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EDUCACAO BRASILEIRA NO SECULO XXI

EDUCAÇÃO BRASILEIRA NO SÉCULO XXI Entre a‭ ‬Cultura do‭ ‬Medo e a Busca da‭ ‬Liberdade‭ Valdemar Sguissardi João dos Reis Silva Jr Ufscar A história recente do Brasil,‭ ‬e da educação brasileira em particular,‭ ‬é permeada por continuidades,‭ ‬descontinuidades ou rupturas decorrentes das mudanças na economia,‭ ‬na estrutura do Estado,‭ ‬na sociedade civil e na constituição da cidadania.‭ ‬Muitas reformas institucionais ocorreram desde os anos‭ ‬1950‭ ‬até o primeiro lustro deste século.‭ ‬Tendo em geral origem no Estado,‭ ‬buscaram mudar os processos de construção da sociabilidade humana,‭ ‬visando adequá-la à forma assumida pelo país em cada tempo histórico,‭ ‬para o que tem concorrido de forma específica a educação.‭ O golpe militar de‭ ‬1964‭ ‬concretizou-se como resultado da contradição entre o econômico e o político‭; ‬contradição entre um processo sócio-econômico que buscava a internacionalização da economia brasileira e uma ideologia nacionalista da maioria da classe política,‭ ‬isto é,‭ ‬de parte do Partido Social Democrático‭ (‬PSD‭)‬ e o Partido Trabalhista Brasileiro‭ (‬PTB‭)‬.‭ ‬O golpe significou,‭ ‬portanto,‭ ‬uma ruptura política‭ ‬na continuidade sócio-econômica,‭ ‬ao impor,‭ ‬por processos coercitivos,‭ ‬drásticas e profundas modificações nas estruturas sociais,‭ ‬visando também atingir transformações nas superestruturas do país. Nesse contexto,‭ ‬no plano educacional,‭ ‬o governo militar-autoritário,‭ ‬sob pressão social,‭ ‬intentou aumentar a‭ “‬produtividade‭” ‬das escolas públicas com a adoção de princípios administrativos empresariais,‭ ‬além de,‭ ‬desde o início,‭ ‬conduzir a uma gradativa privatização da educação.‭ ‬Dão clara demonstração disto os decretos-lei editados pelo Governo militar de turno.‭ ‬No caso da educação superior,‭ ‬os Decretos-lei‭ ‬53/66‭ (‬este que fixa princípios e normas para as universidades federais‭) ‬e‭ ‬252/67‭ (‬que estabelece normas complementares ao Decreto-lei‭ ‬nº‭ ‬53/66‭)‬,‭ ‬bem como os diversos acordos firmados entre o Ministério da Educação e Cultura e a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional‭ (‬USAID‭)‬,‭ ‬que supervisionou e financiou parcialmente a economia brasileira nos primeiros governos militares.‭ ‬Nesse contexto e disso decorreram‭ ‬em grande medida‭ ‬a denominada reforma universitária de‭ ‬1968‭ (‬Lei‭ ‬5.540‭)‬e a reforma do ensino de‭ ‬1.º e‭ ‬2.º graus em‭ ‬1971‭ (‬Lei‭ ‬5.692‭)‬.‭ ‬Os anos que se seguiram foram marcados por profunda reorganização do campo educacional no país,‭ ‬na direção de uma determinada sociabilidade do cidadão brasileiro,‭ ‬como tantos estudos já o‭ ‬demonstraram. No entanto,‭ ‬o projeto de‭ “‬Brasil Potência‭”‬,‭ ‬expresso no projeto político-militar para o país,‭ ‬mostrou logo seus limites,‭ ‬quando as conseqüências da grande crise da social-democracia,‭ ‬especialmente européia,‭ ‬e do nacional-desenvolvimentismo,‭ ‬na América Latina,‭ ‬aportaram ao Brasil,‭ ‬associadas à ausência de poupança nacional,‭ ‬provocando o crepúsculo do milagre econômico e conduzindo à iminência de uma crise social sem precedentes.