O DIREITO AO “ESQUECIMENTO”
E PESSOAS TRANSGÊNERO: APAGANDO
O PASSADO?1
germano schwartz
Reitor do Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter) em Porto Alegre e Canoas –
RS. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq (Nível 2). Pesquisador Gaúcho
(FAPERGS). E-mail:
[email protected].
Clarissa Pereira Carello
Tabeliã Substituta e Professora do Curso de Direito do Centro Universitário Ritter dos
Reis – UniRitter em Porto Alegre e Canoas –RS. Mestre em Direito (Universidade La
Salle). E-mail:
[email protected].
resumo: O objetivo do presente artigo é o de demonstrar a possibilidade de as pessoas transgênero
utilizarem o direito ao esquecimento perante os tribunais brasileiros. A partir desse objetivo, a
metodologia utilizada se baseia na análise de decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do
Supremo Tribunal Federal (STF) e da doutrina existente a respeito do tema. O resultado da pesquisa
reforça ser possível que, no Brasil, transgêneros invoquem o direito ao esquecimento, especialmente
nos casos de alteração do nome e do sexo no registro civil.
Palavras-chave: Direito ao esquecimento. Transgêneros. Direitos da personalidade. Memória.
Retificação de registro.
sumário: 1 Introdução – 2 O direito ao esquecimento: origem e precedentes nacionais e internacionais
– 3 A pessoa transgênero e seus registros: esquecimento possível – 4 A alteração do registro civil pela
identidade de gênero e o esquecimento na perspectiva do direito da personalidade – 5 Considerações
finais – Referências
1 introdução
O primeiro aspecto que deve ser abordado no presente artigo é justamente
o que vem a ser o “direito ao esquecimento” – ou direito de ser deixado em
paz. A origem da temática remete a um caso envolvendo uma atriz francesa, em
1
O presente artigo é resultado de projeto de pesquisa financiado pelo CNPq (P. 303777/2017-6).
Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020
269
GERMANO SCHWARTZ, CLARISSA PEREIRA CARELLO
1858, quando o pleito se relacionava com a proteção à vida privada; outro caso
remete ao início da década de 30, quando, no Estado da Califórnia (EUA), foi
pleiteado por uma cidadã o “direito à ressocialização”. Já o termo “direito ao
esquecimento” propriamente dito, surge quarenta anos depois, quando, perante
o Tribunal Constitucional alemão, ele é suscitado no precedente conhecido como
“Caso Lebach”.
No Brasil, porém, a temática somente foi enfrentada pela Quarta Turma do
Superior Tribunal de Justiça (STJ), em meados de 2013 e, em âmbito internacional,
em maio de 2014, uma decisão da Corte de Justiça da União Europeia causou
grande repercussão. Na oportunidade, foi julgada uma reclamação realizada por
um cidadão espanhol contra a empresa Google, pleiteando a retirada de seus
dados pessoais dos buscadores disponibilizados pela gigante da internet.
Nos processos julgados no Brasil, o direito ao esquecimento foi invocado
em decorrência da veiculação de nome e imagem dos postulantes em programa
de televisão, sem que houvesse a autorização dos envolvidos ou de quem os
representasse para tanto. O aspecto central de ambos os casos foi a ausência
de contemporaneidade dos fatos então noticiados, que serviram, sob a ótica dos
requerentes, apenas para ressuscitar fatos e informações que já haviam sido
esquecidos – ou mesmo ignorados – pelos espectadores. Ainda, em decorrência
dessa exposição desautorizada, houve o requerimento de indenização pelos danos
experimentados em razão dessa violação aos direitos da personalidade.
O ponto comum entre os precedentes internacionais e os casos brasileiros
está na ausência de norma específica que possa validamente estabelecer os
limites de aplicação do direito ao esquecimento e a liberdade de imprensa, bem
como as repercussões que a exposição de fatos/dados da vida pregressa podem
gerar aos envolvidos, sem que tenham autorizado tal veiculação.
O último aspecto que será abordado no presente artigo refere-se ao caráter
histórico e aos reflexos dos precedentes internacionais nos casos levados às
Cortes brasileiras. Logo após, serão apresentados conceitos sobre pessoa transgênero e os recentes julgados que alcançam o direito à alteração do nome e do
sexo nos documentos públicos de identificação. Ao final, será realizada análise
sobre as repercussões que a alteração do nome e do sexo, em decorrência da
identidade de gênero, pode causar e o direito ao esquecimento das referências à
pregressa identificação, associado aos direitos da personalidade.
270
Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020
O DIREITO AO “ESQUECIMENTO” E PESSOAS TRANSGÊNERO: APAGANDO O PASSADO?
2 o direito ao esquecimento: origem e precedentes
nacionais e internacionais
Os primeiros registros sobre proteção à privacidade, na esteira da ideia de
“esquecimento”, são de 1858.2 No caso em comento, a atriz teatral francesa
Elisa Felix, conhecida pelo pseudônimo Rachel,3 foi retratada no seu leito de morte
por um artista. Essa imagem foi feita com a autorização da irmã da atriz, porém,
houve a indevida reprodução e a comercialização desse fato, sem a autorização
da família, expondo a atriz em questão.4
Naquela oportunidade, por meio da tutela jurisdicional, a família da atriz
buscou a proteção à vida privada e à intimidade da finada atriz, bem como que
fosse reprimida a reprodução e venda das imagens. O Tribunal de Seine, em
16.6.1858, acolheu o pleito em comento, entendendo que, “por maior que seja
um artista, por histórico que seja um grande homem, tem sua vida privada distinta
da vida pública, seu lar separado da cena e do fórum, podendo desejar morrer na
obscuridade, quando ou porque viveram no triunfo”.5 Em sua fundamentação, a
Corte Francesa considerou:
que ninguém pode, sem consentimento formal da família, reproduzir
e entregar à publicidade os restos de uma pessoa em seu leito de
morte, qualquer que tenha sido a celebridade desta pessoa [...] o direito de oposição a esta reprodução é absoluto, que tem seu princípio
no respeito que impõe a dor das famílias e que não se poderia desconhecer sem ferir os sentimentos mais íntimos e os mais respeitáveis
da natureza e da piedade doméstica.6
Uma década após o julgado sobredito, a França editou a primeira lei que
protegeu a vida privada. Essa lei previa punição com o pagamento de multa na
hipótese de publicações de fatos relativos à vida privada em periódicos sem que
houvesse a autorização das pessoas expostas.7
Outro relevante precedente histórico no qual foi requerido o “direito à
ressocialização” remonta os anos 30 do século passado, em uma ação ajuizada
2
3
4
5
6
7
BERTI, Silma Mendes. Direito à própria imagem. Belo Horizonte: Del Rey, 1993. p. 19-21.
WEINGARTNER NETO, Jayme. Honra, privacidade e liberdade de imprensa: uma pauta de justificação
penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 71.
RIBEIRO, Diógenes V. Hassan. Proteção da privacidade. São Leopoldo: Unisinos, 2003. p. 15.
RIBEIRO, Diógenes V. Hassan. Proteção da privacidade. São Leopoldo: Unisinos, 2003. p. 15.
DOTTI, René Ariel. Proteção da vida privada e liberdade de informação. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1980. p. 60-61.
RIBEIRO, Diógenes V. Hassan. Proteção da privacidade. São Leopoldo: Unisinos, 2003. p. 16.
Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020
271
GERMANO SCHWARTZ, CLARISSA PEREIRA CARELLO
por Gabrielle Darley Melvin, ex-prostituta, no Estado da Califórnia (EUA). A autora
foi acusada de ter participado de um crime, em 1918, porém foi inocentada.
Passaram-se anos, e Gabrielle foi surpreendida pelo lançamento de um filme
que contava o ocorrido, reproduzindo cenas reais do seu julgamento, em que
seu nome e imagem reais eram exibidos na película, sem autorização expressa
para tanto. Oportuno mencionar que o lançamento do filme gerou prejuízos para
a requerente, especialmente porque refez sua vida após o ocorrido, casou-se,
formou uma família, construindo uma nova imagem que em nada era associada,
até então, à Gabrielle retratada no filme.
