DIÁLOGO
http://revistas.unilasalle.edu.br/index.php/Dialogo
Canoas, n. 42, 2019
http://dx.doi.org/10.18316/dialogo.v0i42.5890
Stan Lee e o legado do Capitão América
Bruno Leonardo Ramos Andreotti1
Adriano Jose Marangoni2
Resumo: O Capitão América foi criado em 1941 por Joe Simon e Jack Kirby. No entanto, Stan Lee desempenha um
papel fundamental para a relevância e permanência do personagem. O artigo busca expor as contribuições de Stan
Lee para o legado do Capitão América, articulando-as com elementos de sua biogra a e história dos Estados Unidos.
Palavras-chave: Stan Lee; Capitão América; Histórias em Quadrinhos.
Stan Lee and the legacy of Captain America
Abstract: Captain America was created in 1941 by Joe Simon and Jack Kirby. However, Stan Lee plays a key role
for the relevance and permanence of the character. e article seeks to expose Stan Lee’s contributions to Captain
America’s legacy, articulating them with elements of his biography and history of the United States.
Keywords: Stan Lee; Captain America; Comic Books.
Introdução
O Capitão América teve sua primeira aparição em 1941, criado pela dupla Joe Simon e Jack Kirby.
Steve Rogers não foi o primeiro super-herói com motivos patrióticos. O título cabe ao personagem e
Shield, cuja primeira aparição data do início de 1940. Curiosamente o personagem também adquire seus
poderes por meio de um experimento cientí co. E se o Capitão não foi o primeiro, certamente não foi o
último. No rol do que podemos chamar de super-heróis patrióticos podemos citar Captain Battle (de 1941,
veterano da Primeira Guerra Mundial), Fighting Yank (também de 1941, cuja família carrega uma missão
desde a época da Guerra da Independência), Miss Victory (de 1941, considerada a primeira super-heróina
com motivos patrióticos) e tantos outros.
Tanto e Shield quanto Capitão América foram criados antes da entrada das forças armadas
americanas na Segunda Guerra Mundial, o que mostra que a ação militar na guerra já estava presente
no imaginário da época, e sua concretização explica não só a proliferação de super-heróis com motivos
patrióticos no período como também a transformação de outros super-heróis em patriotas, caso também
do Superman (ANDREOTTI; MARANGONI; ZANOLINI, 2017, p. 32). No entanto, se a entrada dos
1
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Doutorando no Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) com
bolsa CAPES.
Doutor em História pela PUC-SP. Durante o doutorado, com bolsa do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior
(PDSE) da CAPES, foi fellow do Center for Latin American and Latino Studies (CLALS) da American University em
Washington, D.C
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Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial explica a popularidade desse tipo especí co de super-herói
à época, se o talento de Joe Simon e originalidade do traço de Jack Kirby explicam a popularidade do
Capitão no período, o mesmo não acontece com a permanência de um personagem que tem sua origem
tão ancorada em um contexto especí co. Portanto, o que fez o Capitão América prevalecer em evidência
na cultura americana, dentro de tantos outros personagens com os mesmos motivos?
Talvez a resposta seja Stan Lee.
Mesmo não sendo seu criador, a ligação de Lee com o personagem é antiga. Stanley Martin
Lieber fez sua estreia no mundo dos quadrinhos com uma história de duas páginas com o Capitão
América publicada em Captain America n. 3 (1941) sob pseudônimo de Stan Lee, e não queria que seu
nome ficasse conhecido como um escritor de histórias em quadrinhos, uma vez que sua ambição (na
época com apenas 18 anos) era escrever uma “Great American Novel”, jargão que expressa qualidade
literária com características do período em que foi escrita na tradição americana. Mas se Lee não
alcançou sua ambição juvenil por meio de um livro, não seria exagero afirmar que os quadrinhos a
realizaram, afinal os quadrinhos de super-heróis, dada sua longevidade, são uma expressão ímpar do
zeitgeist de uma época, com as criações de Lee, Kirby e Ditko marcando de maneira indelével a Era
de Prata (1956-1970) dos quadrinhos de super-heróis (ANDREOTTI; MARANGONI; ZANOLINI,
2017, p. 38-43).
