Academia.eduAcademia.edu

O Método Geométrico Euclidiano

2019, Revista Conatus - Filosofia de Spinoza

The term “geometric method” is used in philosophy, especially by Spinoza’s commentators, to refer to the Euclidean deductive method. The commentators of Spinoza’s philosophy, in treating this method in their investigations and theses, only briefly mention it, making a few brief comments and clarifications about it, so that they make only a concise and generic presentation and discussion of it. In this sense, we propose here to make a study and a discussion of the geometric method in a broader and more detailed way, from its ancient Greek origins until its full consolidation with Euclid. To this end, we hope to make a contribution to the philosophical studies of the Sixteenth, especially to studies referring to Spinoza philosophy.

O métOdO geOmétricO euclidianO Jorge gonçalves de abrantes * 1 métOdO direcionar (ou validar) suas investigações (ou meditações) sobre a natureza das coisas. questão acerca da designação e Para termos uma compreensão razoável utilização de um método para conduzir da questão do método, faz-se necessário, antes, melhor as investigações na busca pelo termos uma noção do que seja método. Assim, conhecimento verdadeiro das coisas é longeva, O termo “método” (do latim methodus), tem pois já está presente nas obras de Aristóteles1 um significado etimológico de ‘necessidade” 2 e de Euclides . O auge dessa questão se deu ou de “demanda”. Por consequência, num no Seiscentos, sobretudo com o advento do sentido mais genérico, é definido como um Racionalismo e do Empirismo3, notadamente nas modo de proceder, uma maneira de agir, obras de Descartes e Galileu4, respectivamente. um meio ou um caminho para se atingir um fim. Nesse sentido, método não se distingue Devido à forte influência que Descartes e de investigação ou doutrina, podendo Galileu exerceram na filosofia e na ciência do significar qualquer pesquisa ou orientação 5 Seiscentos, a questão do método consolidou-se a ser seguida para um estudo. É a este e perpassou de maneira bem-sucedida para a significado que se referem expressões como Contemporaneidade6, notadamente nas ciências método dialético ou método geométrico exatas e naturais7. Assim, o fato de o termo (FRAGOSO, 2011, p.17). método estar presente na tradição filosófica e Genericamente, o método seria um científica desde longa data, justifica e legitima caminho para se chegar a algo esperado; uma via a importância dos estudos e das pesquisas para se alcançar um objetivo almejado. Também referentes à questão do método na filosofia e seria o ato de planejar ou conceber meios na ciência, sobretudo nas obras e nos tratados para atingir aquilo que se busca. Entretanto, dos filósofos e cientistas que se serviram de esta concepção de método, por ser bastante um método (ou construíram um método) para generalista, pode gerar equívocos, pois há casos particulares e situações únicas e exclusivas, de * Mestre em filosofia pela Universidade Federal da Paraíba. 1 Em suas investigações filosófico-científicas, Aristóteles modo que se faz necessário também termos em fazia uso de dois métodos, a saber, o método demonstrativo mente uma concepção mais restrita de método. e o método dialético. Cf. FERIGOLO, A Epistemologia de Assim, em um A Aristóteles. 2 Euclides de Alexandria. Mais adiante falaremos de Euclides e discutiremos o método euclidiano. 3 Estamos nos baseando nas concepções de racionalismo e empirismo dadas por Johannes Hessen. Cf. HESSEN, Teoria do conhecimento, p. 48-59. 4 Descartes e Galileu, cada qual a seu modo, usaram um método para orientar suas investigações. O método cartesiano é caracterizado sobretudo pelo racionalismo, ao passo que o método galileano é caracterizado sobretudo pelo empirismo. 5 A adoção e o emprego de um método para orientar as investigações filosóficas e científicas. 6 Séculos XIX, XX e XXI. 7 Sobretudo na matemática, na física, na química e na biologia, respectivamente. Revista Conatus - FilosoFia de [...] sentido mais específico, o termo “método” é definido como um programa, um roteiro, que regularia previamente uma série de operações, ou um conjunto de determinadas ações, que se deve realizar em vista de um resultado determinado. Nesse sentido, mais restrito, método se refere a uma técnica particular de pesquisa, indicando um procedimento de investigação organizado, passível de ser repetido e de se corrigir, que garanta a obtenção de resultados válidos (Id, p. 17-18). Em resumo, de maneira a conciliar as concepções genérica e específica de método spinoza - volume 10 - númeRo 20 - dezembRo 2018 57 abrantes, Jorge gonçalves de. O expostas acima, podemos afirmar que todo método é uma sucessão ordenada de regras ou procedimentos estabelecidos para ser seguidos de modo a orientar e sistematizar as investigações e especulações com vistas à obtenção de conhecimento certo sobre algo. Nesse intuito, há vários tipos de métodos elaborados e idealizados pelo ser humano conforme os objetivos desejados, preferencialmente na ciência e na filosofia. Por exemplo, o método de pesquisa predominante nas ciências naturais é o método empírico; e nas ciências exatas predomina o método dedutivo8. No tocante a filosofia spinozana, a discussão sobre o método é relevante porque Spinoza utiliza um método para elaborar e expor sua Ética. Portanto, não haveria como evitar ou omitir a discussão em torno do conceito de método aqui. O método empregado por Spinoza para expor sua Ética foi o método geométrico. Assim, para se ter uma certa noção do que seja o método geométrico, é imprescindível apresentar, examinar e discutir o método geométrico, incluindo suas origens, características, desenvolvimentos e usos. 2 as Origens dO métOdO geOmétricO Aqui nos disporemos a apresentar e discutir brevemente o método geométrico na época de Euclides, tendo por referência principal o seu tratado de matemática, intitulado Os elementos. Para tanto, apresentaremos e discutiremos as concepções de definição, postulado, axioma e proposição no tempo de Euclides, assim como estão postos em Os elementos, de modo que isso será feito através do exame do conteúdo desses enunciados matemáticos, amparados e legitimados por textos de autores, comentadores e historiadores da matemática. Na atualidade, a matemática se apresenta como um saber abstrato e formal, situando-se inteiramente além dos fatos empíricos. (DA 57-68 COSTA, 1977, p. 37). Conforme Boyer (1989), a matemática surgiu originalmente como