A Corte de Apelação do Estado da Califórnia reconhece o direito a buscar
felicidade – não expressamente o direito ao esquecimento – o qual estava
proclamado na Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, em
especial pelo uso indevido de seu nome e imagem, pois não havia sua autorização.
Todavia, o relator do processo reconhece que as acusações de participação
em assassinato eram verídicas, sendo acessíveis a todos, pois estavam incluídas
em registros públicos, não devendo prosperar a insurgência da autora nesse
particular, in verbis:
[...] O próprio fato dos incidentes constarem em um registro público
basta para negar a ideia de que a sua publicação seria uma violação
do direito à privacidade. Quando os incidentes de uma vida são tão
públicos a ponto de serem postos em público, passam ao conhecimento e posse de todos, deixando de ser privados. [...].8
Em 1973, o Tribunal Constitucional alemão julga o segundo precedente
histórico de que se tem notícia sobre o direito ao esquecimento. O “Caso Lebach”,
como passou a ser conhecido, versa sobre uma ação inibitória ajuizada por um
dos réus que se envolveu no assassinato de quatro soldados alemães, ocorrido
na cidade que dá nome ao caso, e, às vésperas de ser libertado, após seis anos
de reclusão. No caso, o réu toma conhecimento que uma rede de televisão local
8
ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Corte de Apelação do Quarto Distrito do Estado da Califórnia. Apelação.
Apelante Gabrielle Darley Melvin e Apelada Dorothy Davenport Reid. Relator John Bernard Marks. 28 de
fevereiro de 1931. Disponível em: http://https://casetext.com/case/melvin-v-reid. Acesso em: 20 jan.
2019. Originalmente: “From the foregoing it follows as a natural consequence that the use of the incidents
from the life of appellant in the moving picture is in itself not actionable. These incidents appeared in the
records of her trial for murder which is a public record open to the perusal of all. The very fact that they
were contained in a public record is sufficient to negative the idea that their publication was a violation
of a right of privacy. When the incidents of a life are *291291 so public as to be spread upon a public
record they come within the knowledge and into the possession of the public and cease to be private. Had
respondents, in the story of ‘The Red Kimono’, stopped with the use of those incidents from the life of
appellant which were spread upon the record of her trial, no right of action would have accrued”.
272
Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020
O DIREITO AO “ESQUECIMENTO” E PESSOAS TRANSGÊNERO: APAGANDO O PASSADO?
pretendia exibir um programa especial sobre o crime em comento, revelando fotos
dos réus e das vítimas, bem como imagens reais da época do ocorrido.
A Corte alemã entendeu que permitir a veiculação do programa traria prejuízos
ao autor, visto que não haveria mais interesse dos espectadores sobre o caso,
pois ausente à atualidade daquele relato, in verbis:
[...] Em face do noticiário atual sobre delitos graves, o interesse de
informação da população merece em geral prevalência sobre o direito
de personalidade do criminoso. Porém, deve ser observado, além
do respeito à mais íntima e intangível área da vida, o princípio da
proporcionalidade: Segundo este, a informação do nome, foto ou outra identificação do criminoso nem sempre é permitida. A proteção
constitucional da personalidade, porém, não admite que a televisão
se ocupe com a pessoa do criminoso e sua vida privada por tempo
ilimitado e além da notícia atual, p.ex. na forma de um documentário.
Um noticiário posterior será, de qualquer forma, inadmissível se ele
tiver o condão, em face da informação atual, de provocar um prejuízo
considerável novo ou adicional à pessoa do criminoso, especialmente
se ameaçar sua reintegração à sociedade (re-socialização). A ameaça
à re-socialização deve ser em regra tolerada quando um programa
sobre um crime grave, que identificar o autor do crime, for transmitido
[logo] após sua soltura ou em momento anterior próximo à soltura.
[...].9
Conforme o entendimento sobredito, o princípio da proteção da personalidade
(proteção da personalidade integral) se sobrepôs à liberdade de informação, em
consonância com a proporcionalidade e o direito à ressocialização.
Ainda sobre os fatos ocorridos em Lebach, em 1996, outra emissora alemã
realizou um documentário sobre o trágico episódio, ainda que sem expor nomes
e imagens reais dos envolvidos. Esse é conhecido como “Caso Lebach II”, porém
seu desfecho não se assemelha ao julgado dos anos 70. Os réus originais
pleitearam a tutela jurisdicional para que a empresa fosse impedida de veicular o
programa, todavia a Corte Constitucional alemã filia-se à “liberdade comunicativa”
da empresa, veja-se:
[...] 3) No Caso Lebach-1, o Tribunal Constitucional preservou o direito
geral da personalidade porque ali havia uma lesão capaz de associar,
9
SCHWAB, Jürgen. Cinquenta anos de jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão. Tradução
de Beatriz Hening et al. Montevidéu: Konrad Adenauer – Stiftung, 2005. p. 486-488.
Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020
273
GERMANO SCHWARTZ, CLARISSA PEREIRA CARELLO
de modo permanente, o criminoso a essa condição. Tratou-se, portanto, de uma questão de intensidade do ato que interferiu no direito
ao desenvolvimento da personalidade. Nos termos do acórdão, é de
se lembrar que o mero fato de ter cumprido a pena de prisão não significa que o criminoso adquiriu o “direito a ser deixado em paz” (ou,
mais literalmente, “direito a ser deixado só”). 4) A intensidade da
violação ao direito fundamental dos criminosos, no Caso Lebach-1,
era sensível porquanto o programa de televisão da ZDF conferira um
caráter sensacionalista ao fato, com a exposição do nome e de fotografias dos envolvidos. A veiculação do documentário, à época, prejudicaria e muito a ressocialização dos condenados. 5) No programa da
SAT 1, no entanto, é inadequado encontrar tal nível de interferência
no direito ao desenvolvimento da personalidade dos autores da reclamação constitucional. Passaram-se 30 anos da ocorrência do crime
(de 1969; o acórdão é de 1999) e os riscos para a ressocialização
foram bastante minorados. 6) O Tribunal Constitucional Federal anotou ainda que, com base no direito à radiodifusão, a proibição a um
programa é sempre uma forte violação ao direito fundamental. [...].10
Ainda na Alemanha, em 2009, o direito ao esquecimento foi suscitado por um
ex-jogador de futebol denunciado e condenado por estupro e que, na oportunidade,
requereu a exclusão de fatos e dados relativos à sua vida pregressa – em especial
aqueles associados à sua carreira e preferências sexuais – de sites de busca
de internet. Perante o Tribunal Superior de Munique, ele requer a suspensão de
informações de âmbito privado dos sites de busca/pesquisa, trazendo à colação
os fundamentos do primeiro “Caso Lebach”. Porém não logrou êxito, recorrendo
ao Tribunal Constitucional alemão para reformar a decisão. A Corte, por sua vez,
relativiza a proteção aos fatos da vida privada:
[...] uma adequada ponderação entre os interesses constitucionalmente protegidos, posto que em colisão direta. Segundo os juízes
constitucionais, a proteção das expressões da sexualidade humana
ocupa uma zona central na proteção à vida privada, não interessando a terceiros o que o indivíduo faz ou deixa de fazer nesse âmbito.
No entanto, a cobertura jornalística de um fato verídico e criminoso,
ainda que no âmbito das relações sexuais, mesmo que sem uma
10
RODRIGUES JÚNIOR, Otávio Luiz. Não há tendências na proteção do direito ao esquecimento. Conjur,
25 dez. 2013. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-dez-25/direito-comparado-nao-tendenciasprotecao-direito-esquecimento#author. Acesso em: 27 dez. 2018.
