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Notas sobre a Influencia de Interesses Extracontratuais Costa

GUSTAVO TEPEDINO ANA CAROLINA BROCHADO TEIXEI VITOR ALMEIDA Coordenadores o DIREITO CIVIL ENTRE O SUJEITO E A PESSOA ESTUDOS EM HOMENAGEM AO PROFESSOR STEFANO RODOTÀ Belo Horizonte liJ r." EDITORA .I'rorum 2016 © 2016 Editora Fórum LIda. É proibida a reprodução total ou pardal desta obra, por qualquer meio eletrônico, fic1usive por processos xerográficos, sem autorização expressa do Editor. Conselho Editorial Flávio Henrique Unes Pereira Floriano de Azevedo Marques Neto Gustavo Justino de Oliveira Inês Virgínia Prado Soares Jorge Ulisses Jacoby Fernandes Juarez Freitas Luciano Ferraz Lúcio Delfino Marcia Carla Pereira Ribeiro Márcio Cammarosano Marcos Ehrhardt Jr. Maria Sylvia Zanella Di Pietro Ney José de Freitas Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho Paulo Modesto Romeu Felipe Bacel1ar Filho Sérgio Guerra Adilson Abreu Dallari Alécia Paolucci Nogueira Bicalho Alexandre Coutinho Pagliarini André Ramos Tavares Carlos Ayres Britto Carlos Mário da Silva Velloso Cármen Lúcia Antunes Rocha Cesar Augusto Guimarães Pereira Clovis Beznos Cristiana Fortini Dinorá Adelaide Musetti Grotti Diogo de Figueiredo Moreira Neto Egon Bockmann Moreira Emerson Gabardo Fabrício Motta Fernando Rossi I!!!!. ~ EDITORA rorum Luís Cláudio Rodrigues Ferreira Presidente e Editor Coordenação editorial: Leonardo Eustáquio Siqueira Araújo Av. Afonso Pena, 2770 -15' andar - Savassi - CEP 30130-012 Belo Horizonte - Minas Gerais - Te!.: (31) 2121.4900 / 2121.4949 [email protected] D597 O Direito Civil entre o sujeito e a pessoa: estudos em homenagem ao professor Stefano Rodotà / Gustavo Tepedino, Ana Carolina Brochado Teixeira, Vitor Almeida (Coords.). - Belo Horizonte: Fórum, 2016. 488p. ISBN: 978-85-450-0180-5 1. Direito CiviL 2. Rodotà, Stefano. I. Tepedino, Gustavo. 11. Teixeira, Ana Carolina Brochado. IIL Almeida, Vitor. III. Título. CDD 342 CDU 347 Informação bibliográfica deste livro, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT): TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor (Coords.). O Direito Civil entre o sujeito e a pessoa: estudos em homenagem ao professor Stefano Rodotà. Belo Horizonte: Fórum, 2016. 488 p. ISBN 978-85-450-0180-5. Si ê già sottolineato come l'astrazione del soggetto fosse indispensabile per uscire dalIa società degli status e aprire cosi la via aI riconoscimento delI 'eguaglianza. Quel che va respinto ê un uso politico che ha via via sterilizzato la forza storica e teórica di quelI'invenzione, riducendo il soggetto a uno scheletro che isolava l'individuo, lo separava da ogni contesto, faceva astrazione dalle condizione materiali. Perciô era indispensabile intraprendere un diverso cammino. (.. .) Da qui la necessità di passare daI soggetto alla persona, in tendendo quest'ultima come la categoria che meglio permette di dare evidenza alIa vita individuale e alla sua immersione nelle relazioni social. Da qui, in definitiva, una nuova antropologia, espressa attraverso la costituzionalizzazione della persona. (Stefano Rodotà. Il diritto di avere diritti. Bari: Laterza, 2012, p. 183) 458 I GUSTAVOTEPEDINO, ANA CAROLINA BROCHADO TEIXEIRA, VITOR ALMEIDA (COORDS) O DIREITO CIVIL ENTRE O SUJEITO E A PESSOA - ESTUDOS EM HOMENAGEM AO PROFES~ STEFANO RODOTÀ MONTEIRO, Washington de Barros, Curso de Direito Civil, São Paulo: Saraiva, 2007, v, 5. N?RONHA, ~emdo, O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia pnvada, boa-fe, JustIça contratual. São Paulo: Saraiva, 1994. PEREIRA, Caio Mário d~ Silva. Instituições de direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2014. v. UI. PEREIRA, ,vinicius. Cláusula de não indenizar: entre riscos e equilíbrio Ri d J '. Lumen Juns, 2015. . o e anelro. PERLINGIERI, Pietr~. O direito civil na legalidade constitucional. Tradução Maria Cristina de CICCO. Rio de JaneIro: Renovar, 2008. . F RENTERÍA, Pablo. Obrigações de meios e de resultado' análise crítica Rio d J São Pa I . M 't d 2011 ' . e anelro: orense' u o. e o o, ' . v. 9. Coleção Prof. R Limongi França. NOTAS SOBRE A INFLUÊNCIA DE INTERESSES EXTRACONTRATUAIS SOCIALMENTE RELEVANTES NO CONTRATO RODOTÀ, Stefano. Solidarietà: un'utopia necessaria. Roma: GLF editori Laterza, 2014. RODOTÀ, Stefano. Dal soggetto alia persona. Napoli: ESI, 2007. RODOTÀ, Stefano. Le fonti di integrazione dei contratto. Milano: Giuffre, 1970, SANTOS, J. M. Carvalho. Código Civil Brasileiro Interpretado. Rio de Janeiro' Freitas Bastos, 1964. . i~:. ~PES, ANDRÉ BRANDÃO NERY COSTA RAUL MURAD RIBEIRO DE CASTRO Miguel Maria de. Curso de Direito Civil. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, SERRA, Vazo Cláusulas modificadoras da responsabilidade' Ob' - d . 'I'd d ' ngaçao e garantia contra responsab 11 a e por danos a terceiros. BM], n. 79, p. 45, 1958. SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FGV, 2006. r~tsIO, T~PEDINO Gustavo; SCHREIBER, Anderson. Código Civil comentado. São Paulo: Atlas, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; BODIN DE MORAES, Maria Celina. Codlgo CIVIl mterpretado conforme a Constltulcão da República 2 ed Rio de J . .R V. I. " ' . anerro. enovar, 2007. TEPEDINO,Gustavo;BARBOZA,HeloisaHelena'BODINDEMORAES M . C !in d Cd' C· '11 " e a e . Rana o Igo IVI nterpretado conforme a Constituição da Repu'bll'ca . Ri o d e Janelro: enovar, 2006.. Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associa ão Brasilena de Normas Técnicas (ABNT): ç D~AS, Antônio Pedro Medeiros; SANTOS, Deborah Pereira Pinto dos. As clausulas hmltahvas de responsabilidade nos contratos de empreitada In. TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; ALMEIDA, Vito~ (Coords.). O Dlrezto Czvzl entre o sujeito e a pessoa: estudos em ho ao f St f R ' menagem pro essar e ano odota. Belo Horizonte: Fórum 2016 p 443-458 ISBN 978-85-450-0180-5. ' '. . 1 Interesses jurídicos extracontratuais socialmente relevantes e a sua tutela contratual Na lição de Stefano Rodotà, em sua monografia Dal soggetto alla persona, com a passagem da ideia do sujeito, como unidade personificada de normas capaz de permitir a composição de direitos e deveres, à noção de pessoa, como uma via para recuperar sua identidade concreta integral, esta se torna instrumento para se individuar os valores fundantes no sistema. 1 Como resultado (ao menos, parcial) desse processo, no Brasil, com a Constituição da República de 1988, reconhece-se a preponderância axiológica das situações existenciais em relação às patrimoniais e que o ordenamento está centrado no princípio-valor da dignidade da pessoa humana, a partir do qual toda a ordem jurídica deve ser reconstruída. 2 1 RODOTÀ, Stefano. Dal sogetto alla persona. Napoli: Editoriale Scientifica, 2007. 2 V. trabalhos de Gustavo Tepedino e Maria Celina Bodin de Moraes, especialmente TEPEDINO, Gustavo. PreITÚssas Metodológicas para Constitucionalização do Direito Civil. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. v, I, p. 1-23; e BODIN DE MORAES, Maria Celina. O princípio da dignidade da pessoa humana. I 460 De fato, as situações jurídicas existenciais são capazes de permitir a adequada proteção da individualidade e da personalidade;3 porém, não se pode olvidar que elas também podem desabrochar no ambiente econômico. A atividade econômica, nesse caso, deve ser vista não mais como fator de legitimidade da dignidade, como outrora já apontado, mas como ambiente em que pode ser manifestada. 