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O homem de um único partido

2005, Cadernos IHU em Formação (UNISINOS), v. 1, p. 58-61, 2005

Entrevista com Maria Celina Soares D’Araujo

CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO Populismo e Trabalhismo Getúlio Vargas e Leonel Brizola 1 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS Reitor Aloysio Bohnen, SJ Vice-reitor Marcelo Fernandes Aquino, SJ Instituto Humanitas Unisinos – IHU Diretor Inácio Neutzling, SJ Gerente Administrativo Jacinto Schneider Cadernos IHU em formação Ano 1 – Nº 1 – 2005 ISSN 1807-7862 Editor Inácio Neutzling, SJ Conselho editorial Dárnis Corbellini – UNISINOS Jacinto Schneider – UNISINOS Laurício Neumann – UNISINOS Rosa Maria Serra Bavaresco – UNISINOS Vera Regina Schmitz – UNISINOS Responsável técnico Laurício Neumann Revisão – Língua Portuguesa Mardilê Friedrich Fabre Revisão Digital Camila Padilha Projeto gráfico e editoração eletrônica Rafael Tarcísio Forneck Impressão Impressos Portão Universidade do Vale do Rio dos Sinos Instituto Humanitas Unisinos Av. Unisinos, 950, 93022-000 São Leopoldo RS Brasil Tel.: 51.5908223 – Fax: 51.5908467 www.ihu.unisinos.br 2 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO Sumário Getúlio Vargas Carta Testamento.................................................................................................................. 7 “A Era Vargas foi um período de profundas modificações na sociedade brasileira” Entrevista com Pedro Cezar Dutra Fonseca........................................................................... 8 “Por ora, não se fala mais no fim da Era Vargas” Entrevista com Werneck Vianna ............................................................................................ 14 O populismo na América Latina: Getúlio, Perón e Cárdenas Entrevista com Werner Altmann............................................................................................ 18 A passagem do Brasil rural para o Brasil industrial Entrevista com Marco Antonio Villa....................................................................................... 23 Vargas pôs os valores religiosos a serviço de seu projeto político Entrevista com Artur Cesar Isaia............................................................................................ 25 Getúlio na memória popular ......................................................................................... 29 29 30 30 “Sua marca ficou para sempre” ............................................................................................ “Ainda guardo o busto de Getúlio que ganhei de meu tio”.................................................... “Getúlio parecia mais nosso que de outros Estados” ............................................................. “Um estadista não hesitaria entre os nazifascistas e os aliados” Entrevista com João Aveline ................................................................................................. 31 “Vargas entrava em pânico ao ouvir falar de centrais sindicais” Entrevista com Lauro Hagemann .......................................................................................... 34 Getúlio, os sindicatos e a greve de 1953 Entrevista com José Alvaro Moisés........................................................................................ 37 Getúlio e a revolução brasileira Entrevista com Gilberto Vasconcellos .................................................................................... 39 Um romance historiográfico sobre a vida de Getúlio Entrevista com Juremir Machado da Silva............................................................................. 41 Samba e identidade nacional na Era Vargas Entrevista com Magno Bissoli................................................................................................ 3 45 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO Eu Getúlio. Ele Getúlio. Nós Getúlios Entrevista com Eloísa Capovilla ............................................................................................ 49 Leonel de Moura Brizola ............................................................................................... 51 51 51 51 51 52 52 Biografia ............................................................................................................................... A notícia de sua morte........................................................................................................... Leonel Brizola, um político radical e apaixonado .................................................................. Do Palácio Piratini para o palco da política nacional foi um simples passo............................. Modelos ................................................................................................................................ Saiba mais sobre Brizola ....................................................................................................... A categoria populismo não serve para caracterizar a democracia brasileira Entrevista com Jorge Luiz Ferreira........................................................................................ 54 O homem de um único partido Entrevista com Maria Celina Soares D’Araujo ....................................................................... 58 “O País não está produzindo líderes” Entrevista com Gunter Axt .................................................................................................... 61 Um homem contraditoriamente coerente Entrevista com Paulo Markun ............................................................................................... 64 “Brizola despertou ódios e amores” Entrevista com Luiz Alberto Moniz Bandeira......................................................................... 68 Histórias sobre um político que se “podava” para renovar-se Entrevista com João Aveline ................................................................................................. 72 A educação no centro de seu projeto político Entrevista com Cristovam Buarque ....................................................................................... 76 “É imprevisível o que possa acontecer com o trabalhismo brasileiro” Entrevista com Sereno Chaise............................................................................................... 79 “A história da resistência não deve ser esquecida” Entrevista com Flávia Schilling .............................................................................................. 82 Entre o passado e o presente Por Eloisa Helena Capovilla.................................................................................................. 85 “Sentiremos a lacuna deixada por Brizola” Por José Odelso Schneider ................................................................................................... 87 Vale a pena ler de novo Discurso de Brizola em 28 de agosto de 1961, convocando a Cadeia da Legalidade............. 4 89 Os Cadernos IHU em formação são uma publicação do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, que reúne, num caderno, entrevistas e artigos sobre o mesmo tema, já divulgados no Boletim IHU On-Line. Deste modo, queremos facilitar a discussão na academia e fora dela, em torno de temas considerados de fronteira, relacionados com a ética, trabalho, teologia pública, filosofia, política, economia, literatura, movimentos sociais, etc. que caracterizam o Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Apresentação desenvolvido política marcante que preencheu um largo período da história política brasileira e, o outro, tenha sua trajetória política, que fazia presumir também eventual chegada à presidência da República, cortada na esteira do golpe contra Vargas de agosto de 1954 e sua projeção no golpe militar de dez anos depois, em 1964. Getúlio Vargas, como ninguém, na História do Brasil, foi o estadista a serviço de um projeto nacional, fazendo dele seu próprio projeto de vida. Esse projeto se configura na política efetiva de modernização do Estado, vale dizer, criação e consolidação de um novo tipo de estado, com reforma administrativa ancorada em burocracia de mérito, com empresas estatais em áreas estratégicas, com legislação social e trabalhista que envolvia o estabelecimento de pacto político capital/trabalho e a relação de troca entre o Estado e o sistema sindical. A propósito, o trabalhismo, como inclusão social, ensejou a criação do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e a organização de todo o restante do sistema partidário com o Partido Social Democrático (PSD) e também a União Democrática Nacional (UDN). Vargas tornou-se, então, criador e articulador de um Estado Nacional alicerçado em planejamento e no nacionalismo como motor da construção da soberania nacional. Característica marcante desse Estado Nacional em projeto foi a adesão entusiasta da população aos valores desse projeto político que encaminhava uma tendência à igualdade econômica, política e cultural com alguma, ainda que incipiente, partilha dos bens do País. De outra parte, à medida que o nacionalismo como motor da soberania nacional foi, crescentemente, se opondo às instâncias externas de dominação impeditivas da efetiva soberania nacional, ele foi adquirindo a marca correlata do antiimperi- Com este primeiro número de Cadernos IHU em formação o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, dá início, em boa hora, a mais uma im- portante frente editorial. A nova publicação concentrará – e estenderá – temática específica que tenha sido publicada no já consagrado semanário Boletim IHU On-Line. Desse modo, a concentração de artigos e entrevistas de idêntico eixo temático pretende proporcionar a abrangência de visão para quem deles se aproxima, fornecendo, ao mesmo tempo, fontes para a pesquisa acadêmica mais alentada. Os artigos e as entrevistas referentes a Getúlio Vargas são provenientes, inicialmente, do evento A Era Vargas, realização conjunta do Instituto Humanitas Unisinos e do Programa de Pós-Graduação em História da UNISINOS, realizado de 23 a 25 de agosto de 2004, que permitiu ao IHU a publicação dos magníficos boletins A Era Vargas em Questão (ano 4, n.º 111, de 16 de agosto de 2004) e Getúlio (ano 4, n.º 112, de 23 de agosto de 2004). De outra parte, a morte do herdeiro político de Vargas, Leonel de Moura Brizola, ocorrida dois meses antes, havia ensejado igualmente um magnífico Boletim, Leonel de Moura Brizola – 1922 – 2004 (ano 4, n.º 107, de 28 de junho de 2004). Os acontecimentos e as publicações do IHU On-Line estavam, portanto, apontando para esta publicação conjunta. Mais uma vez a História mostrava o caminho. O desdobramento do eixo temático nas figuras históricas de Getúlio Vargas e de Leonel Brizola se faz naturalmente pela percepção da proximidade dos personagens ao mesmo projeto político, o do nacional-desenvolvimentismo, ainda que a trajetória política de ambos esteja revestida de considerável assimetria, na medida em que um tenha chegado ao poder político e, nele instalado, 5 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO alismo. O nacionalismo que fundamenta ideologicamente o projeto nacional desenvolvimentista pretendeu, portanto, suplantar as contradições com o imperialismo sem, no entanto, enveredar pelo terreno da xenofobia. Dessa maneira, o nacionalismo e o próprio populismo, como se passou a denominar toda a marca política da época, forneceram a fundamentação ideológica da construção do Estado Nacional e seu enfrentamento com o imperialismo. Com efeito, o populismo na América Latina apresenta um caráter básico de resistência, no sentido da autonomia relativa do Estado em relação às classes sociais e como antagonismo ao imperialismo. O populismo na América Latina só pode ser entendido se visto na esteira do nacionalismo e da busca da autonomia nacional como projeto político. Vale a pena estabelecer aqui a relação com o pensamento do filósofo mexicano Leopoldo Zea, quando se referiu à contraposição cultural européia e latino-americana, afirmando não aceitar a existência de uma matriz cultural à qual todas as demais culturas devam submeter-se, mas que todas possam dialogar em pé de igualdade (escutar o outro, reconhecê-lo como outro para a possibilidade do diálogo igualitário). Para que tal possa acontecer, Zea aponta para a necessidade da reapropriação da memória histórica latino-americana, passo necessário para a desalienação e o estabelecimento da auto-afirmação própria sem a pretensão do estabelecimento de nova dominação, aquilo que, na obra de Zea, configura um latino-americanismo universal. Assim, os textos deste primeiro número de Cadernos IHU em formação evidenciam a importância da reapropriação da memória desta etapa histórica brasileira do século XX, em relação aos dias atuais, com realização política de desenvolvimento oposto ao do nacional-desenvolvimentismo varguista. Os artigos e as entrevistas aqui apresentados fazem realçar a importância dessa reapropriação histórica para poder se alinhavar o horizonte e a marca do desenvolvimento político-econômico brasileiro nesse início do século XXI. A Era Vargas revela-se, portanto, mais atual do que nunca para a discussão sobre os destinos da nação brasileira. É certo que estamos diante de um Getúlio Vargas multifacetado – em aspectos pontuais e, em essência, irrelevantes – mas, extremamente coerente e linear em seu lugar na História, isto é, em sua vinculação ao projeto nacional-desenvolvimentista que encarnou magistralmente como personagem histórico invulgar. Por outro lado, a parte referente a Leonel Brizola encaixa-se de forma natural para a publicação que se apresenta, desde logo pela morte ocorrida em junho de 2004. Porém, mais que isso, os artigos e as entrevistas referentes a Brizola, aqui reunidos indicam incorporação e acréscimo às discussões sobre a relevância do significado do período nacional-desenvolvimentista direcionado à construção de um autêntico Estado Nacional autônomo, pois, afinal de contas, o Brasil ainda não resolveu o impasse e a contradição entre nacional-desenvolvimentismo e antinacionalismo integrado à globalização. Oferece-se, então, ao leitor, esse mosaico do pensamento político sobre eixo temático específico na concordância de que a Era Vargas deixou legado fundamental que afirma o açodamento aistórico dos que pretendem proclamar o seu fim. Dr. Werner Altmann 6 Getúlio Vargas Carta Testamento hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo... Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história.” “Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História”. “E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e 7 “A Era Vargas foi um período de profundas modificações na sociedade brasileira” Entrevista com Pedro Cezar Dutra Fonseca O professor do Departamento de Ciências Econômicas da UFRGS, Pedro Cezar Dutra Fonseca, entrevistado pela redação do IHU On-Line, abordou as características do modelo econômico do período Vargas. Pedro Dutra Fonseca é graduado e mestre em Economia pela UFRGS, tendo sua dissertação o título Reorientação da Economia Gaúcha na República Velha: A Política Econômica e os Fundamentos dos Conflitos Políticos. Doutorou-se também em Economia pela USP e deu à sua tese o título Vargas: O Discurso em Perspectiva e o Capitalismo em Construção. É autor de, entre outros livros, RS: Economia e Conflitos Políticos na República Velha. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983; Vargas: O Capitalismo em Construção. São Paulo: Brasiliense, 1989; e, com Gentil Corazza, A Junta Comercial no Contexto da Economia do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS, 2003. nomia industrializada do hemisfério sul. Foi uma mudança substantiva que houve na sociedade brasileira. Nos últimos anos dessa Era Vargas, principalmente após 1944, quando a Segunda Guerra vai chegando ao fim, há também o aparecimento do que chamamos de trabalhismo, que alguns autores denominam também de populismo. Esse movimento marcou uma tentativa de incorporação das grandes massas nesse projeto de desenvolvimento com uma certa distribuição de renda. É um projeto muito marcante para a sociedade brasileira. O legado dessa Era é muito forte até hoje no Brasil. IHU On-Line – Como se relaciona isso com o livre mercado? Foi uma reação à idéia de livre mercado? Pedro Dutra Fonseca – Sim. Podemos dizer que há dois movimentos. Desde a sua formação, Vargas sempre foi um defensor da propriedade privada, das instituições capitalistas, mas ele não era liberal no sentido estrito da palavra, ou seja, liberal no sentido de achar que o Estado não deve participar da economia. A formação inicial de Vargas é positivista, e o positivismo difere do liberalismo nesse aspecto, porque ele aceita uma certa intervenção do Estado. Na década de 1930, podemos dizer que o espírito da época era estatizador. Todas as economias que dão certo nessa década, como o fascismo italiano, o nazismo alemão, a Rússia, de Stalin, são de países com forte intervenção governamental. Aonde o mundo vai mal? São os países liberais que vão mal. A crise de 1929 vai atingir em cheio os Estados Unidos, a Inglaterra, a França, a Holanda, os países tipica- IHU On-Line – O que caracterizou o modelo econômico da Era Vargas? Pedro Dutra Fonseca – Esse modelo significou o mais importante movimento, até hoje, pela industrialização do País. Na verdade, essas décadas que compreendem a Era Vargas, que, grosso modo, vai de 1930 até 1954, praticamente 25 anos, representaram um período de profundas modificações para a sociedade brasileira, que deixou de ser tipicamente rural para ser urbana, passou de sociedade agrária para sociedade industrial. A economia brasileira estava concentrada na produção de poucos produtos primários, principalmente a exportação e passou a ser extremamente diversificada e se constituiu na única eco8 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO mente liberais e com pouca participação do Estado. Então nas décadas de 1930, 1940, Vargas segue o espírito desse momento em que cada país vai, por suas próprias mãos, buscar uma alternativa. Esses grandes estadistas, para o bem ou para o mal, são grandes nomes em vários países, o próprio Perón, na Argentina, Nasser, no Oriente Médio, sugerem saídas individuais e com certo nacionalismo. Nos Estados Unidos, que é talvez o país mais liberal do mundo, é o momento do new deal, de Roosevelt, que propõe uma participação forte do Estado na economia. Na Inglaterra, que é um país de tradição liberal, a pátria do liberalismo, surge Keynes, sugerindo também a intervenção do Estado. Esse comportamento de Vargas não é exótico. Ele age conforme o espírito da época, de acordo com o que vinha acontecendo no mundo, naquele momento. pós-1930 reconhece a existência das classes e que são desiguais. Então, ele tenta fazer uma mediação dessas classes. Ele quer ser o elemento harmonizador delas. Claro que é um Estado que não aceita a idéia de luta de classes, capital e trabalho, ao contrário do socialismo, porque nele capital e trabalho têm que estar unidos em prol da Nação. É outra veia que brota no governo Vargas, que fica clara no Estado Novo, a perseguição política aos comunistas e aos integralistas, aqueles que se desviam desse projeto. IHU On-Line – Pode-se dizer que essa carac- terística de incentivo às corporações empresariais e um apelo aos trabalhadores é algo tipicamente brasileiro ou, nos demais países que o senhor mencionou, aconteceram movimentos assemelhados? Pedro Dutra Fonseca – Cada país tem a sua forma, suas peculiaridades, mas de maneira geral, da década de 1930 até meados da de 1950, com a própria guerra que se avizinha, esses movimentos de estatizar a questão social se travam nos países, com conotações diferentes. Por exemplo, na Argentina, com a Evita Perón, este tipo de sistema, que chamo de populista, é muito mais radical. É um diálogo direto com os descamisados da Evita, inclusive, muitas vezes, passando por cima das instituições parlamentares e sindicais dos capitalistas. No caso do Brasil, o governo Vargas nunca chegou a romper em definitivo, principalmente após 1946. Vargas constituiu dois partidos, o PSD e o PTB. Há um entrelaçamento com os sindicatos, que é feito depois por João Goulart, de uma forma muito clara, com lideranças do PTB. O governo Vargas, a partir daí, não vai deixar de lado a luta parlamentar. A constituição desses dois partidos e o fato de eles serem hegemônicos, no caso brasileiro, dá uma certa calmaria política, mas isso não dispensa as instituições parlamentares. E os empresários, nesse momento, participam desses partidos, e os trabalhadores também, e há lideranças, tanto de empresários como de trabalhadores, representadas neles, que dão sustentação ao Governo. IHU On-Line – E no lado da iniciativa privada e dos empresários, qual foi a contrapartida a essas proposições? Pedro Dutra Fonseca – Nesse momento, há um apoio empresarial ao Governo. Há uma tentativa, desde o início, de cooptar esses empresários. E não só os empresários da indústria, mas também os empresários do setor primário. Na ausência de instituições liberais, o Governo começa a criar órgãos estatais. Começa com o Instituto do Café, depois surgirão institutos de vários produtos, do açúcar e do álcool, do pinho, do mate, do cacau... Todos são órgãos criados pelo Estado que vão permitir um diálogo direto, uma participação direta desses empresários com o Governo. O poder executivo se abre a essas classes sociais, da mesma forma que ele tenta também trazer os trabalhadores para esse projeto com a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, que é um dos primeiros atos de Vargas ao assumir, e depois com a legislação trabalhista. Uma coisa interessante desse Estado, após 1930, é que ele reconhece a existência das classes sociais. Enquanto antes de 1930 se tenta apagar a existência de classes sociais, depois se parte para uma ideologia de querer que todos os brasileiros sejam iguais. Aí sim, em nome do liberalismo – ou seja, no mercado todos são livres para ter acesso –, o Estado do IHU On-Line – Que papel a Era Vargas reser- vou aos bancos, às instituições financeiras? 9 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO IHU On-Line – Vem da Era Vargas a expansão Pedro Dutra Fonseca – Uma das grandes características do capitalismo brasileiro, na sua formação, e desse período de Vargas, é que os bancos tiveram um papel secundário. Os bancos brasileiros tinham uma legislação específica, mas era um sistema muito frágil. É um desafio que temos muitas vezes que explicar na história econômica do Brasil, como o País chegou até 1960 sem ter um Banco Central, que só foi criado pelos militares, depois de 1964, num dos primeiros atos do governo militar. Vargas chegou a cogitar, no final da guerra, em criar um Banco Central, mas não o fez, criou a Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc), de tal maneira que quem executava a política monetária era o Banco do Brasil e quem normatizava e estabelecia a parte doutrinária das políticas monetária e cambial era a Sumoc. Quando se constituem os grandes grupos econômicos brasileiros, como Itaú, Bradesco, Banco Nacional, que era do Magalhães Pinto, ou Banco Econômico? Eles se formam por fusões de bancos menores, de incorporações, mas isso já no período do “milagre brasileiro”, estimulado pelo Delfim Neto, após 1968, 1969, 1970. Nesse momento, que abrange o governo Costa e Silva e principalmente o governo Médici, é que esses grandes grupos nacionais são constituídos, e é modernizado o sistema financeiro brasileiro, para servir como financiador. A caderneta de poupança e o sistema financeiro de habitação são manifestações do pós-1964. Então podemos dizer que essa era uma das fragilidades desse momento do sistema brasileiro. Na Argentina, o Banco Central foi criado na década de 1930, enquanto no Brasil só o foi em 1964. Esse é um dos gargalos da Era Vargas, a escassez de fontes de financiamento. O Juscelino vai ter esse problema muito sério. Não tinha um mercado de ações desenvolvido no Brasil e não tinha um mercado de títulos. A dívida interna é um fenômeno posterior, porque não existia um mercado claro de títulos nesse momento. Isso limitava o Estado na sua fonte de financiamento. O Governo só poderia expandir seus gastos se ele emitisse, o que poderia gerar inflação, ou por meio de impostos ou empréstimos externos, porque não havia um mercado interno de captação. de caixas de previdência, de iniciativas na área de seguros? Pedro Dutra Fonseca – Sim. A parte principalmente de previdência e de seguros integra toda a política de proteção ao trabalhador. Na verdade, tanto um como o outro, tanto a previdência como os seguros, existiam antes de 1930, mas para categorias específicas. Por exemplo, os portuários tinham um Instituto de Previdência ou regras de previdência, uma caixa. Chamava-se, naquela época, de aposentadoria de pensões, que também já existia para os militares e funcionários públicos. O que aconteceu a partir de 1930 é que essa previdência, assim como todas as leis sociais em geral, se estenderam a todas as categorias de trabalhadores. Gradualmente, se implantam institutos específicos para todas as categorias de trabalhadores. Começa pela indústria, pelo comércio... Os únicos excluídos desse setor são os trabalhadores do campo. Há uma análise tradicional da economia brasileira que é mostrar que Vargas consegue fazer um grande pacto político para gerenciar e tornar hegemônico esse projeto de industrialização. Para isso, ele conta com os proprietários de terra. Para a maior parte dos proprietários de terra que têm um enorme poder político, principalmente, porque ainda têm muito controle sobre os votos no interior, ele dá em troca, de um lado, o compromisso de não haver reforma agrária, e de outro lado, a restrição da legislação trabalhista à cidade. Só vai aparecer carteira do trabalho, férias, obrigatoriedade de décimo terceiro no campo, na década de 1970, já no governo militar. A idéia de reforma agrária só aparece no período do trabalhismo na década de 1960, quando Vargas já tinha morrido, e da forma mais radical encampada por Brizola, que se torna seu grande líder, forçando o trabalhismo a levantar essa bandeira, que até então Getúlio Vargas pregava, mas com muita calma. Reforma agrária era quase o sinônimo de colonização; “Vamos colonizar o Oeste do Paraná”; “Vamos colonizar a Amazônia”. Então a reforma agrária era quase um eufemismo, mas não em si uma distribuição de terras ou dos latifúndios improdutivos. Isso acontece bem mais tarde. 10 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO IHU On-Line – O senhor acha que a Era Vargas foi sucedida por algum ciclo com importância assemelhada? Pedro Dutra Fonseca – A Era Vargas, se pegarmos o sentido amplo da expressão, encerra-se em 1964, com a deposição de João Goulart, com a ditadura militar. Vargas morre em 1954, mas ainda os partidos e os líderes formados no trabalhismo são muito fortes, haja vista que, logo em seguida, é eleito Juscelino com o Jango de vice, reavivando os dois partidos que ele tinha criado: o PSD e o PTB. Mesmo com a eleição de Jânio, em 1960, Jango é reeleito vice-presidente e depois assume com a renúncia de Jânio. Como é a política brasileira após a morte de Vargas? É como se ele fosse o personagem central. São os varguistas e os antivarguistas, liderados pela UDN e, aqui no Rio Grande do Sul, pelo Partido Libertador (PL). Na economia, da mesma forma, os projetos são de industrialização acelerada, com barganha com relação ao capital estrangeiro. Isso era o contrário da política proposta pelo maior partido da oposição, que era a UDN, mais liberal, mais adepta do capital estrangeiro. Achava que era essencial o capital estrangeiro para haver a industrialização do País e que acusava esse nacionalismo de Vargas de demagógico, inclusive de explorador das massas pelo populismo. Essa era se encerra, definitivamente, em 1964, quando, pela primeira vez, a oposição a Vargas assume o poder e inicia a cassação de mandatos parlamentares e tira da cena política não só os comunistas mas aqueles nacionalistas mais exaltados e ligados mais diretamente à figura de Vargas. Sobram poucos, como Tancredo Neves, que era moderado e que foi ministro da Justiça de Vargas; Ulysses Guimarães, que também era do PSD; Pedro Simon, aqui no Rio Grande do Sul, porque a maior parte de opositores são cassados naquele momento. Aí se encerra um grande ciclo da história política do Brasil, muito mais do que da história econômica. Do ponto de vista econômico, no final dos anos 1980, quando começam as privatizações, é que ocorre a mudança substantiva, quando começa a se dizer que precisa haver a privatização das empresas estatais, flexibilizar a legislação trabalhista, atrair o capital estrangeiro para constituir setores importantes da indústria nacional, e a desnacionalização dos grandes bancos. Nesse momento, ocorre o encerramento do ponto de vista estritamente econômico da Era Vargas. É o final de um grande ciclo da industrialização pela via da substituição de importações. Não há uma certa coincidência entre o fim da Era Vargas na economia e na política. Parece que, na esfera política, a Era Vargas se encerra em 1964, com o golpe militar. Do ponto de vista econômico, os militares ainda continuaram a manter uma forte presença do Estado na economia, com prioridade para a industrialização. O governo Geisel criou enormes empresas estatais e manteve as empresas estatais do período anterior. Isso foi feito por todos os governos militares. Do ponto de vista econômico, essa Era Vargas só vai se encerrar com a eleição do Collor, praticamente, já no início dos anos 1990, final dos anos 1980. IHU On-Line – É possível traçar algum para- lelo entre essa forma de operar política da Era Vargas e do atual Governo? Pedro Dutra Fonseca – Há certas semelhanças. Inclusive há algo muito interessante: Vargas é eleito pela esquerda e com uma retórica nacionalista, em 1951, no segundo Governo. Mas ele assume e faz algo parecido com o que Lula está fazendo. Ele nota que a inflação está muito alta e que está havendo um problema sério nas finanças públicas. Ele diz que precisará fazer uma política ortodoxa: elevar a taxa de juros, cortar gastos públicos e não elevar salários, apertar os cintos. Nesse momento, a oposição se cala. No bloco governista e principalmente na esquerda, começam as críticas a Vargas. Os comunistas começam a dizer, por exemplo, que não há diferença nenhuma entre Vargas e os Estados Unidos, que Vargas é um representante dos Estados Unidos no Brasil, que aquela forma de pedir para apertar os cintos é reacionária. Então começa uma grande discussão em 1951, 1952. Vargas acaba cedendo, elevando os salários. Quando ele eleva os salários, a oposição ainda diz que é insuficiente. A UDN fica calada e entre os trabalhistas e a esquerda em geral é que há a maior oposição ao Governo. Isso vai levar a uma sucessão de greves, até que acontece a maior greve da história do Brasil de então, que é chama- 11 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO da a Greve dos 300 mil e que força Vargas a tomar decisões. Nesse momento, ele coloca Jango no Ministro do Trabalho, na tentativa de acalmar esses movimentos, porque Jango é considerado o político do trabalhismo que tem mais trânsito no meio sindical, entre os chamados pelegos, que são aqueles sindicatos que apóiam o Governo, que eram do lado do trabalhismo, e não necessariamente comunistas. Esse sindicalismo, que era radical, no governo Vargas fica moderado, porque não faz uma oposição direta ao presidente. Em certo sentido, há alguma semelhança com a situação atual. A diferença básica é que o governo Lula está conseguindo uma base de apoio muito maior que a de Vargas. Era difícil, naquela situação, constituir uma base de apoio. Jango, principalmente, enfrenta uma luta no Congresso Nacional radicalmente contra ele. Ao que tudo indica não é o que está acontecendo no governo Lula. Parece que ele consegue uma legitimidade muito maior dos atores políticos, e a crítica a ele provém de alas mais à esquerda do espectro político. Ele está calando as críticas do centro para a direita e de uma parte da esquerda. Isso Vargas não conseguiu. Até porque surgiu a campanha da Petrobrás que ele teve que liderar. E a UDN fazia uma oposição muito séria ao Governo. A situação não estava como está hoje, com uma defesa maior da democracia. A UDN claramente dizia que a saída para o Brasil era um golpe militar, já desde essa época. Ela não aturava essa forma de populismo, mesmo que fosse moderado, uma vez que Vargas não era um político radical. Esse radicalismo político udenista, eu não o vejo no momento atual. Essa é uma grande diferença. Mas são governos que têm uma grande semelhança, porque vêem a luta política, de um lado mais à esquerda, e concorrem com outro lado considerado mais conservador. São dois momentos muito semelhantes da história. E o comportamento dos dois presidentes em algumas atitudes é muito parecido. distribuição de renda e acreditam que mecanismos extramercados vão levar a essa distribuição. Outra coisa é que os dois governos mostram, pelo menos no início, que não são governos radicais. Ao contrário, são governos que tentam fazer uma política ortodoxa e com prioridade para a estabilidade econômica. Isso é uma novidade. E, em uma pesquisa que eu fiz, as pessoas dizem que “o populismo significa que o Governo quer fazer a economia crescer e quer distribuir renda sem se preocupar com a estabilidade”. Não é assim. Tanto o governo Goulart, como o governo Vargas, e agora o governo Lula, eleitos pela esquerda no sentido amplo de que estão concorrendo contra um outro bloco que é mais conservador, não dispensam a idéia de estabilidade e tentam fazer uma composição ampla no Congresso Nacional para garanti-la. A diferença é que o governo Vargas foi precipitado por uma crise política muito séria. E o governo Goulart também. No governo Lula, parece que está havendo uma certa habilidade ou uma radicalização política menos séria do que naquele momento. A oposição hoje não é uma oposição golpista. A UDN dizia claramente que os militares tinham que ajudar a salvar o Brasil do comunismo na época de Jango e, na época de Vargas, que nunca tinha sido comunista, pelo contrário, tinha mandado prender todos os comunistas no Estado Novo. Vemos o grau de radicalização que existia então, que hoje parece não acontecer. A radicalização maior contra o Governo hoje parte de setores da própria esquerda. IHU On-Line – Há semelhanças no projeto dos dois governantes de atribuir ao Estado um papel indutor do desenvolvimento? Pedro Dutra Fonseca – Sim. Essa é uma característica comum, do ponto de vista ideológico, ambos os governos defendem uma maior participação do Estado na economia. Eles são não-liberais, ou pelo menos antiliberais, de uma forma ideológica mais ampla, o que não quer dizer que eles não façam políticas de estabilização ortodoxa a curto prazo. Mas a retórica desses dois governos é que eles se propõem a fazer uma distribuição, se propõem a um certo nacionalismo. Por exemplo, a posição que Lula está tomando com relação à IHU On-Line – Por exemplo? Pedro Dutra Fonseca – Eles são semelhantes na sua proposta maior que, em certo sentido, é tentar incorporar os trabalhadores ou incorporar as grandes massas. Os dois governos acenam para a 12 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO idéia: não vamos romper com os Estados Unidos, mas não vamos aceitar tudo o que os Estados Unidos querem. Sempre há uma política de barganha, essa barganha que se manifesta na Alca hoje, ou no grupo do G-20, de fazer políticas, de recorrer à Organização Mundial do Comércio, para criticar a política dos países do primeiro mundo. Isso existia muito na época de Vargas. Embora fosse uma política de barganha, chamada política externa independente, que também aconteceu no governo de João Goulart, com Santiago Dantas, era uma política de convivência, e isso, em determinados momentos, irritava profundamente os Estados Unidos. Alca e às relações internacionais é muito parecida com a de Vargas, que era uma política que não rompia com os Estados Unidos. Era uma política realista suficiente para entender que romper com os Estados Unidos seria loucura, não era possível, sendo no caso de Vargas mais sério ainda, porque estava acontecendo a Guerra Fria, significaria uma aproximação com a União Soviética, que seria impensável. No caso do governo Lula, significaria romper com a única grande potência do mundo hoje e que responde por grande parte dos investimentos estrangeiros no Brasil e por cerca de 1/4 das exportações e importações brasileiras. Os dois governos têm muita semelhança na seguinte 13 “Por ora, não se fala mais no fim da Era Vargas” Entrevista com Werneck Vianna O professor Luiz Werneck Vianna é enfático quanto à permanência do legado de Vargas na cena política brasileira. Na sua opinião, os traços constitutivos da Era Vargas estão bem presentes e foram, mesmo, reforçados pelo governo petista, ao criar o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES). Ele considera o CDES emblemático no que diz respeito à influência varguista, pois as relações entre o Estado e as corporações assumiram antigas feições, com o primeiro chamando a sociedade civil organizada às referidas corporações, para deliberar sobre o País. Dessa maneira, renunciando ao seu discurso histórico, o PT, no Governo, teria induzido os trabalhadores a abdicarem do protagonismo político, beneficiando interesses que se expressariam em valores republicamos de discutível importância na conjuntura atual. Esta prática, no entender de Werneck Vianna, que é doutor em Sociologia pela USP e mestre em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), onde é professor, não transforma o atual Governo em “inimigo do povo”, mas revela as suas dificuldades em superar a práxis varguista. Dificuldades, aliás, que também não foram vencidas pelos governos anteriores, pois, de acordo com o professor, a Era Vargas “foi determinante” na história sociopolítica brasileira e abriga uma parte do que há de melhor na tradição política nacional, como ele demonstra na entrevista. Werneck Vianna é autor de Liberalismo e Sindicato No Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976; A Classe Operária e A Abertura. São Paulo: Hucitec, 1983; Travessia – da Abertura A Constituinte 86. Rio de Janeiro: Taurus, 1986; De Um Plano Collor A Outro. Rio de Janeiro: Revan, 1991; O Perfil do Magistrado Brasileiro. Rio de Janeiro: Associa- ção dos Magistrados Brasileiros – AMB, 1996 (com Carvalho, M. A. R., Melo, M. P. C., Burgos, M. B); Corpo e Alma da Magistratura Brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 1997 (com Melo, M. P. C., Carvalho, M. A. R., Burgos, M. B.); A Revolução Passiva: Iberismo e Americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1997(com Carvalho, M. A. R., Melo, M. P. C., Burgos, M. B); A Judicialização da Política e das Relações Sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999 (com Carvalho, M. A. R; Melo, M.P.C.; Burgos, M.B.); Liberalismo e Sindicato no Brasil. 