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Marcel detienne e os caminhos do comparativismo

2009, Revista De Historia Comparada

Resumo: Nosso artigo tem como objetivo refletir sobre o comparativismo postulado por Marcel Detienne. A partir de uma análise prévia de seu método experimental, buscaremos compreender a influência que seus estudos pregressos sobre mito e mitologia gregas tiveram sobre a elaboração de sua metodologia. Palavras-chave: Marcel Detienne; História Comparada; Mitologia Grega.

MARCEL DETIENNE E OS CAMINHOS DO COMPARATIVISMO Prof. Ms. Alexandre Santos de Moraes Programa de Pós-graduação em História Comparada (PPGHC) Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – Rio de Janeiro, Brasil. Resumo: Nosso artigo tem como objetivo refletir sobre o comparativismo postulado por Marcel Detienne. A partir de uma análise prévia de seu método experimental, buscaremos compreender a influência que seus estudos pregressos sobre mito e mitologia gregas tiveram sobre a elaboração de sua metodologia. Palavras-chave: Marcel Detienne; História Comparada; Mitologia Grega. Abstract: Our article aims to reflect on the comparative postulate by the Belgian hellenist Marcel Detienne. From a preliminary review of his experimental method, we seek to understand the influence that their studies on Greek myth and mythology achieved on the development of its methodology. Key-words: Marcel Detienne; Comparative History; Greek Mithology. Os caminhos da comparação vêm sendo gradualmente alargados pelos historiadores. O dogmatismo que estipulava a irrepetibilidade dos eventos históricos começa a ser dissociado da História Comparada, que não se relaciona necessariamente ao fantasma do anacronismo. A proposta de Marcel Detienne tem muito a contribuir com este movimento. Isolando os juízos de valor que frequentemente acompanham suas considerações, julgadas demasiadamente iconoclastas, é possível extrair uma rica e consistente proposta metodológica que permite aos historiadores um exercício de diversificação dos olhares sobre os objetos de pesquisa. Apesar disso, os estudos do helenista belga tem dificuldade de penetrar junto à historiografia brasileira que não se dedica ao estudo da Antiguidade Clássica. A proposta deste artigo, ao apresentar o comparativismo de Detienne a partir de seus pesquisas sobre Grécia Antiga, é mostrar o grau de imbricação que os Estudos Clássicos possuem diante de seus pressupostos metodológicos e informar os especialistas que não são versados nestes tema os fundamentos mais gerais de seu método. Marcel Detienne, nascido em 1935, é doutor em Ciências Religiosas pela École des Hautes Études (1960) e em Filosofia pela Universidade de Liège (1965). Foi diretor e lecinou na École Pratique des Hautes Études até 1998 e fundou, junto a Jean-Pierre Vernant e Pierre VidalNaquel, o Centre de Recherche Comparées sur les Sociétés Anciennes, em Paris. Atualmente, é professor emérito do Departamento de Estudos Clássicos da Johns Hopkins University, além de co-dirigir o Centro Louis-Marins de estudos comparativos e ser diretor de estudos da École des Hautes Études en Sciences Sociales. Sempre privilegiando uma abordagem antropológica, possui uma vasta bibliografia sobre a Grécia Arcaica e Clássica, enfatizando as questões do mito e mitologia gregas1. Nos últimos anos, tem se dedicado a defender de forma austera o comparativismo histórico, sugerindo a ruptura do paradigma “só se pode comparar o que é comparável”. Procura, com isso, assumir uma posição de vanguarda e angariar a simpatia dos historiadores que julgam ser possível praticar comparações, principalmente diacrônicas, de forma criteriosa e criativa. O comparativismo de Detienne vem à lume com a publicação de Comparer l’incomparable (2000). O helenista faz questão de começar o texto apresentando os principais postulados sobre os quais se assentam sua proposta. Critica veementemente os historiadores habituados a trabalhar segundo a lógica da “Nação”, elegendo Marc Bloch como alvo principal. Além disso, propõe a urgente aproximação entre historiadores e antropólogos, sugerindo que os últimos, desde sempre, assumiram o comparativismo como diretriz indissociável de sua área do conhecimento: Quando um estudioso opta por fazer anatomia comparada, ele não começa fazendo um julgamento de