Durante a chamada Era de Ouro (1938-1950) (Op. cit. p. 27), Lee havia sido contratado por Martin
Goodman (casado com a irmã de uma prima de Lee) como um assistente da Timely Comics, futura Marvel
Comics, em 1939, então com apenas 17 anos. Em 1941 Lee clamava por uma promoção e Sean Howe
narrou o episódio:
Enquanto Kirby cantarolava, produzindo páginas e páginas em meio à fumaça dos charutos, Stanley
esvaziava os cinzeiros, varria o chão, buscava café e apagava marcas de lápis das páginas arte- nalizadas.
Às vezes fazia o copidesque e, em muitas ocasiões, para desespero dos colegas mais velhos, rompia o
silêncio tocando sua ocarina. “Jack cava na mesa, debaixo do charutão”, lembraria anos depois. “Joe se
levantava, também de charutão, e perguntava pro Jack ‘Está tudo bem? Quer mais tinta? Seu pincel está
bom? O lápis está legal’ Aí Joe vinha e berrava alguma coisa comigo, e assim passavam os dias”.
Passados um ou dois meses, Simon deu uma chance a Stanley. Ou melhor, algo para ele se manter ocupado.
Para quali car-se à taxa econômica dos correios, a revista precisava ter textos. Então Stanley teria de
escrever um conto do Capitão América a ser acompanhado de duas ilustrações [assinadas por Joe Simon
e Jack Kirby]. Ele entregou 26 parágrafos toscos, com o título “Capitão América desbarata a vingança do
traidor” (HOWE, 2013, p. 29-30).
Ainda que Howe adjetive os parágrafos escritos por Lee como “toscos” já é possível notar na história
ao menos uma das características que marcariam o estilo de Lee como roteirista e, por consequência, as
histórias da Marvel como um todo: o desenvolvimento interno dos personagens, como destacado por
Tucker: “Os gibis de super-heróis da Marvel foram escritos de dentro para fora, com foco na caracterização,
emoção e na turbulência interna dos heróis” (TUCKER, 2017, p. 26).
Em uma história curta e centrada essencialmente na ação (característica do gênero), Lee marca seu
estilo em um diálogo entre Steve Rogers e seu parceiro mirim Bucky, destacando um momento da relação
de amizade entre os dois:
Depois naquela tarde, Steve Rogers estava sentado em sua tenda jogando damas com seu jovem parceiro
Bucky, o mascote do acampamento. Bucky parecia desapontado.
“Puxa, Steve” lamentou Bucky, “você NUNCA perde um jogo? Eu esqueci qual a sensação de ganhar”
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Steve sorriu alegremente. “Vou te dizer uma coisa, garoto: sugiro que você pegue um livro emprestado
sobre ‘como jogar damas’ e o leia. Isso me daria um tempo para descansar. Você não sabe o quanto me
cansa te vencer toda hora”.
Steve moveu-se a tempo de esquivar-se do travesseiro arremessado por Bucky. “Seu pestinha” ele sorriu.
“Vou acabar com você”.
“Ah vai, seu perdedor? Você e que exército?” Bucky pegou outro travesseiro (Captain America n. 3, 1941).
Apesar de ter desfrutado de certa popularidade durante a Era de Ouro, com o nal da Segunda Guerra
Mundial, o interesse do público por super-heróis passou por um declínio considerável (ANDREOTTI;
MARANGONI; ZANOLINI, 2017, p. 36-37). O título Captain America foi publicado até a edição 73
(1949), rebatizado de Captain America Weird Tales, para tentar capitanear o interesse crescente do público
por histórias de terror e mistério que seria uma tendência da época, mas sem sucesso. Após a mudança, o
quadrinho durou apenas dois números sendo nalmente cancelado em 1950.
Algumas tentativas de ressuscitar o personagem foram feitas ao longo dos anos, mas sem sucesso.
A mais digna de nota são as três edições de Captain America: Commie Smasher (Capitão América:
Esmagador de Comunistas) publicadas 1954. Em Strange Tales n. 114 (1963) o personagem ressurge em
uma história do Tocha Humana com Stan Lee já creditado como editor/escritor e Jack Kirby nos desenhos.
