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Heidegger e o neokantismo de Windelband e Rickert

Resumo: Em 1919, Heidegger elaborou dois cursos que tiveram como interlocutores privilegiados, Windelband e Rickert, representantes do neokantismo de Baden. Em A ideia da filosofia e o problema da visão de mundo, esses filósofos são apresentados desde a perspectiva da filosofia dos valores, o que caracteriza, na análise heideggeriana, uma abordagem essencialmente teorética da realidade. Essa visão teorética da realidade impediria a manifestação do fenômeno do mundo, do sentido histórico e da essência mesma da verdade. Em A fenomenologia e a filosofia transcendental do valor, Heidegger aprofundaria a sua crítica detalhando os conceitos fundamentais desses dois autores, particularmente a distinção entre ciências nomotéticas e ideográficas em Windelband e o método de formação de conceito em Rickert. O propósito desse artigo é apresentar alguns elementos da filosofia dos valores de Windelband e Rickert, enquanto método críticoteleológico, e os seus limites na crítica de Heidegger. Os elementos da crítica heideggeriana são fundamentalmente fenomenológicos e pré-teoréticos, o que sinalizaria o caminho da ontologia fundamental que se seguiria. Palavras-chave: Visão de mundo; Valor; Mundar.

Heidegger e o neokantismo de Windelband e Rickert Heidegger and the Neo-Kantianism of Windelband and Rickert Prof. Dr. Roberto Wu (UFSC-Florianópolis-SC) [email protected] Resumo: Em 1919, Heidegger elaborou dois cursos que tiveram como interlocutores privilegiados, Windelband e Rickert, representantes do neokantismo de Baden. Em A ideia da filosofia e o problema da visão de mundo, esses filósofos são apresentados desde a perspectiva da filosofia dos valores, o que caracteriza, na análise heideggeriana, uma abordagem essencialmente teorética da realidade. Essa visão teorética da realidade impediria a manifestação do fenômeno do mundo, do sentido histórico e da essência mesma da verdade. Em A fenomenologia e a filosofia transcendental do valor, Heidegger aprofundaria a sua crítica detalhando os conceitos fundamentais desses dois autores, particularmente a distinção entre ciências nomotéticas e ideográficas em Windelband e o método de formação de conceito em Rickert. O propósito desse artigo é apresentar alguns elementos da filosofia dos valores de Windelband e Rickert, enquanto método críticoteleológico, e os seus limites na crítica de Heidegger. Os elementos da crítica heideggeriana são fundamentalmente fenomenológicos e pré-teoréticos, o que sinalizaria o caminho da ontologia fundamental que se seguiria. Palavras-chave: Visão de mundo; Valor; Mundar. Abstract: In 1919, Heidegger elaborated two lecture courses that had as privileged interlocutors, Windelband and Rickert, representatives of the Neo-Kantianism of Baden. In The Idea of Philosophy and the Problem of Worldview, these philosophers are presented since the perspective of the philosophy of the values that is, in a Heideggerian analysis, a theoretical grasping of reality. This theoretical vision of the reality would hinder the manifestation of the phenomenon of the world, the historical and the very essence of the truth. In Phenomenology and the Transcendental Philosophy of Value, Heidegger deeps its critical analysis detailing the basic concepts of these philosophers, particularly the distinction between nomothetic and idiographic sciences in Windelband and the method of formation of concepts in Rickert. The aim of this article is to present some elements of the philosophy of values of Windelband and Rickert, as a teleological-critical method, and its limits since the Heideggerian critics. The elements of the Heideggerian critics are basically phenomenological and pre-theoretical, what would signal the way of the fundamental ontology that would follow. Key words: Worldview; Value; Worlding. Revista Estudos Filosóficos nº 5 /2010 – versão eletrônica – ISSN 2177-2967 http://www.ufsj.edu.br/revistaestudosfilosoficos DFIME – UFSJ - São João del-Rei-MG Pág. 174 – 186 1. Windelband - valor como ciência O neokantismo de Baden, representado por Windelband e seu discípulo Rickert, é marcado pela tentativa de solução para a crise das ciências na transição do século XIX para o século XX. A filosofia pós-hegeliana caracterizou-se pela