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Copyright da organização © 2013 by Stefania Chiarelli,
Giovanna Dealtry e Paloma Vidal
Direitos desta edição reservados à
EDITORA ROCCO LTDA.
Av. Presidente Wilson, 231 – 8º- andar
20030-021 – Rio de Janeiro, RJ
Tel.: (21) 3525-2000 – Fax: (21) 3525-2001
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Printed in Brazil/Impresso no Brasil
preparação de originais
SÔNIA PEÇANHA
CIP-Brasil. Catalogação na fonte.
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
F996
O futuro pelo retrovisor: inquietudes da
literatura brasileira contemporânea / Stefania
Chiarelli, Giovanna Dealtry e Paloma Vidal
(organizadoras). – Rio de Janeiro: Rocco, 2013.
ISBN 978-85-325-2830-8
1. Literatura brasileira - História e crítica.
I. Chiarelli, Stefania, 1969-. II. Dealtry,
Giovanna, 1967-. III. Vidal, Paloma, 1975-.
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SUMÁRIO
Apresentação .......................................................................................... 117
EXPERIÊNCIA, TRANSMISSÃO, ALTERIDADE .......................... 115
O gosto de areia na boca – sobre Diário da queda,
de Michel Laub – Stefania Chiarelli ........................................... 117
Espirais: a escrita de Bernardo Carvalho
– Claudete Daflon ............................................................................ 133
Leite derramado, antípoda da literatura marginal
– Alexandre Faria ............................................................................ 152
Carola Saavedra: da (im)possibilidade de alcançar
o outro – Diana Klinger ................................................................. 170
LITERATURA, VIDA, CENA LITERÁRIA ....................................... 181
Ricardo Lísias: versões de autor – Luciene Azevedo .................... 183
Adriana Lunardi: assinatura, filiação e inscrição
na cena literária – Ana Cláudia Viegas ...................................... 110
Em direção ao animal: João Gilberto Noll,
escrita e bios – Gabriel Giorgi ...................................................... 120
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RELEITURAS DA TRADIÇÃO,
REESCRITURAS DO MODERNO .................................................. 135
Rodrigo Lacerda e a arquitetura da generosidade
– Sérgio de Sá.................................................................................... 137
Luiz Ruffato e as vozes pregressas: experimentações
e releituras – Catia Valério Ferreira Barbosa............................ 149
Os sofrimentos dos jovens protagonistas em três romances
de Daniel Galera – Leila Lehnen ................................................. 167
Cidade Livre: romance de formação nos ritmos
de Brasília – Graça Ramos ............................................................ 185
PROFANAÇÃO, CITAÇÃO, ENCENAÇÃO ................................. 201
Sérgio Sant’Anna contempla o real
– Giovanna Dealtry ......................................................................... 203
Reciclando as ruínas de ontem: o procedimento
de citação em dois romances de Lourenço Mutarelli
–Pascoal Farinaccio ......................................................................... 218
Valêncio Xavier: o autor como profanador
– Jorge Wolff ..................................................................................... 240
REDEFINIÇÕES DO CÂNONE,
DOBRAS DO NACIONAL ............................................................... 259
Passageiro do fim do dia, de Rubens Figueiredo:
um olhar sobre o naturalismo
– Paulo Roberto Tonani do Patrocínio ........................................ 261
A cidade ilhada. Narrativa e sociedade
latino-americanas em ruínas – Susana Scramim.................... 279
De baratas, moluscos e peixes. Sobre Azul-corvo,
de Adriana Lisboa – Paloma Vidal ............................................. 300
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APRESENTAÇÃO
Ao refletir sobre o contemporâneo, costumamos sentir
falta de um recuo que nos permita uma visão do que supostamente está perto demais de nós, como se o contemporâneo estivesse colado ao presente, daí a dificuldade de captar aquilo de
que não conseguimos tomar distância. Um anacronismo tem
sido por isso reivindicado: não seria contemporâneo justamente aquele capaz de se deslocar do presente e não tanto quem
se identifica de maneira imediata com o novo ou a novidade?
Nesse sentido, refletir sobre essa condição não implicaria também, necessariamente, uma tomada de distância?
Partimos aqui dessas interrogações bem como da hipótese de que é na superposição de temporalidades, numa tensão
entre presente, passado e futuro, que se constitui a literatura
atual. John Barth, em seu artigo “A literatura de exaustão”, de
1967, já apontava para o fim das possibilidades estéticas como
ditadas pelas vanguardas modernistas; mas o ensaísta vislumbrava igualmente a possibilidade infinita de acessar a tradição
e assim recombinar a partir do presente esse inventário interminável. De maneira semelhante, poderíamos nos perguntar
se diversos autores brasileiros contemporâneos não estariam
operando reapropriações de questões fundamentais dos séculos XIX e XX – no plano estético, ideológico, temático, formal
etc. –, reelaboradas a partir do presente.
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A nossa aposta é que parte expressiva da atual literatura
brasileira está caminhando neste momento para uma releitura das tradições da modernidade, saqueando ou revisitando
o passado, como sugere a expressão de Marshall McLuhan, reapropriada por nós, que serve de título a esta publicação. Em seu
sentido original, a expressão dizia respeito a um olhar fixo sobre
o passado, que tendia a recuperá-lo sempre da mesma maneira. Gostaríamos de retomá-la aqui para tratar de uma relação
com o passado que pode se dar de múltiplas formas, de modo
que não se estabeleça uma relação linear de causalidade entre
passado, presente e futuro.
À indagação do que ainda é possível resgatar quando se lança esse olhar para o passado, os textos deste livro respondem
de várias maneiras, formando núcleos de questões que denominamos “Experiência, transmissão, alteridade”, “Literatura,
vida, cena literária”, “Releituras da tradição, reescrituras do
moderno”, “Profanação, citação, encenação” e “Redefinições
do cânone, dobras do nacional”.
No primeiro caso, trata-se de uma recuperação da experiência – palavra tão usada, questionada, por momentos banida,
que retorna quando já parecia ter se esgotado, com um sentido
menos idealizado, menos uno, menos onipotente. Assim, no seu
texto, Stefania Chiarelli aborda, via Samuel Rawet, o romance
Diário da queda, de Michel Laub, indicando que ambos interpelam a tradição no que ela tem de petrificada e põem a própria
transmissão da experiência em questão, explorando a dimensão
ética e política da memória: “O conflito com a ascendência e a
inviabilidade de negar completamente as raízes culturais judaicas ocupam importante lugar tanto na obra de Rawet quanto no
romance de Michel Laub”, afirma Stefania, que busca entender
esse passado que volta insistentemente como leitura do presente.
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Já no texto de Claudete Daflon, experiência e alteridade são
retomadas no sentido de se pensar, também aqui num contraponto, agora entre o diário de viagem de Mário de Andrade e o
romance Nove noites, de Bernardo Carvalho, o complexo processo de apreensão do outro. “A procura pela verdade mostrou-se
inútil e, diante disso, a subjetividade do narrador confronta-nos com a impossibilidade de qualquer revelação. Bernardo
Carvalho não só põe sob suspeita a verdade etnográfica, mas
também a verdade do romance”, afirma Claudete.
Também a possibilidade, ou impossibilidade, de estar em
relação com o outro é central no texto de Diana Klinger sobre
o que ela chama de “trilogia da separação”, referindo-se aos três
romances publicados por Carola Saavedra. Endereçados a outros personagens, e também aos leitores, seja por meio de cartas, de uma gravação ou de uma conversa com o psicanalista,
estes textos, sugere Diana, fazem ver que “a literatura mesma
é a evidência de uma falha na comunicação”, mas também uma
“tentativa de lidar com a impossibilidade de comunicação com
o outro, com o desconforto que há nos afetos”.
Em clave semelhante, enquanto resgate da possibilidade
de narrar, é lido por Alexandre Faria o “desencaixe do tempo
na ordem narrativa” em Leite derramado, de Chico Buarque. Ao
que parece, num tempo em que a literatura é chamada a se abrir
para um campo de práticas culturais em que não tem mais um
lugar privilegiado, é possível também pensar sua especificidade em termos desse modo singular de lidar com o tempo que
pode nos fazer compreender algo sobre a excludente história
do Brasil, em comparação com outras linguagens, como o rap.
Na segunda parte, “Literatura, vida, cena literária”, alguns
textos questionam – e dialogam com – o paradigma que excluiu o autor da pauta de discussão da crítica, ao abordarem
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os modos como a tensão entre ficção e escrita de si encontrada
em escritores modernos é retomada em muitas das criações de
autores contemporâneos. Pode-se perceber tal retomada nos
contos de Vésperas, de Adriana Lunardi. Segundo Ana Cláudia Viegas, “em vez de fruto de uma originalidade absoluta,
a criação literária se apresenta, nessa obra, como resultado de
diversas leituras e reescrituras, embaralhando-se na trama final
dados biográficos das autoras, personagens, frases, referências
das mais diversas ordens”.
A criação de figuras autorais ambíguas aparece de forma semelhante na escrita de Ricardo Lísias, como destaca Luciene
Azevedo, que reflete em seu texto sobre as marcas da assinatura
de Lísias no contexto da literatura contemporânea e a criação
de um nome-figura de autor, formando “um autorretrato como
autor que lança mão de dados autobiográficos, empregando,
inclusive, o nome próprio, para transformá-los em uma engenhosa arquitetura textual”.
Finalmente, o texto de Gabriel Giorgi sobre João Gilberto
Noll faz uma distinção entre duas ênfases na abordagem contemporânea da interseção entre literatura e vida: a primeira
está relacionada às escritas do eu, marcada por uma dissimetria ou uma defasagem entre o vivido e sua elaboração pela
memória, entre literatura e vida; já a segunda, a que interessa
ao autor, “pensa a vida em termos de corpos, de materialidade
biológica, de organismos e forças e intensidades vivas; põe em
cena a relação entre um ‘vivente’ e a escrita”.
De modo geral, a experiência, enquanto aquilo que nos vincula ao mundo e aos outros seres, está sob suspeita na literatura
abordada aqui; há nela uma falha, uma desilusão, um desconforto. Daí talvez que se complexifiquem as estratégias narrativas, justamente por meio da releitura e da reescrita dos gêneros
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surgidos na modernidade, como se propõe na parte “Releituras
da tradição, reescrituras do moderno”.
No texto sobre João Almino, Graça Ramos explora as diversas concepções temporais no romance Cidade Livre, em tensão
com a herança dos romances de formação, em uma jornada
que aqui surge duplicada: a de João, nome que se desdobra do
escritor ao narrador-personagem e também ao revisor fictício,
e a da cidade que nomeia o livro. Ao acompanhar os últimos
cinquenta anos da história de Brasília, Almino apresenta uma
“tensão aglutinadora entre tempo e espaço”, própria do contemporâneo e de uma cidade erigida sem pausas.
Um diálogo com o Bildunsgroman é também proposto por
Leila Lehnen, ao abordar três romances de Daniel Galera que se
centram “em personagens que passam por processos, ainda que
distintos, de trans(formação) após eventos impactantes”. Assim
ela observa que a obra ficcional de Galera segue os parâmetros do
gênero, recuperando-o e adaptando-o ao século XXI, de modo
que suas personagens ecoem problemáticas contemporâneas.
Uma tensão entre os gêneros e suas potencialidades guia
igualmente a abordagem de Catia Valério da obra de Luiz
Ruffato, em que, por intermédio do diálogo com obras da modernidade, o romance sofre mutações. A fragmentação, a colagem, a polifonia são alguns dos procedimentos que Ruffato
recria para efetuar um painel móvel da cidade de São Paulo nos
dias de hoje que aproxima a literatura do cinema. Sobre Eles
eram muitos cavalos, Catia afirma: “Seu romance-mosaico liberta
o texto dos significados preestabelecidos para problematizar as
fronteiras entre a ficção e a realidade e, desse modo, convidar
o leitor a um repensar de seu papel em meio ao caos urbano.”
A literatura ainda teria assim algo a oferecer a seus leitores,
como propõe Sérgio de Sá ao refletir sobre o fértil diálogo entre
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a obra de Eça de Queirós e Rodrigo Lacerda, em que se torna
possível a recuperação de uma linhagem que, ao abrir diálogos
literariamente requintados, encontra “também uma forma de
dialogar com o leitor contemporâneo, muito pouco inocente”.
Essa “generosidade” é uma maneira de se posicionar em relação ao campo cultural contemporâneo, entre o experimentalismo e a comunicação.
Criar procedimentos que lhe deem sentido num mundo
veloz, imagético, hipercomplexo – essa parece uma das tarefas
da atual literatura. Na parte “Profanação, citação, encenação”,
Lourenço Mutarelli, Valêncio Xavier e Sérgio Sant’Anna surgem
como criadores que problematizam essa trama de referências.
De acordo com Pascoal Farinaccio, a fabricação de identidades
em O cheiro do ralo, de Lourenço Mutarelli, se dá a partir da pilhagem, citação e posterior ressignificação. Evidencia-se assim o
procedimento de citação sem culto reverencial ao passado, livre
do peso que inibe, mas como um processo que se retroalimenta.
Numa sintonia parecida, para Jorge Wolff, Valêncio Xavier
se coloca como “explorador do baixo materialismo, perverso
voyeur e bricoleur de vozes e imagens alheias”, propondo “de novela em novela, de raconto em raconto, a dissecção de corpos
textuais os mais variados”. Ao lançar um olhar impiedoso sobre
os modos de ver e de fazer modernos, próprios da sociedade de
consumo, o escritor está ele mesmo em busca de “formas ainda
eficazes de profanação” no ápice do capitalismo, afirma Joca.
Giovanna Dealtry investiga nas narrativas de Sérgio Sant’Anna
modos de apropriação operados pelo escritor na constante
interseção que promove entre literatura e artes plásticas. A autora enfatiza que se coloca em jogo na prosa do escritor carioca
“a saturação do discurso e do olhar realista, a partir do encontro com obras ou artistas que também desafiaram as categori12
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zações e os parâmetros convencionais das artes”. Nessa chave,
indaga em seu texto qual seria o sentido de resgatar a contemplação na contemporaneidade.
A última parte, “Redefinições do cânone, dobras do nacional”, coloca em tensão as produções literárias e críticas. Se
o lugar do autor e da literatura se mostra instável, sujeito a recriações, também o da crítica. Haveria diferentes modos de ser
crítico na contemporaneidade?
O texto de Susana Scramim sugere a possibilidade de suportar um fracasso da obra em relação a certas expectativas
de leitura pautadas em modelos genéricos tradicionais. Assim
ocorre com os contos de A cidade ilhada, de Milton Hatoum.
“Todas essas passagens, mínimas e lacunares, produzidas por
esses relatos”, sugere Susana, “não poderiam ser compreendidas dentro de um controle do gênero; ao contrário, elas só podem ser compartilhadas num movimento entre subjetividades
passantes, lacunares e inconclusas.”
A pergunta sobre como a crítica constrói suas leituras está
também no texto de Paloma Vidal. O que gera conexões e desconexões em relação a isso que chamamos “literatura brasileira”? Como se constrói a leitura de uma obra no âmbito de um
paradigma de literatura nacional? Paloma lê na obra de Adriana Lisboa um “recuo do épico”, que estaria vinculado a “um
distanciamento em relação à função agregadora e compensatória da literatura, tal como foi pensada desde o romantismo;
em outras palavras, em relação a uma literatura que une em
torno de uma identidade nacional e que, por sua vez, redime
das mazelas da nação”.
Para Paulo Roberto Tonani do Patrocínio, nessa mesma linha de questionamento, seria possível ler o romance Passageiro do fim do dia, de Rubens Figueiredo, como um diálogo com
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o naturalismo cientificista do século XIX, pensando na tensão
criada a partir da permanência do modelo e sua própria recusa:
“É neste espaço intersticial, no limite entre o uso da tradição
naturalista e a inserção de um novo referente, que o autor narra
o trajeto do personagem”, sustenta Paulo, ao destacar em sua
leitura o fato de que o realismo descritivo é apaziguado pelos
traços de subjetividade do olhar do protagonista Pedro.
A produção deste livro significa o desafio e a provocação de
pensar o lugar da literatura hoje, inseparável do lugar da própria crítica. A motivação principal é interferir em um debate
que, por vezes, aparece polarizado em nosso cenário cultural.
De um lado, a valorização do novo limita-se a constatar a impossibilidade de circunscrever esses escritos marcados pelo signo da multiplicidade. De outro, encontramos abordagens que
operam a partir da comparação com os modelos canonizados
pela história literária, eximindo-se de compreender o que há
de específico na literatura atual. Diante disso, estar no presente
deslocados dele talvez seja o lugar paradoxal que os ensaístas
aqui reunidos buscam para propor outros olhares sobre o contemporâneo, sem perder de vista as reapropriações, releituras
e diálogos com a modernidade.
as organizadoras
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Experiência, transmissão, alteridade
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O gOSTO dE AREIA NA bOcA
– SObRE dIÁRIO dA qUEdA , dE MIchEl lAUb
Stefania Chiarelli
De pé no vagão do metrô nova-iorquino, um skinhead provoca um garoto judeu absorto na leitura de um livro. Após
ameaçá-lo por diversas vezes, persegue o rapaz e golpeia-o
violentamente. Cabeça raspada, suástica na camiseta e outra
tatuada no braço, Daniel Balint seria um neonazista como tantos outros não fosse ele judeu. A cena abre Tolerância zero (The
believer, 2001), filme dirigido por Henry Bean. Daniel possui
sólida formação intelectual, ao mesmo tempo que se envolve
em constantes brigas de rua, esconde sua origem e com ela estabelece atribulada relação. No desenlace, morre em atentado
realizado por seu grupo contra a sinagoga frequentada por antigos colegas de escola.
O filme discute a complexa teia de relações entre os indivíduos de origem judaica, sobretudo aqueles que não encontram
nesse conjunto de práticas culturais qualquer amparo ou sentido de continuidade. Danny afirma odiar tudo o que se relaciona aos judeus, mas em determinado momento ostenta no
corpo o talit, espécie de xale utilizado nas orações. Não consegue se desvencilhar dessa história, e a ela se refere o tempo
todo. Em outra cena, após criar confusão em um restaurante,
recebe como penalidade um dia de convívio com sobreviventes do Holocausto. Ao ouvir seus relatos, afirma que nada tem
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a aprender com eles, questionando as atitudes passivas daqueles indivíduos e supondo que em seu lugar teria a coragem de
revidar os gestos de violência e humilhação.
Ao longo de décadas, esse acontecimento trágico da história da humanidade vem sendo narrado e tematizado. Marco
da violência e da atrocidade no século XX, o genocídio judeu
comparece tanto em filmes, documentários, livros e depoimentos, como em museus, a exemplo do Memorial do Holocausto,
fundado em 1993 em Washington, ou o Yad Vashem, criado em
1953 em Jerusalém.
Nesse contexto de proliferação de relatos, a partir de um
dado momento, a própria suástica surge como objeto massificado: segundo Vilém Flusser – judeu tcheco expatriado no Brasil –, um dos efeitos do nazismo que mais se prolongaram no
tempo foi a kitschização da suástica. Vale lembrar que o termo
kitsch, de origem alemã, é utilizado para designar o mau gosto
artístico e produções consideradas de qualidade inferior. Ele
aparece no vocabulário de artistas e colecionadores de arte em
Munique, no final do século XIX. Inautenticidade e cópia são
os significados frequentemente associados aos objetos e produções dessa natureza, tanto nas artes visuais, na literatura e na
música, quanto nos produtos que cercam o cotidiano. O caráter
de artificialidade da suástica e seu deslocamento de um contexto próprio aponta para um fenômeno trágico e ao mesmo
tempo curioso: o genocídio de milhões de judeus passa a espetáculo em nossa sociedade. A partir desse cenário, estaríamos
diante de um impasse, o de transformar esse trauma da humanidade em mais um produto, a ser fruído pela cultura de massa
sem maiores questionamentos, a exemplo do que alertou Theodor Adorno quando afirma ser um ato bárbaro escrever um
poema após Auschwitz. Colocando-se diante dessa discussão,
o narrador do romance Diário da queda, de Michel Laub, alerta:
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O cinema já se encarregou disso. Os livros já se encarregaram disso. As testemunhas já narraram isso detalhe por detalhe, e há sessenta anos de reportagens e análises, gerações
de historiadores e filósofos e artistas que dedicaram suas
vidas a acrescentar notas de pé de página a esse material
(LAUB, 2011, p. 9).
A ideia da nota de pé de página é eloquente: ela traz o sentido de um comentário ligeiro, ou mesmo desimportante, que
pouco ou nada acrescenta à matéria principal. Algo ali se encontra desinvestido de importância maior. A respeito desse
sentido de esvaziamento, ao final da década de 1960, John Barth
reflete em A literatura da exaustão sobre a sensação de esgotamento de certas possibilidades – sobretudo de determinados
experimentalismos vanguardistas –, de nada mais restar a ser
dito na literatura pós-moderna. Longe de uma postura apocalíptica, o escritor americano propõe o encontro de novas formas, e enxerga a possibilidade de gerar novos e vivos trabalhos
a partir da apropriação de modelos exauridos, reinventando,
descartando, subvertendo e transformando as convenções artísticas. Desse modo, segundo Barth, seria possível revisitar
repertórios estocados, já que não há mais histórias totalmente
novas a se contar. Ou, como afirma ainda Umberto Eco, “a resposta pós-moderna ao moderno consiste em reconhecer que
o passado, já que não pode ser destruído porque sua destruição leva ao silêncio, deve ser revisitado: com ironia, de maneira
não inocente” (ECO, 1985, p. 57). Essas estratégias apontam para
possíveis modos de lidar com tal dilema.
Partindo dessa premissa, é possível pensar em filmes como
Tolerância zero, ou narrativas como “Réquiem para um solitário” (1956), de Samuel Rawet, e no próprio romance de Laub,
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de 2011. Neles, os autores problematizam a massificação do
genocídio judaico, buscando respostas para questões que não
cessam de interrogar o indivíduo contemporâneo. Retomando
Eco: é preciso escolher entre o silêncio e uma fala inadequada?
O que fazer com esse passado que volta insistentemente como
leitura do presente? Daniel precisa falar dos judeus, mesmo que
para odiá-los, assim como o narrador do romance de Laub. Já
o personagem rawetiano surge como o próprio imigrante que
sente a dor e a culpa por negar a tradição. Samuel Rawet e Michel Laub, ficcionistas que interpelam a tradição naquilo que
ela tem de petrificado, põem a própria transmissão da experiência em questão, explorando a dimensão ética e política da
memória. A partir destes dois autores, pensaremos a relação
conturbada com o pertencimento ou não a uma certa tradição
da narrativa que tematiza essa questão.
Em Diário da queda, três gerações de uma mesma família
lidam de modo tortuoso com as memórias e o silenciamento relativos ao Holocausto. “Para mim tudo começa aos treze
anos, quando deixei João cair na festa de aniversário”, afirma
o narrador. Ponto de partida do livro, o episódio violento em
uma turma de garotos marcará a vida do adulto, que se volta
sobre um passado de relações conturbadas com a própria história familiar. A rememoração constante desse fato recupera
os questionamentos de um menino percebendo, aos poucos,
o ódio que ele e os colegas, matriculados numa escola judaica,
dirigem ao único não judeu da sala. O desprezo coletivo por
João, humilhado repetidas vezes no tanque de areia da escola,
revela ao narrador o vazio do discurso de seu pai sobre antissemitismo e intolerância. A trama, em seu trânsito incessante
entre delicados polos da natureza humana, mostra como o excluído pode assumir o papel do opressor.
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Para tanto, o narrador sem nome passa a questionar as relações familiares e o funcionamento de sua comunidade. Interrogando um tempo de sofrimento e aniquilação representado pela
história do avô, sobrevivente de Auschwitz, o personagem carrega em si o conflito em relação a um passado cultural e religioso fundado na manutenção de um sistema dogmático, no qual
um presente desencantado se complementa pela inexistência
de qualquer perspectiva futura. Morando na Porto Alegre dos
anos 1980, percebe que os eventos traumáticos incessantemente
relatados pelo pai têm pouca relação com sua vida, indicando o
abismo que torna inviável a troca de experiência entre gerações.
Em seu conhecido ensaio “O narrador”, Walter Benjamin
afirma que na modernidade perdemos a capacidade de trocar
o tipo de experiência com um valor coletivo que fundava as
sociedades tradicionais e, portanto, de contar histórias. Essa
incapacidade se radicaliza quando se trata de narrar eventos
traumáticos da guerra e da perseguição aos judeus. Retomando a tese benjaminiana, pode-se afirmar que o protagonista de
Diário da queda não retira dos relatos paternos nenhum proveito ou exemplaridade. Afirma o narrador:
o desconforto cada vez maior diante do meu pai, uma rejeição à performance dele ao falar de antissemitismo, porque eu
não tinha nada em comum com aquelas pessoas além do fato
de ter nascido judeu, e nada sabia daquelas pessoas além do
fato de elas serem judias, e por mais que tanta gente tivesse
morrido em campos de concentração não fazia sentido que
eu precisasse lembrar disso todos os dias (LAUB, op. cit, p. 37).
Não à toa comparece a referência à performance: o desempenho paterno exige que o público, na pessoa do filho, manifeste completa adesão à sua narrativa, aprenda com ela, introjete
tais valores. Entretanto, essa fala pedagógica se mostra inviável.
Rejeição e desconforto na reação do ouvinte.
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Por outro lado, nos dezesseis volumes dos cadernos do avô,
encontra-se o silêncio sobre o genocídio de todos os membros
da família e a escrita de verbetes fantasiosos sobre a realidade
do imigrante. Uma linguagem que nada comunica, apenas nega
o choque com a realidade, uma vez que o sobrevivente passa a
justapor “verbetes intermináveis sobre a cidade ideal, o casamento ideal, a esposa ideal, a gravidez dela […] e simplesmente
não toca no assunto mais importante de sua vida” (idem, p. 40).
Impossibilitado de compartilhar a memória da dor, o personagem habita um espaço em suspenso e encontra-se preso a um
passado que parece não interessar a ninguém. Vive uma espécie de exílio em relação a si mesmo, o que equivale ao pouco
contato com sua história pessoal, em processo de desconexão
com a tradição e com o legado da cultura judaica. Como afirma
Jeanne-Marie Gagnebin a esse respeito, “à vergonha que acomete o sobrevivente, por não ter morrido com seus companheiros,
se acrescenta a vergonha de ter que falar, de só poder falar de
maneira profundamente inconveniente” (GAGNEBIN, 2000, p. 107).
Entre o narrar e o calar, os personagens destas narrativas
problematizam o tempo todo a possibilidade de continuação
da história e da tradição – comunitária, cultural e discursiva.
A respeito da crise da experiência, a chamada literatura de testemunho compreende inúmeros estudos que buscam articular
como – e se seria possível – resgatar relatos a partir daqueles
que foram vítimas das experiências da guerra e sobreviveram.
A testemunha depara-se com a falência em face do contar, sendo
este sempre insuficiente frente ao horror do vivido. Entretanto,
o calar sobre isso omite e também tiraniza: “O testemunho se
coloca desde o início sob o signo da sua simultânea necessidade e impossibilidade”, afirma Márcio Seligmann-Silva (1999,
p. 20). No entanto, aponta Jeanne-Marie Gagnebin, essa contra22
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dição serve para alertar contra a transformação da lembrança
em um produto cultural a ser consumido, apresentando a “tarefa paradoxal de transmissão e de reconhecimento da irrepresentabilidade daquilo que, justamente, há de ser transmitido
para não ser esquecido” (GAGNEBIN, 1999, p. 51). Como se sabe,
o genocídio judeu anulou a possibilidade de testemunhar, pois
nele se encontram gestos como a queima de arquivos, além do
caráter de desumanização e da aniquilação dos indivíduos. Ainda assim, o testemunho se coloca para falar no lugar daqueles
que não podem narrar, porque foram exterminados. Trata-se,
portanto, de uma fala delegada que demanda cautela para que
se evite a estetização do sofrimento, ou, em termos mais graves,
a banalidade do mal, na expressão de Hannah Arendt.
Sobre a questão da transmissão, vale notar que uma das
discussões levantadas por Diário da queda diz respeito justamente ao efeito que certas leituras geram sobre o narrador. Elas
perturbam e mobilizam a reflexão do indivíduo que, depois de
mais de duas décadas, passa a rever sua trajetória. Tais leituras compreendem pelo menos três eixos: o primeiro deles diz
respeito aos referidos cadernos do avô; o segundo se refere ao
livro É isto um homem?, de Primo Levi; e o terceiro consiste no
diário do próprio pai, em sua tentativa desesperada de adiar
os efeitos do Alzheimer. Se Auschwitz é palavra a ser enterrada
no passado, Alzheimer é o desejo de lembrar para lutar contra
o esquecimento. Esquecimento e lembrança são palavras intercambiáveis na construção desta narrativa, configurando uma
aliteração que aponta para um sentido maior de ausência.
Os escritos do avô são elementos definidores da identidade dos descendentes, deflagrando inúmeras reações: “imagino
o impacto que os cadernos do meu avô tiveram sobre o meu pai”
(LAUB, op. cit., p. 33), afirma o narrador. Enquanto o avô silencia
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sobre seu passado, o pai luta contra o apagamento de qualquer
ligação com o tempo pretérito, já que sofre de uma doença degenerativa. O narrador debate-se contra tudo isso e busca entender suas escolhas: a queda do amigo João na festa de aniversário
é cena que se repete incessantemente em sua memória, espiral
que o consome em culpa e remorso, e surge sempre em paralelo
com o modo tumultuado como lida com seu passado cultural.
A questão judaica e a questão da queda se justapõem e se complementam, estabelecendo linhas que se friccionam e tensionam. Se o avô sobrevivente de Auschwitz representa estranheza,
exclusão e silêncio, a agressão coletiva ao amigo João demonstra
que esse passado soterrado sempre volta, e esse recalcamento se
traduz em atitudes violentas. O narrador sente profunda vergonha por ter humilhado o colega, e esse ato da adolescência
faz com que reaja contra a tradição judaica como um todo e
o discurso vazio do pai sobre tolerância e preconceito.
A problematização relativa ao gesto político de toda escrita
comparece na referência constante aos escritos de Primo Levi.
Não por acaso É isto um homem? (1947) é lembrado, já que o escritor defendia a necessidade de testemunhar, para evitar que
as atrocidades do nazismo e a redução do homem ao estado de
coisa fossem esquecidas. Levi foi feito prisioneiro aos 25 anos
em um campo de concentração na Itália. Permaneceu cerca de
um ano em Auschwitz, onde exerceu a profissão de químico.
Em seu relato autobiográfico, o autor judeu-italiano descreve
as rotinas nos campos, o trabalho forçado e as tarefas a que
eram submetidos os prisioneiros. Para Levi, é um imperativo
de ordem ética articular um discurso que recupere essa passagem da vida dos sobreviventes, por mais doloroso que seja
o ato de narrar. Esse suposto dever é rechaçado pelo avô no
romance. Ele insiste em fugir do passado, anulando essa experiência, e, no limite, anulando-se no ato do suicídio.
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A demissão de si próprio, o esquecimento, a denegação de
parte da trajetória são aspectos também presentes no conto
de Rawet. Diversas narrativas do autor tratam da incomunicabilidade, a exemplo de “Réquiem para um solitário” e “O profeta”, de Contos do imigrante (1956). A ficção rawetiana problematiza de forma contundente a frustração na tentativa de
resgatar as experiências pretéritas dos personagens, revelada
no plano discursivo de diversas formas, seja pela alusão à dificuldade de articulação, à gagueira ou ao mutismo completo.
O gosto de areia na boca (presente em Rawet e retomado na
imagem de Laub), o fio que parece entupir a laringe são expressões que revelam o impasse de personagens impossibilitados
de articular a fala. A natureza fluida do discurso é quase sempre interrompida pelo tropeço, por uma voz titubeante.
No caso de Rawet, percebe-se a situação paradoxal em relação à comunidade judaica e ao próprio judaísmo, uma vez
que propõe ao leitor perguntas incômodas: em que medida é
possível romper com uma tradição cultural? Até que ponto ela
informa os textos que insistem em negá-la? A marca de escritor
judeu seria um facilitador para a recepção do autor ou uma
espécie de maldição? Conforme aprofundamos em outro estudo (CHIARELLI, 2007), sempre existiu atribulada relação de Rawet
com o judaísmo: o autor reiterava um questionamento visceral
a respeito da tradição engessada que não lhe parecia transmitir
mais nenhum sentido.
A herança judaica, sobretudo aquela representada pelos rituais familiares, é alvo da crítica ferina do autor:
Meu maior conflito, e não sei se isso me enriquece ou empobrece, é pessoal, é ligado à minha condição de judeu, ou de
ex-judeu, que mandou o judaísmo às favas. De repente, percebi que estava sendo vítima de minha própria chantagem
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afetiva. O judeu, a vítima de perseguições injustas, o mártir
do nazismo alemão, o horror dos campos de concentração
etc. Isso me fazia aceitar muita coisa como uma espécie de
desculpa para certos comportamentos, e me fazia aceitar
muita coisa naquela base do imigrante pobre que chega, luta
e vence. Admirável! Apoteose final de alguma superprodução de algum Ziegfield qualquer. Hoje não sei distinguir bem
o nazismo alemão do nazismo judaico (GOMES, 1979, p. 165).
Não é sem dor que Rawet encara essa herança, e por meio
de seus escritos a problematiza insistentemente. “Réquiem para
um solitário” encena a situação de impasse do imigrante que fez
a América. O protagonista representa a parcela da comunidade
judaica bem-sucedida e integrada à sociedade brasileira. A fartura na geladeira, a tranquilidade das crianças dormindo no quarto,
a presença da companheira, todos indícios da estabilidade adquirida por anos de árduo sacrifício. “A inércia que não é do cansaço, mas da fartura, da vitória, da segurança em bloco” (RAWET,
2004, p. 54). Todas as conquistas já foram feitas. Mas resta a culpa.
E cabe ao filho contestar a postura ética do pai em relação à história familiar e judaica. Configurando-se como um estranho que
pela primeira vez desvela sua verdadeira face, o filho cobra um
posicionamento frente ao passado que o pai insiste em negar,
apontando o triunfo da figura paterna como sinônimo de um
“acanalhamento dos sentidos”, expressão cara a Rawet.
O protagonista deste conto passa por processo doloroso ao
entrar em contato com aspectos que insiste em negar. Uma carta
recebida e o embate com o filho propiciam esse encontro adiado
no conto. Nele, vão surgindo fragmentos de memória que remetem ao passado – a viagem de navio, o país novo, o trabalho,
a língua estranha – a que se mesclam situações do presente,
como as várias interrupções da mulher. “Como comunicar-lhe
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a sensação de esboroamento? Como dar-lhe a ideia de insegurança que o dominara, substituindo a solidez arrogante?” (idem,
p. 59). A ordem é perturbada pela rememoração das imagens
daqueles que permaneceram e sofreram as atrocidades do nazismo: “E nos bosques dos arredores há valados e valados de
corações roídos pelas balas, e há galhos de castanheiros que resistem ao balanço de olhos esbugalhados” (idem, p. 55).
Como não endoidecer?, indaga-se a personagem. A resposta
parece vir da necessidade reiterada da ordem que a tudo disciplina, para que nada fuja do controle. Principalmente os sentimentos de culpa por ter sobrevivido – e enriquecido. Por duas
vezes, tal segurança é ameaçada, no questionamento do filho –
o presente da narrativa – e por meio da carta, recebida havia alguns anos, momento em que irrompe a lembrança de outra realidade, como forma de agenciamento do passado no presente.
“Tentava agarrar, com os olhos cegados pela pressão, os pedaços de ordem que desmoronava, mas compreendeu o inevitável. Inerte, corpo morto, prostração. Dormia” (idem, p. 61). Na
conclusão do conto, o confronto com a dolorosa história pessoal da personagem e a confirmação do desmantelamento físico.
O alvorecer, imagem da incerteza e da angústia, surpreende o
homem em suas reflexões. Ele se oferece como cenário para
o réquiem do título, alusivo à canção fúnebre a confirmar a morte em vida da personagem. A alusão direta ao gênero que faz
parte do ofício dos mortos está presente na nomeação deste
texto como espécie de protocolo de leitura, modo de ler uma
narrativa que evoca o final metafórico da personagem. Nela,
a música faz menção a um estado de alma, em que o indivíduo
se encontra em conflito extremo, sem perspectiva de resolução
do impasse. A sensação é de esfacelamento, de algo que se parte,
corpo morto a desistir. É inútil a tentativa de seguir adiando o
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enfrentamento do dilema: aquele que parte e sobrevive carrega
em si as memórias de quem ficou. O padecimento moral e a culpa podem ser negados, mas sua irrupção é violenta e dolorida.
O imperativo ético de articular um discurso que recupere
passagens da vida do sobrevivente é rechaçado pela personagem do conto rawetiano, que insiste em apagar o passado, ou
ainda, trair essa experiência, pactuando, de certa forma, com a
infâmia. É preciso esquecer para seguir vivendo, parece atestar,
da mesma forma que o avô de Diário da queda, a negar em seus
relatos fantasiosos a própria tragédia. Ainda que não seja um
sobrevivente dos campos de concentração, esse imigrante rawetiano pôde escapar à sina de seus pares justamente pelo fato
de ter emigrado, buscando novas chances em terra estranha.
Entretanto, o passado irrompe sob a forma da carta, narrativa que traz consigo inúmeras lembranças desagradáveis bem
como a postura questionadora do filho. A torrente de palavras,
“relato impiedoso de um mundo que se foi”, que traz “com ela
uma onda de remorsos e imagens”, e a fala do filho são elementos opostos ao silêncio do pai sobre sua dor. Inútil retardar
o confronto com a tradição em que se inscreve. O resultado
é a prostração violenta e o desmoronamento de certezas antes
inabaláveis, quase a morte efetivamente.
Talvez o peso do passado familiar e sua relação com a memória coletiva possam ser lidos, em Rawet, na imagem poderosa desse corpo inerte. No romance de Laub, o suicídio do
avô do narrador é fato a mobilizar as gerações posteriores.
Um outro corpo morto. A autópsia dessas histórias se faz por
meio de uma linguagem que interpela esses cadáveres, problematizando a imagética da morte a rondar a própria literatura
pós-Holocausto.
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O conflito com a ascendência e a inviabilidade de negar
completamente as raízes culturais judaicas ocupam importante
lugar tanto na obra de Rawet quanto no romance de Michel
Laub. O estranhamento vivenciado pelos personagens advém
inúmeras vezes da ruptura das cadeias de transmissão da tradição. A relação com o conjunto de valores culturais é todo
o tempo problematizada nesses textos. Atos como lembrar, registrar, ocultar passagens, obliterar um legado comparecem em
ambos os autores.
Em Diário da queda, o narrador decide mergulhar nos destroços do passado para dar algum sentido a tantas memórias
em ebulição. A escrita da memória demanda permanente revisão do modelo paterno e da história familiar, mostrando que
a renúncia à origem pode ser lida como modo de o personagem se relacionar com a tradição, encarando-a como memória
crítica, não fossilizada. Para tanto, o narrador não abdica de se
inserir no conjunto de valores judaicos, mas opta por quebrar
paradigmas de comportamentos preestabelecidos. Uma nova
vida o aguarda, não só aquela representada pelo filho que virá,
mas também a possibilidade de reavaliar padrões. Há aposta
na vida e na continuação, em um elo com o futuro, vislumbrado no diálogo imaginário com o filho em gestação, capaz de
colocar em outra perspectiva um “passado que também não
é nada diante daquilo que sou e serei, quarenta anos, tudo ainda pela frente, a partir do dia em que você nascer” (LAUB, op. cit,
p. 151). Após tanta dor e frustração, Laub resgata a emoção no
desenlace de seu romance, quebrando a expectativa de um final
desencantado ou mesmo cético. O narrador dirige uma espécie
de carta ao filho, projetando a vida agora livre do peso, apenas afeto e devaneio. Cheiros, ruídos e vivências táteis acom29
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panham esse pai a imaginar a sensação corporal de ter uma
criança junto de si.
Entretanto, a pergunta que paira sobre essas narrativas é a
mesma: o que fazer com uma certa herança? No caso de Laub,
o personagem recebe de maneira indireta o dinheiro familiar,
mas a ele justapõe-se a culpa e um discurso terrível a se repetir
infinitamente. Em Rawet, o protagonista sente a iminência do
apagamento de si próprio ao perceber que, para seguir vivendo,
anulara parte de sua trajetória. De um lado, a fala obsessiva que
banaliza e apressa o esquecimento; de outro, o silêncio opressor de um discurso em estado de latência, cuja carga explosiva
se manifesta repentinamente.
Como referimos, Rawet – imigrante judeu-polonês ele próprio, falante do ídiche na infância – vivenciou tensa relação com
a comunidade judaica e com seu passado cultural, interpelando
o tempo todo esse legado, ainda que em seus escritos a figura do
judeu passe a não ser mais central como ocorre em sua estreia
literária. O sentimento de inadequação e de estranhamento
permanece, contudo, presente no restante de sua ficção.
Neste que é seu quinto romance, Michel Laub aborda pela
primeira vez em seus escritos a temática judaica, e o faz de
modo a ecoar o gesto de Rawet, inquirindo de forma visceral o
peso do passado. Tanto em “Réquiem para um solitário” quanto em Diário da queda, a relação pai/filho surge como topos para
se pensar esse embate: nesse lugar abrigam-se as tensões referentes ao conflito entre gerações, e, sobretudo, modos distintos
de lidar com um passado que insiste em projetar sombras sobre
o presente. De pai para filho transmitem-se relatos incompletos, mas também vazios e zonas de opacidade. Cartas que contêm um diálogo silencioso com o passado, cujo peso imobiliza
sujeitos condenados à repetição, ou à rejeição completa desse
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legado. Kafka, na célebre carta nunca enviada ao pai, comparece como figura emblemática dessas conturbadas histórias que
oscilam entre ódio e admiração, autoritarismo e afeição.
Vale lembrar que para Walter Benjamin importa menos
o que se viveu, e mais como esse fato vivido é ressignificado no
presente. A ação de rememorar, segundo o autor, requer sempre imaginação e fantasia, pois o importante não é o vivido,
mas o tecido da rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência: “Pois um acontecimento vivido é finito, ou pelo
menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave
para tudo o que veio antes e depois” (BENJAMIN, 1994, p. 37).
Diante do fim da narração, o filósofo entrevê uma necessidade política e ética na rememoração, categoria-chave da filosofia da história benjaminiana oriunda da tradição religiosa
judaica. Jeanne-Marie Gagnebin chama a atenção para o estabelecimento de uma nova ligação entre o passado e o presente
no ato da rememoração, uma vez que tal atitude não implica
simplesmente a restauração do passado, mas também uma
transformação do presente tal que, se o passado perdido aí for
reencontrado, ele não fique o mesmo, mas seja, ele também,
retomado e transformado (GAGNEBIN, 1994, p. 19).
O passado é reencenado por meio das cartas, diários, cadernos e livros referidos nas narrativas. A tudo isso se sobrepõe
o tecer da reescritura. O sobrevivente desses dramas precisa –
ainda que consciente da incompletude desse gesto – dar algum
sentido a esse fio de história, não mais como relato vitimizado,
objeto kitsch do fetiche alheio ou narrativa de superação, mas
como espaço em que se estabeleça algum sentido, teia que cria
a ponte entre gerações, na escuta sensível da fala do outro.
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A literatura contemporânea parece assinalar que ainda há
um propósito em ecoar essas vozes, apesar de reiteradamente
afirmar, como o narrador de Laub, que “ninguém mais aguenta
falar a respeito, quando até para mim soa ultrapassado escrever
algo a respeito” (LAUB, op. cit, p. 101). A repetição obsessiva comporta um sentido, traduzido no gesto da reapropriação de um
modelo aparentemente exaurido. É precisamente em tal espaço
que reside a diferença – ainda que mínima, ainda que um pequeno rastro, vislumbrado na nota de pé de página.
REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARTH, John. The literature of exhaustion. The Atlantic. August, 1967, vol. 220, nº- 2.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.
CHIARELLI, Stefania. Vidas em trânsito: as ficções de Samuel Rawet e Milton
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ECO, Umberto. Pós-escrito a O Nome da Rosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
GAGNEBIN, Jeanne-Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo:
Perspectiva, FAPESP: Campinas, 1994.
______. A (im)possibilidade da poesia. Revista Cult, São Paulo, junho, 1999,
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______. “Palavras para Hurbinek”. In: Nestrovski, Arthur, Seligmann-Silva, Márcio (orgs.) Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta, 2000. pp. 99-110.
GOMES, Danilo. “Na toca de Samuel Rawet, o solitário caminhante do mundo”.
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LAUB, Michel. Diário da queda. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
LEVI, Primo. É isto um homem? Trad. Luigi del Re. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
RAWET, Samuel. Contos e novelas reunidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. “A literatura do trauma”. Revista Cult, São Paulo,
junho, 1999, nº- 23. pp. 40-7.
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ESPIR AIS: A EScRITA dE bERNARdO cARvAlhO
Claudete Daflon
Sua escuridão era impenetrável. Eu olhava para
ele como quem espia um homem que jaz no
fundo de um precipício onde nunca chega a luz
do sol.
Joseph Conrad, O coração das trevas
Muitas polaridades podem soar confortáveis e apaziguantes. Este, talvez, seja o caso de oposições como paraíso e inferno, em especial, quando constituem modelos de representação
do outro. Afinal, tudo parece mais simples quando o desconhecido é reduzido a possibilidades dramáticas e autoexcludentes.
A experiência ficcional, contudo, caminha, muitas vezes, em
espirais que desmascaram a falsa simplicidade sugerida pelas
dicotomias. É o que acontece, por exemplo, quando, com as
lentes de Bernardo Carvalho, no romance Nove noites (2002),
torna-se possível enxergar O coração das trevas (1899), de Joseph
Conrad, e a descida ao inferno rumo ao horror.1 Se a obra
de Conrad está ali dada como referência contundente na narrativa do escritor brasileiro, está também a ambiguidade do
paraíso e inferno.
1 No livro O coração das trevas (1899), Marlow trabalha para uma empresa que comercializa marfim e recebe a incumbência de encontrar Mr. Kurtz no âmago da floresta africana.
O mergulho no desconhecido aparece, nesse caso, associado ao progressivo afastamento da
civilização rumo a uma ameaçadora condição primitiva. Antes de morrer, contudo, Kurtz
pronuncia “O horror! O horror!” (CONRAD, 1984, p. 88). E esta palavra última permanece
inapreensível e enigmática.
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O paraíso é cheio de armadilhas. Luiz Dantas, em texto sobre o romance naturalista brasileiro, considera que contradições e ambivalências estão vivamente presentes nas visões dos
colonizadores sobre o Novo Mundo. O positivo e o negativo
intercambiam-se de modo que o idílico possa, subitamente,
tornar-se repugnante: “Ao lado das primeiras formulações maravilhadas surgia, com uma força comparável, o julgamento
contrário, uma espécie de reverso da medalha idealizadora”
(DANTAS, 1990, p. 457). Paraíso e inferno seriam, assim, indissociáveis: faces de uma mesma moeda.
A mobilidade das visões, por sua vez, apresenta-se como
uma decorrência da perspectiva, afinal “o sonho é um ponto de
vista” (CARVALHO, 2002, p. 48), assim como o pesadelo também
pode ser. Esta é, no final das contas, a impressão que se tem
quando se colocam na balança Nove noites e Hotxuá (2009), filme
de Letícia Sabatella e Gringo Cardia sobre os índios Krahô.
O sacerdote-palhaço, que dá título à produção, representa a
perspectiva escolhida para abordar a tribo do cerrado. O riso
aparece como elemento diferenciador da cultura que os índios
buscam preservar sob a ameaça constante da expansão da soja
e da construção de barragens cujas consequências interfeririam
no seu modo de viver. A simpatia do público é requisitada tanto pela fragilidade do povo ameaçado quanto pela alegria que,
a princípio, faria parte do cotidiano da tribo. Avança-se, nesse
sentido, ao propor a visita de uma personagem já conhecida
das sociedades ocidentais: o palhaço. O entendimento entre
Hotxuá e o ator caracterizado, entretanto, atribui outros significados às práticas observadas, sugerindo ao espectador um
ponto de identificação importante. Há algo de convidativo nas
gargalhadas das crianças.
Em Nove noites, a trama desenrola-se em torno da morte do
antropólogo americano Buell Quain, que se suicidou quando
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atuava como pesquisador entre os índios Krahô no Brasil, em
1939. Ao refazer os passos do etnógrafo, o narrador, em sua
obsessão por esclarecer o ocorrido, visita também a tribo. Todavia, a visão apresentada no livro de Bernardo Carvalho sobre
os Krahô em nada parece ter a ver com aquela que é proposta
pelos cineastas em Hotxuá, seja pela óptica do narrador obcecado por descobrir o porquê do suicídio, seja pela perspectiva
do próprio Quain, tal como aparece formulada no romance.
O estranhamento aparece como elemento desestabilizador
e quase insuperável nas experiências com o outro, de modo que
se é lançado da alegria da tribo ao desconforto decorrente da
ausência de identificação. Entra em foco o agente da escrita (ou
aquele que controla a câmera) no jogo de posições assumidas:
ora antropólogo, ora ficcionista.
Em sua chegada ao Brasil, a opção de Quain por estudar,
numa empreitada individual (e isso é bem significativo), os
Trumai em vez de os Karajá, como previsto a princípio, exemplifica a busca por autenticidade, que teria na tribo isolada e à
beira do desaparecimento uma representação ideal. Mas essa
atitude está absolutamente inserida nas práticas da etnografia
da época, revelando como a disciplina operava a relação com
o outro e sua consequente escrita. De todo modo, na contramão
de uma visão idealizadora dos índios e do próprio observador,
o narrador de Nove noites aponta para a construção de modelos
ideais conflitantes com a realidade da tribo:
O fato é que no começo Quain achou os Trumai “chatos e
sujos” (“Essa gente está entediada e não sabe”), o contrário
dos nativos com quem convivera em Fiji e que transformara
num modelo de reserva e dignidade. Julgava os Trumai por
oposição a sua única outra experiência de campo (CARVALHO, op. cit, p. 54).
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Duplicando as vozes narrativas, em Nove noites, o narrador
compartilha o espaço do relato com um testemunho deixado
por Manoel Perna, engenheiro que teria travado contato com
Quain e que teria ficado especialmente interessado no estrangeiro. A mudança tipográfica organiza, no romance, o que seria
a voz de Perna e a do narrador dedicado à solução do enigma
da morte do americano. No entanto, é pela via desse narradortestemunha que se obteria acesso a relatos de Quain e revelações como: “Ele estava cansado de observar, mas nada podia
lhe causar maior repulsa do que ter que viver como os índios,
comer sua comida, participar da vida cotidiana e dos rituais,
fingindo ser um deles” (idem, p. 55). A declaração atribuída ao
antropólogo revela uma indisposição significativa para desenvolver práticas próprias ao formato da observação-participante
na etnografia. De fato, a aversão declarada sugere a desconstrução de um modelo ideal de pesquisador, do qual se esperaria
uma atitude interessada e simpática em relação aos índios. Por
outro lado, o sentimento de repulsa sinaliza a duplicação que se
opera no romance quando o narrador refaz a viagem do etnógrafo e se vê obrigado a conviver com a tribo. Ao seguir os passos de Quain, desempenhando ele mesmo o papel do etnógrafo
que se lança em campo, o narrador, diante da situação do estudioso inserido no ambiente que será estudado, experimenta,
à maneira do antropólogo, um profundo estranhamento e rejeição em relação aos índios. Demonstra, então, reações negativas próximas às de Buell Quain: “Tudo o que eu queria era não
ter que participar de nada” (idem, p. 98).
O narrador e o etnógrafo, em certo sentido, à maneira de
Marlow e Kurtz, em O coração das trevas, vivem a descida ao
inferno, confundido com o Xingu. Em outra instância, porém,
a duplicidade entre um e outro se desenha na ambiguidade ine36
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rente à condição infernal e edênica. O narrador, assim como
o antropólogo, tem um histórico de viagens com o pai. Essas
experiências incitaram o segundo a viajar, graças a uma visão
do exótico como paraíso que, no final das contas, é desconstruída em sua experiência no Brasil; o primeiro, no entanto,
ainda criança, só consegue enxergar o inferno.
Por outro lado, James Clifford, no conjunto de ensaios publicados no Brasil sob o título A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX, lembra que Malinowski, tomado como referência do método da observação-participante na
etnografia do período, além da obra Os argonautas do Pacífico
Ocidental (1922), resultado de sua permanência e estudo entre
os Trobriand, deixou um diário íntimo em polonês que não se
destinava à publicação. Quando este veio a público na década
de 1960, causou impacto na imagem popularizada da antropologia: “Um dos fundadores da disciplina era visto sentindo
uma raiva considerável de seus informantes nativos” (CLIFFORD,
1996, p. 106). Era notório o contraste entre o conteúdo do diário e
o que havia sido publicado como relato do trabalho de pesquisa. Diante disso, pode-se tender a compreender que a verdade
estaria no desabafo do etnógrafo. Mas não é bem assim:
Além disso, em sua crueza e vulnerabilidade, sua inquestionável sinceridade e sua natureza inconclusa, o Diário parecia
expor uma realidade sem disfarces. Mas esta é apenas uma
importante versão de uma complexa situação intersubjetiva
(que também produziu Os argonautas e outros relatos etnográficos populares). O Diário é um inventivo texto polifônico (idem, ibidem).
Não há uma versão verdadeira do que aconteceu dada pelo
Diário, ele é apenas uma das peças da construção do encontro
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com os índios. Do mesmo modo que o filme Hotxuá, o que tenha permanecido dos escritos de Quain e que apareça resgatado em Nove noites ou mesmo o que seja resultado da imaginação
do romancista são visões parciais e revelam a complexidade do
processo de registro do outro. Pode-se falar em romantismo,
talvez, na versão proposta por Sabatella e Cardia, mas os índios
Krahô do filme e aqueles da ficção de Bernardo Carvalho encarnam, de qualquer maneira, o caráter inapreensível do outro
como uma totalidade.
Tzvetan Todorov, em sua discussão sobre o etnocentrismo,
expõe a complexidade de um discurso que, erigido sobre a alteridade, termina por ignorá-la para ser fundamentalmente
uma reflexão sobre si. Como quando, no famoso ensaio sobre
os canibais, Montaigne parece propor uma leitura diferenciada
sobre os índios, mas coloca em pauta o pensamento europeu
e as questões políticas da França de seu tempo. De fato, como
assinala Todorov, a tolerância manifesta por Montaigne não
decorre da aceitação do outro, mas de sua negação: “Na verdade, o outro jamais é percebido ou conhecido. O que Montaigne
elogia não são os ‘canibais’, mas seus próprios valores” (TODOROV, 1993, p. 58). Talvez, por isso, sonho ou pesadelo, a experiência com a diferença seja, fundamentalmente, uma tentativa de
confirmar ou restabelecer a identidade do eu.
Por outro lado, a iniciativa do registro encerra a tentativa
de traduzir textualmente a experiência do encontro com o exótico. Se essa é uma questão importante para a etnografia, não
deixa de ser também para a literatura. Desse modo, no palco
da escrita, dramatiza-se o complexo processo de apreensão do
outro. Não surpreende, portanto, que a relação entre literatura
e etnografia seja uma questão diretamente associada à identidade dos antropólogos em atividade na primeira metade do
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século XX. Isso se faz claro quando James Clifford observa: “As
identificações autorais de Malinowski (Conrad, Frazer) são
bem conhecidas. Margaret Mead, Edward Sapir e Ruth Benedict viam-se tanto como antropólogos quanto como artistas
literários” (CLIFFORD, 1986, p. 3).2
Porém, nos estudos antropológicos, especialmente no primeiro terço do século XX, a crença em uma verdade, expressa
na busca pela objetividade do discurso, esbarra nos processos
de ficcionalização implicados nos relatos dos etnógrafos. O escritor, por sua vez, experimenta e assume o ficcional que o
etnógrafo busca negar. No entanto, a ambígua relação entre
o pesquisador e o ficcionista aparece na escrita de Bernardo
Carvalho como uma espécie de projeção recíproca entre romancista e antropólogo. Superfícies intercambiantes: o escritor
empenhado em explicar o outro (que, no livro, é ironicamente
o etnógrafo) escreve um romance sobre sua própria busca por
respostas. Essa conduta, no que diz respeito à forma como se
lida literariamente com um outro que se ambiciona apreender,
ganha relevância em projetos que atravessam campos como
a literatura e a etnografia. Isso, porém, já era perceptível em
trabalhos modernistas como os diários de viagem de Mário de
Andrade.
Em 1927, o poeta parte do Rio de Janeiro na companhia de
dona Olívia Guedes Penteado, Dolur (filha de Tarsila do Amaral) e Margarida (sobrinha de dona Olívia) em viagem que
o levaria à Amazônia, a bordo do Pedro I. Ainda que tenha
desejado elaborar um relato das viagens realizadas ao Norte e
Nordeste, não chegou a levar a cabo o projeto do livro a tempo
2 No original: “Malinowski’s authorial identifications (Conrad, Frazer) are well known.
Margaret Mead, Edward Sapir, and Ruth Benedict saw themselves as both anthropologists
and literary artists.”
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de publicá-lo em vida. Todavia, entre 1942 e 1943, o autor retomou a elaboração do volume cujo título seria O turista aprendiz:
viagens pelo Amazonas até o Peru, pelo Madeira até a Bolívia
por Marajó até dizer chega. As anotações referentes à viagem
de 1927 foram datilografadas e organizadas para o prelo com
clara feição de diário, mas só vieram a público em edição organizada pela crítica Telê Ancona Lopez, em 1976.
A segunda viagem, que Mário chamou diretamente de etnográfica, serviu melhor a seus propósitos de estudo, dadas as
condições em que ocorreu. Diferentemente do que ocorreu em
1927, Mário não se viu limitado por compromissos protocolares decorrentes da recepção, em cada porto a que chegavam,
destinada à rainha do café, como era conhecida dona Olívia
Guedes. Estava sozinho e pôde dedicar-se ao trabalho incansável de registro.3
O escritor, no papel de pesquisador dedicado, respondia
à concepção de intelectual modernista, segundo a qual seria
sua tarefa conhecer o Brasil e preservar manifestações culturais autênticas. A etnografia representaria uma contribuição
importante na medida em que possibilitaria a realização desse
projeto:
[...] considera secundário para a “Etnografia” brasileira definir-se pró Tylor ou pró Lévy-Brühl, pois o importante seria
conhecer o Brasil, recolher com fidelidade os dados na fonte
popular, antes que a tradição se esgotasse com a invasão do
progresso (LOPEZ, 1972, p. 102).
3 A crítica Telê Ancona Lopez, responsável pela publicação póstuma dos escritos de viagem, estruturou a edição de O turista aprendiz, em 1976, em duas partes: a primeira compreende as notas que foram deixadas para futura publicação, referentes à viagem de 1927; a
segunda, sob o título de Viagens etnográficas, reúne as crônicas escritas durante a excursão
ao Nordeste entre 1928 e 1929, publicadas no Diário Nacional.
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Em sua formação, Mário de Andrade foi leitor de Sílvio Romero, Pereira da Costa, Mello Moraes Filho e Couto de Magalhães. Contudo, a ausência na obra desses autores de análise
crítica que incluísse possíveis relações com os estudos folclóricos de outros países levou o escritor modernista a ampliar
suas leituras para ser estudioso do folclore internacional: “Em
1928, tem portanto seu campo de estudos ampliado pela inclusão de Teófilo Braga, Tomás Pires, Sébillot, Leite de Vasconcelos” (idem, p. 81). Teria sofrido influência ainda de Tylor, Frazer,
Lévy-Brühl, Euclides da Cunha e Gilberto Freyre.
Mário, por conseguinte, relacionou-se ativamente com a antropologia de sua época, e isso, de certa forma, legitimou o papel de pesquisador que assumiu. Entretanto, não é o escritor
que serve à etnografia:
Já afirmei que não sou folclorista. O folclore hoje é uma
ciência, dizem... Me interesso pela ciência porém não tenho
capacidade pra ser cientista. Minha intenção é fornecer documentação pra músico e não passar vinte anos escrevendo
três volumes sobre a expressão fisionômica do lagarto... (ANDRADE, 1983, p. 232).
Não viaja para fazer ciência.
Mário, enquanto homem do seu tempo, expõe como, no
modernismo, a literatura e a etnografia estiveram relacionadas.
Isso porque o escritor, comprometido com um projeto intelectual modernista, percebia no trabalho do etnógrafo uma via
para construção da identidade nacional. Não é de se estranhar,
portanto, que vários elementos da etnografia dos anos de 1920
e 1930 estejam presentes no pensamento de Mário de Andrade.
No entanto, há um que pode ser de especial interesse: a escrita
como resgate do outro ameaçado de desaparecimento.
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A ideia de paraíso perpassou, de forma importante, a empreitada europeia pelo novo continente durante o processo colonial. Isso, de certa forma, permanece no apelo edênico observável na escrita ou recepção de relatos etnográficos. Haveria,
em certo sentido, a busca, ainda que evitada pelos etnógrafos
científicos, por uma origem. Isso ocorre, principalmente, em
“representações que não historicizaram seus objetos, retratando sociedades exóticas em um ‘presente etnográfico’ (que, na
verdade, é sempre um passado)” (CLIFFORD, 1996, p. 81). No entanto, junto a esse apelo edênico vem a concepção de perda:
o paraíso perdido, o primitivo, o autêntico, em vias de desaparecimento. Sobre esses pilares, edifica-se a etnografia de resgate, uma poderosa alegoria fundada na recuperação do outro
perdido e que se associa a uma autoridade científica e moral
(CLIFFORD, 1996).
Embora o resgate esteja diretamente associado à prática etnográfica das primeiras décadas do século XX, na visão de James Clifford, é possível afirmar que essa concepção ainda esteja
enraizada. Por outro lado, como defende o historiador, a alegoria do resgate se institui no processo de textualização, em que
muitas vezes se opera a passagem da oralidade para o registro
escrito. Nesse sentido, o outro perdido subsistiria na escrita.
Todavia, o resgate seria uma demanda do eu, e não do outro.
Em seu diário de viagem, Mário postula sua identidade como
intelectual modernista, viajante aplicado à missão do registro:
o erudito apto a preservar a cultura oral. Por outro lado, a escrita do narrador em Nove noites é também um movimento do
resgate do outro, no caso, Buell Quain. Todavia, o fracasso dessa iniciativa termina por revelar que o resgate pretendido e urdido na escrita era, na verdade, do sujeito em busca de sentido.
Se as explicações não são encontradas, restam apenas conjectu42
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ras, e é na ficcionalização que Quain parece sobreviver em suas
múltiplas possibilidades.
Porém, ao se compreender, como propõe Clifford, a etnografia como um palimpsesto, caracterizado pela “estrutura hierárquica de poderosas histórias” (idem, p. 95), pode-se refletir
como a ficcionalização participa dessa construção e aponta
para a complexidade da leitura de um texto construído sobre
o outro, uma vez que essas camadas de histórias estão dadas
em experiências de escrita que tensionam as fronteiras entre
ficção e realidade. Como escritor, por sua vez, quando Mário
produz, ao lado da preocupação com a informação coletada, há
o exercício experimental da ficção que, bem ao gosto modernista, duvida das formações estanques de gêneros.
Desse modo, a escrita põe em cena o embate da subjetividade que se constrói por fragmentos. A sua parcialidade vem diretamente associada à ausência de explicações, às muitas frestas
que se acumulam na percepção de si mesmo e do mundo. Precisamente essa incompletude está no jogo da criação ficcional.
Catherine Gallagher, ao discutir a ficção no século XX, conclui:
O enigma de Kurtz, que nunca será resolvido, é emblemático
quanto a esse propósito: o nosso desejo de descobrir o que
não está dito (ou seja, o que Kurtz fez) pode ser lido como
uma metáfora do encontro com o vazio (modernismo) ou
como um sinal do caráter ficcional da personagem (pósmodernismo) (GALLAGHER, 2009, pp. 654-655).
Numa chave ou na outra, o que está dado é o fracasso do
esforço hermenêutico em torno desse outro, que, como propõe
Gallagher, representa a construção de uma alegoria do próprio
processo de leitura do romance. O narrador-personagem, ao
compartilhar sua insuficiência, “dá origem a uma afecção emo43
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tiva melancólica, reforçada pelo contraste entre a insistente
exibição da subjetividade do narrador e o caráter obscuro e impenetrável da personagem, objeto do seu desejo” (idem, p. 653).
Em que medida isso não se aplica ao narrador de Nove noites?
A procura pela verdade mostrou-se inútil e, diante disso, a subjetividade do narrador confronta-nos com a impossibilidade
de qualquer revelação. Bernardo Carvalho não só põe sob suspeita a verdade etnográfica, mas também a verdade do romance. As fotos, a referência a documentos e arquivos são pistas
falsas no livro. Enquanto peças do jogo ficcional, apontam para
a possibilidade de verificação fora do romance de informações
que pudessem dizer algo sobre Quain, quando, na realidade,
o antropólogo, no romance, existe enquanto personagem e,
como tal, incompleto, feito de não ditos: um enigma de impossível solução. Kurtz ou Quain, ao incitarem o desejo da revelação do não dito, sinalizam o seu caráter de ficção.
A dúvida também é um mérito de Mário de Andrade. Se
o cronista do século XVI era “mentiroso a valer”, sem deixar
de defender a veracidade do que escrevia, Mário, por sua vez,
embaralhou os limites entre o real e o ficcional em seu relato.
Assim, ao mesmo tempo que comenta um episódio ocorrido,
como, por exemplo, o protocolo das homenagens à dona Olívia
Penteado pelas cidades por que passavam, inventa incidentes e
tribos indígenas. A ficcionalidade na composição da escrita que
organiza as notas feitas durante a viagem é evidente tanto no
caso da descrição cuidadosa dos costumes dos Pacaás Novos e
dos índios Do-Mi-Sol, como quando Mário cria um suíço, também passageiro, que os teria acompanhado durante a viagem.