4. ed. rev. Belo Horizonte: UFMG, 1999. Luiz Werneck Vianna é o atual presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais – ANPOCS. IHU On-Line – Qual foi, em linhas gerais, o impacto da Era Vargas na história sociopolítica brasileira? Werneck Vianna – Foi determinante, com aspectos positivos e negativos. Os aspectos positivos estiveram, sobretudo, referenciados a mudanças de paradigmas, quando saímos da dominação do interesse agrário e fizemos a transição para a ordem urbana em que estamos. Isso é obra da Era Vargas. A industrialização, a inserção do País no cenário internacional de uma forma mais autônoma. De um outro ponto de vista, muito relevante a meu ver, na medida em que, pela primeira vez, as elites apresentaram um projeto de incorporação de uma parte dos segmentos modernos da sociedade à ordem republicana, muito especialmente dos trabalhadores urbanos. Isso se fez por via da fórmula corporativa, em que esse segmento de trabalhadores passou a fazer parte da esfera pública e a gozar, de outro modo, os benefícios da legislação protetora do trabalho, tendo acesso aos 14 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO direitos sociais. O aspecto negativo foi que tanto este movimento no sentido de romper com o Brasil agrário, tradicional, como o de promover a incorporação dos trabalhadores urbanos se fez com perda da liberdade, da autonomia, no momento em que o Estado trouxe tudo para si. dos desejos e dos apetites, moderação essa regulada pelo Direito e por uma moralidade que estava aplicada à idéia de construção da Nação. Os trabalhadores e seus sindicatos, nesse sentido, atuavam como um corpo intermediário, à moda de Durkheim, se integravam ao Estado. Esse foi o movimento feito por Getúlio Vargas. A negatividade disso esteve em que nós passamos para o mundo moderno, para a indústria, realizamos essa transição sem conhecermos liberdade de movimentos no plano político, no plano associativo. IHU On-Line – Como esse trabalhador foi incorporado? Werneck Vianna – Ele não foi incorporado pura e simplesmente. Aos trabalhadores foi reconhecido, além dos direitos, o papel de personagem na história republicana do Brasil. E continuou sendo na sociedade fragmentada como era a nossa. Naquele momento, pelos sindicatos e pela ordenação corporativa se pretendeu realizar um verdadeiro processo de educação cívica, pelo menos dos trabalhadores urbanos industriais. Eles deveriam fazer com que os seus interesses, imediatamente classistas, sofressem a inflexão do que se chamava, na época, de “interesses nacionais”. Na verdade, esse foi um republicanismo imposto e autoritário, porque essa tradução de interesses classistas em nacionais não nascia de baixo, não era um movimento espontâneo dos trabalhadores, mas não deixou de se constituir numa escola de civismo. Todas as instituições criadas nesse período se referem a isso. Podemos dizer que, de maneira geral, o projeto de Vargas é um projeto durkheimiano, de Durkheim. IHU On-Line – O senhor acredita que a Era Vargas persiste, de certa forma? Werneck Vianna – De 1945 a 1964, ela se projeta inteiramente. Se lermos a Carta de 1946, veremos que ela não é descontínua em relação às instituições da década anterior. Ela introduz o liberalismo político, algumas instituições do liberalismo político passam a ter peso, mas no que importou, por exemplo, ao desenho do Estado, o desenho das relações do Estado com os sindicatos e com a vida associativa dos trabalhadores, isso persistiu até 1964. Então, a Era Vargas teve uma longa projeção entre nós. O golpe de 1964, de início, parecia uma grande ruptura em relação a tudo isso, mas o que se viu é que a ditadura militar manteve muitas instituições do Estado Novo, herdadas da Era Vargas, só que sem esse espírito durkheimiano. Manteve-as instrumentalmente, onde se buscava apenas a coerção. O modelo predominante na Era Vargas conheceu coerção e busca do consenso. A partir de 1964, o “esqueleto” da Era Vargas foi mantido, mas apenas usado no que era funcional para a ditadura, muito especialmente na vida sindical. IHU On-Line – O senhor poderia detalhar essa ligação da concepção getulista com as concepções de Durkheim? Werneck Vianna – Caracterizava-se pela constituição de corpus intermediário entre o Estado e a sociedade civil, fazendo com eles se comportassem como escolas cívicas, morais. Aí está todo o tema da valorização do trabalho, do trabalhador, predominante muito especialmente a partir da Constituição estadonovista de 1937. Destacam-se os temas da Moral, da Ética e do Direito. Do Direito claramente, porque as relações de mercado, especialmente de mercado de trabalho, passavam a ser jurisdicionadas pelo Direito – o Direito do Trabalho – e por um aparato do Direito: o judiciário trabalhista. Qual era a idéia? Era a de moderação IHU On-Line – A ruptura com a Era Vargas começa a ocorrer no governo de Fernando Collor? Werneck Vianna – Os governos de Fernando Collor e Fernando Henrique, que pareciam ser vocacionados para a ruptura com a Era Vargas, avançaram muito, mas não foram às últimas conseqüências. Com o governo Lula, esperava-se que os resquícios da Era Vargas fossem removidos, porque o sindicalismo petista construiu a sua 15 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO IHU On-Line – Por que essa tradição é trajetória em oposição às instituições herdadas de Vargas. No entanto, logo no início do governo Lula, no discurso que ele fez para os principais dirigentes sindicais do País, ele disse que os interesses dos trabalhadores deveriam se subordinar aos interesses da República. Além do mais, ele criou um novo ministério, inicialmente confiado ao atual Ministro da Educação, Tarso Genro, denominado Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, com uma composição fundamentalmente corporativa. Ali estão corporações patronais, de trabalhadores. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que é uma corporação no sentido clássico, foi criada na época de Vargas, em 1931. Além do mais, como disse, os interesses dos trabalhadores devem se subordinar aos interesses da República, a representação corporativa é relegitimada, e o Estado passa a ser personagem central na indução do desenvolvimento econômico. E mais: a questão nacional passa a ser revalorizada. Não deixa de ser a persistência da modelagem que prevaleceu entre nós nos anos de 1930 e que, apesar de vários esforços de orientação ortodoxamente liberais, ainda não foram removidos. recuperada? Werneck Vianna – Essa tradição é recuperada por sua força. Portanto, temos a permanência de traços fortes da Era Vargas. O único esforço severo para jogar a Era Vargas para o lixo da história foi o de Fernando Collor. Ele deixou para os demais um legado, ele mudou a agenda política do País, sobretudo na relação entre o Estado e a economia, ele soltou as amarras entre um e outro. Ele queria um mercado livre, o neoliberalismo no Brasil entra aí. IHU On-Line – Mas Fernando Henrique Car- doso também não tentou encerrar a Era Vargas? Werneck Vianna – Também, mas ele foi bem mais plástico. Ele apresentou momentos de radicalidade, como naquele discurso no Senado, antes de tomar posse, quando declarou que romperia com a Era Vargas, mas, com o tempo, sentindo as pressões e deixando-se guiar pelas circunstâncias, foi moderando o seu ímpeto. O segundo mandato dele foi muito diferente do primeiro. No segundo mandato, uma série de temas claros à tradição brasileira foi reposta, como a independência da política externa, da soberania nacional. O PT, que chega ao Governo falando em ruptura, começa a consultar a nossa tradição, e uma parte importante da nossa tradição está na Era Vargas. Enfim, não se fala mais em fim da Era Vargas. Essa é uma questão, pelo menos por hora, fora de cogitação. Sabemos que uma parte do que veio com ela faz parte da nossa tradição. E tem mais: uma parte do que há de melhor na nossa tradição. IHU On-Line – Quando o senhor se refere à subordinação dos interesses dos trabalhadores aos da República, o senhor está contrapondo esses ideais à idéia de ruptura institucional? Werneck Vianna – Estou dizendo que os trabalhadores deveriam levar em conta interesses mais altos. IHU On-Line – Como poderia ser diferente? Werneck Vianna – Poderia deixar-se que os trabalhadores agissem como força no mercado sem que levassem em conta interesses externos aos seus. Isso era o que o PT falava sempre, que os interesses dos trabalhadores não deveriam se subordinar aos da Nação... Mas Lula, chegando ao Governo, chama os trabalhadores para serem atores na esfera republicana, e não apenas na esfera dos seus interesses. Isso os leva a viver apenas no mundo da fábrica, e não no mundo da esfera pública. IHU On-Line – Portanto, começa a surgir uma nova compreensão sobre a Era Vargas... Werneck Vianna – Sim, inclusive no próprio PT, no próprio Governo. Nada evoca tanto a Era Vargas, por exemplo, como o Conselho que foi dirigido por Tarso Genro: o Estado chamando para uma esfera pública que ele constituiu, para um Conselho que ele constituiu, a sociedade civil, organizada em corporações para deliberar sobre o País. 16 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO IHU On-Line – Considerando o quadro des- constituir o Estado como lugar de tomada de decisão; um governo que está tentando pensar a soberania nacional, que começa a se inquietar com o crescimento econômico – que é a questão central – e faz isso baseado em uma relação entre Estado e empresários. Os trabalhadores não estão exercendo protagonismo algum. Por hora, estão imobilizados. Mas, de modo algum, esse governo vem se comportando como inimigo do povo. Entretanto, não é o melhor desempenho que ele poderia ter. crito, o senhor está otimista com relação ao futuro do Brasil? Werneck Vianna – Otimista? Não sei. Eu não estou catastrófico. IHU On-Line – O senhor acha que os traba- lhadores podem assumir o protagonismo que o senhor sugere? Werneck Vianna – Não estou vendo isso. O que eu estou vendo é um governo que quer refazer, re- 17 O populismo na América Latina: Getúlio, Perón e Cárdenas Entrevista com Werner Altmann De uma visão crítica e revisionista do conceito de populismo, o coordenador do PPG em História da Unisinos, prof. Dr. Werner Altmann, compara os três importantes líderes políticos da América Latina: Getúlio Vargas, no Brasil, Juan Perón, na Argentina e Lázaro Cárdenas, no México. Werner Altmann é graduado em História pela UFRGS, mestre em Estudos Latino-americanos de História, pela Universidad Nacional Autónoma de México, com a dissertação El Proyecto Nacional Peronista (1943-1955), e doutor em História Econômica pela USP, tendo sua tese o título O Estado no Capitalismo Periférico Latino-americano: os projetos Cardenista e Peronista de Unidade Nacional. O professor é autor do Cadernos IHU n.º 3, que tem como título O pensamento político e religioso de José Martí. Altmann é autor de, entre outros, El Proyecto Nacional Peronista. México: Editorial Extemporâneos, 1979; A trajetória contemporânea do México. São Paulo: Pensieri, 1992; México e Cuba: Revolução, nacionalismo, política externa. São Leopoldo: Unisinos, 2001. exportações. São indústrias de bens de consumo: tecidos, confecções, bebidas, alimentos elaborados, que a expansão das exportações tornava possível. A oferta de mão-de-obra era, relativamente, abundante e propiciava um reforço ao mercado interno, pois colocava em condições de consumidores monetários importantes contingentes humanos antes dedicados a atividades pré-capitalistas. Isso se constituía em reforço considerável ao mercado interno. Como disse Celso Furtado, “o setor industrial se comportava como um multiplicador de emprego do setor exportador.” A partir da década de 1920, esse processo inicial de industrialização complementador da economia agrária exportadora se estanca, para mudar de inflexão a partir da crise de 1929. A própria crise, a depressão e a 2ª Guerra Mundial, logo depois, protagonizaram um período de crise do comércio internacional que oportunizou, nos países periféricos, uma inflexão para a industrialização por meio da substituição de importações. A crise de 1929 suprimiu a capacidade de importar, contraiu o setor exportador e interrompeu os canais de financiamento internacional, acarretando a expansão do setor industrial ligado ao mercado interno, o que configurou um processo de substituição de importações. Procurou-se substituir os bens anteriormente adquiridos no exterior. A crise do setor exportador permitiu, também, por outra parte, a transferência de recursos financeiros, agora disponíveis, para as atividades industriais. Assim, a anterior complementaridade passa a ser substituída crescentemente por uma oposição entre o desenvolvimento industrial e as atividades agrário-exportadoras. Ao Estado está reservado, então, importante papel nesse incremento da produção industrial, e o intervencionismo governa- IHU On-Line – Quais as características básicas dos populismos varguista e peronista? Suas origens e contextos são assemelhados? São diferentes? Em que aspectos isso ocorre? Werner Altmann – As origens e contextos são assemelhados, sim. O Brasil e a Argentina (e também o México) experimentaram, a partir de inícios do século XX, um processo de industrialização que antecedeu ao das demais nações latino-americanas. A característica básica dessa industrialização inicial está na sua complementaridade com a economia primário-exportadora, na medida em que seu desenvolvimento dependia da expansão das 18 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO mental cresce no jogo dos interesses privados. Por outra parte, o poder no Estado é disputado, nessa fase da industrialização substitutiva, por diferentes setores, tanto pelos tradicionais agrário-exportadores como pela burguesia industrial em ascensão e pelos grupos médios urbanos. O proletariado e demais setores populares, na perspectiva de ascensão social, funcionam como base de sustentação. Ao Estado ficou reservado, assim, importante papel de articulador dos interesses sociais em jogo, de promotor do desenvolvimento industrial e de realizador da justiça social. É um Estado empenhado na superação da economia primário-exportadora via industrialização no pós-1929 e, em conseqüência, empenhado na plena autonomia nacional. tido das classes médias, foi, no entanto, incapaz do enlace com os novos setores populares urbanos, o que abriu caminho ao peronismo. Perón, a partir do Estado, soube aproximar-se das massas, fazendo concessões, o que se tornou possível pelo período favorável da 2ª Guerra Mundial. Perón, portanto, retirou e tomou para si a hegemonia sobre o movimento operário dos Partidos Comunista e Socialista. Discordando da posição majoritária da esquerda argentina, que rompeu com Perón, Rodolfo Puiggrós considerou que, pelo fato de as massas estarem com Perón, o peronismo abarcava um período nacional-revolucionário que levaria ao socialismo. O legado político peronista, em certo sentido superior ao varguismo, se delineia a partir daí. A Argentina de Perón sofreu boicote econômico norte-americano. Perón criou o Partido Peronista, transformado depois em Movimento Peronista, ou Justicialista. Perón efetivou uma burocratização dos quadros sindicais com a CGT para ser mais adiante ignorado pela burguesia nacionalista que abandonou seu porta-voz máximo. Foi, no entanto, impossível acabar com o movimento do qual era líder, e o Partido Peronista transcendeu à própria vida de Perón até tornar-se, no final do século XX, um partido que negava as próprias premissas nacionalistas básicas das origens do Partido Peronista (nada mais antinacional do que o governo do “peronista” Menem). Ainda uma outra característica original e por isso não encontrável no caso brasileiro do populismo peronista refere-se à liderança de Eva Perón com atribuições específicas nos quadros do poder argentino da época. A atividade de Eva Perón concentrou-se especificamente na direção da Fundação de Ajuda Social Maria Eva Duarte de Perón, criada por decreto especial e modelada na estrutura da Legião Brasileira de Assistência. A Fundação alcançou, desde o início, dimensões enormes, já que recebeu praticamente o monopólio da caridade no país. Com o tempo, Eva Perón passou a ser diretora virtual de todos os sindicatos operários do país, estabelecendo normas dos mais variados tipos e exercendo o papel de líder intermediário entre Perón, o líder supremo, e as massas. Esse papel permitia a Eva Perón uma mais ampla liberdade para utilizar uma linguagem IHU On-Line – O conceito ao qual usualmen- te se recorre para definir o populismo brasileiro também explica o fenômeno argentino? Werner Altmann – Os antecedentes da etapa populista acima descritos encaminham a formação dos estados ditos populistas no Brasil e na Argentina, semelhantes entre si, mas que desenvolvem, com o tempo, peculiaridades próprias historicamente determinadas. IHU On-Line – A presença e a influência do legado político peronista, bem como o seu culto, são superiores aos do caso varguista? Werner Altmann – De certa maneira, sim. Veja-se que, na Argentina, havia uma prática já anterior, de política externa independente. A neutralidade da política externa provinha desde o início do século XX. A política de imigração, efetuada pelo Estado oligárquico argentino, foi de grande envergadura, mas sem contemplar a propriedade da terra aos imigrantes, o que determinou as migrações internas desses imigrantes em busca de oportunidades de trabalho nos centros urbanos. A ascensão das massas populares urbanas daí decorrente levou ao desenvolvimento da indústria leve. Assim, na primeira metade do século XX, a velha oligarquia agropecuária começou a perder a capacidade do controle político da situação. A União Cívica Radical, que então surgiu como par- 19 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO emotiva e aparentemente não-racional, com o que se aproximava mais do tipo ideal de “dominação carismática”, conforme o formulou Max Weber. A própria Evita definiu, de maneira simples, mas com extrema lucidez, sua função no estado argentino: uma ligação entre o poder e as massas, desde seu papel específico de líder efetiva da CGT: “Quando olho para Perón me sinto povo, e por isso sou fanática pelo General, e quando olho o povo me sinto esposa do General, e então sou fanática pelo povo”. O próprio Perón, por sua vez, já havia dito em 1950: “Os dois braços do Peronismo são a Justiça Social (Perón) e a ajuda social (Evita): com eles damos ao povo um abraço de justiça e amor”. Se tal realidade for estendida, ainda, até a posterior veneração do cadáver de Evita, que “percorreu” diversos locais de Buenos Aires, estaremos diante de um quadro diferencial, em relação ao varguismo, de grande magnitude. lucionária relutava em realizar (com Madero e Carranza). Cárdenas participou da Revolução Mexicana, integrando a “família revolucionária”, isto é, a burguesia revolucionária, vitoriosa, tornando-se, inclusive, general da Revolução. Cárdenas pertencia, portanto, a uma classe plenamente vitoriosa, com o aval de uma revolução. Não tinha oligarquia latifundiária para enfrentar ou neutralizar. Esta havia sido destruída pela revolução, assim como o Exército e o positivismo no plano das idéias. E as classes subalternas tinham passado pela revolução e obtiveram certa ascensão social pelo enquadramento realizado pela burguesia revolucionária hegemônica e pelas próprias reformas preconizadas pela Constituição de 1917. Assim, as reformas de Cárdenas são muito mais profundas e de longo alcance, pois foram feitas por um Estado nascido da revolução. Cárdenas pôde, então, ir ao encontro das massas com muito mais desenvoltura. A estruturação do Estado Nacional, realizada por Lázaro Cárdenas entre 1934-1940, ocorreu em torno de três eixos de atuação: 1. O relacionamento com os sindicatos e frente aos conflitos trabalhistas. 2. A política de reforma agrária com a transformação da estrutura agrária mexicana [ao final de seu governo, 47% das terras aráveis mexicanas haviam se constituído em ejidos (propriedade coletiva inspirada na comunidade indígena)]. 3. A política de nacionalização, que teve seu ápice com a nacionalização das companhias petrolíferas estrangeiras em 1938. O renascimento cultural (o muralismo, a filosofia mexicana, a universidade autônoma), o asilo a perseguidos políticos (republicanos espanhóis, Trotski e o próprio Fidel Castro) são outras tantas características de um regime que, pelo seu passado revolucionário, transcendeu o populismo. Dessa maneira, Cárdenas não se suicidou, nem foi ao exílio e o Estado Nacional por ele estruturado revelou-se, durante todo o século XX, um estado estável, duradouro. Estado civilista, o único na América Latina que nunca sofreu golpe militar, pois, inclusive, os militares mexicanos também haviam sido temperados pela revolução. O estado mexicano é, então, o único na América Latina em IHU On-Line – Quais as características do populismo cardenista? Como ele pode ser definido? Onde se dá a confluência entre os populismos varguista, peronista e cardenista e quais são os contrapontos do último aos dois primeiros? Werner Altmann – A confluência é basicamente temporal. Poderia arrolar-se, ainda, nessa condição, o nacionalismo como móvel ideológico. Na verdade, considero que o cardenismo transcende o populismo. Teríamos que encontrar outra definição para o caso mexicano. O nacionalismo identifica os três personagens, mas Cárdenas tem uma revolução atrás de si e, não, pela frente, como eventual possibilidade futura (o que seriam os casos brasileiro e argentino). Tem como antecedente a Revolução Mexicana, a maior revolução da história mundial (1 a 2 milhões de mortos para 15 milhões de habitantes à época) e que é inauguradora do ciclo revolucionário popular mundial do século XX. Esta revolução revelou uma aliança inicial entre os camponeses e uma vertente burguesa (o modernismo) para a derrubada de Porfiriato. Logo depois, a aliança se desfez e os dois grupos, antes aliados, passaram a se defrontar pelo projeto político nacional. O móvel básico foi a reforma agrária que a burguesia revo- 20 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO que a sucessão presidencial ocorreu sempre de acordo com a Constituição. O cardenismo só pode, portanto, ser entendido pela Revolução Mexicana de 1910. Isolá-lo da Revolução Mexicana e atribuir-lhe o populismo implicaria uma avaliação aistórica. Os principais especialistas em História Mexicana, ou da Revolução Mexicana ou do próprio governo Cárdenas, não o consideram populista. Enrique Senno concebe o regime cardenista como protagonista da via revolucionária do desenvolvimento do capitalismo, Hans Werner Tobler conceitua-o como ápice do “sistema revolucionário tardio” mexicano, Arnaldo Córdova fala em política de massas do cardenismo, e o exilado em terras mexicanas León Trotski rotula-o como “bonapartismo sui generis”. O nacionalismo e outras características típicas da época aproximam, por certo, os três governantes em questão (Perón, Vargas e Cárdenas), mas Cárdenas sempre condenou o fascismo e o imperialismo norte-americano e depois, como estadista, aproximou-se da Revolução Cubana, declarando, inclusive, ser ela a revolução que gostaria de haver feito e que as circunstâncias históricas impediram que chegasse a tanto. Por isso, situamos aqui Cárdenas como contraponto do peronismo e do varguismo, mas na condição de haver transcendido o populismo. liberalismo procurou desqualificá-lo. Desde o início, apontava para o oportunismo dos líderes, acusava-os de demagogia, ambição de poder e de manipulação das massas, visão simplista e parcial de um fenômeno complexo e que era expressão da complexidade das condições históricas em que se formou. A estruturação do poder político para os grupos dominantes, na fase pré-monopólica em que ocorreu, é uma realidade, mas é realidade também a emergência popular no processo de desenvolvimento industrial e urbano. Esta questão é essencial e quase sempre esquecida: a do determinismo histórico dos grupos populares na origem do populismo. As massas não são amorfas, não são apenas objetos de manipulação. Assim, o populismo tem raízes sociais profundas e, como fenômeno político e social, não está integralmente examinado e o discurso exclusivo da manipulação e da demagogia funciona como manto encobridor da insuficiência de sua compreensão. Grande número de liberais, também intelectuais de esquerda e parte da produção acadêmica, vê a questão pela superficialidade da imagem para revestir o termo populismo com um caráter de negatividade. Autores há que o ligam ao que chamam de autoritarismo e totalitarismo, identificando o desejo de unidade, presente no pensamento político de então, com o espírito totalitário – o eliminar de diferenças ou o próprio nacionalismo visto como totalitarismo. Esses autores não conseguem responder a uma pergunta bem elementar: se o populismo é totalitarismo, o que são as ditaduras militares que o golpearam de forma tão cruenta? Considero o populismo como a resistência possível das sociedades ou estados do mundo periférico – o Estado populista centraliza a resistência possível das classes sociais, empenhadas na construção da autonomia nacional – ao contrário dos estudos sobre o populismo que se contentam com as representações ou as imagens que retratam, mas não explicam o fenômeno, ou examinam, exclusivamente, as relações estritas, governante/governados, no âmbito interno das nações, sem atenção à conjuntura internacional onde se apresentam, inclusive, outros exemplos populistas correlatos disponíveis para a comparação histórica. De outra parte, o conceito da autonomia relativa do estado capita- IHU On-Line – O conceito atribuído ao popu- lismo brasileiro está sendo revisado, com vários pesquisadores destacando o preconceito político nele embutido. Como essa revisão pode ser relacionada com a análise que o senhor faz dos três fenômenos populistas mencionados? Werner Altmann – Sociólogos começaram a usar o termo populismo nas décadas de 1960 e 1970. Não conseguiram conceituá-lo, descreveram algumas de suas características e abandonaram o discurso. Para os historiadores é um problema até hoje. Não é conceito científico, provavelmente é apenas um fenômeno temporal, mas, de alguma forma, todos sabem do que se trata. Tornou-se um termo popular de uso político e com forte conotação pejorativa. É um termo muito utilizado politicamente para atacar um adversário. O 21 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO ação imperialista das grandes potências. O estado populista centraliza, portanto, a resistência possível das classes sociais dedicados à construção da autonomia nacional. Esta visão percebe o populismo, colocado na esteira de um processo que tende à autonomia nacional, estágio não alcançado pelas nações latino-americanas. O golpe nesse processo foi evidente em todas as nações latino-americanas, e a posterior desqualificação do populismo, em textos acadêmicos e discursos políticos, faz parte dessa ação que está embebida da mentalidade colonizada que o processo tenderia a superar. Ao historiador compete examinar adequadamente o fenômeno, suas delimitações teóricas e seu enquadramento no processo histórico como etapa de um caminho que poderia chegar à transformação da sociedade, mas lá não chegou. A História tornou evidente, então, o populismo com essa característica de transitoriedade. lista em relação à sociedade nos indica um caminho com possibilidades para compreender a dinâmica do estado populista latino-americano. Esse estado, que se caracteriza por ser uma entidade autonomizada, por ser uma emanação do sistema capitalista, opõe-se às classes sociais. Necessita colocar-se à parte e, inclusive, enfrentar os interesses particularistas do capital individual, vigiando a economia em seu conjunto. Em termos latino-americanos, na etapa populista, esta autonomia relativa, interna, com respeito às classes sociais, encontra uma correspondência ampliada na esfera do antagonismo relativo em referência ao imperialismo. A tentativa de consolidação do mercado interno, na qual a burguesia industrial está empenhada no âmbito de seu crescimento social e de sua peculiar relação com o proletariado – empenhado também em converter-se em classe para si – determina a elevação do estado à condição de organismo de choque frente à 22 A passagem do Brasil rural para o Brasil industrial Entrevista com Marco Antonio Villa Marco Antônio Villa é professor e pesquisador na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Ele afirmou em entrevista ao IHU On-Line que a Era Vargas foi o elemento de corte entre o Brasil rural, arcaico, e o Brasil industrial, moderno. Villa é mestre em Sociologia e doutor em História pela USP, com tese intitulada Canudos, o povo da terra. É o autor da coleção Sociedade e História do Brasil, escrita para o Instituto Teotônio Vilela. Na obra, Villa discute os mitos da história brasileira ao destronar heróis como Tiradentes, ao questionar a idéia de que a República realmente tenha significado progresso ao País e ao classificar o ex-presidente João Goulart como incapacitado. Villa é autor de numerosos livros, entre eles destacamos: Canudos, o campo em chamas. São Paulo: Brasiliense, 1993; Canudos, o povo da terra. São Paulo: Ática, 1995; Vida e morte no sertão. História das secas no Nordeste nos séculos XIX e XX. São Paulo: Ática, 2000; Caminhos da História: da Independência aos nossos dias. São Paulo: Ática, 2003; Jango, um perfil (1945-1964). São Paulo: Globo, 2004. isso sem buscar o personalismo na história – foi fundamental para esta transição. IHU On-Line – Poucas fases da história brasi- IHU On-Line – Diferentemente de 1994, quan- IHU On-Line – Nesse quadro, onde se posici- ona a face autoritária da Era Vargas? Como ela integra o contexto delineado na resposta anterior? Marco Antonio Villa – O autoritarismo, propriamente dito, é o período que vai de 1935 até 1945, pois grande parte da repressão estadonovista já está presente desde novembro de 1935, após a tentativa fracassada de golpe comunista. Sei que é uma temeridade, porém boa parte da legislação trabalhista só foi adotada e aplicada devido ao longo período ditatorial. Creio que não seria exeqüível que, se vivêssemos na plenitude do regime democrático – e isso nos anos 1930 e com aquela elite política reacionária –, fosse possível aprovar e implementar as leis trabalhistas. Obviamente, não estou dizendo que a ditadura foi “boa”, mas alertando para a dificuldade de modernizar o Brasil naquela conjuntura e os paradoxos da História do Brasil. leira produziram um legado tão amplo como a Era Vargas. Quais os traços básicos do contexto social, histórico, político e econômico que deram sustentação preliminar para a referida fase? Marco Antonio Villa – A Era Vargas foi o elemento de corte entre o Brasil rural, arcaico, e o Brasil industrial, moderno. Evidentemente, esta transição não foi pacífica nem fácil de ser realizada, principalmente se pensarmos que o Brasil era um país atrasado e com uma elite política arquiconservadora. Dessa forma, a ação de Vargas – e do, já com a abertura política consolidada, se completaram 30 anos do golpe de 1964, os 40 anos do suposto fim da Era Vargas estão sendo marcados pelo lançamento de muitas publicações e a realização de muitos eventos sobre o tema. O que mudou no Brasil, gerando tanto interesse pelo assunto? Marco Antonio Villa – Pode ser que o processo de privatização da década de 1990 tenha lançado novas luzes sobre a Era Vargas. Afinal, o interlocutor (mudo) daquela década foi o varguismo. Vale ressaltar que os últimos quatro presidentes (Col23 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO entre Jango e Getúlio. Porém, diversamente de Vargas, Jango deixou raríssimas realizações e é mais lembrado pela sua deposição e o significado do golpe militar para a história recente do País. lor, Itamar, Fernando Henrique e Lula) desmontaram o Estado construído no pós-1930. IHU On-Line – A Era Vargas, em tese, encer- rou-se com a deposição de João Goulart? Ele pode, de fato, ser apontado como o herdeiro do legado varguista? Quais as responsabilidades que lhe cabem pelo fim da mencionada era? Marco Antonio Villa – No meu livro Jango, um perfil, discordo da afirmação de que o herdeiro político de Vargas seria João Goulart. Mas é inegável a associação realizada naquela conjuntura IHU On-Line – João Goulart foi, de fato, “um homem que amava o poder mas detestava governar”, segundo a definição atribuída a Leonel Brizola? Marco Antonio Villa – Desculpe voltar ao meu livro, mas lá demonstro que o Brizola estava absolutamente correto. 24 Vargas pôs os valores religiosos a serviço de seu projeto político Entrevista com Artur Cesar Isaia Simultaneamente ao desenvolvimento de uma política de centralização, consolidando a presença do Estado em várias frentes da vida nacional, Getúlio Vargas desenvolveu “uma política cultural de valorização telúrica, com ênfase nos tipos regionais. Nesse sentido, foi fundamental a presença dos valores religiosos, sedimentando e legitimando a experiência política”. Essa é a opinião do professor Artur Cesar Isaia, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Ele observa que, nesse processo, o catolicismo foi “particularmente importante”, disponibilizando ao Estado “um arsenal imagético extremamente importante e mobilizador”. Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), Artur Cesar Isaia destaca que, no discurso católico do período, a “brasilidade passa a ser lida como sinônimo de catolicidade”. Paralelamente, assinala o professor, constata-se que, no mesmo período, o espiritismo e a umbanda “se auto-representam como aliados do progresso e do desenvolvimento, tentando descredenciar o discurso católico”. Dessa maneira, “o desafio da política varguista em relação às religiões parece ter sido o de, ao mesmo tempo, garantir o lugar proeminente do catolicismo e de uma situação de mercado religioso”, afirma o nosso entrevistado. O professor é também graduado em História pela UFRGS e pós-doutor pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, na França. Sua tese de doutorado na USP se intitula O Cajado da Ordem. Catolicismo e Projeto Político no Rio Grande do Sul. D. João Becker e o Autoritarismo. Artur Isaia é autor de Catolicismo e Autoritarismo no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998 e organizador do livro Portugal-Brasil no século XX. Sociedade, Cultura e Ideologia. Bauru: EDUSC, 2003. IHU On-Line – A constituição da identidade nacional foi marcada por um tensionamento com a identidade étnica, seja por parte das “raças” autóctones, seja por parte da cultura imigrante. Como, no campo religioso, esse tensionamento foi enfrentado durante a Era Vargas? Artur Cesar Isaia – Durante o longo período em que Vargas aparece de maneira saliente na realidade nacional brasileira, temos um processo de intensificação na complexidade do campo religioso nacional. Novos atores sociais entram em cena, o cenário urbano passa a ter uma importância antes inusitada. Com essas transformações é que Vargas vai ter que contar para levar adiante uma política de relacionamento eficaz com as religiões. Se a supremacia da Igreja Católica era indiscutível, relacionando-se com as diferentes religiões com estranhamento, condenação e oposição, atitudes típicas do período pré-Vaticano II, a atitude de Vargas era de extrema cautela. Cautela para, a um só tempo, garantir a tradicional base de apoio entre a hierarquia católica e seu laicato, não dando ao catolicismo status de religião oficial e fugir de uma situação de monopólio religioso e possibilitar o trânsito das diversas correntes religiosas. O grande desafio da política varguista em relação às religiões parece ter sido o de, ao mesmo tempo, garantir o lugar proeminente do catolicismo e de uma situação de mercado religioso. 