valor sobre os diversos órgãos que pretende considerar em todas as espécies animais. Um linguista que trabalha em uma gramática comparada, seja a das línguas do Cáucaso ou do mundo indo-europeu, para estabelecer traços específicos recorre tanto à morfologia como à fonética, e também ao vocabulário. Ele seria ligeiramente ridículo caso chegasse a dizer que “só se pode comparar o que é comparável”. Um historiador usa isso sem a menor preocupação. Além do mais, desde a década de 20, do séc. XX, os historiadores mais reputados se regozijam de retomar a fórmula, embora ela proíba a comparação além do círculo estreito do imediatamente “comparável”, um horizonte restrito à opinião dominante de um meio e de um saber garantido de antemão diante do que é incomparável. Nenhum antropólogo recorre a tal provérbio. A fórmula pareceria incongruente até na boca do mais encarniçado defensor de seu “terreno” ou de sua concessão (Detienne: 2004, 9-10). Posteriormente, o autor valoriza as ambições de sua obra ao declarar: Também penso, sem ilusões, que é tempo de pleitear, de escrever um manifesto, de mostrar concretamente como o exercício comparativista exige trabalhar junto; ele convida a amealhar as categorias do senso comum, a construir comparáveis que jamais 1 Podemos citar como principais obras Les jardins d’Adonis. La mythologie des aromates en Grèce (Gallimard, 1972); Dionysos mis à mort (Gallimard, 1977); La cuisine du sacrifice en pays grec (Gallimard, 1979). Em lingua portuguesa, merecem destaque: Os Mestres da Verdade na Grécia Arcaica (Jorge Zahar, 1988); A escrita de Orfeu (Jorge Zahar, 1991); A invenção da Mitologia (José Olympio, 1998); Comparar o Incomparável (Idéias & Letras, 2004) e, mais recentemente, Os Gregos e Nós: uma antropologia comparada da Grécia Antiga (Loyola, 2008); Métis: as astúcias da inteligência (Odysseus, 2008). são imediatamente dados e que não visam de modo algum a estabelecer tipologias como também a levantar morfologias. (Detienne: 2000, 11). O desconstrucionismo de Marcel Detienne é canalizado para a tradição historiográfica que se situa no nascedouro da própria historiografia. O século XIX teria marcado, junto aos esforços de Ranke, o surgimento da preocupação em reconhecer as origens, os mitos e as peculiaridades das “Nações”, obviamente, européias. A História teria rejeitado qualquer tipo de diálogo que produzisse saberes relacionais, já que estava excessivamente afogada pelas águas das fronteiras nacionais. A Nação se tornou a âncora que impediu o navegar pelos mares que levariam ao desconhecido, chame-se ele Ásia, África, Oceania ou América. O mundo torna-se necessariamente bárbaro diante da civilidade assumida como paradigma pelos historiadores franceses, alemães e ingleses. A comparação seria um apanágio ao descentramento das nacionalidades. Romperia-se a irredutibilidade etnocêntrica daqueles que estariam habituados a pensar sob a lógica das identidades e das peculiaridades típicas de cada região, recrudescida pelos séculos de insistência de uma historiografia ainda impregnada pelo pensamento de Comte e de seus seguidores. Desta forma, a crítica a Marc Bloch se baseia em uma frustração das expectativas de construir, com base no comparativismo, um repensar urgente desta prática. O comparativismo de Bloch sugere que “aplicar o método comparativo no quadro das ciências humanas consiste (...) em buscar, para explicá-las, as semelhanças e diferenças que apresentam duas séries de natureza análogas (Bloch, 1930: 31). Esse postulado foi sistematicamente aplicado quando o historiador francês publicou, em 1924, o livro Les rois thaumaturges. Étude sur le caractère surnaturel attribué à la puissance royale, particulièrement en France et en Angleterre. O autor investiga o caráter taumatúrgico dos reis, ou seja, o caráter sagrado a eles atribuídos que se concretizava na possibilidade de curar enfermidades2. Investigando particularmente os ritos de toque que o reino da França instituíram por volta do ano 1000 e, o da Inglaterra, um século mais tarde, Bloch faz questão de permanecer concentrado na defesa de um comparativismo baseado em analogias que, somente a partir das particulares e configurações específicas, fazem emergir as diferenças e complementaridades. Foi um trabalho seguro. O grau de imbricação entre estes ritos na