parte da vida diária do homem, isto é, como um conhecimento prático, totalmente diferente de como a conhecemos e a concebemos na atualidade, isto é, como um conhecimento teórico, completamente afastada da experiência. Boyer assinala que a matemática, em suas origens primitivas, ocupava-se do mundo que nossos sentidos percebem, e, por isso, era dependente das limitações sugeridas pelas observações da natureza. Os registros e documentos históricos mais remotos sobre a matemática provêm do Egito Antigo e da Mesopotâmia, e sugerem que o uso da matemática era destinado sobretudo à demarcação de terras e à construção de templos e altares. Por conta de a linguagem desses escritos antigos estar mais próxima de casos concretos, a maioria dos historiadores assinala uma evidente ausência de abstração na matemática egípcia e babilônica. Assim, em seus primórdios, a matemática surgiu como um conhecimento prático e foi desenvolvida com vistas às suas aplicações reais. A matemática primitiva se resumia às práticas de contagem e medidas, isto é, a aritmética e a geometria, associadas às atividades e técnicas cotidianas, voltadas, principalmente, para necessidades e propósitos quantitativos. A aritmética e a geometria são, portanto, tão antigas quanto a escrita, de modo que é muito complexo e arriscado afirmar qual das duas surgiu primeiro, ou se ambas surgiram quase que simultaneamente, isto é, se apareceram em momentos temporais bem próximos. Em relação à geometria, sabemos que [...] Heródoto e Aristóteles não quiseram se arriscar a propor origens mais antigas que a civilização egípcia, mas é claro que a geometria que tinham em mente tinha raízes mais antigas. Heródoto mantinha que a geometria se originava no Egito, pois acreditava que tinha surgido da necessidade prática de fazer novas medidas de terras após cada inundação anual no vale do rio. Aristóteles achava que a existência no Egito de uma classe sacerdotal com lazeres é que tinha conduzido ao estudo da geometria. [...]. Não podemos contradizer com segurança nem Heródoto nem Aristóteles quanto à motivação que produziu a matemática, mas é claro que ambos subestimaram a 8 Consiste em uma série de passos lógicos em que a conclusão é derivada diretamente de um grupo de declarações iniciais (premissas). Em matemática, isso inclui o cálculo e a aplicação de teoremas não explicitamente comprovados no decurso do raciocínio, mas que podem ser comprovados separadamente, se necessário. O termo também é usado para se referir ao resultado de tal processo de raciocínio. Cf. CLAPHAM and NICHOLSON, The Concise Oxford Dictionary of Mathematics, p. 213. 58 métOdO geOmétricO euclidianO. P. Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 10 - númeRo 20 - dezembRo 2018 abrantes, Jorge gonçalves de. O métOdO geOmétricO euclidianO. P. idade do assunto. O homem neolítico pode ter tido pouco lazer e pouca necessidade de medir terras, porém seus desenhos e figuras sugerem uma preocupação com relações espaciais que abriu caminho para a geometria. Seus potes, tecidos e cestas mostram exemplos de congruência e simetria, que em essência são partes da geometria elementar (BOYER, 1989, p. 6). Portanto, a geometria não surgiu como um conhecimento dotado de uma estrutura lógica, formal e abstrata, como é no presente, mas surgiu inicialmente como mensuração ou representação do espaço real, isto é, das formas das coisas e objetos do mundo real, de modo que o geômetra primitivo praticava uma geometria aplicada e não pura. (DA COSTA, 1977, p. 3-4). Assim, dado que a presença de determinadas figuras como expressão e representação de certas formas do mundo real não possui características lógico-abstratas, visto que a lógica e a abstração são independentes da existência dos corpos e fenômenos da natureza, a geometria estava longe de ser concebida como uma matemática pura9. Essa concepção somente se tornou possível quando se percebeu a possibilidade de conceber e realizar um projeto matemático apenas no âmbito do raciocínio e das ideias, ou dito de outra forma, no âmbito da razão e da lógica. Assim, ao sair da experiência e estabelecer-se completamente na teoria, a matemática consolidou-se definitivamente como um conhecimento abstrato e formal, livre e independente da prática e da aplicação, tornando-se uma ciência pura10. Ao dar esse passo e fazer esse movimento, isto é, do concreto ao abstrato, a matemática tornou9 A geometria pura trata de sistemas e estruturas completamente abstratas, enquanto que a geometria aplicada trata de adequar estes sistemas e estruturas abstratas ao mundo real”. Cf. CLAPHAM and NICHOLSON, The Concise Oxford Dictionary of Mathematics, p. 641. Ainda sobre isso, Newton da Costa nos esclarece o seguinte: “A matemática e a lógica não são ciências empíricas. Todavia, outras, como a física e a química, dependem da experiência e da observação do mundo real”. Cf. DA COSTA, Introdução aos fundamentos da matemática, p. 58. 10 A matemática e a lógica são consideradas ciências puras porque seus objetos existem exclusivamente no âmbito do raciocínio e da abstração. Cf. DA COSTA, Introdução aos fundamentos da matemática. Revista Conatus - FilosoFia de 57-68 se uma atividade e uma realização exclusiva do pensamento, tornando os seus objetos, antes sensistas (percepção) e quantitativos (contagem, medida), totalmente abstraídos, isto é, desconectados e descomprometidos da realidade. Para tanto, o pensamento matemático abstrato, ou a nova matemática, demandou o uso de uma linguagem capaz de exprimir e representar abstrações tais como números, funções, conjuntos e figuras geométricas, de modo que pudessem exprimir ideias numéricas, geométricas e relacionais sem necessitar recorrer às propriedades dos objetos reais e nem as limitações conceituais da linguagem natural (linguagem humana). Ao proceder dessa forma, o matemático pôde estudar as propriedades dos seus objetos somente por meio de um sistema apropriado de símbolos, relevando os seus aspectos e relações com os objetos do mundo real. (Ibid, p. 33). Assim, fez-se necessário o uso de uma linguagem formal na matemática via a adoção de símbolos e signos para exprimir e representar os entes e objetos matemáticos. (BOYER, 1989, p. 4-5). Do mesmo modo, houve a demanda por um procedimento formal e rigoroso de operacionalização e automatização que dependesse apenas da lógica e da razão para operar sobre os objetos da matemática de modo a engendrar suas propriedades de maneira exclusivamente especulativa, intelectual e conceitual. Quando