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O constitucionalismo popular em uma leitura rawlsiana

2014, Revista Scientia Iuris - UEL

Resumo: O desenvolvimento da atividade política do Judiciário ao longo do século XX despertou posicionamentos críticos na teoria constitucional, podendo se destacar o Constitucionalismo Popular. Entre seus apontamentos, o Legislativo possuiria legitimidade para atuar com base em uma Constituição populardiariamente construída. Perante algumas imperfeições deixadas por esta vertente, utiliza-se a obra de John Rawls para indicar (I) que questões políticas são enfrentadas pelas instituições democráticas que compõem a estrutura básica de uma sociedade bem-ordenada; e (II) o papel desta Constituição popular pode ser exercido por elementos da teoria rawlsiana, quando os princípios de justiça identificam um parâmetro legitimador das deliberações democráticas e a razão pública permite que a atuação destas instituições seja acompanhada continuamente pelos cidadãos em nome das gerações futuras.

171 DOI: 10.5433/2178-8189.2014v18n2p171 O constitucionalismo popular* em uma leitura rawlsiana THE POPULAR CONSTITUTIONALISM IN A RAWLSIAN READING * Este artigo foi elaborado no âmbito do Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das Instituições (LETACI), vinculado à Faculdade Nacional de Direito (FND) e ao Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pela concorrência do Edital Universal nº 14/2013, e da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), pelas concorrências do APQ-1/2013 e do Edital nº 41/2013, do Programa de Apoio a Grupos Emergentes de Pesquisa no Estado do Rio de Janeiro. * * Doutorado em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil (2007). Professor Adjunto III da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected] *** Graduando em Direito da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Email: b_zettel@hotmail. com **** Graduando em Direito da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Email: henriquerangelc@ gmail.com ** Carlos Bolonha *** Bernardo Zettel **** Henrique Rangel Resumo: O desenvolvimento da atividade política do Judiciário ao longo do século XX despertou posicionamentos críticos na teoria constitucional, podendo se destacar o Constitucionalismo Popular. Entre seus apontamentos, o Legislativo possuiria legitimidade para atuar com base em uma Constituição populardiariamente construída. Perante algumas imperfeições deixadas por esta vertente, utiliza-se a obra de John Rawls para indicar (I) que questões políticas são enfrentadas pelas instituições democráticas que compõem a estrutura básica de uma sociedade bem-ordenada; e (II) o papel desta Constituição popular pode ser exercido por elementos da teoria rawlsiana, quando os princípios de justiça identificam um parâmetro legitimador das deliberações democráticas e a razão pública permite que a atuação destas instituições seja acompanhada continuamente pelos cidadãos em nome das gerações futuras. Palavras-chave: Constitucionalismo Popular; Constituição popular; Razão Pública; “Justiça como Equidade”;Judicial Review. Abstract: Thedevelopment of the political activity on the Judiciary branch at the twentieth-century sparked critical appointments in the constitutional theory as the Popular Constitutionalism. Among their notes, theLegislative is legitimated to actuate according to a Popular Constitution daily observed. Under certain imperfections left by this side of constitutional thought, we use conceptions brought by John Rawls to indicate (I) political issues are faced by democratic institutions which composes the basic structure of a well-ordered society, and (II) the role of Popular Constitution may be exercised by elements of rawlsian theory, when the principles of justice identify a legitimate parameter on democratic deliberations and the public reason allows the performance of these institutions and is continuously monitored by the citizens in the name of futures generations. Keywords: Popular Constitutionalism; Popular Constitution; Public Reason; Justice as Fairness; Judicial Review. SCIENTIA IURIS, Londrina, v.18, n.2, p.171-187, dez.2014 | DOI: 10.5433/2178-8189.2014v18n2p171 172 CARLOS B OLONHA, B ERNARDO ZETTEL E HENRIQUE R ANGEL INTRODUÇÃO Ao longo do século XX, o Judiciário norte-americano desenvolveu uma atividade cada vez mais ampla sobre o campo político. Com isto, surgiu o que se chamou supremacia judicial, correspondendo a um modelo deliberativo em que o Judiciário, sobretudo no âmbito da sua Suprema Corte, aplica valores políticos essenciais à ordem democrática, porém, detendo consigo o poder de interpretá-los em última instância. Esta capacidade de ditar a última palavra do campo político do Judiciário apresentou-se, a partir do final do século XX, como o objeto dos maiores posicionamentos críticos dentro do debate da teoria constitucional norte-americana. Entre os diversos teóricos críticos a um modelo jurisdicional de atividade potencializado, podem-se apontar autores insertos na corrente de pensamento conhecida como Constitucionalismo Popular1. O Constitucionalismo Popular é uma corrente que representa uma revalorização do poder Legislativo. Há uma atual resistência ao modelo democrático em que as deliberações políticas se polarizam no Judiciário, alegando-se que o poder de interpretar os valores essenciais à ordem constitucional encontra-se no povo. Por isto, são os representantes eleitos deste povo que deverão atuar construtivamente na elaboração dos princípios e orientações políticas da sociedade. Quando o Judiciário intervém neste procedimento deliberativo, afirmam seus defensores, não se atende a um valor normativo fundamental da ordem política: a