No quadrinho, o Tocha Humana encontra o Capitão América, que ao nal revela-se o vilão conhecido
como Acrobata. No entanto, Lee anuncia ao nal da história: “Você adivinhou! Essa história era um teste!
Para ver se você também gostaria que o Capitão América retornasse! Como sempre, suas cartas nos darão a
resposta!” (Strange Tales n. 114, 1963).
Com o retorno de nitivo do personagem em Avengers #3 (1964) é possível inferir a vontade do
público em ver o herói patriótico da Era de Ouro de volta. Já na capa da edição havia um aviso de que “O
Capitão América vive novamente”, um cuidado especial de Stan Lee para com seus leitores éis, avisandoos de que agora o retorno seria verdadeiro. Isso marca outra de suas características, tanto como roteirista
quanto como editor: a comunicação direta com o leitor. Na primeira página da edição “gloriosamente”
escrita por Stan Lee e “soberbamente desenhada” por Jack Kirby:
Uma história destinada a se tornar um épico da Era Marvel dos quadrinhos! Trazendo para vocês o grande
super-herói que tanto pediram em suas cartas. (...) A Marvel Comics Group tem o orgulho de anunciar que Jack
Kirby desenhou o Capitão América durante a Era de Ouro dos quadrinhos... E agora desenhará novamente!
E também que a primeira história por Stan Lee naqueles dias lendários foi do Capitão América e agora ele
o escreverá novamente. Um novo clássico dos quadrinhos acaba de nascer! Nota do editor: sugerimos que
veementemente que você guarde esta edição. Prometemos que não vai se arrepender (Avengers n. 3, 2015).
Parte da estratégia de comunicação de Lee com seu leitor é fazê-lo sentir-se parte de algo maior,
como vemos acima. Ele ressalta que aquela não era uma edição comum, mas sim um momento histórico,
destinado a “tornar-se um épico da Era Marvel dos quadrinhos”. Também avisa aos leitores menos
familiarizados com a história das histórias em quadrinhos que aquele também era um momento histórico
por ser uma retomada da Era de Ouro, aconselhando: guarde essa edição. Essa comunicação direta que
tinha como objetivo fazer o leitor parte de algo maior seria apurada com a criação da seção Bullpen Bulletins
em 1965:
Stan Lee dirigia-se ao público da Marvel de forma coloquial e entusiasmada nas páginas nais das revistas.
Os leitores sentiam que faziam parte de um clubinho fechado. Embora grande parte das histórias fosse
produzida no silêncio da casa dos freelancers, Lee pintava a monótona sede da Marvel com o agito e
burburinho da “Casa das Ideias” Era um retorno às salas movimentadas e atulhadas de mesas que
conhecera na juventude e que agora só existiam em sua mente. (...) As colunas Bullpen Bulletins de Lee
entusiasmavam puramente pela ideia de um ambiente de trabalho” (HOWE, 2013, p. 12).
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A comunicação direta de Lee com seu público fazia tanto sucesso que a DC tentou copiá-la com a
seção Direct Currents inaugurada em 1966, mas sem sucesso (TUCKER, 2017, p. 44).
A edição que mostra o retorno do Capitão América também inicia-se com essa comunicação direta,
com uma pergunta “Lembra-se da soberba batalha entre Namor, Hulk e os Vingadores na última história?”.
A edição é destinada a tornar-se um épico, como nos disse Lee já na primeira página, mas também inserese na continuidade do Universo Marvel, outra característica que contribuiu para leitores tornarem-se fãs,
a narrativa compartilhada de seus personagens, levando à sensação de habitavam um mesmo universo
(ANDREOTTI, 2016, p. 39).