emergência da tendência teórica do cientificismo ou positivismo, que declara pura e simplesmente a identidade entre ciência e conhecimento, ao invés de reconhecer a primeira como uma das formas possíveis de conhecimento. Embora por vias distintas, tanto Windelband quanto Rickert compartilhavam com Dilthey a necessidade de crítica do cientificismo, embora isso não implicasse uma recusa da própria ciência. Enquanto Dilthey buscava uma forma de libertar as ciências do espírito do método das ciências naturais, Windelband e Rickert procuravam uma definição de ciência que reconhecesse a importância dos valores. Windelband procurou elaborar os princípios de uma ciência que rejeitasse, de um lado, a inflexibilidade do cientificismo, de outro, o relativismo defendido pelo historicismo de Ranke, Droysen e Humboldt; Rickert, por sua vez, procurou dar continuidade à filosofia dos valores defendida por Windelband, ao mesmo tempo em que atacava o relativismo que acreditava advir da defesa de Dilthey dos aspectos históricos das ciências do espírito. Windelband distancia-se da abordagem historicista de Ranke, Droysen e Humboldt, na medida em que estes compreendiam a história ainda na esteira da tradição pós-hegeliana, isto é, através dos conceitos hegelianos primordiais de razão, ideia e espírito, definindo a história universal como a narrativa unificada das diversas contradições envolvendo culturas e individualidades. Essa concepção historicista estava sendo criticada, à época de Windelband, pelo positivismo, e o modo como Windelband respondeu a esse ataque foi abandonando a metodologia do historicismo e retrocedendo a Kant, para definir a história a partir de uma relação lógico-formal. Nessa perspectiva, pode-se dizer que o método neokantiano consistiu num tratamento teorético da história, na medida em que esta se encontrava submetida à exigência de rigor do método científico; caberia a Windelband, portanto, realizar nas ciências humanas a tarefa que Kant havia executado com a matemática e as ciências naturais. Windelband parte da filosofia de Kant para elaborar o projeto de uma filosofia dos valores. Em última instância, todas as questões metafísicas, éticas, lógicas e ontológicas Revista Estudos Filosóficos nº 5 /2010 – versão eletrônica – ISSN 2177-2967 http://www.ufsj.edu.br/revistaestudosfilosoficos DFIME – UFSJ - São João del-Rei-MG Pág. 174 – 186 estariam relacionadas ao problema dos valores humanos. Embora não esteja presente como tema explícito na filosofia kantiana, o problema dos valores pode ser pensado a partir da segunda Crítica, na leitura de Windelband. A sua proposta seria, portanto, uma realização natural de algo que a própria obra kantiana já havia apontado. Ele lê a Lógica de Kant a partir da problemática dos valores e os relaciona aos âmbitos da lógica e da ciência, deslocando a concepção usual de valor normalmente associada às teorias de visão de mundo e à cultura. Contemporâneo de Hermann Cohen, da escola de Marburg, Windelband enfatizou, como este, a primazia da abordagem epistemológica, dando continuidade ao projeto kantiano de limitação do conhecimento buscando assegurar a sua validade, rejeitando a contingência do histórico e do psicológico, em prol de uma validade atemporal, puramente lógica. Cohen procurou assegurar a validade lógica do conhecimento científico na matemática, procedimento que Windelband analisa como deficiente, pois, embora a primeira Crítica possa fundamentar a interpretação de Cohen, a segunda e a terceira Críticas, assim como os textos sobre antropologia, história e política requerem outra fundamentação que não a matemática. Windelband postula a teoria dos valores universais que avançaria para além dos meros fatos científicos rumo aos valores humanos, de modo a solucionar a controvérsia entre ciência (Wissenschaft) e visão de mundo (Weltanschauung). Conforme Bambach (1997, p. 63), a filosofia é definida por Windelband como Wissenschaft, mas essa ciência tem que discutir os problemas da Weltanschauung e, nesse sentido, a proposta do neokantiano se diferencia da tradição positivista que afirma que a ciência tem de lidar somente com problemas de fato, enquanto que ele propõe que a Wissenschaft também tenha que abordar questões de dever que estão relacionadas, em última instância, com valores. Essa filosofia axiológica pode ser descrita como