Constituição popular. A Constituição popular, por sua vez, não se apresenta como um conceito bem delimitado pelos seus defensores, mas representa um importante papel na vida democrática dos cidadãos. Enquanto, por um lado, a Constituição legal corresponderia à atividade do Judiciário em efetivar princípios estabelecidos em um texto escrito e formal, não há grande nitidez sobre o que se compreende como Constituição popular. Esta, porém, tem como papel, em primeiro lugar, a orientação da construção efetiva dos valores de destaque na ordem democrática, ou seja, nas deliberações políticas da sociedade e, em segundo lugar, a certificação exercida pelos cidadãos de que sua vontade política esteja presente nas deliberações políticas institucionais. O objetivo deste trabalho é justamente analisar elementos do Liberalismo Político de John Rawls na elaboração de uma resposta ao posicionamento 1 Entre significativos posicionamentos críticos sobre a atividade do judicial review, AdanShinar e AlonHarel(2011) indicam haver uma atual tendência para um constreined judicial review, possuindo três principais correntes. A primeira delas seria o próprio Constitucionalismo Popular; a segunda, o Departamentalismo; e, por fim, os weekformsof judicial review. SCIENTIA IURIS, Londrina, v.18, n.2, p.171-187, dez.2014 | DOI: 10.5433/2178-8189.2014v18n2p171 173 O CONSTITUCIONALISMO POPULAR EM UMA LEITURA RAWLSIANA crítico do Constitucionalismo Popular. Quando analisada a teoria rawlsiana, sobretudo no que tange àjustice as fairness e à razão pública, estes anseios do Constitucionalismo Popular estão abrangidos e é possível suprir as imperfeições teóricas do conceito de Constituição popular. 1 TENSÃO CONSTITUCIONAL ENTRE DIREITO E POLÍTICA Uma análise coerente sobre os atuais modelos políticos de democracia constitucional deve ter em conta um aspecto crucial para a estabilização da ordem normativa e política do Estado: a tensão permanente entre o poder popular e o Poder Judiciário na garantia de direitos constitucionais. Este embate é capaz de promover a polarização entre, de um lado, teorias constitucionais com ênfase na promoção da deliberação pública e da soberania popular e, de outro, teorias que reconhecem a jurisdição constitucional como um freio aos desígnios da vontade majoritária2. No centro desse embate está a Constituição como norma suprema do ordenamento jurídico com a tarefa precípua da organização dos poderes estatais e da instrumentalização de mecanismos democráticos para formação da vontade política estatal. O poder integracionista trazido pela Constituição consubstancia um fator de estabilização entre as forças políticas majoritárias que atuam no âmbito parlamentar e as garantias de liberdade das minorias políticas, protegendo um elenco de direitos fundamentais intocáveis pela eventual atuação desmesurada do governo3. A Constituição é um documento que além de estabelecer bases fundamentais como pressupostos jurídicos normativos, determina parâmetros a se seguir na deliberação política fundamental à ordem democrática. As Cortes Constitucionais, por sua vez, enquanto instituições responsáveis por proteger a ordem constitucional, não podem ser vistas apartadas de procedimentos 2 3 Tal tensão pode ser observadades de as considerações de Ely (1980, p. 4-5) acerca do judicial review a partir de sua “função-problema” como “a body that is not elect or otherwise politically responsible in any significant way is telling the people’s elected representatives that they cannot govern like they’d like”. A função de integração da Constituição decorre da pluralidade de concepções políticas que estão presentes no interior dos Estados modernos. Justamente esse pluralismo pode descambar para uma série de tensões ideológicas sobre o direcionamento das ações estatais na promoção do bem comum. Konrad Hesse explica que a unidade política de ação, que é o Estado, não é algo que venha dado, isto é, não pode ser concebido como um a priori: “Pelo contrário, tem de cultivar-se e assegurar-se no processo político da moderna sociedade pluralista, na justaposição e na contenda de numerosos grupos, nos quais a compensação entre as diferentes opiniões, interesses e aspirações, como a resolução e a regulação de conflitos, converteram-se, por igual, em tarefa arquetípica e condição de existência do Estado” (HESSE, 2009, p. 4). SCIENTIA IURIS, Londrina, v.18, n.2, p.171-187, dez.2014 | DOI: 10.5433/2178-8189.2014v18n2p171 174 CARLOS B OLONHA, B ERNARDO ZETTEL E HENRIQUE R ANGEL deliberativos também de matriz política. Dessa forma, analisar a atividade política do Estado envolve consideravelmente discutir o papel do Judiciário em contribuição à construção e desenvolvimento dos valores fundamentais à ordem democrática, sobretudo quando nele se reproduz com maior clareza a tensão entre vontade majoritária e direito básicos. Portanto, a tensão entre a soberania popular e o Poder Judiciário se revela de forma mais contundente em um dos principais aspectos da ordem normativa: a jurisdição constitucional. O que reforça a tensão é a ideia de guarda da Constituição atribuída ao Judiciário no exercício da jurisdição constitucional. Seus órgãos se inserem, automaticamente, no centro das disputas políticas sobre o significado das normas constitucionais e, quando defendem sua aptidão em determinar a última interpretação, sugerem a existência de uma supremacia judicial. Diversas correntes constitucionalistas se debruçam sobre o tema para fundamentar e limitar o poder jurisdicional de tutela da Constituição. Na teoria constitucional norte-americana, um dos primeiros autores a levantar o debate acerca da legitimidade do judicial review foi Alexander Bickel (1986), em The Least Dangerous Branch. Em