HON NO MUSHI – Estudos Multidisciplinares Japoneses
Vol. 4, N. 7, 2019 – ISSN 2526-3846
VAGA-LUMES EM AKIYUKI NOSAKA
FIREFLIES IN AKIYUKI NOSAKA
Maria Silvia Duarte Guimarães1
RESUMO
ABSTRACT
O presente artigo procura analisar o conto
“A grave of fireflies” [Túmulo dos vaga-lumes], do escritor japonês Akiyuki Nosaka.
Publicado originalmente em 1967, o texto
relata a história de dois irmãos que tentam
sobreviver aos bombardeios aéreos durante a Segunda Guerra Mundial. Propõe-se
analisar a importância e o significado dos
vaga-lumes na narrativa, levando-se em
consideração as ponderações de Georges
Didi-Huberman e Pier Paolo Pasolini sobre
o tema, assim como o contexto histórico e
social no qual o texto está inserido.
This essay aims to analyse the short story “A
grave of fireflies”, written by the Japanese author Akiyuki Nosaka. Originally published in
1967, the text narrates the story of two siblings
who try to survive the air bombings during
World War II. Both the importance and the
significance of fireflies will be analysed, considering Georges Didi-Huberman and Pier Paolo
Pasolini’s thoughts on the theme, as well as the
historical and social contexts in which the narrative is set.
Keywords: Japanese Literature. Akiyuki Nosaka. World War Two. Fireflies.
Palavras-chave:
Literatura
Japonesa.
Akiyuki Nosaka. Segunda Guerra Mundial.
Vaga-lumes.
1
Mestre em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários (Pos-Lit) da Universidade Federal de Minas Gerais e graduada em Letras - Italiano (Bacharelado) com ênfase em Estudos
Literários, pela mesma instituição.
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Para conhecer os vaga-lumes é preciso observá-los no presente de
sua sobrevivência: é preciso vê-los dançar vivos no meio da noite,
ainda que essa noite seja varrida por alguns ferozes projetores.
Ainda que seja por pouco tempo.
(Georges Didi-Huberman)
Vaga-lumes, ou pirilampos, são insetos pertencentes à ordem dos coleópteros e à família dos lampirídeos ou elatérios, “que apresenta[m] órgãos fosforescentes localizados na
parte inferior dos segmentos abdominais”.2 Sua caraterística marcante é a sua capacidade de
produzir bioluminescência, isto é, luz fria e visível, que ajuda as fêmeas a atrair os machos
durante o período de reprodução. Em inglês, são chamados de fireflies, termo que pode ser
traduzido literalmente como “moscas de fogo”3 ou, alternadamente, é possível entender flies
como verbo e não como substantivo, chegando à definição “fogo que voa”. Em seu conto A
grave of fireflies,4 o escritor japonês Akiyuki Nosaka dá uma grafia original ao termo, que pode
significar fogo que cai gota a gota.
O texto se inicia com uma descrição da precária situação em que se encontra Seita,
um jovem no princípio da adolescência: após perder a mãe e a irmã mais nova por causa dos
bombardeios aéreos na Segunda Guerra Mundial, e seu pai tendo possivelmente morrido
como combatente naval, ele se senta no chão da estação de San’nomiya, prostrado, incapaz
de mover um músculo sequer de seu corpo.
Em meio à multidão, Seita é capaz de sobreviver por aproximadamente duas semanas,
alimentando-se do que consegue por caridade. No entanto, devido à sua má nutrição, perde a
capacidade de se mover, sendo incapaz até mesmo de ir ao banheiro que está logo à sua frente. A multidão, que até então havia se mostrado indiferente ao seu sofrimento, agora olhava-o
por um instante ao sentir antes de se desviar, enojados pelo fedor de suas fezes: “pés passando continuamente ao seu lado, sem necessidade de notá-lo, mas de repente deixando seus
olhos caírem no estranho cheiro eles pulavam abruptamente para evitar Seita [...]”.5
Envergonhado pelo seu cheiro e pelas manchas amareladas em suas calças, causados
pelos ataques de diarreia que não podia evitar, Seita tenta inutilmente se cobrir com a poeira
e a areia do chão, no entanto, “as pessoas que o olhavam provavelmente pensavam que se tratava de um órfão de guerra enlouquecido pela fome, brincando com a sua própria merda”.6
2
3
4
5
6
FERREIRA, 2010, p. 1644.