25 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO IHU On-Line – Qual o tratamento dispensado Como ele se liga à idéia de identidade nacional? Artur Cesar Isaia – Sem dúvida. Vargas tentou assentar sua experiência política em conexão imediata com uma prévia comunhão simbólica. Ao contrário dos militares que ascendem ao poder em 1889, Vargas é extremamente cauteloso em relação aos valores e símbolos previamente assumidos pela população. Nesse sentido, aprofunda toda uma política cultural voltada para a valorização do nacional. Aí se encontra um dos grandes desafios de Vargas: ao mesmo tempo que leva adiante uma política de centralização, consolidando a presença do Estado em várias frentes da vida nacional, desenvolve uma política cultural de valorização telúrica com ênfase nos tipos regionais. Dessa forma, foi fundamental a presença dos valores religiosos, sedimentando e legitimando a experiência política. O catolicismo é particularmente importante nesse processo, fazendo confluir em direção ao Estado todo um arsenal imagético extremamente importante e mobilizador. No discurso da hierarquia católica do período, por exemplo, brasilidade passa a ser lida como sinônimo de catolicidade. Essa associação foi muitíssimo favorável para manter a legitimidade de Vargas antes, durante e depois da ditadura estadonovista. às manifestações religiosas, como a umbanda e assemelhadas? Havia um lugar para elas no ideário desenvolvimentista do período de Vargas? A idéia de progresso, por exemplo, foi associada à religiosidade? Qual religiosidade? Artur Cesar Isaia – Essa é uma das questões mais complexas a ser analisada por quem se aventure a estudar o assunto. Isso, porque quase temos resumido as contradições de Vargas no terreno religioso, ao enfocarmos sua política em relação às chamadas religiões afro-brasileiras, bem como em relação ao espiritismo. Há uma luta de representações pelo monopólio do que se entende como progresso no período. O Estado, com seus órgãos de assessoramento técnico, tentava traçar diretrizes que se colocavam como a última palavra do que se entendia como progresso e desenvolvimento. Nesse sentido, a hierarquia católica vai claramente ao encontro dessa realidade, “abençoando” as diretrizes estatais e salientando o que entendia como sintoma de atraso no País. É dessa forma que o discurso eclesiástico tenta construir a imagem da umbanda, das religiões africanas e do espiritismo, como ligadas ao atraso atávico de populações que precisavam urgentemente da ação messiânica das elites, do estado e, principalmente, do catolicismo. Por outro lado, ao consultarmos a documentação referente ao espiritismo e à umbanda, nas décadas de 1930, 1940 e 1950, vamos constatar que os mesmos, igualmente, se auto-representam como aliados do progresso e do desenvolvimento, tentando descredenciar o discurso católico nesse sentido. Assim, se o ideário desenvolvimentista de Vargas se evidenciava como laico, contaria com o apoio decidido de grande parte da hierarquia católica. Apoio esse a que não se furtavam umbandistas e espíritas, que desenvolviam uma representação peculiar do que consideravam ser o progresso nacional. IHU On-Line – Vargas estabeleceu alguma aliança significativa com alguma religião? Quais as relações com a predominante Igreja Católica? Artur Cesar Isaia – Vargas foi extremamente hábil ao conseguir o apoio incontestável da hierarquia católica brasileira, capitaneada pelo cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro, D. Sebastião Leme, e pelo arcebispo de Porto Alegre, D. João Becker. Contudo, esse apoio, longe esteve de configurar uma política exclusivista, de busca de uma situação de monopólio religioso. A habilidade política de Vargas foi fundamental para, a um só tempo, selar um compromisso com a hierarquia católica, em um momento em que o catolicismo usufruía uma comodidade muito grande como produtora de significados sociais, e manter o Estado aberto a possíveis contatos com forças religio- IHU On-Line – Podemos dizer que a Era Var- gas se caracterizou por um determinado universo simbólico religioso? Em caso positivo, quais são seus traços básicos? 26 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO sas que, embora não desfrutando da força católica, mostravam-se em disponibilidade política e apareciam como forças virtuais de enquadramento da opinião pública. Isso, particularmente, aconteceu em relação às religiões afro-brasileiras (apesar da perseguição em alguns momentos) e, principalmente, à umbanda e ao espiritismo. fluência da Igreja Católica no terreno educacional, como o projeto de criação dos cursos de Serviço Social, planejado pelo padre jesuíta Sabóia de Medeiros1. IHU On-Line – O senhor gostaria de acres- centar algum comentário ao tema em debate? Artur Cesar Isaia – Um tema que me parece extremamente relevante e pouco estudado é o da forma como Vargas se comportou frente às chamadas religiões mediúnicas, enfatizando aqui a umbanda e o espiritismo. Gostaria apenas de salientar a complexidade das relações entre Vargas, o catolicismo e essas religiões. Se como disse anteriormente, Vargas ancorou-se em um arsenal imagético e nos valores propalados pela religião católica, não deixou de ir ao encontro de parceiros minoritários do campo religioso, mas que se mostravam com virtualidade política de enquadrarem a opinião pública. Assim, a umbanda, em um determinado momento de sua trajetória, passou a ser bem mais tolerada. É interessante que esse processo aconteceu à medida que a umbanda passou a revelar um discurso extremamente conciliador, com uma representação essencialmente sincrética da nacionalidade, indo ao encontro dos significados sociais propalados pelos órgãos do Estado. Se perseguições existiram (inclusive no Rio Grande do Sul, onde a considerada primeira casa de Umbanda, hoje ainda existente, os “Franciscanos de Umbanda” sofreu perseguição), Vargas, ao mesmo tempo, tolerou a organização e estruturação de nova religião, que se mostrou mais como aliada em potencial do que como desafiadora do regime. Assim, Vargas tolerou o Primeiro Congresso Nacional da Umbanda, realizado durante o Estado Novo, o qual conseguiu, inclusive, publicar suas teses em IHU On-Line – No campo da educação, a Era Vargas destinou algum lugar privilegiado para a questão religiosa? Como se dava o relacionamento educação/religião? Artur Cesar Isaia – O trabalho de pesquisa que efetuamos (e lá se vão mais de dez anos) disse respeito ao Rio Grande do Sul, centrado na relação catolicismo e poder político. Essas pesquisas mostram que não podemos analisar a atuação de Vargas, esquecendo de que sua formação política se deu no cenário rio-grandense do borgismo, herdeiro da experiência governativa castilhista. Nessa realidade, apesar da influência teórica e prática do comtismo, a Igreja Católica longe esteve de cerrar fileiras contra o PRR. Se algumas chefias locais eram explicitamente anticlericais, o Governo do Estado e a hierarquia católica não chegaram a bater de frente. Uma das questões que mais colaboraram para esse clima de harmonia foi a política educacional. No Rio Grande do Sul, assim como em Minas Gerais, o Ensino Religioso era facultado desde a República Velha. Igualmente, o Estado não criou dificuldades para a hierarquia católica manter uma rede de ensino. No âmbito nacional, já em 1931, o governo provisório de Vargas promulgava o decreto que possibilitava o Ensino Religioso facultativo nas escolas. Esse vai ser, inclusive, um ponto de atrito entre Vargas, o interventor de São Paulo que o descumpria e a hierarquia católica. Por outro lado, Vargas apoiou uma série de medidas concernentes a aumentar a esfera de in- 1 No início da década de 1940, ainda na era de Getúlio Vargas, o padre jesuíta Roberto Sabóia de Medeiros fundou em São Paulo a primeira escola de administração de empresas do País, a Escola Superior de Administração e Negócios (Esan-SP), com base na sua experiência e conhecimento da Graduate School of Business Administration da Universidade de Harvard. Na seqüência, em 1946, ele fundou a Faculdade de Engenharia Industrial (FEI), posteriormente transferida para a cidade de São Bernardo do Campo, SP. Com o objetivo de integrar suas diversas especialidades para acompanhar as inovações no campo do conhecimento e da prática do mercado, a Esan-SP, a Esan-SBC, a FEI e a Faculdade de Informática (FCI) juntaram-se em dezembro de 2001 para compor o Centro Universitário Unifei, mantido pela Fundação Educacional Inaciana Padre Sabóia de Medeiros. O atual reitor da Unifei é o prof. Dr. Marcio Rillo. 27 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO citiva mais dura, não tivemos uma repressão tão visível em relação à Federação Espírita Brasileira. Como a nascente umbanda, o espiritismo, inclusive, estruturou-se, aparecendo como força religiosa a ser considerada pelo Estado. Isso, apesar da pressão da Igreja Católica pela aplicação da lei e por sua interpretação em um sentido mais coercitivo. Anais. Em relação ao espiritismo, podemos constatar algo semelhante. Se a vigência do Código Penal de 1890 dava ampla margem de ação legal contra as práticas espíritas, o novo Código, vigente a partir da ditadura varguista, continuava com as possibilidades de sanção governamental contra o espiritismo. Contudo, apesar desse arcabouço legal que lhe possibilitaria uma ação coer- 28 Getúlio na memória popular A equipe de comunicação do IHU On-Line escutou diversas pessoas da área acadêmica, política e cidadãos que tinham diversos graus de protagonismo na vida do País, cinqüenta anos atrás, com o objetivo de resgatar parte do que há na memória popular e no debate político de historiadores e sociólogos sobre a importância da Era Vargas na história brasileira. na Previdência Social, porque queria estar mais próximo na educação dos meus filhos. Alguns anos depois, o pessoal do PTB-PRP insistiu para que eu me candidatasse a prefeito. Eu não queria, mas eles insistiram, apelaram para a questão do patriotismo, e nós tínhamos isso muito forte na nossa formação. Aceitei como missão. Getúlio me tinha causado um grande impacto, quando eu era jovem. Eu tinha ouvido falar muito nele, quando foi Governador do Rio Grande do Sul. Tinha um carisma, um poder de atração e domínio muito grande. Minha geração tinha adoração por Getúlio e um pouco também por João Goulart. Ele era “uma cria” de Getúlio. A ele, sim, conheci pessoalmente, inclusive esteve na minha casa, em Novo Hamburgo, em 1963. No dia 24 de agosto de 1954, eu ia para o trabalho de manhã e encontrei pessoas na rua, pedindo para fazer uma concentração na praça. Ali um colega tomou a palavra e disse que Getúlio tinha se matado. Foi um impacto muito forte, tristeza geral, perplexidade... Não dava para entender como ele, com todo aquele carisma, tinha tirado sua própria vida. E cada vez iam chegando mais pessoas na concentração. Ficamos com um grande desconcerto. Não sabíamos o que iria acontecer sem Getúlio. Tempo depois, o Congresso do Partido Trabalhista Brasileiro decidiu colocar uma placa comemorativa com a carta testamento de Getúlio, na Praça da Alfândega, em Porto Alegre e eu fui designado para falar no evento. Durante a noite anterior, não consegui dormir, preparando o discurso, as palavras da carta testamento davam voltas na minha cabeça. Getúlio tirou o País de um estágio indefinido para o de um país forte agrícola e industrial. Transformou a política e a economia. A importância de Getúlio foi decisiva. A marca de Getúlio “Sua marca ficou para sempre” Martins Avelino Santini, 85 anos, define-se como um dos poucos sobreviventes de sua geração. Atualmente aposentado, mora com sua esposa em Novo Hamburgo e desfruta da companhia de seus três filhos, netos e bisnetos. O pai da professora Emi Maria Santini Saft, diretora da Unidade Acadêmica de Graduação da Unisinos, foi prefeito de Novo Hamburgo pela coligação PTB-PRP, no período de 1959 a 1963 e deputado estadual entre 1967 e 1975. Santini afirma que Vargas deixou sua marca no País para sempre. “Eu estive com Getúlio Vargas, sendo militar, porque fui designado como um dos representantes para a homenagem aos heróis de Laguna (da Guerra do Paraguai). Eu ia compor o pelotão que se dirigia ao Rio de Janeiro para a solenidade. Lá estavam o Ministro de Guerra Eurico Gaspar Dutra, que depois seria presidente, e o Presidente da República Getúlio Vargas. Como militares, nos mantivemos à distância, mas foi muito importante para mim ter estado como guarda de honra de Getúlio na solenidade, junto a outros 35 soldados gaúchos. Eu tinha saído do exército para cuidar dos filhos, mas, na época da Segunda Guerra, fui chamado novamente. Como militar, eu servia no batalhão ferroviário. Saí para trabalhar como servidor público 29 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO está por todas as partes: na Petrobrás, em Volta Redonda... Foi o patrono de toda a legislação trabalhista e da previdência social. Quando eu tinha 14 anos, aprendi um ofício e tinha que trabalhar um ano de graça, sem horário. Quando veio o regime de oito horas foi uma bênção. Getúlio nos fez passar de um regime de escravatura para uma relação bem mais ordenada de capital e trabalho”. porque sabia que eu era fã de Getúlio Vargas, que até hoje guardo comigo”. “Getúlio parecia mais nosso que de outros Estados” Maria Lony Becker, 68 anos, residente em Montenegro, é professora aposentada, formada em Letras-Inglês pela Unisinos. Ela guarda muito bem entre suas lembranças o dia da morte de Getúlio Vargas. “Foi no ano do meu casamento, há 50 anos. No dia 24 de agosto, saí a cavalo até a casa da minha madrinha, no interior do município de Maratá, para levar meu convite de casamento. Quando estávamos todos lá, alguém ligou o rádio para ouvir as notícias do correspondente “Repórter Esso”. Foi então que ele anunciou que Getúlio tinha se matado. Foi uma loucura. As pessoas tiveram uma reação muito séria. Ficava tocando uma música característica do assunto da morte dele o tempo todo. A notícia se espalhou entre os vizinhos feito rastilho de pólvora. O povo só falava nisso. Tinha no ar uma sensação de perda muito grande. Aqui no Sul, acho que mais. A gente sabia que Getúlio era daqui e por isso ele parecia mais nosso do que dos outros estados. Eu, até então, mal sabia o nome do presidente. Naquela época, política era assunto de homem. As mulheres se encontravam na frente da igreja, antes da missa, ou nas festas de kerb, mas não falávamos de política. Eu só fiz o título de eleitora em 1955. Lembro que Getúlio criou as leis que davam direito para os trabalhadores. Mas fiquei sabendo disso, porque ouvia os homens que tinham empregados se preocupando com o registro e essas coisas. Hoje a política é diferente, parece que eles estão dentro da casa da gente. Naquela época, nem televisão tinha, e a gente passava dias sem saber o que o Presidente fazia”. “Ainda guardo o busto de Getúlio que ganhei de meu tio” Com as dificuldades próprias do distanciamento temporal, Osvaldo Valin de Oliveira, 64 anos, que foi funcionário da indústria calçadista e delegado sindical em São Leopoldo, recorda fatos que considera marcantes da vida do ex-Presidente Getúlio Vargas. “O trabalho dele foi bem elaborado, e o povo não esquece o que é bom. Getúlio Vargas foi um grande homem. Os direitos que adquirimos, foram obra dele. Vargas ficou como símbolo na política. Ele sempre lutou pela democracia. Lembro o dia da morte dele. Acho que foi às 9 horas da manhã. Eu estava no engenho, moendo cana, com os bois, lá em Três Cachoeiras, quando veio a notícia que Getúlio Vargas tinha se matado. Soubemos por um mensageiro. A gente era fã de Getúlio. Ficou todo o mundo amedrontado, porque pensamos que ia dar uma guerra. Ficamos apavorados, porque ninguém sabia o que ia acontecer, só sabíamos que as coisas não iam mais ficar como eram. Depois tinha aquela carta que ele deixou. O meu irmão Edílio era mais velho, muito getulista, fez uma letra de música, baseado na carta de Getúlio, e eu cantava. A música começava assim: ‘Mais uma vez, meus patrícios, a força da reação, revolta contra seu povo...´ Eu ganhei um busto de Getúlio Vargas, de ferro fundido, que meu tio, Armindo Silveira, fez e me deu, 30 “Um estadista não hesitaria entre os nazifascistas e os aliados” Entrevista com João Aveline O jornalista João Aveline amou e odiou Getúlio Vargas. Primeiro, influenciado pelo padrão de honradez gaúcho, herdado do positivismo e simbolizado em Vargas. Depois, já militante do Partido Comunista, horrorizado com a truculência do Estado Novo que, sob as ordens do Presidente que, entre outras atrocidades, entregou aos nazistas Olga Benário Prestes, grávida de um brasileiro. Hoje, Aveline procura olhar para o legado varguista com isenção. Reconhece os méritos da Revolução de 1930, dos esforços para a industrialização do País, da política nacionalista e, até, dos avanços organizativos dos trabalhadores – malgrado o controle que o Governo mantinha sobre os sindicalistas. Mas de uma coisa nosso entrevistado tem certeza: os crimes patrocinados por Vargas não permitem que ele seja chamado de estadista, assim como um verdadeiro estadista não hesitaria entre os nazifascistas e os aliados, na Segunda Grande Guerra. de oito horas por dia, veio a carteira do Ministério do Trabalho, que era uma carta de cidadania. E o voto feminino, na Constituição de 1934. Os trabalhadores passaram a ter seus sindicatos de classe, ele estimulava a sindicalização. Governou democraticamente até 1937 e deu um golpe militar. Ele tinha uma influência muito grande sobre os militares. Quando ele deu o golpe, que foi decorrência de uma situação revolucionária que existia no Brasil, a Revolução de 1935, que foi um erro dos comunistas, mas de qualquer maneira foi uma revolução que aconteceu e ele se aproveitou desse erro. E promulgou uma carta fascista, “a polaca”, denominada assim, porque era uma cópia da carta da constituição polonesa. Nesse processo, ele revelou um componente acentuadamente nacionalista, quando incluiu, na Carta, um artigo em que dizia que tudo aquilo que estivesse no subsolo era propriedade da União. Isso queria dizer: ouro e petróleo são propriedades da União. Mas o Estado Novo foi um período muito duro para o Brasil, de muita prepotência, muita gente foi morta, houve tortura... Nesse período, numa madrugada, ele mandou tirar da prisão Olga Benário Prestes, uma mulher grávida com um filho brasileiro no ventre. Botou num porão de um navio e entregou para a Alemanha. Getúlio cometeu muitos crimes. Chegou a Segunda Guerra, houve então a campanha, de Norte a Sul, com a participação dos comunistas, inclusive, defendendo o envio de uma força expedicionária para a Europa. Por que, do ponto de vista comunista? Primeiro: era uma obrigação nossa, como brasileiros, participar da luta que a humanidade travava em defesa da democracia. Segundo, já do ponto de vista tático-político, mandando uma tropa expedicionária para a Europa, para lutar ao lado da democracia, essa tropa IHU On-Line – Qual é a sua opinião sobre Vargas e o seu legado? João Aveline – No meu tempo de adolescência, aluno do Colégio Militar, eu era apaixonado por Vargas. A minha geração foi educada sob o positivismo, com Borges de Medeiros e Júlio de Castilhos, dois padrões de honradez. Essa era a escola de Getúlio, um homem honrado. Depois, numa fase posterior, já começando a militar na juventude comunista, chegamos à conclusão, no partido, que Vargas não era aquilo que eu imaginava que ele fosse. Mas a revolução de 1930 não foi um golpe militar. Foi uma revolução de fato, que trouxe algumas transformações. Houve progresso. Os trabalhadores que eram obrigados a trabalhar até quatorze horas, passaram a ter uma carga horária 31 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO expedicionária, quando voltasse para o Brasil, naturalmente teria que encontrar um clima democrático, ou pelo menos um movimento fortíssimo em favor da democracia, e foi o que aconteceu. lhar das responsabilidades? Não. Ele foi um político, planejou seu suicídio. Com seu sangue, ele respondeu à investida imperialista e golpista, com grande eficácia, porque a crise, que era acentuadíssima, deu um giro de 180º graus. E os golpistas então recuaram e deram a solução constitucional à crise. Essa solução foi a posse do vice-presidente Café Filho. O povo estava na rua, e isso assusta qualquer um. Para se ter a idéia de que não se tratou de um gesto tresloucado, na cabeceira da cama tinha uma carta datilografada. Nessa carta, ele denunciava as ingerências externas do País e dizia que saía da vida para entrar na história. Esse era Getúlio. IHU On-Line – Como o senhor analisa a rela- ção de Vargas com os trabalhadores? João Aveline – Sabe como se realizava uma assembléia de trabalhadores no Estado Novo? Ficavam na mesa o presidente e os demais dirigentes do sindicato, o representante do Ministério do Trabalho, e o representante do Departamento Trabalhista do Departamento de Ordem Política e Social (Dops). Claro que as forças mais avançadas da sociedade criticavam isso, mas como havia censura, essas críticas nem sequer chegavam aos ouvidos do público. Nesse período, Getúlio se comportou assim com os trabalhadores. Mas em 1950, já há um outro arejamento. Ele procurou desenvolver uma política de capitalismo independente do Brasil, longe da tutela do imperialismo norte-americano. Criou Volta Redonda, a Petrobrás, de onde resultou o monopólio estatal do petróleo. Por causa dessa política de capitalismo independente para o Brasil, Getúlio feria interesses imperialistas norte-americanos no Brasil e seus agentes internos. Carlos Lacerda, um jornalista muito inteligente, muito capaz, um agitador de primeira grandeza, um homem muito culto, atrevido e agressivo, liderou uma campanha nacional contra Getúlio, praticamente com os meios de comunicação na mão. Chegamos ao dia 24 de agosto, numa reunião do Ministério que começou no meio da tarde e foi até a madrugada. Desta reunião, resultou a seguinte resolução: o Presidente Getúlio Vargas seria afastado provisoriamente por seis meses do Governo. Terminada a reunião, Getúlio se retirou para seus aposentos e deu um tiro no peito. IHU On-Line – O senhor o considerava um estadista? João Aveline – Tem gente que diz que ele foi um estadista. Eu não me atrevo a tanto, porque um estadista, em primeiro lugar, não pode cometer os crimes que cometeu no Estado Novo, principalmente aquele que levou a Olga Benário a um campo de concentração para morrer na câmara de gás. Ele também tinha, nas suas prisões, no Estado Novo, um camarada chamado Ari Berger, que era um alemão que estava aqui no Brasil para dar instruções aos comunistas brasileiros em relação à revolução de 1935. Esse homem foi tão maltratado pela polícia que o advogado Sobral Pinto, advogado do Prestes, invocou a lei de proteção aos animais para salvá-lo da tortura que estava sofrendo na prisão. Quem procede assim não pode ser estadista. Quem diz que o voto não enche barriga, como ele dizia durante o Estado Novo, não é um estadista. Um estadista não vacilaria na Segunda Guerra Mundial, sem saber para que lado ia, se para os nazifascistas ou para os aliados. Se vacilou foi porque admitia a hipótese de que pudesse ganhar um dos dois lados. Se ganhasse o lado alemão, ele naturalmente admitia a hipótese de participar de um mundo nazista. Então não tinha visão de mundo. Por essa razão, eu digo: Getúlio foi um dos políticos mais importantes do século vinte em nosso país. Não dá para negar a sua contribuição ao processo de desenvolvimento do nosso país; não dá para negar que, em determinados momentos de sua vida, ele teve po- IHU On-Line – Foi um gesto político? João Aveline – Ele conhecia o poder de fogo dos inimigos nos planos externo e interno. Viu que não tinha salvação e que não voltaria mais ao poder. Por que ele fez isso, por que se suicidou? Vargas foi um homem que, apeado do poder, covardemente deu um tiro no peito para se desvenci- 32 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO sições políticas corretas, como o próprio suicídio. Foi um homem muito importante. Mas, no meu entender, ele cometeu muito mais erros do que acertos, por isso ele não chegou a ser um estadista. por Getúlio, já tive ódio dele, hoje tenho mais ou menos uma posição isenta, do ponto de vista de análise. Getúlio foi o único homem na nossa história que fundou dois partidos, o Partido Social Democrático – PSD –, que atendia os interesses do latifúndio, e o Partido Trabalhista Brasileiro – PTB –,que era voltado para a área urbana, o proletariado urbano, porque ele sabia que não dava para misturar as duas coisas. IHU On-Line – Especificamente sobre o que diz respeito aos avanços trabalhistas, como o senhor o classificaria? João Aveline – Não dá para negar que Getúlio, quando assumiu o governo em 1930, vinha imbuído de mudanças, impulsionado também pelo movimento tenentista dos anos 1920, pela pequena burguesia militar, reivindicando mais progresso para o Brasil ou mais liberdade, mais democracia, mais desenvolvimento. Estimulou a organização dos trabalhadores, houve um salto em favor dos interesses dos trabalhadores não só do ponto de vista das suas reivindicações, mas também do ponto de vista de sua organização como classe, como categorias profissionais. Mas ele fez uma política toda fracionada, para que os trabalhadores não tivessem condição de fazer a sua política do ponto de vista global. As organizações de classes dos trabalhadores, suposta ou aparentemente independentes, eram todas manobradas pelo Ministério do Trabalho. E esse Ministério se valia, no movimento sindical, de alguns pelegos. No governo Getúlio, era muito comum ver um pedreiro de mão feita em manicura. IHU On-Line – Mas ele foi abandonado pelo PSD depois... João Aveline – Não sei se dá para dizer que ele foi abandonado, porque Getúlio, a rigor, estava muito acima dos partidos. Ele tinha uma personalidade tão forte que os partidos andavam a reboque dele. Getúlio só não teve uma influência marcante, decisiva, inquestionável, em São Paulo, porque, em São Paulo, predomina um outro tipo de populismo, que vem do Norte. Quem vem num pau-de-arara e chega a São Paulo e vai trabalhar de mestre de obra, ou vai trabalhar de vigia de uma obra com carteira assinada, ganha uma carta de alforria. E São Paulo sempre teve políticos que manobraram muito bem isso. Dois deles, podemos dizer, foram mestres: o Ademar de Barros e o Jânio Quadros. Getúlio só se elegeu Presidente da República em 1950, quando fez um acordo com Ademar de Barros. Esse acordo era de que, em 1950, Vargas seria o candidato e, no mandato seguinte, o candidato seria o Ademar, que era do Partido Social Progressista, que ele fundou, um partido pequeno, mas que tinha uma influência muito grande em São Paulo e no resto do País. Ele se apoiava em determinados estados, até em forças da esquerda. Quando o Partido Comunista estava na iminência de ser cassado, elegeu alguns parlamentares sob a legenda do PSP. IHU On-Line – Esse peleguismo atrasou muito o sindicalismo brasileiro. João Aveline – Claro. Getúlio deu tudo, mas ficou com as rédeas, por meio do movimento sindical todo compartimentado, apoiando-se em pelegos e, ao mesmo tempo, fazendo uma política populista de agrado aos trabalhadores. Hoje precisamos ter uma visão muito isenta. Já fui apaixonado 33 “Vargas entrava em pânico ao ouvir falar de centrais sindicais” Entrevista com Lauro Hagemann Getúlio Vargas dedicou boa parte dos seus esforços políticos para impedir a emancipação dos trabalhadores, adotando uma legislação trabalhista inspirada no fascismo. Essa é a constatação do jornalista e radialista Lauro Hagemann. Por isso, considera o legado varguista “negativo”, com destaque para a referida legislação. Foi apoiado nela que, como ditador e, depois, Presidente da República, Vargas impediu a unificação dos trabalhadores brasileiros e o seu reconhecimento como classe. Segundo Hagemann – líder sindical que fundou e presidiu o sindicato dos radialistas gaúchos e presidiu o sindicato dos jornalistas – Vargas “entrava em pânico” ao ouvir falar na criação de centrais sindicais, já poderosas em toda a América Latina, cujo nascimento ele tratou de impedir no Brasil. Entretanto, Hagemann reconhece que, em sua fase democrática – que não impediu as perseguições aos comunistas – Vargas conduziu importantes mudanças econômicas, modificando a face do País. E observa que somente agora está começando a interpretação dos fatos e datas da Era Vargas, e finalmente sendo produzida a sua história. Militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), ex-deputado estadual cassado em 1968, vereador porto-alegrense por cinco legislaturas, Hagemann atualmente está filiado ao PMDB. Lauro Hagemann foi locutor, de 1950 a 1964, da edição local “Repórter Esso”, noticiário transmitido pela Rádio Farroupilha, então pertencente aos Diários Associados. Lauro Hagemann – Eu vivi a Era Vargas. Estava em Novo Hamburgo, quando Vargas passou por lá, em campanha, em 1950. A história é longa, posso recordar fatos incidentais. A minha vivência está mais ligada à questão sindical. Quando eu fui dirigente sindical, eu tive de aturar a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que foi herança dele. A Consolidação é de 1942. Ele usou o pior método para criar uma estrutura sindical. Nunca apoiei nem aplaudi a estrutura sindical que o Vargas nos legou, porque era nitidamente fascista. Ele proporcionou algo imperdoável: nunca permitiu pela Consolidação que se aproximassem as categorias profissionais. Manteve-as todas estanques. Por isso é que, por longos anos, nós não tivemos uma central sindical. Essa é uma das razões para a demora do surgimento das centrais. A outra foi a falta de iniciativa da própria classe operária, que não quis quebrar esse status quo. Além disso, ele sempre beneficiou todos os dirigentes e as entidades sindicais. Foi o que se denominou depois de “pelegagem sindical”. Claro, isso não acontecia com todos, tínhamos honrosas exceções, mas a estrutura varguista favorecia os pelegos. IHU On-Line – O senhor pode falar sobre as tentativas de organização das centrais sindicais? Lauro Hagemann – Tínhamos que conviver com a CLT, não tinha outro jeito. Mas mesmo assim, aqui no Sul, tentamos, várias vezes, formar uma central, não conseguimos. Quando não esbarrávamos no problema político, esbarrávamos no problema legal. A lei não permitia que se juntasse marceneiro com radialista, por exemplo, em IHU On-Line – Quais são as suas recordações marcantes do período varguista? 34 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO uma central. Assim as categorias ficavam estanques, como eu disse. Isso é o que queria o Vargas, com a estrutura sindical imposta: comerciário de um lado, industriário de outro, marítimo de outro, aeroviário, bancários, todos separados. Não era permitido agir em conjunto, porque uma vez juntos, ninguém mais nos dominaria. Então, o movimento dos trabalhadores era fraco por isso, era dividido, e dividido por cima. As centrais que surgem depois, como a CUT, surgem à revelia da CLT, que não permitia e não permite isso. Só que agora ninguém se preocupa com essa unificação. que era partido. A minha vida sindical começou em 1950 e poucos, sempre ligada ao jornal, ao rádio, à comunicação. Quanto ao clima, era bagunça generalizada – semelhante ao clima político de hoje – ninguém tem noção das coisas certas, tudo é improvisado, muita politicagem, muita questão pessoal. O caso é que a classe operária brasileira sempre foi muito atrasada, é preciso dizer isso com todas as letras. E ela não tinha noção do que fosse classe operária. Cada um brigava pelo seu pedacinho. Não havia noção de conjunto, senso de pátria. Essa fragilidade começou com Vargas, e continua. Essa influência foi tão forte que essa dissensão continuou mesmo depois da fundação da CUT. Só agora é que estão falando em revisar a CLT, coisa que nós tentamos desde 1950. IHU On-Line – Como essa prática se refletia na sua atividade como radialista e sindicalista? Lauro Hagemann – A primeira legislação sobre rádio foi dele, em 1932. Foi um decreto que obrigava os locutores a se tornarem jornalistas. Foi antes da CLT, portanto. Eu comecei no rádio, em 1946. Na atividade sindical, fundamos o Movimento Intersindical Antiarrocho (MIA). Foi uma tentativa de fundar uma central, mas esbarrávamos na própria concepção “sindicaleira” dos dirigentes. Aí, já estávamos no final dos anos 1970. Mas essa foi a herança dele. Aliás, a CLT é uma herança também do Lindolfo Collor2, pai do “Colorzinho”3, que começou a trabalhar nessa idéia. Essa história da CLT ainda precisa ser esmiuçada com uma lente de aumento... O Vargas e a sua turma entravam em pânico, quando se falava em central sindical. As centrais já existiam, na América, e eram poderosas. Obrigavam os governos a andar na linha. Como Vargas tinha um vezo autoritário, pensar em união dos trabalhadores era algo insuportável. A legislação trabalhista veio para manter a divisão. IHU On-Line – Nesse aspecto, o senhor consi- dera negativo o legado varguista? Lauro Hagemann – Sim, foi negativo, pois ele copiou a estrutura sindical do fascismo, como sabemos. Não havia democracia. Mas é verdade que a vida do País mudou com Vargas, pois quando ele chegou à cena política pela via democrática, surgiram a Petrobrás, a base da indústria do aço, que gerou a indústria automobilística. Ele teve duas personalidades políticas, uma autoritária e outra democrática. Essas modificações econômicas foram muito importantes, deixaram um rastro. Mas o Partido Comunista vivia numa semilegalidade. E as lutas políticas do Vargas eram pela “governadoria” do País, pois, no Brasil, o poder nunca mudou de mãos. Vamos deixar isso bem claro, a classe econômica mais abonada sempre foi a predominante, mesmo no tempo dele. IHU On-Line – Como se explica a presença IHU On-Line – Quando o senhor ingressou no Partido Comunista? Como era o clima político dessa época? Lauro Hagemann – Eu ingressei no partido, em 1973. Foi nele que aprendi o que era política, o 2 3 marcante da memória de Vargas? Lauro Hagemann – Ele foi um populista, ficou conhecido como “o pai dos pobres”, fazia muitas concessões demagógicas... embora muitas mudanças tivessem algum conteúdo. Tanto que o Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio, no período de 1930 a 1932. A CLT origina-se do Decreto-Lei 5.452, de 1º de maio de 1943. (Nota do IHU On-Line). O entrevistado refere-se a Fernando Collor de Mello, Presidente do Brasil de 1990 a 1992. (Nota do IHU On-Line). 