O
métOdO geOmétricO euclidianO
Jorge gonçalves de abrantes *
1 métOdO
direcionar (ou validar) suas investigações (ou
meditações) sobre a natureza das coisas.
questão acerca da designação e
Para termos uma compreensão razoável
utilização de um método para conduzir da questão do método, faz-se necessário, antes,
melhor as investigações na busca pelo termos uma noção do que seja método. Assim,
conhecimento verdadeiro das coisas é longeva,
O termo “método” (do latim methodus), tem
pois já está presente nas obras de Aristóteles1
um
significado etimológico de ‘necessidade”
2
e de Euclides . O auge dessa questão se deu
ou de “demanda”. Por consequência, num
no Seiscentos, sobretudo com o advento do
sentido mais genérico, é definido como um
Racionalismo e do Empirismo3, notadamente nas
modo de proceder, uma maneira de agir,
obras de Descartes e Galileu4, respectivamente.
um meio ou um caminho para se atingir um
fim. Nesse sentido, método não se distingue
Devido à forte influência que Descartes e
de investigação ou doutrina, podendo
Galileu exerceram na filosofia e na ciência do
significar qualquer pesquisa ou orientação
5
Seiscentos, a questão do método consolidou-se
a ser seguida para um estudo. É a este
e perpassou de maneira bem-sucedida para a
significado que se referem expressões como
Contemporaneidade6, notadamente nas ciências
método dialético ou método geométrico
exatas e naturais7. Assim, o fato de o termo
(FRAGOSO, 2011, p.17).
método estar presente na tradição filosófica e
Genericamente, o método seria um
científica desde longa data, justifica e legitima
caminho para se chegar a algo esperado; uma via
a importância dos estudos e das pesquisas
para se alcançar um objetivo almejado. Também
referentes à questão do método na filosofia e
seria o ato de planejar ou conceber meios
na ciência, sobretudo nas obras e nos tratados
para atingir aquilo que se busca. Entretanto,
dos filósofos e cientistas que se serviram de
esta concepção de método, por ser bastante
um método (ou construíram um método) para
generalista, pode gerar equívocos, pois há casos
particulares e situações únicas e exclusivas, de
* Mestre em filosofia pela Universidade Federal da Paraíba.
1 Em suas investigações filosófico-científicas, Aristóteles modo que se faz necessário também termos em
fazia uso de dois métodos, a saber, o método demonstrativo mente uma concepção mais restrita de método.
e o método dialético. Cf. FERIGOLO, A Epistemologia de Assim, em um
A
Aristóteles.
2 Euclides de Alexandria. Mais adiante falaremos de
Euclides e discutiremos o método euclidiano.
3 Estamos nos baseando nas concepções de racionalismo
e empirismo dadas por Johannes Hessen. Cf. HESSEN,
Teoria do conhecimento, p. 48-59.
4 Descartes e Galileu, cada qual a seu modo, usaram
um método para orientar suas investigações. O método
cartesiano é caracterizado sobretudo pelo racionalismo,
ao passo que o método galileano é caracterizado
sobretudo pelo empirismo.
5 A adoção e o emprego de um método para orientar as
investigações filosóficas e científicas.
6 Séculos XIX, XX e XXI.
7 Sobretudo na matemática, na física, na química e na
biologia, respectivamente.
Revista Conatus - FilosoFia
de
[...] sentido mais específico, o termo
“método” é definido como um programa,
um roteiro, que regularia previamente uma
série de operações, ou um conjunto de
determinadas ações, que se deve realizar
em vista de um resultado determinado.
Nesse sentido, mais restrito, método se
refere a uma técnica particular de pesquisa,
indicando um procedimento de investigação
organizado, passível de ser repetido e de
se corrigir, que garanta a obtenção de
resultados válidos (Id, p. 17-18).
Em resumo, de maneira a conciliar as
concepções genérica e específica de método
spinoza - volume 10 - númeRo 20 - dezembRo 2018
57
abrantes, Jorge gonçalves de. O
expostas acima, podemos afirmar que todo
método é uma sucessão ordenada de regras ou
procedimentos estabelecidos para ser seguidos
de modo a orientar e sistematizar as investigações
e especulações com vistas à obtenção de
conhecimento certo sobre algo. Nesse intuito,
há vários tipos de métodos elaborados e
idealizados pelo ser humano conforme os
objetivos desejados, preferencialmente na
ciência e na filosofia. Por exemplo, o método
de pesquisa predominante nas ciências naturais
é o método empírico; e nas ciências exatas
predomina o método dedutivo8.
No tocante a filosofia spinozana, a
discussão sobre o método é relevante porque
Spinoza utiliza um método para elaborar e
expor sua Ética. Portanto, não haveria como
evitar ou omitir a discussão em torno do
conceito de método aqui. O método empregado
por Spinoza para expor sua Ética foi o método
geométrico. Assim, para se ter uma certa
noção do que seja o método geométrico, é
imprescindível apresentar, examinar e discutir
o método geométrico, incluindo suas origens,
características, desenvolvimentos e usos.
2 as
Origens dO métOdO geOmétricO
Aqui nos disporemos a apresentar e discutir
brevemente o método geométrico na época de
Euclides, tendo por referência principal o seu
tratado de matemática, intitulado Os elementos.
Para tanto, apresentaremos e discutiremos as
concepções de definição, postulado, axioma e
proposição no tempo de Euclides, assim como
estão postos em Os elementos, de modo que
isso será feito através do exame do conteúdo
desses enunciados matemáticos, amparados e
legitimados por textos de autores, comentadores
e historiadores da matemática.
Na atualidade, a matemática se apresenta
como um saber abstrato e formal, situando-se
inteiramente além dos fatos empíricos. (DA
57-68
COSTA, 1977, p. 37). Conforme Boyer (1989),
a matemática surgiu originalmente como parte
da vida diária do homem, isto é, como um
conhecimento prático, totalmente diferente
de como a conhecemos e a concebemos na
atualidade, isto é, como um conhecimento
teórico, completamente afastada da experiência.
