Instituto de Treinamento e Pesquisa em
Gestalt-Terapia de Goiânia – ITGT
Volume XXIV – N. 1
2018
Goiânia – Goiás
http://pepsic.bvs-psi.org.br
Ficha Catalográfica
Revista da Abordagem Gestáltica – Phenomenological Studies/
Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de
Goiânia – Vol. 24, n. 1 (2018) – Goiânia: ITGT, 2018.
119p.: il.: 30 cm
Inclui normas de publicação
ISSN: 1809-6867
1. Psicologia. 2. Gestalt-Terapia. I. Instituto de Treinamento
e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goiânia.
CDD 616.891 43
Citação:
REVISTA DA ABORDAGEM GESTÁLTICA. Goiânia, v. 24, n. 1, 2018. 119p
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Volume XXIV – N. 1 – Jan/Abr, 2018
Expediente
Editor
Adriano Furtado Holanda (Universidade Federal do Paraná)
Editores Associados
Camila Muhl (Universidade Federal do Paraná)
Celana Cardoso Andrade (Universidade Federal de Goiás)
Danilo Suassuna Martins Costa (Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt Terapia de Goiânia)
Paulo Coelho Castelo Branco (Universidade Federal da Bahia)
Tommy Akira Goto (Universidade Federal de Uberlândia)
Consultores Especiais de Fenomenologia
Antonio Zirión Quijano (Universidad Nacional Autónoma de México)
Pedro M. S. Alves (Universidade de Lisboa, Portugal)
Conselho Editorial
Adelma Pimentel (Universidade Federal do Pará)
Andrés Eduardo Aguirre Antúnez (Universidade de São Paulo)
Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
André Barata (Universidade da Beira Interior, Portugal)
Cláudia Lins Cardoso (Universidade Federal de Minas Gerais)
Daniela Schneider (Universidade Federal de Santa Catarina)
Danilo Saretta Veríssimo (Universidade Estadual Paulista/Assis)
Ileno Izidio da Costa (Universidade de Brasília)
Irene Pinto Pardelha (Universidade de Évora)
José Olinda Braga (Universidade Federal do Ceará)
Lester Embree (Florida Atlantic University) (in memoriam)
Lílian Meyer Frazão (Universidade de São Paulo)
María Lucrecia Rovaletti (Universidade de Buenos Aires)
Marcos Aurélio Fernandes (Universidade de Brasília)
Marisete Malaguth Mendonça (Pontifícia Universidade Católica de Goiás)
Marta Carmo (Universidade Federal de Goiás)
Mônica Botelho Alvim (Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Michael Barber (Saint Louis University)
Nilton Júlio de Faria (Pontifícia Universidade Católica de Campinas)
Rosemary Rizo-Patrón de Lerner (Pontificia Universidad Católica del Perú)
Virginia Elizabeth Suassuna Martins Costa (Pontifícia Universidade Católica de Goiás)
William Barbosa Gomes (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
Editores de Texto – Suporte Técnico
Josiane Almeida
Silvana Ayub Polchlopek
Capa, Diagramação e Arte Final
Franco Jr.
Bibliotecário
Arnaldo Alves Ferreira Junior (CRB 01-2092)
Financiamento
Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goiânia (ITGT-GO)
Apoio
Associação Brasileira de Psicologia Fenomenológica (ABRAPEF)
Encaminhamento de Manuscritos
A remessa de manuscritos para publicação, bem como toda a correspondência
de seguimento que se fizer necessária, deve ser submetida eletronicamente
endereçada ao site: <http://submission-pepsic.scielo.br/
Editor
Revista da Abordagem Gestáltica – Phenomenological Studies.
E-mail:
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Normas de Apresentação de Manuscritos
Todas as informações concernentes a esta publicação, tais como normas de
apresentação de manuscritos, critérios de avaliação, modalidades de textos, etc.,
podem ser encontradas no site: <http://pepsic.bvs-psi.org.br
Fontes de Indexação
- Clase
- Dialnet
- Ebsco
- Index Psi Periódicos (BVS-Psi Brasil)
- Latindex
- Lilacs
- Psicodoc
- Redalyc
- Scopus
Qualis CAPES 2015–A2
ISSN 1809-6867 versão impressa
ISSN 1984-3542 versão on-line
As opiniões emitidas nos trabalhos aqui publicados, bem como a exatidão e adequação das referências bibliográficas são de exclusiva responsabilidade dos autores, portanto podem não expressar o pensamento dos editores.
A reprodução do conteúdo desta publicação poderá ocorrer desde que citada a fonte.
Sumário
EDITorIAl ..................................................................................................................................................XX
ArTIgoS: rElAToS DE PESQuISA
- Mulheres Transplantadas renais: um olhar Fenomenológico Existencial para a
Experiência da gestação ............................................................................................................................. 3
Viviane Rodrigues de Figueredo Azevedo Amaral (Universidade de Pernambuco);
Telma Costa de Avelar (Universidade Federal de Pernambuco) &
Suely Emilia de Barros Santos (Universidade de Pernambuco)
- Sentidos das oficinas Terapêuticas ocupacionais do CAPS no Cotidiano dos usuários:
uma Descrição Fenomenológica ............................................................................................................... 15
Ondina Pena Pereira (Universidade Católica de Brasília) &
Ana Carolina Ribas Palma (Universidade Católica de Brasília)
- os Significados da Experiência Interna da Formação Presbiteral: uma Análise Temática
Fenomenal .................................................................................................................................................. 24
Alexsandro Medeiros do Nascimento (Universidade Federal de Pernambuco) &
Rafael Amorim de Paula (Universidade Federal de Pernambuco)
- Variáveis Associadas ao Sentido de Vida................................................................................................. 35
Ana Paula Porto Noronha (Universidade São Francisco);
Diannifer Aparecida Oliveira (Universidade São Francisco);
Leonardo de Oliveira Barros (Universidade São Francisco) &
Thaline da Cunha Moreira (Universidade São Francisco)
ArTIgoS: ESTuDoS TEórICoS ou HISTórICoS
- F. J. J. Buytendijk e a gênese do Espírito Materno .................................................................................. 47
Claudinei Aparecido de Freitas da Silva (Universidade do Oeste do Paraná - Toledo/PR)
- Considerações Fenomenológico-existenciais sobre o Habitar no Semiárido Brasileiro ...................... 57
Maíra Leite Escórcio (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) &
Elza Maria do Socorro Dutra (Universidade Federal do Rio Grande do Norte)
- Acompanhamento Terapêutico em Saúde Mental: Estrutura, Possibilidades e Desafios para a
Prática no SuS ........................................................................................................................................... 66
Luis Felipe Ferro (Universidade Federal do Paraná);
Milton Carlos Mariotti (Universidade Federal do Paraná);
Adriano Furtado Holanda (Universidade Federal do Paraná) &
Mirian Aparecida Nimtz (Universidade Federal do Paraná)
- Intencionalidade e Comportamento: a Percepção Vivente em Merleau-Ponty ...................................... 75
Pedro Henrique Santos Decanini Marangoni (Universidade Estadual Paulista, UNESP/Assis) &
Danilo Saretta Verissimo (Universidade Estadual Paulista, UNESP/Assis)
- Infância, Filosofia da Educação e Fenomenologia: Aproximações Necessárias ................................... 84
Ana Maria Monte Coelho Frota (Universidade Federal do Ceará)
Franchesca Carolina Baronio (Faculdade de Desenvolvimento do Rio Grande do Sul) &
Luciene Geiger (Faculdade de Desenvolvimento do Rio Grande do Sul)
v
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXII(1): v-vi, jan-abr, 2018
Sumário
- A Construção do Ser Mulher na Agricultura Familiar: uma Perspectiva logoterapêutica ................. 91
Sumário
TEXToS ClÁSSICoS
- A Problemática da Dor Psicologia – Fenomenologia – Metafísica........................................................ 101
F. J. J. Buytendijk (1948)
NorMAS
Sumário
- Normas de Publicação da revista da Abordagem gestáltica .............................................................. 117
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXII(1): v-vi, jan-abr, 2018
vi
Editorial
sa prática. Já Intencionalidade e Comportamento: a Percepção Vivente em Merleau-Ponty, aponta para os trabalhos iniciais de Merleau-Ponty, nos quais a percepção
é definida como tema específico de investigação, junção
do sujeito e das suas condições orgânicas de vida. Com
base nas discussões entabuladas por Merleau-Ponty em
A estrutura do comportamento, evidenciam-se os elementos fundamentais de interpretação da percepção animal
em termos de intencionalidade.
Infância, Filosofia da Educação e Fenomenologia:
Aproximações Necessárias, discute a relação entre a filosofia da educação, a fenomenologia hermenêutica e a
infância. Mesmo reconhecendo a ausência de uma discussão sobre a infância e a criança na obra de Heidegger,
busca olhar para elementos ônticos que possibilitem reflexões inspiradas na filosofia hermenêutica, proporcionando uma maior compreensão da infância. A Construção do Ser Mulher na Agricultura Familiar: uma Perspectiva logoterapêutica traz uma revisão narrativa de
caráter qualitativo, buscando definir o perfil do Ser Mulher na agricultura familiar, identificando-a com papéis
como mãe, esposa e cuidadora. A partir da Logoterapia
pode-se entender como constroem sentidos de vida e as
alternativas de uma liberdade de sentido para uma escolha autêntica que promova saúde.
Finalizamos este número com a tradução de um clássico texto de F.J.J.Buytendijk, intitulado A Problemática
da Dor. Psicologia – Fenomenologia – Metafísica, originalmente publicado em 1948.
Boa leitura a todos
Adriano Holanda (Editor)
(Este número foi finalizado no dia 08 de janeiro de 2018)
Editorial
Neste primeiro número de 2018, principiamos com um
conjunto de quatro pesquisas: Mulheres Transplantadas
renais: a Experiência da gestação em Foco, trabalhou
com narrativas de mulheres, buscando apreender a angústia frente às perdas, revelando-se pelo medo e temor,
e pela interdição da amamentação. O manuscrito Sentidos das oficinas Terapêuticas ocupacionais do CAPS
no Cotidiano dos usuários: uma Descrição Fenomenológica mostra, a partir de relatos dos usuários sobre seu
cotidiano em um CAPS, o universo de relações entre razão e loucura. os Significados da Experiência Interna da
Formação Presbiteral: uma Análise Temática Fenomenal,
mostra uma pesquisa com 34 seminaristas, apresentando
o Seminário como um espaço de tensão na vivência formativa, como um lugar de renúncia e aprendizado. Em
Variáveis Associadas ao Sentido de Vida é apresentado
um estudo com 901 pessoas, a partir de análises quantitativas e qualitativas. Nos resultados foi possível observar
que a maioria das pessoas citaram a Família como o fator
mais importante, além de associá-la ao sentido de vida e
a quem dedicam a mesma.
Na sequência, temos o artigo intitulado F. J. J. Buytendijk e a gênese do Espírito Materno, que busca compreender o mistério dessa formação para além de todo reducionismo biológico, desvelando os elementos da historicidade e do cuidado em sua infraestrutura mais profunda. Considerações Fenomenológico-existenciais sobre
o Habitar no Semiárido Brasileiro aponta uma revisão
da literatura de pesquisas com sertanejos, lançando um
olhar crítico para uma realidade que desvela o sertão como abrigo do antigo e do novo paradigma. Assim, o semiárido se abre como lugar onde o humano habita no modo
da familiaridade ou do estranhamento. O artigo Acompanhamento Terapêutico em Saúde Mental: Estrutura,
Possibilidades e Desafios para a Prática do SuS procura
subsidiar a estruturação do AT junto ao campo da saúde
mental, discutindo especificidades e possibilidades des-
vii
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXII(1): vii-ix, jan-abr, 2018
Editorial
salud mental, discutiendo especificidades y posibilidades
de esa práctica. Intencionalidad e Comportamiento: la
Percepcion Viviente em Merleau-Ponty apunta a los trabajos iniciales de Merleau-Ponty, en los que la percepción
se define como tema específico de investigación, unión
del sujeto y de sus condiciones orgánicas de vida. Con
base en las discusiones entabladas por Merleau-Ponty en
La estructura del comportamiento, se evidencian los elementos fundamentales de interpretación de la percepción
animal en términos de intencionalidad.
Niñez, Educación Filosofía y Fenomenología: Enfoques Necesarios, discute la relación entre la filosofía de
la educación, la fenomenología hermenéutica y la infancia. Mientras reconociendo la ausencia de una discusión
sobre la infancia y el niño en la obra de Heidegger, busca mirar elementos que posibiliten reflexiones inspiradas en la filosofía hermenéutica, proporcionando una
mayor comprensión de la infancia. la Construcción del
Ser Mujer en la Agricultura Familiar: una Perspectiva
logoterapéutica trae una revisión narrativa de carácter
cualitativo, buscando definir el perfil del Ser Mujer en
la agricultura familiar, identificándola con papeles como
madre, esposa y cuidadora. A partir de la Logoterapia se
puede entender cómo construyen sentidos de vida y las
alternativas de una libertad de sentido para una elección
auténtica que promueva la salud.
Finalizamos este número con la traducción de un clásico texto de F.J.J.Buytendijk, titulado la Problemática
del Dolor. Psicología – Fenomenología – Metafísica, originalmente publicada en 1948.
Buena lectura a todos.
Adriano Holanda (Editor)
(Este numero fue finalizado en 08 de Enero de 2018)
Editorial
En este primer número de 2018, empezamos con un
conjunto de cuatro investigaciones: Mujeres riñón Trasplantado: la Experiéncia del Embarazo en Foco, trabajó
con narrativas de mujeres, buscando aprehender la angustia frente a las pérdidas, revelándose por el miedo y
temor, y por la interdicción de la lactancia. El manuscrito
Significados de las Actividades Terapéuticas de lo CAPS
en la Vida Diária de los usuários: una Descripción Fenomenológica muestra, a partir de relatos de los usuarios
sobre su cotidiano en un CAPS, el universo de relaciones
entre razón y locura. Significados de la Experiencia Interna en la Formación Sacerdotal: un Análisis Temático
Fenomênico, muestra una investogación con 34 seminaristas, presentando el Seminario como un espacio de tensión en la vivencia formativa, como un lugar de renuncia
y aprendizaje. En Variables relacionadas al Sentido de
la Vida se presenta un estudio con 901 personas, a partir
de análisis cuantitativos y cualitativos. En los resultados
fue posible observar que la mayoría de las personas citaron a la Familia como el factor más importante, además de
asociarla al sentido de vida ya quienes dedican la misma.
En secuencia, tenemos el artículo titulado F. J. J. Buytendijk y la génesis del Espíritu Materno, que busca
comprender el misterio de esa formación más allá de todo
reduccionismo biológico, desvelando los elementos de la
historicidad y del cuidado en su infraestructura más profunda. Consideraciones Fenomenológico-existenciales
sobre el Habitar en el Semiárido Brasileño apunta una
revisión de la literatura de investigaciones con “sertanejos”, lanzando una mirada crítica hacia una realidad que
desvela el “sertão” como refugio del antiguo y del nuevo
paradigma. Así, el semiárido se abre como lugar donde
el humano habita en el modo de la familiaridad o del extrañamiento. El artículo Acompañamiento Terapéutico
en Salud Mental: Estructura, Posibilidades y Desafíos
para la Práctica en el Sistema unico de Salud procura
subsidiar la estructuración del AT junto al campo de la
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXII(1): vii-ix, jan-abr, 2018
viii
Editorial
ality and Behavior: the living Being Perception in Merleau-Ponty, points to the initial works of Merleau-Ponty,
in which the perception is defined as a specific subject
of investigation, junction of the subject and their organic
conditions of life. Based on the discussions of MerleauPonty in The structure of behavior, the fundamental elements of interpretation of animal perception in terms of
intentionality are evidenced.
Childhood, Education Philosophy and Phenomenology: Necessary Approaches, discusses the relationship
between philosophy of education, hermeneutic phenomenology and childhood. Even acknowledging the absence
of a discussion about childhood and child in Heidegger’s
work, he seeks to look for ontic elements that enable reflections inspired by hermeneutic philosophy, providing
a greater understanding of childhood. The Construction
of Being a Woman in Family Farming: a logotherapeutic Perspective brings a narrative review of a qualitative
character, seeking to define the profile of Being Woman
in family agriculture, identifying her with roles as mother, wife and caregiver. From Logotherapy, one can understand how they construct life’s senses and the alternatives of a freedom of meaning for an authentic choice
that promotes health.
We conclude this issue with the translation of a classic text by F.J.J.Buytendijk entitled The Problem of Pain.
Psychology – Phenomenology – Metaphysics, originally
published in 1948.
Good Reading
Adriano Holanda (Editor)
(This issue was finished at January 08, 2018)
Editorial
In this first issue of 2018, we began with a set of four
studies: Women Transplanted Kidney: the Experience
of Pregnancy in Focus, worked on women’s narratives,
seeking to apprehend the anguish of loss, revealing fear
and interdiction of breastfeeding. The manuscript Senses
of CAPS Therapeutic Activities in the Daily life users:
a Phenomenological Description shows, from the users’
reports about their daily life in a CAPS, the universe of
relations between reason and madness. The Meanings of
the Inner Experience of Priestly Formation: a Phenomenal Thematic Analysis, shows a research with 34 seminarians, presenting the Seminar as a space of tension in
the formative experience, as a place of renunciation and
learning. In Variables Associated With the Meaning of
life a study with 901 people is presented, based on quantitative and qualitative analyzes. In the results, it was
possible to observe that most people cited the Family as
the most important factor, besides associating it with the
meaning of life and to those who dedicate it.
Next we have the article entitled F. J. J. Buytendijk and
the genesis of the Maternal Spirit, which seeks to understand the mystery of this formation beyond all biological
reductionism, unveiling the elements of historicity and
care in its deepest infrastructure. Existential-phenomenological Considerations on Inhabiting the Brazilian Semiarid points to a review of the research literature with sertanejos, casting a critical eye on a reality that reveals the
sertão as shelter of the old and the new paradigm. Thus,
the semiarid opens as a place where the human dwells
in the mode of familiarity or estrangement. The article
Therapeutic Accompaniment in Mental Health: Structure, Possibilities and Challenge to its Practice in unique
System of Health seeks to subsidize the structuring of the
TA in the field of mental health, discussing the specificities and possibilities of this practice. Already Intention-
ix
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXII(1): vii-ix, jan-abr, 2018
A rtigos:
relAtos
de
PesquisA .......................
Mulheres Transplantadas Renais: um Olhar Fenomenológico
Existencial para a Experiência da Gestação
Nº DOI: 10.18065/RAG.2018v24n1.1
Mulheres TransplanTadas renais:
uM Olhar FenOMenOlógicO exisTencial
para a experiência da gesTaçãO
Women Transplanted Kidney: the Experience of Pregnancy in Focus
Mujeres Riñón Trasplantado: la Experiéncia del Embarazo en Foco
ViViane RodRigues de FigueRedo azeVedo amaRal
Telma CosTa de aVelaR
suely emilia de BaRRos sanTos
resumo: Atualmente no Brasil a Insuficiência Renal Crônica (IRC) é considerada um problema de Saúde Pública, pela elevada
prevalência, incidência e risco de mortalidade. A IRC demanda um tratamento de elevado custo e difícil prognóstico. Nesse contexto, o presente trabalho faz um recorte acerca do fenômeno da gestação no pós-transplante. Seu objetivo é compreender como as
mulheres transplantadas renais experienciam a gestação, considerando que tanto a gravidez quanto o acometimento renal trazem
mudanças significativas à sua vida. Para tanto, utilizou-se uma abordagem qualitativa, adotando-se a fenomenologia existencial
como referência metodológica. Como participantes, duas mulheres concederam entrevistas abertas; suas narrativas foram analisadas tendo como referencial o método da Analítica de Sentido, proposta por Dulce Critelli. Nas narrativas apreendeu-se que a
angústia em sua dimensão ontológica manifestou-se onticamente pelo medo/temor, referente à perda do enxerto e do próprio bebê
esperado, além da interdição à amamentação enquanto fator de risco psicoemocional. O cuidado de si e do outro atravessou todos
os acontecimentos numa pró-cura – para cuidar de existir no mundo-com-outros. A intervenção psicológica à gestante transplantada renal e sua família revelou-se primordial para o acontecer de uma atenção, orientada pelos princípios éticos.
Palavras-chave: Transplante renal; Gestação; Psicologia; Fenomenologia Existencial.
Artigos
-
resumen: Actualmente en Brasil la Insuficiencia Renal Crónica (IRC) es considera un problema de salud pública por la elevada
prevalencia, incidencia y riesgo de mortalidade. La IRC demanda un tratamiento de coste elevado y difícil pronóstico. En el contexto, ese trabajo hace un inciso sobre el fenómeno del embarazo en el post-trasplante, su objetivo es comprender como las mujeres trasplantadas renales viven la gestación, teniendo en cuenta que tanto la gestación como el acometido renal conllevan cambios significativos en su vida. Para tal, se utilizó un abordaje cualitativo, adoptando la fenomenología existencial como soporte
teórico y metodológico. Como participantes, dos mujeres concedieron entrevistas abiertas; sus relatos fueron analizados teniendo
como referencia el método de la Analítica del Sentido, propuesto por Dulce Critelli. De los relatos se deprendió que la angustia,
en su dimensión ontólogica, se ha creado ónticamente por el miedo/temor referente à la perdida del injerto y del próprio bebé esperado, además la interdicción del amamantamiento como fator de riesgo psicoemocional. El cuidado de uno e del otro ha passado a través de todos los eventos en una pró-cura – para cuidar de existir en el mundo-con-otros. La intervención psicológica a las
mujeres transplantadas renales embarazadas y sus famílias se ha mostrado de importância fundamental para el acontecer de una
atención, guiadas por los princípios éticos.
Palabras-clave: Trasplante de Riñón; Gestación; Psicología; Fenomenlogía Existencial.
Relatos de Pesquisa
Abstract: Currently in Brazil Chronic Renal Failure (CRF) is considered a public health problem by its high prevalence, incidence
and mortality risk, generating a costly and difficult prognosis. In this context, the present study makes a bridge between the pregnancy phenomenon in post-transplant. It´s goal is to understand how the kidney transplanted women experience pregnancy, considering that both pregnancy and renal involvement bring significant changes to their life. Therefore, we used a qualitative approach, adopting the existential phenomenology as a theoretical and methodological support. As participants, two women gave
open interviews; their narratives were analyzed using as reference the direction of Analytical method proposed by Dulce Critelli. Throughout the testimonials, it is made understood that the anguish, in its ontological dimension, had taken place ontically
beacause of Fear/Scare from the graft loss and the loss of their own expected child, beside the ban on breastfeeding as psychoemotional risk fator. The caring towards oneself and towards others went through all events in a pro-healing process – in order to
take care of existing in the world-whit-others. The psychological care to kidney transplanted pregnant women and their families
proved to be essential matter on the happening of attention guided by ethical príncipes.
Keywords: Kidney Transplantation; Pregnancy; Psichology, Existential Phenomenology.
3
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 3-14, jan-abr, 2018
Viviane R. de F. A. A.; Telma C. de A.; Suely E. de B. S.
Artigos
-
Relatos de Pesquisa
introdução
O presente artigo é fruto de uma pesquisa científica
que teve como objetivo compreender como as mulheres
transplantadas renais experienciam a gestação. Buscou-se ainda apreender o fenômeno da gestação no contexto
do transplante renal, promovendo uma discussão à luz
da fenomenologia existencial.
O adoecimento pode trazer mudanças radicais para a
vida da pessoa. As limitações causadas pela doença resultam em rupturas e perdas em diversos contextos da vida.
O corpo, que antes mostrava a presença de uma saúde
mais fortalecida, com a doença, passa a expressar-se de
outro modo, causando dores, perdas, angústias. Em relação ao adoecimento, Quintas (2013), relata que, do ponto de vista existencial, essa pode ser a experiência que
mais afeta o ser humano, por apontar a sua finitude. Na
experiência de adoecimento causado pela Insuficiência
Renal Crônica (IRC) não é diferente. O doente renal crônico encontra-se frequentemente vulnerável e fragilizado
por suas perdas, que vão além da perda da função renal,
tais como: perda de uma parte da autonomia, liberdade,
energia cotidiana, atividades laborais, vínculos sociais,
tendo que enfrentar, ainda, as limitações hídricas e restrições alimentares (Freitas & Cosmo, 2010).
Atualmente, no Brasil, a IRC é considerada um problema de Saúde Pública. Sua incidência e prevalência estão aumentando, com difícil prognóstico e elevado custo
de tratamento (Sesso, Lopes, Thomé, Lugon, Watanabe &
Santos, 2012). A IRC é uma doença grave que se caracteriza pela perda lenta e progressiva da função dos rins, e
classifica-se em estágios que vão do primeiro ao quinto. No
último estágio, a doença pode agravar até levar à morte, e
a sobrevida pode ser garantida por intermédio da terapia
renal substitutiva (TRS) – hemodiálise, diálise peritoneal e transplante renal (Tavares, 2011). Segundo o Manual
de Transplante Renal (ABTO, 2014a), o transplante renal,
modalidade da TRS na qual nos deteremos neste estudo,
consiste na transferência de um rim de um humano para
o outro com o objetivo de compensar a função renal perdida. O transplante renal proporciona melhor condição
de saúde, e, consequentemente, melhor qualidade de vida. No Brasil, apenas 5% dos pacientes no quinto estágio
da IRC são submetidos ao transplante renal. Vale ressaltar
que, dos inscritos na fila de transplante, 19% realizam o
procedimento. Entre janeiro e setembro de 2014, houve
4.221 transplantes de rins no Brasil, entre esses 218 foram
realizados em Pernambuco (ABTO, 2014b).
Na população acometida pela IRC, encontramos mulheres em idade fértil com a capacidade reprodutiva diminuída por causa da doença renal. Ao serem transplantadas, elas passam a ter mais chances de engravidar, pois
as funções renal e endócrina são rapidamente retomadas,
resultando em uma maior fertilidade. Silva, Cardoso, Sá,
Kruger e Oliveira (2014) consideram que, apesar da gravidez no contexto de IRC ser de alto risco, o transplante
renal não é uma contraindicação para a gestação, porém
o bom andamento dessa, depende de um rigoroso planejamento e acompanhamento multiprofissional.
Na medida em que vem a colaborar com o diálogo
científico acerca da experiência da gestação na mulher
transplantada renal, este estudo torna-se relevante, por
ampliar a literatura na área, que é escassa, conforme revelou a pesquisa literária realizada na base de Artigos Científicos do Scientific Electronic Library Online (SciELO),
Portal de teses e dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), LILACS,
IBECS e MEDLINE.
Transplante renal: uma revolução interna
O transplante renal é um grande avanço da medicina moderna. Hoje a Política Nacional de Transplantes
de Órgãos e Tecidos está fundamentada na Legislação
(Lei nº 9.434/1997 (Brasil, 1997) e Lei nº 10.211/2001
(Brasil, 2001), apresentando como diretrizes a gratuidade da doação, a beneficência em relação aos receptores
e não maleficência em relação aos doadores vivos. Toda
a Política de Transplante está em sintonia com as Leis
nº 8.080/1990 (Brasil, 1990a) e nº 8.142/1990 (Brasil,
1990b), que regem o funcionamento do Sistema Único de
Saúde (SUS). Vale ressaltar que mais de 95% dos transplantes são realizados no SUS (Medina-Pestana, Galante,
Tedesco-Silva Jr., Harada, Garcia, Abbud-Filho, Campos
& Sabbaga, 2011).