Mais de uma vez, a invenção, em O turista aprendiz, não se
pretende passar por verdade, já que o tom satírico e surrealista
não deixa dúvidas quanto ao caráter ficcional do texto. Ao con44
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trário, este é um recurso que permite problematizar e instituir
espaços de reflexão. Um bom exemplo de como a transposição
irreverente das fronteiras entre real e ficcional ganha dimensão
crítica no texto é a passagem em que Mário relata como teria
sido a sua aproximação à tribo dos Pacaás Novos, na realidade,
uma sátira à prática etnográfica do seu tempo. Essa dimensão
irônica realiza-se precisamente na ficcionalização, já que o escritor, embora estude a etnografia, permite-se a dúvida e coloca
em xeque a verdade dos relatos tanto dos viajantes quanto dos
etnógrafos.
Se a história da aproximação com os Pacaás Novos é uma
alegoria das relações entre pesquisador e povo nativo, Mário,
no entanto, não para por aí, cria outro episódio, dessa vez, com
a tribo dos índios Do-Mi-Sol. A ficcionalização é escancarada, assumida mesmo, e permite que o leitor participe, em certa
instância, do processo de criação. Tomar ciência de como se
realizou a invenção da tribo pelo autor mostra como é possível inventar toda uma sociedade primitiva, com riqueza de
detalhes a respeito de sua língua, de seus costumes e crenças,
e transformar isso em monografia.
Assim, os “mentirosos a valer” podem se referir tanto a cronistas quanto a etnógrafos. Por outro lado, a recriação assumida por Mário dá ao ficcional um espaço significativo na sua
escrita mesmo quando resultado de uma pesquisa de campo.
As viagens do escritor modernista, inclusive as declaradas etnográficas, vão se inscrever tanto na sua produção apresentada
como literária quanto em seus estudos. A incursão do ficcional
faz-se presente ainda na escrita justificada pela experiência de
pesquisador, desrespeitando fronteiras, problematizando, no
formato do diário, a veracidade dos dados coletados. A ficcionalização permite a um só tempo operar em direções aparen45
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temente opostas: acentua o desejo de pesquisa e desmantela
a confiabilidade do texto etnográfico.
Merece, contudo, destaque a compreensão da escrita sobre
o outro como uma tentativa de reduzi-lo a algo plausível, ou
àquilo que se supõe aceitável dentro do conjunto de parâmetros que rege o olhar do observador. Desejam-se explicações,
antes de tudo. Por isso, não é de se estranhar a obsessão do narrador de Nove noites em desvendar o segredo de Buell Quain.
Trata-se de domesticar esse outro que escapa à compreensão,
para que assim possa o narrador viver o conforto que a ilusão
do controle oferece. Em sua visita ao acampamento dos índios
Krahô, em busca de respostas sobre o suicídio do antropólogo, o narrador inquieta-se diante da descoberta do nome que
deram a Quain – Cãmtwyon. Anseia por um significado, mas
tropeça na ausência de uma explicação clara e racional, já que
os nomes dados pelos indígenas “nem sempre querem dizer alguma coisa” (CARVALHO, op. cit, p. 80).
Esta é uma necessidade do eu, não dos índios: conferir sentido. Diante da sua ausência, nos meandros da escrita, forjamse caminhos de significação. Isso está especialmente dado nas
estratégias narrativas. Como quando, em Nove noites, o narrador apropria-se de Manoel Perna, a partir de documentos e
outros materiais de pesquisa, e converte-o em uma duplicação
de si mesmo como narrador, mas com uma distinção: Perna
teria uma carta deixada por Buell que esclareceria tudo. Em
outras palavras, o narrador usa a máscara de autor e cria outro
narrador, formando uma espiral que avança nas esferas do real
e ficcional. Esse segundo narrador, por sua vez, escreveria seu
testemunho a partir de nove noites passadas com Quain e de
conversas derivadas desses encontros. Todavia, o discurso
assim constituído dirige-se a um interlocutor: o possível des46
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tinatário de uma oitava carta que o antropólogo americano
teria deixado antes de morrer (a princípio, haveria efetivamente apenas sete) e que elucidaria o mistério de seu suicídio. Uma
oitava carta solucionaria tudo. E, ainda que perdida, não deixaria de ser uma solução. A questão, porém, é que a missiva
e o relato deixado por Perna são invenções do narrador que,
ao não encontrar respostas para as suas perguntas, recorre à
ficcionalização para o preenchimento das lacunas.
Por esse viés, a carta inventada garantiria a existência de
uma explicação, ainda que à espera de revelação. Então, caberia ao astuto narrador-investigador chegar à resposta, oculta
em algum lugar. O leitor é assim lançado para a tradição da
narrativa de enigma e sua filiação ao pensamento positivista:
a verdade está dada; contudo, sem a mente habilidosa do detetive, não será possível revelá-la. Afinal, as narrativas policiais,
na tradição legada pelo século XIX, organizam-se em torno do
estabelecimento e da dissolução do enigma.
Outras estratégias podem ser desenhadas na escrita a fim
de restaurar-se o sentido. A imaginação do narrador, também
leitor do fim trágico do pesquisador americano, propõe conjecturas e encontra, por exemplo, na construção de uma trama
amorosa um caminho para a interpretação do ocorrido. Todavia, narrador e leitor estão condenados à multiplicação das
vielas que parecem dar na verdade, sem que esta nunca seja
alcançada.
O que está, de fato, em questão é de que modo a escrita,
como forma de conferir coerência, totalidade e sentido, apresenta-se também como modelo de controle. Todavia, quando a escrita reverte esse movimento, fundando-se na dúvida,
propõe-se, no trabalho do escritor, a problematização da possibilidade de uma totalidade coerente. Ou seja, essa escrita não
confere coerência, é feita de retalhos.
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No diário de viagem de Mário de Andrade, a ficcionalização, que se realiza por mais de uma entrada e coloca em xeque
a verdade etnográfica, representa uma rasura na construção de
um retrato provável da realidade. A prática etnográfica do início do século XX propunha entrar no mundo do outro para conhecê-lo e, em certa medida, dominá-lo como uma verdade. A
máscara da veracidade ofereceria a esse eu empenhado na revelação da alteridade precisamente o controle. Por outro lado, no
exercício ficcional, entrar no mundo alheio é possível apenas
como movimento especular que termina por demonstrar que
o inapreensível, no final das contas, é esse eu que se fragmenta.
Se Mário, tendo em vista seu projeto intelectual, buscou na
etnografia meios e conhecimento, ao escrever seu diário, abriu
a lacuna ficcional de sua escrita e colocou sob suspeita seus relatos como retrato confiável do outro. Talvez como na sua famosa fotografia, em que registra sua própria sombra, pareça dizer
que tudo o que tem a oferecer são projeções. No entanto, mais
do que assumir a ficcionalização de sua escrita, o autor modernista procura explorá-la. Não se pode esquecer: o romancista
viaja para escrever. Mas não é o que alega o narrador em Nove
noites? Todavia, em sua busca pelo outro, duplo de si mesmo,
o que encontrou foi a escrita incapaz de mostrar-se inteira,
atravessada por inconsistências e conjecturas. De resto, o que
se apresenta como documental assemelha-se a areia movediça:
afundar nos registros apenas paralisa o sujeito enredado pela
ideia de verdade.
James Clifford, contudo, observa o desenvolvimento, em
tendências contemporâneas, de uma escrita polifônica na antropologia e o questionamento da autoridade etnográfica diante da multiplicação das leituras. Em outras palavras, as leituras
estariam além do controle de qualquer autoridade única. Em
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Bernardo Carvalho, a desconstrução dessa autoridade articula
a projeção do sujeito no objeto da investigação: o romancista
detetivesco que não alcança a verdade pretendida e o etnógrafo
que se mata em meio aos índios. Daí a escrita expor, em Nove
noites, a luta pelo controle sobre o que não pode ser controlado.
O narrador debate-se contra a sua própria falta de autoridade
sobre os acontecimentos, a sua incapacidade de reduzir monologicamente o acontecido. E este é um ponto importante para
o etnógrafo.
Se a relação literatura-etnografia é uma questão de destaque nas primeiras décadas do século XX, experiências literárias
como Nove noites sugerem um redimensionamento, em medidas contemporâneas, dessa relação e das discussões que implica. Para começar, ao tentar desvendar Buell Quain tornado
objeto de desejo do narrador, a atitude investigativa que permeia o romance leva a registros, documentos, cartas, entrevistas que dizem respeito à prática etnográfica da época. O olhar
volta-se para a tradição da etnografia do século XX.
O papel dado à ficcionalização na escrita etnográfica e o lugar do literário na interpretação do outro estão na raiz da espiral
entre o real e o ficcional que o escritor desenha, seja na experiência modernista do diário de viagem de Mário de Andrade,
seja no romance de Bernardo Carvalho. Inseridas em contextos de produção distintos, as obras indicadas, O turista aprendiz
e Nove noites, ainda que de maneiras particulares, demonstram
a trajetória também espiralada das experiências narrativas na
história da literatura brasileira. Aqui e ali diálogos se esboçam
e pouco sentido parece haver em se falar em ruptura ou novidade como norma, especialmente, para as produções das últimas décadas.
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Diante disso, a imagem que se propõe construir, na tentativa de compreender como obras de autores atuais podem relacionar-se com outras de épocas anteriores, seria algo como
a espiral feita de fumaça realizada pelo artista indiano Anish
Kapoor, com o seu Ascension.4 A partir daí, talvez seja possível
desenvolver uma visão do movimento espiralado, em que, ao
lado da fluidez, da mobilidade e da inconsistência do vapor,
faz-se necessária a organização orquestrada de correntes de ar
que, em velocidade, seguem em diferentes direções a fim de
esculpir uma espiral. Essa movimentação permite que, lenta
e progressivamente, vá se erguendo a forma que se mantém
contínua precisamente por sucessivos abandonos e retomadas
dos espaços. Assim, uma posição pode ser reassumida em um
ponto equivalente (mas não idêntico) a outro já ocupado. As
posições relacionadas entre si não se confundem, diferenciadas
pelas circunstâncias que lhe garantem a existência. Todavia,
uma situação anterior pode ser reassumida graças ao abandono de ainda outra, em um processo dinâmico de idas e vindas
que não se confundem com a repetição do já feito nem com
a recusa de deslocamentos antecedentes. Talvez seja esse o desafio crítico enfrentado num estudo sobre narrativas do presente
no reflexo do retrovisor: lidar com uma espiral de fumaça. Uma
construção que agudiza a complexidade de relações que, com
alguma frequência, parecem petrificadas: paraíso e inferno,
literatura e etnografia, ficção e realidade, passado e presente...
o eu e o outro.
4 A instalação foi exposta pelo Centro Cultural Banco do Brasil, em 2006, na cidade do Rio
de Janeiro. Trata-se de uma coluna de fumaça que sobe em espiral, atingindo uma altura de
36 metros, do chão à cúpula da rotunda do Centro Cultural, sugada por um equipamento
especial, a 120 km/h de velocidade.
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REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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lEITE dERR AMAdO ,
ANTíPOdA dA lITER ATUR A MARgINAl
Alexandre Faria
Reviu a história; viu as mutilações, os acréscimos
em todos os países históricos e perguntou de si
para si: como um homem que vivesse quatro séculos sendo francês, inglês, italiano, alemão, podia sentir a Pátria?
Lima Barreto,
Triste fim de Policarpo Quaresma
Um piscar de olhos para o rap
Chico Buarque incluiu no repertório de sua turnê, iniciada no
final de 2011, uma referência à apropriação recente da canção
“Cálice” (autoria sua e de Gilberto Gil, e originalmente gravada
ao lado de Milton Nascimento). A apropriação, que não chega
a ser exatamente uma paródia, mas uma estilização, foi criada
pelo rapper Criolo e difundida na web através do site de vídeos
Youtube. A letra de Criolo aproveita-se da mesma linha melódica e rítmica da canção original e modifica-lhe os versos.
[...]
A ditadura segue meu amigo Milton
A repressão segue meu amigo Chico
Me chamam Criolo e o meu berço é o rap
Mas não existe fronteira pra minha poesia, pai.
Afasta de mim a biqueira, pai
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Afasta de mim as biate, pai
Afasta de mim a coqueine, pai
Pois na quebrada escorre sangue (CRIOLO, 2011).
Antes de cantar os quatro últimos versos de Criolo, que correspondem ao refrão da canção original, Chico improvisa um
com o seguinte conteúdo:
Gosto de ouvir o rap, hip hop da rapaziada. Um dia vi uma
parada assim, no Youtube e disse – que os pariu – parece o
“Cálice”, aquela cantiga antiga, minha e do Gil. Era como se
o camarada me dissesse: “Bem-vindo ao clube, Chicão, bemvindo ao clube.” Valeu, Criolo Doido! Evoé, jovem artista.
Palmas pro refrão do rapper paulista (BUARQUE, 2012).
Interessa indagar, a partir dessa conexão, sobre o sentido
de permanência da ditadura, conforme declarado pela letra de
Criolo, que incorpora, entre outras peças do hip hop brasileiro
e da chamada literatura marginal, um sentido de resistência,
de engajamento, de protesto muito caro às canções de Chico
Buarque nos anos 1970, época em que a ditadura era explícita.
Ao mesmo tempo, vale a pena investigar o flerte de Chico Buarque com a atual cultura periférica. Desde o CD Carioca (1996),
em especial na canção Subúrbio (cf. FARIA, 2010), essa aproximação já vem se delineando. Outra canção do mesmo CD capaz
de ilustrar essa reflexão é Ode aos ratos. Além dessa gravação ter
o acréscimo de uma embolada que, pelo recurso da fala e do
arranjo musical, fica muito próxima do rap, também recoloca
o sujeito poético frente ao desvalido que tematiza. O rato de
rua, metáfora por meio da qual o cantor menciona os “sobreviventes à chacina e à lei do cão”, não é objeto apenas da simpatia
do eu lírico, mas, reconhecido como “semelhante” e “irmão”,
o rato se torna, por alusão, seu leitor, considerando que os ter53
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mos constituem citação explícita do poema “Ao leitor”, prólogo
das Flores do mal, de Baudelaire. Mas diferentemente do poeta
e do leitor franceses do século XIX, não é o tédio que hipocritamente os dois compartilham, mas a inquietação e a luta pela
sobrevivência.
No entanto, a leitura que aqui se propõe buscará uma relação menos evidente. Pretende-se abordar o romance Leite derramado, apesar de todas as possíveis distâncias existentes entre
o universo da cultura periférica e o representado pela memória
do narrador Eulálio Assumpção. O que une as duas perspectivas é a hipótese de que algumas das criações mais recentes
de Buarque sejam derivadas da percepção de que o “povo
brasileiro”, os desvalidos, para cuja constituição e libertação
o artista dedicou parte significativa de sua carreira, atualmente
toma para si o discurso, a voz e a literatura, a ponto de, até,
glosar seus versos. Além disso, sua obra ficcional, desde Estorvo
(1991), vem apontando para uma estratégia romanesca que busca lugares alternativos para se pensar as transformações recentes da realidade brasileira, tanto em face do passado histórico,
quanto das tensões geopolíticas do mundo atual, mas nem por
isso deixa de problematizar as identidades culturais e as tensões da sociedade brasileira contemporânea.
Os meninos desembestaram
Os riscos de mapear o contemporâneo são inevitáveis. Mas há
diferentes formas de corrê-los. A cena da literatura brasileira
contemporânea é diversa o suficiente para tornar precoce qualquer tentativa de mapeamento. O crítico estará fadado a nunca
ler o suficiente diante da quantidade do que se publica. Por outro lado, alguns quadros dessa cena, pela importância da dis54
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cussão política que fomentam, não podem deixar de ser contemplados. Um deles é o segmento que vem sendo chamado de
literatura marginal ou periférica, reveladora de autores como
Ferréz, Sérgio Vaz, Allan da Rosa, Rodrigo Ciríaco, entre outros nomes que, se por um lado guardam suficientes diferenças
entre suas propostas literárias para se duvidar da caracterização
do quadro como um movimento, por outro compartilham um
elemento ideológico forte o bastante para integrá-los em uma
unidade que hoje já extrapola a cidade de São Paulo e encontra
ecos em outras periferias urbanas brasileiras. Este quadro cria
um diferencial suficientemente significativo que impede o crítico, cioso do papel social de seu trabalho de mediação entre as
obras e o público, de ignorá-lo.
Em meio a projetos literários, política e esteticamente ambiciosos, de autores que vêm se consolidando a cada novo livro
que lançam, e a promissores estreantes, surgem, lá de onde está
a ralé brasileira (cf. SOUZA, 2009), romances, contos e poemas
que se difundem, paralelamente aos livros, por meio da oralidade, em saraus diversos e letras de rap. Tal quadro evidencia
mudanças na sociedade brasileira que, embora nada revolucionárias, são fortes o suficiente para fazer com que a literatura,
objeto de cultura, e às vezes de culto, que quase nunca rompeu
para baixo a fronteira da classe média escolarizada, se torne
legítima manifestação dos herdeiros da escravidão.
“Aprender a ler para ensinar meus camaradas”, o projeto político embutido nesses versos da canção Yáyá Massemba, de Roberto Mendes e Capinam, parece que foi cumprido a contrapelo,
a despeito do campo minado em que as sucessivas ditaduras
da república tornaram o outro projeto, iluminista, libertário
e romântico, de semear livros à mão-cheia para o povo pensar.
Pode ter sido um progresso por fatalidade, mas não há dúvida
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de que esse quadro deve-se, em alguma medida, a uma insistente luta pela democratização no Brasil, travada por políticos,
artistas e intelectuais, seja nas frestas dos meios de comunicação de massa, seja na infiltração de células e comitês políticos,
pré-vestibulares e outras ações sociais nas favelas e comunidades carentes do país. Os saraus pelas quebradas do Brasil, a literatura das favelas parecem demonstrar que aquele povo a que
os intelectuais e poetas brasileiros davam forma e voz dispensa
representações e toma, ele mesmo, as rédeas de sua dignidade.
Essa leitura é instigante, mas também corre riscos, entre eles
o de sugerir que isso representa a solução para a injustiça e a
iniquidade no Brasil; ou o de impedir, por benevolência social,
que a crítica promova um diálogo honesto com certas realizações literárias das periferias; e ainda, o de que, por absoluto
preconceito, prepotência, esnobismo ou racismo, os críticos se
recusem a esse mesmo diálogo. Tudo aponta para as lutas que
recomeçam mal rompe a manhã – com as palavras e contra
os preconceitos. Nesse sentido, além de propor a leitura crítica
de tais realizações, o que vem sendo objeto de diversos projetos de pesquisa no universo acadêmico, forçar o diálogo entre
outras produções literárias contemporâneas e a literatura marginal pode ser uma estratégia válida para fomentar ainda mais
a reflexão sobre cultura e identidade no Brasil contemporâneo.
Sem herdeiros para a eulalia
Se, em Leite derramado, há uma reflexão sobre a decadência
de certa oligarquia fisiológica da tradição política brasileira,
tal reflexão não se pretende realista – se assim o fosse, pouco
se justificaria a escolha por um narrador de memória pouco confiável, prolixo, repetitivo, senil, doente. Há, nessa repre56
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sentação da decadência, o privilégio do enfoque irônico sobre
a vocação racista, esnobe e prepotente que, longe de ser exclusividade das elites oligárquicas, perpassa a sociedade brasileira como um todo. É uma ideologia subjacente ao discurso da
harmonia racial. A escolha do narrador e a estratégia do jogo
de enunciação construída pelo romance são fundamentais para
o que se pretende afirmar. Recorra-se, comparativamente,
a dois clássicos narradores do romance brasileiro – Bento Santiago, de Dom Casmurro (1899), e Paulo Honório, de São Bernardo (1934). Ambos pretendem, na fase final da vida, dar conta de
compreender a existência, prover de sentido o tempo vivido.
No caso de Eulálio Assumpção, o momento em que produz
a narrativa é tardio, posterior mesmo à possibilidade de compreensão. Isso, acrescido do fato de se tratar de uma narrativa
oral, torna o discurso menos memorialístico e mais irônico em
relação ao status quo, sobre a mentalidade escravocrata, da Primeira República, mas que perdurou nas repúblicas sucedâneas,
e ainda marca as relações sociais no Brasil.
Essa leitura problematiza, inclusive, o referencial histórico
que corre paralelamente à vida do protagonista. Vista de perto, a história é paisagem para o drama pessoal do narrador,
funciona como slides da cidade que vai demarcando, além da
passagem do tempo, a degenerescência da família, da idílica
Copacabana dos anos 1920 à periférica morada, supostamente
situada no mesmo lugar da antiga fazenda, na raiz da serra, cedida por um pastor evangélico nos “arredores da cidade” (BUARQUE, 2009, p. 176), no início do século XXI.
O Angelus novus, gravura de Paul Klee por meio da qual
Walter Benjamin (1994, p. 226) pensa alegoricamente a impossibilidade de se interferir no fascismo do progresso pelo conhecimento do passado, parece, no caso da narrativa buarquiana,
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instaurar-se num momento em que o próprio pavor do progresso e a consciência de se viver em um tempo de exceção
são atenuados pelo cinismo do gesto enunciativo. O narrador
é incapaz de formular criticamente a compreensão da própria
situação presente, já não tem perspectiva futura, e o passado,
que sustentaria sua narrativa, vai sendo ironicamente corroído
pela sua prepotência que oblitera a compreensão da realidade.
Guardadas as devidas diferenças e considerando que Benjamin refere-se à social-democracia alemã, há na caracterização
de Eulálio a mesma crença num conceito “dogmático de progresso, sem qualquer vínculo com a realidade” (BENJAMIN, 1994,
p. 224). São diversas as passagens em que se percebe a desconexão entre a percepção do protagonista e o momento histórico, como, por exemplo, quando aborda dois policiais em uma
viatura, na rua: “Opinei que servir na polícia era um grande
progresso para os negros, que ainda ontem o governo só empregava na limpeza pública” (BUARQUE, 2009, p. 174).
Essa perspectiva de desencaixe do tempo histórico na ordem
narrativa é um dos diferenciais dos narradores buarquianos em
relação aos clássicos com os quais os comparamos. O tempo
ocioso sobre o qual se sustenta a narrativa de Paulo Honório ou
Bento Santiago é desconstruído, por meio de um processo de
compressão, não só no romance de 2009, como, por exemplo,
em Benjamin (1995), cuja narrativa se constrói no instante de
fuzilamento do protagonista.
Em Leite derramado, vale destacar o jogo onomástico que
ratifica essa condição do narrador. Há em Eulálio Assumpção
tanto a referência à eulalia, a fala fácil, quanto ao ato de assumir. Ambas as referências são construídas ironicamente, uma
vez que a desconexão com a realidade é tamanha, que muitas
vezes interfere naquilo que o personagem tem de mais pungente, sua condição de enfermo:
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Mas hoje a moça não está para conversas, voltou amuada,
vai me aplicar a injeção. O sonífero não tem mais efeito imediato, e já sei que o caminho do sono é como um corredor
cheio de pensamentos. Ouço ruídos de gente, de vísceras,
um sujeito entubado emite sons rascantes, talvez queira me
dizer alguma coisa. O médico plantonista vai entrar apressado, tomar meu pulso, talvez me diga alguma coisa. Um
padre chegará para a visita aos enfermos, falará baixinho
palavras em latim, mas não deve ser comigo. Sirene na rua,
telefone, passos, há sempre uma expectativa que me impede
de cair no sono. E a mão que me sustém pelos raros cabelos.
Até eu topar na porta de um pensamento oco, que me tragará para as profundezas, onde costumo sonhar em preto
e branco (BUARQUE, 2009, p. 8).
Uma canção gravada originalmente em 1987, “O velho
Francisco”, já continha a estrutura narrativa em que o romance
se sustenta e que fica explícita na passagem acima. Um velho
escravo forro reconstrói suas memórias e seus dias de glória e
os confronta com a situação presente:
Já gozei de boa vida
Tinha até meu bangalô
Cobertor, comida, roupa lavada,
Vida veio e me levou (BUARQUE, 1987)
Este último verso, que funciona como um estribilho, vai reafirmando a dramaticidade do destino do sujeito, na fatalidade
da condição de dependência física – e moral – em que o personagem se encontra no momento das memórias:
Hoje é dia de visita
Vem aí meu grande amor
Hoje nem deram almoço, né?
Acho que o moço até
Nem me lavou (BUARQUE, 1987)
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Leite derramado inverte a condição social desse narrador, mas
se na canção o clímax dramático está no contraste entre a boa
vida de que o personagem gozou e sua débil condição presente, esse contraste, no caso do romance, vai se esgarçando pela
hiperexposição. Tudo se atenua pela loquacidade. Dessa forma,
o que está patente nas duas obras, mas que o romance parece enfatizar, é a impossibilidade de tradição dos discursos. A
ênfase no momento final das vidas, tanto do velho Francisco
quanto de Eulálio, parece indicar que morrem com os velhos
suas histórias. Embora um tenha sido escravo e o outro herdeiro da oligarquia escravocrata, a natureza social de ambos
os discursos é idêntica, na medida em que reafirmam a ideologia dominante, os hábitos e os costumes letrados, o convívio
da elite que escamoteia a subalternidade, e a lição de moral,
equiparadora dos homens, contida na doença e na morte. Dessa forma, quando, da canção para o romance, o autor produz
a inversão social, o que obtém é justamente a explicitação
dos índices do racismo implícito. Compare-se, por exemplo,
a menção feita aos evangélicos, com a cena em que o protagonista, durante a missa de óbito de seu pai, conhece Matilde:
(...) Maria Eulália expõe sua mãe ao juízo daquela gentalha
da igreja. Não vai aí a intenção de ofender os mais humildes,
sei que muitos de vocês são crentes, e nada tenho contra sua
religião. Talvez até seja um avanço para os negros, que ainda
ontem sacrificavam animais no candomblé, andarem agora
arrumadinhos com a Bíblia debaixo do braço (BUARQUE,
2009, p. 193).
A percepção do código escrito, a Bíblia, como um processo
de ascensão em relação à tradição oral dos cultos afrodescendentes, além de corroborar a ideia de fatalidade do progresso,
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na leitura benjaminiana, espelha inversamente a caracterização
de Matilde, como motivo de transgressão da tradição cristã, de uma cultura e civilização que se fundam na repressão
dos impulsos eróticos: “Eram as exéquias do meu pai, no entanto eu não sabia mais me libertar de Matilde, procurava adivinhar seus movimentos mais íntimos e seus pensamentos tão
distantes” (BUARQUE, op. cit., pp. 30-31).
Nesse sentido é que a personagem de Matilde se estabelece no
romance não apenas como um elo perdido da suposta harmonia
racial brasileira, mas entre a cultura e a sublimação das pulsões
eróticas, pois, lembrando Freud, é impossível não enxergar em
que medida a cultura está alicerçada na renúncia aos impulsos,
o quanto ela pressupõe não satisfação (repressão, recalcamento
ou o quê?) de impulsos poderosos (FREUD, 2010, p. 101).
A escrita de Chico Buarque funda-se justamente na tensão
entre a cultura e a pulsão erótica. O sujeito constrói a narrativa na intenção de compreender – e contar para a filha – por
que foi abandonado pela mulher. Implicitamente fica claro que
é a ascendência negra de Matilde que a torna volúvel, sujeita
a deixar-se seduzir pelo francês e abandonar a família e a filha
lactente e com elas a tradição e a propriedade. Dessa forma,
a dissipação da fortuna dos Assumpção deveu-se à descendência de Eulálio e Matilde. Eulália, a filha do casal, dá ao pai um
genro oportunista e um neto traficante de drogas.
Se, em certa medida, o título do romance pode remeter
à expressão “não se deve chorar sobre o leite derramado”, da
tradicional fábula infantil sobre a camponesa e o balde de leite,
torna-se mais proveitosa a leitura segundo a crença popular de
que derramar leite sobre a chapa do fogão (durante a fervura)
faz secar o da vaca. Sabe-se que a educação doméstica estava
por trás dessas crendices e mitos e que muitos deles eram in61
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cutidos nos escravos responsáveis pelas tarefas do lar. A sabedoria popular, ou a dos antigos, reduzida a fórmulas, inculca
os deveres como tabus para adequar o comportamento social.
Assim, as superstições têm função educativa, visando à adequação às normas de boa conduta (cf. WEITZEL, 2007, p. 192).
Deixar o leite derramar resultaria no castigo maior que seria
a perda da própria fonte do leite. Metaforicamente, não é Matilde quem derrama o leite que lhe abundava no seio, vertendo-o pela pia, como parecem sugerir diversas cenas repetidas
na memória do narrador, mas é o próprio Eulálio quem compromete a tradição familiar, unindo-se a Matilde, cedendo aos
seus impulsos eróticos.
Com isso, o romance pode ser lido como a indicação de que
a prepotência e o esnobismo que sustentam o racismo no país
estão com sua tradição minada, trata-se de uma ideologia que
se vai esgotando numa fala vazia e histérica.
Não há brancos no brasil
Chico Buarque exemplifica essa histeria dos herdeiros da ideologia racista brasileira, ao comentar a reação de uma senhora,
num restaurante carioca, a partir de uma declaração que ele teria dado na imprensa, segundo a qual não há brancos no Brasil.
Naquela semana [em que fizera uma declaração de que não
havia brancos no Brasil], por acaso, eu fui a um restaurante
e tinha, do outro lado da mesa, uma senhora com o cabelo
pintado de amarelo, pensando que era branca, que começou a berrar “Eu sou branca!”, isso num restaurante supostamente chique. “Eu sou branca! Eu sou branca!” É uma coisa
muito mal resolvida no Brasil, o brasileiro não aceita o fato
de ser mestiço, não aceita mesmo. Todo mundo fala assim...
teoricamente... fulano diz “ah eu tenho um pé na cozinha”,
mas não tem. Isso é uma maneira de falar... É um democra62
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ta... mas na verdade todo mundo tá vendo que ele é branco
(BUARQUE, 2006).
A despeito da referência jocosa à fala do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, sobre ter um pé na cozinha, vale
também ressaltar que a histeria da personagem real citada pelo
autor equivale ao esvaziamento do discurso provocado pela eulalia do narrador de Leite derramado. Sintomaticamente, esse
depoimento gravado por Chico Buarque está num DVD dedicado a documentar o tema da infância em sua obra. Parte de
uma reflexão sobre ações racistas com que o compositor conviveu depois do nascimento de seu neto, Francisco, filho de Helena Buarque e do músico Carlinhos Brown. No mesmo DVD, ao
reportar aspectos da própria infância, o compositor rememora
suas primeiras percepções da injustiça social, mencionando o
namoro de sua babá com o lixeiro e comparando o trabalho
deste com o de seu pai:
Como é que meu pai, que ficava sentado [escrevendo], pode
se casar e ter sete filhos e o lixeiro, que trabalha muito mais,
carregando aquelas latas e se sujando todo, não tem dinheiro
pra constituir família? Aí eu fiquei... foi minha primeira revolta, assim... esse mundo é injusto (BUARQUE, 2006).
Infere-se que a consciência de classe, no Brasil, associada
com o universo trabalhista, desdobra-se, por memória da escravidão, numa consciência étnica. Essa interface é fixada, no
romance, novamente pela tensão entre relações socioculturais
e eróticas, por exemplo, por meio da personagem do negro Balbino, que na onomástica oposta à de Eulálio pouco fala, ou apenas balbucia. A figura do negro, filho de escravos que cresceu
ao lado de Eulálio, em certa medida, funde-se social, étnica e
eroticamente à de Matilde:
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Durante um período, para você ter uma ideia, encasquetei
que precisava enrabar o Balbino. [...] Então lhe pedia que
fosse catar uma manga, mas tinha de ser aquela manga específica, lá no alto, que nem madura estava. [...] E eu já desconfiava que ele também se movia ali no alto com malícias,
depois tinha um jeito meio feminil de se abaixar com os
joelhos juntos, para recolher as mangas que eu largava no
chão. Estava claro para mim que o Balbino queria me dar
a bunda. [...] Mas por esse tempo felizmente aconteceu de
eu conhecer Matilde, e eliminei aquela bobagem da cabeça
(BUARQUE, 2009, pp. 19-20).
Essa passagem ajuda a refletir, ainda, sobre como a construção de uma sociedade etnicamente híbrida fundamenta-se
num processo de dominação de gênero. A miscigenação, que
no senso comum é pensada como uma mistura de raças independentemente de gêneros, efetiva-se de fato por meio da dominação do homem branco sobre mulheres negras ou índias.
O negro e o índio ainda podem ser objeto de sevícias sexuais,
submetidos ao desejo e ao poder do colonizador. E da mesma
forma que o romance destaca a crença de que haveria uma vocação para a escravidão, o protagonista constrói a tendência
homossexual em Balbino, como se não fosse o seu jugo que
definisse a relação de poder, mas o desejo do outro.
A ginga do cantor de Sinhá
Subvertendo essa relação de gênero, a recente canção Sinhá,
parceria de João Bosco e Chico Buarque, expõe a violência das
relações de poder sobre o negro no Brasil, a partir da vingança
de um senhor contra um escravo que teria seduzido (ou sido
seduzido?) pela Sinhá:
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Para que me pôr no tronco
Para que me aleijar
Eu juro a vosmecê
Que nunca vi Sinhá
Por que me faz tão mal
Com olhos tão azuis
Me benzo com o sinal
Da santa cruz
[...]
Por que talhar meu corpo
Eu não olhei Sinhá
Para que que vosmincê
Meus olhos vai furar (BUARQUE, 2011).
Interessa especialmente nessa construção narrativa, em cotejo com a do romance, justamente o fato de a canção ter sido
capaz de relativizar a prepotência e o esnobismo das elites e de
seus valores, que permaneceram os mesmos em “O velho Francisco” e em Leite derramado. O procedimento narrativo, em “Sinhá”, recusa a asserção absoluta e fundamenta-se na sugestão
e na ginga que acaba por caracterizar um processo de resistência, de permanência do discurso. Se as narrativas de Eulálio
e do velho Francisco anunciam-se fadadas a se esgotarem em
si, sem possibilidade de tradição, o conto do escravo que é mutilado pelo senhor recupera-se na voz de seu “herdeiro sarará”,
filho de dois pais, um biológico outro social, e da Sinhá:
E assim vai se encerrar
O conto de um cantor
Com voz do pelourinho
E ares de senhor
Cantor atormentado
Herdeiro sarará
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Do nome e do renome
De um feroz senhor de engenho
E das mandingas de um escravo
Que no engenho enfeitiçou Sinhá (BUARQUE, 2011).
No último verso, o verbo enfeitiçar, na voz ativa, reforçaria
que a capacidade de enfeitiçar é unidirecional, apenas do escravo para a Sinhá. Por que, o leitor poderia indagar, não teria
a Sinhá enfeitiçado o escravo? Por outro lado, a estratégia de
mudança de narrador na conclusão da canção revela-se como
procedimento de resistência e de sobrevivência. O que o pai
negou, por motivos óbvios de autoproteção, o filho pode descobrir, revelar. Mas isso significa renunciar à exclusividade da
paternidade branca, senhorial, ao nome e renome, e afirmar-se
por meio da assunção das mandingas, da ginga, da esperteza
que teria garantido a sobrevivência e a tradição de toda uma
cultura. Nesse sentido, o poder da sedução e o feitiço ganhariam sinais positivos, contrários à violência e à ferocidade do
senhor. Essa ginga como forma de resistência já estaria fixada na primeira parte da letra com relação ao aspecto religioso,
como sintetizam os seguintes versos: “Eu choro em iorubá /
Mas oro por Jesus” (BUARQUE, 2011).
Hoje, com seus netos e bisnetos, a cultura afro-brasileira
ainda busca sua afirmação plena, não só com a ginga da capoeira e do samba, mas também na literatura, seja de parabélum
em punho, seja falando do passarinho, ou para recuperarmos
metáfora de Allan da Rosa, quando se refere, em entrevista, ao
movimento da literatura periférica:
Acho que a princípio o movimento falava mais da parabélum e hoje está percebendo que é importante falar dos passarinhos. Natural. A espiral vai crescendo e a gente pode
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desconfiar das parabélum que a gente mesmo confeccionou,
sabe? [...] Quando você ouve uma pessoa rimar quilombo
e liberdade e na hora de construir a liberdade para além da
palavra, que ergue outras escoras, essa pessoa não está presente. [...] Então eu acho que a gente vai desenvolver mais,
o passarinho segurando a parabélum, ou a parabélum soltando o passarinho (ROSA, 2011, p. 10).
A memória é uma vasta ferida ao passo
que o tempo futuro se estreita
A proporcionalidade inversa entre o tempo futuro e a memória, que pode ser a síntese da condição de Eulálio Assumpção,
também funciona como alegoria das transformações políticas
e culturais que a sociedade brasileira vivencia. Movimentos inclusivos, ações afirmativas, processos reivindicatórios são formas de reparação que tendem a estreitar o futuro do racismo
no país. No entanto, para que não tenham apenas efeitos paliativos, é necessário de fato que junto com tais ações se exponha,
como consciência histórica, a vasta ferida que é a memória das
relações trabalhistas no país, sobre cujos desdobramentos, desde a escravidão, o romance leva a refletir.
Nesse sentido, é de desejar que o tipo de consciência promovido pelos atuais movimentos afirmativos reformule radicalmente a compreensão das relações de trabalho, principalmente
aquelas dos trabalhadores doméstico e rural, os herdeiros mais
diretos da escravatura, os mais tardiamente regulamentados
no Brasil. Ainda há grandes hiatos nesse futuro que pretende
emparedar o racismo no Brasil. O viés das produções culturais talvez seja o que melhor possa desempenhar esse papel.
É possível, pelo jogo de alteridades que a criação poética proporciona, não apenas aceitar o outro, mas ser o que o outro é,
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viver o que o outro vive. Sendo assim, mesmo que operando
no polo social oposto ao das temáticas mais caras à literatura
marginal e construindo seu discurso por meio de recursos que
dinamitam a estética realista, predominante por enquanto nas
obras oriundas de nossas periferias, Leite derramado apresenta
uma alternativa romanesca com a qual os autores da periferia
também podem flertar, tal qual Chico Buarque anda fazendo
com o rap. São vozes diferentes, mas não opostas; participam
da mesma luta. E essa troca de linguagens, de percepções críticas e de compreensões distintas dos limites da opressão e do
fascismo são imprescindíveis para a transformação de valores
que atualmente vive a sociedade brasileira.
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Juiz de Fora: Franco Editora, 2007.
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cAROlA SAAvEdRA: dA (IM)POSSIbIlIdAdE
dE AlcANÇAR O OUTRO
Diana Klinger
(para Paloma)
[a narrativa] distrai e invade, consola e descobre,
acomoda e tortura, adormece e atiça. Traça identidades e acelera corações […] A narrativa é um
laço com o outro.
Antônio Paulo Rezende,
Ruídos do efêmero
No romance de estreia de Carola Saavedra, Toda terça
(2007), Laura é uma mulher jovem, que está meio perdida na
vida. Não faz quase nada, a não ser raramente ir para a faculdade e “toda terça” ir à sessão de psicanálise. Com Otávio, seu
psicanalista, ela fala primeiramente sobre sua relação com um
homem casado, Júlio, e depois com outro homem que conheceu no cinema e pelo qual se apaixonou. O romance vai alternando as falas de Laura nas sessões de análise e as narrativas,
também em primeira pessoa, de Javier. Javier é um latinoamericano que mora em Frankfurt, onde conhece Ulrike; tem
um caso com ela e acaba se mudando para o apartamento que
ela divide com mais quatro pessoas. Ele está escrevendo sua
tese de doutorado e não trabalha, passa o dia no apartamento que “toda terça” está “quase” vazio, apenas lá está uma das
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colegas de Ulrike, Camila. E ela acabará sendo a terceira voz
narrativa, que aparece só na parte final do romance, unindo
as duas histórias que aparentemente não têm conexão entre si
(a de Laura e a de Javier), mas também desfazendo a credibilidade de tudo o que acabamos de ler, de tudo o que Laura
contou para o analista. Não é com o homem do cinema que ela
está morando, mas com uma velha amiga, Camila, que voltou
de Frankfurt, onde se apaixonara por um homem, Javier, que
sua colega Ulrike conhecera na saída do cinema e que lhe prometera ir com ela para o Rio de Janeiro… Há mais histórias na
história que lemos, as coisas são diferentes de como a protagonista as contou e nunca teremos acesso às histórias “reais”
(o que aconteceu entre Camila e Javier? O que aconteceu entre
Laura e Camila?).
No romance seguinte de Carola, se repetem dois procedimentos do primeiro: o mecanismo de alternância e o final
em aberto. Em Flores azuis (2008), Marcos acabou de se separar
e de se mudar, quando começa a receber, na caixa de correio, as
cartas desesperadas que A. manda a “meu querido”. As cartas
estão dirigidas ao antigo morador do apartamento, mas Marcos não resiste à tentação de lê-las. No romance, as cartas se
alternam com os capítulos em que um narrador em terceira
pessoa conta como Marcos vai ficando cada vez mais envolvido
na leitura, “se deixando seduzir, aos poucos, pela ilusão de ocupar o lugar do receptor ideal” (cf. SÁ, 2008). Mas quem é, no final
das contas, esse receptor ideal? Quando Marcos finalmente se
decide a procurar o antigo morador do apartamento e levar as
cartas para ele, este diz que não faz ideia do que se trata, que
nada do que está aí escrito lhe diz respeito. De novo, um final
em aberto, alguma coisa que o leitor nunca saberá. Então para
quem estavam dirigidas as cartas? “Pensando bem”, diz o antigo
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morador do apartamento, “o meu nome nem aparece na carta,
só no envelope” (SAAVEDRA, 2008, p. 162).
Em Paisagem com dromedário (2010), o terceiro do que se poderia considerar uma trilogia da separação, Erika – uma artista
plástica – está numa ilha para se recuperar de uma grande crise, de uma grande perda, e grava mensagens para Alex, um artista plástico famoso com quem tem ou teve uma relação longa
e muito íntima. Nas gravações, ela tenta reconstruir e explicar
sua atitude, sua fuga quando soube que Karen estava com câncer e ia morrer em breve. Karen era uma menina, uma aluna
de Alex com quem os dois acabam se envolvendo até o ponto de não conseguirem mais imaginar a relação deles sem ela.
Ao saber do câncer, Erika foge, evita todo contato com Karen,
não responde a seus telefonemas. Quando Karen morre, Erika
viaja para uma ilha onde tenta recompor esse passado recente
e, sobretudo, tenta começar uma nova vida, uma vida “normal”,
afastada da arte, que já não lhe interessa. Ela deixa entrever, no
entanto, que todas as gravações não são, na verdade, dirigidas
a Alex, mas são o material para uma nova instalação.
A confissão
O medo, essa era sempre a solução. Para fazer as pazes com
Otávio, era só falar dos meus medos, reais ou imaginários,
que ficava tudo bem. […] para deixá-lo feliz, era necessário
confessar, confessar sempre o medo, muito medo, tudo estaria perdoado (Toda terça, p. 92).
Alguém se confessa. Em todos os romances de Carola, alguém se confessa. Laura, nas sessões de psicanálise; A., nas
cartas para o ex; Erika, nas gravações para Alex. E, no entanto,
todas essas confissões sempre aparecem de algum modo como
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falsas: Laura mente nas sessões de psicanálise, se apossando de
uma história alheia; as gravações de Erika são transformadas
numa instalação (se é que elas não foram desde o início feitas
para isso); a remetente – e até o destinatário – é um completo
mistério em Flores azuis. A confissão não funciona como normalmente, como forma de expor uma intimidade, mas apenas
como estratégia para atingir – afetar – o outro. Assim acontece com Marcos, quando lê ansiosamente as cartas que são
para outra pessoa: “Ali no elevador, em silêncio, percebia que,
pela primeira vez em muito tempo, algo realmente o atingia,
o alcançava” (SAAVEDRA, op. cit., p. 55). Até no consultório de psicanálise, em que a “confissão” deveria funcionar como cura,
a verdade é deliberadamente escamoteada. Quando Laura
mente para Otávio, ela tenta prever suas interpretações, joga
com ele, inventa as narrativas que considera convenientes, e o
único jogo que parece estar jogando é o da sedução e da evasão. Laura mente e inventa, porque para ela parece ser mais
interessante a relação que estabelece com o analista do que
o mergulho nas profundezas do eu.
Não havia saída, a única coisa que me restava era admitir
que acabou e esquecê-lo, nunca mais Otávio, nunca mais
aquela sala, as nossas conversas. Mas era necessário, era necessário manter um mínimo de decência, de distância. Era
necessário vingar-me, de algum modo… (idem, p. 120).
De maneira que nos três romances que Carola Saavedra
publicou até hoje acontece alguma coisa no final que instala
a dúvida no leitor acerca do que foi lido: de quem (e, sobretudo,
para quem?) eram as cartas em Flores azuis? As gravações eram
dirigidas a Alex ou foram desde o início pensadas como uma
instalação em Paisagem com dromedários? E, por fim, a consta73
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tação de que não teremos acesso à verdadeira história, a que
interessa, em Toda terça. A evidência de que estamos perdendo algo, como Erika que tem a sensação de ouvir menos que
os outros, de sempre estar perdendo alguma coisa. Nesse sentido, Toda terça é o mais instigante dos três romances porque
nele a história principal não é narrada, mas apenas sugerida
no final, quando o leitor percebe que, assim como o analista,
tinha sido enganado por Laura. Além disso, no início do romance, no momento em que Javier conhece Ulrike, ele está
lendo uma história em que um colombiano chamado Javier
conhece uma mulher nórdica chamada Ulrike. A partir daí,
ele começa a representar para ela um personagem colombiano… sua verdadeira identidade, o leitor nunca saberá. Então
também Laura, a que engana o analista e o leitor, é uma personagem enganada, porque acredita numa história, num personagem, que também está fazendo uma performance de si
mesmo (sutil vingança do leitor…).
As relações triangulares
Alguém se confessa. Paradoxo: alguém mente ou inventa, ou
não se sabe a identidade de alguém. Mas o que parece mais
interessante é que, em todos os romances de Carola, há um
destinatário (interno ao romance) dessa confissão: uma carta
destinada a alguém, uma fala dirigida ao psicanalista e uma
gravação feita para um ex-namorado. De maneira que, em
todos esses romances, há uma narrativa em segunda pessoa.
E, no fundo, possivelmente o único narrador verdadeiramente
verossímil seja o narrador em segunda pessoa. Porque o narrador em terceira pessoa, onisciente, parece falar com objetividade, mas ele não existe, não é ninguém, enquanto o narrador em
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primeira pessoa, que em geral é um personagem da história,
na maioria das vezes não tem nenhuma justificativa para falar.
Quem fala ou para quem? E, sobretudo: por quê? Para quê?
Os narradores de Carola resolvem essas inverossimilhanças
quase intrínsecas da ficção: seus narradores são personagens
e têm, dentro da história, seu destinatário.
Pois bem, quando a narrativa se dirige a alguém dentro da
história, o leitor se transforma num terceiro, alguém que parece ouvir indiscretamente coisas que são destinadas a outra pessoa. A literatura como uma carta destinada a alguém, a respeito
da qual o leitor se transforma num voyeur. Em Paisagem com
dromedário, Erika conta no gravador coisas que Alex já sabe,
coisas que viveram juntos. Então realmente não parece muito
verossímil, a menos que no fundo as esteja contando para o
leitor, quero dizer, para o espectador de sua instalação. Isso me
faz pensar que talvez ele, o leitor – o espectador –, seja o terceiro necessário para que a relação exista, para que a comunicação
aconteça. Talvez a arte sempre pressuponha uma relação triangular: artista-público-destinatário. E não deixa de ser curioso
apontar que nos três romances de Carola há relações triangulares: a mais óbvia e explícita é a relação entre Erika, Karen
e Alex em Paisagem. Mas também em Flores azuis há um triângulo entre A., o “verdadeiro destinatário” e Marcos. E em Toda
terça, a relação entre Javier e Ulrike se revela apenas uma cortina de fumaça que esconde a outra relação que Javier vai ter,
toda terça, com Camila. Inclusive, Erika diz que no fundo toda
relação é a três. Parece possível, então, pensar que nessas relações triangulares se espelha a relação entre a literatura e o leitor. Por isso parece significativo, também, que os destinatários,
nos romances de Carola, sejam sempre esquivos. Eles nunca
chegam a ser realmente destinatários. Há sempre alguém que
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se transforma em destinatário, alguém que ouve ou que lê algo
que não lhe é destinado. Há um ruído na comunicação entre
a fala e a escuta, ou entre a escrita e a leitura. Nesse processo,
destinatário e autor vão perdendo suas feições, se transformando em anônimos. Nesse aspecto, essas relações se parecem com
a comunicação literária, com a literatura que, “sem ser carta
aberta, abre no entanto lugar para um destinatário que, apesar
de ser sempre singular, não é pessoal porque necessariamente anônimo”, como disse Silviano Santiago no texto intitulado
precisamente “Singular e anônimo” (2002, p. 61).
“A escrita é cheia de mal-entendidos, como a fala”, comenta
“A.” numa das cartas em Flores azuis. E é assim que talvez se possa pensar a recepção artística: alguém ouve ou lê algo que não
lhe é destinado. O leitor, aquele terceiro que lê algo que não lhe
é destinado, em teoria poderia reparar essa falha na comunicação, porque ele tem alguma informação a mais que os destinatários, porque ele pode juntar os fios soltos. Mas não é assim
que funciona nos romances de Carola, talvez porque, no fundo,
a literatura é ela mesma a evidência de uma falha na comunicação. É assim que Alex entende a arte, como se percebe numa das
gravações de Erika em que ela assiste a um documentário em
que ele está sendo entrevistado:
Voz [de Alex]: é preciso lembrar que o fato de criarmos esse
espaço, colocarmos setas, indicarmos formas de leitura,
nada disso significa que a recepção pode ser realmente manipulada. Aí está talvez uma das questões cruciais da obra de
arte, a questão do outro. Como lidar com a impossibilidade
de alcançar o outro. A impossibilidade de uma comunicação
real. Esse foi meu questionamento principal ao planejar, desenvolver este meu último trabalho. Voz de Érika: essa gravação deve ter uns três, quatro anos. Você está usando aquele
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teu blazer preto de lã, aquele que eu te dei de presente, acho
que foi no teu aniversário. (Pausa.) É, foi sim, no teu aniversário. Voz: Porque o discurso do artista é sempre um discurso não realizado. Um discurso que precisa do outro para
existir (SAAVEDRA, 2010, p. 147, itálicos meus).
Será que as palavras de Alex podem ser levadas em consideração para pensar o romance mesmo em que ele é personagem? Os comentários de Alex lembram o que Nicolás Bourriaud define como uma “estética relacional”, isto é, uma “forma
vinculante, transitiva” em que o espectador é chamado a participar de uma interação em lugar de “se confrontar com um
objeto acabado e exterior a ele” (BOURRIAUD, 1999, p. 105), o que
“atesta uma inversão radical dos objetivos estéticos, culturais
e políticos postulados pela arte moderna”, diz Bourriaud (2009,
p. 20). A arte moderna procurou se afirmar a partir de um espaço simbólico autônomo, diferentemente da estética relacional que “toma como horizonte teórico a esfera das interações
humanas e seu contexto social” (BOURRIAUD, op. cit., p. 19). Da
mesma forma, tem se postulado a modernidade literária como
“mise en ouvre” de um uso intransitivo da linguagem, por oposição a um uso comunicativo (cf. RANCIÈRE, 2011, p. 17).
Evidentemente, as possibilidades de uma estética relacional são maiores para as artes plásticas do que para o romance,
porque a arte estreita o espaço das relações (e, por isso, pode
problematizá-las), ao contrário da literatura, que remete a um
espaço de consumo privado. Ademais, no caso da obra de arte,
o espectador pode mesmo vir a interferir de uma forma tal que
esta exista apenas na dependência dele, enquanto o romance
é um objeto fechado em si mesmo, materialmente autônomo
e independente da sua recepção. No entanto, essa não deixa
de ser uma interpretação parcial, e o romance pode sim ser
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pensado sob esse olhar, se entendermos que a forma é “apenas
uma propriedade relacional que nos liga aos que nos reificam
pelo olhar” e que por meio dela, da forma, “o artista inicia um
diálogo” (BOURRIAUD, op. cit, p. 30). Este diálogo entre o artista
e o receptor, entre autor e leitor, é metaforizado na trama dos
romances de Carola Saavedra, a partir de uma ideia de abertura, de incompletude, de não identificação.
Como apontava Paul Valéry, na arte é essencial que haja algo
de irredutível entre o produtor e o receptor, que não haja comunicação direta e que a obra “não aporte à pessoa que afeta nada
que possa se reduzir a uma ideia da pessoa e do pensamento do
autor”.1 Esse “algo irredutível” entre o autor e o leitor (que é a literatura mesma) está presente nas tramas dos romances de Carola, na forma de uma incomunicação, de uma mensagem que
não chega ou que chega de forma distorcida a seu destinatário.
Essa incompletude da comunicação é paralela ou complementar à ideia de confissão desligada da noção de verdade, de
exposição da intimidade, como acontece com os personagens
nos romances de Carola: o que se apresenta como confissão
resulta ser falso, incompleto ou, no extremo, sem sujeito. De
maneira que nesses romances “se escova a contrapelo” o terreno da comunicação contemporânea como propiciadora de um
imaginário fetichista em relação com o acesso à intimidade do
outro. Assim, por meio da desconstrução da tríade intimidadeconfissão-comunicação, Carola se inscreve criticamente na linhagem de uma literatura moderna, ao mesmo tempo negando a intransitividade da linguagem literária e evitando o seu
oposto, isto é, a comunicabilidade imediata, a “indiferenciação
1 Paul Valéry. Pièces sur l’art. Paris: Gallimard, 1934, citado por Reinaldo Laddaga. Estética
de laboratorio. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2010.
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entre arte e vida” (cf. RANCIÈRE, op. cit., p. 85) ou identificação do
leitor com aquilo que ele lê (à la “Madamme Bovary”, poderíamos dizer). Pois aí reside um dos paradoxos da literatura
moderna, de acordo com Rancière:
se o futuro da arte2 busca uma nova forma de indiferenciação
entre a arte e a vida não artística, e se esta indistinção está
disponível para qualquer um, o que resta para a arte fundar
a sua especificidade? A nova fórmula que funda a diferenciação da arte significa também sua queda na indiferenciação de
uma vida que em todas as partes se mistura com a arte assim
como a arte se mistura, em todas as partes, com a vida (op. cit.,
p. 85, tradução minha do espanhol).
Lembremos que esse é precisamente o paradoxo que subjaz em Paisagem com dromedário, em que se sustenta até o final
a ambiguidade: o que lemos são mensagens privadas ou são
materiais de uma instalação? Ou são as duas coisas ao mesmo tempo? Se assim for, então quer dizer que é a possibilidade
mesma dessa relação triangular entre o autor, o destinatário e
o público o que abre os sentidos, o que potencializa a obra.
De maneira que a literatura, entendida como falha na comunicação, ou como “algo irredutível”, tal como postulava Valéry, produz uma interdição tanto no regime de verdade quanto
no regime de identificação. Sem identificação não há lugar para
um “receptor ideal”, no qual se completaria o sentido. Assim,
nessa trilogia da separação, a literatura é o que resta da impossibilidade de alcançar o outro. O que resta e o que resiste, isto é:
o que persiste.
2 Refere-se ao futuro para Flaubert, ou seja, à arte e literatura modernas.
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REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOURRIAUD, Nicolás. Formas de vida. El arte moderno y la invención de si.
Murcia: Condeac, 1999.
_____. Estética relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
LADDAGA, Reinaldo. Estética de laboratorio. Buenos Aires: Adriana Hidalgo,
2010.
RANCIÈRE, Jaques. Política de la literatura. Buenos Aires: Libros del Zorzal,
2011.
SÁ, Sérgio de. “O poder transformador da palavra”. Resenha de Flores azuis. Em
Caderno Prosa & Verso. Jornal O Globo, 4 de outubro de 2008.
SAAVEDRA, Carola. Toda terça. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
______. Flores azuis. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
______. Paisagem com dromedário. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
SANTIAGO, Silviano. “Singular e anônimo”. In ____. Nas malhas da letra. Rio
de Janeiro: Rocco, 2002.
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literatura, vida, cena literária
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RIcARdO líSIAS: vERSõES dE AUTOR
Luciene Azevedo1
Não é incomum encontrar o nome de Ricardo Lísias associado à sua condição de “jovem autor” do cenário literário brasileiro contemporâneo. A fortuna crítica do escritor também
não é grande, e não vai muito além das resenhas por ocasião da
publicação dos textos. Talvez por esse mesmo motivo, as edições insistam na oferta de um comentário crítico na orelha da
publicação ou na forma de posfácio, como acontece com a edição de Anna O. e outras novelas, em que Leyla Perrone-Moisés
chancela o que reconhece como “um dos melhores escritores
brasileiros revelados nos últimos anos” (2007, p. 195).
Há vários elementos que contribuem para o surgimento e
a fixação de um autor no campo literário. A recepção crítica
especializada é apenas um desses elementos, mas pode exercer
papel fundamental na construção da figuração autoral e na recepção da obra.
A positividade da recepção de Perrone-Moisés, respaldada
pela premiação de terceiro lugar no prêmio Portugal Telecom
concedido a Duas praças (2005a), inscreve também algumas das
marcas da assinatura dessa nova voz. Os textos tramados a par1 A autora agradece a Antonio Marcos Pereira, ele mesmo um dos integrantes da “lista
on-line de admiradores de literatura”, o acesso aos textos de Ricardo Lísias aqui comentados e ainda “inéditos”. Muitas especulações desenvolvidas neste ensaio nasceram de nossas
conversas sobre a leitura compartilhada dos textos.
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tir do entrelaçamento de duas linhas narrativas, a escolha de
temas políticos (a questão dos sem-teto, a referência à tortura e às ditaduras latino-americanas), a fala repetitiva e cortada
por anacolutos, enfim, a escrita cuidadosamente trabalhada vai
aparecer reiterada não apenas nos depoimentos do autor, mas
também por outros comentários críticos sobre sua obra.
Tais características são facilmente identificadas nos textos
ficcionais publicados. Em Duas praças, duas histórias paralelas que se encontram muito sutilmente a partir das inferências
extraídas da condição de descaso a que é relegada Maria, moradora de rua, que vive em uma casa imaginária em plena praça da Sé, e dos entraves para a obtenção de informações sobre
o paradeiro de Marita, uma estudante universitária, argentina,
desaparecida e procurada pelas Mães da Plaza de Mayo. A mudança do foco narrativo (em primeira pessoa, para a história
de Marita, e em terceira pessoa, para narrar Maria) a cada dez
capítulos e a exacerbação da linguagem nervosa, suspensiva,
de Maria provocam o entrave de leitura: “Maria não gosta nem
de.” (2005a, p. 39) “Por isso, inclusive, os dois. Claro, ele jamais,”
(op. cit, p. 43).
Além disso, as referências sarcásticas ao mundo acadêmico
também constituem uma marca do autor e já aparecem no conto “Café”, publicado no jornal da FAPESP, também em 2005,
quando o próprio Lísias fazia seu doutorado na USP.
Do mesmo modo que o sistema acadêmico aparece ridicularizado por meio de personagens como o professor, apelidado
Bocage em Duas praças, em “Café”, a cena prosaica de um café
na cantina da universidade derramado sobre o caderno de anotações para compor a tese de doutorado é mais uma oportunidade para o escracho:
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banca alguma aceita uma tese de doutorado com menos
de trezentas notas, não por nada, mas porque as notas demonstram o conhecimento bibliográfico indispensável para
qualquer um que esteja querendo ostentar o título de doutor
(2005b).
A tão elogiada dicção política da temática de suas histórias
já está presente no primeiro livro, Cobertor de estrelas (1999). As
epígrafes de Beckett e Vitor Hugo parecem apontar para o casamento perfeito entre o labor técnico e a verve comprometida, dois esteios importantes da produção ficcional de Lísias.
Embora esses paratextos, principalmente o trecho do prefácio
de Hugo a Os miseráveis, citado como epígrafe, possam levantar suspeitas sobre a instrumentalização da literatura para
a exaltação ao engajamento e a denúncia das mazelas sociais
(“enquanto houver na terra ignorância e miséria, não serão os
livros como este, decerto, inúteis”), o texto de Lísias, autenticado pela citação e mesmo assumindo a temática do abandono
social das crianças de rua, “impressiona por ser desprovido de
pathos, de tragédia e de revolta”, como notaria Perrone-Moisés
falando sobre o conto “Capuz” (2007, p. 198).
Mas a característica mais notável entre as marcas de reconhecimento de um estilo, de uma assinatura de autor, constituindo-se por meio dos textos, é quase imperceptível. Refiro-me
a certa recorrência, a certas mínimas repetições ou evocações a
personagens, falas, cenas ou acontecimentos que se disseminam
pela obra e que parecem constituir uma estratégia de composição.
Pois já em Cobertor de estrelas podemos ler o esboço da situação dramática vivida por Maria em Duas praças:
Lá pertinho, no canteiro do meio da rua, mora uma velha
doida, coitada. Ela pensa que tem uma casa bem ali, com parede e tudo. O mais engraçado é que a mulher, todo dia, abre
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a janela do quarto, depois de puxar a cortina, vai para a cozinha direitinho pelo lugar que ela pensa que tem uma porta e,
depois, sai para o quintal, para cuidar do jardim (1999, p. 72).
O procedimento é interessante ainda mais porque, em Duas
praças, para chegarmos à conclusão de que a casa de Maria na
rua é imaginária, precisamos nos acomodar ao personagem, ao
próprio texto, interpretando a alienação da fala como própria
à condição mental da personagem.
A estratégia da dispersão, da diluição de enredos em outros
enredos, está disseminada em vários trechos dos dois livros. No
próprio Duas praças, Maria refere-se aos meninos que vivem
a perturbá-la: “Preocupada, Maria resolveu ficar olhando de
longe os moleques para ter certeza de que eles não tentariam
subir no muro e jogar uma pedra no vidro da janela de sua casa”
(2005a, p. 35). O mesmo episódio já aparecia em Cobertor de estrelas: “De vez em quando, os meninos ficam passando perto dela,
só para ela ficar desesperada, gritando que eles não podem ficar
por ali, fazendo bagunça, porque é a casa dela” (1999, p. 72).
A reiterada preocupação do personagem de Cobertor de estrelas com a sujeira dos pés, que era considerada pelo menino como um empecilho à possibilidade de mobilidade social,
é, curiosa e ironicamente, ressaltada na fala de Maria em Duas
praças: “Sem falar na sujeira: aqueles moleques todos têm manchas no pé que não saem nunca” (2005a, p. 35).
O procedimento merece realce por insinuar uma estratégia
de composição que trabalha a partir da reapropriação do próprio texto, um texto “plagiando” o outro, insinuando a reelaboração permanente, fazendo mashup2 da própria criação.
2 O termo é comumente usado na música eletrônica para sugerir a combinação, a mistura
de diferentes elementos de outras canções para dar origem a uma nova música.
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Como em “Corpo”, uma das novelas do livro Anna O. e outras novelas (2007), que parece um pequeno sketch de Duas praças (2005a). O personagem Manequim, que efetivamente parece
apenas um manequim, produto das alucinações inventivas de
Maria, ganha voz e divide o foco narrativo com ela, que reitera
obsessões largamente exploradas no livro de 2005, e com o próprio narrador onisciente que contava a história da personagem.
Em Dos nervos (2007), a estratégia de reapropriação também
está presente, mas se desloca, acrescentando mais um ingrediente à repetição. A mesma estrutura de duas linhas narrativas
(os intrincados lances das partidas de xadrez, outro tema caro
a Lísias, estão entremeados aos surtos histéricos e às alucinações da personagem), o discurso suspensivo (“A vizinha devia comentar que eu tinha um, mas minha mãe nunca foi tão
direta, ela que sempre evitou fazer fofocas e detesta os”, 2007,
p. 151), presentes em Duas praças, aparecem naquela novela que
reitera uma das obsessões temáticas do autor: uma professora
universitária é a chance para a crítica ao sistema universitário.
Mas aqui aparece uma pequena alteração no procedimento.
A repetição, em especial nesse texto, é a marca mimetizadora da histeria da personagem: “Não sei se já disse, mas posso
repetir, que cheguei em casa, vindo da universidade, e encontrei a porta aberta e a luz da sala acesa” (idem, p. 153). A frase,
ligeiramente modificada, já tinha sido repetida em capítulos
anteriores e realça a compulsão da personagem. Mas o próprio
discurso parece contaminado: “Eu nunca acreditei, não preciso
repetir, não preciso repetir, em Deus” (idem, p. 149) ou “Essa
gente só consegue falar da pesquisa que está fazendo: padre
Vieira, padre Vieira, Deus que me perdoe” (idem, p. 150).
A velha retórica identificava a preterição como uma figura
de estilo que parece se encaixar perfeitamente no procedimen87
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to sob análise. A preterição é definida como um procedimento
capaz de afirmar que não se vai dizer algo ao mesmo tempo que
se diz. Mas o que parece em jogo aqui vai além do drible linguístico que consiste em falar alguma coisa sobre a qual se afirma
que não se falará (da descrença em Deus, do tema da pesquisa),
pois, além de afirmar-se o que se nega (“Deus que me perdoe”),
o que se repete, ao menos no momento da afirmação, não é o
conteúdo da afirmação (não acredito em Deus), mas a própria
negativa de que não é preciso repetir: não preciso repetir, e não
se repete efetivamente o que se está dizendo, mas insiste-se
na própria negativa: não preciso repetir, não preciso repetir,
repetidas vezes. A reiteração paranoica é, portanto, mimetizada pelo discurso enlouquecido e performada estilisticamente.