Boyer assinala que a matemática, em suas origens
primitivas, ocupava-se do mundo que nossos
sentidos percebem, e, por isso, era dependente
das limitações sugeridas pelas observações da
natureza. Os registros e documentos históricos
mais remotos sobre a matemática provêm do
Egito Antigo e da Mesopotâmia, e sugerem que
o uso da matemática era destinado sobretudo
à demarcação de terras e à construção de
templos e altares. Por conta de a linguagem
desses escritos antigos estar mais próxima de
casos concretos, a maioria dos historiadores
assinala uma evidente ausência de abstração
na matemática egípcia e babilônica. Assim, em
seus primórdios, a matemática surgiu como um
conhecimento prático e foi desenvolvida com
vistas às suas aplicações reais.
A matemática primitiva se resumia
às práticas de contagem e medidas, isto é, a
aritmética e a geometria, associadas às atividades
e técnicas cotidianas, voltadas, principalmente,
para necessidades e propósitos quantitativos.
A aritmética e a geometria são, portanto, tão
antigas quanto a escrita, de modo que é muito
complexo e arriscado afirmar qual das duas
surgiu primeiro, ou se ambas surgiram quase
que simultaneamente, isto é, se apareceram
em momentos temporais bem próximos. Em
relação à geometria, sabemos que
[...] Heródoto e Aristóteles não quiseram
se arriscar a propor origens mais antigas
que a civilização egípcia, mas é claro que
a geometria que tinham em mente tinha
raízes mais antigas. Heródoto mantinha
que a geometria se originava no Egito,
pois acreditava que tinha surgido da
necessidade prática de fazer novas
medidas de terras após cada inundação
anual no vale do rio. Aristóteles achava
que a existência no Egito de uma classe
sacerdotal com lazeres é que tinha
conduzido ao estudo da geometria. [...].
Não podemos contradizer com segurança
nem Heródoto nem Aristóteles quanto à
motivação que produziu a matemática,
mas é claro que ambos subestimaram a
8 Consiste em uma série de passos lógicos em que a
conclusão é derivada diretamente de um grupo de
declarações iniciais (premissas). Em matemática, isso inclui
o cálculo e a aplicação de teoremas não explicitamente
comprovados no decurso do raciocínio, mas que podem
ser comprovados separadamente, se necessário. O termo
também é usado para se referir ao resultado de tal processo
de raciocínio. Cf. CLAPHAM and NICHOLSON, The Concise
Oxford Dictionary of Mathematics, p. 213.
58
métOdO geOmétricO euclidianO. P.
Revista Conatus - FilosoFia
de
spinoza - volume 10 - númeRo 20 - dezembRo 2018
abrantes, Jorge gonçalves de. O
métOdO geOmétricO euclidianO. P.
idade do assunto. O homem neolítico pode
ter tido pouco lazer e pouca necessidade
de medir terras, porém seus desenhos e
figuras sugerem uma preocupação com
relações espaciais que abriu caminho
para a geometria. Seus potes, tecidos e
cestas mostram exemplos de congruência
e simetria, que em essência são partes da
geometria elementar (BOYER, 1989, p.
6).
Portanto, a geometria não surgiu como
um conhecimento dotado de uma estrutura
lógica, formal e abstrata, como é no presente,
mas surgiu inicialmente como mensuração ou
representação do espaço real, isto é, das formas
das coisas e objetos do mundo real, de modo que
o geômetra primitivo praticava uma geometria
aplicada e não pura. (DA COSTA, 1977, p. 3-4).
Assim, dado que a presença de determinadas
figuras como expressão e representação de certas
formas do mundo real não possui características
lógico-abstratas, visto que a lógica e a abstração
são independentes da existência dos corpos e
fenômenos da natureza, a geometria estava
longe de ser concebida como uma matemática
pura9. Essa concepção somente se tornou possível
quando se percebeu a possibilidade de conceber
e realizar um projeto matemático apenas no
âmbito do raciocínio e das ideias, ou dito de
outra forma, no âmbito da razão e da lógica.
Assim, ao sair da experiência e
estabelecer-se completamente na teoria, a
matemática consolidou-se definitivamente
como um conhecimento abstrato e formal,
livre e independente da prática e da aplicação,
tornando-se uma ciência pura10. Ao dar esse
passo e fazer esse movimento, isto é, do
concreto ao abstrato, a matemática tornou9 A geometria pura trata de sistemas e estruturas
completamente abstratas, enquanto que a geometria
aplicada trata de adequar estes sistemas e estruturas
abstratas ao mundo real”. Cf. CLAPHAM and NICHOLSON,
The Concise Oxford Dictionary of Mathematics, p. 641.
Ainda sobre isso, Newton da Costa nos esclarece o
seguinte: “A matemática e a lógica não são ciências
empíricas. Todavia, outras, como a física e a química,
dependem da experiência e da observação do mundo
real”. Cf. DA COSTA, Introdução aos fundamentos da
matemática, p. 58.
10 A matemática e a lógica são consideradas ciências
puras porque seus objetos existem exclusivamente no
âmbito do raciocínio e da abstração. Cf. DA COSTA,
Introdução aos fundamentos da matemática.
Revista Conatus - FilosoFia
de
57-68
se uma atividade e uma realização exclusiva
do pensamento, tornando os seus objetos,
antes sensistas (percepção) e quantitativos
(contagem, medida), totalmente abstraídos,
isto é, desconectados e descomprometidos da
realidade. Para tanto, o pensamento matemático
abstrato, ou a nova matemática, demandou
o uso de uma linguagem capaz de exprimir
e representar abstrações tais como números,
funções, conjuntos e figuras geométricas, de
modo que pudessem exprimir ideias numéricas,
geométricas e relacionais sem necessitar
recorrer às propriedades dos objetos reais e nem
as limitações conceituais da linguagem natural
(linguagem humana). Ao proceder dessa forma,
o matemático pôde estudar as propriedades dos
seus objetos somente por meio de um sistema
apropriado de símbolos, relevando os seus
aspectos e relações com os objetos do mundo
real. (Ibid, p. 33). Assim, fez-se necessário o
uso de uma linguagem formal na matemática
via a adoção de símbolos e signos para exprimir
e representar os entes e objetos matemáticos.
(BOYER, 1989, p. 4-5). Do mesmo modo, houve
a demanda por um procedimento formal e
rigoroso de operacionalização e automatização
que dependesse apenas da lógica e da razão para
operar sobre os objetos da matemática de modo
a engendrar suas propriedades de maneira
exclusivamente especulativa, intelectual e
conceitual.