Todas as traduções do inglês para o português presentes nesse artigo são de minha autoria.
NOSAKA, Akiyuki. A grave of fireflies. Trad. James R. Abrams. In: Japan Quarterly, v. 25, n. 4, 1978, pp. 445-463.
NOSAKA, 1978, p. 445. No original: “...feet passing continuously by his side, no need to take notice of him, but suddenly dropping their eyes to the strange smell they hastly jumped aside to avoid Seita […]”
NOSAKA, 1978, p. 446. No original: “...people looking at him probably thought a war orphan crazed by hunger,
playing with his own running shit”.
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Seus últimos momentos são descritos como destituídos não apenas de qualquer movimento, mas também de sentimento. Seita já não sentia mais fome ou sede, nem tentava
esconder suas fezes. Apenas seus ouvidos funcionavam, e ele podia distinguir os sons ao seu
redor, “um repentino momento de silêncio – noite – o som de geta ecoando pelo prédio, o
barulho do trem passando em cima de sua cabeça [...]”.7 Logo antes de morrer, ele parece
recobrar alguma razão, perguntando-se onde está e há quanto tempo estava ali. Seita morre
no dia 21 de setembro de 1945, um dia antes do governo japonês formular o “Plano geral de
proteção para os órfãos de guerra”.8
O texto de Nosaka explora a relação entre Seita e Setsuko, sua irmã mais nova, enquanto tentam desesperadamente sobreviver aos bombardeios aéreos dos americanos durante a
Segunda Guerra Mundial. Segundo Wendy Goldberg, em “Transcending the victim’s history:
Takahata Isao’s Grave of the fireflies”,9 a narrativa contém elementos autobiográficos, uma
vez que o escritor, assim como Seita, teve que cuidar de sua irmã mais nova após se separarem de sua família durante a guerra. Esta era apenas um bebê de dezesseis meses e morreu
subnutrida sob os cuidados do jovem Nosaka. Na narrativa, porém, Setsuko é uma criança
de quatro anos e, para Goldberg, este é um recurso utilizado pelo escritor para fazer com
que o leitor sinta empatia pela personagem. Aos quatro anos de idade, a garota é capaz de se
comunicar verbalmente, de expressar seus desejos e desagrados e, por isso, “[suas] cenas de
deleite e de necessidade enaltecem a empatia do espectador sobre o seu sofrimento”.10
Em uma Translator’s note,11 ao final do texto, James R. Abrams afirma que o caráter
autobiográfico do conto é enfatizado pelo estilo narrativo de Nosaka. Embora a narrativa se
desenvolva na terceira pessoa, a primeira pessoa também interfere no texto, frequentemente
fazendo uso do dialeto de Kansai, região onde o escritor nasceu. Segundo Abrams, “[o] narrador e o herói da história parecem se fundir em um mesmo ser, um fenômeno que, ainda
que complique a tarefa de traduzir, alude à relação de Nosaka com a história”.12
Assim como Seita, Nosaka lavou o corpo de sua irmã coberto de feridas com a água
do mar, e improvisou uma lamparina de vaga-lumes em uma rede de mosquitos para ela. O
7
8
9
10
11
12
NOSAKA, 1978, p. 446. No original: “a sudden period of silence – night – the sound of geta echoing through the
building, the clatter of a train passing over his head […]”.
NOSAKA, 1978, p. 446. No original: “General Plan for the Protection of War Orphans”.
