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VAGA-LUMES EM AKIYUKI NOSAKA

2020, Hon no Mushi

This essay aims to analyse the short story “A grave of fireflies”, written by the Japanese author Akiyuki Nosaka. Originally published in 1967, the text narrates the story of two siblings who try to survive the air bombings during World War Two. Both the importance and the significance of fireflies will be analysed, considering Georges Didi-Huberman and Pier Paolo Pasolini’s thoughts on the theme, as well as the historical and social contexts in which the narrative is set.

HON NO MUSHI – Estudos Multidisciplinares Japoneses Vol. 4, N. 7, 2019 – ISSN 2526-3846 VAGA-LUMES EM AKIYUKI NOSAKA FIREFLIES IN AKIYUKI NOSAKA Maria Silvia Duarte Guimarães1 RESUMO ABSTRACT O presente artigo procura analisar o conto “A grave of fireflies” [Túmulo dos vaga-lumes], do escritor japonês Akiyuki Nosaka. Publicado originalmente em 1967, o texto relata a história de dois irmãos que tentam sobreviver aos bombardeios aéreos durante a Segunda Guerra Mundial. Propõe-se analisar a importância e o significado dos vaga-lumes na narrativa, levando-se em consideração as ponderações de Georges Didi-Huberman e Pier Paolo Pasolini sobre o tema, assim como o contexto histórico e social no qual o texto está inserido. This essay aims to analyse the short story “A grave of fireflies”, written by the Japanese author Akiyuki Nosaka. Originally published in 1967, the text narrates the story of two siblings who try to survive the air bombings during World War II. Both the importance and the significance of fireflies will be analysed, considering Georges Didi-Huberman and Pier Paolo Pasolini’s thoughts on the theme, as well as the historical and social contexts in which the narrative is set. Keywords: Japanese Literature. Akiyuki Nosaka. World War Two. Fireflies. Palavras-chave: Literatura Japonesa. Akiyuki Nosaka. Segunda Guerra Mundial. Vaga-lumes. 1 Mestre em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários (Pos-Lit) da Universidade Federal de Minas Gerais e graduada em Letras - Italiano (Bacharelado) com ênfase em Estudos Literários, pela mesma instituição. VAGA-LUMES EM AKIYUKI NOSAKA | 218 HON NO MUSHI – Estudos Multidisciplinares Japoneses Vol. 4, N. 7, 2019 – ISSN 2526-3846 Para conhecer os vaga-lumes é preciso observá-los no presente de sua sobrevivência: é preciso vê-los dançar vivos no meio da noite, ainda que essa noite seja varrida por alguns ferozes projetores. Ainda que seja por pouco tempo. (Georges Didi-Huberman) Vaga-lumes, ou pirilampos, são insetos pertencentes à ordem dos coleópteros e à família dos lampirídeos ou elatérios, “que apresenta[m] órgãos fosforescentes localizados na parte inferior dos segmentos abdominais”.2 Sua caraterística marcante é a sua capacidade de produzir bioluminescência, isto é, luz fria e visível, que ajuda as fêmeas a atrair os machos durante o período de reprodução. Em inglês, são chamados de fireflies, termo que pode ser traduzido literalmente como “moscas de fogo”3 ou, alternadamente, é possível entender flies como verbo e não como substantivo, chegando à definição “fogo que voa”. Em seu conto A grave of fireflies,4 o escritor japonês Akiyuki Nosaka dá uma grafia original ao termo, que pode significar fogo que cai gota a gota. O texto se inicia com uma descrição da precária situação em que se encontra Seita, um jovem no princípio da adolescência: após perder a mãe e a irmã mais nova por causa dos bombardeios aéreos na Segunda Guerra Mundial, e seu pai tendo possivelmente morrido como combatente naval, ele se senta no chão da estação de San’nomiya, prostrado, incapaz de mover um músculo sequer de seu corpo. Em meio à multidão, Seita é capaz de sobreviver por aproximadamente duas semanas, alimentando-se do que consegue por caridade. No entanto, devido à sua má nutrição, perde a capacidade de se mover, sendo incapaz até mesmo de ir ao banheiro que está logo à sua frente. A multidão, que até então havia se mostrado indiferente ao seu sofrimento, agora olhava-o por um instante ao sentir antes de se desviar, enojados pelo fedor de suas fezes: “pés passando continuamente ao seu lado, sem necessidade de notá-lo, mas de repente deixando seus olhos caírem no estranho cheiro eles pulavam abruptamente para evitar Seita [...]”