Quando nos referimos a um procedimento
formal e rigoroso de operacionalização e
automatização da matemática, estamos nos
referindo ao método lógico-dedutivo dos
matemáticos, mais conhecido pelo nome de
método axiomático ou simplesmente axiomática,
concebido exatamente para se alcançar cada vez
mais uma rigidez formal e abstrata nas provas
matemáticas. Em um sistema axiomático,
escolhe-se um certo número de noções e
hipóteses iniciais, assumidas como verdades
evidentes e suficientes por si mesmas, sobre as
quais edifica-se a teoria almejada. Em seguida,
procuram-se as consequências dessa coleção de
noções e hipóteses primitivas. É desse modo que
se estrutura uma teoria axiomática. (DA COSTA,
1977, p. 31). No caso da matemática, parte-se
de uma coleção de objetos matemáticos (ou de
um grupo de sentenças matemáticas) evidentes
e suficientes por si mesmas, e, a partir delas,
spinoza - volume 10 - númeRo 20 - dezembRo 2018
59
abrantes, Jorge gonçalves de. O
prova-se efetivamente um amplo conjunto de
propriedades e resultados matemáticos. Uma
teoria matemática construída mediante uma
metodologia axiomática é bastante eficaz e
útil porque gera economia de pensamento e
promove sistematização e simplificação do
conhecimento. (Ibid, p. 33 e p. 42). Devido a
esses aspectos positivos, o método axiomático
adquiriu grande êxito e notoriedade nas ciências
puras, de modo que, com o passar do tempo e
com a evolução da matemática, especialmente à
geometria, o método axiomático tornou-se cada
vez mais rigoroso, chegando a um alto grau de
perfeição lógica. (Ibid, p. 32).
Na empreitada de desconectar e livrar
a matemática da influência e dependência dos
sentidos e do mundo concreto, o matemático
instituiu e consolidou o uso de uma linguagem
lógico-simbólica e de um método lógicodedutivo, de modo que todo o corpo da
matemática pudesse ser fundamentado e
desenvolvido a partir de princípios lógicoracionais mediante raciocínios puramente
lógico-racionais. (Ibid, p. 4 e p. 7). Nesse
quesito, os matemáticos da Grécia Antiga foram
os primeiros a empreender uma tentativa de
conceber e realizar uma matemática abstrata
e formal, livre das avaliações das sensações
corporais e das opiniões pessoais. O caminho que
alcançou êxito nessa empreitada se deu através da
automatização e racionalização da matemática
através da adoção do método dedutivo. Segundo
Heródoto, Aristóteles e outros (Proclo, Plínio,
Plutarco, Diógenes Laércio), foi Tales de Mileto
(600 a.C.) que trouxe a matemática do Egito
para a Grécia e lhe deu a forma demonstrativa
que sempre teve desde a antiguidade grega,
com ênfase na posição central da noção de
demonstração dedutiva. (BOYER, 1989, pp.
45-7). Porém, foi somente com Euclides de
Alexandria (300 a. C.) que houve uma efetiva e
plena realização desse projeto.
Entre os antigos matemáticos gregos havia
um grande mal-estar referente à problemática
do incomensurável11 e da demonstração ad
11 Os incomensuráveis são grandezas não exatas e não
finitas. Por exemplo, a raiz quadrada do número dois é
um incomensurável, e a divisão entre a circunferência
e o diâmetro do círculo dá como resultado um
incomensurável (número pi). Todos os números
irracionais são incomensuráveis. Cf. BOYER, p. 72.
60
métOdO geOmétricO euclidianO. P.
57-68
infinitum12. Foram estas duas questões que
ensejaram o surgimento e o emprego do método
dedutivo-geométrico. Era comum realizar a
mensuração de comprimentos de arcos e de retas
e, ao final da medida, encontrar um número
inexato (ou infinito, caso se aumentasse cada
vez mais a precisão da medida na tentativa
de encontrar um valor numérico finito). Da
mesma forma, era comum uma demonstração
demandar um número interminável de passos e
uma cadeia conceitual infindável toda vez que se
demonstrasse uma coisa em função de uma outra
que não tinha sido previamente estabelecida ou
posta. Para evitar lidar com essas demonstrações
problemáticas e com esses números indesejáveis,
os matemáticos desenvolveram um novo método
de prova. Assim, os antigos geômetras gregos,
ao desenvolverem uma geometria dedutiva
livre da aritmética, acrescentaram à matemática
o artifício novo de demonstração puramente
geométrica e dedutiva.
Os matemáticos que empreenderam com
êxito esse projeto foram os grandes responsáveis
por oferecer à matemática toda uma estrutura
abstrata e formal, tornando-a um conhecimento
intelectual e sofisticado. Toda essa abstração,
intelecção e sofisticação alcançaram seu apogeu
e sua consolidação com e a partir de Os elementos
de Euclides, uma robusta e ampla obra que reuniu
todo o saber matemático desenvolvido até aquele
momento, conferindo-lhe uma exposição lógicoracional seguida de uma dedução rigorosamente
geométrica; um denso compêndio da ciência
matemática da época, reunindo tudo o que já se
sabia até aquela data, ou ainda: uma enciclopédia
do conhecimento matemático da Antiguidade
Clássica. (STRUIK, 1987, p. 50).
12 “Não se pode definir nem demonstrar tudo. Assim,
para definir um conceito A, necessitamos de outros,
por exemplo, de A1 e A2; para definir A1, precisamos
de outros, e assim sucessivamente. Logo, numa
[demonstração], se pretendemos evitar círculos viciosos,
há sempre conceitos que devemos aceitar sem definição
e que se denominam conceitos primitivos [...]. Da mesma
maneira, qualquer disciplina matemática sempre encerra
certas proposições aceitas sem demonstração, chamadas
proposições primitivas [...]. Porém, escolhidas as noções
e as proposições primitivas, todos os outros conceitos da
disciplina, para serem empregados, devem ser definidos
em termos das noções primitivas, e todas as outras
proposições (verdadeiras) da mesma só devem ser aceitas
mediante demonstração [...].” In: DA COSTA, Introdução
aos fundamentos da matemática, p. 9.
Revista Conatus - FilosoFia
de
spinoza - volume 10 - númeRo 20 - dezembRo 2018
abrantes, Jorge gonçalves de. O
3 Os ElEmEntos
de
métOdO geOmétricO euclidianO. P.
euclides
O tratado de matemática de Euclides,
intitulado Os elementos13, foi composto conforme
o método dedutivo dos geômetras14. Sobre o
título desta obra, Aristóteles nos informa, em
sua Metafísica, que as proposições geométricas
são chamadas de elementos15. Assim, fica claro
por que o título desse tratado é Elementos,
já que, como ficará evidente mais adiante,
as proposições euclidianas apresentam e
demonstram objetos e propriedades matemáticas
de maneira puramente geométrica.