35 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO va voltando para Porto Alegre, depois de ter participado de um Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE). Como estudante de jornalismo, eu era delegado. Daí por diante, tudo aconteceu muito rápido, muitos fatos, muitas notícias... Muita coisa não se sabia. E o desfecho foi ligeiro. Todas essas coisas que eu estou falando são apenas fatos e datas, e isso não é história. O que vale é a interpretação, e somente agora está se começando a fazer isso. País passou da economia agrícola para a industrial. Na minha profissão é que nada mudou. IHU On-Line – Como locutor, o senhor notici- ou a morte de Vargas… Lauro Hagemann – Sim, é algo que vou levar comigo. Profissionalmente, é uma coisa muito interessante. Não é todo mundo que tem a possibilidade de ter feito algo assim. Eu soube do atentado da Rua Tonelero, no Rio de Janeiro, quando esta- 36 Getúlio, os sindicatos e a greve de 1953 Entrevista com José Alvaro Moisés A despeito dos apelos de Vargas no sentido de obter a cooperação dos trabalhadores para um projeto de reconstrução econômica, o movimento sindical começou a fazer reivindicações. Com o objetivo de atenuar os efeitos da crise, a classe operária começou a lutar pela obtenção de vantagens econômicas, já que o Governo concedeu, em dezembro de 1951, sobre o salário mínimo, estabelecido em 1943, um aumento de 14%, que foi considerado irrisório pelos trabalhadores, pois o custo de vida, entre 1943 e 1951, tinha subido 100%. Nesse quadro, eclodiu em São Paulo, em março de 1953, a chamada Greve dos 300 mil, que reuniu diversas categorias de trabalhadores, visando à obtenção de melhorias salariais e culminou com a criação de um órgão de comando intersindical que originaria mais tarde o Pacto de Unidade Intersindical (PUI). Com a deflagração desse movimento, ficou evidenciado o descontentamento da classe trabalhadora com a política salarial de Vargas e sua possibilidade de escapar ao controle da estrutura sindical oficial. Pressionado por todos os lados, Vargas procurava transformar as relações difusas que mantinha com a massa operária em relações mais organizadas e estáveis, tarefa para a qual se achava despreparado, já que mantinha sobre o assunto sérias divergências com seu ministro do Trabalho, José Segadas Viana. Com isso, o prestígio político do Presidente no meio sindical deteriorava-se rapidamente. Essa situação atingiu seu ponto máximo com a deflagração da greve dos marítimos no Rio de Janeiro, Santos e Belém, em junho de 1953, quando, novamente, eclodiram as divergências de Vargas com seu ministro. Diante dessa situação, João Goulart, presidente do PTB e detentor de alguma influência nos meios sindicais, entrou em polêmi- ca aberta com o ministro do Trabalho, discordando de sua orientação e procurando criar canais para uma aproximação maior de Vargas com a classe operária. Realizou, assim, sua primeira intervenção nas relações entre o Governo e o movimento operário, num momento em que ficava clara a necessidade de uma reformulação na orientação política oficial em relação às classes trabalhadoras. Nesse contexto, ocorreu a reforma ministerial de junho de 1953 e a indicação do nome de João Goulart para ocupar a pasta do Trabalho. Sobre essa importante greve IHU On-Line conversou com José Álvaro Moisés, que é professor do departamento de Ciência Política da USP. Sociólogo e mestre em Política e Governo pela University of Essex, U.E., Colchester, Inglaterra, e doutor em Ciência Política pela USP, com tese intitulada Classes populares e protesto urbano. Moisés é também pós-doutor pela University of Oxford, UO, Oxford, Inglaterra e pela USP. Autor de diversos livros, entre eles, Greve de Massa e Crise Política Estudo da Greve dos 300 Mil em São Paulo – 1953-54. São Paulo: Polis, 1978; Lições de Liberdade e de Opressão – Os trabalhadores e a luta pela democracia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982; Os brasileiros e a democracia – bases sócio-políticas da legitimidade democrática. São Paulo: Ática, 1995. IHU On-Line – Qual foi a contribuição de Var- gas para o movimento dos trabalhadores? José Álvaro Moisés – Vargas foi o grande estadista brasileiro do século XX. Sem que isso signifique um julgamento de valor positivo sobre a obra de Vargas, é incontestável que ele foi, do ângulo da construção do Estado brasileiro, um dos seus principais artífices, para o bem e para o mal. E isso 37 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO teve repercussões também na área sindical, porque a herança deixada e proposta pelo governo Vargas é até hoje o de uma estrutura corporativista, unicista, de sindicato único na base de cada categoria. com as orientações de esquerda que estavam presentes no movimento, como foi o caso do Partido Comunista. IHU On-Line – Qual foi a diferença entre o sindicato pré-greve e depois de 1953? José Álvaro Moisés – A greve de 1953 se organizou na base de comissões de empresa, organismos de base, que, em um certo sentido, era uma contestação do sindicalismo corporativista oficial. Ela agregou a estrutura previamente existente, uma estrutura mais flexível, menos rígida, e que tinha maior capacidade de mobilização da base dos trabalhadores na área metalúrgica, na área têxtil, que eram os setores de liderança na época. Significou agregar à estrutura corporativa uma dimensão de mobilização social que não existia, porque os sindicatos oficiais não conseguiam mobilizar. Acho que o interessante dessa situação é que nem uma coisa nem outra sozinha conseguia dar conta do problema da mobilização. Foi necessário articular uma estrutura corporativa e uma estrutura com maior liberdade. Por isso eu falo de uma estrutura paralela. A estrutura do sindicalismo populista, que perdurou até o golpe de 1964, se apoiou nessa estrutura paralela, que nasceu com a greve de 1953. IHU On-Line – Qual foi a dimensão da grande greve de 1953-1954? José Álvaro Moisés – Foi uma grande greve de massa que, naquela época, não era um evento comum no Brasil. Ela teve repercussões, não apenas do ponto de vista sindical, mas também político, porque, em certo sentido, ela colocou em questão o governo de Getúlio cujo suicídio lembramos 50 anos depois. Ela teve uma interferência muito forte no cenário social e no cenário político. Do ponto de vista social, ela abriu uma mudança à estrutura sindical. A greve foi uma manifestação, em grande parte, organizada pelo Partido Comunista, pelas suas lideranças sindicais comunistas e, do ponto de vista político, ela colocou em questão um equilíbrio de forças que apoiavam o governo Vargas, no qual o pólo sindical tinha um papel importante. Com uma greve contestatória que levantou dúvidas na forma como o Governo conduzia o processo, parte dessa aliança se desmoronou. IHU On-Line – Essa greve marca uma nova etapa no mundo dos trabalhadores da época? José Álvaro Moisés – Ela marcou as limitações da estrutura corporativista, estritamente herdadas do Estado Novo. Para que funcionasse a estrutura corporativa, o sindicato teve que criar uma espécie de estrutura paralela, as estruturas dos organismos paralelos que nasceram com a greve de 1953 e depois deram origem ao Pacto de Unidade e Ação (PUA), que foi tão importante para os últimos meses antes do golpe de 1954. Nesse sentido, a greve foi um evento social que colocou em questão, nos termos de participação dos trabalhadores, uma estrutura herdada do período autoritário do Estado Novo, que já não funcionava mais. Ela demandou, ela pediu a entrada de uma estrutura nova, paralela, que continuou tendo a influência do populismo, mas uma mescla do populismo IHU On-Line – Hoje o senhor vê o sindicalis- mo atual com a independência que ele buscava na época? José Álvaro Moisés – Acho que os sindicatos, de fato, se autonomizaram. Uma das grandes conquistas do período da democratização foi uma maior autonomia sindical e um movimento sindical mais independente do Estado. Há, porém, alguns problemas que permanecem. A estrutura unicista, de sindicato único, não é o melhor caminho. Pessoalmente, defendo a pluralidade sindical, por pensar que representa melhor os interesses dos trabalhadores. Deste ponto de vista, talvez seja uma reforma que está faltando fazer para que a independência e a autonomia, que foi conquistada nos anos 1970-1980, seja levada até o fim. 38 Getúlio e a revolução brasileira Entrevista com Gilberto Vasconcellos “A esquerda que combateu Getúlio é uma esquerda abstrata que, como diria Darcy Ribeiro, tinha uma revoluçãozinha na cabeça, haurida ou não nos textos marxistas. Aliás, o marxismo entre nós, não está imune a uma abordagem colonizada, embora a teoria da colonização tenha aparecido pela primeira vez na obra O Capital, de Karl Marx”. Essa é a opinião de Gilberto Vasconcellos, que defende a idéia de que Karl Max seria getulista se tivesse nascido no Brasil. Gilberto Vasconcellos é professor no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora. Sociólogo pela USP, ele é doutor em Sociologia pela mesma universidade, com tese intitulada Ideologia Curupira e pós-doutor pela École Pratique Des Hautes Études (EPHE), França. É autor de diversos livros, entre eles, Collor a Cocaína dos Pobres. São Paulo: Icone, 1989; O Príncipe da Moeda. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1997; O Poder dos Trópicos. São Paulo: Casa Amarela, 1999; Petrobrás – Um Clarão na História. Brasília: Instituto do Sol, 2001; A salvação da lavoura: receita da fartura para o povo brasileiro. São Paulo: Casa Amarela, 2002. a classe trabalhadora ao poder. Isso não faz o menor sentido, diria até que quem professa estas idéias é nostálgico da República Velha, ou quiçá, saudoso da escravidão. O pior de tudo é que essa estupidez aparece em livros didáticos que fizeram a cabeça da juventude pró-PT e antivargo-jangobrizolista. IHU On-Line – Quais as principais concepções e análises da esquerda que, basicamente, a orientaram no combate ao getulismo? Como elas se articulavam com a idéia de uma revolução brasileira? Gilberto Vasconcellos – A esquerda que combateu Getúlio é uma esquerda abstrata que, como diria Darcy Ribeiro, tinha uma revoluçãozinha na cabeça, seja ou não haurida nos textos marxistas. Aliás, o marxismo entre nós, não está imune a uma abordagem colonizada, embora a teoria da colonização tenha aparecido pela primeira vez na obra O Capital, de Karl Marx. Se tivesse dado a cara por estas bandas, Karl Marx seria getulista. De resto, o marxista Glauber Rocha dizia que o câncer da política brasileira foi o racha entre os comunistas e os nacionalistas antiimperialistas. Em 1954, Getúlio ficou sozinho, ainda que estivesse numa batalha barra pesada a favor da Petrobrás e contra o imperialismo norte-americano. Poucos marxistas na época entenderam a política antiimperialista de Vargas. Trata-se de um paradoxo: o maior líder burguês da história do Brasil ser um adversário do imperialismo norte-americano. Destarte, o conceito de revolução brasileira somente começou a circular depois da Carta Testamento de Vargas, na acepção de um país com autonomia, soberania e emancipação popular. A Carta Testamento é um documento trágico em IHU On-Line – Historicamente, de maneira geral, a esquerda brasileira responsabiliza Getúlio Vargas pelo aborto da revolução brasileira. À luz dos fatos políticos da última década, especialmente, o senhor considera que tal premissa mantém sua validade? Gilberto Vasconcellos – Isso é mais uma diatribe dos historiadores levianos e superficiais que dizem que as Leis Trabalhistas tiraram o proletariado brasileiro do caminho revolucionário, como se não tivesse aparecido Getúlio Vargas, e o marxismo, aliás tênue, da década de 1930, e conduzido 39 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO um país sem tragédia. Ninguém foi capaz de escrever outro documento mais contundente do ponto de vista político. me e Damião. Essa simbiose já ganhou o batismo de “petucanismo”, ou seja, “petistas e tucanos, uni-vos!” IHU On-Line – Enfocando a questão por outro ângulo: o legado da Era Vargas poderia ter contribuído à revolução brasileira? Ou, se descartada essa hipótese, ao aperfeiçoamento da democracia e das instituições nacionais? Como? Gilberto Vasconcellos – A Era Vargas poderia ter realizado a revolução brasileira se não tivesse sido interrompida em 1945 pelo golpe imperialista, em 1954 pela conspiração da UDN pró-americana, depois por Dutra, boneco de eletrodoméstico, por JK “frixopi”, por Jânio entreguista, pela deposição do nacionalista João Goulart, pela truculência do golpe de 1964, seguido da comédia de direita de Sarney, Collor, FHC e Lula. IHU On-Line – O senhor acredita que a esquerda brasileira, representada pelo PT, será capaz de responder à questão nacional? De transitar, de maneira conseqüente, entre os ideais históricos e contraditórios de ruptura institucional e de mudanças, por assim dizer passivas, apoiadas no aperfeiçoamento e consolidação das instituições republicanas? Gilberto Vasconcellos – O PT está desconectado da questão nacional e da questão cultural brasileira, tanto é que a sua palavra de ordem se concentra na cidadania, separada da soberania nacional, como se fosse possível existir uma sem a outra. O PT opera com a tesoura epistemológica na história do Brasil: tudo começou nas greves do ABC paulista, em 1979. Tudo que vem antes deve ser apagado: Vargas, Jango, Darcy Ribeiro, Leonel Brizola. IHU On-Line – Fernando Henrique Cardoso, quando Presidente da República, manifestou, por diversas vezes, seu desejo de por um fim definitivo à Era Vargas. Nesse aspecto, seus propósitos identificavam-se aos da esquerda, já reunida no PT, especialmente. Como se explica essa contradição? Gilberto Vasconcellos – FHC não foi o primeiro a se vangloriar de ser o “coveiro” da Era Vargas. E não será o último. Vide o exemplo de Lula que ainda não foi bater a cabeça no túmulo de Getúlio Vargas em São Borja, onde estão enterrados João Goulart, Leonel Brizola e Dona Neuza. O PT e o PSDB são xifópagos, como Cos- IHU On-Line – O senhor gostaria de acrescentar outros comentários ao tema em debate? Gilberto Vasconcellos – Gostaria de acrescentar que não consigo entender o Rio Grande do Sul, uma região libertária do Brasil, ter colocado no ostracismo a tradição castilhista de Getúlio Vargas. Acredito que um dia Getúlio Vargas, que não está nem no céu nem no inferno, possa baixar de novo nos pagos gaúchos. 40 Um romance historiográfico sobre a vida de Getúlio Entrevista com Juremir Machado da Silva IHU On-Line – Porque a escolha de construir “Getúlio me pareceu personagem antes de qualquer coisa. Chamamos em teoria literária de “personagem redondo”, personagem com profundidade, contraditório, paradoxal. Ele foi tudo: oligarca, revolucionário, ditador, eleito pelo povo, corajoso, suicida, calculista, maquiavélico, implacável, capaz de afastar seus amigos, de prendê-los, de mandá-los para o exílio, de chamá-los de volta, de perdoá-los, de se aliar a eles, então ele era um personagem antes de qualquer coisa”, essa é uma das razões pela qual Juremir Machado da Silva resolveu escrever o romance historiográfico Getúlio, lançado nos 50 anos da morte do ex-presidente. Juremir Machado da Silva é jornalista, historiador formado pela PUCRS, e doutor em Sociologia pela Universidade René Descartes, Paris V, Sorbonne, França. Leciona nos cursos de graduação e de pós-graduação da Faculdade de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Pesquisador do CNPq, fez pós-doutorado em Sociologia da Cultura, na Sorbonne, orientado por Michel Maffesoli, Jean Baudrillard e Edgar Morin. Publicou onze livros, entre eles: Anjos da perdição – futuro e presente na cultura brasileira. (Tese de doutorado). Porto Alegre: Sulina, 1996) e A miséria do jornalismo brasileiro. Rio de Janeiro: Vozes, 2000. Na França, publicou Le Brésil, pays du présent. Paris: Desclée de Brouwer, 1999. Atualmente, é editor da Revista Famecos: mídia, cultura e tecnologia, correspondente das revistas francesas Sociétés e Cultures en Mouvement, membro do Conselho Editorial do site Trópico, pertencente à Folha de S. Paulo e coordenador da coleção Comunicação, da EDIPUCRS. Sua mais recente obra, Getúlio, foi publicada pela editora Record. uma biografia de Getúlio Vargas no gênero romanesco? Juremir Machado – Primeiro, porque eu me considero escritor antes de tudo. Tenho múltiplas atividades, todas elas por paixão, mas também como forma de ganhar a vida. E aquela que elejo como minha atividade predileta é ser escritor. A ficção é uma forma superior de decifrar a complexidade da vida. Ela é mais capaz de decifrar as coisas, às vezes, do que as próprias ciências humanas. Getúlio me pareceu personagem antes de qualquer coisa. Chamamos em teoria literária de “personagem redondo”, personagem com profundidade, contraditório, paradoxal. Ele foi tudo: oligarca, revolucionário, ditador, eleito pelo povo, corajoso, suicida, calculista, maquiavélico, implacável, capaz de afastar seus amigos, de prendê-los, de mandá-los para o exílio, de chamá-los de volta, de perdoá-los, de se aliar a eles, então ele era um personagem antes de qualquer coisa. Além disso, um romance tem um tipo de discurso que atrai mais as pessoas, que as traz mais para essa interlocução. Eu queria isso, falar de Getúlio como quem fala em uma mesa de bar, ou em uma conversa de amigos, de maneira que se pudesse provocar o interesse de todos pelo homem, pelo personagem, e não só por uma rigorosa revisão histórica. Foi uma associação das minhas múltiplas possibilidades profissionais em prol de alguma coisa que pudesse tentar dar conta de um personagem fabuloso, que, além de tudo, diz muito para mim do ponto de vista afetivo, porque sou da fronteira oeste, porque meu avô se chamava Getúlio e se suicidou como Getúlio. Na minha família, tinha muitos getulistas. Tudo isso me atraiu para fazer o romance. Além de tudo, meu amigo 41 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO Décio Freitas4 me estimulou. Sempre quis que eu fizesse uma biografia de Getúlio. Eu achei o romance mais prazeroso do que a biografia e menos provocador de ilusão. As biografias normalmente têm muita ficção. Eu prefiro assumir algo como ficção ainda que eu tenha feito uma longa pesquisa histórica de documentos, de fontes primárias, de leituras dos jornais da época, mas também de revisão de toda a bibliografia possível. É uma mescla de reportagens e investigação histórica, transformada em romance. vestigar o motivo da sua expulsão, se era verdade, como se diz em alguns livros, que ela havia sido descoberta como espiã alemã, passando informações do governo Vargas para o nazismo, porque o casamento dela com Lutero acabara subitamente. Eles tinham uma filha, que ela não pôde ver durante muitos anos. Eu entrevistei essa filha também, em São Francisco de Assis, no início da pesquisa, para saber o que tinha acontecido com a família dela, com a mãe dela. Essa senhora morreu no ano passado. Outras pessoas foram os ajudantes de ordens de Getúlio que ainda estão vivos, da época do suicídio, a filha do Carlos Lacerda, o filho do Major Rubem Vaz, que morreu no atentado da rua Tonelero, etc. As últimas mulheres do famoso Ivo Vargas, irmão de Getúlio, um boêmio. A neta de Getúlio, Edith, que me pareceu muito interessante. Ela me contou da família, que é a parte menos visível dos Vargas. A Celina Vargas é muito mais visível. A Edith, que é filha da Jandira, a filha mais velha de Getúlio, era outro ramo menos visível. Então fui falando com todas essas pessoas para reconstituir a vida da família Vargas. IHU On-Line – Quais o senhor assinalaria como as entrevistas mais marcantes feitas para o livro? Juremir Machado – Primeiro, Guilherme Arinos, que é o pai de Gustavo Franco que foi presidente do Banco Central. Guilherme Arinos foi, durante 12 anos, uma espécie de secretário pessoal de Getúlio. Não um secretário de fato, funcionalmente, administrativamente, mas uma espécie de secretário oficioso, e que conheceu profundamente Getúlio. É um senhor que está com 89 anos. Acompanhou Getúlio até no exílio, em São Borja, em Itaqui. Ele conheceu muito bem o ex-presidente e me contou a vida de Getúlio de um ângulo mais do homem e menos do político. Também foram muito marcantes as entrevistas que fiz com Alcino João do Nascimento, o pistoleiro contratado para atirar em Lacerda e que provocou o atentado na rua Tonelero, cuja conseqüência foi o suicídio de Getúlio. Eu fui com ele, que tem 82 anos, dos quais passou mais de 20 na cadeia, até a rua Tonelero, para fazer uma reconstituição do crime. Isso foi muito marcante. Aquele homem se reencontrando 50 anos depois com o local de um crime que mudou a vida dele, e que tinha sua versão, as suas informações, a sua maneira de ver, as suas explicações. Depois uma outra entrevista muito marcante para mim foi com Ingeborg ten Haeff, uma alemã com quem Lutero Vargas, filho de Getúlio, foi casado, e que, mais tarde, foi expulsa do Brasil. Ela vive em Nova Iorque, é uma artista plástica bastante conhecida. Eu fui in- 4 IHU On-Line – Como foi a experiência em re- lação às outras pesquisas, de jornais e de documentos? Juremir Machado – Fui fazer a leitura dos jornais da época, na Biblioteca Nacional do Rio. Li a Tribuna da Imprensa, A Última Hora, O Globo do ano de 1954, por exemplo. E é sempre muito interessante, porque descobri um outro jornalismo, com uma outra linguagem, violenta, agressiva, sensacionalista, que também serviu para relativizar um pouco nossos conceitos de hoje. Nós achamos o nosso jornalismo, às vezes, muito ruim, tendemos a idealizar o jornalismo do passado. O jornalismo do passado, dessa época pelo menos, era um jornalismo talvez com mais defeitos do que o de hoje, um jornalismo muito menos comprometido com a demonstração do que dizia, um jornalismo quase assustador em que se podiam usar quase todos os tipos de palavras, de insultos, de acusações e de calúnias, de maneira que ler esses jor- Sobre Décio Freitas, conferir o boletim IHU On-Line n.º 92, de 15 de março de 2004, os depoimentos de Gunter Axt e Ieda Gutfriend. 42 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO nais me revelou o quanto os costumes, os valores, a forma de fazer política, na época, era diferente, muito mais violenta, mais frontal, mais implacável. Essas leituras de jornais foram importantes para reconstituir esse pano de fundo cultural da época. de ou não. É possível que, no futuro, se possa trabalhar melhor isso com o surgimento de novos documentos. Tem coisas que ficam vagas. Por exemplo, será que Lacerda foi ferido realmente no pé? Francamente é impossível provar. Há testemunhas que dizem que o viram caminhando meia hora depois, sem nenhum ferimento no pé. Os laudos periciais existentes não falam de nenhuma mancha de sangue entre o local do crime e o apartamento dele, para onde ele subiu depois do atentado. O prontuário de Lacerda no hospital, onde ele foi atendido e onde ele teve o pé engessado, sumiu ainda na década de 1950. Então nunca foi possível saber realmente. Esse é um item ainda a ser pesquisado. É muito polêmico, porque Lacerda teria sido ferido no pé, claro, com um tiro de 45, com uma bala potente. No mínimo, o que se imaginaria era Lacerda alguns dias hospitalizado, de cama, sofrendo um pouco. E isso não aparece. Lacerda engessou o pé e seguiu em atividades como se nada tivesse acontecido, o que alimenta as suspeitas de uma invenção, de uma fraude. Mas também não há hoje como demonstrar que foi uma fraude, porque o próprio médico que atendeu Lacerda na época, apesar do sumiço do prontuário, sempre jurou de pés juntos e sempre considerou uma calúnia que dissessem que não havia ferimento. É um ponto que ficou nebuloso. A família de Lacerda e a família do Major Vaz acham que sim, que houve isso e que dizer o contrário é falsificar a história. Mas a prova cabal não existe. Muita gente acha que o processo deveria ter sido reaberto, porque é truncado. É esse tipo de coisa que nunca ficou bem esclarecida. Gregório Fortunato foi assassinado na cadeia. Nunca soubemos exatamente por quê. Um episódio banal dentro de um presídio, uma briga com outro prisioneiro, por uma pendenga qualquer, uns dizem que por homossexualismo, outros dizem que por queima de arquivo. Esses pontos assim são nebulosos mesmo. Claro que dá para seguir alguns indícios e tirar algumas conclusões, mas dizer categoricamente nesses casos, “foi isto ou aquilo”, não dá. IHU On-Line – O livro chega a desvendar no- vos dados sobre o crime na rua Tonelero? Juremir Machado – O meu livro, como um romance, tem personagens que encarnam as múltiplas possibilidades. Se existem cinco ou seis hipóteses sobre o que aconteceu na rua Tonelero, cada um dos meus personagens encarna uma dessas possibilidades. Eu levo, com esses personagens, ao extremo, o desvendamento disso, até onde dá para chegar. Como é um romance, não é feita uma escolha do tipo “essa é a verdade”. É a verdade encarnada por cada personagem, segundo o máximo de informações que foi possível obter. Por exemplo, o personagem que encarna a tese de que houve um mandante acima de Gregório, que isso não foi decidido no andar de baixo, mas no andar de cima, embora Getúlio não soubesse, mostra com indícios, elementos de informação coletados por entrevista ou documentos, que a sua hipótese é melhor. Mas fica, no fundo, para o leitor tirar a conclusão entre todas possibilidades. IHU On-Line – Que fatos o senhor acha que merecem ainda muita pesquisa? Juremir Machado – Existem coisas que nunca vão ser totalmente reveladas, mas que ainda exigem mais reflexão. Uma delas é a hipótese, um tanto estranha, em princípio, de que Getúlio teria sido assassinado, e não se matado. É uma hipótese que vai e volta, tem quem a defenda. Ela nunca foi suficientemente investigada, porque envolveria militares graduados da época. Se existe documentação, ela não é acessível aos pesquisadores. É uma hipótese que fica; saber o que realmente há de verdade. Pode ser uma hipótese simplesmente sensacionalista ou a racionalização de algumas pessoas, mas não existe como tal. Ela aparece nos discursos e em jornais, mas não tem como investigar hoje para saber se ela tem um fundo de verda- IHU On-Line – Atualmente, 50 anos depois da morte de Getúlio, onde o senhor vê que ele está mais presente, em nosso País? 43 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO importante. Quando pensamos na concepção de uma identidade nacional, com a defesa do petróleo, a Petrobrás, é Getúlio Vargas. Posso estar errado, mas, que eu saiba, o único presidente a ter dado um aumento de salário mínimo de 100% foi Getúlio, em 1954. Já imaginou hoje Lula chegar e dizer assim “100% de aumento!”. Para bem e para mal, Getúlio era um político fenomenal. Ele teve as contradições da época e operou dentro delas. Quando perguntavam para ele se não podia ter feito isso tudo numa democracia, ele respondia com um sorriso: “O senhor acha?”. Na época, todo o mundo era golpista, todos. Todo o mundo pensava assim: “Não gostei desse governo; vamos derrubá-lo”. Lacerda era um grande golpista, queria que os seus assumissem o poder. Era uma política feita numa outra época, com outras noções. Juremir Machado – Ele está antes de tudo presente naquilo que é mais importante para nós no dia-a-dia e que é mais combatido pelos conservadores e empresários gerais, que é a legislação trabalhista. Elio Gaspari sempre faz essa brincadeira, quando tira férias. Ele escreve no jornal “graças à legislação varguista, ainda não derrubada pelo governo FHC ou pelo governo Lula, vou gozar as minhas merecidas férias”. A legislação trabalhista que nós temos, tudo o que nós temos de garantias trabalhistas e de que usufruímos e que os governos, volta e meia, querem nos tirar, é Getúlio. Nós não podemos esquecer de Getúlio, porque o salário mínimo é Getúlio, as férias pagas é Getúlio, a nossa legislação trabalhista essencial é do período Vargas. Claro que ele também está muito no imaginário popular. Ele está muito também no imaginário das oposições. Quando vemos um filme como Olga, ele é um requisitório contra a Era Vargas. Às vezes, boa parte com razão e, em alguns aspectos, um tanto alterado com relação a alguns detalhes históricos. Todo o mundo imagina que Olga foi expulsa do Brasil, extraditada, deportada, durante o Estado Novo. E não é verdade. Ela foi deportada em 1936, quando o Estado Novo ainda não tinha começado. Em 1936, não era muito melhor que o Estado Novo, mas ainda não era o Estado Novo. Getúlio está por toda a parte, do mal e do bem, na idéia de um estado autoritário, mas também no que temos de mais progressista em termos de legislação trabalhista. IHU On-Line – O que Getúlio Vargas pensou nos cinco minutos antes do suicídio, segundo o romance? Juremir Machado – Claro, estamos no reino da ficção, não tem como saber o que ele realmente pensou antes do suicídio, mas conforme o tipo de comportamento que ele tinha, acho que ele se reportou ao começo de tudo, ao dia 3 de outubro de 1930, dia em que ele começou a escrever o seu diário, no momento em que a revolução vai implodir, e ele anota lá: “Talvez só o sacrifício da minha própria vida possa vir a resgatar um eventual fracasso”. Quer dizer, 24 anos antes, quando tudo começou, ele já pensava que, em caso de fracasso, ele teria de se suicidar. Penso que nos últimos 5 minutos, ele fez o famoso flash back da sua existência. Pensou em São Borja, na infância, no começo de tudo, no dia 3 de outubro, na reconstituição da sua longa trajetória e nesse compromisso que ele tinha com ele mesmo de se suicidar em caso de fracasso. IHU On-Line – O senhor disse “que as melhores iniciativas políticas até hoje no Brasil partiram dele”; está se referindo a essas questões trabalhistas? Juremir Machado – É só pensar, por exemplo, que o voto feminino no Brasil veio na Era Vargas. Antes do voto feminino na França. É uma coisa 44 Samba e identidade nacional na era Vargas Entrevista com Magno Bissoli O músico e historiador Magno Bissoli, autor da tese de doutorado em História Caixa Preta: samba e identidade nacional na Era Vargas. Impacto do samba na formação da identidade na sociedade industrial: 1916-1945, apresentada em maio de 2004 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, concedeu a entrevista a seguir ao IHU On-Line. Magno Bissoli tem, desde 1974, desenvolvido suas atividades na área da música tanto no palco como fora dele. No palco, trabalha como músico, compositor, arranjador e band leader e, fora dele, é educador e produtor. Em sua carreira, trabalhou simultaneamente com a música erudita, com jazz, com MPB e com world music, apresentando desde concertos solo a performances com orquestra sinfônica. Viveu na Dinamarca, do início de 1981 ao final de 1983, onde se apresentou com os mais renomados músicos daquela região e, desde então, tem dividido suas atividades entre os dois países. Dentre suas atividades atuais, é percussionista da Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal de São Paulo, participa de grupos de câmara nas áreas da música erudita, popular e jazz, e desenvolve trabalho pedagógico para o ensino de crianças. com a chamada Revolução de 1930, inseria-se em contexto de circunstâncias sociopolíticas favoráveis. Valeu-se das condições objetivas da conjuntura internacional e logo da guerra mundial, com a emergência e o fortalecimento de estados nacionais e regimes autoritários. Na esfera econômica, a idéia de nacionalização tomou vulto desde 1930. Expressou liderança de grupos da pequena burguesia, com correntes oligarco-governistas. Sua ação não apresentou o sentido radical defendido, então, pelo movimento operário. Naquele momento, nacionalismo significaria restrição à iniciativa estrangeira tanto política como econômica. Entretanto, o projeto nacional varguista contava com ideólogos que, com habilidoso projeto político-ideológico, conseguiu convencer a opinião pública a uma “nova ordem”, centrada no fortalecimento do Estado. Projeto de controle e manipulação da população, buscando a integração nacional, com metas que visavam a estabelecer o consenso dos agentes sociais e do povo. A cultura, entendida como foco de educação cívica, foi organizada politicamente, com propósitos de “elevação do nível da cultura brasileira” e de fundamentar “a grandeza da Nação”, com base no valor intelectual do indivíduo e na “educação profissional apurada”. No entanto, não havia uma tolerância plural neste projeto. Talvez se possa interpretar o conceito de identidade nacional de Vargas por suas palavras em entrevista publicada em 1938, as quais indicavam ser necessário formar nas crianças e adolescentes, “a mentalidade capaz de levar o País aos seus destinos, mas conservando os traços fundamentais da nossa fisionomia histórica, com o espírito tradicional da nacionalidade”. Invertia-se, assim, uma “fisionomia histórica”. Quanto ao uso das expressões culturais, o varguis- IHU On-Line – Qual era o conceito de identi- dade brasileira que se foi formando na Era Vargas? Como ele usou as diversas expressões culturais para traçar um imaginário brasileiro? Magno Bissoli – O conceito de identidade brasileira só pode ser compreendido à luz da perspectiva ideológica, de um mito criado da necessidade de se atingir objetivos específicos, impostos pelos interesses do grupo ou camada social dominante. No caso em questão, o governo Vargas, instalado 45 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO que sentido o samba foi percebido como um potencial para uma “nova ordem”, centrada no fortalecimento do Estado? Magno Bissoli – O samba conquistou o Brasil e o mundo. Ainda hoje é o centro do grande espetáculo do carnaval. Talvez até por sua simplicidade formal, ao surgir no ambiente urbano como resultado de diferentes musicalidades, o samba possibilitou, primeiro ao setor de trabalhadores urbanos e depois ao conjunto da população da cidade, uma forma de expressão coletiva para a qual podiam convergir as diferentes expressões corporais, musicais e lúdicas. Ele efetiva, portanto, como elemento de encontro das massas trabalhadoras, o encontro de diferentes experiências musicais no ambiente do “terreiro”, da “gafieira”, das “festas”, sendo gradualmente assimilado pelos meios de radiodifusão e pelo mercado fonográfico. Isso porque a expressão negra no samba pode tornar públicos sentimentos de seu aparente ser privado, o que não seria tolerado que um branco o fizesse. Defini, em minha tese, os conceitos de samba perene e samba derivado. Neste, a autofagia e renascimento do samba implica sua crescente estilização. Abstraído de sua temática inicial, o samba poderia, então, avançar como forma musical de todos, eminentemente urbana e capaz, portanto, de expressar uma identidade nacional, contraposta a outras metropolitanas. Este processo de reconhecimento acabou por incorporar um novo samba, com novos autores, novo ideário e novas representações sociais, posteriormente trabalhadas e moldadas em mass media. Dentre os derivados, tem-se o “samba de branco”. O samba, para poder ser aceito como símbolo da música popular nacional, teve que se embranquecer. Este processo foi gradual a partir dos anos 1920, culminando com a Aquarela do Brasil de Ary Barroso em 1938. Este embranquecimento significou que cantores brancos gravaram sambas de autores negros, comprando, às vezes, a parceria, e também que compositores brancos passaram a compor naquele estilo. Portanto, as transformações não foram apenas na forma, mas na apropriação da cultura do negro pelo status quo. Ao mesmo tempo, o samba negro das comunidades que, com ele se identificavam, serviu de elemento de cooptação mo utilizou-se de um poderoso aparato para controlá-las, como para o controle da informação, cultuando a propaganda patriótica. Cinema, teatro, música, ficaram subordinados ao poder público, que os moldava, legitimando o projeto de cultura nacional autoritária. Em discurso de 25 de junho de 1934, Vargas descrevia o cinema como elemento de influência direta sobre o raciocínio e a imaginação, divulgando o conhecimento sem a erudição dos livros. Pretendia ele aproximar os núcleos humanos, como o Norte e Nordeste aos centros urbanos, onde “se elabora o nosso progresso”. Como um livro de imagens, as populações aprenderiam a amar o Brasil, nesta versão urbana, industrializante e varguista. Outro aspecto importante foi a Rádio Nacional, estatizada, que possibilitou criar uma orquestra brasileira, contando com cavaquinho, violão e instrumentos de percussão tocados por sambistas negros, dando aos arranjos a ginga brasileira e a idéia de integração do negro. Este, como força de trabalho, seria fundamental para o projeto da construção nacional. Tem-se, assim, o êxito do varguismo, ao criar uma “identidade brasileira” que sobreviveu, de muitas que seriam antes possíveis. IHU On-Line – Por que o samba estava proibido antes de 1930? Magno Bissoli – Porque era uma manifestação de negros, ex-escravos, considerada desclassificante e perturbadora da ordem pública estabelecida. Assim como também o foram a capoeira e demais manifestações religiosas e atividades típicas das culturas negras no Brasil. Após 1930, sua recuperação se ajusta a um novo cenário em criação. Em minha tese, trabalho com o conceito de profanização da cultura negra pelo colonizador, que detinha apenas uma visão parcial daquele universo cultural. Este é um ponto fundamental para se compreender a cultura negra no Brasil, mas tratar dele exige maior espaço do que o que se tem aqui. IHU On-Line – Quais as transformações pelas quais foi passando para chegar a ser uma espécie de consenso nacional, inclusive uma das marcas do Brasil no exterior? Em 46 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO espiritual daquela massa trabalhadora para o projeto de integração nacional do Estado. O samba, saindo do seu ambiente para ganhar as ruas, criou vida própria no comércio musical da cidade. De fato, uma variante da industrialização que gira volumoso capital em suas diferentes esferas de atuação, como direitos autorais, produção de discos, partituras, instrumentos, o rádio entre outras. Isso e o seu poder de penetração e movimentação no povo, possibilitaram que se criasse em seu redor a aura da nacionalidade, espalhada pela cidade e refletida em todo o País pelo rádio e pelo disco, que eram, então, as principais mídias de comunicação de massa, e em parte, também pelo cinema. Em um contexto onde condições objetivas e reais da vida material e a correlação entre as forças das classes às quais pertenciam os compositores negros (pobres) e os compradores do samba (burguesia), determinaram que, embora houvesse sido o agente da mudança histórica, ao negro fosse subtraída a grandeza do seu papel, para ser dada a outrem. A tradição de um samba nacional é, portanto, criada, como as “tradições inventadas”, descritas por Eric Hobsbawm e Terence Ranger5. tado no rádio, fixou a idéia da grande Nação propagada pelo Estado na população. Lembremos, ainda, que Vargas era popular entre os artistas. Como deputado, em 1928, ele foi autor do decreto legislativo 5.492, que regulava a organização das empresas de diversões e defendia os interesses de quem recebia direitos autorais. Em suas recepções, Mário Reis e o Bando da Lua eram convidados a tocar e cantar. Autores de sucesso compuseram músicas em sua homenagem, enaltecendo sua política e o Estado Novo. Sua veiculação denotou a percepção do poder comunicativo da música sobre a população, servindo como instrumento de formação de opinião. Talvez isso possa explicar esta força na memória popular. Conheço pessoas que ainda hoje se lembram daquelas músicas. IHU On-Line – No contexto histórico da Era Vargas, que coincide, em parte, com a era de ouro do rádio, o samba e a música, em geral, retratavam fortemente o contexto político, tanto como propaganda quanto como crítica. O que o senhor acha disso? Poderia dar-nos alguns exemplos de letras musicais da época? Magno Bissoli – Naquele período, a informação era controlada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) e para passar pela censura, as letras das músicas tinham que conter metáforas, caso fizessem alusão a algo contrário à política do Governo. É o caso, por exemplo, de Wilson Batista. Em parceria com Ataulfo Alves, compôs O Bonde São Januário, uma apologia ao trabalhador. Entretanto, visto pela dubiedade de se auto-enquadrar na forma textual, mas resistir na sua essência, não seria exagero, em uma visão bakhtiniana, supor que, ao contrário, há uma satirização das instituições e poderes e da própria condição de trabalhador, pois em lugar de “O bonde São Januário / leva mais um operário”, o significado da letra original e também o que o povo cantava era “O bonde São Januário / leva mais um otário”. Transformado em deboche pelo povo, evi- IHU On-Line – Quais os paralelos que podem ser traçados entre o samba, o rádio e a figura de Getúlio Vargas? Até que ponto esses dois instrumentos ajudaram a deixar a memória de Vargas tão fortemente marcada na memória popular brasileira? Magno Bissoli – O samba, como expressão coletiva, conquistou a população nas ruas e praças a partir das festas dos negros. O rádio foi posteriormente mais um dos meios para sua divulgação e difusão nacionais, como um elemento da cultura urbana. O samba já era sucesso antes do estabelecimento da rádio comercial no Brasil nos anos 1930. O varguismo usufruiu deste contexto e o ampliou. Naquele período, alto-falantes foram instalados em praças das pequenas cidades, levando o rádio com a voz e as idéias de Vargas à grande parte do território nacional. O samba, can- 5 Eric Hobsbawm e Terence Ranger (org.). A invenção das tradições. São Paulo; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. 