A performance narrativa também é evidente em outro texto,
publicado em Anna O. e outras novelas. Em “Diário de viagem”,
o narrador afirma que “escreveria uma novela neutra sobre alguma cidade do Velho Mundo” e efetivamente é o que o “diário” nos conta. Aí aparecem também duas outras marcas do
retrato de Lísias como escritor: a ampla pesquisa para a escrita
dos textos e a discreta menção a dados biográficos ficcionalizados: “Eu faço muita pesquisa histórica para escrever meus
textos. Veja no conto de Anna O., ‘Diário de viagem’, a foto é
mesmo a do túmulo do Salazar. Fui até lá!”3
Mas é O livro dos mandarins (2009) que mais claramente delineia a assinatura de Lísias no contexto da literatura contemporânea. A aposta formal na reescritura e reelaboração dos mesmos processos de composição parece fundamentar um projeto
insistente, que desemboca na fatura desse romance. Já a dicção
3 “Ricardo Lísias, o contorcionista da narrativa”. Entrevista concedida a Walber Schwartz
em 8/10/2009. Disponível em http://paginacultural.com.br/entrevista/ricardo-lisias-ocontorcionista-da-narrativa/ Acesso em 22/8/2011.
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comprometida fica evidente na crítica ao mundo competitivoalienado dos executivos, representado, por meio da caricatura, pelo personagem Paulo, cujo grande ídolo é o ex-presidente
Fernando Henrique Cardoso. Paulo investe todas as suas fichas
profissionais em uma promoção que lhe daria a oportunidade
de trabalhar na China e, além disso, tem outra grande ambição:
escrever um livro-farol para futuros executivos, uma espécie
de bíblia da autoajuda empresarial, cujo título é homônimo ao
livro que estamos lendo.
A crítica à academia também volta com força total. O poeta Paulo, parente da mulher Paula (em um universo ficcional
em que todos os personagens são Paulos, Paulas, Paulinhos ou
P****), é contratado para atuar como ghost-writer, depois de
ter peregrinado por alguns departamentozinhos de teoria
literária, deixando envelopes com a edição artesanal do seu
primeiro livro de poemas e uma cartinha simples para os
professores. A maioria sequer se dava ao trabalho de abrir,
mas um deles achou a foto do rostinho liso do poeta atraente
e marcou um café (LÍSIAS, 2009, p. 176).
A aposta experimental consegue driblar a aridez mimética
da rotina reificante de Sexo, livro de André Sant’Anna, publicado em 1999, ao qual O livro dos mandarins já foi aproximado,
porque o discurso do narrador, conivente com os delírios do
personagem que, mesmo estando no Sudão, insiste em tratar
seus futuros funcionários como gueixas e samurais, provoca
primeiro o desconcerto do leitor e, logo depois, o riso.
Enfim, aos olhos de uma crítica mais tradicional, O livro dos
mandarins poderia ser considerado o romance da maturidade
de um “jovem” autor, por meio do qual um estilo literário estaria se consolidando. Sem dúvida, na biografia da obra de
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Lísias, esse é o romance capaz de arrematar a figura de escritor de Ricardo Lísias para o campo literário, tornando possível
a recapitulação dos passos de construção da autofiguração desse nome de autor por meio de seus textos ficcionais.
Mas será viável ao projeto de construção de uma carreira
autoral o desvio, a opção por um atalho ainda não totalmente
explorado na biografia de sua própria obra? Vale a pena a peripécia estilística que resulta num borrão da figura já esboçada?
Refiro-me aqui a uma série de textos escritos pelo autor
a partir de 2010, muitos deles com proposta gráfica artesanal
elaborada pelo próprio Lísias, e que circulam quase clandestinamente, enviados por correio ou correspondência eletrônica
para uma lista de nomes, “apreciadores de literatura”,4 selecionados por ele. Há aqui uma aposta clara na reinvenção de
estratégias de divulgação e circulação de seus textos, também
acompanhada por uma insistência temática que parece desdenhar ou minorar a importância de certas características laboriosamente construídas ao longo de sua produção literária e
associadas ao “estilo” Lísias, pois as plaquetes, apesar de insistirem em elementos formais aqui comentados, apresentam uma
guinada subjetiva (a expressão é de Beatriz Sarlo) fundamental,
incorporando o próprio Ricardo Lísias, o nome próprio do autor, à cena da construção ficcional. Não deixa de ser irônico o
fato de que a chancela crítica de Leyla Perrone-Moisés ao surgimento do “jovem autor” realce justamente o repúdio à incorporação de dados biográficos como marca de excelência da
produção do escritor: “Lísias não tira histórias de si mesmo [...]
princípio básico da boa ficção” (2007, p. 205).
4 A expressão é utilizada em “Sobre a arte e o amor” (2011g) para referir-se a uma lista
on-line da qual Lísias participa e através da qual divulga seus textos.
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A unidade estilística capaz de instaurar uma assinatura, um
nome-figura de autor, reforçada pelo procedimento crítico, parece contrariada pelo próprio jogo da assinatura fundamentado
na tensão entre a marca de redundância necessária a qualquer
gesto signatário e a necessidade de deslocamento da própria
vontade e das maneiras de se assinar uma obra. A reinvenção
da assinatura em Lísias incorpora o jogo com a biografia, e nem
mesmo o reiterado apelo à chancela crítica de Perrone-Moisés,
cujos elogios à obra de Lísias reaparecem na quarta capa do último romance, parece conter a pulsão pela reviravolta no projeto literário que vinha sendo posto, com sucesso, em execução:
“Até o momento, meus personagens não eram eu de nenhuma
maneira, mas agora talvez venham a ser. No próximo romance
um deles vai se chamar Ricardo Lísias, mas não sei bem o que
vai acontecer.”5
Isso não significa que pequenos detalhes autobiográficos
(a paixão pelo xadrez, o drama da redação da tese) não pululem pelos livros até aqui comentados, mas a pergunta mais instigante que ronda um procedimento tão radical no que tem de
avesso às características de sua obra prévia, dada a centralidade
que a primeira pessoa vai assumir nos textos publicados em plaquetes, é: por que apostar na mobilidade da marca autoral, inscrevendo uma contra-assinatura, quando a própria assinatura,
como marca de um nome de autor, ainda se consolidava, encontrava seu lugar no campo literário brasileiro tão competitivo?
É instigante pensar a deriva de rumo da própria inscrição
inicial da assinatura a partir da “guinada subjetiva” de Lísias
que aparece de forma incipiente em um detalhe paratextual
5 Entrevista concedida a José Chrispiniano com colaboração de Julián Fuks. Disponível em
http://www.viceland.com/br/v2n11/htdocs/ricardo-lisias-632.php. Acesso em 22/8/2011.
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presente em O livro dos mandarins. Na nota final de agradecimentos, pode-se ler a gratidão do autor a muitas pessoas que
colaboraram para garantir a verossimilhança do livro: desde
aqueles que vivem de perto a rotina empresarial, executivos
e funcionários de bancos, até uma médica, um psicanalista e
professores de árabe que consultara. O parágrafo final da nota
é também uma homenagem a André Silva, “grande amigo” do
autor de quem se informa que, tendo colaborado com a discussão para os primeiros esboços do livro que lemos, cometera
suicídio durante a fase final de escrita do romance.
A homenagem poderia passar quase despercebida se não
fosse o retorno do dado biográfico em uma miríade de textos
que não se restringem ao universo ficcional, pois não é apenas
aí no paratexto do romance que ficamos sabendo do luto vivido
pela perda do grande amigo do autor. A mesma menção reaparece insistentemente no espaço biográfico, tal como Leonor
Arfuch (2010) o compreende, e não apenas nas entrevistas concedidas pelo autor (“eu acho importante dizer que tive um amigo chamado André que de fato se suicidou da maneira como
os textos descrevem. Ele do mesmo jeito se matou sem ter lido
o grande livro de Roberto Bolaño”).6
Em um texto publicado no jornal O Globo, cuja pauta exigia
o comentário sobre a importância dos prêmios literários para
a vida literária, Lísias inicia sua crítica com a marca biográfica:
Apesar de me faltarem alguns anos para os 40, já vivi o suicídio de um grande amigo, um divórcio cuja crueldade roubou-me a pele e um par de cerimônias de entrega de prêmios
literários. As três circunstâncias carregam o explosivo po6 “Somos pessoas em trânsito”. Entrevista concedida a Schneider Carpeggiani em
10/1/2011. Disponível em http://jc3.uol.com.br/jornal/2011/1/10/not_407443.php. Acesso
em 22/8/2011.
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tencial de revelar a verdade. Todas precisam virar literatura,
portanto (2011h, p. 3).
O parágrafo inicial parece deslocado em relação à verve demolidora empregada contra os “autores oficiais, simpáticos e
bonzinhos”, mas a insinuação dessa excrescência só faz sentido
se desconsideramos a produção quase subterrânea que o autor
vem desaguando de forma sistemática em circuitos alternativos de divulgação e cujo teor faz vacilar não apenas seu estatuto: é tudo ainda ficção? O diálogo propositalmente estimulado
entre os textos de diferentes gêneros (entrevistas, crítica cultural, contos) por meio da reiteração de opiniões e temas provoca
um curto-circuito na fronteira entre o literário e o não literário.
Alguns desses textos já foram publicados. Sobre a rapidez
(2011b) e Fisiologia da memória (2011c) foram acolhidos pelo Diário de Pernambuco. Em ambos, a menção ao suicídio de André aparece integrando a trama: “Quando acordei, fui chamar
o André para tomar café e o flagrei cortando a mão esquerda
com um canivete... me ligaram dizendo que o André tinha se
enforcado” (Sobre a rapidez) ou “o meu amigo André iria se matar […] a polícia encontrou o corpo do meu amigo André, enforcado lá naquele lugar [...] o André nunca mais iria aos meus
lançamentos” (Fisiologia da memória).
A reiteração do episódio em diferentes gêneros textuais faz
vacilar o estatuto dos próprios gêneros. É claro que, em se tratando de ficção, podemos recorrer à boa e velha fórmula crítica que recomenda ignorar qualquer sinonímia entre autor
e narrador, evitando falácias, ou ainda podemos apelar para
a incidência “natural” de dados biográficos em toda e qualquer
ficção. Mas o jogo sugerido aqui parece ainda mais complicado,
pois se o autor, cujo nome aparece na capa, insiste em apre93
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sentar-se como personagem, seja pelas menções aos títulos dos
livros publicados, seja pelo uso de seu nome próprio ou de suas
iniciais, R.L., que protocolo de leitura deve ser seguido?
O curto-circuito ainda é estimulado pela dispersão de opiniões sobre os escritores, sobre a literatura, sobre a vida literária que aparecem disseminadas em diferentes suportes, na
matéria jornalística (“O resultado de tanto asseio é uma literatura organizada, limpa, de fácil digestão e nenhum incômodo.”
O Globo, 2011h), ou na plaquete cuidadosamente preparada (“acho
patético os ficcionistas que continuam claros no século XXI,
aqueles que fazem romances límpidos” (2010a, p. 6).
Fisiologia da solidão (2010a) assemelha-se a uma declaração
de como e por que o autor-personagem escreve. Aí, aparece
a preocupação com a importância social da literatura (“Escrevo [por] motivos políticos, por exemplo”, p. 5), associada a uma
justificativa de cunho pessoal (“crio histórias sobretudo porque sou muito solitário... escrever é a melhor forma de autoconhecimento que encontrei”, p. 5), à crítica à literatura fácil,
ao comentário sobre seu modus operandi (“a técnica, portanto,
é uma obsessão: é a mesma coisa repetida incontáveis vezes
com algumas variações mínimas”, p. 7). O que se assemelha
a um inventário de escrita que comenta motivos, procedimentos e afinidades eletivas, de repente parece trair sua própria intenção. A certa altura do texto, o investimento no labor técnico
é comparado ao sexo. Logo depois dessa declaração, a narrativa
descamba performaticamente para uma incrível história de relação sexual durante uma viagem de ônibus até Dublin, empreendida pelo narrador-autor-personagem (?) para conhecer
a cidade de Beckett e Joyce. O episódio é detalhadamente narrado de forma desdramatizada e parece desconectado do que
lia o leitor até a história começar: “A foda toda iria se dar ape94
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nas com o movimento do ônibus. Fiz uma força insuportável
para não ejacular e devo ter aguentado por um pouco menos
de uma hora... mantivemos a penetração por mais uma hora”
(2010a, p. 9). O procedimento parece sugerir um desvio brusco
de rota, mas que desliza insidiosa e distraidamente pelo texto,
atiçando a curiosidade do leitor, já capturado pela proximidade
estabelecida com a narração em primeira pessoa e pela marca de identidade entre narrador e autor (“Escrevi, na cidade
em que eu achava que a garota tinha descido, a última versão
da minha novela Dos nervos”, idem, p. 10). A intempestiva associação do sexo à técnica narrativa é devidamente performada
pelo texto, pois parece conjurar não apenas a crítica à superexposição da intimidade, mas também o forte apelo à evasão
de privacidade que domina o contemporâneo. O que parece
disrupção (afinal, o que aquela história tinha a ver com a dicção de declaração de intenções que o texto vinha assumindo?)
pode ser lido como mais uma chave de leitura no deciframento da assinatura de Lísias – “Vai ser possível fazer diferente e
com algumas variações. Talvez inclusive fique melhor” (idem,
p. 10) –, funcionando como uma dica de como devemos compreender a “guinada subjetiva” na ficção do autor: “Nunca escrevi
de maneira pessoal. As minhas questões pessoais eu sempre tinha deixado de lado nos textos, até aqui. Comecei agora com
esse projeto, não exatamente autobiográfico. Curiosamente as
pessoas gostam mais disso.”7 Assim, a dicção autobiográfica
é também um laboratório para a autofabulação.
A mudança não é apenas temática com pequenas variações
técnicas. Lísias arrisca-se também como agente de promoção
7 Entrevista concedida a José Chrispiniano com colaboração de Julián Fuks. Disponível
em op. cit.
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de sua obra. Se a tão esperada profissionalização do escritor no
Brasil não parece ter se efetivado a contento, Lísias arregaça as
mangas para fazer circular sua produção. O gesto do autor que
se empenha na divulgação de sua produção recente por meio
de uma espécie de lista de favoritos, ao enviar suas investidas
experimentais a alguns leitores eleitos, estimula a velocidade de
circulação do texto, acelerando-a em todas as suas etapas: produção, divulgação, publicação e crítica: “A literatura está encontrando novas formas de circulação e, como autor, quero ainda
compreendê-las” (Sobre a arte e o amor, 2011g, p. 9). O percurso
é interessante e apresentado em detalhes por Lísias: a fabricação de publicações artesanais pelo próprio autor; a divulgação,
segundo as normas do copyleft (“Permitida a reprodução, desde
que integral e com a fonte citada”), “entre leitores interessados”
na produção que circula material e/ou digitalmente (“eu soube
dias depois que um arquivo PDF de ‘Meus três Marcelos’ estava
circulando”, 2011g, p. 9); o contato de um editor, que leu o arquivo on-line, e mostra interesse na publicação em papel. Tudo
isso monitorado por Lísias, atuando como agente literário de si
mesmo, encarregando-se também da divulgação de todos esses
passos nas redes sociais.
Fisiologia da solidão tem uma tiragem de oitenta exemplares
carimbados pelo editor (o próprio Lísias) e uma reprodução
de um quadro de Ronaldo Polito na capa. O cuidado artesanal
do preparo para a apresentação do suporte textual é o mesmo
quando o texto chega à casa do destinatário escolhido por Lísias em folhas de papel ofício soltas. É o que acontece com Artes
plásticas (2011a). Novamente, o leitor escolhido se depara com
a primeira pessoa: “Estou cansado e acho que vou deitar logo.”
O texto está materialmente cindido em duas partes: as folhas
brancas parecem o desabafo do artista plástico decepcionado
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com o fracasso de um empreendimento artístico. Aqui também se trata de estimular a criação de uma mitologia pessoal,
já que o narrador da “primeira parte” se diz professor, tradutor, jogador amador de xadrez, como o próprio Lísias. A cisão
não é apenas material ou causada pela dúvida sobre a dicção
confessional. Ao descrever a obra de arte, o narrador garante a
excelência das partes, mas assume que o projeto “ficou tosco”.
Só aos poucos o leitor se dá conta de que pode estar enredado
na própria performance que o texto realiza. Afinal, o narrador
descreve as ações empreendidas para a realização do projeto
– “Enquanto eu ainda estava pensando nos documentos, encomendei o carimbo que daria título à pasta e abriria o projeto”
– e vai constatando que o que lhe chegou pelo correio imita
o objeto fracassado comentado pelo narrador: “Cada um dos
envelopes teria um selo comum, esse carimbo, que imitava exatamente o dos correios... e o endereço escrito à mão, para reproduzir a autenticidade que eu estava planejando.” O carimbo
é reproduzido na primeira parte do texto, mas a autenticidade
alegada é desfeita, não apenas porque a elaboração do artifício
é revelada, mas principalmente porque na pasta, na qual chegam os textos ao leitor escolhido, há um outro carimbo, com
a palavra sold.
A crítica ao cenário contemporâneo de produção artística
perde o tom enraivecido e corteja o humor. O fracasso do projeto é realçado com veemência, no entanto o narrador afirma
que a satisfação da elaboração do projeto da obra, mais do que
a efetivação da própria obra, é o que o faz sentir-se um verdadeiro artista. A caricatura sutil é esboçada não apenas no
estereótipo do artista sofredor (“uma dor intensa, prolongada
e muito profunda me derrubou”), mas também por meio da
crítica à fome de real do público que é cortejado pela busca
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da autenticidade ratificada pelo próprio texto, já que, depois de
acompanhar o relato da preocupação do narrador com a encomenda de selos a um filatelista, o leitor depara-se com um
selo colado à página que é apenas uma pequena mostra do funcionamento de toda a máquina textual, pois o texto apresenta
a própria obra (incompleta, “tosca”, fracassada) em pedaços
(um selo, um carimbo), e sua concepção está, na verdade, sendo descrita para o leitor no texto que este tem em mãos.
Depois do relato hilário da primeira tentativa frustrada do
artista de conceber sua grande obra-prima, o texto parece assumir estratégia semelhante à analisada em Fisiologia da solidão.
A narração apela, então, à confusão entre a identidade do autor
e do narrador, estampando em nota de pé de página o e-mail
do próprio Lísias para um possível contato de Andrey Arnoldian (uma brincadeira com o nome de Levon Aronian?) com
quem o narrador-autor-personagem teria participado do mundial de xadrez em 1988.
A confusão não é facilmente solucionada. Não se trata de
assumir a postura do “idiota da objetividade”, como diria Nelson Rodrigues, e procurar evidências biográficas do interesse
de Lísias pelo xadrez. Qualquer consulta rápida à internet poderia atestá-lo, mas acreditar que isso solucionaria o impasse
é ingenuidade. O problema reside justamente em um indecidível que solicita do leitor atitudes incompatíveis: a suspensão
da descrença e, ao mesmo tempo, a idiotia da objetividade.
A representação do eu que se elabora aqui vai além da mera
exposição da intimidade e diz respeito a um autorretrato como
autor que lança mão de dados autobiográficos, empregando,
inclusive, o nome próprio, para transformá-los em uma engenhosa arquitetura textual.
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Por meio de leve variação, de pequenas mudanças, como
um ritornello reaparece a menção ao suicídio de seu amigo André de forma muito semelhante à evocada em outros textos.
Essa estratégia dispersiva, que dissemina a obra como parte
de uma pequena coleção de textos, fica mais evidente se pudermos conectar a segunda parte de Artes plásticas, escrita nas folhas amarelas e intitulada “O projeto”, não com a primeira parte
desse mesmo texto, com a qual só colateralmente mantém relação, uma vez que se trata de um projeto fracassado, assinado
por João Tobias, de realizar uma série de documentários sobre
a ascensão da esquerda bolivariana, apresentando entrevistas
com presidentes latino-americanos.8 Essa segunda parte aparece realçada obliquamente por um outro texto também enviado a alguns dos “admiradores de literatura” por correio, com
o título de Bienal (2009-2010). Digitado em papel quadriculado
e intitulado “Projeto de Caixa”, o texto é, na verdade, um conjunto de anotações, uma espécie de plano de realização de um
projeto artístico rascunhado (“A pasta será um diálogo entre
cartas, imagens – sobretudo fotos e mapas – e alguns outros documentos”, 2010b, p. 1), da autoria de Fernando Tobias que, na dedicatória do projeto, identificamos como irmão de João Tobias,
“assassinado de um jeito brutal no último mês de outubro de
2010 no Equador”. A intrincada teia de relações entre os textos
alimenta informações dispersas que desnorteiam o leitor, pois,
apesar de cada um deles permitir a leitura autônoma, algo pare-
8 O que lemos, na verdade, é a caricatura de um resumo acadêmico, a reprodução dos
e-mails com as respostas desaforadas de Tobias às negativas de orientação do projeto pelo
professor consultado, a fotocópia da nota de compra de uma filmadora, a reprodução do
tíquete eletrônico de uma passagem aérea para Quito, uma troca de mensagens com um
funcionário do consulado equatoriano, uma carta endereçada a Rafael Correa, presidente
do Equador, e a reprodução de duas notícias de jornal, uma das quais informa sobre o
traslado do corpo de Tobias, encontrado baleado na periferia de Quito.
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ce sugerir a conexão, deixada sempre incompleta, entre o conjunto de textos dispersos: a remissão a João Tobias, personagem
da segunda parte de Artes plásticas, a reflexão sobre a condição
e função da arte na atualidade, tematizada em Bienal (2009-2010)
por meio da evidente sátira à hipocrisia de propósitos artísticos
engajados solidariamente na suposta denúncia da pobreza e indigência social. Pois o projeto de Fernando Tobias quer tematizar a história de Juliard Aires Fernandes e Hermínio Cardoso
dos Santos, dois jovens mortos durante a tentativa de imigração
ilegal para os Estados Unidos. O grande contraponto à suposta
preocupação com a denúncia social é a caracterização estereotipada dos pobres pelo próprio “artista” Fernando Tobias. Em
uma folha avulsa com o timbre do hotel Le Meurice de Paris,
lemos uma carta de Fernando Tobias endereçada à síndica de
seu condomínio, relatando constrangimentos infringidos pelo
zelador do prédio, depois da proposta feita pelo artista de que
a mulher do zelador redigisse, mediante pagamento, um conjunto de cartas, a fim de garantir a verossimilhança de seu projeto artístico, já que, sendo também pobre e não tendo estudado
o suficiente, a carta redigida pela mulher do zelador garantiria o
número de erros de português e a caligrafia “original” de uma
“pessoa de pouco estudo”. A recusa indignada do zelador e a
insistência da solicitação – “O zelador ficou puto e disse que
a esposa não é nenhuma analfabeta. Comprar panetone para ele”
(2010b, p. 2) – revelam a artificialidade dos bons propósitos artísticos: “O que um simplório desse entende de arte?” (2010b, p. 4).
A disrupção entre as estratégias para a realização do projeto
e sua intenção é largamente explorada: “eu detesto preconceito e
inclusive acho que o que o zelador está fazendo é por preconceito, esses nordestinos ignorantes não percebem que estamos
no século XXI” (idem, p. 7).
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Apesar da cor realista que Tobias pretende imprimir ao
projeto, planejando realizar pesquisas sobre as famílias dos rapazes e insistindo na verossimilhança da redação das cartas,
contratando um linguista depois de muitas negativas veementes do zelador em aceitar sua proposta, o leitor parece seguro em relação ao que esperar do texto: trata-se de ficção, sem
dúvida. Por isso, pode sorrir ironicamente da apresentação de
Tobias quando afirma que seu projeto é um “trabalho que conta com diversos documentos e objetos de natureza diferente”.
A artificialidade e os artifícios do texto, além da proposta tosca
da caixa-pasta como objeto artístico não dão tempo ao leitor de
pensar em Juliard ou Hermínio. Mas construindo a obra como
hiperlink, dispersando-a em fragmentos, Lísias retoma os nomes dos personagens cujas fotos em formato três por quatro,
com as respectivas datas de nascimento e morte carimbadas
no verso, chegam pelo correio ao leitor desavisado, em um pequeno envelope azul, anexadas a outro texto, com o qual, aparentemente, as fotos não mantêm relação, pois não há qualquer
menção a elas.
Qual a função das fotos? Quem são essas pessoas?, pergunta-se o leitor, que é obrigado a retomar a leitura de Bienal (20092010), em que os nomes aparecem pela primeira vez. Se a ficção
não parece dar explicação suficiente quando questionada pela
evidência referencial da fotografia, uma breve pesquisa feita
por um leitor com pendores sherlockianos no Google revela
que os personagens foram vítimas na vida real de uma associação criminosa mexicana, os Zetas, que assassinou os dois
brasileiros, que tentavam atravessar a fronteira do México com
os Estados Unidos, em agosto de 2010. O mote para a sátira
à condição da arte no contemporâneo, portanto, é baseado em
fatos reais, na trágica chacina cujos detalhes, apropriados pela
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ficção, foram amplamente divulgados por reportagens. O envio
das fotos junto a outro texto, que, por sua vez, não as menciona, parece uma pista mal plantada para o leitor. Há um delay e
um deslocamento, ou melhor, um deslocamento causado pelo
delay, já que só agora é possível reler o próprio projeto de Lísias
como um “trabalho que conta com diversos documentos e objetos de natureza diferente”, pois as fotos ou o trágico episódio
não aparecem utilizados pela ficção de forma meramente documental e, então, como uma espécie de mise en abyme, podemos entender o projeto literário de Ricardo Lísias.
Os últimos três textos produzidos por Lísias podem ser considerados uma espécie de trilogia. “Meus três Marcelos”, “Divórcio” e “Sobre a arte e o amor” bagunçam definitivamente as
fronteiras entre a realidade e a ficção ao assumirem escancaradamente a ambiguidade autoficcional:
a proposta da prática autoficcional [...] se fundamenta de
maneira mais ou menos consciente na confusão entre pessoa e personagem ou em fazer da própria pessoa um personagem, insinuando, de maneira confusa e contraditória,
que esse personagem é e não é o autor. Essa ambiguidade,
calculada ou espontânea, constitui uma das mais marcantes
características da autoficção, pois, apesar de autor e personagem serem e, ao mesmo tempo, não serem a mesma pessoa,
seu estatuto postula uma exegese autobiográfica, toda vez
que o real se apresenta como um simulacro romanesco sem
camuflagens ou com evidentes elementos fictícios (ALBERCA, 2007, p. 32).
No primeiro número de Silva (junho de 2011e), um jornal
semestral idealizado pelo próprio Lísias, é possível ler, em uma
espécie de nota editorial, que o lançamento da publicação “comemora os meus três meses de casamento com Ana Paula Sou102
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sa”. Assim como a menção ao suicídio de André vai aparecer
em diferentes gêneros textuais, a menção ao casamento, ou melhor, a seu fim, aparecerá logo depois como elemento central
da trama dos três textos acima mencionados. Após o anúncio
do divórcio, feito pelo próprio Lísias nas redes sociais de que
participa na internet, “Meus três Marcelos” passa a circular.
O texto trata da dor do personagem, identificado como Ricardo, depois da leitura do diário escrito por sua mulher. A plaquete, distribuída aos alunos do curso “Os contos clássicos do
século XX”, ministrado por Lísias, incorpora à própria narrativa o episódio factual: “Comecei a dar um curso de contos 34
dias depois de quase ter-me matado” (2011f).
As entradas pouco lisonjeiras do diário (que aparecem em
itálico no texto) mencionam opiniões sobre o curto período
matrimonial e a figura do marido (“imagina eu tendo um filho
com o autista com quem casei”, 2011f). Os três Marcelos do título, identificados ao final, paratextualmente (“são o Moreschi,
o Ferroni e o Mirisola”, 2011f), são amigos que restabelecem ao
narrador a pele roubada pelo sofrimento.
Embora a leitura torne evidente a possibilidade de associação indubitável entre o Ricardo do texto e o próprio autor,
não apenas pelas próprias declarações de Lísias nas redes eletrônicas sobre o divórcio, mas por outros inúmeros elementos
biográficos espalhados pelo texto, a nota final carimba o conto e orienta o procedimento de leitura: “O texto, incluindo os
trechos em itálico, é ficcional.” Aqui, o autobiográfico aparece
como jogo, “a própria peripécia, ancorada no lugar da ficção ou
convivendo com ela” (Arfuch, 2010, 78), lançando dúvidas sobre
os critérios de avaliação estética.
Em “Divórcio”, a mesma situação dramática aparece reescrita. No lugar dos três Marcelos, a evocação da amizade do
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amigo André torna possível a superação da dor e da solidão
enfrentadas pelo personagem principal: “Minha ex-mulher
roubou-me a pele depois de um mês de casamento, cheia de
indiferença pelo resto do meu corpo e orgulhosa por falar um
pouco de francês” (2011d, p. 66). Sem a homonímia ou a menção
a qualquer diário, o texto publicado na revista piauí, em novembro de 2011, é muito mais sutil em relação à dicção escancaradamente autobiográfica. Aqui, o texto parece muito mais
“ficção”, menos dependente do rendimento autoficcionalizante,
menos ambíguo, ou melhor, a ambiguidade não parece ser engrenagem fundamental à máquina ficcional como em “Meus
três Marcelos”.
Mas a grande volta do parafuso é dada com a circulação de
“Sobre a arte e o amor”. Trata-se de uma carta, assinada por
Ricardo Lísias, como resposta à notificação extrajudicial enviada pelo advogado de Ana Paula Sousa, ex-mulher do autor.
A carta, que se diz escrita em “registro afastado do tom jurídico” (2011g, p. 1) e traz uma epígrafe de Lacan (“Só é verdadeiro
o que tem um sentido”), responde, ponto a ponto, à notificação
extrajudicial que vem anexada ao texto, juntamente com uma
procuração de Ana Paula Sousa, dando poderes ao advogado
para interpelar Lísias. O ponto principal da queixa diz respeito
à invasão de privacidade da ex-mulher pela divulgação de parte de seu diário em “Meus três Marcelos” e à alegação de que
a nota final apensa ao texto, alegando a ficcionalidade da publicação, é mentirosa, pois, na verdade, reproduz trechos do diário: “O senhor diz que a nota de que o texto Meus três Marcelos
é ficcional não convence. Ou seja, o senhor afirma que Meus três
Marcelos não é ficção... Pois eu discordo: é ficção! ”(idem, p. 3).
Rebatendo ainda a possibilidade de ter invadido a intimidade de sua ex-mulher nas declarações divulgadas na internet, Lí104
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sias é veemente na defesa da liberdade de criação ficcional: “um
escritor elabora suas questões internas a partir de seus textos.
Minha ex-mulher sem dúvida brincou com a minha vida, eu
escrevi (e vou escrever) para entender o que aconteceu. Se ela
vê minha ficção como afronta à sua imagem, então que fosse
brincar com a vida de alguém que não escreve” (idem, p. 4).
“Não posso controlar o que falam de um texto de ficção”
(idem, ibidem). Essa é a resposta à alegação do advogado de que
a ex-mulher é identificada como autora do diário por amigos
e colegas de trabalho, e que, portanto, a recepção estaria ignorando a ficcionalidade do texto. A réplica alega irônica e paradoxalmente (já que o libelo pretende ser a prova definitiva de
que tudo é ficção) que um autor não pode controlar o modo de
recepção de seus leitores e, de forma sagaz, vira o jogo e exige o
ônus da prova em contrário:
Portanto, parece-me razoável o senhor provar que meu texto
não é de ficção. Se o senhor afirma que fiz apenas algumas
‘pretensas modificações’ no que seria hipoteticamente o tal
diário da minha ex-mulher, o ideal teria sido apresentar o
cotejo (idem, p. 3).
O leitor desse texto deve estar se perguntando: toda essa
roupa suja lavada em nome da ficção merece ainda atenção crítica? É bem verdade que aos mais céticos tudo pode apenas
se resumir a um engodo, simples má-fé ou fraude literária em
nome de um desabafo ressentido. Mas casos semelhantes estão
espalhados por aí.
Desde 2007, o livro Esra, de Maxim Biller, publicado na Alemanha, está banido do mercado editorial por decisão judicial.
Vendido como ficção e narrando a história do fim de um relacionamento amoroso, o livro foi acusado pela própria ex-na105
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morada do autor de ser um relato verídico da relação amorosa
entre os dois, expondo com riqueza de detalhes as mais escabrosas minúcias de um relacionamento em decadência. Depois
de anos na justiça, a suprema corte alemã decidiu acatar a denúncia. Rejeitando como motivo a simples alegação de que a
denunciante era descrita de forma muito negativa, concordou
com a extrema semelhança entre a personagem e a pessoa real e
decidiu por condenar o livro por violação do direito à privacidade, “parte integrante do núcleo da dignidade humana”, concluía
a sentença. O argumento dos juízes que deram votos contrários à
sentença final é semelhante ao alegado na resposta extrajudicial
de Ricardo Lísias: qualquer “restrição à liberdade da arte é inaceitável [...] mesmo que pessoas reais tenham sido identificadas
aos personagens, o romance, antes de tudo, deve ser considerado uma obra de ficção”.9 O próprio Doubrovsky, ficcionista e crítico francês, reconhecido por ter inventado o termo autoficção,
foi acusado de ter provocado a morte de sua mulher, Ilse, por ter
exposto em Livre Brisé, sua dependência alcoólica.
A exposição espetacularizada de um episódio privado pode
ser entendida como mera estratégia para a vingança do ressentido, tomando a ficção como escudo. No entanto, talvez haja
algum rendimento se apostamos que, na profusão exibicionista da primeira pessoa, há um jogo. Pois como entender que a
segunda parte do texto de Lísias, intitulada “Resposta ao caos:
sobre o amor”, seja sonegada ao leitor com a indicação de que
é de “interesse apenas da ‘notificante’”? Como é possível trair
a cumplicidade curiosa do leitor, estrategicamente conquistada pela exposição da intimidade, reservando-se o silêncio?
9 Reportagem de Dagmar Giersberg, A Novel Is Banned: Esra by Maxim Biller. Disponível
em: http://www.goethe.de/kue/lit/aug/en2815556.htm Acesso em 22/8/2011.
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A brincadeira quase perversa parece estar em estreita conexão
com as demais esferas dos campos literário e cultural contemporâneos que muitas vezes servem de palco a um verdadeiro
“show do eu”.10 Também o uso da citação de Wittgenstein como
argumento (“o mundo resolve-se em fatos”, p. 3), respaldando
a fome de real dos leitores, parece impróprio num texto que
defende a ficção: “escrevi um texto de ficção sem a menor revelação da verdade” (idem, p. 5).
O texto não parece acomodar-se facilmente a nenhum protocolo de leitura. A aposta de que tudo não passa de mera
carta-resposta a uma demanda judicial convive com a dúvida
renitente de que a ficção é capaz de fagocitar outros gêneros,
simular sua estrutura, fingere (“dar forma” é uma das acepções
da palavra) o próprio fato. Por outro lado, o acesso do leitor
à compreensão do que está lendo não pode depender apenas da
ficcionalização operada pela escrita, porque essa mesma operação inscreve-se a partir do flerte com a referencialidade propagada. Afinal, qual é a função da reprodução dos documentos
ao final do texto? Esta pode ser uma estratégia da autoficção:
“o conceito funciona no entrelugar, reenviando-se incessantemente para um lugar impossível e incompreensível para além
da operação do texto” (GASPARINI, 2009, p. 39). Assim, a condição
literária, ficcional, do texto está, ela própria, condicionada ao
jogo com a factualidade.
Por isso, a afirmação de que “a obra de arte sempre recoloca
em outros termos a realidade” (LÍSIAS, op. cit., p. 7) e a reprodução
da foto de Marcelo Mirisola, usadas como contra-argumento
à retórica advocatícia que apontou a referência a Mirisola como
10 A expressão dá título ao livro de Paula Sibilia, O show do eu: a intimidade como
espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
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prova de que “Meus três Marcelos” não podia ser lido como ficção, soam como blague, pois, se o uso da verossimilhança parece expropriado, é bem verdade que é o esteio para o artifício.
Após essas considerações, poderíamos perguntar: qual seria
a grande marca distintiva de Lísias como autor? Ora, se pudermos apostar na “guinada subjetiva” como um gesto performático de inscrição de um nome de autor, de inscrição de uma
assinatura literária, então, temos várias evidências da estratégia dispersiva aqui comentada: os mesmos motes temáticos –
o apelo a uma intimidade mezzo fake, o retorno do narrador
solitário e dolorido com a morte de seu melhor amigo, com
a separação conjugal –, recuperados em publicações distintas,
entregues quase sem intervalo, parecendo todas reescrever, reelaborar o mesmo texto.
REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Trad. Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010.
GASPARINI, Philippe. Autofiction. Une aventure du langage. Paris: Éditions du
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LÍSIAS, Ricardo. Fisiologia da solidão. Rio de Janeiro: Espectro Editorial, maio/
2010a. 10p. (plaquete carimbada pelo autor, nº- 36, de 80 exemplares). Publicado também na revista Granta em português/número 6. Longe daqui. Ficção. Rio de Janeiro. Alfaguara, 2010.
_____. Bienal (2009-2010). Texto digitado e inédito, 2010b.
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em 14/12/2011.
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_____. Sobre a arte e o amor. Arquivo PDF. 2011g.
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PERRONE-MOISÉS, Leyla. “Posfácio”. In. Lísias, Ricardo. Ana O. e outras histórias. São Paulo: Editora Globo, 2007.
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AdRIANA lUNARdI: ASSINATUR A, fIlIAÇÃO
E INScRIÇÃO NA cENA lITERÁRIA
Ana Cláudia Viegas
Em 11 de dezembro de 1977, no Cemitério Israelita do Caju, não muito longe do porto onde
Macabéa passava suas raras horas vagas, Clarice
Lispector foi sepultada de acordo com o ritual
ortodoxo. Quatro mulheres da sociedade funerária, a Chevra Kadisha, limparam seu corpo por
dentro e por fora, envolveram-no num lençol de
linho branco, pousaram sua cabeça num travesseiro cheio de terra, e a cravaram dentro de um
caixão simples de madeira. Foram lidos o Salmo
91, a oração fúnebre “El malei rahamim” e o Kadish dos enterros. Não houve discursos por parte
dos presentes. Três pazadas de terra foram lançadas sobre o caixão enquanto soavam as palavras
do Gênesis: “Da terra vieste e à terra voltarás”.
Na lápide, gravado em hebraico, o nome oculto: Chaya bat Pinkhas. Chaya, filha de Pinkhas
(MOSER, 2009, p. 557).
É esse cenário – descrito no epílogo da biografia de Clarice Lispector escrita por Benjamin Moser – que a narradorapersonagem do conto “Clarice”, do livro Vésperas, de Adriana
Lunardi, vindo morar no Rio de Janeiro com o pai desconhecido após a morte de sua mãe, escolhe para visitar logo após sua
chegada. Diante do túmulo de Clarice Lispector, essa leitora
apaixonada afirma: “essa é a minha história. Tinha ido até ali
para vivê-la, para fazer-me do que gosto, ceder à mínima mani110
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festação do meu ser difícil, áspero, desesperado. Sobretudo, tinha ido ali para me filiar” (LUNARDI, 2002, p. 77). Parto da atitude
dessa jovem de 17 anos – a filiação – para transpô-la à autora
Adriana Lunardi na composição desta obra.
Após a estreia como escritora com o premiado livro de contos As meninas da torre Helsinque (1996) e a participação em algumas antologias, Adriana ganha, em 2000, uma bolsa da
Biblioteca Nacional, cujo resultado é a publicação de Vésperas
(2002), em que explora a criação literária como tema e inspiração, a partir da morte de nove escritoras da literatura mundial:
Virginia Woolf, Dorothy Parker, Ana Cristina Cesar, Colette,
Clarice Lispector, Katherine Mansfield, Sylvia Plath, Zelda Fitzgerald e Júlia da Costa. Cada um dos nove contos que compõem a obra desenvolve-se em torno da presença espectral
dessas escritoras, eleitas por Adriana, por meio desse “ato
autobiográfico”1 de filiação, como suas precursoras.
Diante de um tema comum a todos os contos, a morte,
Adriana se utiliza de diferentes estratégias narrativas para criar
cada um dos textos. O ponto de vista da narração varia entre
a primeira e a terceira pessoa e, em cada um desses focos, assume diferentes nuanças. Em “Ginny”, apelido de infância de
Virginia Woolf, um narrador-observador acompanha os derradeiros momentos da escritora: a elaboração das últimas cartas,
o caminho até o rio, a pedra no bolso, o mergulho para o fim. Os
momentos finais de “Kass” ou Katherine Mansfield, “Flapper”
ou Zelda Fitzgerald e “Dottie” ou Dorothy Parker são igualmente narrados em terceira pessoa, sendo que, nesta última história,
o narrador segue o ponto de vista de Troy, poodle de estimação
1 O “ato autobiográfico” é um termo de Elizabeth Bruss, em textos como BRUSS, Elizabeth W. “L’ Autobiographie considérée comme acte littéraire”. Poétique, Paris, nº- 17,
pp. 14-26, 1974.
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da escritora. Ao final de “Minet-Chéri”, apelido materno de Colette, a narradora em primeira pessoa se nomeia: “Meu nome é
Claudine, nasci em 1884, em Montigny, e nunca hei de morrer”
(LUNARDI, op. cit, p. 64). Dessa vez, portanto, a voz narrativa provém da obra de Colette, Claudine à l’école, fundindo e ressignificando criadora e criatura.
Um outro elemento do sistema literário, o leitor ou mais especificamente a leitora, é a narradora do já citado conto “Clarice”. Também em “Victoria”, pseudônimo de Sylvia Plath, é do
ponto de vista da recepção da obra da poeta que se narra, sendo
que este narrador não é exatamente um leitor, mas um sexagenário cuja mulher tem o mesmo nome de Sylvia e que, embora
nunca tivesse lido nenhum livro de Sylvia Plath, conhecia alguns versos seus, ouvidos em um programa da rádio BBC.
Em “Ana C.”, a narração em primeira pessoa fica a cargo de
um homem à beira da morte, em cujos delírios encontra a poeta Ana Cristina Cesar, que o conduz na passagem para além da
vida. Várias referências textuais – Audrey Hepburn, a contracultura, o muro caiado, a rainha de copas do tarô, o “mapa para
sempre incompleto” das viagens pelo mundo, o vírus e a peste
– nos permitem nomear esse narrador como o escritor Caio
Fernando Abreu, morto em consequência da Aids em 1996.
Em mais um jogo entre biografia e ficção, dessa vez sem oferecer chaves de leitura como as que aparecem no item “Sobre
as personagens” ao final do livro, o amigo Caio F. é chamado
a compartilhar o texto dedicado a Ana C., em intertextualidade
com as “Cartas para além dos muros”, publicadas n’ O Estado de
S. Paulo, em 1995, após “O Teste” e “o resultado: HIV positivo”.
Se na última dessas cartas Caio vê a cara da morte e “ela estava
viva” – “Ela se debruçou sobre mim, tão próxima que consegui ver meu rosto inteiro refletido em suas pupilas dilatadas.
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Era bonita?” (ABREU, 2006, p. 199) –, como narrador no texto de
Adriana, Caio vai reconhecendo o rosto “cheio de dúvidas e
inseguranças, mas cada vez mais certo de estar diante do olhar
eternamente encoberto de Ana C.” (LUNARDI, 2002, p. 49). Desse
encontro ainda participam outros autores e personagens: Alice, Ulisses, Allen Ginsberg, Rimbaud, Sísifo, Machado. Deste,
o monóculo e o “primeiro verme que há de me roer”. A lembrança do “defunto autor” Brás Cubas, “para quem a campa foi
outro berço” (ASSIS, 2001, p. 17), puxa mais um fio dessa intrincada rede de palavras: no livro de Adriana, as escritoras defuntas
se tornam personagens e, no caso específico do conto “Ana C.”,
narra-se a passagem de um narrador-autor-personagem ao outro lado da vida.
Ao misturar narradores, escritores e personagens, Adriana
borra os limites entre ficção e biografia, arte e vida, e compõe
a si mesma como personagem. Que imagem de si a autora
Adriana vai traçando ao criar seus textos a partir dessas outras
vozes? Que concepções de literatura podem ser entrevistas na
composição de Vésperas? Assumindo-se como escritora-leitora
(papel anunciado e ao mesmo tempo reiterado pela bela foto
da capa), Adriana Lunardi assume a criação a partir de diversos
outros textos. Em vez de fruto de uma originalidade absoluta,
a criação literária se apresenta, nessa obra, como resultado de
diversas leituras e reescrituras, embaralhando-se na trama final
dados biográficos das autoras, personagens, frases, referências
das mais diversas ordens. Aproxima-se, portanto, da concepção
bakhtiniana de autor que guia as reflexões de Leonor Arfuch
a respeito do “espaço biográfico”2 contemporâneo: no intervalo
2 Termo formulado por Leonor Arfuch para caracterizar a articulação entre os diversos
gêneros discursivos contemporâneos ligados aos relatos de experiências pessoais e à
exposição pública da intimidade.
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“entre herança e criação – nem um Adão que trabalharia sob
inspiração divina, nem um mero reprodutor do já dito –, entre
a imposição dos gêneros instituídos e a marca de sua subjetividade” (ARFUCH, 2010, pp. 210-211). A exposição de algumas informações “Sobre as personagens”, ao final do livro, dá dicas ao
leitor a respeito de elementos aproveitados e reelaborados
ao longo dos contos. O próprio título dessa seção joga com
o estatuto de autoras/personagens dessas mulheres, já que muitas edições apresentam o item “Sobre o(s) autor(es)”, com alguns dados a respeito da formação deste(s) e de suas publicações.
Na verdade, antes de serem transformadas em personagens
dos contos de Lunardi, essas escritoras já haviam se constituído
como personagens da vida literária. Mesmo durante o predomínio de uma perspectiva imanente nos estudos literários, que
procurava apagar a presença do autor e fazer prevalecer a concepção do texto como pura linguagem, os leitores sempre desejaram ter acesso à pessoa real por trás da página escrita, lendo
muitas vezes as ficções como “fantasmas reveladores de um indivíduo” (LEJEUNE, 2008, p. 43). Roland Barthes, ao mesmo tempo
que assinala a “morte do autor”, reconhece sua permanência
“nos manuais de história literária, nas biografias de escritores,
nas entrevistas dos periódicos, e na própria consciência dos literatos, ciosos por juntar, graças ao seu diário íntimo, a pessoa
e a obra” (BARTHES, 1988, p. 66). Se antigamente era o leitor que
“tomava a iniciativa e assumia a responsabilidade desse tipo de
leitura”, esse “pacto fantasmático” (LEJEUNE, op. cit., pp. 43-44) vem
se difundindo cada vez mais pelos próprios autores e editores,
como já reconhecera Philippe Lejeune no início dos anos 1970,
afirmando, ainda, que os jogos entre ficção e autobiografia podem ser encontrados, em diversos graus, em muitos escritores
modernos. Nas últimas décadas, observa-se uma tendência,
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tanto acadêmica quanto do mercado de bens culturais, de revalorização da primeira pessoa como ponto de vista. Impõe-se,
nas palavras de Beatriz Sarlo, uma “guinada subjetiva”, em que
“a identidade dos sujeitos voltou a tomar o lugar ocupado, nos
anos 1960, pelas estruturas” (SARLO, 2007, pp. 18-19).
A essa “guinada subjetiva” no campo dos estudos literários se liga intrinsecamente a leitura crítica da correspondência entre escritores, de seus diários, entrevistas, manuscritos,
anotações pessoais. A nova crítica biográfica, sem retornar ao
biografismo oitocentista, “ao escolher tanto a produção ficcional quanto a documental do autor – correspondência, depoimentos, ensaios, crítica – desloca o lugar exclusivo da literatura
como corpus de análise e expande o feixe de relações culturais”
(SOUZA, 2002, p. 111). O autor retorna ao campo dos estudos literários não como origem e explicação última da obra, mas como
“ator no cenário discursivo”: “A figura do escritor substitui a do
autor, a partir do momento em que ele assume uma identidade
mitológica, fantasmática e midiática” (idem, p. 116). Retoma-se,
dessa forma, um elemento fundamental da literatura como
prática social, o escritor como personagem.
A criação de autoimagens aproxima vida e arte, ficção e realidade, desdobrando o autor em diversos personagens. No contexto da cultura midiática, a imagem do autor não se constrói
apenas de tinta e papel, de modo que, ao lermos um texto, não
temos somente o nome do autor como referência, mas sua voz,
seu corpo, sua imagem veiculada nos jornais, na televisão, na
internet. A obsessão contemporânea pela presença nos afasta
da concepção barthesiana do autor como um “ser de papel”
(BARTHES, op. cit, p. 76). As informações apresentadas “sobre as
personagens”, ao final de Vésperas, poderiam ser encontradas
num dos sites de busca disponíveis para a curiosidade dos
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leitores a respeito dessas e de outras escritoras. Em relação a
Adriana Lunardi, somadas às breves indicações sobre a autora
expostas, como de praxe, na orelha do livro, o leitor que quiser buscar mais dados sobre ela os encontrará em seu site, em
sua comunidade no orkut, em resenhas, entrevistas. No “espaço
biográfico” contemporâneo, mais do que o conteúdo dos relatos, importam as estratégias de autorrepresentação. Ao propor
uma leitura autobiográfica de Vésperas, entendo que esta obra
pode ser considerada um gesto da própria Adriana na formação
de sua figura autoral. As cenas de leitura – tão recorrentes em
relatos autobiográficos e até ficcionais de escritores de diferentes épocas que se tornam, segundo Arfuch, “fábulas de identidade” (ARFUCH, op. cit., p. 225) – são aqui dramatizadas e servem
de mote para a criação dos contos. Essas leituras, no entanto, se
misturam a biografemas das nove escritoras escolhidas, isto é,
a “alguns pormenores, alguns gostos, algumas inflexões”, como
Barthes (1979, p. 15) define tais unidades mínimas da biografia.
No caso das representantes da literatura brasileira – Clarice Lispector, Ana Cristina Cesar e Júlia da Costa –, temos três
imagens autorais bastante peculiares, sugestivas ao fascínio
biográfico motivado pela vida literária. Em comum, a atuação pública, incluindo a colaboração na imprensa de suas respectivas épocas, traço digno de nota, sobretudo, em relação
à poeta paranaense, morta em 1911, vivendo num período em
que o papel social atribuído à mulher era bastante restrito.
Clarice Lispector, embora pertença ao cânone modernista,
sempre suscitou polêmicas quanto ao valor desigual de seus
textos. Seu primeiro romance, Perto do coração selvagem, ao
mesmo tempo que foi recebido com entusiasmo por alguns críticos, como Antonio Candido – que louvou suas ousadias experimentais, saudando o livro pela sua novidade –, foi duramente
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criticado por outros, como Álvaro Lins, que o considerou uma
“experiência incompleta”, criticando o “romance bem feminino” pelo seu confessionalismo excessivo e narcísico (ROCHA,
2003, pp. 47-60). Essa oscilação da crítica perante os textos de Clarice acompanha toda sua produção, sendo seus últimos escritos novamente alvo de reprovação, relativa à excessiva pessoalidade, que colocaria em questão, inclusive, seu valor literário.
No texto “Explicação”, espécie de prefácio ao livro de contos
Via crucis do corpo, recebido pela crítica como “obra menor”
se comparado às demais publicações de Clarice, a própria autora responde a esse tipo de avaliação de sua obra: “Uma pessoa leu meus contos e disse que aquilo não era literatura, era
lixo. Concordo. Mas há hora para tudo. Há também a hora
do lixo” (LISPECTOR, 1974, p. 11).
A escrita de Ana Cristina Cesar em forma de cartas, diários e “cadernos terapêuticos” também levou a associarem-na
a uma literatura intimista, confessional e a procurarem em seu
texto pistas reveladoras de sua individualidade. O aspecto aparente de “confissão”, de uma “escrita do eu”, parece corroborar
para a construção de Ana C., cuja “morte repentina” em muito
contribuiu para sua aura. Compondo versos que nem ocultam
“sintomas, segredos biográficos” nem são “literatura pura”, sua
obra se constitui nessa tensão, nessa “contramão”. Assim como
Clarice, Ana C. ocupa um lugar entre os mitos femininos de
nossa literatura: figuras belas, enigmáticas, contraditórias, referências da produção literária nacional da segunda metade do
século XX.
Elegendo suas filiações, Adriana Lunardi elege um modo
de se inscrever na cena literária, acompanhada de escritoras
brasileiras e de língua inglesa ou francesa, marcantes não só
pela produção literária, mas também pela inserção no cenário
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cultural de seu tempo, sendo a morte de cada uma delas um
fator importante para sua dimensão mítica. As cenas de leitura, desdobradas em escrita, definem, assim, um lugar para
a jovem escritora, a trama genealógica em que quer se situar, sua
valoração da literatura, alimentando a (auto)produção da imagem da autora “como suporte do gesto da assinatura” (ARFUCH,
op. cit., p. 236).
A morte e a literatura continuam no centro da cena de seu
romance mais recente, A vendedora de fósforos (2011). Macondo,
Édipo, Tirésias, Riobaldo, Diadorim, Brás Cubas, Zelda Fitzgerald, Clarissa, Proust, Borges – autores e personagens habitam
as páginas deste livro, cujo título evoca o conto de Andersen,
recriado ao final da narrativa. Também da morte e da (re)criação de mundos e histórias trata o clássico conto infantil. Se
o calor do fogo aceso pelo riscar dos fósforos aquece o corpo
da pobre menininha, sua luz lhe acende a imaginação e a transporta para outras paisagens. Duvidando do poder do realismo,
“último lugar onde as coisas estão” (LUNARDI, 2011, p. 54), a narradora criada por Lunardi afirma a superioridade da literatura
diante da realidade: “A literatura sempre há de perder para a
realidade, não tenham dúvida; porém, quem escolhe a realidade acaba, cedo ou tarde, se sentindo um tolo” (idem, p. 124).
Tolice também atribuída àqueles que quiserem ver, por trás
das falsas pistas dispersas ao longo do texto, traços biográficos
da autora: “O que digo aqui é com voz de ventríloquo. O único
perigo é alguém olhar de fora e me enxergar no centro. Seria
um engano” (idem, p. 109). A garantia de sinceridade do discurso
em primeira pessoa é colocada sob suspeita desde a epígrafe do
romance: “Escreverei as lembranças de minha irmã para falar
de mim com mais verdade.”
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Dialogando, dessa forma, com marcas frequentes nas narrativas atuais – como o “retorno do autor” –, essa escritoraleitora continua a tecer seus textos equilibrando-se nos limites
entre biografia e ficção, realidade e invenção, vida e literatura.
REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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para além dos muros”; “Última carta para além dos muros”; “Mais uma carta para além dos muros”. In: _____. Pequenas epifanias. Rio de Janeiro: Agir,
2006. pp. 106-114; 199-201.
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Trad. Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010.
ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Ática, 2001.
BARTHES, Roland. “A morte do autor”; “Da obra ao texto”. In: _____. O rumor da
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_____. Sade, Fourier, Loyola. Lisboa: Edições 70, 1979.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
LISPECTOR, Clarice. “Explicação”. In: _____. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Artenova, 1974. pp. 11-12.
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EM dIREÇÃO AO ANIMAl:
JOÃO gIlbERTO NOll, EScRITA E bIOS 1
Gabriel Giorgi
I. duas interrogações: o eu e o animal
Dois impulsos, talvez seja melhor dizer duas ênfases, parecem
conjugar as questões contemporâneas em torno da interseção
entre literatura e vida. O primeiro deles diz respeito às chamadas “escritas do eu” que têm marcado muitas conversas
críticas recentes e giram em torno de uma evidência formal:
aquela que nos lembra que a vida é irredutível a um eu, que
esse bios, que é um impulso autobiográfico que quer sempre
ser reapropriado sob o signo de uma subjetividade – uma assinatura, uma “pessoa” no sentido teatral e jurídico do termo –,
revela-se insubmisso. Essa descoberta marca todo um percurso
dos anos 1970 até o presente, de En breve cárcel, da escritora
argentina Sylvia Molloy, até as “escritas do eu” mais recentes.
Estas escritas, como foi assinalado, trabalham com uma intimidade que se revela enganosa: o íntimo é menos o espaço de
reapropriação da vida por parte do sujeito do que uma dobra a
partir da qual essa interioridade se abre a intensidades e afetos
impessoais, comuns, em todo caso não atribuível a um eu. As
escritas funcionam, assim, em torno da defasagem ou desarticulação do próprio: a dobra autoafetiva e autorreflexiva que
1 Tradução de José Antonio Castellanos Pazos.
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constrói a subjetividade aparece aqui atravessada por intensidades que são exteriores, coletivas, neutras; dessa não coincidência sistemática são feitas tais escritas. O que conta nelas é o
questionamento sobre essa “matéria de vida” cujo estatuto foi
colocado em questão, e cuja natureza – entre o corpo, a cultura e a experiência – deixou de ser o fundamento pressuposto
da subjetividade; por isso torna-se instância de pesquisa e de
interrogação. São escritas que nascem da verificação de que a
vida já não se pode resumir ou conter no formato do indivíduo, como se a cultura tivesse descoberto que a noção de “vida
própria” tornou-se insustentável, e, por isso, precisasse elaborar outros modos de registro, de captura, de percepção e de
reflexão sobre o vivido; toda vida, parecem dizer estes textos,
é alheia, porém ao mesmo tempo íntima. Estas escritas não
dão, assim, somente o testemunho de um eu ficcional, performativo, que se oporia a um sujeito ontológico e a sua capacidade de verdade; também não dão conta da construção de “novas
identidades”; dão conta, acima de tudo, da impossibilidade de
determinar o bios em torno da figura de um eu. Fazem do eu
menos a instância de uma demarcação interior, uma topografia do privado, do que uma zona de fluxos e de passagem: um
umbral entre uma enunciação e um “passo de vida” que excede
toda apropriação. Logo, a partir do modelo das escritas do eu,
a relação entre literatura e vida é uma relação de dissimetria,
de não coincidência; o vivido nunca coincide com o sujeito da
memória, e o “eu” é, paradoxalmente, o mecanismo ou o instrumento para pensar essa defasagem.
O outro impulso é, ao menos na aparência, mais literal:
pensa a vida em termos de corpos, de materialidade biológica,
de organismos, e de forças e intensidades vivas; põe em cena
a relação entre um “vivente” e a escrita. É a saúde e a doença,
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a sexualidade, a fome, o corpo diante da sua sobrevivência: modos do viver e do morrer dos corpos enquanto tais. Se as “escritas do eu” pensam a partir do hiato inconciliável entre autos
e bios, essas escritas trabalham a incomensurabilidade entre o
eu e seu corpo, entre a pessoa e seu ser vivente – entre, para
dizê-lo de uma vez, o sujeito de linguagem e o corpo vivente.
Nesse percurso, literatura e vida se enlaçam sob o signo do animal: do rumor, do afeto, do impulso do animal que habita os
corpos. A escrita ensaia modos de relacionamento com isso que
traça os limites do humano, e o faz a partir de uma crise formal:
o animal perde forma, torna-se um contorno indeterminado,
mutante, aberto; ilumina corpos irreconhecíveis, potências corporais e forças sem nome, no limite mesmo da espécie humana, em zonas de indeterminação entre espécies e entre corpos.
Pensemos em um arco que vai de Clarice Lispector e Osvaldo
Lamborghini a, por exemplo, Marosa di Giorgio e João Gilberto
Noll: ali a vida não remete à experiência vivida por um eu, mas
à vida do corpo, ao campo de forças singulares e múltiplas que
fazem e desfazem os corpos. Trata-se de biologias abertas, de
corporalidades cujo lugar mesmo torna-se instância de interrogação; ilumina o encontro com potências orgânicas, com forças
opacas, que retraçam constantemente os contornos dos corpos
e mapeiam seus campos de relação e de devir: o desejo, o afeto,
a sensação, a pulsão, o que arrasta a consciência para sua linha
de sombra que aqui é também sua linha de criação. Impessoal,
assignificante, neutro: o rumor do vivente nas alternativas da
sexualidade, do desamparo, da doença; disso falam os animais
que assomam, como figuras incertas, em muitos textos da literatura recente. São animais íntimos, interiores: emergem, como
a célebre barata de A paixão segundo GH, no interior das casas,
no mundo doméstico, ou em um mundo rural onde o selvagem
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se reconverteu em intensidade desejante, como nos textos de
Marosa. O animal deixa de ser um outro radical – o outro da
natureza – para se tornar um corpo contíguo, imediato, de uma
proximidade para a qual não existe um lugar próprio: essa contiguidade é o que a literatura pensa, porque a partir dela afirma
uma ética e uma política dos corpos mais que dos indivíduos
ou das identidades. Essa vida é uma zona de indiscernibilidade
entre bios e zoé – o ponto em que, como diz Esposito, já não é
possível traçar essa distinção (ou onde a distinção mesma revela-se incompreensível para a nossa época); é esse o umbral que
a literatura interroga pela via do animal.
Vida apessoal do sujeito, vida animal do corpo: entre esses
dois limites ou umbrais parecem se traçar os modos em que
vida e escrita se amarram na cena contemporânea. A insistência e a proliferação destas indagações – que, podemos dizer,
cobrem grande parte das escritas mais interessantes desde os
anos 1970 – indicam que se está pensando algo mais profundo.
II. A luz animal: amnésia e escrita
Talvez uma resposta a essas indagações se encontre na escrita
de João Gilberto Noll. A modernidade irredutível dessa escrita reside, creio, no fato de combinar e trabalhar a tensão entre os dois impulsos de que falávamos antes: sua escrita pensa,
como já tem apontado a crítica,2 o estatuto da subjetividade
2 Ver Aguilar, Gonzalo, “Lorde de João Gilberto Noll: la experiencia del despojo”, em
Cronopios – Portal de literatura e arte, http://www.cronopios.com.br; Klinger, Diana,
Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica : Bernardo Carvalho,
Fernando Vallejo, Washington Cucurto, João Gilberto Noll, César Aira, Silviano Santigo, Rio
de Janeiro, 7Letras, 2007; Laddaga, Reinaldo, Espectáculos de realidad. Ensayo sobre la
narrativa latinoamericana de las últimas décadas, Rosario, Beatriz Viterbo editora, 2007;
Vidal, Paloma, “La posibilidad de lo imposible”, Revista Iberoamericana, Vol. LXXV, Núm.
227, abril-junho 2009, 435-443.
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– são textos que põem em cena uma subjetividade performativa, flutuante, móvel, no limite da autoficção – e, ao mesmo
tempo, interroga os avatares de uma corporalidade tornada
matéria narrativa; suas ficções narram estados de corpos em que
as alternativas do relato passam sempre por uma materialidade orgânica que as realiza e potencializa. Como se sua escrita
trabalhasse tanto a extenuação do eu – em um universo ficcional pós-subjetivo – como uma crítica do corpo, abrindo espaço a percursos de sensações e intensidades orgânicas irredutíveis
a um corpo e a um organismo próprio.
Esse duplo jogo se condensa em Noll em torno da amnésia
como procedimento formal. A amnésia parece estar na origem
de muitas de suas narrativas: o esquecimento torna-se, paradoxalmente, matéria da narração. Como o protagonista de Lorde
(2004), muitos dos seus personagens são “candidatos ao Alzheimer”: trazem à narração situações que não podem nem sequer
identificar, como se a perda da memória, mas também da identidade, do nome, do pertencimento (a uma nação, uma família,
uma memória compartilhada etc.), inclusive o reconhecimento
do “próprio” corpo, abrisse o impulso a partir do qual se pode
narrar. Personagens órfãos, desamparados, abandonados, sonâmbulos que se descobrem em situações que não conseguem
acabar de decifrar. Diferentemente de modos mais convencionais de narrar a amnésia, aqui o “buraco da memória” é uma
espécie de switcher de intensidades e de dimensões: em vez de
tentar substituir o que falta ou o que se perde, a amnésia põe
o personagem ante um vazio a partir do qual narra.
Esse vazio de memória funciona, no entanto, como um mecanismo narrativo que ilumina os corpos em sua materialidade
vivente, orgânica. Ali onde o “eu” – como história e como interioridade – está vacante, o que fica é um corpo e suas forças: esse
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umbral de animalidade é o que Noll persegue na sua escrita.
O umbral do animal não remete às figuras clássicas do selvagem, do instintivo, do irracional, mas sobretudo a um princípio de mutação e de desfiguração: o animal aqui é menos
uma “figura” reconhecível do que um campo de intensidades, uma potência informe que arrasta os corpos para além de
si mesmos. Como se a amnésia do eu liberasse algum tipo
de memória pura dos corpos: uma vida autônoma, independente do eu, que arrasta os personagens e traça o eixo da narração. Esse animal e vivente emerge no “vazio” da amnésia;
narra-se a partir desse limite.
Não é que o corpo ofereça uma nova liberdade, como se se
liberasse de antigas constrições e reencontrasse uma potência
de metamorfose e devir que promete uma nova autonomia ao
sujeito – uma emancipação ou uma liberação. A escrita de Noll
passa por outro lugar: pensa o corpo e a vida que o atravessa
como uma força ou potência que resiste a toda apropriação,
que põe em questão a possibilidade mesma de fazer do corpo
algo próprio, dominável, sujeitável. O corpo impróprio, o corpo como impropriedade: é isso que investiga a escrita de Noll.
“Escrevo isso que meu organismo está em condições de me
dar”,3 diz Noll, como se a relação entre escrita e corpo fosse
uma relação de subordinação na qual o organismo é o germe
de eventos e de intensidades que constituem ao mesmo tempo a matéria e a possibilidade mesma da escrita. Organismo
e escrita: o tema recorrente da escrita de Noll será o enlace – e
o permanente deslocamento – entre o “sujeito da linguagem”
e o “animal mudo”, entre a linguagem e o vivente, entre falar e
viver; essa relação sempre precária e nunca completamente
3 “Escapo de la prosa neutra”, entrevista, Revista Ñ, 29 de novembro 2008.