No quadrinho vemos o emblemático momento em que o bloco de gelo no qual Steve Rogers esteve
preso desde o nal da Segunda Guerra Mundial derrete-se e seu primeiro encontro com os Vingadores,
que decidem veri car se de fato é o Capitão América real enfrentando-o. Após a con rmação de trata-se
realmente do Capitão América, Steve Rogers conta como ele e Bucky tentaram impedir um “avião-robô”
repleto de explosivos de levantar voo, que culmina com a morte de seu parceiro e o Sentinela da Liberdade
preso em um bloco de gelo. Só havia um problema: Lee situou o fato “há mais de vinte anos”, portanto em
algum ponto anterior a 1944, ignorando as histórias posteriores do Capitão. Anos mais tarde Lee comentou
o problema:
Com o tempo tornou-se lógico ligar o passado de nossos heróis e vilões, especialmente porque o Capitão
América havia sido descongelado e era um elo vivo com o passado. Mas isso também signi cava que
as suas aventuras do passado como parte do nosso universo ainda em desenvolvimento. Ignorar suas
aventuras dos anos 50 abriu a porta para outro escritor, Steve Englehart, escrever um conto extraordinário
que mostrou que na verdade era outra pessoa passando-se pelo Capitão durante o período, usando a falha
na continuidade para uma saga dramática (LEE, 2011, p. 218, Tradução nossa).
A edição termina com o convite formal dos Vingadores para que o Capitão América junte-se à
equipe, que é aceito. No entanto, Lee situou o incidente
As histórias dos Vingadores “forçava Lee a diferenciar ainda mais suas personalidades e dava a
Kirby a chance de exibir sua complexa coreogra a visual equilibrando diversos personagens nos limites do
mesmo quadro” (HOWE, 2013, p. 56-57). Anos depois, Jack Kirby, o legendário co-criador de dezenas de
personagens célebres da Marvel, relembrou:
Kirby: [...] Eu achava o Stan Lee um pentelho.
TCJ: [Risos]
Kirby: Eu achava!
TCJ: O que você quer dizer com ‘pentelho’?
Kirby: Você sabe, ele era o tipo de garoto que gostava de tirar onda - abrir e fechar portas na sua cara.
Assim. Na verdade, uma vez eu falei pro Joe [Simon] jogar ele pra fora da sala.
TCJ: Porque ele era um peste?
Kirby: Sim, ele era uma peste. Stan Lee era um pestinha. Ele gostava de irritar pessoas e essa era uma coisa
que eu não tolerava. [...] Ele não era bem um editor ou nada assim. Mesmo quando era bem garoto, ele
cava saltitando por ali – acho que ele tinha uma auta e ele cava tocando a auta dele.
TCJ: O autista mágico.
Kirby: É. Ele vinha e me incomodava, e falei pro Joe botar ele pra fora. (e Comics Journal Library - Vol 1,
2002, p. 37, Tradução nossa).
Na entrevista conduzida por Gary Groth no verão de 1989 para a revista e Comics Journal, Kirby,
ofereceu um olhar mais ríspido sobre os bastidores dos trabalhos que realizava com Stan Lee a partir de
1958 e ao longo da década de 60. Por trás das amistosas mensagens de Lee estampadas nas páginas havia
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Stan Lee e o legado do Capitão América
um contraponto de sobriedade e irritação por parte de Kirby. Quem sabe, talvez, uma versão real – e bem
menos amável – da relação entre Bucky e o Capitão América.
Conforme revelou a entrevista, do ponto de vista de Kirby, a Marvel vivia maus bocados pouco
antes do lançamento de Quarteto Fantástico em 1961 e coube a ele, Kirby, um apreciador das lendas de
or e Asgard, leitor de matérias sobre mutações e energia atômica, a iniciativa de soterrar as bancas com
diversas novidades todo mês, histórias do Hulk, X-Men e Vingadores, até que essas ideias pegaram embalo.
Groth então questionou:
TCJ: Deixe-me perguntar algo que eu acho que é um ponto importante: Stan escreveu sobre a forma
que vocês trabalhavam [...]: ‘Eu dava pro Jack apenas algumas ideias gerais da história e ele desenhava a
sequência inteira quebrando as ideias com o número exato de painéis. Aí restava pra mim pegar a arte do
Jack e adicionar os balões e diálogos o que idealmente acrescentava uma dimensão de realidade a uma
caracterização precisamente delineada. ’ Assim ele disse que lhe dava um enredo e você o desenhava,
depois ele colocava balões e diálogo.