uma tentativa de construir uma ponte entre a filosofia defendida por Cohen e pela escola de Marburg, excessivamente abstrata e centrada na matemática e nas ciências naturais, e a filosofia das visões de mundo, relativista e sem rigor metodológico. Windelband considera que Kant baseou-se corretamente na matemática como a medida da ciência em 1781, na época da primeira Crítica. Foi necessário inclusive que Kant o tivesse realizado deste modo, visto que as outras ciências (sociologia, filologia, Revista Estudos Filosóficos nº 5 /2010 – versão eletrônica – ISSN 2177-2967 http://www.ufsj.edu.br/revistaestudosfilosoficos DFIME – UFSJ - São João del-Rei-MG Pág. 174 – 186 história etc.) ainda eram principiantes. Mas no séc. XIX essas ciências se desenvolveram graças a vários estudiosos (Droysen, Savigny, Humboldt, Ranke etc.) e compensaram essa diferença. Windelband acreditava que a tarefa da filosofia era incorporar essas novas ciências ao rol do conhecimento humano, sendo que o método científico derivado da matemática e das ciências naturais era inapropriado para esse empreendimento. Tratava-se de renovar o projeto kantiano avançando além de Kant e, para isso, ao invés de uma unificação das ciências pelo método matemático-natural proposto por Cohen, por exemplo, Windelband pretendia garantir às ciências da natureza e às ciências do espírito a sua especificidade. A dicotomia entre Natur e Geist pode ser rastreada, segundo Windelband, até a filosofia de John Locke que interpreta a discussão sobre a substância em Descartes como percepção interna e percepção externa. É nesse contexto que Windelband encontra a divisão entre as ciências do espírito e as da natureza no século XIX: trata-se de uma diferenciação baseada no próprio objeto. Essa dicotomia acaba encontrando certos limites, da forma como enunciada tradicionalmente, e Windelband procura mostrar os contornos dessa limitação através da análise da psicologia que, por um lado, faria referência à percepção interna no sentido de ciência da mente e, por outro, baseava-se totalmente no método das ciências naturais que lida com o mundo externo objetivo. Assim, as ciências do espírito não se diferenciam tanto das ciências naturais por conta de seu caráter substantivoempírico, e sim pelo aspecto lógico-formal. As ciências naturais distinguem-se pela busca de leis que governem os fenômenos, sejam estes quais forem, enquanto que as ciências do espírito realizam o sentido inverso, buscam a individualidade que pode ser apreendida num contexto temporal mais definido. Não se trata mais de objetos fora ou imanentes à consciência, mas um direcionamento rumo à universalidade das leis ou à particularidade dos fenômenos individuais nos fatos históricos. Num sentido kantiano, Windelband afirma que não existem objetos dados à experiência, antes objetos são produtos da consciência racional. Do ponto de vista lógico-formal, pode-se dizer que as ciências da natureza visam ao juízo apodítico universal enquanto as ciências do espírito geram proposições assertóricas particulares. Embora a proposta de Windelband possa ser vista como contraposta às Revista Estudos Filosóficos nº 5 /2010 – versão eletrônica – ISSN 2177-2967 http://www.ufsj.edu.br/revistaestudosfilosoficos DFIME – UFSJ - São João del-Rei-MG Pág. 174 – 186 interpretações usuais na sua análise da diferença entre as ciências, existe ainda um ponto fundamental comum com as abordagens criticadas por este autor, que é o de tomar como evidente a diferença entre as ciências da natureza e do espírito. As ciências que têm por finalidade a busca do conhecimento universal são descritas por Windelband como ciências nomotéticas, relacionadas com o imutável, apreensível pela abstração, constituindo-se, portanto, como ciências de leis (Gesetzeswissenschaften). As ciências que têm por finalidade a busca do conhecimento particular de entes individuais, portanto, de estruturas e não mais de leis, são denominadas ciências de eventos (Ereigniswissenschaften), ideográficas, cuja relação fundamental deixa de ser a abstração, sendo substituída pela percepção. Windelband sustenta que o caráter nomotético ou o ideográfico de uma ciência não se dá de forma absoluta, mas apenas de forma relativa, de modo que fatos históricos podem ser abordados cognitivamente ou teoreticamente. Enquanto juízos fatuais (Urteile) descrevem o que é, juízos não-fatuais (Beurteilungen) referem-se a valores que possuem validade (Geltung). 