Do Espírito aos Espectros: ida, volta e reviravolta
From Spirit to Specters: round trip and turnaround
Moysés Pinto Neto1
RESUMO: O ensaio parte do debate sobre o espírito na filosofia francesa do século
XX à luz da desconstrução de Jacques Derrida, tensionando a relação entre fala,
signo, sopro e pneuma, de um lado, e escrita, grafema e rastro, de outro, tomando
a posição derridiana como um materialismo. A partir disso, debate como recuperar a
espectralidade depois da desconstrução, em contraste com o espírito da metafísica
tradicional, e problematiza a questão a partir de Stefan Andriopoulos e Fabian
Ludueña Romandini. Finalmente, retorna ao espírito para pensá-lo sob as duas
formas — conflagração e sublimação — e a partir da chave espírito/espectro
contrasta
as
duas
vias
do
pensamento
contemporâneo,
suas
implicações
cosmopolíticas e relação com o niilismo.
Palavras-chave: Espírito; Espectros; Niilismo; Derrida; Cosmopolítica.
ABSTRACT: This essay starts from the debate about spirit among 20th century
French philosophy in the light of Jacques Derrida's deconstruction, stressing
relationship between speech, sign, blow and pneuma, on one hand, and writing,
grapheme and trace, on the other, and taking Derridian position as a materialism.
Based on that, it debates how to recover spectrality after deconstruction, in contrast
with spirit of traditional metaphysics, and problematizes the question with Stefan
Andriopoulos and Fabian Ludueña Romandini. Finally, it returns to the spirit to think
in two ways - conflagration and sublimation - and from the keywords spirit/spectrum
1
Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Luterana do Brasil. Email:
[email protected].
Do Espírito aos Espectros
makes contrasts between two ways of contemporary thought, their cosmopolitical
implications and their relationship with nihilism.
Keywords: Spirit; Specters; Nihilism; Derrida; Cosmopolitics.
1. O debate em torno ao espírito sempre foi um dos pontos focais pelos quais
a filosofia francesa se dividiu no século XX. Tanto a concepção hegeliana de Kojève
quanto seus adversários humanistas inspirados em Kierkegaard e na tradição
existencial partiam de concepções de espírito específicas. Para Kojève, o espírito
partia do negativo, tomando uma concepção da dialética em que a negatividade
estabelece o ambiente propriamente humano, abre a história e é por meio dela que
o espírito se reencontra na totalidade2 . Segundo esse hegelianismo herdado, por
exemplo, por Sartre, Lacan e Bataille, cada um a seu modo, o espaço da liberdade é
privativo do humano, situando-se numa fenda que o separa da natureza a partir do
negativo (ou do nada)3 . Em contrapartida, os humanistas, como Gabriel Marcel, Jean
Wahl e Emmanuel Levinas, situavam na transcendência o espírito, invertendo o
postulado de que se reencontraria na totalidade histórica. É no excesso da história,
naquilo que a transcende, que se encontra o propriamente humano. Enquanto os
hegelianos opunham história e natureza, situando a liberdade no plano aberto e
exclusivo dos humanos, os humanistas opunham totalidade e transcendência,
colocando a liberdade no plano daquilo que escapa às determinações do Um-Todo. O
gesto ético, coração do pensamento de Levinas, é a espiritualidade enquanto
resposta à alteridade que interpela o sujeito e excede a história (Levinas, 1977, pp.
77-80).
O estruturalismo, traçando outro percurso sem o ponto de partida hegeliano
ou fenomenológico, irá equilibrar as coisas de modo distinto. Apesar de interessado
em compreender o “espírito humano” na sua universalidade, Lévi-Strauss buscará
uma perspectiva mais material, encontrando na noção de estrutura um ponto de
convergência nas ciências humanas (antropologia, psicanálise, linguística) que
permitiria uma visão analítica do espírito. Dizia Lévi-Strauss: "O conhecimento não
se baseia numa renúncia ou numa troca, mas sim numa seleção dos aspectos
verdadeiros, isto é, aqueles que coincidem com as propriedades do meu pensamento.
Não do modo sugerido pelos neokantianos, que implicava um constrangimento
inevitável exercido sobre as coisas, mas sim porque o meu próprio pensamento é
2
Ver, por exemplo, Kojève, 2002, pp. 12-13.
3
Uma incursão profunda na negatividade e seu lugar fundante do humano está em Agamben, 2006.
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igualmente um objeto. Pertencendo a 'este mundo', participa da mesma natureza"
(Lévi-Strauss, 1989, p. 50).
2. A dominância do estruturalismo coloca as categorias linguísticas em um
isomorfismo com o espírito, mantendo uma relação espelhada que apresentaria, por
meio da análise estrutural, os parâmetros formais da experiência concreta. A
desconstrução começa em outro ponto. Sua tarefa parece ser abrir a clausura
logocêntrica da tradição metafísica, apresentando a contingência das suas oposições
hierárquicas. A suspeita estruturalista em relação à profundidade de um espírito que
se revelaria apenas em uma transcendência livre — e humana — é herança
inequívoca. Porém o movimento caminha também na direção de contestar um logos
totalizante que se articula como matriz das hierarquias regentes no pensamento
filosófico. É na Destruktion da ontoteologia levada a cabo por Martin Heidegger que
Jacques Derrida irá encontrar seu ponto de partida, ainda que com o tempo a
desconstrução vá cada vez mais separando a operação heideggeriana.
Sua primeira grande obra, De la grammatologie, envolve a associação entre o
privilégio dado à phoné sobre o gramma, sobre a fala em relação à escrita.
Obviamente, trata-se de um resposta à hegemonia da linguagem fonética naquele
momento histórico, presente sobretudo na aliança Lévi-Strauss/Jakobson (Derrida,
2004,
pp.
35-36).
Derrida
caracteriza
o
movimento
como
fonocentrismo,
apresentando sua correlação direta com o logocentrismo da tradição ocidental. A
repressão da escritura como subordinada repetiria o gesto metafísico arquiclássico
que consiste em hierarquizar de acordo com a proximidade da alma. Saussure
retomaria a “definição tradicional de escritura que já em Platão e Aristóteles se
estreitava ao redor do modelo da escritura fonética e da linguagem de palavras”.
“Lembremos”, dizia Derrida, “a definição aristotélica: ‘Os sons emitidos pela voz são
os símbolos dos estados da alma, e as palavras escritas, os símbolos das palavras
pela voz’” (idem, p. 37). Assim, como mais tarde é retomado em A Farmácia de
Platão, a escritura é sempre alvo de desconfiança porque está dois graus afastada
da “verdade”, a inscrição da alma da qual a linguagem se distancia em apenas um
grau.