Kirby: Lembre de uma coisa: Stan Lee era um editor. Ele trabalhava das nove às cinco fazendo negócios
para Martin Goodman. Em outras palavras, ele não redigia nada no trabalho. Ele fazia os trabalhos de
Goodman. Essa era a função dele. Havia pessoas entrando no escritório o tempo todo pra reuniões. Nem
sempre eram artistas, eram pessoas de negócios. Stan Lee era a primeira pessoa que viam, e Stan Lee
decidia se os levaria para Martin Goodman. Essa era a função dele. (e Comics Journal Library - Vol 1,
2002, p. 37-38, Tradução nossa).
Importante ressaltar que na mesma entrevista Jack Kirby retrata Stan Lee de duas formas
bastante distintas usando o mesmo termo: “editor”. Quando lembrou que Lee o importunava com sua
flauta (ou ocarina) afirmou que ele não era bem um “editor”. Entende-se aqui, na acepção mais criativa
ou artística, ou seja, ele não era um colaborador dos roteiros. Mais tarde, sentindo-se insultado, Kirby
observa que Stan Lee não era nada além de um “editor”, ou seja, um homem de negócios, cujo trabalho
está ligado à gestão de uma empresa, e nada relacionado a criação, arte ou criatividade.3 As formas
com que Kirby caracteriza Stan Lee e, por oposição, falam da auto-imagem que ele tinha, podem ser
contextualizadas na perspectiva que Russel Jacoby (1990) e Richard Hofstadter (1963) descrevem
as décadas seguintes à Segunda Guerra Mundial, um contexto marcado por um significativo antiintelectualismo nos Estados Unidos.
Conforme descreve Jacoby, na década de 1950, para as gerações de intelectuais que nasceram nas
décadas de 1900 a 1930, havia dois “destinos preferenciais”: 1. os meios acadêmicos, marcados por estilos
de pesquisa, linguagem, disciplina e esforços prolongados – e frequentemente humilhantes - de produção
de trabalhos, teses ou ensaios; 2. A incorporação em instituições já estabelecidas, agências de publicidade,
propaganda ou reciclagem em novas empreitadas, poderia-se pensar, como a Marvel ou a DC. “Quando
Daniel Bell deixou a revista Fortune em 1958 por uma vida universitária, ele disse a Luce que tinha quatro
boas razões pra isso: ‘Junho, julho, agosto e setembro’’ (JACOBY, 1990, p. 27), assinalou Jacoby ao lembrar os
meses que os docentes estão em recesso nas universidades americanas.
Poderia-se perguntar: por que Stan Lee e Jack Kirby, ou melhor, Stanley Martin Lieber e Jacob
Kurtzberg, não seguiram o caminho dos intelectuais como Daniel Bell, John Kenneth Galbraith, C. Wright
Mills, e rumaram na direção da estabilidade dos meios universitários?
3
Vale lembrar as lições de Paul Ricoeur sobre a memória, sendo ela um expediente passível de censura pois limita-se a ser uma
ambição de delidade do que já se passou. Ensina o historiador, “[...] não temos nada melhor que a memória para signi car algo
que aconteceu, ocorreu, se passou antes que declarássemos nos lembrar dela. Os falsos testemunhos [...] só podem ser desmascarados
por uma instância crítica cujo único recurso é opor aos testemunhos tachados de suspeitos outros testemunhos reputados mais
con áveis. Ora, como será então demonstrado, o testemunho constitui a estrutura fundamental de transição entre a memória e a
história.” Apud RICOEUR, Paul. A memória, a história o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2008, p. 41.
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As escolas de nível superior eram pequenas e frequentemente fechadas aos radicais, aos judeus e às mulheres.
Ser um intelectual não implicava lecionar em faculdades. As re exões de 1921 de Harold Stearns sobre os jovens
intelectuais excluíam especi camente os professores. O caminho do ensino superior não era enfaticamente
rejeitado, pois nem sequer era considerado: não era uma possibilidade real. Ser um intelectual signi cava, antes
de mais nada, mudar para Nova York ou Chicago, e escrever livros e artigos (JACOBY, 1990, p. 29).
