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Frederico Morais: Audiovisuais

Frederico Morais: Audiovisuais Mário Schenberg 1973 Durante a última década Frederico Morais tornou-se uma das personalidades marcantes da nossa crítica de arte. Foi sempre um crítico muito “engagé” com algumas das tendências mais importantes da arte de vanguarda, talvez desdenhando outras de muita significação, em virtude da fé exclusivista que o empolgava. Graças a ela passou a exercer uma influência considerável sobre os jovens ligados às várias tendências da arte conceitual, o movimento de maior expressão da última parte da década dos sessenta e nos primeiros anos da atual. A razão mais profunda do “engagement” de Frederico foi revelada posteriormente, quando se manifestaram as suas notáveis qualidades de artista criador nos seus audiovisuais. Esse novo desenvolvimento da sua personalidade fez também com que se despisse de um intelectualismo anterior, substituído por uma vivência mais profunda e visceral dos problemas fundamentais da nossa época e do seu reflexo na arte. A realização dos audiovisuais conduziu a uma interação muito benéfica entre a atividade crítica de Frederico Morais e o seu desenvolvimento artístico, permitindo um equilíbrio dinâmico e dialético entre as suas qualidades intelectuais e intuitivas. Hoje ele adquiriu uma admirável compreensão das afinidades profundas que podem existir entre manifestações artísticas muito diferentes quanto à sua forma e à sua linguagem, por vezes até maiores do que as existentes entre as que empregam a mesma forma de expressão. Vai se tornando cada vez mais claro que, na fase atual da arte, a comunicação de novos conteúdos vivenciais e ideológicos tornou-se mais importante do que as simples pesquisas formais de linguagem, que caracterizaram o movimento artístico de vanguarda nas décadas anteriores. Já podemos compreender que muitas das pesquisas formais e de linguagem artística da primeira metade do século XX correspondiam essencialmente a tentativas de novas apreensões da realidade complexa de um novo período histórico que começava e exigia a criação de novos valores fundamentais. As diferenças ou semelhanças de linguagem artística não indicavam necessariamente diferenças ou semelhanças das atitudes básicas ante a nova realidade. Só tive a oportunidade de conhecer alguns dos audiovisuais de Frederico Morais, se bem que de várias fases diferentes. Não me sinto, portanto, em condições de avaliar toda a importância da sua obra, nos seus aspectos críticos e de criação artística. Pude, contudo, reconhecer a sua capacidade de utilização múltipla das possibilidades tão variadas do audiovisual, assim como a sua notável compreensão da especificidade do audiovisual como forma de comunicação, que a distingue tanto da fotografia como do cinema. Frederico Morais soube utilizar o áudio-visual como um novo instrumento para a crítica de arte, como em “O Pão e o Sangue de Cada Um” (1970) e “Volpi” (1972), dedicados a Barrio e a Alfredo Volpi. Parece-me, porém, que em audiovisuais como “Cantares” (1971), “Cara de Minas” (1971/72) e “Água” (1973), Frederico atingiu nível superior de realização, dando livre curso à sua capacidade de artista criador de grande talento. Mesmo nos audiovisuais com objetivo crítico, Frederico Morais penetra na obra de outros artistas, sobretudo, através da sua aguda sensibilidade e da sua capacidade de vibração lírica, compondo na verdade outras obras de arte, inspiradas por aquelas. Substitui assim o processo analítico da crítica por uma nova síntese, fruto de uma ressonância lírica e intuitiva. Em “O Pão e o Sangue de Cada Um”, num verdadeiro poema áudiovisual contra a crueldade e a violência da nossa época conturbada, inspirado pela obra de Barrio, Frederico Morais relacionou Barrio com Goya. Fez assim compreender a grande afinidade entre as obras conceituais de hoje e as grandes pinturas do passado, não obstante a diferença total dos meios de expressão. No audiovisual “Volpi”, Frederico se inspirou em certos aspectos da obra do grande mestre da Escola Paulista, para compor um poema metafísico sobre a espacialidade cromático-musical de essência vibratória. Tornou a aproximar manifestações artísticas atuais de outras do passado, ressaltando a afinidade de Volpi com Giotto. No audiovisual “Cantares”, Frederico já conseguiu uma combinação admirável de música e imagem, sobretudo, na primeira parte, em que a música conduz a uma transfiguração surpreendente do rolo de cabo numa escultura monumental e misteriosa. A utilização do movimento do rolo nas partes seguintes foi também notável criando um clima fantástico impressionante. “Cantares” é sem dúvida um dos pontos mais altos da obra de Frederico Morais, que revela a sua apreensão dos aspectos misteriosos e fantásticos da época presente. A suíte “Carta de Minas” é certamente a realização mais rica e complexa de Frederico Morais como artista do áudio-visual. Na primeira parte, “As Minas”, há imagens de beleza plástica e cromática surpreendente, na sua desolação silenciosa, magnificamente realçadas pelo som. Na sua beleza trágica exprimem a dor dos mineiros pela terra violentada e despojada pela mineração do passado e do presente, sem benefícios duradouros. Na segunda parte, “As Gerais”, ele evoca a mediocridade do desenvolvimento agro-pastoril, depois da riqueza efêmera da mineração do século XVIII. Na quarta parte, “A Invasão”, com as paisagens devastadas pelo cupim, a tragédia mineira atinge ao seu clímax. É o ponto mais alto de toda a suíte pela dramaticidade pungente e silenciosa das suas imagens sonorizadas. Na terceira parte de “Carta de Minas”, “Uma História de Amor”, e na quarta parte, “A Invasão”, aparece o artista mineiro na sua dor e paixão pela sua província, no tema da identificação do corpo do artista com a terra, no amor e na tragédia. É uma bela realização de subjetividade e erotismo telúrico. Na “Carta de Minas”, o tema da relação do artista com a terra mineira surge, também, ligado à criação artística, de modo original, no episódio de apropriação artística dum parque de Belo Horizonte. Aliás, o tema da apropriação artística da Natureza é um dos mais importantes dos últimos anos, em toda a arte mundial, e em particular no Brasil. Em “Água”, dedicado ao filósofo francês Bachelard, Frederico Morais atingiu talvez ao seu ponto mais alto no áudio-visual. Em imagens magníficas são mostradas as várias fases da corrosão da pedra, sem que apareça visualmente a água, apenas sentida através do som. Há uma utilização muito feliz das projeções simultâneas. “Água” revela o sentimento poético da Natureza em toda a sua plenitude existencial – duma fusão da subjetividade lírica com a percepção visual e auditiva, numa vivência de imaginação material bachelardiana. A obra audiovisual de Frederico Morais tem uma importância excepcional para o movimento artístico brasileiro, pela sua abertura para muitos dos temas vitais da época atual, assim como pela sua sensibilidade para a Natureza e para o Homem, nos seus aspectos individuais, sociais e históricos. Encontramos nela uma síntese de percepção intuitiva, capacidade de expressão artística e análise crítica intelectual. Mario Schenberg 1973