Percebe-se, com isso, o completo equívoco que é atribuir a Derrida e à
desconstrução o sinal de “filosofia da linguagem”, como se o pensamento estivesse
contido no interior textual que tornaria o mundo externo inacessível. Como
solipsismo textual, a desconstrução nos enredaria em um labirinto de equívocos a
partir dos quais o jogo de remessas seria interminável, tornando a atividade filosófica
uma sofística que desafia a possibilidade de se escapar do próprio jogo narcísico da
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leitura de textos, numa espécie de filosofia diletante sem qualquer escrúpulo se não
se divertir com suas próprias (e enfadonhas) aventuras textuais. Dou a palavra para
o próprio Derrida:
J. D .: Primeiro, eu gostaria de dizer algo muito geral sobre um
erro sério, surpreendente e aparentemente indestrutível. Diz
respeito ao meu trabalho na linguagem. A desconstrução é
frequentemente representada como aquela que nega qualquer
exterioridade à linguagem, levaria tudo de volta para dentro da
linguagem. Como eu escrevi que “não existe nada fora do
texto", todos aqueles que se comprazem em nomear linguagem
o que eu nomeio “Texto”; desejam traduzir: “não há nada fora
da linguagem”. Enquanto para resumir e esquematicamente, é
exatamente o oposto. A desconstrução começou com a
desconstrução do logocentrismo, a desconstrução do
fonocentrismo. Ela ensaiou livrar a experiência, para libertá-la
da tutela do modelo linguístico que era tão poderoso na época
— quero dizer anos sessenta. É, portanto, o erro mais primitivo,
e acredito que é motivado por razões ideológicas e políticas. Ele
consiste em apresentar desconstrução ao inverso, em suma, o
oposto do que ela realiza. Por exemplo, no que diz respeito à
literatura, eles mesmos, e há muitos, gostariam de descrever,
digamos, meu “conceito” de literatura como o que chamam de
suspensão do referente. Eu faço exatamente o oposto. Claro,
para poder desconstruir a autoridade do logocentrismo e do
modelo linguístico que era predominante na época, tive que
transformar e generalizar o conceito de texto, então como não
há limite, não há “ fora” para o texto. Mas o texto não pode não
se reduzir à linguagem, ao ato de fala no sentido estrito. Então
aqui está o erro fundamental que parece, repito, indestrutível
pois nutrido pelas mesmas pessoas que têm interesse em, por
exemplo, neutralizar ou ignorar a desconstrução — e acontece
quase em toda parte, primeiro na França, depois nos Estados
Unidos, e desde os Estados Unidos em outros muitos lugares.
Foucault, por exemplo, tentou limitar a desconstrução a este
espaço textual, reduzindo o texto ao livro, ao que está escrito
no papel. Na falta de leitura, todos eles acusaram a
desconstrução do projeto estúpido de querer reduzir tudo ao
espaço dentro do livro, em uma estante de biblioteca. Existe um
fora da linguagem para mim, e tudo começa lá. Eu não nomeio
facilmente o real porque a noção de realidade está
sobrecarregada de pressupostos metafísicos (Derrida, 1995,
pp. 108-110, tradução livre).
Há uma relação fundamental entre o privilégio da phoné enquanto idealidade
estética, o significado enquanto inteligibilidade pura e a vontade teológica de apagar
a origem histórico-material para afirmar um logos absoluto. Esse encadeamento faria
parte da busca histórica do sentido do ser enquanto presença pelo logos como
instância transparente, ainda que inevitavelmente caindo na "corrupção" da
exteriorização do sentido por meio da escritura. A metafísica ocidental, então,
alimenta-se
do
infinitismo
teológico
platônico-cristão
que
Heidegger
havia
apresentado, reprimindo as dimensões da morte, da temporalidade e da finitude em
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nome da crença na "imortalidade da alma"4 . A partir do ponto estratégico do signo,
Derrida procura demonstrar como a metafísica sempre privilegiou uma relação de
espelhamento entre logos e significado, mediados pelo significante exterior (e por
isso inferior). Trata-se de uma oposição que coloca uma idealidade natural, eterna e
universal, de um lado, e uma materialidade decaída, corrompida e temporal, de
outro. Na distinção entre sensível e inteligível, a ideia de significado puramente ideal
mantém viva, apesar da "queda no significante", a oposição: "a face inteligível do
signo permanece voltada para o lado do verbo e da face de Deus" (Derrida, 2004, p.
16). Assim, a teoria da escritura é, segundo interpretamos, uma abertura
materialista da filosofia ocidental, entendendo ser impossível qualquer pensamento
sem rastro, na medida em que mesmo as idealidades supostamente “puras” (por
exemplo, as matemáticas) dependem de uma inscrição para existir.
Há, portanto, um par assimétrico na relação fala/escrita que é análogo, ou
simplesmente faz sistema com, o par alma/corpo. Quando mais próximo ao corpo
(inscrição), mais impuro. A linguagem (logos) é superior à escrita, uma vez que
espelha com um grau de distância apenas os estados da alma, onde está o
conhecimento puro. A hierarquia poderia ser exposta assim:
4
Apesar disso, o próprio Heidegger ainda estaria preso na mesma estrutura de privilégio entre voz e Ser
e tampouco o pensamento do rastro se confundiria com a finitude. Em torno a um privilégio assumida da
Voz, que diferenciaria morte e decesso, ver também Agamben, 2006, pp. 118-119.
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Nesse sentido, poderíamos questionar como se faz a reaproximação da
espectralidade quando, a rigor, a filosofia da escritura envolve justamente a inscrição
corpórea da ideia, na crítica ao privilégio da phoné e do pneuma que envolvem a
desconstrução? É o que será apresentado no item 4, mas antes faço uma breve
digressão necessária ainda em torno ao espírito.
3. Um trabalho recente e bastante heterodoxo recupera a temática espiritual
de forma instigante, servindo como mais um documento da espectrologia em
crescimento nos últimos anos. Stefan Andriopoulos leva a questão do espírito para o
período entre 1750 e 1930 e mostra como no ambiente filosófico do idealismo alemão
— tomando como referência Kant, Schopenhauer e Hegel — as questões
fantasmáticas continuavam vivas. O autor conecta arqueologia da mídia e leitura
historicista do discurso filosófico para pensar como os três filósofos recorreram ao
mesmo conjunto de imagens fantasmagóricas e midiáticas para fins diversos. Kant,
por exemplo, teria antecipado sua doutrina da ilusão transcendental na “descrição
cética da aparições fantasmagóricas”, repetidamente recorrendo “aos meios ópticos
contemporâneos para descrever as falácias da razão especulativa. Ele caracteriza a
metafísica especulativa como uma ‘lanterna mágica de fantasmas cerebrais’”,
transformando “o instrumento óptico numa figura epidêmica dos limites do saber
filosófico” (Andriopoulos, 2014, p. 15).
É evidente que, sob um escrutínio filosófico das centenas de milhares de
Sociedades Filosóficas Kantianas, jamais o sujeito transcendental poderia ser
confundido com a noção de espírito adotada por religiões como o espiritismo. Ele é,
afinal, produto de uma lógica que pensa a experiência desde seu a priori, sua
estrutura categorial, e o suporte opera como pressuposto, como transcendental e
não transcendente. Não poderia se confundir, portanto, com uma crença que, além
de violar os parâmetros da Crítica, por não ser acessível pela experiência, ainda
pressupõe um dualismo forte. Tampouco a “aparência" ou “aparição" (Erscheinung)
poderia ser redutível à concepção espírita que coloca o sujeito em contato com algo
incognoscível em si mesmo, cujo contato se dá de modo fantasmático (Andriopoulos,
2014, pp. 45-46).