2. Rickert e o heterogeneous continuum Ao contrário de Windelband que permanecia restrito na sua análise dos valores a uma posição eminentemente metodológica, Rickert concebeu a filosofia dos valores como o contraponto às filosofias mais populares após a Primeira-Guerra: a filosofia da vida, o historicismo e o biologismo. O propósito de Rickert era que a filosofia dos valores pudesse ser o fundamento universal para os significados da história que se encontravam pulverizados no relativismo proposto pelo historicismo. Em O problema da filosofia da histórica, Rickert afirma que: “somente do ponto de vista de um ideal absoluto que tomamos como a medida da realidade empírica é que poderá haver qualquer significado na interpretação da vida cultural historicamente determinada na sua singularidade e individualidade” (1924, p. 142), isto é, o valor torna-se agora o ideal transcendental pelo qual a realidade pode ser conhecida em seu significado histórico. A análise de Rickert da história não é, portanto, pela via da perspectiva histórica como para o historicismo; antes, a história é confrontada com o dever-ser. Revista Estudos Filosóficos nº 5 /2010 – versão eletrônica – ISSN 2177-2967 http://www.ufsj.edu.br/revistaestudosfilosoficos DFIME – UFSJ - São João del-Rei-MG Pág. 174 – 186 Os âmbitos do ser - mundo da realidade (Wirklichkeit), e da validade - mundo do valor (Wert), não podem ser reconciliados numa esfera superior; antes, cada um deles marca um limite no domínio de uma racionalidade e de um método específicos. Ao invés de uma metodologia neo-hegeliana que procuraria a reconciliação ultrapassando esses âmbitos, Rickert mantém a distinção mesma destes em vista de sua especificidade, afirmando que o rigor científico pertence à determinação correta desses âmbitos. Rickert deu prosseguimento ao projeto neokantiano desenvolvido por Windelband, concebendo a filosofia como sendo essencialmente uma “ciência das ciências” (Wissenschaft der Wissenschaft), cujos fundamentos eram a lógica, a epistemologia e a razão teorética, em franca oposição ao historicismo e, principalmente, à filosofia da vida. Em Die Probleme der Geschichtsphilosophie, Rickert afirma que “a filosofia teórica é a doutrina do logos; Logos é razão, ratio, Vernunft. Logos como lógica, como epistemologia, como filosofia teórica é doutrina da ciência (Wissenschaft)” (1922, p. 01). A filosofia de Rickert desenvolve-se inicialmente numa crítica a duas das correntes de pensamento predominantes no final do século XIX: o naturalismo e o historicismo. Enquanto a primeira caracterizava-se pela recusa da especulação metafísica na pesquisa filosófica, substituindo-a pela investigação empírica fundada nas ciências da natureza, capaz de unir valores e ideologia, a segunda podia ser compreendida como uma reação ao naturalismo, ao enfatizar a cisão entre as ciências da natureza e do espírito, remetendo a singularidade dos fatos históricos à autocompreensão do Espírito. Na análise de Rickert, tanto uma quanto outra eram limitadas nas suas propostas: o naturalismo, por subordinar o âmbito dos valores ao método empírico das ciências naturais, o historicismo, por ser eminentemente antifilosófico, na sua impossibilidade de tornar-se uma ciência sistemática devido ao relativismo. O modo pelo qual Rickert procura abordar a realidade histórica seria a partir da perspectiva da diferenciação contínua (heterogeneous continuum). Concebendo a natureza como um continuum, Rickert afirma que não há saltos na natureza e sim a continuidade do fluxo. Aliada a essa tese, o filósofo argumenta que nesse fluxo não há absolutamente nenhum ente igual a outro, de modo que o continuum é heterogêneo. O modo de apreender o heterogêneo contínuo é pela operação racional da formação de conceitos Revista Estudos Filosóficos nº 5 /2010 – versão eletrônica – ISSN 2177-2967 http://www.ufsj.edu.br/revistaestudosfilosoficos DFIME – UFSJ - São João del-Rei-MG Pág. 174 – 186 (Begriffsbildung), esta apreensão não é o conhecimento do objeto em si, mas tão somente a reconstrução do objeto como conceito. Assim, Rickert permanece fiel à essência mesma da teoria do conhecimento de Kant que limita o conhecimento possível à forma de apreensão do objeto pelo sujeito. Existem