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de setembro a de outubro de * jornaldeletras.pt
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A ciência no Portugal da Expansão
Ensaísta, ficcionista, cronista, prof. catedrático da respeitada Brown University, de Providence, EUA, na qual durante anos
dirigiu o Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros, é por ela doutorado mas em Filosofia, que também ensina. Com
uma vasta e reconhecida obra em diversos domínios, há décadas colaborador permanente do JL, mormente com a crónica
Times&Tempos, é também um contador de histórias (e até anedotas) único, este e o universitário interagindo muitas vezes
nas suas conferências, palestras, intervenções de todo o tipo. Agora, vai editar um novo livro, O Século dos Prodígios, seu º
volume de ensaios em torno da questão da identidade portuguesa, que chega ás livraria a de outubro, com a chancela da
Quetzal. Trata-se, nas palavras do próprio autor, de "um conjunto de contributos parcelares para uma revisitação global do
papel português na abertura à modernidade científica". E, em seleção por ele feita, aqui antecipamos parte substancial da
introdução, que dá bem ideia do que o livro é e das teses nele defendidas
ONÉSIMO TEOTÓNIO ALMEIDA
Toda a minha atividade ensaística
tem sido sempre uma conversação
com textos de outros autores, na
tentativa de diálogo com eles, de
modo a fazer luz sobre algumas
das questões que mais me interessam na história da cultura portuguesa. Assim, cada capítulo abre
uma janela sobre um determinado
tema e o livro simplesmente reúne
artigos inter-relacionados, mas sem
a pretensão de cobrir tudo o que
em Portugal ocorreu no domínio
da nova mentalidade empírica
que ganhou corpo no período dos
Descobrimentos. Circunstâncias
várias influíram na escolha dos
temas de ensaios que fui lendo em
congressos, colóquios e conferências em universidades europeias e
norte-americanas, resultando assim
que algumas áreas nunca chegaram
a ser contempladas, se bem que eu
estivesse (e ainda esteja) interessado
nelas. Chegou, todavia, a altura de
pôr cá fora este livro e desistir de
elaborar um volume exaustivo, incorporando tudo o que nas aulas ao
longo de quatro décadas venho discutindo. Portanto – faço questão de
acentuar – o leitor está em presença
de um conjunto de contributos parcelares para uma revisitação global
do papel português na abertura à
modernidade científica.
O núcleo duro da temática do
livro circula em torno da ideia de
que durante a Alta Idade Média
foram surgindo sinais, alguns deles
muito isolados e sem efeitos posteriores, de uma viragem de enfoque,
cada vez maior, para a natureza e o
conhecimento empírico dela. Outro
aspeto desse núcleo duro é a noção
Planisfério Cantino No século XV, através das viagens marítimas, os portugueses
deram avanços significativos na Ciência e na “medição do mundo”
de que um dos momentos da referida viragem — o mais significativo e
de maiores consequências antes da
primeira revolução científica ocorrida com Newton e Galileu no século XVII — teve lugar em Portugal
durante o período da Expansão. A
experiência como critério fundamental de verdade, que havia
sido importante para Aristóteles
e Galeno na Idade Clássica, fora
redescoberta por autores como
Roger Bacon, no século XIII, mas
só ganhou foros de institucionalização e de estruturação de uma
nova mentalidade com o contributo
de autores fulcrais no processo dos
Descobrimentos portugueses. Não
se pode, no entanto, falar ainda de
revolução científica nesse período,
por razões que ao longo das páginas
do livro se espera fiquem claras.
Nada disto está imbuído de qualquer nacionalismo ou chauvinismo.
Aceitei como narrativa estruturante
(o termo corrente é visão recebida)
a historiografia anglo-americana.
Apoiando-me num pilar que essa
cultura crê como alicerce inabalável
— o culto do facto — tenho trazido
à colação factos sistematicamente
ignorados por essa narrativa hoje
omnipresente. Ignorados não exata
ou necessariamente por nacionalismo, mas por um paroquialismo
em grande parte provocado pelo
caráter monolingue da conversação
desenvolvida pela academia anglo-americana, e também – não pode
esquecer-se este pormenor – por
um desdém herdado das culturas
protestantes em relação ao universo
dos países "católicos", geralmente
pensado apenas como o abjeto objeto da ira da Reforma. Inconsciente
e atavicamente subjaz a ideia da
"lenda negra", que a Inquisição
consolidou na mente anglo-saxónica e no seu prolongamento norte-americano.
