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Direito ao eSquecimento

2020, Revista Direitos Fundamentais & Justiça

https://doi.org/10.30899/dfj.v14i42.747
O DIREITO AO “ESQUECIMENTO” E PESSOAS TRANSGÊNERO: APAGANDO O PASSADO?1 germano schwartz Reitor do Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter) em Porto Alegre e Canoas – RS. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq (Nível 2). Pesquisador Gaúcho (FAPERGS). E-mail: [email protected]. Clarissa Pereira Carello Tabeliã Substituta e Professora do Curso de Direito do Centro Universitário Ritter dos Reis – UniRitter em Porto Alegre e Canoas –RS. Mestre em Direito (Universidade La Salle). E-mail: [email protected]. resumo: O objetivo do presente artigo é o de demonstrar a possibilidade de as pessoas transgênero utilizarem o direito ao esquecimento perante os tribunais brasileiros. A partir desse objetivo, a metodologia utilizada se baseia na análise de decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF) e da doutrina existente a respeito do tema. O resultado da pesquisa reforça ser possível que, no Brasil, transgêneros invoquem o direito ao esquecimento, especialmente nos casos de alteração do nome e do sexo no registro civil. Palavras-chave: Direito ao esquecimento. Transgêneros. Direitos da personalidade. Memória. Retificação de registro. sumário: 1 Introdução – 2 O direito ao esquecimento: origem e precedentes nacionais e internacionais – 3 A pessoa transgênero e seus registros: esquecimento possível – 4 A alteração do registro civil pela identidade de gênero e o esquecimento na perspectiva do direito da personalidade – 5 Considerações finais – Referências 1 introdução O primeiro aspecto que deve ser abordado no presente artigo é justamente o que vem a ser o “direito ao esquecimento” – ou direito de ser deixado em paz. A origem da temática remete a um caso envolvendo uma atriz francesa, em 1 O presente artigo é resultado de projeto de pesquisa financiado pelo CNPq (P. 303777/2017-6). Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020 269 GERMANO SCHWARTZ, CLARISSA PEREIRA CARELLO 1858, quando o pleito se relacionava com a proteção à vida privada; outro caso remete ao início da década de 30, quando, no Estado da Califórnia (EUA), foi pleiteado por uma cidadã o “direito à ressocialização”. Já o termo “direito ao esquecimento” propriamente dito, surge quarenta anos depois, quando, perante o Tribunal Constitucional alemão, ele é suscitado no precedente conhecido como “Caso Lebach”. No Brasil, porém, a temática somente foi enfrentada pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em meados de 2013 e, em âmbito internacional, em maio de 2014, uma decisão da Corte de Justiça da União Europeia causou grande repercussão. Na oportunidade, foi julgada uma reclamação realizada por um cidadão espanhol contra a empresa Google, pleiteando a retirada de seus dados pessoais dos buscadores disponibilizados pela gigante da internet. Nos processos julgados no Brasil, o direito ao esquecimento foi invocado em decorrência da veiculação de nome e imagem dos postulantes em programa de televisão, sem que houvesse a autorização dos envolvidos ou de quem os representasse para tanto. O aspecto central de ambos os casos foi a ausência de contemporaneidade dos fatos então noticiados, que serviram, sob a ótica dos requerentes, apenas para ressuscitar fatos e informações que já haviam sido esquecidos – ou mesmo ignorados – pelos espectadores. Ainda, em decorrência dessa exposição desautorizada, houve o requerimento de indenização pelos danos experimentados em razão dessa violação aos direitos da personalidade. O ponto comum entre os precedentes internacionais e os casos brasileiros está na ausência de norma específica que possa validamente estabelecer os limites de aplicação do direito ao esquecimento e a liberdade de imprensa, bem como as repercussões que a exposição de fatos/dados da vida pregressa podem gerar aos envolvidos, sem que tenham autorizado tal veiculação. O último aspecto que será abordado no presente artigo refere-se ao caráter histórico e aos reflexos dos precedentes internacionais nos casos levados às Cortes brasileiras. Logo após, serão apresentados conceitos sobre pessoa transgênero e os recentes julgados que alcançam o direito à alteração do nome e do sexo nos documentos públicos de identificação. Ao final, será realizada análise sobre as repercussões que a alteração do nome e do sexo, em decorrência da identidade de gênero, pode causar e o direito ao esquecimento das referências à pregressa identificação, associado aos direitos da personalidade. 270 Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020 O DIREITO AO “ESQUECIMENTO” E PESSOAS TRANSGÊNERO: APAGANDO O PASSADO? 2 o direito ao esquecimento: origem e precedentes nacionais e internacionais Os primeiros registros sobre proteção à privacidade, na esteira da ideia de “esquecimento”, são de 1858.2 No caso em comento, a atriz teatral francesa Elisa Felix, conhecida pelo pseudônimo Rachel,3 foi retratada no seu leito de morte por um artista. Essa imagem foi feita com a autorização da irmã da atriz, porém, houve a indevida reprodução e a comercialização desse fato, sem a autorização da família, expondo a atriz em questão.4 Naquela oportunidade, por meio da tutela jurisdicional, a família da atriz buscou a proteção à vida privada e à intimidade da finada atriz, bem como que fosse reprimida a reprodução e venda das imagens. O Tribunal de Seine, em 16.6.1858, acolheu o pleito em comento, entendendo que, “por maior que seja um artista, por histórico que seja um grande homem, tem sua vida privada distinta da vida pública, seu lar separado da cena e do fórum, podendo desejar morrer na obscuridade, quando ou porque viveram no triunfo”.5 Em sua fundamentação, a Corte Francesa considerou: que ninguém pode, sem consentimento formal da família, reproduzir e entregar à publicidade os restos de uma pessoa em seu leito de morte, qualquer que tenha sido a celebridade desta pessoa [...] o direito de oposição a esta reprodução é absoluto, que tem seu princípio no respeito que impõe a dor das famílias e que não se poderia desconhecer sem ferir os sentimentos mais íntimos e os mais respeitáveis da natureza e da piedade doméstica.6 Uma década após o julgado sobredito, a França editou a primeira lei que protegeu a vida privada. Essa lei previa punição com o pagamento de multa na hipótese de publicações de fatos relativos à vida privada em periódicos sem que houvesse a autorização das pessoas expostas.7 Outro relevante precedente histórico no qual foi requerido o “direito à ressocialização” remonta os anos 30 do século passado, em uma ação ajuizada 2 3 4 5 6 7 BERTI, Silma Mendes. Direito à própria imagem. Belo Horizonte: Del Rey, 1993. p. 19-21. WEINGARTNER NETO, Jayme. Honra, privacidade e liberdade de imprensa: uma pauta de justificação penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 71. RIBEIRO, Diógenes V. Hassan. Proteção da privacidade. São Leopoldo: Unisinos, 2003. p. 15. RIBEIRO, Diógenes V. Hassan. Proteção da privacidade. São Leopoldo: Unisinos, 2003. p. 15. DOTTI, René Ariel. Proteção da vida privada e liberdade de informação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980. p. 60-61. RIBEIRO, Diógenes V. Hassan. Proteção da privacidade. São Leopoldo: Unisinos, 2003. p. 16. Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020 271 GERMANO SCHWARTZ, CLARISSA PEREIRA CARELLO por Gabrielle Darley Melvin, ex-prostituta, no Estado da Califórnia (EUA). A autora foi acusada de ter participado de um crime, em 1918, porém foi inocentada. Passaram-se anos, e Gabrielle foi surpreendida pelo lançamento de um filme que contava o ocorrido, reproduzindo cenas reais do seu julgamento, em que seu nome e imagem reais eram exibidos na película, sem autorização expressa para tanto. Oportuno mencionar que o lançamento do filme gerou prejuízos para a requerente, especialmente porque refez sua vida após o ocorrido, casou-se, formou uma família, construindo uma nova imagem que em nada era associada, até então, à Gabrielle retratada no filme. A Corte de Apelação do Estado da Califórnia reconhece o direito a buscar felicidade – não expressamente o direito ao esquecimento – o qual estava proclamado na Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, em especial pelo uso indevido de seu nome e imagem, pois não havia sua autorização. Todavia, o relator do processo reconhece que as acusações de participação em assassinato eram verídicas, sendo acessíveis a todos, pois estavam incluídas em registros públicos, não devendo prosperar a insurgência da autora nesse particular, in verbis: [...] O próprio fato dos incidentes constarem em um registro público basta para negar a ideia de que a sua publicação seria uma violação do direito à privacidade. Quando os incidentes de uma vida são tão públicos a ponto de serem postos em público, passam ao conhecimento e posse de todos, deixando de ser privados. [...].8 Em 1973, o Tribunal Constitucional alemão julga o segundo precedente histórico de que se tem notícia sobre o direito ao esquecimento. O “Caso Lebach”, como passou a ser conhecido, versa sobre uma ação inibitória ajuizada por um dos réus que se envolveu no assassinato de quatro soldados alemães, ocorrido na cidade que dá nome ao caso, e, às vésperas de ser libertado, após seis anos de reclusão. No caso, o réu toma conhecimento que uma rede de televisão local 8 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Corte de Apelação do Quarto Distrito do Estado da Califórnia. Apelação. Apelante Gabrielle Darley Melvin e Apelada Dorothy Davenport Reid. Relator John Bernard Marks. 28 de fevereiro de 1931. Disponível em: http://https://casetext.com/case/melvin-v-reid. Acesso em: 20 jan. 2019. Originalmente: “From the foregoing it follows as a natural consequence that the use of the incidents from the life of appellant in the moving picture is in itself not actionable. These incidents appeared in the records of her trial for murder which is a public record open to the perusal of all. The very fact that they were contained in a public record is sufficient to negative the idea that their publication was a violation of a right of privacy. When the incidents of a life are *291291 so public as to be spread upon a public record they come within the knowledge and into the possession of the public and cease to be private. Had respondents, in the story of ‘The Red Kimono’, stopped with the use of those incidents from the life of appellant which were spread upon the record of her trial, no right of action would have accrued”. 272 Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020 O DIREITO AO “ESQUECIMENTO” E PESSOAS TRANSGÊNERO: APAGANDO O PASSADO? pretendia exibir um programa especial sobre o crime em comento, revelando fotos dos réus e das vítimas, bem como imagens reais da época do ocorrido. A Corte alemã entendeu que permitir a veiculação do programa traria prejuízos ao autor, visto que não haveria mais interesse dos espectadores sobre o caso, pois ausente à atualidade daquele relato, in verbis: [...] Em face do noticiário atual sobre delitos graves, o interesse de informação da população merece em geral prevalência sobre o direito de personalidade do criminoso. Porém, deve ser observado, além do respeito à mais íntima e intangível área da vida, o princípio da proporcionalidade: Segundo este, a informação do nome, foto ou outra identificação do criminoso nem sempre é permitida. A proteção constitucional da personalidade, porém, não admite que a televisão se ocupe com a pessoa do criminoso e sua vida privada por tempo ilimitado e além da notícia atual, p.ex. na forma de um documentário. Um noticiário posterior será, de qualquer forma, inadmissível se ele tiver o condão, em face da informação atual, de provocar um prejuízo considerável novo ou adicional à pessoa do criminoso, especialmente se ameaçar sua reintegração à sociedade (re-socialização). A ameaça à re-socialização deve ser em regra tolerada quando um programa sobre um crime grave, que identificar o autor do crime, for transmitido [logo] após sua soltura ou em momento anterior próximo à soltura. [...].9 Conforme o entendimento sobredito, o princípio da proteção da personalidade (proteção da personalidade integral) se sobrepôs à liberdade de informação, em consonância com a proporcionalidade e o direito à ressocialização. Ainda sobre os fatos ocorridos em Lebach, em 1996, outra emissora alemã realizou um documentário sobre o trágico episódio, ainda que sem expor nomes e imagens reais dos envolvidos. Esse é conhecido como “Caso Lebach II”, porém seu desfecho não se assemelha ao julgado dos anos 70. Os réus originais pleitearam a tutela jurisdicional para que a empresa fosse impedida de veicular o programa, todavia a Corte Constitucional alemã filia-se à “liberdade comunicativa” da empresa, veja-se: [...] 3) No Caso Lebach-1, o Tribunal Constitucional preservou o direito geral da personalidade porque ali havia uma lesão capaz de associar, 9 SCHWAB, Jürgen. Cinquenta anos de jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão. Tradução de Beatriz Hening et al. Montevidéu: Konrad Adenauer – Stiftung, 2005. p. 486-488. Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020 273 GERMANO SCHWARTZ, CLARISSA PEREIRA CARELLO de modo permanente, o criminoso a essa condição. Tratou-se, portanto, de uma questão de intensidade do ato que interferiu no direito ao desenvolvimento da personalidade. Nos termos do acórdão, é de se lembrar que o mero fato de ter cumprido a pena de prisão não significa que o criminoso adquiriu o “direito a ser deixado em paz” (ou, mais literalmente, “direito a ser deixado só”). 4) A intensidade da violação ao direito fundamental dos criminosos, no Caso Lebach-1, era sensível porquanto o programa de televisão da ZDF conferira um caráter sensacionalista ao fato, com a exposição do nome e de fotografias dos envolvidos. A veiculação do documentário, à época, prejudicaria e muito a ressocialização dos condenados. 5) No programa da SAT 1, no entanto, é inadequado encontrar tal nível de interferência no direito ao desenvolvimento da personalidade dos autores da reclamação constitucional. Passaram-se 30 anos da ocorrência do crime (de 1969; o acórdão é de 1999) e os riscos para a ressocialização foram bastante minorados. 