França e Inglaterra era tão grande que o 2 Mais especificamente a chamada “adenite tuberculosa”, uma inflamação nos gânglios linfáticos provocada pelo bacilo da tuberculose. No período estudado pelo historiador francês, utilizavam os termos crouvelles ou, mais frequentemente, scrofule, para se referir à enfermidade. (Bloch: 1993, 51). medievalista chega a se questionar: “o eterno problema que se afigura aos historiadores quando estes encontram instituições semelhantes em dois países vizinhos apresenta-se, portanto, também a nós: coincidência ou interação?” (Bloch: 1993, 85). Prefaciando a obra, o também mediavalista Jacques Le Goff destaca os limites de prudência preconizados pelo comparativismo blochiano: “mas é preciso permanecermos fiéis ao espírito de Marc Bloch, para isso comparando tãosomente o que é comparável” (Le Goff: 1993, 33). O autor prossegue: A bem dizer, o comparatismo de Marc Bloch é essencialmente um pouco tímido, parece-me; isso porque ele não dispunha de teorias e de métodos que lhe permitissem ir mais longe sem abandonar as regras de prudência e as exigências de historicidade necessárias à reflexão histórica (Le Goff: 1993, 33). Esta prudência blochiana influenciou definitivamente as perspectivas sobre a História Comparada, reservando o uso do método a situações bastante pontuais, principalmente estudos de caso. Influenciados por essas tendências, Ciro Flamarion Cardoso e Héctor Pérez Brignoli assinalaram: “O primeiro perigo que ameaça o pesquisador que aplica o método comparativo é o de cometer anacronismos, ao confundir analogias superficiais com similitudes profundas, sobretudo em se tratando de sociedades estruturalmente bem diversas, ou muito afastadas no tempo” (Cardoso & Pérez Brignoli: 1983, 413). Posteriormente, surge novamente a assertiva fundada como precaução inicial e arbitrária para todos aqueles que se dedicam ao comparativismo em História: “Só é proveitoso comparar o realmente comparável Cardoso & Pérez Brignoli: 1983, 414). É esta tradição que o helenista belga ambiciona superar. A participação no Centro de pesquisas comparadas sobre as sociedades antigas parece ter influenciado decisivamente as perspectivas de Marcel Detienne sobre o comparativismo construtivo que passou a defender. Segundo o autor, uma primeira geração de etnólogos vindos da Filosofia descobriam, ao mesmo que historiadores aliviados de seu corporativismo, que instituições como a guerra, a caça e as relações com a terra faziam parte de suas questões comuns e que lhes era vantajoso pensar juntos sobre um largo horizonte (Detienne: 2004, 41). Estudiosos como Antoine Meillet, Émile Benveniste, Marcel Mauss, Marcel Granet e, com destaque, Georges Dumézil, foram eleitos os principais responsáveis por perceber as vantagens do exercício investigativo conjunto. Afora as especialidades e pesquisas particulares, pareceu possível colocar em perspectiva um determinado conjunto de problemas e colher os méritos que diferentes temporalidades e perspetivas poderiam fazer aflorar diante de pessoas que tinham preocupações similares. Acreditamos que, segundo esta premissa, os problemas aos quais historiadores se dedicam tendem a ser anteriores às sociedades históricas às quais eles são necessariamente referidos. Por exemplo: um historiador que estuda a educação escolar das famílias aristocratas do Rio de Janeiro no século XIX deve ter em mente que a educação em si é anterior à temporalidade e locais específicos de sua pesquisa. Mais que isso: um diálogo travado com pesquisadores que se dedicam ao tema, independentemente do regime de historicidade aos quais eles estão submetidos, pode contribuir de modo bastante singular com os resultados. Com a comparação, estes estudiosos podem fazer emergir diferenças e similitudes a respeito dos diferentes modelos educacionais, perspectivas pedagógicas e práticas docentes. Neste sentido, Detienne defende: “o essencial no trabalhar junto é se libertar do mais próximo” (Detienne: 2004, 46). Uma pesquisa neste sentido foi publicada no ano de 1990 com o título Traçados de fundação3. Agregando helenistas, africanistas, japonizantes e americanistas, entre historiadores ou etnólogos, o estudo se concentrava na preocupação de investigar as maneiras pelas quais se fundava um território, através da territorialização com rituais e