Entretanto, para uma perspectiva em que a construção do conhecimento não
é simplesmente um processo alheio aos fatores materiais em que se produz, isto é,
sem o exercício de “purificação” com a eliminação dos híbridos que Bruno Latour, por
exemplo, descreve como próprio à Constituição Moderna, a circulação entre
fantasmas, espectros e espíritos, assim como sua contraparte técnica (instrumentos
ópticos como a lanterna mágica, espelhos côncavos ou a própria televisão), interessa.
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Todos os atores nessa rede são relevantes, sejam eles ilusões ópticas — como as
produzidas pelos espelhos côncavos ou lanternas mágicas —, ou espíritos insondáveis
cujo suposto acesso é dado apenas aos clarividentes.
Comparando Kant e Marx, Andriopoulos observa como o último seguiu
rigorosamente em A Ideologia Alemã e O Capital a crítica da especulação realizada
pelo primeiro em Crítica da Razão Pura. A forma-mercadoria equivale ao processo de
hipóstase de uma miragem produzida como imagem especular, confundindo aquilo
que existe meramente no pensamento com um objeto real externo ao sujeito
pensante, transformando “a doutrina kantiana da ilusão transcendental numa crítica
à nossa tendência a reificar as relações sociais” (Andriopoulos, 2014, p. 48).
Surpreendentemente,
Andriopoulos
tem
uma
leitura
absolutamente
injustificável de Espectros de Marx, de Jacques Derrida, quando afirma:
Espectros de Marx (1993), de Jacques Derrida, afeta um foco
exclusivo na linguagem como fonte de espectralidade. Em sua
leitura de Marx, Derrida desconsidera o uso cultural da lanterna
mágica nas projeções fantasmagóricas e subscreve uma
etimologia comum, mas incorreta, do termo “fantasmagoria"
como algo que descreveria um ato público de fala
(Andriopoulos, 2014, p. 16).
E, de modo ainda mais precário, continua:
Ao analisar o Manifesto Comunista (1848), O Dezoito de
Brumário (1852) e A Ideologia Alemã (1845), Derrida revela
o papel da filosofia de Max Stirner na proliferação do espectral
nos primeiros escritos de Marx. Numa nota de rodapé, Derrida
também menciona o “Ensaio sobre a vidência”, de
Schopenhauer. Mas não se empenha na leitura de nenhum
texto espírita contemporâneo, e sua preocupação com a
linguagem como a única fonte da espectralidade o leva a
desconsiderar as condições culturais e midiáticas da invocação
de fantasmas por Marx. Por isso, em sua leitura do capítulo de
Marx sobre a “forma fantasmagórica” da mercadoria, Derrida
ignora as maneiras pelas quais O Capital (1867) se apropria
dos recursos ópticos e da doutrina kantiana da ilusão
transcendental (…) (Andriopoulos, 2014, p. 22).
Andriopoulos recorta duas passagens do livro e julga o todo, ignorando que a
definição de espectro, por exemplo, passa exatamente pela inscrição artefactual em
um suporte técnico. Já na definição inicial de espectro, Derrida afirma, a partir de
Hamlet na triangulação entre Marx e Shakespeare, que
A armadura, esse “traje”, de que nenhuma encenação poderá
jamais fazer a economia, vemo-la recobrir dos pés à cabeça,
aos olhos de Hamlet, o suposto corpo do pai. Não se sabe se ela
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faz parte ou não da imagem espectral. Essa proteção é
rigorosamente problemática (problema é também um broquel),
pois não permite que a percepção decida sobre a identidade que
se encontra tão firmemente encerrada em sua carapaça. A
armadura pode não ser outra coisa senão o corpo de um
artefato real, uma espécie de prótese técnica, um corpo
estranho ao corpo espectral que ela veste, dissimula e protege,
mascarando assim até a sua identidade. A armadura não deixa
ver nada do corpo espectral, mas à altura da cabeça e sob a
viseira, permite ao soi-disant pai ver e falar. (…) (Derrida, 1994,
p. 23).
Na verdade, a resposta é rigorosamente inversa à que Andriopoulos dá. Se
Marx, inspirado em Kant, teria construído a crítica da forma-mercadoria enquanto
“fantasmagoria" que reifica construções do pensamento como objetos reais, é
justamente na direção da apreensão do real-tal-como-ele-é separado do real-comoespectro, como se pudesse ser alheio aos fantasmas que o assombram. Segundo a
tese de Espectros de Marx, o movimento que Marx produz em O Capital passa pela
metafísica da presença exatamente por buscar uma purificação do espectral em
espiritual, na qual o primeiro aparece como aparência, falsidade, engano, enquanto
o segundo restitui a forma a si mesma na consciência emancipada. Ou seja, não é
que Derrida não tenha levado em consideração a artefatualidade técnica ou o
intercâmbio cultural que produziu a crítica da forma-mercadoria, mas o oposto: é
justamente demonstrando que não é possível acessar um espírito purificado de
artefatualidade técnica e fantasmagorias, rechaçando o telos da emancipação, que o
argumento de Espectros de Marx funciona. O filósofo alemão teria, segundo Derrida
e numa trajetória típica que toma a desconstrução em seus textos, aberto e fechado
a clausura metafísica ao mesmo tempo: ao “contaminar" a economia pelos
fantasmas, incluída a artefactualidade, teria aberto5 ; porém rapidamente foi
necessário purificar o espírito dos espectros e fantasmas, desfazendo ilusões ou
reificações. Possivelmente, inclusive, essa seja a distinção crucial entre crítica e
desconstrução. Voltarei em um instante ao ponto.
Aliás, ao acusar Derrida de subestimar o papel da lanterna mágica na
construção da espectralidade, Andriopoulos parece ignorar um texto seminal do
filósofo franco-argelino: Freud e a cena da escritura, na qual as Notas sobre um bloco
mágico, escritas pelo psicanalista, revelam um paralelismo imprescindível — e cuja
natureza é justamente o foco de Derrida decifrar — entre a máquina de escritura do
bloco mágico e o aparelho psíquico. Inclusive, superando qualquer redução subjetiva
que pudesse confinar, como acusam alguns detratores e, de modo um pouco
5
Cito aqui: “Nenhum texto da tradição parece tão lúcido quanto à mundialização em andamento na
política, quanto à irredutibilidade do técnico e do midiático na óptica do pensamento mais pensante — e
para além da estrada de ferro e dos jornais então, cujos poderes foram analisados de modo incomparável
pela Manifesto” (Derrida, 1994, p. 29).
123
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sonâmbulo, repetem alguns intérpretes-adeptos, Derrida adverte que não se trata
de pensar a questão como uma descrição objetiva (ou científica) da subjetividade
interior, mas de tomá-la como um modelo para certa problemática (Derrida, 2009,
pp. 293-294). Na verdade, a psicanálise abre um campo que ultrapassa a dimensão
de “ciência regional” e o inconsciente, por exemplo, extrapola os domínios em que,
por mais aberto que fosse, esteve confinado enquanto negativo da consciência6.