linhas gerais, considerou que o instituto representa uma anomalia no contexto político norte-americano, na medida em que representaria um poder exercido contra a maioria democrática popular. Bickel, no entanto, não afasta a necessidade do judicial review na garantia da democracia norte-americana, em virtude do isolamento político do Poder Judiciário e de suas características institucionais que o capacitam para defender valores fundamentais da sociedade. Daí cunhar-se o termo dificuldade contramajoritária. John Hart Ely (1980), em Democracy and Distrust, tem como objetivo teórico a construção de uma estrutura político-constitucional em que o poder das Cortes Constitucionais esteja restrito ao policiamento das condições de deliberação democrática, sem, contudo, ditar valores fundamentais que devem conduzir a sociedade. Ao mesmo tempo em que a Suprema Corte estaria apta a proteger o fundamental law, seria vedado que ela participasse concretamente em sua construção. Bruce Ackerman, a partir de uma reconstrução histórica do judicial review na democracia norte-americana, concebe o papel central que a Suprema Corte vem desempenhando na promoção de mudanças constitucionais por meio de decisões transformativas, sob a liderança política do Presidente da República (ACKERMAN, 2001).As críticas de Mark Tushnet(1999) e Larry Kramer (2007), porém, destacam-se na atualidade, enquanto grandes expoentes da vertente conhecida como Constitucionalismo Popular. Trata-se de uma teoria que reforça o sentido de SCIENTIA IURIS, Londrina, v.18, n.2, p.171-187, dez.2014 | DOI: 10.5433/2178-8189.2014v18n2p171 175 O CONSTITUCIONALISMO POPULAR EM UMA LEITURA RAWLSIANA uma Constituição popular paralela a Constituição legal norte-americana, que não está confinada a um determinado ato constituinte, mas que, pelo contrário, se renova com as constantes interpretações que lhe são conferidas pelo Povo. Com efeito, a atuação de Cortes Constitucionais, como a Suprema Corte dos Estados Unidos e o Supremo Tribunal Federal, deve ser analisada a partir de uma perspectiva teórica centrada não somente em aspectos jurídicos, mas também políticos que possam ajudar na compreensão de suas principais decisões. Isso não significa afirmar que as referidas Cortes atuam de maneira eminentemente política, mas tão somente a necessidade de uma abordagem teórica que leve em consideração as suas decisões a partir dos resultados que podem gerar na órbita política. Isso significa compreender como essas decisões podem dialogar com a realidade sociopolítica e como essa realidade pode influenciar na defesa de direitos constitucionais (HABERMAS, 1996). 2 A CONCEPÇÃO POLÍTICA DE JUSTIÇA E A RAZÃO PÚBLICA Nas divergências acerca do conteúdo dos direitos, o pano de fundo que se apresenta é o conflito entre os diversos valores que constituem uma sociedade. Uma decisão judicial sobre um caso difícil envolve, sobretudo, o confronto entre dois ou mais pensamentos que interpretam o conteúdo de um direito de forma distinta. Essas diferentes interpretações, quando levadas ao Poder Judiciário, demandam um provimento jurisdicional com base em um parâmetro de concretização de valores que, em particular, representam seus interesses. Portanto, a jurisdição constitucional, ao avaliar um caso que envolva uma pluralidade de visões de mundo, depara-se com um dilema que pode comprometer sua legitimidade, ou seja, há uma dificuldade em se determinar qual dos argumentos atende melhor a um conteúdo axiológico que corresponda a um princípio de justiça. Nesta perspectiva, o problema da legitimidade do judicial review é reflexo de uma sociedade em que estão presentes diversas doutrinas abrangentes4 e diversos sentidos são atribuídos aos valores presentes em uma sociedade. A 4 Para um entendimento com clareza do conceito de doutrinas abrangentes, é possível identificar sua primeira – e, talvez, mais importante – característica: “Elas tem três traços essenciais. Um deles é que uma doutrina razoável é um exercício de razão teórica: diz respeito aos principais aspectos religiosos, filosóficos e morais da vida humana, de uma forma mais ou menos consistente e coerente. Organiza e caracteriza valores reconhecidos de modo que sejam compatíveis entre si e expressem uma visão de mundo inteligível. Toda doutrina fará isso de forma que a distingam das outras, dando, por exemplo, a certos valores uma primazia e um peso especiais” (RAWLS, 2000, p.103). SCIENTIA IURIS, Londrina, v.18, n.2, p.171-187, dez.2014 | DOI: 10.5433/2178-8189.2014v18n2p171 176 CARLOS B OLONHA, B ERNARDO ZETTEL E HENRIQUE R ANGEL atividade das instituições não pode, no entanto, alcançar estas concepções para concretizar princípios constitucionais, pois estes devem ser caracterizados como de natureza política. Fala-se em tensão entre o pluralismo da sociedade e a decisão proferida pelas instituições em um sentido único. Embora haja valores que não devam fazer parte da concepção de justiça, há princípios que precisam se apresentar em qualquer ordem de atuação estatal. Tão logo a estrutura de sociedade caracterize-se como uma sociedade bem-ordenada, haverá uma cobrança contínua sobre as estruturas básicas no sentido de garantir a efetivação de tais princípios de justiça. No caso de uma divergência entre duas inviolabilidades civis, é provável que uma prevaleça sobre a outra. É igualmente provável que haja segmentos na sociedade defendendo um ou outro lado. A questão é que, em que pesem o pluralismo e a defesa de diferentes valores em diferentes medidas no campo social, as instituições devem atuar atendendo a concepções unicamente políticas de justiça e esta concepção não estará atendendo nem um segmento, nem outro. Não estará atendendo nenhuma doutrina abrangente, mas