Após o transplante renal, vem a interrupção do tratamento dialítico – diálise peritoneal ou hemodiálise, o
que favorece um contexto com maiores possibilidades
de retorno à vida profissional e social. Esses são fatores
que apontam para uma melhor qualidade de vida proporcionados pelo processo de transplante renal (Ravagnani, Domingos & Miyazki, 2007). Esse transplante não
corresponde à cura do problema renal, entretanto costuma melhorar consideravelmente a qualidade de vida da
pessoa transplantada, podendo contar com uma maior
autonomia, possibilitando-lhe a retomada de projetos
que foram adiados ou impossibilitados pelas limitações
causadas pela IRC.
Tanto o doente renal crônico, quanto a equipe de saúde costumam ver o transplante como uma experiência
positiva. No entanto, é de extrema necessidade ressaltar
que o transplantado não está livre de vivenciar momentos de crise psicoemocional, social e fisiológica. Conforme Quérin, Clermont, Dupre-Goudable e Dalmon (2011),
no percurso do transplantado existem sucessivos lutos.
O primeiro é pela perda da sua própria função renal – de
uma saúde antes conhecida; seguido de certa perda da
imagem de si mesmo, provocando um estado de vulnerabilidade. Além disso, ele conhecerá algumas mudanças,
tais como: o tratamento com imunossupressores, a nova
equipe de saúde, uma nova higiene de vida.
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 3-14, jan-abr, 2018
4
Maldonado (2002) enfatiza que algumas mulheres
vivenciam a gestação como um período de crise, outras
conseguem vivê-la de forma mais serena em meio às diversas mudanças. Se o transplante renal pode ser considerado, em diferentes contextos, uma revolução, para
a mulher transplantada que engravida, a gestação pode
representar uma grande metamorfose permeada de mudanças e reorganizações fisiológicas, sociais, psicológicas, familiares e econômicas, que anuncia uma segunda
revolução interna.
De acordo com Silva et al. (2014), durante muito
tempo, a orientação médica para a gravidez associada à
nefropatia era a sua interrupção. Em 1960, as mulheres
pós-transplantadas seguiam com a gestação apenas por
razões emocionais ou religiosas. Ainda no início dos anos
70, era frequente que os bebês de mulheres com IRC nascessem em condições delicadas, sendo em sua maioria,
natimortos. Porém, em 1960, foi descrito o primeiro caso
de gestação bem-sucedida pós-transplante renal. Hoje se
sabe que as complicações maternas mais comuns nesse
tipo de gravidez são: maior probabilidade de cesariana,
5
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 3-14, jan-abr, 2018
-
gestação em mulheres transplantadas: uma segunda
revolução interna
anemia, diabetes gestacional, infecções, rejeição aguda
do enxerto, pré-eclampsia; e, entre as complicações fetais, podemos encontrar crescimento intrauterino restrito, parto pré-termo, infecções, anemia, malformações,
insuficiência suprarrenal e anormalidades cromossômica. Porém, o bom andamento dessa gestação não se deve
apenas aos fatores fisiológicos, mas também aos psicológicos e sociais.
A mulher transplantada renal grávida deve ser acompanhada por um obstetra e um nefrologista. Se o acompanhamento não for adequado, a função do enxerto pode
ficar comprometida, assim como a vida da paciente e o
desenvolvimento do feto (Silva et al., 2014). Essa gravidez
é considerada de alto risco tanto para a mãe quanto para
o feto, por ser “aquela na qual a vida ou a saúde da mãe
e/ou do feto e/ou do recém-nascido têm maiores chances
de serem atingidas que as da média da população considerada” (Brasil, 2012, p. 11). Para estas mulheres, em
comparação com a população geral, existe um maior risco
de a criança nascer prematura – entre a 20a e 37a semana,
ou com baixo peso – menos de 2.000g. Vale ressaltar que
essas crianças geralmente não apresentam atraso no desenvolvimento (Panaye, Jolivot, Lemoine, Guebre-Egziabher, Doret, Morelon & Juillard, 2014).
Segundo Silva et al. (2014), a idade das gestantes
transplantadas varia de 20 a 36 anos, a gestação geralmente chega as 33 semanas. A deterioração da função
renal aparece em 5,5% dos casos. Os nefrologistas concordam que é recomendável esperar dois anos após o ato
cirúrgico do transplante renal para engravidar, tendo em
vista as doses mais elevadas dos imunossupressores e o
risco de rejeição do órgão recebido. Esses autores citaram
alguns critérios para avaliar a indicação ou não da gravidez em transplantadas renal: ter boa saúde geral, função
estável do enxerto, não haver recentes episódios de rejeição aguda e nenhuma evidência de rejeição no momento,
ausência de proteinúria ou mínima de < 5 g/dia e pressão arterial normal. A gestação em contexto de IRC, além
de representar riscos orgânicos, objetivos e mensuráveis,
pode ser habitada por ansiedade, angústia, ambivalência,
medo, baixa autoestima, sentimento de incompetência,
dificuldade na vinculação com o bebê, sentimento de ser
diferente das demais, o que possivelmente será reforçado
pelo rótulo “de alto risco” (Caldas, Silva, Boing, Crepaldi & Custódio, 2013). Esses são fatores de risco psicoemocional que a gestante transplantada pode enfrentar ao
longo da sua gestação.
Sendo assim, fica claro que a mulher que engravida
após um transplante renal deve ser acompanhada por
uma equipe formada por profissionais de diferentes áreas, trabalhando de forma planejada e articulada para que
o cuidado oferecido seja o mais acolhedor possível (Brasil, 2012).
Artigos
Rossi, Deus e Figueiredo (2011) definem o transplante
não como um acontecimento em si, marcado pela cirurgia, mas enquanto processo, pois ele não inicia ou finaliza com a cirurgia. O paciente antes de ser transplantado segue uma rotina de consultas e exames e, após o ato
cirúrgico, adere a um esquema de dieta e medicamentos
rigorosos. Bohachick et al. (1992) afirmam que o transplante é um processo marcado por uma série de etapas
preenchidas por estressores significativos e o primeiro
deles é o reconhecimento da doença enquanto ameaçadora da vida. Os problemas bio-psico-sociais são profundos
antes e depois da cirurgia de transplante. É o que precede
e sucede o ato cirúrgico que deve ser o foco permanente
do transplantado, sua família e equipe de saúde no processo de cuidado.
O humano transplantado costuma expressar o sentimento de renascimento ao falar do transplante, apesar
de saber que este não corresponde a uma cura e que surgirão dificuldades, mudanças e crises que lhe são peculiares. O transplante renal pode ser entendido como uma
revolução, não só para a ciência, e mais especificamente
para a nefrologia, mas também como uma revolução interna para aquele que foi acometido pela IRC. Revolução
no sentido de que, a partir do transplante, poderá haver
transformações profundas e intensas na sua vida. Assim
sendo, para melhor enfrentamento do processo de transplante, faz-se necessária a articulação do cuidado do próprio transplantado, da sua família e da equipe de saúde
multiprofissional interdisciplinar.
Relatos de Pesquisa
Mulheres Transplantadas Renais: um Olhar Fenomenológico Existencial para a Experiência da Gestação
Viviane R. de F. A. A.; Telma C. de A.; Suely E. de B. S.
procedimentos metodológicos
Este artigo é fruto de uma pesquisa qualitativa, numa
perspectiva fenomenológica existencial. A pesquisa qualitativa segundo Minayo (2002), “trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores
e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não
podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis”
(p. 21-22). A palavra fenômeno pode ter vários significados. Heidegger (1927/2002) compreende o fenômeno como o que se revela, que se faz ver ou que vem à luz. Critelli (2006) menciona o fenômeno ao mesmo tempo que
traz a noção de ente:
Artigos
-
Relatos de Pesquisa
Ente é tudo o que é, o que tem uma manifestação (uma
pedra, uma emoção, idéia...). E manifestação é uma
exposição, um mostrar-se do ente, um trazer-se à luz
para um olhar [...] Fenômeno (de onde a fenomenologia também retira seu nome) é o ente mostrando-se.
(p. 54, parênteses da autora)
Nessa direção, olhamos para modos possíveis do fenômeno da gestação se apresentar em mulheres transplantadas renais. Para tanto, neste trabalho, foram realizadas
duas entrevistas abertas de forma individual com duas
mulheres colaboradoras, totalizando quatro entrevistas.
Partiu-se da seguinte inquietação da pesquisadora, que se
fez questão norteadora para a direção da pesquisa: “Como
é a experiência da gestação para as mulheres que foram
submetidas a um transplante renal?”. Entretanto, na entrevista, foi lançada a seguinte questão disparadora para
as mulheres participantes: “Como foi a sua experiência
de gestação após o transplante?”. Trabalhamos com uma
amostra intencional, a qual, segundo Thiollent (1986),
se refere a “um pequeno número de pessoas que são escolhidas intencionalmente em função da relevância que
elas apresentam em relação a um determinado assunto”
(p. 62). As duas mulheres entrevistadas foram selecionadas pelos seguintes critérios: ambas eram adultas, estiveram grávidas após um transplante renal e eram acompanhadas pelo Ambulatório de Nefrologia do Hospital
das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco
(HC-UFPE), local de realização da pesquisa.
Para analisar as narrativas, o método escolhido foi o da
“Analítica do Sentido”, proposto por Dulce Critelli (1996),
que possibilita o acompanhar da manifestação do sentido.
Neste artigo compreende-se sentido como:
A direção, o rumo para onde se vai, estando assim
atrelado ao destinar-se [...] o sentido é uma armação
sem a qual o mundo não se arruma, organiza; configurando-se somente na direção humana, todos os demais entes são carentes de sentido. Fenomenológica
existencialmente, a pergunta pelo ser não se dirige ao
que é, porém ao sentido de ser. (Almeida, 2005, p. 213)
A Analítica do Sentido tem cinco movimentos, segundo Critelli (1996):
a) Desvelamento - Modo como o fenômeno que estava ocultado se desvela. É o momento o da afetabilidade;
b) Revelação - Anuncia, pela compreensibilidade, o
aparecimento do fenômeno;
c) Testemunho - É o momento de compartilhar com
outros, da comunicabilidade do que foi revelado;
d) Veracização - O fenômeno não se mostra como uma
verdade, mas pode ser veracizado a partir das referências, de outros olhares;
e) Autenticação - No compartilhar com outros, na
publicização, a pesquisa pode ser autenticada.
Esclarecemos que, como destaca a referida autora, esses movimentos não se apresentam de forma linear, mas
sim pela simultaneidade. Assim, não se mostram como
etapas a serem seguidas, mas como um constante ir e vir
por entre os referidos movimentos. Desta forma, a análise
apresentada a seguir não segue fases ou passos, mas um
permanente movimento para compreensão de sentido.
possibilidades compreensivas da experiência da
gestação da mulher transplantada renal
Este estudo teve a colaboração de duas mulheres,
que por meio da narrativa, contaram suas experiências
acerca da gestação após o transplante renal. A primeira
narradora-colaboradora, Eliana, 43 anos, tem dois filhos,
transplantada em 2005. Sua primeira gestação aconteceu dois anos após o transplante e a segunda cinco anos
após. A segunda narradora-colaboradora, Maria Eduarda,
44 anos, transplantada há 19 anos, tem uma filha, engravidou 07 anos após o transplante. Compreendendo que
em mulheres com IRC os riscos para uma gestação são
constantes, como assinalam Brasil (2012) e Panaye et al.
(2014), podemos entender que, apesar das gestações das
narradoras-colaboradoras terem início dois anos após o
ato cirúrgico do transplante, ou seja, em um tempo recomendado pelos nefrologistas e obstetras, a gestação continua sendo de risco, pois o que constitui o caráter de risco,
nesse contexto, não é a quantidade de anos que se passaram após a cirurgia do transplante, mas o fato da mulher
ser transplantada renal. Além disso, é preciso ficar atento,
pois “o que importa é o tempo vivido, biografado nas dobras do vivido (o kairós) e não o tempo físico, controlado
medido, previsto (o chronós)” (Santos, 2005, p. 91, grifos da autora). O kairós não segue uma linearidade, nem
pode ser medido ou pré-determinado. É o tempo que vai
se deslocando e modificando ao se transitar pela experiência do viver por entre a trama de sentido. Mas há uma
preocupação da equipe de saúde com o tempo chronós,
como podemos ver na narrativa de Eliana:
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 3-14, jan-abr, 2018
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Mulheres Transplantadas Renais: um Olhar Fenomenológico Existencial para a Experiência da Gestação
Pode-se compreender que o cuidado vai além de um
ato pontual, ou uma virtude, mas é um modo de ser-no-mundo. O cuidado antecede as relações do homem com
todas as coisas. Ou como afirma Santos (2016), “[...] o
cuidado se mostra como condição própria de o homem
existir. O destinar-se a estar cuidando de existir carrega
uma tarefa primordial de responsabilizar-se por si mesmo, pelos outros e pelo mundo” (p. 183, grifos da autora).
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Eliana - O doutor da vascular disse: “não era pra você ter engravidado!”. Meu médico que fez meu transplante, também disse: “graças a Deus que deu certo,
graças a Deus, mas poderia não ter dado. Você poderia
ter evitado a segunda gravidez... mas...” [...] As enfermeiras comentavam que por eu ser transplantada podia prejudicar meu rim transplantado.
A partir do apropriar-se do cuidado de si e do outro,
foi revelado, também, na narrativa de Maria Eduarda, o
medo enquanto tonalidade afetiva que a acompanhou durante toda a gestação. A disposição afetiva é um existencial, que onticamente diz respeito aos humores cotidianos. Para Heidegger (1927/2002), O humor revela ‘como
alguém está e se torna’. (p. 188). Compreendemos que o
medo diante do vivido e do devir, já se desvela nas expectativas de sua história pós-parto, entremeado pela possibilidade de lidar com sua própria finitude e/ou a daquele
que está gestando. Como a disposição “se manifesta numa tonalidade afetiva, constituindo-se como um modo de
ser da abertura do ser-no-mundo” (Santos, 2016, p. 159),
o medo se revela como um modo possível da narradora-colaboradora ser tocada pelo que experiencia com-os-outros no mundo:
Maria Eduarda - O medo nunca ficava longe de mim...
a gestação toda! [...] O medo de perder o transplante... o medo da criança ter problema por causa do uso
exagerado de remédios! Quer dizer... o uso necessário!
Eu tomo duzentos e vinte comprimidos por mês! Vem
um monte de coisa na sua cabeça... se a criança vai
nascer normal... se vai nascer e vai sobreviver devido
a tomada de muitos medicamentos![...] Quando eu fiz
meu pré-natal e tive a minha filha... eu quis fazer a laqueadura de trompas! Mas o meu nefrologista não liberou! Eu não queria me arriscar novamente! Eu achava que por eu ter uma filha só... já bastava! Porque eu
tenho uma filha para criar... e eu não queria que na
próxima gestação... eu passasse por tudo isso de novo!
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 3-14, jan-abr, 2018
Relatos de Pesquisa
[...] não se ocupa das necessidades concretas do outro,
mas direta e imediatamente do seu existir enquanto
livre de todas as normas. [...] Cuidar verdadeiramente
do outro não significa, portanto, nem racionalmente
normatizá-lo, nem socializá-lo. Tampouco quer dizer
inserir o outro numa história coletiva. O futuro aberto pelo cuidado não promete um final salutar, apenas possibilita o agir na situação presente. (p. 66-67)
Maria Eduarda - Eu ia certinho para as minhas consultas! Fiquei sendo acompanhada pelo nefrologista
e pelo obstetra!
-
A maneira como a mulher vive a gestação após um
transplante renal é única, pois cada uma dará seu próprio sentido ao caminhar enquanto gestante submetida ao
transplante renal. A singularidade da experiência é construída por intermédio da sua história de vida, do apoio familiar e social que recebe, da sua condição fisiológica, do
acompanhamento que teve junto à equipe de saúde, dos
seus projetos de vida. Apesar da experiência da gestação
após o transplante renal ser singular, podemos encontrar
pontos em comum nas narrativas de Eliana e Maria Eduarda, como por exemplo, a presença do cuidado, tanto de
si quanto do outro, no contexto da gestação e da IRC. Esse
destaque para o cuidado leva-nos ao pensamento de Heidegger (1927/2002) ao compreender o cuidado como condição originária do ser-aí. Entretanto, assinalamos que, no
decorrer dessa análise, apresentaremos os modos ônticos
do cuidado se manifestar, neste estudo.
Heidegger (2002) faz um desdobramento do cuidado
(Sorge) em ocupação (Bersogen) com os entes que estão
as nossas mãos, e em preocupação, solicitude (Fürsogen)
para com os outros. Segundo Loparic (2013), Sorge é “o
ter-que-ser que tem o sentido de ter que se responsabilizar ontologicamente e onticamente por si mesmo, pelos
outros seres humanos e pelo mundo” (p. 44-45). Pode-se
compreender que pela ocupação há um cuidado superprotetor, que desresponsabiliza o humano de sua tarefa
de cuidar do seu poder-ser, enquanto que, a preocupação,
como diz Duarte (2013), “o pôr-se diante do outro não suprimiria nem supriria suas ocupações e necessidades, mas
cuidaria do outro ao restituir-lhe ao próprio cuidado de
si” (p. 67). Ou nas palavras de Loparic (1995), a solicitude
Essa forma de pensar o cuidado vai de acordo com o
que traz Potes, Pelaez e Escobar (2011): “o cuidado se encontra na raiz primeira do ser humano, tudo o que fará irá
sempre acompanhado do cuidado e impregnado de cuidado. O cuidado é uma dimensão ontológica, originária”
(p. 134). Assim, o ser humano é cuidado. Entretanto, onticamente, existem modos desse cuidado se manifestar e
o que, muitas vezes, poderia ser tomado como ocupação,
como as consultas médicas, o aguardar o tempo “adequado” para engravidar, pode ser acompanhado de preocupação no cuidar de si e do outro, como expressividade ôntica da condição humana de ser no mundo como cuidado:
Artigos
Eliana - O médico disse... “olha... a gravidez a gente
não aconselha não... só a partir de dois anos de transplante!”... E foi justamente nesta época que eu engravidei! [...] Fiz todos os tipos de exames! Qualquer coisa que eu sentia vinha aqui... qualquer dor de cabeça
eu vinha aqui!
Viviane R. de F. A. A.; Telma C. de A.; Suely E. de B. S.
Artigos
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Relatos de Pesquisa
Será que o medo revelado a faz apropriar-se do cuidado de si e do outro? Será a busca da laqueadura de trompas
um modo de manifestação do cuidado de si e do outro?
Mas, apesar de Maria Eduarda pensar na possibilidade da
laqueadura considerando não só a experiência da gestação, mas, também o devir, já olhando para a pós-gestação,
o seu depoimento não encontrou ressonância na “ordem/
decisão médica”, e o procedimento não foi realizado. Entretanto, a atitude em “ser-cuidado” revela sua responsabilidade consigo e com a filha que iria nascer desvelada
de forma significativa no seu pedido/escolha pela laqueadura de trompas. Por ter conhecido diversos riscos antes
e após a gravidez, ela não queria arriscar outra gestação.
A experiência de Maria Eduarda nos remete a Caldas et
al. (2013), quando afirmam: “Na gestação de alto risco [...]
há o acréscimo de diversas outras emoções vinculadas à
condição clínica. O fator de risco implica medo real sobre
si mesma e em relação ao próprio filho” (p. 71).
O medo expressado não é fantasmático e não faz parte apenas da experiência da gestante transplantada renal.
A sua família também vivencia o sentimento de medo
durante a gestação. Para a paciente e sua família, a IRC e
seu tratamento representam uma crise vital significativa,
elas não costumam estar preparadas para as mudanças físicas, para os períodos mais instáveis e para a incerteza
do futuro. Não só a paciente, mas também a família conhece perdas diversas durante a história do adoecimento
(Bruscato, 2004). A gestação no contexto de IRC gera angústia, dúvidas e receios à família, que não espera e nem
cobra do casal uma gestação, pois acredita que esta pode
colocar em risco a saúde da mulher transplantada. Antes de a gestação acontecer, parece não existir lugar para
ela no seio familiar. A família, então, parece não desejar a
gestação do casal, não projetar, não esperar. Ao receber a
notícia da gravidez, a preocupação e a desaprovação dos
outros, muitas vezes, podem ser compreendidos como
um modo do cuidado se manifestar?
Eliana - A minha mãe não queria que eu engravidasse!
Ela disse... “você tá louca? Isso não podia acontecer!
Você é transplantada!” Ela não queria nem acreditar
que eu estava grávida... ela não queria acreditar! Porque ela sabe do meu sofrimento! Depois do transplante eu peguei um tipo de bactéria [...] Eu passei quase
dois meses aqui internada! Nessa época eu sofri... sofri
muito. Eu não tinha mais nem veia para furar no meu
braço. Então ela ficou com medo disso aí! Sabendo do
meu sofrimento... acompanhando todo o meu sofrimento e não queria mais que eu passasse por isso! Então
ela ficou assim... não queria que eu engravidasse...
Dizia que depois eu adotava uma criança... já que eu
queria tanto! [...] A gente escondeu a segunda gravidez... só vim dizer quando estava com uns três meses!
A minha irmã soube... mas não fui eu que contei... foi
o meu esposo! Aí eu recebi uma bronca dela... “Você
engravidou de novo? Você não deveria ter feito isso...
deveria ter evitado!” Nem a minha mãe sabia! Ela
disse... “não era pra ter acontecido... você já tem um
menino... pra quê você foi engravidar de novo?” A família fica preocupada!
Podemos ver nessa narrativa que a falta de informação
da família sobre a gestação em mulheres transplantadas
renais parece interferir no modo como os familiares lidam
com o fenômeno da gravidez. Essa se transforma no início em um “drama familiar”. Entretanto, num olhar pela
fenomenologia existencial, podemos compreender que
a atitude familiar de receio/temor, de aparente não aceitação, reveste-se de uma pré-ocupação com o modo da
gestante viver sua existência, desvelada na disposição de
espantar-se com a confirmação de uma gestação de risco.
Como sinaliza Rodrigues (2006),
[...] a disposição do temor, por se dar na impropriedade, é muito mais comumente reconhecida do que
a angústia, embora seja esta que, através do desvio
da de-cadência, torne possível o temor. O que se teme é sempre um ente que vem ao encontro dentro do
mundo. De forma diversa da angústia, na qual o pelo
que se angustia é indeterminado, no temor, o que se
teme possui o caráter de um determinado dano que
ameaça o ser. (p. 61)
Além disso, podemos pensar que a vivência dessa pré-ocupção, revela a condição humana de ser-no-mundocom-outros, pois o “O mundo da pre-sença é mundo compartilhado. O ser-em é ser-com os outros. O ser-em-si
intramundano destes outros é co-presença” (Heidegger,
1927/2002): (p. 170). Nessa situação, fica claro que não
devemos acompanhar apenas a mulher grávida, mas a
família grávida:
Maria Eduarda - Todo mundo ficou preocupado!
A primeira pergunta... “e você pode ter filho? Como é
que vai ser a sua vida? Você vai perder o transplante?
A criança vai nascer normal?” A minha família aceitou... mas foi aquela coisa... “meu Deus!!... ela é louca!... não poderia ter acontecido!...ela deveria ter evitado!” Até porque ninguém tinha essa experiência...
nem eu conhecia ninguém... nem tinha ninguém na
família assim! Ela ficou assustada!
Eliana - Porque o povo fazia medo, né? Transplantada...
[...] “mas Eliana, você transplantada... engravidar de
novo?” Isso fazia medo, né?
Será que a ameaça é algo concreto e determinado como poder ou não poder engravidar? Pensamos na possibilidade do humano angustiar-se por seu próprio ser-no-mundo-com-outros, por seu próprio poder-ser-no-mundo-com-outros. Na realidade o homem foge da estranheza
de deparar-se com o ser projeto, mesmo que situado nu-
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Mulheres Transplantadas Renais: um Olhar Fenomenológico Existencial para a Experiência da Gestação
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Eliana - Eu queria muito!... Não pode amamentar por
causa do medicamento que a gente toma!
Notoriamente, o viver nos coloca inusitadamente no
campo experiencial, do conhecido ao desconhecido, do
abrigo ao desabrigo. Vale dizer, na solicitação de elaboração de uma vivência de algo novo, inusitado, sem experiências anteriores que possam servir de referência, como
por exemplo, como lidar com a amamentação por encontrar-se na situação de ser uma mulher transplantada renal.
Deparar-se com a falta, com o que não “está à mão”, com
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Maria Eduarda - Quando eu soube que não ia amamentar... fiquei triste! Essa experiência de amamentação
eu não tenho! Relatam que você fica mais próxima do
bebê... eu acredito que sim! Porque eu não amamentei... eu acho que a gente perde um pouco do laço! Eu
sinto muito não ter amamentado (silêncio)! [...] Era
como se eu tivesse que afastar a minha cria de mim
e com isso você não se sente bem! Eu sentia como se
tivesse fazendo uma maldade com ela! Mesmo sabendo que não podia dar o meu leite! Quando eu ia tomar banho... derramava muito leite... e eu pensava...
“meu Deus... eu nem posso dar a minha filha... nem
posso doar... tenho que jogar fora! Essa é a parte que
eu acho mais difícil!
Relatos de Pesquisa
um acompanhar o outro olhando para a trama de sentido
que se constitui entre os entes que vêm ao encontro do
homem no mundo? Pensamos que acompanhar pela via
do cuidado como pré-ocupação possibilita um recolher
do pedido das pacientes, abrindo-se para junto com elas,
compreender a demanda desvelada na trama de sentido
constituída na coexistência de ser-no-mundo-com-outros.
Será que apenas um cuidado por ocupação, revelado pela
via da informação/conhecimento, dá conta dos medos/temores já anunciados neste estudo? É sabido que, segundo
Heidegger (1927/2002), o ser-aí se encontra lançado a estados de humores/ânimos, por meio dos quais se inclina
a fugir, uma vez que tem de suportar o peso de sua existência. O homem teme, pois é ele mesmo afetado, já que
o medo se volta para quem teme e não para o que teme.
Assim, em meio às ocupações do cotidiano, deparamo-nos
com um certo tédio e não sabemos diante de que nos angustiamos. Começamos a procurar cada vez mais o contato com os entes e as coisas ao nosso redor, e assim, nos
ocuparmos na busca de sair desse estranho emaranhado
em que nos encontramos e, com isso, mergulhamos cada
vez mais na angústia.
Compreendemos, assim que apenas as informações
técnicas sobre a amamentação ou qualquer outro aspecto
próprio de uma gestação, em especial a gestação de mulheres transplantadas renais, e seus prováveis benefícios
ou malefícios, considerando a IRC e seu tratamento, não
foram suficientes para cuidar das gestantes diante dos desejos e sentimentos que as fragilizavam existencialmente:
Artigos
ma tradição, numa cultura. Angustia-se com o responsabilizar-se em encaminhar sua destinação. Vale apontar
que Heidegger (1927/2002) pensa a angústia como fenômeno existencial da finitude humana. Assim, a angústia
reveste-se de uma marca eminentemente humana e, desse modo, só o homem se angustia.
Por outro lado, considerando o que foi revelado nas
narrativas citadas, é relevante que a mulher gestante
submetida anteriormente ao transplante, juntamente
com sua família, sejam acompanhadas por uma equipe
de saúde multiprofissional de enfoque interdisciplinar.
Essa equipe pode orientar e apoiar a gestante e sua família, acolhendo suas dúvidas, sentimentos, experiência do
adoecimento e da gravidez, à luz da sua história de vida.
A gestante e sua família devem ser mantidas informadas e instruídas quanto aos comportamentos e atitudes
que precisam ter no período gravídico para obter maior
bem-estar (Brasil, 2012). A família deve ser preparada para fornecer um suporte adequado a esta gestante e para
isso, precisa também de cuidados. No acompanhamento
de uma gravidez de alto risco, como é o caso da gravidez
após transplante renal, a equipe de saúde precisa atuar
com objetivo de diminuir os riscos aos quais a gestante,
o feto e a família estão expostos. Ela precisa estar preparada e possibilitar um espaço para abordar os inúmeros
fatores que surgem e que podem afetar negativamente o
processo da gestação.