.5 Envergonhado pelo seu cheiro e pelas manchas amareladas em suas calças, causados pelos ataques de diarreia que não podia evitar, Seita tenta inutilmente se cobrir com a poeira e a areia do chão, no entanto, “as pessoas que o olhavam provavelmente pensavam que se tratava de um órfão de guerra enlouquecido pela fome, brincando com a sua própria merda”.6 2 3 4 5 6 FERREIRA, 2010, p. 1644. Todas as traduções do inglês para o português presentes nesse artigo são de minha autoria. NOSAKA, Akiyuki. A grave of fireflies. Trad. James R. Abrams. In: Japan Quarterly, v. 25, n. 4, 1978, pp. 445-463. NOSAKA, 1978, p. 445. No original: “...feet passing continuously by his side, no need to take notice of him, but suddenly dropping their eyes to the strange smell they hastly jumped aside to avoid Seita […]” NOSAKA, 1978, p. 446. No original: “...people looking at him probably thought a war orphan crazed by hunger, playing with his own running shit”. Maria Silvia Duarte Guimarães | 219 HON NO MUSHI – Estudos Multidisciplinares Japoneses Vol. 4, N. 7, 2019 – ISSN 2526-3846 Seus últimos momentos são descritos como destituídos não apenas de qualquer movimento, mas também de sentimento. Seita já não sentia mais fome ou sede, nem tentava esconder suas fezes. Apenas seus ouvidos funcionavam, e ele podia distinguir os sons ao seu redor, “um repentino momento de silêncio – noite – o som de geta ecoando pelo prédio, o barulho do trem passando em cima de sua cabeça [...]”.7 Logo antes de morrer, ele parece recobrar alguma razão, perguntando-se onde está e há quanto tempo estava ali. Seita morre no dia 21 de setembro de 1945, um dia antes do governo japonês formular o “Plano geral de proteção para os órfãos de guerra”.8 O texto de Nosaka explora a relação entre Seita e Setsuko, sua irmã mais nova, enquanto tentam desesperadamente sobreviver aos bombardeios aéreos dos americanos durante a Segunda Guerra Mundial. Segundo Wendy Goldberg, em “Transcending the victim’s history: Takahata Isao’s Grave of the fireflies”,9 a narrativa contém elementos autobiográficos, uma vez que o escritor, assim como Seita, teve que cuidar de sua irmã mais nova após se separarem de sua família durante a guerra. Esta era apenas um bebê de dezesseis meses e morreu subnutrida sob os cuidados do jovem Nosaka. Na narrativa, porém, Setsuko é uma criança de quatro anos e, para Goldberg, este é um recurso utilizado pelo escritor para fazer com que o leitor sinta empatia pela personagem. Aos quatro anos de idade, a garota é capaz de se comunicar verbalmente, de expressar seus desejos e desagrados e, por isso, “[suas] cenas de deleite e de necessidade enaltecem a empatia do espectador sobre o seu sofrimento”.10 Em uma Translator’s note,11 ao final do texto, James R. Abrams afirma que o caráter autobiográfico do conto é enfatizado pelo estilo narrativo de Nosaka. Embora a narrativa se desenvolva na terceira pessoa, a primeira pessoa também interfere no texto, frequentemente fazendo uso do dialeto de Kansai, região onde o escritor nasceu. Segundo Abrams, “[o] narrador e o herói da história parecem se fundir em um mesmo ser, um fenômeno que, ainda que complique a tarefa de traduzir, alude à relação de Nosaka com