47 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO IHU On-Line – Há algum paralelo que possa ser traçado entre a identidade nacional do samba na era Vargas e a música brasileira tocada no cenário político atual? Magno Bissoli – Sim. A tentativa de reconstrução de uma outra identidade das organizações comunitárias, que hoje tende a se generalizar no País. dencia a permutabilidade do espírito popular entre os termos “otário” e “operário”. Em minha pesquisa, utilizei a música como fonte e muito pouco as letras. Entretanto, no sentido em que expus o caso de Wilson Batista, muitas são as suas composições que tratam do tema “trabalho”, como Lenço no Pescoço, O Bonde São Januário, Acertei no Milhar. De Assis Valente, a música Recenseamento (1940), gravada por Carmen Miranda diz: IHU On-Line – Algum outro aspecto que de- seje acrescentar e não foi perguntado? Magno Bissoli – É conveniente esclarecer que não é gratuito encontrarmos nos pronunciamentos de Getúlio Vargas, a relação entre cultura e política. Expressões como a “nacionalidade” e “grandeza da Nação” em geral se associam à “cultura brasileira” A ela subentende-se a idéia do apreço paternalista à cultura popular, ao samba, aos sambistas. Isso porque Vargas precisou da força produtiva dos afro-descendentes para elaborar a sua propagada “grandeza da nação”, a nacionalidade como tal. A manipulação daquelas forças produtivas era fundamental para o crescimento industrial. Com efeito, o momento histórico em que o samba é definitivamente aceito, é o momento em que o negro se torna operário industrial. E naquele modelo fascista do Estado, pressupõe-se que, com o desenvolvimento das novas gerações, os negros iriam sendo substituídos pelos mestiços6. Paradoxalmente, desejava-se, ao mesmo tempo, promover uma “limpeza” racial, que seria operada gradualmente. Ela enfatizava o desenvolvimento “eugênico” da “raça”7. Vargas, portanto, afirmava um Estado autoritário e se apoiava no mito de uma cultura popular. Toda a população teria que ser convocada para “construir a nação”. Os sambistas, disciplinados pela censura do DIP, deveriam abstrair da “malandragem” e exortar ao trabalho, agindo no sentido de integrar negros e “mestiços” ao trabalho, ao projeto nacional. “Em 1940, lá no morro, começou o recenseamento E o agente recenseador esmiuçou a minha vida que foi um horror. Quando viu a minha mão sem aliança, encarou com a criança que no chão dormia E perguntou se meu moreno era decente, se era do batente ou era da folia”. Os visionários desta realidade tornaram-se resistências, como Assis Valente, Wilson Batista, Geraldo Pereira, Moreira da Silva e outros. Eles embutiam uma psicologia em seus sambas, jogando duplamente, pois buscavam driblar a censura, mas, ao mesmo tempo, obter algum ganho para a sobrevivência. IHU On-Line – Acha que, na atualidade, o samba e a música estão muito mais distantes da realidade política do País? Ou é a realidade política que se distancia da cotidianeidade cantada pelo samba? Magno Bissoli – O Brasil passa há anos por um processo de afastamento, levado a cabo pelos meios de comunicação e pela má qualidade do ensino público fundamental e básico. Há focos de resistência crítica e criativa artístico-cultural tanto quanto política, mas infelizmente sem espaço para divulgação. Tem-se muito trabalho para encontrá-los. Só a luta comunitária pode constituir um papel positivo no atual cancioneiro popular. Vejamos o exemplo do rap. 6 7 A teoria da mestiçagem de Gilberto Freyre data da década de 1930. (Nota do entrevistado). A propósito, vide discurso de 07 de setembro de 1938: “As comemorações da PÁTRIA e da RAÇA deverão ser, daqui por diante, uma demonstração inequívoca do nosso esforço pelo levantamento do nível cultural e eugênico da mocidade, fonte de revigoramento das energias nacionais e penhor seguro do progresso da Pátria”. (p. 337) [...] “É inacreditável despontar solução ao problema do fortalecimento da raça, assegurando o preparo cultural e eugênico das novas gerações” (p. 313). Apud Getúlio Vargas. As Diretrizes da Nova Política do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio. (Nota do entrevistado) 48 Eu Getúlio. Ele Getúlio. Nós Getúlios. Entrevista com Eloísa Capovilla A professora do PPG em História da Unisinos, Eloísa Capovilla, organizadora da exposição Eu Getúlio. Ele Getúlio. Nós Getúlios. concedeu a entrevista ao IHU On-Line. Capovilla é graduada em História, mestre em História pela UFRGS, com dissertação intitulada O Partido Republicano Rio-Grandense e o poder local no Litoral Norte do Rio Grande do Sul, e doutora em História pela mesma instituição, tendo a sua tese o título O teatro da sociabilidade: os clubes sociais como espaço de representação das elites urbanas alemãs e teuto-brasileiras – São Leopoldo 1858-1930. É co-autora do livro Sociedade Orpheu: da história de um nome à identidade de um clube. Porto Alegre: Palotti, 1998. vida e, inclusive, sua morte, quando “sai da vida para entrar na história”. Essa parte da exposição terá também, uma linha de tempo com os principais acontecimentos de sua vida. IHU On-Line – Ele Getúlio expressaria qual olhar sobre a vida de Vargas? Eloísa Capovilla – Esse seria o olhar tanto dos adversários quanto das representações que se construíram a seu respeito. “Ele Getúlio”, na sua conotação acusadora, como se estivessem apontando com o dedo, é a versão dos seus inimigos e desafetos. Circulava, na época, um grande número de charges e caricaturas, acentuando determinados traços de Vargas. Parte desse material estará na exposição. Incluiremos também material de alguns dos grandes opositores de Getúlio. O primeiro deles era o jornalista Carlos Lacerda, da UDN, diretor do jornal Tribuna da Imprensa. Ele era seu principal inimigo desde antes da eleição de 1950. Foi contra o populismo e contra a eleição, porque partia do princípio de que alguém que havia sido ditador não ia poder governar democraticamente. Ele era autor de discursos ferozes contra Vargas, criticava muito o fato de ele estar governando com amigos e parentes ao redor, inclusive, Lacerda chegou a dizer que não foi Getúlio quem escreveu a carta-testamento, que ela já estaria escrita e ele simplesmente a modificou. Esse discurso para um país getulista é quase um sacrilégio. Um outro desafeto de Getúlio era o jornalista David Nasser, da revista O Cruzeiro. Entre os historiadores, lembro de Affonso Henriques, que fez uma leitura histórica do período com base em denúncias e erros do governo Vargas. Mas, “ele Getúlio” quer também mostrar as representações mais diversas construídas sobre o Presidente IHU On-Line – A que se propõe a exposição Eu Getúlio. Ele Getúlio. Nós Getúlios? Eloísa Capovilla – Surgiu de uma necessidade de resgatar diversos olhares sobre o ex-Presidente Getúlio Vargas, no período de 1950 a 1954, quando governou como presidente eleito. Será uma exposição basicamente visual: com fotos, algumas legendas, músicas, vídeo e outros materiais sobre Getúlio que poderão ser acessados nos computadores que estarão disponíveis. IHU On-Line – Qual seria o olhar de “eu Getulio”? Eloísa Capovilla – Fotos do Presidente, como ele se mostrava na ação política, isto é, Getúlio governando o Brasil. Ele como presidente eleito, com uma votação extremamente expressiva que se propõe a uma política diferenciada. As fotos registram os diversos momentos dessa política, desde a campanha eleitoral, passando por suas diversas ações governamentais, seus discursos, sua 49 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO Vargas. Assim, teremos, a exposição, um busto do ex-Presidente, que pertence ao pai de uma colega nossa da Unisinos, e era de seu avô. Haverá músicas que falavam do então Presidente e, inclusive, a receita de um pudim chamado Getúlio Vargas8, que é feito por uma senhora de São Leopoldo (Vovó Verlaine), que o recebeu das gerações anteriores, e que é feito de coco e abacaxi. derada como os anos dourados, a época de ouro. Foi uma época de desenvolvimento, de crescimento nas áreas de cultura, teatro, cinema, os anos de ouro do rádio, o surgimento da televisão. Foi parte do período mais democrático do País até então, porque o governo Dutra foi de transição, e um governo de transição nunca é muito democrático. Esse florescer da democracia se viu expressado no florescer cultural. Até o futebol se tornou extremamente importante para o Brasil a partir de 1950, em que se construiu o Maracanã para o mundial sediado no Brasil (o qual tínhamos certeza de que ganharíamos). Em 1954, uma brasileira, Marta Rocha, foi a segunda mulher mais bonita do mundo (embora tivesse duas polegadas a mais nos quadris); até esse tipo de coisas era intensamente vivido pelo brasileiro em um clima de alegria e esperança certamente impregnados do sentimento de democracia. Havia uma forte crença de que viriam tempos melhores. É também o tempo da Bossa Nova, o cinema tenta mostrar um tipo de brasileiro. É claro que não era tudo cor de rosa, mas a abertura e o avanço das forças populares refletem-se muito na cultura, e isso é o que analisaremos na oficina. IHU On-Line – Qual seria o significado do “nós Getúlios” na exposição? Eloísa Capovilla – Essa parte tenta resgatar o que ficou de Getúlio 50 anos depois, de uma forma original. Entrevistaremos uma série de pessoas chamadas Getúlio, perguntando a respeito de seu nome. Alguns dirão que não tem nenhuma relação com Vargas, outros que talvez tenha. Isso descobriremos com as entrevistas. Consideramos que esta é também uma forma de perpetuação do personagem. IHU On-Line – Em que vai consistir a oficina que a senhora ministrará no dia 24 sobre a cultura na Era Vargas? Eloísa Capovilla – A década de 1950 foi muito importante no Brasil. Para muitos, foi consi- 8 A coluna do jornalista Ancelmo Góis, publicada no jornal O Globo, 15-8-04, noticia que Getúlio Vargas também é nome de um legume. Tanto que uma leguminosa getuliana será plantada dia 24 de agosto no Museu da República, no Rio de Janeiro, em homenagem ao Presidente. (Nota do IHU On-Line). 50 Leonel de Moura Brizola Biografia Jardim da Paz. Não houve cerimônias oficiais, somente alguns pronunciamentos de autoridades do Estado e de companheiros políticos que falaram sobre o líder trabalhista. Brizola foi sepultado no jazigo da família, onde já estavam sua mulher Neuza Goulart Brizola e o ex-presidente João Goulart. As informações sobre a vida e a obra de Leonel Brizola, que apresentamos a seguir, podem ser complementadas nos sítios http://busca.estadao.com.br/ agestado/noticias e http://www.cati.com.br/noticia.asp?CodNotic=308 A notícia de sua morte Leonel Brizola, um político radical e apaixonado O presidente nacional do PDT, Leonel Brizola, morreu na noite do último dia 21 de junho de 2004, aos 82 anos, de enfarte. Ele estava internado no Hospital São Lucas, em Copacabana, bairro onde morava no Rio de Janeiro. Brizola teve uma infecção pulmonar e foi submetido a uma bateria de exames. Por volta das 18 horas, quando já estava liberado, o ex-Governador do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul teve uma parada cardiorrespiratória e foi transferido para a emergência, onde recebeu sedativos. Os médicos, então, passaram a lutar para reanimá-lo, mas Brizola não reagiu. O diretor da Unidade Cardiointensiva do Hospital São Lucas, Marcos Batista, informou que a morte de Brizola ocorreu às 21h20min. O médico contou que, durante a tentativa de reanimar o ex-Governador, ele recebeu um marca-passo. E confirmou a causa oficial da morte: enfarte agudo do miocárdio. O corpo do ex-Governador do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro foi enterrado dia 24 de junho, em São Borja, na fronteira oeste do Rio Grande do Sul. A cidade parou para acompanhar o cortejo, que saiu da Igreja Matriz de São Francisco de Borja, no centro. O povo seguiu a pé o cortejo por quase cinco quilômetros até o cemitério Crítico, combativo, radical, exatamente como era já nos idos de 1945 – então com 23 anos – quando entrou no recém-fundado Partido Trabalhista Brasileiro e mergulhou de cabeça na causa do trabalhismo, pregada por Getúlio Vargas. E antes não tinha sido diferente. Nascido de família humilde, o pequeno Leonel bem cedo trabalhou como engraxate e ascensorista e batalhou muito, depois, para completar o curso de Engenharia em 1949. Mas foi um misto de radicalismo e valentia que fez dele uma figura nacional. Embalado nas campanhas do PTB gaúcho, foi deputado federal em 1954. No ano seguinte, prefeito de Porto Alegre, e em 1958, aos 36 anos, elegeu-se Governador do Rio Grande do Sul. Do Palácio Piratini para o palco da política nacional foi um simples passo O País vivia, a meio caminho do governo de Juscelino Kubitschek, um intenso debate nacionalista, mais à esquerda, e um modelo econômico-liberal, pró-americano, à direita. O engenheiro, como começavam a chamá-lo, simplesmente 51 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO estatizou empresas multinacionais e começou um processo de reforma agrária. A renúncia de Jânio Quadros, em 1961, o levou a criar e comandar uma “cadeia da legalidade” para garantir a posse do vice-presidente João Goulart, que os militares da época não aprovavam. Microfone na mão, voz dramática, ele falava em patriotismo e desafiava os militares. Pregava em comícios e auditórios, em defesa das chamadas reformas de base. tenceu a Passo Fundo (RS) até 1931, quando passou à jurisdição de Carazinho (RS). Seu pai, o lavrador José de Oliveira Brizola, morreu na Revolução Federalista de 1923, lutando nas tropas de Joaquim Francisco de Assis Brasil, que combatiam os republicanos de Borges de Medeiros. Alfabetizado por sua mãe, Oniva de Moura Brizola, começou na escola primária em 1931, em Passo Fundo. Em 1936, matriculou-se no Instituto Agrícola de Viamão, perto de Porto Alegre, formando-se técnico rural em 1939. Nessa época, trabalhou como graxeiro numa refinaria em Gravataí (RS). Embora de origem católica, Brizola deixou transparecer outra marca do passado: a influência do pastor metodista Isidoro Pereira. Ainda adolescente, Brizola morou na casa de Isidoro durante dois anos. Chegou a fazer pregações na igreja do pastor. “As falas de Brizola são recheadas de imagens rurais, de inspiração bíblica. Ele fala através de parábolas”, comentou o vereador do PSB Saturnino Braga, ex-prefeito do Rio. Ante as eventuais contestações ao domínio que exercia no PDT, Brizola costumava utilizar uma de suas imagens favoritas. Dizia que os dissidentes estão “costeando o alambrado”, referência aos bois que estão prestes a ultrapassar as divisas de uma fazenda. Isidoro significou para Brizola o acesso a um conhecimento mais cultivado. Em 1940, mudou-se para Porto Alegre e obteve emprego no Serviço de Parques e Jardins da Prefeitura. Para continuar seus estudos, matriculou-se no Colégio Júlio de Castilhos para fazer o curso supletivo. Em 1945, começou a cursar Engenharia Civil na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, formando-se em 1949. Em 1º de março de 1950, Brizola casou-se com Neuza Goulart, irmã do então deputado estadual João Goulart. O casal teve três filhos: João Otávio, José Vicente e Neusa, que lhes deram oito netos. O padrinho do casamento foi o próprio Getúlio Vargas, que, em 3 de outubro, foi eleito Presidente da República. No mesmo pleito, Brizola foi reeleito deputado estadual. Em março de 1951, Brizola tornou-se líder do PTB na Assembléia Legislativa e pouco depois se candidatou a prefeito de Porto Alegre. Perdeu o pleito, em 1º de novembro, por pouco mais de 1% dos votos. Modelos Em 1962, foi o deputado mais votado do País, pelo Rio de Janeiro. Ele, do PTB, de um lado, e Carlos Lacerda, do outro, pela UDN, travaram uma batalha histórica. Cada um defendia um modelo para o Brasil. Lacerda e os militares venceram, em 1964, e Brizola foi cassado. Exilado no Uruguai, foi de lá expulso em 1977, indo viver nos Estados Unidos e depois em Portugal. Sua volta ao País, com os anistiados de 1979, foi marcada por um trauma: a sigla PTB foi “tomada” dele, na reorganização partidária de então, por Ivete Vargas, e lhe restou fundar um novo partido, o Partido Democrático Trabalhista (PDT). Pelo PDT, ele foi eleito duas vezes Governador do Rio de Janeiro, em 1982 e em 1990. Tentou duas vezes a Presidência, perdendo para Fernando Collor em 1989 e para Fernando Henrique Cardoso em 1994. Amargou uma terceira derrota em 1998, como vice de Luiz Inácio Lula da Silva. Restavam-lhe o prestígio internacional, como militante da Internacional Socialista – da qual ainda era vice-presidente – e a amizade com figuras, como Mário Soares, Felipe Gonzalez e outros líderes. Nos últimos dez anos, seu PDT perdeu espaço na esquerda nacional, e ele passou a criticar Lula e o PT. Saiba mais sobre Brizola Leonel de Moura Brizola nasceu em 22 de janeiro de 1922, no povoado de Cruzinha, que per- 52 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO do Rio Grande do Sul. Criou a Aços Finos Piratini e a Companhia Rio-Grandense de Telecomunicações e pressionou o Governo Federal a instalar uma refinaria no Estado. Encampou a Companhia Telefônica Rio-Grandense, uma subsidiária da ITT. No setor de educação, construiu 5.902 escolas primárias, 278 escolas técnicas e 131 ginásios e escolas normais. Em 1960, apoiou as candidaturas do general Henrique Lott (PSD) à Presidência e de João Goulart (PTB) para vice. Lott perdeu, mas Goulart foi eleito vice de Jânio Quadros. Em 1952, foi nomeado secretário de Obras do Governador Ernesto Dornelles (PTB). Dois anos depois, foi eleito deputado federal pelo PTB em outubro de 1954. Tomou posse na Câmara em 1955, mas ficou pouco tempo na Casa: em outubro de 1955, foi eleito prefeito de Porto Alegre. Sua gestão foi marcada pela construção de escolas primárias e melhoria dos transportes coletivos na cidade. Em outubro de 1958, foi eleito Governador gaúcho, com mais de 55% dos votos. Empossado em janeiro de 1959, criou a Caixa Econômica Estadual e adquiriu o controle acionário do Banco 53 A categoria populismo não serve para caracterizar a democracia brasileira Entrevista com Jorge Luiz Ferreira O conceito de populismo mascara projetos políticos importantes, não oferece ferramentas para a compreensão da história política brasileira contemporânea e, sobretudo, descaracteriza a democracia nacional, vendo as massas como subservientes e incapazes de votar. Essa é a opinião do professor Jorge Ferreira que, com outros historiadores, está empenhado em rever e combater o referido conceito, recusando-se a utilizá-lo, considerando a sua imprecisão. Ele é professor no Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. Graduado e mestre em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), escreveu a dissertação “Trabalhadores do Brasil. A cultura política popular no primeiro Governo Vargas (1930-1945)”,. O professor é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Sua tese de doutorado intitula-se “Prisioneiros do mito: cultura e imaginário político dos comunistas no Brasil (1930-1956)”. Ferreira é autor de Trabalhadores do Brasil. O imaginário popular. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1997; Prisioneiros do mito. Cultura e imaginário político dos comunistas no Brasil (1930-1956). Rio de Janeiro/Niterói: Mauad/ Eduff, 2002. Como organizador, publicou, em parceria com Mariza de Carvalho Soares, A História vai ao Cinema. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001. Com Lucília de Almeida Neves, organizou O Brasil Republicano, em 4 volumes. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003. Organizou, também, O populismo e sua história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. Foi especialmente a partir dessa obra que ele concedeu a entrevista para o IHU On-Line, ressaltando sempre que muitas das opiniões emitidas apoiavam-se nas pesquisas dos demais co-autores (os historiadores Angela de Castro Gomes, Maria Helena Rolim Capelato, Lucília de Almeida Neves, Fernando Teixeira da Silva, Hélio da Costa, Eliana G. da Fonte Pessanha, Regina Lúcia M. Morel, Daniel Aarão Reis Filho). IHU On-Line – Como o senhor define o popu- lismo brasileiro? Jorge Ferreira – O conceito de populismo foi criado e elaborado numa determinada conjuntura política brasileira, na segunda metade dos anos 1960. Políticos, militares, jornalistas e sociólogos elaboraram o conceito no sentido de desmerecer e descaracterizar a democracia brasileira de 1945 a 1964. O conceito de populismo remete a uma percepção negativa da política. Quando dizemos “o político fulano de tal é um populista”, insinuamos que ele foi eleito devido à sua capacidade de manipular e de enganar o povo. Portanto, o eleitorado não sabe votar. Trata-se de uma massa de eleitores despreparados e destituídos de discernimento político. A democracia, por sua vez, sofre pela deformação de caráter de líderes políticos sem escrúpulos. Assim, o eleitorado e o regime democrático são desmerecidos. Impreciso teoricamente, conceito não dá conta de diversas realidades ao apresentar em uma mesma dimensão, em um mesmo patamar, personalidades de diferentes trajetórias. Avaliando os projetos políticos de cada um, o que tem em comum Carlos Lacerda e Leonel Brizola? Getúlio Vargas e Eurico Dutra? Juscelino e Ademar de Barros? Alguns dizem que o general-presidente João Figueiredo também era um populista; depois foi a vez de Fernando Collor e de Fernando Henrique Cardoso – este último cha- 54 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO mida por uma sociedade de massa. Isto estava incorreto? Jorge Ferreira – O livro de Octávio Ianni, O colapso do populismo no Brasil10, situa-se em um contexto muito preciso – sua primeira edição é de 1968. A leitura do livro tem que ser contextualizada no conflituoso período das presidências de Castelo Branco e Costa e Silva. O que o autor está dizendo é o seguinte: a sociedade brasileira está diante de uma ditadura que se fecha cada vez mais. A ditadura não tem mais nada a oferecer à sociedade brasileira, nem em termos econômicos. Ianni, afinado com as expectativas das esquerdas, não admitia sequer a possibilidade de uma expansão econômica que se avistava com o “milagre”, mas apenas via o impasse. Desse modo, no livro, ele apresentava duas alternativas à sociedade brasileira: a primeira, oferecida pela ditadura que se fechada cada vez mais, o fascismo; a segunda, a derrubada da ditadura com a implantação do socialismo. Muitos jovens universitários, ansiosos por pegarem em armas, leram o livro com muita satisfação. O que eu quero ressaltar, nesse momento, é que não se trata de desmerecer as reflexões de Weffort e Ianni sobre o populismo, mas que é preciso situá-las numa determinada conjuntura p olítica muito precisa. É a conjuntura da primeira fase do regime militar, de Castelo Branco e Costa e Silva. Nessa época, a direita que derrubou João Goulart necessitava desmerecer o presidente, dizendo que ele era subversivo, corrupto, incapaz, despreparado, etc. Mas as esquerdas fizeram o mesmo, descrevendo-o como um líder burguês de massa que colocava um véu sobre os olhos da classe operária, etc. Os liberais também torceram o nariz para o projeto de reformas de base de Jango – e daí acusá-lo de agitador e demagogo. Ou seja, havia uma convergência para desqualificar aquela liderança trabalhista. Nesse sentido, o conceito de populismo surgiu como adequado às necessidades de vários grupos sociais que queriam desqualificar a democracia brasileira na época de João Goulart. É preciso repensar sobre isso, com calma, porque senão corremos o risco de repetir mado de neo-populista; agora o presidente Lula igualmente recebe o insulto. Mas que conceito é esse que dá conta de realidades das mais diferentes, das mais distintas? Afinal, Lula, Lacerda e Dutra são iguais? O conceito de populismo, desse modo, encobre projetos importantes, permitindo que o projeto liberal udenista se iguale ao projeto nacionalista e estatista dos trabalhistas e comunistas, por exemplo. Perde-se as diferenças, apaga os projetos políticos. É um conceito, sobretudo, que descaracteriza a democracia brasileira: o eleitorado não sabe votar, porque se deixa manipular por líderes espertos, demagógicos, mentirosos ... Argumento, aliás, utilizado pelos generais durante a ditadura para impedir a livre manifestação popular por meio do voto. Nesse sentido, eu não considero Leonel Brizola um político populista, como não considero nenhum político brasileiro populista. Isso não significa que não existam políticos que façam demagogias e que tentam manipular o eleitorado. Mas tais práticas não são originalidade brasileira. Políticos cínicos e sem escrúpulos existem no Brasil e em qualquer democracia ocidental. IHU On-Line – Quando esse conceito começa a surgir? Jorge Ferreira – Nos anos 1950, quando se institui o chamado Grupo de Itatiaia, um grupo de sociólogos que se reunia em Itatiaia, cidade que fica a meio caminho de Rio e São Paulo. Um desses intelectuais, não identificado, escreveu um artigo para entender o fenômeno Ademar de Barros em São Paulo, chamado “Que é o ademarismo”, no qual diz que o populismo é o resultado da conjunção de uma burguesia fraca, de um proletariado ainda em formação e de um líder carismático. Começou, desse modo, a se formar o embrião de uma tendência sociológica que teve o seu trabalho mais sofisticado na obra de Francisco Weffort “O Populismo na Política Brasileira”9. IHU On-Line – Octávio Ianni, quando escreve sobre o colapso do populismo no Brasil, refere-se a ele como uma forma política assu- 9 10 O Populismo na Política Brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978 (Nota do IHU On-Line). O colapso do populismo no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975 (Nota do IHU On-Line ). 55 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO chavões, a exemplo de que o fulano foi eleito porque é um populista. Mas será que existe um indivíduo esperto o suficiente para enganar milhões de outras pessoas? E que milhões de pessoas são estas incapazes de votar corretamente e que sempre erram nas suas escolhas? Quem dizia isso era os políticos da UDN que, ao perderem as eleições para o PTB e o PSD, alegavam que o povo não sabia votar porque, claro, não votava nos seus candidatos. Temos que ter cuidado com tais argumentos para não incorrer nos mesmo equívocos da crise de 1964. Tanto a democracia foi desvalorizada, tanto foi desmerecida, que entrou em colapso. ção, no desenvolvimento baseado no capital nacional e estatal. Quem votava na UDN também sabia o que estava fazendo: era anticomunista e antigetulista, votava contra greves, votava com o alinhamento incondicional aos Estados Unidos e pela abertura econômica. Existia fidelidade do eleitor com seu partido. Quem votava no PTB não votava na UDN, e vice-versa. Os políticos, via de regra, eram fiéis aos seus partidos. PTB, UDN e PSD eram partidos organizados nacionalmente e, sobretudo os dois primeiros, consistentes em termos ideológicos. Somente no estado de São Paulo os três partidos eram fracos: a UDN era nada, o PTB fraquíssimo e o PSD um zero. Ali sim, existiam personalidades acima dos partidos, como Ademar de Barros e Jânio Quadros – como alegou Weffort. Portanto, não se pode tomar a realidade de São Paulo como se fosse o Brasil. IHU On-Line – Pode-se dizer que os teóricos formuladores do conceito não perceberam a realidade brasileira na sua totalidade? Jorge Ferreira – Em um certo momento, nos anos 1950-1960, quem escrevia a história brasileira, quem produzia pesquisa de ponta, era a Universidade de São Paulo, sobretudo na Pós-Graduação em Sociologia e Ciências Políticas, onde profissionais capacitados produziam conhecimento original. No entanto, e não sem razão, dedicavam-se àquilo que estava mais perto deles, São Paulo. Surgiram, assim, trabalhos da maior importância na historiografia brasileira sobre industrialização, economia cafeeira, classe operária, partidos políticos, mas tomando o estado de São Paulo como referência. Ora, nós sabemos que São Paulo é o estado mais importante da Federação em termos econômicos, mas o Brasil não é São Paulo. As realidades do país são muito distintas. Por exemplo, o livro do Weffort, já referido, diz que no Brasil, no período de 1945 a 1964, os partidos eram inexpressivos e o mais importante eram as lideranças carismáticas. Isso pode ter acontecido em São Paulo, mas não no resto do país, onde predominavam três partidos consistentes, o PTB, a UDN e o PSD, sem contar o PCB que estava na ilegalidade. Esses partidos eram fortes e organizados nacionalmente. Pelo menos o PTB e a UDN eram partidos ideológicos, tinham projetos políticos reconhecidos pela população. Quem votava no PTB sabia o que estava fazendo. Votava no nacionalismo, na reforma agrária, no rompimento com capital estrangeiro, na industrializa- IHU On-Line – Mas o trabalhismo não tinha também líderes com características semelhantes? Jorge Ferreira – No âmbito do trabalhismo, Getúlio Vargas, João Goulart e Leonel Brizola, todos os três, começaram lá de baixo e foram subindo dentro do partido. Mesmo Getúlio Vargas, no Partido Republicano Rio-grandense, começou nos quadros de base e foi subindo. Depois Goulart e Brizola começaram das bases e também foram subindo. Jango começou no diretório do PTB em São Borja. Brizola começou na ala estudantil do PTB gaúcho. Eles não eram líderes carismáticos que se impuseram sobre o partido; cresceram com o partido. Há outros aspectos a considerar: em um certo momento, a partir de 1951, houve a aliança do PTB com o PCB. Formando chapas, trabalhistas e comunistas, unidos, tomaram vários sindicatos importantes até formarem o CGT. Durante o governo de João Goulart, o movimento sindical deflagrou uma série de greves. Como, então, sustentar a tese de que líderes carismáticos controlam as massas, que eles estão acima do movimento operário, do sindicalismo, dos partidos? Com o avanço da pesquisa, a tese não se sust enta. A história é muito mais complexa, é muito mais complicada. Não se pode explicar a história de um país, de toda uma sociedade, a partir da demagogia de suas lideranças políticas. 56 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO IHU On-Line – Não há nada de positivo a res- um poder excessivo que, na realidade, não teve – porque, teoricamente, impraticável. gatar do conceito de populismo? A entrada das massas na estrutura do poder não foi legitimada por movimentos populistas, como afirmou Octávio Ianni? Jorge Ferreira – A crítica que fazemos ao conceito de populismo refere-se à sua utilização para explicar a política brasileira, como também à maneira como os trabalhadores alcançaram a cidadania social. Foi após a Revolução de 1930 que ocorreu, no Brasil, o processo em que os assalariados tiveram acesso aos direitos sociais e, após 1945, aos direitos políticos. Enquanto na experiência européia os trabalhadores, primeiro, tiveram acesso aos direitos de votar e ser votado para, mais adiante, alcançarem os direitos sociais, no caso brasileiro, ocorreu o processo inverso. Ou seja, no Brasil, os trabalhadores se tornaram cidadãos não pelo direito de votar e ser votado, mas com a obtenção de seus direitos sociais: regulamentação da jornada de trabalho, férias, descanso semanal remunerado, pensões, aposentadorias, etc. Isso marcou a cultura política brasileira. A partir dessa experiência elaborou-se uma forte crença que vincula o ideal de cidadania plena aos direitos sociais e não aos direitos políticos. Nesse sentido, os trabalhadores, a partir dos anos de 1930, tiveram acesso à cidadania com leis sociais e reconheceram o papel do Estado naquele processo. A partir de 1945, parcelas significativas do eleitorado identificaram seus direitos sociais com a pessoa de Getúlio Vargas e, conseqüentemente, com o PTB e o trabalhismo. Mas isso é um processo de reconhecimento, resultado de experiências vividas pelos próprios trabalhadores – e não de manipulação. Os trabalhadores, nesse sentido, fizeram suas escolhas. Estado e trabalhadores interagiram um com o outro. Contudo, na ótica do populismo, tudo não teria passado de manipulação das massas. Getúlio Vargas foi um político importante, sem dúvida, mas, em termos teóricos, não se pode eleger uma personalidade política a uma categoria de homem todo poderoso, capaz de manipular milhares de pessoas e continuar, pelas décadas seguintes, sendo lembrado de maneira positiva pelos mesmos trabalhadores. É dar a ele IHU On-Line – A maneira como o senhor se refere aos partidos de então dá a idéia de que os atuais são muito fracos e que tínhamos fortalezas partidárias no passado. Qual é a avaliação que o senhor faz deles? Jorge Ferreira – No passado pré-1964, os partidos tinham projetos políticos mais delineados e isso era percebido para a população. A força dos projetos do PTB e da UDN foi tão marcante que suas proposições, antes mencionadas, ainda constituem tradições muito presentes na política brasileira. Exemplo: o projeto neo-liberal do presidente Fernando Henrique Cardoso pode ser compreendido como sendo herdeiro das propostas udenistas no plano econômico levadas às últimas conseqüências. Em outro aspecto, de onde vem a tradição que afirma ser necessária a existência de empresas estatais em setores estratégicos? Essa idéia nasceu em algum lugar, entre os anos 1930 e 1950. A idéia de que é preciso fortalecer o Estado, defender o patrimônio público, realizar a reforma agrária, garantir as leis sociais, entre outras medidas nacionalistas, vem do nacional-estatismo de trabalhistas e comunistas. As bandeiras das esquerdas pré-1964, do PCB e do PTB, estão presentes hoje. Não é casual que alguns analistas, inclusive Leonel Brizola, diziam que Lula seria o herdeiro do trabalhismo. IHU On-Line – O legado dele, o trabalhismo, o PDT, sobreviverão? Jorge Ferreira – Eu acho que o PDT, com o desaparecimento de Leonel Brizola, tem condições de crescer em termos organizacionais. Creio que, até então, o partido vivia uma situação muito similar a do que o antigo PTB vivia com Getúlio Vargas. O líder era muito maior que o partido. O PTB era muito pequeno diante de Vargas e da sua liderança. Ele não tinha como crescer diante da monumentalidade de um mito político vivo. O antigo PTB só cresceu depois da morte de Vargas. Sem o grande líder, outras inúmeras lideranças tiveram condições de se projetarem. De maneira similar, PDT era muito pequeno diante do Brizola. 57 O homem de um único partido Entrevista com Maria Celina Soares D’Araujo O cenário político do século XX não pode ser compreendido sem olhar para Leonel Brizola, João Goulart e Getúlio Vargas, contudo podemos olhar para Brizola antes e depois do exílio, porque seus perfis são bem diferentes. Essa é a opinião da professora Maria Celina D’Araujo, da Universidade Federal Fluminense (UFF) e do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV). Maria Celina Soares D’Araújo é graduada em Ciências Sociais pela UFF, é mestre em Ciência Política (Ciência Política e Sociologia) pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) e sua dissertação intitula-se O segundo governo Vargas. A professora é doutora em Ciência Política e Sociologia também pelo IUPERJ, e o título de sua tese é A ilusão trabalhista. O PTB de 1945 a 1965. Seu pós-doutorado foi cursado na University of Florida, em Gainesville, Estados Unidos. É autora de, entre outros, O Segundo Governo Vargas: Democracia, Partidos e Crise Política. Rio de Janeiro: Zahar, 1982; O Golpe Silencioso: As Origens do Estado Corporativo. Rio de Janeiro: Rio Fundo, 1989; Getulismo e Trabalhismo. São Paulo: Ática, 1989; A Era Vargas. São Paulo: Moderna, 1998; O Estado Novo. Rio de Janeiro: Zahar, 2000; Capital Social. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. com uma grande liderança pessoal, políticos que não tinham apreço muito grande pelas instituições representativas, que achavam mais importante mobilizar a massa, articular diretamente com o povo, pensar as grandes questões nacionais, políticos populistas. Assim foram também Getúlio [Vargas] e, em parte, João Goulart. Até 1964, não podemos dizer que Brizola era um grande democrata. Era, sim, um grande líder político, um grande nacionalista, um homem que tinha uma visão muito forte do Estado, que tinha, para ele, um papel estratégico para o desenvolvimento brasileiro, por isso iniciou as nacionalizações das companhias estrangeiras no Brasil. Criticava muito o Congresso Nacional. Dizia que o Congresso era reacionário, conservador e obviamente criticou muito as Forças Armadas. Por outro lado, ele teve um papel importante em 1961, na cadeia da legalidade, mas, em 1964, podemos olhar para Brizola de dois lados: de um lado resistiu ao golpe militar, mas de outro lado, ele não facilitou muito as coisas para João Goulart. O governo João Goulart radicalizou, e ele não soube negociar, nesse momento, uma composição, nem com Goulart, nem com a direita. No entanto, teve uma posição coerente. O interessante, em Brizola e, talvez isto seja um aspecto relevante, é que ele foi uma pessoa sempre coerente. Ele não fazia estelionato eleitoral, não dizia uma coisa e fazia outra. Teve muita ousadia, muita coragem de reagir aos golpes de 1961 e de 1964, só que em 1964 ficou isolado, e o apoio que ele esperava da sociedade, dos grupos dos onze11, não aconteceu, porque essas pessoas não tinham recursos, armas para reagir. IHU On-Line – Qual foi contribuição de Leo- nel Brizola à política brasileira? Maria Celina Soares D’Araujo – Brizola é de uma geração de políticos típica dos anos 1950, no Brasil. Políticos muitos personalistas, carismáticos, 11 Denominação de grupos de militantes sob a influência de Brizola, integrado por onze pessoas, uma das quais estava ligada a outro “grupo dos onze”, e assim sucessivamente, organizando uma rede de apoiadores, que fracassou. (Nota do IHU On-Line). 58 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO IHU On-Line – É possível assinalar diferenças o PTB em 1979, houve uma articulação política pelas mãos do poderio, a sigla do PTB, que era sigla dele, foi para as mãos da Ivete Vargas, mas ele criou um outro partido trabalhista e ficou nele até o fim. Logo, ele teve coerência partidária e permanência ideológica. em Brizola que volta com a anistia Maria Celina Soares D’Araujo – Sim. Brizola que vem depois da anistia é democrata, no sentido de respeito à democracia representativa, de respeito às instituições, à ordem constitucional. Continua sendo o caudilho, o centralizador. O PDT, partido que ele criou, como herdeiro do trabalhismo, foi sempre muito ligado à sua figura, nunca houve uma liderança concorrente interna. Sempre que essa liderança concorrente aparecia, ela saía do partido, Marcelo Alencar, César Maia, Saturnino Braga, foram lideranças que cresceram dentro do PDT, mas que tiveram que deixar o PDT. Brizola conta com esse estilo de política senhorial. Ele mandava no partido, que era um instrumento para ele fazer política, mas não se vê mais Brizola, depois da anistia, depois de 1969, articulando ou denunciando conspirações. É um homem muito mais acomodado, muito mais adaptado a uma ordem política, em uma prática muito problemática. Em 1990-1991, ele ficou muito preocupado com a situação do Collor, chegou a apoiar o Collor, acho que temia um golpe. Ele apoiou a prorrogação do mandato de Figueiredo também, porque ele temia, sempre que ele achou que podia haver uma ruptura constitucional, ele tomou decisões, na contramão da oposição, mas isso vem em nome de uma trajetória coerente, que era evitar golpes, que era evitar rupturas institucionais, que ele achava que poderiam vir. Esse Brizola, após a anistia, embora continuasse uma pessoa centralizadora, personalista, sempre muito carismática, trouxe novidades no campo da esquerda brasileira, falando de socialismo democrático, pluralidade ideológica, falando do Brasil como um país de socialismo moreno. O PDT foi um partido que fez questão de colocar nos seus quadros e nas suas listas de candidatos, pessoas negras e índias. O Rio de Janeiro elegeu o Juruna, que teve uma importância simbólica muito grande. As mulheres, então... Ele traz esse discurso inovador, a política como um espaço de representação para as minorias. Por outro lado, ele tem uma grande qualidade também, no Brasil, que é muito rara: ele foi homem de um partido só, basicamente foi homem do PTB. Quando ele quis criar IHU On-Line – Que aspectos permaneceram constantes na sua proposta? Maria Celina Soares D’Araujo – Tem duas questões importantes, a questão do nacionalismo econômico e a educação. Ele fez um bom Governo no Rio Grande do Sul, quando foi Governador. Já quando foi Governador do Rio de Janeiro, duas vezes, ele insistiu nessa política de educação, sem os resultados positivos que se esperava, mas de toda a forma, colocou, na agenda, a questão de que criança tinha que estar na escola. IHU On-Line – Por que os resultados não fo- ram como ele esperava? Maria Celina Soares D’Araujo – Porque foram todos empreendimentos muito caros, que é o ensino de tempo integral, que precisa ter turnos de professores, e isso as administrações posteriores não continuaram, foi descontinuado esse trabalho, considerado muito caro, uma escola cara. Então os CIEPs funcionam, mas funcionam como escolas normais, quase todos, e não como escolas de tempo integral, nas quais as crianças chegam de manhã e saem à tarde, de banho tomado, indo para casa dormir. Funcionam como escolas convencionais. IHU On-Line – Acha que está havendo uma redescoberta da Era Vargas? Maria Celina Soares D’Araujo – A Era Vargas, do ponto de vista social, vai ser revista pelo PT, já foi revista a questão da Previdência, será revista agora a questão da CLT. Está na agenda do governo Lula fazer isso, e certas normas, que estão ali, podem ser revistas, mas parece uma coisa contraditória: o governo dos trabalhadores desregular, rever os direitos dos trabalhadores, mas, em grande parte, isso vai ser necessário. O governo do PT sempre teve uma reação muito grande ao trabalhismo getulista, por causa do peleguismo, do fisiologismo, da ligação muito forte com o sindicato 59 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO IHU On-Line – Considera que, com a morte do Estado. Era uma crítica que se fazia, uma articulação muito grande dos sindicatos no Estado, a dependência das lideranças em relação aos líderes. Isso é tudo o que o PT está fazendo agora. Essa crítica não prevalece mais, o que o governo do PT até hoje faz é uma convocação constante das lideranças sindicais e, de certa forma, repete o que fez o sindicalismo getulista. de Brizola, e o fim dos políticos de sua geração haverá um vazio na vida política do País? Maria Celina Soares D’Araujo – Eu não acho que ficou um vazio sem Brizola. Com ele se encerrou um tipo de política que o Brasil tinha, cujo auge ocorreu nos anos 1950 e 1960, política de um tempo passado, não tem outra geração. O vazio talvez fosse a voz nacionalista que tínhamos, que não era a voz do Partido Comunista do Brasil, talvez fosse a voz de centro-esquerda, que mais defendia o nacionalismo, que mais defendia o papel do Estado. Mas acho que esse sentimento de defesa do Estado, de desenvolvimento nacional, está bem disseminado hoje na sociedade brasileira, não acho que deixa um vazio. Ele cumpriu um bom papel, é uma liderança impagável, não podemos pensar a política do século XX no Brasil, sem pensar em Brizola. Foi, realmente, um homem que mobilizou massas, que inquietou as instituições, provocou os militares, e que sofreu muito por causa disso e que voltou e quis continuar a luta por seus ideais. Brizola, Getúlio e João Goulart são figuras centrais, no século XX, não acho que deixou vazio, porque o Brasil mudou, e hoje outras questões estão na agenda. IHU On-Line – Em relação à questão da refor- ma agrária, Brizola conseguiu de fato avançar como Governador tanto do Rio Grande do Sul quanto do Rio de Janeiro? Maria Celina Soares D’Araujo – A Reforma Agrária não foi um tema importante para ele no Governo do Rio de Janeiro, porque não é um estado tão grande, os problemas maiores estão na região urbana, na grande Rio. Eu lembro que esse assunto foi muito importante no governo de João Goulart, que era uma das reformas que mais amedrontavam a elite política, e a reforma que João Goulart achava que devia ser feita. Ele tinha um lema “Reformas na lei e na marra”, teriam que vir, mas aqui, no Rio de Janeiro, não lembro de ser um aspecto importante da administração de Brizola como Governador. 60 “O País não está produzindo líderes” Entrevista com Gunter Axt Brizola era um político que mantinha viva, no País, a idéia de construir um projeto nacional. Fica um vácuo nesse sentido. As autoridades pedem sacrifício à população, mas não explicam o rumo para o qual o País se dirige. Ninguém sabe para onde caminhamos. Com essas afirmações, Gunter Axt, em entrevista ao IHU On-Line, assinala a morte de Brizola como um fato que desvela uma carência na política nacional. Gunter Axt é professor na PUCRS, historiador e pesquisador do Memorial do Judiciário e do Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul. Axt é graduado e mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), com tese intitulada Gênese do Estado burocrático-burguês no RS (1889-1929). enfrentar uma situação de extrema adversidade, em defesa de um ideal, atitude que acho muito importante, especialmente num país como o Brasil, onde, cada vez menos, as pessoas estão dispostas nesse sentido. Essa é uma marca de Brizola. Por outro lado, e aí vem a tensão, ele me parece alguém que passou pela trajetória política com uma marca muito pessoal, o projeto pessoal dele sempre sobrelevou, sobrenadou o projeto partidário ou mesmo um projeto ideológico mais amplo. Daí a grande dificuldade que Brizola tinha de conviver com outras lideranças do próprio partido, dificuldade de manter alianças por longo prazo. O projeto dele parecia estar acima dos demais. Essa me parece ser uma contradição histórica que esse personagem tão rico que é Brizola, tinha. Ele não era um demagogo populista. O demagogo é aquele que não realiza, e Brizola era populista, há um consenso em torno disso de parte dos analistas, mas jamais foi um demagogo. Ele era um homem de realizações. IHU On-Line – Qual é o significado histórico da morte de Leonel Brizola? Gunter Axt – Eu diria que Brizola foi uma síntese da política brasileira no século XX, uma síntese das aspirações, dos limites e dos medos dessa política. Acho que Brizola – e essa é uma visão muito pessoal – era uma espécie de celebridade pop. E o vazio que ele deixa é o que qualquer celebridade pop deixa ao morrer, ou seja, ela tem algo só dela, algo único que ninguém mais tem e não pode ser reposto no lugar. Minha segunda observação é que Brizola viveu uma tensão como personagem político, talvez existam várias tensões, mas uma tensão em especial me chama a atenção. Por um lado, ele era uma pessoa com uma capacidade extraordinária de doação para uma causa que fosse comum, pública e, nesse afã de se doar ele era capaz de sair de uma situação de comodismo para IHU On-Line – Podemos falar de um vazio político com a ausência de Brizola? Gunter Axt – Ele deixa um vácuo sim. A grande carência do Brasil hoje é um projeto nacional. Esse é um país em que as pessoas não sabem para onde estamos indo. É triste quando um país não sabe para onde vai. Quando os governantes pedem mais e mais sacrifício da população, aumentando os impostos, cortando gastos, deixando de fazer tais e tais investimentos que estavam previstos. É triste, quando os governantes pedem mais e mais sacrifício da população e são incapazes de dizer-lhe para onde o País está indo. Não há sequer uma proposta consistente de um projeto nacional. Eu acho que isso Brizola representava. Po61 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO urbanos, pois ele está disposto a desenvolver um projeto industrial para o Brasil. Além disso, ele cria toda a legislação trabalhista, portanto ele estabelece uma aliança estratégica com a classe operária urbana, mas também faz uma aliança com os grandes estancieiros, cafeicultores paulistas e estancieiros sulistas. Uma aliança com aquela burguesia agrária do Brasil todo que muitos consideram como sendo uma classe mais conservadora e é por isso que Getúlio Vargas é incapaz de desenvolver uma legislação trabalhista rural. Bem, quanto a Brizola, uma das características dele é o fato de levantar a bandeira da reforma agrária, e ele o faz com propostas concretas. Toda desapropriação do “Banhado do Colégio” durante o Governo dele sinaliza isso. É um dos primeiros líderes e um dos primeiros governantes brasileiros que, com propostas concretas nessa área da reforma agrária, chama a atenção para a necessidade de levar em consideração também as necessidades das populações e dos trabalhadores rurais. Nesse ponto, ele avança, ele inova em relação a Getúlio Vargas. demos criticar o projeto nacional de Brizola. Algumas pessoas podem dizer que era uma proposta superada, nacionalismo até de cunho mais atávico, mas era um projeto nacional que a existência de Brizola representava. Alguém que não estava de acordo com esta geléia que se estabeleceu no País, então eu acho que esta falta, sem dúvida nenhuma, ele faz. IHU On-Line – Em que sentido se afirma que Brizola era um herdeiro de Getúlio Vargas. Qual foi a herança? Gunter Axt – Quando se fala isso, a primeira pergunta que se deve fazer é a seguinte: de qual Getúlio Vargas estamos falando? Porque Getúlio foi tantos em tantos momentos diferentes da história... Se nós pensarmos no Getúlio deputado estadual do Rio Grande do Sul, nós vamos ver Getúlio absolutamente integrado ao sistema coronelista de poder e à rede de poder borgiana e castilhista do antigo PRR, o político comum, com capacidade discursiva muito boa, mas um político como qualquer outro da época. Já o Getúlio do governo de 1928, aqui no Estado, é um homem que consegue compor com uma habilidade fantástica. O Getúlio da Revolução de 1930, assim como o do Governo Provisório, é revolucionário, que reforma as instituições do País, sem abrir mão do compromisso democrático. O Getúlio de 1937 é um ditador que não tem o menor compromisso com as instituições democratas e com a democracia e o Getúlio pós-45 é populista com muito menos compromisso, por exemplo, com a estabilidade orçamentária, e nisso consiste a importante diferença de Perón, que teve muita responsabilidade com a estabilidade orçamentária, em que pese Getúlio ter sido um líder autoritário populista durante o Estado Novo. Mais uma vez chamo a atenção: populista sim, mas demagogo não, irresponsável não. Então, para vermos Brizola como herdeiro de Getúlio, nós precisamos saber a que Getúlio nos referimos. Suponhamos que seja o Getúlio desse período populista, que estabelece uma aliança estratégica com a classe trabalhadora. Aí eu chamaria a atenção também para a aliança que Getúlio faz, que já começa a desenhar logo depois da revolução de 1930, com os industriais IHU On-Line – Ambos eram populistas? Gunter Axt – Nesse sentido é, sim, claramente, um herdeiro de Getúlio. Se nós considerarmos o tipo de relação com as lideranças e os movimentos sociais, eu acho que Brizola é tributário de uma visão antiga dessa relação, ou seja, é um líder quase paternalista, pouco contestado populisticamente pelas massas populares, com grande dificuldade de entender os novos papéis que os movimentos sociais vão ter no Brasil pós-abertura política. Podemos entender, por exemplo, porque o PT cresce tanto nesse período pós-abertura e o PDT, de Leonel Brizola vai definhando, porque o PT é o partido que tem uma outra visão que surge nesse período – eu falo do PT da década de 1980 – que surge com uma outra visão na relação entre as lideranças e os movimentos sociais, admitindo que os movimentos sociais têm um papel mais participativo no fazer política. IHU On-Line – Pode ser que a figura de Brizola, de certa forma, simbolize o imaginário do gaúcho forte, coerente, lutador, incor- 62 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO ruptível, e por isso seja tão admirado no Rio Grande? Gunter Axt – Acho que sim. Brizola condensava um pouco uma certa imagem que os gaúchos fazem de si mesmos. A morte dele põe fim a um tipo de política que se fazia no século XX, no Brasil. Nós estamos entrando num outro momento agora, que me parece, em termos de qualidade, muito pior do que era. Mas Brizola tem essa característica, e as pessoas se identificavam com ele, achavam que ele tinha alguma coisa da alma do Rio Grande do Sul. Sua maneira de falar, a sua mordacidade felina, que encanta o gaúcho, a sua inteligência luminosa, sua capacidade de oratória... E Brizola tinha uma imagem incorruptível, apesar de que todos aqueles assuntos em torno do famoso ouro de Cuba, e o próprio afastamento que se verificou depois entre Fidel Castro e Brizola, – isso a história ainda precisa elucidar. Brizola condensa um pouco dessa alma do Rio Grande do Sul, não é à toa que ele está sendo enterrado, na cidade de São Borja, que tem todo um poder simbólico para o Estado, a cidade dos Vargas, onde Jango também está enterrado, mas especialmente simboliza uma época em que o Rio Grande produzia grandes líderes nacionais. Faz tempos que o Rio Grande deixou de produzir essas grandes lideranças nacionais. por um período que passou. Hoje a política é muito mais pragmática, muito mais técnica, muito menos romântica do que era na época de Brizola, para não dizer outras coisas que aconteceram com a política nacional. Vemos, realmente, uma superficialidade cada vez maior, mais imperante. Assistimos, por exemplo, aos discursos nos legislativos e percebemos a incapacidade da maior parte dos políticos de fazer concordância verbal, concordância nominal, há uma queda de nível, de qualidade na política nacional, que é amplamente perceptível pelos analistas. Isso fragiliza as instituições. O poder legislativo tem se fragilizado em conseqüência desse problema. Onde está a massa crítica do País para fazer uma oposição consistente a certas proposições que surgem de repente, do dia para a noite, e parecem, então, tão maravilhosas? IHU On-Line – E onde está? Entre os intelectuais? Gunter Axt – Pois é, eu acho que os intelectuais estão cuidando da sua vida, eu não vejo os intelectuais ocupando espaços públicos, defendendo projetos, defendendo idéias, como se fazia muito no passado. No Rio Grande, há algumas tradições peculiares, o antigo Partido Democrata Cristão e o antigo Partido Libertador (PL) foram partidos que surgiram da redemocratização do País, antes do golpe de 1964, justamente na esteira de um projeto de fazer uma política diferenciada, intelectualizada, trazendo acadêmicos e intelectuais para o campo da política. Não encontramos mais esses projetos. O PSDB tentou um pouco isso, mas, há no campo político brasileiro, uma enorme dificuldade de definir um projeto de nação. IHU On-Line – Algum Estado tem produzido essas grandes lideranças nas últimas décadas? Gunter Axt – Acho que há uma crise de grandes lideranças sem dúvida nenhuma. Por isso há um certo saudosismo e um romantismo das pessoas 63 Um homem contraditoriamente coerente Entrevista com Paulo Markun foi a razão dessa renúncia. Tudo leva a crer que ele pensava que seria um movimento de renúncia rapidamente revertido numa espécie de fortalecimento de sua posição e voltaria nos braços do povo, mas não houve o protesto popular, e o Congresso não discutiu a renúncia, simplesmente aceitou. Foi uma jogada dos congressistas. Jânio ficou, tudo nos leva a crer isso, muito frustrado e foi embora do País. Os três ministros militares não queriam que Jango assumisse a Presidência e deram posse ao Presidente do Congresso Nacional como Presidente da República. Brizola foi o primeiro a se revoltar contra essa atitude e começou, imediatamente, a transmitir pela rádio Guaíba de Porto Alegre, única emissora que não fora colocada sob censura. Isso teve repercussão. Ao longo do tempo, ele modificou, inclusive, a direção em que o sinal da emissora era transmitido, de ondas curtas, para justamente atingir o resto do Brasil, e outras emissoras foram captando até que, ao longo de doze dias, tempo que demorou o processo, havia 104 emissoras integradas numa rede e, com isso, ele conseguiu “incendiar” o País, de Porto Alegre. Nunca tinha sido feita também, em termos técnicos, uma rede de rádio tão poderosa e, no momento em que o comandante do 3º Exército, instalado no Rio Grande do Sul, General Machado Lopes, aderiu a essa rede da Legalidade, o quadro, de alguma forma, se equilibrou melhor do ponto de vista militar, porque o 3º Exército, na época, era o exército mais poderoso do País, em função da desavença com a Argentina e aí começou a ficar possível algum tipo de resistência. Até então, ele só se apoiava na Brigada Militar, que é a força pública do Rio Grande do Sul, e na mobilização de voluntários. Episódio único na História do Brasil e, provavelmente, do mundo. A figura carismática de Leonel Brizola foi o único a levantar a voz e liderar uma mobilização contra um golpe anticonstitucional. É o que destaca Paulo Markun, em entrevista a IHU On-Line. Markun é jornalista desde 1971. Bacharel em Jornalismo pela USP, Markun já foi repórter, editor, comentarista, chefe de reportagem e diretor de redação em emissoras de televisão, jornais e revistas. Atualmente, apresenta o Roda Viva da TV Cultura, faz comentários de política no Jornal do Terra, e preside o Sindicato da Indústria Audiovisual do Estado de Santa Catarina, onde vive desde 1998. Paulo Markun criou veículos de comunicação, como Pasquim São Paulo, Imprensa, Radar, Deadline, Jornal do Norte e dirigiu documentários e vídeos. No momento, o jornalista está concluindo a biografia comparada de Fernando Henrique Cardoso e Luís Inácio Lula da Silva. É autor de diversos livros, entre eles Dom Paulo Evaristo Arns, o cardeal do povo. Editora Alfa ômega, 1978 (com Getúlio Bittencourt); Mariel Mariscott, a máfia manda flores. Editora Global, 1981 (com Ernesto Rodrigues); Como perder as eleições. Feeling; Editora Três, 1989; Anita Garibaldi, uma heroína brasileira. São Paulo: Senac, 1999; Muito além de um sonho, a história da Unisul. Editora Unisul, 2001 (com Duda Hamilton). IHU On-Line – Qual é a importância histórica da Cadeia da Legalidade? Paulo Markun – Foi a única vez, no Brasil, e uma das poucas no mundo, em que um movimento civil conseguiu impedir o golpe militar que tinha a adesão dos três ministros militares e 70% da força militar do País. Jânio Quadros havia renunciado – nunca se soube até hoje qual 64 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO IHU On-Line – Como aconteceu a aproximação entre Brizola e Fidel Castro, na década de 1960? Paulo Markun – Em 1964, ele saiu do Brasil e foi para o Uruguai. Lá manteve contato com Fidel Castro e recebeu dinheiro dele para montar uma guerrilha no Brasil. Essa guerrilha estava para ser desenvolvida na região central do País, mas acabaram descobrindo, antecipadamente, um outro foco e ela foi desmontada. Isso recentemente foi relatado pelo jornalista Flávio Tavares, no último livro dele que se chama O dia em que Getúlio matou Allende. Flávio Tavares, inclusive, era um desses integrantes do grupo guerrilheiro financiado por Brizola. O apelido de guerra de Brizola era Pedrinho e o grupo funcionava, nitidamente, com recursos fornecidos por Fidel Castro, mas, depois do fracasso, Flávio Tavares acabou sendo processado e condenado. E esta história até hoje não foi claramente desvendada. Está começando a se esclarecer neste momento, mas a liderança era de Brizola. Fidel mandou um telegrama altamente elogioso para ele. Depois disso, Brizola se afastou dessa idéia da guerrilha, mas, certamente, o primeiro movimento de resistência armada à ditadura militar foi inspirado por Brizola, comandado por ele lá do Uruguai. Chegou a inscrever quarenta mil voluntários num movimento de resistência. Isso virou o processo e acabou com o golpe. Houve uma ordem expressa do Governo Federal, dos ministros militares para bombardear o Palácio Piratini e silenciar o Governador a qualquer preço, mas os sargentos da Aeronáutica impediram que os aviões levantassem vôo. Fizeram uma espécie de boicote, tiraram peças dos aviões, e, nesse meio tempo, o general mudou de posição. IHU On-Line – Em que se baseava a liderança de Brizola, nessa época, para ser capaz de uma mobilização tão grande? Paulo Markun – Na sua fantástica oratória. Na capacidade que ele tinha de comunicação pelo rádio. Ele era muito experiente, fazia desde que tinha sido prefeito de Porto Alegre e depois como Governador, programas de rádio toda a semana em que ele, durante mais de uma hora ou, às vezes, duas horas seguidas, ficava contando o que estava acontecendo, fazendo uma pregação radiofônica. O outro fato é que aquele momento da renúncia do Jânio desorganizou completamente a sociedade, porque ninguém esperava aquilo, nem a decisão dos militares de proibir a posse do Presidente que deveria assumir. O Vice-Presidente tinha sido eleito– porque naquela época não se votava no Presidente apenas, votava-se numa cédula no Presidente e na outra no Vice-Presidente. Jango tinha sido eleito com Juscelino, porque era do PTB, aliado com o PSB e, depois, tinha tido mais votos do que o próprio Vice do Jânio Quadros, da UDN. Jânio tinha legitimidade, então, essa tese de que era preciso garantir a posse do Vice-Presidente no cargo era muito fácil de defender. Além disso, o Marechal Teixeira Lott, o homem mais respeitado no Exército, tinha sido Ministro da Guerra, candidato a Presidente da República e perdido para Jânio Quadros, defendeu a posse de Jango e foi preso por causa disso, pelos militares. Então, era um golpe palaciano, uma quartelada que eles queriam dar por telefone. Se Brizola não tivesse comandado essa resistência, justamente por essa cadeia de rádios, não se teria passado nada. IHU On-Line – Ao voltar do exílio Brizola mudou? Paulo Markun – Eu vejo que há dois mundos, um antes da Guerra Fria e outro depois. Quem mudou não foi Brizola, foi o mundo. Ele talvez não tenha compreendido suficientemente quanto o mundo tinha mudado e, até mesmo, no que toca à comunicação. Ele era um homem muito eficiente para falar no rádio, mas nunca entendeu a televisão. Tentava manter aquele mesmo discurso longo, demorado, cheio de pausas. O que funcionava no rádio, na televisão não funcionou, e o discurso dele no que representa a questão do nacionalismo, da importância da educação, das restrições ao capital estrangeiro, da participação popular, parecia fora de tempo. Tanto que se examinamos também as relações dele com o PT que é, na prática, o herdeiro do trabalhismo – o PT não é trabalhista no sentido de vínculos com João Gou- 65 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO lart ou com Getúlio Vargas, muito menos com Brizola, mas ele é trabalhista no sentido que busca organizar os trabalhadores – as relações sempre foram muito tensas. Ele até admitiu a aproximação com o PT e foi até vice de Lula, mas, ao mesmo tempo, foi quem chamou Lula de sapo barbudo e a primeira briga dele – isso está no livro que eu estou publicando agora em outubro12 – foi logo que ele voltou ao Brasil, porque alguém dos sindicalistas ligados a Lula falou mal de Getúlio Vargas. Brizola começou a defender Getúlio, e a reunião acabou. dava para entender. Mas, se traçarmos uma linha de conduta dele ao longo do tempo, essa linha é mais coerente do que a de muitos políticos. IHU On-Line – Essa coerência se mostrou muito na idéia de um projeto de desenvolvimento nacional. Por que essa idéia parece não avançar muito na atualidade? Paulo Markun – A força do processo da globalização de um lado e, de outro, o fascínio que a possibilidade de entrar no primeiro mundo exerceu no Brasil desde o governo Collor. Quem apresentou essa idéia foi Collor, e isso pegou de tal maneira que, passado o intervalo de Itamar Franco, vêm oito anos de FHC, em que essa foi a receita. Brizola ficou muito marcado como alguém que defendia um projeto nacional que era impossível de ser levado adiante, porque já não tinha mais espaço para isso e hoje acho que o que Lula tenta fazer, é, de alguma forma, retomar essa idéia do projeto nacional em um outro patamar. A discussão é se está conseguindo ou não. IHU On-Line – Como você definiria o populis- mo de Leonel Brizola? Paulo Markun – Brizola é uma cria de Getúlio Vargas e do seu populismo e seu trabalhismo. Podemos pensar que, às vezes, o populismo estaria menos ligado à defesa dos interesses dos trabalhadores ou dos menos valorizados. Brizola não era apenas um defensor dos trabalhadores que têm carteira assinada e emprego, ele sempre trafegou muito bem e conseguiu muita simpatia com o chamado campesinato, aquelas pessoas populares não organizadas, que não têm consciência de uma classe social. Por isso digo que Brizola era populista, mas era mais trabalhista, no sentido de que defendia esses interesses e não necessariamente pensava somente no seu próprio desempenho. Se não fosse assim, ele jamais seria vice de Lula em 1998. Eu nunca fui brizolista, não sou nada, um jornalista, simplesmente, nunca concordei com as idéias de Brizola, mas acho que a sociedade, de alguma forma, está rendendo homenagem – com aquele desconto natural de que todo brasileiro que morre vira santo – à coerência de Brizola. Mesmo, por exemplo, que ele, em 1989 e 1994, tenha se voltado contra Lula, em 1998, tenha sido vice de Lula e, em 2002, tenha apoiado Lula e, em 2003, já tivesse sendo uma das principais vozes da oposição. Na cabeça dele, havia uma coerência nessa trajetória. Ele era contraditoriamente coerente, se é que se pode dizer isso. Em certos momentos, fazia acordos que não 12 IHU On-Line – Em que sentido iria essa busca? Paulo Markun – No caso de Lula, na política externa. Na inserção do Brasil em um protagonismo na América do Sul. Eu acho que é muito discurso. Brizola tinha muito o discurso, porém marcado por certas atitudes ao longo da vida dele, que eram radicais ao extremo. Por exemplo, a de encampar a ITT e a Companhia de Energia Elétrica, depositando um cruzeiro, que era apenas valor histórico das empresas. Isso ocasionou uma confusão tão grande que o próprio Presidente Kennedy cobrou de João Goulart a mudança dessa regra. Ele queria que Jango fizesse Brizola reverter essas decisões de encampar essas duas empresas pelo valor histórico. Ele tinha um argumento jurídico para defender isso. Mesmo, no próprio Governo do Rio de Janeiro, as atitudes dele foram muito de não aceitar o predomínio do capital internacional, usava sempre a expressão “perdas internacionais do Brasil”. O sapo e o príncipe. Trata-se de uma biografia de Luís Inácio Lula da Silva e de Fernando Henrique Cardoso. Será publicado pela Editora Objetiva. 66 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO IHU On-Line – Quais os principais fatos que, parece que ele é mais consistente ou mais brilhante que outros. Um outro dado é esse fenômeno típico do Brasil, não sei se em outros países é assim, que, quando a pessoa morre se fala bem dela. No velório de Brizola, estavam Garotinho e Rosinha, a esposa, que eram adversários até bem pouco tempo, embora agora já tivessem se reaproximado, e o filho de Roberto Marinho, depois foi Lula. Não estou dizendo que eles não deveriam ir, mas é difícil não ver aí um excesso de endeusamento de quem morre. Ontem, eu li no jornal O Globo uma matéria que dizia que Brizola tinha empurrado o Brasil para uma guerra civil em 1962. São dois erros históricos numa frase só: primeiro que não foi em 1962, e sim em 1961, que ele liderou a chamada Cadeia da Legalidade, segundo, que ele não empurrou o Brasil para a guerra civil, ao contrário, ele se insurgiu contra o golpe militar. Com coragem, sem temor, com firmeza. Naquele momento, e aí eu acho que ele se inscreveu na história do Brasil marcantemente, ele não mediu as conseqüências, e esse é um episódio apagado da história brasileira. Eu escrevi, junto com a jornalista Duda Milton, um livro que conta essa história, pelos 40 anos da legalidade, mas até então havia uma geração inteira que não sabia dela. na trajetória de Brizola, não se explicam muito bem até o momento? Paulo Markun – O apoio ao Presidente Collor. A sua aproximação com o Presidente Figueiredo, quando a oposição toda falava em Campanha das Diretas já, em certo momento Brizola queria esticar o mandato de Figueiredo mais um pouco. Outra contradição é que foi ele quem propôs inicialmente a idéia da renúncia de Fernando Henrique no início do seu segundo mandato. Essa tese cresceu, porque uma parte do PT aderiu, mas a idéia foi de Brizola. Ele foi o mais entusiasmado defensor. Outra foi ele declarar, como fez no último 31 de março, que FHC e Sarney foram piores que os militares. Algumas coisas não batiam muito com a lógica. IHU On-Line – Durante os últimos dias, debate-se, na imprensa, se a morte de Brizola empobrece ou até esvazia a política brasileira. O que o senhor acha disso? Paulo Markun – Isso tem a ver com o desencanto em relação ao governo Lula. Como estamos vivendo um momento em que se esperava muito que as coisas fossem mudar, e nada mudou, e percebemos alguém que persistiu nas suas idéias, 67 “Brizola despertou ódios e amores” Entrevista com Luiz Alberto Moniz Bandeira IHU On-Line – As idéias de Brizola estavam ultrapassadas? Luiz Alberto Moniz Bandeira – O problema de Brizola foi que o seu discurso não acompanhou o tempo. Não é no sentido de formulação de idéias, porque ele nunca as expôs efetivamente de um modo sistemático. Ele tinha algumas bandeiras pelas quais se batia, lutava, porém temos que destacar a sua vida e o seu comportamento nos diversos acontecimentos políticos. Ele não deixou uma doutrina ou uma teoria, pois o trabalhismo em si não é doutrina dele. Foi gerado durante um certo tempo e teve o seu desdobramento, a sua continuidade, inclusive agora no governo Lula, ainda que eles não queiram assumir formalmente esse legado. O trabalhismo foi e é a expressão brasileira da social-democracia. Amigo e companheiro de Leonel Brizola, Luiz Alberto Moniz Bandeira, conheceu-o em 1958. Como cientista político, sustentou a tese de que o Partido Trabalhista desempenhava, no Brasil, um papel equivalente ao da social democracia e apresentou o líder trabalhista à Internacional Socialista. Moniz Bandeira, 69 anos, é doutor em Ciência Política e professor emérito de Política Exterior da Universidade de Brasília. Um dos maiores estudiosos do governo João Goulart tem mais de 20 obras publicadas. Entre elas, citamos O 24 de Agosto de Jânio Quadros. Rio de Janeiro: Melso, 1961; O Caminho da Revolução Brasileira. Rio de Janeiro: Melso, 1963; Cartéis e Desnacionalização (A Experiência Brasileira – 1964-1974). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975; O Governo João Goulart e As Lutas Sociais No Brasil (1961-1964). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977; Brizola e o Trabalhismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979; A Renuncia de Jânio Quadros e a Crise Pré-64. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1979; De Martí a Fidel – A Revolução Cubana e a América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998; e O feudo – A Casa da Torre de Garcia d’Ávila: da conquista dos sertões à independência do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. IHU On-Line – Como o senhor caracterizaria o trabalhismo de Vargas e Brizola? Luiz Alberto Moniz Bandeira – É uma política nacionalista, que não é liberalizante, uma política a favor dos interesses nacionais, como tem demonstrado o governo Lula com a sua política exterior. O governo Vargas lutou pelos interesses nacionais. Getúlio foi um grande desenvolvimentista, e nós devemos o Brasil atual a ele. Sem a Siderúrgica de Volta Redonda, não haveria o Brasil industrial de hoje. O Brasil continuaria sendo um país agroexportador, baseado na cultura do café e subordinado ao capital financeiro. Vargas desempenhou importante papel. Foi a maior personalidade política do Brasil no século XX. Seu Governo construiu as bases do Brasil moderno. Brizola, porém, nunca chegou à Presidência da República. Nos governos do Rio de Janeiro, realizou alguns feitos importantes, obras como o Sambódromo e IHU On-Line – Que tipo de política está morrendo, ao morrer Leonel Brizola? Luiz Alberto Moniz Bandeira – Está morrendo uma grande personalidade que, de uma forma ou de outra, marcou a história do Brasil na segunda metade do século XX. Despertou ódios, amores, paixões, mas desempenhou um papel muito importante na História do Brasil. 