GOLDBERG, Wendy. Transcending the victim’s history: Takahata Isao’s A grave of fireflies. In: Mechademia, v. 4,
2009. p. 39-52.
GOLDBERG, 2009, p. 42. No original: “Setsuko’s scenes of delight and of need heighten the viewer’s sorrow over her
suffering”.
ABRAMS, James R. Translator’s note. IN: NOSAKA, Akiyuki. A grave of fireflies. Trad. James R. Abrams. In: Japan
Quarterly, v. 25, n. 4, 1978. p. 461-463.
ABRAMS, 1978, p. 463. No original: “The storyteller and the hero of the story seem to merge into the same being, a
phenomenon that, while complicating the task of translating, well depicts Nosaka’s relationship to the story”.
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tradutor comenta, porém, que o escritor admitiu se sentir culpado em relação a essa época de
sua vida, “por demonstrar menos preocupação que Seita com os cuidados para com sua irmã
fragilizada”.13 Goldberg, por sua vez, afirma que, ao matar seu personagem, Nosaka estaria
tentando apaziguar a própria culpa.
Após a descrição da morte de Seita, a narrativa foca nos acontecimentos que levaram
à sua morte, assim como a de Setsuko. Em tom jornalístico, o narrador anuncia que no dia
5 de junho de 1945 uma formação de aviões B29 atacou Kobe, assim como algumas outras
localidades próximas. Ao ouvir o aviso oficial do ataque, Seita procura fugir com sua irmã, se
refugiando em uma escola da região onde esperavam encontrar sua mãe. No entanto, o que
encontram é um cadáver que ainda respira.
Devido a uma doença do coração, que havia surgido após o nascimento de Setsuko, a
mãe das crianças não conseguia correr e, provavelmente por isso, não havia conseguido fugir
das bombas. Quando Seita a vê deitada em uma cama na ala médica da escola, juntamente com
outros feridos, ela já está dormindo um sono do qual não irá acordar. Para o garoto, ela parece
mais estar em coma do que dormindo e, ainda que respirasse irregularmente, seu corpo se assemelhava ao de uma múmia: “a parte de cima do corpo de sua mãe estava coberta de ataduras,
seus braços pareciam tacos de beisebol enrolados, sua face estava completamente coberta por
rolos de atadura, apenas seus olhos e nariz e boca eram buracos negros abertos (…)”.14
Na noite seguinte, a mãe de Seita e Setsuko morre, assim como os outros pacientes que
estavam no mesmo quarto que ela. Ao ver o corpo de sua mãe, o garoto parece duvidar, por
um instante, que este pertence de fato a um ser humano: sangue saía por entre as bandagens
que cobriam seu corpo mumificado e “moscas voavam em massa ao redor dela”.15 Antes de
seu cadáver ser levado pelos oficiais do governo, Seita nota a pele enegrecida de sua mãe,
assim como as larvas que saltavam de seu corpo:
[...] ele finalmente pôde ver a pele de sua mãe, transformada em negro, difícil
pensar que pertencesse a um humano; no instante em que ela foi colocada na
maca, algumas larvas caíram, olhando de perto haviam centenas, milhares de larvas se arrastando pela sala de artes industriais, abstraidamente sendo esmagadas
por aqueles que carregavam os cadáveres […]. (NOSAKA, 1978, p. 452)16
13
14
15
16
ABRAMS, 1978, p. 462. No original: “...for showing less concern than Seita for the care of his weakened younger sister”.
NOSAKA, 1978, p. 450-451. No original: “the upper half of his mother’s body was covered with tape, her arms looked like wrapped up baseball bats, her face too wound round and round with rolls of tape, only her eyes and nose and
mouth black holes opened up”.
NOSAKA, 1978, p. 451. No original: “flies swarmed en masse around her”.
NOSAKA, 1978, p. 452. No original: “...he was finally able to see his mother’s skin, turned a black color, hard to think
of it as belonging to a human; in the instant she was put up on the stretcher some maggots fell off, looking more closely
there were hundreds, thousands of maggots crawling around the industrial arts room, obliviously being squashed by
those carrying out the corpses (…)”.