274
Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020
O DIREITO AO “ESQUECIMENTO” E PESSOAS TRANSGÊNERO: APAGANDO O PASSADO?
sentença definitiva, não pode ser obstada sob o fundamento da preservação da vida privada. Ressaltou-se, ainda, que a cobertura foi
permanente e não tópica ou após a conclusão do processo. [...].11
No Brasil, o direito ao esquecimento foi matéria de julgamento pela Quarta
Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em maio de 2013. Na mesma sessão
de julgamento, o Relator Ministro Luís Felipe Salomão, apreciou com seus pares
dois processos nos quais o direito ao esquecimento foi requerido. O objeto central
de ambos os feitos versava sobre a possibilidade de retirar o caráter público de
dados pretéritos, adentrando-se no mérito quanto à proteção da privacidade e da
dignidade da pessoa humana, considerada a violação aos direitos da imagem
e intimidade que a veiculação sem a autorização da pessoa pode causar e a
liberdade de informação arguida pela imprensa nos casos concretos.
Ambos os processos se originaram com a veiculação de dramatizações
do extinto programa “Linha Direta”, da Rede Globo de Televisão, que tinha um
segmento especial denominado “Linha Direta Justiça”. Nesses programas,
crimes que geraram grande repercussão nacional eram lembrados ao público,
remontando fatos e cenas ocorridos antes, durante e após os crimes. No primeiro
caso examinado pelo Tribunal, uma pessoa acusada de ter participado da
“Chacina da Candelária”, trágico episódio ocorrido no Rio de Janeiro na década de
90, que foi absolvido no processo criminal, teve seu nome e imagem divulgados
pelo programa, fato que trouxe à memória de inúmeras pessoas, que já haviam
esquecido esse acontecimento, fatos do passado, renovando os sentimentos de
repúdio à sua pessoa. Da mesma forma, o programa trouxe o assunto àqueles
que não tiveram acesso na época do acontecido, o que igualmente entendeu o
autor como prejudicial à sua imagem. Em virtude dessa veiculação indevida e não
autorizada, afirmou ter sofrido inúmeros prejuízos de ordem moral e material.
No julgamento desse caso, o relator mantém a pretensão indenizatória concedida no juízo a quo ao recorrido. Nesse sentido, reconhece, em sua decisão, a
possibilidade de o autor buscar seu direito ao esquecimento, o que traduz como
o “direito de não ser lembrado contra a sua vontade, especificamente no tocante
a fatos desabonadores, de natureza criminal, nos quais se envolveu, mas que,
posteriormente, fora inocentado”.12 No que se refere à liberdade de imprensa, o
11
12
RODRIGUES JÚNIOR, Otávio Luiz. Não há tendências na proteção do direito ao esquecimento. Conjur,
25 dez. 2013. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-dez-25/direito-comparado-nao-tendenciasprotecao-direito-esquecimento#author. Acesso em: 27 dez. 2018.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.334.097/RJ. Recorrente Globo Comunicações
e Participações S/A e Recorrido Jurandir Gomes de França. Relator Ministro Luis Felipe Salomão. Brasília,
10 de setembro de 2013. Disponível em: http://www.stj.jus.br. Acesso em: 27 dez. 2019.
Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020
275
GERMANO SCHWARTZ, CLARISSA PEREIRA CARELLO
magistrado entendeu que não pode conferir à notícia jornalística uma liberdade
absoluta, livre de regras e de princípios, em especial aqueles de natureza
constitucional. Refere, especificamente, sobre a proteção à dignidade da pessoa
humana, intimidade e privacidade.
Já no outro processo,13 os irmãos de uma vítima de violência, no final dos
anos 50, recorrem ao STJ, pleiteando indenização em decorrência do uso do nome
da imagem da irmã no programa sobredito, sem que houvesse a autorização
deles para tanto. O ministro relator, porém, afasta a pretensão indenizatória, por
entender, em apertada síntese, que: a) a ausência de contemporaneidade da
notícia de fatos passados não pode ser invocada, pois inviável recontar um crime
histórico como o que vitimou a irmã dos autores, sem mencionar a própria vítima;
b) “[...] a recordação de crimes passados pode significar uma análise de como
a sociedade – e o próprio ser humano – evolui ou regride, especialmente no que
concerne ao respeito por valores éticos e humanos, assim também qual foi a
resposta dos aparelhos judiciais ao fato, revelando, de certo modo, para onde
está caminhando a humanidade e a criminologia”; c) o caso em comento está
inserido nas exceções decorrentes de crimes com ampla publicidade, e a sua
veiculação, passados cinquenta anos da morte da irmã dos autores, não poderia
gerar abalo moral que ensejasse o dever de indenizar; e d) a imagem da vítima não
foi utilizada de forma indevida, pois sua imagem real foi veiculada no programa
em apenas uma cena, sendo as demais, dramatizadas por atores contratados.
Ao longo da decisão, há análise da legislação pátria aplicável ao feito, bem como
doutrina e jurisprudência nacionais e internacionais.
Vale referir que houve dois votos divergentes,14 dos ministros Marco Buzzi e
Maria Isabel Gallotti. Ambos reconheceram direito dos recorrentes à indenização
pleiteada, em consonância com o disposto no art. 20 do Código Civil, ao relativizar
a liberdade de imprensa invocada pela emissora que produziu e transmitiu o
programa, dando maior relevo às questões relativas à privacidade e intimidade,
especialmente pelo fato da manifestação expressa de contrariedade à veiculação
do caso pelos irmãos da vítima, pois também foram mencionados ao longo do
programa e tiveram sua imagem veiculada.
13
14
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.335.153-RJ. Quarta Turma do Superior
Tribunal de Justiça. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Brasília, p. 48, 28 maio 2013. Disponível em:
https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1237428
&num_registro=201100574280&data=20130910&formato=PDF. Acesso em: 27 dez. 2019
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.335.153-RJ. Quarta Turma do Superior
Tribunal de Justiça. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Brasília, p. 48, 28 maio 2013. Disponível em:
https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1237428
&num_registro=201100574280&data=20130910&formato=PDF. Acesso em: 27 dez. 2019
276
Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020
O DIREITO AO “ESQUECIMENTO” E PESSOAS TRANSGÊNERO: APAGANDO O PASSADO?
Houve a interposição de recurso extraordinário (RE nº 1.010.606/RJ) pelos
familiares da vítima e, no STF, foi proposta a tese de repercussão geral – Tema
nº 786, sem que tenha sido julgada. Todavia, a Procuradora-Geral da República
Raquel Dogde manifestou-se, em 25.9.2018, nos seguintes termos: “O direito
ao esquecimento, por ser desdobramento do direito à privacidade, deve ser
ponderado, no caso concreto, com a proteção do direito à informação e liberdade
de expressão”.15
Refira-se ainda que, em março de 2013, é editado o Enunciado nº 531, na
VI Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal (CJF), que
vem a ser hoje a única fonte específica que aborda o direito ao esquecimento no
direito pátrio. O enunciado prevê, in verbis:
[...] A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento. Artigo: 11 do Código Civil.
Justificativa: Os danos provocados pelas novas tecnologias de informação vêm-se acumulando nos dias atuais. O direito ao esquecimento tem sua origem histórica no campo das condenações criminais.
Surge como parcela importante do direito do ex-detento à ressocialização. Não atribui a ninguém o direito de apagar os fatos ou reescrever a própria história, mas apenas assegura a possibilidade de
discutir o uso que é dado aos fatos pretéritos, mais especificamente
o modo e a finalidade com que são lembrados. [...].16
O sobredito enunciado foi editado antes do julgamento dos recursos especiais que enfocam o tema pelo STJ e, por razões óbvias, o ministro relator
15
16
“REPERCUSSÃO GERAL. TEMA 786. DIREITO AO ESQUECIMENTO. APLICABILIDADE NA ESFERA CIVIL
QUANDO INVOCADO PELA PRÓPRIA VÍTIMA OU PELOS SEUS FAMILIARES. VEICULAçÃO DE PROGRAMA
TELEVISIVO. ABORDAGEM DE FATOS RELACIONADOS A CRIME OCORRIDO HÁ VÁRIAS DÉCADAS. DANOS
MORAIS E MATERIAIS. CONFLITO ENTRE A PRIVACIDADE E A LIBERDADE DE INFORMAçÃO. ANÁLISE DAS
CIRCUNSTÂNCIAS DO CASO CONCRETO. IMPRESCINDIBILIDADE. 1. Proposta de tese de repercussão geral
- Tema 786: ‘O direito ao esquecimento consiste em desdobramento do direito à privacidade, devendo ser
ponderado, no caso concreto, com a proteção do direito à informação e liberdade de expressão’. - Parecer
pelo não provimento do recurso extraordinário” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário
nº 1.010.606/RJ. Repercussão Geral. Tema 786. Direito ao Esquecimento. Disponível em: http://www.
stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/listarProcesso.asp?PesquisaEm=tema&PesquisaEm=contro
versia&PesquisaEm=ambos&situacaoRG=TODAS&situacaoAtual=S&txtTituloTema=&numeroTemaInicial=
&numeroTemaFinal=&acao=pesquisarProcesso&dataInicialJulgPV=&dataFinalJulgPV=&classeProcesso=R
E&numeroProcesso=1010606&ministro=&txtRamoDireito=&ordenacao=asc&botao=. Acesso em: 2 jan.
