Academia.eduAcademia.edu

A ciência no Portugal da Expansão

2018

O Jornal de Letras pediu-me uma entrevista sobre "O Século dos Prodígios. A ciência no Portugal da Expansão", livro que a Quetzal acaba de publicar. Pediu-me também um excerto do livro em pré-publicação. Enviei o texto que aqui vai, retirado da Introdução do próprio livro, por me parecer que responde aos dois requisitos do jornal.

J   de setembro a  de outubro de  * jornaldeletras.pt *  A ciência no Portugal da Expansão Ensaísta, ficcionista, cronista, prof. catedrático da respeitada Brown University, de Providence, EUA, na qual durante  anos dirigiu o Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros, é por ela doutorado mas em Filosofia, que também ensina. Com uma vasta e reconhecida obra em diversos domínios, há décadas colaborador permanente do JL, mormente com a crónica Times&Tempos, é também um contador de histórias (e até anedotas) único, este e o universitário interagindo muitas vezes nas suas conferências, palestras, intervenções de todo o tipo. Agora, vai editar um novo livro, O Século dos Prodígios, seu º volume de ensaios em torno da questão da identidade portuguesa, que chega ás livraria a  de outubro, com a chancela da Quetzal. Trata-se, nas palavras do próprio autor, de "um conjunto de contributos parcelares para uma revisitação global do papel português na abertura à modernidade científica". E, em seleção por ele feita, aqui antecipamos parte substancial da introdução, que dá bem ideia do que o livro é e das teses nele defendidas ONÉSIMO TEOTÓNIO ALMEIDA  Toda a minha atividade ensaística tem sido sempre uma conversação com textos de outros autores, na tentativa de diálogo com eles, de modo a fazer luz sobre algumas das questões que mais me interessam na história da cultura portuguesa. Assim, cada capítulo abre uma janela sobre um determinado tema e o livro simplesmente reúne artigos inter-relacionados, mas sem a pretensão de cobrir tudo o que em Portugal ocorreu no domínio da nova mentalidade empírica que ganhou corpo no período dos Descobrimentos. Circunstâncias várias influíram na escolha dos temas de ensaios que fui lendo em congressos, colóquios e conferências em universidades europeias e norte-americanas, resultando assim que algumas áreas nunca chegaram a ser contempladas, se bem que eu estivesse (e ainda esteja) interessado nelas. Chegou, todavia, a altura de pôr cá fora este livro e desistir de elaborar um volume exaustivo, incorporando tudo o que nas aulas ao longo de quatro décadas venho discutindo. Portanto – faço questão de acentuar – o leitor está em presença de um conjunto de contributos parcelares para uma revisitação global do papel português na abertura à modernidade científica. O núcleo duro da temática do livro circula em torno da ideia de que durante a Alta Idade Média foram surgindo sinais, alguns deles muito isolados e sem efeitos posteriores, de uma viragem de enfoque, cada vez maior, para a natureza e o conhecimento empírico dela. Outro aspeto desse núcleo duro é a noção Planisfério Cantino No século XV, através das viagens marítimas, os portugueses deram avanços significativos na Ciência e na “medição do mundo” de que um dos momentos da referida viragem — o mais significativo e de maiores consequências antes da primeira revolução científica ocorrida com Newton e Galileu no século XVII — teve lugar em Portugal durante o período da Expansão. A experiência como critério fundamental de verdade, que havia sido importante para Aristóteles e Galeno na Idade Clássica, fora redescoberta por autores como Roger Bacon, no século XIII, mas só ganhou foros de institucionalização e de estruturação de uma nova mentalidade com o contributo de autores fulcrais no processo dos Descobrimentos portugueses. Não se pode, no entanto, falar ainda de revolução científica nesse período, por razões que ao longo das páginas do livro se espera fiquem claras. Nada disto está imbuído de qualquer nacionalismo ou chauvinismo. Aceitei como narrativa estruturante (o termo corrente é visão recebida) a historiografia anglo-americana. Apoiando-me num pilar que essa cultura crê como alicerce inabalável — o culto do facto — tenho trazido à colação factos sistematicamente ignorados por essa narrativa hoje omnipresente. Ignorados não exata ou necessariamente por nacionalismo, mas por um paroquialismo em grande parte provocado pelo caráter monolingue da conversação