Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano V, n. 14, Setembro 2012 - ISSN 1983-2850
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Dossiê Questões teórico-metodológicas no estudo das religiões e religiosidades – Volume II
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UMBANDA: A EXEGESE DA MAGIA1
Artur Cesar Isaia*
RESUMO: O presente artigo foi apresentado na Mesa Redonda “Universo Religioso AfroBrasileiro: diálogos interdisciplinares”, integrando o III Encontro do GT Nacional de História
das Religiões e Religiosidades – ANPUH, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
de 20 a 22 de Outubro de 2010.
PALAVRAS CHAVE: Umbanda, Religiões Afro-brasileiras, século XX, campo religioso.
UMBANDA: EXEGESIS OF MAGIC
ABSTRACT: This paper was presented at the Round Table "Afro-Brazilian Religious
Universe: interdisciplinary dialogues" integrating the III Meeting of the GT Nacional de
História das Religiões e Religiosidades – ANPUH, at the Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC), October 20-22, 2010.
KEYWORDS: Umbanda, Afro-Brazilian Religions, 20 century, religious field.
Introdução
Na literatura umbandista que ganha ímpeto na primeira metade do século XX,
encontramos a presença destacada da magia. Essas obras que explicitam fundamentos
doutrinários e rituais são, igualmente, veiculadoras de um projeto identitário
desenvolvido pelos setores intelectualizados da nova religião. A forte presença da magia
nesses livros conduz a muitas indagações. Neste texto procuro responder,
principalmente a uma: Como os intelectuais da umbanda vão fundamentar a
coexistência de práticas explicitamente mágicas em uma religião que prezava o seu
parentesco, tanto com o racionalismo próprio de espiritismo codificado por Allan
Kardec quanto com as formulações éticas cristãs? Essa indagação remete, antes de tudo,
à tentativa de compreensão da coexistência entre religião e magia na umbanda. Além
disso, conduz a um esforço empírico, no sentido de compreender os nexos apresentados
pela literatura umbandista entre a afirmação de uma nova religião no campo religioso
brasileiro e a explícita defesa do magismo.
Religião, magia e campo religioso
O estudo da saliência da magia nos livros doutrinários umbandistas, leva,
1
Este texto é fruto de um Projeto financiado pelo CNPq através de Bolsa Produtividade em Pesquisa.
Professor Associado, Universidade Federal de Santa Catarina, Departamento de História, Programa de
Pós-Graduação em História.
*
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primeiramente, ao reconhecimento da mesma como fenômeno não desprezível ao
analisarmos a configuração do campo religioso brasileiro no período pós-republicano.
Conforme Paula Montero, o estabelecimento das fronteiras religiosas no Brasil
resultou de um processo histórico de diferenciação entre magia e religião (MONTERO,
2006). Para a autora, a produção de “institucionalidades religiosas” no Brasil levou em
consideração o enquadramento do considerado mágico pelo estado e pelos saberes a ele
próximos, tomando como modelo prescritivo o por eles considerado religioso, cujo
paradigma foi o cristianismo. A institucionalização da república no Brasil trouxe,
igualmente, o reconhecimento do estado e dos discursos a ele próximos (sobretudo o
médico, o jurídico e o policial) a práticas consideradas religiosas, opondo-as ao
considerado mágico. Giumbelli já havia se interessado por esta discussão ao estudar o
espiritismo brasileiro e constatar o reconhecimento ou o enquadramento legal do
considerado religioso ou mágico (GIUMBELLI, 1977). Ainda para Paula Montero,
importância do estudo da magia na constituição do campo religioso acena para
discussões sociais bem mais amplas, como os parâmetros legais, cujo objetivo era a
produção de sujeitos passíveis a serem submetidos à normatividade das leis e à
moralidade da religião cristã, paradigmática (MONTERO, 2006).