2019).
BRASIL. Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal. VI Jornada de Direito Civil.
Enunciado n. 531. A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito
ao esquecimento. Coordenador Geral Ruy Rosado de Aguiar Júnior. Brasília, 12 mar. 2013. Disponível em:
http://www.cjf.jus.br. Acesso em: 27 dez. 2018.
Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020
277
GERMANO SCHWARTZ, CLARISSA PEREIRA CARELLO
incluiu-o em seus julgados. Reforça, com isso, a importância do reconhecimento
desse instituto e a proteção que o acompanha, em casos em que o direito ao
esquecimento é invocado, e o conflito de normas suscitado na espécie. Ainda
sobre o enunciado em questão:
De forma bastante objetiva, a redação do enunciado não deixou dúvidas de que exercer o direito ao esquecimento não é viabilizar que o
indivíduo crie ou conte uma outra história daquela efetivamente vivida
e referenciada nos registros de sites de buscas, por exemplo, as que
ele tenha assegurado o direito de que os fatos, por não possuírem
relevância temporal ou histórica, sejam indisponibilizados.17
Em maio de 2014, a Corte de Justiça da União Europeia manifesta-se
sobre o direito ao esquecimento, em uma ação ajuizada no ano de 2012, por um
cidadão espanhol contra a empresa norte-americana Google.18 Essa ação se deve
a informações que foram exibidas quando o nome desse cidadão era inserido no
site de busca. As informações que buscavam a retirada diziam respeito a um edital
veiculado num jornal, em 1998, anunciando a venda de imóvel de propriedade do
referido cidadão, em hasta pública, em decorrência de dívidas com o sistema de
seguridade espanhol.
No caso espanhol, insurgiu-se o autor quanto à manutenção de seus dados
nos buscadores, embora houvesse passado mais de onze anos entre o fato noticiado e sua permanência na rede, mesmo após a regularização dos débitos. De
início, o pedido foi realizado diretamente ao jornal que havia noticiado o fato em
1998, para que omitisse os seus dados de identificação. A solicitação não logrou
efeito. Diante disso, requereu diretamente à empresa Google Espanha que se
retirasse a informação relativa ao referido, porém, de igual forma, não obteve
êxito. Na mesma oportunidade, representou à Agência Espanhola de Proteção de
Dados (AEPD) que, por sua vez, fez pedido ao Google para a retirada dos dados,
não obtendo sucesso também.
O processo foi levado a julgamento no Tribunal de Justiça da União Europeia,
em virtude de recursos manejados pela empresa. Em 13.5.2014, o Tribunal
proferiu decisão, tutelando o direito ao esquecimento na internet com a hipótese:
“dados são considerados inadequados, não pertinentes ou não mais pertinentes
17
18
CARELLO, Clarissa Pereira. Direito ao esquecimento parâmetros jurisprudenciais. Porto Alegre: Prismas,
2017. p. 53.
TRIBUNAL DE JUSTIçA DA UNIÃO EUROPEIA. Processo nº C-131/12. Disponível em: http://curia.europa.
eu/juris/document/document_print.jsf?doclang=PT&text=esquecimento&pageIndex=0&part=1&mode=re
q&docid=152065&occ=first&dir=&cid=421219. Acesso em: 27 dez. 2018.
278
Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020
O DIREITO AO “ESQUECIMENTO” E PESSOAS TRANSGÊNERO: APAGANDO O PASSADO?
do ponto de vista dos fins para os quais foram tratados e do tempo transcorrido”.
Desse entendimento, resulta que viabilizem a notificação do site para retirada de
informações pessoais ali armazenadas.19
O entendimento da Corte de Justiça Europeia consiste na Diretiva 95/46 e
na necessidade de proteção de dados em decorrência do princípio da dignidade
das pessoas nesse fluxo de dados pela web, por empresas mundialmente
abrangentes.
Pela leitura da decisão, percebe-se o esforço dos julgadores dos países que
compõem a Corte em respaldar os cidadãos na retirada de dados que não são
relevantes dos sites de busca. É apresentada uma forma cooperativa entre os
países que integram a União Europeia, permitindo ao cidadão notificar os sites para
que os dados irrelevantes sejam retirados. Todavia, constata-se que, mesmo com
esse impulso de criação de legislações reguladoras de informações disponíveis
em buscadores de internet, as organizações envolvidas não adotam tal política de
privacidade em países que não possuem regulamentação objetiva nesse sentido.
A utilização dos dados de informações pessoais fornecida pelos sites de
busca (e seus respectivos provedores) não visa apenas à informação de quem
utiliza as ferramentas desses sites. A decisão da Corte de Justiça da União
Europeia possui efeito vinculante para os países do bloco, cabendo ao Google e
demais provedores que disponibilizam esses serviços incluir campo que permita
a seus usuários solicitar a exclusão de dados pessoais sem relevância, quando
assim o desejarem.
É possível ainda mencionarem-se casos envolvendo pessoas públicas, as
quais igualmente buscam, em demandas judiciais, o direito ao esquecimento.
Um exemplo é a apresentadora de televisão Maria da Graça Xuxa Meneghel, do
Brasil, que ajuizou ação contra o provedor Google para pleitear a restrição de
resultados de busca que indicassem seu nome artístico e a palavra pedofilia.
Todavia, através de recurso especial interposto pela ré ao STJ, o entendimento foi
no sentido de que não há prática de conduta ilícita pelo provedor, já que ele não
pode responder pelo conteúdo disponível na internet. Se não bastasse, restringir
as buscas conforme requerido pela autora reprimiria o direito à informação, pois
existem outros indicadores associados aos termos pedofilia (“crime de pedofilia”)
e Xuxa (nadador brasileiro Xuxa), só para citar.20
19
20
TRIBUNAL europeu decide a favor do “direito de ser esquecido” no Google. UOL, 13 maio 2014. Disponível
em: http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2014/05/1453527-tribunal-europeu-decide-a-favor-do-direitode-ser-esquecido-no-google.shtml. Acesso em: 27 dez. 2018.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.316.921/RJ. Recorrente Google Brasil Internet
Ltda. Recorrida Maria da Graça Xuxa Meneghel. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Brasília, 26 de junho de
Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020
279
GERMANO SCHWARTZ, CLARISSA PEREIRA CARELLO
Outro caso envolvendo pessoas públicas são as ações propostas pela
Princesa Caroline de Mônaco. Na primeira delas, julgada pela Grande Corte dos
Direitos Humanos de Estrasburgo em 2004, houve a condenação da Alemanha
por não ter garantido proteção à intimidade da princesa, em decorrência de fotos
publicadas com o ator Vincent Lindon. O resultado desse julgamento motivou
uma alteração na legislação alemã, ampliando a proteção da intimidade e da vida
privada.21 Entretanto, a segunda ação ajuizada por Caroline não obteve semelhante
resultado. Nesse caso, a princesa propôs ação contra o Estado alemão em virtude
de fotos veiculadas por duas revistas daquele país que a retrataram junto com seu
marido, Príncipe Ernst-August Von Hannover, em estações de esqui, desfrutando
de férias, enquanto seu pai, Príncipe Rainier, estava doente e aos cuidados de
sua irmã Stéphanie. A sentença de improcedência nesse processo destaca o
entendimento do Tribunal Constitucional alemão de que “a imprensa tinha o direito
de relatar como os filhos do príncipe conciliavam suas obrigações de solidariedade
familiar às necessidades legítimas de sua vida privada, como sair de férias”.22
Nesses dois casos, envolvendo pessoas públicas, da mesma forma,
percebe-se a necessidade de proteção à vida privada e a relevância – ou não – que
determinadas informações, ditas como públicas e de interesse coletivo, podem
representar no âmbito particular.
