-Strauss em 1948,
e para a qual Émile Benveniste foi convidado como membro da banca avaliadora (cf.
DOSSE, 2007, p. 49).
SUMÁRIO
283
obrigação, e a renúncia abre caminho a uma revindicação. […]
A proibição do incesto não é somente […] uma interdição. Ao
mesmo tempo que proíbe, ordena. A proibição do incesto, como
a exogamia que é sua expressão social ampliada, constitui uma
regra de reciprocidade (LÉVI-STRAUSS, 1982, p. 91).
Toda a pesquisa de Lévi-Strauss a respeito das estruturas
elementares que estão na base das relações de parentesco pode ser
resumida em um laborioso esforço de demonstrar que, na origem de
tais estruturas, está um princípio de troca e de reciprocidade:
Assim, é sempre um sistema de troca que encontramos na
origem das regras do casamento, mesmo daquelas cuja
aparente singularidade parece poder justificar-se somente
por uma interpretação simultaneamente especial e arbitrária.
[…] seja em forma direta ou indireta, seja em forma global ou
especial, mediata ou postergada, explícita ou implícita, fechada
ou aberta, concreta ou simbólica, é a troca, sempre a troca,
que aparece como base fundamental e comum de todas as
modalidades da instituição matrimonial. Se estas modalidades
podem ser reunidas sob a designação geral de exogamia […], é
com a condição de perceber, atrás da expressão superficialmente
negativa da regra da exogamia, a finalidade que tende a garantir,
pela proibição do casamento nos graus interditos, a circulação
total e contínua desses bens do grupo por excelência que são
as mulheres e suas filhas (LÉVI-STRAUSS, 1982, p. 519-520).
Ademais, resgatando a investigação de Mauss acerca da dádiva,
Lévi-Strauss salienta que, apesar de se mostrarem de maneira mais
evidente nas sociedades arcaicas, as relações de donações recíprocas
que caracterizam as trocas matrimoniais também são responsáveis
por outros aspectos importantes da vida moderna. Diz ele:
Sabemos que existem certos tipos de objetos especialmente
próprios, na maioria das vezes pelo caráter não utilitário, para
serem dados como presentes. Em alguns países ibéricos,
estes objetos só podem ser encontrados, com todo seu luxo
e diversidade, em lojas instaladas em função desse destino
privilegiado, as “casas de regalias” ou “casas de presentes”, a
que correspondem as “gift shops” do mundo anglo-saxão. Ora,
SUMÁRIO
284
não é preciso dizer que os presentes, assim como os convites,
que são não exclusivamente, mas também distribuições liberais
de alimentos e bebidas, “se retribuem”. Estamos, portanto,
também aqui em pleno domínio da reciprocidade. […] Festas
e cerimônias regulam também entre nós o retorno periódico e o
estilo tradicional de vastas operações de troca (LÉVI-STRAUSS,
1982, p. 95-96, aspas do autor).
Ainda que sumárias (e possivelmente redutoras), as observações
que evocamos aqui nos permitem observar o quanto a reciprocidade,
manifestada através das relações de troca, constitui, para os campos da
sociologia e da antropologia, um princípio elementar de sociabilidade,
o que faz com que, para os pesquisadores aqui convocados, seja
impossível pensar o homem e a sociedade como entidades externas e
independentes da relação interpessoal que as constitui mutuamente.
Longe de desejar oferecer uma revisão pormenorizada da vasta
pesquisa efetuada pelos autores mobilizados, nossa breve menção
às suas principais ideias serve ao único propósito de apresentar a
importância da noção de reciprocidade para a reflexão sociológica e
antropológica, tomando-a como o ponto de partida para pensar de que
forma tal noção é também estruturante do raciocínio linguístico de Émile
Benveniste, uma vez que, para este, a língua está indissociavelmente
ligada à natureza do homem.
A RECIPROCIDADE EM BENVENISTE
Se a reciprocidade se encontra no centro do debate sociológico,
podemos afirmar o mesmo com relação ao pensamento linguístico de
Benveniste? É a esta questão a que passamos a nos dedicar a partir
daqui. Procuramos, nas páginas que se seguem, demonstrar que a
reciprocidade também opera no modo como o linguista entende a
relação entre língua, homem e sociedade. Para tanto, nossa atenção
SUMÁRIO
285
se detém sobre três aspectos: o exame das categorias linguísticas
de “pessoa” e “tempo” como condição da (inter)subjetividade; dois
estudos do vocabulário das línguas indo-europeias que testemunham
o princípio de reciprocidade impresso na língua; e a investigação sobre
a noção de “troca” que se evidencia na consideração da língua em sua
instância de discurso.
Pessoa e tempo como índices de
reciprocidade na e pela língua
Para Benveniste, a categoria da “pessoa” linguística
é fundamental para entendermos tanto o funcionamento da
língua quanto a função que esta desempenha na constituição
intersubjetiva do sujeito. O artigo Da subjetividade na linguagem
(1958) expõem, desde seu início, esse papel fundante. Partindo de
uma problematização de uma visão que toma a linguagem80 como
“instrumento de comunicação”, Benveniste afirma:
Na realidade, a comparação da linguagem com um
instrumento […] deve encher-nos de desconfiança, como
toda noção simplista a respeito da linguagem. Falar de
instrumento, é pôr em oposição o homem e a natureza.
A picareta, a flecha, a roda não estão na natureza. São
fabricações. A linguagem está na natureza do homem, que
não a fabricou (BENVENISTE, 2005 [1966], p. 285).
Isso se evidencia pelo fato de que “não atingimos nunca o
homem separado da linguagem e não o vemos nunca inventando-a”
80 Benveniste faz, nesse artigo, largo uso do termo “linguagem” para se referir à “língua”,
tomada de forma geral, enquanto sistema de signos linguísticos. O uso do vocábulo
“língua”, nesse texto em específico, parece estar mais ligado ao sentido de língua empírica,
idioma, como atesta a seguinte passagem: “Falamos realmente da linguagem e não apenas
de línguas particulares. Os fatos das línguas particulares, que concordam, testemunham
pela linguagem” (BENVENISTE, 2005 [1966], p. 287). Sabemos o quanto essa flutuação
terminológica é característica da produção teórica do linguista (cf. FLORES, 2013).
SUMÁRIO
286
(BENVENISTE, 2005 [1966], p. 285). A constatação seguinte é da
mais suma importância: “Não atingimos jamais o homem reduzido
a si mesmo e procurando conceber a existência do outro. É um
homem falando que encontramos no mundo, um homem falando com
outro homem, e a linguagem ensina a própria definição do homem”
(BENVENISTE, 2005 [1966], p. 285, itálicos nossos). Está posto, desde
já, o aspecto inter-humano que caracteriza a condição de realização
da língua, e, mutuamente, a do próprio homem. Benveniste propõe
se que busque o fundamento dessa condição no interior da própria
língua: “É na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui
como sujeito; porque só a linguagem fundamenta na realidade, na sua
realidade que é a do ser, o conceito de ‘ego’” (BENVENISTE, 2005
[1966], p. 286, itálico do autor). Assim, é sob a fórmula “É ‘ego’ que
diz ‘ego’” (BENVENISTE, 1966, p. 260, tradução nossa, aspas e itálico
do autor)81 que Benveniste concebe o fundamento da subjetividade;
um fundamento que é de ordem linguística, uma vez que se encontra
determinado pela categoria linguística da “pessoa”.
É justamente ao explicitar a configuração estrutural da categoria
de pessoa, responsável pela emergência da subjetividade, que
percebemos o princípio de reciprocidade que lhe é constitutivo. Nas
palavras de Benveniste:
A consciência de si só é possível se experimentada por contraste.
Eu não emprego eu a não ser dirigindo-me a alguém, que será
na minha alocução um tu. Essa condição de diálogo é que é
constitutiva da pessoa, pois implica em reciprocidade – que
eu me torne tu na alocução daquele que por sua vez se designa
por eu. Vemos aí um princípio cujas consequências é preciso
desenvolver em todas as direções (BENVENISTE, 2005 [1966],
p. 286, itálicos do autor, negritos nossos).
81 A citação fonte desta nota não corresponde exatamente à versão traduzida para o
português, uma vez que, nela, a expressão é “diz ego”, com “ego” em itálico e sem aspas.
No texto original em francês, o que lemos é: “Est « ego » qui dit « ego »” (BENVENISTE,
1966, p. 260). Preferimos, portanto, fazer corresponder a passagem ao original.
SUMÁRIO
287
Como bem avalia Flores (2013), “Benveniste apresenta a
linguagem […] como condição de existência do homem e, como
tal, sempre referida ao outro, o que acaba por vincular linguagem e
intersubjetividade” (FLORES, 2013, p. 115-116, itálicos do autor). Isso
faz da instância de exercício da língua um pleno lugar de troca, no
qual a reciprocidade se dá de maneira mais profunda e estruturante82.
Para Benveniste, “a polaridade das pessoas [a relação eu-tu] é na
linguagem a condição fundamental, cujo processo de comunicação,
de que partimos, é apenas uma consequência totalmente pragmática”
(BENVENISTE, 2005 [1966], p. 286, acréscimo nosso). Dessa forma,
constatamos, desde já, que a reflexão de Benveniste se coaduna
com a de pensadores que veem na reciprocidade uma condição
elementar do homem e da sociedade. O caráter revolucionário de seu
pensamento, no entanto, reside no fato de atribuir à língua o fundamento
primeiro dessa condição. O princípio de reciprocidade está, portanto,
em Benveniste, intrinsecamente ligado à noção de intersubjetividade
fundada na linguagem. A partir desse princípio, inerente à língua, o
linguista pensa poder também definir a condição da diferenciação
entre o indivíduo e a sociedade, pauta central na discussão sociológica
em torno da reciprocidade:
Caem assim as velhas antinomias do “eu” e do “outro”, do
indivíduo e da sociedade. Dualidade que é ilegítimo e errôneo
reduzir a um só termo original, quer esse termo único seja o
eu, que deveria estar instalado na sua própria consciência para
abrir-se então à do “próximo”, ou seja, ao contrário, a sociedade,
que preexistiria como totalidade ao indivíduo e da qual este só
se teria destacado à medida que adquirisse a consciência de si
82 Vale ressaltar que a noção de “troca” aqui evocada não se limita ao sentido material, como
uma troca de mercadorias, estando mais ligada à ideia de reciprocidade, tal como definida
até aqui. Esse adendo é importante na medida em que o próprio Benveniste parece
redimensionar o valor da noção de troca para além de uma visão meramente “instrumental”
e pragmática, ao afirmar, na introdução mesma de Da subjetividade na linguagem (1958):
“Seguramente, na prática cotidiana, o vaivém da palavra sugere uma troca, portanto uma
‘coisa’ que trocaríamos, e parece, pois, assumir uma função instrumental ou veicular que
estamos prontos a hipostasiar num ‘objeto’. Ainda uma vez, porém, esse papel volta à
palavra” (BENVENISTE, 2005 [1966], p. 285).
SUMÁRIO
288
mesmo. É numa realidade dialética que englobe os dois termos
e os defina pela relação mútua que se descobre o fundamento
linguístico da subjetividade (BENVENISTE, 2005 [1966], p. 287,
aspas e itálicos do autor, negritos nossos).
Essa reflexão mais ampla sobre a categoria de pessoa é
tratada por Benveniste de maneira mais detida no texto Estrutura da
língua e estrutura da sociedade (1968). Nele, o linguista toma como
objeto a relação entre língua e sociedade, abordando-a desde um
ponto de vista “semiológico”, isto é, o da “relação do interpretante
com o interpretado” (BENVENISTE, 2006 [1974], p. 97). Assim, como
uma das formas de demonstrar que a dupla proposição semiológica
de que “a língua é o interpretante da sociedade” e “a língua contém
a sociedade” (BENVENISTE, 2006 [1974], p. 97), Benveniste retoma
sua teorização acerca da categoria de “pessoa”, concebendo-a
como “a base constante e necessária da diferenciação entre o
indivíduo e a sociedade” (BENVENISTE, 2006 [1974], p. 98). Como
o autor mesmo explica:
Com efeito, a língua fornece ao falante a estrutura formal de
base, que permite o exercício da fala. Ela fornece o instrumento
linguístico que assegura o duplo funcionamento subjetivo e
referencial do discurso: é a distinção indispensável, sempre
presente em não importa qual língua, em não importa qual
sociedade ou época, entre o eu e o não-eu, operada por índices
especiais que são constantes na língua e que só servem a este
uso, as formas chamadas em gramática de pronomes, que
realizam uma dupla oposição, a oposição do “eu” ao “tu” e a
oposição do sistema “eu/tu” a “ele”.
A primeira, a oposição “eu-tu”, é uma estrutura de alocução
pessoal que é exclusivamente inter-humana.
[…] A segunda oposição, a do “eu-tu”/“ele”, opondo a pessoa à
não-pessoa, efetua uma operação de referência e fundamenta a
possibilidade do discurso sobre alguma coisa, sobre o mundo,
sobre o que não é a alocução. Temos aí o fundamento sobre o
qual repousa o duplo sistema relacional da língua (BENVENISTE,
2006 [1974], p. 101, aspas do autor).
SUMÁRIO
289
Vemos, além disso, que a oposição que se estabelece entre
as pessoas “eu-tu” e a não pessoa “ele”, fundamento da referência
linguística, é também reveladora de um princípio de reciprocidade,
uma vez que pressupõe, entre os interlocutores, uma relação de
correferência, conforme Benveniste explicita no artigo O aparelho
formal da enunciação (1970):
[…] na enunciação, a língua se acha empregada para a
expressão de uma certa relação com o mundo. A condição
mesma dessa mobilização e dessa apropriação da língua
é, para o locutor, a necessidade de referir pelo discurso, e,
para o outro, a possibilidade de correferir identicamente, no
consenso pragmático que faz de cada locutor um co-locutor
(BENVENISTE, 2006 [1974], p. 84).
Necessariamente ligada à categoria de “pessoa”, está a
categoria linguística de “tempo”, a qual, apesar de também ser
apresentada em Da subjetividade na linguagem (1958), torna-se o
objeto principal da análise de Benveniste somente em A linguagem e a
experiência humana (1965). Nesse texto, o linguista mostra que a língua
também é responsável pela experiência humana da temporalidade,
que se estrutura a partir do presente inerente à realização da língua
no discurso: “O que o tempo linguístico tem de singular é o fato de
estar organicamente ligado ao exercício da fala, o fato de se definir
e de se organizar como função do discurso” (BENVENISTE, 2006
[1974], p. 74). Por estar intimamente ligado ao exercício da fala, o
tempo linguístico encontra sua forma axial e geradora no presente, o
qual coincide sempre com a instância de discurso em que ele ocorre.
Torna-se, então, o fundamento a partir do qual se dão as oposições
temporais da língua e nosso reconhecimento do que é anterior e
posterior à instância de discurso:
Chega-se assim a esta constatação — surpreendente à primeira
vista, mas profundamente de acordo com a natureza real da
linguagem — de que o único tempo inerente à língua é o presente
axial do discurso, e que este presente é implícito. Ele determina
SUMÁRIO
290
duas outras referências temporais; estas são necessariamente
explicitadas em um significante e em retorno fazem aparecer
o presente como uma linha de separação entre o que não é
mais presente e o que vai sê-lo. Estas duas referências não se
relacionam ao tempo, mas as visões sobre o tempo, projetadas
para trás e para frente a partir do ponto presente. Esta parece
ser a experiência fundamental do tempo, de que todas as
línguas dão testemunho à sua maneira. Ela informa os sistemas
temporais concretos e notadamente a organização formal dos
diferentes sistemas verbais (BENVENISTE, 2006 [1974], p. 76).
O caráter de reciprocidade dessa relação reside em uma
condição que, a princípio, poderia ser tomada como impossível devido
à própria natureza de sua realização. Benveniste questiona: se o tempo
linguístico emerge de um ato individual de utilização da língua, se a
instância específica de que resulta o presente da língua é a cada vez
nova e relativa ao locutor que lhe dá origem, não deveria a temporalidade
se realizar em um universo restritamente intrapessoal, como uma
experiência irremediavelmente subjetiva e de impossível transmissão?
Como resposta, o linguista postula que algo muito singular se produz
durante o ato de enunciação, contrariando a impossibilidade lógica:
[…] a temporalidade que é minha quando ela organiza o meu
discurso, é aceita sem dificuldade como sua por meu interlocutor.
Meu “hoje” se converte em seu “hoje”, ainda que ele não o
tenha instaurado em seu próprio discurso, e meu “ontem” em
seu “ontem”. Reciprocamente, quando ele falar em resposta,
eu converterei, tornando-me receptor, sua temporalidade
na minha. Esta parece ser a condição de inteligibilidade da
linguagem, revelada pela linguagem: ela consiste no fato de que
a temporalidade do locutor, ainda que literalmente estranha e
inacessível ao receptor, é identificada por este à temporalidade
que informa sua própria fala quando ele se torna, por sua vez,
locutor (BENVENISTE, 2006 [1974], p. 77-78, aspas do autor).
O tempo linguístico constitui, desse modo, também um fator
de intersubjetividade, marcado por um princípio de reciprocidade
inerente à troca linguística, e do qual depende a comunicação
SUMÁRIO
291
humana e tudo o que lhe é decorrente. É com esta conclusão que
Benveniste encerra seu texto A linguagem e a experiência humana
(1965): “Por aí se reflete na língua a experiência de uma relação
primordial, constante, indefinidamente reversível, entre o falante e
seu parceiro. Em última análise, é sempre ao ato de fala no processo
de troca que remete a experiência humana inscrita na linguagem”
(BENVENISTE, 2006 [1974], p. 80).
O diálogo como lugar de reciprocidade fundante
Intimamente relacionado com a teorização acerca das categorias linguísticas de “pessoa” e “tempo” está o que Benveniste denomina, em seu texto O aparelho formal da enunciação (1970), de “o quadro
figurativo da enunciação” (BENVENISTE, 2006 [1974], p. 87, itálicos do
autor), caracterizador da instância enunciativa enquanto “acentuação
da relação discursiva com o parceiro, seja este real ou imaginado, individual ou coletivo” (BENVENISTE, 2006 [1974], p. 87, itálicos do autor).
O linguista o descreve da seguinte forma:
Como forma de discurso, a enunciação coloca duas ‘figuras’
igualmente necessárias, uma, origem, a outra, fim da enunciação.
É a estrutura do diálogo. Duas figuras na posição de parceiros
são alternativamente protagonistas da enunciação. Este quadro
é dado necessariamente com a definição da enunciação
(BENVENISTE, 2006 [1974], p. 87, itálico do autor).
Assim, o circuito de comunicação que se estabelece a
cada ato de utilização da língua, que é previsto e assegurado pela
configuração da própria língua, supõe necessariamente uma relação
de troca mútua. No texto em questão, Benveniste traz, como exemplos
a serem examinados, a disputa verbal dos merinas de Madagascar,
chamada hain-teny, a situação de monólogo e a troca linguística de
função inteiramente social descrita por Malinowski sob o nome de
“comunhão fática”.
SUMÁRIO
292
Sobre o primeiro dos exemplos, o linguista afirma que, apesar
da aparência estrutural e de envolver o uso da língua, este “não
se trata na verdade nem de diálogo nem de enunciação”, uma vez
que “não há uma única referência explícita ao objeto de debate”
(BENVENISTE, 2006 [1974], p. 87). Ainda assim, notamos aqui
uma relação que se estabelece por meio de trocas recíprocas, um
provérbio que é falado ao parceiro e que exige um provérbio em
retribuição. Diálogo ou não, estamos, aqui, diante de uma relação
de reciprocidade na qual a língua figura quase que à moda de um
dom: uma espécie de potlatch linguístico.
O monólogo, do lado oposto, apesar de não ter uma aparência
de diálogo, “procede claramente da enunciação”, uma vez que se
configura como um “diálogo interiorizado […], entre um eu locutor e
um eu ouvinte” (BENVENISTE, 2006 [1974], p. 87). Dessa maneira,
mesmo que, empiricamente, a cena enunciativa seja composta por
apenas um indivíduo, o monólogo não deixa de sugerir uma relação
de troca entre as duas “figuras”, subjacentes à estrutura do diálogo.
Benveniste deixa em aberto o estatuto da “comunhão fática”
apresentada por Malinowski, esta “relação pessoal criada, mantida, por
uma forma convencional de enunciação que se volta sobre si mesma,
que se satisfaz em sua realização, não comportando nem objeto, nem
finalidade, nem mensagem, pura enunciação de palavras combinadas,
repetidas por cada um dos enunciadores” (BENVENISTE, 2006 [1974],
p. 90), limitando-se a alocá-la em uma situação de “limite do ‘diálogo’”
(BENVENISTE, 2006 [1974], p. 90, aspas do autor).
Como bem observa Flores (2013), essas páginas finais do artigo
de 1970 são intrigantes: “[...] nelas, Benveniste fala sobre coisas que,
aparentemente, têm pouca coesão com o caminho adotado no texto”,
tendo “mais proximidade com as questões antropológicas da reflexão
de Benveniste do que propriamente com as discussões em torno do
projeto enunciativo” (FLORES, 2013, p. 176). Tal estranhamento é
SUMÁRIO
293
revelador do fato de que, ao tratar da enunciação desde seu “quadro
figurativo”, o linguista passa a vislumbrar a atualização da língua em
discurso a partir de um ponto de vista mais “social”, mais relativo à
vivência humana em sociedade, o que aproxima este desfecho de O
aparelho formal da enunciação (1970) das reflexões empreendidas por
Benveniste em Estrutura da língua e estrutura da sociedade (1968) e
Semiologia da língua (1969).
Também encontramos a reciprocidade inerente ao diálogo como
um dos traços distintivos elencados por Benveniste para diferenciar
a linguagem humana da comunicação animal, no texto Comunicação
animal e linguagem humana (1952), em que o linguista estabelece um
rico debate com o zoólogo alemão Karl von Frisch (1886-1982) acerca
do estatuto da comunicação das abelhas. Ele afirma, como uma diferença capital, que “a mensagem das abelhas não provoca nenhuma
reposta do ambiente mas apenas uma certa conduta, que não é uma
resposta”. Assim, “isso significa que as abelhas não conhecem o diálogo, que é a condição da linguagem humana. Falamos com outros que
falam, essa é a realidade humana” (BENVENISTE, 2005 [1966], p. 65).
Podemos concluir, portanto, que a instância de discurso se
configura, em função de sua própria estrutura, como o lugar de troca
por excelência, no qual a reciprocidade se realiza de forma mais
profunda e constitutiva, uma vez que se liga à própria instauração do
homem enquanto ser de linguagem. Ora, é justamente esta ideia de
troca recíproca que está na base da função antropológica que a língua
desempenha, tal como Benveniste expõe em Vista d’olhos sobre o
desenvolvimento da linguística (1963): “[…] a situação inerente ao
exercício da linguagem, que é a da troca e do diálogo, confere ao
ato de discurso dupla função: para o locutor, representa a realidade;
para o ouvinte, recria a realidade. Isto faz da linguagem o próprio
instrumento da comunicação intersubjetiva” (BENVENISTE, 2005
[1966], p. 26, itálicos nossos). Ou ainda, como o linguista postula
poucas linhas depois:
SUMÁRIO
294
Cada locutor não pode propor-se como sujeito sem implicar
o outro, o parceiro que, dotado da mesma língua, tem em
comum o mesmo repertório de formas, a mesma sintaxe
de enunciação e igual maneira de organizar o conteúdo. A
partir da função linguística, e em virtude da polaridade eu :
tu, indivíduo e sociedade não são mais termos contraditórios,
mas termos complementares (BENVENISTE, 2005 [1966], p.
27, itálicos do autor).
Chegamos, portanto, através do princípio de reciprocidade
que governa a relação entre as pessoas linguísticas eu-tu e cria a
possibilidade do diálogo, à própria constituição mútua do indivíduo
e da coletividade, polaridade dialética a partir da qual se organiza a
sociedade. Todos os exemplos de Benveniste atestam essa função
primordial da língua.
O vocabulário como testemunho da reciprocidade
Não constitui nenhuma novidade informar sobre a vasta
produção acadêmica de Benveniste no âmbito do comparativismo,
em especial no domínio do indo-europeu, como atestam obras
importantes, a exemplo de Origines de la formation des noms en indoeuropéen (1935), Noms d’agent et noms d’action en indo-européen
(1948), e dos dois volumes de O vocabulário das instituições indoeuropeias (1969). No que diz respeito aos Problemas de linguística
geral (1966; 1974), encontramos uma seção inteira (a sexta e
última parte, em ambos os volumes) dedicada ao conjunto de
textos descritivos sob o título de “Léxico e cultura”. Desse modo, o
vocabulário constitui, para o linguista, um vasto e prolífero campo de
estudos, o qual, segundo ele próprio declara em Estrutura da língua e
estrutura da sociedade (1968), “conserva testemunhos insubstituíveis
sobre as formas e as fases da organização social, sobre os regimes
políticos, sobre os modos de produção que foram sucessiva ou
SUMÁRIO
295
simultaneamente empregados, etc” (BENVENISTE, 2006 [1974], p.
100). Se assim é, podemos supor que esse “semantismo social”
instaurado pela atividade linguageira apresenta também testemunhos
do princípio de reciprocidade que rege as relações interpessoais na
base da sociedade. De fato, é possível encontrá-los a todo instante
nas descrições semânticas de Benveniste. Neste estudo, deter-nosemos, a título de demonstração, sobre dois desses trabalhos, a
saber, os artigos Dom e troca no vocabulário indo-europeu (1951) e
Dois modelos linguísticos da cidade (1970).
O primeiro dos dois textos não poderia ser mais explícito
em seu propósito, e também no diálogo que subjaz à sua reflexão.
Publicado pela primeira vez em 1951 na revista francesa L’année
sociologique, Benveniste procura analisar as noções de “dom” e
“troca” na sociedade indo-europeia através dos testemunhos que
lhe oferece o vocabulário das línguas indo-europeias. O contexto
de sua publicação é importante, uma vez que se insere na temática
abordada pelo linguista, e lhe dá o ponto de partida de sua análise.
Ora, Benveniste publica seu estudo em uma revista de sociologia, e
aborda, desde um ponto de vista linguístico, um tema cujo surgimento
está indissociavelmente ligado à figura de Marcel Mauss, conforme
vimos na primeira parte do presente trabalho83.
É justamente a partir do estudo de Mauss que Benveniste inicia
sua investigação, reconhecendo a importância e o mérito da pesquisa
do sociólogo francês, mas acrescentando que sua demonstração
se funda sobre sociedades arcaicas, as quais lhe forneceram dados
maciços e concludentes. No entanto, quando se trata de “verificar esse
mecanismo nas sociedades antigas, particularmente no mundo indo83 Soma-se a isso o fato de que a edição da revista L’année sociologique na qual Benveniste
publica é a de 1951, ano posterior à morte de Mauss. Desse modo, assim como o texto
de Henry Lévy-Bruhl, publicado na mesma edição e intitulado “In Memoriam a Marcel
Mauss”, podemos considerar a presença, ali, do estudo de Benveniste sobre as noções
maussianas de “dom” e “troca”, também como uma forma de homenagem póstuma à
figura do sociólogo.
SUMÁRIO
296
europeu, os exemplos comprovantes tornam-se muito mais raros”
(BENVENISTE, 2005 [1966], p. 348). É aqui que surge a contribuição
de Benveniste: aos registros etnográficos e documentos arqueológicos
que servem de dados às investigações acerca da sociedade, Benveniste
soma outro elemento:
Temos, entretanto, fatos menos aparentes, tanto mais precisos
quanto não correm o risco de haver sido deformados por
interpretações conscientes. São os apresentados pelo
vocabulário das línguas indo-europeias. Não poderíamos utilizálos sem uma elaboração, fundada sobre a comparação das
formas atestadas. Desse exame, porém, resultam conclusões
que suprem, em medida bastante grande, a ausência de
testemunhos sobre os períodos mais antigos das nossas
sociedades (BENVENISTE, 2005 [1966], p. 349).
Trata-se, assim, de buscar analisar o mecanismo sociológico
da dádiva, estabelecido por Mauss, desde o ponto de vista da
significação linguística.
O linguista inicia seu exame pela raiz verbal *dō-, expressão
comum à maioria das línguas indo-europeias para a noção de “dar”,
salientando que a constância dessa significação só deixou de se
considerar como estabelecida quando se revelou que o verbo hitita
dā- significava não “dar”, mas “tomar”. A questão então ficou posta
da seguinte maneira: seria “dar” o sentido original, do qual o hitita
fez diferenciar “tomar”; ou, ao contrário, foi o hitita que conservou o
sentido original de “tomar”, ao passo que a evolução da maioria das
outras línguas o fez desviar para “dar”? Afastando-se de ambas as
hipóteses, Benveniste afirma que a tentativa de tirar um sentido do
outro constitui apenas uma má formulação do problema. Para ele, a
raiz *dō- “não significa propriamente nem ‘tomar’ nem ‘dar’, mas ou
um ou outro segundo a construção” (BENVENISTE, 2005 [1966], p.
349, aspas do autor). Ou seja, em sua origem, a forma verbal *dō- era
imbuída de uma ambivalência semântica. Assim como no verbo inglês
SUMÁRIO
297
take, que admite empregos tanto no sentido de “tomar” (take from)
quanto no de “entregar” (take to), “igualmente *dō- indicava somente
o fato de pegar; só a sintaxe do enunciado o diferenciava em ‘pegar
para guardar (= tomar)’ e ‘pegar para oferecer (= dar)’” (BENVENISTE,
2005 [1966], p. 350, aspas do autor). O processo evolutivo das línguas
fez prevalecer, para cada uma delas, apenas uma das acepções,
de modo que, em nossas línguas modernas, tais sentidos se fazem
expressar através de duas formas distintas e antitéticas. Conforme
conclui Benveniste: “‘Tomar’ e ‘dar’ se revelam aqui, numa fase muito
antiga do indo-europeu, como noções organicamente ligadas pela sua
polaridade e susceptíveis de uma mesma expressão” (BENVENISTE,
2005 [1966], p. 350, aspas do autor). Tal conclusão vai ao encontro da
formulação de Mauss, para quem os atos de dar, receber e retribuir
(isto é, os atos de troca) nas sociedades arcaicas são reveladores de
um sistema de organização responsável pela própria constituição e
manutenção da sociedade. A unidade semântica formada pelas noções
de “dar” e “tomar” na raiz verbal indo-europeia *dō- seria, portanto, um
testemunho linguístico da reciprocidade inerente à prática da dádiva.
Partindo para o próprio nome do “dom” nas línguas indoeuropeias, as quais, em sua maioria, fazem uso de formas nominais
derivadas de *dō-, Benveniste destaca, em especial, a forma grega
δωτívη, cujo sentido está ligado a um dom de espécie totalmente
diferente de seus demais termos aparentados (δώς, δóσiς, δῶρov,
δωρεά, os quais todos os dicionários traduzem igualmente por
“presente, dom”):
A δωτívη, em Homero, é o dom obrigatório oferecido a um
chefe que se quer honrar […] ou o dom ao qual se é obrigado
para com um hóspede […]. Os empregos da palavra em
Heródoto confirmam esse sentido técnico. Um homem,
desejando coagir o marido de uma mulher que ele ambiciona,
oferece-lhe em δωτívη tudo o que ele poderia desejar dos seus
bens, mas sob condição de reciprocidade […]. Não se poderia
sublinhar mais claramente o valor funcional da δωτívη, desse
SUMÁRIO
298
dom que obriga a um contra-dom. Esse é o sentido constante
em Heródoto; quer a δωτívη seja destinada a provocar um dom
em retribuição, quer sirva para compensar um dom anterior,
inclui sempre a ideia de uma reciprocidade (BENVENISTE,
2005 [1966], p. 352, itálicos do autor).
Nos empregos de δωτívη, mostra-nos Benveniste, é possível
encontrar o próprio mecanismo maussiano de reciprocidade que se
manifesta nas práticas sociais da troca (dar, receber e retribuir). Como o
próprio linguista afirma, “temos em δωτívη a noção do dom em retribuição
ou do dom que pede retribuição. O mecanismo da reciprocidade do
dom é revelado pela própria significação” (BENVENISTE, 2005 [1966],
p. 353, itálico do autor).
Para além das palavras cujo sentido permite identificar uma
relação direta com a noção de “dom”, Benveniste explora aquelas
nas quais a relação se mostra de maneira menos aparente, como as
responsáveis pela noção de “hospitalidade”. Dentre elas, está a palavra
latina hostis, cujo sentido mais difundido é o de “estrangeiro, inimigo”.
O exame de Benveniste revela que o emprego do termo com esse
sentido é tardio, se comparado aos empregos nos quais ela assume o
sentido de “estrangeiro que se iguala ao cidadão romano”. A própria
relação com o verbo hostire, cujo sentido próprio é o de “compensar,
contrabalançar”, e com o derivado hostia, termo usado para designar
a vítima oferecida para “compensar” a cólera dos deuses, demonstra
que, antes de significar “inimigo”, hostis assumia ao mesmo tempo o
sentido de “estrangeiro” e o de “hóspede”:
A igualdade de direitos de que goza frente ao cidadão romano
está ligada à sua condição de hóspede. Hostis é propriamente
aquele que compensa e goza de compensação, aquele que
obtém em Roma a contrapartida das vantagens que tem no
seu país e, por sua vez, deve o equivalente àquele a quem
paga com a reciprocidade. […] Através de hostis e dos termos
aparentados no latim arcaico podemos captar um certo tipo
de prestação compensatória que é o fundamento da noção
SUMÁRIO
299
de “hospitalidade” nas sociedades latina, germânica e eslava:
a igualdade de condição transpõe para o direito a paridade
assegurada entre as pessoas por meio de dons recíprocos
(BENVENISTE, 2005 [1966], p. 355, aspas e itálicos do autor).
Com o fortalecimento do Estado romano, o sentido de hostis
passou a se restringir a “estrangeiro”, à medida que “o status do ciuis
se definia com mais rigor e que a ciuitas se tornava a norma única e
sempre mais estrita do pertencimento jurídico à comunidade romana”
(BENVENISTE, 2005 [1966], p. 355, itálicos do autor). Desse modo,
as relações reguladas por acordos pessoais e familiares acabaram
se tornando cada vez menos importantes, até serem completamente
substituídas por regras e deveres impostos pelo Estado. Assim, de
“estrangeiro”, hostis passou a significar “inimigo público”, através de
“uma mudança de sentido que está ligada à história política e jurídica
do estado Romano” (BENVENISTE, 2005 [1966], p. 355).