O método dedutivo à maneira dos geômetras,
ou simplesmente método geométrico, pode ser
facilmente compreendido tão somente pela
observação de como o tratado euclidiano está
estruturado. Em primeiro lugar são enunciadas
as sentenças que não carecem de demonstração;
e em segundo lugar são enunciadas aquelas
sentenças que necessitam de demonstração.
As sentenças requerentes de demonstração são
deduzidas e provadas a partir das sentenças
indemonstráveis. Os conteúdos das sentenças
indemonstráveis referem-se aos entes, objetos
e propriedades geométricas, logo a dedução
euclidiana é estrita e puramente geométrica.
Numa demonstração matemática, começase com algo dado como certo e a partir daí
avança-se passo a passo até chegar naquilo
que se deseja provar. (BOYER, 1989, p. 88).
Há na matemática duas ordens distintas
para se realizar uma demonstração: uma
sintética e outra analítica. Em outras palavras,
o raciocínio matemático16 é feito de duas
maneiras: síntese e análise. Quando a cadeia
de raciocínios matemáticos leva das premissas
à conclusão (raciocinar a partir do que é
conhecido para o que se deve demonstrar),
13 Depois da Bíblia, estima-se que os Elementos de
Euclides foi o livro mais reproduzido e estudado ao longo
da história do Ocidente, pelo menos até fins do século
XIX. Cf. STRUIK, A Concise History of Mathematics, p. 49.
14 Método geométrico. Os matemáticos usam,
predominantemente, o termo método axiomático.
15 Cf. o original: “[...] denominamos “elementos” das
construções geométricas aqueles itens cujas demonstrações
estão inerentes nas demonstrações de outros (ou de todos, ou
da maioria deles) [...]” (ARISTÓTELES, Metafísica, 998a25).
16 O raciocínio matemático é um conjunto de passos
que podemos utilizar para assegurar a validade de certas
afirmações (conclusões), desde que acreditemos na validade
de outras que consideramos como já conhecidas (premissas).
Revista Conatus - FilosoFia
de
57-68
temos a ordem sintética. (Ibid, p. 305). Nesse
sentido, a ordem demonstrativa empregada
por Euclides nos Elementos é a ordem sintética,
porquanto parte de uma coleção de sentenças
autoevidentes (premissas) para derivar uma
série de proposições (conclusões). A ordem
analítica executa o procedimento inverso ao
da síntese, isto é, toma as proposições por
verdades autoevidentes (conclusões) e busca
os fundamentos e os princípios (premissas) que
as legitima e as sustenta como verdades certas
e determinadas, raciocinando-se a partir da
hipótese de que a incógnita foi dada e, a partir
daí, deduzir uma conclusão necessária da qual
a incógnita pode ser derivada. (Ibid). Por conta
de Os elementos estar estruturado conforme a
ordem dedutiva sintética e, sobretudo, por conta
de esse tratado ser uma grande composição
geométrica, refere-se também a sua via
dedutiva como ordem geométrica17, de modo
que este termo é sinônimo do termo ordem
sintética. Nesse sentido, a dedução euclidiana,
além de ser puramente geométrica, é também
puramente sintética. É importante que se
saiba que entre os matemáticos, a geometria
euclidiana é chamada de geometria sintética
porque as demonstrações são realizadas apenas
com o uso de régua e compasso, além de que
as representações e construções dos objetos e
termos geométricos são feitas tão somente pelo
uso da régua e do compasso.18
A geometria euclidiana, por fazer uso
da ordem sintética nas demonstrações, parte
de estruturas e conceitos sintéticos19, também
denominados de entes ou conceitos primitivos,
tais como a definição de ponto e linha, para gerar
e provar um grupo de conclusões sofisticadas
e complexas, chamadas de proposições. Os
conceitos primitivos são pressupostos que não
necessitam de demonstração, mas que são
aceitos como certos e determinados, tomados
como os fundamentos e as hipóteses de partida
17 De forma genérica, a ordem geométrica é o percurso
dedutivo que vai dos indemonstráveis aos demonstráveis;
dos primitivos aos derivados; das premissas às conclusões.
18 Na geometria euclidiana não há nenhum processo
quantificador que seja característico de um procedimento
analítico. Cf. BOYER, A History of Mathematics, p. 304, p.
322, p. 347.
19 Na nomenclatura e denominação dos matemáticos,
são aquelas noções extremamente evidentes e simples,
tanto que são também denominadas de noções intuitivas.
spinoza - volume 10 - númeRo 20 - dezembRo 2018
61
abrantes, Jorge gonçalves de. O
de uma teoria dedutiva, que, por conta disso,
são também denominados de princípios20 ou
de indemonstráveis. É dito também que os
conceitos primitivos não possuem definição ou
não devem ser definidos, nem tampouco devem
depender de outros conceitos, o que não ocorre
em Os elementos, pois Euclides, além de definir
ponto e linha, define-os em função dos conceitos
de partes, comprimento e largura, sem tê-los
definidos antes em nenhum lugar do texto21.
De todo modo, é a partir desses princípios,
admitidos como verdadeiros e incontestáveis,
que Euclides demonstra as suas proposições
geométricas,
também
denominadas
de
conceitos derivados ou demonstráveis. Assim,
Euclides inicia os Elementos enunciando os
princípios de sua teoria geométrica, que são de
três tipos, a saber, definição, postulado e axioma
(ou noção comum), para logo em seguida usálos na demonstração das proposições. Dito isso,
passaremos a tratar de cada um desses conceitos,
levando em consideração o modo como estão
expostos nos Elementos e a concepção que
deveriam ter na época de Euclides.
4 definições
Nas definições, Euclides apresenta as
entidades geométricas de que fará uso,
conceituando-as e explicando-as à medida que
lhes atribui significados e características. As
definições euclidianas são de três tipos: Nominal
(ou conceitual), descritiva e construtiva (ou de
construção).