A interdição à amamentação aparece como um fator
de risco psicoemocional de grande relevância na experiência da gestação das narradoras-colaboradoras. Durante
a gestação, ambas as entrevistadas foram informadas pela
equipe de saúde sobre a contraindicação da amamentação
em mulheres transplantadas renais, tendo como justificativa a exposição do recém-nascido aos imunossupressores,
medicamentos aos quais ele já esteve submetido durante
a fase intrauterina. Porém, não existe um consenso sobre
essa questão. Segundo Ribeiro (2010), alguns relatos de
casos mais atuais defendem que o uso de determinados
imunossupressores é compatível com a amamentação,
alegando/demonstrando/indicando que os bebês crescem
sem alterações no desenvolvimento. Contudo, é preciso
considerar com atenção que drogas estão sendo usadas e
como se dá as interações destas.
As narradoras-colaboradoras foram informadas sobre
a impossibilidade da amamentação, mas a elas não ofertaram um espaço de acolhimento das suas expectativas e
sentimentos relacionados a este fator de risco psicoemocional. Bispo e Bispo (2010) asseguram que “o aleitamento
materno além dos seus aspectos biológicos ligados a nutrição e a saúde do recém-nato, possui também aspectos
psíquicos, subjetivos e emocionais a serem observados
nas mães interditadas de amamentar, já que esta poderá
trazer consequências psicológicas” (p. 4).
Sem dúvida, esse olhar imbuído de um conhecimento
científico natural, reveste-se de um cuidado que se encontra no campo do ôntico. Mas, como pensar o cuidado,
Viviane R. de F. A. A.; Telma C. de A.; Suely E. de B. S.
o aparecimento a impertinência, deixa a narradora-colaboradora paralisada sem saber o que fazer nos remetendo
a Heidegger (1927/2002), ao afirmar que “Ficar sem saber
o que fazer é um modo deficiente de ocupação, que descobre o ser simplesmente dado de um manual” (p. 116).
Encontrar-se diante do que “não está no manual” perturba, obstruindo o caminho para a ocupação e lançando-nos
ao encontro da estranheza, do não se sentir em casa, da
inospitalidade do mundo, da angústia. Nessa direção, de
acordo com o referido autor, a angústia não é compreendida como sintoma ou patologia, mas uma condição do
existir humano. Boss (1981) ressalta que, “[...] não é a cabeça, e o intelecto dos nossos pacientes, mas seu coração
que está trancado e estrangulado pela angústia.” (p. 42).
Mergulhada nas solicitações e envolta aos afazeres de
uma puérpera, estaria Maria Eduarda, tentando evitar o
desabrigo da angústia? Em sendo assim, ao aproximar-se
do desconhecido familiar, da inospitalidade, abre-se para avizinhar-se de si, bem como de suas possibilidades
mais próprias.
Por outro lado, vemos, também, que durante a gravidez, a questão da amamentação deve ser posta e tratada
de forma atenciosa e responsável pela equipe de saúde,
pois é nesse período que a mulher começa a entrar em
contato com a impossibilidade de amamentar e precisa
ser orientada para enfrentar essa situação durante a gestação e após o parto:
Maria Eduarda - Enquanto ela estava na minha barriga... eu não pensei em como seria depois que ela nascesse! A gente acha que é fácil... “não... você não pode
dar de mamar... você vai enfaixar o peito... você vai
desprezar o leite!” A gente acha que assimila... mas na
hora que põe a criança no braço e vê que ela tá procurando... você sabe que ela tá sentindo que o peito está
ali e o leite... e eu não posso dar! Na gestação eu não
imaginava que ia ser difícil assim!
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Relatos de Pesquisa
Eliana - Ao chegar em casa... foi aquela coisa, só alegria! Só coisa boa, só alegria. Aí eu não posso amamentar [...] Eu queria muito, mas eu já sabia que não
podia. Não era só eu, eram todas as transplantadas.
No trânsito por entre pré-gestação, gestação e pós-parto, surge a questão da espacialidade e da temporalidade.
Ambas se impõem como constituintes da condição humana. Importa esclarecer que, para Heidegger (1927/2002),
a espacialidade afastando-se da ideia de um local fixo,
concreto, sendo vista como um modo do homem existir
no mundo com-outros, como ele se situa em sua existência; já a temporalidade longe da ideia de períodos demarcados pelo presente, passado e futuro, revela que o ser
humano pode compreender a sua própria história, pode
modificá-la e, por isso pode ser visto como ser temporal
e histórico. Nessa perspectiva, “Somente quando nossa
existência puder ser articulada numa história e tivermos
testemunhas para ela, o sentido que fazemos na vida se
desencobrirá” (Critelli, 2012, p. 69-70).
Ambas as narradoras-colaboradoras referem-se saber,
anteriormente, da impossibilidade de amamentar. Sabemos que, ao longo do processo de adoecimento causado
pela IRC, o doente renal crônico e sua família conhecem
diversas perdas, como a perda de uma maior autonomia
e liberdade, muitas vezes da autoestima, perdas econômicas, e também as limitações hídricas e alimentares, etc.
Entretanto, pela via da temporalidade, surge a demanda
de ter que se apropriar dessa situação como uma remissão as suas historicidades, como modo de localizarem-se
e encontrarem-se a partir de um contexto situacional,
abrindo possibilidade para elaborar experiência. Desse
modo, “historicizar-se não é simples narração de fatos
sequenciais, mas a elaboração da experiência de existir, lançando-me ao mesmo tempo em que sou lançado”
(Santos, 2005, p. 139).
A impossibilidade de amamentar, mesmo que sabidamente conhecida, parece ser sentida como mais uma perda e surge imbricada com o inesperado de surpreender-se
com a ausência da amamentação. O tempo cronológico
sinaliza que já é hora de amamentar. No entanto, a situação de ser uma mulher transplantada renal dá existência
ao aspecto existencial constituinte da condição humana,
o cuidar de ser, embora na experiência das narradoras-colaboradoras, a impossibilidade de amamentar aumente
a vivência dessas perdas e se desdobre em outros modos
de lidar com esse acontecimento:
Maria Eduarda - Ela foi criada até os dez anos sabendo que mamou! Sabe por que eu não disse antes? Porque como todos meus sobrinhos mamaram... Eu achei
melhor não contar... pra ela não colocar na cabeça...
“eles mamaram e eu não mamei”! Eu espero que ela
tenha uma experiência normal! A minha experiência
não foi normal por causa da minha situação... da minha saúde!
Na história de Maria Eduarda, a privação do aleitamento materno manteve-se escondida da filha até pouco
tempo atrás, por ter sido vivenciada por ela como uma
experiência de sofrimento e ameaçadora de sofrimento
para sua filha. Se de um lado, poderíamos compreender
essa sua atitude como uma “enganação/negação” ao outro
de aspectos próprios de sua história, de outro, podemos
compreender ao pensar o outro como coexistente, como
coparticipante do ser-no-mundo que, “[...] os outros são
encontrados emergindo do mundo no qual o ser-o-aí habita referindo-se a ele através do cuidado” (Heidegger, 1981,
p. 35), mesmo que esse cuidado seja experienciado como
um cuidado descuidado. Como diria Duarte (2013, p. 69),
“Não se trata propriamente de amor, mas de acolhimento
amistoso [...]. Heidegger nos mostra que, no resguardo de
nossa precariedade constitutiva, o cuidado de si é também um cuidado do outro.”.
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 3-14, jan-abr, 2018
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Mulheres Transplantadas Renais: um Olhar Fenomenológico Existencial para a Experiência da Gestação
11
Esse depoimento nos impõe outra questão: quem diz
da necessidade de uma escuta psicológica? Quem deve
expressar a pró-cura? Pensar na atitude de pró-cura nos
remete a origem latina da palavra cura, como cuidar. Sob
esse aceno, “a atitude clínica como pró-cura é, por extensão, possibilidade de ações tanto para o cuidado, quanto
para o modo como se experiencia esse processo de pró-cura.” (Santos, 2005, p. 89). Nessa direção, “o pôr-se diante do outro não suprimiria nem supriria suas ocupações
e necessidades, mas cuidaria do outro ao restituir-lhe ao
próprio cuidado de si” (Duarte, 2013, p. 67).
Por outro lado, outro aspecto merece nossa atenção, e
outra inquietação aparece: o cuidado psicológico muitas
vezes negligenciado, fere o princípio bioético da beneficência? O princípio da beneficência deve ser prioridade
para a promoção da saúde. Esse princípio dá ênfase ao
cuidado disponibilizado pela equipe de saúde. Existe um
consenso dos profissionais da saúde de que o bem deve ser feito para garantir o cuidado humanizado, porém
existem dificuldades em definir o que realmente deve ser
considerado um bem para o paciente e quais decisões
e encaminhamentos devem ser feitos para garantir saúde através do cuidado integral. Segundo Martin (2004):
A beneficência precisa olhar para o que é de interesse do doente não apenas no nível físico, mas também
nos níveis mental, social e espiritual. As angústias,
os medos, a solidão do doente também são fatores a
pesar. Nesta perspectiva, é importante tratar não apenas a doença, mas também a pessoa que está doente,
e a beneficência é o conjunto de todos os fatores que
levam ao bem-estar do ser humano. (p. 42)
Uma vez compreendido que existem riscos psicoemocionais e sentimentos que fragilizam a mulher pós-trans-
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 3-14, jan-abr, 2018
Relatos de Pesquisa
Diante dessas questões, pensamos que elas podem
aparecer como uma maneira de sustentar a angústia do
ser lançado, como uma possibilidade de manter a “esperança” da existência frente à fugacidade liquidificante do mundo contemporâneo, e aqui, especificamente
frente à fugacidade do próprio existir. Por esse prisma,
a narradora-colaboradora revela que a experiência da
gestação pode ser vivida como um sinal de desamparo
diante da transitoriedade do próprio existir, da inospitalidade do mundo, mantendo-a acuada para dar conta
do seu acontecer humano. Barreto (2006) assinala que a
angústia, “Diz respeito a entregar-se à responsabilidade
de ser: de acolher o modo de ser propriamente ou impropriamente” (p. 12), o que converge com a ideia que a
angústia se manifesta no lançamento do ser-projeto (Heidegger, 1927/2002).
A angústia revelada pelo “não saber”, pela ausência
de controle do que está acontecendo e do que pode acontecer vai aparecendo como acontecimento disruptor para que a narradora-colaboradora ponha seus temores em
questão. Estaria aqui uma abertura para refletirmos sobre
a possibilidade de uma escuta psicológica à gestante e a
sua família? Para Caldas et al. (2013), as intercorrências
durante a gravidez fragilizam a mulher e a sua família, levando-as, muitas vezes, a um sofrimento psíquico. Freitas
e Cosmo (2010) argumentam que o trabalho do psicólogo
ao lado das pessoas que são afetadas pela IRC é necessário “para garantir um atendimento mais humanizado,
Maria Eduarda - O medo foi durante a gravidez toda!
Não tive acompanhamento de psicóloga... até porque
eu acho que o médico achou que não era necessário!
-
Maria Eduarda - [...] depois que ela nascer... como é
que eu vou fazer? Porque você tem que elaborar toda
a sua vida novamente! Dá um sentimento de medo...
de insegurança... Como enfrentar... depois que ela
nascer? Você pensa... “quem vai tomar conta? Como
eu vou trabalhar?” Por eu ser transplantada... como é
que ia ser a minha vida? Assim... é... um turbilhão de
sentimentos!!
que reconheça a singularidade de cada paciente [...] e que
faça emergir dentro dos recursos pessoais a capacidade
de ressignificação da própria vida” (p. 31). Nas instituições de saúde – espaço social favorável ao compartilhar
das experiências singulares e coletivas – o sofrimento
psíquico está sempre presente e o que está em questão é
a possibilidade da vida. Nesse espaço, o lugar do psicólogo deve está posto enquanto profissional que possibilita a narrativa para que o cuidar de si, apropriando-se de
seus próprios caminhos, possa ser acompanhado. Logo,
“[...] a clínica como cuidado remete aos modos possíveis
de cuidar num determinado tempo e numa determinada
situação.” (Barreto, 2008, p. 5).
Entretanto, indagamos: há um reconhecimento da
importância do trabalho do psicólogo junto às mulheres
gestantes pós-transplantadas renais?
Artigos
As narrativas de Maria Eduarda e de Eliana nos fazem pensar que diante das surpresas de uma gestação em
mulheres transplantadas renais vivenciam, chegando até
a pensar numa “não normalidade”, a mulher transplantada renal traz consigo uma forte demanda de escuta,
desde o diagnóstico da IRC até o transplante. Durante
a gestação, essa demanda pode se acentuar, visto que a
gravidez é um período onde a mulher e sua família passam por diversas tensões, permeadas por mudanças não
apenas fisiológicas, mas também psicossociais provocando mudança e novas composições de papéis sociais,
(Maldonado, 2002), e acrescentamos as mudanças existenciais, bem como outros modos de ser-no-mundo. Na
narrativa de Maria Eduarda, podemos encontrar algumas perguntas que sinalizavam a mudança que estava
acontecendo em sua vida e, junto com as mudanças as
inquietações que devem ser consideradas com atenção,
serenidade e cuidado:
Viviane R. de F. A. A.; Telma C. de A.; Suely E. de B. S.
plantada renal na sua experiência da gestação e sendo a
beneficência um princípio bioético norteador da praxis,
a oferta dos cuidados psicológicos se faz necessária, visando “o bem” em prol da mulher transplantada gestante, e que, desta forma, o cuidado possa ser experienciado.
Artigos
-
Relatos de Pesquisa
Considerações inais
Ao longo do trabalho foi possível perceber que a gestação vivida após transplante renal é singular e única,
uma vez que ela se tece partindo da história de vida de
cada mulher, do seu modo de enfrentamento do processo saúde-doença, do sentido que dão à sua experiência
e ao seu caminhar. Essa gestação também é plural, pois
cada mulher a vivencia com os vários “outros” que são
no mundo com ela: família, cultura, sociedade, etc. Nas
narrativas de Eliana e Maria Eduarda, foi revelado que o
modo delas de “ser-cuidado” mostrou-se na maneira como
enfrentaram o fenômeno da gestação e IRC. Esse cuidado
orientou suas atitudes e decisões, em busca de um maior
bem-estar para elas e suas famílias. O cuidado de si e do
outro permeou todos os acontecimentos numa pró-cura
– para cuidar de existir no mundo-com-outros.
As colaboradoras-narradoras expressaram em seus
depoimentos o sentimento de medo, experienciado por
elas ou pela família durante toda a gestação. O medo era
referente às possibilidades de perdas, como por exemplo, a perda do próprio enxerto, ou os riscos para o bebê
e para a gestante, que a gestação considerada de alto risco
representa. Esse medo foi norteador de algumas escolhas
durante e após o período gravídico, tais como: a decisão
pela laqueadura de trompas ou a escolha de viver os primeiros meses da gestação de forma mais reservada, sem
contar para a família da espera do segundo filho. O medo
presente na família, referido pela narradora-colaboradora, foi intensificado pela falta de informação em relação
à gravidez associada ao transplante renal e ao pouco acolhimento que seus familiares tiveram para expressar seus
sentimentos e dúvidas.
A experienciação desses medos remete-nos a Boss
(1981) ao apontar que a angústia nos coloca diante de
questões eminentemente singulares, cujo modo de manifestação expressa uma compreensão de sentido: “[...]
cada angústia humana tem um ‘de que’, do qual ela tem
medo e um ‘pelo que’ pelo qual ela teme” (p. 26, aspas do
autor). Ontologicamente, a angústia como fenômeno existencial, é vista como condição humana, se manifestando
onticamente pelo medo/temor que “[...] vela, ao mesmo
tempo, o estar e ser-em perigo na medida em que deixa
ver o perigo a ponto da pre-sença precisar se recompor
depois que ele passa” (Heidegger, 1927/2002, p. 196).
Emaranhada na angústia diante do risco eminente do
morrer, as narradoras-colaboradoras deparam-se com essa
possibilidade irrevogável da sua existência – a sua própria
finitude. Como diz Bruns e Trindade (2001),
Em sua vida diária, o Dasein vive de tal forma mergulhado no mundo que pouco pensa acerca de sua existência, do modo como a vive. A morte é vista, fugazmente, como o final de sua vida, o que o amedronta,
pois é vista como um impedimento para tudo o que
ele almeja fazer. (p. 74)
Esta pesquisa apontou, por fim, para uma importante
demanda para a Psicologia, vinda tanto da gestante quanto da sua família. O psicólogo é convocado a inclinar-se
sobre a experiência do fenômeno da gestação após transplante renal, que se encontra permeada pelo sofrimento
psíquico. Há de estar atento aos modos como o homem
se mostra assumindo a “ética do cuidado”, que segundo
Santos (2013), “tem a ver com a ‘preocupação’ e a responsabilidade que temos em relação ao cuidado com o outro” (p. 102, aspas do autor). O psicólogo pode contribuir
com os cuidados à mulher transplantada renal gestante
e sua família debruçando-se em direção a essa mulher e
sua família para escutá-las na experiência do sofrimento. A oferta da atenção psicológica faz parte da construção de uma prática norteada pelo princípio bioético da
beneficência e é essencial para a promoção da qualidade
de vida das mulheres com IRC em processo da gestação.
Nesse contexto, o psicólogo, abordará questões que, muitas vezes, são evitados pela equipe e que, se não recolhidas e cuidadas podem intensificar o sofrimento psíquico.
As possibilidades compreensivas trazidas neste estudo
não foram esgotadas, elas são apenas o início de uma leitura que pode ser ampliada com novas pesquisas. Ainda
há muito a ser pensado e discutido acerca do complexo
fenômeno da gestação após transplante renal.
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Viviane rodrigues de Figueredo Azevedo Amaral - Psicóloga, com Mestrado em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco;
Psicóloga especialista na área da saúde pelo Hospital das Clínicas - UFPE.
Membro da Société Francophone de Néphrologie Dialyse et Transplantation, Membro do Instituto de Bioética e Biodireito de Pernambuco.
Psicóloga na Clínica de Diálise do Cabo. Email:
[email protected]
Suely Emilia de Barros Santos - Psicóloga. Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Professora
Adjunta da Universidade de Pernambuco (UPE). Coordenadora da Residência Multiprofissional em Saúde Mental com Ênfase no Cuidado do
Usuário e da Família. Membro externo do Comitê Científico de Iniciação
à Pesquisa (CCIP) da UNICAP. Email:
[email protected]
Recebido em 04.04.2015
Primeira Decisão Editorial em 07.03.2016
Aceito em 22.05.2017
Artigos
-
Relatos de Pesquisa
Telma Costa de Avelar - Possui Graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco e Mestrado em Psicologia Cognitiva pela Universidade Federal de Pernambuco; Professora Assistente da Universidade Federal de Pernambuco e Tutora no Programa de Residência
Multiprofissional em Saúde do Hospital das Clínicas da Universidade
Federal de Pernambuco. Email:
[email protected]
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 3-14, jan-abr, 2018
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Sentidos das Oficinas Terapêuticas OcupacionaisNº
do DOI:
CAPS10.18065/RAG.2018v24n1.2
no Cotidiano dos Usuários: uma Descrição Fenomenológica
senTidOs das OFicinas TerapêuTicas OcupaciOnais
dO caps nO cOTidianO dOs usuáriOs:
uMa descriçãO FenOMenOlógica
Senses of CAPS Therapeutic Activities in the Daily Life Users: a Phenomenological Description
Signiicados de las Actividades Terapéuticas de lo CAPS en la Vida Diária de los Usuários:
una Descripción Fenomenológica
ondina Pena PeReiRa
ana CaRolina RiBas Palma
resumo: O objetivo deste artigo é o de apresentar os resultados da investigação realizada no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS)
da cidade de Unaí, na qual se buscou conhecer a percepção dos usuários acerca dos sentidos das atividades terapêuticas ocupacionais em seu cotidiano, buscando o seu ponto de vista na constituição dos sentidos dessa participação. Pretende-se nele descrever
fenomenologicamente o relato dos participantes. Além da observação empírica, essa pesquisa apoia-se em uma referência bibliográfica que evidencia o estatuto da loucura no mundo atual e a forma como a psiquiatria pretende tratá-la. Entre tais referências,
está a história da loucura e do processo de transformação da loucura em doença mental, e como esta se tornou objeto do código
médico. Os relatos dos participantes sobre suas vivências cotidianas da loucura evidenciam que eles têm muito a dizer sobre seu
universo, assim como sobre a relação entre razão e loucura.
Palavras-chave: Sentidos; Fenomenologia; Oficinas Terapêuticas Ocupacionais; CAPS.
Abstract: The objective of this paper is to present results of the research carried out at the Psychosocial Care Center (CAPS) of
City of Unaí-MG, in which we sought to know the users’ perception about meanings of occupational therapeutic activities in their
daily life, seeking their point of view in the constitution of meanings of this participation. It intends to describe in it phenomenologically report of the participants. In addition to empirical observation, this research is based on a critical bibliographical reference regarding the status of madness in the present world and the way Psychiatry intends to treat it. Among such references is
the history of madness as the process of transforming madness into mental illness, and how it became object of medical code. The
participants’ reports of their everyday experiences of madness, show that they have much to say about their universe, as well as
about the relationship between reason and madness.
Keywords: Meanings; Phenomenology; Occupational Therapeutic Activities; CAPS.
15
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 15-23, jan-abr, 2018
-
Este artigo pretende descrever fenomenologicamente
o relato dos usuários do Centro de Atenção Psicossocial
(CAPS) de Unaí-MG acerca dos sentidos das oficinas terapêuticas ocupacionais em seu cotidiano. Descrever os
relatos dos usuários, nesta pesquisa, foi uma forma de
buscar evidenciar sua percepção, e suas vivências em
relação às atividades do CAPS desenvolvidas com eles,
assim como evidenciar os conhecimentos que os sujeitos
certamente possuem sobre sua condição, o que pode contribuir para melhorá-la.
Apoiamo-nos aqui em investigação realizada no citado CAPS, com o acompanhamento, observação e participação em 28 seções de atendimento, com a presença de
08 usuários e 02 profissionais. Além dessa base empírica,
apoiamo-nos em uma referência bibliográfica crítica com
relação ao estatuto da loucura no mundo atual, centrado
no isolamento social, e a forma como a psiquiatria pretende tratá-la. Uma psiquiatria que pouco valoriza a atenção
clínica biopsicossocial e enfatiza formas de isolamento e
segregação social como recursos terapêuticos principais.
Entre tais referências, está a história da loucura tal
como foi descrita e documentada por Foucault (1972),
Artigos
introdução
Relatos de Pesquisa
resumen: El propósito de este artículo es presentar los resultados de la investigación llevada a cabo em el Centro de Atención
Psicosocial (CAPS) de la ciudad de Unaí, que tenía como objetivo conocer la percepción de los usuarios acerca de los significados
de las actividades terapéuticas ocupacionales en su vida diaria, en busca de su punto de vista la constitución de los sentidos que
la participación. El objetivo describir fenomenológicamente a los participantes. Además de la observación empírica, le apoyamos
en una referencia bibliográfica en relación con la locura de estatus en el mundo de hoy y cómo la psiquiatría tiene la intención
de tratarlo. Entre estas referencias, es la historia de la locura el proceso de transformación de la locura en la enfermedad mental,
y cómo se convirtió en el objeto del código médica. Los informes de los participantes sobre sus experiencias diarias de mostrar la
locura que tienen mucho que decir sobre su universo, así como sobre la relación entre la razón y la locura.
Palabras-clave: Siginificado; Fenomenología; Terapéutico talleres ocupacionales; CAPS.
Artigos
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Relatos de Pesquisa
Ondina P. P.; Ana C. R. P.
na qual o autor mostra o processo de transformação da
loucura em doença mental, e como esta se tornou objeto
do código médico. Foucault considera que a psiquiatria
é o resultado de uma progressiva dominação e integração
do louco à ordem da razão, efetuada pelas práticas institucionais. Assim, ao contrário das histórias tradicionais
da psiquiatria, para o autor, não se trata de uma evolução do saber médico sobre a loucura, com uma possível
descoberta da essência da loucura, mas sua inscrição na
ordem disciplinar.
Dessa forma, ao entrar para o domínio médico, a loucura se tornou doença mental e nesta nova condição,
passível de análise e exame, a pessoa “louca” torna-se
objeto, podendo ser estudada e detida num internamento dito terapêutico, onde é ínfima a busca por tratamento clínico psicossocial, e onde são valorizadas a segregação e o isolamento social. Na sua nova condição asilar,
a loucura passa a ser percebida como ordem interna ao
sujeito, como uma alienação do sujeito ao mundo externo, e entra para a esfera de ação da psicologia. A loucura
tornou-se produto da razão, que a define a partir de seus
próprios referenciais.
Com essa mudança, a loucura não se define mais a
partir de si mesma, não encontra mais o espaço de alteridade necessário para isso. Antes da sua objetivação em
doença mental, a loucura era possível, pois o ambiente a
sua volta permitia a constituição do sujeito como louco,
uma vez que ele podia falar a linguagem de sua própria
loucura. Frente a sua apropriação pela razão, a loucura
tornou-se simplesmente doença mental.
Por muitos anos, a pessoa com diagnóstico de doença
mental foi tratada em instituições que tiveram o isolamento como princípio terapêutico fundamental. A rigidez das
regras e as excessivas medidas de segurança dessas instituições eram justificadas pela pretensa periculosidade
dos considerados doentes mentais. Neste sentido, havia
a necessidade de exclusão do louco, promovendo o afastamento do seu meio familiar, da sua comunidade e da
sua vida, o que acirrava a alienação.
Contrariando a tradição de isolamento social nas
práticas de convivência com a loucura, o CAPS utiliza estratégias e diretrizes alternativas com o intuito de
promover a inclusão social do louco, propondo uma
nova abordagem da loucura. A psiquiatria tradicional
com seus métodos de classificação e normatização está
focada na separação entre o “normal” e o “patológico”,
utilizando técnicas clássicas de segregação social e isolamento do louco.
Neste contexto de reinserção social e abordagem biopsicossocial, o CAPS oferece atividades terapêuticas ocupacionais que, segundo Brasil (2004, p. 20), constituem-se
como uma “das principais formas de tratamento oferecidos nos CAPS”. As oficinas terapêuticas ocupacionais são
atividades realizadas em grupo com a presença e orientação de um ou mais profissionais e monitores. Os tipos de
atividades realizadas nas oficinas podem variar conforme
a disponibilidade técnica do serviço, interesse dos usuários, e outras necessidades.
De acordo com a proposta, as oficinas terapêuticas
ocupacionais do CAPS podem ser expressivas, culturais,
geradoras de renda, entre outras modalidades, e tem por
objetivo fomentar uma maior integração social e familiar
dos usuários, a manifestação de sentimentos e problemas,
o desenvolvimento de habilidades corporais, a realização
de atividades produtivas, e por fim o exercício coletivo
da cidadania (Brasil, 2004).
A diferença entre as oficinas terapêuticas ocupacionais e as demais oficinas terapêuticas está na produção:
ali valoriza-se a confecção de simples objetos, em uma
produção individual, que se realiza, entretanto, dentro de
um grupo, com o qual cada indivíduo partilha know-how
e experiências de vida e de tratamentos. Nas demais oficinas terapêuticas podem ser valorizados outros elementos da relação terapêutica, tais como a expressão verbal,
musical, corporal, entre outras atividades (Brasil, 2004).