Benveniste também constata a importância, como testemunho
linguístico das relações sociais de dom e troca, da palavra latina
munus, salientando que, a partir dela, “poder-se-ia retraçar […]
toda uma fenomenologia indo-europeia da ‘troca’, cujos fragmentos
sobrevivem nas numerosas formas derivadas da raiz *mei” (BENVENISTE, 2005 [1966], p. 356, aspas e itálico do autor). O
linguista explica que, no emprego dos escritores, munus apresenta
sentidos tais como “função, ofício”, “obrigação”, “tarefa”, “favor”,
ou ainda “representação pública, jogo de gladiadores”, todas
essas acepções pertencentes ao domínio social. Para Benveniste, a
significação comum a todos esses empregos encontra-se na noção
de “dever retribuído”, de modo que, uma vez que um munus tenha
sido aceito, contrai-se uma obrigação de pagá-lo, seja na forma de
favores ou privilégios, ou até mesmo pelo oferecimento de jogos,
apresentações, etc. Ou seja, “a palavra [munus] encerra o duplo valor
de carga conferida como uma distinção e de donações impostas
em retribuição” (BENVENISTE, 2005 [1966], p. 356, acréscimo
SUMÁRIO
300
nosso). Benveniste encontra aí o fundamento da “comunidade”, já
que, literalmente, communis significa “que toma parte nos munia ou
munera”84. Como o linguista define: “[…] cada membro do grupo é
obrigado a devolver na mesma medida em que recebe. Cargos e
privilégios são as duas faces da mesma moeda, e essa alternância
constitui a comunidade” (BENVENISTE, 2005 [1966], p. 356). Portanto,
Benveniste revela como o princípio de reciprocidade, que é inerente
à relação de receber um ofício público (munia) e de retribuir a dádiva
com benefícios ao povo (munera), encontra-se na própria significação
da palavra “comunidade” (communis). Mais uma vez, o que temos é
a matéria linguística como o testemunho e como organizadora de
relações de reciprocidade que estão na base da vida social85.
Em Dois modelos linguísticos da cidade, publicado pela primeira
vez em 1970 no livro Échanges e communications, em homenagem
ao 60º aniversário de Lévi-Strauss, o objeto de Benveniste é a gênese
da noção de “cité” [cidade], através da análise de dois processos
distintos de derivação morfológica que se deixam observar no
vocabulário das línguas indo-europeias. Interessa-nos em especial,
aqui, aquele relativo ao termo latino civitas.
84 Munia se refere, no latim, aos cargos públicos, ao passo que munera, termo relacionado,
diz respeito a presentes ou apresentações oferecidas ao público pelos que ocupavam tais
cargos, assim como a prédios e construções públicas, uma vez que, aparentemente, eram
erguidos, por ordem dos magistrados, como dádivas ao povo, para seu uso e benefício (cf.
VALPY, 1838, p. 275).
85 A questão do “dom” e da “troca” no vocabulário volta a ser tema de Benveniste no
primeiro volume de O vocabulário das línguas indo-europeias (1969), ocupando uma
seção inteira (intitulada “Dar e tomar”) da parte relacionada à “economia”. Encontramola, além disso, à moda de conclusão explicativa, no texto Ativo e médio no verbo (1950),
dedicado ao exame das “vozes” verbais (ou diáteses) ativa e média, características das
línguas indo-europeias antigas: “Finalmente, as línguas efetuaram, com a ajuda dessa
diátese, oposições lexicais de noções polares nas quais um mesmo verbo, pelo jogo das
desinências, podia significar ou ‘tomar’ ou ‘dar’: sânscr. dāti, ‘ele dá’: ādāte, ‘ele recebe’;
gr. μισθoῦv, ‘dar em aluguel’: μισθoῦσθαι, ‘tomar em aluguel’; – δαvεíζειv, ‘emprestar’:
δαvεíζεσθαι, ‘tomar emprestado’; lat. licet, ‘(o objeto) é posto em leilão’: licetur, ‘(o homem)
arremata em leilão’. Noções importantes quando as relações humanas se fundam sobre a
reciprocidade das prestações privadas ou públicas” (BENVENISTE, 2005 [1966], p. 191,
aspas e itálicos do autor). Isso só demonstra o quanto o linguista parecia interessado em
estabelecer um diálogo entre suas investigações linguísticas e as teorizações de ordem
sociológica em torno da dádiva e da reciprocidade.
SUMÁRIO
301
Tomada em sua estrutura formal, o linguista afirma que é uma
operação simples, tanto para o falante latino quanto para o analista
moderno, ligar a formação de civitas ao abstrato em -tās derivado de civis.
No entanto, a complexidade se intensifica quando nos perguntamos
sobre o significado de civis. Benveniste pergunta se é lícito contestar
o sentido de “cidadão”, usualmente dado ao termo, respondendo que
sim, uma vez que, embora seus numerosos empregos possam ser
traduzidos por “cidadão”, esse termo não consiste em seu sentido
próprio e primeiro. Nas palavras dele:
A tradução de civis por “cidadão” é um erro de fato, um destes
anacronismos conceituais que o uso fixa, dos quais se acaba
por não ter consciência, e que bloqueiam a interpretação de
todo um conjunto de relações (BENVENISTE, 2006 [1974], p.
279, aspas do autor).
Qual é a razão desse erro? Como o linguista demonstra, a
razão primeira para tal engano é de natureza lógica: “Traduzir civis
por ‘cidadão’ [‘citoyen’] implica referência a uma ‘cidade’ [‘cité’].
Isso é colocar as coisas ao contrário, já que em latim civis é o termo
primário e civitas, o derivado” (BENVENISTE, 2006 [1974], p. 279,
aspas e itálicos do autor). Em outras palavras, a simples tradução
de civis por “cidadão” mascara as posições inversas que cada termo
ocupa na relação derivacional com os termos da “cidade” em cada
língua. Enquanto, no latim, civis é o termo que dá origem ao termo
civitas, no francês (e também no português), é o termo cité [cidade]
que dá origem ao termo citoyen [cidadão]. Civis é o termo de base da
derivação; citoyen [cidadão] não o é.
Além disso, Benveniste ressalta que uma das consequências de
esta tradução de civis por “cidadão” ter sido dada como uma evidência
é o fato de que deixamos de nos atentar mais detidamente sobre a
peculiaridade dos empregos de civis de se fazerem frequentemente
acompanhar de um pronome possessivo (civis meus, civis nostri),
o que invalida sua tradução pelo termo citoyen [cidadão]; afinal, “o
SUMÁRIO
302
que poderia realmente significar ‘mon citoyen’ [‘meu cidadão’]?”
(BENVENISTE, 2006 [1974], p. 280). Na verdade, o que o linguista
demonstra é uma configuração completamente diferente daquela que
organiza o sentido em torno do termo “cidadão”:
A construção com o possessivo desvela, de fato, o verdadeiro
sentido de civis, que é um termo de valor recíproco e não uma
designação objetiva: é civis, para mim, aquele de quem eu
sou o civis. Daí civis meus (BENVENISTE, 2006 [1974], p. 280,
itálicos do autor).
Assim, para Benveniste, o termo em francês que melhor
representaria essa relação de reciprocidade que se deixa expressar
por meio de civis seria, não citoyen [cidadão], mas concitoyen
[concidadão]. O linguista expõe sua interpretação através de inúmeros
exemplos, cujas datação antiga e diversidade de empregos permitem
atestar o caráter de reciprocidade inerente ao termo, e cuja característica
comum consiste na construção de civis com um pronome possessivo86.
A conclusão é, portanto, a que segue: só existe civis diante de outro
civis. É nessa dependência recíproca que reside o sentido do termo.
Desse modo, “é-se civis de um outro civis antes de ser civis de uma
certa cidade” (BENVENISTE, 2006 [1974], p. 283)87. Assim posta sua
significação, compreende-se de maneira clara a relação linguística que
86 Integram os exemplos passagens como esta do filósofo Varrão: “Non sine causa maiores
nostri ex urbe in agris redigebant suos cives” [“Não é sem razão que nossos ancestrais
conduziam seus concidadãos da vila aos campos”]; e esta do dramaturgo Plauto: “facilem
hanc rem meis civibus faciam” [“eu me arranjarei para facilitar a coisa a meus concidadãos”]
(cf. BENVENISTE, 2006 [1974], p. 281, itálicos do autor).
87 Benveniste ainda ressalta aqui a relação paradigmática que civis [concidadão] estabelece
com hostis [estrangeiro, inimigo]. Embora constituam termos polares, em ambos os
casos, o sentido se estabelece em função de um princípio de reciprocidade. Assim como
só se é civis diante de outro civis, só se é hostis em face de um hostis. É importante
também lembrar que o sentido primeiro de hostis, conforme vimos através da revisão do
texto Dom e troca no vocabulário indo-europeu (1951), é o de estrangeiro que goza dos
mesmos direitos frente ao cidadão romano, assumindo, dessa maneira, tanto a ideia de
“estrangeiro” quanto de “hóspede”. Portanto, mesmo que o valor do termo tenha mudado
(de “estrangeiro hóspede” a “estrangeiro inimigo”) em função da importância crescente da
noção de civis e civitas na sociedade romana, percebemos que a relação de reciprocidade
manteve-se enquanto definidora de sua significação.
SUMÁRIO
303
liga civis a seu derivado civitas: “Enquanto formação abstrata, civitas
designará propriamente o ‘conjunto dos cives’” (BENVENISTE, 2006
[1974], p. 283, aspas e itálicos do autor).
Não é difícil perceber o quanto as análises do vocabulário aqui
apresentadas estão em pleno diálogo com a discussão sociológica
em torno do princípio de reciprocidade. Benveniste, enquanto
linguista, busca identificar esse princípio no interior da significação
linguística. Tal constatação, aliada à importância da reciprocidade
enquanto estruturante das relações de “pessoa” que estão na base do
funcionamento da língua, dá clara evidência do quanto a noção está
presente no pensamento teórico de Benveniste.
CONCLUSÃO
Procuramos, ao longo deste breve estudo, avaliar a presença e
a importância da noção de reciprocidade na teorização linguística de
Émile Benveniste, através, primeiramente, da elucidação dessa noção
nos campos em que ele é mais notadamente abordado, a sociologia
e a antropologia, para, então, observarmos de que modo ele se
apresenta na reflexão benvenistiana. Em nosso recorte metodológico,
circunscrevemos nosso exame a três aspectos da teoria da linguagem
benvenistiana: as categorias linguísticas de “pessoa” e “tempo”,
fundamentais na organização e na atualização da língua em discurso;
o aspecto dialógico da enunciação, tomada enquanto atividade social
regulada pela troca; e os estudos de ordem lexical, aos quais o linguista
se refere em diferentes textos seus sob as abrangentes expressões de
“estudo da impressão cultural na língua” (BENVENISTE, 2005 [1966],
p. 16) e “semantismo social” (BENVENISTE, 2006 [1974], p. 100)88.
88 Encontramos a primeira definição no texto Tendências recentes em linguística geral (1954),
a segunda, em Estrutura da língua e estrutura da sociedade (1968).
SUMÁRIO
304
Não pretendemos, com isso, estabelecer a totalidade da investigação
acerca da reciprocidade em Benveniste. Podemos certamente
encontrá-la operando em outros aspectos de sua produção teórica,
como, por exemplo, na concepção do modo de organização que
rege o funcionamento interno da língua, tomada enquanto sistema de
signos89. Cabe a estudos futuros averiguar o alcance das considerações
aqui sumariamente levantadas.
Podemos, entretanto, com base no que evidenciamos no
decorrer deste trabalho, concluir que a reciprocidade se apresenta, no
pensamento benvenistiano, ainda que de forma não teorizada, como um
princípio estruturante, sobre o qual se sustentam as principais noções
que articulam sua visão de língua. Ora, o que é a intersubjetividade,
instaurada pelas categorias constitutivas da instância de discurso,
senão a manifestação de um princípio de reciprocidade, do qual
depende não só a língua, como também – e sobretudo – o homem e a
sociedade? O que é a constatação benvenistiana de que as relações
de troca que regem a organização social encontram seu fundamento
na significação linguística, da qual o vocabulário fornece o melhor
testemunho, senão a confirmação das ideias de Mauss e Lévi-Strauss
a respeito da condição de reciprocidade da qual dependem o indivíduo
e a coletividade? Tal como aqueles que se ocuparam de pensar sobre
a natureza do homem e da sociedade na investigação sociológica,
Benveniste procura mostrar que a experiência constitutiva do homem,
na e pela língua, está ligada a um princípio de reciprocidade elementar,
que faz do homem um ser de relação.
Estamos, portanto, diante de uma visão muito original acerca
da língua, do homem e da sociedade. Imbricados em sua própria
89 Atestam tal afirmação textos como Saussure após meio século (1963) e Estrutura em
linguística (1962), nos quais Benveniste estabelece o caráter sistêmico e estrutural da
língua a partir das relações de oposição recíproca que se identificam entre os elementos
no interior do sistema linguístico (cf. BENVENISTE, 2005 [1966]).
SUMÁRIO
305
definição, tais elementos constituem, no pensamento de Benveniste,
um vasto campo de pesquisa ainda por ser explorado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENVENISTE, Émile. Problèmes de linguistique générale I. Paris: Gallimard, 1966.
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SUMÁRIO
307
Capítulo 11
11
A RELAÇÃO ENTRE SOCIEDADE E
LÍNGUA EM BENVENISTE: TRÊS
HIPÓTESES E UMA ALTERNATIVA
Silvana Silva
Silvana Silva
A RELAÇÃO
ENTRE SOCIEDADE
E LÍNGUA EM BENVENISTE:
TRÊS HIPÓTESES
E UMA ALTERNATIVA
DOI: 10.31560/pimentacultural/2020.281.308-324
INTRODUÇÃO
Para introduzir a presente reflexão, leiamos a fábula chamada
Comunidade, atribuída a Franz Kafka. O que esse breve texto nos
ensina sobre “sociedade”?
COMUNIDADE
Somos cinco amigos; uma vez saímos um atrás do outro de uma casa; primeiro
veio um e pôs-se junto à entrada, depois veio, ou melhor dito, deslizou-se tão
ligeiramente como se desliza uma bolinha de mercúrio, o segundo e se pôs não
distante do primeiro, depois o terceiro, depois o quarto, depois o quinto. Finalmente,
estávamos todos de pé, em uma linha. A gente fixou-se em nós e assinalando-nos,
dizia: os cinco acabam de sair dessa casa. A partir dessa época vivemos juntos, e
teríamos uma existência pacífica se um sexto não viesse sempre intrometer-se. Não
nos faz nada, mas nos incomoda, o que já é bastante; porque se introduz por fôrça
ali onde não é querido? Não o conhecemos e não queremos aceitá-lo. Nós cinco
tampouco nos conhecíamos antes e sequer nos conhecemos agora, mas aquilo
que entre nós cinco é possível e tolerado, não é nem possível nem tolerado com
respeito àquele sexto. Além do mais somos cinco e não queremos ser convivência
permanente, se entre nós cinco tampouco tem sentido, mas nós estamos já
juntos e continuamos juntos, mas não queremos uma nova união, exatamente em
razão de nossas experiências. Mas, como ensinar tudo isto ao sexto, pôsto que
longas explicações implicariam já em uma aceitação de nosso círculo? É preferível
não explicar nada e não o aceitar. Por muito que franza os lábios, afastamo-lo,
empurrando-o com o cotovelo, mas por mais que o façamos, volta outra vez.
Franz Kafka
Duas lições parecem surgir nesse texto: a primeira é a tendência
humana ancestral a se reunir em grupos pequenos; a segunda é a
criação de um “limite” aos agrupamentos. Enfim, o homem é social,
mas não é em qualquer sociedade, de qualquer forma e com qualquer
pessoa que esse processo acontece. O historiador Harari (2018),
estudioso da antropologia cognitiva, informa-nos que:
o homo sapiens evoluiu para achar que as pessoas se dividiam
entre “nós” e “eles”. “Nós” era o grupo imediatamente à
sua volta, independentemente de quem você fosse, e “eles”
eram os outros. Na verdade, nenhum animal social jamais é
SUMÁRIO
309
guiado pelos interesses de toda a espécie à qual pertence.
[....] O primeiro milênio A. C testemunhou o aparecimento
de três ordens potencialmente universais, cujos devotos, pela
primeira vez, podem imaginar a raça humana inteira como uma
unidade governada por leis. Todos eram “nós’, pelo menos
potencialmente. A primeira ordem a surgir foi a econômica;
a segunda, foi política: a ordem imperial; a terceira, religiosa
(HARARI, 2018, p. 179).
Entendemos que a questão da sociedade é uma construção
histórica potencializada por aspectos inerentes ao homem e também
externos a ele. No entanto, a distinção “nós” e “eles” resiste e
reside, sobretudo, na linguagem e em (algumas) línguas. Mesmo
um antropólogo evolucionista como Harari é bastante cético quanto
à “evolução” do Homo Sapiens a um estágio em que não mais se
encontrará a distinção “nós” x “eles”. Em suas palavras,
a história econômica da humanidade é uma dança delicada.
As pessoas contam com o dinheiro para facilitar a cooperação
com estranhos, mas temem que ele corrompa relações
íntimas e valores humanos. Com uma mão, elas destroem
voluntariamente as barragens comunais [...] mas com a
outra constroem novas barragens para proteger a sociedade,
a religião e o meio ambiente da escravidão das forças do
mercado (HARARI, 2018, p. 194-195).
Assim, nossa hipótese é a de que “sociedade” é uma “ideia”
que paulatinamente é teorizável na reflexão benvenistana sem que
se perca um “fundo” ou “resto” não teorizável sobre a sociedade (e
principalmente sobre o “sentido” da sociedade para o homem).
O objetivo deste texto é cotejar três conceituações do
linguista Émile Benveniste sobre a noção de “sociedade”. Atento
aos aspectos linguísticos e antropológicos, não podemos deixar
de fazer recurso a esse importante linguista para compreender a
complexidade da noção de sociedade, em especial sua relação
com as noções de linguagem e línguas. As três hipóteses aqui
SUMÁRIO
310
levantadas referem-se às três fases da elaboração do pensamento
benvenistiano, conforme estudo de Flores (2013). Nossa inspiração
também advém do trabalho de Ono (2009), que faz uma rigorosa
pesquisa de elaboração conceitual do termo enunciação na obra de
Émile Benveniste em uma abordagem cronológica.
As três fases, que não correspondem a períodos cronológicos,
como alerta Flores (2013) são as seguintes: 1ª) primeiro momento:
pessoa e não-pessoa; 2ª) segundo momento: semiótico e semântico;
3ª) terceiro momento: O aparelho formal da enunciação. Procuramos,
como objetivo específico, observar se os conceitos de sociedade
apresentam algum grau de heterogeneidade entre si, isto é, se
se relacionam a diferentes conceitos de enunciação, ou se estão
relacionados mais fortemente ao conceito mais conhecido de
enunciação na Teoria da Enunciação de Benveniste, a saber, “ato
individual de utilização da língua”, expresso no texto O aparelho formal
da enunciação (PLG II, p. 82). Para cada momento, escolheremos um
dos textos de Benveniste indicado em Flores (2013).
Do primeiro momento, escolhemos o texto Estrutura das relações
de pessoa no verbo (1946, PLG I), uma vez que é um dos poucos textos
de Benveniste que tematiza tanto os pronomes do singular quanto os
pronomes do plural. Daremos especial atenção ao par “nós” e ‘eles’ e
à sua relação com a noção de subjetividade. Do segundo momento,
escolhemos o texto Semiologia da língua (1968), em especial pela frase
tão debatida “A língua contém a sociedade” (PLG II, p. 63). Por fim, no
terceiro momento, elegemos o texto O aparelho formal da enunciação,
mote do presente livro.
SUMÁRIO
311
O CONCEITO DE SOCIEDADE NO PRIMEIRO
MOMENTO DA TEORIA ENUNCIATIVA DE
BENVENISTE: A OPOSIÇÃO NÓS X ELES
Flores (2013, p. 88) nos informa que a distinção pessoa/não
pessoa, a primeira da Teoria da Enunciação, fundamenta a presença
linguística da subjetividade. Interessa-nos, neste texto, fazer não
um exame completo das características que distinguem pessoa/
não pessoa, tarefa já realizada por Flores (2013), mas centrar nossa
atenção na relação pessoa/não pessoa em relação ao par nós/eles,
isto é, no que podemos, então, chamar de fundamento linguístico da
subjetividade social.
Ao introduzir a passagem das formas do singular para as
formas do plural, Benveniste afirma que há nessa passagem, além da
centralidade do eu outra peculiaridade: “Cria-se em inúmeras línguas
uma diferenciação da forma verbal da primeira pessoa do plural sob
dois aspectos distintos (inclusivo e exclusivo) que denuncia uma
complexidade particular” (PLG I, p. 256). Ainda, segundo Benveniste,
a distinção eu+ vós e eu+ eles é importante “numa grande parte
das línguas ameríndias, australianas, no papua, malaio-polinésico,
dravídico, tibetano, mandchu e tunguze, nama, etc.” (PLG I, p. 256).
Ainda sobre a relação entre “eu”’ e ‘“nós”’, Benveniste faz uma
importante definição: “Se não pode haver vários ‘eu’ concebidos pelo
próprio ‘eu’ que fala, é porque ‘nós’ não é uma multiplicação de objetos
idênticos mas uma junção entre ‘eu’ e não-eu’. Essa junção forma uma
totalidade nova, no qual os componentes não se equivalem: em ‘nós’ é
sempre ‘eu’ que predomina (...) e esse ‘eu’ sujeita o elemento ‘não-eu’
pela sua qualidade transcendente” (PLG I, p. 256).
SUMÁRIO
312
Benveniste afirma ainda que a distinção nós inclusivo/nós
exclusivo não existe em diversas línguas, tais como as línguas indoeuropeias. Acrescenta:
Esse “nós” é algo diferente de uma junção de elementos
definíveis; a predominância de “eu” é aí muito forte, a tal
ponto que, em certas condições esse plural pode substituir o
singular. [...] expressões nas quais se misturam a necessidade
de dar a ‘nós’ uma compreensão indefinida e a afirmação
voluntariamente vaga de um “eu” prudentemente generalizado
(p. 257-258, grifos nossos).
Acreditamos que, mesmo nas línguas derivadas do latim, se
não é perceptível na forma pronominal essa distinção, ela é facilmente
detectável no sentido do enunciado. Entendemos ainda que a
“presença” do homem na linguagem nas ditas formas plurais se realiza
sempre com alguma forma de inclusão, seja esta do interlocutor ou
da não/pessoa. No entanto, qualquer forma de inclusão não apaga
a subjetividade e a prevalência do “eu”. Salientamos o advérbio
“prudentemente” na citação acima para mostrar que a diferença entre
‘eu’ e ‘nós’ é da ordem da prudência da enunciação. Em uma certa
“economia enunciativa” (FLORES; TEIXEIRA, 2012, p. 422), é possível
dizer que a passagem do “eu” ao “nós” é de uma certa “força” ou “custo”
enunciativo: o uso do “nós” parece trazer certo efeito de “atenuação”
do enunciado90. Benveniste não faz um longo esclarecimento sobre a
oposição nós/eles, pois, para ele, a verdadeira e relevante oposição
é eu/nós. Desse fato, concluímos que a concepção de sociedade,
no primeiro momento da teoria da enunciação, é a de um “eu” que
ora se torna “prudente” e não ousa dizer o que quer dizer, ora inclui
o interlocutor ou não o inclui. Parece-nos, assim, que a noção de
sociedade comparece apenas como um primitivo teórico, um negativo,
apenas um elemento em uma rede conceitual de constituintes (para
usar a epistemologia proposta por BOUQUET, 1998). A sociedade é
sempre um “eu” que não ousa, que prudentemente se generaliza.
90 As noções de economia/custo enunciativo estão tanto em Flores e Teixeira (2011, p. 422)
quanto em Culioli (conforme ROMERO, 2010, p. 483).
SUMÁRIO
313
O CONCEITO DE SOCIEDADE NO
SEGUNDO MOMENTO DA TEORIA
ENUNCIATIVA DE BENVENISTE
No texto Semiologia da língua, como nos alerta Flores (2013,
p. 146-47), estamos diante de um dos trabalhos mais complexos de
Benveniste. Segundo Flores (2013), esse texto deve ser lido em duas
partes. Interessa-nos, nesse momento, ler a segunda parte, onde
aparece a reflexão de Benveniste sobre a especificidade da língua
diante de outros sistemas semióticos, bem como onde o linguista
esclarece as possiblidades de relação entre “língua” e “sociedade”91.
Antes de entrar nas considerações de Benveniste sobre o nosso tema,
é importante trazer alguns pressupostos para a discussão. Para início
de conversa, Benveniste nos informa que existem três possibilidades
de relações entre sistemas semióticos, a saber: 1) a relação de
engendramento, isto é, a relação em que um sistema pode engendrar
outro; 2) a relação de homologia, isto é, a correlação entre duas partes
de dois sistemas; 3) a relação de interpretância, isto é, a relação que a
língua mantém com os outros sistemas. Com essas três possibilidades,
Benveniste pretende dar conta da totalidade das relações entre
sistemas semióticos? Não é o que parece. No parágrafo seguinte,
Benveniste acrescenta uma quarta relação: a “relação sociológica”.
Vejamos na íntegra o parágrafo onde Benveniste concentra suas
reflexões sobre “língua” e “sociedade”, para, em seguida, fazer os
devidos comentários:
Aqui se vê como a relação semiológica se distingue de todas as
outras, notadamente da relação sociológica. Se se interrogasse,
91 Diferentemente de Rosário (2018), que aponta o estudo da relação entre língua e
sociedade para a consideração de três textos entrelaçados, a saber, “A semiologia da
língua”, “Estrutura da língua e da sociedade” e a Aula 5 das Últimas Aulas de Benveniste,
acreditamos que o estudo dessas relações pode estar em quaisquer textos de Benveniste,
e também no estudo aprofundado de um único texto, como estamos realizando neste
capítulo e como também já realizamos em Silva (2016).
SUMÁRIO
314
por exemplo, sobre a situação respectiva da língua e da
sociedade – tema de muitos debates – e sobre seu modo de
dependência mútuo, o sociólogo, e provavelmente qualquer um
que enfoca a questão em termos dimensionais, observará que
a língua funciona no interior da sociedade, a qual a engloba;
decidirá então que a sociedade é o todo, e a língua, a parte.
Mas a consideração semiológica inverte essa relação, porque
somente a língua torna possível a sociedade. A língua constitui
o que mantém juntos os homens, o fundamento de todas as
relações que por seu turno fundamentam a sociedade. Poderse-ia dizer que é a língua que contém a sociedade. Assim, a
relação de interpretância que é semiótica, inverte a relação de
encaixe que é sociológica. Esta, objetivando as dependências
externas, reifica de modo semelhante a linguagem e a sociedade,
enquanto que aquela as coloca em dependência mútua segundo
sua capacidade de semiotização. (BENVENISTE, 1989, p. 63).
O primeiro comentário a fazer é justamente a consideração de
que a relação sociológica seria uma “quarta” relação. Na verdade,
parece-nos que Benveniste não apresenta três ou quatro relações
entre sistemas e si sim somente duas: uma relação de interpretância,
que é semiológica isto é, entre dois sistemas semiológicos e uma
relação entre sistema semiótico e sistema não semiótico (que pode ser
sociológica, ou de engendramento, ou de homologia). Entendemos
que a relação de interpretância entre língua e outro sistema semiótico
converte esse “outro” sistema em um sistema com signos articulados
“como” a língua (significante/significado). Nas próximas citações,
procuraremos reforçar essa interpretação.
O segundo comentário refere-se à seguinte afirmação: “Mas
a consideração semiológica inverte essa relação, porque somente
a língua torna possível a sociedade [...] é a língua que contém a
sociedade. Assim, a relação de interpretância, que é semiótica, inverte
a relação de encaixe, que é sociológica” (BENVENISTE, 1989, p. 63,
grifos nossos). Nesse trecho, lemos que a relação de interpretância
modifica uma outra relação: a sociológica. A relação de interpretância
SUMÁRIO
315
não somente instaura relações, mas também “inverte”, transforma
outras relações.
O terceiro comentário refere-se à afirmação final do parágrafo,
a saber: “Esta, objetivando as dependências externas, reifica de modo
semelhante a linguagem e a sociedade, enquanto que aquela as coloca
em dependência mútua segundo sua capacidade de semiotização”
(BENVENISTE, 1989, p. 63). Essa citação nos indica duas coisas: 1)
há relações entre linguagem e sociedade que “reificam” um ou outro
termo; 2) há relações entre linguagem e sociedade que colocam no
mesmo patamar linguagem e sociedade. Entendemos, a partir de
nossa leitura de Benveniste, que a relação sociológica “reifica” a
sociedade; há análises linguísticas que “reificam” um ou outro termo;
e a análise linguística que se queira semiológica coloca linguagem e
sociedade no mesmo patamar.
Flores (2019, p. 110) é um pouco mais radical, ao escrever que:
Qualquer pesquisador que se aventure no conturbado terreno
das relações entre a língua e a sociedade deve fazê-lo a partir
de um ponto de vista muito bem delimitado; caso contrário,
facilmente, poderá incorrer em excessiva generalidade [...]
ou mesmo incongruência – na medida que pode cometer
equívocos epistemológicos graves.
Resta-nos saber, então, se as análises linguísticas que temos
praticado são “semiológicas”, de fato, ou, ainda, se não confundem
princípios epistemológicos de “linguísticas” diferentes.
Uma observação sobre o termo reificação utilizado ao final do
parágrafo. Embora não possamos afirmar a ligação entre Benveniste e
o marxismo92, sabemos que esse termo foi utilizado no marxismo para
designar uma forma particular de alienação, na produção capitalista.
Ainda que Benveniste não tenha usado o termo no sentido marxista
92 Remetemos o leitor para o texto de Milner (2003), intitulado “Benveniste II. Ibat obscurus”
para uma argumentação mais completa sobre tal ligação.
SUMÁRIO
316
e sim no sentido de coisificação de seres humanos ou objetificação
de conceitos abstratos, chama-nos atenção o fato de um termo tão
marcado na Sociologia esteja presente no texto benvenistiano. Com o
texto Semiologia da língua, e a análise do segundo momento da Teoria
benvenisteana, concluímos que a noção de sociedade se complexifica
potencialmente: não se trata apenas de analisar o uso e o sentido de
“nós...” ou “vocês....” nas diversas línguas mas compreender o próprio
estatuto do termo ‘sociedade’: seja este “reificado” ou colocado como
ponto de partida (com categorias pré-definidas) ou seja este colocado
como “resultado” das relações linguísticas. O termo “sociedade”
não funciona na Teoria benvenisteana como um ‘fundo’ no qual os
interlocutores operam: funciona, de fato, também como um processo
da própria enunciação.
O CONCEITO DE SOCIEDADE NO
TERCEIRO MOMENTO DA TEORIA
ENUNCIATIVA DE BENVENISTE
Para compreender o terceiro momento da teoria enunciativa,
recorremos ao texto O aparelho formal da enunciação. Assim como
o texto Semiologia da língua é dividido em duas partes, o texto “O
aparelho formal” também o é. A segunda parte, a nosso ver, inicia
na página 87 com a seguinte frase: “O que em geral caracteriza a
enunciação é a acentuação da relação discursiva com o parceiro, seja
este real ou imaginado, individual ou coletivo” (PLG II, p. 87) que é, ao
mesmo tempo, uma nova definição de enunciação e o começo de uma
nova discussão sobre a sociedade. Nesse mesmo trecho, vemos que
Benveniste caracteriza a relação entre o “eu” e o “outro” de quatro formas
distintas, a partir de uma “ênfase” ou “acentuação discursiva”93. Dentre
93 Para uma interpretação da noção de “acentuação discursiva”, remetemos o leitor ao
primeiro capítulo da Tese (Silva, 2013).
SUMÁRIO
317
essas quatro acentuações discursivas, está a acentuação “coletiva”,
que nos interessa examinar mais de perto. Nas quatro e exíguas quatro
páginas finais do texto “O aparelho formal”, identificamos a acentuação
discursiva coletiva a quatro situações exemplificadas por Benveniste:
1) a comunhão fática; 2) a fraseologia; 3) a relação entre língua falada
e língua escrita; 4) a própria escrita. Nenhuma delas Benveniste analisa
ou descreve diretamente: à primeira o autor faz uma longa citação do
antropólogo Malinowski e se abstém de comentários.
De fato, Benveniste faz um único grande comentário, o qual
serve para qualquer uma das quatro acentuações discursivas, a saber:
Estas situações exigiriam uma dupla descrição, da forma
linguística e da condição figurativa.Contenta-se muito facilmente
com invocar a frequência e a utilidade práticas da comunicação
entre indivíduos, para que se admita a situação de diálogo como
resultando de uma necessidade, abstendo-se assim de analisar
as múltiplas variedades (BENVENISTE, 1989, p. 88).
Benveniste nos informa que não é simples uso de “nós” ou “eu”,
ou formas gramaticais inclusivas ou exclusivas que garantem um ou
outro tipo de “sociedade” com o outro. A enunciação é um fato complexo
que tem dois níveis: um nível da “fala” e um nível do “discurso”. Numa
enunciação dita “irônica”, por exemplo, o nível “discursivo” apresenta
um sentido; e o nível das formas tem outro sentido.
Concluímos que na terceira fase de Benveniste, diferentemente
da primeira e da segunda, a sociedade é colocada “dentro” da língua,
do próprio “aparelho de apropriação à disposição do locutor”. Seja
pela escolha de um acento “individual” ou “coletivo”, o locutor, em
sua própria enunciação, instaura uma ou duas maneiras de ser e
fazer sociedade com o “outro”, seja de uma forma mais próxima, seja
de uma forma distanciada. Se na segunda fase, Benveniste propõe
diversas formas de relacionar “linguagem” e “sociedade”, na terceira
fase ele propõe, então, uma relação semiológica interna à língua e à
SUMÁRIO
318
disposição do locutor. Além disso, na terceira fase Benveniste menciona
mesmo diversas situações de uso estudadas por antropólogos (“hainteny”, “comunhão fática”) como forma de alargar sua perspectiva de
análise. De qualquer forma, observamos a ampliação do escopo das
análises de Benveniste: de uma abordagem estritamente linguística (e
comparativa de línguas) a uma abordagem geral e antropológica.