‭ ‬Com a redemocratização dos anos‭ ‬1980,‭ ‬essa crise foi politizada no processo de transição do poder político das mãos dos militares para as dos civis‭; ‬de um regime ditatorial para uma‭ ‬quase-democracia. A contradição,‭ ‬entre,‭ ‬de um lado,‭ ‬um profundo déficit social e produtivo,‭ ‬e,‭ ‬de outro,‭ ‬a redemocratização do poder,‭ ‬produziu a politização da crise econômica.‭ ‬Esse movimento enfraqueceu os movimentos sociais e as instituições e organizações políticas de mediação entre o Estado e a sociedade civil,‭ ‬possibilitando o ajuste socioeconômico e político do início dos anos noventa,‭ ‬visto como necessário para superação da crise capitalista gestada no âmbito da social-democracia predominante no século‭ ‬xx,‭ ‬ajuste que se fez presente primeiro no Chile e,‭ ‬em seguida,‭ ‬em alguns países da Europa,‭ ‬nos Estados Unidos e em outros países da América Latina. Tal ajuste provoca radicais transformações nas formas de produção da vida humana em todas as suas dimensões,‭ ‬em razão da própria racionalidade da formação econômico-social capitalista.‭ ‬A base produtiva altera-se de forma significativa por meio do desenvolvimento científico.‭ ‬A economia,‭ ‬em sua dimensão micro,‭ ‬reestrutura-se em face de seu próprio movimento e do ocorrido com a mundialização no âmbito macro,‭ ‬transformando de forma radical as relações entre as grandes corporações,‭ ‬bem como o seu paradigma organizacional e de gestão.‭ ‬No âmbito político,‭ ‬a esfera pública,‭ ‬primeiro,‭ ‬restringe-se e desregulamenta-se,‭ ‬para,‭ ‬em seguida,‭ ‬regulamentar-se novamente e,‭ ‬assim,‭ ‬possibilitar a expansão da esfera privada,‭ ‬em movimento com origem no Estado,‭ ‬mediante reformas estruturais orientadas por teorias gerenciais próprias do mundo dos negócios,‭ ‬ao invés de por teorias políticas relacionadas à cidadania,‭ ‬ainda que calcadas na concepção liberal. Nesta nova etapa histórica,‭ ‬a ciência,‭ ‬a tecnologia e a informação,‭ ‬de que se servia o capital de forma subsidiária em fases anteriores,‭ ‬tornam-se suas forças produtivas centrais,‭ ‬desenvolvidas sob seu monopólio.‭ ‬O dinheiro converte-se no principal móvel econômico em razão do modo de reprodução ampliada do capital,‭ ‬concretizado pelo sistema financeiro via mundialização do mercado.‭ ‬As corporações transnacionais,‭ ‬escudadas em organizações financeiras como o Fundo Monetário Internacional,‭ ‬o Banco Interamericano de Desenvolvimento,‭ ‬o Banco Mundial,‭ ‬etc,‭ ‬assumem,‭ ‬articulados com os governos dos países centrais,‭ ‬o centro do poder mundial em detrimento dos anseios da sociedade civil que supostamente se expressariam no Estado Nacional.‭ ‬Decorrências e componentes estruturais dessa nova fase,‭ ‬adquirem dimensão cada vez mais ampla o desemprego,‭ ‬a desestatização/privatização do Estado‭ (‬a mercantilização da democracia liberal‭) ‬e a terceirização da economia,‭ ‬legitimados pelas concepções ultraliberais,‭ ‬provocando intenso processo de mercantilização de espaços sociais,‭ ‬especialmente,‭ ‬no caso,‭ ‬os da educação.