Na condição de lhos de famílias com heranças judias, portanto, cava excluída a possibilidade de
Lee e Kirby4 buscarem abrigo acadêmico. Lee, ademais, frustrava-se por não ter chegado a se tornar um
escritor de sucesso, como já mencionado, “restando” tornar-se um editor de quadrinhos. De toda forma,
talvez Lee tenha encontrado a alternativa mais viável de carreira, transitando inclusive entre pares de maior
prestígio social, dotados do senso comum dos negócios. Ao menos é este é o status que aqueles que não
eram intelectuais desfrutavam naquele momento. Conforme descreveu Hofstadter,
Quase dois anos depois o presidente Eisenhower surgiu para oferecer uma sanção o cial a uma visão
depreciativa similar dos intelectuais. Discursando numa reunião do partido Republicano em Los Angeles
em 1954, ele relatou um ponto de vista, expresso a ele por um líder sindical, que o povo, apresentado à toda
verdade, vai sempre apoiar a causa justa. Então o presidente acrescentou: ‘Na verdade foi um pensamento
reconfortante ouvir este líder sindical dizer estas palavras, quando temos tantos ditos intelectuais piadistas
andando por aí e mostrando quão errados estão todos que não concordam com eles. Aliás, eu ouvi uma
de nição de um intelectual que achei bem interessante: um homem que usa mais palavras que o necessário
para dizer mais do que ele sabe’ (HOFSTADTER, 1963, p. 10, tradução nossa).
É razoável considerar que, no contexto do início da Era de Prata, talvez Stan Lee e Jack Kirby
estivessem submetidos a alguma forma de desprestígio por conta das características da produção que,
paradoxalmente, os tornaram célebres nas décadas seguintes. Quem sabe até mesmo por alguma forma de
pressão cultural inaudita, as histórias criadas por Lee e Kirby sejam imbuídas de elementos que fortaleceram
a perenidade de seus personagens. O caso do Capitão América, perseverante e obstinado defensor de uma
concepção singular de “América”, neste sentido, é emblemático.
Em fevereiro de 1971, a edição de número 134 da revista Captain America (com roteiro de Stan Lee)
trazia uma mudança na capa com o acréscimo de “and the Falcon” no título, indicando que agora os dois
heróis eram os protagonistas das edições.
O Falcão é o alter-ego de Sam Wilson, personagem negro e que apareceu pela primeira vez na
revista do Capitão América de número 117, em 1969, criado por Stan Lee e Gene Colan. A mudança
é signi cativa. Ela já está no contexto da Era de Bronze (1970-1985), marcada pelo engajamento
social dos super-heróis e por apresentar uma maior diversidade desses personagens (ANDREOTTI;
MARANGONI; ZANOLINI, 2017, p. 47) e revela uma decisão intencional da editora em posicionar do
herói – simbolizando os Estados Unidos – ao lado de um personagem negro. Vale lembrar que o líder do
movimento negro americano Martin Luther King havia sido assassinado em abril de 1968, e que a Lei
de Direitos Civis, que garantia direitos iguais para usufruto de bens, serviços, privilégios e acomodações
e pôs m ao regime de segregação racial que era regra nos estados do Sul foi aprovada pelo Senado
americano em julho de 1964.
Ainda levaria quase 50 anos para que Sam Wilson, o primeiro super-herói negro americano
(lembramos que o Pantera Negra, criado por Stan Lee e Jack Kirby em 1966 nasceu em Wakanda) pudesse
vestir as cores da bandeira de seu próprio país e tornar-se ele próprio o Sentinela da Liberdade na série
4
Vale apontar, Jack Kirby é um dos homenageados nos acervos do Jewish Museum em Nova York. Ao lado dele estão também
artistas como Will Eisner, Harvey Kurtzman, Richard Crumb, Windsor McCay, E.C. Segar e outros. Mais informações sobre
o acervo do museu estão disponíveis em: https://thejewishmuseum.org/exhibitions/masters-of-american-comics Acesso
em: 29/06/2019.
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Stan Lee e o legado do Capitão América
Captain America: Sam Wilson (2014) com roteiros de Nick Spencer. Mas a semente já estava plantada por
Lee e Colan.