a história”.12 Assim como Seita, Nosaka lavou o corpo de sua irmã coberto de feridas com a água do mar, e improvisou uma lamparina de vaga-lumes em uma rede de mosquitos para ela. O 7 8 9 10 11 12 NOSAKA, 1978, p. 446. No original: “a sudden period of silence – night – the sound of geta echoing through the building, the clatter of a train passing over his head […]”. NOSAKA, 1978, p. 446. No original: “General Plan for the Protection of War Orphans”. GOLDBERG, Wendy. Transcending the victim’s history: Takahata Isao’s A grave of fireflies. In: Mechademia, v. 4, 2009. p. 39-52. GOLDBERG, 2009, p. 42. No original: “Setsuko’s scenes of delight and of need heighten the viewer’s sorrow over her suffering”. ABRAMS, James R. Translator’s note. IN: NOSAKA, Akiyuki. A grave of fireflies. Trad. James R. Abrams. In: Japan Quarterly, v. 25, n. 4, 1978. p. 461-463. ABRAMS, 1978, p. 463. No original: “The storyteller and the hero of the story seem to merge into the same being, a phenomenon that, while complicating the task of translating, well depicts Nosaka’s relationship to the story”. VAGA-LUMES EM AKIYUKI NOSAKA | 220 HON NO MUSHI – Estudos Multidisciplinares Japoneses Vol. 4, N. 7, 2019 – ISSN 2526-3846 tradutor comenta, porém, que o escritor admitiu se sentir culpado em relação a essa época de sua vida, “por demonstrar menos preocupação que Seita com os cuidados para com sua irmã fragilizada”.13 Goldberg, por sua vez, afirma que, ao matar seu personagem, Nosaka estaria tentando apaziguar a própria culpa. Após a descrição da morte de Seita, a narrativa foca nos acontecimentos que levaram à sua morte, assim como a de Setsuko. Em tom jornalístico, o narrador anuncia que no dia 5 de junho de 1945 uma formação de aviões B29 atacou Kobe, assim como algumas outras localidades próximas. Ao ouvir o aviso oficial do ataque, Seita procura fugir com sua irmã, se refugiando em uma escola da região onde esperavam encontrar sua mãe. No entanto, o que encontram é um cadáver que ainda respira. Devido a uma doença do coração, que havia surgido após o nascimento de Setsuko, a mãe das crianças não conseguia correr e, provavelmente por isso, não havia conseguido fugir das bombas. Quando Seita a vê deitada em uma cama na ala médica da escola, juntamente com outros feridos, ela já está dormindo um sono do qual não irá acordar. Para o garoto, ela parece mais estar em coma do que dormindo e, ainda que respirasse irregularmente, seu corpo se assemelhava ao de uma múmia: “a parte de cima do corpo de sua mãe estava coberta de ataduras, seus braços pareciam tacos de beisebol enrolados, sua face estava completamente coberta por rolos de atadura, apenas seus olhos e nariz e boca eram buracos negros abertos (…)”.14 Na noite seguinte, a mãe de Seita e Setsuko morre, assim como os outros pacientes que estavam no mesmo quarto que ela. Ao ver o corpo de sua mãe, o garoto parece duvidar, por um instante, que este pertence de fato a um ser humano: sangue saía por entre as bandagens que cobriam seu corpo mumificado e “moscas voavam em massa ao redor dela”.15 Antes de seu cadáver ser levado pelos oficiais do governo, Seita nota a pele enegrecida de sua mãe, assim como as larvas que saltavam de seu corpo: [...] ele finalmente pôde ver a pele de sua mãe, transformada em negro, difícil pensar que pertencesse a um humano; no instante em que ela foi colocada na maca, algumas larvas caíram, olhando de perto haviam centenas, milhares de larvas se arrastando pela sala de artes industriais, abstraidamente sendo esmagadas por aqueles que carregavam os cadáveres […]. (NOSAKA, 1978, p. 452)16 13 14 15 16 ABRAMS, 1978, p. 462. No original: “...for showing less concern than Seita for the care of his weakened younger sister”. NOSAKA, 1978, p. 450-451. No