Verifica-se, na doutrina de François Ost,23 que a memória constitui a primeira
referência do tempo jurídico, pois cabe ao direito (e aos juristas) instituir uma
memória da coletividade. Todavia, segundo o autor, a memória não é absoluta,
pois há uma abundância de informações e uma queda da memória coletiva em
contraposição à memória individual. O autor prossegue a análise, fazendo a
distinção da memória através de quatro paradoxos, quais sejam: memória social,
que difere da memória individual; memória do presente; memória ativa (voluntária)
e o esquecimento, que vem a ser um pressuposto da própria memória. Sob tal
perspectiva, o esquecimento pode ser compreendido como um determinante
da própria memória. Se, por um lado, o direito pode ser compreendido como
definidor de condutas e um meio de se evitar conflitos, o esquecimento tem suas
fontes justamente no que o passado lhe ofereceu como a tradição, os costumes e
21
22
23
2012. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&t
ipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&num_registro=201301523973. Acesso em: 22 dez. 2018
CAROLINE de Mônaco perde processo contra Alemanha. Exame, 7 fev. 2012. Disponível em: http://
exame.abril.com.br/estilo-de-vida/noticias/caroline-de-monaco-perde-processo-contra-alemanha. Acesso
em: 22 dez. 2018.
CAROLINE de Mônaco perde processo contra Alemanha. Exame, 7 fev. 2012. Disponível em: http://
exame.abril.com.br/estilo-de-vida/noticias/caroline-de-monaco-perde-processo-contra-alemanha. Acesso
em: 22 dez. 2018.
OST, François. O tempo do direito. Tradução de Élcio Fernandes. Bauru: Edusc, 2005.
280
Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020
O DIREITO AO “ESQUECIMENTO” E PESSOAS TRANSGÊNERO: APAGANDO O PASSADO?
precedentes, ou seja, a ideia é de que o direito se alicerça em bases existentes,
não havendo normas que regulem algo que ainda não tenha ocorrido. No mesmo
sentido, pensar o esquecimento também é garantir o perdão, que sentimentos
se regenerem e que a passagem do tempo auxilie na reconstrução de um novo
caminho. Para o autor:
O esquecimento, como memória, exige, pois, ser revisitado, selecionado, ultrapassado, superado, subsumido num tempo que não
se reduz tão somente à declinação do passado. Eis-nos na terceira
etapa, que virá nos conduzir ao limiar do perdão, um perdão que é
simultaneamente anamnésia e remissão: ato de memória e aposta
no futuro. Sem dúvida, um perdão desse tipo é um tanto sublime
demais para ser jurídico integralmente; admitamos que ele estava
ligeiramente para além do direito, assim como todo esquecimento
estaria frequentemente aquém de suas virtualidades. Contudo, nada
impede pensar que o ideal de reabilitação por ele implicado, que o
processo coloca em ação, não seria aquilo que, na prática de reconhecimento recíproco dos querelantes, inspira muitas instituições penais, mesmo que estas continuem amplamente matizadas de cálculo
de interesses, de relações de força e de compromissos políticos.
É no levantamento dessas manifestações do perdão, mais ou menos
mescladas de esquecimento e de cálculo, que nos dedicamos, então,
entre a anistia, que tende a esquecer tudo, e o imprescritível, que
tende a conservar tudo.24
Nesse sentido, verifica-se que é possível uma interpretação diversa de fatos
passados, esquecendo-se de determinados registros, pensando, assim, em uma
“aposta” para um novo futuro, sem que, necessariamente, tenha que haver uma
imposição legal, moral ou filosófica, por exemplo.
3 a pessoa transgênero e seus registros: esquecimento
possível
O direito ao esquecimento, como visto, pode ser suscitado sob diversos
enfoques e argumentos. Seja por meio da veiculação de dados privados em
redes sociais, imagem, nome, voz na mídia impressa ou televisionada, seja em
24
OST, François. O tempo do direito. Tradução de Élcio Fernandes. Bauru: Edusc, 2005. p. 145-146.
Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020
281
GERMANO SCHWARTZ, CLARISSA PEREIRA CARELLO
buscadores de informações na internet, entre outros. Esse direito também pode
ser pensado na perspectiva daqueles que não se identificam com o gênero de
nascimento, denominados transgêneros.
Denomina-se transgênero aquela pessoa que não se sente pertencente
ao sexo que nasceu, mas sim ao gênero oposto.25 As pessoas transgênero
inicialmente pertenciam à comunidade de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e
transexuais (LGBTTT). No entanto, pelas demandas específicas que as pessoas
trans apresentam, constituiu-se um movimento independente, denominado
Movimento Transgênero (Transgender Movement), que possui representatividade
mundial e preocupações correlatas como a “luta contra a medicalização e
patologização da transexualidade, e reivindicação de políticas que permitam o
amplo acesso a serviços de saúde sem serem discriminados pelos profissionais
de saúde e a mudança de nome, condizente com sua identificação de gênero”.26
Segundo pesquisas, as pessoas trans não se identificam com os membros
do movimento LGBTTT. O relato é de Elizabeth Zambrano, participante de reuniões
com transgêneros, no período pré e pós-operatórios, vinculados ao Programa de
Transtornos de Identidade de Gênero – PROTIG – do Hospital de Clínicas de Porto
Alegre. O enfoque dos encontros era o de preparar e de orientar os transexuais
para realização da cirurgia de troca de sexo, uma vez que há inclusive repulsa
quando restam comparados com os travestis.27 O programa possibilita, assim, a
percepção das peculiaridades envolvendo as pessoas trans, em especial, quanto
à forma como se identificam e como querem ser identificadas na sociedade.
Nesse sentido, o aspecto que merece destaque no presente artigo é justamente a alteração do nome, com a retificação do registro civil e a possibilidade
de essas pessoas serem reconhecidas no gênero com que se identificam, sem
necessariamente terem de ser submetidas à cirurgia de redesignação de gênero.
Verifica-se, através da recente jurisprudência do Plenário do Supremo Tribunal
Federal, quando do julgamento do Recurso Extraordinário (RE) nº 670.422,
a possibilidade de alteração do registro civil de pessoas transgênero, pela via
administrativa, sem que tenham realizado qualquer procedimento cirúrgico. De
forma análoga ao entendimento da ADI nº 4.275 – julgado em que foi reconhecido
25
26
27
ÁVILA, Simone; GROSSI, Miriam Pillar. Transexualidade e movimento transgênero na perspectiva da
diáspora queer. In: CONGRESSO DA ASSOCIAçÃO BRASILEIRA DE ESTUDOS DA HOMOCULTURA, 5. 2010.
Anais eletrônicos... Natal: ABEH, 2010.
ÁVILA, Simone; GROSSI, Miriam Pillar. Transexualidade e movimento transgênero na perspectiva da
diáspora queer. In: CONGRESSO DA ASSOCIAçÃO BRASILEIRA DE ESTUDOS DA HOMOCULTURA, 5. 2010.
Anais eletrônicos... Natal: ABEH, 2010. p. 2.
ZAMBRANO, Elisabeth. Trocando os documentos: um estudo antropológico sobre a cirurgia de troca de
sexo. p. 25. Disponível em: http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/3693. Acesso em: 28 dez. 2018.
282
Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020
O DIREITO AO “ESQUECIMENTO” E PESSOAS TRANSGÊNERO: APAGANDO O PASSADO?
o direito às pessoas transexuais à substituição de prenome e sexo diretamente
no registro civil –, o Relator Ministro Dias Toffoli fixou a tese em quatro termos,
in verbis:
1 – O transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de
seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não
se exigindo para tanto nada além da manifestação de vontade do
indivíduo, o qual poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial
como diretamente pela via administrativa.