4. É aqui que encontramos um caminho totalmente distinto para pensar a
espectralidade, vertiginosamente distante do tratamento ontoteológico do espírito.
Em Freud e a Cena da Escritura e Da Gramatologia, Derrida apresentava a
problemática do sonho como a possibilidade de excesso em relação à clausura que a
desconstrução buscava arrombar. Seria necessário, contudo, levar o sonho para além
da perspectiva subjetiva, para além da interioridade do mental contido no indivíduo.
Há uma espécie de virtual que não se dissocia da materialidade. Em Posições, por
exemplo, associa dyferença (différance) e condensação – lembrando bastante o
ambiente de A Interpretação dos Sonhos:
Não podendo mais se elevar como uma palavra-mestra ou como
um conceito-mestre, barrando toda relação com o teológico, a
différance encontra-se envolvida em um trabalho que ela põe
em movimento, por meio de uma cadeia de outros ‘conceitos’,
de outras ‘palavras’, de outras configurações textuais; (…). Por
definição, a lista não tem nenhuma clausura taxonômica; nem
– menos ainda – constitua ela um léxico. Em primeiro lugar,
porque não se trata de átomos, mas, antes, de pontos focais
[foyers] de condensação econômica, de locais de passagem
obrigatórios para um número bastante grande de marcas, de
crisóis [creusets] um pouco mais efervescentes (…) (Derrida,
2001, pp. 46-47).
Essa passagem para as proximidades do “imaterial”, desenvolvida com todo
cuidado para não se confundir com aquilo que fora objeto de desconstrução, é
finalmente concretizada em Espectros de Marx, quando o grafema (ou rastro) dá
lugar a algo mais inconsistente, o espectro. Podemos definir os parâmetros do
espectro a partir de três elementos: a) nunca se dá a ver frontalmente, pois produz
uma disjunção temporal, um anacronismo que escapa à ordem do ser (time is out of
6
“O conceito de sujeito (consciente ou inconsciente) remete necessariamente para o de substância — e
portanto de presença — do qual nasceu. É preciso portanto radicalizar o conceito freudiano de traço e
extraí-lo da metafísica da presença que ainda o retém (em especial nos conceitos de consciência,
inconsciente, percepção, memória, realidade, isto é, também de alguns outros).” (Derrida, 2009, p.
336).
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joint); b) é sempre “mais de um”, múltiplo; e c) inscreve-se em um artefato, é um
“devir-corpo” do espírito (Derrida, 1991, pp. 21-22).
Na minha tese (2013) e em artigo publicado posteriormente (2015) nomeado A
estranha instituição da literatura no multiverso dos espectros, defendi a ideia de que
psicanálise ocupava um papel fundamental na compreensão do multiverso da
dyferença. Segundo essa leitura, a transposição – em termos de Georges Bataille –
da economia restrita para a economia geral implicava a adoção de outra estrutura
do real distinta da clausura (clôture) ou totalidade. Afirma o texto:
Eis, então, em resposta a estas três pontas de fios sem aparente
ligação, uma das teses arriscadas que este texto defenderá: a
psicanálise freudiana não é apenas um modelo do fenômeno da
"psiqué" humana; ela antes apresenta a estrutura do real, isto
é, um modelo que poderíamos nomear, na linguagem clássica,
de ontologia. Em outros termos: aquilo que, em Derrida, serve
de base positiva para seu discurso, sua "ontologia", encontra
seu melhor modelo teórico em Freud. (…). Na linguagem
cartesiana, ainda hoje dominante na filosofia, a psicanálise para
Derrida não é apenas "subjetiva", isto é, pertencente ao âmbito
dos fenômenos psicológicos, mas "objetiva", isto é, capaz de
funcionar como modelo para pensar a estrutura dos fenômenos
em geral, inclusive os que estão fora da mente. (…).
Isso somente será possível graças ao conceito central que
alicerça o próprio edifício psicanalítico: o inconsciente. Para
Derrida, o inconsciente que Freud "descobre" não é apenas uma
estrutura psíquica, sendo isso mero resíduo da "época
cartesiana" (que pensa a presença como sujeito), mas a
estrutura do real. Essa transposição pode parecer complicada,
e é: trata-se de pensar a condição de finitude originária
afirmativamente, isto é, como dyferença, e para isso o modelo
do inconsciente fornece uma fluidez capaz de escapar da
clausura da tradição (…) (Pinto Neto, 2015).
Embora já leitor entusiasmado de Fabian Ludueña Romandini, ainda não havia sido
publicada a continuação do brilhante La Comunidad de los Espectros: Antropotecnia
(inclusive citado no paper), intitulada Principios de Espectrologia, embora o opúsculo
Para além do princípio antrópico já indicasse alguns caminhos ali seguidos. A tese
principal de Ludueña parece exatamente consistir na “objetividade” dos espectros,
uma vez que o espaço em questão é totalmente independente da subjetividade
(Ludueña Romandini, 2016, p. 152). A partir da filosofia do Outside, que é entendido
como “um limiar onde tem lugar a disjunção no Ser que faz possível conceber um
território cuja geografia escapa aos confins tanto da ciência do ente quanto do
postulado do Ser como acontecimento primogênito” (idem, p. 185), Ludueña
Romandini pensa o espaço espectral como o espaço de indistinção entre material e
imaterial, perpassados por um devir reversível entre ambos.
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Como Derrida fizera laconicamente, Ludueña Romandini aproxima a espectrologia do
terreno dos sonhos, tomando-os como forma arqui-original (a expressão é traiçoeira
ao extremo) ou, nas suas palavras, “o sonhar carrega uma radical saída fora de todo
âmbito do interior para ingressar no Afora cósmico cuja via régia é o domínio onírico”
(2016, p. 124, tradução livre). No entanto, embora remeta aos trabalhos de Derrida
seguidamente na construção da espectrologia, Ludueña acusa-o de colocar o
espectro sob a égide do phainesthai, “como fenomenalidade do fenômeno da
imagem”. Com isso, Derrida repetiria “o mais ancestral dos atos metafísicos na
compreensão do espectro como aparecer imaginal” (idem, p. 138). Embora seja difícil
contestar um estudo tão erudito e precioso quanto o do filósofo argentino, a nota
marcada como ponto de referência parece simplesmente um mero ponto focal em
que Derrida transpõe o problema para o campo husserliano e, por isso, mergulha em
indagações
fenomenológicas
buscando
a
extrapolação
da
subjetividade
transcendental. Afirma a nota:
Certamente, não se reduzirá nunca o conceito estreito e estrito
do fantasma ou do phantasma à generalidade do phainesthai.