6) O Tribunal Constitucional Federal anotou ainda que, com base no direito à radiodifusão, a proibição a um programa é sempre uma forte violação ao direito fundamental. [...].10 Ainda na Alemanha, em 2009, o direito ao esquecimento foi suscitado por um ex-jogador de futebol denunciado e condenado por estupro e que, na oportunidade, requereu a exclusão de fatos e dados relativos à sua vida pregressa – em especial aqueles associados à sua carreira e preferências sexuais – de sites de busca de internet. Perante o Tribunal Superior de Munique, ele requer a suspensão de informações de âmbito privado dos sites de busca/pesquisa, trazendo à colação os fundamentos do primeiro “Caso Lebach”. Porém não logrou êxito, recorrendo ao Tribunal Constitucional alemão para reformar a decisão. A Corte, por sua vez, relativiza a proteção aos fatos da vida privada: [...] uma adequada ponderação entre os interesses constitucionalmente protegidos, posto que em colisão direta. Segundo os juízes constitucionais, a proteção das expressões da sexualidade humana ocupa uma zona central na proteção à vida privada, não interessando a terceiros o que o indivíduo faz ou deixa de fazer nesse âmbito. No entanto, a cobertura jornalística de um fato verídico e criminoso, ainda que no âmbito das relações sexuais, mesmo que sem uma 10 RODRIGUES JÚNIOR, Otávio Luiz. Não há tendências na proteção do direito ao esquecimento. Conjur, 25 dez. 2013. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-dez-25/direito-comparado-nao-tendenciasprotecao-direito-esquecimento#author. Acesso em: 27 dez. 2018. 274 Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020 O DIREITO AO “ESQUECIMENTO” E PESSOAS TRANSGÊNERO: APAGANDO O PASSADO? sentença definitiva, não pode ser obstada sob o fundamento da preservação da vida privada. Ressaltou-se, ainda, que a cobertura foi permanente e não tópica ou após a conclusão do processo. [...].11 No Brasil, o direito ao esquecimento foi matéria de julgamento pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em maio de 2013. Na mesma sessão de julgamento, o Relator Ministro Luís Felipe Salomão, apreciou com seus pares dois processos nos quais o direito ao esquecimento foi requerido. O objeto central de ambos os feitos versava sobre a possibilidade de retirar o caráter público de dados pretéritos, adentrando-se no mérito quanto à proteção da privacidade e da dignidade da pessoa humana, considerada a violação aos direitos da imagem e intimidade que a veiculação sem a autorização da pessoa pode causar e a liberdade de informação arguida pela imprensa nos casos concretos. Ambos os processos se originaram com a veiculação de dramatizações do extinto programa “Linha Direta”, da Rede Globo de Televisão, que tinha um segmento especial denominado “Linha Direta Justiça”. Nesses programas, crimes que geraram grande repercussão nacional eram lembrados ao público, remontando fatos e cenas ocorridos antes, durante e após os crimes. No primeiro caso examinado pelo Tribunal, uma pessoa acusada de ter participado da “Chacina da Candelária”, trágico episódio ocorrido no Rio de Janeiro na década de 90, que foi absolvido no processo criminal, teve seu nome e imagem divulgados pelo programa, fato que trouxe à memória de inúmeras pessoas, que já haviam esquecido esse acontecimento, fatos do passado, renovando os sentimentos de repúdio à sua pessoa. Da mesma forma, o programa trouxe o assunto àqueles que não tiveram acesso na época do acontecido, o que igualmente entendeu o autor como prejudicial à sua imagem. Em virtude dessa veiculação indevida e não autorizada, afirmou ter sofrido inúmeros prejuízos de ordem moral e material. No julgamento desse caso, o relator mantém a pretensão indenizatória concedida no juízo a quo ao recorrido. Nesse sentido, reconhece, em sua decisão, a possibilidade de o autor buscar seu direito ao esquecimento, o que traduz como o “direito de não ser lembrado contra a sua vontade, especificamente no tocante a fatos desabonadores, de natureza criminal, nos quais se envolveu, mas que, posteriormente, fora inocentado”.12 No que se refere à liberdade de imprensa, o 11 12 RODRIGUES JÚNIOR, Otávio Luiz. Não há tendências na proteção do direito ao esquecimento. Conjur, 25 dez. 2013. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-dez-25/direito-comparado-nao-tendenciasprotecao-direito-esquecimento#author. Acesso em: 27 dez. 2018. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.334.097/RJ. Recorrente Globo Comunicações e Participações S/A e Recorrido Jurandir Gomes de França. Relator Ministro Luis Felipe Salomão. Brasília, 10 de setembro de 2013. Disponível em: http://www.stj.jus.br. Acesso em: 27 dez. 2019. Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020 275 GERMANO SCHWARTZ, CLARISSA PEREIRA CARELLO magistrado entendeu que não pode conferir à notícia jornalística uma liberdade absoluta, livre de regras e de princípios, em especial aqueles de natureza constitucional. Refere, especificamente, sobre a proteção à dignidade da pessoa humana, intimidade e privacidade. Já no outro processo,13 os irmãos de uma vítima de violência, no final dos anos 50, recorrem ao STJ, pleiteando indenização em decorrência do uso do nome da imagem da irmã no programa sobredito, sem que houvesse a autorização deles para tanto. O ministro relator, porém, afasta a pretensão indenizatória, por entender, em apertada síntese, que: a) a ausência de contemporaneidade da notícia de fatos passados não pode ser invocada, pois inviável recontar um crime histórico como o que vitimou a irmã dos autores, sem mencionar a própria vítima; b) “[...] a recordação de crimes passados pode significar uma análise de como a sociedade – e o próprio ser humano – evolui ou regride, especialmente no que concerne ao respeito por valores éticos e humanos, assim também qual foi a resposta dos aparelhos judiciais ao fato, revelando, de certo modo, para onde está caminhando a humanidade e a criminologia”; c) o caso em comento está inserido nas exceções decorrentes de crimes com ampla publicidade, e a sua veiculação, passados cinquenta anos da morte da irmã dos autores, não poderia gerar abalo moral que ensejasse o dever de indenizar; e d) a imagem da vítima não foi utilizada de forma indevida, pois sua imagem real foi veiculada no programa em apenas uma cena, sendo as demais, dramatizadas por atores contratados. Ao longo da decisão, há análise da legislação pátria aplicável ao feito, bem como doutrina e jurisprudência nacionais e internacionais. Vale referir que houve dois votos divergentes,14 dos ministros Marco Buzzi e Maria Isabel Gallotti. Ambos reconheceram direito dos recorrentes à indenização pleiteada, em consonância com o disposto no art. 20 do Código Civil, ao relativizar a liberdade de imprensa invocada pela emissora que produziu e transmitiu o programa, dando maior relevo às questões relativas à privacidade e intimidade, especialmente pelo fato da manifestação expressa de contrariedade à veiculação do caso pelos irmãos da vítima, pois também foram mencionados ao longo do programa e tiveram sua imagem veiculada. 13 14 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.335.153-RJ. Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Brasília, p. 48, 28 maio 2013. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1237428 &num_registro=201100574280&data=20130910&formato=PDF. Acesso em: 27 dez. 2019 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.335.153-RJ. Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Brasília, p. 48, 28 maio 2013. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1237428 &num_registro=201100574280&data=20130910&formato=PDF. Acesso em: 27 dez. 2019 276 Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020 O DIREITO AO “ESQUECIMENTO” E PESSOAS TRANSGÊNERO: APAGANDO O PASSADO? Houve a interposição de recurso extraordinário (RE nº 1.010.606/RJ) pelos familiares da vítima e, no STF, foi proposta a tese de repercussão geral – Tema nº 786, sem que tenha sido julgada. Todavia, a Procuradora-Geral da República Raquel Dogde manifestou-se, em 25.9.2018, nos seguintes termos: “O direito ao esquecimento, por ser desdobramento do direito à privacidade, deve ser ponderado, no caso concreto, com a proteção do direito à informação e liberdade de expressão”.15 Refira-se ainda que, em março de 2013, é editado o Enunciado nº 531, na VI Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal (CJF), que vem a ser hoje a única fonte específica que aborda o direito ao esquecimento no direito pátrio. O enunciado prevê, in verbis: [...] A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento. Artigo: 11 do Código Civil. Justificativa: Os danos provocados pelas novas tecnologias de informação vêm-se acumulando nos dias atuais. O direito ao esquecimento tem sua origem histórica no campo das condenações criminais. Surge como parcela importante do direito do ex-detento à ressocialização. Não atribui a ninguém o direito de apagar os fatos ou reescrever a própria história, mas apenas assegura a possibilidade de discutir o uso que é dado aos fatos pretéritos, mais especificamente o modo e a finalidade com que são lembrados. [...].16 O sobredito enunciado foi editado antes do julgamento dos recursos especiais que enfocam o tema pelo STJ e, por razões óbvias, o ministro relator 15 16 “REPERCUSSÃO GERAL. TEMA 786. DIREITO AO ESQUECIMENTO. APLICABILIDADE NA ESFERA CIVIL QUANDO INVOCADO PELA PRÓPRIA VÍTIMA OU PELOS SEUS FAMILIARES. VEICULAçÃO DE PROGRAMA TELEVISIVO. ABORDAGEM DE FATOS RELACIONADOS A CRIME OCORRIDO HÁ VÁRIAS DÉCADAS. DANOS MORAIS E MATERIAIS. CONFLITO ENTRE A PRIVACIDADE E A LIBERDADE DE INFORMAçÃO. ANÁLISE DAS CIRCUNSTÂNCIAS DO CASO CONCRETO. IMPRESCINDIBILIDADE. 1. Proposta de tese de repercussão geral - Tema 786: ‘O direito ao esquecimento consiste em desdobramento do direito à privacidade, devendo ser ponderado, no caso concreto, com a proteção do direito à informação e liberdade de expressão’. - Parecer pelo não provimento do recurso extraordinário” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 1.010.606/RJ. Repercussão Geral. Tema 786. Direito ao Esquecimento. Disponível em: http://www. stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/listarProcesso.asp?PesquisaEm=tema&PesquisaEm=contro versia&PesquisaEm=ambos&situacaoRG=TODAS&situacaoAtual=S&txtTituloTema=&numeroTemaInicial= &numeroTemaFinal=&acao=pesquisarProcesso&dataInicialJulgPV=&dataFinalJulgPV=&classeProcesso=R E&numeroProcesso=1010606&ministro=&txtRamoDireito=&ordenacao=asc&botao=. Acesso em: 2 jan. 2019). BRASIL. Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal. VI Jornada de Direito Civil. Enunciado n. 531. A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento. Coordenador Geral Ruy Rosado de Aguiar Júnior. Brasília, 12 mar. 2013. Disponível em: http://www.cjf.jus.br. Acesso em: 27 dez. 2018. Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020 277 GERMANO SCHWARTZ, CLARISSA PEREIRA CARELLO incluiu-o em seus julgados. Reforça, com isso, a importância do reconhecimento desse instituto e a proteção que o acompanha, em casos em que o direito ao esquecimento é invocado, e o conflito de normas suscitado na espécie. Ainda sobre o enunciado em questão: De forma bastante objetiva, a redação do enunciado não deixou dúvidas de que exercer o direito ao esquecimento não é viabilizar que o indivíduo crie ou conte uma outra história daquela efetivamente vivida e referenciada nos registros de sites de buscas, por exemplo, as que ele tenha assegurado o direito de que os fatos, por não possuírem relevância temporal ou histórica, sejam indisponibilizados.17 Em maio de 2014, a Corte de Justiça da União Europeia manifesta-se sobre o direito ao esquecimento, em uma ação ajuizada no ano de 2012, por um cidadão espanhol contra a empresa norte-americana Google.18 Essa ação se deve a informações que foram exibidas quando o nome desse cidadão era inserido no site de busca. As informações que buscavam a retirada diziam respeito a um edital veiculado num jornal, em 1998, anunciando a venda de imóvel de propriedade do referido cidadão, em hasta pública, em decorrência de dívidas com o sistema de seguridade espanhol. No caso espanhol, insurgiu-se o autor quanto à manutenção de seus dados nos buscadores, embora houvesse passado mais de onze anos entre o fato noticiado e sua permanência na rede, mesmo após a regularização dos débitos. De início, o pedido foi realizado diretamente ao jornal que havia noticiado o fato em 1998, para que omitisse os seus dados de identificação. A solicitação não logrou efeito. Diante disso, requereu diretamente à empresa Google Espanha que se retirasse a informação relativa ao referido, porém, de igual forma, não obteve êxito. Na mesma oportunidade, representou à Agência Espanhola de Proteção de Dados (AEPD) que, por sua vez, fez pedido ao Google para a retirada dos dados, não obtendo sucesso também. O processo foi levado a julgamento no Tribunal de Justiça da União Europeia, em virtude de recursos manejados pela empresa. Em 13.5.2014, o Tribunal proferiu decisão, tutelando o direito ao esquecimento na internet com a hipótese: “dados são considerados inadequados, não pertinentes ou não mais pertinentes 17 18 CARELLO, Clarissa Pereira. Direito ao esquecimento parâmetros jurisprudenciais. Porto Alegre: Prismas, 2017. p. 53. TRIBUNAL DE JUSTIçA DA UNIÃO EUROPEIA. Processo nº C-131/12. Disponível em: http://curia.europa. eu/juris/document/document_print.jsf?doclang=PT&text=esquecimento&pageIndex=0&part=1&mode=re q&docid=152065&occ=first&dir=&cid=421219. Acesso em: 27 dez. 2018. 278 Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020 O DIREITO AO “ESQUECIMENTO” E PESSOAS TRANSGÊNERO: APAGANDO O PASSADO? do ponto de vista dos fins para os quais foram tratados e do tempo transcorrido”. Desse entendimento, resulta que viabilizem a notificação do site para retirada de informações pessoais ali armazenadas.19 O entendimento da Corte de Justiça Europeia consiste na Diretiva 95/46 e na necessidade de proteção de dados em decorrência do princípio da dignidade das pessoas nesse fluxo de dados pela web, por empresas mundialmente abrangentes. Pela leitura da decisão, percebe-se o esforço dos julgadores dos países que compõem a Corte em respaldar os cidadãos na retirada de dados que não são relevantes dos sites de busca. É apresentada uma forma cooperativa entre os países que integram a União Europeia, permitindo ao cidadão notificar os sites para que os dados irrelevantes sejam retirados. Todavia, constata-se que, mesmo com esse impulso de criação de legislações reguladoras de informações disponíveis em buscadores de internet, as organizações envolvidas não adotam tal política de privacidade em países que não possuem regulamentação objetiva nesse sentido. A utilização dos dados de informações pessoais fornecida pelos sites de busca (e seus respectivos provedores) não visa apenas à informação de quem utiliza as ferramentas desses sites. A decisão da Corte de