2 – Essa alteração deve ser averbada à margem do assento de nascimento, vedada a inclusão do termo “transgênero”.
3 – Nas certidões do registro não constará nenhuma observação sobre a origem do ato, vedada a expedição de certidão de inteiro teor,
salvo a requerimento do próprio interessado ou por determinação
judicial.
4 – Efetuando-se o procedimento pela via judicial, caberá ao magistrado determinar, de ofício ou a requerimento do interessado, a expedição de mandados específicos para a alteração dos demais registros
nos órgãos públicos ou privados pertinentes, os quais deverão preservar o sigilo sobre a origem dos atos.28
Pela análise da transcrição acima, é possível perceber que o entendimento
da Corte Superior relativizou a realização de cirurgia para mudança de sexo para
garantir às pessoas transgênero a possibilidade de alteração de seus registros
civis, em consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana e a
ausência de qualquer prejuízo à sociedade que tal alteração pode gerar. É no
âmbito privado que a alteração repercutirá primeiramente, pois a identificação
visual e psíquica da pessoa trans sem a retificação de seu registro civil permanece
repercutindo na esfera privada.
No mesmo ponto, oportuno trazer a crítica de Berenice Bento29 sobre a
utilização do “nome social” pelas pessoas trans em bancos, faculdades e repartições públicas. Para a autora, a ausência de norma que regulamente a
questão dos transgêneros no Brasil gera constrangimentos que não são sentidos
nos países como Espanha, Argentina, Uruguai e Inglaterra, uma vez que possuem
28
29
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. STF reafirma direito de transgêneros de alterar registro civil sem
mudança de sexo. Notícias STF, Brasília, 15 ago. 2018. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/
cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=3869309. Acesso em: 26 jan. 2019.
BENTO, Berenice. Nome social para pessoas trans: cidadania precária e gambiarra legal. Contemporânea,
v. 4, n. 1, p. 165-182, jan./jun. 2014.
Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020
283
GERMANO SCHWARTZ, CLARISSA PEREIRA CARELLO
leis para regular a identidade de gênero. Nessas leis, há a normatização dos
procedimentos relacionados às cirurgias de transgenitalização e à mudança nos
documentos para as pessoas trans como forma de garantir cidadania aos transgêneros daqueles locais, diferentemente da “gambiarra” feita no Brasil em virtude
da omissão legal.
4 a alteração do registro civil pela identidade de gênero e o
esquecimento na perspectiva do direito da personalidade
Pela jurisprudência colacionada, verifica-se que o Supremo Tribunal Federal
tutelou o direito de alteração do registro em demandas ajuizadas por pessoas
transgênero, independentemente da realização de procedimentos cirúrgicos.
O que, na perspectiva do direito da personalidade, garante a essas pessoas a
possibilidade de terem uma vida normal, afastando paulatinamente todas as
referências do gênero anteriormente designado. Diferentemente de pessoas
ativistas, que pertencem aos movimentos LGBTTT ou aos transgêneros e a eles
estão engajados, ousa-se afirmar que a maior parte das pessoas trans não deseja
ser lembrada com identidade que anteriormente lhe fora conferida, seja pelo
nome, seja pelo gênero de nascimento.
Na perspectiva do direito registral, a alteração do sexo na certidão de
nascimento afronta o princípio da verdade real, pois há veracidade no que foi
descrito quando do nascimento, independentemente de haver ou não identificação
da pessoa ao longo de sua vida com o que foi ali consignado. Porém, não se deve
pautar a discussão do tema sem observar os preceitos relacionados à dignidade
da pessoa humana, inserida no art. 1º, inc. III, da Constituição Federal, a qual não
pode ser entendida como o “fim”, mas sim como o princípio do debate sobre o
direito ao esquecimento.
Em seu art. 5º, incs. V, IX e X, a Constituição Federal confirma o direito de
resposta proporcional ao agravo, além da correspondente indenização por danos
morais, materiais ou de imagem. Também, assevera a liberdade de expressão,
sem censura e, por fim, a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da
honra e da imagem das pessoas, sendo-lhes igualmente assegurado o direito à
indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.30
30
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros
e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] V - é assegurado o direito de resposta, proporcional
ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; [...] IX - é livre a expressão da
atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
284
Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020
O DIREITO AO “ESQUECIMENTO” E PESSOAS TRANSGÊNERO: APAGANDO O PASSADO?
Assim não se pode acreditar que o direito ao esquecimento esteja sendo
utilizado como uma forma de apagar ou mesmo de reescrever o passado.
Da mesma forma, afasta-se da ideia de eventual censura aos meios de comunicação
(televisão, rádio, web, entre outros) que se estaria impondo à mídia, ao contrário
do que está inserto no texto constitucional. Oportuno contextualizar o momento de
redação da Carta Magna conforme as lições de Ingo Sarlet:
[...] No que concerne ao processo de elaboração da Constituição de
1988, há que fazer referência, por sua umbilical vinculação com a
formatação do catálogo dos direitos fundamentais na nova ordem
constitucional, à circunstância de que esta foi resultado de um amplo
processo de discussão oportunizado com a redemocratização do País
após mais de vinte anos de ditadura militar. [...] Outro aspecto de
fundamental importância no que concerne aos direitos fundamentais
em nossa Carta Magna diz respeito ao fato de ter ela sido precedida
de período marcado por forte dose de autoritarismo que caracterizou – em maior ou menor escala – a ditadura militar que vigorou no
país por 21 anos. A relevância atribuída aos direitos fundamentais,
o reforço de seu regime jurídico e até mesmo a configuração do seu
conteúdo são frutos da reação do Constituinte, e das forças sociais e
políticas nele representadas, ao regime de restrição e até mesmo de
aniquilação das liberdades fundamentais. [...].31
A partir das considerações sobreditas, verifica-se que o espírito do legislador
não foi o de conferir uma liberdade irrestrita aos meios de comunicação. Nesse
sentido, em que pese haver o receio de alguns à eventual restrição ao exercício
da liberdade de imprensa, o que deve ser avaliado nos casos concretos são
justamente a necessidade e a relevância das informações disponíveis na rede de
computadores ou na mídia impressa ou televisiva, com a exposição da imagem,
dos nomes e dos demais dados que ensejem a identificação das pessoas. Sob
a perspectiva das pessoas trans, a reflexão também é pertinente, pois qual a
relevância de permanecerem dados relativos à identidade anterior daquela pessoa
que não é – e não se sente – como aparece em buscadores de internet ou em
seus registros civis, por exemplo?
31
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a
indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; [...]”.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais
na perspectiva constitucional. 10. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 63;
65-66.
Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020
285
GERMANO SCHWARTZ, CLARISSA PEREIRA CARELLO
No mesmo sentido, descabe a aplicação ou não da norma, quanto à sua
efetividade ou inefetividade, fundar-se exclusivamente na dignidade da pessoa
humana. Dessa forma, tais questões estariam sob a tutela desse princípio, o que
provavelmente não foi a intenção do legislador ao trazer a dignidade da pessoa
humana para o ordenamento jurídico pátrio. Para Robert Alexy:
[...] O que se pergunta é se o indivíduo tem um direito subjetivo constitucional a essa proteção, e como esse direito deve ser fundamentado. [...] dever estatal de proteger a dignidade humana, [...] transfere
o dever de proteção aos direitos fundamentais subsequentes. A vantagem dessa construção reside no fato de ela se apoiar diretamente no texto constitucional; sua desvantagem, no fato de que ela se
vê diante do dilema de ou ampliar de forma extrema o conceito de
dignidade humana, para poder abarcar tudo aquilo que seja digno
de proteção, o que implica o sempre suscitado risco de trivializar a
dignidade humana, ou renunciar a abarcar algumas coisas dignas de
proteção. [...].32
Ao se analisarem as decisões do STJ descritas no tópico acima, constatase vasta fundamentação quanto aos limites que as normas constitucionais de
proteção à pessoa humana, sua intimidade33 e privacidade devem atingir. Nesse
sentido, o entendimento comum dos julgados é de que a notícia, em que pese seja
verdadeira e, por tal razão, seja lícita a sua exploração pela imprensa não pode
conferir caráter absoluto ou mesmo sem observância a qualquer regra em nome
da liberdade de imprensa invocada pelos meios de comunicação, valendo, assim,
a premissa do direito ao esquecimento. Igualmente na decisão da Corte de Justiça
da União Europeia, o direito ao esquecimento prevalece a partir da análise do
que deve ser considerado como público e o que é privado, viabilizando a retirada
das informações pessoais, especialmente aquelas que não trazem nenhum fato
histórico, relevante ou atual, da rede de computadores. No direito internacional,
32
33
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo:
Malheiros, 2009. p. 454.