‭ ‬Este processo de mercantilização provoca densas mudanças no‭ ‬ethos das instituições educacionais mediante novas relações com a sociedade e reformas educacionais assentadas no trabalho abstrato,‭ ‬próprio dessa nova forma histórica do capitalismo mundial e brasileiro,‭ ‬isto é,‭ ‬tendo-o como eixo central de sua estruturação e organização.‭ ‬Nesse momento as relações entre capital e trabalho tendem a conformar um campo novo para a esfera educacional.‭ ‬Diante da materialidade desse quadro,‭ ‬os trabalhadores são induzidos a assumir,‭ ‬por meio da educação,‭ ‬uma postura de permanente busca por capacitação continuada para torná-los reempregáveis.‭ ‬Suas qualidades subjetivas,‭ ‬devem entendê-las como mercadorias,‭ ‬algo objetivo a ser adquirido como condição de sua empregabilidade numa sociedade cada vez mais sem emprego,‭ ‬situação resultante da ruptura da racionalidade histórica do momento brasileiro que finda.‭ ‬Trata-se,‭ ‬pois,‭ ‬da incorporação do perverso processo de culpabilização do trabalhador em face de seu eventual fracasso no mercado de trabalho. Como se pode observar,‭ ‬a partir da segunda metade da década de‭ ‬1990,‭ ‬vários traços culturais que fundam as relações sociais brasileiras repõem-se sob nova forma histórica.‭ ‬O viés tecnicista da educação brasileira,‭ ‬como meio eficaz para o desenvolvimento,‭ ‬atualiza-se num pacto social entre antagônicos e sob a égide de um governo central pragmático,‭ ‬popular e democrático,‭ ‬ao invés de sob os ditames autoritários da finda ditadura militar.‭ ‬Ilustração disto é a descontinuidade dos movimentos sociais que reivindicavam políticas públicas para o atendimento do déficit social e produtivo da década de‭ ‬1980,‭ ‬quando,‭ ‬hoje,‭ ‬organizações não governamentais reivindicam,‭ ‬com recursos públicos ou não,‭ ‬nacionais ou estrangeiros,‭ ‬o que antes era considerado direito social subjetivo do cidadão.‭ ‬A qualificação e a formação profissionais são um exemplo bem acabado dessa ruptura.‭ ‬A Central Única dos Trabalhadores,‭ ‬por exemplo,‭ ‬faz uso de forma intensiva,‭ ‬para esse fim,‭ ‬das verbas do‭ ‬Fundo de Amparo ao Trabalhador‭ ‬(FAT‭); ‬também o fazem‭ ‬organizações não governamentais como a‭ ‬Unitrabalho.‭ ‬Trata-se,‭ ‬no momento atual,‭ ‬de uma realidade muito complexa constituída por condensação de múltiplas realidades históricas,‭ ‬portanto,‭ ‬de difícil apreensão.‭ ‬No campo da política,‭ ‬as políticas públicas para o social,‭ ‬com destaque para a educação,‭ ‬outrora de demanda da sociedade civil,‭ ‬tornaram-se políticas de oferta assentadas num orçamento orientado pelas agências multilaterais e por um Congresso Nacional fisiológico,‭ ‬fato possível dada a reforma do Estado e os fatores anteriormente delineados.‭ ‬A forma histórica atual do capitalismo‭ ‬no Brasil produziu uma regulação social que busca a‭ “‬nova institucionalidade‭” ‬assentada na busca do consenso entre antagônicos por meio de política de negociação submetida à política econômica assumida desde o início dos anos‭ ‬1990. Em acréscimo,‭ ‬vale destacar que a economia tem experimentado avanços significativos que,‭ ‬contraditoriamente,‭ ‬se‭ ‬contrapõem com a pobreza da população e com o descaso‭ ‬oficial‭ ‬com as políticas sociais.‭ ‬Intelectuais conservadores atuam‭ ‬agressivamente tirando partido desta contradição‭ ‬e produzem a‭ ‬cultura do medo.