conjuntos de representações. Deste exemplo, podemos extrair a sua noção de comparáveis, definidos como “placas de encadeamento decididas por uma escolha, uma escolha inicial” (Detienne: 2004, 58). Em outras palavras: frente ao campo de experimentação que se descortina diante dos pesquisadores, elege-se uma configuração específica que, por sua vez, pode ser remetida a diferentes temporalidades e sociedades. Para esta pesquisa sobre gestos de fundação, os comparáveis respondiam pela configuração “fundar, fundação, fundador”. Trabalhando juntos, mas sem abdicar de suas formações específicas, a equipe fez vir à lume uma rede polissêmica de significados. Detienne cita até mesmo o que ele chamou de “choque do incomparável”: Felizmente, houve também a violência heurística do incomparável. Um dia, dois japonizantes, há muito silenciosos enquanto avançávamos às apalpadelas, intervieram para nos confiar – estavam desolados com isso – que no Japão, segundo os textos mais antigos, não havia fundação nem fundador. (...) Graças à provocação do incomparável, uma categoria familiar como “fundar” ia abalar-se, rachar-se e desagregar-se. (Detienne: 2004, 50). 3 Repentindo a nota do autor: “Tracés de fondation, sob a direção de M. Detienne, Louvain et Paris, Bibliothèque de l’École pratiques des hautes études, Sciences religieuses, vol. CXIII. Peeters, 1990.” (Detienne: 2004, 48) Mesmo determinadas ausências tornam-se, quando se dribla a cronologia, presenças extremamentes edificantes. Imaginamos que o questionamento inicial tenha sido: quais as particularidades deste Japão que o diferencia das demais sociedades, indo-européias ou não, a ponto de não podermos submetê-lo a esta comparação? Particularidades, ângulos insólitos, questões esquecidas e problemas inovadores surgem diante deste movimento holístico que é, antes de tudo, experimental. Obviamente, caso tomemos como referência o cenário historiográfico brasileiro, é nítida a dificuldade de empreender trabalhos desta natureza, reunindo em laboratórios ou centros de pesquisa estudiosos que tendem a se agrupar em função de temporalidades, problemas e formações teóricas análogas. No entanto, esta realidade não invalida o uso do método comparativo, que pode ser adequado a pesquisas individuais. Elegendo um conjunto de comparáveis, o historiador pode muito bem se dedicar a comparações sincrônicas ou diacrônicas, observando segundo seu enfoque a maneira com que diferentes eventos se comportam diante do conjunto de problemas. O melhor exemplo quem dá é o próprio Detienne, quando procurou investigar Apolo mapeando o posicionamento que este deus, aparentemente tão individualizado, ocupava no panteão olímpico4. Considerando-o uma divindade da comunicação, uma potência que traça seus próprios caminhos em direção ao lugar que estabelece seus altares, o autor empreendeu uma microanálise diante do que chama de “tecido politeico”, mostrando que os deuses precisam ser observados pelos conjuntos de epítetos e gestos concretos que compartilham (Detienne: 2001, 12). Este trabalho, nitidamente inspirado pelas perspectivas de Georges Dumézil, esboça as preocupações que vão redundar na sistematização de sua proposta de comparativismo histórico. No entanto, é em outra obra que os antecedentes de sua metodologia começam a aflorar. Publicada originalmente em 1981, L’invention de la mythologie apresenta uma questão que vai voltar a ser citada em obras posteriores, sugerindo a influência que teve sobre seu pensamento. A proposta do trabalho é refletir sobre as indefinições, contrastes e excessos do termo mitologia, analisando os usos e as estratégias hermenêuticas utilizadas, desde os filólogos europeus dos séculos XVIII e XIX aos antropólogos estruturalistas, para compreender a problemática do mito. 4 Consultar: DETIENNE, Marcel. Apolo con el cuchillo en la mano: una aproximación experimental al politeísmo griego. Madrid: Ediciones Akal, 2001. Logo no início de seu estudo, Marcel Detienne procura mostrar como a prática comparativa remonta às primeiras tentativas de estudo sistemático da mitologia helênica. As cátedras de Mitologia Comparada criadas nas universidades de Oxford, Berlim, Londres e Paris, que tinham em filólogos como Friedrich Max Müller, Ludwig Preller e A. H. Krappe na Alemanha e Paul Decharme na França seus principais