Aqui importante o conceito de intimidade, a partir da doutrina de Maria Cláudia Mércio Cachapuz: “[...] é
também a partir da distinção entre espaços privados e públicos que resta reconhecido o ambiente social
para a vida de convivência. Daí a importância de redescobrir, contemporaneamente, uma dicotomia ao
público e ao privado que permita identificar em que medida se visualiza esta distinção de espaços e de
que forma pode ela contribuir para esclarecer questões relacionados a direitos fundamentais do indivíduo
– mais precisamente, em relação aos direitos à intimidade e à vida privada” (CACHAPUZ, Maria Cláudia.
Intimidade e vida privada no novo Código Civil brasileiro: uma leitura orientada no discurso jurídico. Porto
Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2006. p. 54-55).
286
Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020
O DIREITO AO “ESQUECIMENTO” E PESSOAS TRANSGÊNERO: APAGANDO O PASSADO?
todavia, a discussão repousa sobre o que deve ser considerado como público e o
que deve ser considerado – e guardado – como algo privado.
Ainda na perspectiva dos institutos jurídicos aplicáveis em analogia à tese do
direito ao esquecimento, há a prescrição, coisa julgada, anistia, decadência, por
exemplo. Percebe-se, assim, que o legislador e os operadores do direito buscam
também a “ressocialização” nominada no Enunciado nº 531, quando aplicam tais
conceitos. Sob o ponto de vista dos direitos humanos, a redação e posterior
vigência da norma e a dinâmica das relações, oportuno consignar a lição de
Norberto Bobbio, sobre direitos humanos e sua mutabilidade:
[...] os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são
direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos
poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem
de uma vez por todas.34
Nos casos em que o direito ao esquecimento é invocado, o que hoje ocorre
é justamente uma relação entre o caso concreto e uma harmonização por parte
dos julgadores dos princípios constitucionais aplicáveis na espécie. Levando-se
em consideração a ponderação de princípios e as normas de proporcionalidade e
razoabilidade, nos ensinamentos de Robert Alexy:35
[...] A teoria dos princípios pode se alinhar quase que automaticamente a essas considerações gerais sobre a estrutura da discricionariedade cognitiva. Direitos fundamentais, compreendidos como
princípios, exigem uma realização máxima diante das condições
fáticas e jurídicas presentes. Reconhecer ao legislador uma discricionariedade cognitiva de tipo empírico significa a possibilidade
de se admitir que, diante das possibilidades fáticas presentes,
esses direitos não sejam realizados na extensão do que seria possível. Diante disso, o princípio de direito fundamental afetado negativamente exige, enquanto mandamento de otimização, que não seja
reconhecida nenhuma discricionariedade cognitiva. Se esse fosse o
único fato relevante, um direito fundamental só poderia ser restringido em virtude de premissas empíricas cuja veracidade fosse certa.
34
35
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 5.
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo:
Malheiros, 2009. p. 614-615.
Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020
287
GERMANO SCHWARTZ, CLARISSA PEREIRA CARELLO
Se essa veracidade não puder ser comprovada, seria autorizado
partir apenas das premissas empíricas que forem mais vantajosas ao
direito fundamental, que são aquelas sobre cuja base a intervenção
ou a não-garantia de proteção não tem como ser justificada. [...]
Diante disso, apreende-se que os conflitos principiológicos decorrentes do
direito ao esquecimento aliam-se à igual dificuldade de estabelecer o que deve ser
lembrado e o que deve ser esquecido. Quando se trata de questões envolvendo
os registros civis de pessoas trans, o que se busca é o esquecimento de forma
definitiva do gênero a que não pertence aquela pessoa, pois, cotidianamente, sem
a retificação de seus registros, são-lhe impostas lembranças do que foi registrado
e que não possui significado.
5 Considerações finais
A mudança de registro das pessoas transgênero tem sido reconhecida pelo
Poder Judiciário como forma de garantir a dignidade da pessoa humana e de
proteção aos direitos da personalidade de cada indivíduo conforme assegurado na
Constituição Federal brasileira. Todavia, a possibilidade de “apagar” os registros
do passado não encontra regulamentação específica para as pessoas trans e
pode usar por analogia as disposições recentes sobre o direito ao esquecimento.
Quando se aborda essa temática, a memória de algo passado trazido para o
tempo presente perturba. A incerteza do que uma imagem, um escrito ou um áudio
representa no presente e venha influenciar no futuro faz com que as pessoas
busquem a tutela de seus direitos à privacidade perante o Poder Judiciário, em
termos semelhantes ao que ocorre nos pleitos relativos ao gênero. Na doutrina
de François Ost:
o direito ao esquecimento, consagrado pela jurisprudência, surge
mais claramente como uma das múltiplas facetas do direito a respeito da vida privada. Uma vez que, personagem pública ou não, fomos
lançados diante da cena e colocados sob os projetores da atualidade – muitas vezes é preciso dizer, uma atualidade penal – temos o
direito, depois de determinado tempo, a sermos deixados em paz e
a recair no esquecimento e no anonimato, do qual jamais queríamos
ter saído.36
36
OST, François. O tempo do direito. Tradução de Élcio Fernandes. Bauru: Edusc, 2005. p. 160-161.
288
Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020
O DIREITO AO “ESQUECIMENTO” E PESSOAS TRANSGÊNERO: APAGANDO O PASSADO?
Não se trata, portanto, de um novo direito, mas sim de uma das vertentes
do direito à privacidade. Vale referir que pleitear o esquecimento de determinado
fato da vida pregressa não significa que a pessoa deseje reescrever sua própria
história, excluindo o que lhe desagrada, por exemplo. O ponto central é a relevância das informações postas à disposição de um contingente imensurável
de usuários das redes de computadores e a falta de regulação desses dados.
Aproximando a temática dos transgêneros e a sua – necessária – retificação de
registro, mesmo sem a submissão a procedimentos cirúrgicos e terapêuticos,
pode-se pensar que o esquecimento de dados pretéritos venha ferir o princípio
da boa-fé. Porém, há de se ter em mente que as pessoas trans, ao buscarem
a retificação de seus registros, apresentam prova documental que atesta seus
antecedentes, acostando certidões negativas – ou mesmo positivas com efeito de
negativas de todos os órgãos. Esse ato por si só demonstra que o interesse na
retificação do registro está muito mais atrelado aos direitos da personalidade do
que dolo ou má-fé.
Diferentemente do que ocorre em programas de proteção de testemunha, as
pessoas trans mantêm o mesmo sobrenome e números de identificação – registro
geral (RG), cadastro de pessoa física (CPF), carteira de trabalho e previdência
social (CTPS), entre outros. Ou seja, não se trata de outra pessoa, mas da mesma
sob o ponto de vista de identificação, mas com o nome adequado ao gênero com
o que se identifica.
Há de se reconhecer que a memória individual pode persistir, e informações
serem lembradas com exatidão, mas a quem mais esses dados que a memória
traz à tona interessam? Reforça-se, aqui, que não se pode defender a censura ou o
cerceamento de dados, mas sim a possibilidade daqueles que não se identificam
com o gênero que foi registrado de alterarem essa condição, inclusive como forma
de inclusão. Refira-se que se houvesse lei regulamentando e reconhecendo os
direitos das pessoas transgênero no Brasil diminuiria sobremaneira as situações
constrangedoras às quais essas pessoas são submetidas.