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conciliável de hóspede e anfitrião, entre o corpo e o sujeito falante que o habita, onde o corpo vivente, o corpo animal, irrompe como uma sombra e um tensor da linguagem. Em Noll,
a “parte animal”, a existência biológica parece sempre traçar
um limite, um contorno de forças que se arrastam na direção do indeterminado não só do “eu” e da sua precária consciência, como também da narração e da linguagem: como se
a possibilidade de narrar e de falar se originasse nessas forças
desencadeadas, cegas, elas mesmas mudas, mas que desde seu
fundo opaco “fazem” falar e “fazem” narrar. Na direção do animal, na direção do vivente: os amnésicos de Noll, as escritas
que eles possibilitam, vão nessa direção que, no entanto, nunca coincide completamente nem com a linguagem, nem com
a consciência. Elas repõem nenhuma origem, uma força originária, uma pureza: o animal aqui não repõe uma natureza
perdida e reencontrada, uma plenitude ou essência vital. Os
corpos amnésicos de Noll, pelo contrário, emergem sob a luz
do abandono, da precariedade, do irreparável, do irredimível,
como o “quieto animal da esquina” que protagoniza o romance do mesmo nome de 1991, e que trabalha sobre os sentidos
do animal como figura do abandono. Seus textos combinam
a precariedade e a destituição com uma potência cega, que se
afirma na sua incerteza: essa escura afirmação é o que acontece
nos itinerários sonâmbulos dos personagens, a de uma força ou
potência sem função, sem destino, sem teleologia.
Os corpos em Noll estão feitos de organismos e fisiologias
instáveis, de contornos ambíguos: “Eu parecia de fato me encontrar na passagem do estado bruto da vida para uma espécie de existência mais difusa e elementar” (1996, p. 142), diz
o narrador de A céu aberto, enunciando um impulso que parece
atravessar a maioria dos corpos nos textos de Noll. São corpos
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que parecem mover-se para um tipo de desmaterialização, ou,
melhor dizendo, para uma mudança de estado de matéria: aparecem-lhes substâncias incógnitas, tornam-se luminosos, derramam-se em secreções e humores, como se o corpo estivesse
orientado a pontos de tensão nos quais o orgânico ou o físico
se transmuta, se liquidifica em outra coisa mais difusa, informe
e irreconhecível, porém que se inscreve como um acréscimo de
vida, um excedente, uma reserva potencial e enigmática. Uma
transmutação para um “extrato de mais vida” (NOLL, 2004, p. 110)
que atravessa os corpos e os arrasta na direção do indeterminado, disso quase imperceptível mas real, “as entranhas do zero”,
lugar a partir do qual se relança a narrativa: como se a escrita
fosse o registro desse vértice cego, desse umbral ou contorno de
forças que impele os corpos, uma pulsão que os empurra e os
torna instância do relato. Trata-se menos de uma metamorfose
entre espécies, gêneros, entre formas corporais, do que entre
experiências e ações que põem em crise as formas mesmas dos
corpos e que dão testemunho de uma potência ou força de indeterminação – mais próxima à noção deleuziana de “virtual”,
que concebe a vida não como um conjunto de funções biológicas predeterminadas, mas como uma pura memória, uma memória absoluta, que se alberga nos corpos como potencialidade
nunca totalmente atualizada ou realizada. Essa visibilidade do
corpo em processo, do corpo em devir imperceptível, esse contorno que se desvanece e libera uma linha molecular, líquida,
difusa – essa visibilidade aponta para uma vida que não responde nem à “vida natural” nem à “vida humana”, que não tem
um corpo ou uma figura definitivos, mas que parece empurrar
todo corpo para sua indefinição; uma epistemologia da vida
entre o atual e o virtual, entre a potência e a materialização:
essa zona intermediária é o que emerge nesta escrita.
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Multiplicidade animal
Os textos de Noll já foram lidos como relatos de perda da experiência: o lugar da subjetividade como instância de saber fica
ali sempre vacante. Contudo, creio que a chave está em outro
lugar: os personagens de Noll são a ocasião, ou o protocolo,
não só para uma crise da identidade subjetiva, mas para um
trabalho estético sobre as bordas, os contornos, as zonas de vizinhança entre corpos – uma espécie de microscopia do vivente
entre os corpos, nessa zona imperceptível ou quase imperceptível, onde um corpo tem lugar perante outro, a linha que separa e conecta os corpos. Esse é o saber que produz esta escrita:
o saber do entrecorpos, o saber do que passa entre corpos.
E é ali, nesse entrecorpos, nessa zona liminar, nessa vizinhança estranha dos corpos, que aparece o animal. Acenos e
afagos, de 2008, é especialmente ilustrativo desse movimento.
O narrador, já adulto (casado e pai de família), retoma uma
paixão por um amigo de infância com quem mantinha jogos
sexuais, e a quem estivera ligado por algum tipo de amor platônico. Depois de diversos episódios (os romances de Noll são
romances de “ações” incessantes, puro movimento narrativo),
acabam vivendo juntos, em uma zona afastada, na selva. Lá,
o narrador entende que nessa nova vida tem a função de “mulher”, e começa a sofrer uma mutação corporal: o corpo se torna uma caixa de ressonância dos eventos exteriores, aos quais
materializa, ou literalmente corporaliza. No entanto, essa mutação, essa transformação corporal, em vez de uma mudança
de gênero, em vez de uma transformação de “homem” em “mulher”, torna-se uma saída para uma corporalidade nos limites
do humano, entre o humano e o animal, na direção de uma
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dimensão onde não há “espécie” reconhecível: o corpo se torna
uma linha de saída da espécie. Vejamos como o narrador descreve este novo corpo: “Tratava-se de um pequeníssimo animal
incrustado sob o pentelho, quase na base de meu pau. Tinha
a saliva morna e densa. O meu novo sexo parecia um viveiro de
esdrúxulas infracriaturas [...]” (NOLL, 2008, p. 188).
Ele compara o sexo a um berçário ou a um cemitério.
O narrador começa a desfrutar do espetáculo desses micro-organismos em sua faina por mais um dia de vida: uma verdadeira
batalha contra as forças invisíveis da extinção. Esse “bichinho”,
essa “microvida” é uma criatura prazerosa, porém independente do narrador: “não havia – diz – sincronismo erótico entre
o hospedeiro e o hóspede” (idem, p. 190). Mais adiante, o define como um “povo acampado no meu púbis”. E conclui: “Não
poderia mais viver sem que essa biologia mínima continuasse
a enaltecer ainda mais a promessa da fusão” (idem, ibidem).
Duas observações, entre muitas outras possíveis, em torno
desta citação. Primeiramente, uma questão chave: a encenação
ou um modo de visibilidade do corpo vivente no qual qualquer
pressuposto de unidade, delimitação, isolamento ou fechamento sobre um si-mesmo, qualquer noção do corpo como entidade centrada sobre si e como unidade orgânica é deslocada
por uma visibilidade do corpo como multiplicidade, como sociedade, como agenciamento entre presenças viventes heterogêneas. Não há um corpo individual, apropriável, privatizável:
o corpo é um “acampamento”, um “povo”, uma ensamblagem
de criaturas; é sempre um ponto de encontro, de aliança, de enlace (ou de choque, de guerra) entre forças viventes. O animal
“em mim”, o animal que habita “comigo”, em um umbral entre
o próprio e o impróprio, e que interrompe toda noção de unidade corporal, esse animal ilumina o corpo como sociedade,
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o “próprio” corpo como unidade de heterogêneos. A ficção
funciona ali como um laboratório da percepção corporal: a ficção como uma máquina de ver.
A segunda questão, consequência do que foi dito anteriormente: a crise de gênero, a crise da adequação entre o corpo e
a norma de gênero, interrompe de uma vez a legibilidade da
espécie: sair do gênero é sair da espécie. Aqui, evidentemente,
seria possível ler uma inscrição do monstro: o corpo que não
entra no binarismo genérico é o corpo monstruoso, o corpo
excepcional que desafia a ordem da natureza e a ordem social. Contudo, gostaria de sublinhar outro ponto: na realidade,
o que acontece a partir da crise do gênero é uma mudança de
escala na percepção corporal. Em vez do corpo e de sua legibilidade a partir do binarismo genérico como norma da espécie,
aparece, pelo contrário, uma microscopia múltipla do vivente,
uma percepção do corpo sexual que materializa, literalmente,
esses “mil sexos” que pediam Deleuze e Guattari – em todo
caso, a crise do gênero é um mudança de escala para uma molecularidade do vivente em que todo binarismo se revela como
multiplicidade, onde não existe modo de sustentar o binarismo,
e o que aparece é uma micrologia do múltiplo. Essa visibilidade
molecular ou micrológica do corpo diz então que o corpo é resultado de alianças, cruzamentos múltiplos; que não existe vida
do corpo senão entre corpos – e que é essa multiplicidade aberta, esse processo e essa microscopia poderosa – essa “biologia
mínima”, diz Noll – são o que a escrita explora. Ali não existe
vida própria, vida individual, não há corpo apropriado, subjetivado, privatizado por um “eu” ou por um indivíduo; existem
agenciamentos, ensamblagens, formas de vida nas quais não
se pode isolar, distinguir, separar uma “vida própria” que seria
o fundamento do eu.
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É esta visibilidade do corpo – que é um saber sobre o vivente – que interessa: em vez da ideia romântica da sociedade
como organismo, aparece a ideia barroca do organismo como
sociedade (cf. VIVEIROS DE CASTRO, 2011), como coletividade de
singularidades e como combinação de múltiplos corpos, forças
e intensidades; não mais o corpo como individualidade, porém como sempre articulado em formas de vida. Logo, surge
uma ontologia do corpo vivente como multiplicidade, em que
o corpo é irredutível à unidade, ao eu como norma do humano.
III. biopolítica
“Escrevo ao correr da máquina. Muita coisa não posso contar. Não vou ser autobiográfica. Quero ser bio” (LISPECTOR, 1999,
p. 9), escreveu Clarice Lispector em Água viva. A expressão adquire uma ressonância mais vasta se a pensamos em relação às
vicissitudes da noção de vida. O que significa esse “bios” que
Lispector contrapõe à autobiografia? E como identificar isso
que evita a captura no autobiográfico da experiência vivida
como vida própria ou apropriada? Lispector escrevia isto pouco depois de A paixão segundo GH, onde, como devemos lembrar, trabalhava os sentidos dessa “vida neutra” ou “vida crua”
sobre a qual baseava sua hipótese da “desistência”, como uma
instância de despersonalização que não implicasse uma pura
indiferenciação; uma vida que passa entre o humano e o animal, mas que não é um retorno à natureza nem a um substrato
primário. Bios, então, como umbral que não coincide nem com
o “eu” nem com a “natureza”; não é humano nem animal; não
excede o domínio do sujeito, mas também não se funde a uma
ordem orgânica indiferente e homogênea ou totalizadora. Esse
bios é, podemos pensar, um horizonte de diferença: uma linha,
umbral, movimento onde toda forma, todo ordenamento en131
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frenta sua linha de deformidade, sua carência de contorno e
de identidade, a linha de devir, o espaçamento do corpo na sua
extensão, a potência de uma força que nunca coincide consigo
mesma, que sempre está além de si, que existe nas suas bordas,
enquanto borda.
Um impulso semelhante atravessa a escrita de Noll, e marca, como vemos, uma zona de pesquisa estética sobre a qual é
necessário pensar. Esse bios que se interroga nestas escritas não
coincide com o sujeito da experiência vivida (o sujeito da memória) nem com o corpo “próprio” como sede da autonomia
do sujeito – isto é, não coincide com nenhuma das figuras que
a modernidade reservou para pensar a individualidade. Também não conduz, evidentemente, a um fundo orgânico indiferenciado: o vivente é aqui justamente proliferação de diferença,
espaçamento, produção de singularidades entre corpos. Muda
a escala de representação do corpo: os corpos tornam-se moleculares, no limite do perceptível, atravessados por processos
múltiplos, por linhas de intensidade, de força, de impulsos que
não se deixam capturar por um organismo nem por uma forma
estável, nem, muito menos, por uma imagem do humano. Uma
epistemologia dos corpos como multiplicidade: esse saber é o que
se interroga nessa escrita.
“Biopolítica” nomeia uma modernidade que busca fazer do
bios um objeto de racionalização, de controle, de management:
moderna será, nessa perspectiva, a época que torna a vida
um objeto de cálculo e de gestão mensurável, reduzindo-a
a um repertório de funções previsíveis e maximizáveis; que faz
da “defesa da vida”, da proteção e gestão de life itself seu horizonte de valor indiscutível: dali deriva seus sonhos e pesadelos; satura de “saberes bio“ a esfera pública, para reforçar
o que será seu principal impulso, o de pensar o bios como objetivável, conhecível e manipulável. Concebe o vivente como
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um princípio individuado: um organismo, um corpo já demarcado, fechado sobre si mesmo, que funciona como sede e
fundamento do indivíduo proprietário e soberano; um bios, em
outras palavras, apropriável, privatizável que reflita o indivíduo.
A literatura contemporânea trabalha sobre essa mesma matéria
para contestar essas operações de saber e pluralizar os sentidos desse bios. Se, por um lado, a escrita da intimidade, como
vimos no começo, verifica a impossibilidade de individualizar
essa matéria de vida que põe em cena, por outro lado, pelo lado
do animal que se investiga em outras escritas como a de Noll,
o que aparece é uma epistemologia do vivente que revela o
corpo como multiplicidade irredutível, em devir, e, portanto,
sempre em excesso no que diz respeito a toda apropriação; um
saber que descobre, toda vez, a potência inapropriável do vivente e faz disso a instância de uma afirmação radical, irredutível, a instância mesma do impensado. Se a biopolítica faz desse
bios docilizável o fundamento de suas apostas, a literatura lhe
responde com uma política do vivente que faz desse fundamento um solo que se desvanece – isto é, uma potência que se
afirma em sua mesma indeterminação.
REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas caníbales. Buenos Aires: Katz
Editores, 2011.
ESPOSITO, Roberto. Bios. Biopolítica e filosofia. Turim: Einaudi, 2004.
LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
NOLL, João Gilberto. O quieto animal da esquina. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
_____. Lorde. São Paulo: Francis, 2004.
_____. A céu aberto. Rio de Janeiro: Record, 1996.
_____. Acenos e afagos. Rio de Janeiro: Record, 2008.
SAUVAGNARGUES, Anne. Deleuze. L’empirisme transcendental. Paris: PUFF,
2010.
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Releituras da tradição,
reescrituras do moder no
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ROdRIgO lAcERdA E A ARqUITETUR A
dA gENEROSIdAdE
Sérgio de Sá
I
“Apodreceu tudo lá dentro” (LACERDA, 2004, p. 145), anuncia
o porteiro do edifício Estrela de Ipanema, eixo arquitetônico
modernista que deixa marcas no narrador e nas personagens do
romance Vista do Rio, de Rodrigo Lacerda. Agora já não existe
mais projeto de futuro que suporte as pressões da mediocridade
brasileira. Há um bairro, uma cidade. O país, bem, o país é quase uma caricatura: seus exageros não são risíveis.
O indivíduo também apresenta problemas. Uma doença,
nunca nomeada, corrói a mordacidade do iconoclasta diretor
de teatro Virgílio, amigo de Marco Aurélio, o narrador, desde
a infância, tempo em que os dois se divertiam entre as modernas armações de concreto. Nas primeiras páginas do livro, eles
atiram um beija-flor dentro do liquidificador. E o que ocorre
depois é mais do que uma rima contraditória entre a beleza
e o sufoco.
Constitui-se a luta da natureza contra o motor de um gadget
da modernidade. A força da máquina puxa as asas para baixo
sob o olhar da crueldade humana em sua faceta infantil. É como
o Angelus Novus de Paul Klee, “que parece querer afastar-se
de algo que ele encara fixamente”, diz Walter Benjamin (1994,
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p. 226).
O anjo-pássaro da história de Lacerda, leve e delicado,
sucumbe dentro desse espaço tão real quanto metafórico.
No texto, as marcas das trajetórias individuais estão rodeadas pelo apelo do nacional. O Estrela de Ipanema, que existe de
fato, foi erguido em 1970, em plena ditadura. Os pais do narrador têm importantes questões políticas incorporadas à identidade. São as experiências subjetivas, contudo, que aprofundam
as dores e delícias dos protagonistas. O liquidificador funciona
normalmente depois que o bicho vira “uma pasta grossa e molhada” (LACERDA, op. cit, p. 13).
Em seguida, é a vez de o motorista da casa burguesa enrabar
(o verbo é do narrador) o próprio filho, cena testemunhada por
Virgílio, contada a Marco Aurélio e jogada na cara do leitor.
Enquanto isso, o prédio que representa a arquitetura moderna
brasileira – “nosso preceptor” – é “antenado, veloz e cosmopolita” (idem, p. 16). O transcorrer das horas fará com que ele
se desgaste, não sem obrigar “a espécie humana a crescer mais
rápido” (idem, p. 53).
Assim, dois episódios de força extraordinária impulsionam,
em duplo sentido, as hipóteses de uma literatura aberta a reflexões ensaísticas. Discutem-se vida e arquitetura. Em rampas
e corredores, a razão literária escancara a vontade pendular,
entre a caricatura que necessariamente distorce e o realismo
“suave” que coloca os pés no chão, ambos propostos pelo narrador. Ao que equilibra os dois polos rumo à comunicação com
o leitor, gostaria de dar aqui o nome de generosidade.
II
A primeira frase do romance infantojuvenil O fazedor de velhos
avisa: a literatura é parte incontornável e principal da forma138
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ção. “Eu não lembro direito quando meu pai e minha mãe começaram a me enfiar livros garganta abaixo. Mas foi cedo” (LACERDA, 2008, p. 7). As tediosas sessões de leitura promovidas pela
família do narrador acabam dando certo. O leitor se constitui
e elege preferências literárias. A mídia, bem a propósito, não
entra na constituição.
Assim, vindo lá do século XIX, aparece o português Eça de
Queirós, que, “além de um bigodão típico, enroladinho nas
pontas e tudo, tinha ritmo, música, piadas, amor e tragédia”
(idem, p. 11). Em “resenha” de Os Maias, diz o narrador: “o que
eu gosto mais é da combinação de dois personagens” (idem).
Em Vista do Rio, Lacerda conta a história de dois amigos. No
romance Outra vida (2009), relata encontros e desencontros de
um casal. Amizade, amor e traições.
A resposta à pergunta apresentada “de bate-pronto” no início da crônica “Hierarquias”, abertura da coletânea Tripé (1999),
é fácil de encontrar: Eça ou Machado? Na ficção, na vida real
ou na fronteira entre gêneros, Lacerda é leitor apaixonado de
Eça de Queirós. Para o narrador de O fazedor de velhos, que se
transformará em escritor, Eça vira “a minha filosofia de vida”
(LACERDA, 2008, p. 15). Vale reproduzir o último parágrafo do
primeiro capítulo:
Fiquei muitos anos obcecado por aquela mistura de grande
arte com diversão, de temas adultos com leveza, pela combinação que o Eça fazia de personagens bons com defeitos,
e de personagens maus com qualidades, sempre tratando
a todos de forma igualmente amorosa, igualmente irônica,
como se o escritor, de fora, lançasse um olhar piadista sobre
tudo e todos, um olhar que não condenava ninguém, mas
ria de todo mundo. E essa piada, esse seu jeito de ir “tirando
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uma” dos personagens, se tornou para mim a conversa de
um amigo (idem, ibidem).
É o próprio escritor quem passa publicamente um marcatexto sobre a virtude da generosidade que ele encontra na obra
de Eça. As entrevistas publicadas na imprensa dão a dica. Com
todas as letras de autor e não mais narrador, Lacerda nota como
destaques no original português: o humor, a música do texto e
uma extrema simpatia por leitores e personagens. Questionado
sobre a virtude que “mais preza na boa literatura”, ele afirma:
“A generosidade em relação aos personagens, aceitando-os
como são e deixando-os seguir o seu curso.”1 Eis, assim, o autor
generoso.
Com substantivo ou adjetivo, a tradição literária encontra
uma reinvenção, mais de cem anos à frente. Rodrigo Lacerda,
leitor de Os Maias. No caminho, o modernismo confunde. Entre Eça e Lacerda, houve William Faulkner, por exemplo. “Em
entrevistas e palestras, Faulkner defendeu uma fidelidade ao indivíduo que está na raiz do caráter multifacetado de suas personagens”, frisa Lacerda em perfil sobre o autor de O som e a fúria.2
Uma leve tese: a complexidade das personagens vem da generosidade. Em Eça, menos ambígua e explosiva. Em Faulkner,
infinitamente mais arriscada e múltipla. No Rodrigo Lacerda
de Vista do Rio e Outra vida, possível síntese pós-moderna brasileira. Entre os excessos de experimentação e comunicação,
fala o meio-termo. Sussurra em grande estilo. Grita em pequenos detalhes. Oferece biscoitos finos sem artesanato.
1 Entrevista a O Estado de S. Paulo, s/d, disponível em www.rodrigolacerda.com.br.
2 Publicado na edição 68 da Revista Cult, sob o título “O apóstolo do individualismo”, em
janeiro de 2004.
140
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III
O romance no início do século XXI seria inocente se fosse de
novo um romanção bem escrito, bom de ler. Seria igualmente
ingênuo caso não aproveitasse as lições experimentais do modernismo. Em resenha de Vista do Rio, Flávio Carneiro lembra
a necessidade da reescritura do moderno que vem do início
dos anos 1980 (leia-se Sérgio Sant’Anna e Silviano Santiago) e
que Lacerda lograria fazer, com inteligência, já no novo século.
Para Carneiro, Vista do Rio está bem situado entre “a utopia da modernidade e a realidade do presente” (CARNEIRO, 2004,
p. 3) porque sabe reavaliar heranças sem cair no experimentalismo desinformado, isto é, na crença de uma originalidade que
há muito tempo não lhe pertence. Transgressão técnica a essa
altura do campeonato? Nope. Lacerda tampouco apela para
o rebaixamento das camadas literárias que costumam erguer
um texto.
Generosidade é mais comunicação e menos experimento,
porque interessada em falar ao leitor. A ideia está em Antonio Candido, que vislumbra “uma espécie de generosidade” na
“natureza de escritor” de Erico Verissimo. “Generosidade que
o leva a querer entregar-se ao leitor, confiar nele, sem medo de
mostrar os seus sentimentos, a sua candura, a sua esperança.”3
Quando exagera, quando abusa da “simplicidade expressiva”,
Erico erra, comete um deslize pela superficialidade.
Do autor de O tempo e o vento, Candido diz ainda que um
dos traços positivos “é a capacidade de se tornar convincente
tanto para o leitor culto quanto para o leitor mais simples”.4
3 Entrevista concedida aos organizadores do livro Erico Verissimo: o romance da história.
pp. 14-15.
4 idem.
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Assim sendo, o escritor gaúcho estaria próximo da “família espiritual de escritores como Eça de Queirós, Dickens ou Balzac”.
Nessa capacidade de transitar entre diferentes leitores, o entretenimento encontra o rigor. O nome disso pode ser gentileza.
À pergunta feita por um jornalista – “para que clássico brasileiro, de qualquer tempo, você escreveria um prefácio incitando a leitura?” –, Lacerda responde: “O tempo e o vento, do
Erico Verissimo. Acho que se fala pouco dessa catedral literária
maravilhosa.”5
Há uma linhagem na decisão e no acerto de abrir diálogos literariamente requintados. O autor aprendeu (também e
ainda) com Lima Barreto, João Antônio, João Ubaldo Ribeiro. Mantém a classe. Em resenha de Vista do Rio, diz o escritor
Ronaldo Correia de Brito (2004, p. 86): “Jogando com o tempo,
fazendo incursões pela história social e política da cidade e do
país, intercalando narrativas, Rodrigo Lacerda mostra o seu talento de romancista, um perfeito domínio da técnica concebida
para inquietar o leitor, para impedir que ele saia imune da leitura.” O leitor compreende e salta.
A literatura deixa de ser tão ensimesmada, e o autor generoso não menospreza a inteligência de quem lê. André ComteSponville, em seu Pequeno tratado das grandes virtudes, lembra que a generosidade é o oposto do egoísmo. E o narrador
de Vista do Rio, Marco Aurélio (sim, de origem romana como
o amigo Virgílio), atesta: “A generosidade é mais comum nos
não vencedores (que não são necessariamente perdedores)”
(LACERDA, 2004, p. 30).
Os não vencedores são a cara do escritor contemporâneo no
Brasil. São como uma partícula negativa porque o que dizem
5 Entrevista a O Estado de S.Paulo, s/d, disponível em www.rodrigolacerda.com.br.
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já não tem força para concorrer com os espetáculos midiáticos.
Falam para as paredes que encerram pequenos grupos de leitores. São vencedores, entretanto, porque estão completamente
livres para dizer o que entendem ser necessário dizer. Os sim
vencedores precisam dar satisfação o tempo todo.
No meu livro de ensaios A reinvenção do escritor, essa discussão surge para enfatizar a perda de força do escritor dentro
da sociedade da informação. Perda que é ganho. O egoísmo
do vencedor faz com que ele não tenha a distância necessária
para mirar as coisas. Perto demais do próprio umbigo, cabeça
enfiada entre as quatro paredes do próprio quarto. Vale convocar Ricardo Piglia (2005, p. 98): “O perdedor, o que não entra no jogo, é o único que conserva a decência e a lucidez”, diz
o argentino em O último leitor.
Haveria, assim, generosidade peculiar a esse ganhador às
avessas, não relacionada à capacidade de comunicação com o
leitor, mas ao fato de que, mesmo ao experimentar, ele admite
falhas, frestas, interposições: como quem olha através do cobogó, o elemento arquitetônico moderno, batizado em Pernambuco por três engenheiros. Vazado, é um muro que permite
passagem de luz e vento. Ao mesmo tempo protege. Generoso,
portanto, em sua própria concretude.
Iv
Monique Dixsaut recorda uma generosidade extramoral apontada na filosofia de Nietzsche, quando o homem vai “além de si
mesmo”. Diz ela:
A generosidade não consistiria mais então em se afirmar a si
mesmo, mas em afirmar a vida até em suas crueldades, suas
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contradições e suas miragens e transfigurá-la afirmando-a.
Afirmá-la é criar valores, incorporá-los às coisas e aos seres,
assumindo e querendo a ilusão (DIXSAUT, 2003, p. 689).
O que é essa definição de generosidade senão a própria literatura que se abre pelas brechas, do lado do avesso, uma literatura que deixa a genialidade autoral um pouco à margem para
conferir às personagens infinitas possibilidades de manifestação do contraditório? Afirmar a literatura é criar valores, afirmando a vida em crueldades, contradições e miragens. A generosidade é literatura para o leitor. Outras vistas, outras vidas.
É a morte do modernismo que leva Marco Aurélio a ser narrador. Cresceu, formou-se nele. Sob forma arquitetônica, a bula
futurista constrói a identidade. O modernismo leva ao pensamento duro. Vem com guia de instruções. Mas a vida atropela,
porque uma hora a emoção precisa tomar conta, senão a gente
morre sufocado. É preciso passar por cima das ruínas a nossos pés, vestígios que precisam ser lidos de perto e logo abandonados.
Entre o edifício de Vista do Rio e a rodoviária de Outra vida,
abre-se o espaço literário onde circulam e são constituídas as
personagens de Rodrigo Lacerda. Outra vida consolida o propósito de analisar o sujeito na cidade. O edifício moderno dá
lugar ao não lugar, para lembrar conceito de Marc Augé sobre
os espaços de identidade tão universais quanto superficiais.
Aqui, não mais vazio de sentido. Wander Melo Miranda nota
que a “piscadela irônica do narrador”, ao final de Outra vida,
recarrega o texto e a leitura de “potência ficcional” (MIRANDA,
2011, p. 212, grifo do autor).
A força da ilusão literária corre para o salto no abismo. Em
Vista do Rio, o arremesso em asa-delta da Pedra Bonita. Em Ou144
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tra vida, a entrada no ônibus rumo a um novo/velho destino.
Nos dois casos, temos repetições de gestos que levam o texto,
segundo Melo Miranda, a “desdobrar-se na utopia ainda que
vacilante de outra vida” (idem). Há os que se jogam no fluxo
incessante dos acontecimentos. Há os que param para observar
e, não por acaso, se transformam em escritores.
As dicotomias não se resolvem a favor de um dos lados.
Retomemos: hipérbole caricatural contrasta com suavidade
realista. Elipse pode colaborar com repetição. Engana-se quem
toma partido em Outra vida, a favor do marido aparentemente bonzinho, contra a mulher aparentemente malvada. O jogo
duplo existe. Nunca se está totalmente, nem lá nem cá. Não se
trata de estabelecer conjunções adversativas. É preciso esperar
o tempo da leitura passar.
Nesse nó de ambiguidades, o autor encontra também uma
forma de dialogar com o leitor contemporâneo, muito pouco
inocente. Na obra de Rodrigo Lacerda, generosidade significa
também amplitude. Significa que a decisão de julgar uma personagem cabe única e exclusivamente ao leitor. Quem é pior
em Vista do Rio? Quem perde em Outra vida? Não há nada que
se possa fazer a não ser continuar.
v
A certa altura de Vista do Rio, Marco Aurélio permite que Virgílio fale, entre aspas, em mais de 15 linhas sem interrupções.
E nesse (en)trecho dramático, de absoluta sinceridade sobre
o próprio caráter, ele termina com a seguinte frase: “Nunca fui
generoso assim” (LACERDA, op. cit, p. 122). Trata-se de uma declaração dirigida indiretamente ao amigo escritor, único que pode
quase tudo. Não pode, entretanto, tomar o lugar de Virgílio,
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prestes a morrer na cama do hospital, da doença da qual não se
pronuncia o nome.
Se Eça de Queirós era um retratista, muitas vezes caricatural, Rodrigo Lacerda faz essa representação explodir em várias direções a partir de uma aproximação realista. O autor
generoso narra as sinceridades para tirar seus personagens de
um quadro metafísico, em que tudo se explicaria com absoluta tranquilidade. Aí se interpõe uma ironia narrativa – talvez
à Richard Rorty6 – que dá ao texto sua contemporaneidade.
A generosidade pré-moderna se imiscui entre o modernismo e o dito neonaturalismo para dar uma volta em direção
a autores de diálogos intencionais com o leitor. O que une Rodrigo Lacerda ao passado é uma vontade louca de que a literatura estabeleça sentido. De que a experiência da leitura nos faça
amadurecer. No romance O fazedor de velhos, é isto o que está
principalmente em jogo: a capacidade de reconhecer o passado
para crescer junto com ele.
Estamos sempre falando de influências declaradas do leitor Lacerda. Ora, no mundo da predominância audiovisual
e dentro de tradição recente da teoria literária, isso tem um
quê de singularidade. Se lembrarmos, por exemplo, que Eça
de Queirós foi questionado em sua originalidade em função de
influentes leituras francesas, a literatura agora retoma a própria
literatura em meio à multiplicidade de fontes. Não parece traumático esse reencontro.
O tempo passou, não nos deixemos enganar. A volta ao literário é uma defesa de propósitos e intenções. Não se trata,
6 Os “ironistas” de Rorty não se contentam com o senso comum, não se restringem ao
próprio “vocabulário final” para pensar o mundo e não acreditam numa verdade moral
acima de qualquer suspeita. Cf. “Ironismo e teoria”, in RORTY, Richard, Contingência,
ironia e solidariedade. São Paulo: Martins Fontes, 2007. pp. 131-168.
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é claro, da relação modelo-cópia. Ao revelar fontes na mídia,
o autor generoso reconhece a dívida publicamente. O ensaísta faz a ponte sem medo da influência. Porque a generosidade
se espalha. Na obra de Lacerda, isso tem a ver com ficar mais
doce, menos convicto, menos determinado. A generosidade é
um princípio literário, exposto nas personagens, que se projeta
para o leitor.
De novo, para terminar, a cena inicial, a cena de iniciação.
Não se leva um beija-flor para dentro de um liquidificador
em vão. Engano, armadilha: “seu mundo inteiro o traiu” (idem,
p. 13). O edifício Estrela de Ipanema, que tudo vê, não é generoso. Tampouco a rodoviária que testemunha o esfacelamento
de uma relação a dois. Mas a literatura não é nem o espaço
moderno laboratorial nem o lugar de trânsito fácil (best-seller),
pouco confortável quando a mirada é mais exigente.
Se me permitem o jogo, a literatura tritura a tradição para
nos dar outra perspectiva. Anjo ressuscitado em papel. A expressão se repete no presente e em direção ao futuro, como
na cena final de Outra vida, quando a menina fica com o pai.
“Terminando de se despedir, a menina joga o cabelo para trás,
num gesto idêntico ao da mãe e da avó” (LACERDA, 2009, p. 180).
A separação carrega a história narrada, a história vivida. E assim sucessivamente, no corpo do texto que sobrevive.
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Editora UFMG, 2010.
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lUIz RUffATO E AS vOzES PREgRESSAS:
ExPERIMENTAÇõES E RElEITUR AS
Catia Valério Ferreira Barbosa
A sutileza do pensamento consiste em descobrir
a semelhança das coisas diferentes e a diferença
das coisas semelhantes.
Montesquieu
Contemporaneidade e ruptura são dois conceitos frequentemente associados. Seria esse binômio a fórmula eficaz para
legitimar ou falsear as diversas experimentações literárias de autores contemporâneos? Em que medida estratégias literárias do
passado não estariam diluídas e reaproveitadas em obras do presente? Estudar romances contemporâneos representa um exercício mais complexo do que a tentativa de estabelecer fronteiras
entre passado e presente, entre canônico e não canônico.
Entender as ressonâncias da literatura pregressa nos textos
contemporâneos faz-se tão importante quanto mapear experimentações artísticas dessacralizadoras. Nesse sentido, este
estudo do romance Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato,
apresenta uma análise do fazer ficcional presente na obra, considerando-o fruto de uma escrita problematizadora assinalada
por inovações e diálogos com vozes pregressas.
Em Eles eram muitos cavalos, toda a ação do livro está circunscrita a um só tempo e um só espaço, ou seja, os fatos narrados ocorreram no dia 9 de maio de 2000 na cidade de São
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Paulo. Esse é só o início de uma estrutura de encaixe da diversidade na unidade que permeia a obra em seus vários planos,
pois, embora as marcas temporais e espaciais sejam bastante
delimitadoras, o conteúdo ficcional tratado nesse dia e nessa
cidade é altamente plural. O dia é único, contudo, bem aproveitado. Nele as personagens das mais variadas classes sociais
vivem fervorosamente nos turnos da manhã, tarde e noite, expondo as mais distintas dores da classe operária que, embora
contribua significativamente para o desenvolvimento social,
habita espaços periféricos na sociedade. Além disso, em função
de se tratar da representação de São Paulo, uma metrópole imponente, a unicidade espacial se ramifica em prol da construção de um grande painel humano, o que nos permite conhecer
as várias cidades que integram a cidade de São Paulo. Há um
contínuo desdobramento de quadros que exibem a experimentação artística a serviço da representação do caos urbano.
As vozes pregressas e a composição
do romance mosaico
A divisão do romance em setenta capítulos não ordenados linearmente, por si, já revela o caráter fragmentário da obra.
Além de numerosos, esses capítulos apresentam uma estrutura
fragmentada tanto no que se refere à linguagem quanto no que
se refere à justaposição de diferentes tipos e gêneros discursivos ao construir o continuum narrativo. Nesse conjunto, há recorrência do aproveitamento literário de textos não ficcionais
(santinhos católicos, classificados, horóscopo) que ratificam
o diálogo entre vida e literatura. Diálogo este cuja complexidade, de certa forma, encontra-se atrelada à composição híbrida
do romance.
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Na primeira página do livro, o leitor encontra capítulos que
lembram a estrutura fragmentada de Memórias sentimentais
de João Miramar (1924), de Oswald de Andrade. Esta estrutura
fragmentada requer um diferenciado exercício de leitura, pois,
embora a sinopse do livro não contenha ineditismos temáticos,
a forma como os temas são trabalhados ao longo do texto demonstra uma radicalização do projeto ficcional de Luiz Ruffato
já delineado em obras anteriores. Como o próprio autor afirmou, em várias entrevistas, não faz parte de suas preocupações
ficcionais “inovar tematicamente”, e, sim, trabalhar temas ditos
conservadores de forma inovadora. Essa inovação, por sua vez,
não implica ruptura total com o passado.
O tratamento inovador concedido à história narrada advém
de uma liberdade de expressão que, para fins de melhor efeito estilístico, vem marcada ora por uma escrita singular, ora
pela releitura de técnicas narrativas pregressas. Seja por meio
de arrojadas experimentações na mistura de gêneros, seja por
meio de exaustivos exercícios de escrita, a constante busca de
liberdade ficcional efetuada por Ruffato propicia o surgimento
de uma literatura problematizante e problematizadora capaz de
gerar liberdade em múltiplos sentidos.
Ao dialogar com seus antecessores, Luiz Ruffato recorrentemente apresenta pontos de convergência com os autores nacionais e internacionais que privilegiaram a narração conjugada
à descentralização do relato ficcional. Embora reconheça o valor do romance tradicional e de autores como Jorge Amado, Erico Verissimo, Hemingway, Dickens e Balzac, é com Machado
de Assis, Guimarães Rosa, Faulkner, Joyce e Proust que declara
ter maior identificação literária. Isso porque Ruffato prefere,
nos termos de Wayne Booth (1980), “mostrar” uma história em
vez de “contá-la” para, a partir desse tipo de narrativa, conse151
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guir tratar da questão do caos das cidades modernas de modo
mais complexo. Funciona como se, por meio de uma liberdade
e complexidade formal, pudesse representar com olhares múltiplos cidades eloquentes como Rio de Janeiro e São Paulo.
Sob essa perspectiva, tem-se, na escrita caleidoscópica amplamente empregada por Ruffato, entre outros autores na contemporaneidade, um forte ponto de interseção entre o passado
e o contemporâneo. Graciliano Ramos explorou a composição
dos capítulos de livros aproximando-os da estrutura do conto,
em Vidas secas; Autran Dourado, em Ópera dos fantoches, aplicou
toda a diagramação da ópera, na elaboração de um romance
cuja estrutura se assemelhasse à dessa forma dramática; Luiz
Ruffato, por sua vez, explorou a questão dos gêneros e das formas narrativas, promovendo uma radicalização desse processo.
Em termos objetivos, em Eles eram muitos cavalos, algumas
formas do gênero narrativo (conto, romance) encontram-se
tão diluídas que o autor chega a propor uma nova classificação
para sua escrita: o romance-mosaico. Sob esse rótulo, estariam
justamente aqueles textos que, para alguns, integrariam um
conjunto de contos intensamente relacionados por um tópico
narrativo; mas, para outros, corresponderiam apenas a partes
de um romance fortemente fragmentado.
O diálogo com o passado, ao mesmo tempo que resgata
técnicas conhecidas, dessacraliza radicalmente a escrita do romance à medida que foge ao que Massaud Moisés (1982) define
como a seleção de algumas células de ação harmonizadas dentro de um conjunto e busca a coexistência de várias células paralelas sem hierarquização, desafiando a própria definição do
gênero literário. No caso do diálogo com Memórias sentimentais
de João Miramar, de Oswald de Andrade, a semelhança com a
voz pregressa justifica-se muito mais pelo texto telegráfico do
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que pelo tom parodístico, uma vez que, em Eles eram muitos cavalos, o pastiche cede lugar à estética do fragmentário ocupada do
desnudamento das crueldades sociais já banalizadas. Os quadros urbanos representados no livro estruturalmente se isolam
tanto quanto os indivíduos citadinos.
Embora não seja uma narrativa topocêntrica, o romance
apresenta a cidade de São Paulo como lugar de referência. Tal
abordagem não se esgota no fornecimento de contornos e dimensões espaciais; vai além, promovendo a humanização da
cidade que, para Gomes (1994), chega a figurar como personagem central.
De acordo com Santos, no século XX, o romance radicalizou seu caráter híbrido, “abrindo consideravelmente sua estrutura interna à invasão de vozes mais ou menos estranhas ao
seu repertório convencional” (SANTOS, 2001, p. 143). Na obra de
Ruffato em análise, a radicalização desse hibridismo decorre,
entre outros fatores, do aproveitamento de textos não ficcionais
que ora acontece por meio da reprodução integral de textos informativos extraídos do mundo real, ora concretiza-se a partir
de simulacros de textos não literários. Dentro dessa perspectiva, mesmo ciente de que um texto não ficcional, ao ser inserido
no corpo narrativo, torna-se tão imaginário quanto quaisquer
outros elementos da obra, é possível que o leitor continue sentindo o efeito da mistura de mundos (real e da ficção) provocado pelo emprego de certos princípios da técnica de colagem
praticada por Max Ernst em La femme 100 têtes (1929) e em Une
semaine de bonté (1939).
Enquanto Max Ernst promoveu a colagem por meio da inserção de recortes de velhos romances ilustrados do século XIX
em enciclopédias, Luiz Ruffato trabalhou mais moderadamente com o princípio da colagem, apresentando uma releitura da
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técnica: praticou a justaposição de diferentes tipos de textos
distintos não ficcionais e ficcionais.
Dessa forma, o autor é capaz de causar certo impacto, revitalizando o texto narrativo, sem causar prejuízo à fatura interna da obra, uma vez que tudo foi organizado pelo autor de
modo que não houvesse ruptura da harmonia do enredo na
narrativa, ou seja, foi estabelecido um diálogo temático entre o
conteúdo de tais textos incorporados ao mundo ficcional e os
demais elementos do enredo que compõem o livro.
No capítulo “31. Fé”, o texto do panfleto de Santo Expedito é reproduzido na íntegra, até mesmo o preço do milheiro
(R$38,00) aparece conforme a moeda vigente no Brasil. O título do capítulo contextualiza satisfatoriamente esse estilhaço de
real à medida que revela valores e costumes dos personagens
que transitam no romance.
Há outros capítulos que se destacam devido à estrutura discursiva extremamente concisa, como ocorre no 31, com a reprodução do panfleto. São textos que, imitando a estrutura de
textos não ficcionais, inserem-se no corpo do romance e causam impacto visual por aparecerem em forma de listas nominais. Há, por exemplo, capítulos compostos basicamente por
listas de objetos (livros, móveis e discos), bem como três capítulos em formato de listas nominais que integram uma série intitulada “Na ponta do dedo” (capítulos: “18. Na ponta do dedo
(1)”, “42. Na ponta do dedo (2)”, “65. Na ponta do dedo (3)”).
Em tais capítulos, encontramos uma estratégia literária de justaposição de palavras semelhante à empregada por Affonso
Romano de Sant’Anna no poema “A pesca” (1958), constituído
de uma relação de elementos ligados à pesca, e à utilizada por
Ricardo Ramos em seu conto “Circuito fechado” (1978), no qual
temos uma lista de elementos do cotidiano. Na verdade, Ruffa154
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to parte de caminhos conhecidos para construir uma escrita
ainda mais concisa e impactante.
Em várias partes desses capítulos de Eles eram muitos cavalos,
a sequência de palavras e frases, à primeira vista, não parece ter
uma articulação estruturada, uma articulação sintática: assemelha-se a um amontoado aleatório de vocábulos. No entanto, estão plenas de uma intenção e competência comunicativa.
Em geral, o que ocorre é uma conectividade estabelecida entre
as partes não pelo uso de conectivos explicitadores de tempo,
causa, efeito etc. (palavras e expressões do tipo quando, porque,
assim sendo), mas sim, uma ligação semântica entre as ideias
expressas nas frases.
O conhecimento de mundo arquivado na memória do receptor parece ser ativado por um título ou pelo sentido de uma
última sequência ou ainda por uma disposição das palavras.
Pode haver, dessa forma, um indício textual qualquer capaz de
indicar o tópico discutido e levar o leitor a recuperar textualidade na aparente aleatoriedade vocabular e, portanto, à construção de um mundo textual.
Na série “Na ponta do dedo”, a lista de profissões do primeiro capítulo exibe uma breve representação da busca por um lugar no mercado de trabalho. Nesse caso, além do título, houve
outro significativo indício textual: a interjeição Ah!. O texto é
composto por uma lista de 45 nomes de profissão que, ao seu
final, o leitor pode identificar como uma espécie de classificados de empregos. Os nomes são dispostos secamente até que,
no 43º- nome, tem-se o seguinte:
MAÇARIQUEIRO – (Ah!)
MAÇARIQUEIRO – 1º- grau até a 8ª- série incompleta, experiência de 24 meses, idade entre 28 e 50 anos
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MAÇARIQUEIRO – (soldador), escolaridade não exigida, experiência 12 meses, idade entre 25 e 45 anos
(RUFFATO, 2005, pp. 40-41).1
A partir da interjeição e do detalhamento do cargo, a memória do leitor é ativada, tornando possível que ele junte essa
informação ao título e visualize um cidadão citadino, da classe
operária, em busca de um emprego. Isso não só confere movimento ao texto como grifa a dificuldade financeira enfrentada
por vários brasileiros.
Em termos gráficos, se é verdade que comumente uma lista
transmite uma ideia de passividade, de apresentação estática
dos elementos, também é verdade que, com a sutil escolha do
título e uma interjeição colocada no tempo certo, Ruffato destruiu as amarras textuais típicas de uma listagem, conferindo
movimento ao texto. Por meio desse recurso linguístico, a imagem que eclode do texto é a dos dedos percorrendo os itens dos
classificados mais a alegria de um trabalhador diante de uma
nova esperança de recolocação no mercado de trabalho.
Essa estrutura concisa confere vitalidade ao relato, pois, em
vez de apresentar comentários sobre problemas sociais, o texto
exibe personagens vivendo as mazelas sociais. O dinamismo
desse relato ficcional está, de certa forma, atrelado à forte aproximação entre alguns elementos de sua escrita e as vanguardas
do princípio do século XX, tais como o futurismo plástico que,
nos moldes de Filippo Marinetti (1909), viabiliza a construção
do texto literário por meio de técnicas de montagens e valorização do recurso gráfico na composição de imagens urbanas
mais dinâmicas.
1 As citações do livro Eles eram muitos cavalos tentaram, ao máximo, respeitar a formatação
e tipologia originais.
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O romance-mosaico de Ruffato apresenta alta incidência da
parataxe, o que, obviamente, provoca uma significativa diminuição do uso de conectores, como preposições e/ou conjunções.
As falas dos personagens não aparecem aprisionadas na página e
nela podemos enxergar movimentos. A própria exploração dos
tipos de fontes (para os caracteres de escrita) e a disposição do
texto na mancha gráfica promovem um simultaneísmo de ações,
pensamentos e cenas que nos remete à apologia à liberdade de
expressão já preconizada pelos artistas modernistas.
A escrita do romance faz do negrito, do sublinhado e do itálico ferramentas polivalentes. Em alguns contextos, esses três
recursos grafovisuais servem para marcar a voz narrativa; em
outros, ora delimitam as instâncias narrativas, ora sinalizam
a colagem. Além disso, ainda há a possibilidade desses recursos grafovisuais assumirem o papel funcional de pôr em relevo
o estado psíquico do personagem. No capítulo “16. assim:”,
a discussão de uma família sobre a situação socioeconômica do
país é transmitida desta maneira:
não sou insensível à questão social irreconhecível o centro
da cidade hordas de camelôs batedores de carteira homenssanduíche cheiro de urina cheiro de óleo saturado cheiro de
a mão os cabelos ralos percorre (minha mãe punha luvas, chapéu, salto alto para passear no viaduto do chá,
eu, menino, pequenininho mesmo, corria na) este é o
país do futuro? Deus é brasileiro? Onde ontem um manancial
hoje uma favela onde ontem uma escola hoje uma cadeia onde
ontem um prédio do começo do século hoje uns três dormitórios
suíte setenta metros quadrados (RUFFATO, 2005, pp. 36-37).
Os caracteres e os recursos de destaque tipográfico são tão
variados quanto diversificadas são as linhas de raciocínio pre157
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sentes no texto. O negrito indica a memória enquanto as fontes Times New Roman e Arial acrescidas das formas redonda ou
itálica distinguem constatações do presente e reflexões sobre
o futuro.
Em Eles eram muitos cavalos, paralelamente ao diálogo com
os escritores já consagrados no cânone literário, encontramos
um jogo linguístico que, antes de estar vinculado à pura experimentação, visa ao despertar do leitor para as informações
oblíquas do texto. Dentro dessa perspectiva, o convencional
é colocado em xeque para que do confronto entre a ruptura e a
tradição nasça a expressividade do discurso.
No caso específico da pontuação, dizer que o autor renega
a norma padrão seria uma afirmação simplista sobre o assunto.
Na maior parte dos casos, o que ocorre é uma oscilação entre
a reprodução da norma padrão e uma utilização personalizada
de certas regras preconizadas pela norma padrão vigente. Muitas vezes, a variação está circunscrita aos tipos de sinais empregados, não afetando os parâmetros sintáticos, prosódicos
e estilísticos transmitidos pela escola.
Raros são os fragmentos desprovidos de pontuação. Em
verdade, quando se analisa a pontuação praticada por Ruffato,
deve-se ter bem clara a diferença entre os sistemas de pontuação e os elementos que concretizam seus princípios, isto é, os
sinais gráficos em si. O sistema de pontuação da língua portuguesa é pautado em princípios prosódicos e sintáticos e, para
marcar as indicações desse sistema, dispomos de uma série de
sinais. Se, sob vigência de um princípio prosódico, o objetivo
for marcar uma pausa forte, é empregada a vírgula; entretanto, se for necessário, sob orientação de princípios sintáticos,
marcar um aposto enumerativo, são empregados os dois pontos,
e assim por diante.
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Tanto o sistema de pontuação atual quanto os sinais que
o concretizam obviamente distinguem-se daqueles que predominavam em séculos anteriores. No século XVIII, por exemplo,
o espaço vazio, o recuo de linha à esquerda ou ainda um intervalo na mesma linha figuravam como sinais organizadores de
sentenças, ainda que sinais não gráficos, ou seja, sinais visuais
feitos pela ausência de tinta. Nesse sentido, um espaço vazio
pode funcionar como um ponto continuativo e separar o fim e
o início de duas sentenças sintaticamente completas sequenciadas. Identificam-se, portanto, duas formas (gráfica e não gráfica) de marcar o mesmo papel funcional sob o mesmo sistema.
Essas distintas marcas não eram gratuitas, inclusive porque,
segundo Roger Laufer (apud: MARQUILHAS, 1991), a pontuação
gramatical tinha uma função estético-visual.
Nesse sentido, em face da pontuação existente no romancemosaico, o primeiro cuidado que se deve ter é o de separar
o respeito ao sistema de pontuação vigente somado ao emprego
de sinais não convencionais (deslocamento na página, itálicos,
disposição entrecortada de frases na mancha gráfica) do desrespeito ao sistema de pontuação vigente propriamente dito.
Muitas vezes, a experimentação ficcional do autor, no lugar de
promover uma ruptura com as regras vigentes, faz uma leitura
criativa da mesma. Há casos em que a pontuação expressiva
(ponto de interrogação, ponto de exclamação, reticências), por si
só, satisfaz o projeto literário do autor, não ocorrendo nenhum
desvio da norma padrão. Como também há casos em que, embora a mancha gráfica induza à conclusão de ruptura com os
princípios sintáticos do atual sistema de pontuação, a leitura
corrida dos termos revela uma forte obediência aos mesmos.
O deslocamento espacial dos termos, cumprindo o papel da
vírgula para marcar enumerações, aparece frequentemente no
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romance e, em raros casos, o autor soma à vírgula o deslocamento. De modo predominante, ele acaba substituindo o sinal
convencional pela inovação da mancha gráfica irregular:
[...] ouve o rangido do portão
o motor do Chevette
cães que latem
passos na calçada
vozes
um ônibus que arranca
o rangido do portão
o motor do Chevette
vozes [...]
(RUFFATO, op. cit., p. 27)
Nessa organização hierarquizada dos termos na página, por
meio de deslocamentos espaciais, imprime-se uma função estético-visual à pontuação. Em outros contextos, quando tenta
reproduzir as marcas da língua falada, o autor emprega reticências e afins, tal como se estivesse fazendo uma transcrição
de entrevistas. Dessa maneira, mostra ao leitor que os recursos
gráficos disponíveis na língua escrita estão a serviço da obra de
arte, e não o contrário. Ele se permite, até mesmo, importar regras ou sinais, se isso der mais vigor ao enunciado. É o que faz,
por exemplo, com algumas sentenças interrogativas, ao registrá-las, aproveitando-se de um traço do sistema de pontuação
da língua espanhola. No capítulo “21. Ele)”, o empregado de
escritório, desassossegado, inicia uma série de questionamentos sobre o dia:
?o vento embalou as nuvens no céu ou elas regaram mansamente o asfalto?
?um motoboy se esparramou na faixa-de-pedestre?
?um executivo espancou um menino-de-rua com laptop?
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?um cobrador impediu um assalto?
?O mundo, o mundo acabou? (idem, p. 47)
A convenção espanhola de marcar as interrogativas duplamente (no início e no final da frase) foi aplicada pelo autor, mas o sinal de interrogação colocado no início da frase
não foi invertido tal como ocorre no castelhano. No lugar de
¿, manteve-se o ?. Este dado só vem ratificar a hipótese de que,
para o autor, a noção de certo e errado, ou mesmo de ruptura
e tradição, não se sobrepõe ao efeito estilístico. No fragmento
em análise, a dupla marcação de interrogativas não sinaliza um
questionamento corriqueiro. A marcação forte combina com
o grau de inquietude do empregado de escritório que, frustrado
com a inexistência de fatos que desestabilizem o seu cotidiano,
ao verificar que o mundo não acabou e as posturas sociais continuam as de sempre, volta ao microcomputador e, enredado em
seu dia a dia massificador, “atraca-se ao asdfgçlkh” (idem, p. 48).
O espaço e sua simbologia
no romance-mosaico
A partir de uma sequência não fechada de setenta histórias,
a obra capta um olhar múltiplo e distanciado e, tal como grifa
Renato Cordeiro Gomes, constrói a cidade a partir do relato.
Alguns pensamentos dos personagens são como projeções de
películas e, somados à diversidade de gêneros e formas narrativas, privilegiam o aproveitamento de duas forças do cinema
moderno no que diz respeito à ilusão da reprodução da vida tal
como ela é: sua capacidade de captar o objeto em movimento e
a visão do mesmo em profundidade.
De acordo com Jean-Claude Bernardet, “a história do cinema é, em grande parte, a luta constante para manter ocultos os
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aspectos artificiais do cinema e para sustentar a impressão de
realidade” (2000, p. 20). Nessa obra, há o mesmo tipo de luta, só
que, nesse caso, os aspectos artificiais a serem ocultados estão
ligados à figura do narrador e às clássicas estratégias ficcionais
de organização das partes de um romance.
No romance-mosaico de Ruffato, via de regra, há uma tentativa de minimizar uma das limitações da descrição: a impossibilidade de representar simultaneamente os objetos que, no
espaço, se encontram justapostos. Em nome disso, surge uma
intensa relação entre espaço, personagem e narrador, resultante do emprego das três ambientações postuladas por Osman
Lins (1976): a reflexa – aquela em que a voz narrativa se encontra em terceira pessoa, mas o ponto de vista expresso é o
de um personagem cujo olhar aparece refletido na descrição;
a dissimulada – em que o narrador se aproveita do caminhar do
personagem para exibir o espaço no qual o mesmo se encontra;
e a franca – a que, realizada conforme os moldes tradicionais,
está impregnada de simbologia.
O emprego de tais estratégias não só aproxima literatura e
cinema, no tocante à simultaneidade de funções como contar
e mostrar, como também é capaz de tornar o relato polifônico. O capítulo “4. A caminho”, além de ser o primeiro dotado
de um enredo ficcional com estrutura semelhante à do conto,
contém uma liberdade formal que perpassa toda a obra. Conforme o leitor efetua sua leitura, fica cada vez mais forte a sensação de que os capítulos do livro figuram como partes móveis,
sem ordem fixa, de um grande painel de imagens da cidade de
São Paulo. Paralelamente a isso, por meio dos vários estilhaços de real, verifica-se quanto a influência do cinema moderno
se faz presente na obra, principalmente, porque não há uma
voz panfletária a apontar as mazelas sociais de São Paulo. Em
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vez disso, há vozes diversas (de crianças, mães, trabalhadores,
assaltantes, empresários etc.) que, por deslocamento, sugerem
ao leitor que a ligação entre os personagens desse mosaico, tal
como destaca Gomes (2004), deve-se basicamente a três fatores:
o medo, a violência e a cidade de São Paulo.
Por meio da ambientação reflexa, o espaço descrito traz à
tona o que a personagem pensa a respeito do local focalizado.
Dentro do ônibus, muito incomodada com a conduta do motorista e as condições da viagem, a mãe não consegue dormir,
e a descrição feita pelo narrador reflete todo o seu incômodo:
[...] o empestado ar de janelas fechadas, vidros suados, no
soalho, esparramados, papéis de bala, de bolacha, guardanapos, sacolas, palitos de picolé, copos descartáveis, garrafas plásticas, farelo de biscoito-de-polvilho, de pão, de broa,
farinha, restos de comida, pé de sapatinho de crochê azulmenino, noitedia, E gente inda consegue dormir, meu Deus,
a bocona jacaroa, até ronca!, até baba!, comé que?, embaralham-se distintas paisagens, cidades enoooormes, cidadezinha que, zum!, passou, (RUFFATO, op. cit, p. 16).
Em outras situações, a personagem não apresenta alto grau
de criticidade a respeito de seu contexto, mas empresta o seu
caminhar para que, via ambientação dissimulada, sem suspender o fio narrativo, o narrador apresente as várias gentes e espaços da cidade de São Paulo. É o que ocorre, por exemplo,
nos capítulos “21. ele)” e “22. (ela”. No primeiro, o caminhar
entediado do funcionário do escritório torna plausível e harmônica a inserção de vários elementos tipicamente paulistanos
(multidão da avenida Faria de Lima, motoboy esparramado na
faixa de pedestres etc.) enquanto no segundo, a menina “Tão
leve em seus dezesseis anos [...] levita o tênis milímetros das
pedras portuguesas que a Rua Direita forram” e, conforme dá
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continuidade ao seu caminhar, a partir dele vão emergindo no
texto os ônibus nas praças da Sé e do Patriarca, o Viaduto do
Chá, a encruzilhada das ruas Conselheiro Crispiniano com
a Vinte e Quatro de Maio, o Largo do Paissandu, ou seja, toda a
vida do Centro daquela grande metrópole.
Em Eles eram muitos cavalos, o ato de narrar imprime um
sentido ao mundo: os graves problemas sociais que oprimem
os habitantes de São Paulo são abordados de modo a tornar
a dor inédita e não uma simples reprodução. Segundo Schøllhammer:
Uma das teses mais divulgadas sobre nosso tempo é a de que
estamos passando por uma época pós-moderna, cuja característica é um questionamento radical da realidade e, sobretudo, da sua natureza de construção através de imagens e
simulações produzidas pelos meios de comunicação e pela
tecnologia em geral (2002, p. 76).
Citando Hal Foster (1994), Karl Erik Schøllhammer alerta
para o fato de a contemporaneidade estar diante de uma “volta
ao real”. Seria algo distinto do realismo histórico do século XIX,
do realismo social da década de 1930 ou do hiper-realismo do
movimento pop da década de 1970. Para o crítico, existe um
“realismo afetivo”. Em termos mais objetivos:
[...] é possível analisar literatura e arte contemporâneas
como expressão de uma estratégia alternativa de representação, em que a tendência experimental modernista de criar
formas heterogêneas e híbridas entre diversos regimes expressivos – literatura, arte, fotografia, cinema etc. – visa a
ressaltar uma concretude afetiva do signo até o limite de sua
representabilidade (idem, p. 78).
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Sob esse ponto de vista, não basta representar; é preciso trabalhar a linguagem literária, para explorar as fronteiras convencionais entre ficção e realidade, obtendo-se um efeito afetivo na criação dos efeitos de realidade. Como a imagem ganhou
força na cultura do fim do século, sobretudo em função de seu
poder sobre as emoções coletivas, a linguagem pictórica tem
sido amplamente empregada nas mais diversas formas de arte
(pintura, fotografia, cinema, dança, teatro, literatura).
Na literatura, o hibridismo textual, muitas vezes, possibilita a incorporação de estratégias de representação da realidade
típicas do cinema e demais artes visuais, o que estimula o lado
sensorial e afetivo do leitor. No caso de Ruffato, mais do que falar sobre São Paulo, ele expõe imagens da cidade, o que amplia
a sensibilidade do leitor para entender o sofrimento dos reféns
dessa violenta metrópole.
Luiz Ruffato apresenta um convite ficcional que, longe de
renegar vozes pregressas de nossa historiografia, promove uma
releitura crítica de estratégias já empregadas por grandes nomes
como Graciliano Ramos, Autran Dourado, Oswald de Andrade
e Osman Lins, e experimenta singulares caminhos ficcionais.
Produz um discurso fragmentado, incorporando modernas
técnicas cinematográficas para representar as máscaras do cotidiano. Seu romance-mosaico liberta o texto dos significados
preestabelecidos para problematizar as fronteiras entre a ficção
e a realidade e, desse modo, convidar o leitor a um repensar de
seu papel em meio ao caos urbano. Redimensiona-se, assim,
o entrelugar entre real e ficcional, um lugar que, segundo Silviano Santiago, embora pareça estar vazio, encontra-se marcado
pela tensão entre dois estados, duas concepções. Em Eles eram
muitos cavalos, esse entrelugar constitui-se entre a inovação contemporânea e o diálogo com a tradição; entre a representação
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de uma cidade e a invenção de histórias transcorridas em São
Paulo; entre a violência da metrópole e a ternura inerente aos
seres humanos. Elementos singularmente trabalhados em um
engenhoso romance-mosaico.
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OS SOfRIMENTOS dOS JOvENS PROTAgONISTAS
EM TRêS ROMANcES dE dANIEl gAlER A
Leila Lehnen
Este ensaio propõe uma leitura dos romances de Daniel
Galera pelo viés do romance de formação. É nosso objetivo
examinar os três textos identificando os pontos de convergência destes com o gênero do romance de formação e como Galera transforma este gênero ao trazer a narrativa ao século XXI.
O ensaio tentará responder à pergunta se é possível falarmos
de romance de formação na contemporaneidade, ou se, devido a transformações como a fragmentação de moldes sociais
e culturais (família, cultura nacional, o conceito de “literatura”,
em especial, o da “literatura nacional”), o romance de formação acaba por fracassar. Ou seja, há realmente um processo de
“amadurecimento” dos protagonistas, ou este desenvolvimento
pessoal é, nos dias de hoje, um projeto inevitavelmente incompleto? Os três textos serão discutidos como exemplos ou desvios
do romance de formação, e se fará tanto uma análise de cada
um em separado como um estudo comparativo entre os três.
O romance de formação tradicionalmente narra a trajetória
de formação ou de amadurecimento do protagonista. No entanto, conforme Mikail Bakhtin (1986), este processo nem sempre equivale à transformação do personagem principal. Em vez
disso, o Bildungsroman narra como o protagonista se encontra,
indicando a solidificação da sua personalidade em vez de sua
modificação.
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Dentro do esquema narrativo do Bildungsroman, o projeto
de formação muitas vezes inicia-se com um evento traumático
– a perda de um amor, a morte de alguém próximo, o desterro. Ao longo do romance de formação, o protagonista passa
por diversas experiências que contribuem para sua maturação.
Ao final da narrativa, temos um sujeito pronto para enfrentar
a vida como um adulto, ou seja, o protagonista é capaz de assumir plena responsabilidade pelos seus atos. O amadurecimento
implica, em geral, tanto o reconhecimento quanto a superação
do evento traumático que desencadeou a busca, ou seja, o processo de formação. Por enfocar o processo de maturação, em
geral, o romance de formação se centra em personagens jovens,
muitas vezes adolescentes que lutam com os dilemas de crescer e de se posicionar em um mundo adulto que eles rejeitam,
mas a que também querem pertencer. A aceitação – frequentemente melancólica – do contexto sociocultural em que vivem é
outra característica do romance de formação. Ou seja, os protagonistas se “moldam” ao seu entorno, suavizando os contornos
agudos de sua personalidade e suas crenças pelo choque com
um meio que lhes parece por vezes incompreensível, por vezes hostil. Tanto Karl Morgenstern (1820), estudioso que criou
a designação Bildungsroman (apud BOES, 2009), quanto Bakhtin
(1986) chamam atenção para a dimensão social do romance
de formação, já que ele estabelece uma relação dialógica entre
o protagonista e seu entorno. Assim sendo, o Bildungsroman
pode abordar as condições sociais, políticas e culturais que determinam o desenvolvimento do seu personagem principal.
Nos três romances de Daniel Galera, Até o dia em que o cão
morreu (2007), Mãos de cavalo (2006) e Cordilheira (2008), a narrativa se centra em personagens que passam por processos, ainda
que distintos, de (trans)formação após eventos impactantes.
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Desta forma, a obra ficcional de Galera parece seguir os parâmetros do romance de formação, embora adapte este gênero
ao século XXI. Seguindo os moldes de romances de formação
canônicos, como Wilhem Meisters Lehrjahre (1795-96), de Johann
Wolfgang von Goethe, os personagens de Galera são sujeitos
que refletem o contexto atual, de modo que seus dilemas de
formação também ecoam problemáticas contemporâneas. Estes temas aparecem combinados com os tropos tradicionais do
romance de formação (como o trauma, a solidão, a crise existencial). Os romances em questão abordam a influência da cultura de massa (Mãos de cavalo), a desorientação pessoal e social
(Até o dia em que o cão morreu) e o amor e a ficção em tempos
globais (Cordilheira).
A solidão como escola
Até o dia em que o cão morreu é o segundo romance de Daniel
Galera. Originalmente publicado pela editora Livros do Mal,
fundada por Galera com os escritores Guilherme Pilla e Daniel
Pellizari, o romance foi relançado em 2007 pela Companhia
das Letras, após o sucesso do terceiro livro do autor, Mãos de
cavalo (2006). Os dois textos compartem algumas semelhanças:
o mesmo espaço narrativo (a cidade de Porto Alegre), um linguajar que reflete esta localização, com expressões “gaúchas”
como “guria”, “bah”, e o uso constante do pronome pessoal “tu”.
Até o dia em que o cão morreu assim como Mãos de cavalo têm
protagonistas que são “jovens adultos” e uma narrativa que
evoca um isolamento tanto voluntário como melancólico. Os
dois romances também estão escritos numa linguagem enxuta,
ainda que não sem poesia. No entanto, o lirismo de Até o dia em
que o cão morreu evoca o abjeto, com descrições repetidas de
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ressacas alcoólicas e cansaços que vão além do âmbito físico.