nos referimos a um procedimento formal e rigoroso de operacionalização e automatização da matemática, estamos nos referindo ao método lógico-dedutivo dos matemáticos, mais conhecido pelo nome de método axiomático ou simplesmente axiomática, concebido exatamente para se alcançar cada vez mais uma rigidez formal e abstrata nas provas matemáticas. Em um sistema axiomático, escolhe-se um certo número de noções e hipóteses iniciais, assumidas como verdades evidentes e suficientes por si mesmas, sobre as quais edifica-se a teoria almejada. Em seguida, procuram-se as consequências dessa coleção de noções e hipóteses primitivas. É desse modo que se estrutura uma teoria axiomática. (DA COSTA, 1977, p. 31). No caso da matemática, parte-se de uma coleção de objetos matemáticos (ou de um grupo de sentenças matemáticas) evidentes e suficientes por si mesmas, e, a partir delas, spinoza - volume 10 - númeRo 20 - dezembRo 2018 59 abrantes, Jorge gonçalves de. O prova-se efetivamente um amplo conjunto de propriedades e resultados matemáticos. Uma teoria matemática construída mediante uma metodologia axiomática é bastante eficaz e útil porque gera economia de pensamento e promove sistematização e simplificação do conhecimento. (Ibid, p. 33 e p. 42). Devido a esses aspectos positivos, o método axiomático adquiriu grande êxito e notoriedade nas ciências puras, de modo que, com o passar do tempo e com a evolução da matemática, especialmente à geometria, o método axiomático tornou-se cada vez mais rigoroso, chegando a um alto grau de perfeição lógica. (Ibid, p. 32). Na empreitada de desconectar e livrar a matemática da influência e dependência dos sentidos e do mundo concreto, o matemático instituiu e consolidou o uso de uma linguagem lógico-simbólica e de um método lógicodedutivo, de modo que todo o corpo da matemática pudesse ser fundamentado e desenvolvido a partir de princípios lógicoracionais mediante raciocínios puramente lógico-racionais. (Ibid, p. 4 e p. 7). Nesse quesito, os matemáticos da Grécia Antiga foram os primeiros a empreender uma tentativa de conceber e realizar uma matemática abstrata e formal, livre das avaliações das sensações corporais e das opiniões pessoais. O caminho que alcançou êxito nessa empreitada se deu através da automatização e racionalização da matemática através da adoção do método dedutivo. Segundo Heródoto, Aristóteles e outros (Proclo, Plínio, Plutarco, Diógenes Laércio), foi Tales de Mileto (600 a.C.) que trouxe a matemática do Egito para a Grécia e lhe deu a forma demonstrativa que sempre teve desde a antiguidade grega, com ênfase na posição central da noção de demonstração dedutiva. (BOYER, 1989, pp. 45-7). Porém, foi somente com Euclides de Alexandria (300 a. C.) que houve uma efetiva e plena realização desse projeto. Entre os antigos matemáticos gregos havia um grande mal-estar referente à problemática do incomensurável11 e da demonstração ad 11 Os incomensuráveis são grandezas não exatas e não finitas. Por exemplo, a raiz quadrada do número dois é um incomensurável, e a divisão entre a circunferência e o diâmetro do círculo dá como resultado um incomensurável (número pi). Todos os números irracionais são incomensuráveis. Cf. BOYER, p. 72. 60 métOdO geOmétricO euclidianO. P. 57-68 infinitum12. Foram estas duas questões que ensejaram o surgimento e o emprego do método dedutivo-geométrico. Era comum realizar a mensuração de comprimentos de arcos e de retas e, ao final da medida, encontrar um número inexato (ou infinito, caso se aumentasse cada vez mais a precisão da medida na tentativa de encontrar um valor numérico finito). Da mesma forma, era comum uma demonstração demandar um número interminável de passos e uma cadeia conceitual infindável toda vez que se demonstrasse uma coisa em função de uma outra que não tinha sido previamente estabelecida ou posta. Para evitar lidar com essas demonstrações problemáticas e com esses números indesejáveis, os matemáticos desenvolveram um novo método de prova. Assim, os antigos geômetras gregos, ao desenvolverem uma geometria dedutiva livre da aritmética, acrescentaram à matemática o artifício novo de demonstração puramente geométrica e dedutiva. Os matemáticos que empreenderam com êxito esse projeto foram os grandes responsáveis por oferecer à matemática toda uma estrutura abstrata e formal, tornando-a um conhecimento intelectual e sofisticado. Toda essa abstração, intelecção e sofisticação alcançaram seu apogeu e sua consolidação com e a partir de Os elementos de Euclides, uma robusta e ampla obra que reuniu todo o saber matemático desenvolvido até aquele momento, conferindo-lhe uma exposição lógicoracional seguida de uma dedução rigorosamente geométrica; um denso compêndio da ciência matemática da época, reunindo tudo o que já se sabia até aquela data, ou ainda: uma enciclopédia do conhecimento matemático da Antiguidade Clássica. (STRUIK, 1987, p. 50). 12 “Não se pode definir nem demonstrar tudo. Assim, para definir um conceito A, necessitamos de outros, por exemplo, de A1 e A2; para definir A1, precisamos de outros, e assim sucessivamente. Logo, numa [demonstração], se pretendemos evitar círculos viciosos, há sempre conceitos que devemos aceitar sem definição e que se denominam conceitos primitivos [...]. Da mesma maneira, qualquer disciplina matemática sempre encerra certas proposições aceitas sem demonstração, chamadas proposições primitivas [...]. Porém, escolhidas as noções e as proposições primitivas, todos os outros conceitos da disciplina, para serem empregados, devem ser definidos em termos das noções primitivas, e todas as outras proposições (verdadeiras) da mesma só devem ser aceitas mediante demonstração [...].” In: DA COSTA, Introdução aos fundamentos da matemática, p. 9. Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 10 - númeRo 20 - dezembRo 2018 abrantes, Jorge gonçalves de. O 3 Os ElEmEntos de métOdO geOmétricO euclidianO. P. euclides O tratado de matemática de Euclides, intitulado Os elementos13, foi composto conforme o método dedutivo dos geômetras14. Sobre o título desta obra, Aristóteles nos informa, em sua Metafísica, que as proposições geométricas são chamadas de elementos15. Assim, fica claro por que o título desse tratado é Elementos, já que, como ficará evidente mais adiante, as proposições euclidianas apresentam e demonstram objetos e propriedades matemáticas de maneira puramente geométrica. O método dedutivo à maneira dos geômetras, ou simplesmente método geométrico, pode ser facilmente compreendido tão somente pela observação de como o tratado euclidiano está estruturado. Em primeiro lugar são enunciadas as sentenças que não carecem de demonstração; e em segundo lugar são enunciadas aquelas sentenças que necessitam de demonstração. As sentenças requerentes de demonstração são deduzidas e provadas a partir das sentenças indemonstráveis. Os conteúdos das sentenças indemonstráveis referem-se aos entes, objetos e propriedades geométricas, logo a dedução euclidiana é estrita e puramente geométrica. Numa demonstração matemática, começase com algo dado como certo e a partir daí avança-se passo a passo até chegar naquilo que se deseja provar. (BOYER, 1989, p. 88). Há na matemática duas ordens distintas para se realizar uma demonstração: uma sintética e outra analítica. Em outras palavras, o raciocínio matemático16 é feito de duas maneiras: síntese e análise. Quando a cadeia de raciocínios matemáticos leva das premissas à conclusão (raciocinar a partir do que é conhecido para o que se deve demonstrar), 13 Depois da Bíblia, estima-se que os Elementos de Euclides foi o livro mais reproduzido e estudado ao longo da história do Ocidente, pelo menos até fins do século XIX. Cf. STRUIK, A Concise History of Mathematics, p. 49. 14 Método geométrico. Os matemáticos usam, predominantemente, o termo método axiomático. 15 Cf. o original: “[...] denominamos “elementos” das construções geométricas aqueles itens cujas demonstrações estão inerentes nas demonstrações de outros (ou de todos, ou da maioria deles) [...]” (ARISTÓTELES, Metafísica, 998a25). 16 O raciocínio matemático é um conjunto de passos que podemos utilizar para assegurar a validade de certas afirmações (conclusões), desde que acreditemos na validade de outras que consideramos como já conhecidas (premissas). Revista Conatus - FilosoFia de 57-68 temos a ordem sintética. (Ibid, p. 305). Nesse sentido, a ordem demonstrativa empregada por Euclides nos Elementos é a ordem sintética, porquanto parte de uma coleção de sentenças autoevidentes (premissas) para derivar uma série de proposições (conclusões). A ordem analítica executa o procedimento inverso ao da síntese, isto é, toma as proposições por verdades autoevidentes (conclusões) e busca os fundamentos e os princípios (premissas) que as legitima e as sustenta como verdades certas e determinadas, raciocinando-se a partir da hipótese de que a incógnita foi dada e, a partir daí, deduzir uma conclusão necessária da qual a incógnita pode ser derivada. (Ibid). Por conta de Os elementos estar estruturado conforme a ordem dedutiva sintética e, sobretudo, por conta de esse tratado ser uma grande composição geométrica, refere-se também a sua via dedutiva como ordem geométrica17, de modo que este termo é sinônimo do termo ordem sintética. Nesse sentido, a dedução euclidiana, além de ser puramente geométrica, é também puramente sintética. É importante que se saiba que entre os matemáticos, a geometria euclidiana é chamada de geometria sintética porque as demonstrações são realizadas apenas com o uso de régua e compasso, além de que as representações e construções dos objetos e termos geométricos são feitas tão somente pelo uso da régua e do compasso.18 A geometria euclidiana, por fazer uso da ordem sintética nas demonstrações, parte de estruturas e conceitos sintéticos19, também denominados de entes ou conceitos primitivos, tais como a definição de ponto e linha, para gerar e provar um grupo de conclusões sofisticadas e complexas, chamadas de proposições. Os conceitos primitivos são pressupostos que não necessitam de demonstração, mas que são aceitos como certos e determinados, tomados como os fundamentos e as hipóteses de partida 17 De forma genérica, a ordem geométrica é o percurso dedutivo que vai dos indemonstráveis aos demonstráveis; dos primitivos aos derivados; das premissas às conclusões. 18 Na geometria euclidiana não há nenhum processo quantificador que seja característico de um procedimento analítico. Cf. BOYER, A History of Mathematics, p. 304, p. 322, p. 347. 19 Na nomenclatura e denominação dos matemáticos, são aquelas noções extremamente evidentes e simples, tanto que são também denominadas de noções intuitivas. spinoza - volume 10 - númeRo 20 - dezembRo 2018 61 abrantes, Jorge gonçalves de. O de uma teoria dedutiva, que, por conta disso, são também denominados de princípios20 ou de indemonstráveis. É dito também que os conceitos primitivos não possuem definição ou não devem ser definidos, nem tampouco devem depender de outros conceitos, o que não ocorre em Os elementos, pois Euclides, além de definir ponto e linha, define-os em função dos conceitos de partes, comprimento e largura, sem tê-los definidos antes em nenhum lugar do texto21. De todo modo, é a partir desses princípios, admitidos como verdadeiros e incontestáveis, que Euclides demonstra as suas proposições geométricas, também denominadas de conceitos derivados ou demonstráveis. Assim, Euclides inicia os Elementos enunciando os princípios de sua teoria geométrica, que são de três tipos, a saber, definição, postulado e axioma (ou noção comum), para logo em seguida usálos na demonstração das proposições. Dito isso, passaremos a tratar de cada um desses conceitos, levando em consideração o modo como estão expostos nos Elementos e a concepção que deveriam ter na época de Euclides. 4 definições Nas definições, Euclides apresenta as entidades geométricas de que fará uso, conceituando-as e explicando-as à medida que lhes atribui significados e características. As definições euclidianas são de três tipos: Nominal (ou conceitual), descritiva e construtiva (ou de construção). As definições euclidianas são nominais, pois não só declaram os entes geométricos, mas, sobretudo, os nomeiam, de maneira que nas definições iniciais dos Elementos podemos facilmente perceber isso quando Euclides enuncia os nomes ponto, linha e superfície, acompanhados de suas respectivas acepções, respectivamente: “ ‘Ponto é aquilo de que nada é parte.’; ‘E linha é comprimento sem 20 Também denominados princípios matemáticos. 21 Sobre isso, os Elementos de Euclides é bastante criticado por lógicos e matemáticos, pois espera-se que uma definição seja formulada a partir de termos previamente definidos, de modo que os primeiros termos não comportam definição. Estes primeiros termos seriam apenas nomeados, por isso denominados de “conceitos primitivos”. Assim, não definimos um “termo primitivo”, mas apenas indicamos as regras que regem o seu uso. Cf. DA COSTA, Introdução aos fundamentos da matemática, p. 9. 