original: “the upper half of his mother’s body was covered with tape, her arms looked like wrapped up baseball bats, her face too wound round and round with rolls of tape, only her eyes and nose and mouth black holes opened up”. NOSAKA, 1978, p. 451. No original: “flies swarmed en masse around her”. NOSAKA, 1978, p. 452. No original: “...he was finally able to see his mother’s skin, turned a black color, hard to think of it as belonging to a human; in the instant she was put up on the stretcher some maggots fell off, looking more closely there were hundreds, thousands of maggots crawling around the industrial arts room, obliviously being squashed by those carrying out the corpses (…)”. Maria Silvia Duarte Guimarães | 221 HON NO MUSHI – Estudos Multidisciplinares Japoneses Vol. 4, N. 7, 2019 – ISSN 2526-3846 Ao analisar mais atentamente a sala onde sua mãe havia recebido tratamento, Seita percebe que todo o ambiente estava repleto de larvas, impiedosamente esmagadas pelos pés daqueles que estavam ali para carregar os cadáveres. Ora, essa cena é um prelúdio, um aviso ao leitor para o desfecho que o espera ao final do conto. As larvas que enchem a ala médica da escola se desenvolverão, mais tarde, nos vaga-lumes que iluminarão as noites dos irmãos no abrigo da caverna, e que acompanharão Setsuko ao seu túmulo. Em Sobrevivência dos vaga-lumes,17 Georges Didi-Huberman aponta para um curioso detalhe sobre os vaga-lumes na A divina comédia,18 de Dante Alighieri: no vigésimo-sexto canto do “Inferno” é descrita a oitava vala infernal, onde se encontram “alguns notáveis de Florença”,19 políticos influentes e desonestos, que teriam sido condenados como “conselheiros pérfidos”.20 O espaço é iluminado pela fraca luz dos pirilampos, que o permeiam como uma constelação, como se “cada chama contivesse um pecador” (ogne fiamma um peccatore invola)”.21 Segundo Didi-Huberman, a fraca luz emitida por esses insetos se contrasta com a luz resplandecente do Paraíso dantesco. Neste, a claridade se expande em todas as direções, é “uma luz de cosmos e de dilatação gloriosa”,22 enquanto os vaga-lumes da vala infernal se assemelham a fantasmas, ou espectros, que vagam eternamente sem poder escapar de seu sofrimento: Assim, a vida dos vaga-lumes parecerá estranha e inquietante, como se fosse feita de matéria sobrevivente – luminescente, mas pálida e fraca, muitas vezes esverdeada – dos fantasmas. Fogos enfraquecidos ou almas errantes. Não nos espantemos de que o voo incerto dos vaga-lumes, à noite, faça suspeitar de algo como uma reunião de espectros em miniatura [...]. (DIDI-HUBERMAN, 2014, pp. 13-14) Para o crítico, na A divina comédia, a luz (luce) está associada à grandeza celestial, enquanto o “fraco lampejo”23 dos pirilampos (lucciole) está associado aos crimes e pecados dos “conselheiros pérfidos”. Goldberg comenta, por sua vez, que no conto de Nosaka a imagem dos vaga-lumes representa a morte e os espíritos de Seita e Setsuko. Isso é mais evidente na 17 18 19 20 21 22 23 DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Trad. Márcia Arbex e Vera Casanova. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. Trad. Xavier Pinheiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017. DIDI-HUBERMAN, 2014, p. 11. DIDI-HUBERMAN, 2014, p. 11. DIDI-HUBERMAN, 2014, p. 12. DIDI-HUBERMAN, 2014, p. 12. DIDI-HUBERMAN, 2014, p. 13. VAGA-LUMES EM AKIYUKI NOSAKA | 222 HON NO MUSHI – Estudos Multidisciplinares Japoneses Vol. 4, N. 7, 2019 – ISSN 2526-3846 sua adaptação para o cinema,24 na qual o diretor Isao Takahata utiliza imagens dos espíritos dos personagens ao longo do filme. Takahata também afirma que “vaga-lumes morrem em mais ou menos um dia, e isso os relaciona às crianças”.25 Didi-Huberman, no entanto, aponta para