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Ao analisar mais atentamente a sala onde sua mãe havia recebido tratamento, Seita
percebe que todo o ambiente estava repleto de larvas, impiedosamente esmagadas pelos pés
daqueles que estavam ali para carregar os cadáveres. Ora, essa cena é um prelúdio, um aviso
ao leitor para o desfecho que o espera ao final do conto. As larvas que enchem a ala médica
da escola se desenvolverão, mais tarde, nos vaga-lumes que iluminarão as noites dos irmãos
no abrigo da caverna, e que acompanharão Setsuko ao seu túmulo.
Em Sobrevivência dos vaga-lumes,17 Georges Didi-Huberman aponta para um curioso detalhe sobre os vaga-lumes na A divina comédia,18 de Dante Alighieri: no vigésimo-sexto canto
do “Inferno” é descrita a oitava vala infernal, onde se encontram “alguns notáveis de Florença”,19 políticos influentes e desonestos, que teriam sido condenados como “conselheiros
pérfidos”.20 O espaço é iluminado pela fraca luz dos pirilampos, que o permeiam como uma
constelação, como se “cada chama contivesse um pecador” (ogne fiamma um peccatore invola)”.21
Segundo Didi-Huberman, a fraca luz emitida por esses insetos se contrasta com a luz
resplandecente do Paraíso dantesco. Neste, a claridade se expande em todas as direções, é
“uma luz de cosmos e de dilatação gloriosa”,22 enquanto os vaga-lumes da vala infernal se
assemelham a fantasmas, ou espectros, que vagam eternamente sem poder escapar de seu
sofrimento:
Assim, a vida dos vaga-lumes parecerá estranha e inquietante, como se fosse
feita de matéria sobrevivente – luminescente, mas pálida e fraca, muitas vezes
esverdeada – dos fantasmas. Fogos enfraquecidos ou almas errantes. Não nos
espantemos de que o voo incerto dos vaga-lumes, à noite, faça suspeitar de algo
como uma reunião de espectros em miniatura [...]. (DIDI-HUBERMAN, 2014,
pp. 13-14)
Para o crítico, na A divina comédia, a luz (luce) está associada à grandeza celestial, enquanto o “fraco lampejo”23 dos pirilampos (lucciole) está associado aos crimes e pecados dos
“conselheiros pérfidos”. Goldberg comenta, por sua vez, que no conto de Nosaka a imagem
dos vaga-lumes representa a morte e os espíritos de Seita e Setsuko. Isso é mais evidente na
17
18
19
20
21
22
23
DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Trad. Márcia Arbex e Vera Casanova. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2014.
ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. Trad. Xavier Pinheiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017.
DIDI-HUBERMAN, 2014, p. 11.
DIDI-HUBERMAN, 2014, p. 11.
DIDI-HUBERMAN, 2014, p. 12.
DIDI-HUBERMAN, 2014, p. 12.
DIDI-HUBERMAN, 2014, p. 13.