Preocupada com a experiência original da obsessão, uma
fenomenologia do espectral deveria, em boa lógica husserliana,
recortar um campo muito determinado, e relativamente
derivado, no interior de uma disciplina regional (por exemplo,
uma fenomenologia da imagem etc.). Sem contestar aqui a
legitimidade, até mesmo a fecundidade de tal delimitação,
sugerimos somente isto, sem poder ir mais adiante neste
caminho: a possibilidade radical de toda espectralidade deveria
ser buscada na direção do que Husserl identifica, de modo tão
surpreendente mas tão forte, como um componente intencional
mas não real do vivido fenomenológico, a saber, o noema.
Diferentemente dos três outros termos das duas correlações
(noese – noema, morphé – hylé) essa não-realidade (réellité),
essa inclusão intencional mas não real do correlato noemático
não está nem “dentro” do mundo, nem “dentro” da consciência.
Mas ela é justamente a condição de toda experiência, de toda
objetividade, de toda fenomenalidade, a saber, de toda
correlação noético-noemática – originária ou modificada. Ela
não é mais regional. (...) Tal “irreelidade” (“irreélité”), a sua
independência ao mesmo tempo com relação ao mundo e com
relação ao tecido real da subjetividade egológica, não vem a ser
o lugar mesmo da aparição, a possibilidade essencial, geral, não
regional do espectro? (...) (Derrida, 1991, p. 181, nota 1).
Note-se dois elementos na nota: (1) Derrida anuncia um programa
fenomenológico até a metade da nota como simples estratégia argumentativa,
simplesmente reproduzindo-o nos seus próprios termos sem em nenhum momento
comprometer-se com a hipótese husserliana para, em seguida, o abandonar. Vejase que ele nunca propõe a si mesmo a construção de tal fenomenologia do espectral,
mas uma espectrologia (hantologie); (2) a partir da metade da nota, trata-se de
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demonstrar como a espectralidade extrapola qualquer tentativa de a conter no nível
fenomênico, mostrando-se, ao contrário, como a condição de possibilidade da
experiência como tal. O que, aliás, aparece na própria passagem que impulsiona a
nota: “A forma fenomenal do mundo mesmo é espectral”.
Ora, com um pouco mais de boa vontade em relação a Derrida que Ludueña
Romandini7 , caberia perguntar: qual é mesmo, para Derrida, a condição de
possibilidade de qualquer experiência? Justamente a dyferença8 . Que, como já
vimos, não está contida naquilo que, inspirados em Quentin Meillassoux, poderíamos
chamar de “espaço correlacional”9. Trata-se, evidentemente, de uma divergência
pontual e menor em relação a uma convergência astronômica: acompanho a
espectrologia de Ludueña Romadini nos seus principais princípios, apenas com a
ressalva menos relevante de que já via seu embrião no próprio Derrida10 , e inclusive
concordando – para além de Derrida – acerca da necessidade de um espectrologia
pós-desconstrutiva com um programa positivo (Ludueña Romandini, 2016, p. 208).
O “aparecer” sensorial, no entanto, não resume de forma alguma a definição positiva
do espectro em Derrida. Toda dimensão artefatual da inscrição do fantasma, por
exemplo, fica esquecida, sem falar das construções espelhadas que trabalhos como
Fé e Saber, Mal de Arquivo e o já mencionado Freud e a Cena da Escritura produzem
nessa definição.
Assim, se o espectro é definido como “o corpo fenomenal do espírito”, ou
ainda “o fantasma é o fenômeno do espírito”, é preciso justamente colocar em xeque,
nos termos da desconstrução enquanto marcação dupla, o quanto tal definição deve
ser lida como provisória, isto é, enquanto dentro e fora da metafísica ao mesmo
tempo, pois não se trata de um excesso transcendente (como a alteridade em
Levinas), mas das próprias variações11 da dyferença que é, em si mesma, espectral.
Ora, na medida em que o fora (escrita, corpo, espectro) perfura o dentro (voz, ideia,
espírito), como o X que tacha a distinção em Da Gramatologia, não é exatamente
para desmontar essa economia restrita que Derrida apresenta essas fórmulas nos
termos clássicos? O espectro é o aparecer (ou o corpo) do espírito enquanto o espírito
é, para a metafísica, a face verdadeira que se corrompe na sua inscrição corpórea.
Mas não é justamente esse o exercício que a desconstrução propõe inverter, ao
demonstrar que a exterioridade é uma “prótese de dentro” ou “suplemento de
origem”, subvertendo toda essa economia? Em A Farmácia de Platão, por exemplo,
7
Ver ainda Ludueña Romandini, 2016, pp. 171-176 e 198-207.
8
Ver Derrida, 1972, pp. 27-28.
9
Ver ainda Ludueña Romandini, 2016, pp. 155-169.
10
Veja-se que o próprio Ludueña Romandini qualifica que o sujeito que a psicanálise põe em ato é um
“epifenômeno do que nós denominamos horizonte espectral” (2016, p. 164), de modo bastante similar ao
que especulávamos sobre as relações entre Freud e Derrida.
11
Simplifico para variação o que Derrida nomeia “substituição dyferencial” (Derrida, 1991, p. 202).
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a escritura é demonstrada como um fora irredutível à fala (por exemplo, escritura na
alma que se transmite ao fônico) apenas para que, mais tarde, a própria fala tornese variação da escritura (diferença da dyferença). Analogamente é o que se processa
em Espectros de Marx: na medida em que tenta expulsar os espectros (como o faraó
a escritura), Marx faz proliferar, ele mesmo, fantasmas; com isso, a própria
realização daquilo que ele denomina espírito (enquanto forma “verdadeira” do
espectro-aparência) é, ela própria, espectral. Assim como há um deslocamento da
economia da fala para a economia da escritura, deixando de lado a relação
interioridade/verdadeira
X
exterioridade/falsa
para
as
variações
do
mesmo
pharmakon, também a diferença espírito/espectro torna-se, ela própria, variação da
espectralidade.
6. A partir do trajeto traçado aqui — do espírito ao espectro — podemos voltar
do espectro ao espírito, e dele ao niilismo. Vimos que a crítica kantiana e marxista
— ou talvez a crítica, pura e simplesmente — percebe na espectralidade a confusão
entre o que é apenas pensado e o que existe de fato. Para essa posição, portanto, a
fantasmagoria pode ser purificada pela consciência crítica que atinge a emancipação
contemplando a realidade em si mesma, livre dos fantasmas que acorrentam a
liberdade humana nos grilhões da tradição, especialmente a tradição religiosa. A
questão é: o que encontramos quando despida a realidade de todas as suas
máscaras? Esse parece ser um dos principais resíduos dualistas que alimentava os
materialismos críticos e foi atacado pelos pós-estruturalistas, em especial Foucault,
Deleuze e Derrida.