regras racionais e, portanto, científicas, que fazem com que a interrupção do fluxo do continuum não seja arbitrária, mas, Rickert chama a atenção, o processo de formação do conceito a partir dessa interrupção se desenvolve de acordo com o objetivo da pesquisa – buscar a similaridade, o universal, o que caracteriza as ciências naturais, ou a dissimilaridade e o particular na história. A inversão das tarefas acarretaria na falência da atividade científica; a sua determinação específica visava combater a divisão entre Natur e Geist associados respectivamente ao físico e ao psíquico, assim como rejeitar a proposta do positivismo de um método universal para ambos. A psicologia, por exemplo, antes classificada como ciência do espírito, já era, a partir da taxionomia de Windelband, definida como ciência natural, devido ao seu método. Ao analisar a história, Rickert reitera a importância do método de formação de conceito do ponto de vista do particular, ao estabelecer a analogia entre o carvão e o diamante. O carvão diferencia-se de outros entes pela sua singularidade no tempo e no espaço, ao passo que o diamante possui um distintivo que não é mais do âmbito da mera singularidade espaço-temporal; o que precisa ser levado em consideração é que o diamante é concebido como um individuum, e se o diamante é partido em partes menores, o seu valor altera drasticamente, enquanto que o carvão reúne em si apenas uma singularidade, mas não uma individualidade, pois se o carvão é partido em pedaços menores, o seu valor não decresce substancialmente como em relação ao diamante. O conceito de valor (Wert) torna-se, portanto, central na análise de Rickert das ciências históricas. Ao contrário do ente (Seiende) que é (ist), um valor tem validade, vale (gelten) e não possui uma existência ontológica, mas é determinada formalmente num espaço lógico ou axiológico. Assim, um evento histórico como a Revolução Francesa não possui uma relevância em si mesma, pois somente a partir da valoração é que esse fato se diferencia substancialmente de outros na heterogeneidade contínua a partir de sua individualidade. Rickert avança em relação a Windelband, que considerava a distinção entre as ciências naturais e históricas desde os vetores de universalização e singularização, Revista Estudos Filosóficos nº 5 /2010 – versão eletrônica – ISSN 2177-2967 http://www.ufsj.edu.br/revistaestudosfilosoficos DFIME – UFSJ - São João del-Rei-MG Pág. 174 – 186 mas, diferentemente de Windelband, Rickert percebe que a singularização pode ser concebida tanto como mera singularização quanto como singularização essencial (individuação), sendo que a diferença entre ambos se dá a partir dos valores. Sem essa valoração, o histórico não seria propriamente possível, já que a história seria uma sucessão indistinta de eventos singulares. Como afirma Rickert, “o significado concreto é primeiro ‘constituído’ historicamente através do valor universal” (1924, p. 70), ou seja, a doação de sentido primária seria realizada teoreticamente pela valoração que confere sentido histórico ao fato singular inicialmente indistinto. Ou, como declara Bambach, “para Rickert, os valores não têm a sua fonte na história; antes, é a história que existe por causa dos valores” (1997, p. 101). Os valores culturais possuem, desse ponto de vista, um fundamento transcendental, muito embora a sua expressão seja histórica. No contexto da discussão sobre juízo e valor, Heidegger afirma que “Rickert considera isso como a ‘mais valiosa descoberta da recente pesquisa lógica e fenomenológica’, que para as representações ‘um elemento é adicionado’ que não tem o caráter de representação” (1987, p. 185). Esse elemento é o valor, que não é representação, mas condição de possibilidade de representação e, consequentemente, do histórico. Para Rickert, a valoração que ocorre na prática difere daquela que se dá teoreticamente como referência a valores. O valor-referência (Wertbeziehung) não implica a valoração do evento como positivo ou negativo, benéfico ou prejudicial, mas indica apenas a sua relação lógica com um âmbito político, cultural, econômico, etc. que traz consigo seus valores. Distingue-se, pois, a atividade de valorar/avaliar (Wertung) da referência a valores. A relação entre os valores e a singularidade torna possível o fundamento nãoarbitrário para a