desenvolvida pela academia anglo-americana, e também – não pode esquecer-se este pormenor – por um desdém herdado das culturas protestantes em relação ao universo dos países "católicos", geralmente pensado apenas como o abjeto objeto da ira da Reforma. Inconsciente e atavicamente subjaz a ideia da "lenda negra", que a Inquisição consolidou na mente anglo-saxónica e no seu prolongamento norte-americano. Em relação a esta temática da ciência nos Descobrimentos fora de Portugal, há dois níveis de público a considerar: o académico, que pensa na modernidade científica como tendo ocorrido apenas no Onésimo Teotónio Almeida “ A experiência como critério fundamental de verdade só ganhou foros de institucionalização e de estruturação de uma nova mentalidade com o contributo de autores fulcrais no processo dos Descobrimentos portugueses século XVII, esquecendo que os Descobrimentos portugueses não aconteceram por acaso, antes tiveram como uma das suas motivações uma nova mentalidade empírica com implicações tecnológicas. Há, todavia, também que ter em conta o grande público, incluindo a sua camada culta, que mantém arraigado na mente o mito da "terra plana" posto a circular pelo norte-americano Washington Irving e o francês Antoine-Jean Letronne em finais do século XIX e princípios do XX. É a velha estória de Colombo ter ido propor a D. João II a sua supostamente revolucionária teoria da esfericidade da terra. Segundo a lenda, o rei terá reunido os seus especialistas, que lhe recomendaram a rejeição da proposta por mal informada, porque a terra era plana. A viagem de Colombo teria então sido a vingança do navegador, daí que a sua gloriosa descoberta das Américas, confirmando a redondeza da Terra, tivesse resultado em benefício de Espanha. Não é apenas nos EUA que essa estória se perpetua. Ainda muito recentemente fiz uma conferência pública na Universidade de Genebra e surpreendi muitos dos presentes ao demonstrar a total falsidade de quejanda narrativa. Todos os anos tenho o prazer de acompanhar, no meu seminário "Sobre a Origem da Modernidade", uma dúzia e meia de alunos, norte-americanos e de vários outros países, na desmistificação dessa historieta. O mito, porém, persiste, porque os mitos têm o condão de nunca morrer por serem mais cativantes do que a realidade. E, no entanto, neste caso a realidade é deveras fascinante. Está por ser escrita ainda uma parte da História portuguesa, aquela que apenas transparece nos livros do período dos Descobrimentos. Refiro-me aos debates que terão forçosamente tido lugar entre os líderes envolvidos nas viagens marítimas, sobretudo no século XV, não sobre a esfericidade da terra, assunto mais do que estabelecido entre eles, mas sobre o que aconteceria às naus abaixo do Equador. Seriam arrastadas para onde? Temos conhecimento das surpresas surgidas com a descoberta de vegetação luxuriante para sul do deserto do Sara, bem como da existência de gente que andava em pé como nós, o que destronava por completo as fantasias gregas dos antípodas.  *  Na Antiguidade Clássica supunha-se que, a existir gente do outro lado do globo (já os gregos sabiam que a Terra era redonda), teriam de viver de pernas para o ar, uma vez que, nessa época, como aliás ainda na dos portugueses de Quatrocentos e Quinhentos, não havia ainda notícia da força da gravidade. [...] É toda essa empolgante história de descoberta, de fascínio com o novo, que está por detrás dos ensaios que se seguem. Reitero: com eles não pretendo reescrever essa narrativa, pois nem sequer tenho carta de historiador. Foram as ideias e o entusiasmo pelo relato das mesmas que me trouxeram a estas tentativas de conversa com os historiadores, levantando dúvidas, questões, e tecendo considerações que me parecem pertinentes. Assim, os ensaios que compõem o livro têm cada um o seu objetivo e foco. Sendo todos sobre temática relacionada, caminham cada qual na sua direção. No seu conjunto, porém, apontam todos para um sentido que gostaria surgisse coeso e coerente, se bem que longe de colmatar todas as brechas e hiatos que uma narrativa abrangente deste período exigiria. Deixo essa tarefa a um historiador de fôlego que seja sensível a esta problemática. O que [escrevo] são subsídios parcelares, simples contributos e possíveis pistas. (...) Trata-se de mais de cem anos de prodígios. Limitei o título do volume a "um século", em parte pelo prazer que me dá dialogar com títulos de