Mãos de cavalo, por outro lado, transforma a cultura de massa
(revistas em quadrinhos, filmes de ação, videogames) em linguagem literária (CUNHA, 2010).
Até o dia em que o cão morreu narra o amadurecimento do
protagonista anônimo. A história é contada em primeira pessoa, a partir do ponto de vista do personagem principal, um
jovem porto-alegrense que, após formar-se em Letras, muda-se
para um apartamento no Centro da cidade com “janelas amplas demais” e uma “vista dos dezessete andares que ia longe
demais. Todos os anos anteriores pareciam uma brincadeira
idiota, e não havia nenhuma ideia que me estimulasse pro futuro” (GALERA, 2007, p. 34). Este panorama, em vez de estimular
o protagonista, põe em relevo sua incapacidade não somente
de lidar com o futuro, mas também com o presente.
A perspectiva em primeira pessoa do romance poderia
criar um tom intimista, que permitisse ao leitor compartilhar
as emoções do jovem narrador, identificando-se com ele (uma
das características do romance de formação tradicional). Isto se
dá de fato, mas apenas até certo ponto. Um das características
centrais do romance é justamente a negação de qualquer tipo
de intimidade por parte do protagonista. Ele busca justamente
o isolamento, um estado vegetativo que o afaste de qualquer interação social. Este desejo reflete uma recusa a entrar no mundo “adulto”, ou seja, um mundo onde o protagonista terá de
assumir responsabilidades tanto materiais como emocionais.
No entanto, embora o protagonista não queira se aproximar
de ninguém e efetivamente busque a solidão, ele acaba se envolvendo com três seres: o cachorro do título, encontrado “quase morto de fome na Praça da Alfândega, numa madrugada de
outono fria pra cacete” (idem, p. 11); Marcela, uma modelo que
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pouco a pouco vai penetrando na sua intimidade; Seu Elomar,
o porteiro do prédio onde vive o jovem. Como ele, Marcela e
o cachorro (que eventualmente recebe o nome de Churras) são
seres à deriva, em busca de algo – seja comida e conforto, como
no caso do cão, seja afeto humano, no caso de Marcela. Já Seu
Elomar forma uma espécie de núcleo que, se não chega a amalgamar os dois humanos e o animal, ao menos os aproxima.
O romance começa quase ao final da história, com um sonho do protagonista após a morte do cachorro – o primeiro
em sua vida do qual ele se lembra. O sonho revela uma espécie de partenogênese que gera “dois sujeitos idênticos a mim,
e nenhum dos dois sou eu” (idem, p. 9). A ideia de alienação que
transparece na imagem é recorrente ao longo do texto. Ou seja,
o protagonista é um sujeito que não consegue e – pelo menos
à primeira vista – não quer estabelecer nenhum vínculo emocional e/ou social.
Diferentemente do que ocorre no romance de formação tradicional, não há um evento traumático em especial que cause
este retraimento no protagonista. A razão que o leva a abandonar a casa dos pais e se mudar para o apartamento no decadente Centro porto-alegrense é simplesmente o trauma de se
tornar adulto. Sua solidão é, assim, uma forma de tentar deter
este processo.
O começo do romance, o estranhamento do sonho, indica o final do percurso existencial: ao tomar consciência de si
como “outro”, ao aceitar a presença do estranho em sua vida,
o protagonista finalmente amadurece. Até o dia em que o cão
morreu tem uma estrutura semicircular. O começo e o fim ocorrem no presente e emolduram o corpo do romance, composto
das lembranças dos meses em que o protagonista viveu quase sozinho no seu apartamento, compartindo-o somente com
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o cão e, parcialmente, com Marcela. A narrativa memorialista
se centra no desenvolvimento do relacionamento entre o protagonista e a modelo, e nos seus esforços para que a relação não
se transforme em algo relevante:
Por um instante imaginei como seria se ela viesse morar comigo, mas rejeitei a ideia rapidamente. Mesmo com as visitas
ocasionais, era comum eu acordar perto do meio-dia depois
de uma noite inteira de fodança e desejar profundamente que ela não estivesse do meu lado, dormindo na minha
cama. Não é que não gostasse dela. Eu gostava, até demais.
Mas a ideia de que pudéssemos ter um relacionamento me
causava repulsa (idem, p. 44).
A palavra “repulsa” sugere a transformação de Marcela em
uma espécie de ser abjeto. Segundo a psicanalista francesa Julia
Kristeva (1982), o abjeto é aquilo que é ao mesmo tempo interno e externo a nós. Exemplos seriam secreções corporais como
sangue, pus, vômito etc. Marcela, que no momento descrito
acima significativamente está na cama do protagonista, com
a garganta inflamada (“a boca expelindo um hálito de garganta
inflamada” [idem, p. 44]), se transforma gradualmente neste ser
abjeto. Ela é simultaneamente aquilo que está dentro do protagonista – os sentimentos de amor, desejo e proximidade – e o
que ele quer expelir para não se “contaminar”. De certo modo,
ela é a forma que brota do corpo do protagonista no seu sonho:
um ser ao mesmo tempo íntimo e estranho.
A questão que surge do romance é por que o protagonista se opõe tanto a entrar no mundo adulto. Por um lado, estão as responsabilidades concretas que esta situação acarreta:
a necessidade de encontrar um emprego para pagar as contas, a
expectativa de uma família e de “projetos” de vida. Por outro,
o texto também sugere que o amadurecimento é sinônimo de
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desilusão: as expectativas em relação à vida, até então abertas,
têm de ser “aparadas” segundo as circunstâncias da vida “real”,
transformando-se em limitações. O protagonista de Até o dia
em que o cão morreu encontra-se entre esses dois polos, uma posição que também ocupa o herói de Mãos de cavalo, Hermano.
Até o dia em que o cão morreu não reproduz o arco do Bildungsroman tradicional, que vai do inconformismo inicial do
protagonista a um conformismo que corresponde à maturidade burguesa. Ainda que as expectativas de “independência” do
protagonista desmoronem por falta de financiamento, ou seja,
ele tem de voltar a viver com os pais, sua solidão não diminui. Mesmo na casa dos pais ele interage principalmente com
o cachorro: “Era a companhia ideal para mim. Total ausência
de palavras. Apenas alguns olhares cúmplices, nada mais. Assim como ele, eu só queria me adaptar à civilização à medida
que isso fosse necessário à minha sobrevivência” (idem, p. 90).
Suas palavras – e a comparação que ele estabelece entre si e
o animal, de certa forma erodindo sua própria humanidade –
não expressam desapontamento, mas refletem o tédio que o caracteriza, um sentimento de que, acabada a juventude, a idade
adulta já não oferece nada significativo, nem mesmo a possibilidade da tragédia. Para ele, resta apenas o cansaço existencial.
Sente-se prematuramente “velho”, “no sentido de que era tarde
demais para morrer jovem” (idem, p. 91). “Morrer jovem” seria
evitar a ruína dos sonhos e ideais da juventude. A morte antes
da maturidade também tem um sentido romântico, o sacrifício
de uma vida antes que ela seja contaminada pela desilusão da
fase adulta. Este desejo malogrado de um sentido heroico ou
trágico se desvanece frente a uma realidade que exige a rotina anódina em vez dos gestos grandiosos. No entanto, apesar
do tom melancólico que predomina em Até o dia em que o cão
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morreu, o capítulo final do romance abre a possibilidade de que
talvez exista algo além dessa rotina. Marcela, que havia desaparecido da vida do jovem por causa de um câncer fulminante,
milagrosamente se recupera e reaparece convidando-o para
recomeçar a relação e a vida em Nova York. A proposta insinua tanto uma fuga, como um novo começo, uma aventura. No
entanto, o convite também indica que os laços que atam Marcela e, por extensão, o protagonista à sua realidade são tênues.
Para ela, “isolado ou mergulhado numa multidão, no trânsito,
no trabalho, a solidão é sempre a mesma, com exceção daquelas
poucas, raras pessoas em cuja presença a solidão some, mesmo
que não seja o tempo todo” (idem, p. 98). Ao final, o leitor fica
sem saber a resposta do protagonista ao convite de Marcela.
A possibilidade de uma transformação, de uma conexão afetiva
fica em aberto. Como nos outros dois romances de Galera, Até
o dia em que o cão morreu enfatiza a solidão do sujeito contemporâneo. A viagem de formação descrita nos livros, no entanto,
não necessariamente leva o protagonista a se integrar a uma
comunidade (mesmo que esta seja somente uma comunidade
a dois). A solidão que se delineia no início de Até o dia em que
o cão morreu, Mãos de cavalo e Cordilheira continua a ser uma
sombra que paira sobre o ponto final das narrativas.
Excursões solitárias: à procura do “eu”
Mãos de cavalo, terceiro romance de Daniel Galera, continua
a temática do Bildungsroman que o autor desenvolve em Até
o dia em que o cão morreu. De certa forma, Mãos de cavalo se encaixa melhor na definição tradicional do romance de formação
do que Até o dia em que o cão morreu, pois a narrativa segue o
personagem principal desde a adolescência até a idade adulta.
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Trata-se da história de Hermano, o “Mãos de cavalo”, um jovem
e bem-sucedido cirurgião plástico que, ao longo da narrativa,
confronta-se com um evento traumático de seu passado. Este
processo leva-o à reflexão de quem é e por que é quem é, reflexão esta que equivale a um amadurecimento emocional, interrompido pelo trauma na adolescência.
O livro está dividido em dois segmentos: o presente, que engloba um período de duas horas (das 6:08 até as 8:04 de uma
manhã de sábado), durante o qual acompanhamos o protagonista do romance no seu trajeto motorizado pelas ruas semidesertas de uma Porto Alegre matinal. Paralelamente temos
o relato que enfoca o “O Ciclista Urbano”, capítulo que abre o
texto. À medida que avançamos na leitura, percebemos que
o “Ciclista Urbano”, menino de dez anos que navega com “sua
antiquada porém feroz Caloi Cross aro 20 com freio de pé,
branca com adesivos de enfeite azuis, com pneus-balão vermelhos de garras salientes no lugar dos pretos e finos originais de
fábrica, pouco adequados à velocidade e ao terreno do ciclismo
urbano de elite” (GALERA, 2006, p. 10), pelas ruas suburbanas de
um bairro de classe média remediada de Porto Alegre, e o jovem
cirurgião plástico que circula pelas avenidas da capital gaúcha
em um Mitsubishi Pajero TR4 são a mesma pessoa. O romance
intercala episódios centrados no Hermano de trinta anos com
outros que o enfocam quando tinha dez e quinze anos.
A alternância dos capítulos, divididos entre passado e presente, delineia a imagem de um Hermano profundamente solitário, apesar do sucesso profissional, de estar casado e ter uma
filha de dois anos e meio. O isolamento emocional tem sua raiz
na adolescência, quando ele presencia covardemente o assassinato de um amigo, Bonobo, por uma turma de adolescentes vizinhos do bairro suburbano em que moram: a Esplanada. Que
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o trauma deixou cicatrizes duradouras fica claro no tempo verbal usado para descrever a juventude de Hermano. O romance
está narrado integralmente no presente do indicativo, aludindo
a uma fluidez entre passado e presente.
Como aponta João Manuel dos Santos Cunha, Mãos de cavalo dialoga ativamente com os meios massivos de comunicação.
Além de eles constituírem uma espécie de “substrato cultural”
que compõe a imaginação principalmente do jovem Mãos de
cavalo, a própria linguagem está permeada por pontos de vista
que emulam a câmera cinematográfica (CUNHA, 2010, p. 210). O
romance abre imitando tal linguagem. Todo o capítulo inicial
(“O Ciclista Urbano”) está escrito na terceira pessoa do singular, como se fosse uma voz em off descrevendo detalhadamente
o caminho percorrido pelo Ciclista Urbano, enquanto momentos dramáticos se assemelham a cenas de filmes de ação. Pela
descrição, o ciclista se transforma no herói do filme que está
sendo contado. Só quase ao final do capítulo – quando o Ciclista Urbano cai dramaticamente da bicicleta –, o leitor descobre
que a voz em off ocorre na mente de um menino. Após a queda,
a narrativa em terceira pessoa é interrompida por uma voz na
segunda pessoa do singular que intercepta o Ciclista Urbano:
“Que tombo, gurizinho. Não chora, não chora, deixa eu ver. [...]
Deixa a vó ver. Não é nada” (GALERA, op. cit., p. 17). A interrupção desmistifica o personagem e cria uma abertura no relato
que nos deixa entrever a história subjacente. A técnica ressalta a discrepância entre o desejo do protagonista de se mostrar
invulnerável às vicissitudes físicas e emocionais e sua inerente
fragilidade (a física sendo consequência da emocional).
Esta dialética é o fio condutor do romance e se alimenta de
imagens dos meios massivos de comunicação. Personagens
de gibis, como Spectreman ou Elektra, e do acervo cinematográ176
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fico de Hollywood (como Mad Max, herói do filme homônimo) servem de modelo para a “composição” do jovem Hermano. No entanto, o romance aponta que a tragédia de Hermano
está justamente no fato de estes personagens não passarem de
ficção que ele – em última instância – não consegue adaptar à
sua realidade. Assim, por exemplo, após escapar covardemente
de uma briga com Bonobo, Hermano se tranca no banheiro de
casa e meticulosamente pinta o rosto para imitar os efeitos do
combate não ocorrido:
O herói sangrento era agora ele mesmo, estampado na superfície salpicada de pasta de dente do espelho. [...] Cada vez que
levava um golpe no rosto, simulava o impacto jogando a cabeça com força para o lado [...] As gotas rubras caíam na pia
e evocavam o sangue verdadeiro que tinha manchado aquela
mesma porcelana branca em outras ocasiões (idem, p. 45).
A “maquiagem” improvisada do menino – simulacro de
feridas que Hermano evitou, mas que ele também deseja – se
transforma numa pintura de guerra que serve para exorcizar
a própria covardia. O rosto pintado, ao mesmo tempo que
aproxima o menino dos heróis dos meios de comunicação, desfaz esta ilusão. Mãos de cavalo usa a cultura de massa (cinema,
gibis, graphic novels, videogames) como um intertexto que põe
em relevo a falta de heroísmo do protagonista. O processo de
formação que Mãos de cavalo narra é não somente o de superar o trauma da adolescência, mas também o de finalmente ter
uma atitude heroica e deixar-se (literalmente) ferir.
A cultura de massa é um subtexto importante ao longo de
todo o romance. Além de fornecer imagens e padrões de comportamento aos pré-adolescentes e adolescentes da Esplanada,
ela influencia as relações sociais entre os jovens que vivem no
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bairro. Assim, os jogos de computador são usados pelo pária da
região – Morsa – como moeda de troca para se relacionar com
os outros meninos da sua idade:
se não fosse pelo computador, ninguém jamais iria à casa
do Morsa. Toda turma de amigos em fase de crescimento
parece extrair uma espécie de energia coesiva da segregação
cruel de um ou mais de seus componentes. Na Esplanada,
o elemento segregado era o Morsa. Com exceção dos jogos
de futebol e das visitas à sua casa para conhecer jogos de
computador, o Morsa era alvo de exclusão e chacota constante (idem, p. 82).
Semelhantemente, Naiara, a irmã caçula de Bonobo, compara Hermano ao seu ídolo sexual – o herói das histórias de
tokusatsu, Spectreman. Naiara experimenta seu despertar sexual
por meio da imagem do super-herói e transpõe as qualidades
dele à ideia que faz de Hermano, combinando-as com outras
figuras da mitologia pop (“Sim, e é isso que tu é. Um vampiro
cego com cara de metal que sobe as escadas de três em três
degraus” [idem, p. 147]). Finalmente, a catarse do romance, o momento em que Hermano se redime da covardia juvenil, também alude a uma série de imagens de heróis em crise, apresentadas pelas telas de cinema e televisão, assim como pelos gibis
e jogos de computador.
Se na adolescência o protagonista sonhara parecer com super-heróis populares como Mad Max, este sonho se desfez no
momento em que assistiu covardemente ao assassinato de Bonobo. Ironicamente, é o Hermano adulto que pode satisfazer
a fantasia adolescente ao evitar, no seu antigo bairro, que um
garoto seja brutalmente espancado por uma gangue de adolescentes muito semelhante à que matou seu amigo:
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É o momento dos filmes, das histórias em quadrinhos e dos
livros de aventura em que um homem descobre sua verdadeira natureza e se torna um herói. Está completamente embevecido por essa fantasia, tanto que a frase “Eu sou médico”
lhe soa artificial, totalmente alheia a quem de fato é e ao que
está acontecendo naquela manhã de domingo (idem, p. 154).
Este episódio representa tanto uma expiação como a culminação das aspirações do protagonista: é, de certa forma,
o rito de passagem que lhe permitirá ingressar na outra etapa de
sua vida (ainda que, como em Até o dia em que o cão morreu, não
fique claro que etapa será esta) (RESENDE, 2008, p. 127). No entanto,
diferentemente do que ocorre em Até o dia em que o cão morreu,
Mãos de cavalo contém uma catarse que permite ao protagonista
redimir-se e se transformar em “outra” pessoa. Era justamente
esta possibilidade que o atraía a Bonobo. O amigo lhe transmitia uma visão de masculinidade que era ao mesmo tempo oposta e complementar à sua personalidade. Se ele era reservado
e controlado, Bonobo apresentava uma espontaneidade liberadora que Hermano admirava e desejava. Paradoxalmente, ainda
que a morte trágica do amigo tivesse isolado Hermano ainda mais, ela serviria de amálgama para que a Esplanada finalmente se tornasse uma “comunidade”. Apesar dos laços de
sociabilidade que se formaram na vizinhança desde seu estabelecimento, o bairro somente se transforma em uma comunidade com a morte de um de seus habitantes. A violência deste
acontecimento “veio a intensificar os sentimentos de abandono, de insegurança e de que angústia que, por fim, conectavam
de modo irreversível aquele grupo de indivíduos que, mais por
acaso que por qualquer outro motivo, vieram a se assentar fisicamente próximos uns dos outros” (GALERA, op. cit, p. 181). De
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fato, o enterro de Bonobo reúne todos os residentes do lugar,
incluindo a turma de amigos de Hermano. Para eles, o funeral é de certa forma a despedida da infância e da adolescência.
O romance termina indicando o caminho circular percorrido
pelo protagonista – o menino que se transforma, pelo menos
aparentemente, em adulto, segue um plano de vida que culmina
e, quem sabe, desmorona, no momento em que regressa, anos
depois, à cena do seu “crime” (“Agora sabia exatamente o que fazer. Não seria necessário fingir nunca mais” [idem, p. 188]). Assim,
o Bildungsroman narrado em Mãos de cavalo, semelhantemente
ao que ocorre em Até o dia em que o cão morreu, não oferece uma
visão redentora ou final do processo de formação do protagonista. Apesar da catarse por ele vivida, a formação é um processo contínuo e, de certa forma, frustrante.
A ar te não imita a vida:
o avesso do bildungsroman
Em Cordilheira (2008), Galera usa a premissa de que a arte imita
a vida para, pelo menos aparentemente, invertê-la. O processo
de formação é mediado pela arte, mais especificamente, pela
literatura. No entanto, ao contrário do Bildungsroman tradicional, em Cordilheira não se trata de narrar o processo de integração social e/ou amadurecimento de um protagonista à beira
de se tornar adulto. O rito de formação ou, melhor dizendo, os
rituais, são episódios que apartam os personagens do romance
da sociedade e não os transformam em nada além de ficções.
Cordilheira, primeiro romance publicado do projeto Amores
expressos, da Companhia das Letras, conta a história de Anita
von der Goltz, uma jovem escritora brasileira em plena crise
criativa e pessoal. Após o êxito do primeiro romance, Descrições
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da chuva, Anita não consegue mais escrever. Além disso, ela se
vê frustrada no projeto de ter um filho com Danilo, seu parceiro. Finalmente, em parte motivada pelo suicídio de uma de suas
melhores amigas, ela aceita o convite de sua editora para participar do lançamento da tradução de seu romance em Buenos Aires. Cordilheira se desenvolve nesta cidade, onde Daniel Galera
esteve durante abril/maio de 2007, enviado pela Companhia das
Letras. Ao contrário do que ocorre nos seus livros anteriores,
Cordilheira se foca no sujeito feminino e, como em Até o dia em
que o cão morreu, é narrado, em grande parte, na primeira pessoa do singular, transmitindo a perspectiva de Anita.
A trama do romance usa a relação entre Anita e José Holden, um escritor portenho misterioso, cujo nome verdadeiro é
Diego Parisi, para refletir sobre o papel da literatura no desenvolvimento da subjetividade. Anita e Holden se envolvem com
um fim específico. Para Anita, o objetivo é ter o filho que Danilo lhe havia negado. Holden, por outro lado, quer que Anita assuma o papel de Magnólia, personagem principal de seu
livro, Descrições da chuva, que mata o amante em nome de um
ideal de amor (Schøllhammer, 2009, p. 141). Ambos estão tentando
transferir sua ficção pessoal ao mundo real.
Como em Até o dia em que o cão morreu e Mãos de cavalo, em
Cordilheira também temos personagens solitários que procuram conectar-se, neste caso, através da criação literária. Anita,
que perdera a mãe no parto, admite que escrevera o primeiro
romance para compensar um vácuo em sua vida. Também a
relação intensa que Holden mantém com a criação literária sugere, ainda que não se limite a isso, uma compensação por uma
falta de afeto anterior:
Tive uma relação terrível com os meus pais – disse Holden
após uma pausa. – Minha casa era um lugar estranho. [...]
Meus pais quase não falavam. Eu ficava dias sem ouvir a voz
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deles. Não era que não me amassem. Mas não havia conversa. Ninguém nunca se tocava. Às vezes eu cumprimentava
o meu pai com um aperto de mão. Um abraço, um beijo
eram coisas impossíveis de se pensar (GALERA, 2008, p. 151).
Entretanto, ao contrário de Anita, que deseja ter um filho
para, de certa forma, contrabalançar as perdas (além do suicídio da amiga Alexandra, o pai havia morrido recentemente em
um acidente de carro), Holden não imagina ter uma relação
íntima com outro ser humano. Em vez disso, ele se refugia na
sua escrita e na realidade que surge por meio dela. Para Holden
e seus amigos, a encenação de suas obras literárias permite que
estabeleçam um laço que, por um lado, os une e, por outro, os
separa do resto da sociedade em que vivem.
Cordilheira, como indica Luiz Zanin na resenha do romance
no jornal O Estado de S. Paulo, é parcialmente um jogo intertextual em que se mesclam referências à literatura hispano-americana (Oliverio Girondo, Julio Cortázar e Roberto Bolaño)
e anglo-americana – José Holden é uma clara referência ao
personagem de O apanhador no campo de centeio (1951), de J. D.
Salinger, um romance de formação por excelência. Assim, se em
Mãos de cavalo as referências culturais que influenciam o desenvolvimento dos personagens provêm dos meios de comunicação de massa, em Cordilheira, estes referenciais são do universo
literário. Desta forma, descobrimos que Holden pertence a um
grupo de escritores porteños meio desconhecidos cuja filosofia
artística se baseia em fazer com que a vida imite seus textos:
“Há muitos autores em que isso se insinua. Chegam perto de escrever como vivem, ou viver o que escrevem” (idem, p. 97). A formação neste livro de Galera dá-se principalmente por meio
da literatura. É significativo que as referências literárias do ro182
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mance aludam principalmente ao contexto hispano-americano
e, mais especificamente, à literatura argentina. De acordo com
Karl Erik Schøllhammer, a inspiração para a sociedade literária
à qual Holden pertence vem dos romances de Roberto Arlt,
Los siete locos (1971) e Los lanzallamas (1968). Como o herói das
duas obras de Arlt, Remo Augusto Erdosain, Holden e seus
amigos são seres à deriva, cujo único norte são suas ideologias artísticas.
Os três romances de Daniel Galera discutidos neste ensaio
apresentam uma temática em comum: a solidão dos protagonistas e sua inabilidade – ou falta de vontade – para participar
da vida social. Como observamos no início, o Bildungsroman
geralmente reflete e comenta o seu entorno sociocultural.
As ficções de Daniel Galera não fogem a esta regra. De certa
forma, seus textos estão refletindo o que o sociólogo polonês
Zygmunt Bauman denominou de “modernidade líquida”:
a transformação de paradigmas socioeconômicos, políticos e
culturais considerados “sólidos” (família, conceitos religiosos
e morais, organização laboral) em cifras líquidas, cambiantes
(BAUMAN, 2000). Para Bauman, dentro da modernidade líquida,
as relações afetivas e sociais também se fragilizam, pois: “Nos
compromissos duradouros, a racionalidade líquida moderna
enxerga opressão; nos relacionamentos duradouros, uma dependência incapacitante. Esta razão nega laços e compromissos, sejam eles espaciais ou temporais” (2003, p. 47 – tradução
minha). Os protagonistas de Até o dia em que o cão morreu, Mãos
de cavalo e Cordilheira ecoam esta premissa. No entanto, sua
formação resulta da insatisfação que esta condição “líquida”
causa. Assim sendo, o Bildungsroman proposto por Galera
identifica a problemática da contemporaneidade, mas procura
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uma saída para ela sem, no entanto, encontrar uma alternativa contundente. Ou seja, no Bildungsroman contemporâneo,
o processo de formação se estende indefinidamente.
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cIdAdE lIvRE: ROMANcE dE fORMAÇÃO
NOS RITMOS dE bR ASílIA
Graça Ramos
A eternidade é todos os nossos tempos passados,
todos os tempos passados de todos os seres conscientes. Todo o passado, esse passado que não se
sabe quando começou. E, naturalmente, todo
o presente. Este momento presente que engloba
todas as cidades, todos os mundos, o espaço entre os planetas. E, é claro, o futuro. O futuro, que
ainda não foi criado, mas que também existe.
Jorge Luís Borges, “O tempo”,
Cinco visões pessoais
Vinculado desde sempre à narrativa, o tempo constitui
questão central para a definição do romance de formação. Na
modernidade, inúmeros autores recorreram ao modelo do
Bildunsgroman para questionar noções espaço-temporais, muitas vezes desconstruindo-as. A intenção deste artigo é investigar de que maneira em Cidade Livre (2010) o escritor João Almino trabalha com a escala temporal na elaboração do romance
que remete à dupla jornada de formação: a de João – nome que
se desdobra do escritor ao narrador-personagem e também ao
revisor fictício – e a da singular cidade que nomeia o livro, origem da utopia planejada de nome Brasília.
Na introdução explicativa, o narrador, intitulado apenas
como JA, associa à antiga técnica da narrativa folhetinesca a
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forma de veiculação dada ao romance-memória que escreveu,
pois o texto foi publicado pela primeira vez aos pedaços, ou
capítulos, em um blog, meio de comunicação característico do
século XXI. Mais tarde, a obra começa a ser preparada para ser
editada como um livro convencional. Já nas primeiras páginas,
a hesitação entre certo resgate da tradição e o recurso à inovação colabora para fornecer indícios de uma possível tensão
entre os tempos da narrativa como escolha do autor literário
João Almino nessa que é a sua quinta obra de ficção ambientada em Brasília.
Em exercício que abarca o além do literário, a aproximação
ao livro vem acompanhada de perguntas: sendo a cidade a capital modernista por excelência, criada como símbolo de novidades urbanísticas, sociais e arquitetônicas, isso se refletiria
no romance que se debruça sobre ela? Teria Almino, o escritor,
apostado na experimentação ao ficcionalizar parte da história
da capital? Estaria o leitor diante de um romance que se atém
a oscilações entre passado e presente, como explica Abdalla Junior no prefácio? (ALMINO, 2010, p. 9).
Ao definir a duração da tragédia, a ação correspondendo
a uma revolução solar, Aristóteles lança a questão teórica sobre
o tempo na narrativa. Desde então, tal preocupação infiltra-se
na literatura por diversos caminhos. Pode estar expressa quando o narrador recupera cronologicamente a vida de determinada personagem ou se reporta a sua autobiografia, caso em que
o presente da narração recupera o passado da história. Pode
também se manifestar por meio de diálogos mantidos pelos
entes fictícios a respeito do tempo, em romances que se apropriam de temáticas filosóficas. Ou, ainda, se disfarça na escolha
de estratégias narrativas como o uso do fluxo de consciência,
dos monólogos interiores, das técnicas do adiantamento ou
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da recordação, tão características da literatura praticada pelas
vanguardas do século passado que valorizam o aspecto subjetivo do tempo.
Na valorização da compreensão de que o tempo assume
significados diferentes entre os seres humanos e varia de um
plano de referências para outro, obras como A montanha mágica, de Thomas Mann, apresentam novas percepções espaçotemporais. Considerada romance de formação, a obra, segundo
Mann, se apresenta como “sátira humorística” (BRADBURY, 1989,
p. 101), seduzindo o leitor para uma visão não linear e não progressiva do tempo e, por consequência, da narrativa. Entre a
consciência temporal dos personagens e a do narrador, o leitor
é surpreendido pela ausência de notações objetivas sobre a passagem dos anos, como se o romance se passasse em um tempo
adormecido.
Ao ler o romance de Almino, momentos houve em que fui
levada a invocar A montanha mágica.1 Trata-se da narrativa das
“não aventuras” de Hans Castrop, engenheiro naval alemão
que, ao visitar o primo Joachim em uma clínica para tuberculosos em Davos, termina ficando sete anos ali, onde toma
contato com uma realidade totalmente diferente da que estava
habituado, passando a lidar com nova dimensão de tempo, de
espaço, de cultura, da morte e da vida. A obra de Mann passa-se em tempo utópico, pois, no sanatório, não há relógios ou
calendários, apenas a duração de dias e noites.
Por favor, não se precipite, leitor. A associação de Brasília
com um sanatório de alucinados repercutiria, trazendo de volta um clichê equivocado, o da imagem da capital como ilha de
1 Nas entrevistas concedidas por João Almino que consultei não foram encontradas
referências a Thomas Mann como autor referencial para o escritor brasileiro. A associação
é, portanto, livre exercício da leitora-autora.
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fantasia em meio ao Brasil real. Na realidade, a cidade é um
espelho ampliado, reflexo de nossa capacidade de arrojo e também de nossas muitas imperfeições como sociedade e Estado.
As associações pertencem a outra ordem: em Cidade Livre há
inúmeras questões relacionadas ao tempo inseridas na narrativa, que se aproximam, ainda que por anteposição, à obra de
Mann. No lugar do amortecimento, temos a rapidez dos tempos da construção da cidade; se sete são os longos anos de Hans
na montanha mágica, são apenas sete as noites de confidências
do pai ao protagonista da narrativa brasiliense.
Na utópica montanha mágica, o narrador, aos poucos,
transforma noções tradicionais do tempo, tornando-o quase
pausado. Na Cidade Livre, que dá origem à utopia brasiliense,
passado, presente e futuro estão demarcados à maneira de um
romance de formação realista. Tendo como paradigma Os anos
de aprendizado de Wilhem Meister, de Johann Goethe, datado do
século XVIII, a narrativa sobre as aventuras e o consequente
processo de formação da personagem vincula-se “à esfera espaçosa da existência histórica” (BAKHTIN, 1992, p. 240). Do mesmo
modo, a obra de Almino adere à tradição ocidental que delimita em três as instâncias temporais, o passado, o presente e o
futuro, respeitando-as.
Se, à moda de um romance de formação realista, a vida de
João, personagem central de Cidade Livre, mostra-se indissociável do tempo histórico, ela apresenta também novidades em
sua forma de abarcar o tempo. A narrativa percorre um espaço
de tempo entre 1956 e 2010, cobrindo pouco mais dos primeiros cinquenta anos da capital brasileira, inaugurada em 1960,
local aonde o protagonista chega criança, ainda nos primórdios da construção, instalando-se na Cidade Livre. Ali vive dos
seis aos dez anos de idade. Depois, muda-se para a Asa Sul, no
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Plano Piloto, e, na maturidade, transfere-se para uma casa no
sofisticado Lago Sul. De sua vida adulta, o leitor pouco sabe.
Apenas que é jornalista, tem três filhos, gosta de beber Campari, e, no passado, foi torturado pela ditadura militar, com consequências graves para sua saúde mental, havendo um surto de
loucura não detalhado pelo narrador.
O menino João cresce em meio à formação dessa incomum
cidade, polo de concentração daqueles que decidiram participar da construção da moderna capital brasileira em pleno cerrado. Cidade com pouca lei, livre de impostos, daí seu nome,
e muita, muita poeira e lama e barracos em labaredas. De construções provisórias feitas de madeira, prevista para ser destruída
tão logo se inaugurasse a nova capital – o que não ocorreu, se
transformando na cidade satélite Núcleo Bandeirante –, nela
se aglutinam operários, engenheiros, comerciantes, videntes,
charlatões e a singular família de João. Esta é formada pelo primo Moacyr, médico psiquiatra que o adota depois que toda a
família morre em acidente de carro, duas tias, Matilde e Francisca, não irmãs, e o cachorro de nome Tufão.
A essa família não convencional agrega-se Valdivino, que
encarna várias imagens. A do escrevinhador de cartas, a do
operário delicado e franzino crente que Brasília seria o novo
eldorado, a do jovem emocionalmente frágil em busca de verdades místicas, a do homem apaixonado por uma santa-puta,
Íris Quelemém, codinome de Lucrécia. Em torno dela transcorre um dos mistérios do livro, juntamente com o destino de
Valdivino, aquele que nas palavras do narrador “apenas trabalhava, trabalhava sem parar, e quando tinha alguns minutos de
intervalo vinha à nossa casa, onde também trabalhava” (ALMINO, op. cit, p. 45).
Não bastasse a datação histórica que ficará exposta ao longo
do texto, no princípio do livro a preocupação com o tempo está
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manifesta logo no sumário, pois um dos capítulos se refere a
“sete noites e um enterro”. Passado, presente e leve insinuação
do futuro aparecem no movimento fugidio das sete noites em
que o protagonista escuta e investiga o discurso derradeiro da
figura paterna. O pai, que se encontra preso a uma cama, está
encarcerado “nas quatro paredes de um branco sujo”, repetição que abre quase todos os capítulos e termina por definir um
hospital-prisão.
Romance de emoções contidas – que se expandem quando
o narrador se delicia com descrições pungentes da natureza do
cerrado –, nele a distância temporal entre o narrado e o acontecido está explícita. Ocorre que, no decorrer das páginas, o leitor é surpreendido por estratégias que embaralham memórias
e criam, também, transvariações temporais. Essa oscilação entre a definição e a indefinição temporal resulta de técnicas discursivas que misturam as memórias de menino de João com as
do pai, em um esforço do narrador para decifrar, em especial,
o destino de Valdivino, e, somente de maneira secundária, reativar antigos laços de afeto entre pai e filho que se dissolveram.
Entre elucubrações fictícias e dados da realidade, surgem
nas páginas parte da história da construção da capital brasileira, dados geográficos, nomes de personalidades que a construíram, moradores famosos e personalidades que a visitaram.
Ao mesmo tempo, o leitor acompanha a vida de João e também
o percurso da elaboração do romance que está sendo concluído pelo narrador-personagem. Três narrativas mesclam-se ao
longo do percurso: a supostamente histórica, a autobiográfica
ficcional e aquela que se refere ao ofício da escritura. São interligadas por uma estratégia que, em uma leitura rápida pode ser
compreendida pelo leitor inexperiente como desleixo.
Explico: em Cidade Livre, o período da construção da cidade
e o encadeamento da narrativa, as formas de vidas enredadas
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nas respectivas cartografias que se erguem, a urbana e a literária, estão ancorados em sentenças que apresentam ritmos quase sobrepostos, como se houvesse falhas de pontuação. Sinal
disso são as justaposições das falas de personagens, que aparecem sem demarcação de sinais, sem aspas, intrometendo-se no
discurso do narrador de maneira enviesada, apressada. No ardil de expor discursos acumulados, basta uma letra maiúscula
para indicar a intromissão de novas falas na cena.
Papai informou em tom de pilhéria, Agora já está em construção também o primeiro hotel, o Hotel Brasília; depois de
um prédio para se confessar dos pecados, outro para pecar,
Você se comporte, reclamava Tia Francisca, Sério, depois
de uma igreja, você pode construir um hotel, sugeriu papai,
Não, depois da igreja, só outra igreja, respondeu Valdivino,
Operário não deve escolher trabalho, aconselhou papai, É
que Valdivino não é um operário qualquer, é um idealista,
defendeu tia Francisca (idem, p. 102).
A geografia urbana real da qual o narrador do utópico tempo brasiliense busca obsessivamente se aproximar em seu relato ficcional, esse espaço-tempo convulsionado pelo trabalho
intenso e por vidas precárias, pode ser resumida na expressão
popular da época, “no ritmo de Brasília”, empregada para significar o não intervalo de dia-noite-dia experimentado pelos
candangos, trabalhadores que erguiam a moderna capital. Ou,
como diz o personagem Valdivino, “a gente trabalhava dia e
noite porque tinha que cumprir os prazos para a inauguração”
(idem, p. 73). Na experiência da vida vivida, passado/presente/
futuro eram demarcados tradicionalmente, mas os turnos de
trabalho se encavalavam uns nos outros.
O narrador, esse duplo inventado pelo autor João Almino,
parece profundamente impressionado por tal experiência es191
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paço-temporal, vivenciada, na realidade, por muitos coetâneos
do escritor João Almino, diplomata que viveu em Brasília boa
parte de sua juventude e, como quase todos que habitaram a
cidade em suas duas primeiras décadas, deve ter escutado inúmeros relatos sobre a dinâmica exaustiva de construção da chamada capital da esperança. Modus operandi que rejeitava a divisão tradicional das horas de trabalho, com turnos excessivos,
pagos sob a rubrica de horas extras.
A economia de tempo no ato de levantar a cidade transfere-se para a economia de recursos na ação de narrar, pois, no
universo romanesco, jogos de perspectivas se aceleram rapidamente, como apressado foi todo o processo de implantação da
capital, que, por si, “é um romance digno de ser contado”, segundo Moacyr (idem, p. 19). No curso da leitura, séries de frases, de
personagens superpõem-se. O trabalho braçal dos operários e
o verbal, do autor, se aproximam. A arquitetura ficcional tenta,
assim, expressar a engenharia da construção real, mas mantendo seu “cosmo narrativo autônomo” (IMBERT, 2006, p. 33).
Como exemplo da superposição de tempos, encontramos
um extenso parágrafo de trinta e cinco linhas, no qual o leitor
acompanha o discurso do personagem Valdivino falando sobre
a construção do “Vinte e oito, o prédio mais alto da cidade,
que compõe a estrutura do Congresso Nacional. Em seguida, lê
os comentários de Matilde sobre escravidão dos trabalhadores,
e escuta o personagem Roberto falar que poderia ter indicado Valdivino para outra função na obra. Mais adiante, segue
a comparação que esse último faz entre seu salário e a dobradinha, pagamento em dobro dado aos funcionários públicos que
se transferiam para a cidade, aquela em que “não havia almas”
(ALMINO, op. cit, p. 55), usando a concepção de Moacyr.
Ao acelerar o ritmo, JA, o narrador de Cidade Livre, faz com
que o futuro seja introduzido de maneira sutil – e logo se torne
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passado. Ao longo do texto, ele mantém um jogo entre algo
que se recupera do passado e, ao mesmo tempo, projeta um
movimento de desconstrução dele. Nesse vai e vem, o leitor
fica carente de informações sobre situações ou fatos decisivos
da vida dos personagens, assim como sobre o próprio tempo da
narrativa. Como, por exemplo, o reencontro em plena ditadura militar de Matilde e João já adultos, somente insinuado
em várias partes da narrativa, com o narrador, deixando para
o leitor a decisão de “imaginar” tais situações, inclusive a tortura infligida a João:
Naquela época eu me sentia mais próximo de tia Francisca
do que de tia Matilde e achava que tia Francisca, e não tia
Matilde, estava com a razão, exatamente o oposto do que
ocorreu anos depois, quando já adulto, reencontrei tia Matilde em circunstância que a criança ainda não podia imaginar (idem, p. 64).
Seria intencional no autor literário ativado pelo escritor
João Almino o estratagema de trabalhar as formas de passado,
presente e futuro em seu sentido tradicional, apenas tornando tudo mais veloz, sintoma de uma época, o século XXI, em
que tudo parece ser apressado? Sabedores de que João Almino,
o escritor, se autodeclara leitor atento de Jorge Luís Borges, autor
para quem “o silencioso rio do tempo” (BORGES, 1987, p. 62) era
problema essencial, podemos inferir que a questão do tempo na
escritura alminiana se torna relevante. Essa suspeita é confirmada por outro dos seus romances, As cinco estações do amor (2001),
narrado no presente, em primeira pessoa, por Ana, a protagonista que busca desenvolver a filosofia do instantaneísmo.
No romance mais recente, a escolha de um blog, com baixo
número de acessos, como meio de divulgação inicial do roman193
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ce, pode ajudar a ampliar a questão. Produto típico da internet,
usado por imenso número de internautas para a veiculação de
diários pessoais, um blog caracteriza-se pela rapidez com que
permite a divulgação e a troca de mensagens. No fundo, se ancora em um modelo tradicionalíssimo de comunicação interpessoal, pois se trata de uma carta que chega rapidamente aos
remetentes, que podem fazer a resposta chegar ao destinatário
quase na mesma hora em que a recebem. Em grande quantidade de blogs, essa funcionalidade possibilitada pela tecnologia
serve de desculpa para a postagem de mensagens que menosprezam normas gramaticais consideradas cultas e termina por
quebrar regras de paralelismos temporais, aspecto que provoca
forte instabilidade sobre o dito. João narra sua história e a de
Brasília aproximando-se dessa linguagem que busca ser imediata, porém, ao se preparar para publicar o livro, tem o cuidado de submeter o texto ao revisor João Almino.
Em Cidade Livre, o tempo verbal predominante é o passado.
Claro, afinal trata-se de um livro de memórias, mas os expedientes aglutinadores utilizados pelo autor projetam nesse passado todos os tempos do mundo, inclusive um tempo mítico,
quando recupera as antiguíssimas projeções que falavam de
uma terra de fartura na região do Planalto. E aqui novamente se
confrontam as narrativas sobre a cidade onde “havia um toque
mágico na transformação do vazio em algo concreto” (ALMINO,
op. cit, p. 178), nas palavras de JA, e a montanha mágica de Mann.
Neste último, há o propósito radical de trabalhar na forma de
um remoto passado, pretérito profundo, anunciado em “Propósito”. Recurso para falar sobre um tempo sem idade definida.
Na ficção de Almino, são constantes as idas e vindas no tempo, inclusive com parágrafos em que ocorrem cortes bruscos
na passagem entre anos, como quando apresenta a mística Tia
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Neiva, caminhoneira que fundou uma seita na Brasília real, de
nome Vale do Amanhecer. “Talvez elimine essas informações
quando fizer uma releitura e pulo rapidinho para maio de
1957, quando ela, já viúva, morava em Goiânia, e Sayão a convidara para se juntar aos construtores de Brasília” (idem, p. 31).
Para tornar mais embaralhada a questão, o jogo entre os
homônimos de prenome João e sobrenome Almino também
fornece ideia da tensão aglutinadora entre tempo e espaço.
O mesmo nome, sugerindo, enganosamente, ser a mesma pessoa, tem várias funções em diferentes momentos da narrativa
(escritor, narrador-personagem, revisor fictício). O escritor
provoca intencional confusão entre os nomes de quem escreve,
de quem vivencia as ações e rememora o passado e de quem
revisa o escrito.
Na aventura candanga, é preciso estar atento para saber
quem é quem. Afinal, todas as entidades que interferem na elaboração do livro, a real – o escritor – e as inventadas, possuem
um mesmo objetivo, o de recuperar as narrativas que cercam
Brasília a partir do ponto de vista subjetivo de um menino que
se faz homem junto com a cidade que envelhece em tempo recorde. São retirados do diário enterrado pelo pai escrevente,
e redescoberto somente na maturidade por João, fatos envolvendo personalidades da história real – Juscelino Kubitscheck,
Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Bernardo Sayão, entre outros.
Rol de nomes que faz com que o leitor menos desconfiado seja
levado a crer que são reais. Mero recurso ilusório inventado
pelo autor, pois sabemos que, ao introduzir personalidades históricas no romance, elas se tornam ficcionalizadas. Passam a ser
apenas entidades feitas de papel e tinta. Surgem para compor a
narrativa e aumentar o poder de verossimilhança do narrado.
A presença de tantas referências históricas pontua o passado, que, por sua vez, moldará o momento atual do personagem
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João, menino que se transforma em jornalista melancólico, herdeiro das dívidas financeiras do pai. Um presente que aparecerá
para o leitor sob a forma do número sete, pois a ação narrativa
central se passa no mencionado intervalo de uma semana. Mesmo assim esse presente só será relatado seis meses depois de
acontecido, quando o narrador consegue iniciar suas memórias.
Nesse esforço para contar tanto em tão curto espaço, a divisão do tempo precisa ser aglutinada, concentrada, muitas vezes
cortada, como se montagem cinematográfica fosse. Tal estratégia conduz a indagações sobre as reações do leitor pouco experiente e leva à pergunta sobre se, com a aceleração no ritmo do
tempo e a coincidência proposital entre nomes, não seria ele
levado a suspender a crença de que tudo é ficção e a confundir
os tempos históricos e o do romance?
Tudo porque a narrativa sobre a vida de João desenha muito
dos tempos heroicos de Brasília, o passado que ajuda a definir
os ritmos da existência da cidade. Assim, se a ideia da construção da capital representa um “futuro anterior” (PAULS, 2007),2
pois sempre esteve envolvida em uma grande mistura – sonhos, profecias, devaneios místicos, discursos políticos sobre
a interiorização, metas para desenvolvimento, tudo galvanizado pelo desejo do país de se tornar potência –, a ideia de mistura se espalha pela narrativa de Almino, conforme apontou
Castello (2010, p. 4). Mas, como esse passado histórico está recente, ainda grávido de intensidades e informações dispersas
pouco trabalhadas, lidar com ele parece provocar uma espécie
de aturdimento no narrador e, por extensão, também no leitor. Como se ambos, à maneira de Perniola, se perguntassem se
2 O escritor descreve, no caderno 4+7, do Correio Braziliense, suas impressões ao visitar
Brasília pela primeira vez, quando a cidade completava 47 anos.
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“o romance, como gênero literário, pode narrar de modo adequado os fatos vividos coletiva e individualmente, social e privadamente das últimas duas décadas?” (2011, p. 115).
A confusão é potencializada porque, no desejo de demonstrar ao leitor a amplitude da saga em que se transformou a
construção da cidade erguida em meio ao altiplano de terra
vermelha, o narrador se dedica à busca por dados objetivos,
factuais, se apropriando de inúmeros elementos históricos.
Muitos deles também recuperados do caderno de anotações
de Moacyr que, nos primórdios da cidade, deixa a profissão de
médico e decide ser escrivão não oficial da frota de Juscelino
Kubitscheck, sendo, depois, negociante de espertezas.
E o narrador ainda sofre pressão dos poucos leitores do seu
blog, que fornecem mais e mais dados, muitas vezes equivocados, corrigem eventuais informações, pedem mais detalhes
históricos. Todos se sentem autoridades sobre o tema Brasília
(sentimento comum no mundo real entre aqueles que viveram
os tempos iniciais). O narrador precisa peneirar e cortar o texto final, para evitar o risco de a narrativa se perder em grandes
digressões.
A escolha da palavra saga para definir o que JA busca narrar
indica um regresso ao passado remoto da literatura, pois significa história rica de incidentes, mas também designa narrativa
exuberante em lendas. Tal qual a cidade real, o romance de Almino situa-se entre as duas definições. Há muito de história,
no sentido de fatos reais que ocorreram naquele período, há
também inúmeras lendas retrabalhadas – como a da mística
Cidade Z que seria fundada no Planalto Central –, e tudo isso
somado tende a esconder, como um subterfúgio, as estratégias
ficcionais do autor literário.
Atento às diferentes tradições do romance de formação,
o autor de Cidade Livre constrói a narrativa também à manei197
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ra de Lazarillo, datado do século XVI, mas, diferentemente de
Wilhem Meister, de teor picaresco e montado como um quebracabeça de caixinhas chinesas, por seus sucessivos planos de
histórias e ações.3 A referência às caixinhas chinesas remete
também a Miguel de Unamuno, naquele que talvez seja o menos
conhecido dos textos do fundamental escritor da modernidade
espanhola, denominado Como escrever um romance. O livro do
século XIX apresenta também três diferentes narrativas. Uma
corresponde à história exterior do livro, versando sobre os anos
de exílio do escritor na França, sendo, portanto, autobiográfica. Outra, um relato que também apresenta a narrativa de um
romance autobiográfico que o autor pensava em escrever sobre
aquele período fora da Espanha. E, nesse romance hipotético,
outra narrativa ainda surge, pois o protagonista fictício, U. Jugo
de La Raza, lê um romance, e o leitor tem acesso à história.
Romance com estrutura aproximada à das caixinhas chinesas, o livro sobre João e os primórdios da capital brasileira
resulta na mais bem elaborada ficção assinada por João Almino. Como a cidade modernista destinada ao futuro, bifurcada
em outras que remetem ao pretérito do urbanismo, a narrativa,
desde a capa, provoca as noções espaço-temporais. Mais do que
se referir ao passado, o título Cidade Livre remete à natureza
inédita da tensa mistura de tempos intrinsecamente brasiliense. Resultado do processo de amadurecimento do leitor-autor,
capaz de dissolver e recombinar heranças de maneira a propor
uma narrativa possível sobre modos de ser em Brasília, a capital que permanece enigma e se mantém desafio.
3 As correlações entre narrativas desdobradas e as caixinhas chinesas em Lazarillo foram
apontadas por Francisco Rico em La novela picaresca y el punto de vista, Barcelona: Editorial
Six Barral, 1970. Elas estão resumidas na introdução assinada por Paul R. Olson, de Como
escrever um romance, de Miguel de Unamuno, São Paulo: É Realizações Editora, 2011.
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REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
BORGES, Jorge Luís. Cinco visões pessoais. Brasília: Editora da UnB, 1987.
BRADBURY, Malcom. O mundo moderno – dez grandes escritores. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
CASTELLO, José. “O homem soterrado”. Rio de Janeiro: O Globo, caderno Prosa
& Verso, 26 de junho de 2010. p. 4.
IMBERT, Enrique Anderson. Escritor, texto, lector. Buenos Aires: Corregidor,
2006.
MANN, Thomas. A montanha mágica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
PAULS, Alan. “O futuro anterior”. Brasília: Correio Braziliense, caderno 4+7, 21
de abril de 2007.
PERNIOLA, Mario. Ligação direta – estética e política. Florianópolis: Editora da
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UNAMUNO, Miguel de. Como escrever um romance. São Paulo: É Realizações
Editora, 2011.
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Profanação, citação, encenação
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SéRgIO SANT’ANNA cONTEMPlA O REAl
Giovanna Dealtry
Estas coisas, porque falsas, estão infinitamente
mais próximas da verdade, enquanto a maioria
dos nossos paisagistas mente, justamente porque
se esquecem de mentir.
Charles Baudelaire
Em suas reflexões sobre a linguagem, Nietzsche nos adverte: todo conceito nasce da identificação do não idêntico. Para
se elaborar uma linguagem que exerça a função comunicativa é
preciso que a comunidade envolvida apague as diferenças por
trás de cada termo. Como exemplifica o filósofo, “o conceito folha foi formado graças ao abandono deliberado das diferenças
individuais, graças a um esquecimento da característica” (1991,
p. 181 – tradução livre). Ao nos esquecermos, no entanto, de que
todo conceito é metáfora e passarmos a acreditar ser possível
atingir a “coisa em si”, a suposta essência, através dos signos linguísticos nos distanciamos da potência criadora da linguagem.
Parte expressiva da obra de Sérgio Sant’Anna caminha na
direção de rememorar ao leitor essa condição da literatura: estamos diante da ficção, da potencialidade não de atingir o real
pela palavra-conceito, mas de nos lançarmos em uma experiência estética da qual a palavra é a matéria-prima. Na tentativa de questionar os limites do literário, Sant’Anna incorpora
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à sua obra – por meio de citações, apropriações, intertextualidades etc. – olhares e linguagens próprias a outros campos,
como as artes plásticas, o teatro, o ensaio.
Mais especificamente, interessam-me os textos de Sant’Anna
que trazem para o universo do literário as transformações e
conquistas operadas nas artes plásticas ao longo do século XX,
momento de questionamento da própria condição da arte e
também de ruptura com os modelos e suportes tradicionais.
Coloca-se em jogo na prosa de Sant’Anna a saturação do discurso e do olhar realista, a partir do encontro com obras ou
artistas que também desafiaram as categorizações e os parâmetros convencionais das artes.
Para melhor compreender esse processo, vale revisitar um
antigo conto de Sant’Anna, publicado no volume Notas de Manfredo Rangel, repórter (A respeito de Kramer) (1973). Em “Uma visita, domingo à tarde, ao museu”, o autor nos leva, a partir de
um narrador na primeira pessoa do plural, a acompanhar uma
excursão por um museu de história da arte quase em tempo
real. Desde a chegada do ônibus à entrega das capas de chuva
na recepção, aos avisos do guia para que todos fiquem juntos,
“nós” passamos de uma sala de exposição a outra, tendo acesso
aos maiores ícones representativos de cada período da história
da arte universal. “Nós” começamos a visita pela sala da “urna
chinesa do período neolítico” para, a partir desse ponto, em
escala historicista e evolucionista, passarmos de um período
a outro, de uma obra-prima a outra.
Nós vimos O violinista verde, de Chagal. Nós vimos O meu
pequeno monte branco, de Max Ernest. Nós vimos O autorretrato, de Salvador Dali, com pernas de bailarina e cabeça
de vaca. Nós vimos A moça com a guitarra, de Braque. Nós
vimos uma tela em branco com manchas vermelhas. Nós vi204
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mos as composições geométricas de Mondrian. Nós vimos os
ready-mades de Marcel Duchamp. [...] Nós vimos uma porção de coisas mais (SANT’ANNA, 1973, p. 182).
Semelhante a um relatório, a enumeração de salas e obras sucede-se até o final da narrativa, chegando a incluir a planta baixa
do museu e o trajeto do grupo pelas salas de exposição. Quando os integrantes da excursão, exaustos, chegam finalmente a
uma pequena varanda, em uma simetria borgiana, encontram
outro grupo de visitantes, idênticos a eles. Como “nós”, “eles”
são formados por pessoas de diferentes nacionalidades e etnias:
velhas americanas, um hindu, um casal brasileiro, três judeus,
dois negros etc. Os dois grupos, como se estivessem diante de
um espelho em que não se sabe qual é o original, qual o reflexo,
quedam-se mirando um ao outro, presos na própria similitude.
Estamos diante do questionamento da exaustão do olhar
contemporâneo como forma ainda válida de aproximar-se da
experiência estética. “Nós vimos” é o refrão que se repete até os
limites da alienação; no caso do conto, os limites da cegueira.
A tarefa hercúlea de dar conta do cânone da história da arte
em uma visita turística termina por igualar a todos e afastá-los,
por assim dizer, da vivência estética transformadora, na qual a
contemplação ou outras formas de interação seriam capazes de
transformar “nós” ou “eles” em sujeitos e não em um público
globalizado refletindo a si mesmo infinitamente.
“Ver”, nesse sentido, perde sua força de intervenção na obra
e sucumbe diante da enumeração dos objetos, da mesma forma
que os sujeitos passam a ser igualmente catalogados dentro da
lógica da diversidade contemporânea. Estamos, aqui, no território que remete às primeiras provocações das vanguardas
do século XX. Se o que determina a “validade” da obra de arte
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é o espaço sagrado do museu, qualquer coisa ali colocada – um
urinol, por exemplo – instantaneamente atinge o estatuto de
arte. O olhar, exaurido pela reprodução seriada, herança da
modernidade, pela repetição em massa, pela exposição indesejada, torna-se refratário às obras-primas. “Como olhar quando
tudo ficou indistinguível, quando tudo parece a mesma coisa?”
(PEIXOTO, 1988, p. 361). Talvez, por isso, todos os turistas se assemelhem e só reste, como nas obras de arte alinhadas no museu, identificá-los pelas tarjetas que carregam consigo; negros,
brancos, judeus.
Se a contemporaneidade defronta-se com a pergunta crucial
de Brissac Peixoto – como olhar quando tudo parece a mesma
coisa? –, é importante lembrarmos que este legado origina-se
na modernidade do século XIX, período marcado pela busca
da visibilidade total, pela determinação de tudo ver. É o próprio Brissac, em Cenários e ruínas, que oferece caminhos para
a compreensão dessa herança.
Os aparelhos de produção de efeitos “realistas” na cultura visual de massa eram na verdade baseados numa radical abstração e reconstrução da experiência ótica. O olhar ganha
uma mobilidade e uma intercambialidade sem precedentes,
abstraído de qualquer referente ou lugar.
Surge um “observador ambulante”, formado pela convergência de novos espaços urbanos, tecnologias e imagens.
Deixa de existir uma própria postura contemplativa (PEIXOTO, 2004, p. 97).
“Ver” adquire o estatuto de conhecer e, pela primeira vez,
o homem comum, capturado pelos aparelhos de reprodução
em massa do “real”, é capaz de “conhecer” outros cenários,
através de fotografias ou imagens em movimento, sem precisar
deslocar-se de seu espaço de origem. A postura contemplati206
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va desaparece no cenário da cidade moderna em que o corpo
é velozmente deslocado por trens e carros e o olhar submetido à proliferação incessante de imagens que não evocam mais
a experiência, mas apenas reforçam o refrão: “nós vimos”.
Se naquele momento o indivíduo comum caminha como
basbaque pelas avenidas, na impossibilidade de contemplar
por mais de um segundo a mulher desejada, como sugere Baudelaire em “A uma passante”, qual seria, pois, o sentido de resgatar o exercício da contemplação na contemporaneidade?
Em contraponto a “Uma visita, domingo à tarde, ao museu”,
podemos nos aproximar de “Contemplando as meninas de Balthus”. Este “trabalho” encerra o volume de contos O voo da madrugada (2003) e compõe a parte final intitulada “Três textos do
olhar”. Em comum, os três textos apresentam como ponto central
a mediação entre imagens femininas figurativas (dois quadros e
uma fotografia) e o sujeito observador. Talvez, por isso, o título
dessa parte conceda ao olhar não uma posição passiva (não são
textos sobre o olhar), mas um lugar autoral. É a partir do olhar
que os textos se constroem. “Dizer que são lascivas as meninas
nos quadros de Balthus seria certamente uma impropriedade,
porque a lascívia se abrigará antes no olhar que as contempla
que nos corpos contemplados” (SANT’ANNA, 2003, p. 236).
Entramos em um território escorregadio. O figurativismo
das meninas de Balthus evoca o real. Mas seria ainda possível
furar a superfície da máscara, a representação, e atingir a suposta realidade?
O mistério que impregna a obra de Balthus é o da realidade
mesma, mas como toda realidade em pintura – ou na literatura – uma composição seletiva, organização parcial ou arbitrária de fragmentos num conjunto [...] não para obter uma
correspondência com o “natural”, mas autonomia, realida207
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de criada não para decifrar e sim para ver o mistério (idem,
p. 239 - grifos no original).
Sant’Anna conhece o perigo de crer na ilusão do real e, ao
optar pela miragem, transforma a literatura em espaço aberto
de investigação não apenas da obra, mas do próprio olhar do
espectador. A contemplação, ainda que insista na descrição,
“na composição seletiva”, termina por refletir muito mais o observador do que o observado, porque também esta descrição
torna-se uma “organização parcial ou arbitrária de fragmentos”. Assim, o texto de Sant’Anna aproxima-se da defesa do “Espectador emancipado” feita por Jacques Rancière, em palestra
homônima proferida em 2004 a respeito da posição do espectador teatral.
O espectador é ativo, assim como o aluno ou o cientista. Ele
observa, ele seleciona, ele compara, ele interpreta. Ele conecta o que ele observa com muitas outras coisas que ele observou em outros palcos, em outros tipos de espaços. Ele faz
o seu poema com o poema que é feito diante dele. Ele participa do espetáculo se for capaz de contar a sua própria história a respeito da história que está diante dele.1
Nesse sentido, a autonomia em relação à realidade só é possível tendo como cúmplice, ou confrontador, esse espectador
emancipado, capaz de oferecer respostas à obra de arte. Da
observação atenta dos quadros de Balthus surge um olhar que
transita pelas obras, entra e sai dos quartos das meninas, investiga a cena, não nos poupa detalhes, terminando por produzir
uma outra obra além do original. A começar por certa ironia
1 “O espectador emancipado”. Tradução de Daniele Ávila. Artigo originalmente publicado
em inglês na revista ArtForum, março de 2007. In. “Questão de crítica”. http://www.
questaodecritica.com.br/2008/05/o-espectador-emancipado/
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contida no título. Em nota ao final do texto, Sérgio Sant’Anna
afirma: “As meninas de Balthus, com exceção de La jeunne fille
au chat, foram contempladas, para este trabalho, no livro Balthus, Editions Skira Flammarion, Genebra, 1982, com texto de
Jean Leymarie” (SANT’ANNA, op. cit, p. 240). Contemplamos o texto, que por sua vez nasceu não da contemplação presencial das
telas, mas de reproduções seriadas catalogadas em um livro de
arte. Composições seletivas de composições seletivas em que
a realidade, como fundo a ser descoberto, parece cada vez
mais intangível.
O escritor obser va, o escritor vive
Em O livro de Praga – narrativas de amor e arte (2011), a indissolubilidade entre a experiência estética e erótica, como já indica o subtítulo, será o eixo principal do percurso do escritor
Antônio Fernandes pela capital da República Checa. A junção
entre arte e desejo já aparecera em inúmeros textos anteriores
de Sant’Anna, com especial destaque para o romance Um crime
delicado (1997).
Em O livro de Praga, no entanto, a postura do escritor Antônio Fernandes diante das experiências oferecidas pela cidade é bem diversa das vivenciadas pelo crítico teatral Antônio
Martins, protagonista de Um crime delicado. Como defende
Vera Follain de Figueiredo, Martins, para quem “ser crítico
é um exercício de razão diante de uma emotividade aliciadora”
(SANT’ANNA, 1997, p. 18).
[...] rejeita a diluição de fronteiras entre palco e plateia, entre arte e vida operada pela obra de Brancatti. Consequentemente, não pode compreender que o pintor coloque Inês
morando num apartamento que reproduz o cenário de seus
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quadros [...] Rejeita também a interseção entre diferentes
linguagens artísticas, razão pela qual não aceita a inspiração
teatral na obra de Brancatti (FIGUEIREDO, 2008, s/p).
Antônio Fernandes caminha na direção oposta à do crítico
teatral ao negar, durante toda sua estada em Praga, a distância
segura entre o observador e a obra como único critério válido
de fruição e entendimento. A cada nova narrativa de amor e
arte novos critérios – ou ausência de – terão de ser acessados
para que os limites entre arte e vida sejam rompidos, e a própria cidade, transformada em percurso e vivência estética, seja
palco e público das sucessivas cenas narrativas.
O livro de Praga inicia-se com uma visita do escritor Antônio Fernandes ao museu Kampa, onde estão expostas peças de
Andy Warhol sob o sugestivo título de Disasters Relics. Na exposição, estão sintetizadas duas grandes obsessões do século
XX, tão bem apreendidas por Warhol. De um lado, as terríveis
imagens de acidentes automobilísticos, capturadas do noticiário, mostram corpos esmagados entre ferragens retorcidas.
O “choque da realidade” (SANT’ANNA, 2011, p. 10) promovendo
simultaneamente repulsa e atração. Por outro lado, a constatação igualmente terrível de Andy Warhol em frase estampada ao
lado das imagens: “Mas quando você vê uma foto aterrorizante
um monte de vezes (over and over again), ela acaba por não
produzir nenhum efeito” (idem, ibidem).
Esse esvaziamento, como o narrador Antônio Fernandes
nomeia o fenômeno, por certo é uma das marcas de nossa época, impressa na obra de Warhol. Rostos midiáticos reduzidos
a máscaras, a logotipos de si mesmos reproduzidos em escala
infinita, remetem simultaneamente ao “real” e ao esvaziamento
do sujeito. Fernandes, nesse primeiro momento, reflete a justa210
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posição entre a busca de algum resquício tangível de indivíduo
e a dolorosa consciência da perda do outro. Diante da imagem
icônica de Marilyn Monroe, ele assim reflete: “E ao olhar o retrato de MM o contemplador era transportado a uma sensação
de grande melancolia, a maquiagem no rosto como uma verdadeira máscara atrás da qual se podia capturar a solidão ou
mesmo uma ausência de vida em Marilyn” (idem, p. 11).
Entre a solidão ou a ausência de vida, “o contemplador” é
afetado pela melancolia de um passado em que as imagens produziam sentidos, ordenando o mundo ao redor. Se o retrato
não se configura mais, como na tradição da pintura, na aproximação realística do outro, ele aparece na visão de Warhol como
uma perda de onde se origina um sentimento melancólico.
A melancolia só é possível para o sujeito moderno consciente
de um tempo perdido, que simultaneamente sabe que a máscara não encobre mais segredos.
E desse lugar advém uma das maiores angústias produzidas
pela obra de Sant’Anna. Conscientes de que não é mais possível
retirar essa máscara, pois talvez não haja nada a se descobrir,
os personagens de Sérgio Sant’Anna também carregam consigo
essa dor da perda do absoluto, vislumbrando a arte como um
local de produção de mediações entre o sujeito e a precariedade do contemporâneo. A contemplação, como já mostrado nas
meninas de Balthus, não se confunde com um ato de passividade, mas com a busca de reencantamento do real.
Coloca-se em tensão em O livro de Praga, assim como anteriormente Um crime delicado já o fizera, as fronteiras entre arte
e vida. Por intermédio da arte eu sofro o choque da realidade,
mas também minha realidade pessoal não poderá se transformar em uma obra de arte, mesmo à minha revelia? Se, “apenas” ver, “over and over again”, acaba por não produzir nenhum
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efeito em uma sociedade saturada de imagens, não caberia
aos artistas do século XX produzir novas formas de olhar, em
sentido amplo, e, desse modo, desestabilizar o lugar seguro do
espectador?