história, na medida em que os valores são estabelecidos por um conjunto de elementos que se diferenciam da arbitrariedade da mera singularidade; dessa forma, os valores selecionam aspectos da singularidade na formação de conceito, tornando o mero singular em um indivíduo histórico. Assim, por exemplo, Lutero só adquire interesse para a pesquisa histórica quando se diferencia de outras singularidades, e isso só é possível caso seja tomado a partir da seleção de certos aspectos particulares num horizonte determinado pelo valor religioso (PINCOCK, 2010, p. 195-196). Revista Estudos Filosóficos nº 5 /2010 – versão eletrônica – ISSN 2177-2967 http://www.ufsj.edu.br/revistaestudosfilosoficos DFIME – UFSJ - São João del-Rei-MG Pág. 174 – 186 Como se desenvolverá a seguir, Heidegger iria criticar a posição neokantiana desses autores como excessivamente teorética, mas, no início de sua carreira em 1915, ainda sob a orientação de Rickert, ele chega a afirmar em O conceito de tempo na ciência da história que um interesse é, contudo, sempre determinado na sua base por um ponto de vista, guiado por uma norma. A seleção do histórico da abundância daquilo que é dado é então baseado numa relação de valor. De acordo com isto, o objetivo da ciência da história é descrever o contexto de efeitos e desenvolvimento das objetificações da vida humana na singularidade e na individualidade dessas objetificações, que podem ser compreendidas pelas suas relações com os valores culturais (2002, p. 56). É evidente a associação com a filosofia de Rickert, na submissão do histórico a uma “relação de valor”, uma “norma” que determina as objetificações da vida humana na sua “singularidade” e “individualidade”. Os “valores culturais” são tomados como elementos transcendentais que norteiam a constituição do indivíduo histórico. 3. Heidegger e a crítica da filosofia dos valores Em A ideia de filosofia e o problema da visão de mundo, Heidegger analisa o neokantismo de Windelband, reconstituindo seu pensamento a partir da perspectiva dos axiomas. Estes são o fundamento de todo e qualquer conhecimento, seja ele resultado das ciências dedutivas ou indutivas. O objeto da filosofia, enquanto ciência originária, é o estudo desses axiomas. No entanto, como a filosofia pode decidir sobre os axiomas – essas leis e proposições fundamentais, na medida em que eles não são por definição dedutíveis de outras proposições mais elementares? Os axiomas são, portanto, os primeiros princípios, os mais universais, sobre os quais outros princípios podem ser derivados. Se os axiomas não podem ser deduzidos de outros princípios, visto que eles mesmos são pressupostos enquanto princípios fundamentais, também não podem ser derivados da experiência, pois a compreensão de um fato pressupõe esses mesmos princípios (HEIDEGGER, 1987, p. 31). Revista Estudos Filosóficos nº 5 /2010 – versão eletrônica – ISSN 2177-2967 http://www.ufsj.edu.br/revistaestudosfilosoficos DFIME – UFSJ - São João del-Rei-MG Pág. 174 – 186 A análise de Windelband mostra que a psicologia possui um caráter ambíguo: se por um lado responde a leis características das ciências naturais, por outro, apresenta um conjunto novo de leis que não se enquadra nos critérios daquelas. Segundo Heidegger: em conexão com a introdução de um novo conjunto de leis no âmbito do psíquico, o conhecimento – entendido como um fenômeno psíquico – também se apresenta sob uma nova série de leis da apreensão. O conhecimento se considera agora verdadeiro na medida em que tem validez. A consideração normativa do conhecimento destaca uma classe privilegiada de conhecimento: o conhecimento verdadeiro se distingue por seu valor particular. Este mesmo valor é compreensível só porque o conhecimento verdadeiro tem em si mesmo caráter valorativo. A verdade em si mesma é validez e, como tal, algo que tem valor (1987, p. 32). Como se pode depreender da análise de Heidegger, ele não interpreta o conceito de valor apenas dentro da ótica das ciências históricas ou do espírito, mas assinala que os conceitos de verdade e validade se subordinam à valoração. Por outro lado, as leis da natureza que regem o psíquico se distinguem, pelo menos parcialmente, das leis normativas da valoração. Enquanto as leis naturais constituem o princípio da explicação, a norma é o princípio da valoração (1987, p. 34). As normas lógicas