representantes, buscavam, através do exame comparatista, desvelar o absurdo e o grotesco dos mitos. A explicação do caráter animalesco, as histórias selvagens, aventuras infames e ridículas, incestos, adultérios, assassinatos, roubos, atos de crueldade e canibalismo passou a ser o cerne daqueles que buscavam construir um discurso científico. Tratava-se, portanto, de uma ciência do escandaloso (Detienne: 1998, 17-18). A preocupação em desbravar os incríveis mistérios que a religião dos gregos carregava e que enchia suas histórias com um quê de repulsivo teve início com o ensaio Mæurs des sauvages amériquains comparées aux mæuers des premiers temps, de Joseph-François Lafitau, e L’origine des fables, de Fontenelle, ambas publicadas em 1724 (Detienne: 1998, 19). O primeiro, jesuíta, viajara anos antes para se reunir às missões na Nova França e ficou desconcertado com a incrível semelhança que mantinham os mitos e rituais dos gentios com os dos gregos antigos. Duas civilizações distantes da moralidade cristã prontamente foram justapostas em um exercício comparativo. Buscava-se, colocando em perspectiva tais sociedades, descortinar as lacunas de informação através de uma polidedálea investigação sobre os códigos e símbolos que partilhavam América e Grécia, tão distantes temporalmente, mas tão próximas religiosamente. Era claro o projeto civilizador de uma Europa ainda em vias de reconhecimento do “Novo Mundo”. Uma Europa que se colocava como a vanguarda de tudo que havia de mais moderno, em termos de ciência e de vida em sociedade. Prontamente os gregos foram convocados pelo tribunal da Razão, nos tempos da embrionária antropologia: uma razão controversa, pois os mesmos povos que fundaram uma idéia de Ocidente com inovações como teatro e filosofia, são os povos que seriam comparados aos gentios da América como referencial de pensamento religioso primitivo e ingênuo. Neste período, Detienne distingue duas escolas exegéticas. A primeira, liderada por Friedrich Max Müller, era amplamente baseada nas comparações lingüísticas e concebia que foram por “desvirtuamentos” da língua que os mitos se tornaram este espaço concebido como uma fabulação ingênua da infância da humanidade5; A segunda, conduzida por Edward Burnett Tylor, também mobilizava as comparações, mas afastava-se do exame lingüístico para se ater a uma perspectiva antropológica. Contudo, através do comparativismo, o erudito conduzia as pesquisas em nível de civilizações, partindo das mais primitivas às mais evoluídas, e sem conferir à linguagem outro privilégio que não o de ser um produto primordial da humanidade (Detienne: 1998, 33). Acreditamos que este movimento tenha sido o principal contraponto para a reflexão de seu comparativismo construtivo. Já em Comparar o Incomparável, o helenista belga volta a se referir a esta questão quando começa a pensar sobre a comparação no campo dos politeísmos (Detienne: 2004, 93). Ainda mais recentemente, o problema volta a merecer sua atenção em Os Gregos e Nós, quando torna a elencar aquilo que considera os excessos da nascente Antropologia do século XIX e, particularmente, das “ciências históricas” dos anos 1870 (Detienne: 2008, 13). É inconcebível para as Ciências Sociais da atualidade comparar os sistemas religiosos dos nativos americanos aos gregos antigos tal como Tylor, Decharme ou Müller fizeram. As mudanças hermenêuticas e epistemológicas que dois séculos provocaram na Lingüística, História, Antropologia e demais áreas do conhecimento sobre as quais a mitologia grega tem alçada não encerrou a questão que, sem dúvida, é riquíssima em consequências. Então, como compará-los? É provável que a esta pergunta Detienne tenha respondido com seu comparativismo. Não é sem motivo que, afora o primeiro capítulo de Comparar o Incomparável, os quatros últimos se dediquem a apresentar sua proposta metodológica a partir de estudos de caso: o helenista ampara sua perspectiva em estudos pretéritos que julga bem sucedidos, concretizando e orientando o leitor a respeito dos usos que seu comparativismo pretende instituir. Um trabalho desta envergadura, que se propõe inovador, não poderia passar imune às críticas. Lacunas e questionamentos, de fato, não faltam. Como atentam Étienne Anheim e Benoît Grevin, é excessivamente peremptória a maneira pela qual o helenista