As definições euclidianas são nominais,
pois não só declaram os entes geométricos,
mas, sobretudo, os nomeiam, de maneira que
nas definições iniciais dos Elementos podemos
facilmente perceber isso quando Euclides
enuncia os nomes ponto, linha e superfície,
acompanhados de suas respectivas acepções,
respectivamente: “ ‘Ponto é aquilo de que
nada é parte.’; ‘E linha é comprimento sem
20 Também denominados princípios matemáticos.
21 Sobre isso, os Elementos de Euclides é bastante criticado
por lógicos e matemáticos, pois espera-se que uma definição
seja formulada a partir de termos previamente definidos, de
modo que os primeiros termos não comportam definição.
Estes primeiros termos seriam apenas nomeados, por
isso denominados de “conceitos primitivos”. Assim, não
definimos um “termo primitivo”, mas apenas indicamos as
regras que regem o seu uso. Cf. DA COSTA, Introdução aos
fundamentos da matemática, p. 9.
62
métOdO geOmétricO euclidianO. P.
57-68
largura.’; ‘E superfície é aquilo que tem somente
comprimento e largura.’ ” (Os elementos, Livro
I, definições 1, 2 e 5). Assim, na acepção do
termo, a definição nominal explicita o sentido
de um nome ou de uma palavra, estabelecendo
uma relação recíproca e equivalente entre o
nome e o significado desse nome.
As definições euclidianas são também
descritivas. A saber: “Consiste a definição descritiva
na apresentação do ser que desejamos definir, de
modo que possamos, pelos dados da definição, ter
uma ideia precisa de sua forma e de seus atributos.
É de emprego frequente em geometria.” (TAHAN,
1965, p. 7). Dessa forma, Euclides, ao enunciar
e significar ponto, linha e superfície, os descreve,
pois os adjetiva e os caracteriza. Ao declarar que
as “extremidades de uma linha são pontos.” (Ibid,
def. 3) ou que as “extremidades de uma superfície
são retas.” (Ibid, def. 6), está caracterizandoas e, inevitavelmente, descrevendo-as, pois nos
aponta como esses entes geométricos devem ser
inteligidos ou representados.
As definições euclidianas se dão também
por construção. A saber: “São de emprego
frequente, em geometria, as definições por
construção. Ocorre esse tipo de definição
sempre que o matemático com auxílio de
pontos, linhas ou superfícies (elementos esses
bem determinados) pretende conceituar um
novo elemento geométrico” (TAHAN, 1965, p.
35). Assim, quando Euclides declara o que deve
ser inteligido por ângulo plano22, não o está
propriamente definindo, mas está nos indicando
como esse ente geométrico deve ser construído
mentalmente ou pelo uso de régua e compasso.
Dessa forma, a definição euclidiana
é uma sentença que enuncia aqueles entes
ou objetos geométricos cuja veracidade não
necessita de prova, mas que são autoevidentes
e autodeterminados. A definição em Euclides
se nos apresenta também como uma explicação
ou declaração das características desses
objetos indemonstráveis, cujo conteúdo deve
comportar a significação e as propriedades
fundamentais deles. Por conta disso, a
própria definição em Euclides é também tida
como um conceito primitivo ou um princípio
22 “E ângulo plano é a inclinação, entre elas, de duas linhas
no plano, que se tocam e não estão postas sobre uma reta.”
Cf. EUCLIDES, Os elementos, Livro I, def. 8.
Revista Conatus - FilosoFia
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abrantes, Jorge gonçalves de. O
métOdO geOmétricO euclidianO. P.
matemático. Em vista disso, podemos dizer que
os matemáticos contemporâneos de Euclides
não viam a necessidade de se demonstrar os
princípios da ciência geométrica dedutiva, isto
é, as definições, mas apenas tomá-los como
certos e confiáveis, limitando-se a iniciar a
dedução matemática a partir daquilo que tinha
sido acertado como verdadeiro e inconteste no
quadro das definições23.
5 POstuladOs
O conteúdo das definições não implica
na existência24 dos entes geométricos, mas esta
função cabe aos postulados, responsáveis por
garantir a existência de alguns deles. Assim,
no primeiro postulado25 dos Elementos são
requeridos dois pontos distintos para se ter um
segmento de reta, ou seja, para se construir
uma reta ou um segmento de reta, exige-se
necessariamente a existência de dois pontos
distintos. Por assim ser, percebe-se também que
o postulado é uma sentença requerente, pois
requerer algo. Esta observação pode ser melhor
compreendida e assimilada quando examinamos
o terceiro postulado26, no qual são requeridos
um centro e um raio para descrever um círculo.
Na Grécia Clássica, os postulados eram
tidos e adotados como verdades particulares,
porquanto eram empregados para se
referir a ou se tratar de coisas específicas
enquanto hipóteses básicas relativas ao ramo
específico do saber, neste caso, da geometria
sintética, conquanto exprimem propriedades
estritamente geométricas. Dessa forma, os
postulados pertencem a categoria dos princípios
matemáticos, e, assim sendo, não necessitam de
23 Euclides inicia o Livro I de Os Elementos com uma
lista de 23 definições, às quais seguem-se 5 postulados e 9
axiomas (ou noções comuns).
24 Na matemática, existência é entendida como ausência
de contradição. Assim, quando se afirma que a solução
de um problema existe, pretende-se dizer simplesmente
que nenhuma contradição impede admitir a existência
da solução. Um teorema de existência é a prova rigorosa
de que a solução existe, mesmo que ainda não tenha
sido descoberta. Há também o critério de existência em
matemática associado a possibilidade da construção, de
modo que não se poder falar de entes matemáticos que
não possam ser construídos. Cf. DA COSTA, Introdução
aos fundamentos da matemática, p. 36.
25 “Fique postulado traçar uma reta a partir de todo ponto
até todo ponto.”
26 “E, com todo centro e distância, descrever um círculo.”
Revista Conatus - FilosoFia
de
57-68
demonstração, mas são tomados e aceitos como
certos e determinados. Em resumo, o postulado
euclidiano é a sentença que encerra verdades
peculiares e exclusivas, cujo conteúdo enuncia
condições de garantia da existência dos entes e
figuras geométricas.
6 axiOmas
Para fechar a apresentação dos princípios
de sua geometria dedutiva, Euclides enuncia
as noções comuns, também denominadas de
axiomas. Os axiomas são as sentenças que
encerram verdades universais, isto é, enunciados
cujo conteúdo trata de coisas gerais a todas as
ciências e saberes, por isso mesmo denominadas
de noções comuns, pois são comuns a todo saber,
isto é, válidas e evidentes para todo e qualquer
tipo de conhecimento. Este entendimento
sobre a significação axiomática fica mais claro
e evidente quando examinamos diretamente o
conteúdo dos axiomas euclidianos, em especial
do primeiro27 e do oitavo28, pois tratam de
coisas extremamente evidentes e genéricas,
tão inequívocas e unânimes que conduzem a
aceitação e persuasão imediatas.