Com a redação do novo Código Penal em 1942, se as atividades tipificadas
como condenatórias por avizinharem-se do “espiritismo e seus sortilégios”, conforme
ou primeiro código republicano, eram descriminalizadas, aumentava a margem de ação
repressiva do estado capaz de atingir o próprio espiritismo (GIUMBELLI, 1977, p.
220). Em relação à umbanda, a mesma coexistência entre oportunidade legal de
repressão e contemporização política aparece. Assim, ao lado das incursões policiais às
religiões afro-brasileiras, a ditadura do Estado Novo tolera, tanto a realização do
Primeiro Congresso do Espiritismo de Umbanda, quanto a publicação de seus Anais. 2 A
presença da magia na obra dos intelectuais umbandistas, portanto, vai refletir a tensa
interlocução entre esses agentes religiosos e, por outro lado, o estado e discursos como
o médico, o jurídico e o da igreja católica. Dentro desse contexto que é proponho
explorar a forma pela qual a literatura umbandista produzida na primeira metade do
século XX, vai tentar negociar uma solução capaz de enquadrar as práticas mágicas da
umbanda em uma leitura o mais próxima possível da teologia cristã.
2
Ver a este respeito: ISAIA, Artur Cesar. O outro lado da repressão. A Umbanda em tempos de Estado
Novo. In: ISAIA, Artur Cesar (org). Crenças, sacralidades e religiosidades. Entre o consentido e o
marginal. Florianópolis: Editora Insular, 2009.
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Palavra escrita e exegese da magia na umbanda
Considero necessário, primeiramente explicar os limites com os quais trabalho
as fontes escritas relativas à Umbanda. Já tive ocasião de manifestar-me a esse respeito,
mostrando que não as considero como definitivas, como constituintes identitários da
religião umbandista (ISAIA, 1999). Esse “corpus” é aqui valorizado apenas como
projeto de um setor intelectualizado e com familiaridade escriturística em criar uma
identidade letrada para a umbanda. Assim, a magia aparece como referente discursivo
que integra esse esforço escriturístico e esse projeto de aproximar a umbanda o possível
das exegeses das religiões que desfrutavam reconhecimento institucional por parte do
estado. Esses intelectuais umbandistas vão opor o livro à oralidade, que caracterizava a
tradição africana e, particularmente, sua ressignificação entre nós através do candomblé.
Sendo assim tentavam apresentar a umbanda como religião essencialmente inserida no
que Michel de Certeau chamava de prática mítica moderna, referindo-se ao
escriturístico (DE CERTEAU, 1994). Igualmente, o projeto de criar uma identidade
livresca e próxima à tradição cristã, a palavra escrita na umbanda integrava o esforço
social de nomeação da realidade apreendido por Bourdieu: “Todo o agente social aspira,
na medida de seus meios, a este poder de nomear de constituir o mundo nomeandado-o”
(BOURDIEU, 1996, p. 81)3. É nesse esforço para impor o consenso do que seja a
religião e a identidade dos “verdadeiros” umbandistas é que a palavra escrita vai
aparecer como estratégia autorizada de disseminação doutrinária.
Através da palavra
escrita os intelectuais umbandistas vão divulgar suas exegeses sobre a presença da
magia na nova religião, esforçando-se em demonstrar erudição. As exegeses sobre a
magia apareciam como momentos em que esses intelectuais tentavam interpretar as
práticas mágicas acontecidas na cotidianidade umbandista, dotando-as de um substrato
o mais próximo possível das exegeses teológicas judaico-cristãs.
Penso ser necessário deixar claro como estou percebendo a magia na umbanda,
ou mesmo a sua presença no interior das práticas religiosas. Esta presença é vista,
afastando-me das dicotomias características, tanto da sociologia tradicional das
religiões, quanto da teologia cristã. A postura teórica aqui assumida acena no sentido de
captar as possíveis operações combinatórias historicamente apresentadas entre religião e
3
O autor defende a aplicação da teoria neokantiana em relação à análise do mundo social, na medida em
que “a nomeação contribui para constituir a estrutura desse mundo, de uma maneira tanto mais profunda
quanto mais amplamente reconhecida (isto é, autorizada)” (BOURDIEU, 1996, p. 81).