Seguindo uma coerente trilha neomodernista e considerando que o trajeto do
pensamento é exatamente a destruição da imagem humana manifesta — que vai dos
eliminativismos
dos
Churchland,
Sellars,
Deleuze,
Laruelle
até
o
realismo
especulativo de Quentin Meillassoux — a prova niilista dada por Brassier é imagem
de mundo que, partindo de um experimento de Lyotard, imagina o fim da Terra pela
explosão do sol. Esse Real que nos confronta não se confunde nem se reduz ao
pensamento. É justamente a crueza daquilo que rebate sem que possa ser
confundido, como bem nos ensina o pensamento crítico, com as fantasmagorias que
se tem acerca da realidade mesma. Se Meillassoux aventava a possibilidade de
pensar o arquifóssil como antídoto contra a prisão correlacionista que impedia o
acesso ao “Grande Fora”, Brassier projeta para a extinção a demonstração da
completa ausência de um sentido dado. Nihil unbound. O Esclarecimento termina no
niilismo, e certamente aqui não se trata de cair no desespero dos idiotas
desamparados, mas assumi-lo enquanto tal, em um certo passo mezzo nietzschiano,
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mezzo freudiano, que celebra a possibilidade de criar valores, escapar do sofrimento
e, para além disso, experimentar limiares para além da imagem manifesta12. O
trajeto do pensamento que celebra o espírito emancipado, portanto, deságua na
celebração do nada enquanto oportunidade.
Mas não há aqui então uma teleologia racionalista que possa ser questionada?
Antes de responder, vejamos outro ponto.
7. Em Do Espírito, Derrida levantava pelo menos quatro questões ao
tratamento do espírito ou espiritual por Heidegger: (1) o privilégio da forma
questionante ou a primazia da pergunta; (2) a questão da técnica, sempre afirmando
um não-contato do pensamento, ou a pureza do espírito, contra a invasão da técnica
justamente afirmada pela primazia da questão sobre o pensamento calculador13; (3)
a animalidade recalcada, o estatuto ambíguo do animal “pobre de mundo”, que por
sua vez se liga à técnica e ao maquínico inconfundível com o espiritual, carregando
ainda o humanismo metafísico que Heidegger imaginava exorcizado; e (4) uma
teologia oculta, na qual ele confrontará o Geist alemão, único legítimo herdeiro dos
gregos e proveniente de uma fonte ancestral mais potente que sua captura platônicocristã, na forma do pneuma, identificado com o fogo, a chama, a conflagração
(Derrida, 1987, pp. 24-30).
Para Heidegger, o espírito não seria simplesmente interioridade, como a
psicologia
racional
ou
pneumatologia
postulariam,
mas
estaria
no
campo
transcendental assubjetivo que é condição de possibilidade para a própria operação
subjetivante que Descartes levará a cabo fundando a Modernidade. Situando-se na
temporalidade distinta do “tempo vulgar” que orientava, por exemplo, o espírito
da/na dialética hegeliana, o espírito seria a temporalidade mesma e, longe de se
opor, fundaria a espacialidade. Ele se opõe à “coisalidade”, ou qualquer forma de
substância, situando-se nesse campo pré-subjetivo, antepredicativo a partir do qual
o Dasein forma o mundo, e por isso sua relação com a questão que antecede o
calcular (Derrida, 1987)14.
Mas é justamente nesse emaranhado em nada, nesse terreno fundante, que
Heidegger irá deslizar para que no seu Discurso da Reitoria possa associá-lo ao Reich,
“espiritualizando o nazismo”. A partir desse momento, de uma abordagem tímida,
Heidegger passa à celebração do espírito, entendendo-o, resumidamente, a partir de
quatro vetores: (1) o questionamento (Fragen) que se manifestaria como vontade
12
Ver Brassier, 2007, pp. 205-239 e também Pinto Neto, 2012.
13
Ver também Valentim, 2018, pp. 65-69 e 71-76.
14
Ver também Valentim, 2018 e Agamben, 2006.
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de saber e vontade de essência; (2) o mundo, tema central de Ser e Tempo; (3) o
tema da terra-e-sangue, ligado à força; e (4) a decisão, que por sua vez dá
possibilidade de abertura à autenticidade (Derrida, 1987, p. 59). É a partir disso que
o espírito irá se tornar cada vez mais alemão, Geist, e, purificado dos seus elementos
corruptíveis, identificar não mais com o sopro, o pneuma, mas com o fogo. “O que é
o espírito? Resposta definitiva, em 1953: fogo, chama, abrasamento, conflagração”
(idem, p. 133, tradução livre). Essa chama, que aquece o sopro pneumático, vem de
uma remota alvorada obscurecida pela metafísica platônico-cristã, e figuraria como
promessa de um Ocidente mais original purificado das suas corrupções.
8. A versão reacionária do espírito em Heidegger é diametralmente oposta ao
niilismo progressista que, em contraponto à chama da promessa não-cumprida de
um Ocidente purificado da sua corrupção platônico-cristã do filósofo da Floresta
Negra, deposita em um futuro sem qualquer injunção que não a afirmação das suas
virtualidades suas energias. Mas não é estranha a coincidência que discursos voltados
aos excessos para além da carne, postulando uma aceleração que não conhece
limites e tem no seu próprio movimento uma espécie de teleologia imanente,
terminem politicamente — mesmo que na vulgaridade de um mero posicionamento
de conjuntura — aliados da mitologia do fogo e sangue que renasce com força no
século XXI? Há diferenças, por óbvio, mas não seria a hipóstase do pensamento aqui
uma espécie de queda no negativo, no niilismo, que reifica não uma fantasmagoria,
mas exatamente sua caça como fantasmagoria fundamental e única permitida? Isto
é, não haveria aqui uma espectralidade cujo sentido é unicamente destruir toda e
qualquer espectralidade, negando-se a si própria enquanto tal? E quando a destruição
se torna a força-motriz cujo movimento passa a se autolegitimar por si próprio —
chega de fantasmas! acabemos com todos! — não seria um ponto de encontro com
as pulsões que tornam a própria destruição seu alfa e ômega? Depois da destruição,
o quê? A frieza da razão lembra a sensação do frio do corpo drogado que Deleuze e
Guattari exploram, nomeando o perigo mais fatal de todos na desterritorialização que
perde todo sentido e torna seu próprio movimento destrutivo um fim em si —
suicidário (Deleuze & Guattari, 1996, pp. 22-24). Ao encontro do nada. Um breve
deslize e saímos do “podemos construir tudo” para “podemos destruir tudo, inclusive
a nós mesmos”. O corpo junkie mais uma vez é testemunha: de laboratório para a
experiência que testa os limites do dado pode muito bem migrar, em um tropeço
leve, para a auto-corrosão interminável. Entre a chama do espírito e o poder de
dissolução a fronteira é tênue e frequentemente cruzada…
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Também
redução/irredução
não
ou
é
acaso
que
razão/mito,
a
a
divergência
epistemológica
sobre
divergência
cosmopolítica
sobre
modernidade/extramodernidade e diferença corpo/razão acabe orientando os dois
“partidos" que Hilan Bensusan chama do “partido inumano” e o “partido animista”.