Em relação a esta temática da
ciência nos Descobrimentos fora de
Portugal, há dois níveis de público a considerar: o académico, que
pensa na modernidade científica
como tendo ocorrido apenas no
Onésimo Teotónio Almeida
“
A experiência como
critério fundamental
de verdade só
ganhou foros de
institucionalização e de
estruturação de uma
nova mentalidade com
o contributo de autores
fulcrais no processo
dos Descobrimentos
portugueses
século XVII, esquecendo que os
Descobrimentos portugueses não
aconteceram por acaso, antes tiveram como uma das suas motivações
uma nova mentalidade empírica
com implicações tecnológicas.
Há, todavia, também que ter em
conta o grande público, incluindo
a sua camada culta, que mantém
arraigado na mente o mito da "terra
plana" posto a circular pelo norte-americano Washington Irving e o
francês Antoine-Jean Letronne em
finais do século XIX e princípios do
XX. É a velha estória de Colombo
ter ido propor a D. João II a sua
supostamente revolucionária teoria
da esfericidade da terra. Segundo
a lenda, o rei terá reunido os seus
especialistas, que lhe recomendaram a rejeição da proposta por mal
informada, porque a terra era plana.
A viagem de Colombo teria então
sido a vingança do navegador, daí
que a sua gloriosa descoberta das
Américas, confirmando a redondeza da Terra, tivesse resultado em
benefício de Espanha.
Não é apenas nos EUA que essa
estória se perpetua. Ainda muito
recentemente fiz uma conferência
pública na Universidade de Genebra
e surpreendi muitos dos presentes
ao demonstrar a total falsidade de
quejanda narrativa. Todos os anos
tenho o prazer de acompanhar, no
meu seminário "Sobre a Origem da
Modernidade", uma dúzia e meia
de alunos, norte-americanos e de
vários outros países, na desmistificação dessa historieta. O mito,
porém, persiste, porque os mitos têm
o condão de nunca morrer por serem
mais cativantes do que a realidade.
E, no entanto, neste caso a realidade
é deveras fascinante. Está por ser
escrita ainda uma parte da História
portuguesa, aquela que apenas
transparece nos livros do período
dos Descobrimentos. Refiro-me aos
debates que terão forçosamente tido
lugar entre os líderes envolvidos
nas viagens marítimas, sobretudo
no século XV, não sobre a esfericidade da terra, assunto mais do que
estabelecido entre eles, mas sobre
o que aconteceria às naus abaixo do
Equador. Seriam arrastadas para
onde? Temos conhecimento das surpresas surgidas com a descoberta de
vegetação luxuriante para sul do deserto do Sara, bem como da existência de gente que andava em pé como
nós, o que destronava por completo
as fantasias gregas dos antípodas.
*
Na Antiguidade Clássica supunha-se que, a existir gente do outro lado
do globo (já os gregos sabiam que a
Terra era redonda), teriam de viver
de pernas para o ar, uma vez que,
nessa época, como aliás ainda na
dos portugueses de Quatrocentos e
Quinhentos, não havia ainda notícia
da força da gravidade.
[...] É toda essa empolgante
história de descoberta, de fascínio
com o novo, que está por detrás
dos ensaios que se seguem. Reitero:
com eles não pretendo reescrever
essa narrativa, pois nem sequer
tenho carta de historiador. Foram
as ideias e o entusiasmo pelo relato
das mesmas que me trouxeram a
estas tentativas de conversa com os
historiadores, levantando dúvidas,
questões, e tecendo considerações
que me parecem pertinentes.
Assim, os ensaios que compõem
o livro têm cada um o seu objetivo
e foco. Sendo todos sobre temática
relacionada, caminham cada qual na
sua direção. No seu conjunto, porém, apontam todos para um sentido
que gostaria surgisse coeso e coerente, se bem que longe de colmatar
todas as brechas e hiatos que uma
narrativa abrangente deste período
exigiria. Deixo essa tarefa a um historiador de fôlego que seja sensível
a esta problemática. O que [escrevo]
são subsídios parcelares, simples
contributos e possíveis pistas.
(...) Trata-se de mais de cem
anos de prodígios. Limitei o título
do volume a "um século", em parte
pelo prazer que me dá dialogar com
títulos de obras clássicas portuguesas (no caso, como é mais que óbvio,
O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge),
mas também porque os prodígios,
muitos deles moralmente condenáveis — e nem sequer me refiro à
escravatura! —, não se confinam às
divisões tradicionais dos séculos, já
que o período das grandes inovações científicas portuguesas cobre
sensivelmente os anos entre o final
do primeiro quartel do século XV e
os finais do segundo do quartel do
século XVI, com a chegada ao Japão.