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sua adaptação para o cinema,24 na qual o diretor Isao Takahata utiliza imagens dos espíritos
dos personagens ao longo do filme. Takahata também afirma que “vaga-lumes morrem em
mais ou menos um dia, e isso os relaciona às crianças”.25
Didi-Huberman, no entanto, aponta para uma inversão na relação entre luce e lucciole no
século XX. Quando irrompe a Segunda Guerra Mundial, a luz dos projetores de propaganda
está apontada para os ditadores fascistas, aureolando-os com seu brilho ofuscante. É o tempo em que os “conselheiros pérfidos” estão em destaque, “em plena glória luminosa”,26 enquanto os vaga-lumes, erráticos, tentam sobreviver. O inferno dantesco, então, é exposto em
toda a sua glória, com seus políticos desonestos e tirânicos, enquanto os pirilampos “tentam
escapar como podem à ameaça, à condenação que a partir de então atinge sua existência”.27
Nesse sentido, os vaga-lumes não representam mais os criminosos, os políticos desonestos, como na oitava vala infernal de Dante. Trata-se daqueles que procuram resistir, passiva ou ativamente, à repressão do fascismo, “tentando se fazer tão discreto quanto possível,
continuando ao mesmo tempo a emitir seus sinais”.28
Em um artigo de 1975, intitulado L’articolo delle lucciole,29 Pier Paolo Pasolini descreve
o desaparecimento dos vaga-lumes na Itália. Para Didi-Huberman, trata-se de um “lamento
fúnebre”,30 no qual o cineasta utiliza a metáfora dos pirilampos para expor a vitória do fascismo, ainda que este pareça ter perdido a guerra, ainda que Mussolini tenha sido executado
na praça Loreto de Milão e que tenha sido dependurado pelos pés.
Pasolini afirma que, no início dos anos 1960, os vaga-lumes começaram a desaparecer. Devido à poluição atmosférica, do campo e da água, com o passar dos anos tornou-se
cada vez mais difícil ver esses insetos nas grandes cidades italianas. Para o cineasta, o brilho
intenso dos projetores de propaganda, que iluminaram os ditadores fascistas nos anos 1930
e 1940, havia sido substituído pelo brilho da televisão, agente primordial no processo de
“genocídio cultural”,31 do novo fascismo que se instala nos anos após o término da Segunda
Guerra Mundial, “ainda mais profundo, ainda mais devastador aos olhos de Pasolini”.32
Projetores de propaganda, bombas de aviões B29, televisores. Em contraste com o
brilho ofuscante desses agentes da repressão e do fascismo, a efêmera luz dos pirilampos
24
25
26
27
28
29
30
31
32
HOTARU NO HAKA. Direção de Isao Takahata. Tóquio: Studio Ghibli, 1988. DVD (90 min).
TAKAHATA apud GOLDBERG, 2009, p. 49. No original “…fireflies die in one day or so, and that links to the children”.
DIDI-HUBERMAN, 2014, p. 17.
DIDI-HUBERMAN, 2014, p. 17.
DIDI-HUBERMAN, 2014, p. 17.
PASOLINI, Pier Paolo. L’articolo delle lucciole. In: _______. Scritti corsari. Milano: Garzanti, 1975. pp. 128-134.
DIDI-HUBERMAN, 2014, p. 25.
DIDI-HUBERMAN, 2014, p. 28.
DIDI-HUBERMAN, 2014, p. 26.
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desaparece. Em A grave of fireflies a imagem dos vaga-lumes é frequentemente comparada
ao fogo dos bombardeios americanos, assim como aos aviões kamikaze que Seita e Setsuko
observam no céu. Para Goldberg, tanto o conto de Nosaka quanto o filme de Takahata questionam o papel do Japão na guerra: ainda que sua história seja uma de sofrimentos, é também
permeada por atrocidades cometidas em outros países asiáticos ao longo do século XX.
Após a morte de sua mãe, Seita e Setsuko buscam refúgio na casa de uma tia em Nishinomiya. A viúva, no entanto, talvez em seu desespero para sobreviver, trata os irmãos de
forma ríspida, ainda que se beneficiasse de sua presença para conseguir comida. Ela vendia
os antigos pertences de sua mãe, como quimonos ou vestidos em estilo ocidental, mas compartilhava apenas uma pequena parte dos rendimentos com as crianças.
O tratamento que recebem da tia contribui drasticamente para o desfecho da narrativa.
Quando soavam os alarmes, ao invés de se esconder no abrigo aéreo mais próximo, Seita
preferia se esconder em uma caverna que havia encontrado nas redondezas, levando Setsuko consigo. Um dia, enquanto se divertiam tocando o velho piano de sua prima, a viúva os
surpreende e sugere, autoritariamente, que talvez devessem se mudar para a caverna. Seita e
Setsuko, então, se isolam da sociedade e se mudam para o local que se torna não apenas o seu
novo lar, mas também o túmulo de Setsuko.