‭ ‬Medo de um endurecimento do regime político no país,‭ ‬reiterável na América Latina,‭ ‬que seria realizado por políticos‭ ‬oportunistas num quadro de ausência de‭ ‬densidade histórica partidária mas‭ ‬na presença‭ ‬de um fazer político‭ ‬prenhe de patrimonialismo‭ ‬revitalizado‭ ‬sob novas formas históricas. Trata-se,‭ ‬pois,‭ ‬de momento histórico crucial.‭ ‬Cenário de uma verdadeira ditadura dos símbolos,‭ ‬do presente e do aparente,‭ ‬que obscurece‭ ‬a visão e o entendimento da realidade social,‭ ‬quando,‭ ‬para usar célebre‭ ‬expressão,‭ ‬o vício faz falso elogio‭ ‬da virtude para perpetuar-se.‭ ‬Em outros termos,‭ ‬quando a forma como se apresenta a realidade,‭ ‬diante da força brutal do capital sobre o trabalho,‭ ‬dispensa mediações ideológicas.‭ ‬Despe-se a realidade‭ ‬e mostra sua‭ ‬incômoda nudez.‭ ‬Na aparência tudo parece mover-se para que o todo permaneça aparentemente estático diante do esforço humano de sobrevivência.‭ ‬A objetividade social produzida historicamente pelo homem apresenta-se como uma segunda natureza,‭ ‬tal o seu nível de fragmentação e aparente virtualidade.‭ ‬Ilude,‭ ‬assim,‭ ‬quem a produz e a reproduz e por ela é produzido e reproduzido.‭ ‬Esta ilusão constitui-se na exata naturalização do que existe de mais cruel,‭ ‬objetivo e histórico:‭ ‬a forma fenomênica do capitalismo contemporâneo não percebida na produção histórica e cotidiana do ser humano.‭ ‬A cotidianidade é marcada pela heterogeneidade,‭ ‬fragmentação e imediaticidade,‭ ‬isto é,‭ ‬a‭ ‬pela‭ ‬necessidade de o ser humano dar respostas automáticas‭ – ‬sem reflexão sobre o meio em que vive‭ – ‬para suas necessidades,‭ ‬o que‭ ‬conduz,‭ ‬no universo do cotidiano,‭ ‬a grande maioria da sociedade a ver mundo por meio do superficial e aparente,‭ ‬tendo,‭ ‬como critério de verdade,‭ ‬a‭ ‬potência de verdade produzida pelo conhecimento,‭ ‬e,‭ ‬como epicentro de sua moral,‭ ‬a utilidade ao invés da história‭ (‬Nietzsche‭)‬. Nesse contexto,‭ ‬se observado‭ ‬o campo das políticas de educação nos últimos dez anos e a trajetória unilinear da economia e das políticas sociais,‭ ‬que se desenvolvem ancoradas nos princípios básicos acima delineados,‭ ‬verificam-se muito mais continuidades do que rupturas.‭ ‬O novo,‭ ‬por ora,‭ ‬está muito mais no plano do idealizado e expresso em dois instrumentos legais,‭ ‬em tramitação no Congresso Nacional,‭ ‬do que‭ ‬revelado‭ ‬por políticas efetivas.‭ ‬O primeiro‭ – ‬uma Proposta de Emenda Constitucional‭ (‬PEC‭) ‬regulamentando o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização do Magistério‭ (‬FUNDEB‭) – ‬que pretende estender para a educação básica‭ (‬educação infantil,‭ ‬ensinos fundamental e médio‭) ‬as diretrizes,‭ ‬coordenadas e ações que até hoje,‭ ‬desde‭ ‬1996‭ (‬EC‭ ‬14/96‭; ‬Lei‭ ‬9.424/96‭ ‬e Decreto n.‭ ‬2.264/97‭)‬,‭ ‬estavam restritas ao ensino fundamental‭ – ‬Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério‭ (‬FUNDEF‭)‬.