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magia, conforme já escrevi em anterior estudo (ISAIA, 2008).
Na historiografia contemporânea, a coexistência entre religião e magia aparece,
por exemplo, na obra de Keith Thomas, referindo-se à Inglaterra dos séculos XVI e
XVII. O considerado mágico frequentava, para Thomas, o discurso dos teólogos
protestantes, interessados em denunciar algumas práticas incentivadas por parte da
hierarquia católica para trazer saúde, fortuna, boas colheitas, etc. Por outro lado, os
mesmos registros de magia estavam presentes no discurso dos teólogos católicos e dos
concílios, que acusavam as práticas mágicas existentes na cotidianidade da própria
igreja católica (THOMAS, 1991, p. 51 e segs.). Podemos ver que Thomas não está
interessado em discutir a natureza ontológica nem da religião, nem da magia. Seu
interesse está em compreendê-las através de um olhar relacional, no qual o principal é o
entendimento do lugar sociocultural de quem a elas se refere 4, o que assumo como
procedimento teórico. Quando se refere às posturas dos puritanos, anglicanos e católicos
frente à magia, o autor está interessado, sobretudo, em compreender o jogo discursivo
que tinha na palavra magia o centro da sua argumentação. Thomas está interessado em
compreender as posições que fazem com que um grupo construa a distinção
religião/magia.
Uma postura semelhante capaz de preocupar-se, sobretudo, com o significado
atribuído pelos atores sociais ao termo magia, portanto com uma preocupação
basicamente sociocultural, aparece em estudo de João José Reis sobre a biografia do
africano liberto Domingos Sodré. Nesta obra, o autor mostra a circulação interdiscursiva
do termo “malefício”, herdado da inquisição e incorporado à prática policial do século
XIX:
O uso do termo malefício denota uma mentalidade policial ainda
radicada nos princípios da inquisição, que designava como tal as artes
diabólicas dos assim definidos como ‘feiticeiros’, ou sua capacidade
de fazer mal através de meios ocultos, de ervas, rezas, encantações,
mau-olhado, imprecações. De fato, todas as formas de paganismo e
práticas mágicas, mesmo inofensivas e até benéficas – o
curandeirismo inclusive – seriam reduzidas à categoria de
‘maleficium’ pelos inquisidores (REIS, 2008, p. 128).
Ao contrário do que acontecia entre católicos, puritanos e anglicanos estudados
4
Nesse sentido, o autor trata de um caso emblemático: o dos teólogos católicos e do alto clero. Keith
Thomas mostra que, no período medieval, as acusações de magia e paganismo poderiam ser arrefecidas
segundo o seu interesse. “Sua postura em relação à credulidade dos adeptos mais simples foi, durante toda
a Idade Média, fundamente ambivalente. Viam-nos com maus olhos...mas não tinham a mínima vontade
de desestimular atitudes que pudessem aumentar a devoção popular. Se a crença na eficácia mágica da
hóstia servia para aumentar o respeito pelo clero e fazer com que os leigos fossem mais regularmente à
igreja, por que então não tolerá-la tacitamente?” (THOMAS, 1991, p. 54).