DE UMA ABORDAGEM LINGUÍSTICA A UMA
ABORDAGEM ANTROPOLÓGICA: UMA
QUARTA HIPÓTESE SOBRE A RELAÇÃO
ENTRE LÍNGUA E SOCIEDADE?
Nesta seção, apresentaremos uma pequena incursão por um
grande linguista que ousou discutir diretamente as afirmações de
Benveniste, propondo ainda uma perspectiva própria de linguagem:
Henri Meschonnic. Teceremos considerações somente quanto ao texto
Benveniste: semantique sans semiotique, uma vez que esse texto
dialoga diretamente com o “Semiologia da língua” de Benveniste e
principalmente porque apresenta uma abordagem antropológica de
linguagem (NEUMANN, 2017).
Do texto de Meschonnic, que traz uma longa e importante
discussão sobre a unidade/signo na língua e nas obras de arte refletindo
de perto sobre a relação entre Benveniste e Peirce e Benveniste e
Saussure, interessa-nos a reflexão que Meschonnic faz da afirmação
de Benveniste (1995) de que gestos de polidez (mudras, p. ex.) são
semiótico sem semântico. Essa pequena reflexão de duas páginas nos
interessa justamente porque Meschonnic escolhe um “fato social” – o
gesto de polidez – como forma de questionar a existência do semiótico
sem o semântico (e vice-versa). Assim, para Meschonnic (2008), todo
fato social (seja um gesto de polidez, seja uma obra de arte) tem uma
SUMÁRIO
319
forma e um sentido, pois mobilizados por um sujeito. Vejamos sua
reflexão diretamente:
Um toque de chapéu, um gesto de polidez justificam, justamente,
a categoria como tal. Desde que tomemos esses gestos no
seu jogo social, é mais difícil de excluir uma semântica. [...]
Essas poses (asanas) tem cada uma um sentido específico,
codificado. Elas não são exemplo do semiótico sem semântico,
e na sua perfeição, que vê do exterior do código, por aqueles
que o ignoram. Mas cada pose, vista pelos iniciados, tem um
sentido. [...] Quanto ao jogo social corrente, e variável, dos
gestos de polidez, não podemos sustentar, por causa mesmo
de serem concernentes a posturas do corpo, que eles sejam
destituídos de sentidos.94 (MESCHONNIC, 2008, p. 399).
Nesse trecho, percebemos que o fato de um jogo ou fato social
ter ou não sentido depende do sujeito ser ou não “iniciado” no “jogo
social” em questão. Dessa forma, a nosso ver, e como confirmaremos
mais adiante no próprio Meschonnic, não se trata de pensar as relações
entre língua e sociedade, seja como de interpretância, seja como
homológica ou sociológica. Para Meschonnic (2008), ao considerar as
“obras” do homem (seja um gesto religioso, seja uma pintura, seja
um poema), há sempre semiótico e semântico e sempre há não um
“falar de” e sim “dizer”, criar um “mundo”. Há, então, somente relações
homológicas específicas:
O primeiro problema intervém a propósito da “relação de
interpretância” (p. 61) que tem lugar entre um “sistema
interpretante e um sistema interpretado” (p. 61). Essa relação
define a língua como uma “relação sociológica”. Ela faz com
que a “língua permita a sociedade”, que a “língua contenha a
sociedade”. Não o inverso.
94 No original: “Un coup de chapeau, un geste de politesse justifient, mais toute juste, la
categoria comme telle. Dès qu’on prend ces gestes davantage dans leur jeu social, il est de
plus en plus difficile d’en exclure une sémantique. (…) Ces poses (asanas) ont chacune un
sens specifique, codé. Elles ne sont un exemple du semiotique sans semantique, et dans
sa perfection, que vu de l’exterieur du code, par ceux que l’ignorent. (...) Quant au jeu social
courant, et variable, des gestes de politesse, on ne peut pas non plus soustenir, du fait
même qu’ils concernent des postures du corps, qu’ils soient dénnués d’une sémantique”
(MESCHONNIC, 2008, p. 399).
SUMÁRIO
320
O problema é aquele da possibilidade e dos limites de ligação
de uma relação de interpretância e a relação de homologia.
Benveniste distinguiu três tipos de relação: a relação de
engendramento [...], a relação de homologia (...); [...]; enfim
a relação de intepretância, relação própria à língua, e que faz
da língua “interpretante de todos os sistemas semióticos”.
Compreendido aí os não linguageiros. De que resulta que a
linguagem é a metalinguagem. O interpretante, mas como e até
que ponto?
Esse problema aparece se confrontamos o primeiro traço
da relação de interpretância com a relação de homologia. O
primeiro traço é “a enunciação, que porta referência a uma
situação dada; falar, é sempre falar de”. [...]
Ainda não podemos esquecer, quando essa função é confrontada
à obra de arte, precisamente quando é definida – reconhecida
– como uma semântica sem semiótica, que falar de se encontra
numa relação de exterioridade radicalmente insatisfatória, por
relação a uma transitividade interna que designa não mais falarde, mas dizer. (...) A relação não é mais de interpretância mas
de uma homologia específica. Dizer e fazer aí são o mesmo;
forma, particular da obra de arte, do performativo. Métafora,
se quisermos, do performativo linguístico. Mas só à título
transitório”. (MESCHONNIC, 2008, p. 406-8)95.
95 No original: “Le premier problème intervient à propôs de la “relation d’interdépendance” (p.
61), qui a lieu “entre um système interprétant et un système interprété” (p. 61). Cette relation
définit la langue comme un ‘rapport sociologique”. Elle fait que “seule la langue permet la
société” (p. 62), et que “c’est la langue qui contient la société”. Non l’inverse.
Le problème est celui de la possibilité et des limites du rapport entre la relation d’interpretance
et la relation d’homologie.
Benveniste avait distingue trois “types de relation”: la relation d’engendrement [...]; la relation
d’homologie [...] la “relation d’interpretance”, rapport propre à la langue, et qui fait de la
langue “l’interpretant de tous les systemes sémiotiques” (p. 61). Y compris non langagiers.
Où le la languae est le métalangage. L’interpretant, mais comment et jusqu’où?”
Ce problème apparaît si on confronte le premier trait de la relation d’inteprétance avec la
relation d’homologie. Le premier trait est “l’énonciation, qui porte reference à une situation
donnée; parler, c’est toujours parler-de”. [...]
Or on ne peut pas oublier, quand cette function est confrontée à l’ouvre d’art, précisément
quand celle-ci est definie – reconnue – comme une sémantique sans sémiotique, que le
parler-de se trouve dans une relation d’éxteriorité radicalement insatisfaisante, par rapport à
une transitivité interne que désigne non plus parler-de, mais dire. [...] La relation non est plus
d’inteprétance, mais d’une homologie spécifique. Dire et faire y sont un et le même: forme,
particulière à l’ouvre d’art, du performatif. Métaphore, si on veut, du performatif linguistique.
Mais juste à titre transitoire”.
SUMÁRIO
321
Nesse trecho, vemos que Meschonnic retorna de certa forma
ao problema das relações entre “língua” e “sociedade”. O poema, a
obra de arte não “fala de tal aspecto da sociedade”: o poema diz a
sociedade, codifica-a em seus termos. Ao que Meschonnic chama de
homologia. Isso cria um problema: como a língua pode “interpretar” se
ela é a própria “matéria” da poesia e também o único meio de dizer (e
compreender) a sociedade? Uma última citação de Meschonnic, em
que vemos o desconcerto de seu pensamento:
O conflito entre um infinito semântico e uma totalidade semiótica
é um dado imediato e necessário de relações entre a poética e
a teoria da linguagem. A questão é: como a relação entre uma
semântica sem semiótica e a língua como sistema semióticosemântico pode ser ela mesma semiótica? [...]
Essa dupla dificuldade, de fazer confrontar ao falar-de, e
do múltiplo imprevisível do valor confrontado à identidadetotalidade da língua, é mostrada e escondida na exposição
de Benveniste. Isso me parece que ela dá a demonstração
mesma que a relação entre a semiótica sem a semântica e
a semiótica-língua não é justa e não será jamais justa: há e
sempre existirá um resto, indefinido e infinito, que escapa à
intepretância, e que define um futuro irredutível do valor e do
sentido, do qual a ligação é a arte, a dificuldade de pensar
a arte, e que, de arte, não há senão obras. Não há senão o
particular para pensar o geral. 96 (MESCHONNIC, 2008, p.
410-11, grifos nossos em negrito).
96 No original: “Le conflit entre un infini sémantique et une totalité semiotique est un donnée
immediate et nécessaire des rapports entre poétique et la théorie du langage. La question
est: comment la relation entre une sémantique sans sémiotique et la langue comme
système sémiotique-sémantique peut-elle être elle-même sémiotique? [...]Cette double
difficulté, du faire confronté au parler-de, et du multiple imprévisible de la valeur confronté
à l’identité-totalité (elle-même variable) de la langue, est montrée et cachée dans l’exposé
de Benveniste. Il me semble qu’elle donne la démonstration même que le rapport entre
la sématique sans sémiotique et la sémiotique-langue ne tombe pas juste et ne tombera
jamais juste: il y a et il y aura toujours un reste, indéfini et infini, qui échappe à l’interprétance,
et qui définit um avenir irréductible de la valeur et du sens, dont le lieu est l’art, la difficulté de
penser l’art, il n’y a jamais que des ouevres. Il n’y a que le particulier pour penser le général!”
(MESCHONNIC, 2008, p. 410-11).
SUMÁRIO
322
Vemos aí que Meschonnic captura com precisão o ponto da
“falha” do edifício conceitual benvenistiano: como produzir uma
“teorização” se semiótico e semântico têm naturezas e funcionamentos
distintos? Como pensar que a língua “interpreta” outros sistemas
se nem a língua em si mesma consegue ter uma força de coesão e
fechamento significativo? Subscrevemos, assim, a afirmação final do
autor, quando diz que não há senão o particular para pensar o geral.
Da mesma forma, entendemos que Meschonnic lança uma “quarta”
hipótese sobre as relações entre língua e sociedade: cada obra, cada
texto, cada fala traz em si uma visão da sociedade. Alguém poderia
dizer que essa hipótese já está contida no “projeto” de O aparelho
formal da enunciação: acreditamos, a nosso ver, que Meschonnic
desloca a questão da potência de sentido do “centro da língua” (o
aparelho) para o fruto do trabalho humano, a obra em sua potência
infinita de nos interrogar.
REFERÊNCIAS
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BENVENISTE, Émile. Problemas de Linguística Geral I. Campinas, SP:
Pontes, 1988, p. 247-259.
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Problemas de Linguística Geral II. Campinas, SP: Pontes, 1995, p. 43-67.
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Émile. Problemas de Linguística Geral II. Campinas, SP: Pontes, 1995, p. 81-90.
FLORES, Valdir do Nascimento. Introdução à teoria enunciativa de
Benveniste. São Paulo: Parábola, 2013.
FLORES, Valdir do Nascimento; TEIXEIRA, Marlene. Linguística da
Enunciação - uma entrevista com Marlene Teixeira e Valdir Flores. ReVEL,
v. 9, n. 16, 2011. Disponível em: http://www.revel.inf.br/files/entrevistas/
revel_16_entrevista.pdf.
SUMÁRIO
323
FLORES, Valdir do Nascimento. Língua, sociedade e cultura. In:
FLORES, Valdir do Nascimento. Problemas gerais de linguística. São
Paulo: Vozes, 2019, p. 109-136.
HARARI, Yuval. Noah. Uma breve história da humanidade. Tradução de
Janaína MarcoAntonio. Porto Alegre, RS: L&PM, 2018.
MESCHONNIC, Henri. Benveniste: sémantique sans sémiotique. In :
MESCHONNIC, Henri. Dans le bois de la langue. Paris: Laurence Teper, 2008.
MILNER, Jean-Claude. Benveniste II: Ibat obscurus. In: MILNER, JeanClaude. El périplo estructural: figuras y paradigma. Buenos Aires:
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NEUMANN, Daiane. A problemática de uma antropologia histórica da
linguagem. Diálogo das Letras. Pau de Ferros, v. 6, n.2, p. 232-246, juldez.2017.
ROMERO, Marcia. Um possível diálogo entre as Teorias das Operações
Enunciativas e a Aquisição: identidade semântica e produtividade discursiva.
Alfa, São Paulo, 54 (2): 475-503, 2010.
ROSARIO, Heloísa Monteiro. Um périplo benvenisteano: o semiólogo e a
semiologia da língua. Tese de Doutorado (Estudos da Linguagem). UFRGS,
Instituto de Letras, Porto Alegre, 2018.
SILVA, Silvana. O homem na língua: uma visão antropológica da enunciação
para o ensino da escrita. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande
do Sul. 2013. Tese de Doutorado.
SILVA, Silvana. Sociedade, sociedades: epistemologias para estabelecer
princípios de uma teoria social da enunciação. Revista (Con)textos
linguísticos, vol. 10, n. 17, 2016, p. 236-253.
SUMÁRIO
324
Capítulo 12
12
AFINAL, O QUE É A COMUNHÃO
FÁTICA? ENSAIO SOBRE A
ENUNCIAÇÃO EM TEMPOS
DE ISOLAMENTO SOCIAL
Patrícia da Silva Valério
Patrícia da Silva Valério
AFINAL, O QUE
É A COMUNHÃO FÁTICA?
ENSAIO SOBRE
A ENUNCIAÇÃO EM TEMPOS
DE ISOLAMENTO SOCIAL
DOI: 10.31560/pimentacultural/2020.281.325-341
INTRODUÇÃO
Quando surgiu o convite para participar desta obra que presta
uma homenagem a Émile Benveniste pelos 50 anos de publicação
do artigo O aparelho formal da enunciação, não poderia imaginar
que escreveria este texto durante uma pandemia97 que, iniciada na
China em dezembro de 2019, chegou rapidamente ao continente
europeu, se espalhou pelas Américas e pelo território brasileiro, nos
afastando fisicamente das pessoas, já que o distanciamento social é
a recomendação mais segura da Organização Mundial da Saúde para
prevenir o rápido contágio.
O que essas informações da área da saúde têm a ver com a
linguística, ou, mais especificamente, com Émile Benveniste, poderá se
perguntar o leitor98? Este texto pretende mostrar que Émile Benveniste
tem muito a dizer sobre as relações humanas nesse período da
pandemia, e pode ser interessante entender seu pensamento para
além das décadas que nos separam da sua última publicação.
É inegável a abrangência interdisciplinar que o pensamento
deste autor, convocado por pesquisadores de diferentes áreas do
pensamento, é capaz de produzir, já que, como disse Teixeira (2012,
97 Até início do mês de maio de 2020, o SARS-CoV-2, vulgarmente conhecido como
coronavírus, havia acometido aproximadamente 4 milhões de pessoas no mundo e levado
à morte mais de 280 mil. No Brasil, onde há subnotificação de casos, pois não foram
aplicados testes em larga escala, registravam-se, até o momento em que este texto foi
finalizado, pelo menos 160 mil casos, com mais de 11 mil mortes. Fonte: https://g1.globo.
com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/05/10/numero-de-notificacoes-de-covid-19ultrapassa-4-milhoes-no-mundo.ghtml Acesso em: 10 mai. 2020.
98 Talvez o leitor experiente de Émile Benveniste encontre nessa reflexão pouca novidade. Entretanto,
registro minha satisfação em integrar esta publicação, que reúne produções de pesquisadores que
são referência nos estudos benvenistianos e cujas reflexões seguem inspirando pesquisas em Porto
Alegre, Passo Fundo e Pelotas, para citar apenas alguns. Este capítulo foi produzido a partir de um
lugar bastante particular, que assumi no projeto de pesquisa Linguagem e interação, desenvolvido
no Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo, e que visa aproximar
os estudos linguísticos das outras áreas do conhecimento.
SUMÁRIO
326
p. 72), “sob a descrição linguística miúda e pormenorizada estão
colocadas questões de interesse muito amplo”.
Os participantes do III Colóquio de leituras de Émile Benveniste,
realizado na Universidade Federal de Pelotas, em outubro de 2019,
puderam testemunhar a amplitude do pensamento desse autor cujas
reflexões dialogam com a filosofia, a literatura, a arte e podem ser
conferidas no conjunto de textos que integram edição especial99 da
Revista Linguagem e ensino da UFPEL.
Para explicitar a relação do pensamento de Émile Benveniste
com o que vivemos em tempo de isolamento social, revisitamos o
artigo publicado em 1970, olhando com atenção para uma discussão
presente na parte final, quando Benveniste cita textualmente Malinowski.
Trata-se de um trecho em que há uma referência a um fenômeno
denominado de “comunhão fática”, expressão usada por Malinowski,
retomada mais tarde por Jakobson, mas que muitas vezes acaba
sendo atribuída por alguns pesquisadores ao próprio Benveniste, como
vimos em alguns textos100 que tratam do tema enunciação. Buscamos
Malinowski para compreender a relação entre o conceito de comunhão
fática, resgatado por Benveniste, e o conceito de enunciação para,
finalmente, relacionar tais conceitos com as experiências de linguagem
vividas na atualidade.
99 A publicação da edição temática Leituras de Émile Benveniste, da Revista Linguagem &
Ensino, da Universidade Federal de Pelotas, durante a escrita deste texto, encontrava-se
em edição e deverá integrar o segundo número de 2020.
100 Um exemplo que comprova essa afirmação pode ser encontrado na obra A (re) escrita em
espaço escolar: a relação professor-saber-aluno, de Carmen Lúcia Hernandes Augustini e
Érica Daniela de Araújo (2019).
SUMÁRIO
327
A COMUNHÃO FÁTICA E A ENUNCIAÇÃO
Há algum tempo, o fenômeno da comunhão fática e sua
relação com a enunciação de Benveniste desperta nosso interesse.
O que seria esse “limite do diálogo”, que Benveniste refere ao final do
artigo publicado na Revista Langages? Seriam – a comunhão fática
e a enunciação – dois fenômenos distintos? Ou o que Malinowski
denominou de comunhão fática seria uma das possibilidades de
enunciação? Sendo a resposta a essa última pergunta sim ou não,
outra questão permanece em aberto: quais são os princípios que
atenderiam à condição da enunciação em Benveniste?
No artigo A linguagem e a experiência humana em serviços
de teleatendimento (VALÉRIO, 2018), tentamos argumentar sobre a
(im)possibilidade de construção da intersubjetividade em serviços
de teleatendimento, uma vez que, diante da artificialidade da
linguagem da máquina, as categorias de pessoa e de tempo não
estariam plenamente preenchidas101. Reconhecemos os limites da
reflexão daquele momento, embora o fenômeno da artificialidade da
comunicação com uma máquina que, muitas vezes, parece apenas
dar conta do contato continue produzindo efeitos nesta pesquisadora.
Nesse sentido, a reflexão de Milano (2020) sobre as categorias de
pessoa, tempo e espaço em recortes oriundos do campo da literatura
e do cinema mostra, inspirada em Dufour (2000), que há elementos
complicadores dependendo da visão assumida para lidar com um
determinado objeto, visão essa que pode assumir uma perspectiva
unária, binária ou trinitária. A perspectiva assumida pela pesquisadora
a partir do campo artístico mostra que a definição da categoria
“eu” pode se tornar bastante difusa, a depender do ponto de vista
101 É preciso informar, como ensinou Saussure, que o ponto de vista que delimitava o objeto
naquela ocasião era outro, posto que tomava por base outro artigo de Émile Benveniste, A
linguagem e a experiência humana (1965).
SUMÁRIO
328
assumido, o que significa que o conceito de pessoa pode assimilar
noções imbricadas de espaço e tempo.
A compreensão assumida no texto ora proposto sofre efeitos
dessas últimas leituras, especialmente desta perspectiva trinitária
resgatada por Milano (2020) e também do isolamento da pandemia.
Assim, este capítulo visa mostrar um percurso de leitura de trás
para frente do artigo O aparelho formal da enunciação – de agora em
diante OFE –, colocando em evidência o conceito de enunciação em
diálogo com o conceito de comunhão fática derivado de Malinowski.
Ao final, pretendemos mostrar em que medida as experiências vividas
na e pela linguagem durante esse período de distanciamento social se
relacionam (ou não) com tais conceitos.
É sabido que Benveniste redigiu o texto OFE atendendo ao
pedido de Todorov, que organizava uma edição especial da Revista
Langages sobre enunciação. Nesse texto, em que o linguista procura
sistematizar estudos de aproximadamente 30 anos sobre o tema
enunciação, chama atenção dos leitores atentos um trecho final, em
que há questões em princípio estranhas ao conjunto proposto: “Após
definir os diferentes aspectos da enunciação: vocal, semantização e
quadro formal da realização –, Benveniste lança-se num questionamento
acerca dos limites da enunciação” (FLORES; TEIXEIRA, 2013, p. 3).
Os pesquisadores referem-se ao questionamento do linguista síriofrancês acerca da possibilidade de haver diálogo102 fora da enunciação
102 Vale observar que esta é a primeira ocorrência da palavra diálogo no texto de Benveniste,
que comparece 11 vezes ao longo da reflexão, sendo apenas a última ocorrência entre
aspas (e no penúltimo parágrafo). A definição de diálogo em OFE não tem qualquer
relação com diálogo como princípio constitutivo do discurso, tal como significaria para
os intelectuais que integravam o Círculo de Bakhtin (BAKHTIN; VOLÓCHINOV, 2010). O
conceito de diálogo aqui parece estar restrito à concepção de forma. Quando Benveniste
(1989, p. 84) define enunciação como ato, afirma que este possibilita “a emergência dos
índices de pessoa (a relação eu-tu) que não se produz senão na e pela enunciação: o
termo eu denotando o indivíduo que profere a enunciação, e o termo tu, o indivíduo que
está aí presente como alocutário”.
SUMÁRIO
329
ou enunciação sem diálogo, ao qual o próprio linguista responde que
ambas devem ser examinadas.
Para mostrar a possibilidade de haver diálogo fora da enunciação,
o linguista explicita o hain-teny dos Merinas, espécie de jogo verbal
em que os parceiros do diálogo citam provérbios em sequência e em
réplica, em que “não há uma única referência explícita ao objeto do
debate” (BENVENISTE, 1989, p. 87). Vence o jogo aquele que dispuser
do maior estoque de provérbios, ou que for mais habilidoso, menos
previsível e surpreender o outro que não saberá o que responder.
O linguista conclui o exemplo, dizendo que este jogo tem apenas a
aparência de um diálogo ou, como argumentam Flores e Teixeira (2013),
há um diálogo na forma, mas não há diálogo no sentido. Chama-nos
atenção a afirmação de Benveniste sobre ausência de referência “ao
objeto do debate” no hain-teny dos Merinas. Ou seja, para Benveniste,
a referência é uma das condições da enunciação, como é possível
comprovar no início de OFE:
na enunciação, a língua se acha empregada para a
expressão de uma certa relação com o mundo. A condição
mesma dessa mobilização e dessa apropriação para a língua
é, para o locutor, a necessidade de referir pelo discurso,
e, para o outro, a possibilidade de co-referir identicamente,
no consenso pragmático que faz de cada locutor um colocutor. A referência é parte integrante da enunciação.
(BENVENISTE, 1989, p. 84, grifos nossos).
Assim, no hain-teny dos Merinas, não há enunciação, embora
exista diálogo, porque não há referência ao objeto do debate. Logo,
sem referência, não há enunciação. Não parece desnecessário lembrar
que, no início de OFE, Benveniste (1989, p. 82) registra interesse na
condição específica da enunciação como “o ato mesmo de produzir
um enunciado e não o texto do enunciado”, afirmação que poderia
indicar certa contradição com o que é dito posteriormente. Entretanto,
merece destaque a afirmação final da citação de que “a referência é
SUMÁRIO
330
parte integrante da enunciação”, isto é, esta não constitui, sozinha, a
enunciação, a qual que é ato.
Um segundo fenômeno, o qual caracterizaria a enunciação sem
diálogo, é o “monólogo”103. Este, explica Benveniste (1989, p. 87),
é “um diálogo interiorizado, formulado em ‘linguagem interior’ entre
um eu locutor e um eu ouvinte”. Sobre tal particularidade, Benveniste
(1989, p. 88) argumenta que, mesmo que apenas o eu locutor seja
o único a falar, o eu ouvinte permanece presente, e “sua presença é
necessária e suficiente para tornar significante a enunciação do eu
locutor”. O linguista do estudo das línguas mostra que este fenômeno
pode ocorrer em diversas línguas, como em francês, português, inglês,
alemão, russo. Trata-se de uma situação em que “EGO ou se divide em
dois, ou assume um dos papéis” (BENVENISTE, 1989, p. 88), graças a
uma característica do aparelho linguístico da enunciação, sui-reflexivo.
Antes de apresentar uma terceira variedade do que conclui
constituírem formas complexas do discurso, Benveniste (1989, p. 86,
grifos nossos) assim se refere às duas anteriores:
Estas situações exigiram uma dupla descrição, da forma
linguística e da condição figurativa. Contenta-se muito
facilmente com invocar a frequência e a utilidade práticas da
comunicação entre os indivíduos, para que se admita a situação
de diálogo como resultando de uma necessidade, abstendo-se
assim de analisar as múltiplas variedades.
Será que esta última afirmação de Benveniste antes de citar
Malinowski explicitaria uma crítica a certa simplificação no trato da
análise das múltiplas variedades do diálogo, já que as análises que
refere parecem se restringir à observação da frequência – utilidade
– necessidade de diálogo em detrimento da ausência de uma dupla
103 A palavra “monólogo” é referida somente quatro vezes no artigo de Benveniste. Em todas
as ocorrências, é usada entre aspas, o que leva o leitor a observar que não se trata de um
monólogo no sentido tradicional do termo, mas de um “monólogo” apenas na forma, já que
o sentido é de diálogo, como compreendem Flores e Teixeira (2013).
SUMÁRIO
331
descrição (da forma linguística e do quadro figurativo)? O que estaria
faltando seria isso: foco na forma e na condição figurativa? Não temos
essa resposta, mas suspeitamos que Benveniste a vislumbrasse num
horizonte próximo.
Benveniste (1989, p. 88-89) refere-se a uma dessas múltiplas
variedades como sendo das mais banais em aparência, denominada
por Malinowski de comunhão fática, um “processo em que o
discurso, sob a forma de um diálogo, estabelece uma colaboração
entre os indivíduos”.
O linguista sírio-francês traduz algumas passagens do texto
do antropólogo polonês que merecem nossa atenção. Antes disso,
queremos registrar nossa surpresa com o fato de É. Benveniste traduzir
mais de uma página de trecho do artigo de Bronislaw Malinowski,
publicado na obra The meaning of meaning, de Ogden e Richards
(1923), e inserir esse trecho traduzido no artigo O aparelho formal da
enunciação. É sempre bom lembrar o fato de que, em que pese a
profundidade teórica, trata-se de um artigo de pequena extensão, já
que ocupa somente dez páginas da obra Problemas de Linguística
Geral II (de agora em diante, PLG II).
Flores e Teixeira (2013), como dissemos, tematizaram o conteúdo
desta parte final do artigo OFE. O interesse dos pesquisadores,
entretanto, recaía menos na referência sobre a comunhão fática e
mais no fato de Benveniste ter trazido à baila tão extensa citação de
Malinowski. O argumento dos autores à época era de que Benveniste
evocaria o antropólogo muito em razão de seu interesse nas interrelações entre linguagem e cultura, o que mostra o alcance social
do fenômeno linguístico na perspectiva benvenistiana. Não só
corroboramos, como queremos insistir nesse argumento, resgatando
o próprio Malinowski.
SUMÁRIO
332
O artigo de B. Malinowski foi publicado na obra The meaning
of meaning, de Ogden e Richards (1923)104. Trata-se, como podemos
comprovar, do ensaio The Problem of Meaning in Primitive Languages,
de B. Malinowski, p. 296-336, à época professor titular da cadeira
de Antropologia da Universidade de Londres. O ensaio contém seis
seções dedicadas à reflexão sobre a questão do sentido nas línguas
primitivas e ao trabalho do etnógrafo. Benveniste seleciona trechos de
Malinowski a partir da página 313, os quais integram a seção IV, cuja
ementa, na parte introdutória do texto, é assim apresentada ao leitor:
A linguagem, em sua função primitiva, deve ser vista como um
modo de ação, e não como um contra-sinal de pensamento.
Análise de uma situação complexa da fala entre selvagens.
Os usos primitivos essenciais da fala: fala em ação,
manipulação ritual das palavras, a narrativa, ‘comunhão
fática’ (discurso em relações sociais). (MALINOWSKI, 1923,
p. 296, tradução nossa) 105.
Malinowski introduz a seção IV de seu texto, apresentando
uma espécie de lista topicalizada de temas que serão desenvolvidos.
Chama atenção a afirmação de que a linguagem deve ser vista como
um modo de ação e não como uma expressão do pensamento. O
antropólogo anuncia a partir de que ponto de vista construirá sua
argumentação sobre a impossibilidade de se traduzir palavras de
uma língua primitiva ou de uma língua muito diferente da nossa sem
fornecer uma descrição detalhada da cultura de seus usuários. Seu
interesse parece recair sobre questões que envolvem a significação
(e o sentido) em uma perspectiva etnográfica, a qual implica um
modo de ação. Vejamos um trecho do próprio Malinowski (1923,
p. 313, tradução nossa) que confirma essa afirmação: “o discurso
104 Este artigo de Malinowski é o primeiro de dois ensaios suplementares que constam ao
final da obra.
105 No original: “Language, in its primitive function, to be regarded as a mode of action, rather
than as a countersign of thought Analysis of a complex speech-situation among savages.
The essential primitive uses of speech: speech-in-action, ritual handling of words, the
narrative, ‘ phatic communion’ (speech in social intercourse)” (MALINOWSKI, 1923, p. 296).
SUMÁRIO
333
narrativo encontrado em comunidades primitivas é principalmente
um modo de ação social e não um mero reflexo do pensamento”106. A
análise do discurso narrativo das comunidades primitivas evidencia,
portanto, um modo de ação.
Retornando ao texto OFE de Benveniste, percebemos que,
na leitura que fizemos até então, havia nos passado despercebida a
afirmação de Malinowski sobre a linguagem como um modo de ação.
Para nós, o interesse do linguista parecia recair exclusivamente em um
único aspecto: a definição da enunciação como atendendo ou não
o critério do diálogo107. Ocorre que a compreensão da enunciação
como um modo de ação em Benveniste não parece mero detalhe,
na medida em que permite vislumbrar, se não na essência, ao menos
uma pequena convergência com uma reflexão que Benveniste propõe
no texto A filosofia analítica e a linguagem (1963), publicado em PLG
II, em que mostra, conforme apontamos em estudo recente, “não
uma simples rejeição à definição do par constativo-performativo da
escola de Oxford, mas uma persistência da noção de enunciação
como acontecimento, como ato, evento único” (VALÉRIO, 2020,
no prelo). Ou seja, acreditamos que a reflexão de Benveniste sobre
o caráter performativo dos enunciados aponta para uma condição
específica desses, que não nega simplesmente a característica de
ação dos enunciados, mas acrescenta-lhes outra definição, que,
talvez, especifique a primeira, a de enunciado como modo de ação.
Acreditamos que a noção de enunciação como ato em Benveniste
encontra abrigo no conceito de comunhão fática em Malinowski.
No trecho que Benveniste destaca de Malinowski, vemos que
o antropólogo cita exemplos da linguagem usada no livre e fortuito
intercurso social, tal como o que ocorre quando um grupo se senta
106 No original: “narrative speech as found in primitive communities is primarily a mode of
social action rather than a mere reflection of though” (MALINOWSKI, 1923, p. 313).
107 E a comunhão fática de Malinowski, se não poderia ser considerada como enunciação,
estaria, pelo menos, “no limite do diálogo”.
SUMÁRIO
334
junto à fogueira da aldeia para conversar, após um dia de trabalho.
E afirma: “aqui a língua não depende do que acontece no momento;
parece estar até privada de qualquer contexto de situação. O sentido de
cada enunciado não pode estar ligado ao comportamento do locutor
ou do ouvinte, com a intenção do que estão fazendo” (MALINOWSKI,
apud BENVENISTE, 1989, p. 89). A longa citação revela que frases
de cortesia, perguntas sobre a saúde ou comentários sobre o tempo
são frases trocadas sem a intenção de informar ou de expressar um
pensamento, mas representam um novo tipo de uso linguístico, o qual
Benveniste nomeia de comunhão fática, “um tipo de discurso em que os
laços de união são criados pela mera troca de palavras” (MALINOWSKI,
apud BENVENISTE, 1989, p. 89). Tal discurso, conforme Malinowski,
não se presta a transmitir uma significação, tampouco para expressar
um pensamento, mas assume como principal objetivo o preenchimento
de uma função social. Seu argumento recai na definição do contexto
de situação, como o lugar onde se dá a troca de palavras que ocorrem
pela comunhão de sentimentos específicos que formam a convivência
gregária, pelo vai e vem que constituem o tagarelar comum. Nesta
função, conclui o antropólogo, a linguagem se manifesta como um
modo de ação.
Não nos parece que Benveniste traga Malinowski em
citação tão longa por mero acaso. Tampouco que a definição de
comunhão fática esteja no mesmo plano dos exemplos anteriores
e rapidamente citados (o hain-teny dos Merinas e o “monólogo”).
Talvez – e isso não está escrito textualmente por Benveniste, de
modo que assumimos este argumento por nossa conta e risco –,
o exemplo de Malinowski que aponta a comunhão fática como um
modo de ação do discurso possua características que interessem à
reflexão sobre enunciação de Benveniste.
Após essa longa transcrição do ensaio de Malinowski,
Benveniste (1989, p. 90) afirma: “Estamos aqui no limite do diálogo”
SUMÁRIO
335
e conclui que “A análise formal desta forma de troca linguística está
por fazer”. Entretanto, em nota de rodapé, cita duas referências sobre
o que seria uma possibilidade de análise formal desta forma de troca
linguística, um artigo da filósofa Grace de Laguna (1927) e outro de
Jakobson (1963).
Esta é a hipótese que levantamos e na qual queremos insistir.