belga critica o afastamento entre historiadores e antropólogos, o que deixa pensar que o comparativismo é para ele um problema de passagem de uma disciplina para outra (Anheim & Grevin: 2002, 124). Apesar de reconhecermos que o comparativismo ainda é muito incipiente entre os historiadores brasileiros, é também notável que em tempos de interdisciplinaridade o diálogo com a Antropologia ampliou- 5 A esse respeito, Paul Decharme declara: “A mitologia, esse flagelo da Antiguidade, é, na verdade, uma doença da linguagem” (DECHARME: 1929, 7). se profundamente. A tradição de uma História arbitrariamente política e econômica diluiu-se em uma multiplicidade de abordagens que foram decisivamente influenciadas pelas demais Ciências Humanas e Sociais. É provável que Detienne tenha generalizado a partir de uma realidade particular, assumindo um tom subversivo, que soa a inocente e que é facilmente contestável. Outro problema evidente da obra de Marcel Detienne, enfatizado pelos autores supracitados, é o de focalizar excessivamente uma história devidamente adequada à sua formação teórica. Apresentando estudos que versam sobre as formas de discursividade, mitos e representações, analisados e comparados de modo atemporal, o helenista não se preocupa em louvar os méritos de pesquisas diferentes e que poderia não se adequar tão bem ao seu comparativismo Anheim & Grevin: 2002, 127). Outra ausência fortemente sentida é a escassez de reflexão sobre o trabalho do antropólogo. Apesar de enfatizar que aproximação com a Antropologia seria fundamental para a incrementação do exercício comparativista, o autor deixa de explorar as razões pelas quais a História não possui a mesma vocação e, outrossim, quais as peculiaridades das pesquisas antropológicas que a tornam um espaço tão profícuo para esse exercício. De todo modo, acreditamos que suas contribuições são bastante valiosas. Sua narrativa tensa, cheia de picardia e provocações, não deixa de ser um convite para revisarmos nossas práticas historiográficas e o excesso de individualismo que costuma acompanhá-las. Para os Estudos Clássicos, o comparativismo de Detienne pode ajudar na tarefa essencial de mostrar a pertinência que as sociedades antigas possuem para as reflexões acerca do presente de nossa vida social, diluindo as fronteiras rígidas da cronologia que comumente afastam esse grupo de historiadores das demais. Aos historiadores que pesquisam épocas mais recentes também fica o convite ao retorno, que nada tem que ver com uma busca das origens. Outros resultados positivos também são desconhecidos, ao passo que necessitam da experiência para se apresentar. Trabalhar em conjunto, com antropólogos ou não, pode ser um movimento repleto de consequências positivas ao ofício do historiador. Referências Bibliográficas ANHEIM, E.; GREVIN, B. “Choc des civilisations” ou choc des disciplines? Les sciences sociales et le comparatisme. In: Bulletin de la Société d’Histoire Moderne et Contemporaine. RHMC, 122-146, 2002. BLOCH, M. Os Reis Taumaturgos: o caráter sobrenatural do poder régio, França e Inglaterra. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. __________. Comparaison. In: Reveu de Synthèse Historique. LXIX, 1930, boletim anexo, p. 31-39. CARDOSO, C. F.; PÉREZ BRIGNOLI, H. O método comparativo na História. In: _______. Os métodos da História. Rio de Janeiro: Graal, 1983, p. 409-419. DECHARME, P. Mythologie de la Grèce antique. Paris: Garnier, 1929. DETIENNE, M.. A Invenção da Mitologia. Rio de Janeiro: José Olympio: 1998. ________________. Apolo con el cuchillo en la mano: una aproximación experimental al politeísmo griego. Madrid: Ediciones Akal, 2001. ________________. Comparar o Incomparável. Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2004. ________________. Os Gregos e Nós: uma antropologia comparada da Grécia Antiga. Rio de Janeiro: Edições Loyola, 2008. LE GOFF, J.. Prefácio. In: BLOCH, Marc. Os Reis Taumaturgos: o caráter sobrenatural do poder régio, França e Inglaterra. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 9-37. Endereços eletrônicos: [email protected]; [email protected] This document was created with Win2PDF available at http://www.win2pdf.com. The unregistered version of Win2PDF is for evaluation or non-commercial use only. This page will not be added after purchasing Win2PDF.