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Trabalho Hegel - Ceticismo

Guilherme Gomes da Silva, nº USP 8046020 ANÁLISE E COMENTE O SEGUINTE TRECHO: "como os extremos se tocam, novamente tem-se alcançado a seu lado o grande objetivo nesses tempos felizes, em que dogmatismo e ceticismo coincidem-se um com o outro na parte inferior e em que ambos apertam as mãos da amizade e fraternidade. O ceticismo schulziano une-se com o mais bruto dogmatismo."

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas História da Filosofia Moderna IV Professor Doutor Eduardo Brandão Guilherme Gomes da Silva, nº USP 8046020 Análise e comente o seguinte trecho: “como os extremos se tocam, novamente tem-se alcançado a seu lado o grande objetivo nesses tempos felizes, em que dogmatismo e ceticismo coincidem-se um com o outro na parte inferior e em que ambos apertam as mãos da amizade e fraternidade. O ceticismo schulziano une-se com o mais bruto dogmatismo.” O objetivo de Hegel no texto “A relação do ceticismo com a filosofia” é criticar o ceticismo moderno expressado por G. E. Schulze e analisar a relação existente entre os vários tipos de ceticismo com a filosofia. E, a partir dessa análise, Hegel concluirá que a filosofia de Schulze não se tratava de um verdadeiro ceticismo; na verdade, ela seria um puro dogmatismo. Para compreensão desse raciocínio, é necessário entender, primeiro, o modo como se estrutura o ceticismo schulziano. De início, é importante destacar que a elaboração cética restringe-se à filosofia teórica (com exclusão da estética e da filosofia prática), entendendo-a como a “ciência das causas supremas e mais incondicionadas de todo condicionado, de cuja realidade efetiva temos ao menos certeza.” “[…] die theoretische Philosophie ist die Wissenschaft der obersten und unbedingtesten Ursachen alles Bedingten, von dessen Wirklichkeit wir sonst Gewißheit haben” - cf. HEGEL, G.W.F. Werke II: Jenaer Schriften. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1970, p. 219; trad. espanhola p. 57. Essas causas supremas e mais incondicionadas (ou o racional – das Vernünfitge), por sua vez, são conceituadas por Schulze como sendo uma coisa (Dinge), que se encontra fora da nossa consciência (Bewusstsein), ou ainda algo existente (Existierendes) e contraposto (Entgegengesetztes) a ela. Ao conhecimento racional, portanto, caberia nada mais do que a obtenção de um conhecimento de coisas (Sachen) que estariam atrás das silhuetas das coisas (Schattenrissen von Dingen). cf. HEGEL, Werke II, cit., p. 219; trad. espanhola p. 58. Haveria, dessa forma, um lado positivo do ceticismo schulziano, que se contraporá a essa tentativa da filosofia teórica de buscar um conhecimento para além da consciência. Para Schulze, o ceticismo seria descrito como uma filosofia que não a sobrepassa; na verdade, o saber cético tem a sua existência dentro do escopo da consciência, de tal como que aquilo que nela se encontra passa a ter uma certeza inegável (unleugbare Gewissheit). Afinal, aquilo que é presente à consciência não pode ser objeto de dúvida através dela. Essa certeza inicial no ceticismo schulziano, assim, terá o nome de fato da consciência (Tatsache des Bewusstsein) e o que está, além disso, será objeto da dúvida cética. cf. HEGEL, Werke II, cit., p. 220; trad. espanhola pp. 58-59. O lado negativo do ceticismo schulziano, por sua vez, relaciona-se com aquilo que não está no escopo da consciência e que consistiria em juízos peculiares da filosofia, quais sejam, aqueles que determinam os fundamentos absolutos ou, pelo menos, os suprassensíveis. Com isso, esse ceticismo moderno sustentará que não se pode saber nada dos fundamentos presentes fora da consciência ou dos fundamentos do ser das coisas que não são dadas a ela em sua existência ou ainda de coisas que existem fora das coisas existentes. Por isso, e de forma diversa do que ocorre no ceticismo antigo, a experiência (Erfahrung), as sensações externas (äußeren Empfindungen) e as ciências (com exceção da filosofia) não podem ser objeto de dúvida no ceticismo moderno. cf. HEGEL, Werke II, cit., p. 223; trad. espanhola pp. 60-61. Entretanto, a partir dessas considerações, Hegel verá alguns equívocos na interpretação de Schulze, mormente quanto à compreensão dele sobre o ceticismo antigo e que