4 O contrato se revela, nesse cenário, como importante ferramenta, que, para a proteção da pessoa, não pode ficar alheio aos interesses coletivos - em certa medida dela decorrente. Em introdução a outra obra por ele coordenada Il controllo sociale delle attività prívata,5 Stefano Rodotà, além de reconhecer o aumento da discussão e da sensibilidade social em relação aos interesses coletivos, buscou delinear os contornos e a influência, que seriam aprofundados ao longo da aludida obra coletiva, de tal modalidade de interesse no 3 4 5 ANDRÉ BRANDÃO NERY COSTA, RAUL MURAD RIBEIRO DE CAsmo NOTAS SOBRE A IN"FLUÊNCIA DE INTERESSES EXTRACONTRATUAIS SOCIALMENTE RELEVANTES NO CONTRATO GUSTAVO TEPEDINO,ANA CAROLINA BROCHADO TEIXEIRA, VITOR ALMEIDA (COORDS.) O DIREITO CIVIL ENTRE O SUJEITO E A PESSOA - ESTUDOS EM HOMENAGEM AO PROFESSOR STEFANO RODOTÀ In: BODIN DE MORAES, Maria Celina. Na Medida da Pessoa Humana: Estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010. p. 71-120. Na lição de Pietro Perlingieri: "A personalidade, portanto, não é um direito, mas sim, um valor (o valor fundamental do ordenamento) e está na base de uma série aberta de situações existenciais, nas quais se traduz a sua incessantemente exigência mutável de tute.la . Tais situações subjetivas não assumem necessariamente a forma do direito subjetivo e nao devem fazer com que se perca de vista a unidade do valor envolvido. Não existe um número fechado de hipóteses tuteladas: tutelado é o valor da pessoa sem limites, salvo aqueles colocados no seu interesse e naquelas de outras pessoas. A elasticidade da tutela se tor~a inst~umeo pa:a realizar formas de proteção também atípicas, fundadas no mteresse. a eXlst~nca e no hvre desenvolvimento da vida de relação" (PERLINGIERI, ~Ivzl na Legalzdade Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 764Pletro., O D~reIto 765). Ja Mana Celma Bodm de Moraes ressalta "Aqui, e desde logo, toma-se posição acerca da questão da tipicidade ou atipicidade dos direitos da personalidade. Não há mais, de fato, que se discutir sobre uma enumeração taxativa ou exemplificativa dos direitos da personalidade, porque se está em presença, a partir do princípios constitucional da dignidade, de uma cláusula geral de tutela da pessoa" (BODIN DE MORAES Maria Celina. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais: Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 117-118). RODOTÀ, Stefano. Dal sogetto alla persona, cit., p. 24. V. tb. "Por outro lado, não faltam situações patrimonia!s que, por sua ligação estrita com o livre desenvolvimento da pessoa, assun:em uma relevanCla eXls!enClal" (PERLINGIERl, Pietro. O Direito Civil na Legalidade ConstItucIOnal, cit., p. ?60); "E importante reconhecer, pois, que a tutela da dignidade da pessoa humana nao se alcança em contraposição ou em detrimento da tutela do patrimônio. ~ .. ) Finahnente, talvez seja o caso de afirmar que o momento, hoje, é o de compenetraçao de ambas essas dimensSies, sendo a tutela da propriedade um instrumento a maIS pa.ra a ~tela da. pers?~alid. E .nestes quadros que se torna importante distinguir aquelas sItuaçoes patrlmoruals - especIficamente as relações contratuais - qualificadas em função. de _sua utilidad: existencial, como tal entendido o grau de imprescindibilidade da aqUlsç~O. ou utihzaç~o pessoal do bem em questão para a conservação de um padrão de VIda muuma de dIgrudade de quem dele necessita" (NEGREIROS, Teresina. Teoria do contrato: ~ovs paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 462-463). RODOTA, Stefano (Coord.). Il controllo sociale delle attività privata. Bolonha: li Mulino, 1977. I 461 ordenamento italiano, Nesse trabalho publicado em 1977, pretendeu-se superar o problema (ainda bastante atual): encontrar a adequada tutela 6 de tais interesses utilizando os esquemas jurídicos disponíveis. De acordo com o referido autor, a tutela dos interesses coletivos, mesmo não inexistindo instrumentos adequados, mostrava-se necessária diante do estado de coisas em que eles eram sistematicamente sacrificados. Sintetiza, então, o autor: All'espansione dell'area degli interessi collettivi, in altritermini, deve corrispondere un arricchimento degli strumenti giuridici d'intervento, in modo da consentire piu puntuali e pentranti forme di controllo di attività e comportamenti che possono risultare lesivi di quegli interessi.7 Em evolução ao cenário traçado no ordenamento italiano na década de 70, é bem verdade que o sistema jurídico brasileiro já dispõe de - e não apenas reconhece - ferramentas importantes para a tutela de interesses coletivos, A Constituição da República se mostra o exemplo mais relevante da força de interesses coletivos em nosso sistema jurídico; prevendo-se inúmeros interesses coletivos, como, entre tantos outros, dos consumidores, da livre concorrência, do meio ambiente, das relações de trabalho. Com tal inserção de princípios e valores coletivos de ordem constitucional, estes passam a permear todo o sistema jurídico brasileiro, dada a sua precedência hierárquica e axiológica. A sua incidência direta nas relações privadas não apenas exige serem respeitados tais princípios de matriz constitucional, mas remodela os institutos tradicionais de direito privado. 8 Tal perspectiva de análise da questão, que visa à tutela mais adequada dos interesses coletivos, é corroborada por 6 7 8 RODOTÀ, Stefano (Coord.). Il controllo sociale delle attività privata, cit., p. 13. Em tradução livre: "À expansão da área de interesses coletivos, em outros termos, deve corresponder a um enriquecimento dos instrumentos jurídicos. de intervenção, em modo a consentir mais pontuais e penetrantes formas de controle de atiVld~s e comportamentos que podem resultar lesivos esses interesses [coletivos]" (RODOTA, Stefano (Coord.). Il controllo sociale delle attività priva ta, cit., p. 14). As repercussões nos institutos tradicionais de direito civil da incdê~a de princípios constitucionais nas relações privadas é ressaltada por Gustavo Tepedmo: Contudo, a nova proposta interpretativa não pretendia subtrair o espaço de incidência do direi:o privado, visando, ao revés, a alterá-lo qualitativamente, potenClalizando-o e redlmenslOnando-o, mediante a funcionalização de seus institutos e categorias à realização dos valores Civil na constitucionais" (TEPEDINO, Gustavo. Normas Constitucionais e Diret~ Construção Unitária do Ordenamento. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de DIrezto CiVIl. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. v. IIT, p. 4). 462 I Stefano Rodotà. Esse autor defende que se deve inserir nas dimensões da ação privada e da pública os interesses definidos como coletivos; e, para tanto, seria necessário potencializar instrumentos individuais de ação a serem revisÜados em função coletiv~, como o uso alternativo de determinada norma e a potencial utilização de ativismo judiciário. 9 Devem ser requalificados tradicionais instrumentos para que, sob a roupagem constitucionat sejam adequados à tutela dos interesses extracontratuais socialmente relevantes. 10 A instrumentalização dessa ideia foi adotada pela própria Constituição em relação à Função Social da Propriedade, nos artigos 184 e seguintes daquele diploma. O exercício do direito proprietário exige o simultâneo cumprimento de deveres no seu atuar, expressos no art. 186, de aproveitamento racional e adequado, utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente, observância das disposições que regulam as relações de trabalho e exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadoresY Nesta mesma linha, o sistema jurídico brasileiro infraconstitucional também tem adotado outros instrumentos para permitir a tutela adequada de interesses coletivos. A Lei nº 7.347/1985 disciplinou a ação civil pública, o que foi, também, versado, sob a perspectiva do direito do consumidor, no Código de Defesa do Consumidor. Com esses instrumentos, entes que defendem interesses coletivos - Ministério 9 10 11 ANDRÉ BRANDÃO NERY COSTA, RAUL MURAD RIBEIRO DE CASTRO NOTAS SOBRE A INFLUÊNCIA DE INTERESSES EX1RACONTRATUAIS SOCIALMENTE RELEVANTES NO CONTRATO GUSTAVO TEPEDINO, ANA CAROLINA BROCHADO TEIXEIRA, VITOR ALMEIDA (COORDS.) O DIREITO CIVIL ENTRE O SUJEITO E A PESSOA - ESTUDOS EM HOMENAGEM AO PROFESSOR STEFANO RODOTÀ RODOTÀ, Stefano (Coord.). Il controllo sociale delle atlività privata, cit., p. 15. Em sentido semelhante, cf. Gustavo Tepedino: "Desse modo, de acordo com a função que a situação jurídica desempenha, serão definídos os poderes atribuídos ao titular do direito subjetivo e das situações jurídicas subjetivas. Os legítimos interesses individuais dos titulares da atividade econômica só merecerão tutela na medida em que interesses socialmente relevantes, posto que alheios à esfera individual, venham a ser igualmente tutelados. A proteção dos interesses privados justifica-se não apenas como expressão da liberdade individual, mas em virtude da função que desempenha para a promoção de posições jurídicas externas, integrantes da ordem pública contratual. Vincula-se, assim, a proteção dos interesses privados ao atendimento de interesses sociais, a serem promovidos no âmbito da atividade econômica (socialização dos direitos subjetivos)" (TEPEDINO, Gustavo. Notas sobre a Função Social do Contrato. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2010. v. III, p. 151). Nesse sentido, Gustavo Tepedino: "A proteção constitucional ao meio ambiente inserese no quadro dos valores prioritariamente tutelados pela ordem jurídica, justificando e legitimando a utilização dos bens particulares, conforme o disposto no art. 225 da Constituição. ( ... ) No panorama constitucional, em outras palavras, a propriedade privada deixou de atender apenas aos interesses do proprietário, tomando-se instrumento para a proteção da pessoa humana, devendo, portanto, a utilização dos bens privados, e o consequente exercício do domínío, respeitar e promover as situações jurídicas subjetivas existenciais e sociais por ela atingidas" (TEPEDINO, Gustavo. A Função Social da Propriedade e o Meio Ambiente. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2010. v. III, p. 183-184). Público, Defensorias Públicas, entidades e órgãos da Administração Pública, associações civis, entre outros - têm adotado comportamento exemplar para fazer valê-los. De outra parte, o Código Civit além de tratar da função social da propriedade (art. 1.228, parágrafo 1º), determinou em seu art. 421 que a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contratou. O dispositivo ainda é objeto de debate doutrinário e jurisprudencial para estabelecer os seus limites e o seu campo de aplicação;12 entretanto, é certo que não mais encontra maior fôlego a interpretação do instituto pautada em sua completa negativa. Mesmo entre os críticos/3 ressalta-se, já era sedimentada a assunção de que o contrato se encontra inserido em uma dimensão coletiva, conformadora de seu conteúdo; e sem que isso representasse a admoestação da autonomia. Recentemente, por sinat a função social do contrato sofreu um, positivo, processo de releitura interpretativa doutrinária. Apesar de o debate atual circunscrever-se ao escopo, como que em um retorno às origens, o instituto teve sua base teórica novamente apreciada para, mais uma vez, reafirmá-lo como remodelador da conteudística contratual. Tendo em vista que a, tradicionat retratação entre relações contratuais privadas e a função social voltada a um interesse coletivo fomentou o equívoco de que isso representaria uma doutrinação totalizante; o instituto fora inserido, então, em uma base hermenêutica substancial intersubjetiva - a exemplo da própria passagem do sujeito para a pessoa. Diversamente do direcionamento para um 'interesse coletivo abstrato', Jf 12 13 Entre tantos, v. TEPEDINO, Gustavo. Notas sobre a Função Social do Contrato. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2010. v. III, p. 145-156; KONDER, Carlos Nelson de Paula. A constitucionalização do processo de qualificação dos contratos no ordenamento jurídico brasileiro. Dissertação (Doutorado) Uníversidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Direito, 2009. p. 61-70; NEGREIROS, Teresina. Teoria do Contrato: Novos Paradigmas, cit.; THEODORO JÚNIOR, Humberto. Contrato e sua Função Social. Rio de Janeiro: Forense, 2003; GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: 2007. p. 50-51; e TARTUCE, Flávio. Função Social dos Contratos: do Código de Defesa do Consumidor ao Código Civil de 2002. São Paulo: Método, 2007. "A ideia de função social do contrato está claramente determinada pela Constituição ao fixar como um dos fundamentos da República, o valor social da livre iníciativa (art. 1º, inc. IV); essa disposição impõe, ao jurista, a proibição de ver o contrato como um átomo, algo que somente interessa às partes, desvinculado de tudo o mais. O contrato, qualquer contrato, tem importância para toda a sociedade e essa asserção, por força da Constituição, faz parte hoje do ordenamento positivo brasileiro - de resto, o art. 170, caput, da Constituição da República, de novo salienta o valor geral, para a ordem econômica, da livre iníciativa" (AZEVEDO, Antônío Junqueira de. Parecer Civil. Revista dos Tribunais, v. 750, p. 118, 1998). 463 464 I GUSTAVO TEPEDINO, ANA CAROLINA BROCHADO TEIXEIRA, VITOR ALMEIDA (COORDS.) tem-se ~ue a função social do contrato insere-se, em si, na percepção de que, asI~ como ~s seres humanos em sociedade, as relações as quais protagomzam (taI~,com as contratuais) encontram-se interligadas concretamente - amda que de forma mediata - com outras tantas e incontáveis presentes no bojo da tessitura social. E, desta feita, mesmo o interesse coletivo, em tese, mais abstrato, apresenta-se pertinente e tocado yelas vicissin:des de um pacto, em tese, somente privado.14 Nao obstante, ve-se que o hodierno potencial dissenso doutrinár.io centra-se naqueles interesses que seriam abrangidos pela função socIal do contrato. Em cuidadoso trabalho monográfico, Carlos Konder1S foi cap~ de sintetizar as manifestações interpretativas que circundam o. tema, Junto aos autores e jurisprudência pátrios. Esse instituto podena :epresentar, assim, i) a 'tutela do interesse das partes', ii) a 'tutela de mteresses da coletividade', iii) a 'tutela de terceiros mediatamente vinculados ao contrato', e iv) o 'interesse perseguido pela relação contr~ual'. Afora o último, são os três primeiros que recebem maior atençao. Entretanto, observa-se que, de fato, não haveria verdadeiro debate quanto ao fato de a função social afigurar-se como vetor de permeabilidade dos valores constitucionais - o item (ii) - no contrato. As dis~uõe fundar-se-iam na (des)necessidade daquela quanto à ?roteçao das partes e de terceiros concretos, visto que já haveria outros mstrumentos. Sob esse viés, tem-se que a compreensão da função social ~nqut atrelada aos itens (i) : .(iii) não exclui a apreensão afeita ao Item (lll) - em que pese o contrano possa não se verificar. Nesse sentir ainda que h~ja debate acerca da temática, conclui-se que a função sociaÍ do cOl;trato e retratada, e acatada, como força motriz apta a remodelar o conteudo dos contratos pela penetração de interesses extracontratuais. No âmbito do direito contratual, - apesar de inúmeros trabalhos que tratam do reconhecimento e da aplaudida inserção no Código 14 15 16 ANDRÊ BRANDÃO NERY COSTA, RAUL MURAD RIBEIRO DE CASTRO NOTAS SOBRE A INFLUENCIA DE INTERESSES EXTRACON1RATUAIS SOCIALMENTE RELEVANTES NO CONTRATO O DIREITO CIVIL ENTRE O SUJEITO E A PESSOA - ESTUDOS EM HOMENAGEM AO PROFESSOR STEFANO RODOTÀ PIANOVSKI RUZYK~ Carlos Eduardo. Institutos fundamentais do direito civil e liberdade(s): repensando a dImensao funcional do contrato, da propriedade e da família Rio de J . GZ, 2011. p.198-199. . aneIrO, KONDER, Carlos Nelson d: Paula. A constitucionalização do processo de qualificação dos contratos no ordenam~t jUndlCO braSileiro. Dissertação (Doutorado) - Universidade do Estado do RIO ~e ~aneIro, Faculdade de Direito. Rio de Janeiro, 2009. p. 61-70. de FACHIN: "A função social do contrato apresenta duas Neste s:ntido e a mt:rpe~ção dlmensoes: uma ;ntrmsec.a a :elação entre os contratantes, que respeita ao seu equilíbrio, ~egundo os prmcIO~ da Justiça contratual e da boa fé, e outra extrínseca, que é pertinente a rep;,~usao que dI~ respeIto aos 'efeitos do contrato no largo campo das relações SOC'~ FACHIN, LUIZ Edson. Direito Civil: Sentidos, Transformações e Fim. Rio de JaneIro: Renovar, 2014. p. 126. A I Civil da função social do contrato - ainda são tímidas as soluções práticas acolhidas por Tribunais e pela prática contratual quanto à presença de interesses coletivos. Essa constatação não afasta, todavia, o caminho percorrido pelo direito contratual hodiernamente, em que ocorre progressivo reconhecimento da presença no tecido contratual de princípios e valores de matriz constitucional. Essa presença revela importante transformação - ainda que gradual- do instituto do direito das obrigações, que ainda é estudado por muitos autores sob uma ótica neutra e a-histórica17 e como espaço privilegiado da liberdade individual (rectius: econômica) lida como verdadeira zona franca. 