Para Euclides e para a maioria dos antigos
matemáticos gregos, os axiomas se apresentavam
sob um aspecto distinto de todos os demais
princípios, porque não eram meramente
hipóteses, mas declarações afirmativas de fatos
e de verdades evidentes por si próprias, que
todos poderiam aceitar e adotar sem nenhum
problema. (BOYER, 1989, p. 105). Nesse sentido,
os axiomas são mais gerais e mais fortes do que
as definições e postulados, mesmo estes sendo
indemonstráveis, pois enquanto o primeiro
trata de conceitos primitivos e o segundo de
especificidades, os axiomas tratam de verdades
gerais, comuns e evidentes a todos os saberes.29
7 PrOPOsições
Estando enunciados os princípios da sua
teoria geométrica, Euclides inicia a declaração
e provação de uma série de proposições
matemáticas, cuja comprovação do conteúdo de
27 “As coisas iguais à mesma coisa são também iguais entre
si.” (Os elementos, Livro I).
28 “E o todo [é] maior do que a parte.” (Os elementos, Livro I).
29 Atualmente, os matemáticos não veem diferença
entre axioma e postulado, de modo que ambos possuem
a mesma acepção e emprego. Cf. BOYER, A History of
Mathematics, p. 105.
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abrantes, Jorge gonçalves de. O
cada uma delas está, por efeito, fundamentada
nas instruções presentes nas definições, nos
postulados e nos axiomas. Assim, cumprindo
o propósito dos Elementos, Euclides apresenta
as proposições seguidas das suas respectivas
demonstrações. Por assim ser, as proposições
são sentenças afirmativas contingentes, pois
enunciam conclusões ou resultados que podem
ser verdadeiros ou falsos. Justamente por conta
disso, necessitam ser provadas e validadas.
As proposições são sentenças ditas
contingentes porque os conteúdos dos seus
enunciados não são evidentes por si próprios,
mas concluem propriedades matemáticas que
não são simples de entendimento e aceitação
imediatas, nem tampouco de assimilação direta
e rápida, de modo que precisam ser provadas
para serem tidas como afirmações verdadeiras.
Por efeito disso, as proposições são encaradas e
tratadas como complexas e sofisticadas, já que
seus conteúdos necessitam de demonstração
para terem o assentimento do estudante. Depois
que se dá a demonstração da proposição, todos a
tomam por verdade certa e indubitável, passando
a ser chamada, a partir daí, de teorema. Esta
observação pode ser melhor evidenciada se
examinarmos, por exemplo, o conteúdo da
penúltima proposição do Livro I dos Elementos:
“Nos triângulos retângulos, o quadrado sobre o
lado que se estende sob o ângulo reto é igual aos
quadrados sobre os lados que contém o ângulo
reto” (Os elementos, Livro I, proposição 47). Esta
proposição é bastante notória, pois encerra um
dos mais célebres resultados da matemática,
comumente conhecida pelo nome de teorema
de Pitágoras. Perceba que a simples leitura dessa
proposição não nos persuade de sua veracidade,
de modo que é preciso demonstrá-la para que, só
depois disso, nos convençamos de sua certeza.
A demonstração euclidiana do teorema
de Pitágoras se serve das informações contidas
nos princípios, a exemplo das definições 10 e
19; dos postulados 1 e 4; e dos axiomas 1 e
2, notadamente.30 Isso implica dizer que as
30 “E quando uma reta, tendo sido alteada sobre uma reta,
faça os ângulos adjacentes iguais, cada um dos ângulos é
reto, e a reta que se alterou é chamada uma perpendicular
àquela sobre a qual se alteou” (def. 10). “Figuras retilíneas
são as contidas por retas, por um lado, triláteras, as por três,
e, por outro lado, quadriláteras, as por quatro, enquanto
multiláteras, as contidas por mais de quatro retas” (def. 19).
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métOdO geOmétricO euclidianO. P.
57-68
conclusões e resultados que as proposições
encerram são consequências diretas das
definições, dos postulados e dos axiomas. Por conta
disso, os conceitos declarados nas proposições
são denominados de conceitos derivados, como
tinha de ser, já que são construídos a partir
dos conceitos primitivos. Desse modo, o que
garante e legitima a veracidade das proposições
são as verdades autoevidentes e indubitáveis
estabelecidas e consolidadas nos princípios.
Além do teorema de Pitágoras, outros
célebres resultados matemáticos já eram
conhecidos na época de Euclides, a exemplo
das áreas de algumas superfícies e dos
volumes de alguns sólidos. Assim como o
teorema de Pitágoras, estes resultados não
eram autoevidentes, de modo que careciam
de demonstração, o que leva Euclides a tomar
estes resultados complexos e sofisticados
por proposições e, servindo-se da dedução
geométrica em ordem sintética, procurar
demonstrá-los, tendo em vista que o importante
em uma demonstração é que seja válida e que
forneça o resultado esperado. Nesse quesito, foi
somente com Euclides que encontramos pela
primeira vez uma sequência lógica de teoremas
gerais com demonstrações apropriadas.
(STRUIK, 1987, p. 48-50).
8 cOnsiderações sObre O métOdO geOmétricO
euclidianO
A partir dessa breve discussão sobre
a estrutura dos Elementos de Euclides, ficanos claro que o método euclidiano é do tipo
dedutivo sintético; tanto no sentido de partir
de um conjunto de premissas (definições,
postulados e axiomas) em direção às suas
consequências (proposições), quanto no
sentido de oferecer uma prova em termos
geométricos, apenas com o uso de régua e
compasso. De maneira resumida e direta,
tendo em mente o exposto acima, podemos
dizer que Euclides enuncia um pequeno
número de conceitos iniciais que lhe permite
demonstrar geometricamente um grande
número de propriedades matemáticas.
“Fique postulado traçar uma reta a partir de todo ponto até
todo ponto” (post. 1). “E serem iguais entre si todos os ângulos
retos” (post. 4). “As coisas iguais à mesma coisa são também
iguais entre si” (ax. 1). “E, caso sejam adicionadas coisas
iguais a coisas iguais, os todos são iguais” (ax. 2).