Se o Capitão América tem o potencial de canalizar uma concepção de ideais humanitários, sociais
– quem sabe até políticos – com os quais concordaríamos, quiçá esta seja uma explicação possível para a
permanência da visibilidade e sucesso que o herói possui, especialmente nestes últimos anos em que foi
fortalecido pela difusão do cinema. Mas, ainda assim, o potencial de captar ideais e expressar subjetividades
que os leitores projetam no herói seja uma resposta incompleta à questão que direciona este excurso. Outra
resposta mais clara pode ter sido expressa pelo próprio Stan Lee em uma das suas famosas seções do
Bullpen Bulletins de 1968:
Vamos dizer logo de cara. Intolerância e racismo estão entre as mais mortíferas chagas sociais que assolam
o mundo hoje. Mas, diferente de um time de supervilões fantasiados, eles não podem ser contidos com um
soco na fuça, ou um disparo de uma arma de raios. A única forma de destruí-los é expô-los – revela-los
pelo mal insidioso que eles são. O intolerante é um abominável irracional – alguém que odeia cegamente,
fanaticamente, indiscriminadamente. Se quem o desaponta é negro, ele odeia TODOS os negros. Se um
ruivo o ofendeu uma vez, ele passa a odiar todos os ruivos. Se algum estrangeiro pegou um emprego e ele
não, ele rejeita TODOS os estrangeiros. Ele odeia as pessoas que nunca viu – quem nunca conheceu – com
igual intensidade – igual veneno. Agora, nós não estamos dizendo que é irracional alguém se incomodar
com outra pessoa. Mas, embora todos tenham direito de não gostar de alguém, é totalmente irracional,
certi cadamente insano condenar uma raça inteira – desprezar uma nação toda – vilanizar toda uma
religião. Cedo ou tarde, se alguém for digno do seu destino, nós devemos todos encher nossos corações de
tolerância. Porque então – e só então, seremos verdadeiramente dignos da ideia que o homem foi criado
segundo a imagem de Deus – um Deus que nos chama a TODOS – lhos Dele. Pax et Justitia, Stan (LEE,
apud FRANCISO, 2019. Tradução nossa).
Talvez Jack Kirby tivesse razão. Talvez Stan Lee fosse um pentelho. Mas as ideias dele, de fato,
ajudaram os heróis da Marvel a serem um referencial histórico indispensável para compreender a segunda
metade do século XX e início do XXI.
Referências
ANDREOTTI, B. A Guerra Civil e o 11 de setembro. ANDREOTTI et. al. Os Dois Lados da Guerra Civil. São Paulo:
Criativo, 2016.
ANDREOTTI, B.; MARANGONI, A.; ZANOLINI, M. Quadrinhos Através da História: As Eras dos Super-Heróis.
São Paulo: Criativo, 2017.
Captain America n. 3, Timely Comics, 1941. Disponível em: https://www.comicartfans.com/gallerypiece.
asp?piece=1440700.
COATES, T-N. Why I’m Writing Captain America - And why it scares the hell out of me. Available en: Disponível
em: https://www.theatlantic.com/entertainment/archive/2018/02/we-who-love-america/553991/.
FRANCISCO, E. 5 Times Marvel Legend Stan Lee Took on Racists in Comic Books. Available en: https://www.
inverse.com/article/35553-marvel-comics-stan-lee-racism-bigotry-soapbox .
HOFSTADTER, R. Anti-Intelectualism in American Life. New York: Vintage Books, 1963.
HOWE, S. A história secreta da Marvel Comics. São Paulo: Leya, 2013.
JACOBY, R. Os Últimos Intelectuais. São Paulo: Edusp, 1990.
LEE, S. How to Write Comics. New York: Watson-Gupttill Publications, 2011.
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Bruno Leonardo Ramos Andreotti, Adriano Jose Marangoni
Marvel Fandom. Disponível em: https://marvel.fandom.com/wiki/Captain_America_Vol_1.
Public Law 88-342. Available en: https://legcounsel.house.gov/Comps/Civil%20Rights%20Act%20Of%201964.pdf.
RICOEUR, P. A memória, a história o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2008.
Strange Tales n.114, Marvel Comics, 1963.
Jack K. e Comics Journal Library. V. 1, Seattle: Fantagraphics Books, 2002.
TUCKER, R. Pancadaria: por dentro do épico con ito Marvel vs. DC. Rio de Janeiro: Rocco, 2017.
Recebido em: 03.07.2019
Aprovado em: 12.07.2019
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