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por Thomas, interessados em separar o religioso do mágico, os primeiros intelectuais e
dirigentes da umbanda, tentaram trazer a magia para o âmbito da religião, assumindo as
práticas mágicas pré-existentes na tradição afro-ameríndia, numa exegese capaz de
racionalizá-las. Um breve exemplo disso está em uma das teses aprovadas no Primeiro
Congresso da Umbanda, acontecido em 1941:
As tendências da umbanda, pelo menos na forma pela qual a vemos
praticada, no nosso meio, são francamente para a magia e isto lhe
denuncia as origens. Todos esses atos e atitudes, todas essas situações
e circunstâncias na evolução de um terreiro, não obstante a falta de
uma seqüência lógica que lhes estabeleça um laço e lhes dê a precisa
unidade, sem o que lhes faltará a necessária força para atingir os
colimados fins, todos esses atos e atitudes...nos fazem pensar no ritual
observado nos santuários antigos, nos templos de antanho, nos lugares
onde os gênios das civilizações que se foram praticavam a santa
ciência dos elementos, evocando os princípios sob a proteção dos
deuses. (REGO, 1942.p. 112-113)
Outro exemplo pode-se ver na obra de Matta e Silva, que opõe à magia julgada
descontrolada, aética do passado africano, à magia umbandista, defendida como
controlada por um código de ética religioso e próximo ao cristianismo. Ao fazer a
apresentação do plano de sua obra, escreve:
Se você deseja conhecer e entender muitos dos nossos segredos de alta
magia, então leia... Se você, leitor, tem sede de saber alguma coisa de
certo e prático sobre a magia, em relação à lua, à mulher e à iniciação,
então leia... Mas se você pensa que aqui vai encontrar uma doutrina
bizarra, patética e fetichista, não leia ... isso você encontrará nas obras
que dissertam sobre africanismo, pajelança, catimbó, candomblé,
comida de santo, camarinha, ebó, etc., apresentados como umbanda.
(MATTA E SILVA, 1985, p. 6)
O autor está claramente assumindo que a umbanda possui “segredos de alta
magia”, contudo esses segredos, que compõem a parte iniciática da umbanda são
colocados pelo autor em total alteridade às práticas mágicas do candomblé, da pajelança
ou do catimbó.
Já em uma das obras pioneiras da palavra escrita na umbanda, publicada em
1933, Leal de Souza5 usa um argumento que aparece como recorrente nos livros dos
intelectuais que tentavam exegeses para a magia na nova religião: a relação entre magia
e a teoria do fluido animal, desenvolvida no século XVIII por Mesmer (1734-1815).
Segundo Mesmer havia uma substância sutil no universo, à qual se relacionavam os
astros, os homens e todo o reino animal, vegetal e mineral. Dessa forma, pelo fluido
5
Anteriormente Leal de Souza escreveu “No mundo dos espíritos”, publicado em 1925.
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existente e emanado em toda a forma de vida, os homens estabeleciam relações entre si
e com tudo o que existe no universo. Era através do fluido universal, por exemplo, que
os astros poderiam influir sobre a existência humana e um homem poderia influir sobre
outro (MESMER, 1971). Baseado nessa teoria, Leal de Souza explicava que a magia na
umbanda operava com as forças da natureza para desfazer os trabalhos feitos para o
mal. Leal de Souza opunha uma magia aética e muitas vezes empírica, que denominava
de magia negra, à magia branca, operada pelos umbandistas, esta ética e regrada,
praticada para conseguir o bem ou desfazer o mal praticado por aquela. Tanto a magia
negra quanto a branca operavam com:
propriedades de produtos da fauna e da flora do mar, de corpos
minerais, de vegetais, de vísceras e órgãos animais, com elementos do
organismo humano e com atributos ou meios existentes nos planos
extraterrestres. A sua influência atinge as pessoas, os animais e as
coisas. (LEAL DE SOUZA, 2008, p. 62)
Já no objetivo principal da umbanda apresentado por Leal de Souza, a magia
aparece completamente inserida na ética cristã, como um meio para a prática da
caridade. Quando não diretamente relacionada à prática caritativa, a magia na umbanda
seria um instrumento para preparar-se condignamente o ambiente, onde aconteceriam as