A viúva expõe seu ressentimento com relação à guerra no tratamento que dá às crianças. Com o tempo, suas repreensões e exigências se tornam mais severas e, sempre que
chama a atenção de Seita, ela usa do nacionalismo “para mascarar eu ressentimento pelos
[seus] sacrifícios pessoais”.33 Dessa forma, ao mesmo tempo em que elogia aqueles que estão
trabalhando pelo bem da nação, ela comenta sobre os privilégios que Seita e Setsuko recebem
pelo fato de seu pai ser combatente naval: “são apenas as famílias militares que estão vivendo
bem”.34 No entanto, ela não se contém em distribuir aos vizinhos as ameixas que as crianças
recebem, e procura se beneficiar ao máximo desses privilégios.
Em suas represálias a Seita, ela sempre destaca a sua incapacidade de server o país
como seu pai. Uma noite, quando Setsuko irrompe a chorar, atormentada por pesadelos, a
viúva abre abruptamente a porta do quarto e diz: “minha filha e meu filho estão trabalhando
pelo bem do nosso país, você não pode pelo menos fazer ela parar de chorar? nos dá nos
nervos e nós não conseguimos dormir”.35
De acordo com Goldberg, quando insulta a sua capacidade de contribuir para a guerra,
a tia de Seita está ofendendo o seu ego. Ele decide, então, se mudar para a caverna para que
33
34
35
GOLDBERG, 2009, p. 45. No original: “…to mask resentment for the personal sacrifice”.
NOSAKA, 1978, p. 453. No original: “it’s only the military families that are living high”.
NOSAKA, 1978, p. 456. No original: “my daughter and my son are both working for the sake of our country, so at least
can’t you do somethin’ to make her stop cryin’? it gets on our nerves an’ we can’t sleep”.
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possa cuidar de Setsuko da maneira que escolher e, dessa forma, provar sua masculinidade.
Para os irmãos, a caverna é um mundo de fantasia. Ali não precisam se conformar com as
regras da sociedade e, como afirma Seita, podem agir como quiserem. Ainda assim, Setsuko procurar imitar sua mãe, como se estivesse a brincar de casinha com seu irmão, “para
completar sua fantasia de maturidade e controle”36. A primeira noite que passam sozinhos é
iluminada pelo brilho dos vaga-lumes, e dos kamikaze:
Propondo uma caminhada, já que não conseguiam dormir, eles saíram para fora,
os dois urinando, acima piscavam as luzes azuis e vermelhas dos aviões japoneses
que iam em direção ao oeste, “esses são aviões kamikaze, “mm”, Setsuko, sem ter
ideia do que ele queria dizer, balançou a cabeça, “eles parecem vaga-lumes”, “eles
parecem, não é mesmo? ”, o que deu a ele uma ideia, capturar alguns vaga-lumes,
coloca-los na rede de mosquitos, fazer as coisas um pouco mais claras, não necessariamente uma imitação de Che Yin, mas apanhando o máximo que podia,
ele os soltava na rede, cinco seis deles deixando trilhas de luz, presos dentro da
rede, piscando, OK, no total conseguindo apanhar mais de cem, no final eles não
conseguiam ver as faces um do outro, mas uma sensação de alívio, seguida de
uma sensação de conforto eles começaram a sonhar... (NOSAKA, 1978, p. 457)37
Ainda que não se dê conta disso, a comparação feita por Setsuko entre os vaga-lumes e
os kamikaze é pertinente, uma vez que a luz das explosões de seus aviões é tão efêmera quanto a luz dos pirilampos. De acordo com Kenneth Henshall, em História do Japão,38 os kamikaze
eram pilotos suicidas que durante a Segunda Guerra Mundial deram suas vidas para proteger
o país. O termo pode ser traduzido como “vento divino”,39 e se refere aos tufões que, no
passado, teriam protegido os japoneses das invasões dos mongóis em mais de uma ocasião.