18 É de se ressaltar, entretanto, que, independentemente da celeuma quanto ao conteúdo da função social do contrato, a outrora premissa de apatia (e encapsulamento) das relações contratuais tem sido alterada pela aceitação da presença da cláusula geral de boa-fé objetiva. Ainda que, em um primeiro momento, esta se volte à perfectibilização de deveres laterais em favor dos pactuantes, é inegável que se transforma, também, na porta de entrada dos valores constitucionais - notadamente do princípio da solidariedade - no direito contratual,19 Não obstante, a hipótese defendida no presente artigo vai além da inserção de valores e princípios por meio da cláusula geral de boa-fé objetiva. Caberia às partes perseguir, além dos seus interesses veiculados na relação contratuat também interesses extracontratuais socialmente relevantes, de matriz coletiva. Em outras palavras, a disciplina do contrato não estaria limitada unicamente aos interesses das partes, mas, também, a interesses socialmente legitimados de ordem 17 18 19 PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional. cit., p. 901-902. "Além disso, a autonomia privada não pode mais ser concebida como direito absoluto, o qual sofreria restrições pontuais por meio de normas de ordem pública. Ao revés, o principio da autonomia privada deve ser revisitado e lido à luz dos valores constitucionais, não sendo possível admitir espécies de zonas francas de atuação da autonomia privada, imunes ao controle axiológico ditado pela Constituição da República" (TEPEDINO, Gustavo. Notas sobre a Função Social do Contrato, cit., p. 155). "Sob a ótica constitucional, o princípio da boa-fé encontra-se implicito quer na cláusula geral de tutela da dignidade da pessoa humana, quer no preceito que impõe como objetivo da República a construção de uma sociedade solidária. Ora, a construção de uma sociedade solidária e orientada à proteção primordial da pessoa humana não é possível se, também nas relações contratuais, não houver colaboração, respeito mútuo e mecanismos de proteção. O princípio da boa-fé objetiva, introduzido como tal explicitamente pelo CDC e agora contemplado pelo novo Código Civil (art. 422), constitui, além de parãmetro de interpretação e integração do contrato, autêntica norma de conduta oponível aos contratantes, limitando o exercício de direitos e criando deveres instrumentais, como é o caso do dever de informação" (BODIN DE MORAES, Maria Celina. Prefácio. In: NEGREIROS, Teresina. Teoria do contrato: novos paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006). 465' 466 I ANDRÉ BRANDÃO NERY COSTA, RAUL:MURAD RIBEIRO DE CASTRO NOTAS SOBRE A INFLUÊNCIA DE INTERESSES EXTRACONTRATUAIS SOCIALMENTE RELEVANTES NO CONTRATO GUSTAVO TEPEDINO, ANA CAROLINA BROCHADO TEIXEIRA, VITOR ALMEIDA (COORDS.) O DIREITO CIVIL ENTRE O SUJEITO E A PESSOA - ESTUDOS EM HOMENAGEM AO PROFESSOR STEFANO RODOTÀ constitucional - não previstos pelas partes - que passam a incidir na relação contratual. Os interesses extracontratuais capazes de permear o tecido contratual podem, entre outros, dizer respeito aos consumidores, à livre concorrência, ao meio ambiente, às relações de trabalho. 20 Nesse sentido, a presença de interesses dos extracontratuais sig~ nificaria a (melhor, mais uma) mitigação da relatividade dos contratos, princípio contratual tido como clássico, segundo o qual a relação apenas produziria efeito entre os contratantes. 21 A um só tempo, reconhecese que os efeitos do contrato vão além da esfera dos contratantes, no caso a coletividade, como também elementos externos podem alterar (ou melhor, complementar) o seu conteúdo. Tal é a necessidade de se reconhecer a eficácia de tais interesses, como na hipótese, por exemplo, de não ser possível imaginar uma relação contratual em que não possa existir obrigação de preservação ambiental, mesmo que não previsto pelas partes, de modo que a relação contratual não se pode mostrar alheia a essa realidade. Também certo contrato para o fornecimento de insumo agrícola não pode, sob pena de violação aos princípios constitucionais e legislação ordinária especializada, consentir e encobrir a exploração de trabalho humano. 2 Integração heterônoma do contrato, o remodelamento de instrumentos contratais e alguns critérios para a aferição seja mediada por meio da legislação infraconstitucional na relação contratual, acarretando o amalgamante com o tecido contratual delineado pelos pactuantes. Essa presença também é capaz de afetar a modalidade de atuação de instrumentos individuais postos à disposição das partes, provocando a releitura de institutos civilísticos. 23 A incidência de princípios constitucionais de natureza coletiva na relação contratual corresponde a fenômeno cada vez mais aceito, uma vez que as relações contratuais não mais são reguladas exclusivamente pela autonomia privadas das partes. O conteúdo do contrato sofre cada vez mais intervenção do legislador, de modo que, comisso, o contrato adquire fontes múltiplas. Nas palavras de Gustavo Tepedino: Trata-se do fenômeno que a doutrina italiana denominou de fonti di integrazioni contrattuali, a indicar a justaposição, no regulamento contratual, de um regime obrigacional voluntário e de um regime jurídico legal insuscetível de alteração pela vontade dos contratantes. 24 Tal fenômeno foi também tratado em outra obra de Stefano Rodotà, Le Fonti di Integrazione del Contratto, em que se buscou especificar, a partir de reflexão a respeito do art. 1.374 do Código Civil ltaliano,25 a construção do contrato como regulamento de interesses, A presença de valores e princípios constitucionais de matriz coletiva no contrato pode ocorrer seja com a sua incidência direta,22 20 21 22 "A rigor, a função social do contrato deve ser entendida como princípio que, informada pelos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, li), do valor social da livre iniciativa (art. 1º, IV) - fundamentos da República - e da igualdade substancial (art. 3º, IH) e da solidariedade social (art. 3º, I) - objetivos da República - impõe às partes o dever de perseguir, ao lado de seus interesses individuais, a interesses extracontratuais socialmente relevantes, dignos de tutela jurídica, que se relacionam como contrato ou são por ele atingidos" (TEPEDlNO, Gustavo. Notas sobre a Função Social do Contrato, cit., p. 149). Nessa direç20, entendimento de Gustavo Tepedino, para quem "Nesta esteira, o princípio da função social dos contratos enseja a mitigação da relatividade dos contratos, ou a relativização da relatividade, por meio da imposição de deveres aos contratantes, não devendo ser entendido como mera ferramenta para ampliação das garantias contratuais na hipótese de lesão contratual provoca por terceiro cúmplice - o que seria um contra-senso" (TEPEDINO, Gustavo. Notas sobre a Função Social do Contrato, cit., p. 151). A respeito da noção de relatividade contratual, v. NEGREIROS, Teresina. Teoria do Contrato: Novos Paradigmas, cit., princípio que deve ser contextualizado em cenário de hipercomplexidade contratual e contrabalanceado com os novos princípios contratuais. Confira-se lição clássica de Pietro Perlingieri a respeito da incidência direta da Constituição nas relações privadas, de todo aplicável ao cenário jurídico brasileiro: "Não existem, 23 24 25 portanto, argumentos que contrastem a aplicação direta: a norma constitucional pode, também sozinha (quando não existirem normas ordinárias que disciplinem a fattispecie em consideração), ser a fonte da disciplina de uma relação jurídica de direito civil. Esta é a única solução possível, se se reconhece a preeminência das normas constitucionais e dos valores por elas expressos - em um ordenamento unitário, caracterizado por tais conteúdos" (PERLINGIERI, Pietro. Perfis de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 11). Na literatura brasileira, cf., por todos, TEPEDINO, Gustavo. Normas constitucionais e o Direito Civil na Construção Unitária do Ordenamento, cit., especialmente p. 9-12. A necessidade de releitura de institutos civilísticos é expressa por Gustavo Tepedino, em texto que trata da função social do contrato: "Torna-se fundamental, por isso mesmo, a releitura dos conceitos civilísticos a partir dos preceitos constitucionais, pois' as normas constitucionais afiguram-se parte integrante da dogmática do direito civil, remodelando e revitalizando seus institutos, em torno de sua forca reunificadora do sistema". TEPEDINO, Gustavo. Notas sobre a Função Social do Contrato, cit., p. 153. TEPEDINO, Gustavo. A incidência imediata dos planos econômicos e a noção de direito adquirido - Reflexões sobre o art. 38 da Lei 8.880/1994. In: TEPEDINO, Gustavo. Soluções Práticas: Pareceres. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. v. I, p. 424. Cf. também FORGIONI, Paula A. Integração dos contratos empresariais: lacunas, atuação dos julgadores, boa-fé e seus limites. Revista de Arbitragem e Mediação, v. 45, abr./jun. 2015. Art. 1.374 do Código Civil Italiano: "li contrattoobbligale parti non solo a quanto enelmedesimoespresso, maanche a tutteleconseguenzeche ne derivanosecondolalegge, o, in mancanza, secondogliusi e l'equità". Em outra tradução livre: "O contrato obriga as partes não só para o que está expresso, mas também a todas as consequências decorrentes de lei, ou, na sua falta, de acordo com os usos e a equidade" . 467 468 I GUSTAVO TEPEDINO, ANA CAROLINA BROCHADO TEIXEIRA, VITOR ALMEIDA (COORDS.) O DIREITO CIVIL ENTRE O SUJEITO E A PESSOA - ESTUDOS EM HOMENAGEM AO PROFESSOR STEFANO RODOTÀ construído tanto pela autonomia privada como também pela legislação sobre a matéria, no âmbito da qual o juiz também teria um papel importante em sua construção das regras contratuais. 