‭ ‬O segundo,‭ ‬no formato de uma Lei da Reforma da Educação Superior,‭ ‬que pretende estabelecer normas gerais para a educação superior no país,‭ ‬regular a educação superior no sistema federal de ensino,‭ ‬alterando a Lei no‭ ‬5.540/68‭ ‬e um conjunto de outras leis complementares atinentes à educação e à educação superior. Como é evidente,‭ ‬nenhuma PEC ou Lei comporta toda a‭ “‬reforma‭” ‬ou toda a‭ “‬política‭” ‬pública em andamento no campo da educação ou de qualquer outra área específica das políticas sociais públicas.‭ ‬O alcance e os limites do FUNDEB são decorrências das políticas e práticas educacionais dos últimos anos,‭ ‬que podem se contar em décadas,‭ ‬embora predominem as mais recentes.‭ ‬São as contradições da economia e da sociabilidade constituída sob o domínio do capital,‭ ‬com sua face contemporânea,‭ ‬que condicionam o essencial das políticas e práticas educacionais constitutivas da‭ “‬reforma‭” ‬em curso.‭ Dentre os aspectos mais importantes das práticas educativas no país,‭ ‬hoje,‭ ‬cabe aqui destacar um,‭ ‬que tem sido marca essencial da reforma do Estado,‭ ‬patrocinada pelo governo de Fernando H.‭ ‬Cardoso‭ (‬FHC‭) ‬desde‭ ‬1995,‭ ‬isto é,‭ ‬a dimensão gerencial que deveria presidir essa reforma do aparelho estatal e que se estende à administração e gestão da educação básica e das escolas públicas.‭ ‬Além da administração do aparelho do Estado e das políticas públicas em moldes empresariais,‭ ‬dissemina-se e fortalece-se,‭ ‬a cada dia mais,‭ ‬a tese de que a educação,‭ ‬em especial a superior,‭ ‬é um bem de serviço privado,‭ ‬muito mais que público,‭ ‬cujas agências deveriam ser geridas sob os princípios da administração gerencial.‭ ‬É a lógica do capital,‭ ‬que se funda também na idéia de que os bens privados se produzem e reproduzem ao impulso da competição ou competitividade,‭ ‬que vai se impondo gradativa e celeremente nos domínios da educação e do saber,‭ ‬agora muito mais valorizados que outrora como importante mercadoria ou quase-mercadoria dos novos modos de acumulação. A proposta de nova lei da reforma da educação superior,‭ ‬que,‭ ‬rompendo com a‭ ‬continuidade das políticas anteriores,‭ ‬visaria o fortalecimento do setor público‭ – ‬efetivação da autonomia,‭ ‬garantia de financiamento para prover as necessidades correntes e de expansão,‭ ‬ampliação do percentual de matrículas até‭ ‬40%‭ ‬do total,‭ ‬etc‭ – ‬e regulação e controle do setor privado‭ – ‬contenção da expansão em especial das privadas comerciais,‭ ‬aumento significativo das exigências de qualificação e vinculação integral do corpo discente,‭ ‬etc.‭ – ‬está condicionada por muitos fatores.‭ ‬Antes de tudo,‭ ‬pelo modelo de desenvolvimento,‭ ‬pelas características da macro-economia,‭ ‬que dão continuidade aos ajustes ultraliberais promovidos desde o Governo Collor de Mello e consolidados no octênio de FHC.‭ ‬Este modelo faz das políticas sociais compromissos estatais de segunda ordem.‭ ‬Neste sentido,‭ ‬os recursos orçamentários a elas destinados não poderiam pôr em risco as diretrizes básicas garantidoras da dita governabilidade do país,‭ ‬no contexto da mundialização do capital e da crescente subalternização nacional ao capitalismo financeiro internacional.‭ ‬A prioridade número‭ ‬1‭ ‬é o pagamento do serviço da dívida externa,‭ ‬garantido por exorbitantes índices estabelecidos de superávit primário,‭ ‬entre outras medidas.