62 métOdO geOmétricO euclidianO. P. 57-68 largura.’; ‘E superfície é aquilo que tem somente comprimento e largura.’ ” (Os elementos, Livro I, definições 1, 2 e 5). Assim, na acepção do termo, a definição nominal explicita o sentido de um nome ou de uma palavra, estabelecendo uma relação recíproca e equivalente entre o nome e o significado desse nome. As definições euclidianas são também descritivas. A saber: “Consiste a definição descritiva na apresentação do ser que desejamos definir, de modo que possamos, pelos dados da definição, ter uma ideia precisa de sua forma e de seus atributos. É de emprego frequente em geometria.” (TAHAN, 1965, p. 7). Dessa forma, Euclides, ao enunciar e significar ponto, linha e superfície, os descreve, pois os adjetiva e os caracteriza. Ao declarar que as “extremidades de uma linha são pontos.” (Ibid, def. 3) ou que as “extremidades de uma superfície são retas.” (Ibid, def. 6), está caracterizandoas e, inevitavelmente, descrevendo-as, pois nos aponta como esses entes geométricos devem ser inteligidos ou representados. As definições euclidianas se dão também por construção. A saber: “São de emprego frequente, em geometria, as definições por construção. Ocorre esse tipo de definição sempre que o matemático com auxílio de pontos, linhas ou superfícies (elementos esses bem determinados) pretende conceituar um novo elemento geométrico” (TAHAN, 1965, p. 35). Assim, quando Euclides declara o que deve ser inteligido por ângulo plano22, não o está propriamente definindo, mas está nos indicando como esse ente geométrico deve ser construído mentalmente ou pelo uso de régua e compasso. Dessa forma, a definição euclidiana é uma sentença que enuncia aqueles entes ou objetos geométricos cuja veracidade não necessita de prova, mas que são autoevidentes e autodeterminados. A definição em Euclides se nos apresenta também como uma explicação ou declaração das características desses objetos indemonstráveis, cujo conteúdo deve comportar a significação e as propriedades fundamentais deles. Por conta disso, a própria definição em Euclides é também tida como um conceito primitivo ou um princípio 22 “E ângulo plano é a inclinação, entre elas, de duas linhas no plano, que se tocam e não estão postas sobre uma reta.” Cf. EUCLIDES, Os elementos, Livro I, def. 8. Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 10 - númeRo 20 - dezembRo 2018 abrantes, Jorge gonçalves de. O métOdO geOmétricO euclidianO. P. matemático. Em vista disso, podemos dizer que os matemáticos contemporâneos de Euclides não viam a necessidade de se demonstrar os princípios da ciência geométrica dedutiva, isto é, as definições, mas apenas tomá-los como certos e confiáveis, limitando-se a iniciar a dedução matemática a partir daquilo que tinha sido acertado como verdadeiro e inconteste no quadro das definições23. 5 POstuladOs O conteúdo das definições não implica na existência24 dos entes geométricos, mas esta função cabe aos postulados, responsáveis por garantir a existência de alguns deles. Assim, no primeiro postulado25 dos Elementos são requeridos dois pontos distintos para se ter um segmento de reta, ou seja, para se construir uma reta ou um segmento de reta, exige-se necessariamente a existência de dois pontos distintos. Por assim ser, percebe-se também que o postulado é uma sentença requerente, pois requerer algo. Esta observação pode ser melhor compreendida e assimilada quando examinamos o terceiro postulado26, no qual são requeridos um centro e um raio para descrever um círculo. Na Grécia Clássica, os postulados eram tidos e adotados como verdades particulares, porquanto eram empregados para se referir a ou se tratar de coisas específicas enquanto hipóteses básicas relativas ao ramo específico do saber, neste caso, da geometria sintética, conquanto exprimem propriedades estritamente geométricas. Dessa forma, os postulados pertencem a categoria dos princípios matemáticos, e, assim sendo, não necessitam de 23 Euclides inicia o Livro I de Os Elementos com uma lista de 23 definições, às quais seguem-se 5 postulados e 9 axiomas (ou noções comuns). 24 Na matemática, existência é entendida como ausência de contradição. Assim, quando se afirma que a solução de um problema existe, pretende-se dizer simplesmente que nenhuma contradição impede admitir a existência da solução. Um teorema de existência é a prova rigorosa de que a solução existe, mesmo que ainda não tenha sido descoberta. Há também o critério de existência em matemática associado a possibilidade da construção, de modo que não se poder falar de entes matemáticos que não possam ser construídos. Cf. DA COSTA, Introdução aos fundamentos da matemática, p. 36. 25 “Fique postulado traçar uma reta a partir de todo ponto até todo ponto.” 26 “E, com todo centro e distância, descrever um círculo.” Revista Conatus - FilosoFia de 57-68 demonstração, mas são tomados e aceitos como certos e determinados. Em resumo, o postulado euclidiano é a sentença que encerra verdades peculiares e exclusivas, cujo conteúdo enuncia condições de garantia da existência dos entes e figuras geométricas. 6 axiOmas Para fechar a apresentação dos princípios de sua geometria dedutiva, Euclides enuncia as noções comuns, também denominadas de axiomas. Os axiomas são as sentenças que encerram verdades universais, isto é, enunciados cujo conteúdo trata de coisas gerais a todas as ciências e saberes, por isso mesmo denominadas de noções comuns, pois são comuns a todo saber, isto é, válidas e evidentes para todo e qualquer tipo de conhecimento. Este entendimento sobre a significação axiomática fica mais claro e evidente quando examinamos diretamente o conteúdo dos axiomas euclidianos, em especial do primeiro27 e do oitavo28, pois tratam de coisas extremamente evidentes e genéricas, tão inequívocas e unânimes que conduzem a aceitação e persuasão imediatas. Para Euclides e para a maioria dos antigos matemáticos gregos, os axiomas se apresentavam sob um aspecto distinto de todos os demais princípios, porque não eram meramente hipóteses, mas declarações afirmativas de fatos e de verdades evidentes por si próprias, que todos poderiam aceitar e adotar sem nenhum problema. (BOYER, 1989, p. 105). Nesse sentido, os axiomas são mais gerais e mais fortes do que as definições e postulados, mesmo estes sendo indemonstráveis, pois enquanto o primeiro trata de conceitos primitivos e o segundo de especificidades, os axiomas tratam de verdades gerais, comuns e evidentes a todos os saberes.29 7 PrOPOsições Estando enunciados os princípios da sua teoria geométrica, Euclides inicia a declaração e provação de uma série de proposições matemáticas, cuja comprovação do conteúdo de 27 “As coisas iguais à mesma coisa são também iguais entre si.” (Os elementos, Livro I). 