a justiça como equidade. Desta maneira, a identificação da vontade política da comunidade nas sociedades complexas apresenta-se como uma difícil tarefa quando considerado fato do multiculturalismo. Em seu interior, estão presentes diversas doutrinas abrangentes, de distintas naturezas – morais, políticas, econômicas, entre outras –,calcadas em particulares dogmas e pontos-devista. Esse é um pressuposto que tem de ser relevado para que a estrutura básica da sociedade possa atender aos princípios de justiça. Neste sentido, é pressuposto que haja um consenso sobre valores básicos para que se possa iniciar qualquer processo deliberativo, inclusive, aqueles exercidos pelas Cortes Constitucionais. Com isto, atende-se à ideia de um consenso sobreposto. A existência de um pluralismo, desde que razoável, não impede que se delimitem rigorosamente quais os princípios de justiça serão considerados como parâmetros políticos fundamentais da ordem democrática. Ao contrário do que buscam alguns teóricos, sobretudo quando se utilizam da teoria do discurso (HABERMAS, 1996), John Rawls fundamenta esse consenso a partir de uma situação de absoluta igualdade entre os cidadãos. Entende-se que não é possível que se busque a igualdade para alcançar o consenso. Pelo contrário, a igualdade é um valor que deve anteceder ao consenso. Assim, Rawls estrutura uma organização procedimental que possibilite identificar valores fundamentais à instituição SCIENTIA IURIS, Londrina, v.18, n.2, p.171-187, dez.2014 | DOI: 10.5433/2178-8189.2014v18n2p171 177 O CONSTITUCIONALISMO POPULAR EM UMA LEITURA RAWLSIANA de uma ordem democrática. É com a posição original, um momento verdadeiramente pré-político, que os cidadãos poderiam estabelecer racionalmente quais são os valores indispensáveis para que a justiça pudesse se realizar de uma geração para a outra5. Na posição original os indivíduos devem desconsiderar interesses particulares, pois, assim, prejudicariam um procedimento deliberativo justo. Da mesma maneira, os cidadãos não devem remontar suas condições sociais e econômicas reais quando colocados nesta situação de deliberação. Conseguindo-se um consenso sobre os valores essenciais à ordem democrática, a estrutura básica poderá concorrer para a sua efetivação. Tais seriam os princípios de justiças concebidos politicamente a se realizarem pela atividade do Estado. A atividade deliberativa – transparente e pública –, por sua vez, ficaria sob o controle da sociedade. O atendimento a estes princípios perante a ordem constitucional representa uma atividade legítima e, atenta a este fato, estaria a razão pública6, constantemente se certificando de que as instituições estejam pondo em prática os valores definidos consensualmente. A razão pública é aquela que tem como objeto a concepção política de justiça de uma sociedade e que está voltada para o interesse público. É a razão de cidadãos iguais que exercem o poder político final em uma sociedade democrática. As decisões políticas e as decisões judiciais são tomadas a partir da atribuição de conteúdo axiológico para um determinado valor normativo. A questão que se coloca sobre o judicial review é saber se este se caracteriza como um procedimento adequado para determinar o conteúdo de um direito que tem como destinatário final a própria sociedade. É nesse sentido que surge o debate contramajoritário, entre quem defende a possibilidade da atuação política mais construtiva do Judiciário e quem a atribui exclusivamente 5 6 Em relação à posição original de Rawls, é possível considerar o seguinte trecho: “Em primeiro lugar, ninguém sabe qual é o seu lugar na sociedade, a sua posição de classe ou o seu status social; além disso, ninguém conhece a sua sorte na distribuição de dotes naturais e habilidades, sua inteligência e força, e assim por diante” (RAWLS, 1971, p. 147). Sobre esta ideia, completa Rawls indicando a função metodológica deste conceito: “[...] vemos a posição original como um artifício de representação: ela representa o que consideramos – aqui e agora – condições equitativas, segundo as quais os representantes de cidadãos livres e iguais devem especificar os termos da cooperação social no âmbito da estrutura básica da sociedade”(RAWLS, 2000, p. 68-69). Sobre o conceito de razão, segundo Rawls: “Uma sociedade política, e, na verdade, todo agente razoável e racional, quer seja um indivíduo, uma associação, uma família ou mesmo uma confederação de sociedade políticas, tem uma forma de articular seus planos, de colocar seus fins numa ordem de prioridade e de tomar suas decisões de acordo com esses procedimentos. A forma como uma sociedade faz isso é sua razão; [...]”(RAWLS, 2000, p. 261). SCIENTIA IURIS, Londrina, v.18, n.2, p.171-187, dez.2014 | DOI: 10.5433/2178-8189.2014v18n2p171 178 CARLOS B OLONHA, B ERNARDO ZETTEL E HENRIQUE R ANGEL ao Legislativo. Nesse sentido, pode-se afirmar que a legitimidade da atuação política do Judiciário se encontra na conformação à concepção política de justiça7. 