No CAPS de Unaí-MG, as oficinas terapêuticas ocupacionais acontecem semanalmente, organizadas pela terapeuta ocupacional do serviço com o apoio da instrutora
de artesanato. São atividades distribuídas em dois turnos
que envolvem artesanato com argila, tecido, papel, tintas, colagens, pintura em tela, desenhos, entre outras atividades artesanais e terapêuticas. Frequentam as oficinas
usuários de ambos os sexos, na faixa etária entre 18 e 65
anos, que receberam diferentes tipos de diagnósticos psiquiátricos de toda a equipe multiprofissional do CAPS.
A reorganização da assistência em saúde mental voltada para o novo paradigma da reforma sanitária tem no
CAPS seu serviço terapêutico básico, e dentro dos CAPS
encontram-se as oficinas terapêuticas que reúnem todos os
objetivos de reinserção social e restauração da cidadania
dos seus usuários. É nosso objetivo neste artigo verificar
a percepção dos usuários acerca dos sentidos das atividades terapêuticas ocupacionais do CAPS em seu cotidiano, buscando sempre o seu ponto de vista. A relevância
desse projeto está em enfatizar que são os usuários que
sabem, porque experimentam, tudo aquilo da experiência que os mantém presos aos códigos ou, pelo contrário,
tudo que os liberta e acata sua voz.
Materiais e métodos
Para esta pesquisa foi escolhido o método fenomenológico uma vez que a proposta fenomenológica se propõe
a descrever os fenômenos da vida. A fenomenologia busca a captação da verdade em seu estado nascente, sempre reconhecendo que a verdade encontra-se dentro dos
limites da perspectiva humana. Zilles (2012) afirma que
para Husserl a fenomenologia é o método apropriado,
que possui o rigor necessário para a luta contra o absolutismo do paradigma cientifico que empobrece os problemas humanos.
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 15-23, jan-abr, 2018
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A fenomenologia se propõe a descrever o fenômeno,
aquilo que aparece, que se manifesta ou se revela por si
mesmo, incluindo sentimentos, pensamentos, desejos
e vontades. O fenômeno é ao mesmo tempo um objeto
que se refere ao sujeito e o sujeito relativo ao objeto. Não
é produzido, é percepção. Para Amatuzzi (2001, p. 17),
a pesquisa fenomenológica “pretende dar conta do que
acontece, pelo clareamento do fenômeno.” Para este autor, a pesquisa fenomenológica pretende construir uma
compreensão de algo. Quando isto é feito com base numa análise sistemática de registros da experiência, ocorre
uma pesquisa fenomenológica no sentido mais empírico
do termo (Amatuzzi, 2001).
Neste trabalho, buscamos no relato dos usuários do
CAPS a experiência intencional, vivida. Enquanto pesquisa fenomenológica, o relato foi tomado na sua intencionalidade. Para tal, permanecemos ativas no campo, como interlocutoras presentes que solicitavam e acolhiam.
Amatuzzi (2001) afirma que na pesquisa fenomenológica
o pesquisador pode atuar como facilitador do acesso ao
vivido. O acesso ao vivido durante os relatos foi facilitado pelas pesquisadoras através das conversas durante as
oficinas terapêuticas. Assim, atuamos nas oficinas, através de conversas, estimulando os usuários do CAPS no
retorno a sua experiência concreta.
O município de Unaí-MG está localizado na região
noroeste do estado de Minas Gerais, com uma população
de aproximadamente setenta (70) mil habitantes, possui
uma rede assistencial de saúde com gestão prioritariamente municipal. O município conta com uma unidade
hospitalar municipal, quatorze unidades básicas de saú-
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Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 15-23, jan-abr, 2018
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Segundo Husserl, fenomenologia não é sinônimo de
fenomenismo no sentido de que tudo que existe seja
apenas um fenômeno da consciência. A reflexão sobre os fenômenos da consciência é, entretanto, o ponto de partida para examinar os diferentes sentidos ou
significados do ser e do existente à luz das funções
da consciência. Através deste método pretende chegar a um fundamento certo e evidente do ser e de suas
aparições. A tarefa da fenomenologia é, pois, estudar
a significação das vivências da consciência. (Zilles,
2012, p. 17)
de, um núcleo de apoio à saúde da família, um núcleo
de especialidades médicas, e uma unidade do centro de
atenção psicossocial (CAPS).
O local para realização do trabalho de campo desta
pesquisa foi o Centro de Atenção Psicossocial de Unaí-MG,
situado na Av. Transamazônica, 395, bairro Divinéia. Esta
unidade foi escolhida porque funciona conforme as normas preconizadas pelo Ministério da Saúde para atendimento de transtorno mental em CAPS, além de ter sido
o local onde puderam ser encontrados os participantes
desta pesquisa. Esta unidade funciona com equipe multidisciplinar, no período de doze horas diárias, em regime
de demanda espontânea.
As oficinas terapêuticas ocupacionais na unidade do
CAPS em Unaí acontecem de segunda a sexta-feira, nos
turnos matutino e vespertino, sob responsabilidade da
Terapeuta Ocupacional e da instrutora de artesanato. Nas
oficinas os usuários são distribuídos por afinidade com
a atividade a ser desenvolvida, por objetivos terapêuticos, e/ou por avaliações da equipe multidisciplinar. São
realizadas ali atividades de pintura, bordado, produção
de objetos artesanais, entre outras atividades ocasionais.
As oficinas do CAPS Unaí são destinadas à participação de adultos de ambos os sexos, oriundos do município
de Unaí. Nas oficinas podem ser atendidos os usuários que
solicitam a terapêutica ocupacional, os encaminhados por
outros profissionais do CAPS, e os selecionados pela terapeuta ocupacional durante os atendimentos individuais.
Oito usuários frequentam as oficinas terapêuticas ocupacionais regularmente. São seis mulheres e dois homens.
A faixa etária dos colaboradores da pesquisa variou entre
31 e 52 anos de idade. A renda média dos pesquisados
variou em torno de um a dois salários mínimos. Todos
receberam diagnóstico médico psiquiátrico e fazem tratamento no CAPS Unaí.
Os participantes dessa pesquisa foram oito (8) usuários do CAPS Unaí selecionados entre os frequentadores
dos grupos nas oficinas terapêuticas ocupacionais. Foram
selecionados os usuários que apresentaram disposição em
participar da pesquisa e estavam presentes nos encontros
do grupo. Foram selecionados os usuários que mais frequentam as oficinas conforme os registros da terapeuta
ocupacional, que apresentaram interesse e disponibilidade em participar do estudo, observando os critérios de inclusão e exclusão dos participantes, e sempre respeitando
os preceitos éticos em pesquisa da resolução 196/96 do
Conselho Nacional de Saúde (CNS).
Todos os participantes do estudo assinaram o Termo
de Consentimento Livre e Esclarecido. Esses documentos
de consentimento, assinados, foram arquivados pelas autoras para possíveis consultas posteriores. Para que este
trabalho tenha sido realizado no CAPS Unaí foi solicitada
uma autorização prévia da coordenadora da unidade. Esse trabalho foi submetido ao comitê de Ética em Pesquisa
da Universidade Católica de Brasília e aprovado sob o número de protocolo de aprovação 14745513.3.0000.0029.
Artigos
Husserl (2000) propõe a utilização do método fenomenológico sempre que se deseje pesquisar fenômenos.
Conforme o autor, o método fenomenológico é apropriado sempre que se deseja destacar as experiências vividas
dos indivíduos. O método enfoca fenômenos subjetivos, já
que para o indivíduo verdades essenciais acerca da realidade são baseadas em experiência vivida. O autor afirma
ainda que o importante é o fenômeno na forma em que
se apresenta e não nossos pensamentos, leituras e deduções sobre ele. Aqui se encontra a noção de dar lugar à
dimensão das vivências, pois é a partir dela que emerge
o transcendental.
Relatos de Pesquisa
Sentidos das Oficinas Terapêuticas Ocupacionais do CAPS no Cotidiano dos Usuários: uma Descrição Fenomenológica
Ondina P. P.; Ana C. R. P.
Para exposição dos resultados desta pesquisa nomeamos
ficticiamente os participantes com o intuito de garantir
o seu anonimato.
Entre os participantes dessa pesquisa verificou-se que
a maioria dos usuários do CAPS que frequentam as oficinas terapêuticas ocupacionais são do sexo feminino, cor
parda, com tempo de tratamento terapêutico em média
de oito (08) anos, apresentam diagnósticos médicos variados, residem com familiares, já se submeteram a internações hospitalares psiquiátricas, fazem uso de diversos
medicamentos psicotrópicos, frequentam outras atividades terapêuticas no serviço, não possuem independência
financeira, não são trabalhadores formais. Nessa pesquisa
optou-se pela técnica de observação participante:
Artigos
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Relatos de Pesquisa
A técnica de observação participante se realiza através do contato direto do pesquisador com o fenômeno
observado para obter informações sobre a realidade
dos atores sociais em seus próprios contextos. O observador, enquanto parte do contexto de observação,
estabelece uma relação face a face com os observados.
(Minayo, 2004, p. 59)
Através da observação participante, acompanhamos
as reuniões dos grupos de usuários do CAPS nas oficinas
terapêuticas ocupacionais, entre 01 de maio e 30 de junho de 2013. Foram encontros diários, com três horas de
duração em média, em que foram registrados os relatos
dos usuários durante as oficinas, bem como as atividades
realizadas e a interação geral do grupo. O registro no diário de campo contemplou todas as atividades do grupo
durante o período pesquisado.
Cada encontro do grupo reúne oito (08) participantes
em média. Estes usuários foram acompanhados durante
o período de dois meses, enquanto participamos como
observadoras das oficinas nas quais conduzimos conversas com os participantes sempre direcionadas conforme
os objetivos da pesquisa.
A observação participante ocorreu da seguinte forma:
uma das autoras permaneceu junto aos usuários ao longo dos encontros das oficinas terapêuticas ocupacionais
do CAPS Unaí. A pesquisadora chegava ao inicio da reunião do grupo e participava do grupo acompanhando as
atividades até o fim. Durante a reunião do grupo foram
registrados, em gravador, os áudios das conversas dos
participantes das oficinas, enquanto os usuários realizavam suas atividades ocupacionais. Todas as suas conversas em grupo foram registradas em gravador e posteriormente transcritas. Foi registrado, também, um diário de
campo com as observações das pesquisadoras acerca das
posturas dos membros do grupo.
Após a fase de observações e conversas, as gravações
foram atentamente escutadas e transcritas na íntegra,
dando-se início à fase de análise dos relatos. Houve uma
releitura do material registrado, das anotações de campo,
e organização dos registros da observação. Os relatos fo-
ram reunidos para análise onde foram descritos os sentidos das oficinas terapêuticas para os usuários do CAPS.
O caps e seu funcionamento
Nos CAPS, os usuários são assistidos em regime de
atenção diária. O tratamento acontece através de atendimentos individuais e em grupos, e oficinas terapêuticas
que buscam a inclusão social, através do desenvolvimento
da cidadania. Cada usuário que chega ao serviço é acolhido por um profissional e, em equipe, é traçado um plano
terapêutico que visa a atender as necessidades do tratamento (Minas Gerais, 2007).
Conforme Portaria GM/336/02, o CAPS oferece as modalidades de atendimento: Atendimento Intensivo (diário,
para sofrimento psíquico grave, em crise ou dificuldades
intensas no convívio social e familiar); Atendimento Semi-Intensivo (o usuário pode ser atendido até 12 dias no
mês); Atendimento Não-Intensivo (até três dias no mês);
todos estes atendimentos também podem ser domiciliares (Brasil, 2004).
Dependendo da modalidade de atendimento, os CAPS
podem atender durante o dia e a noite. Espera-se que sejam um ambiente terapêutico e acolhedor, para inclusão
de indivíduos em situação muito desestruturada e que
não consigam, naquele momento, acompanhar as atividades organizadas da unidade. O sucesso do acolhimento do indivíduo em situação desestruturada é essencial
para o cumprimento dos objetivos de um CAPS, que é o
de atender aos portadores de sofrimento psíquico grave
e evitar as internações (Brasil, 2010).
Os CAPS oferecem diversos tipos de atividades terapêuticas, por exemplo: psicoterapia individual ou em
grupo, oficinas terapêuticas, atividades comunitárias,
atividades artísticas, orientação e acompanhamento do
uso de medicação, atendimento domiciliar e aos familiares (Brasil, 2005).
Há no CAPS o intuito de proporcionar aos usuários
um atendimento biopsicossocial completo, incluindo todas as terapias que podem contribuir na assistência. No
CAPS os grupos de terapia ocupacional se constituem
em torno de atividades compartilhadas, em propostas
sugeridas por Terapeuta Ocupacional ou escolhidas pelos próprios integrantes. Nesta participação ativa os usuários podem ter uma aproximação do processo como um
todo, inteirando-se das dinâmicas vivenciadas (Minas
Gerais, 2007).
Uma das atividades realizadas no CAPS é a terapia
ocupacional. A terapêutica ocupacional foi formalmente instituída por Hermann Simon na década de 1920 e,
após algum tempo de desvalorização e esquecimento, foi
redescoberta e amplamente utilizada. Atribuir um papel
terapêutico ao trabalho ajudou a retirar indivíduos da posição passiva de doentes e permitiu às pessoas assumir
um papel ativo na sua recuperação.
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Sentidos das Oficinas Terapêuticas Ocupacionais do CAPS no Cotidiano dos Usuários: uma Descrição Fenomenológica
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Os sentidos das oicinas terapêuticas no cotidiano
dos usuários
A seguir, os elementos comuns, invariantes, presentes na maioria dos discursos foram agrupados em busca
de uma sistematização dos relatos. Para Amatuzzi (2001),
ocorre neste momento da pesquisa um trabalho de separação e construção conceitual, com o intuito de buscar
uma estrutura geral do vivido.
O sentido de afastamento da dor cotidiana: não pensar
em nada
O grupo terapêutico ocupacional do CAPS é considerado um refúgio para a maioria dos usuários. Eles afirmam em seus relatos que percebem a oficina terapêutica
ocupacional do CAPS como um lugar de afastamento da
rotina diária, um lugar para ocupar a mente e ao mesmo
tempo não pensar em nada:
Iara: Aqui é bom demais, nossa! Tem dias que eu venho
para cá e ai eu me esqueço de tudo, de tudo, de tudo...
Eu estando aqui, fazendo estes trabalhos aqui, eu não
me lembro de nada! É bom demais! Aqui não penso em
nada! A gente não pensa nada ruim, de jeito nenhum.
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 15-23, jan-abr, 2018
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O sentido de não pensar em nada é o de se afastar da
dor decorrente de pensamentos ruins, negativos. Nas oficinas do CAPS, em Unaí, os usuários tentam não pensar
em nada ocupando a mente com as atividades artesanais
e conversas do grupo. Os usuários buscam um distanciamento dos pensamentos causadores de dor, tristeza ou
sofrimento. Eles buscam esquecer os problemas cotidianos, evitando pensar no passado, nas experiências de sofrimento que vivenciaram e que ainda são causadoras de
sofrimento. Um momento em que as experiências tristes
da vida, ao serem provisoriamente esquecidas, podem ser
retomadas para ganharem significados diferentes, potencializados pela vivência de criação.
Ocorre ali um afastamento da rotina, a busca de um
lugar alternativo de contato com o outro sem ter que se
submeter a um olhar de discriminação. As oficinas são
consideradas refúgios, lugares seguros. Nas oficinas, o
usuário sente-se livre para dar visibilidade a sua potência de indivíduo criador. A oficina se apresenta como um
espaço de escuta e acolhimento das individualidades. Há
uma busca pela liberdade de expressão e um afastamento
da banalidade de ser. O contexto grupal terapêutico do
CAPS de Unaí deixa aberta aos usuários a possibilidade
de experimentar novas formas de se relacionar, que trazem
novos sentidos e significados ao seu cotidiano.
Relatos de Pesquisa
Alberto: Aqui é bom para não pensar em nada. A gente
ocupa o tempo da gente. Às vezes é bom para a gente
não ficar pensando, sabe?! Coisas que aconteceram lá
atrás e a gente só fica pensando, às vezes...
Artigos
No Brasil, a pioneira neste tipo de terapêutica foi a
médica Nise da Silveira que trabalhou no Centro Psiquiátrico Pedro II em 1946. A psiquiatra considerava as terapias vigentes na época muito agressivas para o tratamento dos transtornos mentais. Escolheu a terapia ocupacional como tratamento, pois entendia que em um ambiente cordial, com monitor sensível, os pacientes poderiam
expressar suas vivências utilizando a pintura, o desenho
e a escultura. (Rocha, 2005) Nise da Silveira considerava
a terapêutica ocupacional essencial para “criar oportunidade para que as imagens do inconsciente e seus concomitantes motores encontrassem formas de expressão”
(Silveira, 1981, p. 13).
Nise da Silveira acreditava que a pintura e a modelagem tinham valor terapêutico em si, na medida em que davam forma a emoções, promovendo forças autocurativas.
Naquele período, Nise da Silveira desenvolveu diversas
pesquisas no campo da saúde mental incluindo pesquisas
sobre o efeito devastador da cirurgia de lobotomia (comum
na época) sobre a criatividade. Entretanto, a despeito dos
bons resultados de suas atividades, para muitos psiquiatras daquele período a terapia ocupacional não tinha valor algum no tratamento dos pacientes (Guerra, 2008).
A maior influência sobre Nise da Silveira foi a obra
do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung. A terapia por meio
da arte, na perspectiva do suíço, tem por objetivo instrumentalizar a formação de símbolos pela energia psíquica
em diversas produções, ativando a comunicação entre o
consciente e o inconsciente. Assim, as produções artísticas
possibilitam a expressão das sensações, percepções e sentimentos. Posteriormente, sob a influência do movimento
de Reforma Psiquiátrica, diversos serviços resgataram as
atividades ocupacionais, por meio da organização de grupos de trabalho, formados por diferentes profissionais, que
criaram seu próprio modo de trabalhar. Estes serviços ofereciam atendimentos individuais e grupais, acompanhamento medicamentoso, atividades recreativas e expressivas. Inicialmente, as oficinas abertas propiciavam aos usuários o livre contato com os materiais disponíveis: papel,
tecido, tinta, argila e outros. A concepção desses espaços
abertos de expressão de vivências foi fortemente influenciada pela experiência de Nise da Silveira (Rocha, 2005).
Atualmente, no CAPS, as atividades nas Oficinas de
Terapia Ocupacional (TO) tornaram-se meios de expressão e comunicação não verbal. Estes espaços proporcionam um ambiente de produção significativa, articulando a subjetividade ao mundo real e concreto. Durante o
trabalho de terapia, o indivíduo tem a possibilidade de
entrar num movimento de organização e reorganização
interna constante, através da visualização de dificuldades e manifestações das possibilidades que se dão no âmbito do afeto e da ação. O intuito da TO não é o simples
aprendizado de técnicas e aprimoramento de habilidades.
A execução de atividades terapêuticas proporciona outras
experimentações de estar no mundo tornando o indivíduo um agente de sua própria saúde (Bettarello, 2008).
Ondina P. P.; Ana C. R. P.
Sentido de troca de experiências e apoio mútuo
A dinâmica de funcionamento da oficina de terapia
ocupacional do CAPS é peculiar. Nas oficinas os participantes conversam enquanto elaboram trabalhos artesanais e cada usuário coloca assuntos diferentes em pauta.
Então, todos os membros do grupo participam da conversa, colocam suas ideias e propõem soluções para os problemas uns dos outros. Os usuários compartilham experiências vivenciadas no cotidiano bem como as soluções
possíveis para problemas comuns a todos.
Gabriela: Ah, não! De forró eu não participo não! Não
sei nem por onde começa! Eu chego lá eu não tenho
nem assunto no tal do forró!
Abigail: Mas, tem que sair também! Passear... Por
que aí, minha filha, você melhora. Vixe! Você melhora muito!
Neusa: Quando eu fico em casa, Deus me livre, é a
mesma coisa de ficar dentro de uma prisão!
Abigail: Tá chegando minha hora! A Isadora (artesã)
vai ter que me ensinar isso aqui quinhentas vezes!
Minha mão atrapalha o movimento!
Neusa: Não é difícil, não!
Abigail: Mas você tem as duas mãos normais, eu não
tenho!
Gabriela: É bonito, mas é complicado!
e o usuário papel central no apoio ao outro. Para Barbosa
(2012), nas oficinas se fala de coisas tristes, de impasses,
de dificuldades, mas sempre de forma leve. Isto não significa que se deixa de dar a devida importância às falas
do outro e de se encaminhar devidamente as questões
colocadas. Este autor afirma ainda que:
Desse modo conseguimos nos aproximar de outras facetas das pessoas ali presentes, pois elas contam histórias corriqueiras, banais, algo que não está diretamente baseado em seu problema de saúde mental que
as faz estar em um CAPS. Assim nós lembramos que
os usuários do CAPS são pessoas que se viram e, na
grande parte das vezes, se viram muito bem, quando
estão fora do circuito de instituições de saúde mental,
quando não estão protegidos, nem tutelados, nem preservados e nem presos. (Barbosa, 2012, p. 19)
Cada usuário expressa sua individualidade no grupo.
Por meio de histórias corriqueiras, cotidianas, são acessados sentimentos mais profundos e memórias dolorosas.
Não sendo acessados e expressos de forma direta, esses
conteúdos comparecem de forma a não adquirirem o tom
grave do sofrimento que afastaria o usuário da proposta
terapêutica do grupo. De forma alusiva, às vezes de forma
lúdica, os conteúdos vêm à tona e podem ser trabalhados
sem produzir grandes ameaças.
Ocorre aqui também a dimensão de aproximação da
complexidade de ser de cada indivíduo, com o desenvolvimento de um olhar voltado para a multiplicidade de cada
usuário, como pessoas em sua multidimensionalidade. As
características individuais são respeitadas e valorizadas
com um olhar para além do diagnóstico.
Artesã: Este pontinho é mais fácil!
O sentido de aprendizado
Gabriela: Mais fácil? Deus me livre!
Artigos
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Relatos de Pesquisa
Abigail: O problema aqui dona Roberta (Terapeuta
Ocupacional) vai ser trançar!
O espaço de troca se abre nas oficinas terapêuticas
onde o grupo se reúne para realizar atividades artesanais
e descobre habilidades sociais que vão muito além de
técnicas artesanais ou processos de produção de objetos.
Aqui há um sentido de compartilhamento, apoio mútuo
e troca constante. As conversações entre eles instauram
relações de afeto que trazem alegria e fortalecem as pessoas. A convivência com o outro se apresenta como uma
experiência prazerosa e enriquecedora. O convívio se
torna um importante catalisador do processo terapêutico
proposto nas oficinas.
Neste grupo os usuários compartilham suas experiências e trocam sugestões com os demais participantes.
O espaço favorece as trocas tornando-se um ambiente terapêutico onde o profissional assume papel coadjuvante
Segundo os usuários, a oficina terapêutica representa
não só um espaço de encontro e convivência, mas também de aprendizado. Na medida em que podem aprender algumas atividades artesanais e receber orientações
de profissionais mais experientes nas tarefas. E há também uma troca entre os participantes, onde todos aprendem entre si. O sentido do aprendizado está presente na
maioria dos relatos:
Alberto: Então isso aqui é bom por causa disso: distrai e passa o tempo. E a gente aprende a fazer alguma coisa também.
Álvaro: Eu fiz um bocado de pintura aí! Eu faço pra
aprender. Aqui tem muita gente pra me ensinar.
Iara: Eu gosto de aprender. Tem gente que não gosta de
aprender, de jeito nenhum! Eu tudo que vejo os outros
fazerem eu quero aprender.
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Sentidos das Oficinas Terapêuticas Ocupacionais do CAPS no Cotidiano dos Usuários: uma Descrição Fenomenológica
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De acordo com os relatos, o CAPS é um lugar que faz
diferença em suas vidas, lugar em que são acolhidos e
bem tratados. Dessa forma, afirmam se sentirem seguros
e em família, principalmente ao se reportarem ao carinho
da equipe, ao acolhimento. Consideram, portanto, a oficina terapêutica ocupacional como um lugar de cuidado, e,
mais ainda, como um lugar de pertencimento.
Alberto: Aqui no CAPS fez muita diferença. Aqui a
gente conversa com as pessoas, as pessoas perguntam
como a gente está. Tem encontro terapêutico, tem as
oficinas, tem muita coisa aqui. Aqui está melhor para
mim. Eu tomava remédio demais! Pode notar: quando eu cheguei aqui no CAPS tomei jeito demais! Aí fui
melhorando.
Álvaro: Eu me sinto bem! Todo mundo aqui trata a
gente bem, ajuda! Eles não maltratam ninguém. Aqui,
há alguns anos atrás, não tinha CAPS, não tinha nada. Mandavam fazer o tratamento na policlínica. Lá
faziam consulta e davam remédio, me davam uns remédios fortes.
Irani: Aqui eu me sinto bem! Eu gosto daqui. Aqui foi
onde eu consegui meu benefício. Através daqui.
Abigail: Aqui eles cuidam muito bem da gente, sabe?
Tanto que se alguém fala mal daqui, que só tem doido,
minha filha, eu dou resposta mesmo!
Ao encontrarem alguma escuta, respeito por seus pensamentos e escolhas, os usuários das oficinas terapêuticas
as consideram como espaços onde seus sentimentos são
qualificados e suas relações mais humanizadas. Parece
que ali o espaço da alteridade, necessário ao desenvolvimento de uma convivência mais fluida entre os usuários,
os profissionais e a comunidade, é respeitado. O vínculo
entre usuários e profissionais foi colocado como um dos
pontos fortes das oficinas, assim como o bom relacionamento entre os usuários e a troca de experiências entre
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 15-23, jan-abr, 2018
Relatos de Pesquisa
Gabriela: Aqui é uma família que eu encontrei! Você
vem e recebe um carinho. Quando vem a dificuldade,
a sua própria família te abandona. Às vezes a gente
vem para cá muito insegura, isso aqui é uma forma de
segurança. E tem que ver o carinho da equipe! Todo
mundo me trata com muito carinho, me acolheu como
se eu fosse da família! Um acolhimento pra mim muito importante! Acho que o mais importante é que você
chega aqui e as pessoas não têm cara ruim para você.
Eles te tratam de forma igual! Eles não fazem diferença
entre as pessoas. Acho que o que mais cativa a gente é
isso aí! Aqui é como se fosse a casa da gente! Uma família que acolhe a gente! A oficina é importantíssima.
-
Apesar da posição visivelmente subalterna de Gabriela em relação aos profissionais, trata-se aqui também de
expressar nitidamente uma posição no mundo, para que
lhe seja permitido mostrar como “enxerga de outra forma”. E isso talvez seja a mais importante das conquistas
da aprendizagem: aprender a simplesmente ser singular,
sem atenção a hierarquias. De qualquer forma, as oficinas
são um espaço de aquisição de novos conhecimentos e
habilidades, que podem ser utilizados em seu cotidiano.
Eles acreditam que podem aprender um novo ofício e assim alcançar uma colocação no mercado de trabalho e na
comunidade, pois esperam realizar trabalhos artesanais
que possam ser valorizados. Acreditam que, ao aprender
artesanato nas oficinas, terão novos papeis na comunidade a que pertencem.
Ocorre aqui um sentido de busca de pertencimento,
isto é, por novo papel na comunidade. Marzano & Sousa
(2004) afirmam que o CAPS é um lugar que possibilita
mudança de vida, o que está de acordo com o relato dos
usuários. Para estes autores, os usuários consideram que o
CAPS abre possibilidades de dar sentido a sua vida e conquistar sua cidadania. Uma ocupação pode ser entendida
como uma experiência individual, marcada pela singularidade e especificidade. É uma experiência construída
pessoalmente, não reproduzida. Para Villares (1999), ocupação é um evento subjetivo que ocorre numa dimensão
percebida de tempo, espaço e condição cultural e social.