O argumento principal de Malinowski, na seção IV de seu artigo,
parece mostrar que a linguagem pode, muito mais do que servir para
comunicar ou expressar pensamento, ser importante para o comungar
entre as pessoas, entendendo-se comungar como o preenchimento
de uma função social. Essa terceira função da linguagem não seria, na
leitura que fizemos, nem mais nem menos importante, mas uma outra
possibilidade conferida à enunciação. Se essa função social seria a
forma complexa do discurso que estaria por se fazer, Benveniste não
diz. Entretanto, a definição de Malinowski para enunciação expressa
no final da citação108 é assumida, na íntegra, por Benveniste no início
do artigo OFE.
Como sabemos, Benveniste não teve tempo de dar continuidade
a essa reflexão, em razão da afasia de que foi acometido. Entretanto,
o tema da comunhão fática segue pulsando entre os estudos
linguísticos da atualidade.
Nesse sentido, encontramos um estudo de Couto (2013) que
julgamos bastante apropriado para a reflexão que propomos: a de que
antes de qualquer coisa, para poder iniciar qualquer contato, é preciso
estar em comunhão com o outro. Couto (2013) é o representante
principal dos estudos da Ecolinguística109, uma visão de linguagem que
108 É de Malinowski a afirmação de que “a enunciação é um ato” (ver citação direta de
Malinowski feita por Benveniste, 1989, p. 90).
109 Parte dos estudos do linguista da Universidade de Brasília pode ser consultada no artigo
O que vem a ser ecolinguística, afinal?, publicado na Revista Cadernos de Linguagem e
Sociedade (2013, n. 14, v.1).
SUMÁRIO
336
assume como componente central algo que o pesquisador define por
ecologia da interação comunicativa, os atos de interação que emergem
na linguagem e que incluem o conceito de “comunhão”, derivado
da “comunhão fática” de Malinowski. A esse conceito, Couto (2013)
acresce a definição do linguista francês Gobard (1976, p. 23), para
quem “a condição sine qua non de todo desenvolvimento humano é a
relação afetiva em que a linguagem serve de suporte a uma comunhão
e não a uma comunicação” (GOBARD apud COUTO, 2013, p. 303).
O que há de comum entre a comunhão fática de Malinowski, o
conceito de enunciação em Benveniste, especialmente em OFE, e o
estudo de comunhão na linguagem proposto por Couto (2013)?
Pensamos que Benveniste evoca Malinowski porque a definição
do antropólogo sobre a comunhão fática como ação (não como
expressão do pensamento nem como mera troca de informação)
está profundamente relacionada com o conceito de enunciação que
Benveniste assume no início deste mesmo artigo, conforme acabamos
de informar. Vejamos uma afirmação do linguista nas páginas iniciais,
quando argumenta que as condições de emprego das formas não
são idênticas às condições de emprego da língua e acrescenta: “São
em realidade dois mundos diferentes, e pode ser útil insistir nesta
diferença, a qual implica uma outra maneira de ver as mesmas coisas,
uma outra maneira de as ver e de as interpretar” (BENVENISTE, 1989,
p. 81). Insistimos no que afirma o linguista: uma outra maneira de ver as
mesmas coisas, uma outra maneira de as ver e de as interpretar.
Assim, será que as condições de emprego da língua nas formas
complexas do discurso, para Benveniste, poderia contemplar o que
Malinowski define por comunhão fática?
Acreditamos que, se o conceito de comunhão fática em
Malinowski coincidir com o conceito de enunciação em Benveniste,
como ato, é possível que sim. Sendo assim, vejamos a definição de
SUMÁRIO
337
enunciação em Malinowski, citado pelo próprio Benveniste (1989, p.
90): “Cada enunciação é um ato que serve o propósito de unir o ouvinte
ao locutor por algum laço de sentimento, social ou de outro tipo. Uma
vez mais, a linguagem, nesta função, manifesta-se, não como um
instrumento de reflexão, mas como um modo de ação”.
Desse modo, acreditamos que a visada antropológica de
Benveniste sobre a enunciação não à toa acolhe a definição de
Malinowski. A compreensão do antropólogo polonês acerca do
fenômeno da linguagem como algo que, muito mais do que expressar
pensamento ou comunicar, representa um modo de ação parece
influenciar decisivamente a definição do conceito de Benveniste
para enunciação em OFE como ato: “É o ato mesmo de produzir
um enunciado e não o texto do enunciado que é nosso objeto”
(BENVENISTE, 1989, p. 82).
Respondida nossa relação entre o conceito de enunciação e
o de comunhão fática, resta estabelecer o elo com a atualidade. O
que a linguística da enunciação tem a ver com esses tempos de
pandemia? Antes de responder, recorremos a Couto (2013), para
quem os especialistas, ao tratarem de temas de interesse de sua área,
não podem jamais esquecer-se de que ela é parte de um todo maior.
Linguística, linguagem e pandemia, portanto, eis a relação.
CONCLUSÃO
É chegada a hora de tentar responder a proposição que
fizemos no início deste capítulo. O que fizemos (e continuamos
fazendo) durante a quarentena? Estamos expressando pensamento,
nos comunicando ou mantendo contato? São essas três ações
distintas? Vemos que não é possível sequer referirmo-nos a essas
três possibilidades sem usar a palavra “ação”.
SUMÁRIO
338
O que assistimos na televisão, nas transmissões ao vivo, nas
interações e trocas de mensagens nas redes sociais, nos telefonemas
e nas ligações por videochamadas, especialmente nesse período de
distanciamento social?
O que temos feito senão mantermo-nos em comunhão, sob
diversas formas, tomando emprestada a definição de Couto (2013)
acerca da comunhão fática, uma das múltiplas variedades do diálogo,
cuja análise formal está ainda por se fazer, como previu Benveniste
(1989)? Seria a representação de um modo de ação um dos princípios
que atenderiam à condição da enunciação em Benveniste?
Não temos certeza desse critério, mas não temos dúvida de
que é através da língua/linguagem que suportamos esse período
de quarentena. Defendemos que a máxima de que, “bem antes de
servir para comunicar, a linguagem serve para viver” (BENVENISTE,
1989, p. 222) foi o que nos suportou enfrentar – e assim seguimos
– a incerteza do tempo de espera pelo fim do isolamento físico (ou
distanciamento social110). Falamos e escrevemos para nos mantermos
vivos e tentarmos nos manter saudáveis durante esse período tão
singular e complexo. Trabalhamos, escrevemos, fizemos contato com
amigos e familiares, mas também experienciamos situações inusitadas
de pessoas estranhas cantando umas para as outras nas sacadas,
fazendo exercícios para incentivar a mobilidade umas às outras. Tudo
isso para tentar enganar a morte que nos espreita pela janela.
Uma das muitas possibilidades de buscar vida nesse período
tem sido a literatura. Finalizamos esta reflexão com uma pequena
amostra de um trecho da obra A desumanização, de Valter Hugo Mãe
(2017, p. 40):
110 Valeria a pena explorar os sentidos de ambas as expressões, que não são sinônimas. Em
razão do objetivo deste capítulo, não exploraremos.
SUMÁRIO
339
[...] só existe a beleza que se diz. Só existe a beleza se existir
interlocutor. A beleza da lagoa é sempre alguém. Porque a
beleza da lagoa só acontece porque a posso partilhar. Se não
houver ninguém, nem a necessidade de encontrar a beleza
existe nem a lagoa será bela. A beleza é sempre alguém, no
sentido em que ela se concretiza apenas pela expectativa da
reunião com o outro.
É esta linguística viva e pulsante na arte e na vida que tem nos
inspirado na pesquisa.
REFERÊNCIAS
BENVENISTE, Émile. Problemas de Linguística geral ll. Campinas, SP:
Pontes, 1989.
BAKHTIN, Mikhail; VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e Filosofia da
Linguagem. 16. ed. São Paulo: Hucitec editora, 2010.
COUTO, Hildo Honório de. (2013). O que vem a ser ecolinguística,
afinal?. Cadernos de Linguagem e Sociedade, 14 (1), 275-312. https://doi.
org/10.26512/les.v14i1.22250
FLORES, Valdir do Nascimento; TEIXEIRA, Marlene. As perspectivas para o
estudo das formas complexas do discurso: atualidades de Émile Benveniste.
ReVEL, edição especial, n. 7, 2013.
MÃE, Valter Hugo. A desumanização. São Paulo: Biblioteca Azul, 2017.
HERNANDES AUGUSTINI, Cármen Lúcia; ARAÚJO, Érica Daniela de.
A (re) escrita em espaço escolar: a relação professor-saber-aluno.
Curitiba, Appris, 2019.
MALINOVSKI, Bronislaw. The Problem of Meaning in Primitive Languages. In:
OGDEN; RICHARDS. The meaning of meaning. Harcourt, Brace & World, Inc.
NOVA YORK, 1923.
MILANO, Luiza. As coisas significam alguma coisa?: sobre as limitações do
arbitrário do signo. Linguagem & Ensino, Pelotas, n. 2. v. 23, 2020. No prelo.
SUMÁRIO
340
VALÉRIO, Patrícia da Silva. A linguagem e a experiência humana em
serviços de teleatendimento. Revista Desenredo, 14 (3), 480-489. https://doi.
org/10.5335/rdes.v14i3.8561
VALÉRIO, Patrícia da Silva. O performativo em Benveniste e Dufour.
Linguagem & Ensino, Pelotas, n. 2. v. 23, 2020. No prelo.
SUMÁRIO
341
Capítulo 13
13
A REALIZAÇÃO DA ENUNCIAÇÃO:
UM ESTUDO DOS INSTRUMENTOS
NO ENSINO DA LEITURA
Claudia Toldo
Claudia Toldo
A REALIZAÇÃO
DA ENUNCIAÇÃO:
UM ESTUDO
DOS INSTRUMENTOS
NO ENSINO DA LEITURA
DOI: 10.31560/pimentacultural/2020.281.342-362
Uma língua sem expressão da pessoa é inconcebível.
Émile Benveniste (1995, p. 287)
INTRODUÇÃO
Mais uma vez o texto-síntese de Émile Benveniste, produzido em
1970, a pedido de Todorov para a Revista Langages, escrito – então –
para linguistas, volta à cena, se é que algum dia saiu. Nesta reflexão,
vou trazer o conceito norteador de toda a reflexão apresentada por
Benveniste no único texto em que ele traz o termo enunciação, logo
no título: “A enunciação é este colocar em funcionamento a língua por
um ato individual de utilização” (1989, p. 82). É deste ato individual que
quero tratar. Essa será minha reflexão de fundo, meu porto seguro a
que vou recorrer sempre, para elaborar minhas considerações.
O objetivo deste texto é trazer ponderações que possam auxiliar
a pensar no processo de leitura em sala de aula da educação básica,
a partir da afirmação de Benveniste, quando trata da enunciação,
neste texto de 70: “Na enunciação consideraremos, sucessivamente, o
próprio ato, as situações em que ele se realiza, os instrumentos de sua
realização” (1989, p. 83). Vou me deter nos instrumentos, perguntandome: de que instrumentos Benveniste está falando?
Esta reflexão será dividida em duas partes, a saber: 1) na
primeira farei um recorte de questões específicas do Aparelho Formal
da Enunciação111, para evidenciar os conceitos que quero pontuar
e ressaltar, focalizando os instrumentos; 2) na segunda, pretendo
mostrar como podemos fazer uma análise enunciativa de textos,
observando os instrumentos que o locutor utilizou quando colocou a
língua em funcionamento. Algumas palavras finais fecham a reflexão
111 A partir daqui, trataremos o texto como Aparelho.
SUMÁRIO
343
e, certamente, mostram as lacunas deste texto que podem ser
preenchidas em outra discussão.
Registro, ainda, que este texto se enquadra na segunda parte
deste livro, relacionada ao social. Isso se justifica na medida em que
considero um trabalho enunciativo com a língua na escola, tomando
análises textuais, um movimento social do professor de língua, quando
pensa efetivamente num trabalho producente com a leitura na escola.
Ensinar a ler é oportunizar a constituição de sujeitos que, ao se
enunciarem, marcam-se na e pela língua, entendo seu funcionamento.
COLOCAR EM FUNCIONAMENTO
A LÍNGUA: COMO ASSIM?
O título da seção traz o que efetivamente me inquieta, provoca,
move e motiva à escrita desta reflexão. Nesta seção, trarei e farei
considerações acerca dos instrumentos apontados por Benveniste
no texto de 70, o Aparelho. Mas antes disso, precisamos de algumas
premissas de Benveniste, para que possamos construir a reflexão
desejada neste texto. Desde já esclareço que não vou trabalhar com o
texto do Aparelho em sua integralidade. Estou fazendo um recorte do
conceito de enunciação e do que Benveniste considera neste ato de
enunciar. Um recorte para um deslocamento posterior.
O texto inicia trazendo o emprego das formas como um
procedimento importante nas descrições linguísticas executadas.
Declara que esse emprego diz respeito às regras que organizam
o modo como essas formas são escolhidas e colocadas em
funcionamento, quando enunciadas, evidenciando a língua em
emprego. Todavia, pontua, imediatamente, que as condições de
uma (emprego das formas) não são iguais às de outra (língua em
SUMÁRIO
344
emprego). Como diz Benveniste (1989, p. 81), “... são dois mundos
diferentes”, uma vez que se trata de algo local – organização do
enunciado, pelas escolhas feitas das formas linguísticas – e de algo
global, que atinge a língua inteira – enquanto mecanismo total e
constante que afeta a língua toda, a própria enunciação. A partir disso,
Benveniste traz o célebre conceito de enunciação: “A enunciação é
este colocar em funcionamento a língua por um ato individual de
utilização” (BENVENISTE, 1989, p. 82). Poderíamos nos perguntar de
imediato: utilização de quê? Só nos resta imaginar a utilização do
mecanismo, do aparelho que traz o emprego das formas que atingem
peculiaridades da língua em emprego, construindo o aparelho da
enunciação. Benveniste alerta: “É preciso ter cuidado com a condição
específica da enunciação: é o ato mesmo de produzir um enunciado,
e não o texto do enunciado, que é nosso objeto” (BENVENISTE, 1989,
p. 82). O que me interessa singularmente é o que ele [Benveniste] diz
em seguida: “Este ato é o fato do locutor que mobiliza a língua por
sua conta” (BENVENISTE, 1989, p. 82). Por que isso me interessa?
Por acreditar que, ao dizer que o locutor mobiliza a “língua por sua
conta”, encontramos um locutor que toma a língua, escolhe as
formas, evidentemente numa relação com o outro, combinando-as
e determinando quais recursos linguísticos vai utilizar para produzir
seus enunciados – na minha perspectiva, seu texto. Assim, marca-se
nele. Percebemos com isso que língua e enunciação são conceitos
distintos, mas constitutivos. Retomo uma reflexão que já fiz em outro
momento (TOLDO, 2019), mas parece-me que cabe novamente e
é necessária. Esse ato evidencia a ação do locutor que mobiliza
a língua por sua conta, ou seja, o locutor que emprega as formas
da língua – o aparelho da língua – e com elas produz diferentes
enunciações, na medida em que revela a língua em emprego. Esse
movimento deflagra o processo construído pelo locutor ao produzir
seus enunciados. Flores (2013) chama a atenção para as palavras
ato e processo usadas por Benveniste, uma depois da outra, para
SUMÁRIO
345
dizer o que é enunciação. Vejamos o que diz o texto de 70: “Este ato
é o fato do locutor que mobiliza a língua por sua conta”. Em seguida:
“Este grande processo pode ser estudado [...]” (BENVENISTE, 1989,
p. 82, grifos nossos). Diante dessas palavras de Benveniste, afirma
Flores (2013, p. 164):
O primeiro ponto que chama a atenção aqui é o fato de
Benveniste dizer que a enunciação é um grande processo,
tendo, logo antes, afirmado que ela é um ato. A questão
aqui é: a enunciação é um ato ou um processo? Ou ambos?
É possível observar tanto o lado processual quanto o lado
acional da enunciação: ela é um ato porque, através dela, o
locutor transforma a língua em discurso e essa transformação
se dá, entre outros motivos, como um processo de
agenciamento de formas e sentidos. Por isso, a enunciação
comporta múltiplos aspectos.
Nesta reflexão que ora apresento, tomo ato como a relação do
locutor com a língua e com o interlocutor, em dada situação comunicativa,
essa sempre nova, única, singular, irrepetível; e processo, como algo
que se renova a cada instância de discurso, quando o aparelho da
língua é colocado em funcionamento, ou seja, diz respeito a todo
processo que este colocar a língua em funcionamento provoca. Assim,
embora o uso da língua seja descrito no conceito de enunciação como
um ato e um processo que compreendem apropriação e atualização,
sintagmatização e semantização são, na verdade, dois aspectos
inerentes à conversão da língua em discurso. A sintagmatização está
atrelada à noção de semantização e está a seu dispor, na medida em
que evidencia o trabalho do locutor com a língua que a mobiliza por
sua conta, na relação com o outro. O que temos aqui? A percepção de
que o processo da enunciação é o que possibilita o emprego da língua;
é o que evidencia o locutor operando com a língua, quando – “mobiliza
a língua por sua conta”.
É a partir desse processo de agenciamento de formas e sentidos
que Benveniste explica três aspectos que a enunciação comporta:
SUMÁRIO
346
a) o aspecto vocal da língua; b) a conversão individual da língua em
discurso e c) o quadro formal de sua realização. Quanto ao aspecto
vocal da língua, Benveniste traz a diversidade de situações nas quais
uma enunciação pode ser produzida; quanto à conversão da língua
em discurso, Benveniste pondera sobre “como o ‘sentido’ se forma
em palavras” (BENVENISTE, 1989, p. 83), chamando a atenção para a
questão de como distinguir essas duas noções e como descrever sua
interação. Temos aqui o trabalho do agenciamento das formas, pelo
locutor, observando “os procedimentos pelos quais as formas linguísticas
da enunciação se diversificam e se engendram” (BENVENISTE, 1989,
p. 83); e, quanto ao quadro formal de sua realização, trago as próprias
palavras de Benveniste para tratar da pauta: “Tentaremos esboçar,
no interior da língua, os caracteres formais da enunciação a partir
da manifestação individual que ela atualiza” (BENVENISTE, 1989, p.
83). Esses caracteres são necessários e permanentes, incidentais e
ligados à particularidade do idioma. O quadro formal de realização
da enunciação – o terceiro aspecto da enunciação – evidencia três
elementos: o ato de enunciação, a situação em que a enunciação se
realiza e os instrumentos de sua realização.
É nesses instrumentos que me detenho neste trabalho. Em Toldo
e Flores (2015, p.43), temos algumas considerações acerca disso.
É através do ato que o locutor passa a ser elemento indispensável
à enunciação, pois é ele [o locutor] quem realiza o ato individual de
utilização da língua. Antes disso, “a língua não é senão possibilidade
da língua” (BENVENISTE, 1989, p. 83). Quando o locutor se apropria
da língua e se enuncia, concretiza esse ato de enunciação. Assim, a
língua é atualizada em uma instância de discurso, instaurando o locutor
(que produz o ato da enunciação) e o alocutário (que produzirá outra
enunciação). Essa apropriação da língua pelo locutor, eu, instaura o tu
e refere pelo discurso.
SUMÁRIO
347
Quanto à situação, Benveniste (1989) liga-a ao conceito de
referência. Ele diz:
[...] na enunciação, a língua se acha empregada para a
expressão de uma certa relação com o mundo. A condição
mesma dessa mobilização e dessa apropriação da língua é,
para o locutor, a necessidade de referir pelo discurso, e, para o
outro, a possibilidade de co-referir identicamente, no consenso
pragmático que faz de cada locutor um co-locutor. A referência
é parte integrante da enunciação. (BENVENISTE, 1989, p. 84).
Portanto, através da referência podemos ver a correferência –
pelos instrumentos – no e pelo discurso.
Quanto aos instrumentos, Benveniste afirma que a enunciação
– enquanto uma realização individual – é antes de tudo um processo
de apropriação que introduz aquele que fala. Isto é: “O locutor se
apropria do aparelho formal da língua e enuncia sua posição de
locutor por meio de índices específicos, de um lado, e por meio de
procedimentos acessórios, de outro” (BENVENISTE, 1989, p. 84).
Então os instrumentos são os índices específicos e os procedimentos
acessórios. É sobre isso que pontuo a partir de agora, a fim de
tratar do que me proponho discutir nestas reflexões que apresento:
o papel/a presença dos instrumentos no ato do locutor mobilizar a
língua por sua conta.
Ao tratar dos instrumentos, objetivo específico desta
minha reflexão, recorro uma vez mais às palavras de Benveniste
(BENVENISTE, 1989, p. 84):
Enquanto realização individual, a enunciação pode se definir em
relação à língua, como um processo de apropriação. O locutor
se apropria do aparelho formal da língua e enuncia sua posição
de locutor por meio de índices específicos, de um lado, e por
meio de procedimentos acessórios, de outro.
SUMÁRIO
348
Então esses instrumentos são os índices específicos e os
procedimentos acessórios112. Iniciemos pelos índices específicos. O
próprio termo – “índice” – já nos aponta para algo como – “indica”,
“especifica” – o que é próprio do fenômeno a ser tratado. Como
diz Benveniste (1989, p. 84), “Esta situação vai se manifestar por
um jogo de formas específicas, cuja função é colocar o locutor em
relação constante e necessária com sua enunciação”. Portanto, o
que é específico da enunciação? Os índices de pessoa (eu/tu), os
índices de ostensão (aqui/lugar) e os índices temporais (tempo) –
ou seja, as formas específicas das categorias de pessoa, tempo e
espaço, manifestadas na enunciação, e estudadas por Benveniste em
muitos textos anteriores a 70. Trago as palavras de Flores (2013, p.
168) para resumir a questão: “Os índices específicos da enunciação
são exaustivamente estudados por Benveniste em vários textos
e estão ligados às categorias de pessoa, tempo e espaço”. E para
comprovar tal observação, Flores (2013) traz a nota de rodapé número
2, colocada na página 85, do texto de 70. Diz a nota de Benveniste:
“Os detalhes dos fatos de língua que apresentamos aqui de um modo
sintético, estão expostos em muitos capítulos de nossos Problèmes
de linguistique générale, I (Paris, 1966), o que nos dispensa de insistir
sobre eles”. Portanto, parece-me que não cabe explicitar mais nada
aqui. Acolho a nota de Benveniste, uma vez que estamos enunciando
para alocutários conhecedores da obra do linguista francês. Tentarei
mostrar esse funcionamento na análise que apresento a seguir.
E quanto aos procedimentos acessórios? Se considerarmos o
termo/a palavra “acessório”, já identificamos algo não obrigatório, mas
necessário ao locutor que deseja mobilizar a língua de um modo e não
de outro. Esses procedimentos vão marcar o modo como o processo
da enunciação vai se construir; vão mostrar o modo como as formas
112 Para uma abordagem teórica mais detalhada, ver; ARESI, Fábio. Os índices específicos
e os procedimentos acessórios da enunciação. Revista Virtual de Estudos da Linguagem
(ReVEL), v. 9, p. 262-275, 2011.
SUMÁRIO
349
da língua serão agenciadas, a fim de semantizá-las, mostrando como
o sentido se forma em palavras vão revelar como o locutor mobiliza
a língua por sua conta; vão apontar o aparelho de funções de que
dispõe o locutor; vão trazer à cena enunciativa caracteres formais
da enunciação a partir da manifestação individual que ela atualiza;
vão marcar a relação do locutor com seu interlocutor e com a língua
que coloca em funcionamento; vão exibir um agenciamento sintático
de caracteres que revelam um modo particular, único e irrepetível a
cada vez que são empregados; vão manifestar como o locutor faz
a conversão individual da língua em discurso; vão singularizar cada
enunciado produzido, cada enunciação realizada. Ou seja, o locutor
manifesta e atualiza o que diz Benveniste (1989, p. 84):
O ato individual de apropriação da língua introduz aquele que
fala em sua fala. Este é um dado constitutivo da enunciação. A
presença do locutor em sua manifestação faz com que cada
instância de discurso constitua um centro de referência interno.
Podemos dizer, então, que os índices específicos e os
procedimentos acessórios são conceitos diferentes, mas constitutivos
do aparelho da enunciação, na medida em que operam na construção
de uma enunciação a cada vez única e particular. Isso tudo sinaliza
marcas de subjetividade do locutor no enunciado que produz. Assunto
para detalhar em outra reflexão.
A fim de realizar uma tentativa de fazer ver esse “processo”,
apresento a seguir um esboço de análise de texto. Acredito que, se
um sujeito aprende a ler um texto, considerando o que apresentei
anteriormente, teremos um sujeito leitor que entenderá como mobilizar
a língua por sua conta. Vamos a essa amostra de análise.
SUMÁRIO
350
ANÁLISE TEXTUAL: UM ENSAIO ENUNCIATIVO
O texto que trago a seguir é uma crônica – com todas as suas
caraterísticas do gênero113 – produzido a partir de uma situação
particular, vivida pelo comunicador Piangers114, relatada em sua coluna
e publicado no Jornal Zero Hora, no final de semana de 18 e 19 de maio
de 2019. Neste exemplo, quero pontuar os instrumentos utilizados – ao
observar a mobilização da língua – pelo locutor do texto. Ao texto:
113 Não vou discutir gênero aqui, pois não é meu objetivo e acredito que isso – neste momento
– não vai alterar a reflexão que proponho.
114 Comunicador da Rede Brasil Sul de Comunicação (RBS), conhecido pelo Programa
“Pretinho Básico”.
SUMÁRIO
351
Não pode riscar
Piangers
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SUMÁRIO
Me ocorreu contar aqui sobre aquela vez em que os conselhos que dei para minha
filha pequena se voltaram contra mim. Perceba: não sou desses pais que permite que
as crianças desenhem na parede de casa. Sei que existem estes pais, moderninhos
e criativos, que acham que é importante a criança se expressar. Também acho, mas
não na parede do nosso apartamento. Permito que durmam sem tomar banho, por
vezes; permito que não comam toda a comida que está no prato (meu trauma de
infância); permito que comam frutas antes do almoço, arruinando seu apetite; mas não
permito que desenhem na parede, nem no sofá, nem nos armários, nem na roupa,
nem na mochila. “Não pode riscar!”, eu sempre disse, desde que eram pequenas.
Pois bem, um dia fui chamado para palestrar em um evento ao lado de uma
grande personalidade internacional, Steve Wozniak, o programador que ao lado de
Steve Jobs fundou a Apple, a empresa que faz o iPhone e os lindos computadores
Macintosh. Desde que comprei meu primeiro computador da Apple, em 2008,
parcelado em 12 vezes na Americanas.com, sou fascinado pelo bom gosto da
empresa. Estar em um evento com Steve Wozniak foi, portanto, uma honra.
Horas antes do evento, a organização me informou que, além da minha palestra,
gostariam que eu ficasse no palco por mais alguns minutos, realizando uma entrevista
com Wozniak e conduzindo as perguntas da plateia. Imaginem minha honra: além
de palestrar antes do meu ídolo poderia conversar com ele por mais de uma hora
em cima do palco. Sei que a memória nos prega peças, mas gosto de imaginar que
ele admirou meu inglês fluido, riu de uma ou outra observação que fiz de improviso
e gostaria de me reencontrar. Imagino que esteja agora em algum lugar da Califórnia
pensando como foi agradável aquele dia ao lado daquele brasileiro barbudo.
Depois que saímos do palco ainda tivemos a chance de conversar nos bastidores
e, ciente de que me arrependeria se não o fizesse, ofereci meu notebook da Apple para
que ele autografasse. “No problem”, disse meu amigo célebre. E escreveu: “Woz”,
com uma caneta vermelha. Imaginem minha emoção, meu computador agora tinha um
autógrafo do criador de uma das mais valiosas empresas de tecnologia do mundo.
Cheguei em casa radiante, deixei o computador em cima da mesa da sala e fui
para o banho. “Que grande dia”, pensei, ainda ensaboando o cabelo. Enquanto colocava
o pijama pensei que seria prudente colocar algum tipo de proteção no autógrafo, para
que o tempo não apagasse esta valiosa recordação. Fui até o computador e lá estava
minha filha pequena, lambendo o dedo indicador e esfregando-o contra a assinatura.
“Não pode riscá”, dizia ela, enquanto apagava o autógrafo. “Não pode riscá”, ela dizia.
352
Como disse, o texto traz o relato de uma situação vivida por
Piangers, a partir do convite que recebeu para palestrar num evento
internacional, ao lado de Steve Wozniak, o que gerou um segundo
convite: ficar no palco por mais alguns minutos, realizando uma entrevista
com Wozniak e conduzir as perguntas da plateia. A partir dessa situação,
o fato narrado e seus desdobramentos. Considerarei, para a análise, o
que considera Benveniste (1989:83): “Na enunciação consideraremos,
sucessivamente, o próprio ato, as situações em que ele se realiza,
os instrumentos de sua realização”. Quanto ao ato e à situação, farei
observações sumárias, uma vez que o que me interessa são os
instrumentos de realização deste texto em especial.
Quanto ao ato, podemos destacar que o locutor do texto “Não
pode riscar?” se apropria da língua e se propõe como sujeito, na medida
em que instaura diante de si um “tu” – o leitor do jornal Zero Hora.
Quando Piangers se apropria da língua e se enuncia, mobiliza a língua
por sua conta, enquanto ato individual, concretizando a enunciação.
Nesse momento, a língua se realiza e se atualiza em uma instância
de discurso particular – no caso do texto, a palestra e a entrevista –,
instaurando o locutor (que produz o ato da enunciação e se propõe
como sujeito) e o alocutário/leitor (que produzirá outra enunciação,
na medida em que é constituído pelo eu locutor). Essa realização e
essa atualização são sempre novas e únicas, na medida em que uma
enunciação é sempre singular, irrepetível. Piangers pode até apropriarse da língua novamente e escrever outro texto com esses fatos, mas
jamais teremos uma mesma enunciação e jamais ele será o mesmo.
É essa apropriação da língua, pelo eu, que instaura o tu e constrói
a referência pelo discurso. Assim, o locutor convoca um colocutor, o
alocutário, que juntos corroboram outro elemento do quadro formal da
enunciação: a situação.
Esse segundo elemento – a situação de enunciação – vai se
manifestar por um “jogo de formas específicas”. Essas formas são,
SUMÁRIO
353
primeiramente, os índices de pessoa, evidenciando a categoria de
pessoa da e na enunciação, a saber o “eu” e o “tu”. No texto em análise,
percebemos os índice de pessoa em construções como “... Me ocorreu
contar aqui” (linha 1), “não sou desses pais que permite” (linha 2),
“Permito que durmam sem tomar banho” (linha 3), “fui chamado para
palestrar” (linha 10), “a organização me informou” (linha 16), “Imaginem
minha honra” (linha 18), “Depois que saímos do palco ainda tivemos
a chance de conversar nos bastidores” (linha 25), “Imaginem minha
emoção” (linha 28), “Cheguei em casa radiante, deixei o computador
em cima da mesa da sala e fui para o banho” (linhas 30 e 31), “Fui
até o computador e lá estava minha filha pequena” (linhas 33 e 34),
“Não pode riscá”, dizia ela, enquanto apagava o autógrafo. “Não pode
riscá”, ela dizia” (linha 35). Vejamos: a categoria de pessoa neste texto
está marcada (no pronome e no verbo) quando se refere ao próprio
Piangers que relata situações vividas por ele e quando ele concede o
espaço de “eu” para sua filha, que enuncia dizendo “‘Não pode riscá’,
dizia ela, enquanto apagava o autógrafo. ‘Não pode riscá’, ela dizia”
(linha 35). O “tu” é convocado quando o locutor do texto nos intima a
participar da sua “honra” no enunciado, “Imaginem minha honra” (linha
18) e da sua emoção, quando diz “Imaginem minha emoção” (linha
28). “Eu” e “tu” convocados pelo colocar a língua em funcionamento
por um ato individual de utilização. Os índices de ostensão – ou seja,
a categoria de lugar – podem ser percebidos em enunciados como:
“permite que as crianças desenhem na parede de casa” (linhas 2 e 3),
“mas não permito que desenhem na parede, nem no sofá, nem nos
armários, nem na roupa, nem na mochila” (linhas 7 a 9), “gostariam
que eu ficasse no palco por mais alguns minutos” (linha 17), “Imagino
que esteja agora em algum lugar da Califórnia pensando como foi
agradável aquele dia ao lado daquele brasileiro barbudo” (linhas 22
a 24), “Cheguei em casa radiante, deixei o computador em cima da
mesa da sala e fui para o banho” (linhas 30 e 31). Podemos perceber
que todos esses enunciados trazem a categoria de lugar em relação
SUMÁRIO
354
ao “eu” do enunciado. Todos os lugares citados no texto estão em
função do “eu”. O locutor mobiliza a língua para marcar o lugar que
o “eu” ocupa nesta enunciação em particular – o fato narrado por
Piangers. É dela que se trata agora. É nela que se mobiliza a língua
por sua conta e se enuncia de forma particular. O “eu” convoca o “tu”
– leitor de ZH – a estar no lugar enunciado e sentir a sua “a emoção”,
a sua “a honra”. “Eu” e “tu” no “mesmo lugar” marcado no texto e
construído nesta enunciação. Outra forma específica desse jogo de
formas são as formais temporais que se determinam em relação ao
“eu”, sujeito da enunciação. Podemos perceber isso em enunciados
como: “os conselhos que dei para minha filha pequena se voltaram
contra mim” (linhas 1 e 2), “Permito que durmam sem tomar banho,
por vezes” (linha 5), “um dia fui chamado para palestrar” (linha 10),
“Desde que comprei meu primeiro computador da Apple, em 2008”
(linha 13), “Depois que saímos do palco” (linha 25), “E escreveu: «Woz”,
com uma caneta vermelha” (linhas 27 e 28), “Enquanto colocava o
pijama pensei” (linhas 31 e 32). Notamos que todas as considerações
temporais (presentes ou passadas) estão em relação ao que narra o
“eu”. Ou seja, a temporalidade construída no texto dá-se pela e na
enunciação construída pelo locutor. Como diz Benveniste (1989, p. 85)
Da enunciação procede a instauração da categoria do presente,
e da categoria do presente nasce a categoria do tempo. O
presente é propriamente a origem do tempo. Ele é esta presença
no mundo que somente o ato de enunciação torna possível,
porque, é necessário refletir bem sobre isso, o homem não
dispõe de nenhum outro meio de viver o “agora” e de torná-lo
atual senão realizando-o pela inserção do discurso no mundo”.