sessões de caridade na umbanda:
O objetivo da linha branca de umbanda e demanda é a prática da
caridade, libertando de obsessões, curando as moléstias ou ligação
espiritual, desmanchando os trabalhos de magia negra, e preparando
um ambiente favorável à operosidade de seus adeptos. (LEAL DE
SOUZA, 2008, p. 68)
Dessa forma, os chamados “trabalhos de caridade” na umbanda, como os passes
e o receituário não aconteciam sem o concurso da magia, reiterando-se sempre a
presença das idéias de Mesmer. Para Aluízio Fontenelle, o concurso da magia e da força
fluídica é que fundamentavam a prática caritativa mediúnica na umbanda:
Quando num terreiro de Umbanda se recebem passes ou efetuam-se
operações e procede-se ao tratamento de moléstias por meio de rituais
próprios, o fenômeno que se apresenta é justamente o fenômeno
mágico, onde a força fluídica se irmana aos poderes mágicos da
espiritualidade, sob as ordens das fontes criadoras desses poderes, os
quais são emanados pela ordem divina, numa determinação imperiosa
de poder e força. ( FONTENELLE, 1957, p.180)
Se a teoria do magnetismo animal de Mesmer foi amplamente endossada pela
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obra de codificação espírita de Allan Kardec, os intelectuais umbandistas vão
ressignificá-la e, trazê-la para o campo da magia. Esta ressignificação não era de todo
original ou pioneira. Darnton mostra como as ideias de Mesmer serviram para embasar
algumas das tendências ocultistas e espiritualistas na França do século XIX, ao mesmo
tempo em que forneciam um ponto de apoio “científico” às mesmas, em um momento
em que o apelo cientificista longe estava do ostracismo (DARNTON, 1988). O frio
racionalismo do século XVIII parecia não possuir mais o poder de responder aos
problemas existenciais de boa parte da população francesa do XIX. Assim, segundo
Darnton:
O mapeamento dos principais desvios e curvas do seu curso entre
1789 e 1850 permitirá pôr em perspectiva o mesmerismo da década de
1780 e esclarecer seu papel na transição do iluminismo para o
romantismo. Podem-se entender melhor as várias atitudes geralmente
vinculadas a esses dois rótulos traçando-se uma linha de pensamento
de um extremo – a fé do século XVIII na capacidade da razão de
decodificar as leis da natureza – a outro – o fascínio do século XIX
pelo sobrenatural e irracional. Os mesmeristas pós-revolucionários
desenvolveram sua própria versão das idéias que caracterizavam o
espiritualismo em geral. (DARNTON, 1988, p. 112)
No Brasil, os intelectuais da umbanda partirão da teoria do fluido universal de
Mesmer para fundamentar as práticas mágicas, conciliando-as até mesmo com os
princípios doutrinários defendidos pelo espiritismo francês do século XIX, tão
preocupado em fugir do sobrenatural e do maravilhoso, através do apelo à razão e à
experimentação. Assim, se endossavam que a atuação de um espírito poderia levar à
loucura e a males físicos, o que estava acorde com os ensinamentos do espiritismo,
ressignificavam os mesmos, apelando para a magia como terapêutica capaz de catalisar
o afastamento e encaminhamento de espíritos perturbadores. Dessa forma, Lourenço
Braga explicava o porquê do uso mágico da pólvora nos trabalhos de desobsessão:
Nós, espíritos reencarnados, somos imperfeitos, pecamos diariamente
por obras, por palavras e por pensamentos; os nossos maus
pensamentos formam camadas que se condensam com os fluidos dos
espíritos inferiores, livres da matéria, que são atraídos por nós mesmos
e, dessa forma, tornam muitas vezes uma pessoa, uma família, ou a
população de uma cidade vítima de várias coisas, tais como sejam:
moléstias, brigas, desastres, loucuras, paralisias, etc. Para a descarga,
deslocamento ou desagregação dessas camadas pesadas de fluidos
condensados, é muitas vezes necessário, para se livrar rapidamente do
mal que eles nos causam, o uso da pólvora, cuja ação é rápida; porém,
tais práticas são sempre auxiliadas por falanges de espíritos bem
intencionados, que acodem ao nosso chamado pelos cânticos (pontos
cantados) e pelos pontos riscados no chão, com a pemba branca.