‭ ‬Como acreditar,‭ ‬pois,‭ ‬que seja aprovado,‭ ‬primeiro no Congresso Nacional,‭ ‬depois sancionado pela presidência da República,‭ ‬ouvida a área financeira,‭ ‬uma proposta de financiamento,‭ ‬por exemplo,‭ ‬que cubra as necessidades atuais,‭ ‬que recupere o déficit dos dez anos anteriores,‭ ‬e que garanta a expansão do setor público‭ ‬da educação superior‭ ‬até que esse atinja‭ ‬40%‭ ‬do total de matrículas‭? A proposta de lei de reforma da educação superior está condicionada pela legislação anterior que regulamentou,‭ ‬via decretos e portarias,‭ ‬no governo anterior,‭ ‬aspectos essenciais da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional‭ (‬Lei‭ ‬9394/96‭)‬.‭ ‬Mas o que é necessário mais enfatizar é que os condicionantes maiores e mais imediatos decorrem de legislação aprovada durante os dois primeiros anos do atual mandato presidencial.‭ Dentre os instrumentos legais aprovados sob a atual administração federal,‭ ‬além da aprovação do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior,‭ ‬substituindo ao Exame Nacional de Cursos‭ – ‬Provão‭ –‬,‭ ‬que ainda se encontra em fase de teste e sob críticas importantes quanto a seu efetivo respeito à autonomia universitária e mesmo quanto a sua eficiência,‭ ‬devem ser mencionadas três outras leis que afetam direta ou indiretamente o subsistema de educação superior e condicionam a nova lei da reforma universitária. A primeira delas é a Lei‭ ‬10.973‭ (‬Lei de Inovação Tecnológica‭)‬,‭ ‬de‭ ‬02‭ ‬de dezembro de‭ ‬2004,‭ ‬que dispõe sobre incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo.‭ ‬Esta lei cria incentivos e facilidades para a utilização dos recursos‭ – ‬físicos,‭ ‬materiais e humanos‭ – ‬das universidades pelas empresas.‭ ‬Permite a transferência de tecnologia desenvolvida nas universidades para as empresas.‭ ‬Viabiliza a alocação de recursos públicos para empresas nos projetos ditos de inovação.‭ ‬Prevê a gratificação dos pesquisadores cujos conhecimentos venham a ser utilizados por empresas.‭ ‬Considerada a extremamente baixa remuneração salarial dos docentes/pesquisadores das instituições de ensino superior públicas,‭ ‬prevê-se uma importante interferência exógena na agenda universitária,‭ ‬contribuindo para acentuar os traços,‭ ‬a cada dia mais evidentes,‭ ‬da heteronomia na vida universitária em lugar da autonomia constitucional,‭ ‬esta jamais de fato efetivada. A segunda é a Lei‭ ‬11.079,‭ ‬de‭ ‬30‭ ‬de dezembro de‭ ‬2004,‭ ‬que institui normas gerais para licitação e contratação de Parceria Público-Privada‭ (‬PPP‭) ‬no âmbito da administração pública.‭ ‬Esta lei estabelece e possibilita‭ ‬a parceria do Estado com empresas privadas nas mais diferentes áreas da produção,‭ ‬comércio de bens e serviços de natureza pública e coletiva,‭ ‬isto é,‭ ‬pesquisa,‭ ‬desenvolvimento tecnológico,‭ ‬meio ambiente,‭ ‬patrimônio histórico e cultural,‭ ‬incluindo serviços de educação e ensino.‭ ‬O pressuposto a justificar a instituição das PPP seria,‭ ‬por um lado,‭ ‬a baixa capacidade de investimento estatal,‭ ‬por outro,‭ ‬a suposta superioridade gerencial privada.