Poesia pura! “[...] da categoria do presente nasce a categoria do
tempo”, e isso só é possível por um ato individual de utilização da língua.
É a relação do locutor com a língua – que a mobiliza por sua conta –
que determina os caracteres linguísticos da enunciação. Passemos,
então, para os procedimentos acessórios, que são inumeráveis, uma
SUMÁRIO
355
vez que dependem de como o locutor sabe, consegue colocar a língua
em funcionamento por um ato individual.
Nesta análise, destacamos alguns recursos linguísticos
mobilizados enquanto acessórios, mas necessários para dar sentido
às formas agenciadas, para este texto. Poderíamos ter selecionados
outros para análise. Mas não fizemos. Ao que escolhemos, recortamos
enunciados como: “Sei que existem estes pais, moderninhos e criativos,
que acham que é importante a criança se expressar. Também acho,
mas não na parede do nosso apartamento” (linhas 3 a 5). Neste caso,
percebemos a mobilização de conhecimentos (talvez senso comum)
acerca da educação dos filhos. A ideia de concessão construída com
o “também acho, mas não pode”, evidencia posicionamento do locutor
por um modo de dizer. É a sintaxe da língua e o arranjo das formas
que constroem essa ideia de concessão/oposição de ideias sobre a
educação dos filhos. Outro exemplo, pode ser observado no enunciado:
“grande personalidade internacional, Steve Wozniak, o programador
que ao lado de Steve Jobs fundou a Apple, a empresa que faz o iPhone
e os lindos computadores Macintosh” (linhas 11 a 13). A apresentação
das personalidades aqui deve ser descrita de tal modo que se construa
a referência de quem são essas pessoas citadas e a importância que
têm para provocar tal “honra” e tal “emoção” descritas pelo locutor
do texto. A referência construída é parte integrante da enunciação.
O “tu” precisa que o “eu” lhe dê pistas para construir referências,
oportunizando o entendimento dos sentimentos expressos pelo “eu”.
Outro exemplo é a escolha lexical que dá uma ideia da relação do
locutor do texto com o “ele” – a personalidade –, apresentado no texto,
a saber: “além de palestrar antes do meu ídolo poderia conversar
com ele por mais de uma hora em cima do palco” (linhas 18 a 20). A
escolha da palavra “ídolo” marca qual a relação do “eu” com aquele
de quem fala – Steve Wozniak. Outro exemplo é a ironia presente no
enunciado “Imagino que esteja agora em algum lugar da Califórnia
pensando como foi agradável aquele dia ao lado daquele brasileiro
SUMÁRIO
356
barbudo” (linhas 22 a 24). O “eu” se coloca como uma figura singular,
para falar de si mesmo e imaginar que o outro sentirá saudades do
“barbudo” com um “inglês fluido”. O locutor se coloca, ironizando
de si mesmo. O modo como o texto traz a combinação das formas
evidencia uma ironia, constitutiva do sentido construído no texto. E,
ainda, poderíamos chamar a atenção para o último parágrafo que
justifica a presença do primeiro. Neste parágrafo final do texto, temos
as marcas da rotina do “eu” (tomar banho, ensaboar o cabelo, colocar
o pijama) que recuperam a rotina colocada no início do texto referente
à menina (comer, dormir, deixar comida no prato, desenhar). Recupera
considerações que trazem questões da educação da filha. Esse modo
de recuperar o que, efetivamente, o texto quer trabalhar, evidencia um
modo de elaborar a questão: princípios norteadores para educação
de filhos e a importância do que os pais dizem aos seus. Há um
modo particular de dizer aqui: o locutor cita um fato vivido em outra
situação, para tratar daquilo que se diz a um filho, tendo presente a
sua educação. Assim, coaduno com as palavras de Benveniste (1989,
p. 86): “É preciso então distinguir as entidades que têm na língua seu
estatuto pleno e permanente e aqueles que, emanando da enunciação,
não existem senão na rede de ‘indivíduos’ que a enunciação cria e
em relação ao ‘aqui-agora’ do locutor”. Ou seja, isso tudo só é
possível quando o locutor mobiliza a língua por sua conta e coloca-a
em funcionamento pelo agenciamento de formas e procedimentos
necessários à construção do(s) sentido(s) do texto.
Isso tudo marca a subjetividade do locutor no texto, na
medida em que esse trabalho do locutor, único e individual, efetiva
a atualização do emprego da língua, do seu modo. E isso deve ser
ensinado na leitura de um texto. Esta deve ser a leitura trabalhada,
ensinada, produzida na escola. Ler então é visto como um movimento
de perceber nos textos em análise as diversas possibilidades de
leitura que ele me dá, porque assim foi construído, porque assim seu
SUMÁRIO
357
locutor agenciou as formas e as semantizou. Isso sempre será uma
possibilidade de leitura. Depende de quem lê.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao colocar um ponto final nesta reflexão, trago considerações
“finais” em duas direções: uma relacionada ao objetivo deste texto ao
propor um encaminhamento acerca do trabalho de leitura na escola;
outra mais teórica relacionada ao próprio fazer teórico, considerando
uma análise (de texto, neste caso) enunciativa. A saber, que nunca
acabamos uma reflexão teórica, na medida em que ela é sempre
inconclusa, apenas decidimos parar de dizer.
Quanto à questão da leitura, gostaria de sublinhar que fazer um
trabalho com o texto na escola de educação básica – principalmente no
nível da recepção – é fazer um trabalho que revele os mecanismos de
construção de um texto, atribuindo-lhe, assim, sentido(s). Destaco que
um texto se torna pleno com sua leitura, atualizando seus sentido(s) a
cada vez feita. Toda leitura de um texto, portanto, é individual, singular,
única, pois é elaborada com base nas experiências leitoras e nos
textos já lidos por cada locutor. Um texto é (multi) significativo e cada
leitor atualiza as possibilidades que tem para fazer essa atividade
de compreensão da língua em funcionamento, que não significa
decodificar códigos. Trata-se de uma atividade muito mais complexa
e dependente de todos os momentos e experiências anteriores de
leitura. Por isso que, a cada texto, um trabalho com seus mecanismos
organizadores é necessário, para que os alunos possam ver, analisar,
entender e internalizar diversas e diferentes maneira de ler e, por sua
vez, escrever. Isso provoca a construção de um leitor mais qualificado,
que se torna aprendiz de sua própria atividade de ler. Frank Smith
(1991, p. 19) diz que “a função dos professores não é tanto ensinar a
SUMÁRIO
358
ler, mas ajudar as crianças a ler”. E isso se faz mostrando aos alunos
a organização do funcionamento do texto, revelando o modo como as
formas da língua apresentam a língua em emprego, a maneira que o
sentido “ocupou” as palavras engendradas no texto. Smith (1991, p.
82-83) traz a leitura como uma experiência – atual e anterior. Ele diz:
A leitura é uma experiência. Ler sobre uma tempestade não
é o mesmo que estar em uma tempestade, mas ambos são
experiências. Respondemos emocionalmente a ambos e
podemos aprender com ambos. Mas o aprendizado, em cada
caso, é um derivado da experiência. Não vivemos para adquirir
informação, mas a informação, assim como o conhecimento,
sabedoria, habilidades, atitudes e satisfações, vem com a
experiência de estar vivo.
Portanto, as experiências de leitura na escola devem oportunizar
momentos de aprendizagem significativa; por exemplo: ler com a
habilidade de quem aprendeu a ver/ler como a língua funciona em
textos. Essa experiência exige paciência, minúcia, trabalho do professor
com o texto que propõe à leitura.
Quanto à segunda conclusão, gostaria de fazer algumas
ponderações, a partir da reflexão teórica que fiz, evidenciando o recorte
feito – os instrumentos – do texto do Aparelho de Benveniste (1970)
e, principalmente, a análise construída nesta reflexão. Considerase: nunca daremos conta da totalidade de um texto, uma vez que
a análise do texto tem a ver com o analista e suas escolhas para tal
tarefa; nunca daremos conta de explicar o funcionamento total de um
texto; a linguística de Benveniste nunca visou à exaustividade, mas
a possibilidade de dizer algo – não tudo – sobre o funcionamento
da língua em emprego; os elementos trabalhados neste texto
são importantes para a construção do sentido desta crônica, não
necessariamente de outras; o que se observou aqui, pode não ser
observado em outro texto – por exemplo, a comparação, o uso da
língua estrangeira, questões morfológicas da crônica do Piangers
SUMÁRIO
359
não foram analisadas, mas num outro momento e/ou num outro texto
poderiam – o que não significa que funcionariam da mesma maneira;
a análise sempre será inconclusa e incompleta – tendo em vista o todo
– porque sempre será realizada pelo olhar do analista que escolha
o que analisar – poderíamos trazer aqui as experiências de leitura,
tratadas anteriormente, que quer provocar; o analista vai privilegiar os
caracteres que julgar importante, útil, necessário a tratar. Na verdade,
o analista de um texto deve ser perguntar: como o falante faz para
dizer o que diz ao colocar a língua em funcionamento?
Na verdade, uma análise deve contemplar dois caminhos: um
semiótico, quando trata da descrição das formas, das unidades, de
seus empregos, de suas propriedades, de seus dados observáveis,
tendo presente a língua enquanto sistema; um semântico, na medida
em que realiza um comentário sobre os elementos analisáveis (no
texto, neste caso), apoiado na descrição semiótica executada. Fazer
uma análise do semântico de um texto é comentá-lo. E comentar um
texto é fazer com que o locutor se enuncie, falando sobre as formas
da língua empregadas. E isso é uma necessidade do falante que
toma a língua e a utiliza em um ato individual, atualizando-a na e pela
enunciação, por sua conta. Quanto a isso, coaduno com as palavras
de Flores (2019, p. 80):
[...] nenhuma língua pode prescindir da enunciação e de
suas categorias. Trata-se de uma existência necessária que
transcende as diferenças entre as línguas, uma vez que que as
unifica na exigência da atualização pelo falante. O fato de que
precisem ser enunciadas para existir é a melhor prova de que
dependem do aparato da enunciação e é a melhor prova de sua
necessidade. Se uma língua é outra coisa além de um “código”,
de uma “estrutura” ou mesmo de uma “competência” é porque
há uma necessidade imanente à sua configuração como língua,
que é a necessidade de ser enunciada.
Portanto, trabalhar com o semiótico (descrição das formas) e o
semântico (comentário sobre essa descrição), numa análise textual,
SUMÁRIO
360
é perceber como a língua organiza a experiência do sujeito-falanteleitor a cada vez que esse se enuncia. Para concluir, trago as notáveis
palavras de Normand, quando trata da análise linguística, a partir de
Benveniste. Diz ela (2009, p. 182):
[...] a análise do semântico (análise desta ou daquela unidade
de discurso) associa uma análise semiótica do enunciado
a um comentário sobre a situação cada vez particular da
enunciação (tal sujeito, tal tempo, tal referente, tal interação,
cujas marcas fazem parte da descrição semiótica); assim como
todo comentário de texto, essa análise interpreta os enunciados,
mas não pretende dizer tudo sobre seu sentido. A distinção
semiótico/semântico, portanto, somente levaria a lembrar da
necessidade de considerar aquele que fala (o sujeito) e, por
consequência, de não pretender dizer o todo do sentido do que
ele enuncia, que nenhuma análise pode encerrar.
Então, podemos perceber que, a partir de uma descrição
do particular da língua (emprego das formas num texto), uma nova
leitura é possível. Isso se dá pela interação subjetiva entre falantes.
Essas leituras devem ser ensinadas na escola, quando se descreve
a língua em emprego.
REFERÊNCIAS:
BENVENISTE, Émile. O aparelho formal da enunciação. In: BENVENISTE,
Émile. Problemas de Linguística Geral II. Tradução de Eduardo Guimarães.
Campinas, SP: Pontes, 1989.
BENVENISTE, Émile. Problemas de Linguística Geral I. Tradução de Maria
da Glória Novak e Maria Luisa Neri. ; revisão do Prof. Isaac Nicolau Salum.
Campinas, SP: Pontes, 1989.
FLORES, Valdir do Nascimento. Introdução à teoria enunciativa de Benveniste.
São Paulo: Parábola, 2013.
FLORES, Valdir do Nascimento. Problemas gerais de linguística. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2019.
SUMÁRIO
361
TOLDO, Claudia; FLORES, Valdir do Nascimento. Esboço de uma abordagem
enunciativa do texto. In: TOLDO, Claudia; STURM, Luciane (Orgs.). Letramento:
práticas de leitura e escrita. Campinas, SP: Pontes Editores, 2015.
NORMAND, Claudine. Convite à linguística. Organização de Valdir do
Nascimento Flores e Leci Borges Barbisan. Tradução de Cristina de Campos
Velho Birck et al. São Paulo: Contexto, 2009.
SMITH, Frank. Compreendendo a leitura: uma análise psicolinguística
da leitura e do aprender a ler. Tradução de Daise Batista. Porto Alegre:
Editora: Artmed, 1991.
SUMÁRIO
362
Parte 3
A SEMIOLOGIA
Parte
3
A SEMIOLOGIA
Capítulo 14
14
A RELAÇÃO LÍNGUA-LÍNGUA E A
RELAÇÃO LÍNGUA-SOCIEDADE:
ALGUMAS OBSERVAÇÕES
COM VISTAS À REFLEXÃO
SEMIOLÓGICA DE BENVENISTE
Heloisa Monteiro Rosário
Heloisa Monteiro Rosário
A RELAÇÃO
LÍNGUA-LÍNGUA E A RELAÇÃO
LÍNGUA-SOCIEDADE:
ALGUMAS OBSERVAÇÕES
COM VISTAS À REFLEXÃO
SEMIOLÓGICA DE BENVENISTE
DOI: 10.31560/pimentacultural/2020.281.364-392
INTRODUÇÃO
A reflexão semiológica de Benveniste – seu pensamento sobre
a semiologia da língua – marca sua produção teórica desenvolvida
nos anos 1960. Essa produção se concentra, mais especificamente,
no final da década, em seus últimos anos de atividade profissional, e
em dois diferentes (embora inter-relacionados) espaços de trabalho:
o espaço do pesquisador, em artigo e/ou conferência, e o espaço
do professor, em aulas ministradas em um de seus dois cursos no
Collège de France.
Ressalto que Benveniste ocupa a cátedra de gramática
comparada no Collège de France, onde ministra, às segundas, um
curso sobre “Problemas de linguística geral” e, às terças, um curso no
qual se dedica ao domínio do indo-europeu.
Este estudo retoma uma parte da discussão proposta em
Rosário (2018), buscando apresentar algumas observações sobre
a reflexão semiológica do linguista através de uma análise de duas
questões: a da relação língua-língua (ou seja, a questão da escrita) e a
da relação língua-sociedade. Para isso, são mobilizados, entre outros
textos de seus Problemas de linguística geral (PGLI,1966/1995; PLGII;
1974/1989), dois artigos do PLGII – “Semiologia da língua” (1969/1989)
e “Estrutura da língua e estrutura da sociedade” (1970/1989) –, além
da edição genética de suas aulas no curso das segundas, publicadas
originalmente com o título de Últimas aulas no Collège de France (1968
e 1969) (2012/2014)115.
A análise dessas questões tem como objetivo mostrar de
que modo elas se apresentam na reflexão de Benveniste, de um
lado, e consequentemente de que modo compõem, de outro, sua
115 Daqui para frente, também, Últimas aulas. A propósito das datas, aliás, para que o leitor
se situe adequadamente, informo a data da publicação original ao lado daquela de sua
correspondente tradução brasileira.
SUMÁRIO
365
reflexão semiológica como um todo. Dito de outro modo, buscando
o fio dessas discussões (como se desenrolam ao longo dos textos),
procuro compreender no que consiste sua semiologia da língua.
E isso porque parto do pressuposto de que sua semiologia da
língua vai muito além do apresentado no final do artigo “Semiologia
da língua”, a saber: a proposta de uma metassemântica, uma
semiologia de segunda geração.
Nesse sentido, a partir do segundo capítulo de suas Últimas
aulas, trato inicialmente da questão da escrita e de suas distintas perspectivas de entendimento na discussão de Benveniste. Em seguida,
abordo a reflexão a respeito da sociedade, fundamentando a discussão sobretudo em três textos: os artigos “Estrutura da língua e estrutura
da sociedade” e “Semiologia da língua”, assim como sua quinta aula
no Collège de France no ano letivo 1968-1969. Por fim, considerando
os dois textos em que a questão semiológica é explicitamente o objeto de Benveniste (“Semiologia da língua” e Últimas aulas)116, faço um
contraponto entre a questão da escrita e a da sociedade, buscando
algumas aproximações possíveis para mostrar que essas questões
são, na verdade, parte de um amplo campo de estudos aberto pelo
linguista que envolve diferentes aspectos: a relação da língua com os
outros sistemas, consigo mesma, com a sociedade e, inclusive, com
os textos e as obras, através da questão da metassemântica.
A RELAÇÃO LÍNGUA-LÍNGUA: A
QUESTÃO DA ESCRITA
Benveniste trata da relação língua-língua – a relação semiológica
da língua consigo mesma – em sua reflexão a respeito da questão
da escrita. Essa questão (mencionada no final da Parte I do artigo
116 Digo isso porque a palavra “semiologia” aparece em títulos indicados pelo
próprio Benveniste.
SUMÁRIO
366
“Semiologia da língua”, publicado em 1969) é, de fato, discutida por
Benveniste em suas aulas, de fevereiro a março desse mesmo ano, no
Collège de France117.
No artigo, sobre a escrita, o linguista se limita a dizer que
reserva a “este difícil problema” um exame particular (BENVENISTE,
1969/1989, p. 51). O que aconteceria, segundo Fenoglio (2016b, p.
13), em um texto cuja publicação Benveniste havia previsto para a
revista Semiotica118. Desse texto, supondo-se que tenha sido realmente
escrito, sabe-se apenas que não foi publicado.
A discussão sobre a questão da escrita aparece, portanto, em
suas Últimas aulas; mais especificamente, no segundo capítulo dessa
obra, cujo título, “A língua e a escrita”, segue a denominação atribuída
pelo linguista ao conjunto de oito aulas que se estendem da Aula 8 (de
3 de fevereiro) até a Aula 15 (de 24 de março).
Nessas aulas, a reflexão de Benveniste sobre a escrita não
busca sua origem nem sua história, o que ele próprio esclarece na
Aula 9 (de 10 de fevereiro): “Não estou fazendo genética das escritas,
nem procurando a origem da escrita. Quero apenas ver quais soluções
o homem deu ao problema da ‘representação gráfica’” (BENVENISTE,
1969/2014119, p. 139, grifo do autor).
Não se trata, por outro lado, de uma reflexão na qual a escrita
seja compreendida como produção escrita (como um texto) nem
tampouco como enunciação escrita. Desse modo, nada tem a ver seja
com a parte final de “Semiologia da língua”, na qual Benveniste se
117 Fenoglio (2016a, p. 153-154) aponta, vale ressaltar, que manuscritos inéditos do linguista
mostram que a questão da escrita já havia sido abordada em suas aulas de linguística geral
no ano letivo de 1963–1964.
118 Fenoglio (2016b) considera aqui as próprias colocações de Benveniste no Annuaire du
Collège de France relativo ao ano letivo 1968-1969.
119 Nessas citações, não indico 2012/2014, mas 1969/2014, pois desejo sublinhar a data
em que as aulas aconteceram e não a data de sua publicação original, ocorrida anos
mais tarde.
SUMÁRIO
367
refere a textos e obras, seja com a parte final de “O aparelho formal
da enunciação”, de 1970, na qual se refere às “formas complexas
do discurso” e à enunciação escrita; enunciação que, conforme o
linguista, seria preciso distinguir da enunciação falada (BENVENISTE,
1970/1989, p. 90).
Retomo, com isso, a crítica de Laplantine (2013) às considerações
de Coquet e Fenoglio (2012/2014) na “Introdução” que fazem para as
Últimas aulas. Saliento, porém, que o ponto de vista de Benveniste
em “Semiologia da língua” e em suas Últimas aulas é rigorosamente
o mesmo: como defende Laplantine (2013) e também Flores (2013;
2017), trata-se de um ponto de vista semiológico.
A esse respeito, inclusive, relacionando os três textos (as Últimas
aulas com os artigos “Semiologia da língua” e “O aparelho formal da
enunciação”), Flores é bastante claro:
As Últimas aulas são um momento de evidente desenvolvimento
de um aspecto do mecanismo de interpretância da língua,
anunciado no texto “Semiologia da língua”, o da interpretância
da língua por ela mesma. No entanto, a escrita é chamada a
comparecer ali em função de suas características semiológicas
e não como enunciação escrita, como aparece em “O
aparelho”. Em outras palavras, o termo escrita em Últimas
aulas não é sinônimo da expressão enunciação escrita,
presente em “O aparelho formal da enunciação” (FLORES,
2017, p. 104, grifos do autor).
Benveniste, em suas aulas, está interessado em mostrar a relação
intrínseca da escrita com a língua, um sistema significante especial em
meio aos sistemas semiológicos. É nesse contexto que a questão da
escrita é tratada e, consequentemente, deve ser compreendida. Não é
à toa, afinal, a referência à escrita presente em “Semiologia da língua”,
assim como seu aparecimento após a discussão, em particular, das
aulas 5, 6 e 7 (aulas dos dias 13, 20 e 27 de janeiro, respectivamente),
SUMÁRIO
368
nas quais Benveniste se interroga e discorre sobre as relações
existentes entre os sistemas semiológicos120.
A diferença do artigo para as aulas é somente uma: se Benveniste
decide não falar da escrita em “Semiologia da língua”, dedica uma
boa parte de suas aulas no Collège de France a essa questão, o que
acontece, na verdade, desde a Aula 7, última aula do primeiro capítulo,
cujo título, seguindo a indicação dada por Benveniste ao conjunto das
sete primeiras aulas (de 2 de dezembro de 1968 a 27 de janeiro de
1969), é “Semiologia”.
Nessa sétima aula, defendendo que uma “distinção de base
entre sistemas deve ser respeitada”, uma vez que há sistemas “que se
contêm eles próprios”, “sistemas autônomos”, de um lado, e sistemas
“que têm necessidade de um interpretante”, “sistemas dependentes”,
de outro, o linguista postula que uma “hierarquia deve ser estabelecida
entre sistemas autônomos e sistemas dependentes”, o que ilustra
através da relação entre a língua e a escrita: “Por exemplo, o sistema de
escrita, que só existe em relação à língua. Porém, trata-se de ver como
um sistema que utiliza a mão, deixando um traço escrito, representa a
120 O início da Aula 6 corresponde, aliás, ao final da Parte I de “Semiologia da língua”, quando
o linguista se propõe a retomar “este grande problema [a questão da semiologia e de seu
objeto: os sistemas semiológicos] no ponto em que Saussure o deixou” (BENVENISTE,
1969/1989, p. 50): “Não basta, a partir de Saussure, propor a existência de vários sistemas
semiológicos. É preciso perguntar se eles coexistem livremente; se é possível criá-los à
vontade; se eles subsistem indefinidamente; ou se eles de alguma maneira formam um
conjunto; se eles têm relações e quais; se eles se comandam um ao outro” (BENVENISTE,
1969/2014, p. 115, grifos meus). E se, na Aula 5, Benveniste se refere pela primeira vez
à relação de interpretação entre sistemas (BENVENISTE, 1969/2014, p. 109), na Aula 7,
o autor lança algumas questões a propósito da especificidade da língua em relação aos
demais sistemas – “a língua seria ainda um sistema semiótico, no sentido em que são os
outros sistemas? Ela não seria outra coisa?” (BENVENISTE, 1969/2014, p. 120).
SUMÁRIO
369
língua. Há assim uma significância de primeiro grau, outra de segundo
grau etc.” (BENVENISTE, 1969/2014, p. 121 [nota de ouvinte]121).
Se, na Aula 7, a escrita – mais especificamente, o sistema
semiológico da escrita (um sistema interpretado) – consiste, então, em
um exemplo da relação de interpretância estabelecida entre a língua (o
sistema interpretante) e os outros sistemas (os sistemas interpretados),
um outro ponto de vista, porém, é igualmente apresentado por
Benveniste ao longo de suas aulas sobre a escrita no capítulo seguinte.
Esse ponto de vista também resulta, é claro, de uma análise da
relação estabelecida entre a língua e a escrita (o sistema da escrita).
Benveniste continua interessado pelas relações entre os sistemas, e
a língua continua aparecendo como o sistema interpretante em uma
relação de interpretância da escrita. A escrita, todavia, não aparece mais
(pelo menos não é mais apresentada) como um sistema dependente,
interpretado, portanto, mas como um outro modo de ser língua.
Ou seja, Benveniste coloca mais em evidência a relação da língua
consigo mesma do que a relação entre um sistema interpretante e um
sistema interpretado. É importante que essas distintas perspectivas de
entendimento sejam observadas.
Nesse sentido, é bastante significativa a parte referente
à escrita (a última tratada no curso de 1968-1969) presente no
resumo que Benveniste faz de suas aulas no Annuaire du Collège
de France 1968-1969:
Enfim, examinamos as relações entre a língua e o sistema
semiótico constituído pela escrita. Ao final de um exame
121 Por ser tratar de uma obra estabelecida geneticamente a partir de notas preparatórias
de Benveniste, de um lado, e de notas de três ouvintes de suas aulas no Collège de
France (Jean-Claude Coquet, Jacqueline Authier-Revuz e Claudine Normand), de outro,
é importante que as passagens citadas pertencentes às notas de seus alunos sejam
indicadas. Daí por que o uso, nas citações, da notação: [nota de ouvinte]. Saliento
que as notas de Coquet e Authier-Revuz foram consideradas no estabelecimento do
primeiro e do segundo capítulos, ao passo que as de Coquet e Normand compuseram
o terceiro capítulo.
SUMÁRIO
370
detalhado que nos fez percorrer os diferentes modelos de
escrita atestados na história, pareceu-nos que, contrariamente
à ideia admitida por todo lado, a escrita não constitui um
sistema distinto122. É o prolongamento ou a projeção da própria
língua, e, portanto, a mesma situação no que concerne aos
sistemas extralinguísticos. Vemos na escrita o instrumento e a
manifestação do processo de autossemiotização da língua
(BENVENISTE apud LAPLANTINE, 2013, p. 3, grifos meus,
tradução minha).
Essa parte mostra, de fato, o interesse do linguista pelas
relações e pelos sistemas, em especial pelo exame das relações entre
a língua e a escrita. A escrita é definida como um sistema semiótico123
diferente da língua (“um sistema distinto” que se caracteriza pela
dupla significância) e, nesse aspecto, comparável aos sistemas
extralinguísticos (os sistemas não linguísticos).
Benveniste não insiste, contudo, como na Aula 7, em uma
perspectiva de entendimento da escrita como sistema interpretado.
Seu ponto de vista, nesse momento, é outro. Para o linguista, sendo a
escrita “o prolongamento ou a projeção da própria língua”, ela constitui
“o instrumento e a manifestação do processo de autossemiotização da
língua”, mostrando, desse modo, a língua interpretando não os outros
sistemas, mas, sim, a si mesma.
Essa nova perspectiva de entendimento da escrita (distinta mas
não oposta, acredito, à da Aula 7) é a que Benveniste desenvolve a
partir da Aula 8 e a que é finalmente apresentada na Aula 12 (de 3
de março), que inicia com a seguinte definição: “A autossemiotização
da língua: A escrita foi sempre e por toda a parte o instrumento que
122 Nesse mesmo resumo, Benveniste (apud LAPLANTINE, 2013, p. 3, tradução minha)
define a língua “como um sistema distinto” em relação aos demais, devido “ao fato de
que a língua – e apenas a língua – significa de dois modos diferentes: semiótico enquanto
formada de signos distintivos, semântico enquanto capaz de enunciar mensagens”, o que
“explica, por sua vez, o poder metalinguístico que a língua é a única a possuir”.
123 Confirmando, aliás, que escrita não corresponde, nesse contexto, à produção escrita (a
texto) nem tampouco à enunciação escrita.
SUMÁRIO
371
permitiu à língua semiotizar a si mesma” (BENVENISTE, 1969/2014, p.
155 [nota de ouvinte]).
Nessa aula, especialmente nos itens “1. A língua semiotiza tudo”
e “2. A língua semiotiza a si mesma”, o linguista trata da propriedade que
a língua tem de tudo semiotizar, inclusive, a si mesma (BENVENISTE,
1969/2014, p. 157, grifos do autor).
Em “1. A língua semiotiza tudo”, Benveniste (1969/2014, p. 157,
grifos do autor) sustenta, então, que a “língua pode – e pode sozinha
– dar a um objeto ou a um processo qualquer o poder de representar”;
por isso, segundo ele, “para que um objeto seja ‘sagrado’, para que
um ato se torne um ‘rito’, é preciso que a língua enuncie um ‘mito’,
dê a razão de sua qualidade, torne ‘significantes’ os gestos ou as
palavras”. A língua semiotiza tudo, nesse sentido, porque significa
tudo, porque, conforme suas palavras, ordena e enuncia os valores
que todo comportamento social, toda relação humana, toda relação
econômica supõe (BENVENISTE, 1969/2014, p. 157), o que, aliás,
o autor também refere no final da Parte I de “Semiologia da língua”
quando se interroga a propósito dos ritos simbólicos, das formas de
polidez e da relação desses sistemas com a língua para, em seguida,
definir o objeto da semiologia:
Os ritos simbólicos, as formas de polidez são sistemas
autônomos? Pode-se realmente colocá-los no mesmo plano
que a língua? Eles não se sustentam sobre uma relação
semiológica senão pelo intermédio de um discurso: o “mito”,
que acompanha o “rito”; o “protocolo” que regula as formas de
polidez. Estes signos, para nascerem e se estabelecerem como
sistema, supõem a língua, que os produz e os interpreta. […]
Entrevê-se assim que, não menos que os sistemas de signos,
as RELAÇÕES entre estes sistemas constituirão o objeto da
semiologia (BENVENISTE, 1969/1989, p. 51, grifos do autor).
Por sua vez, em “2. A língua semiotiza a si mesma”, Benveniste
(1969/2014, p. 157) afirma que a “língua opera uma redução sobre si
SUMÁRIO
372
mesma” e, com isso, de “sua função instrumental desprende-se sua
função representativa, cujo instrumento é a escrita”. Como indica o
linguista, “a escrita muda de função: de instrumento para iconizar o
real, ou seja, o referente, a partir do discurso, ela se torna, pouco a
pouco, o meio de representar o próprio discurso, logo os elementos
do discurso, logo os elementos desses elementos (sons/letras)”
(BENVENISTE, 1969/2014, p. 157, grifos do autor).
Benveniste retoma, nesse momento, duas diferentes concepções
de escrita: a escrita como representação gráfica do mundo e a escrita
como representação gráfica da língua. A primeira concepção, refutada
pelo linguista, se caracteriza por não pensar a escrita em sua relação
com a língua, mas sim com o referente; a segunda, apontada na Aula
10 (de 17 de fevereiro) como “uma verdadeira revolução”, mostra, ao
contrário, a escrita tomando a língua como modelo (BENVENISTE,
1969/2014, p. 141). Além disso, é importante salientar que Benveniste
começa sua discussão na Aula 8 com uma análise da concepção
saussuriana de escrita, da qual, aliás, igualmente se afasta. Isso
porque, para o linguista, Saussure também não discute a questão da
relação da escrita com a língua, confundindo a escrita com o alfabeto
e a língua com uma língua moderna (BENVENISTE, 1969/2014, p. 128).
Assim, nesse segundo capítulo de suas Últimas aulas, mais do
que somente analisar a relação existente entre dois sistemas específicos
(o da escrita e o da língua), o linguista reitera a ideia de que a língua
semiotiza tudo e propõe que, com a escrita, se tem sobretudo a língua
semiotizando, através de si mesma (da escrita como instrumento), a
si mesma (a escrita como manifestação da autossemiotização). Além
de ser, desse modo, o instrumento da autossemiotização da língua, a
escrita manifesta, contém, a autossemiotização da língua, ou seja, a
escrita é o lugar em que aparece a redução que a língua opera sobre
si mesma. A língua, portanto, interpreta tudo, inclusive a si mesma.
SUMÁRIO
373
Nessa perspectiva, aproximo os termos “semiotização” e
“autossemiotização” do termo “interpretância” (como faz Laplantine
[2013]) e, consequentemente, o termo “semiotizar” do termo
“interpretar”. Afinal, Benveniste não se refere, nessa reflexão intitulada
“A língua e a escrita”, acredito, à formação de um semiótico (de um
sistema) mas, de fato, à língua significando semiologicamente, à noção
de interpretância (uma propriedade fundamental da língua) operando
seja em relação a um outro sistema qualquer (a língua interpreta tudo)
seja – e aqui está o cerne desse conjunto de aulas (aulas 8 a 15) – em
relação ao sistema da escrita (a língua interpreta inclusive a si mesma).
Essa é a discussão124.
Há, por outro lado, duas outras mudanças de perspectiva em
relação à escrita em suas duas últimas aulas sobre o tema. Benveniste
(1969/2014, p. 167, grifos do autor) inicia a Aula 14 (de 17 de março)
explicando que, da Aula 8 à Aula 13 (de 10 de março), “a escrita [foi
estudada] enquanto fenômeno”, mas que, nessa aula, “gostaria de
considerar a escrita enquanto operação e em suas denominações”.
Seu interesse, aqui, está em verificar “como uma língua nomeia o ato
que lhe dá expressão escrita”, o que “significam os termos empregados
[nesse processo linguístico de nomeação], e não o que designam, o que
já sabemos”, uma vez que “uma análise de terminologia [...] é instrutiva
se, e na medida em que, podemos distinguir entre a designação e a
significação”125 (BENVENISTE, 1969/2014, p. 167).
Por fim, na Aula 15, Benveniste se interroga, mais
especificamente, a respeito da relação entre a escrita e a fala. De um
lado, o linguista reconhece a importância da escrita – sem a qual não
teria sido possível uma análise semiológica da linguagem falada (da
124 Por isso, sustento que são perspectivas de entendimento distintas, mas não opostas, como
apontado anteriormente. Na verdade, tem-se aqui perspectivas que estão articuladas.
125 Assim como observa no “Prefácio” do primeiro volume de Le vocabulaire des institutions
indo-européennes [O vocabulário das instituições indo-europeias], Benveniste (1969a)
objetiva um estudo da significação dos termos e não de sua designação.