Nessa mesma ótica, o direito ao esquecimento no Brasil sofreu repercussões a partir da Decisão nº 131/12 da Corte da União Europeia. No entanto, não
se vislumbra uma iniciativa que viabilize o simples pedido de exclusão de dados
dos buscadores pelos cidadãos de países estranhos à União Europeia.
O conflito entre o que deve – ou pode – ser público e o que deve – ou pode –
ser privado permanece, seja analisando o esquecimento na perspectiva das mídias
e das grandes empresas que utilizam/disponibilizam dados sem autorização, seja
sobre as pessoas trans e a possibilidade de retificação de seus registros. Enfim,
o que se constata é a necessária proteção à privacidade, à honra e à intimidade
que ambos os temas possuem e sobre a qual merecem guarida.
Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020
289
GERMANO SCHWARTZ, CLARISSA PEREIRA CARELLO
the right to “forgetfulness” and transgender people: erasing the past?
abstract: The purpose of this article is to demonstrate the possibility of transgender people using the
right to be forgotten in Brazilian courts. Based on this objective, the methodology used was based on
the analysis of decisions of the Superior Court of Justice (STJ) and the Supreme Federal Court (STF) and
the existing doctrine regarding the subject. The result of the research reinforces the possibility that, in
Brazil, transgender people may invoke the right to forgetfulness, especially in cases of change of name
and gender in the civil registry.
Keywords: Right to forgetfulness. Transgender. Rights of the personality. Memory. Registration
rectification.
Contents: 1 Introduction – 2 The Right to Forgetfulness: origin and national and international precedents
– 3 The Transgender Person and their records: possible forgetfulness – 4 Changing Civil Registry by
Gender Identity and the Forgetfulness in the Perspective of Personality Law – 5 Final Considerations
– References
referências
‘LEI do direito de ser esquecido’ provoca remoção de verbete da Wikipédia. O Globo, 4 ago. 2014.
Disponível em: http://oglobo.globo.com/sociedade/tecnologia/lei-do-direito-de-ser-esquecido-provocaremocao-de-verbete-da-wikipedia-13488536#ixzz39VInUZBg.
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo:
Malheiros, 2009.
ÁVILA, Simone; GROSSI, Miriam Pillar. Transexualidade e movimento transgênero na perspectiva da
diáspora queer. In: CONGRESSO DA ASSOCIAçÃO BRASILEIRA DE ESTUDOS DA HOMOCULTURA,
5. 2010. Anais eletrônicos... Natal: ABEH, 2010.
BENTO, Berenice. Nome social para pessoas trans: cidadania precária e gambiarra legal. Contemporânea,
v. 4, n. 1, p. 165-182, jan./jun. 2014.
BERTI, Silma Mendes. Direito à própria imagem. Belo Horizonte: Del Rey, 1993.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
BRASIL. Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal. VI Jornada de Direito Civil.
Enunciado n. 531. A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito
ao esquecimento. Coordenador Geral Ruy Rosado de Aguiar Júnior. Brasília, 12 mar. 2013. Disponível
em: http://www.cjf.jus.br.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.334.097/RJ. Recorrente Globo Comunicações
e Participações S/A e Recorrido Jurandir Gomes de França. Relator Ministro Luis Felipe Salomão. Brasília,
10 de setembro de 2013. Disponível em: http://www.stj.jus.br.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.335.153-RJ. Quarta Turma do Superior
Tribunal de Justiça. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Brasília, p. 48, 28 maio 2013. Disponível
em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=12
37428&num_registro=201100574280&data=20130910&formato=PDF.
290
Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020
O DIREITO AO “ESQUECIMENTO” E PESSOAS TRANSGÊNERO: APAGANDO O PASSADO?
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 1.010.606/RJ. Repercussão Geral. Tema
786. Direito ao Esquecimento. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/
listarProcesso.asp?PesquisaEm=tema&PesquisaEm=controversia&PesquisaEm=ambos&situacaoRG=
TODAS&situacaoAtual=S&txtTituloTema=&numeroTemaInicial=&numeroTemaFinal=&acao=pesquisarP
rocesso&dataInicialJulgPV=&dataFinalJulgPV=&classeProcesso=RE&numeroProcesso=1010606&mini
stro=&txtRamoDireito=&ordenacao=asc&botao=.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. STF reafirma direito de transgêneros de alterar registro civil sem
mudança de sexo. Notícias STF, Brasília, 15 ago. 2018. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/
cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=3869309.
BUTLER, Judith. Desdiagnosticando o gênero. Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, ed.
19, p. 95-126, 2009.
CACHAPUZ, Maria Cláudia. Intimidade e vida privada no novo Código Civil brasileiro: uma leitura orientada
no discurso jurídico. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2006.
CARELLO, Clarissa Pereira. Direito ao esquecimento parâmetros jurisprudenciais. Porto Alegre: Prismas,
2017.
CAROLINE de Mônaco perde processo contra Alemanha. Exame, 7 fev. 2012. Disponível em: http://
exame.abril.com.br/estilo-de-vida/noticias/caroline-de-monaco-perde-processo-contra-alemanha.
DOTTI, René Ariel. Proteção da vida privada e liberdade de informação. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1980.
ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Corte de Apelação do Quarto Distrito do Estado da Califórnia. Apelação.
Apelante Gabrielle Darley Melvin e Apelada Dorothy Davenport Reid. Relator John Bernard Marks. 28 de
fevereiro de 1931. Disponível em: http://https://casetext.com/case/melvin-v-reid.
OST, François. O tempo do direito. Tradução de Élcio Fernandes. Bauru: Edusc, 2005.
RIBEIRO, Diógenes V. Hassan. Proteção da privacidade. São Leopoldo: Unisinos, 2003.
RODRIGUES JÚNIOR, Otávio Luiz. Não há tendências na proteção do direito ao esquecimento. Conjur,
25 dez. 2013. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-dez-25/direito-comparado-nao-tendenciasprotecao-direito-esquecimento#author.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais
na perspectiva constitucional. 10. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal
de 1988: uma análise na perspectiva da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. In: LEITE, George
Salomão; SARLET, Ingo Wolfgang; CARBONELL, Miguel (Org.). Direitos, deveres e garantias fundamentais.
Salvador: JusPodivm, 2011.
SCHWAB, Jürgen. Cinquenta anos de jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão. Tradução
de Beatriz Hening et al. Montevidéu: Konrad Adenauer – Stiftung, 2005.
SCHWARTZ, Germano. O humano e os humanos nos direitos humanos. Animais, Pacha Mama e altas
tecnologias. In: SCHWARTZ, Germano (Org.). Juridicização das esferas sociais e fragmentação do direito
na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.
SOOCT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Disponível em: https://archive.
org/details/scott_gender. Acesso em: 13 de nov. 2015.
TRIBUNAL DE JUSTIçA DA UNIÃO EUROPEIA. Advocate General Jääskinen considers that search engine
service providers are not responsible, on the basis of the Data Protection Directive, for personal data
Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020
291
GERMANO SCHWARTZ, CLARISSA PEREIRA CARELLO
appearing on web pages they process. Luxembourg, 25 June 2013. Disponível em: http://curia.europa.
eu/jcms/upload/docs/application/pdf/2013-06/cp130077en.pdf.
TRIBUNAL europeu decide a favor do “direito de ser esquecido” no Google. UOL, 13 maio 2014.
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2014/05/1453527-tribunal-europeu-decide-afavor-do-direito-de-ser-esquecido-no-google.shtml.
WEINGARTNER NETO, Jayme. Honra, privacidade e liberdade de imprensa: uma pauta de justificação
penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.
ZAMBRANO, Elisabeth. Trocando os documentos: um estudo antropológico sobre a cirurgia de troca de
sexo. Disponível em: http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/3693.
Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2018 da Associação
Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):
SCHWARTZ, Germano; CARELLO, Clarissa Pereira. O direito ao “esquecimento”
e pessoas transgênero: apagando o passado?. Direitos Fundamentais & Justiça,
Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020.
Recebido em: 17.04.2019
Pareceres: 22.04.2019, 03.05.2019, 26.03.2020
Aprovado em: 13.04.2020
292
Direitos Fundamentais & Justiça | Belo Horizonte, ano 14, n. 42, p. 269-292, jan./jun. 2020