Avançarei ainda um caveat: este
livro é politicamente incorreto. Sim,
atualmente, em muitos círculos ele
parecerá isso mesmo. A Expansão
europeia é malvista e malquista, por
ter sido uma invasão em terras que
pertenciam a outros. O livro não é,
porém, sobre isso, mas sobre história das ideias e, em particular, sobre
história da ciência. Há muita gente
séria interessada nesse estudo, sem
que isso de algum modo signifique
que aceite ou valide os erros, os
abusos e os crimes cometidos durante a Expansão. Confundir-se as
questões não as ilumina nada, apenas obscurece e conspurca o nosso
entendimento da História. J
› Onésimo
Teotónio Almeida
O SÉCULO
DOS
PRODÍGIOS
Quetzal, 392 pp.,
18,80 euros
CRÓNICA
jornaldeletras.pt * de setembro a de outubro de
A PAIXÃO
DAS IDEIAS
J
GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS
Memória de Hélio Jaguaribe
personalidade de Hélio Jaguaribe (HJ - -*)
Para HJ, a “estrutura profundamente dualista da sociedade brasileira”,
foi das mais fascinantes que conheci. Encontrei-o
relacionada com o passado remoto da escravidão e próximo das tecnologias
primeiro em S. Paulo graças a Álvaro de Vasconcelos
intensivas de capital, conduziu a moderna sociedade industrial à incapacidae Celso Lafer. O seu entusiasmo era contagiante.
de para absorver as grandes massas sociais. Se, desde meados da década de
Era um apaixonado de Portugal. Conhecia como
à década de , foi possível administrar o país como uma democracia de
ninguém a nossa história e admirava profundamente
classe média, as crescentes pressões sociais anunciadas no segundo governo
todos quantos contribuíram para a unificação do
de Getúlio Vargas e agravadas no tempo de Goulart, levaram as classes médias
Brasil. Em serões intermináveis recordava a obra de
a defender a intervenção militar, que interrompeu o processo democrático.
Pombal e de D. João VI. E costumava contar como se
Entretanto, com um novo impulso da industrialização, o país converteu-se
salvou em a palmeira plantada pelo Príncipe Regente no Jardim Botânico na oitava potência industrial do ocidente. Mas a industrialização, a urbado Rio. Fulminada por um raio, a Palma Mater, Palmeira real, pôde ser subsnização, a generalização do acesso aos meios de comunicação tornaram a
partir de fins da década de , inviável a permanência da ditadura militar, do
tituída pela Palma Filia, que perpetua a memória das raízes. E, no fundo, foi
mesmo modo que a restauração de uma democracia de classe média.
o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves que consumou a independência
O país exigiu uma democracia social capaz de integrar as massas. Sob a
brasileira em , antes da proclamação do Ipiranga de …
extraordinária direção de Tancredo Neves, foi possível fazer implodir o regime
Quando falava, HJ transmitia a agudeza da sua inteligência, mas sobremilitar, com a ajuda dos mecanismos que montara para se manter. E assim o
tudo uma enorme capacidade de entender a história e a economia como
PMDB converteu-se num amplo conglomerado de
realidades vivas. Com fortes raízes luso-bratendências diversificadas. E a aliança com setores
sileiras, filho de um general brasileiro, distinto
dissidentes do situacionismo permitiu a Tancredo
cartógrafo, e de uma portuguesa originária de
Neves as condições para a vitória, através do
uma família do vinho do Porto, frequentou em
Colégio Eleitoral. A morte de Tancredo, na véspera
Portugal a formação básica e foi diplomado em
de tomar posse, trouxe para a chefia do Estado o
Direito pela Pontifícia Universidade Católica
vice-presidente José Sarney, antigo presidente
(PUC) do Rio de Janeiro (). Em , depois
do partido situacionista, o que não permitiu,
de exercer o jornalismo, esteve entre os fundadonem ao PMDB nem ao Presidente, assumir a
res do Ibesp – Instituto Brasileiro de Economia,
linha programática definida, apesar da retórica.