SUMÁRIO
374
língua como fala) – e, de outro, estabelece que a escrita “é a própria
fala fixada em um sistema secundário de signos”, “um revezamento
(relais) da fala” (BENVENISTE, 1969/2014, p. 179, grifos do autor).
Desse modo, a escrita é secundária não porque é menos importante,
mas porque é a fala, que é primeira, transferida da voz para a mão.
É secundária porque, segundo Benveniste em “O aparelho formal da
enunciação”, o aspecto “mais imediatamente perceptível e [o] mais
direto” do processo da enunciação é “a realização vocal da língua”
(BENVENISTE, 1970/1989, p. 82); o que faz com que a fala venha,
consequentemente, antes da escrita quando se considera a realização
do linguístico. No entanto, salienta o autor, “ainda que secundário, esse
sistema [da escrita] continua sendo o da própria fala, sempre apto a se
tornar fala de novo” (BENVENISTE, 1969/2014, p. 179). Ou seja, tanto
a fala quanto a escrita comportam a língua (o linguístico), sendo dois
modos paralelos de ser língua126, embora a escrita também esteja em
relação à fala e não apenas em relação à língua.
Nesse sentido, a fala é sempre relacionada à língua, ao passo
que a escrita deve ser relacionada à língua e também à fala, o que,
conforme Benveniste (1969/2014, p. 177 [nota de ouvinte]) na Aula 15,
Saussure não faz: “De encontro a: ‘A língua é independente da escrita’,
Cours de linguistique générale, p. 45”.
Benveniste mostra, com isso, que Saussure considera apenas
a relação fala-escrita, esquecendo-se da língua. Ele, por sua vez,
estabelecendo o “princípio fundamental: [de que] a escrita é uma
forma secundária da fala” (BENVENISTE, 1969/2014, p. 177, grifos
do autor), mostra que a relação fala-escrita não pode ser pensada
independentemente da língua, do linguístico.
126 Fazendo um deslocamento, acredito que seria possível dizer que a escrita em língua de
sinais é secundária em relação à realização gestual em língua de sinais, que é primária
(dois modos paralelos de ser língua, mais uma vez). Nesse caso, através da mão, o
revezamento (o relais) envolveria o gesto realizado transferido para o traço escrito; traço
esse, por sua vez, sempre apto a se tornar gesto de novo.
SUMÁRIO
375
Benveniste não trata aqui, na verdade, da questão da
enunciação falada e da enunciação escrita, mas de como o linguístico
se configura na fala e também na escrita. No entanto, talvez esse seja
um ponto de articulação possível com sua reflexão na parte final de
“O aparelho formal da enunciação”, diferentemente da perspectiva
semiológica sobre a escrita apresentada da Aula 8 (desde a Aula 7,
aliás) até a Aula 13.
Passo, agora, à questão da relação língua-sociedade.
Vamos a ela!
A RELAÇÃO LÍNGUA-SOCIEDADE:
A QUESTÃO DA SOCIEDADE
A relação língua-sociedade, a questão da sociedade em sua
reflexão, é sobretudo tratada por Benveniste em “Estrutura da língua
e estrutura da sociedade” (1968/1970127). Nesse texto, Benveniste
não somente estabelece que seu ponto de vista, nessa discussão, é
semiológico, mas traduz esse ponto de vista em duas proposições
conjuntas, sendo que a primeira – “a língua é o interpretante da
sociedade” – é explicada pela segunda – “a língua contém a sociedade”
(BENVENISTE, 1970/1989, p. 97). O que se pode verificar, conforme
o autor, de dois modos: empiricamente e através da diferenciação
estabelecida, com base na língua, entre o indivíduo e a sociedade.
Empiricamente, uma vez que se pode isolar a língua,
estudá-la e descrevê-la por si mesma, sem que se considere “seu
emprego na sociedade” nem “suas relações com as normas e
as representações sociais que formam a cultura”, ao passo que
127 Lembro que se trata inicialmente de uma conferência proferida, em 1968, em Milão
(Convegno internazionale Olivetti), cuja publicação original data de 1970.
SUMÁRIO
376
“é impossível descrever a sociedade, descrever a cultura, fora de
suas expressões linguísticas” (BENVENISTE, 1970/1989, p. 98). Daí
por que “a língua inclui a sociedade, mas não é incluída por esta”
(BENVENISTE, 1970/1989, p. 98).
Já através da diferenciação entre o indivíduo, de um lado,
e a sociedade, de outro, afirma Benveniste (1970/1989, p. 101,
grifos do autor):
A língua que é assim a emanação irredutível do eu mais
profundo de cada indivíduo é ao mesmo tempo uma realidade
supraindividual e coextensiva à toda a coletividade. […] Com
efeito, a língua fornece ao falante a estrutura formal de base,
que permite o exercício da fala. Ela fornece o instrumento
linguístico que assegura o duplo funcionamento subjetivo e
referencial do discurso: é a distinção indispensável, sempre
presente em não importa qual língua, em não importa qual
sociedade ou época, entre o eu e o não eu, operada por índices
especiais que são constantes na língua e que só servem a este
uso, as formas chamadas em gramática de pronomes, que
realizam uma dupla oposição, a oposição do ‘eu’ ao ‘tu’ e a
oposição do sistema ‘eu/tu’ a ‘ele’.
Essa segunda oposição (que engloba, aliás, a primeira) mostra
“o duplo sistema relacional da língua”, envolvendo o sujeito, assim
como a construção da referência (“a possibilidade do discurso sobre
alguma coisa, sobre o mundo, sobre o que não é alocução”), o que faz
aparecer, segundo o linguista, “uma nova configuração da língua […]: é
a inclusão do falante em seu discurso, a consideração pragmática que
coloca a pessoa na sociedade enquanto participante e que desdobra
uma rede complexa de relações espaço-temporais que determinam os
modos de enunciação” (BENVENISTE, 1970/1989, p. 101).
Benveniste associa essa nova configuração da língua,
que resulta da inserção do falante no discurso, à apropriação, por
determinados grupos ou classes, do aparelho de denominação,
comum a todos. Nesse artigo, o linguista não apresenta nenhum
SUMÁRIO
377
exemplo dessa apropriação, mas se refere ao vocabulário do sagrado
na língua dos pontífices romanos128. Há aqui, segundo o autor, uma
apropriação de termos gerais que são ressignificados (visto que
recebem referências específicas atribuídas por um determinado grupo)
e que, depois, voltam à língua comum, nela introduzindo diferenciações
lexicais (BENVENISTE, 1970/1989, p. 102). Com uma análise como
essa, conforme Benveniste (1970/1989, p. 102), seria possível verificar
“o papel da língua no interior da sociedade, uma vez que esta língua
é a expressão de certos grupos profissionais especializados, para os
quais seu universo é o universo por excelência”.
Por outro lado, nesse mesmo artigo, Benveniste (1970/1989,
p. 100) também sustenta que a “língua engloba a sociedade […] e
a contém em seu aparelho conceitual, mas ao mesmo tempo, em
virtude de um poder distinto, ela configura a sociedade instaurando
aquilo que se poderia chamar o semantismo social”. O linguista se
refere, nesse momento, sobretudo (porém não exclusivamente), a
fatos de vocabulário, a designações, à parte da língua mais estudada
e que muito tem a dizer a historiadores da sociedade e da cultura,
em suas palavras.
Para Benveniste (1970/1989, p. 100), nessa perspectiva, o
vocabulário comporta “testemunhos insubstituíveis” das formas e
das fases da organização social, dos regimes políticos, dos modos
de produção sucessiva ou simultaneamente empregados. O linguista
ressalta, no entanto, que
o estado da sociedade numa época dada não aparece
sempre refletido nas designações de que ela faz uso, pois
as designações podem muitas vezes subsistir quando os
referentes, as realidades designadas já mudaram. […] O
128 Digo que não apresenta no sentido em que Benveniste não traz nenhum exemplo
específico, não desenvolve uma explicação, ilustrando seu raciocínio. Ele mesmo, aliás,
menciona não ter tempo de desenvolver um exemplo (1970/1989, p. 102), uma vez que
seu objetivo no artigo é, de fato, outro. Não se trata de falar, mais detalhadamente,
dessa apropriação.
SUMÁRIO
378
que se chama de polissemia resulta desta capacidade que a
língua possui de subsumir em um termo constante uma grande
variedade de tipos e em seguida admitir a variação da referência
na estabilidade da significação (BENVENISTE, 1970/1989, p.
100, grifo do autor).
Com isso, mesmo que a sociedade mude (que os referentes
mudem), a língua permanece e, através dela, também permanecem
as designações que não encontram mais correspondência na
realidade, mas que se mantém como sentidos possíveis (referências
possíveis) de um termo. Trata-se, portanto, de uma designação
construída enunciativamente, uma designação que corresponde
a uma determinada referência e não a um determinado referente.
Assim, se há estabilidade na significação de um termo (se esse termo
tem ou não sentido semioticamente em uma determinada língua), a
polissemia mostra, por sua vez, a variação de sua referência construída
semanticamente (que sentido é esse a cada vez).
Benveniste traz essas questões – a inclusão do falante em
seu discurso, o semantismo social e a polissemia – não apenas para
mostrar a estreita relação entre a língua e a sociedade (uma relação
semiológica), mas sobretudo para mostrar como a língua, de fato,
inclui a sociedade. Para o linguista, desse modo, “a língua interpreta
a sociedade”, e a “sociedade torna-se significante na e pela língua, a
sociedade é o interpretado por excelência da língua” (BENVENISTE,
1970/1989, p. 98, grifos meus).
Em outras palavras, fazendo um paralelo, a língua é o
instrumento (pela língua) e a manifestação (na língua) do processo de
semiotização da sociedade (de interpretação da sociedade), assim
como a escrita é o instrumento (pela escrita) e a manifestação (na
SUMÁRIO
379
escrita) do processo de autossemiotização da língua (a interpretação
que a língua faz de si mesma)129.
Não é à toa, aliás, que Benveniste traz para a discussão a
questão da polissemia em um outro texto – o artigo “Estruturalismo e
linguística” – também de 1968130. Nesse texto, a análise de diferentes
empregos da palavra homem – “o homem honesto” na cultura clássica
francesa; “eu sou seu homem” na época feudal – mostra, conforme o
autor, que há
uma estratificação da cultura que deixa seu traço nos diferentes
empregos possíveis. Estes estão todos compreendidos hoje na
definição da palavra, porque são ainda suscetíveis de serem
empregados no seu verdadeiro sentido na mesma época.
Vemos aqui a contrapartida de uma definição cumulativa das
culturas. Em nossa cultura atual integra-se toda a espessura
de outras culturas. É nisso que a língua pode ser reveladora da
cultura (BENVENISTE, 1968/1989, p. 22-23).
Nesse sentido, ainda que a sociedade mude, a língua
conserva a variação de referências de um termo (sua polissemia),
conservando, em diferentes camadas de sentido, a cultura, ou
seja, para Benveniste, os valores, os sistemas de valores “que se
imprimem na língua” (BENVENISTE, 1968/1989, p. 22) em diferentes
129 Impossível não estabelecer uma relação entre o que ocorre com a questão da escrita
e da sociedade, de um lado, e o que Benveniste apresenta em “Da subjetividade na
linguagem” (1958/1995), de outro. Nesse artigo, o linguista também mostra a língua como
instrumento (pela língua) e como manifestação (na língua), mas, nesse caso, claro, da
subjetividade, conforme a passagem a seguir: “É na linguagem e pela linguagem que o
homem se constitui como sujeito; porque só a linguagem fundamenta na realidade, na sua
realidade que é a do ser, o conceito de ‘ego’. A ‘subjetividade’ de que tratamos aqui é a
capacidade do locutor para se propor como ‘sujeito’. [...] É ‘ego’ que diz ego. Encontramos
aí o fundamento da ‘subjetividade’ que se determina pelo status linguístico da ‘pessoa’”
(BENVENISTE, 1958/1995, p. 286, grifos no original) [No original: “Est ‘ego’ qui dit ‘ego’”
(1958/1966, p. 260, grifos do autor); tradução minha: “É ‘ego’ quem diz ‘ego’.]. Não se
trata aqui, porém, da língua significando semiologicamente (significando/interpretando
os outros sistemas e a si mesma), mas da língua significando linguisticamente (ou seja,
enunciativamente). De todo o modo, para Benveniste, semiologica ou linguisticamente,
todo movimento de significação se produz na e pela língua.
130 Entrevista concedida a Pierre Daix, publicada originalmente no número 1242 da revista
Les Lettres françaises.
SUMÁRIO
380
épocas. Daí a espessura da cultura que constitui a língua e que a
língua mostra (o semântico da língua mostra)131.
Essas considerações sobre a cultura aprofundam, vale lembrar,
a discussão que o linguista apresenta em um artigo do início dos
anos 1960. Em “Vista d’olhos sobre o desenvolvimento da linguística”
(1962/1963/1995)132, Benveniste (1963/1995, p. 32) define a cultura
“como um conjunto muito complexo de representações, organizadas
por um código de relações e de valores”. Trata-se, para ele, do “meio
humano” (BENVENISTE, 1963/1995, p. 31, grifos do autor), de um
universo de símbolos que compõem uma estrutura específica (cada
língua e cada sociedade) e que a linguagem manifesta e transmite
(BENVENISTE, 1963/1995, p. 32).
Ou seja, trata-se, conforme o texto “Estrutura da língua e estrutura
da sociedade”, que data do final dos anos 1960, da sociedade tornandose significante na e pela língua, em uma relação de interpretância.
Gostaria, agora, de comentar a Aula 5 de suas Últimas aulas.
Nessa aula, há uma extensa nota de ouvinte que retoma pontos
importantes da reflexão sobre a relação entre a língua e a sociedade
desenvolvidos no texto “Estrutura da língua e estrutura da sociedade”.
São eles: a ideia de que as estruturas linguísticas e sociais são
“anisomorfas”, conforme Sapir (citado na nota de ouvinte e no artigo);
a ideia de que a língua não reflete a sociedade; a necessidade de uma
distinção entre um nível histórico, de um lado, e um nível fundamental
131 A esse respeito, gostaria de salientar os trabalhos de Benveniste reunidos na sexta parte
– “Léxico e cultura” – do PLGI (1966) e do PLGII (1974), assim como nos dois volumes
de Le vocabulaire des institutions indo-européennes [O vocabulário das instituições indoeuropeias] (1969a; 1969b). Acredito firmemente que muitos desses trabalhos tenham
contribuído para a elaboração e o desenvolvimento da reflexão semiológica do autor,
na medida em que todos tratam da relação da língua com a sociedade, relação essa
teorizada, de fato, no artigo “Estrutura da língua e estrutura da sociedade”.
132 Brunet e Mahrer (2011, p. 11) indicam que esse texto é fruto de uma exposição de
Benveniste realizada em 1962, mas publicada no ano seguinte, em Comptes rendus des
séances de 1962 – Académie des Inscriptions et Belles-lettres.
SUMÁRIO
381
da língua, de outro; o fato de não haver uma correlação estrutural nem
genética entre o linguístico e o social, mas sim uma relação semiológica
(uma relação de interpretante e interpretado); o fato de se poder estudar
a língua por si mesma (como sistema formal) sem que se estabeleça
qualquer relação com a sociedade; o fato de não se poder estudar a
sociedade independentemente da língua; e, sobretudo, a ideia de que
a língua contém a sociedade (BENVENISTE, 1969/2014, p. 111-112
[nota de ouvinte]).
Considerando-se a data da aula (13 de janeiro de 1969) e a
da conferência de Milão que resulta nesse artigo (entre 14 e 17 de
outubro de 1968), mais do que uma simples retomada de pontos,
talvez se possa dizer que o texto do artigo tenha fornecido a base para
a aula de Benveniste, tenha alimentado a sua aula. Ou, pelo menos,
que o artigo tenha orientado Coquet e Fenoglio em seu trabalho
genético de estabelecimento das notas manuscritas provenientes
tanto de Benveniste quanto de seus ouvintes. Afinal, há uma estreita
correspondência entre esses dois espaços e momentos de reflexão, o
da aula em 1969 e o do texto em 1968 (assim como, evidentemente,
entre o trabalho do professor e o do pesquisador133).
Por outro lado, como mencionado em nota neste texto (nota
120), essa é a aula em que Benveniste (1969/2014, p. 109, grifos do
autor) propõe “a relação de interpretação”, “uma nova relação, que
Saussure não mencionou, nem talvez tenha visto”: “a relação de
interpretação entre sistemas”. E, para explicá-la, Benveniste traz a
questão da relação entre a língua e a sociedade, mesmo movimento
que faz, aliás, em “Semiologia da língua”, em 1969.
133 O que caracteriza, aliás, o tipo de ensino ministrado no Collège de France: um ensino de
nível superior que não segue o ensino regular de uma instituição universitária e que permite
que um pesquisador exponha suas teorias, mesmo aquelas em curso de elaboração. Ver, a
esse respeito, o próprio Benveniste em “Estruturalismo e linguística” (1968/1989).
SUMÁRIO
382
Nesse artigo, assim que define a relação semiótica entre os
sistemas – “uma relação entre SISTEMA INTERPRETANTE e SISTEMA
INTERPRETADO” –, o autor sustenta que é essa a relação “entre os
signos da língua e os da sociedade: os signos da sociedade podem
ser integralmente interpretados pelos signos da língua, não o inverso”134
(BENVENISTE, 1969/1989, p. 54-55, grifos do autor, tradução minha).
Nessa mesma perspectiva, depois que define a terceira relação
entre os sistemas semióticos, a “RELAÇÃO DE INTERPRETÂNCIA”
(BENVENISTE, 1969/1989, p. 62, grifos do autor), Benveniste se refere
uma segunda vez à questão da relação da língua com a sociedade.
Nesse momento, em “Semiologia da língua”, o linguista mostra
que a relação semiológica se distingue de todas as outras, em especial
da relação sociológica. Conforme explica Benveniste (1969/1989, p.
63), na relação sociológica, “a língua funciona no interior da sociedade,
a qual a engloba”, ao passo que, na relação semiológica, há uma
inversão dessa relação, “porque somente a língua torna possível a
sociedade”, e língua e sociedade se encontram “em dependência
mútua segundo sua capacidade de semiotização”135 (uma relação de
interpretância). Por isso, nesse ponto, o autor não apenas reafirma
a proposição – “é a língua que contém a sociedade” (BENVENISTE,
1969/1989, p. 63) –, mas ainda, em nota, remete ao artigo “Estrutura da
língua e estrutura da sociedade”, texto em que a apresenta (“a língua
contém a sociedade” (BENVENISTE, 1970/1989, p. 97)).
A seguir, retomo então a questão da escrita e a da sociedade na
reflexão de Benveniste, buscando algumas aproximações.
134 No original: “non l’inverse” (BENVENISTE, 1969/1974, p. 54). Na tradução brasileira:
“jamais o inverso” (BENVENISTE, 1969/1989, p. 55).
135 O que, aliás, satisfaz o critério estabelecido a respeito das relações entre os sistemas
semiológicos: “estas relações devem ser elas mesmas de natureza semiótica”
(BENVENISTE, 1969/1989, p. 63).
SUMÁRIO
383
A RELAÇÃO LÍNGUA-LÍNGUA E A
RELAÇÃO LÍNGUA-SOCIEDADE: ALGUMAS
APROXIMAÇÕES POSSÍVEIS
As considerações de Benveniste a respeito da relação língualíngua e da relação língua-sociedade envolvem alguns dos aspectos
que marcam a reflexão desenvolvida pelo linguista sobretudo na parte
final dos anos 1960.
No que concerne à questão da relação estabelecida pela língua
com a sociedade, tanto no artigo “Semiologia da língua” quanto nas
Últimas aulas, é possível estabelecer uma certa aproximação com o
que ocorre com a questão da escrita, que traz a relação estabelecida
pela língua consigo mesma.
Primeiro ponto de aproximação: se, no artigo, a questão da
escrita é apenas mencionada, Benveniste também não se detém,
de fato, na relação da língua com a sociedade. Seu objetivo nesse
texto é, acredito, uma reflexão a respeito da relação da língua com os
diferentes sistemas semiológicos na elaboração de uma proposta de
ultrapassagem da noção saussuriana de signo como princípio único
de explicação da significância da língua; o que se dará, segundo
ele, por duas vias: uma linguística (a semântica da enunciação) e
outra semiológica (a metassemântica, uma “semiologia de ‘segunda
geração’” (BENVENISTE, 1969/1989, p. 67, grifos do autor). É essa via
semiológica que está em discussão nesse momento, configurandose na questão central do artigo. Desse modo, toda a reflexão que
Benveniste apresenta ao longo do texto tem por fim a questão da
metassemântica, que, de meu ponto de vista, é apenas um dos
aspectos de sua reflexão semiológica, ou seja, de sua ideia de uma
semiologia da língua136.
136 Ver, a esse respeito, Rosário (2018).
SUMÁRIO
384
A relação da língua com a sociedade, tratada em dois diferentes
momentos de “Semiologia da língua”, é igualmente discutida em
suas Últimas aulas. Eis o segundo ponto de aproximação. Porém, ao
contrário do que ocorre com a escrita, que se torna objeto de estudo
do linguista no conjunto de aulas reunidas no segundo capítulo da
obra (“A língua e a escrita”, Aulas 8 a 15), a relação da língua com a
sociedade é pontualmente abordada na Aula 5.
Além disso, conforme suas próprias palavras no Annuaire
du Collège de France de 1969, Benveniste pretendia publicar um
artigo seu inteiramente dedicado à questão da escrita na revista
Semiotica. Ora, a questão da relação da língua com a sociedade
também se torna objeto de reflexão do linguista no texto “Estrutura
da língua e estrutura da sociedade” (1968/1970), republicado, em
1974, no segundo volume de seus Problemas de linguística geral.
Aqui se encontra, portanto, o terceiro ponto: essas duas questões
presentes, insisto, em “Semiologia da língua” (a da escrita, ainda
que apenas aludida, e a da relação língua-sociedade, ainda que
muito pouco aprofundada) seriam tratadas separadamente em
artigos específicos. Digo seriam, pois apenas uma delas acaba de
fato sendo; afinal, o artigo sobre a escrita, ao que tudo indica, nem
mesmo foi redigido.
Por fim, o quarto ponto de aproximação tem relação com a
perspectiva adotada por Benveniste em sua reflexão sobre a escrita e,
também, em sua reflexão sobre a relação da língua com a sociedade.
Trata-se, nos dois casos, de um ponto de vista semiológico que o
linguista se preocupa logo em apontar.
Nesse sentido, a respeito da escrita, lembro sobretudo
de suas considerações na Aula 7 e na Aula 12, assim como no
Annuaire du Collège de France de 1969; considerações essas
anteriormente comentadas.
SUMÁRIO
385
Por sua vez, em “Estrutura da língua e estrutura da sociedade”, o
linguista inicia sua reflexão anunciando o tema que se propõe a examinar:
“as relações entre duas grandes entidades que são respectivamente a
língua e a sociedade” (BENVENISTE, 1970/1989, p. 93). E esse exame
das “relações entre […] a língua e a sociedade”, repito, Benveniste
não faz de qualquer modo, mas em conformidade com sua reflexão
a respeito das relações entre os sistemas semiológicos. Assim como,
claro, também faz seguindo seu estilo peculiar de pensar a linguagem
– problematizando a questão –, o que é mostrado na sequência.
Observando, assim, o modo como linguistas e antropólogos
costumam abordar esse tema137, Benveniste (1970/1989, p. 95)
reconhece nesse texto a complexidade do problema – “está longe de
ser simples” – e a necessidade de tratá-lo diferentemente, uma vez
que “a maneira pela qual este problema foi debatido até agora não nos
aproxima muito de uma solução”.
O linguista sustenta que é preciso “constatar que não existe
correspondência nem de natureza nem de estrutura entre os elementos
constitutivos da língua e os elementos constitutivos da sociedade” e
que, por outro lado, é preciso “assinalar e corrigir uma confusão que é
cometida entre duas acepções do termo língua e do termo sociedade
respectivamente” (BENVENISTE, 1970/1989, p. 95-96). Acrescenta,
então, Benveniste (1970/1989, p. 96):
Existe de uma parte a sociedade como dado empírico, histórico.
Fala-se da sociedade chinesa, da sociedade francesa, da
sociedade assíria; existe de outra parte a sociedade como
coletividade humana, base e condição primeira da existência
dos homens. Da mesma maneira existe a língua como idioma
empírico, histórico, a língua chinesa, a língua francesa, a língua
assíria; e existe a língua como sistema de formas significantes,
condição primeira da comunicação.
137 Seja mostrando “que a sociedade e a cultura inerente à sociedade são independentes
da língua” seja mostrando “que a língua é – como dizem eles – o espelho da sociedade”
(BENVENISTE, 1970/1989, p. 94), posicionamentos que remetem, respectivamente,
às ideias de Sapir (mencionado no texto) e de Meillet (não mencionado no texto, mas
referência dessa corrente de pensamento e figura próxima de Benveniste), por exemplo.
SUMÁRIO
386
Conforme o linguista, tanto no nível histórico, empírico, como no
nível que denomina fundamental, “o problema das relações possíveis
entre a língua e a sociedade se coloca”, o que faz com que se possa
“admitir duas respostas diferentes” (BENVENISTE, 1970/1989, p.
96). Desse modo, se não há relação entre uma língua histórica
e uma sociedade histórica, entre a língua e a sociedade em seu
“nível fundamental, podemos perceber imediatamente homologias”
(BENVENISTE, 1970/1989, p. 96).
Há, nesse nível, por conseguinte, características comuns a
uma e a outra: segundo o autor, a língua e a sociedade são, para os
homens, realidades inconscientes e representam a natureza138; são
sempre herdadas e não se imagina que tenham tido um começo; e, por
fim, não podem ser mudadas pela vontade dos homens (o que muda,
na verdade, são as designações e as instituições, respectivamente)
(BENVENISTE, 1970/1989, p. 96). Benveniste (1970/1989, p. 96-97,
grifos meus), contudo, vai além nessa sua análise e afirma que
se a diversificação constante, crescente das atividades sociais,
das necessidades, das noções, exige designações sempre
novas, é preciso que em troca exista uma força unificante
que faça equilíbrio. Acima das classes, acima dos grupos e
das atividades particularizadas, reina um poder coesivo que
faz uma comunidade de um agregado de indivíduos e que cria
a própria possibilidade da produção e da subsistência coletiva.
Este poder é a língua e apenas a língua. É porque a língua
representa uma permanência no seio da sociedade que
muda, uma constância que interliga as atividades sempre
diversificadas. Ela é uma identidade em meio às diversidades
individuais. E daí procede a dupla natureza profundamente
paradoxal da língua, ao mesmo tempo imanente ao indivíduo e
transcendente à sociedade.
138 Nas palavras do linguista, “uma e outra representam a natureza, se assim se pode
dizer, o meio natural e a expressão natural, coisas que não podem ser concebidas como
outras que não são e que não podem ser imaginadas como ausentes” (BENVENISTE,
1970/1989, p. 96).
SUMÁRIO
387
Ora, essa passagem não apenas retoma a visão antropológica
da linguagem do linguista (relacionando linguagem/língua, homem e
sociedade), mas mostra sobretudo o papel especial e exclusivo da
língua: apenas a língua, com seu poder coesivo, sua força unificante,
estabelece o equilíbrio entre o que permanece e é constante (a própria
língua) e o que muda e é diverso (a sociedade), possibilitando e
mantendo não um aglomerado de indivíduos, mas uma coletividade. O
que se deve, de um lado, à propriedade fundamental, mas não exclusiva,
da língua de significar – a significância (uma dupla significância, nesse
caso) – e, de outro, à propriedade fundamental e exclusiva da língua de
interpretar a si mesma e os outros sistemas semiológicos, significandoos – a interpretância (devido a sua dupla significância).
A relação da língua com a sociedade envolve, desse modo,
uma questão semiológica: a língua significando, interpretando, a
sociedade. E é por isso que, à questão – “como podemos supor
a relação da língua e da sociedade para esclarecer pela análise de
uma (a língua), a análise da outra (a sociedade)?” (BENVENISTE,
1970/1989, p. 97) –, Benveniste responde que essa relação não
será, de modo algum, uma relação estrutural, tipológica, histórica ou
genética, mas semiológica. Diz o linguista:
Estamos considerando aqui a língua somente como um meio
de análise da sociedade. Para este fim nós tomaremos língua
e sociedade em sincronia e numa relação semiológica: a
relação do interpretante com o interpretado. E formularemos
estas duas proposições conjuntas: em primeiro lugar, a língua é
o interpretante da sociedade; em segundo lugar, a língua contém
a sociedade (BENVENISTE, 1970/1989, p. 97, grifos meus).
A partir desses quatro pontos de aproximação traçados entre a
questão da escrita e a da relação da língua com a sociedade, acredito
que seja plausível afirmar que a reflexão semiológica de Benveniste
como um todo (sua ideia de uma semiologia da língua) abrange,
além da questão da metassemântica apresentada na parte final de
SUMÁRIO
388
“Semiologia da língua”, outros aspectos, cuja significância também
depende de uma relação com a língua – uma relação estabelecida,
sempre, entre um sistema interpretado e a língua, o sistema
interpretante. Não reduzo, portanto, a semiologia em Benveniste à
questão da metassemântica como comumente se faz. Acredito que,
em sua reflexão semiológica, existam diferentes aspectos que devem
ser considerados, como a relação da língua consigo mesma, de um
lado, e a relação da língua com a sociedade, de outro, o que uma
análise mais ampla e aprofundada de sua produção do final dos anos
1960 – seja de seus textos seja de suas aulas – permite observar.
CONCLUSÃO
Considerando o exposto neste estudo, é possível afirmar que,
tanto em relação à escrita quanto em relação à sociedade, o que está
no centro da reflexão de Benveniste é seu interesse pela língua de um
ponto de vista semiológico; fato que se constata, de modo especial, em
dois diferentes espaços de trabalho que se encontram estreitamente
inter-relacionados e se mostram, sobretudo, ao longo de três textoschave que recobrem o final dos anos 1960: os artigos “Semiologia
da língua” e “Estrutura da língua e estrutura da sociedade”, trazendo
o pesquisador, e a obra Últimas aulas, trazendo o professor em suas
aulas no Collège de France.
Nessa perspectiva, assim como com os sistemas semiológicos
em geral, a escrita e a sociedade também se configuram em
sistemas interpretados em uma relação semiológica com a língua,
o sistema interpretante. Todos esses sistemas significam, por
conseguinte, na e pela semiologia da língua, ou seja, em função
da interpretância da língua.
SUMÁRIO
389
Com isso, recupero a proposta de Flores (2016) de que, no
axioma geral da teoria da linguagem de Benveniste – o homem na
linguagem –, está contido um axioma específico – o homem na língua
– e, ao lado deste axioma, que corresponde à reflexão enunciativa de
Benveniste, identifico um outro axioma, também específico (também
contido, portanto, no axioma geral), que corresponde à reflexão
semiológica do linguista – a língua pode, em princípio, tudo categorizar
e interpretar, inclusive a si mesma.
Esse é, de meu ponto de vista, o axioma de sua reflexão
semiológica: sua semiologia da língua, um amplo campo de
estudos aberto pelo linguista que se fundamenta na propriedade de
interpretância da língua (sua propriedade de interpretar) e que envolve
a relação de interpretância por ele proposta. Ou seja, a relação da
língua, como sistema interpretante, com um sistema interpretado, o
que compreende diferentes aspectos: a relação da língua com os
outros sistemas, com os textos e as obras (a metassemântica), do
mesmo modo como a relação da língua consigo mesma (através da
escrita) e sua relação com a sociedade.
Saliento, por fim, que a estas duas últimas relações, objeto deste
estudo, o próprio Benveniste associa duas proposições com valor de
axioma – a língua semiotiza a si mesma e a língua contém a sociedade,
respectivamente –; proposições que devem ser tomadas e significadas
dentro de sua reflexão semiológica, ainda que apontem, acredito, não
para uma semiologia, mas para estudos de outra ordem. Mas isso já
é outro assunto!
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SUMÁRIO
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Original publicado em 1916.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. São Paulo: Editora
Cultrix, 2006. Original publicado em 1916.
SUMÁRIO
392
Capítulo 15
15
A SIGNIFICÂNCIA E A TRADUÇÃO
Daiane Neumann
Daiane Neumann
A SIGNIFICÂNCIA
E A TRADUÇÃO
DOI: 10.31560/pimentacultural/2020.281.393-411
Traduzir passa por uma escuta do contínuo. Subjetivação
pela subjetivação.
Henri Meschonnic (2010, p. XXXII).
INTRODUÇÃO139
A reflexão a que me proponho neste capítulo toma a obra
benvenistiana, considerando-a uma poética, conforme o destaca
Dessons (2006). Essa poética se estabelece, a partir do que entende
o autor como a arte de pensar, “no sentido de que o que é dito em
seus trabalhos [de Benveniste] aparece inseparável da maneira como
é dito” (DESSONS; NEUMANN; OLIVEIRA, 2020, p. 379).
Essa “arte de pensar” que constitui a poética de Benveniste se
estabelece ainda a partir da arte do problema, conforme atestam os
títulos das suas duas obras mais discutidas e estudadas, Problemas
de linguística geral I e II. No entanto, há uma forma particular de teorizar
considerando tais problemas, na medida em que “se trata menos
de resolv[ê-los] do que de inventá-los” (DESSONS; NEUMANN;
OLIVEIRA, 2020, p. 379).
Concebendo a teorização benvenistiana como a arte de inventar
problemas, tomo a noção de significância, mais especificamente nas
obras supracitadas, com objetivo de refletir acerca de sua constituição
e de seu alcance teórico. Ou seja, a retomada dessa noção intenta a
abertura da discussão iniciada por Benveniste, a fim de considerar sua
potencialidade para estudos prospectivos da obra.
A problematização que aqui inicio, na obra de Benveniste,
encontra eco na forma como a noção de significância é tomada na
obra de Henri Meschonnic. Em seguida, discuto, portanto, tal noção
139 Agradeço a leitura atenta e as contribuições de Aroldo Garcia dos Anjos.
SUMÁRIO
394
conforme teorizada por Meschonnic, para quem a significância
apresenta-se como profícua para pensar acerca do contínuo da
linguagem, do ritmo, da voz, da tradução.