obras clássicas portuguesas (no caso, como é mais que óbvio, O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge), mas também porque os prodígios, muitos deles moralmente condenáveis — e nem sequer me refiro à escravatura! —, não se confinam às divisões tradicionais dos séculos, já que o período das grandes inovações científicas portuguesas cobre sensivelmente os anos entre o final do primeiro quartel do século XV e os finais do segundo do quartel do século XVI, com a chegada ao Japão. Avançarei ainda um caveat: este livro é politicamente incorreto. Sim, atualmente, em muitos círculos ele parecerá isso mesmo. A Expansão europeia é malvista e malquista, por ter sido uma invasão em terras que pertenciam a outros. O livro não é, porém, sobre isso, mas sobre história das ideias e, em particular, sobre história da ciência. Há muita gente séria interessada nesse estudo, sem que isso de algum modo signifique que aceite ou valide os erros, os abusos e os crimes cometidos durante a Expansão. Confundir-se as questões não as ilumina nada, apenas obscurece e conspurca o nosso entendimento da História. J › Onésimo Teotónio Almeida O SÉCULO DOS PRODÍGIOS Quetzal, 392 pp., 18,80 euros CRÓNICA jornaldeletras.pt *  de setembro a  de outubro de  A PAIXÃO DAS IDEIAS J GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS Memória de Hélio Jaguaribe personalidade de Hélio Jaguaribe (HJ - -*) Para HJ, a “estrutura profundamente dualista da sociedade brasileira”, foi das mais fascinantes que conheci. Encontrei-o relacionada com o passado remoto da escravidão e próximo das tecnologias primeiro em S. Paulo graças a Álvaro de Vasconcelos intensivas de capital, conduziu a moderna sociedade industrial à incapacidae Celso Lafer. O seu entusiasmo era contagiante. de para absorver as grandes massas sociais. Se, desde meados da década de Era um apaixonado de Portugal. Conhecia como  à década de , foi possível administrar o país como uma democracia de ninguém a nossa história e admirava profundamente classe média, as crescentes pressões sociais anunciadas no segundo governo todos quantos contribuíram para a unificação do de Getúlio Vargas e agravadas no tempo de Goulart, levaram as classes médias Brasil. Em serões intermináveis recordava a obra de a defender a intervenção militar, que interrompeu o processo democrático. Pombal e de D. João VI. E costumava contar como se Entretanto, com um novo impulso da industrialização, o país converteu-se salvou em  a palmeira plantada pelo Príncipe Regente no Jardim Botânico na oitava potência industrial do ocidente. Mas a industrialização, a urbado Rio. Fulminada por um raio, a Palma Mater, Palmeira real, pôde ser subsnização, a generalização do acesso aos meios de comunicação tornaram a partir de fins da década de , inviável a permanência da ditadura militar, do tituída pela Palma Filia, que perpetua a memória das raízes. E, no fundo, foi mesmo modo que a restauração de uma democracia de classe média. o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves que consumou a independência O país exigiu uma democracia social capaz de integrar as massas. Sob a brasileira em , antes da proclamação do Ipiranga de … extraordinária direção de Tancredo Neves, foi possível fazer implodir o regime Quando falava, HJ transmitia a agudeza da sua inteligência, mas sobremilitar, com a ajuda dos mecanismos que montara para se manter. E assim o tudo uma enorme capacidade de entender a história e a economia como PMDB converteu-se num amplo conglomerado de realidades vivas. Com fortes raízes luso-bratendências diversificadas. E a aliança com setores sileiras, filho de um general brasileiro, distinto dissidentes do situacionismo permitiu a Tancredo cartógrafo, e de uma portuguesa originária de Neves as condições para a vitória, através do uma família do vinho do Porto, frequentou em Colégio Eleitoral. A morte de Tancredo, na véspera Portugal a formação básica e foi diplomado em de tomar posse, trouxe para a chefia do Estado o Direito pela Pontifícia Universidade Católica vice-presidente José Sarney, antigo presidente (PUC) do Rio de Janeiro (). Em , depois do partido situacionista, o que não permitiu, de exercer o jornalismo, esteve entre os fundadonem ao PMDB nem ao Presidente, assumir a res do Ibesp – Instituto Brasileiro de Economia, linha programática definida, apesar da retórica. Sociologia e Política, que dirigiu. Aí se publicou a A