3 CONSTITUCIONALISMO POPULAR O Constitucionalismo Popular (Popular Constitutionalism) representa uma virada paradigmática com relação à prática constitucional interpretativa centrada na atuação das Cortes Judiciais8. A partir de uma análise crítica do papel que vem desempenhando a Suprema Corte dos EUA dentro da estrutura democrático-constitucional, Larry Kramer e Mark Tushnet destacam a necessidade de revalorização do poder popular na interpretação e materialização dos valores constitucionais. A ideia central é que paralelamente à Constituição legal, aplicada pela Suprema Corte, sempre houve uma Constituição popular que contribui para moldar o pensamento constitucional norte-americano e que se perfaz através de atos interpretativos levados a cabo pelo próprio povo. Pode-se dizer que o Constitucionalismo Popular reforça a função do Poder Legislativo na criação de direitos e reduz a atuação política do judicial review. No debate acerca da legitimidade do controle constitucional sobre atos de vontade majoritária, Bickel (1986) defende a posição de que o judicial review é uma força contramajoritária no contexto da democracia americana. O argumento contramajoritário consiste em limitar a legitimidade ao poder jurisdicional na supressão de uma norma do Legislativo. Nesse sentido, quando um determinado órgão do Poder Judiciário declara a inconstitucionalidade de 7 8 A concepção política de justiça pode ser analisada como um a priori para a atribuição de conteúdo aos direitos constitucionais. Significa dizer que ela deve funcionar como um ponto de partida para a deliberação no interior das instituições e nos espaços públicos de deliberação. Na seguinte passagem, fica explícita essa função da concepção política de justiça: “Os valores especificados por essa concepção (concepção política de justiça) podem ser adequadamente equilibrados, combinados ou unidos de alguma outra forma, conforme o caso, de modo que somente esses valores dêem uma resposta pública razoável a todas ou quase todas as questões que envolvem elementos constitucionais e as questões básicas de justiça” (RAWLS,2000, p. 274-275). Kramer introduz a problemática desenvolvida pelo Constitucionalismo Popular no seguinte trecho: “Wetake for grantedthat final interpretiveauthorityrestswiththe Justices. Yes, the other branches and departments have a role. Yes, they must interpret the Constitution in deciding what they can and cannot do (whichthey then indicate byacting or declining to act on constitutional grounds or for constitutional reasons). But when disputes arise, we – and by “we” I mean not just members of the legal profession, but political leaders and the American public as well – assume that the Supreme Court is responsible for their final resolution. It is the Court that tells us what the Constitution means. That, in a nutshell, is the principle of judicial supremacy” (KRAMER, 2007, p. 697). SCIENTIA IURIS, Londrina, v.18, n.2, p.171-187, dez.2014 | DOI: 10.5433/2178-8189.2014v18n2p171 179 O CONSTITUCIONALISMO POPULAR EM UMA LEITURA RAWLSIANA um ato normativo, coloca-se diante de um problema de matriz democrática: o povo, através da representação política legislativa, observa seus anseios restringidos por um Poder de Estado composto por membros não eleitos. Questiona-se a legitimidade do Judiciário no exercício da competência de ditar a existência de validade de uma lei em face da Constituição. O ponto central é saber se, ao exercer esse controle, estaria o órgão jurisdicional adentrando na esfera de competência estritamente legislativa e, com isso, excedendo seu papel perante a ordem institucional democrática. Em trabalho sobre o assunto, Jeremy Waldron (2010) defende que o judicial review realizado sobre a legislação é um controle inapropriado por parte do Judiciário, e que corrompe os valores democráticos de uma sociedade livre e representada por um Parlamento ordenado democraticamente. O judicial review, de acordo com o autor, é passível de críticas em duas frentes: (I) ele não fornece uma maneira pela qual a sociedade possa claramente enfocar as questões reais que estão em jogo quando surgem controvérsias acerca de um direito; e (II) é um instituto politicamente ilegítimo, na medida em que permite decisões sobre o conteúdo de direitos tomadas por um pequeno número de juízes não eleitos e não responsabilizáveis. Waldron, considerando o fenômeno do multiculturalismo, se propõe a discutir como podemser conciliadas as diversas correntes acerca do conteúdo de um direito quando este apresenta controvérsias significativas para a aplicação em um determinado caso. Duas são as razões que, de acordo com o autor, precisam ser levadas em conta ao projetar e avaliar o procedimento decisório para dirimir discordância sobre direitos. São as razões relacionadas ao processo e as razões relacionadas ao resultado. As razões relacionadas ao processo “são as razões para insistir que determinada pessoa tome uma decisão ou participe de sua tomada, independentemente de considerações sobre o resultado apropriado”. Por outro lado, as razões relacionadas ao resultado “são as razões para projetar o procedimento de decisão de uma determinada maneira que assegurará o resultado apropriado (uma decisão boa, justa ou correta)” (WALDRON, 2010, p. 120). No campo das razões relacionadas ao processo, pretende-se demonstrar como um determinado procedimento pode ser adotado para solucionar a controvérsia. Busca-se conferir legitimidade para a decisão a partir das regras adotadas para o procedimento decisório em si mesmo. Essas regras dizem respeito à forma de escolha das pessoas que serão responsáveis por tomar a decisão, bem como ao próprio procedimento de decisão especificado. Waldron SCIENTIA IURIS, Londrina, v.18, n.2, p.171-187, dez.2014 | DOI: 10.5433/2178-8189.2014v18n2p171 180 CARLOS B OLONHA, B ERNARDO ZETTEL E HENRIQUE R ANGEL coloca duas questões que poderiam ser feitas por um destinatário da decisão sobre o direito. Em um primeiro momento, seria possível questionar: “Por que eles, e não eu?”. Nesta crítica, deve-se considerar que “eles” seria a própria Corte competente para exercer o judicial review, enquanto “eu”, a vontade popular, legitimamente representada em um Parlamento. Em um segundo momento, questiona-se: “No procedimento de tomada de decisão que foi utilizado, por que não foi dado maior peso aos pontos de vista daqueles tomadores de decisão que pensam como eu sobre a questão?”