‭ ‬É evidente que a implementação das PPP irá fortalecer o pólo privado do Estado,‭ ‬uma vez que os recursos do Fundo Público estarão sendo gerenciados‭ – ‬constituindo natural fonte de lucro e apropriação‭ – ‬por entidades e organizações privadas,‭ ‬com ou sem fins lucrativos.‭ Por último é a Lei‭ ‬11.096,‭ ‬de‭ ‬13‭ ‬de janeiro de‭ ‬2005,‭ ‬que institui o Programa Universidade para Todos‭ – ‬ProUni‭ – ‬e regula a atuação de entidades beneficentes de assistência social no ensino superior.‭ ‬Com esta lei,‭ ‬a pretexto de‭ “‬publicização‭” ‬do privado e numa aplicação‭ ‬lato sensu‭ ‬do espírito das PPP no campo do ensino superior,‭ ‬fortalecem-se as instituições privadas comerciais de ensino,‭ ‬exatamente no sentido oposto do que pretenderia,‭ ‬como um de seus objetivos nucleares,‭ ‬a nova lei da reforma da educação superior encaminhada pelo Poder Executivo à discussão do Congresso Nacional.‭ “‬Ao invés da criação de centenas de milhares de vagas nas universidades públicas,‭ ‬para o que já existiria espaço físico no período noturno‭ (‬70%‭ ‬das matrículas são diurnas‭)‬,‭ ‬a baixo custo e razoável qualidade,‭ ‬aprovou-se a possibilidade de troca de cerca de‭ ‬10%‭ ‬das vagas das instituições privadas ou‭ ‬8,5%‭ ‬da receita bruta,‭ ‬na forma de bolsas para alunos egressos de escolas públicas,‭ ‬entre outros,‭ ‬em troca de isenção de um conjunto de impostos‭”‬.‭ Dada a força que os‭ ‬lobbies da educação mercantilizada possuem no Congresso Nacional e que recentemente se manifestou com rara eficiência na reconfiguração da proposta governamental relativa ao ProUni,‭ ‬é de prever-se que não apenas a legislação em vigor seja um empecilho à plena eficácia da nova lei,‭ ‬caso seja aprovada como foi encaminhada ao Congresso,‭ ‬mas principalmente o serão as mudanças que ali,‭ ‬na suposta casa do povo,‭ ‬poderá sofrer a proposta original. Retomando,‭ ‬para fecho dessas reflexões,‭ ‬o mote da‭ ‬cultura do medo,‭ ‬que decorre da exploração‭ ‬reacionária das contradições geradas no confronto dos avanços da economia com o recrudescer da pobreza,‭ ‬da miséria e da exclusão,‭ ‬pode-se afirmar que essa cultura‭ ‬ -‭ ‬que se‭ ‬estampa‭ ‬no cenário sócio-econômico deste país‭ ‬-‭ ‬encontra um lugar institucionalmente organizado pelas reformas educacionais para‭ ‬sua mais eficiente‭ ‬difusão.‭ ‬Encontra nas reformas um espaço que lhe possibilita tornar-se,‭ ‬por um lado,‭ ‬a melhor estratégia para a ofensiva‭ ‬neoconservadora,‭ ‬e,‭ ‬por outro,‭ ‬o embrião da perspectiva educacional para o século XXI que,‭ ‬em termos mais precisos,‭ ‬deverá‭ ‬conduzir à formação de seres humanos‭ ‬tendencialmente‭ ‬solitários,‭ ‬mudos,‭ ‬amedrontados,‭ ‬úteis...‭ ‬e‭ ‬desumanamente‭ ‬sem liberdade.‭ ‬Diante dessa perspectiva para o novo século,‭ ‬parece não restar mais que a‭ ‬ indignação‭ ‬e a resistência,‭ ‬que,‭ ‬na cotidianidade,‭ ‬poderiam traduzir-se,‭ ‬dada‭ ‬a relativa autonomia ainda possível nas instituições escolares,‭ ‬na concretização de reformas às avessas,‭ ‬isto é,‭ ‬que‭ ‬busquem‭ ‬superar a miséria,‭ ‬a‭ ‬subserviência e a exploração humanas,‭ ‬marcas da história passada e presente,‭ ‬e concretizar‭ ‬práticas‭ ‬efetivas de intensificação humana cujo valor maior seja a liberdade. São Carlos,‭ ‬inverno de‭ ‬2005 ‭