Conforme é anunciado no título do capítulo, encerro o debate,
dessa forma, discutindo acerca do que significa traduzir a significância
dos textos e das obras, considerando o termo em sua solidariedade
com a noção de ritmo e a de voz.
A SIGNIFICÂNCIA EM SEMILOGIA DA LÍNGUA
Há, na constelação teórica de PLGI e PLGII, três termos que
remetem uns aos outros por apresentarem, muitas vezes, relações de
sinonímia, quais sejam, sentido, significação e significância. Não raro,
esses termos são tomados uns pelos outros, apesar de constituírem
valores diferentes dentro da obra. No Dicionário de linguística da
enunciação, por exemplo, encontramos apenas a definição para o
termo sentido na obra de Benveniste.
Rizzo (2019) nota, no entanto, em uma busca pela utilização
dos termos sentido, significação e significância, questões que
serão importantes para o debate aqui proposto: sentido aparece
usado com mais frequência para referir ao significado de palavras,
de lexema, de morfemas; significação se relaciona, em geral, a
questões em que se destaca o poder de significar da língua, diante
do pensamento, da cultura, do homem, da sociedade; e significância
somente é utilizada em Semiologia da língua, em que há um debate
acerca especificamente de sistemas de significação, e uma vez em
O aparelho formal da enunciação.
Partindo de tais constatações, proponho-me a pensar nesta
seção como se constrói o valor do termo significância, em especial,
SUMÁRIO
395
no texto Semiologia da língua, para, a partir disso, considerar sua
constituição e seu alcance teórico.
Benveniste inicia a reflexão em Semiologia da língua, publicado
originalmente em 1969, considerando as discussões de dois “gênios
antitéticos” (BENVENISTE, 2006a, p. 43), Peirce e Saussure. Interessa
aqui observar que, já nessa primeira contextualização, o linguista
pontua que a principal diferença do seu trabalho para o de Peirce é
que o signo está no centro da reflexão para este último, enquanto, para
Benveniste, a noção central é de sistema, pois “todo signo [é] tomado
e compreendido em um SISTEMA de signos” (BENVENISTE, 2006a, p.
45). A partir dessa discussão, Benveniste anuncia, “esta é a condição
da SIGNIFICÂNCIA140” (BENVENISTE, 2006, p. 45), ao apresentar ao
leitor, pela primeira vez, o uso do termo. O linguista ainda pontua que
resulta daí que todos os signos não possam pertencer a um sistema
único, logo, devem-se constituir inúmeros sistemas de signos.
Nesse momento, Benveniste aponta Saussure como aquele
que pode lhe auxiliar, já que procede da língua e a toma como objeto
exclusivo. Assim, a língua é tomada por ela mesma, e a linguística
somente é possível na medida em que se conhece descobrindo o
seu objeto.
A língua é, então, separada metodologicamente da linguagem,
o que permite que se tome a língua como princípio de unidade e se
encontre o seu lugar entre os fatos humanos. Delimitado o objeto da
linguística, Saussure afirma ainda, conforme aponta Benveniste (2006a),
que a linguística faria parte de uma ciência que não existe ainda, que
se ocupará de outros sistemas da mesma ordem no conjunto dos fatos
humanos, a semiologia.
140 Na introdução das Últimas aulas no Collège de France (1968 e 1969), escrita por JeanClaude Coquet e Irène Fenoglio, os autores notam que, nos manuscritos de Benveniste,
o linguista coloca o termo “signifiance” entre aspas e se refere a um artigo de Frédéric
Paulhan, o linguista, pai de Jean Paulhan.
SUMÁRIO
396
Dessa forma, Benveniste (2006a), seguindo os ensinamentos
do mestre Saussure, postula que a língua encontra sua unidade e o
princípio de seu funcionamento em seu caráter semiótico. Essa é a sua
natureza e se deve a tal caráter o fato de ela poder integrar um conjunto
de sistemas do mesmo tipo.
No domínio da semiologia estaria a língua, mas também
sistemas homólogos aos da língua, que teriam o caráter de serem
sistemas de signos: “A língua seria ‘apenas o mais importante
destes sistemas’” (BENVENISTE, 2006a, p. 49). Benveniste
ainda cita Saussure para ressaltar que “o problema linguístico é
antes de tudo semiológico, e todos os nossos desenvolvimentos
emprestam significação a este fato importante” (CLG, p. 34-35 apud
BENVENISTE, 2006a, 49).
Benveniste (2006a) pontua também que o que liga a linguística
à semiologia seria o princípio de que o signo linguístico é arbitrário.
Logo, o objeto principal da semiologia seria “o conjunto dos sistemas
fundados sobre o arbitrário do signo” (CLG, p. 100 apud BENVENISTE,
2006a, p. 50). Propondo-se a ir além de Saussure no ponto em que o
mestre deixou esse grande problema, Benveniste percebe que “não
menos que os sistemas de signos, as RELAÇÕES entre estes sistemas
constituirão o objeto da semiologia” (2006a, p. 51). Dessa forma, toma
como o “problema central” da semiologia “o estatuto da língua em
meio aos sistemas de signos” (BENVENISTE, 2006a, p. 51).
Importa observar na reflexão apresentada até este momento
que, para Benveniste, a noção de sistema torna-se essencial para
pensar a semiologia da língua. Mesmo que até essa época a principal
noção derivada do CLG seja de estrutura, a Benveniste interessa
pensar a questão da semiologia, partindo da teorização saussuriana
da noção de sistema, sustentada pela arbitrariedade. O linguista sírio
atenta, ainda, para o fato de que sua reflexão, indo além de Saussure,
considerará a relação entre sistemas.
SUMÁRIO
397
Em uma abordagem inicial de sua proposta em que cita
diferentes sistemas de signos, Benveniste (2006a) afirma ser o caráter
comum a todos os sistemas, e o critério de sua ligação à semiologia,
a propriedade de significar ou a “SIGNIFICÂNCIA”, bem como sua
composição em unidades de significância, ou signos.
A noção de valor também é recuperada por Benveniste ao
afirmar, a propósito de que não há signo transsistemático, que “o valor
de um signo se define somente no sistema que o integra” (2006a, p.
54). Percebe-se aqui uma aproximação entre a noção proposta por ele
de significância e a noção de valor proposta por Saussure.
Ao levantar reflexões acerca de outros sistemas de
significação que não a língua, Benveniste (2006a) conclui que há
sistemas cuja significância é posta pelo autor na obra e há sistemas
cuja significância é expressa pelos elementos em estado isolado,
independentemente das relações que possam estabelecer. Assim,
na arte, os termos são ilimitados em número, imprevisíveis por
natureza e, portanto, reinventados em cada obra; por outro lado,
“a significância da língua […] é a significância mesma, fundando a
possibilidade de toda troca e de toda comunicação, e também de
toda cultura” (BENVENISTE, 2006a, p. 60).
A língua, então, “nos fornece o único modelo de um sistema
que seja semiótico simultaneamente na sua estrutura formal e no seu
funcionamento” (BENVENISTE, 2006a, p. 63). Somente a língua “pode
conferir – e confere efetivamente – a outros conjuntos a qualidade
de sistemas significantes informando-os da relação de signo”
(BENVENISTE, 2006a, p. 64). Benveniste se questiona acerca de a
que se deve esse caráter da língua, acerca do que a torna um sistema
único, o que o leva, inclusive, em notas manuscritas, a duvidar do fato
de que a língua pertença realmente à semiótica141.
141 “Começo a duvidar de que a língua pertença realmente à semiótica” (BENVENISTE,
2014, p. 121).
SUMÁRIO
398
Respondendo ao próprio questionamento, Benveniste (2006a)
afirma que a língua significa de forma específica, que está apenas nela,
e que não pode ser reproduzida por nenhum outro sistema. A língua,
então, seria “investida de uma DUPLA SIGNIFICÂNCIA” (BENVENISTE,
2006a, p. 64), que combinaria dois modos distintos de significância, o
modo semiótico e o modo semântico.
Sobre o modo semiótico, o linguista propõe que “cada signo
é chamado a afirmar sempre e com a maior clareza sua própria
significância no seio de uma constelação ou em meio a um conjunto
dos signos” (BENVENISTE, 2006a, p. 65). Por outro lado, o modo
específico de significância do semântico seria engendrado pelo
discurso, que “não se reduz a uma sucessão de unidades que devem
ser identificadas separadamente”, pois “não é uma adição de signos
que produz o sentido, é, ao contrário, o sentido (o ‘intencionado’),
concebido globalmente que se realiza e se divide em ‘signos’
particulares, que são as PALAVRAS” (BENVENISTE, 2006a, p. 65).
A língua é concebida, portanto, como o único sistema cuja
articulação da significação se estabelece em duas dimensões; haveria
então sistemas cuja articulação da significação se daria a partir do
semiótico, sem semântico, como é o caso de gestos de cortesia,
mudrās, e sistemas cuja articulação da significação se daria a partir do
semântico, sem semiótico, como é o caso das expressões artísticas.
A SIGNIFICÂNCIA, O RITMO, A VOZ
Na reflexão proposta por Meschonnic (1975) acerca da
significância, a noção de sistema também se constituirá como de
grande relevância, na medida em que, para o teórico da linguagem,
a noção de sistema concebe a teoria da linguagem como uma
“anti-origem”. Ora, dizer que se concebe a teoria da linguagem
SUMÁRIO
399
como uma “anti-origem” é destacar que não há o dado, o anterior,
o pré-definido, em termos de linguagem, somente relação, a partir
de seu funcionamento.
Dessa forma, os textos e as obras, à imagem da língua, não
formam mais estruturas, mas sistemas, cujas configurações são
passíveis de mudança, e não se apresentam mais como uma forma
fixa. Os textos, as obras, portanto, não produzem mais unidades, mas
valores, que os constituem enquanto sujeitos. A constituição dos textos
e das obras se dá a partir de um arbitrário radical em sua relação com
o mundo: “As obras, enquanto sistema, significam e constituem sua
experiência nos sistemas de discurso ao mesmo tempo linguísticos e
extralinguísticos”142 (SAVANG, 2015, p. 93).
Ao conceber os textos e as obras enquanto sistemas de
discurso, Meschonnic propõe que nada pode determiná-las de fora.
Por isso, sua proposição do semântico sem semiótico não nega a
existência do semiótico, mas propõe que se observe os textos e as
obras a partir de seu sistema de discurso, a partir de seu semântico.
A relação se inverte se comparada ao que se faz tradicionalmente nos
estudos da linguagem. Metodologicamente, não se investiga mais
como o semiótico cria o semântico, mas o inverso, como o semântico
constitui o semiótico.
No entanto, o sistema de discurso não é fechado, é aberto. De
acordo com Decrosse (1995, p. 197 apud SAVANG, 2015, p. 93), “o
sistema e as práticas estão em inter-relações dinâmicas”143, isto é, um
sistema não se define pelo inventário de suas unidades, mas antes pela
significância que as informa, a partir de outros sistemas, da dinâmica
entre outros sistemas.
142 Tradução minha. No original, lê-se: “Les œuvres, en tant que système, signifient et situent
leur expérience dans les systèmes de discours à la fois linguistiques et extralinguistiques”.
143 Tradução minha. No original, lê-se: “le système et les pratiques sont en interrelations dynamiques”.
SUMÁRIO
400
Acerca dessa discussão, Savang (2015) lembra das palavras de
Benveniste em suas notas manuscritas:
Os sistemas não são universos fechados, isolados uns dos
outros. A relação entre eles ocorre por geração: um sistema
gerador, um sistema gerado. Trata-se de uma relação
de derivação. A priori, é o sistema de campo restrito que
deriva do sistema de campo amplo. Da escritura da língua
derivam a escritura musical […] e a escritura coreográfica.
(BENVENISTE, 2014, p. 108).
É a partir dessa discussão acerca da noção de sistema e da
observação de que os textos e as obras são tomados enquanto
sistemas de discurso que nasce a noção de significância, na poética
de Meschonnic. A significância, nesse sistema de pensamento, é
“o sentido em transformação, a forma-sentido no movimento de
um discurso utilizada por um sujeito realmente em vias de falar”144
(SAVANG, 2015, p. 99).
A significância é então o resultado de uma atividade de um
sujeito em vias de falar. Assim, não se está mais em uma referência
lexical, mas em “uma semântica específica; distinta do sentido lexical,
e que ele [Meschonnic] chama de significância: quer dizer os valores
próprios a um discurso e a um apenas”145 (LEOPIZZI, 2009, p. 27 apud
SAVANG, 2015, p. 99). A significância é, então, “a maneira de significar
no contínuo”146 (LEOPIZZI, 2009, p. 27 apud SAVANG, 2015, p. 99).
Meschonnic toma então o termo “‘significante’ como particípio
presente do verbo ‘significar’”147 (.LEOPIZZI, 2009, p. 27 apud SAVANG,
2015, p. 99) e propõe que “o ritmo anula o papel ancilar do significante,
144 Tradução minha. No original, lê-se: “le sens en transformation, la forme-sens dans le
mouvement d’un discours porté par un sujet”.
145 Tradução minha. No original, lê-se: “une sémantique spécifique; distante du sens lexical,
et qu’il [ Meschonnic ] appelle la signifiance : c’est-à-dire les valeurs propres à un discours
e à un seul”.
146 Tradução minha. No original, lê-se: “la manière de signifier dans le continu”.
147 Tradução minha. No original, lê-se: “‘signifiant’ comme participe présent du verbe ‘signifier’».
SUMÁRIO
401
pois somente há significantes e a significância - ou seja, uma
significação produzida pelos significantes - e não há significados”148
(LEOPIZZI, 2009, p. 27 apud SAVANG, 2015, p. 99).
A significância é, portanto, construída em um sistema de
discurso em que a não distinção entre forma e sentido a torna também
uma atividade, um efeito do discurso. Ela não é mais observada do
ponto de vista do semiótico, mas somente do semântico como uma
atividade de um sujeito.
É com a noção de valor de Saussure que a noção de significância
em Meschonnic se relaciona, na medida em que a significância é
constituída a partir de uma rede de relações prosódicas, rítmicas.
Tais redes de relações resultam de combinações entre significantes
errantes pelo texto, pela obra. É o sistema de discurso que atribui
valor, significância às unidades, seja em nível acentual, prosódico,
fonológico, morfológico, sintático ou lexical.
Em um poema149, conforme pontua Savang (2015), as unidades
significantes da língua perdem seu valor taxionômico, diante da
transubjetivação de seu valor nas relações discursivas de sujeito a
sujeito. A análise proposta por Meschonnic, a partir da observação
da significância, em um semântico sem semiótico, assemelha-se ao
que é proposto por Benveniste acerca das obras de arte, em que as
“relações significantes da ‘linguagem’ artísticas são descobertas NO
INTERIOR de uma composição. A arte não é jamais aqui senão uma
obra de arte particular, na qual o artista instaura livremente oposições
e valores que ele manipula soberanamente” (2006a, p. 60).
148 Tradução minha. No original, lê-se: “le rythme anule le rôle ancillaire du signifiant, car il
n’y a que des signifiants et de la signifiance - c’est-à-dire une signification produite par les
signifiants - et il n’y a plus de signifiés.”
149 É importante notar que a noção de poema, na poética de Meschonnic, não se limita ao
texto escrito em verso. O poema refere-se a todo e qualquer texto em que há uma invenção
de uma forma e de um sentido, em que o que se diz não pode ser separado da forma como
é dito. Dessa forma, o poema pode referir-se a um texto literário, mas também a um texto
teórico, filosófico etc.
SUMÁRIO
402
Meschonnic (2009) afirma que, na poesia, há a implicação
máxima de um sujeito na linguagem, em que o sujeito não pode ser
dividido em unidades significantes, em unidades parciais, pois o
sujeito é a sistematicidade do discurso, é o todo do discurso, está no
contínuo do discurso.
O poeta, então, não trabalha nem com unidades, nem com
signos isolados, mas a partir da relação entre sistemas, já que os
valores significantes da língua tomam uma significância própria,
particular à experiência e à imaginação do poeta (SAVANG, 2015).
A significância está, assim, em relação de continuidade com a
noção de ritmo. A noção, pois, de “ritmo como ‘ordem no movimento’
e não mais ‘ordem do movimento’, no sentido platônico”150 (SAVANG,
2015, p. 107), coloca em primeiro plano a noção de movimento e não
mais a de ordem. O ritmo se descobre em relação de interação entre o
movimento e a forma, em um funcionamento.
Esse movimento, esse contínuo do discurso só pode ser
observado ao não se negligenciar os aspectos prosódicos e acentuais
dos textos e das obras. Esse movimento, esse contínuo do discurso
só pode ser observado ao não se negligenciar mais o ritmo e a
voz, quando não se confunde o primeiro com a noção de métrica
e quando se percebe que a segunda não está presente apenas no
falado. Conforme Meschonnic (2009, p. 70), “o suprassegmental da
entonação, outrora excluído do sentido pelos linguistas, pode conter
todo o sentido, mais que as palavras”151.
A noção de significância está então em relação de
continuidade com a noção de ritmo e de voz. Por ritmo, compreende150 Tradução minha. No original, lê-se: “rythme comme ‘ordre dans le mouvement’ et non plus
comme ‘ordre du mouvement’, au sens platonicien” (grifos do autor).
151 Tradução minha. No original, lê-se: “Le ‘suprassegmental’ de l’intonation, jadis exclu du
sens par le linguistes, peut avoir tout le sens, plus que le mots”.
SUMÁRIO
403
se a organização das marcas pelas quais significantes, linguísticos
e extralinguísticos, produzem uma semântica específica, diferente
do sentido lexical. Essa semântica específica é a significância, ou
seja, os valores próprios a um discurso e a um só. Essas marcas
podem estar situadas em todos os níveis da linguagem, acentual,
prosódico, lexical, sintático, que constituem um paradigma e um
sintagma e acabam por neutralizar a noção de nível. A significância,
assim, constitui-se a partir de todo o discurso, pois consta em cada
consoante, em cada vogal, que produzem séries, tanto no sintagma
quanto no paradigma. Assim, o ritmo é a organização do sujeito como
discurso no e pelo seu discurso (MESCHONNIC, 2009).
A noção de voz é tomada em relação de continuidade com a
significância e com o ritmo, considerando-se os elementos prosódicos
e acentuais do discurso. Dessa forma, a voz não se confunde
necessariamente com o fônico, embora o elemento fônico possa fazer
parte da voz. A voz e a subjetividade são, portanto, elementos que se
constituem mutuamente, pois fazem parte da mesma problemática,
por isso, ao nos debruçarmos sobre o discurso, não escutamos o
som, mas o sujeito. Assim, o lugar do analista é aquele de escuta da
enunciação presente nos textos e nas obras (NEUMANN, 2016).
TRADUZINDO A SIGNIFICÂNCIA
Em Poética do traduzir, Meschonnic discute acerca da
constituição da significância em torno do nome de Ofélia, em Hamlet, de
Shakespeare. Segundo o teórico da linguagem, há no entorno imediato
do nome certos elementos consonânticos ou vocálicos, mas sobretudo
consonânticos. Essa difusão de significantes, através de consoantes e
vogais do nome de Ofélia, nas extremidades do início ao fim da peça,
“não constituem uma lista aleatória, mas um acompanhamento cheio
SUMÁRIO
404
de sentido: o sentido deste nome nesta peça” (MESCHONNIC, 2010,
p. 111); assim, “essas palavras apelam para o que caracteriza Ofélia e
para aquilo que constrói o seu destino” (MESCHONNIC, 2010, p. 111).
O nome próprio não tem sentido, afirma Meschonnic (2010),
apenas designação, por isso há um contínuo entre designação e
significação: “Está em questão um texto como sistema de seu próprio
discurso: ele realiza o que nenhum outro faz” (MESCHONNIC, 2010,
p. 111). As unidades de que se trata nessa discussão não são mais
unidades da língua, mas de um discurso único, de um semântico sem
semiótico, de uma poética.
A “semântica da prosódia”, “o poema da prosódia de Ofélia em
Hamlet” constroem a significância. Assim, o nome de Ophelia aparece
relacionado a motivos sucessivos do medo, do adeus, da beleza, do
face a face com Hamlet, da relação com o pai (depois com o irmão),
do sofrimento, da doçura, da dor, da separação de si mesma, das
lágrimas, do amor e da morte (MESCHONNIC, 2010).
Na cena 3, por exemplo, Meschonnic (2010) observa que Ofélia
está com seu irmão e que a primeira palavra que acompanha e que
precede seu nome no discurso do irmão é o medo, medo do desejo
de Hamlet: “Fear it, Ophelia, fear it, my dear sister/ And keep you in the
rear of your affection./ Out of the shot and danger of desire”152. O nome,
portanto, de Ofélia começa cercado pelo medo, pois fear partilha da
consoante de ataque de Ophelia, que faz par com dear e rear.
Problematizando essa passagem do texto, Meschonnic (2010,
p. 14) apresenta duas possibilidades de tradução: 1ª - proposta
por Gide: “Crains cela; crains cela, ma sœur . Chère Ophélie”; 2ª proposta por Lepoutre: “Crains-le, Ophélie, crains-le, ma chère sœur”.
No entanto, buscando traduzir a significância, o teórico propõe,
152 SHAKESPEARE, Willian. Hamlet. Edição de André Lorant, Aubier, 1988 apud
MESCHONNIC, 2010, p. 114.
SUMÁRIO
405
“C’est affreux, Ophélie, affreux, ma chère sœur” ou “Fuis-le, Ophélie,
fuis-le…”, em que se busca recriar o eco prosódico entre Ophelia e
fear, em inglês, através de affreux ou fuis, em francês.
É interessante ainda destacar, na análise apresentada pelo
teórico da linguagem, a passagem em que Ofélia se enterra: “What,
the fair Ophelia!”153, ao que a rainha diz: [Scattering flowers] Sweets
to the sweet. Farewell./ I hope thou shouldst have been my Hamlet’s
wife./ I thought thy bride-bed to have decked, sweet maid, / And not
t’have strewed thy grave”154. Percebe-se que sweet, redobrado, está
entre fair e farewell; assim, nesta figura prosódica se condensa o
retrato e o destino de Ofélia (MESCHONNIC, 2010, p. 119). Segundo
Meschonnic (2010), Ofélia é a personagem a quem mais se dá
adeus em Hamlet, de forma que “começa e acaba quase - mas este
quase me parece capital - em Farewell: o Farewell de Laerte (I, 3, 84),
chamando Ofélia pela décima vez, e o da rainha, perto da tumba”
(MESCHONNIC, 2010, p. 120).
Ao considerar-se o texto sob a perspectiva do semântico sem
semiótico, em que se busca a significância, novas relações de sentido
podem ser destacadas e percebidas, que se encontram na relação
entre os eixos sintagmático e paradigmático do texto e/ou da obra. A
observação ou não dessas relações pode levar a uma escolha ou outra
por parte do tradutor, no processo tradutório.
O poema abaixo, de Manoel de Barros, também traz um
trabalho interessante com a linguagem, que se pode observar a
partir da consideração de aspectos prosódicos e acentuais do texto,
considerando-o um sistema de discurso.
153 SHAKESPEARE, Willian. Hamlet. Edição de André Lorant, Aubier, 1988, v, 1, 231 apud
MESCHONNIC, 2010, p. 119.
154 SHAKESPEARE, Willian. Hamlet. Edição de André Lorant, Aubier, 1988, v. 232-235 apud
MESCHONNIC, 2010, p. 119.
SUMÁRIO
406
Obrar II
Naquele outono, de tarde, ao pé da roseira de minha
avó, eu obrei.
Minha avó não ralhou nem.
Obrar não era construir casa ou fazer obra de arte.
Esse verbo tinha um dom diferente.
Obrar seria o mesmo que cacarar.
Sei que o verbo cacarar se aplica mais a passarinhos
Os passarinhos cacaram nas folhas nos postes nas pedras do
rio nas casas.
Eu só obrei no pé da roseira da minha avó.
Mas ela não ralhou nem.
Ela disse que as roseiras estavam carecendo de esterco orgânico.
E que as obras trazem força e beleza às flores.
Por isso, para ajudar, andei a fazer obra nos canteiros da horta.
Eu só queria dar força às beterrabas e aos tomates.
A vó então quis aproveitar o feito para ensinar que o cago não é uma
coisa desprezível.
Eu tinha vontade de rir porque a vó contrariava os
ensinos do pai.
Minha avó, ela era transgressora.
No propósito ela me disse que até as mariposas gostavam
de roçar nas obras verdes.
Entendi que obras verdes seriam aquelas feitas no dia.
Daí que também a vó me ensinou a não desprezar as coisas
desprezíveis
E nem os seres desprezados. (BARROS, 2003)
Esse poema de Manoel de Barros foi analisado em Neumann
(2016). Não é, portanto, de interesse para este capítulo apresentar
novamente essa análise, mas pontuar uma questão do poema que
dialoga de forma estreita com a questão aqui levantada. Conforme
pode ser observado, o título do poema é “Obrar II”. Durante o texto,
SUMÁRIO
407
busca-se explicar o que significa obrar, ou pelo menos, o que significa
obrar neste poema, conforme pode-se comprovar nas seguintes
passagens: “Obrar não era construir casa ou fazer obra de arte./ Esse
verbo tinha um dom diferente./ Obrar seria o mesmo que cacarar./ Sei
que o verbo cacarar se aplica mais a passarinhos/ Os passarinhos
cacaram nas folhas nos postes nas pedras do rio/ nas casas./ Eu só
obrei no pé da roseira da minha avó”.
Para além do que significa o verbo obrar, nesse texto, se nos
dedicarmos a buscar sua significância, se nos dedicarmos portanto a
ouvir a enunciação, a ouvir aquilo que perpassa para além da análise
dos elementos descontínuos do poema, perceberemos uma rede de
significância, através de ecos prosódicos e de rimas. A significância de
obrar se estabelece, a partir dos ecos prosódico com obrei, obra de arte,
obras, obra, obras verdes. Ou seja, o valor de obrar não se dissocia da
relação que estabelece entre essas outras expressões que aparecem
no poema, através de ecos prosódicos. Inclusive, é interessante notar
que, embora se diga, no 4º verso, que “Obrar não era construir casa
ou fazer obra de arte”, a partir dos ecos prosódicos, observa-se que
obra de arte auxilia na constituição da significância de obrar, quando,
ao final do poema, se fala de obras verdes. O verbo obrar se constitui
em proximidade de valor com obra de arte, bem como com obras,
obra, obras verdes.
Dentro da constituição da significância do verbo obrar, é
ainda interessante observar que a proximidade de sentidos com
cacarar não se apresenta apenas pelo dito no 6º verso, “Obrar
seria o mesmo que cacarar”, mas pelo dizer, ou seja, pela rima
estabelecida entre obrar e cacarar. A relação de valor entre as duas
palavras constitui a significância.
Por fim, neste poema, é o obrar que estabelece a relação de
proximidade entre o menino e a avó, o que pode ser escutado através
da rima entre obrei (2º e 10º versos) e nem (3º e 11º versos), em que
SUMÁRIO
408
há dupla negação: “Minha vó não ralhou nem”, no verso 3, e “Mas ela
não ralhou nem”, no verso 11155. A observação desse movimento que
constitui a significação do verbo obrar, bem como de outros elementos
que se relacionam a ele no poema, pode interferir na escolha tradutória
daquele que busca traduzir não somente o dito, mas também o dizer.
PALAVRAS FINAIS
Neste capítulo, busquei atentar para a construção da noção de
significância em “Semiologia da língua”, na medida em que tal noção
se constrói a partir do diálogo estreito com aquelas de valor e de
sistema, de Saussure.
A importância de resgatar essa discussão se deve ao fato de
que tais noções – de sistema, de valor, de significância – apresentam
uma complexidade e uma sofisticação que, acredito, ainda não foram
exploradas em toda a sua potência pela linguística moderna. A ideia
de que a relação constitui o valor e a significância e de que essa
relação decorre de um sistema pode ser bastante profícua para que
se trabalhe com aquilo que é da ordem do movente, do contínuo, do
inefável na linguagem.
Conforme o demonstra Meschonnic, em sua poética, é a partir
da consideração também do discurso enquanto sistema que se pode
pensar acerca desse valor, dessa significância, nos textos e nas obras.
Ao buscar o valor, a significância, nos sistemas de discurso, é inevitável
que o analista se depare com os aspectos prosódicos e acentuais
da linguagem, é inevitável que o analista perceba que os valores se
155 Entre “obrei” e “nem”, escuta-se uma rima, já que há um ditongo verdadeiro – ei – no
primeiro, e um ditongo falso – ei – no segundo. Na língua falada, nos dois casos, há
ditongo. Agradeço o auxílio de Luíza Milano para a explicação fonológica dessa rima.
SUMÁRIO
409
estabelecem também a partir de elementos que não são da ordem
do segmentável, do descontínuo, conforme o denomina Meschonnic.
Atentar para a consideração do discurso enquanto sistema,
para a constituição desse sujeito que perpassa o contínuo do discurso,
que se constrói ao mesmo tempo em que constrói o ritmo, a voz, pode
colocar o tradutor diante de questões de significância que o levam a
considerar outras possibilidades e escolhas, a fim de recriar os efeitos
do texto da obra a ser traduzida.
Assim, na atividade de traduzir, algo se perde, na medida em
que não somente o dito é recriado, mas também o dizer. No entanto,
algo se ganha. Ao buscar traduzir o efeito, o dizer dos textos e das
obras, o tradutor, ao fazê-lo, recria efeitos, recria o poema e, dessa
forma, vislumbra novas possibilidades de combinações, de oposições
e de valores nos sistemas de discurso da língua em que os textos são
traduzidos; logo, vislumbra o novo a ser pensado.
REFERÊNCIAS
BARROS, Manoel de. Memórias inventadas: a Infâ ncia. São Paulo:
Planeta, 2003.
BENVENISTE, Émile. Semiologia da língua. In: BENVENISTE, Émile.
Problemas de linguística geral II. 2ª edição. Campinas, SP: Pontes
Editores, 2006 (a).
BENVENISTE, Émile. Aparelho formal da enunciação. In: BENVENISTE,
Émile. Problemas de linguística geral II. 2ª edição. Campinas, SP: Pontes
Editores, 2006 (b).
BENVENISTE, Émile. Últimas aulas no Collège de France (1968 e
1969). Tradução de Daniel Costa a Silva [et. al.] 1ª Edição. São Paulo:
Editora Unesp, 2014.
DESSONS, Gérard. Émile Benveniste, l’invention du discours. Paris: Éditions
IN PRESS, 2006.
SUMÁRIO
410
DESSONS, Gérard; NEUMANN, Daiane; OLIVEIRA, Giovane F. Émile
Benveniste e a arte de pensar: uma entrevista com Gérard Dessons. Revista
Virtual de Estudos da Linguagem, v. 17, p. 374-380, 2020.
FLORES, Valdir do N; BARBISAN, Leci B; FINATTO, Maria J. B.; TEIXEIRA,
Marlene. Dicionário de linguística da enunciação. São Paulo: Contexto, 2009.
MESCHONNIC, Henri. Le signe et le poème. Paris, Gallimard, 1975.
MESCHONNIC, Henri. Critique du rythme: antropologie historique du
language. Lonrai, França: Éditions Verdier, 2009.
MESCHONNIC, Henri. Poética do traduzir. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e
Suely Fenerich. São Paulo: Perspectiva, 2010.
NEUMANN, Daiane. Em busca de uma poética da voz. 173p. Tese
(Doutorado em Letras) – Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Porto Alegre, 2016.
RIZZO, Ana Rosa Saad. A construção da significância em letras de canções.
2019. Dissertação (Mestrado em Letras) – Centro de Letras e Comunicação,
Universidade Federal de Pelotas, Pelotas.
SAVANG, Jean-François. Rythme et signifiante dans la théorie du langage
d’Émile Benveniste. In: BÉDOURET-LARRABURU, Sandrine; LAPLANTINE,
Chloé. Émile Benveniste: vers une poétique générale. França: Presses des
l’Université de Pau et des Pays de l’Adour, 2015.
SUMÁRIO
411
SOBRE OS AUTORES E AS AUTORAS
Alena Ciulla
Professora do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS). Em seu doutorado, que foi realizado entre a Universidade de NancyLorraine e a Universidade Federal do Ceará (UFC), tratou dos processos
referenciais, sob um ponto de vista da referenciação e da linguística textual.
Sob a mesma abordagem, no mestrado, realizado na UFC, tratou da questão
da definição e da classificação de dêiticos e anafóricos. Realizou dois estudos
de pós-doutorado: um em multilingual text analysis, na construção de árvores
sintáticas do francês e do alemão, junto à equipe de desenvolvimento de um
tradutor automático, na Universidade de Zürich (UniZ), e outro nas áreas de
terminologia e tradução, na UFRGS, em que a recepção da obra de Saussure
foi o foco do estudo. Sua formação na graduação é em Letras, na UFRGS,
com habilitação em Tradução do Francês. Atua como tradutora e participou de
traduções, como a do último livro de Jean-Michel Adam, publicada no Brasil
em 2019. Os pontos de interesse de sua pesquisa são a referência, o texto, a
tradução e a história das ideias linguísticas. Atualmente, desenvolve um projeto
de pesquisa, em que as questões da referência e do texto são dimensionadas
a partir de um ponto de vista benvenisteano.
E-mail:
[email protected]
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2180994390225145
Carmem Luci da Costa Silva
Professora Associada em Língua Portuguesa no Departamento de Letras
Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Graduada em Letras, com ênfase em Licenciatura de Língua Portuguesa e
Literaturas de Língua Portuguesa, pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS). Mestre e Doutora em Estudos da Linguagem pela mesma
Universidade. Pós-doutora em Linguística pela Universidade Estadual Paulista
(Unesp). Docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Letras da
UFRGS, credenciada na linha de pesquisa “Análises Textuais, Discursivas e
Enunciativas”. Seus principais temas de pesquisa são: aquisição e ensinoaprendizagem de língua materna e estudo de texto a partir das perspectivas
linguísticas de Émile Benveniste e de Oswald Ducrot. Entre as suas publicações,
destacam-se a autoria do livro A linguagem da criança: enunciação e aquisição,
publicação da Pontes em 2009, a organização conjunta do livro A criança na/
com a linguagem: saberes e contraponto, edição do Instituto de Letras/UFRGS
SUMÁRIO
412
em 2017, e a coordenação conjunta da equipe de elaboração dos verbetes
de Oswald Ducrot do Dicionário de Linguística da Enunciação, publicação da
Contexto em 2009. Membro da Associação Brasileira de Linguística (ABRALIN)
e do GT “Semântica e Estudos Enunciativos” da Associação Nacional de PósGraduação e Pesquisa em Letras e Linguística (ANPOLL).