A ocupação é uma experiência única naquele momento
específico, afirma Villares (1999).
Na mesma linha de pensamento, Ballarin (2007) considera importante que os interesses e desejos dos usuários sejam objeto de atenção nos atendimentos de terapia
ocupacional. Para tanto, os profissionais precisam direcionar sua atenção e percepção para realização de uma
leitura que leve à compreensão da singularidade do sujeito (Ballarin, 2007).
A tecnologia utilizada em intervenções terapêuticas
ocupacionais deve ser dirigida à compreensão das necessidades do ser humano, relacionadas ao cotidiano e não
exigem sofisticação dos equipamentos ou investimentos
altos (Ballarin, 2007). Neste tipo de intervenção terapêutica, segundo Ballarin (2007), o vínculo, o restabelecimento da estima própria e o auto-reconhecimento são pontos
relevantes, com vistas ao fortalecimento da convivência
e re-apropriação do espaço.
Um lugar que faz a diferença: sentido de acolhimento
Artigos
Gabriela: Porque nós temos que estar aqui para obedecer, para aprender. Tem coisas que às vezes a gente enxerga de outra forma. Como as pessoas que estão aqui
são profissionais, elas têm que ter o direito de corrigir
a gente, explicar, ensinar...
Ondina P. P.; Ana C. R. P.
eles. Nesse ponto, todos expressam a sensação de terem
um lugar no mundo, lugar no qual podem ser o que são,
sem medo de serem recusados.
Também de acordo com os estudos de Nasi & Schnider (2011), os usuários do CAPS percebem acolhimento,
apoio, escuta e atenção na atuação dos profissionais. Neste
espaço, para os autores, há uma criação de vínculos entre
profissionais e usuários que proporciona um relacionamento baseado na confiança. “As oficinas, assim como o
trabalho e a arte, podem funcionar como catalisadores da
construção de territórios existenciais, nos quais os usuários podem reconquistar seu cotidiano.” (Nasi & Schnider, 2011, p. 1161).
Artigos
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Relatos de Pesquisa
Considerações inais
Descrever fenomenologicamente o relato dos usuários
nesta pesquisa foi uma forma de evidenciar não só os conhecimentos que os indivíduos certamente possuem sobre sua condição, o que pode contribuir para melhorá-la,
mas também as formas de cuidado que eles consideram
eficazes, o que contribui para o aperfeiçoamento dos métodos terapêuticos a serem aplicados. No CAPS, a proposta das oficinas terapêuticas ocupacionais abarca o novo
paradigma da reforma psiquiátrica com vistas a fomentar uma maior integração social e familiar dos usuários,
cumprindo essa função.
Por sua configuração, a oficina terapêutica do CAPS é
um ambiente propício para manifestação de sentimentos
e pensamentos dos usuários. Abre-se aí um espaço para o
desenvolvimento de habilidades corporais e realização de
atividades produtivas. Neste sentido, o nosso objetivo de
conhecer a percepção dos usuários do CAPS-Unaí acerca
dos sentidos das atividades terapêuticas ocupacionais em
seu cotidiano, foi alcançado.
Levando em conta os relatos e comentários os usuários, as oficinas terapêuticas ocupacionais do CAPS-Unaí
possuem vários sentidos. Os que mais se destacaram e,
assim, contornam o essencial desses sentidos foram o afastamento da rotina diária, um lugar para não pensar em
nada, a possibilidade de se distanciarem de sentimentos
e pensamentos negativos que permeiam seu cotidiano.
Outros sentidos mais pragmáticos também comparecem.
Por exemplo, o sentido de aprendizado: os usuários consideram as oficinas como um espaço para aprender uma
nova habilidade que pode ser utilizada no futuro como
fonte de renda, vislumbrando, assim, outros horizontes, o
que é reforçado pelo sentido atual de pertencimento. Assim, pertencer a um grupo, que é recebido com carinho,
cuidado e acolhimento da equipe torna possível o fortalecimento dos laços entre os participantes do grupo, a partir do qual cada um dos indivíduos desenha seu futuro.
Seus relatos sobre suas vivências cotidianas com a
loucura evidenciam que eles têm muito a dizer sobre
seu universo, assim como sobre a relação entre razão
e loucura, tão estudada por Foucault. Os usuários do
CAPS, em alguns momentos, evidenciam em seus relatos uma não apropriação do código médico. Aparece
aqui uma resistência sutil, resistência da loucura, que
insiste em manter o “vaguear da razão extraviada” (Foucault, 1999, p. 520).
Para Foucault (1999), nossa consciência não encontra mais o vestígio de outro mundo nesta figura empírica, como no século XVI. Na loucura perfila, em relevo,
a finitude, que, para Foucault, é “o recôncavo mesmo de
nossa existência” (Foucault, 1999, p: 520). A partir desta
figura da finitude, para Foucault, nós somos, pensamos e
sabemos. Na loucura, a finitude está subitamente diante
de nós, a um tempo real, impossível. Para o autor, trata-se
de um pensamento que não podemos acessar, objeto que
se furta sempre ao conhecimento.
Os chamados loucos contribuem para a sociedade atual com um olhar próprio, característico, empiricamente
deslocado para além do olhar social rotineiro. Atravessada pela homogeneidade do código médico, a sociedade
reduziu a expressão da loucura a poucos espaços. O resgate da expressão do saber do louco, em nossa sociedade, contribui para acrescentar olhares diferenciados sobre
nossas relações e formas de viver.
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Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 15-23, jan-abr, 2018
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ondina Pena Pereira - Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais, mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais, doutorado em Antropologia pela Universidade de Brasília e pós-doutorado em Psicologia Social na Université
du Québec à Montreal. É professora adjunta da Universidade Católica
de Brasília. Email:
[email protected]
Artigos
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Recebido em 21.01.2017
Primeira Decisão Editorial em 04.05.2017
Aceito em 23.05.2017
Relatos de Pesquisa
Ana Carolina ribas Palma - Doutoranda e Mestre em Psicologia pela
Universidade Católica de Brasília (UCB), Especialista em Saúde Coletiva
e graduada em Enfermagem pela Universidade Estadual de Minas Gerais
(UNIMONTES). Email:
[email protected]
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Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 15-23, jan-abr, 2018
Nº DOI: 10.18065/RAG.2018v24n1.3
Rafael A. de P.; Alexsandro M. do N.
Os signiFicadOs da experiência inTerna
da FOrMaçãO presbiTeral:
uMa análise TeMáTica FenOMenal
The Meanings of the Inner Experience of Priestly Formation:
a Phenomenal Thematic Analysis
Signiicados de la Experiencia Interna en la Formación Sacerdotal:
un Análisis Temático Fenomênico
RaFael amoRim de Paula
alexsandRo medeiRos do nasCimenTo
resumo: O presente estudo teve como objetivo descrever os significados da formação presbiteral em seminaristas católicos, considerando-os como gestalten discursivas resultantes de arranjos complexos de elementos de experiência interna, numa perspectiva idiográfica e fenomenal. Compreende-se que o seminário seja uma instituição total, criado a partir do Concílio de Trento e
instrumento fundamental da modelagem da subjetividade dos futuros sacerdotes, e a formação presbiteral contempla os aspectos
afetivo, intelectual e pastoral, sendo regida por orientações emanadas a partir das leis da Igreja. O foco do estudo recaiu, portanto,
na experiência interna de seminaristas, a partir do impacto da formação na vivência dos sujeitos. Participaram do estudo 34 seminaristas (11 de Pernambuco e 23 do Rio Grande do Norte), oriundos dos três períodos do seminário maior (propedêutico, filosofia
e teologia), os quais responderam um protocolo fenomenal. A análise do corpus discursivo foi realizada a partir dos pressupostos da análise fenomenal padrão, com apoio na técnica da análise temática. Os resultados anunciaram cinco categorias temáticas:
Seminário: lugar de dificuldade/renúncia; Felicidade em ser seminarista; Reconhecimento/discernimento da vocação; Seminário:
etapa/lugar de aprendizado; e, Masculinidade/valor. Os achados de pesquisa corroboraram aspectos da vida dos seminaristas anunciados por pesquisas anteriores, e revelaram elementos de tensão na vivência formativa.
Palavras-chave: Formação presbiteral; Significado; Experiência interna; Fenomenologia; Análise temática.
resumen: El presente estudio tiene como objetivo describir los significados de la formación sacerdotal en seminaristas católicos,
teniendo en cuenta como gestalten discursivas el resultado de una compleja disposición de elementos de experiencia interna,
desde una perspectiva idiográfica y fenoménica. Se entiende que el seminario es una instituición totalizadora, creada a partir del
Concilio de Trento, e instrumento fundamental de modelización de la subjetividad de los futuros sacerdotes, así como la formación sacerdotal contempla los aspectos afectivo, intelectual y pastoral, siendo regida por orientaciones que emanan de las leyes de
la Iglesia. El enfoque del estudio recayó, por tanto, en la experiencia interna de seminaristas, a partir del impacto de la formación
en la vivencia de los sujetos. Participaron en el estudio 34 seminaristas (11 de Pernambuco y 23 de Río Grande del Norte), oriundos de los tres períodos del seminario superior (propedéutica, filosofía y teología), los cuales responderán a un protocolo fenoménico. El análisis del corpus discursivo se realizó a partir de los presupuestos del análisis fenoménico estándar, con soporte en la
técnica del análisis temático. Los resultados presentarán cinco categorías temáticas: Seminario: lugar de dificuldad/renuncia; Felicidad de ser seminarista; Reconocimento/discernimiento de la vocación; Seminario: etapa/lugar de aprendizaje; y, Masculinidad/
valor. Los resultados de la investigación corroborarán aspectos de la vida de los seminaristas ya anticipados por investigaciones
anteriores, y revelarán elementos de tensión en la vivencia formativa.
Palabras-clave: Formación sacerdotal; Significado; Experiencia interna; Fenomenología; Análisis temática.
Artigos
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Relatos de Pesquisa
Abstract: The study aimed to describe the meanings of priestly formation in Catholic seminarians, considering them as discursive gestalten resulting from complex arrangements of elements of inner experience, in a phenomenal and idiographic perspective. The seminar is a total institution, created by the Council of Trent, and fundamental instrument of modeling subjectivity of
future priests, and priestly formation includes the affective, intellectual and pastoral aspects, being governed by guidelines issued from laws of the Church. The focus of the study fell in the inner experience of seminarians, and in the impact of training on
the experience of the subjects. 34 seminarians (11 from Pernambuco and 23 from Rio Grande do Norte) participated in the study,
coming from the three periods of the major seminary (Propaedeutic, Philosophy and Theology), who answered a phenomenal protocol. The analysis of the discursive corpus was performed from assumptions of standard phenomenal analysis, with support in
the thematic analysis technique. The results announced five thematic categories: Seminar: Place of difficulty/waiver; Happiness
at being seminarian; Recognition/discernment of the vocation; Seminar: period/place of learning; and Masculinity/value. The research findings corroborated aspects of life of seminarians announced by previous research, and revealed elements of tension in
the formative experience.
Keywords: Priestly Formation; Meaning; Inner Experience; Phenomenology; Thematic Analysis.
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 24-34, jan-abr, 2018
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Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 24-34, jan-abr, 2018
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A literatura universal e a indústria cinematográfica
vêm há algum tempo retratando questões relacionadas à
sexualidade, ao desejo, aos conflitos psíquicos, às disputas de poder e reconhecimento que são postas em questão
nas vidas de clérigos e religiosos, como também daqueles que aspiram ao estado clerical. Na literatura, poderíamos citar O vermelho e o negro, do francês Stendhal;
O Seminarista, de Bernardo Guimarães; Dom Casmurro,
de Machado de Assis; O crime do Padre Amaro, do lusitano Eça de Queirós, entre outras obras. Na produção cinematográfica, além de alguns títulos citados acima que
se tornaram filmes, temos o famoso seriado estadunidense Pássaros feridos, como também alguns filmes, como
O Ritual e A Dúvida. Cada qual, desnuda nuances desses atores sociais, que apesar dos tons apelativos e vieses anticlericalistas que hoje no início do século XXI nos
faz questionar e procurar entender aspectos da dinâmica
psíquica desses sujeitos e os aspectos enlaçados na produção dessas subjetividades. Dessa maneira, é importante
investigar a formação clerical e seus efeitos na vida psíquica. Embora a produção científica não seja, por enquanto,
expressiva, e aparentemente focada apenas na Psicologia
Social (Benelli, 2003; 2007a; 2007b) para esse locus de
pesquisa, optou-se neste presente estudo por uma ancoragem teórica não somente a partir de uma perspectiva
psicossociológica, mas fazer uso também, da perspectiva fenomenológica, em especial no tocante a abordagem
da experiência interna em psicologia cognitiva (Heavey
& Hurlburt, 2008; Nascimento, 2008).
A formação presbiteral, englobando os aspectos afetivo, intelectual e pastoral, é atualmente regida por um
conjunto de textos que compõe o discurso pastoral-normativo. O primeiro dentre eles é o Código de Direito Canônico, que norteia o governo da Igreja Católica, abrangendo da disciplina referente aos sacramentos, aos direitos e deveres dos fiéis e clérigos. Neste código, existe
uma seção dedicada à admissão ao estado clerical, que
regula as etapas da formação. Outros documentos importantes são a Ratio Fundamentalis Instituiones Sacerdotalis
(Igreja Católica, 1970) e Optatam Totius (Igreja Católica,
1965) que trazem as diretrizes elementares para a formação dos futuros sacerdotes, e mais recentemente Pastores
Dabo Vobis (1992) do Papa João Paulo II (1992), e dois da
Congregação para a Educação Cristã que são Instrução
sobre os critérios de discernimento vocacional acerca das
pessoas com tendências homossexuais e da sua admissão
ao Seminário e às Ordens Sacras (Igreja Católica, 2005)
e Orientações para a utilização das competências psicológicas na admissão e na formação dos candidatos ao sacerdócio (Igreja Católica, 2008).
Entender que a dinâmica institucional é extremamente importante para a compreensão da modelagem da
subjetividade do seminarista, já é um passo dado, principalmente quando entendemos o Seminário como uma
Instituição Total (Benelli, 2007a; 2007b), modelo de instituição amplamente estudado por Erving Goffman (1974),
encontramos diversos aspectos dele que corroboram essa
perspectiva. Os seminários, como instituição total, são estabelecimentos fechados nos quais os indivíduos vivem
em regime de internação, onde os internados convivem
em tempo integral, geralmente sendo um número relativamente grande de pessoas que compartilham o espaço
desses estabelecimentos. Essa modalidade de instituição
funciona como local de residência, trabalho, lazer e espaço de alguma atividade específica, tal como: terapêutica,
correcional, educativa etc. Comumente existe um grupo
dirigente que exerce o gerenciamento administrativo no
cotidiano da instituição. Em relação a esse processo de
fechamento da instituição total Goffman (1974, p. 16) diz
que: “Toda instituição conquista parte do tempo e do interesse de seus participantes e lhes dá algo de um mundo,
toda instituição tem tendências de fechamento”. Benelli
(2006) propõe que no bojo institucional da formação presbiteral, é possível um estudo dos diversos fenômenos que
são produzidos nesse lugar, que permitem uma valiosa
compreensão da formação de pessoas, como também “seria possível entender como nessas instituições se produz e
reproduz a subjetividade daqueles que as compõem, tanto internados quanto dirigentes” (Benelli, 2006, p. 148).
Levando-se em conta a natureza dual da subjetividade humana em que enlaçam-se os domínios psicológico e fenomenal relacionado aos estados qualitativos de
vivência consciente da experiência interna (Chalmers,
1996, 2010; Kriegel, 2006; Heavey & Hurlburt, 2008; Nascimento, 2008; Velmans, 2009; Schneider, 2012; Nascimento, Griz, & Vieira, 2013), sendo tal fonte interna o
motor da agência humana, diante dessas considerações
se faz a seguinte pergunta de pesquisa: “Como o seminarista católico experiencia e significa sua formação presbiteral durante o período de seminário?”. A hipótese assumida aqui é a de que a formação presbiteral acontece
intimamente relacionada a um modelo institucional que
é modelador das subjetividades daqueles que vivem na
instituição seminário, e que por sua vez tem ressonância
na vida psíquica. Logo, o fazer parte de uma instituição
no percurso formativo-religioso desses sujeitos implicaria uma experiência singular e constituinte do seminarista católico que implicaria na apreensão da sua vivência
do seminário, isto por sua vez, constituiria a experiência
interna da formação presbiteral a partir do seminarista.
Dessa maneira, surge a percepção de que se faz necessário um estudo de caráter intrinsecamente idiográfico,
qualitativo e fenomenal que tenha por meta compreender como os seminaristas católicos vivenciam essa experiência formativa a partir dos impactos que a formação
presbiteral exerce sobre as subjetividades. Essa necessidade emana de que, predominantemente, os estudos referentes à formação presbiteral estão situados na esfera da
Psicologia Social, em alguns momentos, dialogando com
a perspectiva clínica. Embora existam promissores e re-
Artigos
introdução
Relatos de Pesquisa
Os Significados da Experiência Interna da Formação Presbiteral: uma Análise Temática Fenomenal
Rafael A. de P.; Alexsandro M. do N.
levantes achados das investigações já realizadas, no que
tange a experiência interna e demais temáticas da Psicologia Cognitiva relacionados aos estudos sobre formação
presbiteral há um significativo hiato que evoca investigações que as explorem. Nisso há também a necessidade da aplicação de diversas metodologias que acorram a
emergência dessas vivências.
A formação presbiteral, em especial os sujeitos seminaristas, tem sido recentemente alvo de pesquisas na literatura científica, em especial na nacional (Benelli, 2007a,
2007b; Meschiatti, 2007; Spiess, 2011, 2012; Baungart &
Amatuzzi, 2013; Santos, 2016). Além do mais esse estudo
propõe uma investigação da formação presbiteral na interface dos estudos da consciência, área que possui produção insuficiente no Brasil, conforme pontua Nascimento
(2008), e acrescenta relevância para a questão proposta
nesse trabalho, sendo seu objetivo primordial mapear e
descrever num enfoque fenomenal os aspectos de significado que compõem a vivência do seminarista católico
na constituição da sua experiência interna durante seu
itinerário formativo-religioso.
Artigos
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Relatos de Pesquisa
O Seminário Católico
O seminário católico tem sua origem no Concílio de
Trento (1545-1563), no período da Contrarreforma. Este
concílio, um dos mais longos da história da Igreja, foi o
que mais emitiu decretos e documentos orientando diversos aspectos da Fé católica, em especial aqueles questionados por Martinho Lutero. Procurou responder a questões no tocante a vida dos seus ministros, regulou por
definitivo a disciplina do celibato dos padres, apesar dos
protestos de muitos bispos que viam que na prática era
ineficiente e certificou-se da preparação moral e intelectual dos aspirantes ao estado clerical, sendo o seminário
seu principal dispositivo.
O Concílio de Trento ofereceu uma identidade católica para a Europa, chegando ao apogeu nos séculos
XVI e XVII. Sua autoridade só foi ameaçada pelos abalos na Igreja gerados durante a Revolução Francesa, os
quais inquietaram a religião e os regimes absolutistas.
Diante das consequências desta e da conseguinte perda
dos territórios pontifícios, a campanha católica de resguardar a Igreja se deu na realização do Concílio Vaticano I (1869-1870), o qual, embora não tenha cumprido
todos os seus objetivos, chegou a declarar o dogma da
Infalibilidade Papal, objetivando garantir a unidade da
Igreja apesar das contestações à autoridade pontifícia
(Meschiatti, 2007).
A palavra seminário tem sua origem no latim seminarium, proveniente de semen, seminis, isto é, “semente”.
Seu sentido originário era o de viveiro de plantas, onde
as sementes se desenvolvem e como mudas são plantadas no solo. Percebe-se o caráter que o seminário adquire:
lugar de crescimento, de educação. Por muito tempo os
seminários e casas religiosas se ocuparam da Educação,
a própria palavra deriva seu significado do latim, tanto
educare, no sentido de transmitir conhecimentos quanto educere, ato de fazer desabrochar potencialidades,
desenvolvendo a personalidade do indivíduo, lugar não
somente de se desenvolver, mas que cumpre uma finalidade (Benelli, 2008).
Ao falar em seminário é importante chamar à atenção a distinção entre seminário menor e seminário maior.
O seminário menor é aquele que acolhe os candidatos à
vida sacerdotal que ainda não concluíram o Ensino Médio. O seminário maior acolhe os candidatos ao sacerdócio. O seminário maior é marcado por três períodos:
propedêutico, filosofia e teologia. O propedêutico tem a
duração de um ano, e pretende ser um período de formação no qual a dimensão espiritual é aprofundada, como
também um momento de maturação e preparação para
os anos futuros de formação. Durante o período de formação o seminarista fará os cursos de filosofia (período
mínimo de dois anos) e teologia (quatro anos), formação
que pode ser feita no próprio seminário ou externamente
em faculdades, geralmente vinculadas a Igreja Católica.
O seminário pode ser compreendido como uma instituição total (Benelli, 2007c; Goffman, 1974). Dessa forma
complexa é a trama das relações subjacentes à experiência
de ser seminarista quando inserido na dinâmica institucional e o movimento e tensões entre indivíduo e instituição e os enquadres sofridos pelos indivíduos (Rocha,
1991; Benelli, 2003, 2007a; Baungart & Amatuzzi, 2013).
A “clausura” que de certa maneira o seminário impõe
aos seminaristas coloca-os numa situação de indivíduos internados num estabelecimento onde residem com
um grande número de outros seminaristas em situação
semelhante. O seminário compreende lugar com várias
funcionalidades: moradia, estudo, trabalho, formação e
lazer (Benelli, 2007a).
A natureza dessa instituição implica ser um “dispositivo organizado de modelagem subjetiva, tanto por seus
discursos e por suas práticas, quanto pela articulação
(sintonia ou contradição) desses dois aspectos” (Benelli,
2006, p. 148). Enquanto instituição total encontra diversas semelhanças inclusive com os conventos – matriz que
inspirou o Concílio de Trento no tocante a disciplina dos
seminários. Nessa perspectiva, este modelo de instituições
pretende “o controle do tempo, dos corpos e a instalação
de um poder polimorfo. Fazem funcionar um poder polivalente, microfísico, que não é essencialmente localizável em um polo centralizado e personalizado, mas que é,
principalmente, difuso, espalhado, minucioso, capilar”
(Benelli, 2006, p. 152).
a Formação presbiteral a partir da igreja católica
“Dar-vos-ei pastores segundo o Meu coração” (Cf. Jr.
3, 15), com esse trecho do profeta Jeremias a exortação
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 24-34, jan-abr, 2018
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Os Significados da Experiência Interna da Formação Presbiteral: uma Análise Temática Fenomenal
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pos do Brasil - CNBB (2010) aponta as dimensões para a
formação do seminarista, a saber, Humano-afetiva – visa
capacidade de autoconhecimento equilibrado, com exclusão de percepções distorcidas, e a resistência às tensões
e provas a que a vida submete toda pessoa; Comunitária
– a vida de comunidade, iniciada na casa de formação,
deve continuar e encontrar sentido na vida do presbítero
para dar à Igreja e ao mundo; Espiritual – se desenvolve
pela oração e participação nos sacramentos e também pelo exercício da vida cristã e da caridade pastoral, que se
realiza no interior da comunidade do Seminário através
da participação na vida de outras comunidades cristãs e
de engajamentos pastorais; Pastoral-missionária – deve
ser norteada por uma metodologia que respeite, em cada
experiência, os critérios de adequada iniciação, cuidadosa inserção, devido engajamento, e gradual responsabilidade por serviços ministeriais; e, Intelectual – formação
intelectual consistente para o pastor para que ele compreenda de forma adequada a realidade humana em que
vive e que possa interpretá-la à luz da fé, discernindo as
linhas de ação do seu próprio ministério.
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 24-34, jan-abr, 2018
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A palavra experiência é cara à psicologia e à fenomenologia pela sua complexa relação com a vida psíquica
e seus desdobramentos na realidade dos sujeitos. O termo experiência, do latim experientia, significa o que foi
retirado (ex-) de uma prova ou provação (perientia) um
conhecimento empírico obtido no mundo, isto é, em contato sensível com a realidade. A experiência relacionase com o que se vê, com o que se toca ou sente, mais do
que com o pensamento (Amatuzzi, 2007). Experienciar é
precisamente captar o sentido daquilo que se procura investigar, emitindo uma circunspecção sobre o encontrado
(Gaspar & Mahfoud, 2006), consiste certamente em “provar” alguma coisa, mas coincide, sobretudo, com o juízo
dado a respeito daquilo que se prova. Seguindo-se este
insight primordial, vê-se em Giussani (2000) que a pessoa é, antes de tudo, consciência. Assim, o que caracteriza a experiência não é tanto o interfaciar mecanicamente
a realidade estabelecendo relações, mas a compreensão
emergente desta atividade, a descoberta do seu sentido,
a razão do sentido das coisas experienciadas (Giussani,
1997; 2000; Gaspar & Mahfoud, 2006).
É relevante apontar que o termo “Consciência” é polissêmico e por vezes impreciso, que se alude a vários tipos
de fenômenos como a habilidade para discriminar, categorizar e reagir a estímulos ambientais; a integração da
informação através de um sistema cognitivo; a capacidade
de relatar a ocorrência de estados mentais; a habilidade
de um sistema para acessar seus próprios estados internos; o foco da atenção; o controle deliberado do comportamento; a diferença entre sono e vigília, etc. (Chalmers
2010; 1996; Nascimento, 2008).
Relatos de Pesquisa
A Experiência Interna e a Formação Presbiteral
Artigos
apostólica Pastores Dabo Vobis (1992) do Papa João Paulo
II (1992) traz um aspecto nuclear da dinâmica vocacional
e das expectativas lançadas pela instituição sobre aqueles que almejam a vida sacerdotal: o de Pastor. A figura
sacerdotal é emblematicamente relacionada ao Pastoreio.
O padre (pai, em latim) é colaborador do ministério episcopal, isto é, colaborador do bispo e por sua vez com ele
exerce seu ministério com uma porção da Igreja.
A formação dos futuros presbíteros é tida como umas
das tarefas de maior delicadeza e importância para a evangelização. Além daquelas preocupações que atentam para a santificação pessoal e formação intelectual, uma que
tem sido alvo da atenção da Igreja é no tocante a sexualidade. Na última década, alarmante foi a veiculação pelos
meios de comunicação, dos casos de abuso de menores
por parte de clérigos, nos Estados Unidos, na Europa e
tantos outros lugares que irromperam.
No ano de 2008, a Congregação para a Educação Católica, até então responsável pela formação presbiteral,
emitiu o documento Orientações para a utilização das
competências psicológicas na admissão e na formação
dos candidatos ao sacerdócio (Igreja Católica, 2008) na
qual indica a contribuição da psicologia e o quanto pode oferecer aos formadores dos seminários, não somente um diagnóstico e a eventual indicação de terapia dos
distúrbios psíquicos, mas também possibilitar o desenvolvimento das qualidades humanas requeridas para o
exercício do ministério presbiteral. O documento (n. 2)
enumera um elenco de qualidades para o ministério: sentido positivo e estável da própria identidade viril; capacidade em relacionar-se de modo amadurecido com outras
pessoas e grupos de pessoas; sólido sentido de pertença
à hierarquia institucional; liberdade em entusiasmar-se
por grandes ideais e a coerência em realizá-los nas ações
de cada dia; coragem em tomar decisões e de permanecer fiel a elas; conhecimento de si, das suas qualidades
e limitações, integrando-as num apreço de si diante de
Deus; a capacidade de se corrigir; gosto pela beleza entendida como “esplendor da verdade” e a arte em reconhecê-la; estima pelo outro e que leva ao acolhimento;
e, capacidade do candidato em integrar, segundo a visão
cristã, a sua sexualidade, inclusive na consideração da
obrigação do celibato.