(BRAGA, [s.d.[1941], p. 23).
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A obsessão, ou atuação de um espírito ou espíritos provocando moléstias,
desajustes e a loucura aparecem na obra de codificação do espiritismo por Allan Kardec.
No Brasil, Bezerra de Menezes, no final do século XIX, explicitará uma terapêutica
capaz de enfrentar esses casos: a desobsessão, ancorada, principalmente, na prece e na
doutrinação do espírito chamado obsessor (BEZERRA DE MENEZES, 1977). Portanto,
a magia aparecia na literatura umbandista como um recurso, capaz de apressar o
encaminhamento do espírito obsessor. Vista a questão por este ângulo, claramente os
intelectuais da umbanda estavam credenciando-se e propalando a eficácia de seus
trabalhos, que, sob a égide da magia, inexistente na obra de codificação espírita,
facilitaria o encaminhamento do espírito perturbador, sujeito apenas à prece e
doutrinação na sistemática do espiritismo francês do século XIX.
Por outro lado, Leal de Souza invocava o mesmerismo para tentar racionalizar,
explicar a vulnerabilidade humana aos trabalhos de feitiçaria, os quais poderiam ser
desfeitos na umbanda:
É sobre essa propriedade, fluido ou sensibilidade suscetível de
exteriorizar-se, que o feiticeiro geralmente atua para atingir a
personalidade humana, podendo influir sobre o pensamento, causar
moléstias, provocar a morte, e até beneficiar o organismo. O feiticeiro
trabalha sem ou com o auxílio de espíritos da sua categoria, pelos
princípios, mas dotados de formidável poder de atuação física,
favorecidos pela invisibilidade, que os torna clandestinos.
Estas entidades são, freqüentemente, colaboradoras espontâneas
dessas práticas, e por isso, muitas pessoas, sem que o pretendam,
cometem atos análogos aos da feitiçaria, pois atraem com
pensamentos vigorosos esses auxiliares intangíveis, que logo se
transformam em agentes de vontades hostis ao próximo. (LEAL DE
SOUZA, 2008, p. 58).
Na exegese da magia e na tentativa de trazê-la para o âmbito da religião
umbandista, vamos ter exemplos de racionalizações mágicas inseridas em um esforço
identitário, capaz de separar a umbanda de práticas julgadas aéticas ou empíricas.
Assim, Lourenço Prado admitia que muitos objetos e processos utilizados nos trabalhos
de magia na umbanda seriam dispensáveis ou até interditados. Este autor, apresentando
um resumo da sua proposta de unificação da umbanda em todo o Brasil, escrevia: “Não
será permitida a matança de quaisquer espécies de animais e nem comidas de santo,
bem como não será permitido os despachos em nenhum lugar.” (BRAGA, 1961, p.68).
Por outro lado, no mesmo resumo de unificação, o autor permitia:
O uso de defumadores, de velas, de pembas brancas ou de cores azul,
rosa, verde, lilás, amarela e alaranjada, de flores diversas, bem como
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o uso de banhos de descarga, banhos de cachoeira, banhos de mar,
breves ou patuás [...]
Será permitido o uso de parati (cachaça) e da pólvora, de cachimbos e
charutos, fora da Tenda, em locais próprios, em trabalhos fortes, onde
haja necessidade para fazer ou desmanchar trabalhos, que entrem em
ação como elementos necessários as falanges do povo quimbandeiro 6.
Porém, isso só se verificará, depois de ficar provado haver de fato
necessidade de lançar mão desse recurso extremo [...]
É permitido o uso de papel liso branco, lápis azul, seixos, conchas,
fitas, figas de guiné ou arruda, objetos de aço. (BRAGA, 1961, p. 68).
Na racionalização da magia tentada por Lourenço Braga, o autor explicava a
razão do uso na umbanda de cada uma dos objetos permitidos, listados anteriormente.