28 “E o todo [é] maior do que a parte.” (Os elementos, Livro I). 29 Atualmente, os matemáticos não veem diferença entre axioma e postulado, de modo que ambos possuem a mesma acepção e emprego. Cf. BOYER, A History of Mathematics, p. 105. spinoza - volume 10 - númeRo 20 - dezembRo 2018 63 abrantes, Jorge gonçalves de. O cada uma delas está, por efeito, fundamentada nas instruções presentes nas definições, nos postulados e nos axiomas. Assim, cumprindo o propósito dos Elementos, Euclides apresenta as proposições seguidas das suas respectivas demonstrações. Por assim ser, as proposições são sentenças afirmativas contingentes, pois enunciam conclusões ou resultados que podem ser verdadeiros ou falsos. Justamente por conta disso, necessitam ser provadas e validadas. As proposições são sentenças ditas contingentes porque os conteúdos dos seus enunciados não são evidentes por si próprios, mas concluem propriedades matemáticas que não são simples de entendimento e aceitação imediatas, nem tampouco de assimilação direta e rápida, de modo que precisam ser provadas para serem tidas como afirmações verdadeiras. Por efeito disso, as proposições são encaradas e tratadas como complexas e sofisticadas, já que seus conteúdos necessitam de demonstração para terem o assentimento do estudante. Depois que se dá a demonstração da proposição, todos a tomam por verdade certa e indubitável, passando a ser chamada, a partir daí, de teorema. Esta observação pode ser melhor evidenciada se examinarmos, por exemplo, o conteúdo da penúltima proposição do Livro I dos Elementos: “Nos triângulos retângulos, o quadrado sobre o lado que se estende sob o ângulo reto é igual aos quadrados sobre os lados que contém o ângulo reto” (Os elementos, Livro I, proposição 47). Esta proposição é bastante notória, pois encerra um dos mais célebres resultados da matemática, comumente conhecida pelo nome de teorema de Pitágoras. Perceba que a simples leitura dessa proposição não nos persuade de sua veracidade, de modo que é preciso demonstrá-la para que, só depois disso, nos convençamos de sua certeza. A demonstração euclidiana do teorema de Pitágoras se serve das informações contidas nos princípios, a exemplo das definições 10 e 19; dos postulados 1 e 4; e dos axiomas 1 e 2, notadamente.30 Isso implica dizer que as 30 “E quando uma reta, tendo sido alteada sobre uma reta, faça os ângulos adjacentes iguais, cada um dos ângulos é reto, e a reta que se alterou é chamada uma perpendicular àquela sobre a qual se alteou” (def. 10). “Figuras retilíneas são as contidas por retas, por um lado, triláteras, as por três, e, por outro lado, quadriláteras, as por quatro, enquanto multiláteras, as contidas por mais de quatro retas” (def. 19). 64 métOdO geOmétricO euclidianO. P. 57-68 conclusões e resultados que as proposições encerram são consequências diretas das definições, dos postulados e dos axiomas. Por conta disso, os conceitos declarados nas proposições são denominados de conceitos derivados, como tinha de ser, já que são construídos a partir dos conceitos primitivos. Desse modo, o que garante e legitima a veracidade das proposições são as verdades autoevidentes e indubitáveis estabelecidas e consolidadas nos princípios. Além do teorema de Pitágoras, outros célebres resultados matemáticos já eram conhecidos na época de Euclides, a exemplo das áreas de algumas superfícies e dos volumes de alguns sólidos. Assim como o teorema de Pitágoras, estes resultados não eram autoevidentes, de modo que careciam de demonstração, o que leva Euclides a tomar estes resultados complexos e sofisticados por proposições e, servindo-se da dedução geométrica em ordem sintética, procurar demonstrá-los, tendo em vista que o importante em uma demonstração é que seja válida e que forneça o resultado esperado. Nesse quesito, foi somente com Euclides que encontramos pela primeira vez uma sequência lógica de teoremas gerais com demonstrações apropriadas. (STRUIK, 1987, p. 48-50). 8 cOnsiderações sObre O métOdO geOmétricO euclidianO A partir dessa breve discussão sobre a estrutura dos Elementos de Euclides, ficanos claro que o método euclidiano é do tipo dedutivo sintético; tanto no sentido de partir de um conjunto de premissas (definições, postulados e axiomas) em direção às suas consequências (proposições), quanto no sentido de oferecer uma prova em termos geométricos, apenas com o uso de régua e compasso. De maneira resumida e direta, tendo em mente o exposto acima, podemos dizer que Euclides enuncia um pequeno número de conceitos iniciais que lhe permite demonstrar geometricamente um grande número de propriedades matemáticas. “Fique postulado traçar uma reta a partir de todo ponto até todo ponto” (post. 1). “E serem iguais entre si todos os ângulos retos” (post. 4). “As coisas iguais à mesma coisa são também iguais entre si” (ax. 1). “E, caso sejam adicionadas coisas iguais a coisas iguais, os todos são iguais” (ax. 2). Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 10 - númeRo 20 - dezembRo 2018 abrantes, Jorge gonçalves de. O métOdO geOmétricO euclidianO. P. Apesar do rigor lógico e do êxito demonstrativo dos Elementos, este tratado geométrico não estar imune às críticas. Em sua crítica aos Elementos de Euclides, o matemático e lógico Newton da Costa assevera o seguinte: [...] A obra de Euclides não é inteiramente satisfatória, entre outras razões, porque o geômetra grego, em suas demonstrações, lança mão, em diversas oportunidades, de suposições que não enunciou de modo explícito. Por conseguinte, Euclides não se limitou a tirar consequências exclusivamente dos conceitos primitivos que explicitou, donde sua axiomática não ser perfeita. (DA COSTA, 1977, p. 32). 