são determinadas formas de conectar representações tendo em vista única e exclusivamente que esta atividade representativa seja verdadeira (1987, p. 34). As leis naturais do processo psíquico detêm-se em como se pensa efetivamente, ao passo que as normas dizem como se deve pensar tendo em vista a finalidade da verdade. Por isso, o método que identifica e estabelece as normas é chamado de teleológico ou crítico. Um pensamento que não é verdadeiro é carente de valor; portanto, o pensamento deve-ser verdadeiro (1987, p. 42). Assim, o método teleológico pretende ser muito mais do um simples modo do pensar ou mesmo do pensar verdadeiro, já que almeja ser o instrumento metodológico que leva à consciência das normas e das formas do pensamento e do conhecimento. Para isto, o método teleológico pressupõe uma doação ideal que possibilita toda e qualquer relação avaliadora e seletiva. Nesse ponto, Heidegger identifica uma circularidade: “não pode encontrar em si mesmo seu próprio fundamento, visto que o ideal já tem que estar dado Revista Estudos Filosóficos nº 5 /2010 – versão eletrônica – ISSN 2177-2967 http://www.ufsj.edu.br/revistaestudosfilosoficos DFIME – UFSJ - São João del-Rei-MG Pág. 174 – 186 como critério de valoração crítica da norma para levar a cabo a tarefa implícita do método” (1987, p. 44). Ou seja, a demonstração do axioma que, no seu limite, é ideal, pressupõe a própria idealidade que permite a seleção valorativa. A filosofia neokantiana de Windelband e Rickert caracteriza-se, pois, como sendo essencialmente teorética ou, como Heidegger acusa, uma filosofia de cátedra (Kathederphilosophie). Em 1919, Heidegger percebe como inconciliáveis, a premência da vida fáctica através de sua interpretação de Paulo e de Lutero com o privilégio do teorético manifestado por Windelband e Rickert. Heidegger aponta que na compreensão destes últimos “o privilégio outorgado ao teorético repousa na convicção de que o teorético representa o estrato básico e fundamental que de alguma maneira funda todas as esferas restantes” (Idem, p. 59). Entretanto, na análise heideggeriana, o teorético apresenta uma concepção filosófica que se caracteriza pela des-vivificação (Entlebnis) que des-historiciza (ent-geschichtlicht) e des-significa (ent-deutet) a experiência no mundo, transformando-a num objeto de conhecimento e de valoração. Ao invés do método de valoração (werten), Heidegger propõe uma fenomenologia do mundar (welten). Em 1919, Heidegger se situa no debate sobre a crise nas ciências de modo diverso daqueles autores que polarizaram a discussão em termos de ciências da natureza e ciências do espírito, cujos interlocutores principais defendiam ora o privilégio do teorético por meio da teoria dos valores (Windelband/Rickert) para a determinação das ciências históricas/culturais, ora a especificidade de uma metodologia própria para as ciências do espírito, a compreensão (Verständnis) do mundo da vida (Lebenswelt) por oposição à explicação (Erklärung) das ciências naturais, como Dilthey propôs. Trata-se, para Heidegger, de deslocar o debate para a esfera pré-teorética, argumentando que a verdade não está subordinada ao valor e, portanto, não está disponível teoreticamente. Em A ideia de filosofia, ele propõe: “há de se romper com esta primazia do teorético, mas não com o propósito de proclamar um primado do prático ou de introduzir outro elemento que mostre os problemas a partir de uma nova perspectiva, senão porque o teorético mesmo enquanto tal remete a algo pré-teorético” (1987, p. 59). O pré-teorético é explorado por Heidegger a partir da experiência da cátedra: o encontro com a cátedra não se dá de modo teorético, não Revista Estudos Filosóficos nº 5 /2010 – versão eletrônica – ISSN 2177-2967 http://www.ufsj.edu.br/revistaestudosfilosoficos DFIME – UFSJ - São João del-Rei-MG Pág. 174 – 186 se encontram primeiro superfícies marrons que se cortam em ângulo reto ou uma caixa maior com outra menor em cima; antes, vejo a cátedra de um golpe, por assim dizer; não a vejo isolada, eu vejo o púlpito como sendo alto demais para mim. Eu vejo um livro sobre ele, como algo que imediatamente me incomoda (um livro, e não um número de folhas estratificadas e salpicadas de manchas negras); eu vejo a cátedra numa orientação, numa iluminação, em um fundo. (1987, p. 71) O teorético já é derivado de