Sociologia e Política, que dirigiu. Aí se publicou a
A situação, porém, esgotou-se. Com a aprovação
importante revista Cadernos do Nosso Tempo. Até
da Nova Constituição, a criação do PSDB, o Brasil
aos anos esteve ligado à gestão de empresas
tornou-se de todos os países da América Latina o
familiares. Foi administrador da Companhia de
que, segundo HJ, melhor garantiu a exigência de
Ferro e Aço de Vitória, até . Hélio pôde, asum projeto social-democrata, com um acelesim, ligar a reflexão política e social a um rigoroso
Hélio Jaguaribe “Transmitia a agudeza da sua
conhecimento da realidade económica.
rado desenvolvimento económico, apoiado por
inteligência, uma enorme capacidade de entender
O Ibesp evoluiria, no mandato do Presidente
uma economia de mercado dinâmica e por uma
a história e a economia como realidades vivas”
Café Filho, para o Iseb – Instituto Superior de
acelerada mudança social, capaz de promover a
Estudos Brasileiros, do qual HJ se afastaria mais
incorporação das grandes massas em condições
tarde por discordar da orientação organizativa,
superiores de qualidade de vida, de capacitação e
depois de ter sido fortemente incompreendido
de participação.
pela sua crítica ao risco do isolamento em O
Entre e , sob os auspícios da
Manteve-se sempre atento
Nacionalismo na Atualidade Brasileira (),
UNESCO, HJ coordenou um notável estudo paonde considerava que o protecionismo atrasaria às transformações e às ideias.
norâmico intitulado Um Estudo Crítico da História,
drasticamente o desenvolvimento do país. O
publicado em dois volumes, onde o sociólogo,
Nada para si poderia ser
golpe militar de , que derrubou o govero economista e o historiador se encontram
na análise da evolução complexa e incerta do
no de João Goulart, levaria Jaguaribe para um
aceite sem crítica e debate.
desenvolvimento humano. Aí se apontam duas
exílio voluntário, nos Estados Unidos, onde ensaídas para a globalização: uma teria a ver com um
sinou nas Universidades de Harvard, Stanford e Cultivava a ideia de um
modelo de integração aberta, de que o Mercosul
MIT, até . Então regressou ao Brasil, já com
desenvolvimento orientado
seria exemplo, e outra teria a ver com as novas
um grande prestígio intelectual, como diretor
e não necessariamente
possibilidades de inovação científica e tecnológica
do Conjunto Universitário Cândido Mendes
espontâneo
mercê de “join-ventures inteligentes” de que as
e depois no Instituto de Estudos Políticos e
regiões emergentes poderiam ser beneficiárias.
Sociais.
Infelizmente, a evolução não tem confirmado essa
A sua reflexão sobre o futuro do Brasil revetendência, o que não significa que se tenha perlou-se premonitória e essencial na preparação
da democratização do país e das fundamentais reformas económicas
dido a pertinência das análises. As ideologias vivem um compasso de espera,
de Fernando Henrique Cardoso. Durante a Presidência de José Sarney
que ninguém sabe quanto vai durar, as guerras religiosas voltaram na Europa
coordenou o projeto Brasil , cujos resultados foram publicados em
nos Balcãs ou na Chechénia e continuam no Médio Oriente, com incidência
na obra Brasil – Para um Novo Pacto Social, dando lugar, dois anos
especial na Palestina, sem esquecer o ataque às torres gémeas de Nova Iorque
depois, a um novo volume intitulado significativamente Brasil – Reforma ou o terrorismo do Daesh.
ou Caos. Em é um dos fundadores do Partido da Social Democracia
Hélio Jaguaribe manteve-se sempre atento às transformações e às ideias.
Brasileira (PSDB), ao lado de Mário Covas, Fernando Henrique Cardoso,
Nada para si poderia ser aceite sem crítica e debate. Cultivava a ideia de um
Franco Montoro e José Serra. No governo de Fernando Collor aceitou
desenvolvimento orientado e não necessariamente espontâneo. O mercado
exercer as funções de secretário da Ciência e Tecnologia, enquanto Celso era um dos elementos, mas não poderia esquecer o método do planeamento
Lafer era ministro de Estado e das Relações Exteriores. Em foi
bismarckiano… Ah, que saudades desses serões onde a história fluía como a
eleito para a cadeira nº da Academia Brasileira de Letras, sucedendo a
vida – com belo queijo da serra e sempre com um cálice sagrado de Porto.J
Celso Furtado. Em reconhecimento do seu contributo científico recebeu
os doutoramentos honoris causa pelas Universidades de Mainz (),
* Hélio Jaguaribe morreu no passado dia de setembro, aos anos, no Rio de Janeiro,
Paraíba () e Buenos Aires ().
de onde era natural
A
“