uma inversão na relação entre luce e lucciole no século XX. Quando irrompe a Segunda Guerra Mundial, a luz dos projetores de propaganda está apontada para os ditadores fascistas, aureolando-os com seu brilho ofuscante. É o tempo em que os “conselheiros pérfidos” estão em destaque, “em plena glória luminosa”,26 enquanto os vaga-lumes, erráticos, tentam sobreviver. O inferno dantesco, então, é exposto em toda a sua glória, com seus políticos desonestos e tirânicos, enquanto os pirilampos “tentam escapar como podem à ameaça, à condenação que a partir de então atinge sua existência”.27 Nesse sentido, os vaga-lumes não representam mais os criminosos, os políticos desonestos, como na oitava vala infernal de Dante. Trata-se daqueles que procuram resistir, passiva ou ativamente, à repressão do fascismo, “tentando se fazer tão discreto quanto possível, continuando ao mesmo tempo a emitir seus sinais”.28 Em um artigo de 1975, intitulado L’articolo delle lucciole,29 Pier Paolo Pasolini descreve o desaparecimento dos vaga-lumes na Itália. Para Didi-Huberman, trata-se de um “lamento fúnebre”,30 no qual o cineasta utiliza a metáfora dos pirilampos para expor a vitória do fascismo, ainda que este pareça ter perdido a guerra, ainda que Mussolini tenha sido executado na praça Loreto de Milão e que tenha sido dependurado pelos pés. Pasolini afirma que, no início dos anos 1960, os vaga-lumes começaram a desaparecer. Devido à poluição atmosférica, do campo e da água, com o passar dos anos tornou-se cada vez mais difícil ver esses insetos nas grandes cidades italianas. Para o cineasta, o brilho intenso dos projetores de propaganda, que iluminaram os ditadores fascistas nos anos 1930 e 1940, havia sido substituído pelo brilho da televisão, agente primordial no processo de “genocídio cultural”,31 do novo fascismo que se instala nos anos após o término da Segunda Guerra Mundial, “ainda mais profundo, ainda mais devastador aos olhos de Pasolini”.32 Projetores de propaganda, bombas de aviões B29, televisores. Em contraste com o brilho ofuscante desses agentes da repressão e do fascismo, a efêmera luz dos pirilampos 24 25 26 27 28 29 30 31 32 HOTARU NO HAKA. Direção de Isao Takahata. Tóquio: Studio Ghibli, 1988. DVD (90 min). TAKAHATA apud GOLDBERG, 2009, p. 49. No original “…fireflies die in one day or so, and that links to the children”. DIDI-HUBERMAN, 2014, p. 17. DIDI-HUBERMAN, 2014, p. 17. DIDI-HUBERMAN, 2014, p. 17. PASOLINI, Pier Paolo. L’articolo delle lucciole. In: _______. Scritti corsari. Milano: Garzanti, 1975. pp. 128-134. DIDI-HUBERMAN, 2014, p. 25. DIDI-HUBERMAN, 2014, p. 28. DIDI-HUBERMAN, 2014, p. 26. Maria Silvia Duarte Guimarães | 223 HON NO MUSHI – Estudos Multidisciplinares Japoneses Vol. 4, N. 7, 2019 – ISSN 2526-3846 desaparece. Em A grave of fireflies a imagem dos vaga-lumes é frequentemente comparada ao fogo dos bombardeios americanos, assim como aos aviões kamikaze que Seita e Setsuko observam no céu. Para Goldberg, tanto o conto de Nosaka quanto o filme de Takahata questionam o papel do Japão na guerra: ainda que sua história seja uma de sofrimentos, é também permeada por atrocidades cometidas em outros países asiáticos ao longo do século XX. Após a morte de sua mãe, Seita e Setsuko buscam refúgio na casa de uma tia em Nishinomiya. A viúva, no entanto, talvez em seu desespero para sobreviver, trata os irmãos de forma ríspida, ainda que se beneficiasse de sua presença para conseguir comida. Ela vendia os antigos pertences de sua mãe, como quimonos ou vestidos em estilo ocidental, mas compartilhava apenas uma pequena parte dos rendimentos com as crianças. O tratamento que recebem da tia contribui drasticamente para o desfecho da narrativa. Quando soavam os alarmes, ao invés de se esconder no