Outro documento importante é a Instrução sobre os
critérios de discernimento vocacional acerca das pessoas com tendências homossexuais e da sua admissão ao
Seminário e às Ordens Sacras (Igreja Católica, 2005), na
qual faz uma breve abordagem da moralidade dos atos
homossexuais e aponta as questões referentes ao ingresso
de homossexuais no seminário e sua posterior ordenação.
O documento pondera em última instância a necessidade
de verificar a idoneidade dos candidatos e caso necessário aponta a relevância de um profissional de psicologia
que contribua no discernimento do caso.
Nas Diretrizes para a Formação dos Presbíteros da
Igreja no Brasil (2010), a Conferência Nacional dos Bis-
Artigos
-
Relatos de Pesquisa
Rafael A. de P.; Alexsandro M. do N.
A complexidade da experiência está profundamente
arraigada pela consciência, é através dela que o conhecimento sensível do que nos cerca é apreendido, em especial
pela sua singularidade. Tudo o que sentimos, pelo tato,
pela visão, audição, como também os aspectos subjetivos
da experiência constituem uma complexa trama de modos de significar e nomear; da mesma forma que o intenso
fluxo de pensamentos que vertiginosamente emergem do
sujeito. Esta fenomenologia de si mesmo é tão profunda e
intangível que às vezes parece ilusória. Ainda assim, parece haver algo para a fenomenologia do self, o qual ainda
é muito difícil de definir (Chalmers, 1996).
Embora Chalmers (1996) reconheça o considerável
progresso no conhecimento da mente pelas neurociências e ciências cognitivas, alega que não alcançaram ao
que alcunhou o “problema difícil da consciência”: por
que o processamento de informação que realizamos, isto
é, discriminar, reunir e relatar a informação, é seguido de
uma vida interna que experienciamos? (Borgoni, 2011).
Chalmers (1996) pondera que a relação entre mente e
consciência é atravessada por dois conceitos. O primeiro é
o conceito fenomenal da mente. Este é o conceito da mente como a experiência consciente, e de um estado mental como um estado mental consciente experiente. Para
Chalmers esta dimensão é a mais intrigante da mente e
sobre a qual pretende empreender uma reflexão, todavia,
essa perspectiva não exaure a complexa questão do mental. O segundo é o conceito psicológico da mente. Este é o
conceito de mente como base causal ou explicativa para
o comportamento. Enquanto o primeiro, fenomenal, está
baseado na experiência da mente, o segundo debruça-se
no que a mente faz (Chalmers, 1996; Borgoni, 2011).
A experiência é um fenômeno interessante. Essa experiência se manifesta em várias modalidades (Chalmers,
1996) e cada uma possui sua singularidade, algumas serão citadas a seguir. As experiências visuais possuem um
conjunto de sensações e percepções que constituem uma
experiência do mundo que tornam a experiência interna
rica e beira a inefabilidade. As experiências auditivas embora diferentes das visuais, em especial as experiência da
música e do discurso, e as quais podem desencadear uma
emoção, como é o caso de escutar uma peça musical. As
diversas sensações corpóreas, de quente e frio, a percepção
de dor constituem modalidades da experiência interna.
Contudo, algumas experiências de ordem cognitiva
chamam a atenção pela riqueza que conferem à experiência. As imagens mentais constituem uma experiência,
na qual são formadas imagens sem o auxílio de uma percepção direta da realidade. O pensamento consciente é
um intricado fluxo de conteúdos, sensações e percepções
nas quais existe uma contínua permuta de conteúdo que
figura da experiência. As emoções, outra modalidade, são
associações de experiências; ao relatar a emoção o sujeito recorre a figuras de linguagem, elementos perceptivos,
imagens mentais a fim de falar sobre aquilo que ele próprio sente. E por fim, o senso de self (o senso de eu, de
mim), talvez a experiência mais complexa para ser descrita, e que, no entanto, a mais fundante da experiência,
sobretudo porque parece tratar de algo como um pano de
fundo, a consciência de si mesmo – a autoconsciência, como auto-apreensão interna e qualitativa de auto-aspectos
do self (Chalmers, 1996).
Todavia o acesso à experiência interior é complexo e
nem sempre os conteúdos referentes a ela estão a nível
consciente, isto é a experiência existe, mas é percebida
tenuamente, experiência dita prístina segundo Hurlburt
(2009), antes de qualquer apreensão consciente voluntária. Isto também implica que o conhecimento da experiência interna é importante e contribui para a compreensão da experiência imediata (Heavey & Hurlburt,
2008; Hurlburt, 2009), havendo um papel expressivo da
linguagem em ancorar em categorias semântico-conceituais tais feixes complexos de elementos da experiência
interna (Carruthers, 2002), favorecendo a emergência de
um sentido possível à mesma, sentido racional e passível de compartilhamento discursivo e intersubjetivo, sumário objetivante que contorna a experiência dando-lhe
concretude em seu ancoramento à noções da psicologia
folk compartilhadas na cultura de pertença (Morin, 2005;
Nascimento, 2008).
Nestas bases teóricas, tornar-se-ia legítimo investigar
a malha cognitiva e fenomenal que constrói a formação
presbiteral como objeto na/da/para consciência do presbítero em formação, não sendo, todavia o foco investigativo definido aqui. Assume-se que a vivência consciente
da formação presbiteral compõe-se de vários elementos
dentre os tipologizados por Chalmers (1996) como visualizações internas (imagens mentais), elementos discursivos (fala interna), afetos, autoconsciência e outros, os
quais precipitam-se numa gestalt de onde emerge um sentido possível da experiência interna para cada indivíduo
consoante ao objeto em tela, resultado este de extração
de sentido formalizável em discurso escrito a posteriori.
Sendo este justamente o foco da investigação presente,
a saber, os campos de significados resultantes da experiência interna, a pesquisa buscou mapear e descrever
os significados da formação presbiteral em seminaristas
católicos, como gestalten discursivas resultantes de arranjos complexos de elementos de experiência interna,
numa perspectiva idiográfica e fenomenal, numa mirada
analítica que buscou a tipologização de tal experiência
em torno de temas ou categorias temáticas.
Método
Participantes
Esse estudo foi conduzido em dois Seminários Maiores católicos: um no estado de Pernambuco e outro no Rio
Grande do Norte. Foram 34 seminaristas (11 de Pernambuco e 23 do Rio Grande do Norte) que participaram da
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Os Significados da Experiência Interna da Formação Presbiteral: uma Análise Temática Fenomenal
pesquisa, contudo um dos seminaristas solicitou a retirada do protocolo do corpus de pesquisa, no qual foi atendido. Os seminaristas estavam distribuídos nas seguintes
etapas da formação presbiteral, do início à conclusão da
formação: Propedêutico (22%), curso de Filosofia (54%)
e curso de Teologia (24%). As idades variaram de 17 a 44
anos, com idade média de 23,8 anos (DP=5,02).
Instrumento
Utilizou-se o Relato Fenomenológico, um instrumento fenomenal que possui a seguinte pergunta indutora:
“Como é ser seminarista para você?”. O objetivo do relato é capturar a vivência dos participantes da pesquisa e
elementos que comuniquem aspectos da experiência formativa de um seminarista.
Procedimentos
Após a liberação da pesquisa por parte do Comitê de
Ética da Universidade Federal de Pernambuco (nº de protocolo 405/11) e das permissões por escrito, através de Carta de anuência dos reitores dos seminários investigados,
o pesquisador se apresentou aos participantes em potencial no próprio ambiente de investigação (o seminário) a
fim de convidá-los a compor a amostra de participantes
do estudo proposto; após a leitura, esclarecimento sobre
os objetivos do estudo e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido deu-se a aplicação do protocolo da pesquisa. Foi dado a cada participante uma folha
na qual constava a pergunta indutora, a qual o mesmo
pode responder, escrevendo na folha, sem delimitação
de tempo para a pergunta.
vivida são empregados pertinentemente nas pesquisas de
corte fenomenológico (Moreira, 2004; Nascimento, 2008;
Castro & Gomes 2011). O mais relevante para a pesquisa
de viés fenomenológico como admoesta Moreira (2004)
não estará prioritariamente no instrumento, mas na primazia da experiência. Embora o método fenomenológico
tenha características flexíveis, em especial no tocante as
investigações científicas, isso não implica em dizer que
todas as variações sejam legitimas. Essas variações deverão estar perfiladas ao fenômeno investigado e coerência
ao método (Giorgi, 2006).
Fiéis a estes critérios norteadores e seguindo a metodologia fenomenológica padrão (Boemer, 1994; Cott &
Rock, 2008; Nascimento, Griz & Vieira, 2013), a análise
temática consistiu das seguintes etapas, sumarizadas por
Cott e Rock (2008): 1. Os protocolos foram digitados e lidos cuidadosamente várias vezes para promover a compreensão do relato da experiência dos seminaristas; 2. Frases marcantes, declarações ou frases que se referem aos
efeitos subjetivos da experiência dos seminaristas foram
extraídas dentro de cada protocolo; 3. Declarações marcantes extraídas com o mesmo significado foram organizadas de forma que se manteve a essência fundamental
da experiência de cada participante, assim, permitindo
o desenvolvimento de temas constituintes dentro de cada protocolo; 4. Estes temas constituintes foram então
analisados através de protocolos e os temas aglutinados
em torno do mesmo significado foram organizados em
temas abrangentes constituintes; 5. Os temas abrangentes constituintes foram avaliados para determinar se alguma sobreposição de temas abrangentes constituintes
poderia ser recolhida; e, finalmente, 6. Os temas abrangentes constituintes foram integrados em um parágrafo
final para formar uma definição estrutural fundamental
que capturou os aspectos essenciais da experiência da
formação presbiteral.
Análise dos dados
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O seminário é apontado como um lugar de dificuldade, embora em alguns momentos aceito com resignação,
pois aceita-se que na vivência da formação presbiteral no
cumprimento da vocação “Não se trata de uma vida só
de flores, as dificuldades fazem parte da caminhada vocacional” (Protocolo 20, Propedêutico). A ideia é de que
a formação é um caminho árduo que implicou renúncia de vários elementos que eram aspectos importantes
da vida anterior ao seminário: renúncia da família, pri-
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 24-34, jan-abr, 2018
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Seminário: lugar de diiculdade/renúncia
Artigos
A análise fenomenológica revelou cinco categorias temáticas emergentes da experiência da formação presbiteral, as quais serão descritas e interpretadas na sequência.
Relatos de Pesquisa
resultados e discussão
No tocante ao método fenomenológico compreendemos, enquanto instrumento de análise lógica e de confronto à realidade, que ele pretende apreender os significados
revelados por um sujeito sobre sua experiência (Castro &
Gomes, 2011). Embora seja um método originalmente filosófico, resguardadas as diferenças epistemológicas entre
filosofia e psicologia, sua evolutiva transposição para a
psicologia implicou em variações quanto ao processo de
investigação (Moreira, 2004; Giorgi, 2006; Castro & Gomes,
2011; Feijoo & Mattar, 2014). Enquanto método requer um
instrumento, e certamente o mais empregado na maioria
das pesquisas em psicologia seja a Entrevista semi-estruturada, na qual o pesquisador fenomenólogo faz uso de
uma pergunta indutora que dispara o acesso a experiência do sujeito (Moreira, 2004), entretanto outros dados
gerados em observações, documentos (audiovisuais, por
exemplo), ou até mesmo registro escrito da experiência
Artigos
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Relatos de Pesquisa
Rafael A. de P.; Alexsandro M. do N.
meiro objeto de amor; da namorada, abdicação de uma
relação afetiva com alguém do sexo oposto; renúncia
dos sonhos e projetos, os quais individualizam o sujeito.
O seminarista percebe que abdica de uma zona de conforto e afeto em troca, talvez inesperada, de uma vivência
permeada de tensão – a vida no seminário, nesta “(...) que
é uma vida desafiadora, cheia de obstáculos, de perigos,
de medos, de sonho, de preocupações, de desejos, de descobertas, de dores, de dúvidas, de angústias... e de tantas
outras coisas negativas que poderia lhes dizer” (Protocolo 25, Propedêutico).
A formação parece estar permeada por uma tensão,
a qual o seminarista precisa lidar; palavras como: árdua,
renúncia, se entrelaçam com missão, caminho, busca. Parece que essa vivência é necessária para se chegar a um
“bem maior”, contudo, experienciar essa realidade pode
deixar “marcas” como revelam os dados fenomenais. Aqui
apresentam-se elementos discursivos a partir das palavras
e figuras de linguagem que possibilitam a emergência de
um sentido possível da experiência interna do que o sujeito sente (Chalmers,1996). Essa questão aponta para um
estado, mais ou menos caracterizado, em que o sujeito é
capaz de versar de forma racional com o seu ambiente de
alguma forma, e por isso reverbera em um tipo particular
de consciência (Chalmers, 2010).
As relações estabelecidas entre os seminaristas, os conflitos interpessoais, a separação da família, a renúncia ao
namoro e à sexualidade, e de certa forma o abandono de
outros projetos pessoais e profissionais em detrimento da
formação presbiteral apontam para experiência clara na
vida de um seminarista (Benelli, 2003; 2006). Os seminaristas apontam que continuam no seminário por razões
de fé, e não obstante todos os entraves, “insistem na sua
vocação ao sacerdócio, sem deixar de indicar a importância do fator acadêmico em sua decisão de prosseguir
na formação” (Benelli, 2003, p. 228). A própria dinâmica
do funcionamento do seminário, o processo de vigilância
da equipe formadora, quanto entre os próprios seminaristas, a não vivência da autonomia e liberdade (Baungart &
Amatuzzi, 2013; Benelli, 2003; 2007a; 2007b) são propiciadores dessa experiência. Fica apontado que a experiência interna destes seminaristas fica atrelada a experiência
de si mesmo, da mesma forma que suas emoções, como
também da experiência religiosa aglutinada à instituição
e que perpassa nas trajetórias e nas representações que seminaristas fazem sobre sua própria vocação (Spiess, 2012).
Felicidade em ser seminarista
O seminarista se percebe como escolhido, eleito. Vê
o estado sacerdotal como um dom, algo a ser almejado.
Contrapõe os momentos de dificuldade com os de alegria,
caminham lado a lado a percepção dos aspectos sombrios
e difíceis da vocação, com a valoração positiva da experiência, como realçado pelo seminarista em seu testemu-
nho: “Mais [sic] o seminário não só tem esse lado escuro
(...) SEMINARISTA É BOM DEMAIS” (Protocolo 25, Propedêutico; grifos do participante). Alguns elementos da
vivência formativa como a fraternidade e a oportunidade
de estar se preparando são vistas como positivas, como
expresso no excerto:“Mas também a [sic] momentos de
alegrias, sejam elas proporcionados [sic] pelo seminário
enquanto instituição, seja pela fraternidade.” (Protocolo
10, Filosofia).
Embora o seminarista perceba o seminário enquanto
lugar de renúncia, também existe a percepção de aspectos
positivos, não há somente “um lado escuro”. Esse relato
mostra que também eles encontram modos de significar
positivamente a sua experiência e, quiçá empreguem recursos a fim de obter satisfação. No entanto, representa
a sua experiência na satisfação em estudar, rezar e trabalhar na esteira do pensamento beneditino ora et labora
(do latim: Reza e trabalha). Benelli (2007a) coloca que em
meio aos conflitos vivenciados no seminário, os seminaristas encontram estratégias a fim de poderem lidar com
as pressões advindas do meio, seriam as “virações”. No
tocante a isso a experiência revela como “provar” alguma coisa, compreender, descobrindo o sentido das coisas
(Giussani, 1997; Gaspar & Mahfoud, 2006). Contudo, os
dados fenomenais não possibilitaram distinguir até que
ponto essas afirmações emergem de sua real experiência,
ou se seria uma defesa, a fim de se resguardar tendo em
vista que a permanência no seminário é fundamental ao
menos para ser ordenado padre.
Reconhecimento/discernimento da vocação
O seminarista reconhece sua vocação e enxerga o seminário como lugar aonde compreende e amadurece seu
chamado. O seminário, “viveiro” de sacerdotes, é também percebido como instância moldadora da própria vocação. O seminarista não pretende ser seminarista para
sempre, realça que sua vocação não é a de ser seminarista,
sua vocação é ser padre; ser seminarista é uma condição
circunstancial, provisória, significado graficamente testemunhado pelo seminarista:“Todo ideal busca sua realização. Para mim é muito claro de que o ser seminarista
não é Meu ideal, Mas sim, o sacerdócio. A vocação não é
ser seminarista, Mas antes, ao sacerdócio.” (Protocolo 13,
Teologia). O significado da formação enquanto transição
a outro estado, e de auto-ausculta nesse processo é emblematicamente enfatizado pelos seminaristas, como vê-se no excerto do relato fenomenológico do participante:
“Ser seminarista é o estar neste processo que Me leva ao
Meu ideal: O sacerdócio.” (Protocolo 13, Teologia). Firma-se para o seminarista o senso de ser o seminário lugar sobretudo de encontro consigo mesmo, com suas mais caras
aspirações, humanas e espirituais, e lócus de ajuizamento
de sua verdadeira vocação, processo de tomada de juízo
autêntico, tanto para os que se percebem verdadeiramente
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 24-34, jan-abr, 2018
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Seminário como etapa/lugar de aprendizado
Masculinidade/valor
A formação presbiteral é compreendida como algo importante e relevante durante a permanência no seminário,
sua importância também é salientada quando considerado o exercício futuro do ministério presbiteral, torna-se
inteligível portanto, a urgência de uma vivência signifi-
A masculinidade é afirmada e associada à dimensão
do valor. O seminarista é um homem de palavra, de integridade; os aspectos relativos a hombridade são colocados em relevo, como expresso graficamente pelo excerto
seguinte, no qual coteja-se o período no seminário como
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Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 24-34, jan-abr, 2018
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cante deste período, conforme expressa no excerto deste
seminarista: “(...) o seminario [sic] é apenas uma etapa de
formação e tenho que aproveita-la.” (Protocolo 2, Filosofia). A pastoral, a vida comunitária, o cultivo da espiritualidade e da santidade, também são elementos que integram a formação na perspectiva do seminarista, aspecto
esse que parece interiorizado pela ênfase que é dada por
aqueles que dirigem o seminário nas diversas experiências formativas do período, instâncias de um aprendizado e modelação interior imprescindíveis à concretização
do sonho do sacerdócio, como expresso no excerto: “Ser
seminarista é uma etapa da minha vida necessária para
alcançar o meu desejo vocacional de ser padre.” (Protocolo 11, Teologia). Dessa forma, a experiência não é demarcada aridamente pelas relações com a realidade, mas
a apreensão emergente deste período formativo, possibilita a descoberta do seu sentido, a razão do sentido das
coisas experienciadas (ver Giussani, 1997; 2000; Gaspar
& Mahfoud, 2006).
O seminário é fundamentalmente uma instituição
educacional e com propósito objetivo: formar padres. Na
experiência do seminarista católico existe uma tônica em
relação a importância dos estudos, no entanto também
existe uma consciência de que essa formação é circunstancial, isto é, ela está determinada a ter um tempo de
duração, mesmo que longo (Baungart & Amatuzzi, 2013).
O aprendizado não é circunscrito à formação acadêmica,
também é posto o aprendizado pastoral, como também a
própria experiência de passar pelo seminário carrega um
aprendizado subjetivo. Segundo a Igreja, as conjunturas
atuais e os desafios da evangelização exigem padres notadamente qualificados e competentes. Afinal serão eles
que participarão mais de perto como colaboradores de
seus bispos, assumindo trabalhos pastorais sempre mais
gerais e complexos, junto com ações cada vez mais amplas
no interior e fora da diocese. Diante do grande encargo
pastoral é indubitável que do futuro presbítero exija-se
uma competência teológica e garantido conhecimento
doutrinal (CNBB, 2010). O aspecto formativo é posto em
alta consideração pelas orientações da Igreja e sua relevância não está concernente somente ao aspecto pastoral, mas no diálogo com a cultura laica. Benelli (2007b,
p. 103) coloca que a formação presbiteral “organiza-se
como um longo ‘período de prova’, de exame, um longo
escrutínio realizado pela equipe de formadores e pelos
próprios candidatos, relativo à idoneidade do sujeito e à
autenticidade da vocação”.
Artigos
vocacionados, quanto para os que se percebem destinados a vivência da fé nos domínios laicos, como expresso
no excerto seguinte em que o seminarista ajuíza a formação presbiteral: “É fase, é discernimento! Estou saindo da
instituição por descobrir que enquanto seminarista, não
poderei ser um bom padre.” (Protocolo 23, Propedêutico).
Além de um reconhecimento da vocação, também há o
contínuo processo de avaliação que causa desconforto,
a identificação com a figura do sacerdote, em especial
diante de aspectos positivos e negativos identificados na
figura do padre, e o fato de que a vocação, pela sua complexidade, requer não somente um discernimento subjetivo (Baungart & Amatuzzi, 2013).
Na exortação apostólica Pastores Dabo Vobis (1992,
n. 10), João Paulo II pontua acerca do discernimento como
função do espírito de operar distinções entre bem e mal,
entre sinais de esperança e ameaças, recaindo sobretudo
sobre os aspectos positivos desta vivência de formação,
dado que na formação dos futuros sacerdotes não se aspira tratar exclusivamente de “acolher os fatores positivos e de rejeitar frontalmente os negativos. Mas tem-se
de submeter os próprios fatores positivos a um atento
discernimento, para que não se isolem uns dos outros
nem entrem em oposição entre si, absolutizando-se e
combatendo-se mutuamente”. Da mesma forma deve-se
auscultar os fatores negativos, na possibilidade de neles
“ocultar-se algum valor que espera ser liberto e reconduzido à sua verdade plena”.
O próprio seminarista coloca em questão sua vocação em especial quando percebe os elementos positivos
e negativos presentes na instituição, enquanto que o seminário denota como uma “máquina de vigiar”, discernir e julgar a “vocacionalidade” do seminarista (Benelli,
2007b; 2007c). Esse aspecto revela um processo da consciência, sendo a experiência interna indiciadora de aspectos do Self e que promovem um aumento dos níveis de
autoconsciência (Chalmers, 1996; Nascimento, 2008). De
uma postura ingênua passa para uma atenta e consciente
da sua experiência e assim repensa sua própria vocação
(Benelli, 2003; 2007a). A questão da escolha vocacional
está arraigada na própria identificação e subjetivação do
ser padre, tanto que a formação pretende alçar esse homem natural numa abertura à transcendência, e a partir
daí desenvolver a personalidade do religioso (Benelli,
2007a), embora haja um processo de inculcação do projeto vocacional a ser assumido pelo candidato ao presbiterado (Spiess, 2011; 2012).
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Os Significados da Experiência Interna da Formação Presbiteral: uma Análise Temática Fenomenal
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Rafael A. de P.; Alexsandro M. do N.
um período de fortalecimento e crescimento interior com
vistas ao seminarista“ser homem, homem de palavra, homem de caráter, homem de boa fé” (Protocolo 24, Propedêutico). Os atributos do presbítero futuro estão em gérmen no seminarista, e todo esforço da formação presbiteral é o cultivo destes atributos do verdadeiro homem,
seus caracteres morais, éticos, e valores, para que aflorem
e constituam seu caráter em definitivo, como expresso no
excerto:“Ser seminarista é ser um sacerdote em potência,
onde deve-se viver como um padre, vivendo a humidade
[sic], a castidade, a obediência e sobretudo o amor a Deus,
ao povo de Deus e a santa igreja de cristo [sic]” (Protocolo 29, Propedêutico), caráter este, condição sine qua non
para que “um dia chegue a ordenação, e possamos ser homens felizes” (Protocolo 29, Propedêutico).
Essa categoria traz um elemento que perpassa a vida
do seminarista católico; deste é solicitado à entrada no
seminário adotar a disciplina do celibato em vista que
após a ordenação sacerdotal isto será exigido dele. A própria tensão e discussão na qual o celibato é posto coloca
a questão sempre em cheque, e a qual a Igreja opta por
afirmar a disciplina do celibato. A expressão da sexualidade está no cerne do discurso a respeito da masculinidade, contudo existem outras vias pelas quais a masculinidade é afirmada e surgem outras formas de masculinidades e de identidade (Spiess, 2011). O Catecismo da
Igreja Católica, no §1577 invoca que somente um varão,
isto é, somente um homem pode receber validamente o
sacramento da ordem. Da mesma forma na perspectiva
eclesiástica o sacerdote é configurado a Cristo e é requisitado dele a figura da paternidade espiritual (Igreja Católica, 2003). Diante da questão das críticas ao celibato,
o Papa Paulo VI escreve a carta encíclica Sacerdotalis
Caelibatus (1967) na qual afirma no n. 78 a ascética viril
do presbítero, pois “a vida sacerdotal exige intensidade
espiritual genuína e segura, ascética interior e exterior
verdadeiramente viril.”.
Spiess (2011) em um estudo sobre seminaristas indica
que um dos modos que os seminaristas encontram para
construir a masculinidade está no discurso, o qual segundo sua compreensão entende que o gênero se constrói pela
linguagem, pelo discurso, mas usam o discurso do comportamento para afirmar uma masculinidade. Uma das
formas de masculinidade percebidas por Spiess é aquela
no tocante aos que se dedicam as atividades pastorais, aos
estudos e apresentam bom comportamento (Spiess, 2011;
Benelli, 2003; 2007a). O dado fenomenal desta pesquisa
aponta para uma experiência sobre a masculinidade na
qual existe uma tônica na dimensão de honra, hombridade, da dimensão valorativa que o homem deve ter. Outro aspecto a que o dado remete é a interiorização de um
valor solicitado pela instituição e que o seminarista toma como seu, revelando um aspecto da experiência, sua
nota mais fundante, especialmente porque intercepta algo que esteja no bojo da consciência, a consciência de si
mesmo, a autoconsciência, como auto-apreensão interna
e qualitativa de auto-aspectos do self (Nascimento, 2008;
Chalmers, 1996).
As categorias, nesse estudo, parecem se distribuir
por entre as etapas de formação. A dicotomia entre os
elementos de dificuldade, de renúncia e a felicidade em
serem seminaristas salta aos olhos durante o período do
Propedêutico; também no tocante a masculinidade esse
período mostra uma tendência a afirmação. O relato dos
seminaristas do período do curso de Filosofia, embora
ainda tragam categorias referentes as dificuldades do seminário e sua felicidade em ser seminarista, no entanto
acentua o aspecto da formação presbiteral, como também
o reconhecimento da própria vocação. Por fim, os seminaristas da etapa de Teologia relatam bem menos os aspectos referentes a dificuldade/renúncia e se voltam para
a dimensão do reconhecimento da própria vocação. Independente das ênfases significantes, a formação presbiteral é experienciada e significada enquanto objeto na
consciência dos seminaristas como: 1. Seminário: lugar
de dificuldade/renúncia; 2. Felicidade em ser seminarista;
3. Reconhecimento/discernimento da vocação; 4. Seminário como etapa/lugar de aprendizado; e, 5. Masculinidade/valor, sendo esta síntese fenomenológica a encontrada neste estudo a partir da metodologia fenomenológica
empregada.