57-68 com certeza segura se Euclides apenas nomeou “ponto” sem conceituá-lo, ou se foram seus discípulos que tomaram a decisão de conceituar “ponto”, associando-o com “parte”. Essa crítica também é corroborada pelo argumento de que a ideia de “parte” é completamente estranha e alheia à ideia de “ponto”, porque, além de não terem nada em comum, são coisas inteiramente opostas.33 Da mesma forma, o uso dos termos “largura” e “comprimento” por Euclides, ao definir linha e superfície, recebe a mesma crítica. Além dessas críticas, há também a censura que se faz ao uso dos termos “parte”, “largura” e “comprimento” para exprimir ou descrever coisas e objetos abstratos, dado que esses termos34 se aplicam a caracterização e mensuração de coisas e objetos reais. Portanto, conforme esses critérios e críticas, a axiomática euclidiana é considerada imperfeita. No tocante a natureza das definições euclidianas, diz-se que são definições geométricas por declararem e tratarem tão somente de entes e objetos geométricos. Sobre os postulados euclidianos, considerase que são legítimos, porquanto satisfazem os critérios anteriormente citados e discutidos. Afirma-se isso porque os conteúdos dos postulados são dotados de clareza e evidência próprias, e são também enunciados em função de termos previamente nomeados e determinados nas definições. Como vimos anteriormente, os postulados euclidianos são petições que dizem respeito somente às particularidades dos objetos geométricos declarados nas definições, e, por conta disso, diz-se que os postulados euclidianos são postulados geométricos. Nesse quesito, ressalvamos apenas a problemática envolta no quinto postulado35, já que durante muito tempo se tentou demonstrá-lo por se considerar que ele extrapolava as funções e atribuições básicas de uma petição geométrica, e por isso não aparentava ser uma sentença indemonstrável, mas se assemelhava mais A crítica que matemáticos e lógicos lançam sobre a axiomática de Euclides31 se deve ao caso de algumas definições euclidianas não se apresentarem como legítimas definições. A definição perfeita deve ser aquela sentença que exprime a coisa pela própria coisa de maneira claríssima e evidente. A definição perfeita é também aquele enunciado que exprime a coisa através de outras coisas previamente definidas com clareza e distinção. Conforme as exigências da lógica matemática, esses são os dois critérios fundamentais requeridos para que tenhamos uma genuína definição, de modo que a definição que não cumpre um desses dois critérios não pode ser considerada uma autêntica definição. Assim, por não cumprir estes dois critérios, algumas das definições euclidianas não são encaradas como legítimas definições32, a exemplo das definições de ponto, linha e superfície. Euclides define ponto em função do termo “parte”, apesar de não tê-lo nomeado de antemão e nem esclarecido previamente o que se deveria entender por “parte”. Não sabemos se Euclides entendia o termo “parte” como uma palavra clara e distinta por si mesma; quer dizer, se Euclides tomava o significado do vocábulo “parte” como extremamente evidente. Assim, se fosse esse o caso, então o termo “parte” não careceria de significação 33 Aqui caberia dizer também que se trata de uma nem de nomeação. Além do mais, não sabemos definição negativa, isto é, a definição que define a coisa 31 O método geométrico euclidiano é um tipo de axiomática. 32 Caso a definição não se apresente sob a forma de um autêntico termo primitivo, deve então satisfazer esses dois critérios. Revista Conatus - FilosoFia de por aquilo que ela não é. 34 Largura e comprimento. 35 “E, caso uma reta, caindo sobre duas retas, faça os ângulos interiores e do mesmo lado menores do que dois retos, sendo prolongados as duas retas, ilimitadamente, encontrarem-se no lado no qual estão os menores do que dois retos.” (Postulado das paralelas, Livro I). spinoza - volume 10 - númeRo 20 - dezembRo 2018 65 abrantes, Jorge gonçalves de. O a uma proposição demonstrativa. Porém, o quinto postulado de Euclides, nos domínios da geometria euclidiana, nunca foi demonstrado, e, por efeito disso, continua sendo um legítimo e autêntico postulado. Em relação aos axiomas euclidianos, não há dúvidas de que concluem e declaram verdades gerais e comuns a todos os campos da matemática. Nesse quesito, não há dúvidas de que são legítimos axiomas. Os conteúdos dos axiomas euclidianos são claros e evidentes por si mesmos, não tanto pela simplicidade e precisão de seus enunciados, nem ainda pela obviedade das coisas que enunciam, mas, sobretudo, pela força persuasiva de assentimento e inteligibilidade imediatas. Os axiomas euclidianos não dependem nem necessitam daquilo que se declara nas definições e nos postulados, como tem de ser, por isso podem ser enunciados em função de outros termos sem definição prévia. No entanto, a única exigência que se faz é que esses termos sejam muito evidentes e tenham total relação com aquilo que se enuncia no axioma. À exceção do nono axioma, todos os demais, conforme o estabelecido acima, são legítimos axiomas. A problemática do nono axioma36 está em sua semelhança com um postulado, dado que aparenta ser uma petição, pois exige uma condição geométrica básica para termos uma área (superfície geométrica finita ou limitada). Apesar disso, a obviedade e generalidade dessa sentença nos faz acolhê-la como axioma sem maiores problemas, de modo que isso não tira a legitimidade e autenticidade dos axiomas euclidianos. Por fim, cabe esclarecer que os axiomas euclidianos não devem nem podem ser denominados de axiomas geométricos, como tem de ser, já que seus enunciados não declaram nem tratam de objetos ou particularidades estritamente geométricas, satisfazendo a sua universalidade. Quanto às proposições euclidianas, apenas observamos que todas são legítimas demonstrações geométricas, porquanto são deduzidas de modo puramente geométrico, e nenhuma delas se confunde nem se assemelha às definições, postulados ou axiomas, como tem de ser, já que são sentenças que podem e devem 36 “E duas retas não contêm uma área.” (Livro I). 