Justiça da União Europeia possui efeito vinculante para os países do bloco, cabendo ao Google e demais provedores que disponibilizam esses serviços incluir campo que permita a seus usuários solicitar a exclusão de dados pessoais sem relevância, quando assim o desejarem. É possível ainda mencionarem-se casos envolvendo pessoas públicas, as quais igualmente buscam, em demandas judiciais, o direito ao esquecimento. Um exemplo é a apresentadora de televisão Maria da Graça Xuxa Meneghel, do Brasil, que ajuizou ação contra o provedor Google para pleitear a restrição de resultados de busca que indicassem seu nome artístico e a palavra pedofilia. Todavia, através de recurso especial interposto pela ré ao STJ, o entendimento foi no sentido de que não há prática de conduta ilícita pelo provedor, já que ele não pode responder pelo conteúdo disponível na internet. Se não bastasse, restringir as buscas conforme requerido pela autora reprimiria o direito à informação, pois existem outros indicadores associados aos termos pedofilia (“crime de pedofilia”) e Xuxa (nadador brasileiro Xuxa), só para citar.20 19 20 TRIBUNAL europeu decide a favor do “direito de ser esquecido” no Google. UOL, 13 maio 2014. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2014/05/1453527-tribunal-europeu-decide-a-favor-do-direitode-ser-esquecido-no-google.shtml. Acesso em: 27 dez. 2018. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.316.921/RJ. Recorrente Google Brasil Internet Ltda. Recorrida Maria da Graça Xuxa Meneghel. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Brasília, 26 de junho de Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020 279 GERMANO SCHWARTZ, CLARISSA PEREIRA CARELLO Outro caso envolvendo pessoas públicas são as ações propostas pela Princesa Caroline de Mônaco. Na primeira delas, julgada pela Grande Corte dos Direitos Humanos de Estrasburgo em 2004, houve a condenação da Alemanha por não ter garantido proteção à intimidade da princesa, em decorrência de fotos publicadas com o ator Vincent Lindon. O resultado desse julgamento motivou uma alteração na legislação alemã, ampliando a proteção da intimidade e da vida privada.21 Entretanto, a segunda ação ajuizada por Caroline não obteve semelhante resultado. Nesse caso, a princesa propôs ação contra o Estado alemão em virtude de fotos veiculadas por duas revistas daquele país que a retrataram junto com seu marido, Príncipe Ernst-August Von Hannover, em estações de esqui, desfrutando de férias, enquanto seu pai, Príncipe Rainier, estava doente e aos cuidados de sua irmã Stéphanie. A sentença de improcedência nesse processo destaca o entendimento do Tribunal Constitucional alemão de que “a imprensa tinha o direito de relatar como os filhos do príncipe conciliavam suas obrigações de solidariedade familiar às necessidades legítimas de sua vida privada, como sair de férias”.22 Nesses dois casos, envolvendo pessoas públicas, da mesma forma, percebe-se a necessidade de proteção à vida privada e a relevância – ou não – que determinadas informações, ditas como públicas e de interesse coletivo, podem representar no âmbito particular. Verifica-se, na doutrina de François Ost,23 que a memória constitui a primeira referência do tempo jurídico, pois cabe ao direito (e aos juristas) instituir uma memória da coletividade. Todavia, segundo o autor, a memória não é absoluta, pois há uma abundância de informações e uma queda da memória coletiva em contraposição à memória individual. O autor prossegue a análise, fazendo a distinção da memória através de quatro paradoxos, quais sejam: memória social, que difere da memória individual; memória do presente; memória ativa (voluntária) e o esquecimento, que vem a ser um pressuposto da própria memória. Sob tal perspectiva, o esquecimento pode ser compreendido como um determinante da própria memória. Se, por um lado, o direito pode ser compreendido como definidor de condutas e um meio de se evitar conflitos, o esquecimento tem suas fontes justamente no que o passado lhe ofereceu como a tradição, os costumes e 21 22 23 2012. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&t ipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&num_registro=201301523973. Acesso em: 22 dez. 2018 CAROLINE de Mônaco perde processo contra Alemanha. Exame, 7 fev. 2012. Disponível em: http:// exame.abril.com.br/estilo-de-vida/noticias/caroline-de-monaco-perde-processo-contra-alemanha. Acesso em: 22 dez. 2018. CAROLINE de Mônaco perde processo contra Alemanha. Exame, 7 fev. 2012. Disponível em: http:// exame.abril.com.br/estilo-de-vida/noticias/caroline-de-monaco-perde-processo-contra-alemanha. Acesso em: 22 dez. 2018. OST, François. O tempo do direito. Tradução de Élcio Fernandes. Bauru: Edusc, 2005. 280 Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020 O DIREITO AO “ESQUECIMENTO” E PESSOAS TRANSGÊNERO: APAGANDO O PASSADO? precedentes, ou seja, a ideia é de que o direito se alicerça em bases existentes, não havendo normas que regulem algo que ainda não tenha ocorrido. No mesmo sentido, pensar o esquecimento também é garantir o perdão, que sentimentos se regenerem e que a passagem do tempo auxilie na reconstrução de um novo caminho. Para o autor: O esquecimento, como memória, exige, pois, ser revisitado, selecionado, ultrapassado, superado, subsumido num tempo que não se reduz tão somente à declinação do passado. Eis-nos na terceira etapa, que virá nos conduzir ao limiar do perdão, um perdão que é simultaneamente anamnésia e remissão: ato de memória e aposta no futuro. Sem dúvida, um perdão desse tipo é um tanto sublime demais para ser jurídico integralmente; admitamos que ele estava ligeiramente para além do direito, assim como todo esquecimento estaria frequentemente aquém de suas virtualidades. Contudo, nada impede pensar que o ideal de reabilitação por ele implicado, que o processo coloca em ação, não seria aquilo que, na prática de reconhecimento recíproco dos querelantes, inspira muitas instituições penais, mesmo que estas continuem amplamente matizadas de cálculo de interesses, de relações de força e de compromissos políticos. É no levantamento dessas manifestações do perdão, mais ou menos mescladas de esquecimento e de cálculo, que nos dedicamos, então, entre a anistia, que tende a esquecer tudo, e o imprescritível, que tende a conservar tudo.24 Nesse sentido, verifica-se que é possível uma interpretação diversa de fatos passados, esquecendo-se de determinados registros, pensando, assim, em uma “aposta” para um novo futuro, sem que, necessariamente, tenha que haver uma imposição legal, moral ou filosófica, por exemplo. 3 a pessoa transgênero e seus registros: esquecimento possível O direito ao esquecimento, como visto, pode ser suscitado sob diversos enfoques e argumentos. Seja por meio da veiculação de dados privados em redes sociais, imagem, nome, voz na mídia impressa ou televisionada, seja em 24 OST, François. O tempo do direito. Tradução de Élcio Fernandes. Bauru: Edusc, 2005. p. 145-146. Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020 281 GERMANO SCHWARTZ, CLARISSA PEREIRA CARELLO buscadores de informações na internet, entre outros. Esse direito também pode ser pensado na perspectiva daqueles que não se identificam com o gênero de nascimento, denominados transgêneros. Denomina-se transgênero aquela pessoa que não se sente pertencente ao sexo que nasceu, mas sim ao gênero oposto.25 As pessoas transgênero inicialmente pertenciam à comunidade de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBTTT). No entanto, pelas demandas específicas que as pessoas trans apresentam, constituiu-se um movimento independente, denominado Movimento Transgênero (Transgender Movement), que possui representatividade mundial e preocupações correlatas como a “luta contra a medicalização e patologização da transexualidade, e reivindicação de políticas que permitam o amplo acesso a serviços de saúde sem serem discriminados pelos profissionais de saúde e a mudança de nome, condizente com sua identificação de gênero”.26 Segundo pesquisas, as pessoas trans não se identificam com os membros do movimento LGBTTT. O relato é de Elizabeth Zambrano, participante de reuniões com transgêneros, no período pré e pós-operatórios, vinculados ao Programa de Transtornos de Identidade de Gênero – PROTIG – do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. O enfoque dos encontros era o de preparar e de orientar os transexuais para realização da cirurgia de troca de sexo, uma vez que há inclusive repulsa quando restam comparados com os travestis.27 O programa possibilita, assim, a percepção das peculiaridades envolvendo as pessoas trans, em especial, quanto à forma como se identificam e como querem ser identificadas na sociedade. Nesse sentido, o aspecto que merece destaque no presente artigo é justamente a alteração do nome, com a retificação do registro civil e a possibilidade de essas pessoas serem reconhecidas no gênero com que se identificam, sem necessariamente terem de ser submetidas à cirurgia de redesignação de gênero. Verifica-se, através da recente jurisprudência do Plenário do Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do Recurso Extraordinário (RE) nº 670.422, a possibilidade de alteração do registro civil de pessoas transgênero, pela via administrativa, sem que tenham realizado qualquer procedimento cirúrgico. De forma análoga ao entendimento da ADI nº 4.275 – julgado em que foi reconhecido 25 26 27 ÁVILA, Simone; GROSSI, Miriam Pillar. Transexualidade e movimento transgênero na perspectiva da diáspora queer. In: CONGRESSO DA ASSOCIAçÃO BRASILEIRA DE ESTUDOS DA HOMOCULTURA, 5. 2010. Anais eletrônicos... Natal: ABEH, 2010. ÁVILA, Simone; GROSSI, Miriam Pillar. Transexualidade e movimento transgênero na perspectiva da diáspora queer. In: CONGRESSO DA ASSOCIAçÃO BRASILEIRA DE ESTUDOS DA HOMOCULTURA, 5. 2010. Anais eletrônicos... Natal: ABEH, 2010. p. 2. ZAMBRANO, Elisabeth. Trocando os documentos: um estudo antropológico sobre a cirurgia de troca de sexo. p. 25. Disponível em: http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/3693. Acesso em: 28 dez. 2018. 282 Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020 O DIREITO AO “ESQUECIMENTO” E PESSOAS TRANSGÊNERO: APAGANDO O PASSADO? o direito às pessoas transexuais à substituição de prenome e sexo diretamente no registro civil –, o Relator Ministro Dias Toffoli fixou a tese em quatro termos, in verbis: 1 – O transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não se exigindo para tanto nada além da manifestação de vontade do indivíduo, o qual poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial como diretamente pela via administrativa. 2 – Essa alteração deve ser averbada à margem do assento de nascimento, vedada a inclusão do termo “transgênero”. 3 – Nas certidões do registro não constará nenhuma observação sobre a origem do ato, vedada a expedição de certidão de inteiro teor, salvo a requerimento do próprio interessado ou por determinação judicial. 4 – Efetuando-se o procedimento pela via judicial, caberá ao magistrado determinar, de ofício ou a requerimento do interessado, a expedição de mandados específicos para a alteração dos demais registros nos órgãos públicos ou privados pertinentes, os quais deverão preservar o sigilo sobre a origem dos atos.28 Pela análise da transcrição acima, é possível perceber que o entendimento da Corte Superior relativizou a realização de cirurgia para mudança de sexo para garantir às pessoas transgênero a possibilidade de alteração de seus registros civis, em consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana e a ausência de qualquer prejuízo à sociedade que tal alteração pode gerar. É no âmbito privado que a alteração repercutirá primeiramente, pois a identificação visual e psíquica da pessoa trans sem a retificação de seu registro civil permanece repercutindo na esfera privada. No mesmo ponto, oportuno trazer a crítica de Berenice Bento29 sobre a utilização do “nome social” pelas pessoas trans em bancos, faculdades e repartições públicas. Para a autora, a ausência de norma que regulamente a questão dos transgêneros no Brasil gera constrangimentos que não são sentidos nos países como Espanha, Argentina, Uruguai e Inglaterra, uma vez que possuem 28 29 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. STF reafirma direito de transgêneros de alterar registro civil sem mudança de sexo. Notícias STF, Brasília, 15 ago. 2018. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/ cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=3869309. Acesso em: 26 jan. 2019. BENTO, Berenice. Nome social para pessoas trans: cidadania precária e gambiarra legal. Contemporânea, v. 4, n. 1, p. 165-182, jan./jun. 2014. Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020 283 GERMANO SCHWARTZ, CLARISSA PEREIRA CARELLO leis para regular a identidade de gênero. Nessas leis, há a normatização dos procedimentos relacionados às cirurgias de transgenitalização e à mudança nos documentos para as pessoas trans como forma de garantir cidadania aos transgêneros daqueles locais, diferentemente da “gambiarra” feita no Brasil em virtude da omissão legal. 4 a alteração do registro civil pela identidade de gênero e o esquecimento na perspectiva do direito da personalidade Pela jurisprudência colacionada, verifica-se que o Supremo Tribunal Federal tutelou o direito de alteração do registro em demandas ajuizadas por pessoas transgênero, independentemente da realização de procedimentos cirúrgicos. O que, na perspectiva do direito da personalidade, garante a essas pessoas a possibilidade de terem uma vida normal, afastando paulatinamente todas as referências do gênero anteriormente designado. Diferentemente de pessoas ativistas, que pertencem aos movimentos LGBTTT ou aos transgêneros e a eles estão engajados, ousa-se afirmar que a maior parte das pessoas trans não deseja ser lembrada com identidade que anteriormente lhe fora conferida, seja pelo nome, seja pelo gênero de nascimento. Na perspectiva do direito registral, a alteração do sexo na certidão de nascimento afronta o princípio da verdade real, pois há veracidade no que foi descrito quando do nascimento, independentemente de haver ou não identificação da pessoa ao longo de sua vida com o que foi ali consignado. Porém, não se deve pautar a discussão do tema sem observar os preceitos relacionados à dignidade da pessoa humana, inserida no art. 1º, inc. III, da Constituição Federal, a qual não pode ser entendida como o “fim”, mas sim como o princípio do debate sobre o direito ao esquecimento. Em seu art. 5º, incs. V, IX e X, a Constituição Federal confirma o direito de resposta proporcional ao agravo, além da