abrigo aéreo mais próximo, Seita preferia se esconder em uma caverna que havia encontrado nas redondezas, levando Setsuko consigo. Um dia, enquanto se divertiam tocando o velho piano de sua prima, a viúva os surpreende e sugere, autoritariamente, que talvez devessem se mudar para a caverna. Seita e Setsuko, então, se isolam da sociedade e se mudam para o local que se torna não apenas o seu novo lar, mas também o túmulo de Setsuko. A viúva expõe seu ressentimento com relação à guerra no tratamento que dá às crianças. Com o tempo, suas repreensões e exigências se tornam mais severas e, sempre que chama a atenção de Seita, ela usa do nacionalismo “para mascarar eu ressentimento pelos [seus] sacrifícios pessoais”.33 Dessa forma, ao mesmo tempo em que elogia aqueles que estão trabalhando pelo bem da nação, ela comenta sobre os privilégios que Seita e Setsuko recebem pelo fato de seu pai ser combatente naval: “são apenas as famílias militares que estão vivendo bem”.34 No entanto, ela não se contém em distribuir aos vizinhos as ameixas que as crianças recebem, e procura se beneficiar ao máximo desses privilégios. Em suas represálias a Seita, ela sempre destaca a sua incapacidade de server o país como seu pai. Uma noite, quando Setsuko irrompe a chorar, atormentada por pesadelos, a viúva abre abruptamente a porta do quarto e diz: “minha filha e meu filho estão trabalhando pelo bem do nosso país, você não pode pelo menos fazer ela parar de chorar? nos dá nos nervos e nós não conseguimos dormir”.35 De acordo com Goldberg, quando insulta a sua capacidade de contribuir para a guerra, a tia de Seita está ofendendo o seu ego. Ele decide, então, se mudar para a caverna para que 33 34 35 GOLDBERG, 2009, p. 45. No original: “…to mask resentment for the personal sacrifice”. NOSAKA, 1978, p. 453. No original: “it’s only the military families that are living high”. NOSAKA, 1978, p. 456. No original: “my daughter and my son are both working for the sake of our country, so at least can’t you do somethin’ to make her stop cryin’? it gets on our nerves an’ we can’t sleep”. VAGA-LUMES EM AKIYUKI NOSAKA | 224 HON NO MUSHI – Estudos Multidisciplinares Japoneses Vol. 4, N. 7, 2019 – ISSN 2526-3846 possa cuidar de Setsuko da maneira que escolher e, dessa forma, provar sua masculinidade. Para os irmãos, a caverna é um mundo de fantasia. Ali não precisam se conformar com as regras da sociedade e, como afirma Seita, podem agir como quiserem. Ainda assim, Setsuko procurar imitar sua mãe, como se estivesse a brincar de casinha com seu irmão, “para completar sua fantasia de maturidade e controle”36. A primeira noite que passam sozinhos é iluminada pelo brilho dos vaga-lumes, e dos kamikaze: Propondo uma caminhada, já que não conseguiam dormir, eles saíram para fora, os dois urinando, acima piscavam as luzes azuis e vermelhas dos aviões japoneses que iam em direção ao oeste, “esses são aviões kamikaze, “mm”, Setsuko, sem ter ideia do que ele queria dizer, balançou a cabeça, “eles parecem vaga-lumes”, “eles parecem, não é mesmo? ”, o que deu a ele uma ideia, capturar alguns vaga-lumes, coloca-los na rede de mosquitos, fazer as coisas um pouco mais claras, não necessariamente uma imitação de Che Yin, mas apanhando o máximo que podia, ele os soltava na rede, cinco seis deles deixando trilhas de luz, presos dentro da rede, piscando, OK, no total conseguindo apanhar mais de cem, no final eles não conseguiam ver as faces um do outro, mas uma sensação de alívio, seguida de uma sensação de conforto eles começaram a sonhar... (NOSAKA, 1978, p. 457)37 Ainda que não se dê conta disso, a comparação feita por Setsuko entre os vaga-lumes e os kamikaze é pertinente, uma vez que a luz das explosões de seus aviões é tão efêmera quanto a luz dos