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abrantes, Jorge gonçalves de. O
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Apesar do rigor lógico e do êxito
demonstrativo dos Elementos, este tratado
geométrico não estar imune às críticas. Em sua
crítica aos Elementos de Euclides, o matemático
e lógico Newton da Costa assevera o seguinte:
[...] A obra de Euclides não é inteiramente
satisfatória, entre outras razões, porque o
geômetra grego, em suas demonstrações,
lança mão, em diversas oportunidades,
de suposições que não enunciou de
modo explícito. Por conseguinte, Euclides
não se limitou a tirar consequências
exclusivamente dos conceitos primitivos
que explicitou, donde sua axiomática não
ser perfeita. (DA COSTA, 1977, p. 32).
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com certeza segura se Euclides apenas nomeou
“ponto” sem conceituá-lo, ou se foram seus
discípulos que tomaram a decisão de conceituar
“ponto”, associando-o com “parte”. Essa crítica
também é corroborada pelo argumento de que
a ideia de “parte” é completamente estranha e
alheia à ideia de “ponto”, porque, além de não
terem nada em comum, são coisas inteiramente
opostas.33 Da mesma forma, o uso dos termos
“largura” e “comprimento” por Euclides, ao
definir linha e superfície, recebe a mesma
crítica. Além dessas críticas, há também a
censura que se faz ao uso dos termos “parte”,
“largura” e “comprimento” para exprimir ou
descrever coisas e objetos abstratos, dado que
esses termos34 se aplicam a caracterização e
mensuração de coisas e objetos reais. Portanto,
conforme esses critérios e críticas, a axiomática
euclidiana é considerada imperfeita. No tocante
a natureza das definições euclidianas, diz-se
que são definições geométricas por declararem
e tratarem tão somente de entes e objetos
geométricos.
Sobre os postulados euclidianos, considerase que são legítimos, porquanto satisfazem os
critérios anteriormente citados e discutidos.
Afirma-se isso porque os conteúdos dos
postulados são dotados de clareza e evidência
próprias, e são também enunciados em função de
termos previamente nomeados e determinados
nas definições. Como vimos anteriormente,
os postulados euclidianos são petições que
dizem respeito somente às particularidades dos
objetos geométricos declarados nas definições,
e, por conta disso, diz-se que os postulados
euclidianos são postulados geométricos. Nesse
quesito, ressalvamos apenas a problemática
envolta no quinto postulado35, já que durante
muito tempo se tentou demonstrá-lo por se
considerar que ele extrapolava as funções e
atribuições básicas de uma petição geométrica,
e por isso não aparentava ser uma sentença
indemonstrável, mas se assemelhava mais
A crítica que matemáticos e lógicos
lançam sobre a axiomática de Euclides31 se deve
ao caso de algumas definições euclidianas não
se apresentarem como legítimas definições. A
definição perfeita deve ser aquela sentença que
exprime a coisa pela própria coisa de maneira
claríssima e evidente. A definição perfeita
é também aquele enunciado que exprime a
coisa através de outras coisas previamente
definidas com clareza e distinção. Conforme
as exigências da lógica matemática, esses são
os dois critérios fundamentais requeridos para
que tenhamos uma genuína definição, de modo
que a definição que não cumpre um desses
dois critérios não pode ser considerada uma
autêntica definição. Assim, por não cumprir
estes dois critérios, algumas das definições
euclidianas não são encaradas como legítimas
definições32, a exemplo das definições de ponto,
linha e superfície.
Euclides define ponto em função do
termo “parte”, apesar de não tê-lo nomeado de
antemão e nem esclarecido previamente o que
se deveria entender por “parte”. Não sabemos
se Euclides entendia o termo “parte” como
uma palavra clara e distinta por si mesma;
quer dizer, se Euclides tomava o significado
do vocábulo “parte” como extremamente
evidente. Assim, se fosse esse o caso, então o
termo “parte” não careceria de significação 33 Aqui caberia dizer também que se trata de uma
nem de nomeação. Além do mais, não sabemos definição negativa, isto é, a definição que define a coisa
31 O método geométrico euclidiano é um tipo de
axiomática.
32 Caso a definição não se apresente sob a forma de um
autêntico termo primitivo, deve então satisfazer esses
dois critérios.
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por aquilo que ela não é.
34 Largura e comprimento.
35 “E, caso uma reta, caindo sobre duas retas, faça os
ângulos interiores e do mesmo lado menores do que dois
retos, sendo prolongados as duas retas, ilimitadamente,
encontrarem-se no lado no qual estão os menores do que
dois retos.” (Postulado das paralelas, Livro I).
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a uma proposição demonstrativa. Porém, o
quinto postulado de Euclides, nos domínios da
geometria euclidiana, nunca foi demonstrado,
e, por efeito disso, continua sendo um legítimo
e autêntico postulado.
Em relação aos axiomas euclidianos,
não há dúvidas de que concluem e declaram
verdades gerais e comuns a todos os campos
da matemática. Nesse quesito, não há dúvidas
de que são legítimos axiomas. Os conteúdos
dos axiomas euclidianos são claros e evidentes
por si mesmos, não tanto pela simplicidade
e precisão de seus enunciados, nem ainda
pela obviedade das coisas que enunciam,
mas, sobretudo, pela força persuasiva de
assentimento e inteligibilidade imediatas.
Os axiomas euclidianos não dependem
nem necessitam daquilo que se declara nas
definições e nos postulados, como tem de ser,
por isso podem ser enunciados em função
de outros termos sem definição prévia. No
entanto, a única exigência que se faz é que esses
termos sejam muito evidentes e tenham total
relação com aquilo que se enuncia no axioma.
À exceção do nono axioma, todos os demais,
conforme o estabelecido acima, são legítimos
axiomas. A problemática do nono axioma36 está
em sua semelhança com um postulado, dado
que aparenta ser uma petição, pois exige uma
condição geométrica básica para termos uma
área (superfície geométrica finita ou limitada).
Apesar disso, a obviedade e generalidade dessa
sentença nos faz acolhê-la como axioma sem
maiores problemas, de modo que isso não tira
a legitimidade e autenticidade dos axiomas
euclidianos. Por fim, cabe esclarecer que os
axiomas euclidianos não devem nem podem ser
denominados de axiomas geométricos, como
tem de ser, já que seus enunciados não declaram
nem tratam de objetos ou particularidades
estritamente geométricas, satisfazendo a sua
universalidade.