Nesta racionalização encontramos sempre a relação com a teoria dos fluidos de Mesmer.
Lourenço Braga via a umbanda como uma modalidade de espiritismo. O espiritismo
fornecia para a umbanda o que o autor chamava de seu substrato teórico, a sua filosofia,
enquanto que seus trabalhos práticos apontavam diretamente para a magia. Tanto sua
filosofia quanto a sua prática atestavam, para Lourenço Braga, o caráter científico do
espiritismo e da umbanda.
Concluímos pelo exposto que o espiritismo se divide em duas partes:
teórica e prática. A parte teórica e filosofia e a parte prática é magia.
Magia é ciência, conforme estou demonstrando. Filosofia e o estudo
que pesquisa a verdade em todos os ramos do conhecimento humano,
no plano terreno e no plano espiritual. (...) Por tudo isso afirmo com
convicção absoluta que o espiritismo, em qualquer das suas
modalidades, não pode e não deve ser praticado como religião, mas
tão somente como ciência. (BRAGA, 1958, p. 42)
Concomitantemente ao esforço escriturístico, que chegava à tentativa de criar
uma identidade científica para a umbanda, percebe-se que a magia é sempre assumida
através de uma disposição conciliatória com a moral judaico-cristã. Assim, referindo-se
ainda ao uso da pólvora nos trabalhos mágicos da umbanda, Lourenço Braga a um só
tempo buscava no mesmerismo uma explicação aparentada com a ciência e credenciava
a magia umbandista, colocando-a em oposição às práticas mágicas aéticas, próprias dos
“quimbandeiros”.
Parecerá absurdo aos leitores dizer-se que é admissível o uso da
pólvora, porém eu explico a grande utilidade dela, não como tem sido
utilizada pelos quimbandeiros, para a prática do mal, mas sim, para o
bem, para a descarga de ambientes ou deslocamentos de camadas
fluídicas, densas ou pesadas, em volta de uma criatura, dentro de uma
casa, ou em uma localidade qualquer. (BRAGA, [s.d.[1941], p. 23)
6
Para o autor, resumidamente, a umbanda opõe-se à quimbanda, assim como a magia branca usada pela
primeira opõe-se à magia negra usada pela última. “A umbanda tem vibrações positivas. A quimbanda
tem vibrações negativas.” (BRAGA, 1961, p. 21).
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Essas são algumas evidências empíricas que conduzem a um nexo reincidente
nas mesmas: a coexistência entre a manipulação de elementos materiais com fins
mágicos e preocupações de natureza moralizantes e exegéticas na literatura produzida
pelos intelectuais da umbanda. Contrariamente tanto à sociologia tradicional das
religiões, à teologia e, sobretudo, ao universo conceitual que embasava o discurso
médico-legal brasileiro, a magia aparecia nas obras doutrinárias umbandistas totalmente
subordinada a princípios éticos. Através deste recurso, os intelectuais da umbanda
opunham a magia constitutiva das práticas da nova religião à feitiçaria, praticada, nesta
ótica por segmentos sociais, ou atrasados intelectualmente, ou alheios aos ensinamentos
moralizantes pregados pela umbanda. A literatura umbandista de até meados do século
XX forma um “corpus” no qual os dirigentes e intelectuais da nova religião, a um só
tempo credenciavam a umbanda através do reconhecimento dos procedimentos mágicos
presentes na ancestralidade afro-ameríndia e tentavam separá-la de todas as práticas às
quais o processo de institucionalizações religiosas no Brasil negou o estatuto religioso.
REFERÊNCIAS
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1977. [1897].
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas. São Paulo: Editora da
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BRAGA, Lourenço. Umbanda (Magia Branca). Quimbanda (Magia Negra). Rio de
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DARNTON, Robert. O lado oculto da revolução. Mesmer e o final do iluminismo na
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APROVADO EM 05/05/2012
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