pirilampos. De acordo com Kenneth Henshall, em História do Japão,38 os kamikaze eram pilotos suicidas que durante a Segunda Guerra Mundial deram suas vidas para proteger o país. O termo pode ser traduzido como “vento divino”,39 e se refere aos tufões que, no passado, teriam protegido os japoneses das invasões dos mongóis em mais de uma ocasião. Ironicamente, é apenas ao final do conto que os deuses sopram o seu “vento divino” e um tufão atinge o país, mas este já havia se rendido e Setsuko já estava morta. De acordo com Goldberg, a grafia utilizada por Nosaka no título do conto aponta para o caráter múltiplo dos vaga-lumes na narrativa. O escritor escolhe o kanji que representa 36 37 38 39 GOLDBERG, 2009, p. 47. No original: “...in order to complete his fantasy of maturity and control”. No original: “Proposing they take a walk, not being able to get to sleep, they went out into the open, the two of them urinating, above them the red and blue beacon light of Japanese planes heading toward the west flashed on and off, “those’r kamikaze planes”, “mm”, Setsuko, having no idea what he meant, nodded, “they look like fireflies,” “they do, don’t they,” which gave him an idea, capture some fireflies, put them into the mosquito net, make things a little lighter, not necessarily in imitation of Che Yin, but grabbing as many as he could get his hands on he let them go in the net, five six of them casting trails of wavering light, stopping within the net, flickering off and on, OK, in all getting more than a hundred, in the end they could not see each other’s faces, but a sense of relief, following that gentle motion soon they fell into dreaming…” HENSHALL, Kenneth. História do Japão. Trad. Victor Silva. Lisboa: Edições 70, 2019. HENSHALL, 2019, p. 57. Maria Silvia Duarte Guimarães | 225 HON NO MUSHI – Estudos Multidisciplinares Japoneses Vol. 4, N. 7, 2019 – ISSN 2526-3846 “fogo”, ao invés do que é normalmente utilizado para se referir aos pirilampos, o que remete à uma ideia de destruição, principalmente aquela causada pelos aviões B29 em Kobe e em outras localidades do Japão. Ao ver a luz dos kamikaze, Seita tem a ideia de capturar alguns vaga-lumes para iluminar a caverna, prendendo mais de cem insetos em uma rede de mosquitos. Em meio à luz dos pirilampos, os irmãos não são capazes de discernir seus rostos, mas é apenas sob essa luz ofuscante que conseguem dormir. Para Seita e Setsuko, os vaga-lumes possuem um efeito fascinante e, em muitos momentos da narrativa, são uma forma de conforto para ambos, que os ajuda a escapar da dura realidade que enfrentam. Uma noite, logo após a morte de sua mãe, quando ainda buscavam abrigo com sua tia, os irmãos se divertiam tentando pegar vaga-lumes com as mãos e, embora ainda estivessem em Nishinomiya “os ataques aéreos pareciam ser uma preocupação de outro mundo”.40 Na passagem em que Setsuko começa a chorar no meio da noite, após ser repreendido por sua tia, Seita leva sua irmã para a rua, carregando-a em suas costas para acalmá-la. Nesse momento, ele vê o brilho dos vaga-lumes e, por um instante, pensa se tudo não seria mais fácil se sua irmã não estivesse ali. No entanto, a garota logo adormece e o seu peso parece ter se tornado mais leve, assim como os pensamentos de Seita. Na manhã que se segue à primeira noite que os personagens passam na caverna, Setsuko enterra os vaga-lumes que haviam iluminado sua nova casa na noite anterior. É um gesto simbólico, pois logo após responder a indagação de seu irmão, que havia perguntado o que ela estava fazendo, a personagem revela ter conhecimento da morte da mãe: “mamãe também está num túmulo, não é?”