68 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO a Linha Vermelha e destacou-se na política educacional. Embora esse aspecto muito importante da visão dele tenha fracassado, porque a política educacional não é construir escolas somente; tem que preparar professores, dar-lhes condições, recursos; não basta construir escolas sem ter condições de sustentá-las, de melhorar o ensino básico. Agora o Governo Federal estabeleceu cotas para admissão de negros e alunos de escolas públicas nas Universidades. Isso é bobagem. O problema não é estabelecer cotas, mas melhorar o ensino básico, nas escolas públicas, que já foram muito boas, e o regime militar degradou, para dar prevalências às escolas privadas. O problema é fazer as escolas públicas melhores que as escolas privadas, como era antigamente. Lula não assuma o legado de Vargas, ele é quem está executando uma política mais próxima do que foi a política do trabalhismo. IHU On-Line – Considera que Brizola era autoritário? Luiz Alberto Moniz Bandeira – Brizola era personalista. Não era autoritário. Pelo contrário, até discutia, conversava, mas só que, depois, fazia o que ele queria. Reunia as pessoas ficava até a madrugada ouvindo todo mundo, mas fazia como ele queria. Não era autoritário, porque não obrigava ninguém a fazer nada. Era uma pessoa cordial, amável, tinha qualidades excelentes, excepcionais, tanto que ele foi um grande líder. Há pessoas que até hoje sentem a sua liderança, estão sob a sua liderança, mas o seu temperamento não permitia agregá-las durante muito tempo. IHU On-Line – Brizola era, de fato, o herdeiro de Vargas? Luiz Alberto Moniz Bandeira – Brizola não chegou à Presidência, ele discursou, falou, falou, mas não construiu do ponto de vista político uma obra. Valorizou as minorias, os negros... Teve uma importância muito grande. O maior feito de Brizola foi a Cadeia da Legalidade, quando ele garantiu a posse de João Goulart na Presidência. Ele foi, durante muito tempo, símbolo da resistência e da oposição, enquanto houve o regime militar no Brasil. Esse, sim, é o período dele. Ele representou a oposição ao regime militar. O primeiro e único civil em toda a América Latina a derrotar um golpe militar, mobilizando o povo. A adesão dele, por exemplo, à social-democracia foi proposta por mim. A tese está no meu livro O Governo de João Goulart, cujos originais levei para ele no Uruguai, em 1977, antes de sua expulsão. Mostrei que o trabalhismo foi, em realidade, um partido do tipo social-democrata, nas condições sociais do Brasil. Brizola aceitou essa idéia e foi um contributo que ele deu também, ao aceitar o trabalhismo como a versão brasileira da social-democracia, o que ele chamou, aliás com muita propriedade, de “socialismo moreno”. Na verdade, porém, ele nunca compreendeu a teoria e a prática da social-democracia, nem mesmo a organização. Ele continuou conduzindo o partido como se fosse apenas ele. Por outro lado, embora IHU On-Line – Há episódios que parecem contraditórios, como a relação de Brizola com Fidel Castro e o posterior refúgio na embaixada americana... Luiz Alberto Moniz Bandeira – Não são contraditórios. A política muda conforme a época. Ele, durante um tempo, aliou-se ao Fidel Castro como ele se aliaria, ao diabo e à avó do diabo, contra o regime militar. Ele mesmo dizia: “Se o diabo aparecesse e estivesse contra o regime militar, eu me aliaria a ele”. No tempo em que preferiu ir para os Estados Unidos, ao ser expulso do Uruguai, a política de Jimmy Carter era democrática, em favor dos direitos humanos, e estava contra o regime militar no Brasil e na América Latina. IHU On-Line – Como foi a sua história com Brizola, como o conheceu? Luiz Alberto Moniz Bandeira – Conheci Brizola em 1958, quando estive no Rio Grande do Sul, acompanhando o Presidente italiano Giovanni Gronchi. Aproximei-me mais dele em 1961, depois da ascensão de Jango à Presidência, e passamos a ter maior convivência no Uruguai, em 1964, quando fui para lá como exilado, quando Jango foi deposto. Depois voltei ao Brasil, clandestino, fui preso dois anos e, em 1975, voltei ao Uruguai e à Argentina a fim de pesquisar para a 69 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO minha tese de doutoramento sobre a Bacia do Prata. Foi nessa época que comecei a escrever o livro sobre Jango. Estive, várias vezes, com Brizola, que ainda estava rompido com Jango, e convivi muito com ele, após sua ida para os Estados Unidos, onde o recebi no aeroporto de Nova York. Quando Jango morreu, levei os originais do meu livro O Governo João Goulart para Brizola, na sua estância, em Durazno. Como já lhe disse, nesse livro, eu sustentei a tese de que o Partido Trabalhista desempenhara no Brasil um papel equivalente ao da social democracia, e ele aceitou essa idéia. E sugeri, também, que Brizola assumisse o legado de Jango e reorganizasse o Partido Trabalhista Brasileiro. O ex-deputado Carlos Olavo Simão da Cunha estava comigo durante essa conversa. E a partir desse momento, começamos uma nova fase de reorganização do PTB. compromissos. Uma vez, Bernt Carlson, secretário da Internacional Socialista, me pediu que o PDT organizasse um secretariado internacional e lhe disse das pessoas que o comporiam. Falei com Brizola, e combinamos os nomes. Mas, depois, Brizola veio com outros e sempre mudava, conforme suas conveniências, para agradar a Fulano ou Beltrano, porque, na verdade, o secretariado nada representava para ele. Ele, Brizola, era o secretariado, era tudo no PDT. Certa vez, Bocaiúva Cunha pediu-me um esquema do Secretariado Internacional. Preparei-o e, quando Bocaiúva o mostrou a Brizola, ele disse que era europeu demais, que não valia para o Brasil, pois no Brasil tudo era mesmo improvisado. Brizola racionalizava o improviso, a desorganização e dizia que eu era “sociedade industrial”. Jango me disse uma vez que Brizola não sabia escolher seus auxiliares. E é verdade. Somente gostava daqueles que concordassem com tudo que ele dizia e fazia. Com Brizola era uma dificuldade marcar qualquer coisa, porque ele autorizava, depois desmarcava e fazia outra coisa diferente. Esse era o grande problema de lidar com Brizola. IHU On-Line – Acompanhou essa ruptura en- tre Brizola e Jango? Luiz Alberto Moniz Bandeira – Eles brigaram. Aliás, Brizola brigou, porque Jango não brigava com ninguém. Brizola brigou com ele, porque queria que Jango apoiasse seus projetos de insurreição no Rio Grande do Sul, e Jango não quis. Preferiu a opção política. Ele evitava derramamento de sangue. IHU On-Line – Quando foi a última vez que se falaram? Luiz Alberto Moniz Bandeira – Foi antes das eleições de 1994. Não rompi com Brizola. Apenas me afastei dele, porque não mais queria ser conivente com os erros que ele andava cometendo, ouvindo pessoas que não ousavam discordar abertamente do que ele dizia. Sabia, pelos meus cálculos, que ele não teria mais de 4% dos votos, na eleição, para a Presidência da República. Seu índice de popularidade caíra no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul, suas principais bases eleitorais, para a metade do seu nível histórico, ou seja, despencara de 33% em média (nível histórico), para 16%. Ele quase passara para o segundo turno, em 1989, porque, naqueles dois colégios eleitorais, sua votação ultrapassara a casa de 63%. Naquele ano, ele teve 16%, e Lula, 16,04. Se sua popularidade, em 1994, voltasse no Rio de Janeiro e no Rio Grande, para seu nível histórico de mais ou menos 33%, ele obteria apenas 8% dos votos, ou seja, metade do que ganhara em 1989. IHU On-Line – Brizola costumava falar de sua relação com Getúlio Vargas? Luiz Alberto Moniz Bandeira – Não. Brizola era muito jovem na época de Vargas. Não creio que tivesse convivência com Getúlio, que era bem mais velho, apesar de ter sido seu padrinho de casamento. Jango, sim, foi que conviveu com Vargas, desde que ele foi para São Borja, após o golpe que o derrubou em 1945. IHU On-Line – Quais foram as suas principais diferenças com Brizola? Luiz Alberto Moniz Bandeira – Sempre gostei de Brizola, admirei-o, respeitei-o, mas tinha muitas divergências com ele. Sou um homem organizado e nunca fui acaudilhado. Brizola pedia-me para fazer algo, eu combinava uma coisa e cumpria, mas ele depois mudava tudo. Não respeitava 70 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO mais me comprometer com desacertos. Ou ele apoiava Fernando Henrique Cardoso, ou apoiava Lula. Fernando Henrique, inclusive, quis o apoio dele que contrabalançaria o apoio do Antônio Carlos Magalhães. Eu não entendo como ele, tendo apoiado Collor, não quis apoiar FHC. Aconteceu, porém, que as pesquisas indicavam que sua popularidade baixara para cerca de 16% no Rio e igual percentagem no Rio Grande do Sul, o que significava que ele não teria mais de 4%. Aconselhei-o, então, a renunciar. E, como ele não me quis ouvir, eu o fiz publicamente para não 71 Histórias sobre um político que se “podava” para renovar-se Entrevista com João Aveline IHU On-Line – Como se deu a sua convivên- Jornalista, sindicalista, ex-militante do Partido Comunista Brasileiro, João Aveline conviveu com Leonel Brizola na intimidade palaciana, da qual nos relatou algumas passagens. Ele “põe a mão no fogo” pela honestidade e integridade do ex-Governador gaúcho, de quem destaca as transformações no seu perfil político, originalmente conservador. Mudanças que Brizola explicava, como lembra Aveline, comparando-se a uma árvore em tempo de poda: às vezes, ele cortava um “galho” inconveniente, para que viesse a nova brotação. Aveline iniciou sua vida profissional como repórter do jornal Tribuna Gaúcha, na segunda metade da década de 1940. Por algum tempo, atuou como noticiarista do Departamento de Notícias da Rádio Itaí. Nesse período, início dos anos 1950, foi revisor no Correio do Povo. Ingressou na Rádio Gaúcha em agosto de 1956, tendo chefiado o Departamento de Notícias. Ajudou a fundar e participou da edição gaúcha do jornal Última Hora, onde chefiou a reportagem geral. Com o golpe militar de 1964, o jornal foi fechado, e João Aveline passou a trabalhar na revista A Granja. Em 1971, foi para o jornal Zero Hora, onde foi secretário do jornal e da gráfica e chefe de reportagem. Foi editor da Revista da TV e do Caderno Zona Norte, suplementos do jornal. Dirigente do Sindicato dos Jornalistas em várias gestões, atualmente é membro da Comissão de Ética dos jornalistas. É autor do livro Macaco preso para interrogatório: retrato de uma época. Porto Alegre: AGE, 1999. 13 cia com Brizola João Aveline – Brizola era três anos mais moço do que eu, que tenho 85 anos. Fui seu companheiro durante toda a vida. Ainda muito jovem, ele foi prefeito de Porto Alegre, quando criou uma rede de escolas. Eu trabalhava na Tribuna Gaúcha, na época, e fiz uma reportagem sobre as escolinhas de Brizola, como ficaram conhecidas. Eram casas de madeira pintadas de cinza e padronizadas. Essa foi a preocupação central dele como administrador de Porto Alegre, e também quando ele foi Governador do Estado13. Brizola era um jovem do interior muito conservador, é bom que se diga isso. Mas, como Governador, ele passou a organizar reuniões com o movimento sindical, reuniões privadas, das quais eu participava. Numa dessas ocasiões, ele reconheceu que era inicialmente muito conservador. Disse que havia dirigido a Prefeitura de Porto Alegre dando atenção apenas ao plano administrativo, que as coisas tinham corrido bem, sem maiores preocupações, pois o orçamento era relativamente bom, a receita era boa. Lembro-me de que ele disse: “Quando eu cheguei ao Governo do Estado, aí a situação ficou diferente. Passei a levar em conta uma série de fatores, a me preocupar com o desenvolvimento do Estado. E cheguei à conclusão de que uma das coisas que travava o desenvolvimento era o fato de que nós não dispúnhamos, como coisa nossa, do potencial energético. A Companhia de Energia Elétrica es- As referidas escolas eram construídas segundo um modelo padrão e ficaram conhecidas como “brizoletas”. Também foram denominados “brizoletas” os títulos mobiliários, resgatáveis em datas pré-estabelecidas, criados e usados por Brizola, durante o seu período como Governador do Estado, para o pagamento do funcionalismo e de obras públicas. Tais títulos, utilizados para enfrentar a escassez de recursos, eram aceitos pelo comércio como moeda, de maneira geral. 72 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO tava nas mãos dos norte-americanos, então eu fui me dando conta dos tentáculos que estavam em cima de nós e que nos sugavam, e resolvi tomar algumas medidas, entre elas a encampação das Companhias”. ele também dava um caráter discreto, serviam para ele dar trânsito a certas informações, que ele gostaria de ver publicadas. IHU On-Line – Ele era anticomunista? João Aveline – Em determinado momento sim, mas depois ele foi evoluindo, a situação foi modificando. Inicialmente, ele não tinha contato direto conosco, mas por de um intermediário não-comunista. Com o correr do tempo, ele passou a ter um comportamento menos agressivo, mais fraterno em relação a nós. Ele foi anticomunista porque, por exemplo, em 1958, quando ele foi eleito, nós, comunistas, o apoiamos, porque fizemos uma avaliação e chegamos à conclusão que, naquele momento, o melhor candidato era ele. Brizola não aceitou o nosso apoio, não só não aceitou como, depois de eleito, mandou protocolarmente devolver, nos Correios e Telégrafos, um telegrama que o Prestes enviara, cumprimentando-o. Quando ele não aceitou os nossos votos, nós respondemos a ele publicamente, que independentemente da vontade dele, nós éramos donos dos nossos votos e, na nossa concepção, apesar do anticomunismo dele, apesar disso, ele era o melhor candidato naquele momento. Depois ele mudou. IHU On-line – Quando foi isso? João Aveline – Lá pelos anos 1950, não me lembro exatamente a data. Ele realizava muitas reuniões. Nelas comentavam-se muitas coisas, como o episódio das encampações. Aí é que entra em cena a evolução do ser humano, do ser político. A prática levou-o a uma concepção de governo mais nacionalista e também social, mas fundamentalmente nacionalista. Numa dessas reuniões, um dirigente sindical chamado Vilson Lima, dos gráficos, perguntou: “Brizola, você era um cara reacionário conservador e hoje você tem concepções arejadas, é nacionalista. Como foi essa mudança?” Brizola, que era um homem muito “frasista” e de metáforas muito inteligentes, disse o seguinte: “Olha, de fato, eu era isso que tu disseste. Quando eu cheguei ao Governo do Estado me defrontando com os problemas, resolvi me ‘podar’. Cortei esse galho! Cortei aquele galho! Cortei aquele outro galho! E agora eu estou ‘brotando’ ”. A metáfora foi inteligente, brotar significa renovação e Brizola foi isso, foi um homem que se renovou, um homem em constante renovação. IHU On-Line – O senhor acompanhou também as iniciativas referentes à reforma agrária? João Aveline – A primeira experiência de reforma agrária no Brasil foi feita por ele aqui no “Banhado do Colégio”. Eu estive lá com ele, junto com as delegações que vinham de todo o Brasil para ver a experiência. Ele dividiu as terras. Fez um trabalho no sentido da implantação de uma reforma agrária com efetivos rendimentos. Foi muito caluniado na época, pois, como muitos camponeses não tinham rendimentos para pagar seus compromissos com o Banco do Rio Grande do Sul, ele, por intermédio das propriedades da mulher, proporcionou as condições para que todos pudessem financiar as terras. João Calmon, dos Diários Associados, chegou a afirmar que ele tinha utilizado a reforma agrária para vender as terras da mulher aos camponeses. Isso não é verdade. Eu meto a mão no fogo por Brizola, no que diz respeito ao seu comportamento ético em rela- IHU On-Line – Na época o senhor trabalhava aonde? João Aveline – Eu trabalhava no departamento de notícias da Rádio Gaúcha, onde eu era chefe, e no jornal Última Hora, que apoiava Brizola. Entre as coisas que eu fiz lá foi cobertura sindical, daí a minha proximidade com o Governador. Como disse, eu participava das reuniões que ele organizava. Elas me interessavam como jornalista. Mas eu me credenciei junto a Brizola por meio do movimento sindical, do qual eu era próximo. Fui apresentado como uma pessoa de confiança e mantive a lealdade. Aos sábados, ele reunia alguns jornalistas no Palácio Piratini, com os quais ele gostava de conversar, e eu estava entre eles. Nessas reuniões, ele abria os “esquemas” para nós. Alguns diziam que essas reuniões, às quais 73 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO ção a dinheiro. Foi um homem extremamente altivo, com um escrúpulo incomum. Quando eu digo “incomum”, estou me referindo a um comportamento ético, que não é comum nos políticos de hoje. zola havia trazido para o partido. Ao mesmo tempo que ele aglutinava pessoas, ele também as excluía. Antes, havia perdido o Senador Saturnino Braga. Também rompeu com Garotinho, todos eles de um quadro político que crescera com Brizola. Grandes personalidades foram absorvidas e expelidas por ele, como [Jaime] Lerner, Governador do Paraná e Sereno Chaise, no Rio Grande do Sul. Os casos desse tipo são vários. Esse talvez tenha sido o seu maior defeito, à medida que algumas pessoas iam se projetando nos quadros políticos, com pensamentos definidos e com capacidade de divergir, em determinadas circunstâncias, elas eram expelidas. IHU On-Line – Que destino foi dado ao dinhe- iro que Brizola teria recebido para custear um movimento guerrilheiro? João Aveline – Sinceramente, eu não estou “por dentro” disso. O que se sabe é que o Fidel Castro meteu na cabeça que tinha que exportar a revolução, fazer a revolução na América Latina. Efetivamente, veio dinheiro para os grupos de guerrilhas. Esses recursos, no caso de Brizola, foram gastos em questões relativas à organização da luta armada. Eles não serviram para locupletar Brizola como pessoa, repito que eu boto a mão no fogo pela honestidade de Brizola. Além disso, ele era um homem rico. Havia casado uma mulher rica. IHU On-Line – Do homem Brizola, o que o marcou mais? João Aveline – O homem Brizola era muito voltado para a política, tinha a política correndo nas veias, respirava política, comia política, vivia política vinte e quatro horas por dia. Naturalmente, a primeira prejudicada em função disso foi a família. Brizola enfrentou problemas na família. Ele viveu com Neusa quarenta e seis anos, acho que foi feliz, mas era um homem divorciado da família, era um homem que cuidava mais da coisa pública, encarava isso como uma tarefa. Brizola impôs esse sacrifício à família. No plano político, era uma síntese dos políticos gaúchos. Carlos Bastos, hoje no Jornal do Comércio, diz que Brizola é uma síntese dos nossos políticos do passado. Herdou de Júlio de Castilhos o autoritarismo, de Borges de Medeiros, a sede de poder, de Gétúlio, as preocupações nacionalistas e sociais, de Flores da Cunha, o caráter democrático e o jeito de fazer frases, de João Neves da Fontoura, a oratória, de Osvaldo Aranha, a capacidade de articulação e a condição de democrata. Brizola era um homem assim. Estão dizendo que Brizola encerra um ciclo, e efetivamente encerra. Até aqui, vivemos a era Brizola, fazendo uma política em que o debate se dava no terreno das idéias, adotando um comportamento republicano. Com o fim dessa era, o que se constata é que o político, candidato em qualquer nível, é uma espécie de sabonete é vendido via publicidade, por meio do chamado marketing, como se faz em relação a um produto comestível IHU On-Line – Essas características positivas não foram prejudicadas por um traço fortemente autoritário, que o levou a cometer muitos erros? João Aveline – Em determinados momentos, ele foi autoritário, até demais. Entre os erros está, por exemplo, o cometido na ocasião em que era o Governador do Rio de Janeiro e precisava de recursos do Governo Federal, na época chefiado por Collor. Em decorrência desse fato, ele chegou a dizer que Collor estava sendo vítima da classe dominante que queria golpeá-lo. Outro erro dele sério, para um homem que foi submetido ao mais longo exílio do Brasil até hoje – ele sofreu um exílio de quinze anos – ocorreu, quando ele propôs a prorrogação do mandato do Figueiredo, que era um dos generais golpistas. Brizola calculava que, se houvesse a prorrogação por um ano, ele teria mais condições de enfrentar uma disputa pela Presidência da República. IHU On-Line – Outra característica negativa dele era a dificuldade de conviver com lideranças novas? João Aveline – Sim. Recentemente o PDT perdeu o deputado Miro Teixeira, que o próprio Bri- 74 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO ou de uso pessoal. Brizola tem, na carreira dele, algo que poucos políticos têm, no Brasil. Em 1961, quando Jânio renunciou, e os militares queriam impedir a posse de Jango, não confiavam nele, porque era tido como comunista, Brizola desfraldou a bandeira da legalidade constitucional e im- pôs esse ponto de vista com o apoio do Rio Grande do Sul, conquistando o apoio do País. Na carreira de Brizola, se mais nada houvesse, só o fato de ter aparado esse golpe de 1961, com muita valentia, com muita determinação e com muita capacidade de aglutinação de forças, isso já bastaria. 75 A educação no centro de seu projeto político Entrevista com Cristovam Buarque Petista, brizolista é a forma como se define o Senador e ex-Ministro de Educação Cristovam Buarque em entrevista ao IHU On-Line, no dia seguinte à morte de Leonel Brizola, diretamente da Câmara, durante a sessão de homenagens ao líder trabalhista. Para o Senador, se Brizola tivesse sido eleito Presidente no lugar de Fernando Collor de Mello, em 1989, o rumo do País teria sido diferente, e o Brasil e a América Latina poderiam ter visto um governo que colocaria em primeiro lugar os interesses nacionais e a educação. Cristovam Buarque é Engenheiro Mecânico, pela Universidade Federal de Pernambuco, e doutor em Economia pela Universidade de Paris, Sorbonne. Cristovam Buarque foi eleito Senador da República em outubro de 2002, com 60% dos votos, cerca de 461 mil, o mais votado da história do Distrito Federal. Entre 1995 e 1998, foi Governador do Distrito Federal, onde implantou o Programa Bolsa-Escola. Criou a ONG Missão Criança para promover a idéia da bolsa-escola no Brasil e no exterior. Desde 1979, é professor da Universidade de Brasília, onde foi reitor no período 1985-1989, como primeiro reitor eleito da UnB após o fim da ditadura militar. É autor de 19 livros. Entre eles, citamos: A Desordem do Progresso: o fim da era dos economistas e a construção do futuro. São Paulo: Paz e Terra, 1991; A aventura da universidade. Co-edição Rio de Janeiro: Paz e Terra; São Paulo: Unesp, 1994 (Prêmio Jabuti, 1995); A Revolução nas Prioridades. Da modernidade técnica à modernidade ética. São Paulo: Paz e Terra, 1994. Os tigres assustados – uma viagem pela fronteira dos séculos. Rio de Janeiro: Record, 1999; Admirável mundo atual. São Paulo: Geração Editorial, 2001; Os Instrangeiros. A aventura da opinião na fronteira dos séculos. Rio de Janeiro: Garamond, 2002. O Senador Cristovam Buarque foi Ministro da Educação no atual Governo Federal, no período de 1º de janeiro de 2003 a 27 de janeiro de 2004. IHU On-Line – Como o senhor avalia a contri- buição política de Leonel Brizola? Cristovam Buarque – Em primeiro lugar, estamos falando de cinqüenta anos de militância. Isso é muito raro, uma militância tão duradoura. Em segundo lugar, a valentia dele em defesa da legalidade, quando foi preciso pegar em armas para defender a legalidade contra o golpe militar. Ele fez isso e venceu os militares. Em terceiro lugar, o que mais me aproximou dele é que foi o único dos grandes líderes nacionais que colocou sempre a educação em primeiro lugar. Nenhum outro fez isso. Nenhum dos grandes políticos, como Getúlio [Vargas], Juscelino [Kubitschek], Fernando Henrique, Luís Inácio Lula da Silva, nenhum desses grandes, pôs a educação na frente. Essa foi sua grande diferença. Com a mesma coerência passou à oposição ao governo Lula, quando sentiu que, na sua opinião, o Governo não dava prioridade à educação, não defendia a nacionalidade com o vigor que ele queria. IHU On-Line – O senhor afirmou no seu dis- curso de homenagem a Brizola na Câmara, que “A eleição de Brizola em 1989 poderia ter permitido a virada responsável à esquerda de que o Brasil e a América Latina preci- 76 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO savam nas vésperas da aventura neoliberal iniciada pelo vencedor das eleições”. Pode explicar um pouco mais essa afirmação? Cristovam Buarque – Em 1989, às vésperas da afirmação neoliberal no Brasil e na América Latina, aconteceu o fim da União Soviética, a consolidação da política de [Margaret] Tatcher e de [Ronald] Reagan. Se Brizola tivesse ganhado no lugar de [Fernando] Collor, não há dúvida de que teríamos tido possibilidade de testar, no Brasil, uma alternativa diferente, mais comprometida com o social, investindo convictamente, como ele iria fazer, na educação, defendendo os direitos dos trabalhadores e, sobretudo, a política de defesa nacional. Para ele, as relações de interesse internacionais deviam se submeter aos interesses nacionais. Ao eleger Collor, o que nós tivemos foi o inverso. Foi a abertura completa do País, apressadamente, foi a destruição e desarticulação do Estado, foi a mudança da prioridade para a economia liberal. Se Brizola tivesse sido eleito, poderíamos ter tido uma experiência nova no Brasil e impedido a experiência neoliberal no continente inteiro. mostrou, como engenheiro, sensibilidade política. No Rio de Janeiro, já foi mais difícil. Foi um outro tempo que ele encontrou com a criminalidade generalizada, com a Rede Globo fazendo uma campanha sistemática contra ele. Ele não estava em ascendência no Rio de Janeiro, quando assumiu. Não dá para dizer com a mesma emoção, porque eu defendo que, no Governo do Rio de Janeiro, não houve o mesmo êxito que no do Rio Grande do Sul. Mesmo assim, ele criou símbolos, como a vinculação do Carnaval com a vida da cidade por meio do sambódromo no qual ninguém acreditava, a construção de centenas de escolas chamadas CIEP’s, com horário integral. Ele conseguiu fazer isso, sem dar uma dinâmica econômica ao estado do Rio, num momento em que a economia brasileira estava entrando na chamada década perdida dos anos 1980. IHU On-Line – Em relação à reforma agrária, ele deu uma contribuição importante também? Cristovam Buarque – Ele foi um exemplo no Rio Grande do Sul na luta pela reforma agrária. Quando ele foi Governador, conseguiu fazer uma reforma agrária. Mas, sobretudo no Brasil, ele foi o grande defensor da reforma agrária desde os anos 1960, quando apoiou as ligas camponesas, apoiou o Instituto da Reforma Agrária, que foi criado naquela época, e até hoje ele se manteve fiel a isso. Brizola representa aquilo que eu defendo sempre, que é o político brasileiro que quer completar a Abolição e a República. Os últimos movimentos revolucionários no Brasil foram a Abolição e a República. Os dois ficaram incompletos até hoje. Brizola representa esse grupo de políticos brasileiros que quer completar a República. IHU On-Line – Como o senhor vê Leonel Brizola como herdeiro de Getúlio Vargas? Cristovam Buarque – Eles são herdeiros da mesma origem, nasceram no mesmo lugar. Brizola começou a militar durante o segundo governo Vargas. A relação dele era familiar, como cunhado de João Goulart, que era Ministro de Getúlio Vargas. Eram do mesmo partido, o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Brizola é o herdeiro direto, não é nem filho, o herdeiro-irmão, que é mais próximo ainda da herança do que filho, de Getúlio Vargas, que não deixa herdeiros. Isso é que é interessante. O trabalhismo ficou órfão. IHU On-Line – E com relação a seu relacionamento pessoal? Cristovam Buarque – Tive relacionamento pessoal com ele desde quando eu morava nos Estados Unidos, e ele foi expulso do Uruguai e foi morar em Nova Iorque, quando entrei em contato com ele pela primeira vez. Ele aceitou o convite para debater política naquela mesma época, o que mostrou que não ficara abatido. Depois, eu IHU On-Line – Como o senhor avalia os pe- ríodos em que Brizola ocupou cargos no Governo? Cristovam Buarque – Na Prefeitura de Porto Alegre e no Governo do Rio Grande do Sul, Brizola foi um exemplo de governante, na construção de escolas, na reforma habitacional, no desenvolvimento do estado, na economia. É isso que afirmo muito, o chamado engenheiro Brizola, que 77 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO muito forte. Não faz dois meses, ele me ligou para falar da minha saída do Ministério. Sempre mantivemos contato, um respeito profundo. Eu sempre insisti em dizer que eu sou petista brizolista. apoiei, em 1989, a sua candidatura à Presidência. Meu primeiro voto para presidente foi para ele. No primeiro turno de 1989, eu não votei em Lula, eu não era de nenhum partido. Eu votei e fiz campanha para Brizola. E formamos uma amizade 78 “É imprevisível o que possa acontecer com o trabalhismo brasileiro” Entrevista com Sereno Chaise O ex-prefeito de Porto Alegre e ex-companheiro de Brizola, Sereno Chaise, guarda lembranças históricas de grandes vitórias e grandes derrotas junto ao líder pedetista. Apesar de ambos terem se distanciado por divergências em relação à aliança do PDT com o PT durante o governo de Olívio Dutra, no Rio Grande do Sul, Chaise guarda profunda admiração por Brizola e considera que a herança trabalhista foi retomada pelo PT, como disse em entrevista concedida ao IHU On-Line. Chaise nasceu em Soledade, em 1928. No dia 10 de novembro de 1963, foi eleito prefeito de Porto Alegre pelo PTB com mais de 100 mil votos. O mandato, iniciado no dia 2 de janeiro do ano seguinte, foi interrompido quatro meses depois, no dia 8 de maio, por força do Ato Institucional n.º 1, primeira medida tomada pelo governo militar após o golpe de 31 de março de 1964, que depôs o Presidente João Goulart. Sereno nunca aceitou o exílio. Foi preso outras vezes durante o regime militar e, segundo ele próprio, teve ofertas de Brizola e de João Goulart para deixar o País, mas não quis. De 1946 a 2001, ano em que Sereno e Brizola romperam uma amizade de 55 anos, foram grandes companheiros de luta. com a morte de Leonel Brizola e abre-se uma nova etapa da política brasileira. IHU On-Line – O que caracteriza essa nova etapa? Seguramente não seria a busca de um projeto de desenvolvimento nacional? Sereno Chaise – Não. Caracteriza-se pela modernização dos métodos de política, pela facilidade da comunicação, pelo papel da televisão, as pesquisas... enfim, a partir de agora, a política se torna bem diferente daquela de 40 ou 50 anos atrás, devido a um avanço tecnológico de toda a sociedade. IHU On-Line – Que continuidade deu Brizola ao trabalhismo de Getúlio Vargas? Sereno Chaise – O trabalhismo brasileiro teve o Dr. Getúlio e Alberto Pasqualini como ideólogos, e João Goulart como executor daquela política social e seus pontos fundamentais e princípios básicos. Leonel Brizola era o herdeiro legítimo, continuador de toda aquela obra. Sem ele, fica agora um vazio. Estamos diante de uma página em branco. É imprevisível o que possa acontecer daqui para frente com o trabalhismo brasileiro. Acho que, já nos últimos anos, essa política de defesa do trabalhador, de defesa do primado do trabalho sobre o capital, já vinha sendo assimilada pelo Partido dos Trabalhadores. Eu entendo que o PT é que vinha desempenhando, nos últimos anos, aquela luta que outrora foi do velho PTB, sob inspiração do Presidente Vargas. Agora o que vai acontecer com a história do antigo PDT é uma incógnita, não dá para dar palpites. Vai depender de uma série de fatores realmente imprevisíveis. IHU On-Line – Ao perder Brizola o que o Rio Grande do Sul e o Brasil estão perdendo? Sereno Chaise – A morte dele significa o encerramento de um período de lutas pelos avanços sociais, que se desenvolve desde que o País foi redemocratizado, desde 1947. Um período de quase 60 nos, de intensa atividade, na defesa dos ideais, dos interesses legítimos do povo trabalhador, na defesa da riqueza nacional por meio de uma política nacionalista. Acho que esse ciclo se encerra 79 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO IHU On-Line – Quando veio o golpe militar de IHU On-Line – Apesar de que podia ser preso. E o foi, de fato... Sereno Chaise – Sim, fui várias vezes. Esse era um preço que tinha que pagar... 1964, o senhor era prefeito de Porto Alegre, foi cassado, mas nunca quis sair do País, nem quando o próprio Brizola o convidou. Isso foi porque pensava que a resistência passaria se ficasse no Brasil? Sereno Chaise – Não. Nunca disse isso. Acho que o presidente João Goulart não teve opção e agiu como verdadeiro estadista, preferindo sua renúncia à Presidência e ao prestígio pessoal a fazer com que corresse sangue entre irmãos e a colocar em perigo a integridade territorial do Brasil. Hoje é conhecido o acordo que havia entre os conspiradores aqui, especialmente entre o Governador de Minas, Magalhães Pinto, e o governo americano por intermédio do embaixador Lincoln Gordon. Aliás, Gordon, professor universitário, depois que deixou a embaixada e voltou para os Estados Unidos, escreveu um livro no qual ele mesmo detalha a chamada operação brother Sam, desembarque de 30 a 50 mil marinheiros norte-americanos no Norte e no Nordeste do Brasil. Foi um dos motivos que pesou muito na decisão do Presidente João Goulart de não deixar correr sangue entre irmãos e não comprometer a integridade territorial do nosso País. No exílio, no Uruguai, conversamos muito sobre isso, e ele me repetiu que, se tivesse resistido, ganharia a parada, continuaria Presidente da República, mas o Brasil ficaria reduzido aos países da Bahia para baixo, o que seria um prejuízo inestimável. Tenho a impressão de que daqui a cem ou duzentos anos, se o Brasil mantiver o controle da Amazônia, vai ocupar um papel muito importante no cenário mundial. A Amazônia pode ser considerada o pulmão para o planeta daqui a muito pouco tempo. IHU On-Line – Permaneceu preso durante muito tempo? Sereno Chaise – Durante os dois ou três primeiros anos, volta e meia, era recolhido por qualquer coisa, mesmo por aquelas das quais eu não tinha o menor conhecimento, mas sempre na hora de prender, o primeiro era eu. Mas não sofri tortura. Eu tinha a decisão de que o cara que fosse me torturar, iria me matar. Eu era entregue aos quartéis da Brigada Militar, uma instituição gaúcha cem por cento. É gente muito boa. Eu que sempre fui admirador da Brigada, passei a admirá-la mais ainda. IHU On-Line – O senhor confirma a informa- ção de que se ocultou algumas vezes no Convento dos Capuchinhos? Sereno Chaise – Não, não. Nem eu, nem Brizola. Eu era muito amigo daqueles Capuchinhos do Morro Santo Antônio, ia seguido lá onde pousei muitas vezes, mas quando ainda era prefeito e todo o mundo sabia que estava lá. É que tinha muita gente na minha casa; passava gente aplaudindo e vaiando também, condenando, ameaçando. Então, às vezes, para aliviar a família eu me retirava um pouco. Mas, não estava escondido, não, e Brizola já estava no Uruguai. IHU On-Line – Como eram as relações de Bri- zola com a Igreja e com o então Arcebispo de Porto Alegre, Dom Vicente Scherer? Sereno Chaise – Eles se davam bem. Dom Vicente aparecia de vez em quando, no Palácio. A comadre Neuza ia toda a hora à Missa, na Matriz, todos os domingos, religiosamente. Eu próprio me dava muito bem com Dom Vicente. Era uma pessoa muito humilde e hoje vejo o trabalho magnífico que ele fez na Santa Casa. Ele reergueu aquela instituição que estava abandonada. Ele a deixou como um exemplo do que deve ser uma casa de saúde. IHU On-Line – E por que o senhor nunca quis sair do País? Sereno Chaise – Brizola e Jango mandaram um carro me buscar, mas eu era um homem pobre, com filhos pequenos, não ia deixar meus filhos aqui passando fome e eu vivendo lá nas costas deles. Eu decidi que não iria, que tinha que trabalhar aqui, ganhar minha vida aqui, cuidar de minha família. 