Quanto às proposições euclidianas,
apenas observamos que todas são legítimas
demonstrações geométricas, porquanto são
deduzidas de modo puramente geométrico, e
nenhuma delas se confunde nem se assemelha
às definições, postulados ou axiomas, como tem
de ser, já que são sentenças que podem e devem
36 “E duas retas não contêm uma área.” (Livro I).
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ser provadas porque não são de rápido e fácil
assentimento e compreensão. Como sugerimos
acima, a axiomática euclidiana é geométrica em
parte devido aos conteúdos das definições e dos
postulados serem estritamente geométricos,
mas, a axiomática de Euclides é geométrica,
sobretudo, devido ao fato de as demonstrações
serem realizadas de maneira puramente
geométrica. Isso significa dizer que Euclides
deduz e prova as suas proposições utilizando,
sobretudo, os entes e objetos declarados
nas definições e requeridos nos postulados,
empregando apenas uma régua e um compasso
para operá-los. Por conta disso, o método
axiomático euclidiano é também denominado
método geométrico.
Portanto, uma perfeita axiomática é
aquela que parte de enunciados tão claros e
evidentes que são capazes de evitar e afastar
os “círculos viciosos” e as “cadeias causais
conceituais intermináveis”. Essas exigências
e condições são fundamentais para que se
realize uma legítima e autêntica dedução
sintética, e, por efeito, se tenha uma genuína e
fidedigna axiomática. Assim, Euclides procede
de maneira axiomática para não cair em uma
“regressão conceitual” ad infinitum; isto é,
para todo conceito que declarar, necessitar de
um outro conceito que o explique. Ademais, a
própria natureza do método dedutivo sintético
(axiomática) exige que seja assim, dado que
é um método finito, e, como tal, parte de um
número reduzido e fixo de premissas; além de
que, por ser um método lógico, a própria lógica
demanda a sua finitude.
É importante mencionar que, além de
definições, axiomas, postulados e proposições,
há também lemas, corolários e escólios, que, de
forma geral, são sentenças complementares e
explicativas às proposições, quando necessário,
e que, por conta disso, sempre são postas depois
das proposições ou junto delas, e, assim como
as proposições, são passíveis e necessitárias
de prova. O corolário é uma consequência ou
conclusão deduzida ou induzida diretamente
das informações ou dos conteúdos das
proposições; o escólio é um tipo de comentário
ou interpretação de cunho explicativo que
serve, sobretudo, para elucidar ou explicitar
melhor determinadas questões ou aspectos das
proposições que não ficaram perfeitamente
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claros ao longo das demonstrações; e o lema
é uma proposição secundária (solidária e
subordinada) à proposição central, já que é um
tipo de complemento e de suporte à proposição
principal, de modo que, por conta disso, não
necessariamente está dentro da sequência ou
cadeia dedutiva. Vale destacar que Euclides não
recorre ao artifício do escólio ao longo de suas
demonstrações geométricas, pois utiliza apenas
corolários e lemas. Apesar de haver uma clara
distinção e separação quanto aos significados e
empregos desses artifícios a época de Euclides,
atualmente eles são tomados e tidos como
sinônimos e equivalentes, de modo que escólio
e corolário se referem aos mesmos conceitos e
propósitos, assim como também lema e teorema.
9 cOnsiderações
finais
O método euclidiano demonstra muitas
propriedades matemáticas de forma puramente
geométrica, de modo que é nesse quesito que
está a originalidade desse método. O modo
como Euclides opera é bem simples de entender:
ele enuncia uma ampla coleção de entes
geométricos (ponto, linha, superfície, ângulo,
círculo, entre outros) na forma de premissas
(definição, postulado, axioma), e a partir delas
demonstra uma extensa lista de proposições
matemáticas. Assim é o modus operandi de
Euclides.
Todas as propriedades sobre círculos,
triângulos e demais figuras geométricas que
Euclides enuncia nos Elementos não são apenas
apresentadas, mas são provadas. No sistema
dedutivo dos Elementos, Euclides demonstra
geometricamente as relações e propriedades
matemáticas como consequências lógicas
de algumas poucas e simples premissas.
Por efeito disso, para prosseguir adiante no
estudo das demonstrações euclidianas de
maneira a depreendê-las efetivamente, devese, necessariamente, aceitar as premissas
como verdadeiras. Mas, mais que isso, devese aceitá-las como afirmações suficientes e
determinadas por si mesmas. O rigor lógico do
método euclidiano está em ser axiomático, quer
dizer, se aceitarmos as premissas, devemos
aceitar também todo o restante, de modo
que nenhuma dúvida posterior é possível.
Nesse sentido, a força do método geométrico
também está em ser axiomático porque suas
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premissas são apresentadas como fundamentos
sólidos e irrefutáveis. Assim, demonstrar
geometricamente à maneira de Euclides significa
tomar os elementos geométricos e dispô-los sob
a linguagem e a ordem do método geométrico.
A linguagem do método geométrico é nada
mais que as formas e as figuras geométricas,
e a ordem do método geométrico é a própria
ordem do método dedutivo. Assim, a maneira
de demonstrar de Euclides é genuinamente
geométrica e puramente dedutiva. Dessa
maneira, distinguem-se duas coisas no modo
euclidiano de demonstrar, quais sejam, a
linguagem e a ordem.
Os elementos geométricos declarados
nas premissas são, para os matemáticos,
objetos de natureza simples e intuitiva, e
nesse sentido são denominados de sintéticos
pelos matemáticos, de maneira que é daí
que deriva o termo geometria sintética,
comumente usado pelos matemáticos para se
referirem à geometria euclidiana. Os elementos
geométricos que servirão de pressupostos para
fundamentar a demonstração das proposições
são apresentados inicialmente como verdades
autossuficientes e autodeterminadas. Por tomar
esta via demonstrativa, o método geométrico é
também denominado de método sintético ou
simplesmente de síntese. Assim, em Euclides,
temos a ideia de método como linguagem e
ordem, ou seja, toma-se o método geométrico
euclidiano por “forma de linguagem” e por
“maneira de demonstrar”, respectivamente. A
concepção de método geométrico apenas como
ordem imperará ao longo da história, sobretudo
na filosofia do Seiscentos, como mostraremos
adiante ao tratarmos de alguns dos principais
filósofos desse período.
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