Considerações inais
A formação presbiteral acontece em uma conjuntura
na qual a formação da subjetividade é objetivo principal e
sua conformação aos princípios que coadunam os valores
morais e dogmáticos. Entretanto, a experiência interna do
ser seminarista católico mostra um movimento psíquico,
no qual existe uma tendência para se conformar com as
demandas institucionais, e por outro a conservação de
aspectos muito particulares da subjetividade.
Os elementos apontados nos achados de pesquisa
corroboram a hipótese assumida inicialmente e vão ao
encontro da questão levantada por esse estudo que permite acessar a experiência formativa do futuro presbítero. As categorias temáticas estão no tocante a experiência interna, das imagens mentais, do pensamento e
das emoções. Contudo é importante salientar que essa
pesquisa não esgota a temática e nem pretende indicar
que esses dados sejam uma verdade absoluta. O diálogo da teoria psicológica com a literatura da formação
presbiteral e das orientações emanadas da Igreja Católica aponta uma profícua reflexão que reverbere positivamente nas dinâmicas institucionais e, sobretudo na
formação presbiteral.
Além do fomento que essa pesquisa permite à formação presbiteral, sobretudo no tocante a qualidade de
vida, e na compreensão da formação presbiteral a partir
de um olhar psicológico salutar para psicologia clínica e
cognitiva, este estudo possui seu valor significativo em
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 24-34, jan-abr, 2018
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Os Significados da Experiência Interna da Formação Presbiteral: uma Análise Temática Fenomenal
razão de explorar um lócus de pesquisa relativamente
novo pois traz uma nova perspectiva em investigar a formação presbiteral à luz dos estudos sobre a consciência,
que em si mesmos, são escassos na literatura nacional, e
na sua contraparte metodológica, o uso da análise fenomenal como instrumento para acesso da experiência da
formação presbiteral, em especial pelo aspecto novo que
essa perspectiva traz. Embora esse trabalho seja de matriz
fenomenal, é importante salientar que esse dado qualitativo não esgota a riqueza da experiência dos participantes
e não encerra as possibilidades metodológicas que em si
mesmas e na interface desses dados fenomenais possibilitarão em estudos futuros descortinar um mais vasto entendimento do fenômeno.
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rafael Amorim de Paula - Tem Bacharelado e Formação em Psicologia
em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco, Membro do
Laboratório de Autoconsciência, Consciência, Cognição de alta ordem
e Self (LACCOS).
Alexsandro Medeiros do Nascimento - Possui Bacharelado em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Mestrado e
Doutorado em Psicologia Cognitiva pela Universidade Federal de Pernambuco. Realizou Estágio de Pós-Doutorado na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Área: Psicologia Cognitiva. Atualmente é
Professor Adjunto I da Universidade Federal de Pernambuco, Professor
Permanente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Cognitiva
da UFPE e Coordenador do Laboratório de Estudos da Autoconsciência, Consciência, Cognição de Alta Ordem e Self (LACCOS/UFPE). Endereço Institucional: Av. Acadêmico Hélio Ramos, s/n - Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), 8º Andar - Programa de Pós-Graduação em Psicologia Cognitiva - Recife - 50670-901 PE Brasil. Email:
[email protected]
Recebido em 23.05.2015
Primeira Decisão Editorial em 01.03.2016
Aceito em 21.08.2017
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34
Variáveis Associadas ao Sentido de Vida
Nº DOI: 10.18065/RAG.2018v24n1.4
VariáVeis assOciadas aO senTidO de Vida
Variables Associated With the Meaning of Life
Variables Relacionadas al Sentido de la Vida
ana Paula PoRTo noRonha
dianniFFeR aPaReCida de oliVeiRa
leonaRdo de oliVeiRa BaRRos
Thaline da Cunha moReiRa
resumo: Considerando que o sentido de vida independe de situações de prazer e de realização e que é possível obtê-lo ainda que
exista um sofrimento, o presente estudo teve como objetivo averiguar o que está associado ao sentido de vida dos brasileiros. Os
participantes da pesquisa foram 901 pessoas, sendo 81,9% do sexo feminino, com idades variando entre 18 e 77 anos e oriundos
de 25 estados brasileiros. Para levantar tais informações foi desenvolvido um questionário, sendo respondido de forma online em
um período de 10 dias no mês de julho de 2016, com questões como:em que você deposita sua energia e para que ou quem você dedica sua vida. Foram realizadas análises quantitativas e qualitativas. Nos resultados foi possível observar que a maioria das
pessoas citaram a Família como o fator mais importante, além de associá-la ao sentido de vida e a quem dedicam a mesma. Além
disso, houve diferença entre homens e mulheres quanto à palavra associada ao sentido de vida, de modo que as mulheres relacionam à família e o homem a missão e razão de viver. Os resultados são discutidos com base na literatura.
Palavras-chave: religiosidade; logoterapia; existencialismo
Abstract: Considering that the meaning of life is independent of situations of pleasure and accomplishment and that it is possible
to obtain it even if there is suffering, the present study aimed to ascertain what is associated with the meaning of life of Brazilians. The participants of the survey were 901 people, 81.9% female, with ages varying between 18 and 77 years and coming from
25 Brazilian states. To raise this information, a questionnaire was developed,being answered online in a period of 10 days in July
2016, with questions such as: where you put your energy and what or who you dedicate your life to. Quantitative and qualitative
analyzes were performed. In the results, it was possible to observe that most people cited the Family as the most important factor,
besides associating it with the meaning of life and to those who dedicate it. Moreover, there was a difference between men and
women as to the word associated with the meaning of life, so that women relate to family and man the mission and reason to live.
The results are discussed on the basis of literature.
Keywords: religiosity; logotherapy; existentialism
35
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 35-43, jan-abr, 2018
-
Na primeira metade do século XX, Viktor Frankl elaborou uma teoria cujo pressuposto se baseava que ter um
sentido de vida (SV) poderia ser ao mesmo tempo um fator de proteção às adversidades, assim como contribuir
para um sentido existencial (Ortiz & Morales, 2013).
O SV tem sido entendido, por exemplo, como um indicador de proteção ao suicídio. Um estudo longitudinal realizado por Kleiman, Adams, Kashdan e Riskind (2013) com
estudantes universitários revelou que a gratidão confere
resistência ao suicídio, aumentando o sentido de vida.
A temática foi objeto de estudo da Logoterapia, tendo
sido o psiquiatra austríaco Frankl seu principal idealizador. A abordagem se baseia no pressuposto de que o ser
humano está em incessante busca de sentido e, considera
o homem com estrutura para sua realização (Frankl, 1984).
O sentido de vida é acessível à pessoa, independentemente de sua condição e não há algo que seja universal, pois
eles são individuais e transitórios, dependendo, assim,
intrinsicamente do momento em que ele se faz presente
(Frankl, 1989; Pereira, 2014).
A pessoa se autorrealiza em busca de um sentido à
medida que essencialmente “esquece de si mesmo” e de-
Artigos
introdução
Relatos de Pesquisa
resumen: Considerando que el sentido de la vida es independiente de las situaciones de placer y logro y lo puede conseguir incluso si hay sufrimiento, este estudio tuvo como objetivo averiguar lo que está asociado com el sentido de la vida de los brasileños. Los participantes fueron 901 personas, 81,9% mujeres, com edades comprendidas entre los 18 y los 77 años y oriundos de
25 estados brasileños. Para obtener esta información, hemos desarrollado um cuestionario, siendo respondido de forma online y
nun período de 10 días en el mes de julio de 2016, con preguntas como: donde poner su energía y por qué o de quiénle dedica su
vida. Se realizaronanálisiscuantitativos y cualitativos. Em los resultados se observó que lamayoría de las personas citaronfamilia
como elfactor más importante, y com el sentido de la vida y los que participan enella. Además, no hubo diferencias entre hombres y mujeres y la palabra asociada com el sentido de la vida, por lo que las mujeres se relacionan com la familia y el hombre la
misión y razón de vivir. Los resultados se discutenen base a la literatura.
Palavras-clave: religiosidad; logoterapia; existencialismo
Artigos
-
Relatos de Pesquisa
Ana P. P. N.; Dianniffer A. de O.; Leonardo de O. B.; Thaline da C. M.
dica-se a algo maior (Frankl, 1993), como por exemplo,
trabalhos que proporcionem ajudar ao próximo, no qual os
benefícios não são voltados unicamente para um ou outro
e, sim, para o meio social. Quando o indivíduo compreende seus padrões pessoais, torna-se capaz de distanciar-se
de si mesmo. Dessa forma, pode tomar partido e escolher
o que fazer, para depois agir (Frankl, 1989).
Para uma vida com sentido, três valores são considerados relevantes, sendo eles, valor criativo, valor vivencial e
valor atitudinal. O primeiro refere-se à execução de uma
boa ação. Valor vivencial trata das experiências da pessoa
com o mundo. Por fim, valor atitudinal, diz respeito aos
padrões pessoais de reações, ou seja, o quanto as pessoas
aprendem e se desenvolvem diante de situações difíceis
(Frankl, 1998). Segundo Frankl (1989) a ausência de um
sentido vital pode levar o sujeito a apresentar sintomas
como ansiedade e depressão. Para o autor, o sentido existencial precisa ser encontrado e não criado.
O significado de SV também foi discutido por Allport (1954) e Maslow (1962). No entanto, os autores não
tinham a intenção de mensurá-lo, o que ocorreu mais recentemente (Schnell & Becker, 2006). Nos últimos anos o
tema tem recebido atenção de pesquisadores e amostras
distintas foram investigadas, sendo que estudosrelacionando SV com características positivas têm sido alvo de
algumas pesquisas (Steger, Frazier, Oishi, & Kaler, 2006).
Pinquart (2002) realizou uma meta-análise com base
em 70 estudos sobre o propósito de vida em pessoas com
idades a partir de 60 anos. Os achados indicaram um declínio no propósito de vida à medida que a idade avança. Foram encontrados níveis mais elevados de propósito
naqueles com maiores índices de saúde, melhor integração social, nos casados e com nível socioeconômico mais
elevado. As diferenças quanto ao sexo foram pequenas, o
que foi reforçado por Ortiz e Morales (2013), no sentido de
que os apontamentos quanto ao gênero são controversos.
No que se refere aos estudos de sentido de vida com
professores, Damasio, Melo e Silva (2013) avaliaram os
índices de SV, de bem-estar psicológico e de qualidade
de vida em docentes de escolas públicas e privadas, com
vistas a compreender se o SV modera a relação entre os
outros dois construtos. Os resultados revelaram que o SV
é variável preditora de bem-estar psicológico e de qualidade de vida.
Foram investigados por Oliveira e Silva (2013) os principais elementos psicossociais que favorecem bons níveis
de saúde mental ou bem-estar psicológico e a factível relação entre estes. Participaram da pesquisa 146 pessoas
de cinco cidades do estado de Sergipe com idade média
de 68,9 anos, sendo a maioria do sexo feminino (65%).
Os resultados sugeriram uma relação positiva entre as variáveis SV e bem-estar psicológico, sendo que ambos se
mostraram relevantes fatores protetivos para depressão.
Ademais, o SV e sua relação com as variáveis otimismo, esperança, satisfação com a vida, felicidade subjetiva,
autoestima e autoeficácia foi verificada em uma amostra
de 3.034 sujeitos, sendo 63,9% mulheres, com idades variando entre 18 e 91 anos, provenientes de 22 estados do
Brasil. Os resultados indicaram que a busca pelo SV foi
maior entre os que apresentam conflito existencial (Damásio, 2013). A avaliação do bem-estar e do SV em processos terapêuticos podem promover o desenvolvimento
saudável do cliente e, em outra medida, Pinquart (2002)
endossou a forte correlação negativa com a depressão.
O otimismo serve como mediadorda relação entre SV e
afetos positivos e negativos (Ho, Cheung, & Cheung, 2010);
o que também foi verificado no estudo de Doğan, Sapmaz,
Tel, Sapmaz e Temizel, (2012), no qual o poder preditivo de SV em relação ao bem-estar subjetivo foi de 34%.
A adaptabilidade de carreira, mais especialmente a
preocupação e o controle com a carreira, também é predita
pelo SV (Yuen & Yau, 2015). Os fatores que motivam o SV
de jovens universitários foram pesquisados por Claussen
e Soto (2015) e os achados sugeriram que há relação com
expectativas futuras, nos quais os valores foram subjetivos
e carregados de experiências daquela geração.
Pesquisas transculturais têm contribuído para um melhor entendimento do tema, entretanto os estudos ainda
precisam ser aprofundados (Sommerhalder, 2010). Embora os achados encontrados ofereçam subsídios para analisar as fases do adulto e da velhice, Sommerhalder (2010)
realizou um levantamento bibliográfico exploratório a fim
de verificar as definições de SV. Os resultados revelaram
que o construto é definido como um fator importante para
a saúde e considerado novo na área de estudos do envelhecimento, no qual é relacionado a menores chances de
adoecer. Ainda, enfatiza a continuidade da busca de SV
ao longo da trajetória dos indivíduos.
O SV tem sido compreendido como uma percepção de
organização, coesão, ou lógica, frente à própria existência,
em conjunto com a busca e satisfação de metas significativas ao indivíduo, o que proporciona um sentimento de
realização existencial (Damasio, Melo, & Silva, 2013). Tal
construto tem uma dimensão individual, como também
é considerado um elemento cultural. Isto é, as experiências de vida, ainda que sejam singulares, fazem parte da
cultura na qual a pessoa está inserida, e isso afeta as decisões pessoais, ou seja, estes podem realizar escolhas com
base em opiniões, valores e metas coletivas (Sommerhalder, 2010). Ainda, segundo a autora, não basta a pessoa
estar inserida no contexto social, é importante sentir-se
parte da cultura para que seu sentido de vida seja compartilhado pela sociedade. Por fim, o SV é definido como
um construto multidimensional, tal como afirmado por
Halama (2009) e Ortiz, Cano e Trujillo (2012).
Considerando as definições e os estudos que vêm sendo realizados a respeito do SV, principalmente os brasileiros, que indicam o quanto a presença e a busca de um
sentido pode ser protetivo e importante para a saúde ao
longo da vida das pessoas (Sommerhalder, 2010; Oliveira & Silva, 2013; Damásio, 2013), é que se problematiza
o presente estudo, com vistas ao entendimento de quais
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 35-43, jan-abr, 2018
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Variáveis Associadas ao Sentido de Vida
são os elementos mais associados ao SV em uma amostra
brasileira. Para tanto, foi desenvolvido especificamente
para esta pesquisa um questionário para conhecer como
as pessoas estão considerando o sentido existencial delas. A elaboração desta ferramenta se deu com base na
logoterapia e as postulações de Victor Frankl a respeito
da busca e existência de um sentido de vida.
tadas questões sociodemográficas, como idade, sexo, unidade de federação, escolaridade, se trabalhavam ou não e
religião. Para atender ao objetivo da pesquisa as seguintes
questões foram elaboradas, “em que você tem depositado
sua energia ultimamente”, “para que ou quem você dedica sua vida”, “quando eu digo para você sentido de vida,
qual a primeira palavra que você pensa imediatamente”.
As perguntas eram abertas, sem limite de caracteres para
o tamanho da resposta.
Objetivos
Participaram da pesquisa 901 pessoas, dos quais 738
(81,9%) eram do sexo feminino e 163 (18,1%) do masculino, com idades variando entre 18 e 77 anos, sendo
a média de 35,19 anos (DP = 11,9). Entre os homens, a
idade variou de 18 a 68 (M = 33,58, DP = 11,880) e entre
as mulheres variou de 18 a 77 (M = 35,54, DP = 11,928).
No que diz respeito à escolaridade, do sexo masculino,
participaram mais pessoas com ensino superior (39,3%),
embora a diferença para aqueles com pós-graduação tenha sido pequena (34,4%). No entanto, para mulheres, a
maior parte tinha pós-graduação (48,6%), vindo em seguida, as participantes com ensino superior (36,4%). Os
participantes eram provenientes de 24 estados brasileiros,
com a maior concentração no estado de São Paulo (41,5%)
e Minas Gerais (17,2%), o que também aconteceu para os
homens, embora com porcentagens menores em ambos
os estados (35,4% e 14,1%)
Também se buscou conhecer a atribuição religiosa
dos participantes, sendo que dos participantes homens,
a maior parte se declarou católico (44,8%), vindo em seguida os que afirmaram não ter uma religião (11,7%) e
os espíritas (8%). As demais religiões mencionadas tiveram menos de 7% de endosso. No que concerne às participantes do sexo feminino, a maior parte se declarou católica (51,4%), vindo em seguida as que afirmaram não
ter uma religião (12,2%), as espíritas (11,5%) e as protestantes (8,1%). As demais religiões tiveram menos de 5%
de endosso.
Instrumentos
O questionário desenvolvido pelos pesquisadores do
presente estudo buscou conhecer como as pessoas consideram o seu sentido existencial. Para tanto, foram levan-
37
Procedimentos de análise dos dados
Esta pesquisa contou com análises quantitativas e
qualitativas. Assim, inicialmente os dados foram organizados por meio do programa estatístico SPSS v.20, tendo
sido realizadas análises descritivas para a caracterização
da amostra. Em seguida, foram empregadas análises de
conteúdo para as perguntas do questionário, com o intuito de formar categorias de respostas. As categorias foram
construídas com base nos pressupostos de Bardin (2004),
assim para cada pergunta as respostas foram agrupadas
de acordo com a temática a que elas pertenciam. Para a
primeira pergunta (o que você considera mais importante na sua vida) as categorias definidas foram: família,
trabalho, deus/fé, saúde, amor, amigos, paz, financeiro,
felicidade, eu em relação à minha vida, liberdade e respostas múltiplas.
Na categoria ‘família’ foram incluídas as respostas que
citavam pai, mãe, filhos e marido. Entendeu-se como ‘trabalho’ aquelas ideias voltadas à profissão, experiência, realização e sucesso profissional. Jesus, espírito, espiritualidade foram incluídas na categoria ‘deus/fé’. Na categoria
‘amigos’ foram considerados argumentos relacionados à
companheirismo e coleguismo. Calma, harmonia e tranquilidade integraram a categoria ‘paz’. No ‘financeiro’ foram inseridas palavras como dinheiro, economia, sucesso
financeiro. Felicidade, alegria e bem-estar se agruparam; e
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 35-43, jan-abr, 2018
Relatos de Pesquisa
Participantes
O estudo em questão está inserido em um projeto de pesquisa mais amplo, que foi devidamente apreciado e recebeu parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade São Francisco, CAAE:
20410713.3.0000.5514. A coleta foi realizada de forma
online, sendo disponibilizado o link nas redes sociais por
meio da plataforma do Google Drive, por um período de 10
dias durante o mês de junho de 2016. A primeira parte do
questionário foi destinada a explicar os objetivos da pesquisa e o tempo de resposta necessário para completá-la,
sendo que os participantes levaram em média 10 minutos
para responder ao protocolo. Após concordarem com o
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), os
participantes tinham acesso ao questionário.
-
Método
Procedimentos
Artigos
O presente estudo tem por objetivo investigar quais
fatores e temas os brasileiros associam a sentido de vida e verificar diferenças em funções das variáveis sexo,
escolaridade, situação trabalhista e prática da religião.
Ana P. P. N.; Dianniffer A. de O.; Leonardo de O. B.; Thaline da C. M.
‘eu em relação à minha vida’ pode ser ilustrado com termos como evolução pessoal, aprendizado e sacrifício. Não
foram encontrados sinônimos para as categorias, ‘saúde’,
‘amor’ e ‘liberdade’. Por fim, na categoria ‘respostas múltiplas’ ficaram agrupadas aquelas que eram compostas por
várias categorias, como por exemplo, saúde, paz e família;
ou profissão e família.
Em relação à segunda questão (quando eu digo a você
sentido de vida o que vem imediatamente a sua cabeça?),
as categorias da primeira pergunta se mantiveram, excetuando-se financeiro e eu em relação à vida e foram incluídas estudo, viver, propósito, sonho, missão, evolução,
caridade, razão de viver, sabedoria, realização, universo,
generosidade, futuro e prosperidade. As palavras geraram
categorias, de modo que nesta questão totalizaram 30.
Por fim, a última questão (para quem você dedica a
vida?) gerou dez categorias de análise. Na categoria ‘família’ foram incluídos os termos filhos, esposos, namorados,
pais, amores, avós, sobrinhos, animais e outros relativos
às relações familiares. Sociedade, humanidade, ao próximo são as ideias que resumem a categoria ‘para o outro’.
Em ‘realização’ foram incluídos os termos felicidade, ser
feliz, vida e valores. A categoria ‘família e outros’ considerou a família e trabalho, ou estudo, ou lazer, ou amigos.
Ainda, a ‘família’ apareceu em outra categoria, mas voltada à religião. ‘Para si’ também configurou uma categoria de análise, tendo como exemplos: satisfação própria;
para mim e minha família; para mim e deus. A ‘religião’
configurou-se como uma categoria, na qual foram incluídas as palavras deus, cristo, Jesus, espiritualidade e igreja.
Estudo, trabalho, profissão e conhecimento compuseram
a categoria ‘trabalho/estudo’, enquanto ‘evolução’incluiu
ser uma pessoa melhor, evolução do mundo, missão de
vida, futuro, sonho, realização. Por fim, criou-se a categoria “sem denominação” que incluiu respostas como “não
sabe, ninguém, pessoa sem denominação, busca de algo,
céu”. As categorias foram organizadas consensualmente
por duplas de autores.
Após a análise qualitativa, empregaram-se análises
estatísticas para comparação das médias dos participantes nas variáveis sexo, escolaridade, situação trabalhista
e prática da religião. Utilizou-se teste t de Student, Análise de variância (ANOVA) e Prova de Tukey com o intuito de verificar diferenças estatisticamente significativas
entre os grupos.
Resultados
Inicialmente foram analisadas as frequências das respostas para o que as pessoas consideram mais importante
em suas vidas, seguido da palavra associada a sentido de
vida e para quem ou o que a vida é dedicada. A Tabela 1
apresenta a frequência para o que as pessoas consideram
como mais importante, sendo que dos 901 participantes
da pesquisa, 49 deixaram essa questão em branco. A categoria ‘família’ obteve maior frequência com 38,4% das
respostas, seguido de ‘respostas múltiplas’ (24,6%). Todas
as demais categorias tiveram frequências menores do que
10% em cada, sendo que a menor porcentagem (0,6%) foi
para as pessoas que consideraram as questões financeiras
como o mais importante.
Artigos
-
Relatos de Pesquisa
Tabela 1: Frequência das respostas à pergunta “O que você considera mais importante em sua vida”
Categorias
Família / Filhos / Marido
Respostas múltiplas
Deus / Fé
Felicidade /Bem-estar / Qualidade de vida
Saúde
Liberdade / Sinceridade / Respeito
Amigos / Amizades Relacionamentos
Amor
Eu / Vida
Paz / Tranquilidade
Trabalho /Profissão / Carreira / Sucesso profissional
Financeiro
Total
Em relação a palavra associada ao sentido de vida,
não houve respostas ausentes, sendo que da amostra
total, 19,8% dos participantes endossaram ‘família’ em
primeira posição. Com maiores frequências também estiveram as categorias formadas por palavras associadas
a ‘amor’ (16,1%) e ‘deus’ (16,1%). De modo semelhante
F
327
210
54
49
41
38
34
26
24
23
21
5
852
%
38,4
24,6
6,3
5,8
4,8
4,5
4,0
3,1
2,8
2,7
2,5
0,6
100
à primeira pergunta, todas as demais categorias tiveram
menos que 10% dos participantes em cada com menores
frequências para as categorias ‘estudo’, ‘liberdade’ e ‘futuro’ com 0,4% em cada. Os resultados dessa análise podem ser vistos na Tabela 2.
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 35-43, jan-abr, 2018
38
Variáveis Associadas ao Sentido de Vida
Tabela 2: Frequência das palavras associadas à sentido de vida
Categorias
Família
Para si
Religião
Ao outro
Evolução
Família e outros
Família, religião, trabalho/estudo
Trabalho e Estudo
Sem denominação
Realização
Total
39
F
335
199
100
49
48
44
44
32
28
22
901
%
37,2
22,1
11,1
5,4
5,3
4,9
4,9
3,6
3,1
2,4
100,0
Após a análise de frequência, foram utilizadas estatísticas inferenciais com o intuito de verificar diferenças nas
respostas em função da pessoa estar trabalhando ou não,
do sexo, de praticar a religião e do nível de escolaridade.
Para isso as respostas dos participantes às três perguntas
foram recodificadas utilizando os valores 1para presente
e 0 para ausente. Foram considerados para o relato apenas
os resultados com significância estatística.
Em relação ao que é considerado mais importante na
vida (primeira questão), a variável situação de trabalho
não se mostrou significativa. Todavia, foram encontradas diferenças significativas entre os sexos, sendo que
os homens obtiveram maiores médias em ‘trabalho’,
‘paz’ e ‘liberdade’, enquanto as mulheres consideram
a ‘família’ como o mais importante. Para os níveis de
escolaridade, apenas a categoria ‘deus/fé’ revelou diferenças significativas (p<0,001), na qual pessoas com
Pós-Graduação obtiveram as menores médias e os participantes com Ensino Médio formaram um subconjunto com maiores pontuações. Quando as respostas foram
comparadas em função da pessoa praticar a religião,
encontraram-se diferenças significativas para ‘família’,
‘deus/fé’, ‘respostas múltiplas’ e ‘felicidade’, tal como
pode ser visto na Tabela 4.
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 35-43, jan-abr, 2018
Relatos de Pesquisa
Tabela 3: Frequência das respostas à pergunta “Para que
ou quem você dedica sua vida”
%
19,8
16,1
15,3
9,9
4,6
4,1
3,3
3,2
2,6
2,2
2,1
1,8
1,8
1,6
1,6
1,3
1,3
1,3
1,0
0,8
0,8
0,8
0,8
0,7
0,4
0,4
0,4
100
-
Por fim, foram analisadas as frequências para a pergunta “para que ou quem você dedica sua vida”, sendo
que das dez categorias formadas, a ‘família’ também aparece com maior frequência de respondentes, representando 37,2%, seguidos dos que dedicam a vida a si próprias
(22,1%) e para a ‘religião’ (11,1%). As demais categorias
reuniram 5,4% ou menos em cada, com menor frequência
para as pessoas que dedicam a vida a realizar algo (2,4%).
Os dados podem ser visualizados na Tabela 3.
F
178
145
138
86
41
37
30
29
23
20
19
16
16
14
14
12
12
12
9
7
7
7
7
6
4
4
4
901
Artigos
Categorias
Família, Pais, Cônjuge, Filhos
Amor, Amar, Afeto, Sentir
Deus, Jesus, Allah
Felicidade, Alegria, Contentamento
Propósito, Objetivo, Meta, Direção, Rumo, Caminho
Viver, Vida, Respirar
Fé, Espiritualidade, Espírito, Religião, Salvação, Santidade
Saúde, Ser saudável
Razão de viver, Sentido, Busca, Motivo, Autodesenvolvimento
Realização, Auto realização, Motivação, Satisfação, Prazer
Evolução, Evoluir, Aprimoramento, Plenitude, Crescimento
Trabalho, Profissão, Carreira, Serviço
Paz, Paz de espírito, Paz interior
Missão, Vocação
Harmonia, Equilíbrio, Bem-estar, Sintonia, Estabilidade
Caridade, Solidariedade, Ajudar, Empatia, Compaixão, Fraternidade
Sabedoria, Aprendizado, Conhecimento, Reflexão
Generosidade, Dignidade, Respeito, Verdade, Tolerância, Sinceridade
Prosperidade, Intensidade, Força, Dedicação, Momento
Amigos, Amizade
Sonho
Ter com quem contar, Relacionamentos, Outras pessoas
Vazio, Morte, Solidão, Perdida, Sofrimento, Dor, Não tem sentido
Universo, Cosmos, Sociedade, Natureza
Estudo, Estudar, Formação
Liberdade
Futuro, Destino, Nascer
Total
Ana P. P. N.; Dianniffer A. de O.; Leonardo de O. B.; Thaline da C. M.