Para o partido inumano, trata-se de acabar com os mitos e permitir que, liberto das
fantasmagorias, o espírito alcance patamares superiores, livrando-se da finitude ou
ao menos de tradições que ciência e razão ajudam a desmascarar. Mesmo sem
necessariamente postular qualquer privilégio humano, é na inteligência em si mesma
— ocasionalmente depositada nos humanos, mas particular deles apenas enquanto
as máquinas seguem na sua infância15 — que está a possibilidade do futuro. Para o
partido animista, a ausência de mito é o mito moderno por excelência, e não há ponto
privilegiado que permita destruir as fantasmagorias sem criar outras. Só há espectros
por toda parte16. A experiência espectral não é particularmente humana, e a reflexão
é só uma modalidade de uma miríade infinita de mundos e relações que existem sob
diversos regimes ontológicos na Terra. A questão não é, portanto, cortar e destruir,
construindo um território novo a partir de um plano completamente vazio. Trata-se,
ao contrário, de rechaçar a diferença entre natureza e cultura, base da construção
moderna do espírito, religando corpo e espírito de modo que sejam atravessados por
forças intermediárias que dissolvem a própria polaridade — justamente os espectros.
O mundo não é um plano liso e aberto a ser habitado pelo intelecto engenheiro, ele,
ao contrário, é barrocamente rugoso, poroso e multiplicado imanentemente pelas
perspectivas que não se separam dos “fatos" propriamente ditos17. Só o imaginário
moderno poderia separar, acreditando poder pensar no que está fora do pensamento,
justamente porque sua hipostasiação opera no nível da própria capacidade reflexiva,
projetando sua brilhante e sedutora capacidade antecipatória — como Bergson já
havia percebido18 — como um nada sobre o mundo, em si mesmo. No multiverso
cosmopolítico, ao contrário, o pensamento é corpo enovelado em redes e mais redes
de atores de todos os tipos, que se conectam de múltiplas formas e não traçam as
linhas divisórias dos dualismos.
O problema, portanto, não é a hipostasia do pensamento sobre a realidade
que a razão crítica trataria de clivar. A purificação do espírito pela emancipação
15
Bensusan, 2020.
16
Veja-se o tratamento da imagem utupë em Valentim, em que nunca há uma purificação total, mas a
imagem congrega significados aparentemente antagônicos de corpo e alma, arquétipo e simulacro,
categoria e pessoa. Valentim aproxima, citando Bruce Albert, o espectro como “núcleo dinâmico” da pessoa
e, seguindo a trilha da antropologia pós-estrutural, vê na diferença deleuziana uma referência filosófica
(2018, pp. 219-230). Vejo uma possibilidade idêntica de traçar o mesmo caminho pela dyferença
derridiana, como realizado aqui, e que aliás aproximei de Deleuze em trabalhos anteriores (2013).
17
A expressão de pensamento mais “barroco" capaz de imaginar esse pluriverso orgânico talvez esteja
nos trabalhos de Donna Haraway e Anna Tsing.
18
Devo este insight ao trabalho de Luísa Mucillo, c, apresentado no encontro do GT Ontologias
Contemporâneas em 2019, realizado em Porto Alegre.
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confronta-se com o vazio que é sua própria reificação. Ao expulsar os fantasmas, a
razão torna-se ela própria fantasmagoria, na medida em que caminha solitária por
um mundo plano à espera do seu construtor diante do vazio restante. O niilismo não
atravessa a destruição para criar; ele estaciona na sua própria paralisia espiritual, no
seu próprio tédio — como teóricos do fim da história como Kojève e Bataille já
especulavam — uma vez que o espírito é a reificação de uma capacidade do corpo
que, ao tentar clivar o mundo separando fantasmas e realidade, torna-se ela própria
um negativo reificado. Consagrada a cisão entre natureza e cultura, mesmo que a
cultura separada venha na sua forma 2.0 do “artificial”, apenas alimenta-se a
vontade narcísica humana que, como tal, odeia tudo que não é a si mesma. O
antropocentrismo torna-se desejo de destruição reificando uma das suas capacidades
corpóreas. A bifurcação entre natureza e cultura faz com que o mundo seja
comandado por uma única ontologia onde o vazio impera, quer como desespero, quer
como possibilidade. Na medida em que a natureza é a mesma para todos, regida
pela separação entre sujeito-pensante e objeto-real, há apenas um mundo — um
fundo vazio comum — que se deixa interpretar de múltiplas maneiras preenchido
pelas culturas. O espírito é a máquina comum de interpretação e variação que cai
sobre o mesmo universo real. Inflação explosiva, pois, desligado da sua
materialidade, ele apenas consuma o giro narcísico em torno ao próprio eixo,
aumentando a violência na medida em que vai perdendo a possibilidade de se
conectar a outrem.
Como uma antropotécnica, o espírito busca separar a espécie humana da sua
animalidade19. Ambas versões do espírito — a conflagração e a sublimação — não
deixam de manifestar uma projeção antrópica que certamente abre possibilidades
imensas, e não por acaso chegamos até aqui (o Antropoceno), mas ao mesmo tempo
carregam o narcisismo humano arrombando os próprios limites entre sanidade e
loucura. A fabulação especulativa do universo das máquinas opera como imaginário
de um narcisismo delirante20. Na bela formulação de Valentim em contexto
ligeiramente distinto, em “nome do horror vacui lovecraftiano — Stimmung específica
do homem diante do descobrimento do seu verdadeiro não-lugar antrópico no
19
Ver, por exemplo, Agamben, 2006, p. 56: “Uma voz como mero som (uma voz animal) pode certamente
ser índice do indivíduo que a emite, mas não pode de modo algum remete à instância de discurso enquanto
tal, nem abrir a esfera da enunciação. A voz, a φωνη animal, é, sim, pressuposta pelos shifters, mas como
aquilo que deve ser necessariamente suprimido para que o discurso significante tenha lugar. O ter-lugar
da linguagem entre o suprimir-se do voz e o evento de significado é a outra Voz, cuja dimensão ontológica vimos emergir no pensamento medieval e que, na tradição metafísica, constitui a articulação
originária (…) da linguagem humana” (grifo no original). Ver também Ludueña Romandini (2010) e Pinto
Neto (2019
20
Prefiro a figura de Narciso à de Édipo, trazida por Hilan Bensusan ao retomar Deleuze e Guattari de
modo brilhantemente irônico quando reconstrói a “cena de família” que a infância das máquinas parece
reconstituir (Bensusan, 2020).
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cosmos (…) —, corre-se o risco de neutralizar a escolha política pela coexistência
com outros povos e formas de vida na Terra” (Valentim, 2018, p. 270).
Se Heidegger e sua versão reacionária viam na inteligência um simulacro ou
falso espírito, certamente a recíproca é verdadeira: os teóricos do espírito niilista
certamente gostariam de se afastar tanto quanto possível da forma reacionária da
conflagração que restaura uma terra perdida a ferro e sangue. O espírito seria um
Alien que invade a Terra e se espalha como um vírus, imagem simetricamente
invertida do humano que volta ao paraíso imemorial para o qual sempre esteve
destinado (Bensusan, 2020). Contudo, sob a forma teológico-reacionária (mito de
origem, conflagração) ou moderno-calculadora (inteligência, pneuma), ainda e
sempre se trata do antropocentrismo que hierarquiza as formas de contato com o
mundo colocando no topo o humano. Não há apenas, como pensam os polos,
contradição. As diferenças não escondem uma contaminação recíproca e irredutível,
embora nunca equivalente21.