situação, porém, esgotou-se. Com a aprovação importante revista Cadernos do Nosso Tempo. Até da Nova Constituição, a criação do PSDB, o Brasil aos anos  esteve ligado à gestão de empresas tornou-se de todos os países da América Latina o familiares. Foi administrador da Companhia de que, segundo HJ, melhor garantiu a exigência de Ferro e Aço de Vitória, até . Hélio pôde, asum projeto social-democrata, com um acelesim, ligar a reflexão política e social a um rigoroso Hélio Jaguaribe “Transmitia a agudeza da sua conhecimento da realidade económica. rado desenvolvimento económico, apoiado por inteligência, uma enorme capacidade de entender O Ibesp evoluiria, no mandato do Presidente uma economia de mercado dinâmica e por uma a história e a economia como realidades vivas” Café Filho, para o Iseb – Instituto Superior de acelerada mudança social, capaz de promover a Estudos Brasileiros, do qual HJ se afastaria mais incorporação das grandes massas em condições tarde por discordar da orientação organizativa, superiores de qualidade de vida, de capacitação e depois de ter sido fortemente incompreendido de participação. pela sua crítica ao risco do isolamento em O Entre  e , sob os auspícios da Manteve-se sempre atento Nacionalismo na Atualidade Brasileira (), UNESCO, HJ coordenou um notável estudo paonde considerava que o protecionismo atrasaria às transformações e às ideias. norâmico intitulado Um Estudo Crítico da História, drasticamente o desenvolvimento do país. O publicado em dois volumes, onde o sociólogo, Nada para si poderia ser golpe militar de , que derrubou o govero economista e o historiador se encontram na análise da evolução complexa e incerta do no de João Goulart, levaria Jaguaribe para um aceite sem crítica e debate. desenvolvimento humano. Aí se apontam duas exílio voluntário, nos Estados Unidos, onde ensaídas para a globalização: uma teria a ver com um sinou nas Universidades de Harvard, Stanford e Cultivava a ideia de um modelo de integração aberta, de que o Mercosul MIT, até . Então regressou ao Brasil, já com desenvolvimento orientado seria exemplo, e outra teria a ver com as novas um grande prestígio intelectual, como diretor e não necessariamente possibilidades de inovação científica e tecnológica do Conjunto Universitário Cândido Mendes espontâneo mercê de “join-ventures inteligentes” de que as e depois no Instituto de Estudos Políticos e regiões emergentes poderiam ser beneficiárias. Sociais. Infelizmente, a evolução não tem confirmado essa A sua reflexão sobre o futuro do Brasil revetendência, o que não significa que se tenha perlou-se premonitória e essencial na preparação da democratização do país e das fundamentais reformas económicas dido a pertinência das análises. As ideologias vivem um compasso de espera, de Fernando Henrique Cardoso. Durante a Presidência de José Sarney que ninguém sabe quanto vai durar, as guerras religiosas voltaram na Europa coordenou o projeto Brasil , cujos resultados foram publicados em nos Balcãs ou na Chechénia e continuam no Médio Oriente, com incidência  na obra Brasil – Para um Novo Pacto Social, dando lugar, dois anos especial na Palestina, sem esquecer o ataque às torres gémeas de Nova Iorque depois, a um novo volume intitulado significativamente Brasil – Reforma ou o terrorismo do Daesh. ou Caos. Em  é um dos fundadores do Partido da Social Democracia Hélio Jaguaribe manteve-se sempre atento às transformações e às ideias. Brasileira (PSDB), ao lado de Mário Covas, Fernando Henrique Cardoso, Nada para si poderia ser aceite sem crítica e debate. Cultivava a ideia de um Franco Montoro e José Serra. No governo de Fernando Collor aceitou desenvolvimento orientado e não necessariamente espontâneo. O mercado exercer as funções de secretário da Ciência e Tecnologia, enquanto Celso era um dos elementos, mas não poderia esquecer o método do planeamento Lafer era ministro de Estado e das Relações Exteriores. Em  foi bismarckiano… Ah, que saudades desses serões onde a história fluía como a eleito para a cadeira nº  da Academia Brasileira de Letras, sucedendo a vida – com belo queijo da serra e sempre com um cálice sagrado de Porto.J Celso Furtado. Em reconhecimento do seu contributo científico recebeu os doutoramentos honoris causa pelas Universidades de Mainz (), * Hélio Jaguaribe morreu no passado dia  de setembro, aos  anos, no Rio de Janeiro, Paraíba () e Buenos Aires (). de onde era natural A “