. A crítica se funda no fato de se rejeitar o princípio majoritário por meio do judicial review, quando a própria decisão da Corte se dá através de uma maioria entre os Justices. As razões relacionadas ao processo devem se ocupar com essas duas questões a fim de conferir legitimidade ao procedimento deliberativo. Com relação às razões relacionadas ao resultado, o processo de decisão deve ser organizado de forma a demonstrar a maior probabilidade possível de alcançar um resultado considerado justo em uma perspectiva substancial. Logo, é preciso que tenhamos critérios de justiça para averiguar a legitimidade de um resultado. Esses critérios envolvem um conjunto de princípios e valores que são compartilhados em uma sociedade democrática, e que não podem ser violados com uma decisão sobre um direito sob pena de serem tomados como injustos. Sob esta perspectiva de Waldron, é possível traçar uma comparação com a teoria rawlsiana. No momento em que Waldron define a necessidade de se seguir um procedimento deliberativo com a finalidade de se alcançar um resultado justo, é possível uma aproximação com as exigências de Rawls acerca do atendimento de princípios de uma justiça política. Em sentido oposto, os argumentos dos defensores do judicial review podem ser assim resumidos: (I) os juízes tomam decisões sobre direitos com base em uma Lei Fundamental, isto é, uma Declaração de Direitos ou uma Constituição que assume uma posição central no ordenamento jurídico; (II) os juízes, ao interpretar os casos jurídicos concretos com base nessa Lei Fundamental, nada mais fazem do que expressar um consentimento da sociedade sobre o sentido dos diversos direitos, consentimento este impresso na própria Lei Fundamental; (III) nesse sentido, caso os legisladores discordem sobre uma determinada decisão judicial que aplicou o direito com um dado sentido, podem emendar a Lei Fundamental e atribuir um novo sentido para o direito que foi alvo de controvérsia; (IV) o judicial review também é um instituto de participação política do cidadão em procedimento sobre questão constitucional na forma de litigante. SCIENTIA IURIS, Londrina, v.18, n.2, p.171-187, dez.2014 | DOI: 10.5433/2178-8189.2014v18n2p171 181 O CONSTITUCIONALISMO POPULAR EM UMA LEITURA RAWLSIANA A controvérsia sobre a legitimidade da jurisdição constitucional, contudo, deve ser analisada sob outra perspectiva, voltada para a adequação entre estruturas decisórias e instituições democráticas. Com efeito, as decisões jurídicas devem atender a regras procedimentais e devem sempre buscar a efetividade das normas constitucionais. Nos hard cases, essa tarefa se torna mais árdua, na medida em que demandam do intérprete o manejo de princípios jurídicos conflitantes e a sua respectiva correlação com valores constitucionais. Surgem, dessa forma, controvérsias sobre o verdadeiro conteúdo dos direitos, que são expostas aos tribunais para que decidam em última instância. A dificuldade contramajoritária é, portanto, exposta nos seguintes termos: possui um tribunal constitucional legitimidade democrática para invalidar e retirar do ordenamento jurídico uma norma criada pelo Poder Legislativo? No entanto, esse é um problema que deve ser superado com base na ideia de que o tribunal é uma instituição pública inserida em uma sociedade democrática formada por valores de justiça. Com isto, pode ser reconhecida uma nova problemática. É preciso analisar a atuação do Judiciário, em tais questões, a partir da necessidade de estabelecimento de parâmetros axiológicos que legitimem sua atividade. O judicial review deverá ser capaz de obter legitimidade em seu procedimento e em seus resultados. Um processo decisório legítimo é aquele que atende aos valores e princípios de justiça conjugados no texto constitucional. É a Constituição que deve ser o critério normativo específico para a construção dos procedimentos decisórios e para a avaliação do resultado a que se chega com esse procedimento. O problema de se tomar a Constituição como um critério normativo para as decisões sobre o conteúdo dos direitos está nos diversos conflitos que podem surgir entre os seus princípios jurídicos, que consagram valores na ordem política, econômica, social, cultural e moral. Mesmo que haja influências de um multiculturalismo e de uma pluralidade de preceitos normativos que ditam trajetos divergentes, é necessário que se conceba um parâmetro deliberativo que seja superior a ambos. Este parâmetro, por sua vez, possui natureza apriorística e é composto por princípios de justiça que organizam toda a estrutura básica de uma sociedade bem-ordenada. 4 A CONSTITUIÇÃO POPULAR A metodologia concebida pelo Constitucionalismo Popular é caracterizada pela oxigenação da teoria constitucional a partir de elementos de ordem cultural, sociológica e histórica. Contudo, um ponto fraco desta SCIENTIA IURIS, Londrina, v.18, n.2, p.171-187, dez.2014 | DOI: 10.5433/2178-8189.2014v18n2p171 182 CARLOS B OLONHA, B ERNARDO ZETTEL E HENRIQUE R ANGEL corrente encontra-se na ausência de uma categorização mais rigorosa de conceitos teóricos e de uma proposta clara acerca do exercício do poder pelo Povo. Kramer (2007) e Tushnet (1999) apontam, a partir de uma perspectiva histórica, os principais argumentos para a defesa de um Constitucionalismo Popular, mas não esclarecem mais especificamente como o poder popular deverá ser operacionalizado. Pretende-se construir uma estrutura normativa capaz de organizar procedimentos deliberativos próprios que valorizem precipuamente a noção de soberania popular. O que se parece defender, pelo Constitucionalismo Popular, é um modelo normativo de democracia em que a função deliberativa se desenvolve de maneira dualística. Concebe-se, por um lado, uma Constituição legal e, por