fez esse último conceber o ceticismo moderno como mais bem evoluído. O primeiro deles trata-se de uma compreensão errada do modo como o ceticismo antigo relacionava-se com o conhecimento da vida prática. Schulze entendia que os céticos antigos admitiam um conhecimento através dos sentidos e de uma convicção por meio deles sobre a existência de certas propriedades de coisas subsistentes por si mesmas. Assim, nessa interpretação schulziana, o ceticismo antigo faria uma asserção objetiva sobre aquilo que aparece (das Erscheinende) na vida prática (como aquelas necessidades que não podemos evitar – ter fome, sede, frio etc.). cf. HEGEL, Werke II, cit., p. 224; trad. espanhola p. 61. O equívoco aqui, segundo Barrére, é a incompreensão sobre o termo grego fenômeno a partir da suspensão de juízo cética. Era por meio desse termo que surgia a possibilidade de uma parte positiva do ceticismo, evitando-o de conduzir a uma pura inação (ataxaria). Com efeito, o ceticismo antigo (a partir de Sexto Empírico) entendia que não podemos deixar de dar assentimento daquilo que nos aparece: logo, ao provar o mel, não podemos deixar de dizer sobre o seu gosto doce. O que o cético antigo não fazia, porém, é dogmatizar essa experiência da vida cotidiana, ou seja, buscar afirmar de maneira geral que o mel é realmente doce. A investigação cética, na verdade, era justamente sobre aquilo que se diz dogmaticamente do fenômeno – a suspensão do juízo, porém, não atinge aquilo que nos aparece. O fenômeno, por conseguinte, não é investigável, pois não posso evitar ter fome, sentir frio e sede, por se tratar de necessidades da vida cotidiana que todo ser humano tem. Cf. “Alguns aspectos da compreensão hegeliana do ceticismo antigo a partir da crítica ao ceticismo de Gottlob Ernst Schulze”. In: Dois Pontos, Curitiba, São Carlos, Vol. 4, n° 2, outubro/2007, pp. 225-229. Além disso, Hegel afirma que Schulze tinha uma visão grosseira do ceticismo antigo quanto à percepção sensível em sua disputa com os dogmáticos. Enquanto esse ceticismo qualificava toda percepção como mera aparência (Shein) no lugar de dar-lhe uma certeza inegável (podendo, assim, afirmar o contrário do que havia sido afirmado de um objeto segundo sua aparência); Schulze afirmara que as sensações, já nos tempos inicias da filosofia especulativa, eram tidas pelos dogmáticos como fenômeno (Erscheinung), ao qual se deveria incluir uma concordância com aquilo que deveria ser encontrado atrás deles como coisa propriamente dita (eigentliche Sache); e que o conhecimento através das sensações seria tido pelos dogmáticos como uma ciência dos objetos escondidos atrás delas. Nessa concepção de filosofia, a (infundada) interpretação schulziana consistia em dizer que o ceticismo antigo atacava não a percepção sensível, mas sim coisas colocadas atrás e abaixo delas pelos dogmáticos. Contudo, segundo Hegel, “quando o cético dizia que o mel era tão amargo quanto doce e tão pouco amargo quanto doce, não dizia aqui nada sobre uma coisa colocada atrás do mel.” Werke II, cit., pp. 224-225; trad. espanhola p. 62. Em verdade, Schulze não compreendeu corretamente o ceticismo antigo, assim como faltou a ele conhecer uma relação do ceticismo com a filosofia e que não caísse em dogmatismo: “o essencial para o conhecimento do ceticismo, desta relação mesma com a filosofia, não com o dogmatismo, o conhecimento de uma filosofia que não fosse dogmatismo, em geral o conceito mesmo de filosofia, isso faltou ao Sr. Schulze.” cf. HEGEL, Werke II, cit., p. 227; trad. espanhola p. 64. Nesse contexto, entra em cena a discussão sobre o verdadeiro ceticismo antigo, em contraposição ao ceticismo moderno e, somado a isso, Hegel acrescentará outra limitação no pensamento de Schulze, qual seja, a de ele ter ficado preso aos limites de uma filosofia do entendimento. Com efeito, Hegel enxergará no ceticismo platônico uma tentativa não de duvidar das verdades do entendimento (Verstand), mas sim, de negar totalmente a possibilidade de verdade de tal conhecimento. Trata-se aqui de um lado negativo do conhecimento do absoluto, o que, por sua vez, pressuporia a razão (Vernunft) como seu lado positivo. Esse tipo de ceticismo estaria, por sua vez, presente de maneira explícita já em Parmênides e, de maneira implícita, em todo sistema filosófico, na