66 métOdO geOmétricO euclidianO. P. 57-68 ser provadas porque não são de rápido e fácil assentimento e compreensão. Como sugerimos acima, a axiomática euclidiana é geométrica em parte devido aos conteúdos das definições e dos postulados serem estritamente geométricos, mas, a axiomática de Euclides é geométrica, sobretudo, devido ao fato de as demonstrações serem realizadas de maneira puramente geométrica. Isso significa dizer que Euclides deduz e prova as suas proposições utilizando, sobretudo, os entes e objetos declarados nas definições e requeridos nos postulados, empregando apenas uma régua e um compasso para operá-los. Por conta disso, o método axiomático euclidiano é também denominado método geométrico. Portanto, uma perfeita axiomática é aquela que parte de enunciados tão claros e evidentes que são capazes de evitar e afastar os “círculos viciosos” e as “cadeias causais conceituais intermináveis”. Essas exigências e condições são fundamentais para que se realize uma legítima e autêntica dedução sintética, e, por efeito, se tenha uma genuína e fidedigna axiomática. Assim, Euclides procede de maneira axiomática para não cair em uma “regressão conceitual” ad infinitum; isto é, para todo conceito que declarar, necessitar de um outro conceito que o explique. Ademais, a própria natureza do método dedutivo sintético (axiomática) exige que seja assim, dado que é um método finito, e, como tal, parte de um número reduzido e fixo de premissas; além de que, por ser um método lógico, a própria lógica demanda a sua finitude. É importante mencionar que, além de definições, axiomas, postulados e proposições, há também lemas, corolários e escólios, que, de forma geral, são sentenças complementares e explicativas às proposições, quando necessário, e que, por conta disso, sempre são postas depois das proposições ou junto delas, e, assim como as proposições, são passíveis e necessitárias de prova. O corolário é uma consequência ou conclusão deduzida ou induzida diretamente das informações ou dos conteúdos das proposições; o escólio é um tipo de comentário ou interpretação de cunho explicativo que serve, sobretudo, para elucidar ou explicitar melhor determinadas questões ou aspectos das proposições que não ficaram perfeitamente Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 10 - númeRo 20 - dezembRo 2018 abrantes, Jorge gonçalves de. O métOdO geOmétricO euclidianO. P. claros ao longo das demonstrações; e o lema é uma proposição secundária (solidária e subordinada) à proposição central, já que é um tipo de complemento e de suporte à proposição principal, de modo que, por conta disso, não necessariamente está dentro da sequência ou cadeia dedutiva. Vale destacar que Euclides não recorre ao artifício do escólio ao longo de suas demonstrações geométricas, pois utiliza apenas corolários e lemas. Apesar de haver uma clara distinção e separação quanto aos significados e empregos desses artifícios a época de Euclides, atualmente eles são tomados e tidos como sinônimos e equivalentes, de modo que escólio e corolário se referem aos mesmos conceitos e propósitos, assim como também lema e teorema. 9 cOnsiderações finais O método euclidiano demonstra muitas propriedades matemáticas de forma puramente geométrica, de modo que é nesse quesito que está a originalidade desse método. O modo como Euclides opera é bem simples de entender: ele enuncia uma ampla coleção de entes geométricos (ponto, linha, superfície, ângulo, círculo, entre outros) na forma de premissas (definição, postulado, axioma), e a partir delas demonstra uma extensa lista de proposições matemáticas. Assim é o modus operandi de Euclides. Todas as propriedades sobre círculos, triângulos e demais figuras geométricas que Euclides enuncia nos Elementos não são apenas apresentadas, mas são provadas. No sistema dedutivo dos Elementos, Euclides demonstra geometricamente as relações e propriedades matemáticas como consequências lógicas de algumas poucas e simples premissas. Por efeito disso, para prosseguir adiante no estudo das demonstrações euclidianas de maneira a depreendê-las efetivamente, devese, necessariamente, aceitar as premissas como verdadeiras. Mas, mais que isso, devese aceitá-las como afirmações suficientes e determinadas por si mesmas. O rigor lógico do método euclidiano está em ser axiomático, quer dizer, se aceitarmos as premissas, devemos aceitar também todo o restante, de modo que nenhuma dúvida posterior é possível. Nesse sentido, a força do método geométrico também está em ser axiomático porque suas Revista Conatus - FilosoFia de 57-68 premissas são apresentadas como fundamentos sólidos e irrefutáveis. Assim, demonstrar geometricamente à maneira de Euclides significa tomar os elementos geométricos e dispô-los sob a linguagem e a ordem do método geométrico. A linguagem do método geométrico é nada mais que as formas e as figuras geométricas, e a ordem do método geométrico é a própria ordem do método dedutivo. Assim, a maneira de demonstrar de Euclides é genuinamente geométrica e puramente dedutiva. Dessa maneira, distinguem-se duas coisas no modo euclidiano de demonstrar, quais sejam, a linguagem e a ordem. Os elementos geométricos declarados nas premissas são, para os matemáticos, objetos de natureza simples e intuitiva, e nesse sentido são denominados de sintéticos pelos matemáticos, de maneira que é daí que deriva o termo geometria sintética, comumente usado pelos matemáticos para se referirem à geometria euclidiana. Os elementos geométricos que servirão de pressupostos para fundamentar a demonstração das proposições são apresentados inicialmente como verdades autossuficientes e autodeterminadas. Por tomar esta via demonstrativa, o método geométrico é também denominado de método sintético ou simplesmente de síntese. Assim, em Euclides, temos a ideia de método como linguagem e ordem, ou seja, toma-se o método geométrico euclidiano por “forma de linguagem” e por “maneira de demonstrar”, respectivamente. A concepção de método geométrico apenas como ordem imperará ao longo da história, sobretudo na filosofia do Seiscentos, como mostraremos adiante ao tratarmos de alguns dos principais filósofos desse período. k k k spinoza - volume 10 - númeRo 20 - dezembRo 2018 67 abrantes, Jorge gonçalves de. O referências métOdO geOmétricO euclidianO. P. 57-68 bibliOgráficas ARISTÓTELES. Metafísica. Livros I, II e III. Campinas: IFCH Unicamp, 2008. BOYER, Carl B. A History of Mathematics. New York, Brooklin: JOHN WILEY & SONS, 2º ed., 1989. CLAPHAM, Christopher; NICHOLSON, James. The Concise Oxford Dictionary of Mathematics. New York: Oxford University Press, 4º ed., 2009. DA COSTA, Newton C. A. Ensaio sobre os fundamentos da lógica. São Paulo: HUCITEC, 3º ed., 2008. DA COSTA, Newton C. A. Introdução aos fundamentos da matemática. São Paulo: HUCITEC, 2º ed., 1977. EUCLIDES. Os elementos. São Paulo: UNESP, 2009. FERIGOLO, Jorge. A Epistemologia de Aristóteles. São Leopoldo, RS: Unisinos, 2014. FRAGOSO, E. A. da Rocha. O método geométrico em Descartes e Spinoza. Fortaleza: EdUECE, 2011. HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. São Paulo: Martins Fontes, 3º ed., 2012. STILLWELL, John. Mathematics and Its History. New York: Springer-Verlag, 1989. STRUIK, Dirk J. A concise history of mathematics. New York: Dover Publications, 4º ed., 1987. TAHAN, Malba. O problema das definições em matemática. São Paulo: Saraiva, 1965. k k k 68 Revista Conatus - FilosoFia de spinoza - volume 10 - númeRo 20 - dezembRo 2018