outro, uma Constituição popular. Sustenta o pensamento autêntico do Constitucionalismo Popular que devam existir procedimentos deliberativos distintos para realizar os valores destas constituições. Cada procedimento, por sua vez, deve ser observado por uma instituição própria, como democraticamente responsável por zelar pelos princípios de sua constituição. Desta forma, seria possível identificar dentro da vertente do Constitucionalismo Popular, o seguinte modelo dualístico: (I) uma Constituição legal possui seus valores e princípios que devem ser efetivados por um procedimento democrático realizado no interior de um órgão judicial; (II) uma Constituição popular possui valores e princípios próprios a se efetivar por um procedimento democrático realizado, preferencialmente, no interior de um órgão legislativo. Desta maneira, haveria uma divisão também sobre as questões que suscitam a necessidade de uma deliberação democrática: há, de um lado, questões de natureza jurídica, já com um pleno sentido estabelecido e determinado como imutável e, de outro lado, questões de natureza política, sem um sentido definitivamente estabelecido e necessitando de uma atuação concreta estatal (NELSON, 2000). O papel das instituições judiciais, por um lado, seria deliberar em questões meramente jurídicas, tratando de conjunturas abrangidas pela Constituição legal. Por outro lado, estariam excedendo seus limites de atuação ao intervirem no estabelecimento de questões políticas atribuídas à atividade legislativa. Faltaria, desta maneira, legitimidade para o Judiciário se inserir nas responsabilidades democráticas pertinentes à Constituição popular. Elaborando um modelo normativo neste sentido, questiona-se a supremacia judicial. A atuação de uma Corte Constitucional em questões de matéria política seria algo ilegítimo, pois haveria questões que somente o Legislativo, atendendo a uma Constituição popular, estaria apto a estabelecer de maneira democrática. SCIENTIA IURIS, Londrina, v.18, n.2, p.171-187, dez.2014 | DOI: 10.5433/2178-8189.2014v18n2p171 183 O CONSTITUCIONALISMO POPULAR EM UMA LEITURA RAWLSIANA O problema que se apresenta é a falta de nitidez do conceito de Constituição popular. A Constituição legal corresponde a um documento escrito e formal, ratificado oficialmente por representantes do povo na elaboração de uma nova ordem constitucional-democrática. Tem forma e um conteúdo limitado pela própria forma. Além disso, estabelece de maneira rígida seus valores. Para que a ordem política de atuação esteja devidamente estabelecida, de modo que se possa utilizar uma Constituição popular como referência aos valores essenciais de sua atividade, seu conteúdo precisa estar bem delimitado e claro. Kramer e Tushnet, no entanto, não indicam, com maior rigor ou precisão, o que poderia compor uma Constituição popular e, considerando-se esta o parâmetro de deliberação na ordem política, agrava-se a situação. É possível, entretanto, analisar um momento em que Kramer se esforça na tentativa de definir o conteúdo desta Constituição popular. Procura-se defender que o sentido das normas constitucionais é algo construído continuamente pelo próprio povo. Por isto, atribuiu-se ao Legislativo este encargo, pois nele se encontram os representantes eleitos para tal função. power to interpret (and not just the power to make) constitutional law was thought to reside with the people. And not theoretically or in the abstract, but in an active, ongoing sense. It was the community at large – not the judiciary, not any branch of the government – that controlled the meaning of the Constitution and was responsible for ensuring its proper implementation in the day-to-day process of governing. This is the notion I labeled “popular constitutionalism” – to distinguish it from “legal constitutionalism” or the idea that constitutional interpretation has been turned over to the judiciary and, in particular, to the Supreme Court (KRAMER, 2007, p. 699). A concepção da ordem deliberativa pela teoria rawlsiana, no sentido de que a estrutura básica da sociedade deve atender aos princípios da “justiça como equidade”, não afasta esta legitima atividade dos cidadãos das questões políticas. O Constitucionalismo Popular idealiza um modelo deliberativo dualístico em que há duas ordens distintas, uma jurídica e uma política, cada qual sob a responsabilidade de instituições próprias. Não consegue, ainda, definir com rigor o que seria o conceito da Constituição popular quando não demonstra o conteúdo pleno desta categoria. Ao contrário desta visão, a teoria rawlsiana permite que se desenvolva uma ordem democrática sem divisões, estabelecida sobre uma sociedade bem-ordenada, SCIENTIA IURIS, Londrina, v.18, n.2, p.171-187, dez.2014 | DOI: 10.5433/2178-8189.2014v18n2p171 184 CARLOS B OLONHA, B ERNARDO ZETTEL E HENRIQUE R ANGEL que admite a participação da população na atividade política do Estado. Ao invés de se destacar a importância sobre quem deve resolver questões políticas, admite-se que estas sejam deliberadas, dentro da estrutura básica, sendo, de fato, importante o porquê daquele resultado: o atendimento aos princípios de justiça. A estrutura básica da sociedade representaria as instituições fundamentais à efetivação dos valores essenciais definidos como princípios de justiça. Quando estas instituições, de modo cooperativo, aplicam esta concepção política de justiça às demandas sociais, a população deve exercer um controle sobre esta atuação por meio da razão pública. A terceira característica de uma concepção política de justiça é que seu conteúdo é expresso por meio de certas ideias fundamentais, vistas como implícitas na cultura política pública de uma sociedade democrática. Essa cultura pública