E-mail:
[email protected]
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2371181014921204
Carolina Knack
Professora Adjunta do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS). Doutora e Mestre em Estudos da Linguagem, pela linha de
pesquisa “Análises Textuais, Discursivas e Enunciativas”, do Programa de
Pós-Graduação em Letras da UFRGS. Graduada em Licenciatura em Letras –
Português e Literaturas de Língua Portuguesa pela mesma Instituição. Membro
da Associação Brasileira de Linguística (ABRALIN) e do GT “Semântica e
Estudos Enunciativos” da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa
em Letras e Linguística (ANPOLL). Interessa-se pela obra de Émile Benveniste
em suas diferentes facetas, a partir das quais busca desenvolver pesquisas
(intra)teóricas, com destaque para a relação entre língua(gem) e seus aspectos
sociais, e teórico-analíticas, com destaque para a proposição de fundamentos
para a abordagem de fenômenos relacionados às práticas sociais de uso
da língua, especialmente as integrantes das esferas educacionais. Nesse
contexto, interessa-se pelas interfaces entre ensino-aprendizagem de língua
e enunciação e entre texto e enunciação, temática de sua dissertação de
mestrado, pela qual recebeu o Prêmio ANPOLL no biênio 2012-2014.
E-mail:
[email protected]
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7428627807517558
Claudia Toldo
Professora tempo integral de Língua Portuguesa e Linguística no Curso de
Letras da Universidade de Passo Fundo (UPF/RS). Tem Graduação em Letras
pela UPF/RS (1990), Especialização em Ensino de Língua Portuguesa pela
PUC/MG (1992), Mestrado em Letras (Área de concentração: Teorias do
Texto e do Discurso) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1999),
Doutorado em Linguística pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul (2002) e Pós-doutorado em Linguística, na Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (2012), com bolsa CAPES. Atua como professora de Língua
Portuguesa e Linguística do Curso de Graduação em Letras e professora/
orientadora do Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado)
em Letras, da Universidade de Passo Fundo. Realiza estudos na área da
SUMÁRIO
413
Linguística, com ênfase em Linguística da Enunciação e Linguística do Texto,
dedicando-se – principalmente – ao estudo dos seguintes temas: enunciação
(teorias de Émile Benveniste), ensino de língua materna, abordando questões
referentes ao ensino da leitura, da produção textual e da sintaxe. Atualmente,
é Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras/PPGL da UPF. É
pesquisadora e bolsista Produtividade em Pesquisa – PQ/CNPQ.
E-mail:
[email protected]
Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4770841D1
Daiane Neumann
Doutora em Estudos da Linguagem pelo Programa de Pós-graduação da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2016), com período de doutoradosanduíche na Université Paris 8 Vincennes-Saint-Denis, sob a orientação de
Gérard Dessons. Fez estágio pós-doutoral na Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul (2017). Atualmente, é professora Adjunta da Universidade
Federal de Pelotas, em cursos de graduação em Letras e no Programa de
Pós-graduação em Letras, onde atuou também como coordenadora. É líder
do grupo de pesquisa “Linguística, literatura e arte” do CNPq. Dedica-se ao
estudo da obra de Ferdinand de Saussure, de Émile Benveniste e da poética de
Henri Meschonnic, a fim de pensar questões pertinentes à teoria da linguagem
de forma que esta não seja concebida desvinculada da literatura. A partir da
concepção de linguagem, enquanto uma antropologia histórica, dedica-se a
refletir sobre a relação da linguagem com o ritmo, com a voz, com o corpo, em
textos literários.
E-mail:
[email protected]
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9399552968699184
Elisa Marchioro Stumpf
Doutora (2017) e mestre (2010) em Letras pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, na linha de pesquisa “Análises Textuais, Discursivas e
Enunciativas”, e graduada em Letras – Português/Inglês pela Universidade
de Caxias do Sul. Atualmente, é professora adjunta da Universidade Federal
de Pelotas na área de português como língua adicional. Tem experiência no
ensino de inglês e português como línguas adicionais e em pesquisa nas
áreas de linguística e linguística aplicada, com foco em teorias enunciativas
e letramento acadêmico. Desenvolve estudos sobre os seguintes tópicos:
relação entre língua e cultura, (im)polidez e discurso de ódio, ensino de línguas
para fins acadêmicos e elaboração de material didático para ensino de línguas
adicionais.
E-mail:
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Lattes: http://lattes.cnpq.br/6961518330074096
SUMÁRIO
414
Fábio Aresi
Doutorando em Estudos da Linguagem pelo Programa de Pós-Graduação em
Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), na linha de
pesquisa “Análises Textuais, Discursivas e Enunciativas”. Licenciado em Letras
– Língua Portuguesa e Língua Inglesa pela mesmo Instituição. Seus temas de
interesse giram em torno da Epistemologia da Linguística e da História das
Idéias Linguísticas, voltados principalmente para o pensamento teórico de
Ferdinand de Saussure e Émile Benveniste.
E-mail:
[email protected]
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4090608696778558
Giovane Fernandes Oliveira
Doutorando em Estudos da Linguagem, vinculado à linha de pesquisa “Análises
Textuais, Discursivas e Enunciativas”, do Programa de Pós-Graduação em
Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Graduado em
Licenciatura em Letras – Língua Portuguesa, Língua Francesa e suas Literaturas
pela mesma Instituição (2016). Realizou um semestre de mobilidade acadêmica
na Université de Rouen (França), onde cursou disciplinas na graduação em
Sciences du Langage – Français Langue Étrangère e no mestrado em Sciences
du Langage – Diffusion du Français (2015). Seus interesses de pesquisa
circunscrevem-se a três campos do saber: 1) Epistemologia da Linguística
e História das Ideias Linguísticas, com foco nos legados de Ferdinand de
Saussure, Émile Benveniste e Michel Pêcheux; 2) Aquisição da Linguagem,
com foco na aquisição da fala e da escrita em língua materna a partir da
perspectiva enunciativa benvenistiana; 3) Estudos do Letramento, com foco
em leitura, produção textual e oralidade letrada nos letramentos escolar e
acadêmico. Membro da Associação Brasileira de Linguística (ABRALIN).
Organizador do site “Estudos enunciativos”, página de divulgação científica
que busca dar a conhecer as pesquisas desenvolvidas a partir da teoria da
linguagem benvenistiana.
E-mail:
[email protected]
Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4667386H6
Heloisa Monteiro Rosário
Doutora em Letras, na área de Estudos da Linguagem, pelo Programa de PósGraduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Trabalhou na Université Paul-Valéry (Montpellier/França) e na Université
d’Avignon et des Pays de Vaucluse (Avignon/França), ministrando disciplinas
de português para cursos de graduação e mestrado. Atua como professora
do Departamento de Línguas Modernas e do Programa de Pós-Graduação
SUMÁRIO
415
em Letras da UFRGS. Em suas pesquisas, dedica-se a questões relacionadas
à epistemologia da linguística, à história das ideias linguísticas, à linguística
geral e aos campos enunciativo e semiológico, tendo especial interesse pelo
pensamento de Émile Benveniste. Seu projeto de pesquisa (Entre figuras e
instituições: a Escola linguística de Paris e a constituição de um pensamento
sobre a linguagem) investiga as ideias de Michel Bréal, Ferdinand de Saussure,
Antoine Meillet e Émile Benveniste, assim como o papel da École Pratique des
Hautes Études (EPHE) e do Collège de France na discussão sobre a linguagem
na França entre os séculos XIX e XX.
E-mail:
[email protected]
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4636568112870081
Luiza Ely Milano
Tem graduação em Fonoaudiologia pela Universidade Federal de Santa Maria
(1989), mestrado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(2000) e doutorado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(2006). É professora dos cursos de graduação em Letras e em Fonoaudiologia
da UFRGS e professora e orientadora do Programa de Pós-Graduação em
Letras da mesma Universidade. Tem experiência na área de Estudos da
linguagem, com ênfase em linguística, atuando principalmente nos seguintes
temas: epistemologia da linguística, linguística saussuriana, linguística
jakobsoniana, linguística da enunciação, relações entre som e sentido, leitura
em voz alta compartilhada, linguagem e sintoma, escuta.
E-mail:
[email protected]
Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4768852E2
Marlete Sandra Diedrich
Professora tempo integral do Curso de Letras e do Programa de Pós-Graduação
em Letras da Universidade de Passo Fundo – RS. Tem experiência no ensino de
língua portuguesa na Educação Básica, no Ensino Superior e, principalmente,
na formação de professores. Mestre em Letras (PUC/2001) e Doutora em
Letras (UFRGS/2015). Suas pesquisas abordam os seguintes temas: aquisição
da linguagem, enunciação, interação. É membro da Associação Brasileira de
Linguística (ABRALIN) e faz parte do Grupo de Trabalho Estudos em Aquisição
da Linguagem Oral e Escrita da Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Letras e Linguística (ANPOLL).
E-mail:
[email protected]
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6782277245474708
SUMÁRIO
416
Patrícia da Silva Valério
Tem doutorado em Linguística Aplicada pela Unisinos/RS (2015) e mestrado
em Letras pela Universidade de Passo Fundo (2005). Professora do Curso
de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Letras da UPF, onde atua
na linha de pesquisa “Constituição e Interpretação do Texto e do Discurso”.
Seus estudos atuais concentram-se no campo das teorias da enunciação,
especialmente aspectos relacionados à linguagem e à interação.
E-mail:
[email protected]
Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4744571J3
Paula Ávila Nunes
Licenciada em Letras – Português/Inglês (2008) e Doutora em Letras (2012)
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É atualmente professora de
Linguística e Língua Portuguesa do Departamento Acadêmico de Linguagem e
Comunicação (DALIC) e membro do quadro docente permanente do Programa
de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens (PPGEL), do qual é também
coordenadora, na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR),
campus Curitiba. Estuda questões relativas aos estudos enunciativos da
linguagem desde sua graduação, tendo publicado uma série de artigos sobre
o tema. Atualmente se dedica a reflexões sobre linguagem e tecnologia em
sua imbricação ontológica, ainda na perspectiva enunciativa, mas em interface
com outros campos das ciências humanas.
E-mail:
[email protected]
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1160402607696538
Silvana Silva
Professora Adjunta da área de Língua Portuguesa da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS). Docente e orientadora em nível de mestrado
do Programa de Pós-Graduação em Letras, na linha de pesquisa “Análises
Textuais, Enunciativas e Discursivas”. Tem experiência na área de Produção
de Textos para diversas Áreas do Conhecimento. Integrante da Comissão
Executiva da Revista Cadernos do Instituto de Letras. Doutora em Estudos
da Linguagem (UFRGS). Pesquisa os seguintes temas: Teoria da Enunciação
de Émile Benveniste; epistemologia da linguística; educação linguística;
enunciação e sociedade; produção de textos.
E-mail:
[email protected]
Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4764695T4
SUMÁRIO
417
Valdir do Nascimento Flores
Professor Titular de Linguística e Língua Portuguesa da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS). Realizou estudos de pós-doutorado na
Université Paris-Est Créteil (Paris XII) e na Université Paris-Nanterre (Paris X).
Atuou como professor convidado na École Normale Supèrieure (ENS) junto
ao Institut des Textes et Manuscrits Modernes (ITEM), em Paris. Interessa-se
pelos diferentes aspectos da linguagem (diversidade das línguas, aquisição,
distúrbio, tradução, voz etc.) abrigados no amplo campo da linguística e
aborda-os de um ponto de vista que coloca a experiência do falante, do Homo
loquens, no centro da investigação. Nesse sentido, tem se dedicado, nos
últimos anos, a fundamentar uma perspectiva antropológica da enunciação.
É pesquisador 1D do CNPq.
E-mail:
[email protected]
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8959064517534406
SUMÁRIO
418
ÍNDICE REMISSIVO
276, 277, 278, 284, 286, 287, 288, 289,
290, 291, 292, 293, 294, 295, 296, 297,
alternativa 12, 111, 246, 308
298, 299, 300, 301, 302, 303, 304, 305,
aparelhos 10, 46, 50, 60, 67, 72, 73, 167,
306, 307, 308, 310, 311, 312, 313, 314,
172, 246
aquisição 11, 27, 37, 43, 90, 147, 149, 152, 315, 316, 317, 318, 319, 321, 322, 323,
324, 326, 327, 328, 329, 330, 331, 332,
153, 158, 163, 164, 165, 166, 169, 170,
333, 334, 335, 336, 337, 338, 339, 340,
171, 172, 173, 174, 175, 176, 177, 178,
341, 343, 344, 345, 346, 347, 348, 349,
179, 180, 181, 182, 183, 184, 185, 186,
350, 353, 355, 357, 359, 361, 365, 366,
188, 191, 197, 198, 199, 200, 202, 203,
367, 368, 369, 370, 371, 372, 373, 374,
205, 206, 207, 213, 218, 219, 220, 221,
375, 376, 377, 378, 379, 380, 381, 382,
222, 223, 224, 225, 226, 227, 229, 230,
383, 384, 385, 386, 387, 388, 389, 390,
232, 237, 238, 239, 240, 241, 242, 244,
391, 392, 394, 395, 396, 397, 398, 399,
245, 246, 247, 248, 249, 255, 258, 259,
401, 402, 410, 411, 412, 413, 414, 415,
268, 269, 273, 412, 415, 416, 418
416, 418
B
benvenisteana 10, 46, 71, 72, 317
biológico 11, 19, 164, 165, 166, 167, 172,
Benveniste 10, 11, 12, 14, 15, 16, 17, 18,
178, 188, 190, 192, 193, 194, 195, 197,
19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 31,
199, 200, 276
32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 43,
blasfemia 11, 122, 123, 124, 125, 126, 127,
44, 45, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55,
128, 130, 131, 132, 133, 134, 136, 137,
56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66,
138, 140
67, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 78,
79, 80, 81, 82, 83, 85, 87, 88, 91, 93, 96,
C
97, 98, 99, 100, 102, 103, 104, 105, 106,
comunhão 12, 34, 35, 37, 38, 40, 43, 134,
107, 108, 109, 110, 112, 113, 114, 116,
135, 136, 138, 293, 294, 318, 319, 325,
118, 119, 120, 122, 123, 124, 125, 126,
327, 328, 329, 332, 333, 334, 335, 336,
127, 128, 129, 130, 132, 133, 134, 136,
337, 338, 339
138, 139, 140, 141, 142, 143, 144, 145,
comunhão fática 12, 34, 35, 37, 38, 40, 43,
146, 147, 148, 150, 151, 152, 153, 155,
134, 135, 136, 138, 293, 294, 318, 319,
156, 158, 159, 161, 162, 163, 165, 166,
325, 327, 328, 329, 332, 333, 334, 335,
168, 169, 170, 171, 172, 173, 174, 176,
336, 337, 338, 339
177, 178, 179, 180, 181, 182, 183, 184,
condição figurativa 10, 30, 34, 36, 37, 38,
185, 186, 187, 188, 190, 196, 198, 200,
39, 40, 41, 42, 44, 318, 331, 332
201, 203, 205, 206, 207, 211, 212, 213,
criança 11, 27, 90, 149, 152, 153, 154, 155,
214, 216, 217, 220, 222, 223, 224, 225,
163, 164, 165, 166, 167, 169, 170, 171,
239, 240, 241, 253, 256, 268, 269, 272,
172, 173, 174, 175, 176, 177, 178, 179,
A
SUMÁRIO
419
157, 158, 162, 163, 164, 166, 175, 176,
177, 179, 182, 187, 189, 192, 193, 195,
196, 199, 201, 202, 203, 205, 207, 208,
210, 211, 212, 213, 214, 215, 216, 217,
219, 220, 239, 240, 244, 250, 251, 252,
253, 254, 255, 256, 258, 259, 260, 263,
266, 271, 272, 273, 276, 291, 292, 293,
294, 295, 296, 305, 307, 311, 313, 317,
318, 321, 323, 324, 325, 326, 327, 328,
329, 330, 331, 332, 334, 335, 336, 337,
338, 339, 342, 343, 344, 345, 346, 347,
348, 349, 350, 353, 354, 355, 356, 357,
360, 361, 368, 371, 375, 376, 377, 384,
395, 404, 408, 410, 411, 412, 413, 414,
D
416, 417, 418
dado 11, 34, 53, 87, 103, 126, 139, 173,
enunciativo 11, 16, 44, 78, 80, 88, 107, 113,
194, 198, 207, 209, 212, 216, 221, 224,
118, 139, 147, 150, 151, 152, 153, 161,
225, 226, 227, 228, 231, 232, 235, 236,
163, 167, 175, 176, 192, 196, 199, 211,
247, 249, 250, 251, 252, 253, 254, 255,
218, 221, 232, 240, 250, 251, 252, 253,
256, 257, 267, 269, 270, 272, 273, 276,
254, 255, 256, 258, 259, 261, 262, 264,
282, 293, 303, 322, 350, 386, 400
265, 266, 269, 294, 313, 344, 351, 416
dêixis 10, 63, 92, 93, 94, 95, 96, 97, 98, 99, escrita 11, 16, 18, 21, 42, 48, 58, 69, 70,
102, 112, 113, 115, 116, 117, 118, 119, 120 77, 88, 144, 146, 162, 163, 203, 216, 220,
deslocamento 11, 23, 141, 146, 147, 148,
221, 224, 225, 237, 238, 240, 241, 242,
149, 151, 154, 155, 157, 158, 159, 160,
243, 244, 245, 246, 247, 248, 249, 255,
161, 216, 217, 229, 242, 344, 375
257, 259, 262, 263, 265, 266, 267, 268,
269, 270, 273, 318, 324, 327, 340, 344,
E
362, 365, 366, 367, 368, 369, 370, 371,
ensino 12, 144, 146, 203, 247, 324, 327,
373, 374, 375, 376, 379, 380, 383, 384,
342, 382, 412, 413, 414, 415, 416
385, 388, 389, 390, 396, 415
enunciação 10, 11, 12, 14, 15, 16, 17, 18,
escuta 10, 75, 76, 77, 78, 79, 82, 84, 85,
20, 22, 24, 25, 26, 27, 30, 31, 33, 34, 35,
87, 88, 90, 164, 169, 170, 171, 172, 177,
36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 47,
178, 179, 180, 182, 183, 186, 189, 190,
48, 49, 51, 52, 55, 57, 58, 59, 60, 61, 62,
192, 193, 194, 195, 196, 201, 203, 256,
63, 64, 65, 66, 67, 68, 69, 70, 71, 73, 74,
257, 271, 273, 394, 404, 409, 416
76, 77, 78, 79, 81, 84, 86, 87, 88, 92, 94,
experiência 11, 24, 32, 36, 37, 38, 44, 49,
98, 99, 104, 105, 106, 107, 108, 109, 110,
72, 87, 161, 172, 177, 179, 187, 189, 196,
111, 114, 117, 118, 119, 120, 121, 122,
200, 201, 204, 205, 206, 207, 208, 209,
123, 128, 130, 131, 132, 133, 134, 135,
210, 211, 213, 215, 216, 217, 218, 219,
136, 137, 138, 139, 140, 142, 143, 144,
220, 231, 242, 271, 291, 292, 293, 306,
145, 149, 150, 151, 152, 153, 154, 155,
181, 182, 183, 184, 185, 186, 187, 188,
189, 190, 191, 192, 193, 194, 195, 196,
197, 198, 199, 200, 201, 202, 203, 204,
205, 206, 207, 209, 210, 211, 213, 215,
216, 217, 218, 219, 220, 223, 224, 227,
228, 229, 230, 231, 233, 234, 235, 236,
237, 238, 240, 241, 242, 243, 245, 246,
247, 248, 257, 258, 259, 260, 261, 263,
264, 266, 267, 268, 269, 270, 272, 273,
352, 356, 412, 413
cultural 11, 19, 164, 165, 166, 167, 172,
188, 190, 193, 194, 197, 199, 200, 239,
240, 244, 267, 276, 305
SUMÁRIO
420
169, 170, 171, 172, 173, 174, 175, 176,
177, 178, 179, 180, 181, 182, 183, 184,
185, 186, 187, 188, 189, 190, 191, 192,
F
193, 194, 195, 196, 197, 198, 199, 200,
falantes 10, 30, 36, 37, 38, 39, 41, 42, 44,
201, 202, 203, 205, 207, 210, 211, 212,
88, 96, 110, 167, 168, 173, 245, 361
213, 215, 216, 217, 218, 219, 220, 222,
forma-sentido 11, 164, 401
223, 225, 227, 230, 234, 235, 236, 237,
238, 239, 240, 241, 242, 243, 244, 245,
H
246, 248, 250, 251, 252, 253, 258, 259,
hipóteses 12, 87, 224, 231, 252, 298,
263, 264, 266, 267, 268, 269, 270, 271,
308, 310
272, 273, 277, 278, 286, 287, 288, 289,
290, 291, 292, 293, 294, 295, 296, 303,
I
305, 306, 308, 311, 314, 315, 316, 317,
instauração 11, 82, 84, 87, 137, 149, 154,
318, 319, 320, 321, 322, 323, 324, 330,
163, 164, 166, 170, 194, 197, 199, 240,
333, 335, 337, 339, 343, 344, 345, 346,
270, 295, 355
347, 348, 349, 350, 351, 353, 354, 355,
instrumentos 12, 17, 253, 254, 342, 343,
356, 357, 358, 359, 360, 361, 364, 365,
344, 347, 348, 349, 351, 353, 359
366, 367, 368, 369, 370, 371, 372, 373,
interdependência 11, 81, 150, 164, 174,
374, 375, 376, 377, 378, 379, 380, 381,
180, 279
382, 383, 384, 385, 386, 387, 388, 389,
isolamento 12, 205, 325, 327, 329, 339
390, 392, 395, 396, 397, 398, 399, 400,
isolamento social 12, 205, 325, 327
401, 402, 403, 405, 409, 410, 412, 413,
L
414, 415, 416
linguagem 10, 11, 14, 15, 16, 18, 19, 20,
leitura 12, 18, 20, 21, 26, 49, 50, 51, 52,
21, 22, 23, 24, 27, 28, 32, 33, 35, 36, 39,
56, 60, 61, 62, 71, 77, 84, 86, 87, 90, 96,
99, 122, 130, 134, 137, 138, 142, 143, 144, 40, 43, 44, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54,
55, 56, 61, 62, 63, 65, 66, 68, 69, 72, 73,
146, 147, 148, 149, 150, 151, 152, 155,
74, 76, 77, 80, 87, 88, 89, 90, 93, 94, 95,
156, 157, 158, 160, 161, 189, 193, 214,
97, 98, 99, 103, 104, 105, 107, 108, 109,
217, 242, 243, 248, 255, 256, 257, 259,
115, 120, 122, 123, 124, 127, 128, 129,
316, 329, 334, 336, 342, 343, 344, 357,
358, 359, 360, 361, 362, 393, 414, 415, 416 130, 131, 132, 133, 135, 137, 138, 139,
140, 143, 145, 147, 148, 149, 150, 152,
língua 11, 12, 15, 16, 17, 19, 20, 21, 22,
153, 154, 155, 156, 157, 158, 161, 163,
25, 27, 32, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43,
164, 165, 166, 167, 169, 170, 171, 172,
44, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56,
173, 174, 175, 176, 177, 178, 179, 180,
57, 58, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 68,
182, 183, 184, 185, 186, 187, 188, 189,
69, 70, 71, 73, 78, 79, 80, 81, 82, 87, 88,
89, 90, 94, 96, 97, 100, 103, 105, 107, 108, 190, 193, 194, 195, 197, 198, 199, 200,
201, 202, 203, 205, 206, 207, 208, 209,
109, 110, 113, 114, 116, 117, 118, 122,
210, 211, 213, 214, 215, 216, 218, 219,
128, 129, 131, 132, 133, 138, 139, 143,
220, 222, 223, 224, 225, 226, 227, 228,
144, 146, 147, 151, 153, 154, 155, 158,
229, 230, 232, 234, 237, 238, 239, 240,
161, 162, 163, 164, 165, 166, 167, 168,
328, 341, 359, 361, 400, 403, 414, 416,
417, 418
SUMÁRIO
421
241, 246, 248, 250, 258, 266, 267, 268,
269, 271, 272, 273, 276, 277, 287, 288,
289, 291, 292, 293, 295, 305, 310, 313,
315, 316, 318, 319, 321, 322, 324, 327,
328, 329, 331, 332, 333, 334, 335, 336,
337, 338, 339, 341, 375, 380, 381, 386,
388, 390, 395, 396, 399, 400, 402, 403,
404, 406, 409, 412, 413, 414, 415, 416,
417, 418
língua-língua 12, 364, 365, 366, 367, 384
língua-sociedade 12, 364, 365, 376,
384, 385
linguística 10, 14, 15, 17, 19, 20, 24, 25, 26,
27, 30, 32, 34, 35, 36, 37, 43, 44, 45, 48,
50, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 58, 59, 62, 63,
64, 70, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 78, 79, 83,
86, 87, 88, 94, 95, 100, 105, 106, 109, 123,
128, 129, 135, 136, 138, 139, 143, 145,
154, 156, 162, 166, 171, 173, 174, 180,
181, 182, 183, 184, 185, 189, 190, 193,
198, 201, 202, 219, 222, 224, 225, 226,
227, 229, 233, 234, 237, 239, 240, 243,
249, 250, 252, 260, 268, 271, 272, 273,
276, 277, 287, 288, 291, 292, 293, 295,
296, 298, 302, 304, 305, 306, 307, 312,
316, 318, 319, 324, 326, 327, 331, 332,
336, 338, 340, 359, 361, 362, 365, 367,
380, 381, 382, 384, 385, 391, 392, 394,
395, 396, 397, 409, 410, 411, 412, 414,
416, 418
310, 311, 313, 317, 334, 346, 374, 384,
394, 395, 396, 397, 398, 399, 401, 402,
403, 404, 409
O
observações 12, 84, 142, 157, 286, 353,
364, 365
olhar 11, 71, 146, 152, 160, 161, 163, 189,
190, 192, 194, 196, 207, 208, 219, 221,
272, 360
P
pesquisa 11, 18, 23, 83, 100, 142, 149, 152,
157, 158, 159, 174, 188, 205, 207, 221,
222, 224, 225, 226, 229, 230, 231, 232,
238, 242, 243, 245, 246, 247, 248, 249,
255, 257, 268, 272, 285, 286, 297, 306,
311, 326, 340, 412, 413, 414, 415, 416, 417
pesquisas 11, 18, 19, 20, 22, 23, 31, 76,
122, 139, 141, 144, 146, 147, 148, 149,
154, 155, 156, 158, 159, 160, 161, 227,
237, 326, 413, 415, 416
pesquisas prospectivas 11, 141, 147, 154,
158, 159, 160, 161
R
realização 12, 39, 40, 41, 68, 84, 106, 131,
136, 138, 181, 199, 205, 211, 212, 233,
234, 242, 244, 247, 253, 258, 259, 263,
269, 288, 291, 292, 294, 329, 342, 343,
347, 348, 353, 375
reciprocidade 11, 275, 277, 278, 279, 280,
N
281, 282, 284, 285, 286, 287, 288, 289,
narrativas 11, 106, 204, 206, 207, 208, 214,
291, 292, 293, 294, 295, 296, 297, 299,
215, 216, 233
300, 302, 304, 305, 306, 307
noção 10, 11, 17, 44, 60, 61, 62, 75, 77, 78,
referência 10, 23, 49, 50, 63, 65, 66, 92, 93,
79, 80, 82, 105, 110, 111, 119, 120, 141,
94, 96, 97, 98, 99, 102, 105, 108, 110, 113,
142, 145, 147, 148, 149, 150, 151, 154,
114, 115, 117, 118, 119, 120, 124, 128,
155, 157, 158, 160, 161, 199, 206, 213,
133, 134, 135, 136, 137, 147, 154, 161,
214, 231, 234, 238, 239, 240, 259, 266,
169, 176, 179, 181, 183, 186, 205, 212,
267, 275, 277, 278, 279, 280, 282, 286,
214, 241, 259, 290, 291, 294, 303, 321,
287, 289, 298, 300, 301, 302, 304, 305,
SUMÁRIO
422
326, 327, 330, 332, 348, 350, 353, 356,
369, 377, 379, 386, 401, 412
reflexão 10, 12, 19, 21, 33, 34, 75, 76, 78,
90, 99, 100, 113, 119, 122, 123, 142, 145,
148, 152, 157, 158, 161, 165, 166, 170,
171, 175, 176, 177, 178, 184, 186, 188,
190, 193, 194, 199, 206, 208, 209, 220,
225, 249, 268, 276, 277, 284, 286, 289,
290, 294, 297, 305, 309, 310, 314, 319,
320, 326, 328, 329, 333, 334, 335, 336,
338, 339, 343, 344, 345, 346, 348, 350,
351, 358, 359, 364, 365, 366, 367, 368,
374, 376, 381, 382, 383, 384, 385, 386,
388, 389, 390, 394, 396, 397, 399
relação 10, 11, 12, 16, 31, 32, 33, 34, 39,
40, 42, 44, 45, 57, 58, 63, 64, 66, 67, 69,
70, 77, 78, 80, 81, 82, 85, 86, 87, 92, 94,
95, 96, 97, 99, 101, 102, 104, 106, 108,
114, 115, 116, 117, 118, 119, 123, 126,
129, 133, 134, 136, 137, 146, 147, 148,
151, 152, 155, 156, 157, 161, 164, 165,
166, 168, 169, 172, 173, 175, 176, 178,
179, 181, 182, 184, 186, 189, 190, 193,
194, 196, 197, 199, 200, 210, 214, 215,
216, 217, 218, 220, 221, 223, 224, 226,
232, 233, 234, 235, 239, 240, 241, 243,
244, 245, 246, 247, 248, 251, 253, 254,
258, 259, 262, 263, 265, 266, 267, 268,
269, 270, 272, 277, 281, 282, 286, 289,
290, 291, 292, 293, 294, 296, 300, 302,
303, 304, 306, 308, 310, 311, 312, 314,
315, 316, 317, 318, 319, 320, 321, 322,
327, 328, 329, 330, 337, 338, 340, 345,
346, 348, 349, 350, 355, 356, 357, 364,
365, 366, 367, 368, 369, 370, 371, 372,
373, 374, 375, 376, 379, 380, 381, 382,
383, 384, 385, 387, 388, 389, 390, 398,
400, 401, 403, 404, 405, 406, 408, 409,
413, 414, 415
ruidozinhos 11, 204, 205, 206, 207, 219
SUMÁRIO
S
semiologia 12, 17, 18, 21, 22, 27, 314, 324,
363, 365, 366, 369, 372, 384, 388, 389,
390, 392, 396, 397, 398
significância 12, 17, 21, 22, 56, 57, 58, 60,
62, 158, 194, 233, 370, 371, 384, 388, 389,
393, 394, 395, 398, 399, 400, 401, 402,
403, 404, 405, 406, 408, 409, 410, 411
signos 10, 50, 54, 55, 56, 62, 63, 64, 65,
66, 92, 99, 103, 105, 108, 109, 110, 111,
112, 114, 116, 117, 119, 129, 131, 154,
180, 184, 212, 239, 240, 263, 266, 287,
306, 315, 371, 372, 375, 383, 396, 397,
398, 399, 403
social 12, 16, 35, 36, 38, 40, 41, 122, 135,
169, 205, 207, 215, 216, 232, 246, 249,
258, 278, 279, 281, 282, 283, 284, 285,
293, 295, 296, 297, 301, 302, 305, 306,
309, 312, 319, 320, 324, 325, 326, 327,
329, 332, 333, 334, 335, 336, 338, 339,
344, 372, 378, 379, 382
sociedade 11, 12, 16, 17, 21, 22, 25, 48,
122, 125, 138, 139, 146, 162, 167, 169,
170, 171, 173, 200, 205, 215, 219, 240,
258, 267, 271, 274, 277, 278, 279, 281,
282, 283, 284, 286, 289, 290, 295, 296,
297, 298, 299, 304, 305, 306, 308, 309,
310, 311, 312, 313, 314, 315, 316, 317,
318, 319, 320, 322, 323, 324, 364, 365,
366, 376, 377, 378, 379, 380, 381, 382,
383, 384, 385, 386, 387, 388, 389, 390,
395, 418
T
teoria 10, 11, 14, 20, 21, 22, 23, 26, 32, 33,
43, 44, 45, 57, 70, 71, 76, 77, 81, 89, 95,
96, 100, 120, 122, 139, 143, 145, 148, 149,
150, 151, 153, 155, 159, 161, 162, 163,
183, 197, 201, 221, 224, 225, 226, 232,
237, 241, 250, 251, 252, 254, 268, 269,
270, 272, 282, 305, 307, 312, 313, 314,
423
317, 322, 323, 324, 361, 390, 391, 399,
414, 415
teorização 10, 21, 46, 55, 57, 60, 62, 68,
71, 146, 149, 150, 153, 165, 166, 200, 224,
225, 232, 240, 241, 243, 249, 250, 256,
257, 260, 268, 277, 290, 293, 305, 323,
394, 397
tradução 12, 19, 31, 32, 34, 35, 38, 40, 89,
94, 96, 106, 179, 186, 201, 222, 278, 279,
282, 288, 303, 333, 365, 371, 380, 383,
393, 395, 405, 412, 418
transformações 10, 46, 52, 205, 249
tu 10, 33, 36, 37, 58, 68, 75, 76, 77, 78, 79,
80, 81, 82, 83, 84, 85, 86, 87, 88, 100, 101,
102, 103, 104, 105, 107, 108, 110, 111,
113, 116, 118, 133, 134, 137, 153, 154,
SUMÁRIO
155, 191, 193, 196, 207, 209, 218, 240,
253, 258, 264, 288, 289, 290, 291, 296,
329, 347, 349, 353, 354, 355, 356, 377
U
universos 10, 46, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 60,
62, 69, 401
V
valor 11, 79, 98, 99, 141, 146, 147, 159,
160, 161, 212, 213, 234, 289, 299, 301,
304, 322, 390, 395, 398, 402, 408, 409
vocais 11, 168, 170, 172, 175, 179, 181,
185, 186, 188, 193, 194, 195, 199, 204,
205, 206, 207, 208, 211, 213, 215, 219
424