Não deixa de ser irônico Sérgio Sant’Anna encenar a primeira das narrativas de amor e arte em uma sala secreta do
próprio Museu Kampa, vedada à circulação dos espectadores
comuns. Contra a ideia de expor o objeto artístico à apreciação
de todos, Sant’Anna propõe a criação de um encontro sem regras pré-codificadas entre vida e arte. Ao abandonar o estado
melancólico do observador do retrato de Marilyn Monroe, Antônio Fernandes encontra na encenação da pianista outro lugar
de interseção com o contemporâneo, onde romper a máscara
não faz mais sentido. Tudo que se oferece é a própria superfície.
Béatrice Kromnstadt é uma jovem pianista clássica eslovena, cujas perfomances, oferecidas a um único espectador por
vez, são dirigidas por Demetrius Svoboda, classificado como
sem “limites em sua criatividade transgressiva”. Depois de uma
rígida apreciação, Fernandes é admitido no círculo reservado
de espectadores e levado até à sala de apresentação por JeanLouis, assistente da pianista. É escolhido por Béatrice e Svoboda
“porque nos informamos sobre seus textos formais e intuitivamente musicais e achamos que você seria capaz de seguir
sinuosamente uma composição aberta, tomar parte do concerto”
(idem, p. 27 – grifos meus).
A caminho da audição, e podemos dizer que nesse momento inicia-se a composição aberta conduzida por Svoboda,
o escritor observa pela janela do museu uma grande escultura
à beira do rio Moldávia. Em uma cadeira de grandes proporções, vê-se uma mulher magra, em ferro, tendo um pássaro
negro em seu ombro. O impacto maior sofrido pelo escritor
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vem ao deparar-se com a imagem de um torso saindo das águas
do Moldávia, a mão acenando à mulher indiferente, última tentativa de chamar-lhe a atenção. A escultura, intitulada “Drowning for Love”, criada por Jeronimous Clavert, representa
a paixão ignorada de Jean-Louis pela pianista, como Fernandes
logo descobriria.
A admissão, a visão impositiva da estátua, a entrada na sala
onde encontra com a sedutora Béatrice interpretando peças do
“iconoclasta e transgressor” Constantin Voradeck, o sexo entre
escritor e pianista; tudo é colocado como parte de uma encenação em constante integração e transmutação de significados,
que cria suas variações, como na música, a partir do “outro”,
do espectador emancipado.
Era mesmo um piano preparadíssimo e dei-me conta de que
pelo menos uma parte da habilidade da grande virtuose não
passava de gravação e encenação, dirigidas por Svoboda [...]
Mas se era farsa, era uma farsa bem real, pois logo a senhorita
Béatrice colocou meu pau entre seus lábios [...] (idem, p. 29).
Elege-se uma performance que evoca a obra aberta, impossível de ser repetida, mas que igualmente não abandona a
figura do encenador, daquele que conduz. Talvez até o próprio
sexo sendo transformado não em um ato transgressor, mas
num pastiche de si mesmo porque previsto em cena, como
uma marcação teatral. A realidade, esta sim sem nenhum traço
farsesco, aparece quando Fernandes entrega seu cartão de crédito internacional a Jean-Louis. Dois mil e quinhentos euros,
o preço, não o valor, da audição exclusiva.
Como na série de elementos elencados antes, durante e
após a apresentação da pianista, podemos dizer que o próprio
livro funciona como uma constante encenação em aberto.
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Cada um dos capítulos podendo ser apreciado isoladamente
como “contos” fechados, mas que, quando lidos na composição
maior do livro, passam a integrar uma rede de circuitos produzindo sentidos diversos. As imbricações entre os capítulos/
contos adicionam novas perspectivas e desestabilizam certezas
adquiridas ao longo do caminho.
O jogo entre encenação e real é refeito a cada novo encontro
de Fernandes com outras figurações do feminino (já que podemos incluir nesta lista uma boneca e a estátua de uma santa)
ou mesmo com a própria cidade de Praga. O choque do real
retorna à cena quando Fernandes impede que a jovem Gyorgia
salte de uma ponte sobre o Moldávia.
Contra a dúvida da “farsa” de Béatrice e Svoboda, Sant’Anna
nos oferece agora o retrato de uma melancólica dos oitocentos perdida no século XXI. O ex-namorado de Gyorgia, “alegre
e otimista demais”, havia tentado levá-la para a Grécia já que
o sol poderia curá-la. “Pois sou fraca do pulmão e não faço
nada para melhorar. Ele disse que a Grécia poderia curar também a minha melancolia” (idem, p. 47).
Se, no romantismo, a personificação do poeta tísico e melancólico, morto jovem, associa-se, por um lado, à vivência extremada da vida, por outro, ele também se torna um personagem de si mesmo, o retrato de um período inaugural obcecado
pela ruptura entre os limites entre vida e morte, tendo a arte e
o amor romântico como as únicas expressões possíveis dessa
consciência.
Sant’Anna parece contemplar o mundo desse lugar singular,
ao justapor a clássica personagem romântica suicida ao cenário
de uma contemporaneidade entediada e perplexa, que diante
da radicalidade do real, repetido à exaustão, termina por aniquilar a possibilidade de empatia. A noite de amor entre Fer214
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nandes e Gyorgia não salva a jovem húngara. E ela seguirá seu
destino – esta também uma ideia romântica – e se lançará ao
rio na manhã seguinte, sem que, no entanto, se opere a redenção romântica.
Não mais Gyorgia, mas um corpo flutuante arrastado pelo
Moldávia. O ceticismo melancólico, se é que essa expressão é
possível, instaura-se quando Fernandes depara-se com o corpo
de Gyorgia preso à escultura de Jeronimous, em que Jean-Louis
se debate n’água para atrair Béatrice.
Não estamos mais no espaço controlado por Svobada, mas
no horror do ato extremo – o suicídio – que ironicamente duplica o mesmo horror expresso pela escultura. Ambos presos
um ao outro, a junção corpo/obra eliminando assustadoramente a fronteira entre vida e arte diante do observador para
o qual todos os acontecimentos ao seu redor adquirem uma
perspectiva duramente estetizante.
Logo eles retirariam o corpo de Gyorgia dali, era certo, mas
àquela altura o conjunto devastador já teria sido fotografado e filmado por uma multidão de turistas e jornalistas, e
até artistas, que povoavam as ruas de Praga e que fixariam
e retransmitiram a cena para a quantidade incalculável de
sites, computadores pessoais e celulares do mundo, criando,
de fato, uma arte, uma instalação, ao mesmo tempo, virtual
e imperecível (idem, p. 60).
Não há saída. Como nas imagens de Warhol replicadas a
partir de reproduções dos jornais ou o próprio retrato de Marylin Monroe, o suicídio é apresentado e propagado até que
a própria Gyorgia esvazie-se como sujeito e torne-se peça de
uma encenação maior, em que os replicadores são meio e mensagem. Disasters Relics. Não tornar “virtual e imperecível” o ato
suicida talvez seja o gesto mais radical, já que Fernandes confia
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apenas à memória, e não ao gesto de cristalizar o momento, as
experiências vivenciadas com Béatrice e Gyorgia.
À medida que o livro avança, da mesma maneira que Fernandes avança por Praga, fica claro que não há posição a ser
tomada. Não se trata de reviver uma nostalgia do sujeito melancólico ou o resgate de uma aura benjaminiana, seja na obra
de arte ou no próprio encontro com o “outro”. Estar no presente, nas condições dispostas em O livro de Praga, é deixar-se
seguir uma obra aberta em que o próprio sujeito observador reconfigura a todo instante o sentido do que foi vivenciado. Não
há verdade a ser encontrada, mas, se tudo é farsa, uma grande
encenação, inclusive os próprios encontros e a cidade de Kafka,
tudo também pode adquirir um sentido de positividade. Como
Fernandes se pergunta em determinado momento: e se o falso
também não for um valor a mais?
A ideia atravessa o escritor quando este é convidado para
uma (outra) exibição particular. Desta vez, a evocação central
é uma suposta carta manuscrita de Kafka destinada à noiva,
Julie Wohryzek. A carta em alemão, beirando o pornográfico,
teria sido tatuada com tinta fosforescente por todo corpo da
bela Jana. Levado pelo próprio irmão da estudante e dançarina,
Fernandes é o único espectador do estranho espetáculo em que
a jovem se desnuda e declama o pseudotexto kafkiano.
Se o centro da discussão, em um primeiro momento, é a
autenticidade da carta manuscrita, da própria interpretação
em alemão da carta por Jana, já que Fernandes não domina
o idioma, em um segundo momento, torna-se claro que não é o
lastro de veracidade, de “origem”, que é capaz de produzir ou
não a comoção, no caso, até mesmo o desejo, pelo outro. Mais
uma cena dos interiores de Praga. A dicotomia falso/verdadeiro perde o sentido, mas não é substituída por uma voz nostálgi216
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ca como sentimos no começo da narrativa, quando Fernandes
ainda acredita que a máscara esconda a tragicidade do humano.
A nudez coberta pela caligrafia fosforescente encena na própria
superfície do corpo a possibilidade do encontro entre Kafka
e Julie. Corpo, caligrafia, texto, performance fundem-se para
se tornar alguma outra coisa não nomeada, que nada esconde,
porque nada tem a revelar.
REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FIGUEIREDO, Vera Follain de. “Narrativa e poder: ficções pós-utópicas em Sérgio Sant’Anna.” In: Revista Fronteiraz. Revista Digital do Grupo de Pesquisa
“O narrador e as fronteiras do relato”. Vol. 1, nº- 1. março/2008. http://www4.
pucsp.br/revistafronteiraz/numeros_anteriores/n1/. Acesso em 13 de agosto
de 2012.
NIETZSCHE, Friedrich. “Introduction théorétique sur la vérité et le mensonge
au sens extra moral.” In: Le livre de Philosophe. Paris: Flamarion, 1991.
PEIXOTO, Nelson Brissac. “O olhar estrangeiro”. In. NOVAES, Adauto (org.)
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_____. Paisagens urbanas. São Paulo: Ed. Senac, 2004.
RANCIÈRE, Jacques. “O espectador emancipado”. Tradução de Daniele Ávila.
In: “Questão de crítica”. http://www.questaodecritica.com.br/2008/05/o-espectador-emancipado/. Acesso em 12 de julho de 2012.
SANT’ANNA, Sérgio. Notas sobre Alfredo Rangel, o repórter. (A respeito de Kramer). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1973.
_____. O livro de Praga – narrativas de amor e arte. São Paulo: Companhia das
Letras, 2011.
_____. Um crime delicado. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
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REcIclANdO AS RUíNAS dE ONTEM:
O PROcEdIMENTO dE cITAÇÃO EM
dOIS ROMANcES dE lOURENÇO MUTAREllI
Pascoal Farinaccio
O cheiro do ralo, publicado em 2002, é o primeiro romance
de Lourenço Mutarelli e possivelmente a sua obra mais conhecida pelo grande público – popularidade para a qual contribuiu, de modo decisivo, a excelente adaptação cinematográfica
realizada pelo diretor Heitor Dhalia (2006). O filme, de título
homônimo, ganhou notoriedade sobretudo pela interpretação
visceral do ator Selton Mello, que realmente conseguiu explorar a fundo, em termos cênicos, as nuanças psicológicas (e patológicas...) do personagem protagonista do romance.
Cabe desde logo observar, por outro lado, que a própria obra
literária é escrita à maneira de um roteiro para ser filmado.
O romance é basicamente composto de diálogos travados pelo
protagonista com outras pessoas em sua loja de compra e venda de objetos usados. Esse estilo de composição armado quase
que exclusivamente a partir de diálogos seria posteriormente
testado por Mutarelli em outros romances, por exemplo, em
O natimorto, de 2004 (que hoje também já conta com uma
adaptação cinematográfica homônima, na qual o próprio Mutarelli interpreta o papel do protagonista), em Miguel e os demônios (2009), e no mais recente Nada me faltará (2010). A nosso
ver, é em O cheiro do ralo que o procedimento estilístico adota218
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do rende melhor do ponto de vista estético, alcançando-se aí
uma excelente integração entre os diálogos e a composição do
personagem principal, da situação por ele vivida e do cenário
implicado. A partir do jogo rápido e fluido dos diálogos, Mutarelli alcança efetivamente uma representação complexa, seja
de ordem psicológica, seja social, que está à altura, enfim, da
complexidade da história e da cultura contemporâneas: assim,
lê-lo é, em grande medida, ler-nos. É o que se tenta nesse pequeno ensaio.
O romance, como dito, é escrito como um roteiro de cinema
– ágil e de grande plasticidade nas cenas que dá à representação, diríamos sem exagero que o romance contém um filme
dentro de si. Podemos ir além, todavia, evocando ainda outra
forma de expressão artística: as histórias em quadrinhos. Arte
que também lida basicamente com imagens e diálogos (uma
arte “irmã” do cinema, que nasce praticamente junto com ele,
no mesmo momento histórico), a história em quadrinhos parece adentrar O cheiro do ralo pelo menos em duas vertentes de
sua caracterização singular: no andamento acelerado da narrativa, que funciona à semelhança de uma sucessão rápida de
quadros (tal como justamente ocorre nos “quadrinhos”); e ainda em certos traços mais grossos do personagem, que auxiliam
a desenhar o seu contorno patológico, às vezes quase caricato,
sem prejuízo de sua profundidade psicológica. Com relação à
agilidade da narrativa, Arnaldo Antunes escreve na orelha da
edição de O cheiro do ralo aqui utilizada: “O livro tem pique de
gibi, mesmo sem ter os desenhos” (cf. MUTARELLI, 2002). Em se
tratando de Lourenço Mutarelli não é de estranhar o diálogo
com as histórias em quadrinhos, já que, como se sabe, o autor
é também reconhecido como excelente quadrinista, tendo produzido verdadeiros clássicos dos gibis alternativos no Brasil,
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tais como os álbuns Transubstanciação, O dobro de cinco, O rei do
ponto, A soma de tudo e Mundo pet, entre outros.
A relação formal com as linguagens do cinema e dos quadrinhos situa O cheiro do ralo numa linha experimental do romance contemporâneo que faz do diálogo com outras mídias
um verdadeiro motor da criação. No caso em pauta, nota-se
também um mergulho profundo no universo de uma cultura urbana caracterizada fortemente pela presença de produtos
oriundos da chamada “indústria cultural”. Programas televisivos vespertinos, de qualidade para lá de duvidosa, bem como
revistas de fofocas em torno de celebridades, são frequentemente referidos no romance; esses produtos compõem, por
assim dizer, a refeição diária dos personagens. Não por acaso,
em diversos momentos do romance algum personagem secundário diz ao protagonista que ele se “parece com aquele cara do
comercial do Bombril” (MUTARELLI, 2002, p. 55). Esse universo
da cultura de massa, com destaque para os produtos da televisão, pode ser interpretado como o chão sobre o qual todos
caminham mais ou menos irmanados; com efeito, um campo
de referência comum que em certo nível a todos iguala.
Nessa perspectiva, o protagonista (cujo nome próprio não
é dado no romance) marca uma diferença em relação aos demais personagens. Também ele é grande consumidor de produtos culturais massificados, gastando boa parte de seu tempo
livre, por exemplo, em frente ao aparelho de TV, utilizando o
controle remoto para pular de um canal a outro, sem jamais encontrar algo que de fato o mobilize – trata-se aqui, sempre, de
entretenimento barato, que pode ir de programas de ginástica
ou culinária até shows de pornografia em canais fechados. Por
outro lado, ele também é um ávido consumidor de literatura.
De fato, está sempre lendo, sendo que o arco de suas leituras
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é bastante extenso e variado; há referências diretas a Paul Auster (p. 13), Ferréz (p. 18), Valêncio Xavier (p. 22), Glauco Mattoso
(p. 38), Anatole France (p. 60), Kafka e Macunaíma... (p. 61), entre
inúmeras outras. O leque é realmente muito variado; nota-se
que alguns autores, entretanto, são destacados mediante uma
comparação entre o modo como escrevem e o suposto modo
de pensar do próprio protagonista: assim, por exemplo, “Paul
Auster me deixa confuso. Ele escreve no ritmo que penso. Vertiginoso” (idem, p. 13), ou “O Glauco escreve na cadência que eu
penso” (idem, p. 38) (en passant, observe-se que Glauco Mattoso
e sobretudo Valêncio Xavier são escritores diletos de Lourenço
Mutarelli, que em diversas entrevistas sempre os cita como influências literárias e aos quais também sempre presta homenagens, por meio de citações em seus romances ou nos desenhos
de suas histórias em quadrinhos).
O protagonista está sempre com um livro em mãos, e tal
fato gera um diferencial em relação às pessoas com as quais
mantém contato. Uma cena de bar, na qual dialoga com uma
garçonete, o demonstra perfeitamente:
Mostro para ela, segurando com as duas mãos.
Rubem o quê?
Fonseca, Rubem Fonseca! Feliz Ano Novo.
Nunca li. Só gosto de ler revistas.
A Revista dos Astros, complemento.
É essa mesmo. Concorda (idem, pp. 55-56).
A Revista dos Astros é também a preferida de outra garçonete, por cuja bunda o protagonista irá se apaixonar. Boa parte
da história gira em torno da obsessão que ele tem em relação
à bunda dessa mulher. Naturalmente, não nutre nenhum afeto
pela moça, mas quer possuir a bunda – tal posse ele a pensa,
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em princípio, como uma aquisição que poderia trazer algum
sentido à sua vida sem sentido... Como, entretanto, não deseja nenhuma espécie de compromisso afetivo, ocorre-lhe pagar
pela bunda; resolver, como de praxe, as situações de intolerável
carência com o poder do dinheiro. Passeando com a mulher
quando ainda no início do relacionamento, para se conhecerem melhor, ele inadvertidamente acaba pensando em voz alta:
“Eu pagaria para ver sua bunda.” Tendo ouvido isso, a mulher
se escandaliza e retruca com raiva: “Só porque você tem dinheiro pensa que pode tratar qualquer mulher como puta?
Você não percebe que eu te mostraria de graça? Sai daqui, seu
cachorro, senão sou capaz de meter a mão na tua cara” (idem,
p. 43). Após dizer isso, rompe o mal iniciado relacionamento
com o protagonista.
Em sua fala raivosa, a garçonete toca num ponto-chave:
o personagem não consegue perceber, de fato, nada que venha
“de graça”. Habituado a comprar os objetos usados de pessoas
geralmente em apuros financeiros, para depois revendê-los a
preço mais alto, o protagonista só consegue relacionar-se com
o mundo (e isso inclui todos à sua volta) de maneira mercantil.
Tudo se compra (inclusive as pessoas e suas bundas), e tudo se
vende. Aliás, o poder que o dinheiro lhe proporciona – “o poder
é afrodisíaco”, diz a certa altura –, o gosto soberano de exercê-lo,
responde em boa parte pela série de humilhações com as quais
gosta de contemplar seus clientes – ora desprezando as coisas
que trazem, ridicularizando seu valor familiar ou histórico declarado, ora mandando voltar pessoas que chegam com objetos
pesados, como uma antiga máquina Olivetti, sem comprá-los...
O sujeito tem consciência de sua perversidade, mas a atribui
às exigências incontornáveis de seu trabalho. Assim ele o explica para sua empregada doméstica:
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Sabe, no meu trabalho, quando eu comecei eu tinha que ser
forte. Eu tinha que ser frio. Porque eu compro as coisas dos
outros, e tinha que oferecer o mínimo possível, para ter o
meu lucro. E, no começo, eu ficava com pena das pessoas.
Mas eu não podia ter pena, senão eu nunca ia chegar aonde
eu cheguei. Então eu fui ficando mais frio (idem, p. 53).
Mal comparando, a passagem lembra bastante a explicação
de Paulo Honório, de São Bernardo, que também atribui aos males da profissão a ruindade própria... De fato, esse sujeito que
“parece o cara do comercial do Bombril” tem diversas afinidades com o memorável personagem de Graciliano Ramos – verifica-se nele a mesma incapacidade de se relacionar com as pessoas, o mesmo gosto pela propriedade e pelo exercício do poder,
a mesma profundíssima solidão (O cheiro do ralo é um romance
triste, a nosso ver, não obstante suas passagens de grande comicidade; trata-se aqui de um personagem carente, solitário, que
vive a vã esperança de preencher o vazio de sua existência com
os objetos que vai adquirindo no mercado). Paulo Honório dos
dias atuais, o personagem tem à sua disposição dinheiro para
comprar e entretenimento midiático para se divertir.
Chegados a esse ponto, vale a pena dissecar um pouco mais
a relação do personagem com o universo das coisas, que é bastante complexa e decisiva para a compreensão de sua derrocada. Visto isso, poderemos então retomar a relação já aludida
desse protagonista com as obras literárias, que tem a ver, como
pretendemos demonstrar adiante, com a possibilidade de construir uma identidade própria por meio de uma intervenção seletiva e valorativa na produção literária do passado – reciclá-la,
tendo em vista os interesses do presente.
Em um plano mais superficial, a relação do rapaz com os
objetos é da ordem do fetiche – corre-se atrás do fetiche da
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mercadoria, esperando que a posse do objeto desejado venha
suprir o buraco criado por um cotidiano cinzento e solitário.
Evidentemente, isso não ocorre, e todo objeto desejado, uma
vez possuído, perde imediatamente seu valor, tendo de ser substituído por outro enquanto objeto do desejo. É uma corrida
desenfreada atrás do nada! O episódio em que o personagem
finalmente consegue comprar o direito de ver a bunda da garçonete é exemplar nesse sentido. Depois de ter se consumido
numa busca obsessiva para consegui-lo, esperançoso de enfim
adquirir, por assim dizer, o objeto último, aquele que lhe apaziguaria para sempre a alma sempre insatisfeita, a bunda revela-se finalmente como malogro, mera ilusão:
Essa bunda, que agora abraço, era a minha salvação. A bunda é, e sempre foi, o desejo, a busca de tentar alcançar o inatingível [...] Mas o que eu realmente buscava não estava ali.
Nem tampouco em outro lugar. O que eu buscava, era só
a busca [...] E por isso agora já não há mais desejo, só cansaço, só o vazio [...] Agora é preciso encontrar algo de novo,
de preferência uma bunda nova, para acreditar. Uma nova
bunda em que eu possa crer. Nessa bunda eu não creio mais.
Não que ela minta, ou tenha um dia mentido, para mim. Não.
O mentiroso sou eu (idem, p. 134).
Nada poderia ser mais elucidativo da miséria do personagem, de sua inextirpável solidão, do que essa passagem de aquisição e de imediata despossessão do objeto desejado. O objeto,
aqui, não é uma coisa, mas sim a bunda de uma mulher, o belo
e frágil corpo humano. Entretanto, o processo de reificação, que
dá a tônica da vida do protagonista e a define em seus mínimos
aspectos, também nesse ponto se faz presente, demonstrando
sua força cruel de desumanização: “E assim, mais uma coisa
a bunda se torna. Como tudo, como as coisas que tranco na
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sala ao lado” (idem, p. 136). Mais à frente, pensando em tudo que
um dia comprou, dirá das “coisas que me colecionaram” (idem,
p. 141), indiciando a inversão perversa típica da sociedade de
consumo capitalista.
Em sua relação com os objetos que compra, há ainda outra
forma de apropriação, mais subjetiva, que não se reduz ao “valor de troca” da mercadoria, mas que investe antes num singularíssimo “valor de uso”. Para exemplificá-lo cabe interpretar
o episódio da invenção do pai, que diz muito acerca da carência do personagem e da perspectiva, muito atual, de se fabricar
uma identidade a partir da pilhagem de objetos-fragmentos
usados e de um procedimento de ressignificação deles em um
novo contexto.
Nada sabemos sobre o pai do protagonista ou de sua infância. Nessa perspectiva, estamos diante de um personagem esvaziado de história pessoal (a propósito, a maneira como ironiza
todos os clientes que procuram valorizar seus pertences com a
afirmação de que eles “têm história” parece indicar uma relação mal resolvida em relação à sua própria história pregressa).
Certo dia, o protagonista compra um olho de vidro, posteriormente uma perna mecânica e, com tais objetos e outros mais,
decide “montar” o pai ausente. Como vimos, a compra incessante de objetos, para além da questão financeira, responde a
uma necessidade primária de dar sentido à existência; nessa
linha, pode-se pensar o episódio do pai como o clímax desse
movimento desesperado rumo à significação e à identidade.
Construir o pai é construir uma origem, uma história de vida,
enfim, uma biografia, o que pretensamente poderá dar consistência à própria identidade pessoal. Deve-se chegar a ela por
meio de um processo de construção essencialmente delirante:
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Eu já tenho o olho. Agora que paguei, tenho a perna. Sei que
com o tempo, vou montá-lo. Vou montar o meu pai. Meu pai
Frankenstein. O pai que se foi. Se foi, antes que eu o tivesse.
Foi, antes de eu nascer. Nem me viu. Nunca voltou. Foi. Ele
só saiu com minha mãe, uma vez. Eu nem sei o seu nome [...]
Ele nunca me viu. Eu, só o imaginei. A vida inteira. Eu mesmo
lhe dei um nome. Eu mesmo o batizei. Eu mesmo cuidei de
criá-lo. De cada detalhe, eu cuidei. Meu pai, fui eu que inventei (idem, p. 111, grifo meu).
Trata-se aqui, notoriamente, de inventar uma tradição familiar para si mesmo, de dar o nome ao pai, de inventá-lo e, por
conseguinte, também de certo modo inventar-se. A operação é
de uma fragilidade comovente, pois quem deverá nomear o pai
é alguém que no romance nem sequer possui nome próprio
– sua identidade tangencia a fantasmagoria da propaganda de
televisão, alguém que parece alguém como puro simulacro:
o “cara do Bombril”. Cria-se um pai a partir da citação de objetos usados, de fragmentos do passado, que são retirados de
seu contexto de origem (o qual é subvertido e deliberadamente
apagado), sendo depois os objetos recontextualizados numa
outra cena, passando a funcionar em nova chave.
O procedimento de invenção do pai, que em última instância é uma invenção do próprio eu, guarda perfeita sintonia, a
nosso ver, com a fabricação ou “montagem” de identidades nas
redes sociais da internet. Também nelas criam-se “perfis” justamente por meio da colagem de textos e imagens, que são deslocados de seu contexto original e são reordenados num conjunto
que passa a funcionar como uma pretensa identidade do sujeito
virtual. Identidade visceralmente assubstancial, está claro, nada
mais que uma persona, uma máscara atrás da qual poderemos
encontrar, se procurarmos bem, ainda uma outra máscara...
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e assim sucessivamente, pois a “realidade”, nesses casos, é rigorosamente “virtual”, entenda-se, criação, representação – poíesis.
Identidade assubstancial, decerto, mas que não deixa de
funcionar simbolicamente, preenchendo o espaço da carência, da falta do nome do pai, para retornarmos aos termos do
romance. Assim afirma nosso personagem: “Ele não sabe que
existo. E que tenho a cara do Bombril. Ele meteu rapidinho em
minha mãe, e se foi. Eu fiquei. Ele é mais triste que eu. Talvez,
ele não tenha ninguém. Eu tenho ele. Meu pai Frankenstein”
(idem, p. 111). Preenche-se a carência como se pode, no caso com
um “pai Frankenstein”, montagem de objetos usados com os
quais o protagonista lida o tempo todo. Coleciona-se obsessivamente (e é muito interessante observar que, em todas as cenas do romance, só o flagramos comprando objetos, nunca os
vendendo), na ilusão de resgatar-se uma plenitude impossível.
É por demais notório que o que se tenta é cobrir uma ferida
da alma – um trauma – com uma bandagem pequena demais.
A exemplo, aliás, do que tentou o magnata “cidadão Kane”, do
famoso filme de Orson Welles – construir um castelo recheado
de objetos comprados para repor o impossível, o trenó do qual
foi apartado na infância e por ele chamado “Rosebud”. Decerto
não é por acaso que o nome “Rosebud” é mais de uma vez referido em O cheiro do ralo (idem, pp. 123, 141).
A criação de identidade por meio de citações envolve também o campo especificamente literário. Como já observado,
diferentemente dos outros personagens, cujo estofo cultural é
basicamente da ordem dos produtos massivos da indústria do
entretenimento – a exemplo da Revista dos Astros, várias vezes
referida no romance –, o protagonista exibe um apreciável conhecimento literário. Está quase sempre lendo algo, desde autores brasileiros contemporâneos, principalmente, a clássicos
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estrangeiros de primeira linha, como Baudelaire, Kafka e Borges. E é justamente depois de citar Camus e o nosso Machado
de Assis que ele faz uma revelação esclarecedora: “Penso em
escrever um livro só com as frases que um dia grifei. Tornar
meu, o que não era meu. Tornar meu o que adquiri” (idem, p. 123,
grifo meu).
O procedimento, como é fácil perceber, é análogo ao da invenção do pai Frankenstein. Trata-se de lançar um olhar ao
passado, recolher fragmentos, descontextualizá-los e recontextualizá-los em um novo conjunto que doravante deverá responder aos interesses do presente. Em certo sentido, que poderíamos
chamar de “benjaminiano”, pode-se dizer que se trata aqui de
“salvar” o passado do esquecimento voraz produzido incessantemente pela modernidade. Sobretudo hoje, com o predomínio
das imagens virtuais, as informações são produzidas e transmitidas em quantidade gigantesca e escala global, sendo, ao mesmo tempo, descartadas com incrível velocidade, para darem
lugar às novas que se acotovelam na fila de entrada. Não seria
exagero, talvez, e guardadas as devidas proporções, estender tal
reflexão ao mundo dos livros: hoje escreve-se muito, publica-se
muito e também esquece-se rapidamente do que se leu e dos
autores... Não muito distante de nós, Guimarães Rosa dizia que
“a gente tem de escrever para setecentos anos”, com isso expressando seu desejo por uma literatura que perdurasse no tempo
– ora, é justamente a questão da perdurabilidade no tempo que
hoje se encontra em xeque, em crise aguda.
Nessa perspectiva, podemos pensar O cheiro do ralo como
uma notável reflexão sobre o tempo. As diatribes do protagonista em relação à história dos objetos que compra, para a qual
está pouco se lixando, oferecem bem a medida de um tempo
que faz do esquecimento o próprio motor da História. Por outro
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lado, as suas constantes citações de autores brasileiros contemporâneos – como Valêncio Xavier, Glauco Mattoso e Rubem
Fonseca – parecem indicar um esforço – em sentido oposto
– de salvar a literatura do esquecimento. É como se ele reciclasse
as ruínas de ontem, guardando-as ao abrigo do esquecimento
dentro de sua própria literatura. Assim, livro repleto de livros
anteriores – “tornar meu, o que não era meu” –, O cheiro do ralo
diz terrivelmente sobre a morte das coisas e de certo esforço
para preservá-las.
O procedimento de citação que temos investigado é também um método de construção literária muito importante no
romance Jesus Kid, publicado por Mutarelli em 2004. Como
procuraremos demonstrar, o procedimento faz frente nessa
obra à descartabilidade dos produtos culturais na sociedade
de consumo de massa (nessa perspectiva, em plena sintonia
com O cheiro do ralo), porém afinando e apontando as armas
de sua crítica para aqueles produtos que são fabricados deliberadamente com o objetivo único de ganhar dinheiro pelo
entretenimento sensacionalista – em suma, confronta-se aqui,
diretamente, os interesses do mercado. E se em O cheiro do ralo
as citações privilegiam as referências literárias, Jesus Kid terá
como foco principal de atenção o campo do cinema. Aliás,
é útil lembrar que o romance originou-se de uma encomenda
do diretor Heitor Dhalia, que solicitou a Mutarelli a história
– para ser posteriormente transformada em filme – de “um escritor preso em um hotel às voltas com sua dor criativa, algo
como Barton Fink, com um quê de Adaptation” (MUTARELLI,
2004, p. 9), conforme se explica na nota do autor que precede
o enredo propriamente dito. Pensado inicialmente como um
roteiro, Jesus Kid acabou se transformando em um romance
(que pelo menos por enquanto não foi filmado).
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O protagonista e narrador em primeira pessoa do relato
chama-se Eugênio e sobrevive de seu trabalho como escritor
de western. Eugênio criou um personagem chamado Jesus Kid,
caubói de inúmeras histórias de aventuras, nas quais cumpre
o papel de destemido herói, conforme a tradição clássica do
gênero. Eugênio escreve livros de bolso, que são vendidos em
bancas de jornais e, diga-se logo, com grande sucesso – Jesus
Kid é um personagem que agrada a determinado público, que
comparece fielmente às bancas para adquirir as novas aventuras do caubói. A série protagonizada pelo personagem já conta
com vinte e oito volumes publicados. Nessa perspectiva, podese considerar Eugênio um escritor de certo tipo de talento –
dele, um personagem dirá que se trata de “um grande escritor”,
já que consegue “escrever sobre um gênero tão desgastado”
e, ainda assim, “ser lido e vendido em bancas de jornais”, isto é,
“consegue ser absorvido pelas massas” (idem, p. 83).
Cientes do sucesso comercial de Eugênio, um produtor e um
diretor de cinema o convidam para escrever um texto que será
adaptado para as telas: o texto deverá tratar de um escritor encerrado em um hotel de luxo às voltas com a redação de um
roteiro. O texto a ser escrito por Eugênio deverá narrar precisamente as dificuldades de criação enfrentadas por esse roteirista, o temor perante a página em branco, ou, como se diz, a dor
do parto criativo. Para tanto, o próprio Eugênio deverá sentir
literalmente na pele as circunstâncias materiais da criação do
roteiro: ele terá de permanecer, conforme prescrição contratual,
encerrado durante três meses em um hotel de luxo, sem dele poder sair até vencido esse intervalo de tempo, findo o qual o texto
a ser adaptado para o cinema também deverá estar concluído.
Os homens do cinema oferecem uma boa quantia para a realização do trabalho, praticamente irrecusável tendo em vista
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os ganhos normais do escritor: “Tento parecer amigável, dócil
como uma cadelinha. Trinta mil, levo dois anos para ganhar
essa soma escrevendo os western de bolso (idem, p. 13). Em Jesus
Kid, como é fácil perceber, os bastidores comerciais do ofício de
escritor são o tempo todo colocados à mostra – podemos mesmo afirmar que o dado material sai do bastidor para ocupar a
cena principal. Não só o dinheiro, em sentido estrito, mas também outras condicionantes vêm à tona, como por exemplo os
“prazos curtos” para entregar os originais. Daí Eugênio achar
que o tema da “dor da criação” é inadequado para ele: “Nunca
sofri do tal ‘branco do papel’, nunca tive tempo para essas frescuras. Escrever é meu ganha-pão, nada mais do que isso” (idem,
p. 22). A proposta dos empresários do cinema o faz sentir-se
como num desenho animado: “me vi igual a um desses desenhos do Pica-Pau. Surgiu, no balão de meus pensamentos, mulheres, iates e um monte de saquinhos gordos e brancos com
um cifrão pintado no meio” (idem, ibidem).
A referência ao Pica-Pau não é gratuita; no contexto geral
do romance, faz parte de uma série de referências à cultura pop
e às finanças a ela relacionadas. Um dos empresários do cinema
elogia um dos livros de bolso da série de Jesus Kid, A balada
dos nervos, dizendo que se trata simplesmente da “coisa mais
pop que li nos últimos tempos” (idem, p. 15). Nesse sentido, as
pessoas com as quais Eugênio fará contato são rebatizadas por
ele com nomes mais sedutores, vale dizer, mais comerciais –
por exemplo, a enfermeira hospedada no hotel é chamada por
ele – hilariamente – de enfermeira Nurse... e o funcionário da
recepção Arlindo é renomeado – a exemplo do que se passa no
filme Barton Fink, dos irmãos Coen – de Chet... Numa cultura como a nossa, fortemente influenciada pelo american way of
life, Chet é um nome com muito mais prestígio ou glamour do
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que Arlindo... Mutarelli nos relembra desse óbvio ululante com
um humor corrosivo, que é das melhores características de sua
produção literária.
A questão do caráter comercial da obra de arte alcança seu
ápice (auto)crítico em Jesus Kid nas recomendações dos empresários do cinema para a elaboração do roteiro encomendado.
Aqui a coisa ganha ares francamente delirantes. Vejamos. Um
dos empresários adverte Eugênio para que ele nunca se esqueça de que “cinema é ação”, a que segue a ordem: “Não venha
nos encher de conflitos internos e longos diálogos” (idem, p. 19).
Mais à frente, recomenda-se que o roteiro esteja cheio de “mulherada”, que de alguma forma entre nele uma “favela” (“– É,
favela. Isso ajuda na captação”), que o escritor em crise seja um
ávido consumidor de batatinhas de tipo chips (“Tem um potencial investidor que fabrica essas batatinhas”), tudo isso, claro,
“recheado de muita: Ação!”. Tamanha carga de exigências chega a dar um nó na cabeça de Eugênio: “É isso, mais uma mulher
de papel importante, junto com muitas outras mulheres bonitas, mais um halterofilista escritor que come batatinhas num
hotel onde há uma favela. É muita coisa para amarrar... Não sei
se conseguirei” (idem, p. 65).
No prefácio ao romance, Heitor Dhalia observou com muita pertinência que, no que diz respeito ao cinema, Mutarelli
conseguiu “revelar, de maneira ácida e engraçada, as fraquezas,
mesquinharias e ambições mal disfarçadas de uma atividade
que mescla arte e dinheiro como nenhuma outra” (idem, p. 8). De
fato, como dito, o foco central do romance é o mundo do cinema, sendo que o próprio protagonista nos conta acerca de suas
desventuras para escrever um roteiro enquanto permanece recluso em um hotel. As regras do jogo do mercado de livros,
entretanto, também não são desconsideradas pelo narrador, já
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que ele é um escritor de western de bolso. Nessa perspectiva, há
uma cena ao mesmo tempo muito divertida e reveladora sobre
o mercado de livros e o horizonte de expectativas do atual público leitor.
Enquanto permanecia no hotel tentando escrever o roteiro, período no qual precisou, portanto, parar com a redação
das histórias de Jesus Kid, o editor de Eugênio encomendou
a outro escritor um livro do personagem... O livro foi realizado, Jesus Kid em a última balada do pistoleiro, nova aventura na
qual o caubói, como sugere o título, acaba morrendo... Eugênio
descobre o livro por intermédio de Chet que, ávido leitor dos
western, já tinha o seu exemplar em mãos. Indignado, Eugênio
telefona do hotel a seu editor para tirar satisfações. Vale a pena
citarmos um trecho do diálogo entre os dois:
– Não fica nervoso, Eugênio. Isso não te leva a nada.
– Vocês não tinham esse direito! Vocês não sabem o que Jesus Kid representava para mim!
– Eugênio, ele não morreu de verdade. Isso é só um golpe de
marketing.
– Golpe de marketing é o caralho! Vocês o mataram! Assassinos!
– É marketing. Você não viu o que fizeram com o SuperHomem.
– Do que você está falando? Super-Homem o caralho!
– Eles mataram o Super-Homem porque estava mal de vendas e depois o ressuscitaram. Você pode fazer o mesmo. Se
esse número vender bem, você o ressuscita (idem, p. 161).
Eugênio fica estarrecido com a proposta, completamente
indignado; a sua argumentação com o editor procura estabelecer uma diferença entre um produto literário e uma história em
quadrinhos: “– Como eu vou ressuscitar Jesus Kid? Você fala do
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Super-Homem, mas Super-Homem é história em quadrinhos,
não é literatura” (idem, p. 162). Mas o editor acha que também os
western de bolso não são literatura... Ao que nos parece, não se
trata aqui, do ponto de vista do narrador, de argumentar que a
linguagem literária é superior à linguagem dos quadrinhos, ou
seja, não se trata de hierarquizar os discursos na velha chave de
“alta cultura” versus “cultura de massa” (e lembrando que Mutarelli também é quadrinista). Entretanto, a argumentação de Eugênio nos parece bastante clara em seu esforço de discriminar
as especificidades concernentes a cada linguagem artística, e isso
sem prejuízo do diálogo – sempre possível e muitas vezes bemvindo – entre elas. Ora, compreender a linguagem artística em
sua especificidade é condição imprescindível para que se possa
testá-la, aprofundá-la, explorá-la, experimentá-la em seus limites a fim de expandi-los ou transgredi-los. Em princípio, isso
seria um compromisso estético (que também não deixa de ser
ético) do artista com o material com que trabalha. Para o editor,
todavia, não há escrúpulos de nenhuma ordem, já que o que importa é ganhar dinheiro; diluem-se totalmente os valores implicados na elaboração estética em prol do “golpe de marketing”:
“– Bota um cacique, ou um pajé capaz de falar com os animais
e com os mortos e ele o traz de volta” (idem, p. 162).
Em suas dificuldades para elaborar o roteiro de cinema,
Eugênio conhece Geraldo Antunes, um artista incensado por
todos. O artista da moda. O nome parece ser uma brincadeira
que funde os nomes de Gerald Thomas e Arnaldo Antunes, não
sendo obviamente nenhum deles. Trata-se claramente de um
artista antenado com os novos tempos, capaz de colocar para
dialogar diversas linguagens em princípio concorrentes. Chet
o descreve como “teatrólogo, cineasta, multimídia, performer...
O cara é grande, é o maior” (idem, p. 112). A verve satírica do
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romance indicia e corrói aqui o automerchandising de escritores inseridos no mercado cultural. Com efeito, o que menos
importa aí é a obra de Geraldo Antunes, e muito mais a sua
capacidade de autopromoção e exposição pública. O mundo
das letras transformado em mundo dos famosos, talvez com
direito de aparecer estampado, suponhamos, na revista Caras...
O caráter de simulacro da persona Geraldo Antunes é evidenciado pelo narrador: “Esse Geraldo Antunes não parece uma
pessoa real. Parece um desses desenhos animados. Ele é a mistura do Capeta com a Penélope Charmosa.” Mistura que faz
sucesso, e é isso que, no final das contas, importa: “Todas as
pessoas que circulam pelo restaurante, quando o veem, fazem
uma reverência. Não sei se ele é bom no que faz, mas certamente é respeitado e famoso” (idem, pp. 119-120).
E o próprio Eugênio, por fim, também vive o seu “momento
Geraldo Antunes”, quando consegue impressionar um ou outro
hóspede do hotel com seu novo status de “escritor e roteirista
de longas-metragens”. O espelho em que se mira – há alguém
mais bonito do que eu? – devolve-lhe a face da fama:
Até meu andar é diferente. Pareço mais autoconfiante. Minha alta baixa estima parece adormecida. Me olho no espelho. Faço poses. Até que não estou nada mal. Fumo fazendo
cara de escritor importante, depois tento fazer pose de roteirista de cinema. Digo: Obrigado, obrigado. Como se estivesse recebendo a estatueta do Oscar (idem, p. 132).
Observa-se que o protagonista oscila o tempo todo entre
deixar-se cooptar pelos empresários do cinema e a postura
oposta, de crítica à estrutura mercadológica que lhe acena com
os louros da fama. No limite, o que está em questão é vender
ou não a própria alma para o mercado. Em seu momento mais
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agudo de percepção da situação em que se encontra, Eugênio
define-se como uma “puta” – uma puta que, em vez de ser “fodida no corpo”, diz, é “fodida na alma”: “Como uma puta, uma
cadela, alugo meu cérebro para que lhe enfiem ideias e eu as
transforme em prazer, ou divertimento. Como uma puta, cadela, devo dar-lhes ação. Devo diverti-los e fazer o tempo passar” (idem, p. 103). Talvez não seja exagero dizer que o tema da
prostituição do artista no mundo contemporâneo seja a linha de
força principal de Jesus Kid. Assim, pouco à frente retoma-se tal
linha temática, vinculando-se ainda mais claramente a criação
do artista com o negócio do entretenimento. Afirma Eugênio
que doravante irá criar “histórias que entretenham e divirtam
comedores de pipocas em salas de projeção. Vou dar forma
e movimento às palavras e elas se converterão em ação, sangue e
sexo. Engordarei minha conta bancária e saldarei minhas dívidas” (idem, pp. 108-109).
Por fim – e retornando à questão das citações –, as últimas
páginas do romance apontam para o sucesso do filme (que será
feito a partir do roteiro de Eugênio) nos Estados Unidos. Os
empresários elaboram planos de uma estreia em Los Angeles
com estatuto de show para as massas. Propõe-se, por exemplo,
que o roteirista chegue à cidade americana numa moto, o que
também seria indiretamente uma citação ao filme Diários de
motocicleta. “– É feito o filme do Waltinho. Botamos uma gostosa para pilotar e o Eugênio vai na garupa, que tal?” E como
o roteiro ainda não está totalmente concluído, propõe-se também acrescentar uma referência ao clássico Casablanca: “Você
podia fazer o final no aeroporto, tipo Casablanca [...] os gringos
iam amar!” E, finalmente, para completar a salada, faz-se uma
citação a Cães de aluguel, porque, afinal de contas – como nos
é lembrado o tempo todo –, “cinema é ação!”: “Se você pusesse
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um pouco mais de ação no final. Pode ser nessa cena do restaurante, algo assim... tipo Tarantino” (idem, p. 168).
Duas observações sobre as citações ao universo cinematográfico. Primeiramente, pode-se notar que, a exemplo de
O cheiro do ralo, privilegia-se uma certa produção artística
mais recente. Há diversas referências a filmes e diretores que
estão produzindo hoje: Tarantino, Walter Salles, irmãos Coen,
os filmes Barton Fink (sem dúvida nenhuma, o de maior importância para Jesus Kid, cujo núcleo narrativo é praticamente
idêntico ao que se vê nesse filme roteirizado e dirigido pelos
Coen), Adaptation, Quero ser John Malkovich, entre outros. Aqui
também opera, portanto, um procedimento de reciclagem das
ruínas de ainda ontem. Ao mesmo tempo que o procedimento
situa Jesus Kid na cultura contemporânea, também deixa mais
nítidos os pressupostos estéticos e ideológicos do diálogo entre
literatura e cinema, conforme proposto e formalizado pelo romance. Enfim, não há ingenuidade nessas escolhas.
Posto isso, uma segunda observação não menos importante: os cineastas e filmes citados compõem um acervo nada desprezível, isto é, aponta-se para uma produção cinematográfica
cuja qualidade já foi amplamente reconhecida pela crítica especializada. Considerado esse aspecto, pode-se afirmar que a
crítica hilariante esboçada por Mutarelli não se dirige às obras
específicas referidas, mas procura alcançar os atuais interesses
materiais que operam “por trás” do negócio do cinema. E podemos ir além: o romance indica a citação das obras da tradição (ainda que recentíssima) como procedimento-chave na
construção das obras atuais, sejam elas literárias ou cinematográficas. Coloca-se então o dedo firmemente na ferida, pois as
citações (pensemos nas propostas dos empresários de Eugênio)
não visam nada além do verniz da arte de qualidade com o ob237
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jetivo de arrancar dinheiro dos espectadores: diluem-se valores
estéticos, históricos e culturais em favor do mercado – onde
tudo, em princípio, pode ser trocado por tudo – ou, nos termos
do romance, “puta jogada de marketing!” (idem, p. 168).
O cheiro do ralo e Jesus Kid são romances, como procuramos
mostrar, fortemente caracterizados pelo procedimento de citação. No primeiro deles, privilegiam-se as citações literárias
e, no segundo, as cinematográficas. Como as referências são
prioritariamente de obras recentes, os romances acabam constituindo um recorte significativo da produção atual, colocando
em destaque certas linhas de força da cultura contemporânea.
Nota-se neles o diálogo entre diversas expressões artísticas (de
resto, uma marca registrada de Mutarelli), bem como, em outro plano, as relações da cultura brasileira com a produção estrangeira. Textos de ficção plenos de outras obras, poderíamos
dizer que eles funcionam como uma “memória cultural”, um
meio de preservação das obras em face do rápido movimento
de esquecimento que caracteriza o atual estágio da produção
cultural. São narrativas resistentes, pensamos, à descartabilidade ditada pelo mercado.
Citações em obras da literatura brasileira contemporânea
são bastante frequentes, parecendo indicar um esforço contínuo dos escritores para se situarem perante a tradição e seus
percalços, num momento em que a literatura se encontra “em
perigo”, como indica um título recente de Tzvetan Todorov.
Não é o caso aqui de refletirmos sobre a questão do desapreço
atual pela leitura, o que nos levaria para fora dos propósitos
deste ensaio. Só queríamos observar, para concluir, que o procedimento de citação em Mutarelli não se ressente de nenhum
tipo de culto reverencial à produção literária que o antecede,
ou seja, a tradição não funciona como um peso, que poderia
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inibir o livre voo da imaginação criativa. Assim, quando falamos em “memória cultural” e “preservação”, temos em mente
um processo que se efetua com muita vitalidade, que é vivo no
sentido em que se vive a cultura contemporânea de forma radical, procurando-se compreendê-la em seus aspectos positivos
e negativos. Em outras palavras, a citação é puro fermento para
a criatividade própria.
REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MUTARELLI, Lourenço. O cheiro do ralo. São Paulo: Devir, 2002.
_____. Jesus Kid. São Paulo: Devir, 2004.
RAMOS, Graciliano. São Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 1991.
TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Trad. Caio Meira. Rio de Janeiro:
Difel, 2009.
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vAlêNcIO xAvIER: O AUTOR
cOMO PROfANAdOR
Jorge Wolff
De maneira implícita ou explícita, a noção de objeto está no centro de toda filosofia. De maneira
implícita ou explícita (mas sobretudo implícita),
a ficção narrativa comercia com a filosofia. Portanto, é possível afirmar que, de maneira implícita ou explícita, a noção de objeto está no centro
de todo relato de ficção. Essa presença constante assume muitas formas diferentes, mas a meu
juízo a mais importante é a que se refere ao modo
de ser da ficção narrativa, e até poderíamos dizer: de toda narração.
Juan José Saer
Valêncio Xavier Niculitcheff foi um saqueador contumaz
da cultura do espetáculo e, ao mesmo tempo, um profanador
convicto de seu universo simbólico. Deslocou, sobretudo através de seus “livros” em forma de álbuns, o conceito moderno
de literatura em direção ao universo “baixo” da cultura de massas, em nome da profanação do templo realista-naturalista e de
seu sujeito soberano. Fazendo uso das ruínas desse mundo otimista em relação à história humana, pôs inequivocamente em
prática a potência da vida, vista como jogo e narrada com voz
infantil, através de relatos anacrônicos e híbridos. São os gestos
desse autor “impessoal” e de reconhecimento recente pela críti240
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ca e público brasileiros que se pretende examinar neste ensaio,
explorando as fronteiras entre documento e monumento, narrativa e filosofia, realidade e ficção. Ao lançar um olhar ímpio
e impiedoso sobre os modos de ver e de fazer modernos, próprios dessa “sociedade de consumo”, o escritor está ele mesmo
em busca de “formas ainda eficazes de profanação” no ápice da
“religião do capitalismo”.1
De outra parte, são bastante conhecidas as reservas com que
o filósofo francês Jacques Rancière costuma tomar os conceitos
de vanguarda e de modernidade, crítica claramente explicitada
em A partilha do sensível (2005). Segundo ele, o século XX não
começou no século XX, com a emergência das vanguardas históricas, mas ao menos cinco décadas antes, com as mudanças
estéticas provocadas, entre outros motivos, pelo fim das hierarquias temáticas e pela entrada em cena do homem comum, na
pintura e na literatura ditas “realistas”. No contexto brasileiro,
a Semana de Arte Moderna de 1922 estabeleceu um corte profundo – e na época justificado – com a cultura anterior, tendo
deixado marcas igualmente profundas na tradição crítica e intelectual posterior, que retomaria a veia vanguardista depois da
Segunda Guerra Mundial, ou seja, esta tradição crítica – dos
primeiros “futuristas” aos últimos “concretos” – simplesmente
borrou o século XIX como ultrapassado, rastaquera, acadêmico. No caso de Valêncio Xavier, contudo, se encontra inteiro
o imaginário marcado pela fragmentação e seriação típicas
desse Oitocentos moderno, no sentido de positivista e cientificista, encabeçado pela fotografia e depois o cinema, levados
aos cinco cantos do mundo pelos navios e as locomotivas a va1 Nos termos, respectivamente, dos filósofos Giorgio Agamben e Walter Benjamin.
Tomamos aqui o “Elogio da profanação”, de Agamben, como substrato teórico para ler a
obra de Valêncio Xavier.
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por. Nesse(s) veículo(s) o escritor de O mez da grippe e outros livros2 embarca e torna a embarcar, em largo e silencioso périplo,
à margem dos meios de grande circulação durante toda a segunda metade do Novecentos, até seus últimos anos.
valêncio por valêncio
Novella. Raconto. Novela. Mistério. Conto verdade. Novellarébus. Uma novela em figuras. Uma história verídica. Um texto
em imagens. Uma história sem sentido. E outros livros.3
Contador de histórias heteróclitas – mistos de filme, jornal,
fotonovela, romance e gibi –, Valêncio Xavier aparenta trabalhar com uma noção orgânica de “livro”, lançando mão de vários carimbos de gênero ou de lugar, a fim de supostamente
orientar o leitor, a quem com frequência se dirige de modo direto. Explorador do baixo materialismo, perverso voyeur e bricoleur de vozes e imagens alheias, Xavier propõe, no entanto, de
novela em novela, de raconto em raconto, a dissecção de corpos
textuais os mais variados, em forma de documentos ficcionais
postos em choque com um tom permanente de escárnio, com
um eterno risinho entre dentes: o horror, o humor.
Sua concepção de “livro” é um anacronismo deliberado –
a noção de livro andava em baixa quando começou a construir
os seus no auge das neovanguardas –, bem como anacrônico
costuma ser o seu português escrito, assim como obsoleto é
o seu cinema, aquele “primitivo” a que rendia culto. O “livro”
2 Seu primeiro livro publicado por uma grande editora, a Companhia das Letras, em 1998.
3 Esta enumeração dos gêneros propostos nos títulos dos livros do autor corresponde aos
seguintes escritos: O mez da grippe; Maciste no inferno; O minotauro; 13 mistérios + O mistério
da porta aberta; Crimes à moda antiga; Meu 7º- dia; Menino mentido; O barqueiro da morte;
Macao; e Sete (7) o nome das coisas. Quanto ao “e outros livros”, trata-se do complemento de
dois deles, O mez da grippe e Rremembranças da menina de rua morta nua.
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remete, como se sabe, ao imaginário do século XIX e do início do século XX, ao universo dos folhetins e dos almanaques,
à reprodução em série e ao consumo de massa na alvorada da
sociedade do espetáculo. Seus “reclames”, por exemplo, são
lidos hoje como pérolas de uma outra era, pequenos fetiches
estéticos vistos como quase obras de arte, sobretudo quando
comparados à produção publicitária atual. Mas, quando reutilizados e postos em relação de maneira enigmática e complexa,
como o faz o escritor em seus “livros”, em montagem de fragmentos que se encarregam de narrar uma história, os relatos
resultantes ganham sentidos absolutamente novos.
Sob a forma de “escritura experimental pós-utópica”,4 as
ilustrações e os textos recortados e minuciosamente colados
por Valêncio Xavier causam de fato atração e estranhamento
imediatos. Não se trata, evidentemente, do “estranhamento”
à maneira dos formalistas russos, em que literatura era igual a
distância da fala comum, mas, ao contrário, é um estranhamento fundamentado na atração própria a esses materiais tão
banais quanto encantatórios da cultura popular moderna, mesclados à vontade pelo escritor-artista: as figuras dos manuais
científicos expondo o corpo humano por dentro e por fora em
aulas de fisiologia e anatomia; as reproduções de pintores clássicos e modernos; o universo da publicidade, da fotografia e do
cinema primitivos; o uso da grafia antiga da língua portuguesa,
com não poucas referências a Luís de Camões. No entanto, sendo a sua dinâmica discursiva aquela do “choque de fantasmagorias” de linguagens verbais e não verbais, as imagens não são
tomadas como meras ilustrações, assim como os textos não
4 Expressão do crítico Raúl Antelo em “Valêncio Xavier e o pensamento do Mal”, ensaio lido
durante o Simpósio Contatos e Contágios – 30 anos de O mez da grippe de Valêncio Xavier
(Florianópolis, dezembro de 2011), organizado pela pesquisadora Maria Salete Borba.
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são vistos como meras legendas daquelas5 – muito pelo contrário. O estranhamento se intensifica em função desses choques
entre diferentes linguagens, resultando em um tipo de “livro”
alheio a qualquer classificação, em que as próprias palavras são,
antes, fotografias de palavras, ao mesmo tempo que as fotos se
tornam formas de falar e de grafar.
Não à toa, o seu lema é uma frase do cineasta Alain Resnais
– “A forma preexiste em algum lugar e se incorpora no texto,
à medida que vamos escrevendo a história” –, conforme o atesta o próprio escritor:
Eu nunca penso antes de escrever, meu raciocínio é a posteriori... O trabalho já sai pronto – ou não sai. Eu retrabalho,
mas só no sentido de ajustar as palavras, burilar, mudar uma
coisa aqui e ali. Não que o processo tenha algo de sobrenatural, mas sai pronto (XAVIER, 1999, p. 52).
Desse modo, a posteriori, na entrevista-posfácio de Meu
7º- dia (1999), O mez da grippe (1981) seria definido como um
“jornal”, o meio tido pela vanguarda histórica como o “grande
poema coletivo” da modernidade. Lembre-se de que, na mesma
época, produzia-se no país uma experiência gráfico-literária
similar e igualmente rica em potências profanas pós-concretas:
o Jornal Dobrabil (1977-1981), de Glauco Mattoso, tão importante
e mesmo mais próximo do “Enigma Niculitcheff ” do que as
experiências escriturais radicais da literatura brasileira dos
anos 1970, como as Galáxias, de Haroldo de Campos, e o Catatau, de Paulo Leminski. Apontando para o jornalismo impresso em sua faceta mais fait divers, diz Valêncio Xavier:
5 Cf. Borba, Maria Salete. A poética de Valêncio Xavier: anacronismo e deslocamento, 2009.
p. 99.
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Algum tempo depois da publicação, reli O mez da Grippe e vi
que ele era pra ser lido como um jornal, em que a pessoa olha
uma manchete, pula para a página de esportes, se detém na
foto de uma atriz e já vai para ver o crime do dia, e assim por
diante. E, ultimamente, tenho descoberto que em meus livros
você pode ler cada página isoladamente, como se ela fosse
um texto completo – esse Meu 7º- dia é um bom exemplo disto. A montagem dessa leitura é feita na cuca do leitor, não
tem nada de cinema, é coisa nossa (idem, pp. 52-53, grifo meu).
Não parece ser fortuita esta tomada de distância em relação
à leitura mais frequente de sua obra, que a relaciona quase automaticamente ao cinema, leitura provocada, por um lado, pela
própria tematização constante do meio audiovisual em seus “livros” e, por outro, em efeito biográfico, pelo meio de vida do
escritor durante muitos anos, a televisão, tendo sido o escritor
ele mesmo um cineasta-ensaísta destacado. “É coisa bárbara
e nossa”, se diria, posto que se trata, em Valêncio Xavier, não
de uma modernidade no sentido da “religião da modernidade”
e de sua cultura mercantil, mas antes de uma “contramodernidade”: sua produção artístico-literária está profundamente
vinculada não apenas à vertente “malandra” brasileira, que vai
de Gregório de Matos e Manuel Antônio de Almeida a Alcântara Machado e Oswald de Andrade, mas igualmente à linhagem
do “pensamento do mal” de Georges Bataille e à da “grande
lepra criadora” do barroco americano, nos termos de José Lezama Lima.
Sendo assim, a recorrência dos temas da morte e da violência, do sexo e do corpo dissecado não resulta surpreendente,
mas antes se caracterizaria como uma chave de leitura-escritura
das coisas do mundo, na dispersão ordenada que caracteriza
essa obra sui generis, em sua eterna “demanda de um instante
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sagrado” (ANTELO, op. cit.). Pertence simultaneamente, porém,
como já foi sugerido acima, à tradição secular do chulo e do
grotesco, em particular, no que diz respeito ao cinema, ao gênero do terror na época do cinema mudo e em seu auge hollywoodiano nos anos 1930 e 1940 ou, mais brasileiramente, ao gênero
do “terrir” contemporâneo, cujos cultuados ícones nacionais
vão de Gil Gomes a José Mojica Marins, o Zé do Caixão.6
É certo, portanto, que, se existe esta noção orgânica de “livro” em Valêncio Xavier, o escritor a utiliza para desautorizá-la.
Como observa Flora Süssekind em seu “Memento Mori”,7 texto
que prefacia Meu 7º- dia, Valêncio Xavier trabalha com “a dissecção da própria forma romanesca e do seu meio habitual de
veiculação, o livro” (SÜSSEKIND, 1999, p. 4). A ensaísta lembra também que “A moça que virou tigre”8 é uma “reflexão em torno de
uma estátua tumular” e que, em Rremembranças da menina
de rua morta nua (2006, p. 5), a banalização espetacular da morte
é rompida. Com esse procedimento, que vê a ficção autobiográfica – caso de vários de seus “livros” – como prosopopeia,9 em
que o narrador é um defunto-autor (de que o velho Brás Cubas
segue sendo o nosso expoente), a narrativa segundo Valêncio
Xavier adquire um potencial político que seria próprio da ideia
de profanação agambeniana: esse sujeito-defunto que se figura
6 O apresentador Gil Gomes protagoniza o relato que dá título a Rremembranças da menina
de rua morta nua (2006).
7 Expressão eclesiástica que remete à lembrança da morte e dos mortos, empregada muito
a propósito por Süssekind. Na mencionada entrevista em Meu 7º- dia, o próprio Xavier
conta que dedica o livro à ensaísta carioca, dedicatória recusada pelo fato de sua autora já
assinar o prefácio (publicado anteriormente no Jornal do Brasil, em 1996).
8 Texto publicado no “Caderno G” da Gazeta do Povo (Curitiba, 3/11/1995), jornal para
o qual o escritor colaborou intensamente na década de 1990. Esta produção jornalística,
contabilizando nada menos que 888 textos, a grande maioria dedicada ao cinema, foi
resgatada por Maria Salete Borba na dissertação Para além da escritura: a montagem
em Valêncio Xavier (UFSC, 2005). Ela mostra, além disso, como a atividade jornalística
funcionou como oficina para a construção de seus “livros”.
9 Conforme o célebre ensaio de Paul de Man, “Autobiography as de-facement” (1979).
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de maneira transcendental e ao mesmo tempo se apaga, opondo e fundindo os polos do sacro e do profano.
Que a morte seja o tema obsessivo do escritor, qualquer leitor pode comprovar ao se deparar com cada um de seus textos. Pode-se pensar, no entanto, que a “vida”, ao mesmo tempo
“nua” e “plena”, é seu verdadeiro nó górdio, sem pretender com
isso aplacar a crueldade intrínseca à “constelação valenciana”.10
É a vida, vale dizer, a experiência, o seu nó, na medida em que,
de modo obstinado, em todos os seus relatos busca-se de uma
forma ou de outra a dessacralização, a profanação da morte,
busca-se “restituir ao comum aquilo que havia sido separado”,
conforme a definição agambeniana do verbo profanar, examinada no que segue.
valêncio com Agamben
Em seu “Elogio da profanação”, o filósofo Giorgio Agamben
(2007, p. 65) observa que “se consagrar (sacrare) era o termo que
[no direito romano] designava a saída das coisas da esfera do
direito humano [‘separação’], profanar, por sua vez, significava
restituí-las ao livre uso dos homens”. Não se tratava, para tanto,
de qualquer uso do sagrado, mas de um “uso particular” que
significa precisamente “profanar”. Agamben destaca, portanto,
certos usos particulares do sagrado, sobressaindo-se entre eles
os do jogo, um uso especial que “não coincide com o consumo
utilitarista”. Em função disso propõe que, se “os jogos televisi-
10 O que se procura fazer, por exemplo, na contracapa não assinada de Minha mãe
morrendo e o menino mentido (Companhia das Letras): “... É como se nenhuma dor valesse
a pena diante do mundo que ele se permite criar numa folha em branco” – ou em certos
trabalhos acadêmicos pouco dignos do autor.
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vos de massa fazem parte de uma nova liturgia, e secularizam
uma intenção inconscientemente religiosa, fazer com que o
jogo volte à sua vocação puramente profana é uma tarefa política” (idem, pp. 67-68). Tomado como um “puro meio”, um “meio
sem fim”, o jogo seria um dos dispositivos profanatórios mais
eficazes, segundo o filósofo, que vê, contudo, o capitalismo
contemporâneo como o próprio “Improfanável”:
Na sua fase extrema, o capitalismo não é senão um gigantesco dispositivo de captura dos meios puros, ou seja, dos
comportamentos profanatórios. [...] Mais essencial do que
a função de propaganda, que diz respeito à linguagem como
instrumento voltado para um fim, é a captura e neutralização do meio puro por excelência, isto é, da linguagem que se
emancipou dos seus fins comunicativos e assim se prepara
para um novo uso.
Os dispositivos midiáticos têm como objetivo, precisamente, neutralizar esse poder profanatório da linguagem
como meio puro, impedir que o mesmo abra a possibilidade de um novo uso, de uma nova experiência da palavra
(idem, p. 76).
Trata-se da crise da “experiência”, desde que foi diagnosticada no entreguerras por Walter Benjamin, de quem Giorgio
Agamben, como se sabe, é um atento leitor. Como símbolo
maior do ápice dessa crise, Agamben coloca o que chama de
“museificação do mundo”, tendo na vasta indústria do turismo o seu exemplo máximo, funcionando, a seu ver, enquanto
“culto e altar central da religião capitalista”. Como encontrar,
então, a essas alturas, alguma forma eficaz de profanação? Seu
elogio termina com uma análise crítica radical da pornografia
e de suas estrelas no mundo atual, como antes fizera a respeito
da defecação. Nada mais “niculitcheffiano”, se lembrarmos das
várias prostitutas de suas histórias, cujo expoente, a meu ver,
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se encontra em O mistério da prostituta japonesa, de 1986, em
que a “chave da fechadura” do quarto do hotel barato se situa
vertiginosamente no teto, uma vez que o relato se inicia acompanhado de um desenho da arquitetura do aposento visto de
cima; ou, ainda, se lembrarmos de outro “mistério” incluído
em O mez da grippe e outros livros, “O mistério dos sinais da passagem dele pela cidade de Curitiba”, em que o leitor vê, também
na primeira página, uma imagem de um cenário composto por
duas pegadas de sapatos, jornais rasgados e um bolo de fezes
sobre o chão de terra, descrito fria e detalhadamente.11 Como
não poderia deixar de ser, este “mistério” parodia as notícias
sobre o assassinato brutal de uma prostituta chamada “Polaca”,
realmente ocorrido e fartamente explorado pelos jornais da capital paranaense em maio de 1986.