.41 Sendo assim, o túmulo dos vaga-lumes é também um lugar de descanso para sua mãe, uma vez que eles não podem visitar o cemitério onde ela está, assim como um aviso ao leitor de que Seita e Setsuko não sobreviverão. Na tarde de 22 de agosto, Seita encontra o corpo de Setsuko já sem vida. Nos dias anteriores ela estava letárgica, incapaz de falar ou de fazer movimentos bruscos, e apenas seus olhos acompanhavam os movimentos dos pirilampos. O personagem carrega o corpo de sua irmã até a prefeitura para que possa ser cremado e enterrado devidamente, porém, isso não é possível, pois “o crematório estava lotado, [e] eles disseram que não podiam ainda cuidar dos corpos da semana passada (...)”.42 O próprio Seita, então, encarrega-se de cremar o corpo de sua irmã, sem poder realizar uma cerimônia apropriada e sem conseguir controlar os ataques de diarreia crônica dos quais sofria. 40 41 42 NOSAKA, 1978, p. 453. No original: “the air raids yet seemed to be of another world’s concern”. NOSAKA, 1978, p. 458. No original: “mamma too is in a grave, isn’t she”. NOSAKA, 1978, p. 461. No original: “the crematorium was full, they said they could not take care of those from a week ago yet. VAGA-LUMES EM AKIYUKI NOSAKA | 226 HON NO MUSHI – Estudos Multidisciplinares Japoneses Vol. 4, N. 7, 2019 – ISSN 2526-3846 A morte de Setsuko anuncia a de seu irmão, que, sem família e em um país derrotado, não tem mais vontade de viver. Enquanto observa as chamas consumirem o corpo de Setsuko, um enorme grupo de vaga-lumes se aproxima de Seita, que captura alguns e os joga no túmulo da irmã, para que essa não fique sozinha em sua morte: “...se for assim talvez Setsuko não fique tão sozinha, vaga-lumes estarão ao seu lado, voando para cima, para baixo, agora para o lado, não vai demorar os vaga-lumes desaparecerão, mas vá para o céu com esses vaga-lumes.”43 Segundo Goldberg, os pirilampos simbolizam o fogo das bombas dos aviões e os espíritos dos personagens, assim como as almas daqueles que se perderam na guerra. Os insetos aludem ao futuro que se foi, esmagado como as larvas que inundam o leito médico no qual a mãe de Seita e Setsuko passa seus últimos momentos. Como apontam Didi-Huberman e Pasolini, se os vaga-lumes desaparecem em meio às luzes ofuscantes do fascismo, reconectar-se com eles, admirar a beleza de sua bioluminescência, é voltar-se para algo que já se perdeu. Referências ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. Trad. Xavier Pinheiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017. ABRAMS, James R. Translator’s note. IN: NOSAKA, Akiyuki. A grave of fireflies. Trad. James R. Abrams. In: Japan Quarterly, v. 25, n. 4, 1978a. p. 461-463. DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Trad. Márcia Arbex e Vera Casanova. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio da língua portuguesa. Curitiba: Positivo, 2010. GOLDBERG, Wendy. Transcending the victim’s history: Takahata Isao’s A grave of fireflies. In: Mechademia, v. 4, 2009. p. 39-52. HENSHALL, Kenneth. História do Japão. Trad. Victor Silva. Lisboa: Edições 70, 2019. 43 NOSAKA, 1978, p. 461. No original: “if it’s like this maybe Setsuko won’t be so lonely, fireflies will be at her side, flying up, flying down, now flying to the side, won’t be long the fireflies ‘ll be gone, but you go up heaven with those fireflies”. Maria Silvia Duarte Guimarães | 227 HON NO MUSHI – Estudos Multidisciplinares Japoneses Vol. 4, N. 7, 2019 – ISSN 2526-3846 HOTARU NO HAKA. Direção de Isao Takahata. Tóquio: Studio Ghibli, 1988. DVD (90 min). NOSAKA, Akiyuki. A grave of fireflies. Trad. James R. Abrams. In: Japan Quarterly, v. 25, n. 4, 1978b. p. 445-463. PASOLINI, Pier Paolo. L’articolo delle lucciole. In: PASOLINI, Pier Paolo. Scritti corsari. Milano: Garzanti, 1975. p. 128-134. Recebido em: 15/11/2019. Aprovado em: 16/12/2019. VAGA-LUMES EM AKIYUKI NOSAKA | 228