26 Tal circunstânciéi é ainda corroborada pela inserção no parágrafo único do art. 2.035 do Código Civil,27 segundo o qual a função social da propriedade e dos contratos é elevada à cláusula de ordem pública, que prevalece em relação aos termos pactuados. Ou seja, ainda que haja eventual indefinição doutrinária acerca do conteúdo jurídico da função social do contrato e de sua qualificação como fator legitimador do Código Civil para a incidência dos interesses extracontratuais socialmente relevantes no conteúdo do contrato, tal intervenção é justificada ainda pela equiparação de tais interesses à norma de ordem pública, capaz de, inclusive, contrariar os interesses dos contratantes. Por meio desses expedientes, os interesses extracontratuais incidem na relação contratual diretamente, impondo deveres, como o de não consentir com o trabalho escravo ou de realizar a preservação ambiental, sob pena de não tutelar a relação contratual, como também mediante leis ordinárias e regulamentos, idôneos a, por exemplo, disciplinar inúmeros deveres atribuídos às partes por meio de tutela ambiental. Para tanto, promove-se, não apenas a incidência abstrata dos princípios constitucionais afeitos a interesses coletivos, mas sim a busca diligente de diplomas e comandos normativos - outrora já concretizados - que seriam capazes de promover a integração da teoria contratual para além dos muros da vontade. O Direito, enquanto ordenamento "sistemático e, a um só tempo, orgânico, lógico, axiológico, coercitivo, uno, monolítico, centralizado",2s não só permite como também incentiva a prática da hermenêutica contextual; em especial quando esta é apta a possibilitar o robustecimento da tábua axiológica constitucional. Passado o momento genético de afirmação da força jurígena da Constituição, toma-se de eficácia limitada (ou mesmo de pouca valia) a simples 26 27 28 RODOTÀ, Stefano. Le fonti di integrazione deZ contratto, Milano: Giuffrê, 2004. passim, Art. 2.035 do Código Civil: "A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2,045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução. Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos". TEPEDINO, Gustavo. O direito civil-constitucional e suas perspectivas atuais. In: TEPEDINO, Gustavo, Direito Civil Contemporâneo: novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo: Atlas, 2008. p. 362. ANDRÉ BRANDÃO NERY COSTA, RAUL MURAD RIBEIRO DE CASTRO NOTAS SOBRE A INFLUÉNCIA DE INTERESSES EXTRACONTRATUAIS SOCIALMENTE RELEVANTES NO CONTRATO I 469 manutenção do discurso abstrato quanto à relevância e preponderância dos interesses fundamentais extrapatrimoniais. Tal como fez o velho Santiago,29 uma vez domado o tema, é preciso trazê-lo à praia, ainda que não por inteiro. Vê-se, em maior ou menor monta, que a ordem jurídica já dá conta de alguns mandamentos suficientes para a enunciação de critérios balizadores das condutas dos agentes contratantes, em relação aos interesses coletivos extracontratuais. Dentre aquelas exemplificativamente mencionadas, observa-se que, ao passo que a vedação ao trabalho escravo apresenta-se como uma das tutelas máximas da pessoa humana, com inclusive o estabelecimento de sanção na seara penal (artigo 149 do Código Penal); a proteção do meio ambiente conta com previsões expressas do Código Florestal (Lei nº 12.651/2012); a sadia concorrência é tutelada por meio do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (Lei nº 12.529/2011); e a defesa do consumidor é salvaguardada pelos comandos do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990). A Lei Penal tipifica como crime de redução a condição análoga à de escravo (com pena de reclusão de dois a oito anos), em geral, toda conduta que submeta a pessoa humana a trabalhos forçados ou jornada exaustiva sujeita-a a condições degradantes de trabalho, ou restrinja a locomoção devido à dívida com o empregador/preposto - artigo 149, CP.3D 29 30 O velho Santiago é a personagem principal do romance 'O Velho e o Mar', de Ernest Hemingway, cuja saga compreende a longa pesca de um gigante espadarte em alto mar, seguida pela, também sofrida, tentativa de levá-lo inteiro para a praia, enquanto tubarões alimentavam-se dele. Art. 149 do Código Penal: "Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto; Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. §1º Nas mesmas penas incorre quem: I - cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; TI - mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoaís do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. §2º A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I - contra criança ou adolescente; II - por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem". A respeito da conexão desse dispositivo com a Constituição da República, cf. excerto do voto do Min, Ayres Britto: "Por isso que o Min. Luiz Fux falou do modo como a Constituição Federal protege tanto o indivíduo quanto o trabalhador. E o Código Penal concretiza a Constituição; mantém com a Constituição um elo causal mesmo, ou um vinculo de funcionalidade para tirar a Constituição do papel e fazer com que ela se incorpore ao cotidiano, tanto dos indivíduos quanto dos trabalhadores na sua malha protetiva, Por isso, Sr. presidente, eu entendo que o caso aqui se ajusta perfeitamente nessa fase, ainda de simples recebimento da denúncia, em que analisamos se há materialidade do fato tipo e se há indícios robustos suficientes de autoria. Eu entendo que a peça acusatória do Ministério Público merece, de nossa parte, recebimento, tal como justificado a partir do voto da 470 I ANDRÉ BRANDÀO NERY COSTA, RAUL MURAD RIBEIRO DE CASTRO NOTAS SOBRE A INFLUÊNCIA DE INTERESSES EXTRACONTRATUAIS SOCIALMENTE RELEVANTES NO CONTRATO GUSTAVO TEPEDINO, ANA CAROLINA BROCHADO TEIXEIRA, VITOR ALMEIDA (COORDS.) O DIREITO CIVIL ENTRE O SUJEITO E A PESSOA - ESTUDOS EM HOMENAGEM AO PROFESSOR STEFANO RODOTÀ Entretanto, a verificação da prática deste delito poderá ocasionar consequências que extrapolam a seara criminal. Nesta perspectiva de concretização dos interesses fundamentais e repartição da responsabilidade, a vedação ao trabalho escravo, como um valor constitucionat ocasionaria possivelmente a extensão da imputação cível para todos aqueles parceiros econômicos que, a depender do grau de ciência, aferível por meio de exame de estandarte objetivo de conduta, tiveram suas relações contratuais fundadas em tal jattispecie. Em complementação, a semelhante destino estaria sujeito o contratante que - embora satisfeito seu interesse - restasse inerte perante a infringência, pela contraparte, das regras atinentes às áreas de preservação permanente e às de uso restrito (artigos 4º a 9º e 10 e 11, respectivamente do Código Florestal). Mais elucidativas são as legislações pertinentes à Defesa da Concorrência e à do Consumidor. Ainda que por meio de dicções distintas, é possível perceber que ambas caracterizam de forma precisa balizas para a manutenção da sadia competição e parâmetros mínimos para a salvaguarda do consumidor. Ao passo que a Lei nº 12.529/2011 prevê, em seu artigo 36, um extenso rol de condutas tipificadas como infração à ordem econômica; a Lei nº 8.078/1980 estabelece, no comando normativo do artigo 6º, direitos inerentes a seu público-alvo. Neste ínterim, tem-se que o interesse coletivo na livre concorrência poderá ser violado por um contrato, cuja execução, por exemplo, represente a limitação da livre concorrência, dominação do mercado relevante, aumento arbitrário de lucros ou o exercício abusivo de posição dominante (artigo 36, I, It I1t IY da Lei nº 12.529/2011) - ainda que esse objetivo não houvesse em seu momento de formação. Em paralelo, uma relação contratual entre agentes econômicos que, do mesmo modo, esteja faticamente fundada no desrespeito ao sistema consumerista de proteção. Ressalta-se, por fim, que as hipóteses apresentadas não direcionam a eventual prática de conluio, em que ambos os contratantes compactuam o contrato precisamente com a finalidade de fraudar a Lei, prejudicar terceiros ou mesmo beneficiar-se à revelia dos parâmetros de conduta do sistema jurídico. A discussão e, assim, o remodelamento dos instrumentos afeitos aos pactos têm lugar quando uma das partes (esta de boa-fé) se depara, então no momento de execução do compromisso, com a infringência aos interesses constitucionais; sem que, no entanto, tenha dado causa direta a ela. Reflexo também dessa tutela