correspondente indenização por danos morais, materiais ou de imagem. Também, assevera a liberdade de expressão, sem censura e, por fim, a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, sendo-lhes igualmente assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.30 30 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; [...] IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; 284 Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020 O DIREITO AO “ESQUECIMENTO” E PESSOAS TRANSGÊNERO: APAGANDO O PASSADO? Assim não se pode acreditar que o direito ao esquecimento esteja sendo utilizado como uma forma de apagar ou mesmo de reescrever o passado. Da mesma forma, afasta-se da ideia de eventual censura aos meios de comunicação (televisão, rádio, web, entre outros) que se estaria impondo à mídia, ao contrário do que está inserto no texto constitucional. Oportuno contextualizar o momento de redação da Carta Magna conforme as lições de Ingo Sarlet: [...] No que concerne ao processo de elaboração da Constituição de 1988, há que fazer referência, por sua umbilical vinculação com a formatação do catálogo dos direitos fundamentais na nova ordem constitucional, à circunstância de que esta foi resultado de um amplo processo de discussão oportunizado com a redemocratização do País após mais de vinte anos de ditadura militar. [...] Outro aspecto de fundamental importância no que concerne aos direitos fundamentais em nossa Carta Magna diz respeito ao fato de ter ela sido precedida de período marcado por forte dose de autoritarismo que caracterizou – em maior ou menor escala – a ditadura militar que vigorou no país por 21 anos. A relevância atribuída aos direitos fundamentais, o reforço de seu regime jurídico e até mesmo a configuração do seu conteúdo são frutos da reação do Constituinte, e das forças sociais e políticas nele representadas, ao regime de restrição e até mesmo de aniquilação das liberdades fundamentais. [...].31 A partir das considerações sobreditas, verifica-se que o espírito do legislador não foi o de conferir uma liberdade irrestrita aos meios de comunicação. Nesse sentido, em que pese haver o receio de alguns à eventual restrição ao exercício da liberdade de imprensa, o que deve ser avaliado nos casos concretos são justamente a necessidade e a relevância das informações disponíveis na rede de computadores ou na mídia impressa ou televisiva, com a exposição da imagem, dos nomes e dos demais dados que ensejem a identificação das pessoas. Sob a perspectiva das pessoas trans, a reflexão também é pertinente, pois qual a relevância de permanecerem dados relativos à identidade anterior daquela pessoa que não é – e não se sente – como aparece em buscadores de internet ou em seus registros civis, por exemplo? 31 X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; [...]”. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 63; 65-66. Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020 285 GERMANO SCHWARTZ, CLARISSA PEREIRA CARELLO No mesmo sentido, descabe a aplicação ou não da norma, quanto à sua efetividade ou inefetividade, fundar-se exclusivamente na dignidade da pessoa humana. Dessa forma, tais questões estariam sob a tutela desse princípio, o que provavelmente não foi a intenção do legislador ao trazer a dignidade da pessoa humana para o ordenamento jurídico pátrio. Para Robert Alexy: [...] O que se pergunta é se o indivíduo tem um direito subjetivo constitucional a essa proteção, e como esse direito deve ser fundamentado. [...] dever estatal de proteger a dignidade humana, [...] transfere o dever de proteção aos direitos fundamentais subsequentes. A vantagem dessa construção reside no fato de ela se apoiar diretamente no texto constitucional; sua desvantagem, no fato de que ela se vê diante do dilema de ou ampliar de forma extrema o conceito de dignidade humana, para poder abarcar tudo aquilo que seja digno de proteção, o que implica o sempre suscitado risco de trivializar a dignidade humana, ou renunciar a abarcar algumas coisas dignas de proteção. [...].32 Ao se analisarem as decisões do STJ descritas no tópico acima, constatase vasta fundamentação quanto aos limites que as normas constitucionais de proteção à pessoa humana, sua intimidade33 e privacidade devem atingir. Nesse sentido, o entendimento comum dos julgados é de que a notícia, em que pese seja verdadeira e, por tal razão, seja lícita a sua exploração pela imprensa não pode conferir caráter absoluto ou mesmo sem observância a qualquer regra em nome da liberdade de imprensa invocada pelos meios de comunicação, valendo, assim, a premissa do direito ao esquecimento. Igualmente na decisão da Corte de Justiça da União Europeia, o direito ao esquecimento prevalece a partir da análise do que deve ser considerado como público e o que é privado, viabilizando a retirada das informações pessoais, especialmente aquelas que não trazem nenhum fato histórico, relevante ou atual, da rede de computadores. No direito internacional, 32 33 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 454. Aqui importante o conceito de intimidade, a partir da doutrina de Maria Cláudia Mércio Cachapuz: “[...] é também a partir da distinção entre espaços privados e públicos que resta reconhecido o ambiente social para a vida de convivência. Daí a importância de redescobrir, contemporaneamente, uma dicotomia ao público e ao privado que permita identificar em que medida se visualiza esta distinção de espaços e de que forma pode ela contribuir para esclarecer questões relacionados a direitos fundamentais do indivíduo – mais precisamente, em relação aos direitos à intimidade e à vida privada” (CACHAPUZ, Maria Cláudia. Intimidade e vida privada no novo Código Civil brasileiro: uma leitura orientada no discurso jurídico. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2006. p. 54-55). 286 Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020 O DIREITO AO “ESQUECIMENTO” E PESSOAS TRANSGÊNERO: APAGANDO O PASSADO? todavia, a discussão repousa sobre o que deve ser considerado como público e o que deve ser considerado – e guardado – como algo privado. Ainda na perspectiva dos institutos jurídicos aplicáveis em analogia à tese do direito ao esquecimento, há a prescrição, coisa julgada, anistia, decadência, por exemplo. Percebe-se, assim, que o legislador e os operadores do direito buscam também a “ressocialização” nominada no Enunciado nº 531, quando aplicam tais conceitos. Sob o ponto de vista dos direitos humanos, a redação e posterior vigência da norma e a dinâmica das relações, oportuno consignar a lição de Norberto Bobbio, sobre direitos humanos e sua mutabilidade: [...] os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas.34 Nos casos em que o direito ao esquecimento é invocado, o que hoje ocorre é justamente uma relação entre o caso concreto e uma harmonização por parte dos julgadores dos princípios constitucionais aplicáveis na espécie. Levando-se em consideração a ponderação de princípios e as normas de proporcionalidade e razoabilidade, nos ensinamentos de Robert Alexy:35 [...] A teoria dos princípios pode se alinhar quase que automaticamente a essas considerações gerais sobre a estrutura da discricionariedade cognitiva. Direitos fundamentais, compreendidos como princípios, exigem uma realização máxima diante das condições fáticas e jurídicas presentes. Reconhecer ao legislador uma discricionariedade cognitiva de tipo empírico significa a possibilidade de se admitir que, diante das possibilidades fáticas presentes, esses direitos não sejam realizados na extensão do que seria possível. Diante disso, o princípio de direito fundamental afetado negativamente exige, enquanto mandamento de otimização, que não seja reconhecida nenhuma discricionariedade cognitiva. Se esse fosse o único fato relevante, um direito fundamental só poderia ser restringido em virtude de premissas empíricas cuja veracidade fosse certa. 