É significativo que o filósofo italiano utilize como exemplo
de “profanação da defecação” certa cena de um filme do diretor de cinema favorito de Valêncio Xavier, “o velho Buñuel”,12
ainda que considere inócua qualquer tentativa individual de
profanação, reduzindo-se fatalmente “a ter apenas valor de paródia” (idem, p. 75), já que os “novos usos”, as novas formas de
“jogar” e de “brincar” com as separações “só poderão ser inventadas de maneira coletiva”. Sendo, no entanto, como se disse antes, “escritura experimental pós-utópica”, segundo Antelo,
em que a paródia avança, vale dizer, degenera em direção ao
pastiche, as intervenções nada livrescas de Valêncio Xavier podem ser tomadas como profanatórias, sobretudo por causa de
11 Os detalhes incluem o nome do jornal e até as notícias veiculadas nos restos de papéis
utilizados por “ele”.
12 Agamben cita, sem nomeá-lo, o penúltimo filme de Luis Buñuel, O fantasma da
liberdade (1974). A predileção de Valêncio Xavier por Buñuel é manifestada na entrevistaposfácio de Meu 7º- dia (p. 52); o cineasta espanhol é secundado por Alain Resnais, Orson
Welles, Peter Greenaway, Shoei Imamura e o “cinema primitivo”.
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sua insistência na dissecção minuciosa dos corpos, sem poupar
– muito pelo contrário – aquele de sua própria mãe, insuflado
pela célebre série de desenhos de Flávio de Carvalho, intitulada
“Minha mãe morrendo”, como também pelos relatos de Minha
mãe, de Georges Bataille, e Conversa na Sicília, de Elio Vittorini,
traduzido ao português pelo próprio escritor brasileiro, junto
com Maria Helena Arrigucci.
Acrescente-se à lista outro livro de culto para Valêncio Xavier, Crescendo durante a guerra numa província ultramarina (1978),
de Silviano Santiago, em que a estratégia pasticheira é posta
em prática do início ao fim, assim como ocorre no romance
ganhador do Prêmio Jabuti de 1982, Em liberdade, em que o escritor mineiro forja um diário de Graciliano Ramos ao sair do
cárcere. Para melhor apreender o seu conceito de pastiche e o
recado – que é ausência de recado – do livro, o próprio Santiago conclui Crescendo... com um anexo intitulado “Como ler os
poemas. Reflexão sobre o que foi lido”, igualmente escrito em
versos. Os últimos deles, bastante citados, dizem:
[...] É preciso saber vestir / o texto, / como tatuagem na própria / pele. // É preciso saber tatuar / o texto, / como sulcos
feitos / na bruta realidade. // O duplo estilete / do texto e da
leitura, / do autor e do leitor. // A dupla tatuagem / contra
o próprio corpo / e a realidade bruta. / A tatuagem que se
imprime / para poder forçar / a barra. / A tatuagem que
o corpo, / depois de violado, / tatua. Violentando (SANTIAGO, 1978, pp. 124-125).
A violência, neste trecho que reivindica bastante claramente
os conceitos de texto e de escritura nos moldes da gramatologia
derridiana e da teoria do texto barthesiana (ao, por exemplo,
colocar no mesmo patamar autor e leitor), é aquela do pastiche, aquela do “escrito sobre um corpo”, nos termos de Severo
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Sarduy, sacramentando a viagem de Crescendo durante a guerra
numa província ultramarina pelo imaginário do rádio, do cinema e dos gibis durante a Segunda Guerra Mundial e o imediato
pós-guerra.13 Mas tal violência sugere também outra conexão
entre os pastiches profanos de Xavier e o “elogio da profanação” de Agamben, na medida em que, segundo o filósofo,
a “aniquilação dos meios puros evidencia-se no dispositivo
que, mais que qualquer outro, parece ter realizado o sonho capitalista da produção de um Improfanável. Trata-se da pornografia” (AGAMBEN, 2007, p. 77). Contra a banalização do erotismo,
em que as pornostars demonstram maior interesse pelo espectador do que pelos seus parceiros ao mirarem diretamente para
a câmera, faz uma reivindicação da “Fotografia Erótica antiga”,
grafada por Agamben com maiúsculas, em remissão ao mesmíssimo universo fartamente explorado pelo “Frankenstein de
Curitiba” (como alguém o chamou) – sem falar em outro de
seus mestres, o próprio “Vampiro de Curitiba”, Dalton Trevisan, cujos livros, se não propõem qualquer tipo de rótulo genérico, apresentam com frequência na capa fotografias eróticas
antigas, espécie de marca registrada do escritor.
Utilizando o conceito de “valor de exposição” de Walter
Benjamin – “Nada poderia caracterizar melhor a nova condição dos objetos e até mesmo do corpo humano na idade do capitalismo realizado do que esse conceito” –, Agamben conclui
o ensaio com um parágrafo em tom de manifesto:
O Improfanável da pornografia – qualquer improfanável –
baseia-se no aprisionamento e na distração de uma intenção
13 Valêncio Xavier afirma, em sua entrevista em Meu 7º- dia (p. 54), ter prestado homenagem especificamente a este livro em MCMXLII, relato híbrido de texto e imagens
sobre os navios brasileiros torpedeados em 1942 pela Marinha nazista, publicado na
Gazeta do Povo em 11/8/1985: “Escrevi MCMXLII de inveja de não ter escrito Crescendo
durante a guerra numa província ultramarina.”
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autenticamente profanatória. Por isso é importante toda vez
arrancar dos dispositivos – de todo dispositivo – a possibilidade de uso que os mesmos capturaram. A profanação do improfanável é a tarefa política da geração que vem (idem, p. 79).
Digamos que Valêncio Xavier fez a sua parte colocando em
xeque e em jogo todo um discurso anestesiante, satisfeito e
amedrontado, como o do cristão diante da cruz ou o do turista dentro do museu, mediado por “ene” telas, que se tornou
o mundo. Em “O que é um mistério”, conferência de 2010, o filósofo italiano retorna ao seu campo de eleição, os escritos eclesiásticos, lembrando que a velha ideia de “mistério” na liturgia
cristã está intimamente ligada à ideia de “drama” e, portanto,
de “ação”, de “jogo”.14 Nos textos híbridos do escritor brasileiro,
incluindo a série de “mistérios”, a noção de jogo vem a ser a sua
principal chave. Mas, no “Elogio da profanação”, a noção de jocus significa “a porta de uma nova felicidade” (AGAMBEN, op. cit.
p. 67), a qual se poderia associar à noção de “porta (entre) aberta”, verificável em diferentes escritos de Xavier Niculitcheff,
representando um signo central em sua poética, e que também
poderia ser expandida, por sua vez, na ideia de “alegria na dor”,
desdobrada por Silviano Santiago primeiro Nas malhas da letra (ensaios, 1988) e depois nas Histórias mal contadas (contos, 2005),
sempre a partir de Mário de Andrade.15
Em O mez da grippe, o leitor é levado a associar a estampa de
um homem de bigodes finos e curvos, de olhar sério e trajado à
maneira europeia, com a imagem daquele que diz “eu” em uma
centena de intervenções, em versos e em primeira pessoa, no
14 Cf. Agamben, Giorgio. “O que é um mistério?”, na edição de dezembro de 2011 do
“panfleto político-cultural”. Sopro nº- 63.
15 Cf. Santiago, Silviano, o ensaio “Poder e alegria. A literatura brasileira pós-64. Reflexões”
(Nas malhas da letra, especialmente pp. 25-27) e a “carta a Mário de Andrade” intitulada “Conversei ontem à tardinha com o nosso querido Carlos” (Histórias mal contadas.
pp. 157-170).
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decorrer do “livro”. É ele que, rodeado por uma nuvem de esqueletos, aparece no rosto do texto, levando na lapela o símbolo
máximo da profanação segundo Xavier Niculitcheff: a letra M
sendo penetrada/profanada por uma cruz. Esta letra M contém,
por sua vez, em seu centro o V de Valêncio, ao qual basta – ensina Xavier em outro raconto16 – acrescentar um risquinho no
meio, para obter o desenho da fenda, da gruta, da porta entreaberta (XAVIER, 2001, p. 29). O símbolo do Mal, se poderia dizer,
reaparece: tudo passa pela “porta entreaberta” (a começar pelo
“mistério” homônimo) quando se trata de Valêncio Xavier, sob
o signo desse encontro herético e recorrente entre a cruz e a letra M. “No monte de venus / parca loura penugem / – como pelo
de pecego – / margeando os lábios rubros do amor / – fenda /
virgem para mim / advinhada por mim”, lê-se, exatamente com
esta grafia, à página 32 de seu mais celebrado “livro”.
Morte, vida, gozo, dor: o M – parece dizer e repetir – tudo
contém. Quando o M encimado pela cruz reaparece, à página 56, em O mez da grippe, anunciam-se os “obitos de hontem”
e ressurge o rosto de bigodes curvos como se fosse o “poeta”
a narrar as delícias do sexo com a moribunda: “Ela geme baixinho, não mais de febre / agora de gôzo? / Gózo e no auge do
gôzo tento / abraçar todo seu corpo que se / me escapa e tenho
nas mãos / como um pássaro peixe” (também com esta grafia).
O mesmo símbolo do Mal ressurge em Meu 7º- dia desde o título, já que a primeira letra da palavra “Meu” vem encimada
pela cruz; depois ocupa, sozinho, as páginas 10 e 32 do livro
de 1999. Já no livro de 2001, que apela a uma iconografia igualmente mórbida porém mais alegre, mesmo ao abordar o medo
e a morte (por exemplo ao expor as cabeças do Museu do Can16 Ver Menino mentido em Minha mãe morrendo e o menino mentido (2001).
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gaço na Bahia), a cruz sai de cena para a entrada triunfal de
“Minha mãe morrendo e o menino mentido”, de “Maria /
o nome da minha mãe”, das várias Marias, Mariinha, Maria
Montez nas páginas subsequentes... e – “foi só por alguns segundos” – da “minha mãe nua / pela porta do banheiro”. Aqui
retoma e reconfigura os relatos escandalosos de Bataille e o
mencionado relato de Elio Vittorini, Conversa na Sicília, em
que a mãe, ao rever o filho adulto após quinze anos, narra com
tranquilidade e minúcia seu caso extramuros com um “viandante”. Questão de profanações a partir da memória do “menino mentido”, que na São Paulo do tempo da guerra seguia, aos
domingos, direto da igreja para o cinema (idem, p. 66).17 Quanto a sua origem, “é problema ainda não resolvido”, conforme
o próprio autor nos créditos finais do livro: “Mentido: falso,
ilusório, que não deu certo – ovo que gorou”, anota, e acrescenta, dedo apontado ao leitor: “Consulte um bom dicionário
etimológico” (idem, p. 219).
Finalmente, é muito significativo que Valêncio Xavier retome a figura de Flávio de Carvalho, artista vanguardista contramoderno por excelência, que o impactou a ponto de batizar um
de seus principais livros:
Na Rua Timbiras, na quadra do nosso prédio, quase esquina
da Avenida São João, tinha uma livraria. Acho que o nome
dela era Cultura. Uma vez expuseram lá os desenhos de Flavio de Carvalho da série “Minha Mãe Morrendo”. Nunca
uma coisa me impressionou tanto. Minha mãe morreu naquele
ano (idem., p. 72, grifos do autor).
Também salta aos olhos em Minha mãe morrendo o fato
de que sempre que aparece uma explicação de cunho cristão,
17 Ver Menino mentido. Topologia da cidade por ele habitada.
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às quais o narrador apela com método, sucede-a uma blasfêmia sob a forma de um chiste, mas não um chiste qualquer:
“ATÉ CUBANOS: Leia ao contrário!” (idem., p. 73).18 Assim, fica
a pergunta...
O que vale um valêncio?
Não é raro ouvir – como Lima Barreto ou Roberto Arlt um dia
ouviram – que Valêncio Xavier “não sabe escrever”, que não
passa de um pseudo-Dalton Trevisan, que é um mero bricoleur
que tergiversa em relação à narrativa escrita, surfando a onda
oportunista do imaginário audiovisual hegemônico. Não à toa,
os velhos concretos é que o receberam com loas semiológicas.
Existiria Valêncio Xavier sem o movimento concretista? Eis
uma pergunta que os líderes do movimento concreto no Brasil – Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari (autor
do elogio ao profanador)19 – seriam bem capazes de formular,
com a veemente negativa embutida de antemão. Então seria a
obra de Valêncio Xavier um novo modo de poesia verbivocovisual, na tradição da neovanguarda paulistana e do “make it
new” de mestre Ezra Pound? Embora não mencione especificamente o concretismo, Flora Süssekind sugere que se trata, sim,
de “linguagem poética”, através de uma série de livros híbridos em que se mesclam as variedades representadas pelos mais
baixos discursos do e sobre o cotidiano e um rigor e um cuidado com a construção de seus textos, que o conectam, por meio
de constelações memorialístico-visuais, aos poetas, tradutores
e ensaístas da poesia concretista brasileira e ao seu chamado
18 À página 129 de Menino mentido, transcreve-se um verbete de dicionário com os
significados da velha palavra portuguesa “boceta”.
19 Por exemplo, em entrevista à Folha de S. Paulo de 8/11/1992.
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“paideuma”, ao seu contracânone, vale dizer, à linhagem da literatura e da poesia “de invenção”:
Reciprocidade crítica entre texto e imagem, entre recortes de
fontes diversas, entre o fait divers, o aparentemente casual,
em torno do qual se constroem essas novelas e uma cuidadosíssima organização gráfica, uma concisão e um cuidado
muitas vezes microscópico com o texto, que parecem aproximá-las, crescentemente, da linguagem poética (SÜSSEKIND,
Flora. In. XAVIER, op. cit., pp. 6-7).
Há, no entanto, um determinado tom em sua poética e uma
determinada insistência no mundo-cão que o levam a apontar,
invariavelmente, para o “baixo” antes que para o “alto”, incluindo aí a adesão fiel deste paulista de nascimento, descendente de
russos, à “província paranaense”, à periferia da periferia, ao “falar feio” curitibano, aos infernos e inferninhos da mente e do cotidiano, em uma palavra, à linhagem “potyesca” e “daltoniana”.20
Valêncio Xavier, como se viu, profanou a morte antes de
mais nada e, com isso, pôs em jogo a própria figura do narrador. Foi ele que abordou a questão da morte – e, por consequência, da morte do narrador – de maneira mais visceral
e obstinada na literatura brasileira. Nas últimas linhas de “Coisas da noite escura”, a última história do último livro publicado
em vida, Rremembranças da menina de rua morta nua e outros livros (2006, p. 135), o narrador encontra um padre em uma igreja,
altas horas da noite. “O padre tinha o rosto cinzento e os olhos
vermelhos, as unhas compridas e afinadas na ponta, isso tudo
me deixou assustado e resolvi sair: ‘Boa-noite senhor padre,
20 Lembre-se aqui da biografia ilustrada do artista plástico paranaense Napoleon Potyguara Lazzarotto, o Poty (1924-1998) – que foi colaborador da revista Joaquim, de Dalton
Trevisan –, escrita pelo amigo e parceiro constante Valêncio Xavier, Poty, trilhos, trilhas e
traços (Fundação Cultural de Curitiba, 1994).
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vou para o hotel.’ ‘Não, não vai. Vai ficar aqui’, disse ele. E me
matou, eu Valêncio! Estou morto.”
Morte do narrador, morte recorrente em seus relatos, assim
como recorrentes foram alguns modos tortos de definir a si
próprio, através do espelho dos outros. Refiro-me não exatamente à ideia de que tudo já está escrito e basta fazer uso do
vivido para escrever – ideia compartilhada de vários modos
por Valêncio Xavier –, mas sim a algumas formas de se autodefinir, inconscientemente, ao buscar definir os outros. É o caso
da maneira como se refere, em artigo jornalístico, ao filme La
jetée, do cineasta Chris Marker: “Instantâneos que se juntam
como um quebra-cabeça, recriando a cada momento o passado, o presente e o futuro – a memória do que virá.”21 Ou – de
modo ainda mais significativo ao apontar para uma ausência –
quando se refere aos escritores John dos Passos e James Joyce:
“Poderíamos dizer que em U.S.A. [do norte-americano] só faltam imagens, integrando-se aos textos. Mas lembremos que nem
a grande revolução literária do nosso século, Ulisses, de James
Joyce chegou tão longe.”22 Os grifos são meus, e nada mais.
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21 Artigo sobre o filme La Jetée (1963), de C. Marker (Gazeta do Povo, Caderno G,
2/11/1995).
22 “O americano intranquilo”, artigo de Valêncio Xavier sobre John dos Passos (Gazeta do
Povo, Caderno G, 21/4/1997).
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Redefinições do cânone,
dobras do nacional
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PASSAgEIRO dO fIM dO dIA,
dE RUbENS fIgUEIREdO: UM OlhAR
SObRE O NATUR AlISMO 1
Paulo Roberto Tonani do Patrocínio
É recorrente o uso do antepositivo grego neo para designar revivências de traços da modernidade na contemporaneidade, apontando para um aparente paradoxo que se fixa na
interseção entre o novo e o passado. O movimento de acréscimo, que passa a ser perpetrado pela inserção do termo grego,
revela que estamos diante de algo que reproduz em diferença uma ação já realizada. Nestes termos, o novo não é explicitamente original, assim como o elemento que fora o objeto
do resgate retorna com rasuras. Resulta desta construção um
complexo jogo de percepções e interpretações que busca compreender os mecanismos sociais, políticos e culturais que tateiam o presente com os olhos voltados para o passado. Estar
diante do novo que se quer antigo e, por outro lado, retornar
ao passado para reformulá-lo no presente, esta pode ser a síntese possível para definirmos a aplicação da simples partícula
grega neo. Se avançarmos em uma varredura pela busca dos
usos desse antepositivo, iremos observar que sua aplicação se
faz presente em diferentes áreas do saber, reforçando o caráter
disjuntivo da temporalidade proposta pela pós-modernidade.
1 Este ensaio é parte do projeto de pesquisa “A representação de territórios marginais na
literatura brasileira”, desenvolvido com o financiamento da Fundação Carlos Chagas Filho
de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ.
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Esta não se resume a uma simples oposição à modernidade e,
principalmente, não se baseia na perpetuação dos elementos
formulados pela época moderna.
É possível enumerar um longo elenco de expressões formadas pelo termo neo para explicar os muitos movimentos de
resgate de elementos do passado, como neocolonialismo, neoliberalismo, neoluteranismo, entre outros. Listar todos os seus
usos e empregos seria um exercício exaustivo e pouco auxiliaria na reflexão aqui encaminhada. Desejo na economia deste
ensaio focar apenas um termo/conceito que se faz presente no
espaço circunscrito da crítica literária, o neonaturalismo.
No entanto, antes de iniciar a discussão acerca deste termo/
conceito, se faz necessário discutir a presença do próprio naturalismo em nossa literatura.
De modo preciso podemos afirmar que o naturalismo chega
às páginas da literatura brasileira em fins do século XIX, e sua
fixação enquanto ideologia estética está explicitamente relacionada às transformações sociais do período, conforme observa
Nelson Werneck Sodré, em O naturalismo no Brasil:
A nova escola chegava ao Brasil, assim, numa fase de mudança, quando as velhas estruturas, profundamente ancoradas
no passado colonial, sofriam forte abalo, quando a economia
do país se modificava, inclusive passando o primado para o
centro-sul, quando a sociedade denunciava as alterações pelo
avultamento da pequena burguesia e pelo esforço da burguesia pela conquista de um lugar, e os acontecimentos políticos
se sucediam acompanhados de fortes campanhas de opinião,
e quando os contatos entre as diversas partes do país e deste com o mundo se arruinavam. O naturalismo não ocorre,
pois, por simples acidente (SODRÉ, 1965, p. 168).
Na reflexão proposta por Nelson Werneck, o naturalismo
surge como ideologia estética que permite a busca de uma res262
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posta aos questionamentos sociais e políticos de fins do século
XIX, sendo utilizado como ferramenta possível para a elaboração de uma linguagem literária que atendia aos anseios de uma
nova classe social: a pequena burguesia urbana. Nestes termos,
conforme o próprio autor sintetiza, a presença do naturalismo
“não é um simples acidente” (idem, ibidem). Ou seja, sua entrada
em solo nacional obedece à influência de mecanismos sociais e
políticos específicos. Por este viés, o olhar do crítico literário não
objetiva apenas compreender a presença desta ideologia estética,
interessa primeiramente identificar as razões que favoreceram
a boa recepção desta escola e, principalmente, sua aclimatação.
A leitura proposta por Nelson Werneck abre um fecundo
campo de investigação que será posteriormente trilhado por
Flora Süssekind, no livro Tal Brasil, qual romance?. Esta investigação tem como premissa lançar um questionamento semelhante ao realizado por Sodré não apenas para identificar as
razões da fixação da primeira escola naturalista na literatura
brasileira, mas, igualmente, para interrogar quais forças políticas e sociais favoreceram as muitas reedições do naturalismo
ao longo do século XX. Resulta deste exercício crítico o estabelecimento de um olhar historiográfico que tem como foco
a série literária e, objeto, o naturalismo. Pensar na presença
desta ideologia estética é estabelecer um corte historicista que
nivela e periodiza nossa literatura, permitindo organizarmos
três grandes períodos de predomínio desta estética, conforme
examina Flora Süssekind, no estudo já citado:
Quando se observam as reedições do naturalismo no Brasil,
dá para perceber os trajes utilizados por esta ideologia estética, dotada de extraordinário poder de transformação. Ora
usa trajes brancos e higiênicos do médico, ora a decadente
roupagem do herdeiro patriarcal, ora as vestes “heroicas” e
“marginais” do repórter (SÜSSEKIND, 1984, pp. 172-3).
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Na avaliação de Süssekind, a permanência do naturalismo
enquanto ideologia estética é um processo cíclico que obedece
a influxos diversos. Dessa forma, nas palavras da crítica literária, não é possível identificar a presença de um mesmo naturalismo nas páginas de nossa literatura, mas, sim, reedições desta
escola. É com base nesta observação que a autora propõe uma
análise dos muitos retornos de um mesmo modelo, colocando
em relevo seus elementos de distinção. A partir desta percepção, importa não apenas constatar o retorno do naturalismo,
mas, principalmente, identificar quais as diferenças que se fazem presentes em cada retorno.
É nesta clave que podemos dizer que as transformações
sofridas pelo naturalismo passam a ser determinadas pela influência de outros discursos e saberes, contribuindo para o seu
caráter múltiplo. São as mediações que passam a construir um
novo modelo de apreciação da realidade social, oferecendo ao
naturalismo novas vestes que o tornam ora dotado de um discurso higienista, ora marcado pela decadência do patriarcalismo e, por fim, o levam a usar a roupagem de um combativo jornalista. A metáfora utilizada demarca não somente a presença
de um corte temático que pode ser alusivo ao predomínio de
um eixo de observação, pois seu caráter prismático resulta da
constatação de que o naturalismo passa a ser transformado
pela perceptível influência de diferentes discursos pegos de
empréstimo. Dessa forma, foi o discurso médico higienista que
dotou o naturalismo de vestes brancas na passagem do século
XIX para o XX, e na década de 1930 foram as ciências sociais
que auxiliaram a abordagem da realidade social brasileira e,
por fim, na década de 1970 coube às ciências da comunicação,
principalmente ao jornalismo, o papel de mediação para a es264
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truturação de uma linguagem que permitisse a tematização das
questões sociais. Por este viés, seguindo os passos de Süssekind,
é possível afirmar que, independentemente da perspectiva adotada, os romances naturalistas “cumprem a delicada função de
restaurar, por meios terapêuticos, econômicos ou jornalísticos, fraturas e divisões especialmente flagrantes na sociedade
brasileira”(idem, ibidem).
Süssekind adota uma perspectiva cíclica para compreender
o retorno do discurso naturalista na história da literatura brasileira. É amparada nesta concepção que a autora propõe um
olhar crítico frente à série literária brasileira, colocando em destaque os momentos de predomínio de uma ideologia estética
naturalista em nossas páginas. No entanto, é possível ampliar
este horizonte de observação e alargar a linha temporal proposta pelo estudo da autora e alcançarmos a contemporaneidade
para visualizarmos ainda a presença de traços desta ideologia
estética em romances publicados a partir da década de 1990.
Dessa forma, é possível dizer que o ciclo novamente se abre
e o naturalismo, que antes parecia estar encapsulado na década
de 1970, retorna agora com novas vestes e amparado em uma
linguagem fria e direta que almeja representar a experiência
urbana pelo temário da violência. Presenciamos também a formação de um intrincado jogo que mistura traços de uma verdade documental com elementos próprios da ficção literária.
Tal característica pode ser facilmente localizada em romances como Cidade de Deus (1997), de Paulo Lins, e Capão pecado
(2000), de Ferréz, nos quais o texto ficcional ganha contornos
de testemunho de uma condição de vida marcada pela vulnerabilidade social. O enlace entre documento e ficção é resultante do lugar ocupado pelo sujeito autoral, que em alguns casos
passa a figurar como personagem da própria narrativa. Ao
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apresentar-se como ex-morador da favela por ele romanceada,
Paulo Lins passa a ser “personagem, ator, agente que se situa
naquele mesmo espaço físico, arquitetônico e simbólico de exclusão de que fala” (RESENDE, 2002, p. 158), como destacou com
grande propriedade Beatriz Resende, em Apontamentos de crítica cultural. A mesma análise pode ser facilmente aplicada a
Ferréz, autor residente na favela do Capão Redondo, localizada
na periferia da Zona Sul de São Paulo, que utiliza sua vivência
marginal como matéria literária. A leitura produzida por Karl
Erik Schøllhammer nos auxilia a observar estes traços.
De Rubem Fonseca a Patrícia Melo e Paulo Lins criou-se
uma tradição canônica de prosa urbana em que o submundo
das grandes cidades, recriado pela apropriação das linguagens da marginalidade, expunha uma realidade brutal e violenta sem dó nem piedade para causar um efeito de espanto
e de choque entre os leitores. Continuando as experiências
dos anos 1970, persiste hoje, sustentado pela sede de realidade geral, um certo neonaturalismo, como no caso do bestseller Cidade de Deus, de Paulo Lins, em que personagem,
tipo social e circunstância narrativa tendem a se confundir e
cujo maior esforço é a recriação dos laços entre esses fatores
determinantes e dos elementos significativos do ambiente
descrito, tela de fundo intransponível e motivadora da ação
narrativa (SCHØLLHAMMER, 2000, p. 223 – grifo meu).
A análise de Schøllhammer é claramente disciplinada pela
cautela e pelo pudor. Pois, mesmo identificando em parte da
prosa contemporânea sinais de continuidade do modelo narrativo criado por Rubem Fonseca, também é possível demarcar
os traços de ruptura que a colocam em diálogo com o naturalismo de autores como João Antônio e José Louzeiro. Nesse
limite interpretativo que se impõe, resta apenas nomear o romance de Paulo Lins como um certo neonaturalismo. A sutil
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nomeação é impulsionada pelo movimento teórico que se fixa
na impossibilidade de tomar tal discurso uma clara continuidade do brutalismo fonsequiano e da necessidade de colocar
em relevo os elementos documentais resultantes do próprio lugar ocupado por Paulo Lins.
Leitura semelhante é produzida por Ângela Maria Dias, no
artigo “Cenas da crueldade: ficção e experiência urbana”, ao
buscar enumerar as principais características da ficção contemporânea que tem como objeto a representação de elementos
da vida urbana a partir do enfoque dos males da desigualdade
social. A análise de Ângela Dias também coloca o romance
de Paulo Lins como precursor deste modelo narrativo e acrescenta uma série de produtos discursivos que, cada qual a seu
modo, investem na abordagem da brutalidade por meio de um
discurso seco e direto.
Essa tendência neodocumental da ficção, com tinturas tardo-naturalistas, constitui a referência óbvia à compulsão pelas situações-limites na vida social. Desde o aparecimento de
Cidade de Deus, de Paulo Lins, sucedido por muitas outras
narrativas da marginalidade e da exclusão – como Estação
Carandiru de Dráuzio Varella, o Memórias de um sobrevivente de Luiz Alberto Mendes, ou ainda o Capão pecado de
Ferréz – que o esforço testemunhal dos narradores, diante
da desumana inserção social vivenciada, patenteia-se na linguagem fluida, comunicável, de forte compleição jornalística, na obsessão etnográfica com a contextualização da cena
e dos caracteres, bem como na enfática objetivação da violência, em precisos recortes de extremos da torpeza humana
(DIAS, 2008, p. 30 – grifo meu).
À lista apresentada por Ângela Dias poderíamos acrescentar
o romance-reportagem Abusado, de Caco Barcelos, e o romance Sorria, você está na Rocinha, de Julio Ludemir, uma vez que
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a análise produzida pela autora pode ser facilmente aplicada a
uma leitura das duas obras citadas. No entanto, interessa-me de
forma mais precisa a utilização que a autora faz da expressão
“tardo-naturalistas” como forma de categorização destes mecanismos discursivos que almejam produzir um efeito de real
por meio de um esforço testemunhal. Ainda que de modo sutil
e, principalmente, com uma apreciação pejorativa, temos mais
uma vez a observação de que estamos diante de um conjunto
de obras que repetem em diferença recursos e métodos de linguagem já utilizados no passado. A ideia de retorno, tal qual
utilizada por Flora Süssekind, não se faz presente, é abandonada para o acionamento da noção de permanência – uma quase
resistência que se alarga no tempo e torna o mecanismo discursivo tardio. Seja como retorno ou como permanência, não
importa, estamos diante de algo que podemos nomear como
naturalismo. Ou, para reforçarmos o movimento de ancoragem ao passado e demarcarmos a contemporaneidade destas
obras, estamos diante de um conjunto de obras que podem ser
nomeadas como neonaturalistas.
A classificação de parte da prosa contemporânea como naturalista é resultante do exercício crítico que possibilita a localização de elementos discursivos, seja na esfera literária ou
até mesmo na extraliterária, que a ligam a um modelo clássico
da modernidade. A presença destes elementos em alguns casos
obedece à própria natureza do texto que, com as tintas naturalistas, consegue dar corpo à matéria narrada. O naturalismo,
nestes termos, surge como uma espécie de recurso e uma escola à qual não se consegue escapar. As diferenças que as obras
literárias contemporâneas inserem no modelo clássico não rasuram a escola estética e ideológica, ao contrário, acabam por
oferecer maior vitalidade ao modelo, tornando-a uma espé268
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cie de referência obrigatória para a tematização da relação da
tríade realidade social, violência e marginalidade.
No entanto, ao pontuar uma série de textos ficcionais que
utilizam a estética naturalista como modelo, não podemos incorrer no equívoco de tornar tal eixo de análise uma ferramenta rígida e totalizadora. Não restam dúvidas de que, ao lado das
obras literárias que recorrem à ideologia naturalista como recurso estético – e, em alguns casos, até mesmo ético –, figuram
textos que rompem com tal paradigma e oferecem um novo
tratamento para as questões sociais. O exemplo mais significativo deste empenho em retratar a realidade social fora de um
olhar naturalista é o livro Contos negreiros, de Marcelino Freire.
Por meio de um interessante experimento de linguagem, que
mescla oralidade e musicalidade, o autor dá corpo a um conjunto de personagens negros, retratando situações prosaicas
sem recorrer às tintas de um colorido naturalista. É igualmente
interessante notar que de forma quase predominante os contos
são estruturados em primeira pessoa, formando uma espécie
de mosaico de depoimentos dos personagens. Mesmo com esta
estrutura, não presenciamos a formação de um discurso pedagógico ou demagógico, não há a denúncia de uma verdade
quase oculta, mas, sim, a existência de falas de personagens que
vivenciam situações de vulnerabilidade sem o acionamento de
um teor testemunhal.
Entre o retorno/permanência do modelo e sua recusa, situase o romance de Rubens Figueiredo, Passageiro do fim do dia
(2010). É neste espaço intersticial, no limite entre o uso da tradição naturalista e a inserção de um novo referente, que o autor narra o trajeto do personagem Pedro dentro de um ônibus
que liga o Centro de uma grande cidade à periferia. O romance
pode ser igualmente lido como um diálogo com o naturalismo
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cientificista do século XIX ao colocar em destaque conceitos
próprios da primeira escola naturalista e, sobretudo, ao acionar
Charles Darwin como uma espécie de interlocutor de Pedro.
Para tornar mais claro o funcionamento do diálogo construído por Rubens Figueiredo, torna-se necessário apresentar
minimamente o enredo do romance. Conforme exposto acima,
o plano narrativo tem como foco o percurso de ônibus que Pedro faz entre o Centro e a periferia, fazendo o deslocamento
entre seu trabalho e a casa da namorada, Rosane, que reside no
Tirol, uma comunidade localizada no extremo oeste da cidade.
O trajeto é longo, e o personagem utiliza como refúgio para apaziguar a demora da viagem a audição de um rádio de pilhas e a
leitura de um livro que relata a vida e as ideias de Darwin. Não
por coincidência, o mesmo livro apresenta a visita que o cientista inglês fizera ao Brasil para coletar insetos e outros animais,
percorrendo, inclusive, a mesma região que o personagem agora corta dentro do ônibus. Será a partir da leitura de trechos do
livro que o personagem aciona as ideias de Darwin como uma
possível mediação para a obtenção de respostas para os questionamentos que surgem durante a viagem. É neste contexto que
o conceito clássico de adaptação surge como uma ferramenta
possível para a compreensão da realidade que cerca Pedro:
A demora do ônibus, o bafo de urina e de lixo, a calçada feita de
buracos e poças, o asfalto ardente com borrões azuis de óleo,
quase a ponto de fumegar – Pedro já estava habituado. Não são
os mimados, mas sim os adaptados que vão sobreviver.
Pensando bem, não era uma questão de hábito nem de
mimos. Acontece que toda hora é hora de avançar na escala
evolutiva, subir mais um degrau. É mesmo impossível ficar
parado e, qualquer que seja a direção em que as pessoas começam a andar, o chão logo toma a forma de uma escada.
Além do mais, é preciso reconhecer: sem mal-estar, sem ad270
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versidade, sem um castigo sequer, como se pode esperar que
haja alguma adaptação? (FIGUEIREDO, 2010, p. 8).
A passagem citada relata o momento de embarque do personagem e o contato com toda a sorte de obstáculos que tornam a simples espera do ônibus em uma batalha cotidiana. O
uso do termo adaptação e da expressão escala evolutiva, que
são evocados por um narrador em terceira pessoa que busca
exprimir os sentimentos e pensamentos de Pedro, não é pacífico. Ao serem inseridas no tecido narrativo, as duas expressões desestabilizam a compreensão da cena e lançam uma nova
compreensão para o narrado. Cria-se, neste sentido, um olhar
de distanciamento que transforma o personagem em um quase
estrangeiro que a tudo examina e busca compreender. Impulsiona esse movimento de observação o uso constante de verbos
que apontam para o ato de olhar. Em diferentes passagens, Rubens Figueiredo filtra a descrição do narrado pelos olhos do
próprio personagem, indicando que o descrito é construído
pela perspectiva de Pedro. Ver, olhar, observar são os únicos
atos realizados por um sujeito que, não ao acaso, busca o assento mais alto do ônibus, localizado acima das rodas traseiras,
para acompanhar a viagem. O realismo descritivo passa a ser
apaziguado pelos traços de subjetividade do olhar do personagem. O olhar surge como metáfora do limite da compreensão
sobre o outro. É o personagem Pedro, descrito como distraído,
que seleciona e organiza os eventos e recolhe as histórias dos
personagens que circundam sua trajetória. Tal operação impede que as descrições sejam pautadas pela objetividade naturalista, rompe-se com o modelo clássico para a inserção de
movimentos especulativos que tangenciam os eventos a partir
do uso de metáforas, tornando o texto mais poético e livre da
densidade naturalista.
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No entanto, o diálogo que Rubens Figueiredo propõe com o
naturalismo clássico não se baseia no uso da estética naturalista. O diálogo que se cria, semelhante a um jogo de aproximação
e afastamento, é mais amplo e tem como foco o próprio questionamento acerca do uso do naturalismo como ideologia para
a tematização da realidade social brasileira. Na leitura do texto,
soa claro que o autor não abarca o cientificismo da escola naturalista, ao contrário, coloca em tensão o lugar deste discurso e,
principalmente, a vitalidade deste modelo de compreensão da
sociedade. Ao propor o diálogo com as teorias evolucionistas de
Darwin, Rubens Figueiredo provoca uma leitura da sociedade
que tem como base a própria interrogação do lugar dos sujeitos
dentro da estrutura social. O jogo que passa a ser estabelecido
é complexo e dotado de muitas nuanças. São os personagens
que, assombrados diante da própria interrogação, questionam
os mecanismos sociais que permitem a sua acomodação dentro
da hierarquia social. São as conversas com Rosane, rememoradas por Pedro durante a viagem de ônibus, que apresentam o
olhar crítico sobre a dinâmica social. A própria formação do
casal insere um interessante aspecto à narrativa: Pedro assume
uma perspectiva distanciada diante dos fatos, enquanto Rosane
surge como uma relatora das situações prosaicas. O relato de
Rosane sobre a experiência de uma amiga de infância em seu
local de trabalho revela este aspecto.
Aconteceu que ali no escritório, entre as paredes limpas e
pintadas em tom pastel, com reproduções de pinturas abstratas penduradas – no meio dos aparelhos eletrônicos novos que zumbiam e piscavam discretos em cima das mesas
– sobre o piso de granito reluzente – debaixo das luzes distribuídas de forma calculada por um arquiteto – ali, onde
todos sabiam que causas jurídicas complicadas, misteriosas,
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caras, recebiam os cuidados e as atenções mais especializadas e onde fortunas trocavam de mão por força de simples
assinaturas num documento – ali, sua vizinha e amiga de
infância tomou, na mesma hora, um aspecto incômodo, impertinente e quase aberrante aos olhos de Rosane, como aos
olhos dos outros (idem, p. 61).
A postura da amiga de infância destoa no ambiente, ganha
um aspecto incômodo e estranho. Uma figura que se destacava por sua não adaptação ao espaço. A detalhada descrição do
espaço coloca em destaque os elementos decorativos típicos de
um ambiente sofisticado e favorece de forma clara a compreensão de que a presença da jovem – por sua conduta, por seus
modos – era destoante. Pois, como a própria Rosane descreve,
Quinze minutos depois de começar a trabalhar, já se irritou
com alguém que reclamou da sua voz alta. Em meia hora
criou um problema sério por se recusar a fazer de novo uma
faxina num pequeno banheiro. Depois brigou com uma colega que reclamou porque ela pegou um pouco da sua comida na geladeira, só para provar. Pegou um telefone celular
que estava em cima de uma mesa para fazer uma ligação e,
três horas depois de chegar, saiu pela porta de vidro aos gritos, abanando os braços, atirou-se direto pela escada, não
quis nem esperar o elevador – com raiva também do elevador, que não vinha buscá-la depressa. E não voltou mais
(idem, p. 62).
A partir da avaliação do comportamento da amiga, Rosane
chega a uma conclusão no mínimo estarrecedora: “Uma doida,
um bicho, disse Rosane para Pedro em voz baixa – com vergonha, com susto de estar dizendo aquilo: um bicho” (idem, ibidem).
A constatação de que sua amiga de infância – com quem brincava depois da escola, com quem cresceu ao mesmo tempo e nas
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mesmas ruas de seu bairro, com quem meteu os pés nas mesmas
poças de lama – é, segundo suas próprias palavras, um bicho, assombra Rosane. O assombro e a vergonha de Rosane surgem em
decorrência do ato de assim nomear uma pessoa que vivenciou
todas as situações de vulnerabilidade social que ela própria sofreu durante a infância, mas que, infelizmente, não conseguiu se
adaptar. Ou, em outra perspectiva, não seria a própria postura
de Rosane uma forma de não adaptação? É o que se percebe no
seguinte trecho: “Mas na certa o que mais incomodava no fundo
daquele tumulto e daquela raiva, capazes de causar uma preocupação tão funda que dava até um pouquinho de náusea em
Rosane, era saber que ela mesma poderia muito bem ser aquela
moça – igualzinha, em cada gesto” (idem, ibidem).
O tópico da adaptação surge de forma suavizada ao ser filtrado pela percepção da personagem. Não é um princípio cientificista que orienta o questionamento produzido por Rosane. Não
há um tom assertivo que regula e determina o estabelecimento
do olhar crítico frente à situação narrada. Ao ser apresentado
pela perspectiva da personagem, o questionamento acerca da
não acomodação da personagem ao ambiente sofisticado do
escritório recebe traços de subjetividade que apaziguam o referencial naturalista e o transformam em uma possibilidade especulativa para a compreensão da dinâmica social.
Rubens Figueiredo apresenta um mundo de opostos marcado pelo conflito. Não apenas o relato produzido por Rosane
sobre a amiga de infância indica esta percepção e este modo de
leitura da sociedade. É possível afirmar que todos os personagens e as histórias são pontuados por este movimento de colisão de sujeitos. É novamente pela interlocução com Darwin,
moldada pela leitura que Pedro faz do livro, que temos a estruturação do olhar que aponta para o cientificismo como modelo
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de compreensão da sociedade. A descrição que Darwin faz de
um combate entre uma vespa e uma aranha, combate este que
foi observado na mesma região que o personagem corta dentro
do ônibus, surge como uma espécie de metáfora da sociedade, uma possibilidade de leitura dos próprios conflitos que são
vivenciados cotidianamente. Contudo, o acionamento desta
imagem não é um ato simples e apresenta também uma dose
de ironia. Como o próprio personagem especula ao fim da leitura, o único ensinamento que o episódio pode apresentar não
está relacionado à ação da aranha ou da vespa, mas ao próprio
Darwin: “Tudo o que soube, ao fim da história, é que Darwin
capturou ‘o tirano e a vítima’ e os levou embora, para si, para seu
país. Cento e setenta anos depois, lida num ônibus, parecia que
era essa toda a moral da fábula” (idem, p. 24). Soa clara a ironia da
cena descrita, não resta uma escapatória, o tirano – encarnado
na figura da vespa que vence a disputa mortal – e a vítima –
representada pela aranha – foram capturados e, por que não,
derrotados. Vale destacar que uma mesma disputa entre uma
vespa e uma aranha é relatada por Darwin e lida por Pedro em
momento posterior da narrativa. A dose irônica é novamente
empregada, no entanto o desfecho é distinto. Neste novo embate, é a aranha que figura como tirana: “Mas agora a vespa é que
era a presa: capturada na cola dos fios da teia” (idem, p. 162). Ou
seja, não há uma ordem rígida que determine as resoluções dos
conflitos e muito menos aponte para um vencedor único.
A percepção de uma sociedade em conflito é apresentada
pelo olhar de Pedro e a partir dos relatos de Rosane. São estes
dois personagens que possibilitam a emergência de episódios
e histórias que, semelhantemente à imagem da disputa entre a
aranha e a vespa, exibem o embate entre tiranos e vítimas. Um
exemplo deste aspecto é a narração que Rosane faz do processo
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de ocupação de seu bairro, indicando que a presença dos novos
residentes influenciou a formação de uma rivalidade com os
moradores de um bairro vizinho:
A imagem daquela gente que de uma hora para outra começou a percorrer as ruas com suas mobílias e seus pertences – gente que parecia vir às pressas e em fuga, e todos ao
mesmo tempo –, a presença à força de pessoas que eles não
chamaram, não conheciam, não queriam ali – acabou formando nos moradores da Várzea a ideia de que aquela gente
vinha para prejudicar, vinha para desvalorizar a vizinhança
de algum jeito, para degradar o bairro todo. Ou, quem sabe,
até coisa pior (idem, p. 38).
A rivalidade ganha ares de disputa, e os bairros são transformados em territórios inimigos separados unicamente por uma
fronteira imaginária. Impulsionada pela presença de homens
armados, cria-se uma cultura da violência que contamina ambos os espaços. Assim, conforme relata a própria personagem,
Os nomes Tirol e Várzea começaram a aparecer nos jornais,
na televisão, nos noticiários de crime. Os grupos armados
nos dois bairros pareceram crescer e se hostilizavam. Juravam vinganças seguidas. Sem notar, as crianças começaram
a aprender aquela raiva desde pequenas. Educavam-se com
ela, tomavam gosto e se alimentavam daquela rivalidade.
Cresciam para a raiva: aquilo lhes dava um peso, enchia
seu horizonte quase vazio – nada senão aquilo fazia delas
alguém mais presente (idem, p. 54).
Um confronto entre pares, entre iguais. Não são os diferentes que duelam em um mesmo território, tal qual ocorrera no
relato de Darwin sobre a batalha entre a vespa e a aranha, são
sujeitos pertencentes a uma mesma classe que utilizam a vio276
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lência como mecanismo de construção identitária, negando
o outro para afirmar a si próprio. A rivalidade entre os dois
bairros de periferia, um fenômeno rotineiro no cenário urbano, é o motor que impulsiona a narrativa e transforma a viagem
de ônibus do personagem em um acontecimento ímpar. Ao serem informados sobre um confronto entre grupos armados das
duas localidades, os passageiros do ônibus passam a especular
sobre a própria segurança, tornando tenso um deslocamento
rotineiro. A inserção do tema da violência urbana na estrutura
da narrativa produz um diálogo com parte significativa da literatura contemporânea que utiliza a margem como cenário e
a violência urbana como eixo temático. O movimento proposto
é pendular, alcança a longa tradição naturalista para colocar
em questão a vitalidade desta ideologia estética no presente.
No interstício entre passado e presente, resta apenas reproduzir a pergunta que Pedro faz ao resgatar trechos de parágrafos do relato de Darwin: “Se uns sobreviviam e outros não, era
porque alguns eram superiores?” (idem, p. 195). É uma aporia.
Não se trata de responder-lhe ou não. É necessário questionar.
Interrogar, principalmente, se as teses do naturalismo literário
ainda ocupam um lugar em nossas páginas e em que medida
é possível abordar a tríade realidade social, violência e marginalidade, sem utilizarmos as cores do naturalismo.
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imaginar o outro. Alteridade, desigualdade, violência na literatura brasileira contemporânea. Dalcastagné, Regina (org.). São Paulo: Editora Horizonte, 2008.
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SODRÉ, Nelson Werneck. O Naturalismo no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1965.
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A cIdAdE IlhAdA –
NARR ATIvA E SOcIEdAdE
lATINO-AMERIcANAS EM RUíNAS
Susana Scramim
história e f icção. Entrelaços
A escrita da memória ganhou força e forma bem definidas na
modernidade em função da assunção da categoria do sujeito
autônomo que escreve para tentar compreender sua própria
vida ou a vida de seu tempo e lugar. Esse tentar compreender
é quase sempre uma empresa destinada ao fracasso porque a
narrativa moderna é o resultado de um sujeito ilhado frente
ao mundo tornado infinito pela linguagem e multifacetado
pelo processo de crescimento e industrialização da sociedade.
Tal fracasso é reconhecido no enfrentamento com o incomensurável; contudo, ele leva a narrativa a uma ultrapassagem de
seus próprios limites. Por isso, Walter Benjamin, ao analisar
a passagem da narrativa clássica para a narrativa moderna,
fala de uma “riqueza dessa vida” e da “descrição dessa riqueza” que confrontadas com o isolamento e o sentimento de
falência nada mais fazem do que impor à narrativa moderna
o “anunciar a profunda perplexidade” de quem vivencia esta
experiência (BENJAMIN, 1994, p. 201). Nessa escrita convergem,
portanto, igualmente as categorias de tempo e lugar, história e
política, com as quais esse sujeito deverá lidar ao empreender
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sua tarefa de tentar criar algum tipo de relação com essa vida
que se apresenta como uma voz singular ao mesmo tempo que
pertence, igualmente, a uma comunidade. Pretende-se, assim,
elaborar uma relação de sentido para a sua formação históricogeográfica, portanto, política, e é daí que deriva a sensação de
perplexidade. A narrativa moderna gira ao redor desse eixo
para tentar encontrar um fio condutor, explicador e indicador
de origens. Pensar originariamente é não cristalizar posição alguma, é deixar o pensamento e a escrita atravessarem-se pelos
conflitos, pelas perdas, pelos desamores, pelos desencontros,
produzindo um texto fruto de passagens que tem a morte como
figura ausente em todas as suas tentativas de remontagem.
Em A educação sentimental, de Flaubert, a morte propriamente não ganha espaço na cena montada pelo texto; porém,
o que deixa de estar presente mais do que a morte é a tentativa de dar uma resposta ao sem sentido da vida que passou.
Desse modo, a negativa atitude de Frederico ao se esquivar da
promessa de gozo dos prazeres que o prostíbulo ofereceria e
abandonar esse espaço da promessa faz com que ele e seu amigo Deslauriers concluam que aquela era a relação com a vida,
ou seja, uma esquiva, uma negatividade, ou talvez um “I would
prefer not to”, fazendo aqui referência a um outro narrador
moderno, também obcecado pela relação entre sujeito, memória e escrita, Herman Mellvile .
No ensaio sobre o narrador, Walter Benjamin observa essa
singularidade do narrador moderno, sua obsessão pelo memorialismo e não pela rememoração, que depende de uma ninfa
que é o espírito inspirador da épica, portanto, de uma narrativa
de pendão para a coletividade. A esse respeito, diz Benjamin:
Com efeito, “sentido da vida” é o centro em torno do qual se
movimentou o romance, mas essa questão não é outra coisa
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que a expressão da perplexidade do leitor quando mergulha
na descrição dessa vida. Num caso, “sentido da vida”, e no
outro, “moral da história” – essas duas palavras de ordem
distinguem entre si o romance e a narrativa, permitindo-nos
compreender o estatuto histórico completamente diferente
de uma e outra forma. Se o modelo mais antigo do romance
é Dom Quixote, o mais recente talvez seja A educação sentimental. As últimas palavras deste romance mostram como
o sentido do período burguês no início do seu declínio se
depositou como um sedimento no copo da vida. Frédéric
e Deslauriers, amigos de juventude, recordam-se de sua mocidade e lembram um pequeno episódio: uma vez, entraram
no bordel de sua cidade natal, furtiva e timidamente, e limitaram-se a oferecer à dona da casa um ramo de flores, que
tinham colhido no jardim. “Falava-se ainda dessa história
três anos depois. Eles a contaram prolixamente, um completando as lembranças do outro, e quando terminaram Frédéric exclamou: – Foi o que de melhor nos aconteceu? – Sim,
talvez. Foi o que nos aconteceu de melhor! Disse Deslauriers.” Com essa descoberta, o romance chega ao seu fim, e
este é mais rigoroso que em qualquer narrativa. Com efeito,
numa narrativa a pergunta – e o que aconteceu depois? – é
plenamente justificada. O romance, ao contrário, não pode
dar um único passo além daquele limite em que, escrevendo
na parte inferior da página a palavra fim, convida o leitor a
refletir sobre o sentido de uma vida (idem, p. 213).
Nessa perplexa relação entre o isolamento e o desejo de
poder comunicar o transbordamento de limites dados inclusive pela limitação ao gesto daquela operação de escrita, seria
plausível pensar a narrativa moderna como uma negativa ao
encontro do sentido. Dessa forma, a narrativa deixa de cultivar
algumas pretensões para contentar-se com os limites do relato.
Se a narrativa moderna se caracterizou por estabelecer-se nos
limites da narração do gênero romanesco, houve um momento
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dentro dessas mesmas fronteiras em que ela, a narrativa, abriu
mão das configurações espaço, tempo e sua relação de homologia com a sociedade, para tentar ultrapassar essas mesmas modulações. De uma escrita da rememoração passa-se a um relato
de vidas, há uma passagem à memória, há um movimento de
um coletivo para um sujeito ilhado, porém ainda se trata de
uma passagem, e o tênue limiar dessa passagem é o inconsciente do indivíduo que será simultaneamente coletivo e singular,
história e ficção.
Romance e fracasso. Narrativa e relato.
A América latina e suas cidades
A cidade ilhada é o título de uma reunião de contos escritos entre
os anos de 1992 a 2008 e publicados esparsamente por Milton
Hatoum. Os contos são relatos, são o espaço intervalar entre
o isolamento do sujeito e a sua tentativa de poder comunicar
esta experiência, calcada em silêncios e em não linguagem,
dentro dos próprios limites do relato. Esses textos são atravessados por duas figuras em comum: os despojos da cidade e a
imagem do rio pujante, aproximando-os de nós, da comunidade para a qual é endereçado o relato. Entretanto, essas figuras
não encontram seus referentes imediatos na realidade ou porque foram destruídos pela violência do tempo ou porque nunca existiram propriamente nessa forma apresentada. Os rios e
as cidades estão apresentados em seus despojos, resultado de
algo que foi violentamente destruído. A escrita que se constrói
a partir dessas figuras é, portanto, uma tentativa de lidar com a
destruição de sua própria forma – a narrativa – da qual, sabemos, a musa épica é a memória.
A narrativa brasileira, como toda a narrativa moderna, teve
de enfrentar o problema da destruição dos limites anteriores
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do gênero, os quais lhe propiciavam poder dizer individualmente o que se validaria para uma comunidade, e que, desse
modo, validavam a escrita do isolamento. Entre a narrativa em
que se constitui o livro Memórias de um sargento de milícias e o
relato que se apresenta em Memórias sentimentais de João Miramar, ou entre Dom Casmurro e Memórias do cárcere, ou mesmo na poesia entre Pauliceia desvairada, de Mário de Andrade,
o livro de poemas Boitempo, de Carlos Drummond de Andrade, e a História do Brasil, de Murilo Mendes, entre todos eles,
o que se processa no atravessamento entre todas essas escritas
é o esfacelamento de um modo de perceber um mundo.
No conto “Encontros na península”, que faz parte da coletânea A cidade ilhada, o isolamento se direciona para a Península
Ibérica. A série composta entre as idiossincrasias estanques em
si mesmas vai marcando lentamente uma arqueologia do declínio: Espanha e Portugal em seu processo de distanciamento por
decadência da civilização europeia; Brasil e América Latina em
sua degeneração do processo de colonização que os impérios
ibéricos sonharam ordenar no Novo Mundo. O que se destaca
nesse relato é o processo de decadência dessas culturas em seus
modos de ser. A relação de não comunicação entre os amantes,
entre uma catalã, e um português, é apresentada como um sintoma da ruína de uma relação entre essas duas culturas promotoras de processos de identificação por dessemelhança.
A outra série que se constrói dentro do conto se estabelece
na incompreensão – novamente o problema da comunicação
– do sentido da narrativa de Machado de Assis, um brasileiro,
diante do processo de autoafirmação por dessemelhança por
parte do português em sua insistência em afirmar a superioridade de Eça de Queirós perante o brasileiro.
Machado de Assis é retomado como figura que se descola,
esse movimento se realiza no mesmo processo, ou seja, o livro
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Memórias póstumas de Brás Cubas é reivindicado no conto de
Hatoum como livro de memórias, é disso que se trata, tanto
em Machado como em Hatoum. Urge escrever a memória na
circunstância de um mundo que se deteriora e corre o risco
de findar. Por que escrever a memória senão para promover
um lugar de abertura no qual se possa situar um outro mundo? Eça de Queirós aparece no texto como sendo mais talentoso que Machado de Assis. O interessante é o cruzamento
da série que o relato constrói, pois é a mulher catalã, tradicionalmente pertencente a uma cultura moderna – republicana
– e democrática, que irá tentar encontrar algum sentido para
a obra de Machado de Assis diante da taxativa rejeição de seu
amante português, tradicionalmente, pertencente a uma cultura arcaica – imperial – e não democrática, a sequer cogitar para
a escrita do brasileiro Machado a possibilidade do desejo por
esse mesmo sentido.
Antes da sobremesa, Soares me disse que Machado só escrevia sobre adúlteros e loucos, era um imitador vulgar de
Laurence Sterne, Shakespeare, Almeida Garrett e alguns
franceses. Faltava-lhe a visão crítica da sociedade, do país,
uma visão que Eça esbanjava. Além disso, o tom filosofante,
voltairiano, dava a Machado um ar pretensioso, puro complexo de colonizado. Teve a pretensão de ser um iluminista
nos trópicos. Pretensão fracassada, claro. E ainda inventou
narradores que parecem rir de tudo: do leitor, de si próprios,
de Deus e até do diabo. Um brasileiro pedante, um cultor de
galhofas, disse Soares a Victoria (HATOUM, 2009, pp. 107-108).
À escrita de Machado de Assis faltava alguma coisa de civilizado, algo de visão crítica da sociedade, do país. E foi isso
o que lhe permitiu escrever e produzir sua subjetividade num
mundo isolado e, portanto, perdido; e por isso, não se trata
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mais de uma escrita de um herói ou indivíduo isolado e sim de
uma subjetividade que, por deixar-se atravessar por outras, dos
loucos e adúlteros, e ainda por ser um mimetizador de outras
subjetividades, alcança uma coletividade.
Entre os anos de 1953 e 1955, Antonio Candido escreve o
ensaio “Literatura e Cultura de 1900 a 1945” no qual já indicava
a relação entre o romance produzido no Brasil e a sociologia, ou
seja, a vontade de narrar o país para explicá-lo, compensando,
dessa maneira, o nosso escasso desenvolvimento das ciências.
Com isso, a relação entre romance e sentido da vida e do país
estaria marcada por um tipo de “menoridade” diante do desenvolvimento do gênero na literatura mais “desenvolvida” nas sociedades europeias. No entanto, quando houve as condições para
o desenvolvimento dessas mesmas ciências sociais e naturais que
se tornaram aptas a explicar o país, tal ocorrência não ofereceu
ao gênero romance, segundo o crítico, as condições de se desenvolver na autêntica formulação da tradição da narrativa.
Até 1945, mais ou menos, vemos uma produção intensa, favorecida por grande surto editorial, em que brilham veteranos e novos, estes com tendência crescente para repudiar
a literatura social e ideológica, o que veio finalmente a predominar sob a forma de uma queda da qualidade média do
romance e uma grande voga de pesquisas formais e psicológicas na poesia. [...]
Em poesia, as melhores vozes ainda nos vêm de antes,
com a de Henriqueta Lisboa (Flor da morte, 1949) ou Vinícius de Moraes (Poemas, sonetos e baladas, 1946), para
não citar Murilo Mendes e Carlos Drummond de Andrade,
cujos primeiros livros são de 1930, ou Manuel Bandeira, prémodernista e modernista da primeira hora. No romance,
é significativo o êxito de um veterano, José Geraldo Vieira,
cuja obra é revalorizada depois da publicação, em 1943, de
A quadragésima porta. Obra de cunho cosmopolita, às voltas
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com problemas intemporais do destino humano, não raro
tendo a Europa por cenário, carregada de intenções simbólicas, de vistosa erudição e complicados arrojos vocabulares.
Não menos significativo, o de Clarice Lispector (Perto do
coração selvagem, 1944; O lustre, 1946), que situa os seus romances fora do espaço, em curiosas encruzilhadas do tempo
psicológico (CANDIDO, 2006, p. 133).
O que está sugerido nessa análise é a constatação de que o
romance nunca conseguiu se realizar na sua formulação plena
na literatura brasileira devido à aproximação da narrativa romanesca das ciências sociais e naturais e, posteriormente, pela
avidez com que a pesquisa formal e psicológica foi assumida
pelos escritores, segundo Candido, distanciando o romance
de sua autêntica formulação, ou seja, afastando-o da relação de
homologia entre narrativa e sociedade. Ainda quando Candido
valoriza as iniciativas de alguns novos, estes novos não são tão
novos assim, pois muitos teriam vindo de antes da tradição do
modernismo que exercitava justamente a explicação da sociedade, e não eram perfeitos. Aqueles novos que não se dedicaram a desenvolver essa formulação modernista e ainda assim
obtiveram êxito editorial como, por exemplo, Clarice Lispector,
com Perto do coração selvagem e O lustre, que se dedica a elaborar uma ambiência psicológica para os seus romances, situando o romanesco “fora do espaço, em curiosas encruzilhadas do
tempo psicológico” (idem, ibidem), teriam se distanciado, desse
modo, do curso do desenvolvimento da autêntica formulação
estética do romance.
O que nos poderia ter desviado tanto assim dos caminhos
da narrativa romanesca? Talvez por estarmos tão longe das
ciências sociais e naturais tenhamos nos forçado a uma aproximação delas e com isso redescoberto o sentido da arte em suas
formas coletivas e primitivas, portanto, malfeitas sob um ponto
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de vista estético estrito, ou talvez também tivéssemos produzido uma ciência malfeita, se pensarmos no sentido epistemológico da produção científica. Quando o romance brasileiro
propôs-se a desenvolver uma qualidade estética mais elevada,
talvez já se estivesse pensando no estético também sob outro
ponto de vista no qual quiçá a relação individual-coletivo, relato-sociedade, ciência-literatura, tenha sido pensada de outra
maneira e, por isso, tenha estado presente nessa nova pauta de
desenvolvimento da pesquisa estética sob novos enfoques.
Os contos e romances de Milton Hatoum, além de retomarem essa prática de aproximação do romance ao ensaio social,
investem na relação individual-coletivo e tentam daí tirar sua
força. Contudo, a partir disso, seria possível detectar uma série de problemas que estariam na ordem do malfeito ou mal
resolvido, especialmente, em se tratando de uma escrita que
vem a público na segunda metade do século XX, ou seja, após
o momento de especialização estética e de uma hipotética dissolução dessa relação entre romance-ensaio social. Interessante
perceber com a análise da obra de Milton Hatoum o quanto nela
os dois diagnósticos se cumprem, vale dizer, existe a relação de
proximidade entre romance-ensaio social e, no seu momento
de realização estética, a máquina do gênero romance falha.
A sensação de isolamento que o indivíduo, herói da narrativa romanesca, experimenta está apresentada como estruturante
do gênero. No entanto, como exemplo do isolamento que se estende a uma experiência com um coletivo, no relato de Hatoum
intitulado “A natureza ri da cultura”, ou, como foi publicado em
1992, na Revista da USP, “Reflexões sobre uma viagem sem fim”,
observa-se que a infância do indivíduo isolado é tomada como
lugar de passagem e de proximidade com a morte. No que diz
respeito a isso, lembre-se de quando Giorgio Agamben, em seu
livro Infância e história, toma a experiência “in-fans”, situada no
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polo oposto ao da experiência com a morte, mantendo, porém,
com ela uma relação de proximidade, como um momento de
ameaça à oposição entre os significantes da diacronia e os da
sincronia, momento de ameaça a nossa concepção de tempo
como oposição entre tempo histórico, teleológico, e o tempo utópico imprecisamente infinito da sincronia. A ideia da infância produz na reflexão de Agamben significantes não estáveis,
e assim o diz na versão para o castelhano de seu livro:
[…] assim como a morte não produz diretamente antepassados, mas larvas, do mesmo modo o nascimento não produz
diretamente homens, mas crianças, que em todas as sociedades têm um particular estatuto diferencial. Se a larva é
morto-vivo ou um meio-morto, a criança é um vivo-morto
ou um meio-vivo (AGAMBEN, 2005, p. 102 – tradução livre).
Nesse sentido, o morto e a criança devem ser entendidos
como fantasmas, como intermédios, como instantes nos quais
a linguagem alcançaria sua possibilidade máxima. Um signo
larva pode criar instabilidade até o ponto de estabelecer simultaneidade, isto é, coexistência de extremos e, dessa forma, suspender o tempo evolutivo. Diz ainda Agamben:
as crianças e as larvas – como significantes instáveis – representam, ao contrário, a descontinuidade e a diferença entre
os dois mundos. O morto não é o antepassado: este é o significado da larva. O antepassado não é o homem vivo: este
é o significado da criança” (idem, p. 123).
Da mesma maneira, a infância pode ser tomada como potência de falar,1 uma vez que é a conjunção momentânea en1 Pode-se desenhar uma órbita para paradiso, esse significante poderoso, potens, o que
tem virtude e eficácia, que inclua aquela faculdade a que se refere Giorgio Agamben
como “potenza de parlare”, a que é capaz de articular a gramática do verbo poder. Sendo
assim, acontece uma articulação de sentidos para esse significante, articular uma língua
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tre passado e presente. A infância, quando não compreendida
como experiência circunstancial, está, portanto, mais apta
a se deslocar para a temporalidade anacrônica da arte e, desse
modo, a vivência do indivíduo isolado transforma-se em experiência subjetiva, porque se deixa atravessar por outras temporalidades, outras experiências. A infância do personagem
Delatour, professor de francês do narrador “A natureza ri da
cultura”, foi vivida em Finistère.
Na voz de Delatour, um forte sotaque reiterava sua afirmação. Venci a timidez e fiz outras perguntas: por que tinha
vindo para o Amazonas? Por que morar em Manaus, esta
cidade ilhada, talvez perdida?
Ele olhou o mapa-múndi, apontou uma região da França:
Ali passei minha infância.
Onde?
No Finistère, num vilarejo ilhado e talvez perdido (HATOUM, op. cit., pp. 97-98).
No entanto, infância e morte estão em relação uma com a
outra. E agora, no conto de Hatoum, a infância é transportada para outro isolamento, historicamente marcado pela morte;
essa mesma infância, essa passagem franca, une o sentimento
de isolamento de um indivíduo, que nesse intervalo já não é
mais um ser não diviso, “in-divíduo”, mas um sujeito produzido mediante um partilhar o sentimento em função de sua posição de trânsito entre tempos. Há a passagem de um isolamento
a outro, de um Finistère a uma Manaus, também “finistère” em
relação ao mundo aquático que a situa em seu ser ilha.