medida em que esse seria o lado livre de toda a filosofia: ou seja, a razão seria aquele lado livre em que seria possível trabalhar com as contradições existentes no entendimento. O princípio da contradição, para a razão, por conseguinte, teria para ela apenas uma validade formal. cf. HEGEL, Werke II, cit., pp. 225-229; trad. espanhola pp. 63-67. Na filosofia de Hegel, o absoluto seria possível somente através da razão, que teria a capacidade de lidar com as oposições tipicamente pertencentes ao entendimento. Quanto a isso, por um lado, que essas cisões (que, no fundo, têm sua origem na razão) são próprias do entendimento e, de certa maneira, elas são necessárias à vida prática do ser humano. Por outro lado, a cisão é a própria necessidade (Bedürfnis) da filosofia, porque o entendimento imita a razão, passando-se por ela e, no final, essa cisão acaba ganhando autonomia da sua origem, tornando fixada (absolutizada) em um dos seus lados da oposição – o que, no fundo, por consequência, implicará a impossibilidade de obtenção de um conhecimento racional. Nesse sentido, nas palavras de Hegel: O entendimento imita a razão no pôr absoluto e, por meio desta mesma forma, dá a si mesmo a aparência de razão, embora as coisas postas sejam em si mesmas opostas e, portanto, finitas, e fá-lo com tanto maior aparência quando transforma e fixa num produto o negar racional. O infinito, na medida em que é oposto ao finito, é um racional posto pelo entendimento; exprime para si mesmo, como racional, apenas a negação do finito. Na medida em que o entendimento fixa o infinito, opõe-se absolutamente ao finito, e a reflexão, que se tinha elevado à razão, ao suprimir o finito rebaixou-se de novo ao plano do entendimento, na medida em que fixou o agir da razão na oposição. […] Suprimir tais opostos tornados fixados é o único interesse da razão. Este seu interesse não significa que ela se coloque em geram contra as oposições e as limitações […]. Mas a razão coloca-se contra a fixação absoluta da cisão por meio do entendimento, e isto tanto mais quanto os próprios termos absolutamente opostos tiverem origem na razão. Diferença entre os sistemas filosóficos de Fichte e Schelling. Tradução, introdução e notas de Carlos Morujão. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa/Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003, pp. 37/38. Sendo assim, tendo em vista essa crítica em relação à absolutização das oposições próprias do entendimento e retornando à Schulze, fica evidente que o pensamento dele não se passava de uma filosofia do entendimento, pois, como visto anteriormente, há a defesa de um dos lados da oposição. Isso se deve ao fato de a filosofia de Schulze ser tributária (vulgarmente) da distinção kantiana entre fenômeno e coisa em si. Em Kant, de maneira geral, essa distinção seria relevante para limitar o conhecimento teórico (submetido às leis da causalidade e ao alcance da experiência sensível) e possibilitar a representação da liberdade. Em Schulze, como a suspensão do juízo é seletiva, seu ceticismo consistirá na afirmação daquilo que está dentro do escopo da consciência (aquilo que, de certa maneira, poderia representar o fenômeno na filosofia dele), de modo que a dúvida cética estaria restrita ao campo da coisa em si (àquilo que estaria fora da consciência). Nessa situação, em resumo, enquanto Hegel enxergava no ceticismo acadêmico uma relação produtiva com a filosofia, Schulze teria desenvolvido uma forma bem rudimentar de ceticismo que, na realidade, não passava de um bruto dogmatismo a partir da afirmação absoluta da certeza inegável dos fatos da consciência. Bibliografia BARRÉRE. “Alguns aspectos da compreensão hegeliana do ceticismo antigo a partir da crítica ao ceticismo de Gottlob Ernst Schulze”. In: Dois Pontos, Curitiba, São Carlos, Vol. 4, n° 2, outubro/2007. HEGEL, G.W.F. Werke II: Jenaer Schriften. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1970. ______________. Diferença entre os sistemas filosóficos de Fichte e Schelling. Tradução, introdução e notas de Carlos Morujão. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa/Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003. ______________. Reláción del scepticismo con la filosofía. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 2006. 1