Não se trata, como a virada especulativa tem mostrado, de uma mera
projeção mental que resultaria no circuito correlacionista sem acesso ao “mundo em
si”, no qual o espírito olharia a si mesmo em espelhos (representações) infinitos sem
possibilidade de os ultrapassar. A projeção tem efeito transformador: ela de fato
invade o mundo material, reificando os outros enquanto data. Não se trata de ilusão,
mas do oximoro de um delírio realizado. Em seu modo niilista, o narcisismo abandona
a própria forma humana e se desloca para o artificial, ainda que o artificial seja
simplesmente uma forma antrópica aplicada aos aparatos técnicos que podem a
perpetuar de modo mais vigoroso que o corpo orgânico (supostamente “natural”).
Não se trata de um “outro" que invade a forma humana, mas da forma humana tão
patologicamente narcisista que admite sua autodestruição para preservar a condição.
Se o antropocentrismo, diz Valentim, “constitui a ontologia fundamental do
Antropoceno, o fascismo é a sua política oficial: a que o instaura e acelera, fechando
por expansão frenética (destruição exportada) o mundo ‘humano' sobre si mesmo e
impelindo-o assim à sua própria destruição. É, antes de mais nada, à perversidade
ecopolítica do pensamento que responde o colapso mental do ambiente” (Valentim,
2018, p. 290). A ficção alienígena baseia-se, repito, em uma reificação de uma
capacidade (inteligência) corpórea cuja projeção se estabelece em um antropismo
generalizado e colonizador, que ignora as alteridades infinitas que excedem o espírito
humano22.
21
Exatamente como Derrida descrevia a cumplicidade irredutível, embora nunca equivalente, entre os
programas totalitários que lutavam pela “liberdade do espírito” e o humanismo que se opunha a eles
(Derrida, 1987, pp. 65-66).
22
Não tenho como demonstrar aqui como há uma reificação das idealidades na metafísica do espírito e
como mesmo o abstrato/mental está ligado nas capacidades corpóreas e materialidades nas quais se
inscreve. Abordarei o tema em outros textos futuros.
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O espectral, ao contrário, reconecta — enquanto “devir-corpo do espírito” —
natureza e cultura, idealidade e materialidade na sua forma artefactual e disjuntiva
que atravessa mundos. Trata-se de afirmar a espectralidade percorrendo os múltiplos
mundos que atravessam os corpos em redes heterogêneas que se experimentam de
incontáveis maneiras. O objeto-real é povoado pela espectralidade na medida em
que a palavra “real" perde a sinonímia com “substância” e "objetividade"23. E, se é
assim, há uma injunção contínua de implicações que produzem respons/abilidades
para cada ator, pois não se trata apenas de espaço aberto, mas de outros que me
interpelam. Não há espaço vazio. Ele é preenchido por múltiplas conexões que não
podem ser desfeitas sem destruir os sujeitos e/ou objetos implicados. Voltamos a
Levinas sem precisar do seu antropocentrismo que deposita no humano —
exatamente como faz o privilégio do espírito — a exclusividade de ver no Outro o
olhar de Deus24. Não queremos tanto nem do sujeito, que não é santo25, nem do
objeto, que não é Deus. No lugar, tomemos os múltiplos mundos-mônadas que
Eduardo
Viveiros
de
Castro,
traduzindo
o
pensamento
ameríndio,
nomeia
perspectivismo e multinaturalismo, em que nada se apresenta simplesmente
destituído de um ponto de vista, “nu" como o objeto que está despovoado das
fantasmagorias, e tampouco há um fundo único (“natureza”) a partir do qual isso
seria acessível. A perspectiva não está dentro nem fora do objeto, mas entre eles, e
só há entres, pois todo limite entre dentro e fora é desde sempre perspectiva.
Imagens que se desdobram e proliferam. Xamãs capazes de atravessar mundos a
partir da espectralidade, como a relação entre Kopenawa e seus espíritos xapiri26 que
percorrem as florestas mas também mergulham nas televisões. A imagem do “no
fundo, o mesmo para todos” se despedaça. Mais que camadas, é como se em vez do
mundo entrássemos em um multiespaço com infinitas dimensões cuja matriz não
existe.
23
“Nosso jogo epistemológico se chama ‘objetivação’; o que não foi objetivado permanece irreal e
abstrato. A forma do Outro é coisa.” (Viveiros de Castro, 2011, p. 358).
24
O privilégio do humano em Levinas expressaria, para Derrida, exatamente aquilo que Heidegger critica
na unidade entre humanismo e onto-teologia: "Ora, o que nos propõe Lévinas nada mais é que,
simultaneamente, um humanismo e uma metafísica. Trata-se, pela estrada real da ética, alcançar o sendo
supremo, o verdadeiramente sendo ('substância' e 'em si' são as expressões de Lévinas) como outro. E
esse sendo é o homem, determinado em sua essência de homem, como rosto, a partir de sua semelhança
com Deus. Não é a isso que visa Heidegger ao falar da unidade da metafísica, do humanismo e da ontoteologia?" (2010, p. 205). Idem, p. 155.
25
Derrida narra, no discurso fúnebre para Levinas, a seguinte declaração do último: “(...) numa dessas
conversas iluminadas pelo brilho do seu pensamento, a bondade do seu sorriso, o humor graciso [sic] de
suas elipses, ele me diz: ‘você sabe, fala-se freqüentemente de ética para descrever o que faço, mas o
que interessa, afinal das contas, não é a ética, não apenas a ética, é o santo, a santidade do santo”
(Derrida, 2004, p. 19).
26
A palavra “espíritos”, que aliás vai sempre no plural, pode trazer uma contradição superficial, mas a que
atribuímos o efeito de “equivocidade controlada” inerente a qualquer exercício de tradução ontológica.
Certamente os espíritos da floresta têm muito pouco a ver com o espírito humano ocidental. Ver também
Valentim, questionando a “humanidade de fundo” como uma maneira problematicamente antropocêntrica
de pensar os extra-humanos (2018, p. 200-6).
134
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Do Espírito aos Espectros
Em vez do último vazio, as alteridades que Donna Haraway deixa atravessar,
de modo simpoiético, nas conexões terrenas que se estabelecem entre bichos,
plantas, minerais, florestas, fungos, paisagens, no húmus do mundo — ou no
Chthuluceno (2016). Experimentando, como diz Valentim, “a fundo a vinculação
intensiva, tão catastrófica quanto transfiguradora, do mundo ocidental com outros
mundos, humanos e extra-humanos” (2018, p. 211). Destruir nunca foi a resposta.
“A ruína não é uma coisa negativa. Primeiramente, é claro que não é uma coisa.
Poderíamos escrever (…) um curto tratado de amor pelas ruínas”, diz Derrida (2007,
p. 102). É na implicação que já está aí que as coisas circulam e nós entre elas.
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Recebido em maio de 2020
Aceito em maio de 2020
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