80 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO IHU On-Line – Quais as lembranças históricas Sereno Chaise – Foi a ruptura de um acordo que nós fizemos com o PT, quando Olívio Dutra era Governador do Estado. Nós tínhamos feito uma aliança depois de um amplo debate interno no PDT, depois de fazermos reuniões com os vereadores, os prefeitos, o Partido tinha na época 30 coordenadorias no interior, realizamos reuniões em todas elas, discutindo o assunto. Finalmente, reunimos o diretório regional e por voto praticamente unânime foi aprovada a coligação e começamos a participar do governo Olívio Dutra, baseados numa decisão profunda do Partido. Dois anos depois, Brizola resolveu simplesmente desfazer aquilo. Mas eu me neguei. Como a gente faz, a gente desfaz. Se a aliança foi fruto de um longo debate interno, vamos fazer um novo debate e se a maioria resolver voltar atrás, o fazemos. Essa foi minha divergência principal. mais importantes que guarda de Brizola? Sereno Chaise – Quando ganhamos a primeira eleição para a Prefeitura, aliás, a primeira perdemos, mas ganhamos a segunda. Quando ganhamos a eleição para o Governo do Estado em 1958. Guardo também amargas lembranças de algumas derrotas importantes, quando, por exemplo, ele, como candidato à Presidência da República, perdeu para Enéas, e se retirou para Uruguai. Fui lá na Fazenda e o encontrei realmente abatido. Ele me disse: “Bah! Compadre, estou com os cascos em ferida”, isso dizíamos no interior, quando um animal se “esbroqueava”, ficava até com dificuldades de caminhar. “Estou com os cascos em ferida, mas vou reerguer a cabeça”. E reergueu, e voltou à luta. IHU On-Line – Uma das qualidades que se unem à pessoa de Leonel Brizola é sua coerência política, mas há fatos que são difíceis de explicar, como o apoio dele até o fim ao Presidente Collor, sua ligação com Fidel Castro... Como o senhor vê isso? Sereno Chaise – Todo líder tem suas coerências e incoerências. A vida de Brizola foi uma vida de luta feita de pontos altos e de pontos baixos. Nós divergimos há seis anos, nunca mais conversamos. Eu acho que, no fim da vida dele, afloraram mais essas incoerências. Mas, isso não desmerece toda a luta pela qual ele viveu e morreu: pelo povo trabalhador e pelo desenvolvimento de nosso Estado e de nosso país. Isso tudo foi muito maior de que os defeitos que, evidentemente, ele tinha, como todos temos. IHU On-Line – Atualmente ao que o senhor está mais dedicado? Sereno Chaise – Ao trabalho como diretor da Companhia de Geração Térmica de Energia Elétrica. Energia produzida à base do carvão, aproveitando essa riqueza do Rio Grande. É uma imensa riqueza de nosso Estado que o mundo inteiro usa para energia. Hoje, no mundo, 42% da energia produzida é originária do carvão. Na Alemanha, esse percentual chega a 55%, nos EUA é de 42%, aqui no Brasil infelizmente é de 1,2%, e o carvão brasileiro está localizado aqui no Rio Grande. A luta de aproveitar o carvão para gerar energia é basicamente do Rio Grande do Sul. Hoje o carvão brasileiro está assim dividido: 0,5% no Paraná, 9,5% em Santa Catarina, na região de Criciúma e 90% aqui no Rio Grande do Sul. O aproveitamento dele para gerar energia, como todo o mundo faz, é a nossa causa. IHU On-Line – Qual foi a principal divergência entre o senhor e Brizola? 81 “A história da resistência não deve ser esquecida” Entrevista com Flávia Schilling A socióloga e professora na Faculdade de Educação da USP, Flávia Schilling, viveu sua história familiar muito ligada à figura de Leonel Brizola. Tendo sido protagonista de um dos momentos mais difíceis para a América Latina, nas décadas de 1960-1970, Flávia concedeu uma entrevista ao IHU On-Line, tentando olhar para o passado com o cuidado próprio de uma história recente à que falta muito por esclarecer. Santa-cruzense, Flávia Schilling tem uma trajetória peculiar. Embora tenha permanecido fora do Brasil durante quase todo o período militar, teve sua vida, de certa forma, determinada pelo 31 de março de 1964, quando seu pai, o jornalista Paulo Schilling, se viu forçado a buscar exílio no Uruguai. Junto a outros milhares de adolescentes, Flávia participou de diversos atos de protesto nas ruas de Montevidéu e, posteriormente, foi Integrante do Movimento de Libertação Nacional (MLN). Durante uma perseguição, ela reagiu à prisão, levou um tiro no pescoço e graças aos procedimentos cirúrgicos considerados milagrosos, sobreviveu. Depois de passar cinco semanas internada no Hospital Militar, Flávia foi transferida para a prisão feminina de Punta Rieles, bairro localizado a 14 quilômetros do centro de Montevidéu, onde permaneceu até a manhã do dia 20 de junho de 1973. Considerada uma prisioneira perigosa, ela e mais oito companheiras foram levadas para sucessivos quartéis, em condição de isolamento. A experiência dramática se estendeu por mais quatro anos, ao final dos quais foi transferida novamente para a prisão feminina de Punta Rieles. Durante o período em que esteve presa no Uruguai, Flávia Schilling teve seu nome publicado em diversos artigos e reportagens de jornais. A regional do Comitê Brasileiro pela Anistia, Seção Gaúcha coletou assinaturas em favor da sua libertação. A mobilização e as sucessivas pressões fizeram com que uma lei fosse decretada, o que levou a sua libertação e de mais de 20 estrangeiros presos no Uruguai. A liberdade veio no dia 14 de abril de 1980, cinco anos antes do fim do regime militar no Brasil. Flávia é, atualmente, membro do Conselho Consultivo do Instituto Sou da Paz, entre outras organizações. Graduada em Pedagogia pela PUCSP, Flávia é mestre em Educação pela Unicamp, com dissertação intitulada Estudos sobre Resistência. É doutora em Sociologia pela USP, e sua tese tem o título Corrupção: ilegalidade intolerável? Comissões Parlamentares de Inquérito e a luta contra a corrupção no Brasil (1980-1992). É autora dos livros: Querida Família. Porto Alegre: Coojornal, 1978; Querida Liberdade. São Paulo: Global, 1980; Violência Urbana: dilemas e desafios. São Paulo: Atual, 1999; Corrupção: ilegalidade intolerável? CPIs e a luta contra a corrupção no Brasil (1980-1992). São Paulo: IBCCrim; Centro Jurídico Damásio de Jesus, 1999; Sociedade da insegurança e violência na escola. São Paulo, Ed. Moderna, 2004. IHU On-Line – Quais as lembranças mais vivas que você tem da relação entre seu pai e Leonel Brizola? Flávia Schilling – A história familiar está absolutamente ligada à presença de Brizola. A partir da publicação do livro A questão do trigo e do trabalho do meu pai na formação de cooperativas, ele foi chamado para compor a assessoria econômica de Brizola, quando era Governador do Rio Grande do Sul. Fizeram trabalhos muito bons, extremamente importantes e precursores, na gestão 82 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO na minha dissertação de mestrado. Considero que pensar sobre o tema, ontem e hoje, também é uma forma de resistência neste país que prima pela construção do esquecimento. agrária. Marcante foi a defesa da legalidade, em 1961. De muitas formas, naqueles tempos, foi criada a perspectiva da construção de um Brasil democrático, de uma democracia com direitos e inclusiva. Chamo a atenção para isso, pois até hoje este é o desafio maior do Brasil: como construir uma democracia que vá além de um mero formalismo, de uma democracia com direitos humanos, com direitos econômicos e sociais? IHU On-Line – No Uruguai, você esteve mui- to próxima da morte. O que se sente ou pensa nesse momento? Como vê a vida, a sociedade, a luta depois de passar por esse momento? Flávia Schilling – As formas de luta se transformam o tempo todo: não há repetição possível, estão contextualizadas por um momento histórico e social bem preciso. O conteúdo das lutas, porém, demora mais para transformar-se, gira em torno da possibilidade de justiça, acesso à justiça, possibilidade de construção coletiva de uma vida justa em comum. Este conteúdo permanece: é de ontem e é de hoje. As formas mudam. Creio que sempre vale a pena, desde o lugar que se ocupa, tentar um mundo melhor. É uma responsabilidade que temos como cidadãos, como pais e mães. Creio que hoje as formas de luta – em tantas organizações e de tantas maneiras tão originais- retomam de alguma maneira as lutas dos anos 60 com características peculiares. Novos atores entraram em cena: a cena atual é mais complexa e mais rica. Tenho muito orgulho de ter podido participar ontem e hoje, de estar presente. Trabalhei um tempo em atendimento a vítimas de violência. Hoje, trabalho na educação, centrando esforços na sensibilização em torno das questões que envolvem os direitos humanos. Creio que há uma linha de coerência interessante em todas estas atividades. IHU On-Line – Qual é a imagem que você foi fazendo de Brizola e qual a que hoje tem, com as contradições próprias que possa haver? Flávia Schilling – A história de um país é cheia de contradições, não há linearidade, e isso acontece com a história de um indivíduo, também cheio de contradições. A potencialidade daquele Brizola (com uma confiança na organização popular) se esvai e penso que ele se dedica, nos últimos anos, a uma visão de política mais restrita, a uma visão de partido, que comporta sempre um grau mais ou menos elevado de burocratização. Hoje, o Brasil tem uma realidade de organização da sociedade civil que vai muito além dos partidos, que constrói, no cotidiano, experiências de democracia mais profundas do que as propostas pelos partidos políticos existentes. IHU On-Line – Recentemente, lembraram-se os 40 anos do golpe militar aqui e 30 no Uruguai, no ano passado. Como avaliaria a resistência ao autoritarismo de seu pai e de Brizola e como foi a sua? Flávia Schilling – Foi uma resistência externa, da parte dos exilados e interna, de muitos setores da sociedade, que não deve ser esquecida. É uma das páginas importantes da história brasileira. Da parte do meu pai, foi uma resistência de grande dignidade e integridade, de compromisso real com as transformações sociais tão necessárias neste país. São muitos os setores da sociedade que resistem e esta cobre diferentes formas: algumas mais visíveis e publicizadas, outras mais humildes e cotidianas. Todas, juntas, fazem a diferença e prometem sinais de um país diferente. Tentei elaborar estas idéias e formas da resistência IHU On-Line – Quais foram os momentos mais duros vividos no Uruguai e como foi seu retorno ao Brasil? Flávia Schilling – Foram muitos e de diferentes características. Penso que o período de isolamento foi muito difícil. Tive, como companheiros, os livros. Os livros povoaram os silêncios, me enriqueceram diariamente. Foram essenciais para a sobrevivência e para minha vida posterior. O retorno ao Brasil foi difícil para todos. Foi necessário reconstruir a vida em todas as suas dimensões. Creio que foi um processo duro, porém exitoso, 83 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO gratificante, como é qualquer vida. Não houve apoios institucionais nesta trajetória, mas contamos com apoio de alguns amigos que sempre estiveram presentes. Houve muita dificuldade pois éramos “estrangeiros”, de mil maneiras, já tínhamos o olhar do “exilado”, daquele que estranha o que vê. Muitos códigos eram incompreensíveis e foi um tempo de aprendizagem. tradas de lá, uma companheira que teve o filho seqüestrado. Eram reflexos das ações conjunta entre as ditaduras da Argentina e do Uruguai. Não tenho notícias sobre a ação da ditadura brasileira no Uruguai: hoje há pesquisas que mostram esta dimensão. Mas, para nós, permanecia oculta. IHU On-Line – A forma de fazer política hoje não é mais a de Brizola, nem, seguramente, a da sua juventude. Onde ficou o impulso de sua geração de construir uma sociedade diferente? Como é canalizado hoje? Flávia Schilling – Este impulso está presente sempre e aparece de muitas e criativas formas: como viver diferentemente e como mudar a sociedade são temas constantes para todos nós, independentemente da geração e da situação social. A quantidade de gente organizada em torno de direitos (ambientais, culturais, econômicos) ou de identidades (mulheres, jovens, negros, etc.) muda a face do País a cada dia. Este país (mesmo reconhecendo as permanências da desigualdade social) é muito diferente em sua qualidade do que existiu em décadas passadas. IHU On-Line – Havia grandes diferenças polí- ticas entre seu pai e Leonel Brizola? Flávia Schilling – Havia, principalmente após o retorno do exílio. Meu pai soube buscar caminhos novos, e Brizola buscou manter-se nos caminhos conhecidos. IHU On-Line – De que maneira, na sua percepção do momento, e depois, podiam se detectar as relações entre as ditaduras militares do cone sul, especialmente, entre Uruguai e Brasil? Flávia Schilling – Houve, em 1977 várias companheiras presas na Argentina que foram levadas para o Uruguai. Tivemos companheiras seqües- 84 Entre o passado e o presente Por Eloísa Helena Capovilla Ramos nou ao Brasil em 1979, com a anistia. Foi eleito, então, por duas vezes, Governador do Rio de Janeiro. Foi candidato à Presidência da República mais de uma vez, mas não logrou eleger-se para este cargo. Faleceu no Rio de Janeiro, em 21 de junho de 2004. Esta microbiografia não nos dá a dimensão da vida privada nem da vida pública de Leonel Brizola. Sua trajetória pessoal, de menino pobre que saiu de uma cidade do interior, veio para a Capital, estudou e formou-se em Engenharia Civil, é vitoriosa. Seus objetivos foram alcançados. Acrescida a ela está a sua militância política no Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), a partir de 1945. Nesse contexto, é que virão outros aspectos de sua vida privada, como o namoro e o casamento com Neuza Goulart, irmã de Jango. E, nesse mesmo contexto, sua vida de homem público alcançará degraus cada vez mais altos. Assim, aos 36 anos, já era Governador do seu Estado natal. No plano político, era fiel aos princípios do trabalhismo, representado pelo Partido em que militava. Nacionalista e antiimperialista, estas eram suas bandeiras mais constantes na ação política até os dias atuais. É fiel a esses princípios que encampa algumas empresas estrangeiras no Rio Grande do Sul, quando Governador, nacionalizando-as. Em busca do desenvolvimento de seu Estado e do seu País, Brizola aposta, também, na educação. Como Governador do Rio Grande do Sul, construiu centenas de escolas primárias, (as “brizoletas”), oportunizando a real ampliação do ensino básico no Estado. Repetiu a receita, quando Governador do Rio de Janeiro, com a construção das escolas de tempo integral. Para ele, a educação era um princípio fundamental para o desenvolvimento de um país. Sua ação estender-se-á O depoimento, a seguir, foi escrito pela prof.ª Dr.ª Eloísa Capovilla Ramos, do PPG em História da Unisinos. Eloísa Capovilla é graduada e mestre em História pela UFRGS, com dissertação intitulada O Partido Republicano Rio-Grandense e o poder local no Litoral Norte do Rio Grande do Sul, e doutora em História pela UFRGS, tendo a sua tese o título O teatro da sociabilidade: os clubes sociais como espaço de representação das elites urbanas alemãs e teuto-brasileiras – São Leopoldo 1858-1930. É também co-autora do livro Sociedade Orpheu: da história de um nome à identidade de um clube. Porto Alegre: Palotti, 1998. – O Brizola morreu! – O quê? – É, morreu. Foi assim que a notícia se espalhou. De boca em boca, como um rastilho de pólvora. Alguns entristecidos, outros sinceramente emocionados, e alguns indiferentes, mas todos, literalmente, todos, comentando o fato, já que a morte de Leonel de Moura Brizola não era um acontecimento qualquer. Tratava-se de um personagem que estivera presente nos últimos 50 anos da vida política sul-rio-grandense e brasileira. As imagens do período, como num filme, sucediam-se pelo testemunho de uns e outros. Nascido em Carazinho, no Rio Grande do Sul, em 22 de janeiro de 1922, Brizola iniciou sua vida política em Porto Alegre como deputado estadual e federal, chegando a prefeito da Capital (1955) e Governador do Estado do Rio Grande do Sul (1958). Daqui, sua carreira e suas pretensões o levaram para o Rio de Janeiro, então capital do Estado da Guanabara, onde se elegeu deputado federal. Cassado e exilado em 1964, retor85 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO ainda à reforma agrária, desenvolvida no âmbito de sua fazenda do “Banhado do Colégio”, em Camaquã. Essas ações o colocam como um líder à esquerda, no início dos anos 1960. Foi, porém, a defesa da “legalidade” constitucional, que garantiria a posse do Vice-presidente da República, João Goulart, em 1961, o episódio que mais marcou a vida política de Brizola. Defendida a ferro e fogo, desde o Palácio Piratini, a posse do Vice-presidente foi garantida sob a liderança do Governador do Rio Grande do Sul. O movimento da Legalidade pode ser interpretado como um ato de convicção, de crença nas instituições democráticas e movimento de rebeldia do líder gaúcho. 1964 confirmou a desconfiança dos militares com as ações de Brizola e de Jango e indicou a ruptura total. Exilado, começava a via crucis de Brizola e também o crescimento do seu prestígio como estadista. A volta, depois de 15 anos de peregrinação “sem lenço e sem documento”, permitiu-lhe retomar a vida política. Mas, a perda da bandeira e da sigla do PTB, numa manobra política dos militares, marcavam as novas condições de vida no Brasil. Lutador, Brizola funda o Partido Democrático Trabalhista (PDT) e nele busca novamente o caminho do executivo regional, para o qual foi eleito por mais duas vezes. É nessa sigla partidária que ficou até o fim da vida. Sempre líder, sempre autoritário, sempre carismático. Na quarta-feira pela manhã, a trajetória que o grande líder fazia já não era com um microfone ou uma metralhadora, como em 1961 ou com uma pilcha e uma bandeira do Brasil, como em 1979. Agora, o povo, que fora seu fiel escudeiro naquelas oportunidades, estava de novo na rua, mas em silêncio, vendo passar, pela última vez, o corpo daquele que tanto admirara. A rua, palco de tantas passeatas de Brizola, travestia-se de luto, de silêncios e choros ao receber em seu trajeto o cortejo fúnebre. Na ida e na volta, o processo fora o mesmo. Em novo vôo, Brizola rumou para São Borja. Lá o mesmo cenário. Silêncios, choros, emoções, aplausos. São Borja metamorfoseou-se em cidade-síntese da vida política brasileira contemporânea, pela importância dos que a escolheram como sua última morada. Seu cemitério será doravante, seu ponto mais visitado. Seus homens mortos continuarão governando os vivos? 86 “Sentiremos a lacuna deixada por Brizola” Por José Odelso Schneider triota, nacionalista, visava a afirmar e consolidar uma economia nacional, com um empresariado e lideranças sindicais adultas, mais autônomas em relação às injunções da economia e das finanças internacionais. Por tudo isso, ele representava bastante esses valores que hoje estão sendo esquecidos... E o povo, ao dar essas manifestações de carinho, de apreço pela pessoa dele, por ocasião do seu falecimento, mostrou o quanto valoriza esse tipo de políticos que hoje estão escassos no País. A classe de políticos empenhados em lutar por causas, por projetos históricos de sociedade, está em franca diminuição, e seu lugar passa a ser ocupado por políticos fisiológicos, que lutam por interesses... Brizola era um homem que alimentava a esperança, a possibilidade de construir uma sociedade melhor. Evidentemente, ele tinha seus defeitos. Era bastante intransigente na defesa de suas idéias, e por isso, gerava atritos dentro e fora do Partido. Por outro lado, como líder e presidente do Partido, ele tinha muita dificuldade em coexistir com outras lideranças que estavam emergindo. Os que começavam a fazer-lhe sombra, em pouco tempo, ele os eliminava. Expulsava essas lideranças. Por isso ele perdeu pessoas importantes, como Dante de Oliveira, Jaime Lerner, Sereno Chaise, e pessoas do Rio de Janeiro. Tudo por causa de uma atitude caudilhesca. Mas, apesar destas limitações, prevaleceram nele os aspectos positivos. Pessoalmente, admirava Brizola como prefeito de Porto Alegre e Governador do Estado. Distanciei-me mais dele depois que foi para o Rio de Janeiro e ingressou na política nacional. Aí passei a divergir de certas posturas exageradas que passou a assumir. Mas como prefeito e, sobretudo, Publicamos o depoimento do Dr. José Odelso Schneider, do PPG de Ciências Sociais da Unisinos, sobre Leonel de Moura Brizola. Impressionado com as massivas manifestações populares por ocasião da perda do importante político, José Odelso lembra seus feitos no decorrer da trajetória de quase 60 anos de vida pública. Todo mundo verificou que Brizola, como pessoa e figura política, marcou o coração do povo. Todas aquelas manifestações durante o velório, mais de 200 mil pessoas no Rio de Janeiro e mais de 50 mil pessoas aqui no Rio Grande do Sul, tentando dar o último adeus a ele, evidenciaram isso. Durante toda a vida dele, esses longos anos de vida pública, sempre manifestou ser uma pessoa coerente com seus princípios e seus ideais, coerente com a visão que tinha de lutar por causas nobres, causas patrióticas. Foi um político que primou na luta por causas e não por interesses. Nisso ele foi um lutador, um homem corajoso que conseguiu iniciar sozinho, em Porto Alegre, a Campanha da Legalidade, que em 1961, com a renúncia do Presidente Jânio Quadros, iniciou a resistência contra um golpe militar, assegurando a ascensão ao poder presidencial de João Goulart. Todo mundo, no começo, estava contra. Essa atitude de honestidade e integridade ele manifestou durante toda a sua vida. Por maior que fosse o cerco e o assédio cerrado que a Rede Globo fez contra ele durante os oito anos em que foi Governador do Rio de Janeiro, nunca conseguiu surpreendê-lo com “a mão no pote”. Só isso já é um grande elogio para sua vida pública. Ultimamente ele era acusado de anacrônico, por causa da grande e constante preocupação que tinha em construir uma economia e uma sociedade realmente nacional. Nesse sentido, ele era pa87 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO ca, e a Refinaria Alberto Pasqualini, que hoje é de tanta relevância no processamento dos derivados do petróleo aqui no Rio Grande do Sul. Ele também fundou a Companhia de Energia Elétrica do RS, resultado da desapropriação da empresa canadense Bonde and Share, empresa que depois foi parcialmente privatizada. Ele também deu grande força à criação e consolidação do Banrisul. O próprio Jardim Zoológico de Sapucaia do Sul é obra dele. Na época, foi muito criticado por isso... Por fim, Brizola deve ser recordado por ter iniciado a Reforma Agrária no Brasil, quando implantou no “Banhado do Colégio”, em Camaquã, o primeiro assentamento. Apesar de sua avançada idade, ele ainda estava participando na elaboração de um amplo projeto de alternativa nacional, que iria além do atual processo capitalista neoliberal globalizado, projeto no qual se envolvera de corpo e alma nos últimos meses. Sentiremos a lacuna deixada por Brizola como pessoa e como político, mas oxalá as idéias dele permaneçam e possam servir como importantes referenciais na construção de um novo projeto histórico e de um sistema econômico e social mais justo, eqüitativo e participante, que preserve a identidade nacional, sem fechar-se ao processo de globalização. como Governador, ele foi um homem de muita visão de futuro. As grandes obras que marcaram o Rio Grande do Sul e persistem até hoje, são da época dele. Por exemplo, as famosas “brizoletas”, as escolinhas plantadas em tantos rincões interioranos do Rio Grande do Sul, levando o ensino fundamental e público aos mais distantes povoados do interior rural, numa época em que o Estado não se sentia ainda tão responsável pela instrução pública. Em 1979, quando voltou ao Brasil, vindo por São Borja, manifestava sua alegria, ao poder divisar do avião (que voava baixo), as “brizolistas” ao longo do percurso. Ele abraçou essa causa com muito carinho e deu-lhe continuidade posteriormente como Governador do Rio de Janeiro, com os Cieps, mantendo, na escola, crianças e pré-adolescentes por oito horas, com diversas atividades educativas, artísticas, esportivas, além das de cidadania. Como Governador do Rio Grande do Sul, ele também começou a construção da estrada da produção, a estrada Presidente Kennedy. Ele já previa naquela época que a região do planalto era grande produtora de grãos, que precisava de boas vias de escoamento da produção. Brizola igualmente iniciou a implantação da Aços Finos Piratini, tão necessária para nosso Estado naquela épo- 88 Vale a pena ler de novo Discurso de Brizola em 28 de agosto de 1961, convocando a Cadeia da Legalidade Aqui se encontram os contingentes que julgamos necessários, da gloriosa Brigada Militar – o Regimento Bento Gonçalves e outras forças. Reunimos aqui o armamento de que dispúnhamos. Não é muito, mas também não é pouco para aqui ficarmos preocupados frente aos acontecimentos. Queria que os meus patrícios do Rio Grande e toda a população de Porto Alegre, todos os meus conterrâneos do Brasil, todos os soldados da minha terra querida pudessem ver com seus olhos o espetáculo que se oferece. Aqui nos encontramos e falamos por esta estação de rádio, que foi requisitada para o serviço de comunicação, a fim de manter a população informada e, com isso, auxiliar a paz e a manutenção da ordem. Falamos aqui do serviço de imprensa. Estamos rodeados por jornalistas, que teimam, também, em não se retirar, pedindo armas e elementos necessários para que cada um tenha oportunidade de ser também um voluntário, em defesa da legalidade. Esta é a situação! Fatos os mais sérios quero levar ao conhecimento dos meus patrícios de todo o País, da América Latina e de todo o mundo. Primeiro: ao me sentar aqui, vindo diretamente da residência, onde me encontrava com minha família, acabava de receber a comunicação de que o ilustre General Machado Lopes, soldado do qual tenho a melhor impressão, me solicitou audiência para um entendimento. Já transmiti, aqui mesmo, antes de iniciar minha palestra, que logo a seguir receberei S. Ex.ª com muito prazer, porque a discussão e o exame dos problemas é o meio que os homens civilizados utilizam para solucionar os problemas e as crises. Mas pode ser que essa pa- “Peço a vossa atenção para as comunicações que vou fazer. Muita atenção. Atenção, povo de Porto Alegre! Atenção Rio Grande do Sul! Atenção Brasil! Atenção meus patrícios, democratas e independentes, atenção para estas minhas palavras! Em primeiro lugar, nenhuma escola deve funcionar em Porto Alegre. Fechem todas as escolas. Se alguma estiver aberta, fechem e mandem as crianças para junto de seus pais. Tudo em ordem. Tudo em calma. Tudo com serenidade e frieza. Mas mandem as crianças para casa. Quanto ao trabalho, é uma iniciativa que cada um deve tomar, de acordo com o que julgar conveniente. Quanto às repartições públicas estaduais, nada há de anormal. Os serviços públicos terão o seu início normal, e os funcionários devem comparecer como habitualmente, muito embora o Estado tolerará qualquer falta que, porventura, se verificar no dia de hoje. Hoje, nesta minha alocução, tenho os fatos mais graves a revelar. O Palácio Piratini, meus patrícios, está aqui transformado em uma cidadela, que há de ser heróica, uma cidadela da liberdade, dos direitos humanos, uma cidadela da civilização, da ordem jurídica, uma cidadela contra a violência, contra o absolutismo, contra os atos dos senhores, dos prepotentes. No Palácio Piratini, além da minha família e de alguns servidores civis e militares do meu gabinete, há um número bastante apreciável, mas apenas daqueles que nós julgamos indispensáveis ao funcionamento dos serviços da sede do Governo. Mas todos os que aqui se encontram estão de livre e espontânea vontade, como também grande número de amigos que aqui passou a noite conosco e retirou-se, hoje, por nossa imposição. 89 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO lestra não signifique uma simples visita de amigo. Que essa palestra não seja uma aliança entre o poder militar e o poder civil, para a defesa da ordem constitucional, do direito e da paz como se impõe neste momento, como defesa do povo, dos que trabalham e dos que produzem, dos estudantes e dos professores, dos juízes e dos agricultores, da família. Todos, até as nossas crianças desejam que o poder militar e o poder civil se identifiquem nesta hora para vivermos na legalidade. Pode significar, também, uma comunicação ao Governo do Estado da sua deposição. Quero vos dizer que será possível que eu não tenha oportunidade de falar-vos mais, que eu nem deste serviço possa me dirigir mais, comunicando esclarecimentos à população. Porque é natural que, se ocorrer a eventualidade do ultimato, ocorrerão, também, conseqüências muito sérias, porque nós não nos submeteremos a nenhum golpe, a nenhuma resolução arbitrária. Não pretendemos nos submeter. Que nos esmaguem! Que nos destruam! Que nos chacinem, neste Palácio! Chacinado estará o Brasil com a imposição de uma ditadura contra a vontade de seu povo. Esta rádio será silenciada tanto aqui como nos transmissores. O certo, porém, é que não será silenciada sem balas. Tanto aqui como nos transmissores estamos guardados por fortes contingentes da Brigada Militar. Assim, meus amigos, meus conterrâneos e patrícios ficarão sabendo por que esta rádio silenciou. Foi porque ela foi atingida pela destruição e porque isso ocorreu contra a nossa vontade. E quero vos dizer por que penso que chegamos a viver horas decisivas. Muita atenção, meus conterrâneos, para esta comunicação. Ontem à noite o Sr. Ministro da Guerra, Marechal Odílio Denys, soldado no fim de sua carreira, com mais de 70 anos de idade, e que está adotando decisões das mais graves, as mais desatinadas, declarou através do “Repórter Esso” que não concorda com a posse do Sr. João Goulart, que não concorda que o Presidente constitucional do Brasil exerça suas funções legais! Porque, diz ele numa argumentação pueril e inaceitável, isso significa uma opção entre comunismo ou não. Isso é pueril, meus conterrâneos! Isso é pue- ril, meus patrícios! Não nos encontramos nesse dilema. Que vão essas ou aquelas doutrinas para onde quiserem. Não nos encontramos entre uma submissão à União Soviética ou aos Estados Unidos. Tenho uma posição inequívoca sobre isso. Mas tenho aquilo que falta a muitos anticomunistas exaltados deste país, que é a coragem de dizer que os Estados Unidos da América, protegendo seus monopólios e trustes, vão espoliando e explorando esta Nação sofrida e miserabilizada. Penso com independência. Não penso ao lado dos russos ou dos americanos. Penso pelo Brasil e pela República. Queremos um Brasil forte e independente. Não um Brasil escravo dos militaristas e dos trustes e monopólios norte-americanos. Nada temos com os russos. Mas nada temos também com os americanos, que espoliam e mantêm nossa Pátria na pobreza, no analfabetismo e na miséria. Esses que muito elogiam a estratégia norte-americana querem submeter nosso povo a esse processo de esmagamento. Mas isso foi dito pelo Ministro da Guerra. Isso quer dizer que S. Ex.ª tomará todas as medidas contra o Rio Grande. Estou informado de que todos os aeroportos do Brasil, onde pousam aviões internacionais de grande porte, estão guarnecidos e com ordem de prender o Sr. João Goulart no momento da descida. Há pouco falei, pelo telefone, com o Sr. João Goulart, em Paris, e disse a ele que todas as nossas palestras de ontem foram censuradas. Tenho provas. Censuradas nos seus efeitos, mas a rigor. A companhia norte-americana dos telefones deve ter gravado e transmitido os termos de nossas conversas para essas forças de segurança. Hoje eu disse ao Sr. João Goulart: “Decide de acordo com o que julgares conveniente. Ou deves voar, como eu aconselho, para Brasília, ou para um ponto qualquer da América Latina. A decisão é tua! Deves vir diretamente a Brasília, correr o risco e pagar para ver. Vem. Toma um dos teus filhos nos braços. Desce sem revólver na cintura, como um homem civilizado. Vem como para um país culto e politizado como é o Brasil e não como se viesse para uma republiqueta, onde dominam os caudilhos, as oligarquias que se consideram todo-poderosas. Voa para o Uruguai, então, essa cidadela 90 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO Desde ontem, organizamos um serviço de captação de notícias por todo o território nacional. É uma rede de radioamadores, num serviço organizado. Passamos a captar, aqui, as mensagens trocadas, mesmo em código e por teletipos, entre o III Exército e o Ministério da Guerra. As mais graves revelações quero vos transmitir. Ontem, por exemplo – vou ler rapidamente, porque talvez isso provoque a destruição desta rádio – o Ministro da Guerra considerava que a preservação da ordem “só interessa ao Governador Brizola”. Então, o Exército é agente da desordem, soldados do Brasil?! É outra prova da loucura! Diz o texto: “É necessário a firmeza do III Exército para que não cresça a força do inimigo potencial”. Eu sou inimigo, meus conterrâneos?! Estou sendo considerado inimigo, meus patrícios, quando só o que queremos é ordem e paz. Assim como esta, uma série de outras rádios foi captada até no Estado do Paraná, e aqui as recebemos por telefone, de toda a parte. Mais de cem pessoas telefonaram e confirmaram. Vejam o que diz o General Orlando Geisel, de ordem do Marechal Odílio Denys, ao III Exército: “Deve o Comandante do III Exército impedir a ação que vem desenvolvendo o Governador Brizola”; “deve promover o deslocamento de tropas e outras medidas que tratam de restituir o respeito ao Exército”; “o III Exército deve agir com a máxima urgência e presteza”; “faça convergir contra Porto Alegre toda a tropa do Rio Grande do Sul que julgar conveniente”; “a Aeronáutica deve realizar o bombardeio, se for necessário”; “está a caminho do Rio Grande uma força-tarefa da Marinha de Guerra”, e “mande dizer qual o reforço de que precisa”. Diz mais o General Geisel: “Insisto que a gravidade da situação nacional decorre, ainda, da situação do Rio Grande do Sul, por não terem, ainda, sido cumpridas as ordens enviadas para coibir ação do Governador Brizola”. Era isso, meus conterrâneos. Estamos aqui prestes a sofrer a destruição. Devem convergir sobre nós forças militares para nos destruir, segundo determinação do Ministro da Guerra. Mas tenho confiança no cumprimento do dever dos soldados, oficiais e sargentos, especialmente do General Machado Lopes, que, esperamos, não decep- da liberdade, aqui pertinho de nós, e aqui traça os teus planos, como julgares conveniente”. Vejam, meus conterrâneos, se não é loucura a decisão do Ministro da Guerra. Vejam, soldados do Brasil, soldados do III Exército! Comandante, General Machado Lopes! Oficiais, sargentos e praças do III Exército, guardiões da ordem da nossa Pátria. Vejam se não é loucura. Esse homem está doente! Esse homem está sofrendo de arteriosclerose ou outra coisa. A atitude do Marechal Odílio Denys é uma atitude contra o sentimento da Nação. Contra os estudantes e intelectuais, contra o povo, contra os trabalhadores, contra os professores, juízes, contra a Igreja. Ainda há pouco, conversando com S. Ex.ª Revma., Arcebispo D. Vicente Scherer, recebi a comunicação de que todos os cardeais do Brasil haviam decidido lançar proclamação pela paz, pela ordem legal, pela posse a quem constitucionalmente cabe governar o Brasil, pelo voto legítimo de seu povo. Essa proclamação está em curso pelo País. As igrejas protestantes, todas as seitas religiosas clamam por paz, pela ordem legal. Não é a ordem do cemitério ou a ordem dos bandidos. Queremos ordem civilizada, ordem jurídica, a ordem do respeito humano. É isso. Vejam se não é desatino. Vejam se não é loucura o que vão fazer. Podem nos esmagar, num dado momento. Jogarão o País no caos. Ninguém os respeitará. Ninguém terá confiança nessa autoridade que será imposta, delegada de uma ditadura. Ninguém impedirá que este país, por todos os seus meios, se levante lutando pelo poder. Nas cidades do interior, surgirão as guerrilhas para defesa da honra e da dignidade, contra o que um louco e desatinado está querendo impor à família brasileira. Mas confio, ainda, que um homem como o General Machado Lopes, que é soldado, um homem que vive de seus deveres, como centenas, milhares de oficiais do Exército, como esta sargentada humilde, sabe que isso é uma loucura e um desatino e que cumpre salvar nossa Pátria. Tenho motivos para vos falar desta forma, vivendo a emoção deste momento, que talvez seja, para mim, a última oportunidade de me dirigir aos meus conterrâneos. Não aceitarei qualquer imposição. 91 CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO sistiremos até o fim. A morte é melhor do que vida sem honra, sem dignidade e sem glória. Aqui ficaremos até o fim. Podem atirar. Que decolem os jatos! Que atirem os armamentos que tiverem comprado à custa da fome e do sacrifício do povo! Joguem essas armas contra este povo. Já fomos dominados pelos trustes e monopólios norte-americanos. Estaremos aqui para morrer, se necessário. Um dia, nossos filhos e irmãos farão a independência do nosso povo! Um abraço, meu povo querido! Se não puder falar mais, será porque não me foi possível! Todos sabem o que estou fazendo! Adeus, meu Rio Grande querido! Pode ser este, realmente, o nosso adeus! Mas aqui estaremos para cumprir o nosso dever”. cionará a opinião gaúcha. Assuma, aqui, o papel histórico que lhe cabe. Imponha ordem neste país. Que não se intimide ante os atos de banditismo e vandalismo, ante esse crime contra a população civil, contra as autoridades. É uma loucura. Povo de Porto Alegre, meus amigos do Rio Grande do Sul, não desejo sacrificar ninguém, mas venham para a frente deste Palácio, numa demonstração de protesto contra essa loucura e esse desatino. Venham, e se eles quiserem cometer essa chacina, retirem-se, mas eu não me retirarei e aqui ficarei até o fim. Poderei ser esmagado. Poderei ser destruído. Poderei ser morto. Eu, a minha esposa e muitos amigos civis e militares do Rio Grande do Sul. Não importa. Ficará o nosso protesto, lavando a honra desta Nação. Aqui re- 92