Ironicamente, é apenas ao final do conto que os deuses sopram o seu “vento divino” e um
tufão atinge o país, mas este já havia se rendido e Setsuko já estava morta.
De acordo com Goldberg, a grafia utilizada por Nosaka no título do conto aponta
para o caráter múltiplo dos vaga-lumes na narrativa. O escritor escolhe o kanji que representa
36
37
38
39
GOLDBERG, 2009, p. 47. No original: “...in order to complete his fantasy of maturity and control”.
No original: “Proposing they take a walk, not being able to get to sleep, they went out into the open, the two of them
urinating, above them the red and blue beacon light of Japanese planes heading toward the west flashed on and off,
“those’r kamikaze planes”, “mm”, Setsuko, having no idea what he meant, nodded, “they look like fireflies,” “they do,
don’t they,” which gave him an idea, capture some fireflies, put them into the mosquito net, make things a little lighter,
not necessarily in imitation of Che Yin, but grabbing as many as he could get his hands on he let them go in the net,
five six of them casting trails of wavering light, stopping within the net, flickering off and on, OK, in all getting more
than a hundred, in the end they could not see each other’s faces, but a sense of relief, following that gentle motion soon
they fell into dreaming…”
HENSHALL, Kenneth. História do Japão. Trad. Victor Silva. Lisboa: Edições 70, 2019.
HENSHALL, 2019, p. 57.
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“fogo”, ao invés do que é normalmente utilizado para se referir aos pirilampos, o que remete
à uma ideia de destruição, principalmente aquela causada pelos aviões B29 em Kobe e em
outras localidades do Japão.
Ao ver a luz dos kamikaze, Seita tem a ideia de capturar alguns vaga-lumes para iluminar a caverna, prendendo mais de cem insetos em uma rede de mosquitos. Em meio à luz
dos pirilampos, os irmãos não são capazes de discernir seus rostos, mas é apenas sob essa
luz ofuscante que conseguem dormir. Para Seita e Setsuko, os vaga-lumes possuem um efeito
fascinante e, em muitos momentos da narrativa, são uma forma de conforto para ambos, que
os ajuda a escapar da dura realidade que enfrentam.
Uma noite, logo após a morte de sua mãe, quando ainda buscavam abrigo com sua tia,
os irmãos se divertiam tentando pegar vaga-lumes com as mãos e, embora ainda estivessem
em Nishinomiya “os ataques aéreos pareciam ser uma preocupação de outro mundo”.40 Na
passagem em que Setsuko começa a chorar no meio da noite, após ser repreendido por sua
tia, Seita leva sua irmã para a rua, carregando-a em suas costas para acalmá-la. Nesse momento, ele vê o brilho dos vaga-lumes e, por um instante, pensa se tudo não seria mais fácil
se sua irmã não estivesse ali. No entanto, a garota logo adormece e o seu peso parece ter se
tornado mais leve, assim como os pensamentos de Seita.
Na manhã que se segue à primeira noite que os personagens passam na caverna, Setsuko enterra os vaga-lumes que haviam iluminado sua nova casa na noite anterior. É um
gesto simbólico, pois logo após responder a indagação de seu irmão, que havia perguntado
o que ela estava fazendo, a personagem revela ter conhecimento da morte da mãe: “mamãe
também está num túmulo, não é?”.41 Sendo assim, o túmulo dos vaga-lumes é também um
lugar de descanso para sua mãe, uma vez que eles não podem visitar o cemitério onde ela
está, assim como um aviso ao leitor de que Seita e Setsuko não sobreviverão.