diferenciada é o remodelamento de institutos clássicos atribuídos às partes no exercício da sua autonomia e para a sua tutela na relação contratual. O direito à resolução contratuat a exceção do contrato não cumprido, o conceito de mora e o princípio da boa-fé objetiva podem ser alterados diante da presença de tais interesses coletivos no tecido contratual. Tais interesses, ao redesenhar institutos contratuais, ampliam suas funcionalidades e promovem a tutela mais adequada do interesse difuso por permitir instrumentos individuais a sua tutela - ainda que indiretamente algum dos contratantes venha a ser privilegiado. O instituto da resolução do contratuat previsto no Código Civil nos arts. 474 e 475 do Código Civit ao tratar da cláusula resolutiva, consiste na faculdade que assiste a um dos contratantes para resolver o contrato e pôr fim à relação contratuaPl Tal direito à resolução do contrato se configuraria com a perda do interesse útil da prestação para um dos contratantes. Esse conceito clássico pode ser expandido quando se leva em consideração a presença de interesses extracontratuais socialmente relevantes no contrato. Isso permite que seja admitido o exercício do direito de resolução do contrato quando a parte do interesse ocorre em razão de violação a dever extraído de interesse extracontratual. 32 Da mesma forma, as noções de exceção do contrato não cumprido e, inclusive, de mora são alteradas, uma vez que do plexo de deveres contratuais são extraídos deveres atinentes à tutela de interesses 31 32 Min. Rosa Weber. É corno voto" (trecho do voto do Min. Ayres Britto no STF, Inq, 3.412, Sessão Plenária, ReI. para acórdão Min. Rosa Weber, julg. 29.3.2013, no qual se discutia a ocorrência de crime tipificado no art. 149 do CP), I Para Araken de Assis: "Por conseguinte, o inadimplemento deverá se revestir de características muito relevantes para autorizar a resolução. A exigência se manifesta nas várias modalidades de descumprimento. Sua reiteração constante, nessas áreas, indica talvez o interesse na preservação do vínculo, em detrimento do seu desfazimento, e aponta o inadimplemento absoluto, porque, elimina em definitivo a possibilidade de o obrigado prestar, corno única modalidade admissível em sede resolutiva" (ASSIS, Araken de. Resolução do contrato por inadimplemento. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 117). Cf. tb. CHAVES, Antônio. Resolução de contrato por descumprimento: distinção entre mora e inadimplemento. In: Doutrinas Essenciais - Obrigações e Contratos. São Paulo: RT, 2011. v. IV, passim; ZANETTI, Cristiano de Sousa. A transformação da mora em inadimplemento absoluto. Revista dos Tribunais, v. 942, abr. 2014, passim; e NERY JUNIOR, Nelson. Mora. Conceito. Termo a quo para a fluência de juros. In: NERY JUNIOR, Nelson. Soluções Práticas de Direito, v. VI, passim, set. 2014. Caminho parecido foi trilhado em relação à boa-fé objetiva, tendo sido reconhecido que violação a dever lateral pode acarretar o inadimplemento do conti·ato. v., nessa direção, SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. A boa-fé e violação positiva do contrato. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 273. 471 472 I coletivos incidentes no tecido contratuaL O instituto da exceção do contrato não cumprido consiste na possibilidade de, nos contratos bilaterais, se escusar de cumprir a sua obrigação contanto que o dever a ela correlato seja descumprido (art. 476 do Código Civil).33 Já a mora corresponderia à impossibilidade de se cumprir o pactuado no tempo, no lugar e na forma devida. 34 Como tais conceitos se relacionam aos deveres impostos às partes, poder-se-ia, aqui, também se vislumbrar o exercício de tais institutos por violação a dever extraído de interesse extracontratuaL Em acréscimo, tendo-se em vista que não apenas a cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana35 - decorrente da inserção da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito, aliada a toda a sistemática constitucional de objetivação da erradicação da pobreza, marginalização e redução das desigualdades (art. 3º, III); e, não exclusão dos direitos e garantias fundamentais não expressos no texto legal, mas que possam decorrer implicitamente dos princípios presentes (art. 5º, §2º) - como também a ordem econômica constitucional - fundada na valorização do trabalho humano, com fins a assegurar a existência digna e observando, dentro outros princípios, a função social da propriedade, a defesa do consumidor e a defesa do meio ambiente - atuam como fundamentos para o extravasamento dos interesses coletivos para além do formal binômio Estado-Particular; tem-se, de fato, alteração 33 34 35 ANDRÉ BRANDÃO NERY COSTA, RAUL MURAD RIBEIRO DE CASTRO NOTAS SOBRE A INFLUÊNCIA DE INTERESSES EXTRACONTRATUAIS SOCIALMENTE RELEVANTES NO CONTRATO GUSTAVO TEPEDINO, ANA CAROLINA BROCHADO TEIXEIRA, VITOR ALMEIDA (COORDS.) O DIREITO CIVIL ENTRE O SUJEITO E A PESSOA - ESTUDOS EM HOMENAGEM AO PROFESSOR STEFANO RODOT À "Significa que, num contrato bilateral, se urna das partes exigir da outra o cumprimento da prestação sem ter cumprido a sua, pode esta opor em sua defesa o não cumprimento pelo reclamante, deixando de prestar a sua enquanto o outro o fizer. Trata-se, pois, de urna causa impeditiva da exigibilidade da prestação, sendo esta exigibilidade diferida para o momento em que a prestação do reclamante for cumprida. Até esse momento dá-se urna espécie de paralisação da exigibilidade da prestação reclamada" (TEPEDINO, Gustavo. et alo Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 124). A respeito dos conceitos de mora e inadimplemento relativo, cf. lição de Araken de Assis: "Em mora, dispõe o art. 394 do CC-02, recai o devedor não efetuando o pagamento em tempo, lugar e forma convencionados ou impostos por lei; e, conforme reza o art. 396, ao complementar a previsão, para se estabelecer o descumprimento é necessário ato omissivo ou comissivo imputável ao obrigado. ( ... ) Existe inadimplemento relativo, 'se a obrigação não foi cumprida no terno, lugar e forma devidos, porém poderá sê-lo, com proveito para o credor, hipótese em que se terá a mora'. Em outros termos, a viabilidade do cumprimento, porque útil ao credor a prestação tardia, completada de perdas e danos, constitui um pressuposto da mora; 'perdido o interesse, ou desaparecida a possibilidade, quando prestação se toma irrealizável, surge a figura do não-cumprimento definitivo da obrigação', conclui-se em seguida" (Resolução do contrato por inadimplemento, cit., p. 117 e 123). TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 49-51. I 473 do escopo de aplicação dos clássicos instrumentos afeitos ao contrato, aproximação mais de uma transmutação, do que de mera modificação. Em maior ou menor monta, conforme o objeto contratual, mas ainda em todos, os pactuantes deixam de ser simples contratantes para se tornarem efetivos defensores do interesse extracontratual-coletivo;36 de certa forma, tem-se a releitura do bonus pater familiae, então, sob a perspectiva e delimitação constitucionaL Desde as Constituições pós-liberais que o ordenamento jurídico assume, também, a função promocional, marcada na promoção de comportamentos socialmente desejáveis. 37 E é esta justamente a questão afeita aos clássicos institutos de direito das obrigações. A proteção dos ditos interesses demanda a atuação concreta de todo e qualquer cidadão, inclusive em relações outrora pautadas pelo inteligente egoísmo. 38 Assim, os expedientes da resolução, exceção de contrato não cumprido e mora são deslocados da espera de disposição dos contratantes e passam a qualificar-se como condutas mandatórias - quando verificada que, decorre do pacto, a violação de algum daqueles interesses. Ao particular, então cidadão, não é dado beneficiar-se de um pacto, cuja execução ocorre em infração à ordem objetiva. Essa perspectiva hermenêutica funda-se, antes de tudo, em uma compreensão solidarizante do Direito; sendo esse ciência que não só deve ser comprometida com a realidade social concreta, como também que tem na sociedade solidária um dos fundamentos da República (artigo 3º, I). Entretanto, é certo que, a partir de então, a não observância do que passou a ser qualificado como um dever poderá acarretar a imputação de responsabilidade - caso, neste contexto, estejam preenchidos os requisitos da responsabilidade civiL Igualmente, o princípio da boa-fé objetiva - em especial a função criativa de deveres anexos - corresponderia à verdadeira porta de entrada de valores, entre os quais os interesses coletivos, para a realidade contratual. A extração de deveres anexos atinentes aos interesses coletivos ganha mais força e aceitação pela doutrina e jurisprudência a partir de sua contemporânea incidência no contrato. Dadas as explanadas no plano teórico no que respeita à relação contratual, é necessário analisar se tais modificações refletem-se na 36 37 38 "O sujeito ativamente é cidadão e passivamente é súbito" (FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003). BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do Direito. São Paulo: Manole, 2007. p. 13-15. HESSE, Konrad. Derecho constitucional y derecho privado. Madrid: Civitas, 1995. p. 87. 