O que amplia essa relação de construção de subjetividades
é a personagem Leonila, índia conhecedora da história e dos
com a qual se construa as relações entre a imagem do passado e a imagem do futuro. Cf.
em Agamben, Giorgio. “Experimentum linguae”. In: Infanzia e storia, Nuova edizione
accresciuta. Turim: Piccola Biblioteca Einaudi, 2001. p XII.
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mitos de seu povo e que frequenta a casa do personagem Delatour. A índia tem entrada livre na casa do professor de francês e
indica, em suas conversas e comentários, uma visão da floresta,
esta floresta que é o seu lar, também indicando uma ideia de sua
infância. Essas imagens que constituem a vida interior da índia
Leonila existem porque estão incorporadas em sua imaginação
à linha com que ela desenha no horizonte o rio Negro, compondo com isso a correlação entre natureza-homem-cultura. Nesse
sentido, se está novamente diante do isolamento de um mundo
em sua oposição a outro que lhe é mais poderoso. Em Manaus,
o rio, ou os rios; em Finistère, o mar. Esse fluxo descontínuo
cresce em potência de destruição e de recriação. As cidades e as
vidas são devastadas por esse fluxo descontínuo e voraz.
Na literatura brasileira, as cidades e os rios são imagens
muito frequentes, especialmente, em se tratando da escrita da
memória, esse gênero tão ao gosto de nossa cultura e, conforme assinalou Antonio Candido, em que a demanda pelo trabalho das ciências sociais é alta. Da São Paulo dos modernistas,
cidade que o tempo histórico constrói e destrói, que se faz e
desfaz na temporalidade da poesia no fluxo do Tietê, tanto de
Mário de Andrade como de Paulo Duarte, de Memórias da catedral, até a São Paulo de Bernardo Carvalho; da Manaus de
Euclides da Cunha até a de Milton Hatoum, são apresentadas
nessas escritas as cidades que o tempo histórico destrói, desfaz.
A cidade morre – bem como renasce de outra maneira – na
temporalidade da poesia a partir do fluxo gerado na conjunção
dos rios: Tietê, Solimões e Negro.2
Em A cidade das letras, Ángel Rama destaca a importância da
“ordem”, vale dizer, do ordenamento social e urbano no início
2 Apenas para relembrar a menção a esses rios na literatura brasileira, pois há muitos mais
a serem retomados numa análise mais ampla, como, por exemplo, toda a relação que João
Cabral de Melo Neto estabelece com o Capibaribe.
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do período colonial. A América foi idealizada, ordenada, antes
mesmo de ser concretizada pelos colonizadores. Tal ordenação
servia para o controle do império na colônia inculta, controle fundado no modelo de centralização e autoridade. Segundo
Rama, o resultado disso foi uma ordem física e outra ordem relativa ao âmbito do signo. A América Latina serviu como campo de experimentação espanhol e português. A partir desse
modelo de colonização, seria explicada a valorização da cidade
sobre o campo, valorização esta que está na base do processo
civilizatório ou do processo de modernização implantado na
América Latina. A cidade é civilização, o campo é barbárie; na
submissão do campo às cidades aparece outro elemento importante: a “educação das letras”, com forte pendão europeu.
De conformidade com esses procedimentos [os de que com
o signo se pode representar uma coisa ou o sonho da coisa], as cidades americanas foram remetidas desde as suas
origens a uma dupla vida. A correspondente à ordem física
que, por ser sensível, material, está submetida aos vaivéns da
construção e da destruição, da instauração e da renovação,
e, sobretudo, aos impulsos da invenção circunstancial de indivíduos e grupos segundo seu momento e situação. Acima
dela, a correspondente à ordem dos signos que atuam a nível
simbólico, desde antes de qualquer realização, e também durante e depois, pois dispõem de uma inalterabilidade a que
pouco concernem os avatares materiais (RAMA, 1985, p. 32).
Manaus foi fundada em 1669, a partir do forte de São José
da Barra do Rio Negro, portanto, uma cidade fortificada, militarizada, com a função de controlar um território a ser ordenado. Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, assinala
que a empresa colonizadora portuguesa não operou como a
espanhola, faltou ao império português a ordem castelhana e,
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por isso, não houve um total controle militar, político e econômico sobre as terras conquistadas.
Não se quer dizer que essa vontade criadora distinguisse
sempre o esforço castelhano e que nele as boas intenções tenham triunfado persistentemente sobre todos os esforços e
prevalecido sobre a inércia dos homens. Mas é indiscutível
por isso que seu trabalho se distingue do trabalho português
no Brasil. Dir-se-ia que, aqui, a colônia é simples lugar de
passagem, para o governo como para os súditos (HOLANDA,
1995, p. 99).
Nesse sentido, o que poderia ser compreendido como algo
problemático, ou seja, tomar o espaço social como um lugar de
passagem, pode ganhar contornos mais interessantes do que
apenas defeitos. Manaus foi fundada a partir de uma fortificação militar, porém o que restou de seu processo racional de ordenamento e controle da economia e da política da localidade
não condiz com o seu projeto. O que teria acontecido? Ideias
mal formuladas ou mal acomodadas, projetos elaborados com
incompetência e executados com descaso? Ou talvez um puro
ato de saber ler o lugar onde se estava? Quiçá uma constatação
da impossibilidade de domá-lo.
A cidade de Manaus aparece em toda a obra de Milton Hatoum. Já em seu primeiro livro, Amazonas: palavras e imagens de
um rio entre ruínas (HATOUM, 1979, p. 1),3 que reúne poemas de
Hatoum e fotografias de Maria Isabel Gouvêia, Sônia da Silva
Lorenz e João Luiz Musa, é possível encontrar a potência criadora que a memória do rio e da cidade provoca nos sujeitos
produtores. Há um poema em prosa no qual em duas colunas
3 Hatoum, Milton. Amazonas: palavras e imagens de um rio entre ruínas. Fotografias
de Maria Isabel Gouvêia, Sônia da Silva Lorenz e João Luiz Musa. São Paulo: Livraria
Diadorim, 1979. A revista Babel, em seu primeiro número, republicou vários poemas desse
livro de Hatoum. Cf. Babel, Santos, v. 1, nº- 1, mar/jul. 2000.
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paralelas se espelham um relato de Euclides da Cunha e outro
de Hatoum, intitulados respectivamente “1906 1977”. A voz de
Euclides interrompe:
não se conhece na história exemplo mais golpeante de emigração tão anárquica, tão precipitada e tão violadora dos
mais vulgares preceitos de aclimatamento, quanto o da que
desde 1879 até hoje atirou, em sucessivas levas, as populações sertanejas do território entre a Paraíba e o Ceará para
aquele recanto do Amazonas (idem, p. 20).
A voz de Hatoum antepõe-se:
O fechamento deste “ciclo da borracha” originou os primeiros sintomas de uma paralisia aguda e que fez Manaus andar
quase 70 anos sobre cadeiras de rodas (de admirável látex),
circulando no cenário desengonçado que os barões e políticos da época montaram. Súbito, a cidade largou sua cadeira
e montou numa motocicleta, distribuindo vitrines em cada
esquina de suas ruas centrais, penteando suas louras perucas
e fazendo estrondosos e inúteis cálculos matemáticos com
maquininhas eletrônicas. Instalou-se rapidamente um bazar
tropical (idem, ibidem).
O poema “Rio entre ruínas”, de Hatoum, recorda e desdobra
os sentidos de um ensaio de Euclides da Cunha, intitulado “Entre as ruínas” (CUNHA, 1995, p. 456).
No poema “Rio entre ruínas”, a história do rio se entrelaça
com a da região. O processo de declínio lhe dá o tom. Os verbos
que compõem os versos da primeira estrofe perguntam pelas
ruínas, pelas sobras do rio e da região.
Que sobrou de ti?
Que outra folha brotar?
Que rugido ainda escoar?
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Qual o verbo manhoso escorrer?
Rosnar? remar? roçar? sussurrar
Qual verde? (HATOUM, 1979, p. 16)
“Sobrar”, “brotar” são ações passivas e, por sua vez, “escoar”,
“escorrer”, “rosnar”, “roçar”, “sussurrar” indicam ações mínimas, insinuando quase não ações. A história do rio e da região
é resultado delas, as não ações ou ações mínimas, e não de um
sujeito produtor de ações ativas, a “energeia” aristotélica,4 a passagem à ação prática. Em entrevista recente, Hatoum falava de
uma marca muito forte que a floresta imprime em quem já viveu nela, certa passividade diante do infinito, isto é, diante do
impossível. Essa marca, segundo o autor, faz com que se enxergue “o verdadeiro tamanho do ser humano” (HATOUM, 2006, p. 8).
O rio e a região no poema podem se referir ao Amazonas,
como também a qualquer rio. O que importa é o fluxo devastador das águas que produz sobras. Suas margens arruinadas
são matéria. E é dessas ruínas que brota o poema, um sussurro.
Diante da ruína, o poeta se vê motivado a escrever, e sua escrita
se faz fluxo novamente, produzindo mais “ruinamentos”, mais
terras caídas.
Planície e país finalmente se entrelaçam
não em gravetos ou essência.
Se entrelaçam em farpas de gaiola
como um pássaro que ao voar desaba
e cai no desconhecido
cai sobre o mais disforme
4 Para um aprofundamento da distinção que Aristóteles faz entre dynamis e energeia,
respectivamente, ação em potência que não se põe em prática, potência passiva, e a energeia, potência ativa, a ação prática propriamente dita, conferir no estudo de Giorgio
Agamben “Potência do pensamento”, tradução de Carolina Pizzolo Torquato, in Revista
Departamento de Psicologia, UFF, vol. 18, nº- 1, Niterói, Jan./Jun. 2006.
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sobre a matéria que não é mais única
que não é plana ou funda
que não é rio ou relva
que já pode ser tudo:
Maranhão, degelo, Ucrânia (HATOUM, 1979 p. 16).
Terras caídas e fluxo informe são os movimentos que Euclides da Cunha observou e anotou em sua viagem ao Amazonas.
Os ensaios de Euclides da Cunha que derivaram dessa viagem
destacam a existência de um mundo em decadência, separado, mas nem tanto, do país, um mundo perdido que causa estranheza a qual, paradoxalmente, produz certa identificação,
certa familiaridade no espírito nacionalista daquele produtor
da visão da Amazônia. Nas “Impressões gerais” de outro livro
de Euclides da Cunha sobre a Amazônia, À margem da história,
destaca-se o contrassenso provocado pela decadência natural
da história da região.
Naqueles lugares, o brasileiro salta: é estrangeiro: e está pisando terras brasileiras. Antolha-se-lhe em contrassenso
pasmoso: à ficção de direito estabelecendo por vezes a exterritorialidade, que é a pátria sem a terra, contrapõe-se uma
outra, rudemente física: a terra sem a pátria.
Numa só noite (29 de julho de 1866) as “terras caídas” da
margem esquerda do Amazonas desmoronaram numa linha
contínua de cinquenta léguas.
É o processo antigo, invariável – patenteando-se ainda
no diminuto raio da nossa história (CUNHA, 1922, p. 16).
Euclides da Cunha separa a Amazônia do Brasil para vê-la
melhor, para dissecá-la e devolvê-la, não mais como território
político nacional, mas permeada de uma visão extraterritorial,
geográfica, porque carregada de impressões humanas. O texto
de Euclides da Cunha se constrói a partir de contrastes; no en295
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tanto, os confrontos construídos obedecem, de alguma maneira, a uma estrutura especular: pátria sem terra; terra sem pátria.
Os diversos tempo e espaço do mundo amazônico são pensados de maneira simultânea dentro e fora das fronteiras territoriais e históricas. O pensamento de Euclides da Cunha se
coaduna com obras em que o desejo de ser arte importa mais do
que o fazer artístico propriamente dito. Em “Nativismo provisório”, Euclides da Cunha sublinha: “Deste modo, a simpatia pelo
estrangeiro, baseamo-la, até movidos pelo egoísmo, nos nossos
interesses imediatos e mais urgentes” (CUNHA, 1995, p. 212).
cidades e ruínas
No livro de contos A cidade ilhada, Manaus e seus rios vão compondo não somente a paisagem natural e social, mas principalmente o modo de lidar com as ruínas do empreendimento
da colonização, cujos efeitos continuam ressoando no presente. O contato da cidade, da floresta, do rio com seus indivíduos acontece nos bordéis, sempre situados nas cercanias do
rio, como, por exemplo, o Varandas de Eva, topônimo do conto
“Varandas de Eva”, ou no restaurante do Hotel Amazonas, onde
os dois poetas da província se colocam diante de dois fluxos,
o passado e o presente. Já no conto “Dois tempos”, ao visitar
seu tio Ranulfo, o narrador janta no restaurante Sereia do Rio,
o que o faz recordar-se de uma cidade de outro tempo. Tudo isso
promove uma passagem da condição de isolamento dos personagens e do espaço geográfico, característica dos indivíduos e
das cidades modernas, para um estado de subjetivação em que
se possibilita o compartilhamento dos afetos e dos laços sociais.
Subjetivação, nesse sentido, é o resultado do ato que promove
a passagem entre morte e infância, passagem entre memória
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de um indivíduo isolado e memória de uma coletividade, produzindo, com isso, os afetos que criam laços sociais. Passamos,
portanto, do indivíduo para a comunidade, mesmo que esse
enlaçamento seja provisório, como exige todo movimento incessante de passagem. Dessa maneira, sendo afeto, o resultado
desse ato de passagem não deve ser compreendido como cristalização de um estado – de uma subjetividade – e sim, conforme desenvolveu Gilles Deleuze em seu trabalho sobre Spinoza,
deve ser vivido como movimento de um corpo sobre outro. Deleuze destaca, quando se refere à característica do signo para
o filósofo da Ética, que o signo tem sempre como tarefa produzir um efeito. Num primeiro momento, o efeito é um vestígio de
um corpo sobre outro, é o estado de um corpo que sofreu a ação
de outro corpo. Portanto, segundo Deleuze, em Spinoza é o efeito uma affectio. As afecções são conhecidas pelas ideias que temos, pelas sensações ou percepções. No entanto, essas afecções
não são efeitos instantâneos de um corpo sobre outro, mas são,
especialmente, efeitos sobre a própria duração. Com isso podemos compreender que as afecções ou afetos e, portanto, os efeitos são passagens de um estado a outro. Deleuze dirá que esses
efeitos, pensados como duração, não podem mais ser chamados de afecções, mas antes devem ser pensados como “afectos”
propriamente ditos, pois indicam que as durações constituem
“passagens, devires, ascensões e quedas, variações contínuas de
potência que vão de um estado a outro” (DELEUZE, 1997, p. 79),
e, diríamos ainda, de uma subjetividade a outra, criando com
essas passagens os laços sociais, ou seja, a sociedade, precária,
porque mais afeita a durações, mas, desde já, sociedade.
Com isso, todos os contatos e passagens entrecruzados
nesses pequenos grandes relatos de um mundo arruinado têm
a potência de levar o leitor, esse indivíduo ávido por expansão,
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a trilhar também essas mesmas passagens: entre Lyris Doherty
e seu observador – não nos esquecendo jamais de que Lyris, variante do germânico Loris, significa chama ou flama, e também
indica o furor dos que tangem e enunciam a lírica, poetas possuídos pelos deuses –; entre a mãe de Tarso e o narrador, aquela
linda mulher que encantou o outrora menino, futuro narrador
do conto e executor do ato de rememorar, em sua primeira noite
no Varandas de Eva; entre Dalberto e seu irmão, por ele assassinado num gesto sem qualquer abertura ao comportamento
civilizado, num ato em que a própria natureza tremeu frente ao
terror moral do gesto assassino, provocado porque o irmão e
sua mulher tiveram um relacionamento amoroso. Todas essas
passagens, mínimas e lacunares, produzidas por esses relatos,
não poderiam ser compreendidas dentro de um controle do gênero; ao contrário, elas só podem ser compartilhadas num movimento entre subjetividades passantes, lacunares e inconclusas.
A quem exige desses relatos a perfeição do gênero somente
resta a sensação do fracasso.
REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2005.
______.“Experimentum linguae”. In: Infanzia e storia, Nuova edizione accresciuta. Turim: Piccola Biblioteca Einaudi, 2001.
______. “L’autore come gesto”, Profanazioni. Roma: Nottetempo, 2005.
______.“Potência do pensamento”, tradução de Carolina Pizzolo Torquato. In:
Revista Departamento de Psicologia, UFF, v. 18, nº- 1, Niterói, Jan./Jun. 2006.
BENJAMIN, Walter. O narrador, em Magia e Técnica. Arte e Política: Ensaios sobre literatura e história da cultura, tradução de Sérgio P. Rouanet. São Paulo:
Brasiliense, 1994.
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.
CUNHA, Euclides da. À margem da história. 3ª- ed. Porto: Chardon, 1922.
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CUNHA, Euclides da. “Contrastes e confrontos”. In: Euclides da Cunha. Obra
Completa. Volume I. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
DELEUZE, Gilles, “Spinoza e as três éticas”. In: Crítica e clínica, tradução Peter
Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1997.
_____. Espinosa. Filosofia prática, tradução Daniel Lins e Fabien Pascal. São Paulo: Escuta, 2002.
HATOUM, Milton. A cidade ilhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
_____. Amazonas: palavras e imagens de um rio entre ruínas, Fotografias de Maria Isabel Gouvêia, Sônia da Silva Lorenz e João Luiz Musa. São Paulo: Livraria Diadorim, 1979.
_____. “Milton Hatoum, ou o Flaubert da Floresta”, entrevista concedida a Rogério Galindo, para o Caderno G, da Gazeta do Povo, Curitiba, 22/10/2006.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil, São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
RAMA, Ángel. A cidade das letras, tradução de Emir Sader. São Paulo: Brasiliense, 1985.
Revista Babel, Santos, v. 1, nº- 1, mar/jul. 2000.
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dE bAR ATAS, MOlUScOS E PEIxES.
SObRE AzUl-cORvO , dE AdRIANA lISbOA
Paloma Vidal
Remontando genealogias, criando, reproduzindo e desmentindo linhagens, a crítica agrupa e avalia, cria cisões e reativa afinidades. O caso de Samuel Rawet, tomado por Rosana
Bines como exemplo de um “modo de desconexão”,1 é iluminador dos efeitos desses procedimentos: exemplar solitário ao
qual não se podem designar predecessores nem sucessores,
a obra do escritor, desconectada da cena literária brasileira por
um paradigma do nacional que não parece comportar uma irredutível estrangeiridade, só pode ser lida na comparação europeizante com obras da literatura “universal”.
Como sugere Rosana, algumas obras exigem a suspensão
desse paradigma para que possam ser lidas como “diferença
inscrita no corpo mesmo da literatura brasileira” (BINES, 2007,
p. 57). Essa ideia me parece um bom ponto de partida para abordar o trabalho da escritora Adriana Lisboa. Quem sabe com ela
1 O texto de Rosana Bines trabalha com a hipótese instigante de que a ênfase dada
tradicionalmente pela crítica ao lugar solitário da Rawet, a partir de uma leitura que faz
uma ligação direta entre vida e obra, “escamoteia a dificuldade da própria crítica em
formular uma genealogia brasileira para a obra do escritor” (56). Tal dificuldade, sustenta
Rosana, está relacionada com certos “moldes de uma escrita brasileira, identificada desde
o nosso primeiro modernismo de 1922, pelos traços solares de espontaneidade e de
coloquialidade” (idem). Ao não conseguir ambientar neles uma escrita que, entre outras
características, estrangeiriza o português, a crítica preferiu mantê-la a uma “prudente
distância das letras nacionais” (idem), comparando-a com autores como Kafka ou Beckett
e isolando Rawet no lugar de um pioneiro sem sucessores.
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possamos nos liberar de polarizações sem ceder precocemente
à tentação de adjudicar à multiplicidade um lugar central demais, mas também sem abdicar dos riscos que constituem os
procedimentos críticos quando produzem modos singulares
de ler uma obra – isto é, sem abdicar da tarefa de criar tensões
dentro disso que chamamos “literatura brasileira”.
Efetivamente, desde os primeiros livros de Adriana Lisboa,
a crítica vem criando modos de lê-los: para dar um exemplo, a
orelha de Ítalo Moriconi para o seu segundo livro, Sinfonia em
branco (2001), ressalta o retorno de uma narrativa tradicional,
que cultiva o bem escrever e sabe desenvolver um enredo. “Sherazade pós-moderna”, diz Moriconi, “ela ata, desata e reata os
fios de uma narrativa delicada e fascinante” (MORICONI, 2001).
O caráter anacrônico aparece positivado aqui assim como
em comentários posteriores, demarcando o território de uma
escrita que arrisca se voltar para a memória para trazer à superfície o que a urgência e a superficialidade do mundo contemporâneo não permitem ver; a crítica valoriza que possa haver
no início do século XXI uma escritora disposta a reconstruir
histórias e identifica que há nesse resgate não só um retorno
a uma forma literária anterior, mas também um enclave aos
aspectos mais cristalizados da vida contemporânea.
Assim, o elogio contido em termos como “elegância”, “sofisticação”, “delicadeza” e “simplicidade”, além de definir um
estilo, serve para destacar uma maneira deslocada de ser contemporâneo, em que a ideia mesma do contemporâneo é posta
em xeque por meio de temporalidades superpostas, quando se
enreda presente com passado, relendo um por outro, criando
fios, teias, filigranas que delicadamente os ligam, numa série
metafórica vinculada ao aspecto artesanal da escrita como tecido, urdidura, criação minuciosa e atenta ao detalhe mínimo,
que a própria obra sustenta romance após romance.
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Se essa imagem aparece já no título de Os fios da memória
(1999), primeiro livro de Adriana, toda a narrativa se desenvolve
relacionada à ideia de um texto que se produz com a paciência e
a perseverança do trabalho manual, numa temporalidade alheia
às tribulações do mundo, entrando e saindo de histórias familiares muito antigas, gravadas em folhas e fotos amareladas pelo
tempo, até se chegar a um presente que se quer compreender.
Igualmente, em Sinfonia em branco trata-se da escrita como
uma elaboração da memória, que é frequentemente relacionada com a recuperação de um simples traço, algo insignificante
que pode ter passado despercebido, mas deixou suas marcas,
como a imagem reiterada da borboleta na pedreira: “Na grande
pedreira que encimava o morro mais próximo uma borboleta
tardia abriu suas asas multicoloridas e lançou-se no abismo”
(LISBOA, 2001, p. 26).
Justifica-se então que o anacronismo apareça como linha de
leitura, como propõe Luciene Azevedo, por exemplo, ao voltar
a Hume para recuperar a concepção de uma justa medida entre
uma escrita simples e uma escrita refinada. Os textos de Adriana a encontrariam desdobrada de várias maneiras, através de
um mecanismo fundamental de equilíbrio entre leve e pesado,
despojamento e densidade, como se, dando um passo atrás no
sentido de tomar deliberadamente distância do presente, seu
texto buscasse uma sensibilidade extinta pelos excessos contemporâneos. Essa sensibilidade se procura na linguagem, na
imagem, no acontecimento, e o instrumento principal dessa
busca é a memória: “A memória açula os sentidos, pondo-os
em alerta. Os personagens estão sempre atentos a odores, sons
e texturas que materializam um cenário minimalista, apequenado e consolidado em pequenos punctum” (AZEVEDO, 2004).
Luciene descreve assim, como uma das possíveis estratégias
para enfrentar o presente, uma narrativa voltada para o passa302
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do, sem urgência, avessa à transgressão, empenhada em “fazer
vigorar um ritmo dissoluto” capaz de “provocar uma rachadura à imediaticidade, à instantaneidade, à superficialidade de
todas as coisas” (idem).
Mesmo positivada, no entanto, a caracterização de anacrônicos fez pairar sobre os livros de Adriana uma inadequação,
e a obra pareceu correr o risco de cair num não lugar da literatura brasileira recente, o que acabou tornando necessário seu
resgate. Assim o faz Denilson Lopes num capítulo de A delicadeza: estética, experiência e paisagens em que propõe uma leitura
de Sinfonia em branco. Centrado inicialmente na oposição entre
a casa e a urbe, ele se pergunta o que restaria de espaço que já
rendeu devaneio e beleza na literatura brasileira mas na contemporaneidade parece ter quase desaparecido diante do fascínio que desperta o turbilhão das cidades. O romance de Adriana aparece como esse resto para o qual, no entanto, é possível
encontrar uma linhagem que estaria, por exemplo, em Buriti,
de Guimarães Rosa.
Denilson reconstrói essa genealogia indicando que a leveza
é o que guia a criação do espaço e dos personagens do romance de Guimarães, que aborda, como outros da mesma época,
a passagem do mundo rural para o urbano. Só que ali essa passagem não se dá sob o signo definitivo da catástrofe: “O BuritiGrande é mais do que sobrevivente de outros tempos, de um
mundo arcaico, aquático e inumano. Como a figura antiga de
Liodoro, ele é a síntese dos mistérios do passado que emergem
no presente, resume uma ambiguidade material” (LOPES, 2007,
p. 121). E assim essas figuras podem oferecer para o presente
não o peso da decadência, mas a leveza de uma continuidade
frágil feita dos restos evanescentes do passado.
Surge assim uma série que não apenas se contrapõe aos
grandes romances da decadência agrícola do passado, como
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Fogo morto ou Crônica da casa assassinada, mas é também uma
maneira de ler no presente a leveza como diluição da temática
da violência urbana para dar lugar a uma literatura mais ligada
à memória, ao cotidiano, à intimidade. E nessa série Denilson
situa Sinfonia em branco, junto com os textos de outros autores
como João Almino, João Carrascoza e Michel Laub:2
Em meio a um mundo de excessos e atordoamentos, de uma
arte ruidosa, grandiloquente, impactante, em que a desmesura é apenas mais um elemento de marketing, aqui temos uma
arte da sugestão, do recolhimento, da modesta ausência de
novidades (idem, p. 123).
O gesto de Denilson me parece apontar para algo que, para
além das dicotomias mais evidentes – doméstico versus urbano, delicadeza versus brutalidade, sugerido versus explicitado –,
estaria relacionado a um recuo do épico na literatura de Adriana, no sentido de que seria possível relacionar esse avesso da
grandiloquência com um distanciamento em relação à função
agregadora e compensatória da literatura, tal como foi pensada desde o romantismo; em outras palavras, em relação a uma
literatura que une em torno de uma identidade nacional e que,
por sua vez, redime das mazelas da nação.
Nesses termos, talvez seja possível distinguir a escrita de
Adriana de algumas propostas contemporâneas em que a literatura permanece a serviço do entendimento das contradições
da nação. Porque mesmo deslocadas do heroísmo e do mimetismo por meio de formas experimentais de representação do
2 Num outro texto do livro, “Nem sertão nem favela”, Denilson desenvolve essa alternativa
como “um antídoto tanto para o cinismo simulacral que apenas vê na proliferação de
imagens uma perda geral de sentidos quanto para o ressurgimento de um Neonaturalismo,
que afirma o papel do artista como observador e fotógrafo da realidade” (102), citando uma
série de livros e filmes que fariam parte dessa outra possibilidade de aproximação do real.
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real, obras como as de Luiz Ruffato ou Milton Hatoum parecem
seguir uma tradição que assume um compromisso em relação a
um determinado retrato, mesmo que fragmentário e inacabado, do Brasil. Referindo-se a esses “novos realistas”, Karl Erik
Schøllhammer afirma:
Trata-se, então, de um deslocamento claro em relação à tradição realista, mesmo que esta permaneça presente, em que
a procura por novas formas de experiência estética se une à
preocupação com o compromisso de testemunhar e denunciar os aspectos inumanos da realidade brasileira contemporânea (SCHØLLHAMMER, 2009, p. 57).
O problema é que essa distinção facilmente nos faz voltar a
antigas disputas, em que uma literatura que não cumpre o compromisso com a realidade brasileira fica do lado da alienação,
do subjetivismo ou do sentimentalismo. Acredito que nesse
sentido vale resgatar aqui a exposição que faz dela Flora Süssekind quando em Tal Brasil, qual romance? coloca em questão
a exclusão do cânone de obras que de alguma maneira trazem
descontinuidades ao contínuo da literatura brasileira; obras,
como ela diz, “que fraturam a unidade de determinada literatura” (SÜSSEKIND, 1984, p. 33). É largamente conhecida a acusação
que ela faz à estética naturalista, que teria persistido na literatura brasileira atravessando as décadas até chegar aos anos 1970:
Ao invés de proporcionar um maior conhecimento do caráter periférico do país, o texto naturalista, na sua pretensão de
retratar com objetividade uma realidade nacional, contribui
para o ocultamento da dependência e da falta de identidade próprias ao Brasil. Pressupõe que existe uma realidade
una, coesa e autônoma que deve captar integralmente. Não
deixa que transpareçam as descontinuidades e os influxos
externos que fraturam tal unidade. Como o discurso ideoló305
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gico, também o naturalista se caracteriza pelo ocultamento
da divisão, da diferença e da contradição. E não é muito difícil reparar que não é só uma estética, mas uma ideologia
naturalista o que se repete na ficção brasileira (SÜSSEKIND,
1984, p. 39).
Parece-me que também “não é muito difícil reparar” que
nem todos os textos que buscam em alguma medida ser um registro do Brasil perpetuam uma tal ideologia ou estética.3 Mas
isso certamente não invalida a importância de uma questão colocada por Flora: por que é essa vontade de registro do nacional que constitui sistema na literatura brasileira? E poderíamos
acrescentar: por que é em torno dela que até nas décadas mais
recentes a crítica de modo geral é capaz de estabelecer paradigmas e o que fica fora precisa ter seu lugar defendido?
A discussão não é nada simples, pois está em jogo a própria concepção do literário, uma batalha antiga, inaugural até,
se pensamos como inerente à ideia de literatura uma relação
problemática entre linguagem e real. A literatura é puro exercício de linguagem ou reflexo de uma realidade social? Um
poema cria um povo ou um povo cria um poema? Como mostra brilhantemente Jacques Rancière,4 a pergunta mesma supõe
o surgimento de uma prática e de uma teoria inéditas que foram
3 Em relação à contemporaneidade, Karl Erik, no capítulo “O realismo de novo”, do livro
Ficção brasileira contemporânea, indica um desligamento do mimetismo em obras como
as de Fernando Bonassi ou Marçal Aquino que, sem abandonar a referencialidade que
sustenta um compromisso com a realidade social, questionam as possibilidades e os limites
da representação no contexto de proliferação mimética que a mídia acentua.
4 O argumento é desenvolvido em La parole muette: ali Rancière vai ao cerne dessa
contradição mostrando que ela é inerente a um modo histórico de compreender as obras de
arte escritas, uma “revolução silenciosa”, uma mudança de paradigma que destrói o sistema
de normas que regia as belas-artes, produzindo o deslizamento da palavra “literatura” em
direção a uma prática singular da linguagem, e ao mesmo tempo criando uma contradição
na própria definição do que é literatura, entre uma escrita das coisas e a palavra que busca
seu próprio silêncio.
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destruindo o sistema normativo das belas letras e o substituíram por um regime emancipado que já nasceu contraditório.
Além disso, há os matizes que surgem quando a essa discussão se somam as defesas ou impugnações do lugar periférico.
Afinal de contas, num país como o Brasil, se a literatura não
serve para denunciar e esclarecer as mazelas da nação, ela serve
para quê? A pergunta se mantém subliminar a toda uma crítica
de corte sociológico, mas sua abrangência é bem maior, ligada
inclusive à defesa de campos disciplinares que ainda regem os
cursos de letras por todo o país. E mobiliza certamente os próprios escritores, que acabam tendo de responder a ela, inclusive
como modo de definir seu próprio fazer literário. Lemos, por
exemplo, numa entrevista recente de Bernardo Carvalho:
Essa é uma forte tendência da crítica e da literatura hoje.
Ela vai reduzindo tudo à expressão da experiência e da identidade (étnica, nacional, sexual etc.) do autor. É a base do
multiculturalismo, que acabou se impondo como perspectiva dominante. Pra muita gente, isso pode ser libertário. Para
mim, é uma prisão. Preciso não me identificar para poder
escrever (CARVALHO, 2011).
A questão deve e tem sido problematizada. Silviano Santiago nos mostra em “A aula inaugural de Clarice Lispector” que
já a escritora ensinara a ler e escrever de outra maneira, uma
vez que fora possível a partir dela colocar em questão o que
para a literatura e a crítica anteriores era um dado: “o sentido
e o valor da trama novelesca não estão exclusivamente nela,
são-lhes conferidos de fora, isto é, pela crítica literária, devidamente instruída pelo curso interpretativo da história brasileira
no âmbito da civilização ocidental” (SANTIAGO, 2004, p. 232). Na
sua leitura de Clarice, Silviano nos obriga à complexificação
ao indicar que, para além da polarização entre confidência
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e compromisso,5 é preciso entender uma outra temporalidade,
inaugurada por Clarice, que, em vez do tempo linear, evolutivo,
que flui como um rio na direção do progresso, favorece o tempo atomizado, fragmentado, precário, o instante-já que acende e apaga, próprio da experiência subjetiva, mas também do
esvanecimento dessa mesma experiência. Silviano cita Clarice:
“Nesta densa selva de palavras que envolvem espessamente o
que sinto e penso e vivo e transforma tudo o que sou em alguma coisa minha que no entanto fica inteiramente fora de mim”
(idem, p. 238). É nessa concepção do tempo que se insere uma
outra visão do trabalho, que não depende só da vontade, da
força, da ação, mas “é manifestação de proximidade e distância
do objeto de cuidado, de um misto de vigilância e afeto, de diligência e abandono, de inquietação e paz. É dom” (idem, p. 240).
A meu ver, na medida em que mostra a subversão operada
por Clarice na noção mais central do marxismo, o texto de Silviano dá uma preciosa pista de como ler a obra de Adriana Lisboa à margem do épico sem entendê-la necessariamente como
o oposto do compromisso, para pensar inclusive o que pode
haver de político nela; ou, voltando à leitura de Rosana sobre
Rawet, uma pista de como ler a diferença que ela inscreve no
campo da literatura brasileira. Seguindo essa pista, gostaria de
abordar o romance mais recente da autora, Azul-corvo, publicado em 2010.
O livro conta a história de uma adolescente, Evangelina,
Vanja, que vai em busca do pai nos Estados Unidos. No lugar
5 Se retomamos o ensaio de Antonio Candido sobre Graciliano Ramos, “Ficção e confissão”,
temos um exemplo importante de como essa polarização foi trabalhada em termos
dialéticos. Entre desvario e equilíbrio, entre recordação e imaginação, entre manifestação
subjetiva e exigências formais se constrói a obra deste “homem na mais alta acepção da
palavra” que paulatinamente se transfere da ficção para a confissão numa linha coerente que
resulta na “unidade solidária” em que, pela sua experiência pessoal, o homem vê o mundo.
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para onde ela se muda – Lakewood, Colorado –, os verões são
muito secos e os invernos muito frios. Assim a protagonista
e narradora nos faz saber, desde as primeiras páginas, quando
nos conta que ali não havia baratas ou que pelo menos elas estavam bem escondidas: “Era até possível que elas existissem,
e conseguissem tolerar a constante falta de umidade e a seriedade do inverno, quando fosse inverno” (LISBOA, 2010, p. 11). Por
enquanto, estamos no verão, e ao que parece não há baratas no
vasto terreno do Colorado, como também não há muita gente
nem muitas construções, quem sabe porque “aquele não era
um lugar feito para os seres humanos, não mais do que para as
baratas” (idem, p. 12).
Entre Colorado e Copacabana, vão se definindo paisagens
pelo olhar microscópico e ao mesmo tempo flutuante da menina de 13 anos, que fixa sem fixar, um olhar oscilante que está
em mais de um lugar ao mesmo tempo, um olhar estranhado,
cativado pelo exterior: “Sozinha em casa, nas primeiras tardes,
eu olhava pela janela e via a imensidão do céu cutucado pelas
montanhas a oeste” (idem, p. 18). As cores, os animais, a temperatura, o ar, os acidentes geográficos são os fios que puxam a
narrativa de Adriana; uma narrativa que, vale notar, agora se
volta muito mais para o futuro do que para o passado, pois, enquanto em livros como Sinfonia em branco ou Rakushisha (2007),
havia um núcleo traumático anunciado que o leitor sabia que
iria encontrar em algum momento, aqui a narrativa acompanha o presente da narradora em busca de um encontro totalmente incerto.
Gostaria de me deter num modo de traçar as correspondências entre esses dois lugares que compõem a paisagem da
narrativa. “Enquanto isso, os moluscos do mar de Copacabana silenciavam o mundo dentro de suas conchas azul-corvo.
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E os corvos sobrevoavam a cidade de Lakewood, Colorado.
Os corvos azul-concha”, diz a protagonista. “Enquanto isso”
supõe várias camadas de sentido superpostas, desde as impressões sobre a cultura americana, as lembranças do convívio
materno, as descobertas sobre Fernando, ex-amante da mãe
e ex-guerrilheiro, que a acolhe nos Estados Unidos, e tudo o
mais que contribui a construir o enredo da busca da filha pelo
pai que não conheceu. Mas supõe também uma interrupção na
narrativa, que então desliza para esse fora que são as coisas, os
bichos, os lugares, numa passagem que produz os momentos
mais contundentes do texto. Penso, por exemplo, neste trecho:
Fernando saiu de casa e foi estudar técnicas de guerrilha em
Pequim, depois se mudou para a base guerrilheira da Faveira, no Araguaia. Isso aconteceu duas décadas antes do meu
nascimento. Eram uma vida possível e uma morte possível,
as duas tão entrelaçadas uma na outra como durante os verões de Tim Treadwell. Como durante o último verão de
Amie Huguenard, que talvez pensasse em abandonar Tim
e suas roupas pretas e seu cabelo de príncipe valente e sua
obsessão pelos ursos. Os grizzlies. Ursus arctos horribilis (LISBOA, 2010, p. 73).
Como muitas outras referências no romance, a de Tim Treadwell, que resolveu morar entre os ursos do Parque Nacional
de Katmai, no Alasca, e acabou devorado por um deles, tem
um caráter acidental. Surge nesta parte do livro e não volta a
aparecer. Mostra-se como apenas uma associação, que goza de
sua liberdade e, como muitas outras no romance, se refere ao
choque ou convívio entre o mundo humano e o mundo animal.
Nesse sentido, vale recuperar o argumento de Giorgio
Agamben em L’aperto, em que relê uma longa história de separação entre o homem e o animal tal como produzida ao longo
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dos séculos pela “máquina antropológica” da filosofia, da teologia e da ciência. Das visões apocalípticas do Talmud ao tédio heideggeriano, da vida que Aristóteles busca circunscrever
em De anima aos experimentos atuais com o genoma humano, Agamben indaga sobre o sentido dessa relação biopolítica: “Como se a determinação da fronteira entre o humano e o
animal não fosse simplesmente mais uma questão sobre a qual
discutem filósofos e teólogos, cientistas e políticos, mas uma
operação metafísico-política fundamental, e na qual só algo assim como um ‘homem’ pode ser decidido e produzido” (AGAMBEN, 2007, p. 47).
O livro se encerra com o sugestivo capítulo “Fora do ser”,
que propõe uma nova forma não de se pensar a relação entre o
homem e o animal, mas de permanecer nesse entre, “arriscar-se
nesse vazio”, nesse intervalo entre os dois, pois assim “a vida
– nem aberta nem indesvelável – serenamente se coloca em
relação à sua própria latência” (idem, p. 166). Porque o que desse modo se suspende é a hierarquia entre um e outro, em que
o homem é aquele ser superior para quem a verdade se desvela, como pretendia Heidegger: “Só o homem, ou melhor, só
o olhar essencial do pensamento autêntico, pode ver o aberto
que nomeia o desvelamento do ente. O animal, pelo contrário,
não vê jamais o aberto” (idem, p. 108).
Parece-me que o romance de Adriana busca uma desierarquização do olhar como a que aponta Agamben em seu ensaio,
daí talvez uma escrita que foi identificada com a leveza, a simplicidade e até a ingenuidade em oposição ao peso da longa
tradição metafísico-política. No olhar da adolescente, os acontecimentos perdem gravidade, o importante e o desimportante se indiferenciam e por sua vez as possibilidades de vida se
multiplicam, como aparece indicado no trecho sobre os ursus
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arctos horribilis. E assim os animais entram no romance para
descentralizar seus eixos mais evidentes, com interrupções da
ação que deixam a trama em segundo plano.
Já mencionei as baratas e os moluscos, mas há também os
peixes: “Andei lendo sobre os peixes e descobri que eles não
dormem” (LISBOA, op. cit., p. 82); esses que depois se desdobram
no poema de Marianne Moore, do qual já saíram as conchas
“azul-corvo” do título do livro. Do poema também é possível
extrair um olhar exteriorizado, que nos entrega a visão de um
mundo de movimento e cores – “negro jade”, “azul-corvo”, “turquesa”, “verde”, “rosado” –, desfazendo-se de qualquer presença
do eu para falar da convivência entre fecundidade e destruição.
Ele segue assim os corpos em movimento de moluscos, caranguejos e medusas, e também os restos que se depositam nesse
mar “que vive do que não lhe revive a juventude”. Porque o mar
também envelhece.
Os peixes aparecem também na referência à Operação Peixe
I: “No caso das Forças Armadas Brasileiras, porém, o peixe que
batizava a operação era simples evocação da imagem da rede de
pesca. Destinada a peixes subversivos” (idem, p. 82). De repente
o peixe passa a cumprir a função de estabelecer uma ponte entre
a história de Evangelina e a de Fernando, que lutou no Araguaia,
uma ponte que dê um sentido dentro da construção romanesca à recuperação desse fragmento da história do Brasil que em
muitos momentos parece forçada para dentro do romance; ou
seja, cumpre a função de fazer essa história entrar no fluxo associativo da personagem. Mas o incômodo é evidente:
Eram outros peixes, aqueles. A mulher que escreveu “The
Fish” estava morrendo quando os militares estendiam suas
redes de pesca de subversivos na Amazônia brasileira. E ela
não tinha nada a ver com isso.
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Nenhum peixe tinha, do mesmo modo, nada a ver com
isso. O assunto que se desenrolava nas margens do Araguaia
era um assunto humano. Os peixes só emprestavam o nome
(idem, p. 93).
O fluxo associativo se corta porque é preciso distinguir, já
que uma coisa são os peixes, outra coisa é a guerrilha. A ponte
que se constrói entre os dois serve na verdade para deixar muito
clara a divisão de dois mundos: o dos homens, com seus assuntos, e o outro, que não tem assunto, e por isso talvez não devesse
ser assunto do romance. A história do Brasil entra no romance
ao preço desse corte, o que aliás se adverte na própria organização narrativa, em que os fragmentos sobre o Araguaia ficam
separados do resto, compondo pequenos anexos de conhecimento sobre o passado sombrio da nação, dos quais a narradora
deve prestar contas como se estivesse num exame escolar:
Àquela altura, o Partido apostava no engajamento da população. Dizia a resolução de 1969: Aos brasileiros não resta
outra alternativa: erguer-se de armas nas mãos contra os militares retrógados e os imperialistas ianques ou viver submissos
aos reacionários do país e aos espoliadores estrangeiros (idem,
p. 85, itálicos da autora).
Como falar da guerrilha e dos peixes? A pergunta se insinua
no próprio romance, nos trechos mesmos em que aparece o
incômodo em relação a essa associação; ela é certamente uma
preocupação da narradora e possivelmente da própria autora.
Como recuperar a memória desse momento traumático da história brasileira sem abrir mão do tom menor, da indistinção
entre importante e desimportante, do tratamento desierarquizado dos temas? No caso do trabalho de Adriana, parece-me
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que essas perguntas podem ser situadas no âmbito da discussão esboçada acima sobre as conexões e desconexões no campo
da literatura brasileira, uma vez que há no romance um movimento de ir ao encontro de certas expectativas em relação à
representação do nacional que quem sabe colocaria a autora no
rol dos que têm algo a dizer sobre a realidade do Brasil.
Se essas tensões não se resolvem em Azul-corvo, acredito que
elas trazem para a literatura de Adriana Lisboa algo novo, no
sentido de uma interrogação sobre a possibilidade de sair da
esfera dos traumas individuais em que se desenvolviam os livros anteriores para colocar em jogo certa comunidade rarefeita. Para isso ele conta com um cotidiano tedioso num subúrbio
de Denver; com as baratas, os moluscos e os peixes; com uma
viagem sem grandes descobertas do Colorado ao Novo México; e com dois acompanhantes perfeitos: um ex-guerrilheiro
lacônico e um menino de seis anos, filho de imigrantes salvadorenhos ilegais. Sobre Carlos, vale a pena contar uma de suas
anedotas: no aniversário de 57 anos de Fernando, vão a uma
pizzaria e ele aprende a palavra “velho”:
Velho, Carlos imitou, rindo. Achava a palavra engraçada. Velho, repetiu. E aparentemente achava simpática a ideia de
Fernando ser velho. Estendeu a mão gordinha por cima da
mesa e segurou a de Fernando. I like you así mismo. I not care
you are velho. Eres mi amigo. My friend. How say friend in português? (idem, p. 115).
Juntos, eles formam um trio para lá de cativante, por sua despretensiosa contemporaneidade que nos faz ver a nação fora dela.
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dAdOS dOS AUTORES
AlEx ANdRE fARIA
Nasceu no Rio de Janeiro, em 1970. É doutor em Letras pela PUCRio. Escritor e professor da Faculdade de Letras da UFJF. Publicou Literatura de subtração (ensaios, PapelVirtual, 1999), Anacrônicas
(ficção, 7Letras, 2005) e Lágrima palhaça (poesia, Aquela, 2012). Organizou o livro Anos 70 – poesia e vida (UFJF, 2007) e a revista Ipotesi
sobre Literatura Marginal (UFJF, 2011). É editor e fundador do site
www.textoterritorio.pro.br.
ANA clÁUdIA vIEgAS
É professora adjunta de Literatura Brasileira do Instituto de Letras da
UERJ e de Teoria da Comunicação, no Departamento de Comunicação Social, da PUC-Rio. É pesquisadora do CNPq, com o projeto
“Quem está fazendo a literatura brasileira do presente? Construção e
pesquisa de acervos sobre a ficção brasileira contemporânea”. Tem publicado diversos artigos sobre esse tema, tais como: “Escrita ao rés do
chão: quanto vale a literatura do presente?” (2011); “Estamos falando
do Brasil? A ‘realidade nacional’ entrevista por três autores da literatura brasileira do presente” (2011); “Literatura do presente no Brasil
– notícias”, “Identidades de vacaciones – notas sobre la autoficción en
la literatura brasileña contemporánea” (2010); “Com a palavra, o autor – exercícios de crítica biográfica na contemporaneidade” (2010).
cATIA vAléRIO fERREIR A bARbOSA
É doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ. Em Portugal, vinculada ao grupo DICEL (UFRJ), executou pesquisa de campo sobre ensino de literatura e formação de leitores. No Brasil, coordenou projetos
sobre literatura e informática. Artigos, capítulos de livros e comunicações em encontros científicos tornaram públicos os resultados des317
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sas pesquisas. Tendo sido professora substituta de Prática de Ensino
de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira na Faculdade de Educação (UFRJ) e professora efetiva na UNESA e na Faetec, trabalha no
Colégio Militar do Rio de Janeiro (CMRJ).
clAUdETE dAflON
É professora de Literatura Brasileira da UFF e atua como pesquisadora em temas como viagem, contemporaneidade, intelectualidade,
literatura e ciência com publicações de artigos como “Viajantes e intelectuais” (2004), “A Veneza possível” (2006), “O percurso escrito da
viagem modernista” (2011), “Memória da pedra” (2011), “Uma pedagogia da escrita: intelectuais luso-brasileiros do século XVIII” (2011)
e capítulos de livro em títulos como Alguma prosa – ensaios sobre literatura contemporânea (org. Giovanna Dealtry, Masé Lemos, Stefania
Chiarelli. 7Letras, 2007) e A legislação pombalina sobre o ensino das
línguas: suas implicações na educação brasileira (EDUFAL, 2010).
dIANA KlINgER
Nasceu na Argentina, em 1973, e aos 28 anos mudou-se para o Rio de
Janeiro, onde fez doutorado em Literatura Comparada pela UERJ. É
professora de Teoria da Literatura na UFF. Publicou o livro Escritas de
si, escritas do outro; o retorno do autor e a virada etnográfica (7Letras,
2007) e é uma das editoras da revista Grumo (www.salagrumo.org).
gAbRIEl gIORgI
Nasceu em Córdoba, Argentina. É professor associado na New York
University. É autor de Sueños de exterminio. Homosexualidad y representación en la literatura argentina e coeditor de Excesos de vida. Ensayos sobre biopolítica, além de numerosos artigos. Atualmente trabalha num projeto sobre animalidade e políticas do vivente na cultura
contemporânea.
gIOvANNA dEAlTRY
É doutora em Literatura Brasileira pela PUC-Rio. Coorganizou com
Stefania Chiarelli e Masé Lemos o volume Alguma prosa – ensaios sobre literatura brasileira contemporânea (7Letras, 2007). Publicou O fio
da navalha – malandragem na literatura e no samba (Casa da Palavra/
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FAPERJ, 2009), além de artigos em revistas especializadas. É professora adjunta do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio.
gR AÇA R AMOS
É doutora em História da Arte pela Universidade de Barcelona. É autora de A imagem nos livros infantis – caminhos para ler o texto visual
(Autêntica, 2011); Maria Martins – escultora dos trópicos (Artviva,
2009); Palácio do Planalto – entre o cristal e o concreto (ITS, 2011)
e Ironia à brasileira – o enunciado irônico em Machado de Assis,
Oswald de Andrade e Mario Quintana (Paulicéia, 1997). Tem artigos
em Los malditos (Ediciones Diego Portales, Santiago/Chile, 2011);
Brasília aos 50 anos – que cidade é essa? (Tema Editorial, 2010) e Os
criadores – Athos Bulcão, Burle Marx, Lucio Costa e Oscar Niemeyer
(Multicultural, 2010). Assina duas obras para o público infantil, Casa
do sabor e Vamos voar as trancinhas? (Autêntica, ambos de 2011).
JORgE WOlff
Nasceu em Porto Alegre, em 1965. É doutor em Teoria Literária pela
UFSC e professor de Literatura da mesma instituição. Autor de Julio
Cortázar. A viagem como metáfora produtiva (Letras Contemporâneas, 1998) e Telquelismos latinoamericanos. La teoría crítica francesa
en el entre-lugar de los trópicos (Buenos Aires: Grumo, 2009). Ensaísta e tradutor de língua espanhola, é um dos editores da revista Outra
travessia (UFSC).
lEIlA lEhNEN
É professora de Literatura e Cultura Brasileira e Hispano-Americana
na University of New Mexico (EUA). Sua pesquisa se centra na literatura latino-americana contemporânea e como esta aborda questões de
cidadania, direitos humanos e globalização. Seu livro, Citizenship and
Crisis in Contemporary Brazilian Literature, que será lançado pela Palgrave Macmillan, analisa como a literatura brasileira representa tanto a
crise da cidadania como sua recuperação a partir da produção literária.
lUcIENE AzEvEdO
É professora de Teoria Literária da UFBA, vinculada ao programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura. Atualmente seu interesse de pesquisa está voltado para a análise das condições básicas
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da autoria no contemporâneo, tendo como recorte específico o estudo da construção de uma carreira literária por autores que começam
a publicar a partir da década de 1990. Vem publicando ensaios sobre
o tema em livros e em periódicos especializados.
PAlOMA vIdAl
Nasceu em Buenos Aires, em 1975. É escritora, tradutora e professora de Teoria Literária da Unifesp. É doutora em Estudos de Literatura pela PUC-Rio. Publicou os ensaios A história em seus restos:
literatura e exílio no Cone Sul (Annablume, 2004) e Escrever de fora:
viagem e experiência na narrativa argentina contemporânea (Lumme Editor, 2011); e as ficções A duas mãos (7Letras, 2003, contos),
Mais ao sul (Língua Geral, 2008, contos, publicados em espanhol
pela editora Eterna Cadencia), Algum lugar (7Letras, 2009, romance)
e Mar azul (Rocco, 2012, romance). Traduziu, entre outros autores,
Margo Glantz e Clarice Lispector. Mantém o blog http://www.escritosgeograficos.blogspot.com e é uma das editoras da revista Grumo
(www.salagrumo.org).
PAScOAl fARINAccIO
É doutor em Teoria e História Literária pela Unicamp. É professor de
Literatura Brasileira da UFF. Publicou o livro Serafim Ponte Grande
e as dificuldades da crítica literária (Ateliê, 2001) e diversos artigos
em revistas acadêmicas. É autor do livro Oswald Glauber: arte, povo,
revolução (EdUFF, 2012).
PAUlO RObERTO TONANI dO PATROcíNIO
É doutor em Letras pela PUC-Rio. Atualmente desenvolve pesquisa de pós-doutorado na mesma instituição com financiamento da
FAPERJ sobre “A representação de territórios marginais na literatura
brasileira”. É autor de Escritos à margem – a presença de autores de
periferia na cena contemporânea (7Letras, no prelo). É editor assistente da revista Semear, da Cátedra Padre António Vieira de Estudos
Portugueses, da PUC-Rio.
SéRgIO dE SÁ
Nasceu em Brasília, em 1970. Jornalista e doutor em Estudos Literários pela UFMG, é autor dos livros Roberto Corrêa – caipira extremo320
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so, segundo volume da coleção Brasilienses, e A reinvenção do escritor:
literatura e mass media (Editora UFMG, 2010). Foi editor de Cultura
e crítico literário do Correio Braziliense. Como colaborador, tem textos assinados na revista piauí e no suplemento Prosa & Verso do jornal O Globo, entre outras publicações. É professor na Faculdade de
Comunicação da UnB.
STEfANIA chIAREllI
Nasceu em Pelotas (RS), em 1969. É doutora em Estudos de Literatura pela PUC-Rio. Professora de Literatura Brasileira na UFF, publicou o ensaio Vidas em trânsito: as ficções de Samuel Rawet e Milton
Hatoum (Annablume, 2007) e organizou, com Giovanna Dealtry e
Masé Lemos, a coletânea Alguma prosa – ensaios sobre literatura brasileira contemporânea (7Letras, 2007).
SUSANA ScR AMIM
É professora de Teoria Literária na Universidade Federal de Santa
Catarina e coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Estudos Literários e Culturais – NELIC/UFSC. Doutora em Teoria Literária e
Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo, com pósdoutorado na Universidad de Sevilla (2005). É autora do livro de ensaios de crítica literária Literatura do presente (Argos, 2007) e Carlito
Azevedo (EdUERJ, 2010). Organizou o livro O contemporâneo na crítica literária (Iluminuras, 2012) e Poesia e teoria crítica com Daniel
Link e Italo Moriconi (7Letras, 2012). Organizou a coletânea de ensaios de Giorgio Agamben, sob o título O que é o contemporâneo? e
outros ensaios (Argos, 2009) e também a tradução do livro Enigmas
(2009), do filósofo italiano Mario Perniola.
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dAdOS dOS EScRITORES
AdRIANA lISbOA
Nasceu no Rio de Janeiro, em 1970. Publicou dez livros, entre os quais
cinco romances, uma coletânea de contos e poemas em prosa e livros para crianças. Sua obra foi traduzida em vários países, incluindo França, Estados Unidos, México, Itália, Suécia e Suíça. Ganhou
o Prêmio José Saramago pelo romance Sinfonia em branco (2001), uma
bolsa da Fundação Japão para o romance Rakushisha (2007), uma bolsa da Fundação Biblioteca Nacional, no Brasil, e o prêmio de autor revelação da FNLIJ (Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil) por
seu livro de poesia para crianças, Língua de trapos (2005).
AdRIANA lUNARdI
Publicou seu primeiro livro, As meninas da Torre Helsinque (1996),
obtendo, no ano seguinte, os prêmios Açoriano de Literatura, na categoria contos, e Fumproarte, nas categorias autor revelação e melhor
livro de contos. Em 2000, recebeu uma bolsa da Biblioteca Nacional
para escrever Vésperas (2002), indicado ao prêmio Jabuti e editado na
França (2005), Portugal e Croácia (2006), e Argentina (2008). Participou de diversas antologias, como a organizada por Luiz Ruffato,
25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (2004).
Em 2006, lançou seu primeiro romance, Corpo estranho, indicado, em
2007, ao Prêmio Zaffari & Bourbon de Literatura; e em 2011, A vendedora de fósforos.
bERNARdO cARvAlhO
Nasceu no Rio de Janeiro, em 1960. É jornalista e teve sua estreia
como autor em 1993 com o livro de contos Aberração. O primeiro romance, Onze, veio a público em 1995. Desde então, em sua trajetória
como ficcionista, vem se destacando no cenário da literatura brasilei323
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ra contemporânea com obras como Teatro (1998), Nove noites (2002),
Mongólia (2003), O sol se põe em São Paulo (2007) e O filho da mãe
(2009). Recebeu por Noive noites o Prêmio Portugal Telecom 2003 e,
por Mongólia, os prêmios APCA 2003 e Jabuti 2004.
cAROlA SAAvEdR A
Nasceu no Chile, em 1973, e mudou-se para o Brasil com três anos de
idade. Concluiu o mestrado em Comunicação na Alemanha. É autora de um livro de contos e três romances. Flores azuis foi eleito melhor romance pela Associação Paulista dos Críticos de Arte e, assim
como Paisagem com dromedário, finalista dos prêmios São Paulo de
Literatura e Jabuti.
chIcO bUARqUE
Nasceu no Rio de Janeiro, em 1944. Cantor e compositor, publicou as
peças Roda viva (1968), Calabar (1973), Gota d’água (1975); a novela
Fazenda modelo (1974) e os romances Estorvo (1991, prêmio Jabuti
de melhor romance), Benjamin (1995), Budapeste (2003) e Leite derramado (2009), os dois últimos premiados pelo Jabuti na categoria
Livro do Ano.
dANIEl gAlER A
Nasceu em São Paulo, em 1979. Com Guilhermo Pilla e Daniel Pellizzari fundou a editora Livros do Mal em 2001. Antes de lançar seus
quatro romances, Até o dia em que o cão morreu (2003), Mãos de cavalo (2006), Cordilheira (2008) e Barba ensopada de sangue (2012),
Daniel Galera publicou em blogs e sites literários. Seu livro de contos
Dentes guardados (2001) foi lançado em formato pdf no blog do autor, Ranchocarne, e também publicado pela Livros do Mal. Em 2010,
em parceria com Rafael Coutinho, publicou a novela gráfica Cachalote. Além de escritor, também é tradutor e escreve resenhas e ensaios
sobre diferentes temas, incluindo videogames. Seus romances foram
traduzidos para o espanhol, francês e italiano.
JOÃO AlMINO
Nasceu em Mossoró (RN), em 1950. É escritor e diplomata. Morou
muitos anos em Brasília, a cidade-cenário de seus romances – Ideias
para onde passar o fim do mundo (1987), Samba-enredo (1994), As
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cinco estações do amor (2001), O livro das emoções (2008) e Cidade
Livre (2010). Este último recebeu o Prêmio Passo Fundo Zaffari &
Bourbon de Literatura 2011 de melhor romance e também foi finalista dos prêmios Jabuti e Portugal Telecom no mesmo ano. Doutorou-se em Paris, sob orientação do filósofo Claude Lefort, e lecionou
na Universidade Autônoma do México, no Instituto Rio Branco e nas
universidades norte-americanas de Berkeley, Stanford e Chicago.
JOÃO gIlbERTO NOll
Nasceu em Porto Alegre, em 1946. Publicou treze livros, entre eles
A fúria do corpo (1981), Rastros do verão (1985), Harmada (1993),
Berkeley em Bellagio (2002) e Acenos e afagos (2008). Recebeu inúmeros prêmios, incluindo o prêmio Jabuti em cinco ocasiões (1981,
1994, 1997, 2004 e 2005). Seus livros foram traduzidos para o espanhol, italiano e inglês.
lOURENÇO MUTAREllI
Nasceu em São Paulo, em 1964. Publicou vários álbuns de quadrinhos caracterizados pela originalidade do roteiro e a experimentação
gráfica, contando-se entre eles Transubstanciação (1991), Mundo pet
(2004) e a trilogia do detetive Diomedes: O dobro de cinco (1999),
O rei do ponto (2000) e A soma de tudo I e II (2001-2002). Escreveu
peças de teatro – reunidas em O teatro das sombras (2007) – e diversos romances, entre eles O cheiro do ralo (2002; adaptado para o cinema por Heitor Dhalia), Jesus Kid (2004), A arte de produzir efeito sem
causa (2008), O natimorto (2009; adaptado para o cinema por Paulo
Machline). Trabalhou como ator em curtas-metragens e nos longas
adaptados de seus romances, O cheiro do ralo e O natimorto, nesse
último tendo representado o papel do protagonista.
lUIz RUffATO
Nasceu em Cataguases (MG), em 1961, e é formado em Jornalismo.
Em sua bibliografia, destacam-se: Eles eram muitos cavalos (romance, 2000); Mamma, son tanto felice (Inferno provisório – volume I
romance, 2005), O mundo inimigo (Inferno provisório – volume II
romance, 2005), Vista parcial da noite (Inferno provisório – volume
III romance, 2006), O livro das impossibilidades (Inferno provisório
– volume IV romance, 2008), Domingo sem Deus (Inferno provisó325
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rio – volume V romance, 2011); De mim já nem se lembra (romance,
2007) e Estive em Lisboa e lembrei de você (romance, 2009).
MIchEl lAUb
Nasceu em Porto Alegre, em 1973. Escritor e jornalista, publicou cinco romances: Música anterior (2001), Longe da água (2004), O segundo tempo (2006), O gato diz adeus (2009) e Diário da queda (2011).
Pelo último, recebeu os prêmios Brasília e Bravo/Bradesco. Foi contemplado com as bolsas Vitae, Funarte e Petrobras e finalista dos prêmios Jabuti, Portugal Telecom e Zaffari & Bourbon, entre outros.
MIlTON hATOUM
Nasceu em Manaus, em 1952. Lecionou Literatura na Universidade
Federal do Amazonas e na Universidade da Califórnia (Berkeley).
Foi escritor residente nas universidades norte-americanas de Yale,
Stanford e Berkeley. É autor dos romances Relato de um certo Oriente
(1989, prêmio Jabuti de melhor romance), Dois irmãos (2000/terceiro
lugar – prêmio Jabuti), Cinzas do Norte (2005, ganhador dos prêmios
Jabuti/melhor romance, Portugal Telecom, Livro do Ano, Grande Prêmio da Crítica/APCA e Bravo!) e Órfãos do Eldorado (2008/segundo
lugar – prêmio Jabuti). Em 2012 recebeu, pelo conjunto da obra, o
prêmio Lifetime Achievement (Brazilian International Press Awards).
Em 2009 publicou o livro de contos A cidade ilhada. Traduziu Representações do intelectual, de Edward Said, A cruzada das crianças,
de Marcel Schwob e, em parceria com Samuel Titan Jr., Três contos, de
Gustave Flaubert. Sua obra de ficção foi publicada em catorze países.
RIcARdO líSIAS
É ficcionista, ensaísta e doutor em Literatura Brasileira pela USP. Começou sua carreira literária em 1999. Foi premiado com o terceiro
lugar no prêmio Portugal Telecom em 2006 com o livro Duas praças e teve boa recepção crítica a seu romance O livro dos mandarins
(2009). Apostando num conceito-chave para a contemporaneidade,
a autoficção, publicou O céu dos suicidas (2012) no qual narrador,
personagem e autor compartilham o nome de Ricardo Lísias.
ROdRIgO lAcERdA
Nasceu em 1969, no Rio de Janeiro. Publicou os seguintes livros:
O mistério do leão rampante (novela, 1995, prêmio Jabuti e prêmio
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Certas Palavras de Melhor Romance), A dinâmica das larvas (novela,
1996), Fábulas para o séc. XXI (livro infantil, 1998), Tripé (contos,
1999), Vista do Rio (romance, 2004, finalista dos prêmios Zaffari &
Bourbon, Portugal Telecom e Jabuti), O fazedor de velhos (2008, prêmio de Melhor Livro Juvenil da Biblioteca Nacional e da Fundação
Nacional do Livro Infantil e Juvenil) e Outra vida (romance, 2009).
RUbENS fIgUEIREdO
Nasceu no Rio de Janeiro, em 1956. Formado em Letras pela UFRJ,
Rubens Figueiredo é tradutor de obras de Tolstói, Tchékhov e Turguêniev, entre outros. Como ficcionista, é autor dos livros de contos As
palavras secretas (1998, vencedor do Jabuti), Contos de Pedro (2006),
O livro dos lobos (2009) e dos romances Barco a seco (2001, vencedor
do Jabuti) e Passageiro do fim do dia (2010).
SéRgIO SANT’ANNA
Nasceu no Rio de Janeiro em 1941 e iniciou sua carreira em 1969,
com a publicação da reunião de contos O sobrevivente. Tem inúmeros livros publicados, entre eles O concerto de João Gilberto no Rio de
Janeiro (1982), Um crime delicado (1997) e O Livro de Praga (2011).
Recebeu quatro vezes o prêmio Jabuti, sendo o mais recente pelo livro de contos O voo da madrugada (2003). Teve suas obras traduzidas
para o alemão e italiano, além de outras línguas. Um crime delicado
e A Senhorita Simpson, assim como outros títulos, foram adaptados
para o cinema.
vAlêNcIO x AvIER NIcUlITchEff
Nasceu em São Paulo, em 1933, e faleceu em Curitiba, em 2008. Escritor e cineasta, é autor de Desembrulhando as balas Zequinha (1973),
O mez da grippe e outros livros (1998), Minha mãe morrendo e o menino mentido (2001), entre outros livros, e diretor de O pão negro – Um
episódio na colônia Cecília (1993), Os 11 de Curitiba, todos nós (1995)
e Caro signore Feline (1980), além de outros filmes.
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Este livro foi impresso na Editora JPA Ltda.,
Av. Brasil, 10.600 – Rio de Janeiro – RJ,
para a Editora Rocco Ltda.
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