uma instância primordial, o pré-teorético, correlativo a um es gibt originário – há algo, dá se mundo. O questionamento heideggeriano é no sentido de esclarecer se a apreensão originária desse algo (etwas) precisa começar com a percepção do marrom, passando em seguida a concebê-lo como cor, isto é, um dado sensorial genuíno, um resultado de processos físicos ou fisiológicos, até remeter a elementos físicos simples. A posição de Heidegger é que existe uma intuição compreensiva ou hermenêutica que apreende o fenômeno no seu dar-se, mediante preconceitos e retroconceitos que articulam sem “nenhuma fragmentação em elementos essenciais, senão conexão e interrelação” (1987, p. 117), isto é, a vida histórica. Ao contrário de Windelband e Rickert, que pretendiam chegar ao histórico por meio da abordagem conceitual, Heidegger enfatiza que o conceitual não é o originário, mas uma modificação de uma vivência primeira. A perspectiva heideggeriana afirma que não é o valor o ponto de convergência ideal que confere sentido à história, seja na perspectiva de uma universalização, ou na via inversa, da singularização e da individuação, como se o sentido do que há já não tivesse sido feito acessível de algum modo antes da formação de conceitos. Pelo contrário, todo valor, assim como toda individuação ou generalização em conceitos só é possível mediante uma totalidade originária – vital e histórica - articulada em conexões de significados. Na leitura de Heidegger, o neokantismo decompõe o âmbito originário da vivência em conceitos teóricos que não formam mais uma totalidade, pois a des-vivifica, transformando-a num objeto a-histórico e, portanto, sem significado. O mundar (welten) só é apreensível pela visão fenomenológica que ainda não está contaminada pelos pressupostos teoréticos que tornam essa experiência uma relação objetificante – de privação de vida (Entlebnis). Heidegger se contrapõe à metodologia Revista Estudos Filosóficos nº 5 /2010 – versão eletrônica – ISSN 2177-2967 http://www.ufsj.edu.br/revistaestudosfilosoficos DFIME – UFSJ - São João del-Rei-MG Pág. 174 – 186 teorética que pretende objetivar e descrever as vivências, mas compreender e apreender as conexões de significado em que já se está submerso. A fenomenologia pretende manifestar isso que se dá em um só golpe, o mundo circundante (Umweltliche) característico do vivenciar primordial. Heidegger conclui que “na vivência circundante não se produz em geral nenhuma posição teorética. A ação de ‘mundar’ não se determina teoreticamente, senão que se vive ‘como algo que munda’” (1987, p. 93-94). A possibilidade teorética de se relacionar com o ente objetificado, des-vitalizado e trazido diante do investigador como objeto temático de análise já é algo derivado de uma relação mais originária que vivencia o ente no mundar do mundo circundante. Para Heidegger, o único modo de apreender essa vivência originária é retroceder ao pré-teorético por uma abordagem fenomenológica que faz com que o mundar do mundo se manifeste enquanto tal. Alguns anos mais tarde, isso constituiria o núcleo da ontologia fundamental na perspectiva da temporalidade, cujo objeto de crítica não seria mais, de maneira tão detida, o neokantismo de Windelband e Rickert, mas a totalidade da tradição metafísica da filosofia. Referências: BAMBACH, C. R. Heidegger, Dilthey and the crisis of historicism. Ithaca, NY: Cornell Univ. Press, 1997. HEIDEGGER, M. The concept of time in the science of history. In: From the Earliest Essays to Being and Time and Beyond. New York: SUNY Press, 2002. _____. Zur Bestimmung der Philosophie. Gesamtausgabe, Band 56/57. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1987. PINCOCK, C. Accounting for the unity of experience in Dilthey, Rickert, Bradley and Ward. In: FEEST, I (org.). Historical Perspectives on Erklären and Verstehen. Dordrecht, Heidelberg, London, New York: Springer, 2010. p. 187-206. RICKERT, H. Die Philosophie des Lebens: Darstellung und Kritik der philosophischen Modeströmungen unserer Zeit. Tübigen: Mohr, 1922. _____. Die Probleme der Geschichtsphilosophie. Heidelberg: Winter, 1924. Data de registro: 14/05/2010 Data de aceite: 04/10/2010 Revista Estudos Filosóficos nº 5 /2010 – versão eletrônica – ISSN 2177-2967 http://www.ufsj.edu.br/revistaestudosfilosoficos DFIME – UFSJ - São João del-Rei-MG Pág. 174 – 186