compreende as instituições políticas de um regime constitucional e as tradições públicas de sua tradição (inclusive as do judiciário), bem como os textos e documentos históricos que são de conhecimento geral (RAWLS, 2000, p. 56). A razão pública, trazida no trecho acima a partir de aspecto cultural, é exercida pelos cidadãos perante a atividade política das instituições democráticas9. A atividade da estrutura básica se desenvolve normalmente e a razão pública verifica se esta atuação atende aos princípios da justiça política. A cada nova deliberação ocorrida no plano institucional, os cidadãos reconhecem ou não a existência de legitimidade naquela ação por meio da razão pública, ou seja, por esta verificação sobre o atendimento dos valores essenciais definidos na ordem democrática. Desta forma, não é necessário que se diga que o povo detém, com exclusividade, o poder de interpretar o que seria uma Constituição popular. Os valores essenciais à justiça seriam aplicados pelas deliberações da estrutura básica e teriam natureza política quando correspondessem aos princípios de justiça. Seu atendimento passaria pelo controle exercido pelos cidadãos por meio da própria cultura cívica da sociedade bem-ordenada, fazendo da deliberação politicamente legítima, mesmo que não estabelecida pelo Legislativo. 9 O conceito de razão pública em Rawls é interpretado como uma categoria de matriz cultural, podendo ser compreendido através de uma noção de tradição do pensamento constitucional que se desenvolve de uma geração para a outra. Ao contrário, em Habermas, a ideia de razão pública é de matriz comunicativa, definida a partir de uma atividade discursiva entre os cidadãos. SCIENTIA IURIS, Londrina, v.18, n.2, p.171-187, dez.2014 | DOI: 10.5433/2178-8189.2014v18n2p171 185 O CONSTITUCIONALISMO POPULAR EM UMA LEITURA RAWLSIANA CONSIDERAÇÕES FINAIS O Constitucionalismo Popular apresenta-se como uma corrente de pensamento, dentro do debate da teoria constitucional norte-americana, resistente à condição de um Judiciário ativo, de uma supremacia judicial, atribuindo-se tamanho papel deliberativo sob a ordem política. Durante este momento, a Suprema Corte representou verdadeiro foco de atuação política por meio do judicial review, que se transformou em instrumento significativo no estabelecimento de valores políticos da ordem democrática – daí se afirmar a existência de um strong judicial review. Em um primeiro aspecto, criticava-se esta atuação do Judiciário através, sobretudo, do argumento de que este não poderia atender aos princípios de uma Constituição popular. Esta, por sua vez, somente poderia se efetivar pela atuação do Legislativo, uma vez que fora conferido ao povo o poder de interpretar as normas essenciais à ordem democrática. Sobre este primeiro apontamento trazido, deve-se considerar que há uma segregação. Retira-se do campo de atuação do Judiciário a possibilidade de deliberar em matérias de natureza política, sendo insuficiente que se aplique, para solucionar a questão, as normas da Constituição. Rawls, no entanto, defende que há questões políticas quando há envolvimento dos princípios de justiça, estabelecidos pelos cidadãos como valores tão essenciais que, em uma sociedade bem-ordenada, sobre eles recai um consenso razoável. Desta maneira, o que se adverte contra o Constitucionalismo Popular é o fato de o Judiciário poder, assim como qualquer instituição que compõe a estrutura básica da sociedade, deparar-se com questões políticas. Em um segundo aspecto, o Constitucionalismo Popular apresenta o conceito de Constituição popular a partir de um papel, primeiramente, de orientação da ordem democrática no estabelecimento de valores políticos centrais à ordem democrática na interpretação do sentido da Constituição e, em seguida, no controle exercido pelos cidadãos sobre a atividade das instituições em atender suas vontades políticas. O critério que sugerimos ser mais adequado na legitimação da atividade das instituições democráticas não seria uma Constituição popular nem, em um primeiro lugar a Constituição legal. Se a sociedade determinou valores tão essenciais que capazes de sobreviver ao pluralismo como verdadeiros consensos, estes, enquanto princípios de justiça devem ser tomados como critérios legitimatórios apriorísticos à própria ordem constitucional. Completando o que SCIENTIA IURIS, Londrina, v.18, n.2, p.171-187, dez.2014 | DOI: 10.5433/2178-8189.2014v18n2p171 186 CARLOS B OLONHA, B ERNARDO ZETTEL E HENRIQUE R ANGEL seria uma segunda dimensão deste papel da Constituição popular, defendemos a aptidão da razão pública para tal exercício. Por meio da razão pública, os cidadãos podem controlar a atuação das instituições democráticas no sentido de verificar se os princípios da justiça estão sendo devidamente atendidos no antro das deliberações continuamente efetivadas na ordem Estatal. Mais do que inspecionar se suas vontades políticas estão sendo atendidas, o que pode se corromper em um majoritarismo, os cidadãos podem ajuizar se as instituições estão se comprometendo em construir uma ordem democrática que promova os princípios de justiça definidos em um momento pré-político da estrutura de sociedade. REFERÊNCIAS ACKERMAN, Bruce. We the people: transformations. Cambridge, Massachusetts: the belknap press of Harvard University, 2001. 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Submetido em: 17/10/2013 Aprovado em: 07/10/2014 Como citar: BOLONHA, Carlos; ZETTEL, Bernardo; RANGEL, Henrique. O constitucionalismo popular em uma leitura rawlsiana. Scientia Iuris, Londrina, v.18, n.2, p.171-187, dez.2014.DOI:10.5433/2178-8189. 2014v18n2p171. SCIENTIA IURIS, Londrina, v.18, n.2, p.171-187, dez.2014 | DOI: 10.5433/2178-8189.2014v18n2p171