474 I ANDRÉ BRANDÃO NERY COSTA, RAUL MURAD RIBEIRO DE CASTRO GUSTAVO TEPEDINO, ANA CAROLINA BROCHADO TEIXEIRA, VITOR ALMEIDA (COORDS.) O DIREITO CIVIL ENTRE O SUJEITO E A PESSOA - ESTUDOS EM HOMENAGEM AO PROFESSOR STEFANO RODOTÀ práxis. Para tanto, serão apresentados no item seguinte deste artigo as repercussões práticas do reconhecimento da presença dos princípios extracontratuais na relação contratual- em que pese embrionárias. 3 Uma aferição empírica da tese: o início da concretização do interesse ambiental na realidade contratual e a necessidade de atenção para a violação do dever de cuidado com o trabalho escravo É sabido que os contratantes também devem perseguir, além de seus próprios, interesses extracontratuais socialmente relevantes - extraídos do tecido constitucional e, em certo ponto, desenvolvidos pela legislação infra constitucional - na formação e execução de relações contratuais. Dentre tais interesses impostos, além daqueles vinculados ao diretamente pactuado pelas partes, releva-se o interesse na preservação e proteção ambiental. Tal interesse encontra respaldo constitucional ao não apenas se impor como dever às esferas federais (art. 23, VI da CF), mas também como princípio da atividade econômica (art. 129, VI da CF), capaz de remodelar qualitativamente a atividade privada dos contratantes, sem mencionar, ainda, o dever decorrente do exercício do direito proprietário para cumprir a sua função social (art. 186, II da CF). Esse interesse difuso encontra, em seguida, também tratamento específico no art. 225 da CF,39 no qual se concede a todos o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, impondo, na mesma medida, ao Poder Público e aos cidadãos o dever para alcançar tal objetivo. O interesse na preservação ambiental, além de sua estatura constitucional, difundida de diversos trechos do texto constitucional, adquire minúcias e detalhamento na legislação ordinária. Exemplos de tais previsões, que visam a detalhar a conduta das partes, são inúmeros, destacando-se o Código Florestal (regulado pela Lei nº 12.651), de 2012; e a Lei nº 6.938, de 1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente. Tais leis permitem densificar o interesse da proteção ambiental e indicam quais os deveres impostos às partes. Os deveres, sejam aqueles de natureza constitucionat sejam os de ordem infraconstitucional, incidem diretamente na relação contratual, acrescentando, aos preceitos estabelecidos pelas partes, deveres legais voltados à preservação ambiental. Como visto, es~a_ obrigações são capazes de não apenas constituir balizas para a avahaçao do merecimento de tutela de situação jurídica dos contratantes,40 que deve encontrar respaldo em interesses socialmente relevantes, mas também transmutar substancialmente institutos de direito privado outorgados no interesse dos contratantes. Por outro lado, o exercício do direito potestativo de resolução contratual está condicionado à perda do interesse útil da prestação por um dos contratantes na manutenção da relação contratual. Tal direito nasce com a incidência na relação contratual do interesse e normas específicas visando à proteção ambiental, em razão de os fins do contratante não poderem mais ser alcançados por um dos contratantes, mas também ao não cumprir determinadas previsões legais de estatura ambiental. A perda de interesse útil dos contratantes passa também a ser balizada por cumprimento de preceitos e deveres ambientais, a despeito de não restar estabelecido no contrato. ., . É o que se verifica, ainda que de forma embnonana, pela jurisprudência. O Tribunal de Minas Gerais examinou controvérsia em torno de "Contrato de Prestação de Serviços Publicitários", de objeto complexo, celebrado em 1999, entre, de um lado, o Condomínio Indiviso Betim Shopping, e, de outro, a City Street Equipamentos Urbanos de Minas Gerais Ltda. 41 Nesse contrato, esta deveria realizar o plantio de mudas confeccionar e instalar protetores de árvores com propaganda do em~rndito, Betim Shopping, bem como realizar a manutenção publicitária pelo período de trinta e seis meses. Para justificar o seu pleito, aduziu o empreendimento que a maioria das árvores plantadas estariam mortas ou mal conservadas, além de parte dos protetores encontrarem-se quebrados, amsdo~ ou encobertos pelo mato ou placas de terceiro. Ainda, tal conduta fOl corroborada por parecer emitido por órgão competente da Prefeitura de Betim, que constou a inadequação do tipo de protetor utilizado e a 40 41 39 A sua regulamentação ocorreu com a Lei nº 9.985/2000. I 475 NOTAS SOBRE A INFLUÊNCIA DE INTERESSES EXTRACONTRATUAIS SOCIALMENTE RELEVANTES NO CONTRATO Nas palavras de Gustavo Tepedino: "Em síntese apartada: o,debate acer~ do conteúdo e do papel da função social do contrato no ordenamt~ F.1ndIm brasllelro se mS,ere no âmbito do deste processo de funcionalização dos fatos ]UndICOs, lfipondo-se ao mterpre:e verificar o merecimento de tutela dos atos de autonomia privada, os quais encontrarao proteção do ordenamento se - se somente se - realizarem não ape~s a vontade individual de interesses, mas, da mesma forma, os interesses extracontratums SOCIalmente relevantes vinculados à promoção dos valores constitucionais" (TEPEDINO, Gustavo. Notas sobre a . Função Social do Contrato, cit., p. 155). TJMG, Ap. Cív. 5142701-62.2000.8.13.0000 (1), ReI. Des. Teresa Cristina da Cunha PelXoto, julg.14.9.2005. 476 I ANDRÉ BRANDÃO NERY COSTA, RAUL MURAD RIBEIRO DE CASTRO GUSTAVO TEPEDINO, ANA CAROLINA BROCHADO TEIXEIRA, VITOR ALMEIDA (COORDS.) O DIREITO CIVIL ENTRE O SUJEITO E A PESSOA - ESTUDOS EM HOMENAGEM AO PROFESSOR STEFANO RODOTÀ ausência do cuidado adequado. Tais elementos seriam suficientes para configurar o inadimplemento contratual. No entanto, no estudo aqui traçado, revela-se interessante uma das linhas argumentativas adotadas pelo Betim Shopping e acolhida pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Argumentou o autor que como um dos fatores que deveriam levar ao inadimplemento contratual seria o fato de o empreendimento não dever se vincular à empresa - ressalte-se, ainda mais contratada para efetuar serviços publicitários - que degrada o meio ambiente e o patrimônio público municipal. Em outras palavras, a circunstância de a empresa de publicidade não apenas descumprir o pactuado na avença celebrada mas também violar normas ambientais surge como elemento capaz de permitir o inadimplemento contratual, em proteção, que vai além de interesses individuais, perpassando tutela de interesse extracontratual socialmente relevante. Por meio desse exemplo, o conceito de utilidade do contrato, idôneo caso seja suprimido no curso contratual a gerar o inadimplemento do pacto, torna-se mais elástico, com a presença na relação contratual de interesse na preservação do meio ambiente. Com isso, permite-se vislumbrar, em determinadas circunstâncias, a serem avaliadas com base no conteúdo do contrato, a configuração de perda de interesse útil, caso violadas normas de interesse ambiental, justamente a hipótese do precedente analisado pelo Tribunal de Minas Gerais. Os deveres anexos, decorrentes dos princípios da boa-fé objetiva, cláusula geral estabelecida pelo art. 421 do Código Civil, aberta permitindo a sua densificação e sua concreção com outros elementos do sistema jurídico, são formados e informados por interesses constitucionalmente relevantes. Podem defluir, assim, na relação contratual deveres de natureza contratual, por exemplo, de informar os contratantes de questões ambientais, bem como o dever de cumprir tais determinações. Outro interesse extracontratual socialmente relevante corresponde ao dever de observar as disposições que regulam as relações de trabalho, notadamente a exigência de não realizar trabalho escravo. Tal interesse encontra estatura constitucional em diversos níveis, seja ao se erigir como fundamento da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho (art. 1º, incisos III e IV da Constituição da República), seja decorrente do rol de direitos do trabalho previstos no art. 7º, que trata dos direitos dos trabalhadores. Além dessas menções, a tutela do trabalho também encontra presença na ordem econômica (art. 170 da Constituição da República). NOTAS SOBRE A INFLUÊNCIA DE INTERESSES EXTRACONTRATUAIS SOClALlVIENTE RELEVANTES NO CONTRATO 477 Como especificação da tutela de regulação das relações de trabalho, o art. 186, III, da Constituição prevê a necessidade de observância das disposições que regulam as relações de trabalho como dever para o cumprimento da função social da propriedade. Tal previsão ressalta a tutela privilegiada e a necessidade de esse interesse extracontratual incidir nas relações privadas, seja no exercício do direito proprietário como tratado pela Constituição, seja nas relações contratuais, em interpretação extensível. Tal como a tutela de interesse ambiental, na hipótese de desrespeito de relação de trabalho, pode-se cogitar como esse interesse de ordem extracontratual é capaz de se incorporar ao contrato - ainda que nada nesse sentido seja pactuado pelas partes - e permitir que sejam remodelados institutos tradicionais de direito contratual de cunho individual. A despeito de esforços que têm sido feitos e de seu fim formal (embora tardio) há mais de cem anos, ainda são comuns nos noticiários relatos de trabalhos em regime de escravidão ou em regime correlato à escravidão. Em tais notícias são retratados trabalhos análogos ao escravo, seja em ofícios no campo, seja urbano, muitas vezes com o envolvimento de imigrantes, que, em busca de melhores condições de vida, acabam se submetendo a condições degradantes. 42 Essa situação aviltante à condição humana não poderia ficar alheia à realidade contratual. Traga-se como exemplo particular - entre tantos - o caso relatado em que oficina na cidade de São Paulo, dedicada à confecção de roupas a empresa intermediária, cumpria contrato de fornecimento com grifes nacional e internacionalmente conhecidas (v. reportagem da revista Carta Capital, Renner está envolvida com trabalho escravo, extraída de <http://www.cartacapital.com.br/revista/828/renner-estaenvolvida-com-trabalho-escravo-1352.html».43 Os trabalhadores 42 43 Tal realidade foi examinada em doutrina, BIGNAMI, Renato. Trabalho escravo na indústria da moda. Revista do Direito do Trabalho, v.lSS, jul./ago. 2014. V. tb. SILVA, Marcello Ribeiro. O trabalho escravo contemporâneo rural no contexto da função social. Revista de Direito do Trabalho, v. 132, out./dez. 200S. passim. Alguns relatos assustadores são contados por Renato Bignarni: Nos casos mais agudos desse processo de precarização, há violência real, tentada ou consumada. Há relatos de trabalhadoras vítimas de assédio e violência sexual, no ambiente de trabalho, além de humilhações e vexações de todo tipo, sempre sob a ameaça de deportação e entrega para a Polícia Federal. Em outro caso analisado a partir dos relatórios de inspeçã~, a humildade da pessoa, mulher boliviana do Estado de Panda, f 01 em parte responsavel pela submissão da trabalhadora. O patrão imediato, o oficinista, ameaçava a trabalhadora 4 78 I GUSTAVO TEPEDINO, ANA CAROLINA BROCHADO TEIXEIRA, VITOR ALMEIDA (COORDS.) O DIREITO CIVIL ENTRE O SUJEITO E A PESSOA - ESTUDOS EM HOMENAGEM AO PROFESSOR STEFANO RODOTÀ viviam em alojamentos em péssimas condições, eram remunerados por produção e sofriam violências psicológicas. Estas empresas foram autuadas por praticar a realização de trabalho escravo. Na imprensa, as grifes, embora formalmente não tenham contratado tais trabalhadores, foram retratadas como fomentadoras de trabalho escravo, porque elas teriam condições de saber, com base nos contratos assinados com as intermediadoras, o preço e as condições pagas por cada peça de roupa. Nessa situação, caberia à sociedade empresária, quando tiver a ciência da realidade de trabalho escravo, exercer imediatamente o direito à resolução contratual de pôr fim à relação contratual, de maneira a não mais vincular-se à situação degradante, sem prejuízo, claro, da tutela do trabalhador frente à cadeia empresarial, que deverá que discutida na Justiça do Trabalho. Nesse caso, seria admissível, inclusive, a depender do nível de ciência da empresa em relação à situação dos trabalhadores, cogitar o não merecimento de tutela do referido contrato e sua responsabilidade, cuja tutela deveria ocorrer no ordenamento por não estar de acordo com os seus interesses, notadamente da dignidade da pessoa humana e da proteção das relações de trabalho. ANDRÉ BRANDÃO NERY COSTA, RAUL MURAD RIBEIRO DE CASTRO I 479 NOTAS SOBRE A INFLUÊNCIA DE INTERESSES EXTRACONTRATUAlS SOCIALMENTE RELEVANTES NO CONTRATO releitura de institutos civilísticos de acordo com a função desempenhada pelo contrato e por tais interesses. Como advertido na ocasião do desenvolvimento de teoria do contrato em relação ao paradigma da essencialidade, os efeitos práticos do reconhecimento da incidência de interesses extracontratuais podem ser os mais variados, que, dada a extensão, não cabem serem exaustivamente tratados no presente trabalho, mas são indicados percursos (ainda que iniciais) para o seu estudo. Dessa maneira, buscouse iniciar, a partir de trabalhos robustos a respeito da função social do contrato, discussão a respeito das consequências da presença de interesses coletivos no tecido contratual e sua repercussão na execução do contrato pelas partes. Referências ASSIS, Araken. Resolução do contrato por inadimplemento. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Parecer Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. v.750. Conclusão o reconhecimento da incidência de princípios e valores constitucionais, que informam e remodelam todo o ordenamento, e da heteronormatividade de fontes na formação do contrato, induz à conclusão de que os interesses extracontratuais socialmente relevantes de matriz constitucional introduzem-se no tecido contratual, seja por sua incidência direta, seja indireta, com a sua especificação na legislação ordinária. Tal como fez o velho Santiago na história de Emest Hemingway, é preciso trazer o tema à praia, ainda que não por inteiro. Partindo dessa premissa, propôs-se a sujeição dos contratos a disciplina especial por (também) se relacionar com interesses coletivos, além de exigir a constantemente. A trabalhadora chegara grávida ao Brasil. Passou a gravidez totalmente trabalhando, na oficina de costura. Teve seu filho no local de trabalho e voltou a trabalhar três dias depois do parto. Em outro relato o trabalhador foi espancado por ter pedido seus salários atrasados ao patrão, oficinista brasileiro. Notícias de degradação do ambiente de trabalho e tratamento indigno são frequentes e, também, no Brasil, os riscos advindos da precariedade decorrente do sistema do suor causaram vítimas fatais. Em setembro de 2010, um incêndio, em uma oficina de costura irregular do bairro do Brás, na capital paulista, de uma família boliviana, ocasionou a morte de duas crianças que não conseguiram fugir, repehndo tragédias que ocorrem nessa indústria desde os primórdios da Revolução Industrial" (BIGNAMI, Renato. Trabalho escravo na indústria da moda, cit., p. 68). BIGNAMI, Renato. Trabalho escravo na indústria da moda. Revista do Direito do Trabalho, v. 158, jul./ago. 2014. BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do Direito. São Paulo: Manole, 2007. BODIN DE MORAES, Maria Celina. O princípio da dignidade da pessoa humana. In: BODIN DE MORAES, Maria Celina. Na Medida da Pessoa Humana: Estudos de direito civil-constitucionaL Rio de Janeiro: Renovar, 2010. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. _ _ _o Prefácio. In: NEGREIROS, Teresina. Teoria do contrato: novos paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. _ _ _o CHAVES, Antônio. Resolução de contrato por descumprimento: distinção entre mora e inadimplemento. In: TEPEDINO, Gustavo. Doutrinas Essenciais - Obrigações e Contratos. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. IV, jun. 2011. FACHIN, Luiz Edson. Direito Civil: Sentidos, Transformações e Fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2014. FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. FORGIONI, Paula A. Integração dos contratos empresariais: lacunas, atuação dos julgadores, boa-fé e seus limites. Revista de Arbitragem e Mediação, V. 45, abr./jun. 2015. GOMES, Orlando. Contratos, Rio de Janeiro: Forense, 2007. HESSE, Konrad. 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