34 35 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 5. ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 614-615. Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020 287 GERMANO SCHWARTZ, CLARISSA PEREIRA CARELLO Se essa veracidade não puder ser comprovada, seria autorizado partir apenas das premissas empíricas que forem mais vantajosas ao direito fundamental, que são aquelas sobre cuja base a intervenção ou a não-garantia de proteção não tem como ser justificada. [...] Diante disso, apreende-se que os conflitos principiológicos decorrentes do direito ao esquecimento aliam-se à igual dificuldade de estabelecer o que deve ser lembrado e o que deve ser esquecido. Quando se trata de questões envolvendo os registros civis de pessoas trans, o que se busca é o esquecimento de forma definitiva do gênero a que não pertence aquela pessoa, pois, cotidianamente, sem a retificação de seus registros, são-lhe impostas lembranças do que foi registrado e que não possui significado. 5 Considerações finais A mudança de registro das pessoas transgênero tem sido reconhecida pelo Poder Judiciário como forma de garantir a dignidade da pessoa humana e de proteção aos direitos da personalidade de cada indivíduo conforme assegurado na Constituição Federal brasileira. Todavia, a possibilidade de “apagar” os registros do passado não encontra regulamentação específica para as pessoas trans e pode usar por analogia as disposições recentes sobre o direito ao esquecimento. Quando se aborda essa temática, a memória de algo passado trazido para o tempo presente perturba. A incerteza do que uma imagem, um escrito ou um áudio representa no presente e venha influenciar no futuro faz com que as pessoas busquem a tutela de seus direitos à privacidade perante o Poder Judiciário, em termos semelhantes ao que ocorre nos pleitos relativos ao gênero. Na doutrina de François Ost: o direito ao esquecimento, consagrado pela jurisprudência, surge mais claramente como uma das múltiplas facetas do direito a respeito da vida privada. Uma vez que, personagem pública ou não, fomos lançados diante da cena e colocados sob os projetores da atualidade – muitas vezes é preciso dizer, uma atualidade penal – temos o direito, depois de determinado tempo, a sermos deixados em paz e a recair no esquecimento e no anonimato, do qual jamais queríamos ter saído.36 36 OST, François. O tempo do direito. Tradução de Élcio Fernandes. Bauru: Edusc, 2005. p. 160-161. 288 Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020 O DIREITO AO “ESQUECIMENTO” E PESSOAS TRANSGÊNERO: APAGANDO O PASSADO? Não se trata, portanto, de um novo direito, mas sim de uma das vertentes do direito à privacidade. Vale referir que pleitear o esquecimento de determinado fato da vida pregressa não significa que a pessoa deseje reescrever sua própria história, excluindo o que lhe desagrada, por exemplo. O ponto central é a relevância das informações postas à disposição de um contingente imensurável de usuários das redes de computadores e a falta de regulação desses dados. Aproximando a temática dos transgêneros e a sua – necessária – retificação de registro, mesmo sem a submissão a procedimentos cirúrgicos e terapêuticos, pode-se pensar que o esquecimento de dados pretéritos venha ferir o princípio da boa-fé. Porém, há de se ter em mente que as pessoas trans, ao buscarem a retificação de seus registros, apresentam prova documental que atesta seus antecedentes, acostando certidões negativas – ou mesmo positivas com efeito de negativas de todos os órgãos. Esse ato por si só demonstra que o interesse na retificação do registro está muito mais atrelado aos direitos da personalidade do que dolo ou má-fé. Diferentemente do que ocorre em programas de proteção de testemunha, as pessoas trans mantêm o mesmo sobrenome e números de identificação – registro geral (RG), cadastro de pessoa física (CPF), carteira de trabalho e previdência social (CTPS), entre outros. Ou seja, não se trata de outra pessoa, mas da mesma sob o ponto de vista de identificação, mas com o nome adequado ao gênero com o que se identifica. Há de se reconhecer que a memória individual pode persistir, e informações serem lembradas com exatidão, mas a quem mais esses dados que a memória traz à tona interessam? Reforça-se, aqui, que não se pode defender a censura ou o cerceamento de dados, mas sim a possibilidade daqueles que não se identificam com o gênero que foi registrado de alterarem essa condição, inclusive como forma de inclusão. Refira-se que se houvesse lei regulamentando e reconhecendo os direitos das pessoas transgênero no Brasil diminuiria sobremaneira as situações constrangedoras às quais essas pessoas são submetidas. Nessa mesma ótica, o direito ao esquecimento no Brasil sofreu repercussões a partir da Decisão nº 131/12 da Corte da União Europeia. No entanto, não se vislumbra uma iniciativa que viabilize o simples pedido de exclusão de dados dos buscadores pelos cidadãos de países estranhos à União Europeia. O conflito entre o que deve – ou pode – ser público e o que deve – ou pode – ser privado permanece, seja analisando o esquecimento na perspectiva das mídias e das grandes empresas que utilizam/disponibilizam dados sem autorização, seja sobre as pessoas trans e a possibilidade de retificação de seus registros. Enfim, o que se constata é a necessária proteção à privacidade, à honra e à intimidade que ambos os temas possuem e sobre a qual merecem guarida. Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020 289 GERMANO SCHWARTZ, CLARISSA PEREIRA CARELLO the right to “forgetfulness” and transgender people: erasing the past? abstract: The purpose of this article is to demonstrate the possibility of transgender people using the right to be forgotten in Brazilian courts. Based on this objective, the methodology used was based on the analysis of decisions of the Superior Court of Justice (STJ) and the Supreme Federal Court (STF) and the existing doctrine regarding the subject. The result of the research reinforces the possibility that, in Brazil, transgender people may invoke the right to forgetfulness, especially in cases of change of name and gender in the civil registry. Keywords: Right to forgetfulness. Transgender. Rights of the personality. Memory. Registration rectification. Contents: 1 Introduction – 2 The Right to Forgetfulness: origin and national and international precedents – 3 The Transgender Person and their records: possible forgetfulness – 4 Changing Civil Registry by Gender Identity and the Forgetfulness in the Perspective of Personality Law – 5 Final Considerations – References referências ‘LEI do direito de ser esquecido’ provoca remoção de verbete da Wikipédia. O Globo, 4 ago. 2014. 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