Na tarde de 22 de agosto, Seita encontra o corpo de Setsuko já sem vida. Nos dias anteriores ela estava letárgica, incapaz de falar ou de fazer movimentos bruscos, e apenas seus
olhos acompanhavam os movimentos dos pirilampos. O personagem carrega o corpo de sua
irmã até a prefeitura para que possa ser cremado e enterrado devidamente, porém, isso não é
possível, pois “o crematório estava lotado, [e] eles disseram que não podiam ainda cuidar dos
corpos da semana passada (...)”.42 O próprio Seita, então, encarrega-se de cremar o corpo de
sua irmã, sem poder realizar uma cerimônia apropriada e sem conseguir controlar os ataques
de diarreia crônica dos quais sofria.
40
41
42
NOSAKA, 1978, p. 453. No original: “the air raids yet seemed to be of another world’s concern”.
NOSAKA, 1978, p. 458. No original: “mamma too is in a grave, isn’t she”.
NOSAKA, 1978, p. 461. No original: “the crematorium was full, they said they could not take care of those from a
week ago yet.
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HON NO MUSHI – Estudos Multidisciplinares Japoneses
Vol. 4, N. 7, 2019 – ISSN 2526-3846
A morte de Setsuko anuncia a de seu irmão, que, sem família e em um país derrotado,
não tem mais vontade de viver. Enquanto observa as chamas consumirem o corpo de Setsuko, um enorme grupo de vaga-lumes se aproxima de Seita, que captura alguns e os joga no
túmulo da irmã, para que essa não fique sozinha em sua morte: “...se for assim talvez Setsuko
não fique tão sozinha, vaga-lumes estarão ao seu lado, voando para cima, para baixo, agora
para o lado, não vai demorar os vaga-lumes desaparecerão, mas vá para o céu com esses vaga-lumes.”43 Segundo Goldberg, os pirilampos simbolizam o fogo das bombas dos aviões e
os espíritos dos personagens, assim como as almas daqueles que se perderam na guerra. Os
insetos aludem ao futuro que se foi, esmagado como as larvas que inundam o leito médico
no qual a mãe de Seita e Setsuko passa seus últimos momentos. Como apontam Didi-Huberman e Pasolini, se os vaga-lumes desaparecem em meio às luzes ofuscantes do fascismo,
reconectar-se com eles, admirar a beleza de sua bioluminescência, é voltar-se para algo que
já se perdeu.
Referências
ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. Trad. Xavier Pinheiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2017.
ABRAMS, James R. Translator’s note. IN: NOSAKA, Akiyuki. A grave of fireflies. Trad. James
R. Abrams. In: Japan Quarterly, v. 25, n. 4, 1978a. p. 461-463.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Trad. Márcia Arbex e Vera
Casanova. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio da língua portuguesa. Curitiba:
Positivo, 2010.
GOLDBERG, Wendy. Transcending the victim’s history: Takahata Isao’s A grave of fireflies.
In: Mechademia, v. 4, 2009. p. 39-52.
HENSHALL, Kenneth. História do Japão. Trad. Victor Silva. Lisboa: Edições 70, 2019.
43
NOSAKA, 1978, p. 461. No original: “if it’s like this maybe Setsuko won’t be so lonely, fireflies will be at her side, flying
up, flying down, now flying to the side, won’t be long the fireflies ‘ll be gone, but you go up heaven with those fireflies”.
Maria Silvia Duarte Guimarães
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HON NO MUSHI – Estudos Multidisciplinares Japoneses
Vol. 4, N. 7, 2019 – ISSN 2526-3846
HOTARU NO HAKA. Direção de Isao Takahata. Tóquio: Studio Ghibli, 1988. DVD (90
min).
NOSAKA, Akiyuki. A grave of fireflies. Trad. James R. Abrams. In: Japan Quarterly, v. 25, n.
4, 1978b. p. 445-463.
PASOLINI, Pier Paolo. L’articolo delle lucciole. In: PASOLINI, Pier Paolo. Scritti corsari.
Milano: Garzanti, 1975. p. 128-134.
Recebido em: 15/11/2019.
Aprovado em: 16/12/2019.
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