Tabela 4: Análise de variância e Tukey para o que as pessoas consideram mais importante na vida e prática da religião
Variável
gl
F
p
Prática da religião
2
3,336
0,03*
2
16,811
<0,01**
2
6,090
<0,01**
2
5,122
<0,01**
Não se aplica
Sim
Não
Não
Não se aplica
Sim
Não
Sim
Não se aplica
Sim
Não se aplica
Não
Família
Deus/Fé
Respostas Múltiplas
Felicidade
Subconjuntos
1
2
0,28
0,40
0,41
0,00
0,01
0,10
0,21
0,23
0,37
0,04
0,06
0,06
0,10
* Significativo a nível de p<0,05 ** Significativo a nível de p<0,001.
A partir da análise da primeira palavra associada a
sentido de vida (segunda questão) foi possível constatar
que as mulheres associam este construto diretamente à
‘família’ enquanto os homens o entendem como missão,
razão de viver ou como algo relacionado a dedicar-se ao
‘estudo’. Quando as respostas foram comparadas de acordo com a situação trabalhista, verificou-se que as pessoas
que não trabalharam diferenciaram-se significativamente
das que estão ativas no mercado de trabalho, entendendo
sentido de vida como praticar caridade e como algo a ser
conquistado ainda, evidenciado pela categoria‘futuro’.
A análise de variância de acordo com o nível de escolaridade gerou diferenças significativas nas médias das
respostas. Os participantes pós-graduados apresentaram
o ‘amor’ como a palavra mais associada a sentido de vida
quando comparados com pessoas com Ensino Superior e
Ensino Médio, sendo que estes últimos também formaram
subconjuntos na Prova de Tukey entendendo a Caridade
como sentido de vida. Investigou-se também se a prática
da religião diferenciaria as categorias, sendo que foram
significativas para ‘família’, ‘deus’, ‘felicidade’, ‘missão’
e ‘futuro’, como pode ser visto na Tabela 5.
Tabela 5: Análise de variância e Tukey para a palavra associada a sentido de vida e prática da religião
Variável
gl
F
p
Prática da religião
Família
2
4,538
0,01*
2
5,004
0,00**
2
3,733
0,02**
2
2,889
0,05*
2
3,005
0,05*
Não se aplica
Sim
Não
Não se aplica
Não
Sim
Sim
Não
Não se aplica
Não
Sim
Não se aplica
Sim
Não se aplica
Não
Deus
Missão
Futuro
* Significativo a nível de p<0,05 ** Significativo a nível de p<0,001.
Artigos
-
Relatos de Pesquisa
Felicidade
Subconjuntos
1
2
0,17
0,21
0,21
0,29
0,05
0,24
0,31
0,09
0,14
0,14
0,16
0,00
0,02
0,02
0,03
0,00
0,01
0,01
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 35-43, jan-abr, 2018
40
Variáveis Associadas ao Sentido de Vida
Por fim, verificaram-se eventuais diferenças entre as
variáveis (sexo, trabalho, escolaridade) para a pergunta
“para quem você dedica a vida”. Em relação aos sexos,
os resultados indicaram que as mulheres dedicam a vida
para a ‘família’, enquanto os homens obtiveram maiores
médias para‘dedicar a vida para si’. Ao considerar as diferenças significativas entre pessoas que trabalham ou
não, verificou-se que aqueles que não trabalham dedicam a vida à ‘religião’ e que as pessoas que trabalham
dedicam ‘ao outro’.
Quando as médias foram comparadas por escolaridade, pessoas com Ensino Médio diferenciaram-se dos de-
mais grupos dedicando a vida à ‘religião’ e também com
maiores pontuações na categoria ‘família, religião, trabalho e estudos’. As pessoas com Pós-Graduação diferenciaram-se dos demais níveis de escolaridade com maiores médias para a categoria família quando comparada
com pessoas com Ensino Médio ou Superior. A categoria
“ao outro” também teve resultados significativos, porém,
sem formação de subconjuntos na Prova de Tukey, embora
com maiores médias para pessoas pós-graduadas. Ainda,
a comparação das médias em função da prática religiosa
resultou em diferenças significativas em seis categorias
como apresentado na Tabela 6.
Tabela 6: Análise de variância e Tukey para a palavra associada a sentido de vida e prática da religião
Variável
gl
F
Prática da religião
p
*
2
6,532
<0,01
2
8,099
<0,01**
2
13,927
<0,01**
Família
Família, religião, trabalho e estudos
Para si
2
18,841
<0,01**
5,896
<0,01**
Religião
Trabalho e estudo
Não se aplica
Sim
Não
Não se aplica
Não
Sim
Sim
Não
Não se aplica
Não se aplica
Não
Sim
Não
Sim
Não se aplica
1
0,30
0,35
Subconjuntos
2
3
0,46
0,01
0,02
0,07
0,16
0,26
0,36
0,03
0,05
0,17
0,02
0,03
0,08
41
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 35-43, jan-abr, 2018
-
O presente estudo teve como objetivo identificar com
o que os participantes mais associam o sentido de vida,
a fim de melhor compreender o construto, ainda pouco
mensurado (Schnell & Becker, 2006), especialmente no
Brasil (Oliveira & Silva, 2013). Os resultados foram coletados em 25 estados brasileiros, além de contar com
as respostas de brasileiros que moram em outros países.
Embora não se tenha escolhido comparar as diferentes
regiões por não ter a distribuição adequada e representativa de todas as unidades federativas, conseguiu-se uma
amostra diversificada. Os resultados estão organizados em
dois grupos, um primeiro que analisou as respostas mais
frequentes nas três questões do instrumento, e um segundo, que visou comparar as categorias de respostas entre as
variáveis sexo, trabalho, escolaridade e prática religiosa.
No que se refere às maiores frequências, a ‘família’ configurou como a primeira categoria na questão um (em que
você tem depositado sua energia ultimamente), na segunda (para que ou quem você dedica sua vida) ou mesmo na
terceira (quando eu digo para você sentido de vida qual a
primeira palavra que você pensa imediatamente). Assim,
pode-se afirmar que quanto à percepção da própria existência e em relação à busca do sentimento de realização
existencial (Damasio, Melo, & Silva, 2013), a família se
destaca como associação mais presente. Ainda a este respeito, importante retomar as asserções de Sommerhalder
(2010), no sentido de que apesar das experiências de vida
serem singulares, elas fazem parte da cultura na qual a
pessoa está inserida (Pereira, 2014).Nesse caso, famílias,
filhos, pais e cônjuges foram identificados como os elementos principais do cotidiano dos pesquisados, o que
permite reconhecer uma característica gregária, e que em
alguma medida, reafirma os achados de Pinquart (2002),
em sua meta-análise. O autor afirmou que diante de melhor integração social e pessoas casadas há maiores níveis
de propósito de vida.
No que se refere ao segundo grupo de análises, foram
encontradas diferenças entre os sexos nas três questões.
As mulheres depositam sua energia na família, diferentemente dos homens que o fazem no trabalho, na paz e na
Artigos
discussão e conclusão
Relatos de Pesquisa
** Significativo a nível de p<0,001.
Artigos
-
Relatos de Pesquisa
Ana P. P. N.; Dianniffer A. de O.; Leonardo de O. B.; Thaline da C. M.
liberdade. Quando questionados a que ou a quem dedicam
suas vidas, as mulheres novamente se diferenciam dos homens na categoria ‘família’, enquanto eles se diferenciam
delas no ‘estudo’. As mulheres também se diferenciaram
dos homens na categoria família, quanto à terceira questão, enquanto os homens se diferenciaram delas na categoria ‘dedicar a vida para si’. A meta-análise de Pinquart
(2002) e os achados de Ortiz e Morales (2013) concordaram ao afirmarem que as investigações quanto ao sentido
na vida entre homens e mulheres não são unânimes. No
entanto, no presente estudo, as diferenças entre os sexos
foram claras especialmente na categoria ‘família’, com
médias maiores para as mulheres nas três perguntas. Em
outra medida, os homens tiveram médias maiores para
aquelas categorias que indicam projetos mais individuais
e autocentrados, que coletivos, como o trabalho, estudo
e dedicar a vida para si mesmo.
A variável trabalhar ou não trabalhar revelou diferenças entre as categorias para a segunda e terceira questão,
ou seja, quando os indivíduos eram levados a responder
para que ou quem dedicam a vida ou a primeira palavra
associada a sentido de vida. Em ambas as circunstâncias,
as pessoas que não estão trabalhando diferenciaram-se
significativamente daqueles que estão na ativa em duas
categorias: futuro e religião. Por futuro, entende-se sentido de vida como praticar caridade e como algo a ser
conquistado, o que pode ser considerado como uma característica positiva, e sob esta perspectiva, corrobora a
pesquisa de Steger, Frazieret al. (2006). Os autores encontraram relação entre sentido de vida e aspectos positivos
dos indivíduos. Também as pessoas que não trabalham
citaram mais frequentemente a religião. Assim, estão mais
disponíveis para caridade e religião os indivíduos não inseridos no mercado.
A escolaridade diferenciou categorias quanto às três
perguntas. No entanto, os resultados não revelaram uma
linha argumentativa lógica. Houve diferenças para os três
níveis de ensino. Participantes com ensino médio endossaram mais as categorias ‘religião’ e a categoria mista ‘família, religião, trabalho e estudos’. Por seu turno, os pós-graduados tiveram menores médias na categoria deus/fé’,
e maiores em ‘amor’ e ‘família’. Embora alguns autores tenham identificado resultados favoráveis a determinados
níveis educacionais (Claussen, & Soto, 2015; Pinquart,
2002; Yuen & Yau, 2015), presentemente não é possível
fazer afirmações conclusivas.
Por fim, investigou-se como a religião diferenciaria
nas categorias, sendo que os achados foram organizados
em três categorias, aqueles que não possuem nenhuma
crença; os que a possuem, mas não fazem parte de cultos
ou quaisquer outras práticas; e os que a praticam. Para
as duas primeiras perguntas, houve concordância quanto
às diferenças significativas em relação à ‘família’, ‘deus’,
‘felicidade’, e a família também se fez presente na última
questão. Quanto à ‘família’, houve diferença para quem
não tem religião, em relação a quem a possui (praticantes
ou não), sendo que os primeiros tiveram médias maiores
para ‘deus/fé’ e quem pratica a religião teve média maior,
significativamente diferente dos demais. Em relação ao
fato, pode-se aventar que sentido de vida está associada
à presença de outro, que no caso, pode ser materializada
pela família ou mesmo pela fé (Damasio, Melo, & Silva,
2013), de modo que ambos dariam suporte a essa construção existencial.
Duas últimas considerações devem ser destacadas;
uma se refere à limitação quanto à composição da amostra, razão pela qual não se ousou realizar uma análise por
unidades de federação, o que seria interessante, tendo em
vista a característica do construto aqui estudado. Além
disso, tratou-se de um artigo que investigou algumas variáveis. Seria interessante que idade, estado civil, nível
socioeconômico, como exemplos, fossem também estudados, a título de agenda de pesquisa.
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CEP: 13.253-231. Email:
[email protected]
Dianniffer Aparecida oliveira - Psicóloga e Mestranda em Psicologia
com ênfase em Avaliação Psicológica pela Universidade São Francisco.
Email:
[email protected]
leonardo de oliveira Barros - Psicólogo, Mestre e Doutorando em Psicologia com ênfase em Avaliação Psicológica pela Universidade São
Francisco (Bolsista CAPES). ÓRCID: 0000-0002-8406-0515
Thaline da Cunha Moreira - Psicóloga, Mestre e Doutoranda em Psicologia com ênfase em Avaliação Psicológica pela Universidade São
Francisco (Bolsista CAPES).
Recebido em 25.11.2016
Primeira Decisão Editorial em 17.08.2017
Aceito em 31.08.2017
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doi:10.1590/S0102-79722010000200009
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Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 35-43, jan-abr, 2018
A rtigos:
e studos teóricos
ou
Históricos .........
F. J. J. Buytendijk e a Gênese do Espírito MaternoNº DOI: 10.18065/RAG.2018v24n1.5
F. J. J. buyTendiJk e a gênese dO espíriTO MaTernO
F. J. J. Buytendijk and the Genesis of the Maternal Spirit
F. J. J. Buytendijk y la Génesis del Espíritu Materno
Claudinei aPaReCido de FReiTas da silVa
resumo: O artigo objetiva fundamentalmente explicitar um importante conceito antropológico de F. J. J. Buytendijk: a noção de
uma gênese psicológica do espírito materno. Para tanto, pautando-se metodologicamente numa abordagem fenomenológica descritiva, trata-se de compreender o mistério dessa formação para além de todo reducionismo biológico, desvelando, pois, nela, os
elementos da historicidade e do cuidado em sua infraestrutura mais profunda. A premissa básica que aqui se discute é a ideia de
que essa gênese jamais está formada definitivamente, já que tem sua origem nos primeiros encontros de um sujeito que é feminino pelos caracteres pré-existenciais de sua corporeidade e intencionalidade numa perspectiva dialética. É sob esse prisma, como
resultado alcançado, que o pensador holandês vê, em tal movimento, não só um princípio da antropologia moderna, mas um estado de questão que abre, de maneira fecunda, um horizonte fenomenológico, sem precedentes.
Palavras-chave: Buytendijk; Psicologia; Fenomenologia; Gênese; Espírito Materno.
Abstract: The article aims fundamentally to make explicit an important anthropological concept of F. J. Buytendijk: the notion of
a psychological genesis of the maternal spirit. For this, methodologically based on a descriptive phenomenological approach, it is
a question of understanding the mystery of this formation beyond any biological reductionism revealing, lastly, in it, the elements
of the historicity and care in their most profound infrastructure. The basic premise discussed here is the idea that this genesis
never formed definitely, since it has its origin in the first encounters a subject who is feminine by pre-existential character of its
corporeality and intentionality in a dialectical perspective. It is from this viewpoint, as a result achieved, that the Dutch thinker
sees in such a movement, not only a principle of modern anthropology, but a state of question that opens, fruitfully, a phenomenological horizon unprecedented.
Keywords: Buytendijk; Psychology; Phenomenology; Genesis; Maternal Spirit.
O objetivo central desse estudo consiste em explicitar
fundamentalmente um importante conceito antropológico
de F. J. J. Buytendijk: a noção de uma gênese psicológica
do espírito materno. Esse estado de questão discute como
premissa básica, a tese de que tal gênese jamais se encontra formada definitivamente, já que tem sua origem nos
primeiros encontros de um sujeito que é feminino pelos
caracteres pré-existenciais de sua corporeidade e intencionalidade numa perspectiva dialética. O que se objetiva
ainda é compreender como Buytendijk estabelece o estatuto dessa formação para além de qualquer reducionismo
biológico, desvelando nela, o elemento da historicidade
e do cuidado em sua infraestrutura existencial mais pro-
47
Método fenomenológico
A devida compreensão desse tema implica, antes de
tudo, uma opção metodológica que a obra de Buytendijk
jamais perdera de vista: uma abordagem fenomenológica
descritiva. Trata-se, pois, de descrever o mistério da formação da gênese do espírito materno a partir de alguns
delineamentos conceituais como as noções de gênese, a
distinção entre espírito e vocação, espírito materno, a categoria de cuidado, promovendo, enfim, uma discussão
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 47-56, jan-abr, 2018
-
estado de questão
funda. É esse contexto mais geral que o ensaio La genèse
psychologique de l’esprit maternel (publicado, em 1960,
pela Revista Les Études Philosophiques, de Paris) situa de
maneira particularmente reveladora. Buytendijk põe em
cena a condição feminina como ser no mundo retratada
na experiência da maternidade.
Artigos
A Valdelice, espírito materno
Estudos Teóricos ou Históricos
resumen: El artículo trata de explicitar fundamentalmente un importante concepto antropológico de F. J. J. Buytendijk: la noción
de una génesis psicológica del espíritu materno. Por lo tanto, y se basan metodológicamente un enfoque fenomenológico descriptivo, hay que comprender el misterio de esta formación más allá de cualquier reduccionismo biológico, revelando, por fin, en ella,
los elementos de la historicidad y cuidado en su infraestructura más profunda. La premisa básica que se discute aquí es la idea de
que esta génesis nunca es formada definitivamente, ya que tiene su origen en los primeros encuentros de un sujeto que es femenino por el carácter pre-existencial de su corporalidad y la intencionalidad en una perspectiva dialéctica. Es en este punto de vista,
como resultado alcanzado, que el pensador holandés ve en tal movimiento, no sólo un principio de la antropología moderna, sino
un estado de la cuestión que se abre, fructíferamente, un horizonte fenomenológico sin precedentes.
Palabras-clave: Buytendijk; Psicología; Fenomenología; Génesis; Espíritu Materno.
Claudinei A. de F. da S.
sucintamente pontual acerca de diferentes teorias relativas à experiência materna. Partamos, então, da análise do
primeiro conceito: a noção de gênese.
O conceito de gênese
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Buytendijk inicia o estudo, elucidando dois conceitos
basilares: as noções de gênese e de espírito. Trata-se de
uma distinção que, a seus olhos, assume importância capital no tocante à compreensão mais profunda da essência
da maternidade, tema nuclear do ensaio. Primeiramente,
o pensador holandês passa, em revista, a ideia de gênese.
Ele lembra que esta é comumente definida em termos organicistas. “A concepção de uma gênese psicológica nos
reenvia ao fenômeno de certo desenvolvimento orgânico,
tendo a sua origem, pois, na estrutura de um gérmen realizando-se em estágios definidos de maneira autônoma e
determinada” (Buytendijk, 1960, p. 453). Ora, se quisermos descrever os estágios iniciais desse processo é preciso, antes, compreendê-lo à luz do organismo completo, em
sentido próximo, por exemplo, de Goldstein (1983), como também de Merleau-Ponty (1942) ou de Ruyer (1958).
Para cada um desses autores, a gênese do organismo não
se define como “um sistema de correlações, mas como
um sistema de significações”, observa Buytendijk (1960,
p. 453). Eles têm-nos definitivamente “persuadido a propósito da diferença essencial entre as transformações físicas e os desenvolvimentos vitais” (Buytendijk, 1960,
p. 453). Qual seria, enfim, a dificuldade? Ela tem sua origem na própria psicologia.
Caso se aceite a opinião corrente de que a psicologia
é a ciência dos comportamentos, seremos obrigados a
distinguir as reações vitais dos animais e do homem
fundadas inteiramente nas estruturas nervosas dos
comportamentos que resultam de uma intencionalidade consciente ou inconsciente. O problema da relação desses atos intencionais com a corporeidade está
no centro da psicologia moderna, já que esse problema tem sido posto de uma maneira incontestável pela
reflexão sobre a realidade humana e animal (Buytendijk, 1960, p. 453).
A psicologia moderna (como a Psicanálise ou a Gestalttheorie) é, acima, contrastada por Buytendijk com a
psicologia clássica que, canonicamente, sempre definira
a consciência e o inconsciente como uma interioridade
composta de “conteúdos, representações, processos suscitados por forças ocultas, tendências inatas e adquiridas”
(Buytendijk, 1960, p. 454). “Essa interioridade seria, portanto, uma totalidade determinada, ‘um organismo físico’”
(Buytendijk, 1960, p. 454). Nos termos de tal concepção,
a noção de gênese ou desenvolvimento assume o caráter
de um evento natural. Ora, numa direção oposta, acena
Buytendijk (1960, p. 454),
[...] a concepção moderna da consciência ou do Ego
rejeita, categoricamente, tal gênese, mas ela aceita uma
historicidade individual que, de todo outro modo,
põe a questão de um desenvolvimento. Cada história
é caracterizada pela negação de qualquer determinismo absoluto; ela se faz segundo uma ordem provável
e manifesta, portanto, certa regra, certa direção, mas
também uma contingência. (Buytendijk, 1960, p. 454)
O que essa segunda direção nos encaminha é para outra compreensão bem mais refinada e, em rigor, profunda da noção de gênese. O método analítico clássico que
define o desenvolvimento por meio de funções isoladas
acaba por se tornar uma posição meramente reducionista do organismo, perdendo de vista o seu todo, isto é, outras variáveis ou aspectos que interagem no processo de
formação orgânico. Assim:
Ao falar de uma gênese psicológica em geral, é preciso
compreender como o desdobramento, a diferenciação
das relações intencionais de um sujeito e do mundo
atravessa uma historicidade, na qual o ocaso ocupa um
lugar, mas também uma iniciativa, uma espontaneidade e, no ser humano, uma liberdade, que permanecem
perfeitamente inexplicáveis. (Buytendijk, 1960, p. 454)
Vejamos o quanto Buytendijk acentua, em sua análise,
a ideia de historicidade. Trata-se de um conceito-chave
para se compreender, no contexto da própria psicologia
moderna, o sentido da noção de gênese, aqui, em curso.
Ele argumenta:
Nesses casos, os fatos nos levam a supor um “gérmen”
– embora desconhecido – das circunstâncias favoráveis que determinam a sua evolução. Quando, porém,
está em questão um espírito no sentido de uma atitude pessoal, na qual se manifesta a escolha decisiva e
permanente de um valor e, por conseguinte, de uma
vocação exprimindo-se num projeto de mundo e de
existência, é inadmissível ocultar o mistério da formação do “espírito” pela aplicação confusa da noção
de gênese. O único meio de seguir essa formação com
uma justa deferência ao olhar da realidade humana
será de reencontrar o solo de uma coexistência original pela qual um mundo se abre e começa a existir.
(Buytendijk, 1960, p. 454)
Pois bem: “esse mundo que se abre e começa a existir”
tem o seu próprio gérmen no “solo de uma coexistência
original”; coexistência essa marcada sob o signo da historicidade. O que isso significa, exatamente? Significa que
Se aceitarmos essa união transcendental do ser humano
e de uma realidade na qual cada um de nós se encontra
inserido, ou seja, engajado de certa maneira, é possível
tentar seguir o curso de uma existência que termina
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F. J. J. Buytendijk e a Gênese do Espírito Materno
espírito ou vocação?
Uma vez caracterizado o conceito de gênese numa
perspectiva histórico existencial, Buytendijk passa a problematizar a noção de espírito materno. A maternidade
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O termo vocação deriva do latim vocatione que significa chamado, apelo, destinação. O vocábulo, quase
sempre, sugere uma inclinação, uma tendência decisória, orientada individualmente para certas aptidões que
podem ser intelectuais, artísticas, profissionais, etc. Já
espírito, como bem indica Buytendijk, implica um movimento de intencionalidade, quer dizer, uma tomada de
posição mais geral. O que, no entanto, nosso autor visa,
ao precisar essa distinção conceitual?
Ele busca seguramente demarcar um importante terreno metodológico de sua teoria sobre a gênese da experiência materna. Essa é imbuída não propriamente de uma
vocação, mas, de um espírito. Não se trata, pois, de uma
significação espiritual qualquer, mas de uma dimensão
mais elevada pela qual a vivência maternal transcende
seu agenciamento orgânico, biológico ou funcional. Por
isso, como vimos, Buytendijk retoma do vocabulário fenomenológico, o conceito de intencionalidade. A intencionalidade é mais da ordem espiritual do que essencialmente vocacional. Desse modo, ser ou existir como mãe
revela, em contexto intencional, bem mais uma atitude
de espírito do que uma escolha ou simples decisão vocacional. Somos postos em face de uma atitude ou com-
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 47-56, jan-abr, 2018
Estudos Teóricos ou Históricos
Eu, no entanto, gostaria de insistir sobre o fato de que a
palavra “espírito” invoca uma tomada de posição mais
geral e não um ponto orientado para as perspectivas de
uma atividade concreta. Para se dar conta da diferença entre o significado da palavra espírito e o da palavra vocação, basta por, de lado, a expressão “espírito
materno”, usada em todas as línguas. Fala-se de um
espírito científico, artístico, militar, burguês, de um
espírito geométrico, de astúcia, de caridade, de um
espírito nobre, cavalheiresco e, num sentido figurado, de um espírito das leis. (Buytendijk, 1960, p. 457)
-
O que Buytendijk observa, nessas breves passagens,
é que todo processo de gênese não pode prescindir de
uma compreensão mais radicada fenomenologicamente.
Noutras palavras, reside, aqui, o fato de que toda ideia
de espírito ou de consciência perde seu arco de transparência absoluta uma vez confrontada com a experiência.
É o que mostraram Merleau-Ponty (1945) e De Waelhens
(1959) ao considerar a consciência como irrefletida, encarnada e, por isso mesmo, coexistente. É a esse propósito que Buytendijk, na trilha aberta por Merleau-Ponty,
retoma e amplia a noção fenomenológica de intencionalidade como ato de consciência, isto é, como “consciência de algo” (Husserl, 1976, §84, p. 188) escavando, pois,
originariamente, uma “intencionalidade operante (Fungierende Intentionalität) como logos do mundo estético”
(Husserl, 1992, p. 297). Trata-se de um logos que encerra
uma historicidade primordial, àquela a que se reportara
Merleau-Ponty (1945, p. xiii) como uma “unidade natural e ante-predicativa do mundo e da vida, uma unidade
que se manifesta mais claramente que em nossa consciência objetiva, em nossos desejos, nossas avaliações, nossa
paisagem e que fornece o texto do qual os nossos conhecimentos buscam ser a tradução, em linguagem exata”.
Quando, enfim, Buytendijk fala de um “solo de coexistência original” é precisamente esse sentido e alcance que se
deve ter sempre em vista.
É a partir desse solo, em sua historicidade primordial,
que podemos melhor compreender a noção de uma gênese
do espírito materno projetando-a como uma consciência-comportamento. Como vemos, o mistério dessa gênese
se transfigura numa encarnação existencial, uma vez que
se trata de um espírito que se reconhece enquanto corpo.
A formação do espírito maternal é tributária desse essencial reconhecimento em que a corporeidade feminina
radica um modo de ser existente e histórico. Buytendijk
faz isso com o intuito de situar o comportamento materno em nossa cultura como uma intencionalidade operante. É por meio desse alargamento conceitual que, no
seio da carnalidade feminina, uma maternidade se torna
possível, revelando-se verdadeiramente sob a forma de
um espírito. Afinal, o que se entende, à luz dessa gênese
psico-fenomenológica, por espírito?
exprimiria, em primeiro plano, o caráter de um espírito
ou de uma vocação? Essa é a questão de fundo que permeia o segundo momento do texto. Para tanto, o autor
procede a uma correção conceitual na versão francesa de
sua obra La Femme (1954), tradução essa primorosamente editada sob os cuidados de Alphonse de Waelhens e
René Micha. Buytendijk nota que os referidos tradutores
verteram o título do último capítulo do livro, moederlijkheid, no original holandês, por la vocation maternelle.
Ora, de imediato, Buytendijk discute o uso dessa opção
quando se compara, por exemplo, vocação com a palavra espírito. Ocorre, pois, aí, uma diferença significativa, à medida que uma coisa é a atitude intencional da
mulher animada por um espírito maternal, outra, bem
diversa, é a atitude em que se escolhe seguir uma vocação maternal. Trata-se de uma distinção antes sugerida
pela significação de ambos os termos do que pela realidade intencional que eles revelam. Em função disso, tal
diferenciação torna-se mais explícita se considerarmos
o seguinte, nota o autor:
Artigos
na manifestação de tal espírito. É nesse sentido que se
pretende compreender a noção da gênese psicológica
do espírito materno. A possibilidade de um esclarecimento do movimento existencial que conduz ao espírito materno nos é dado, imediatamente, pelo princípio
da antropologia atual. (Buytendijk, 1960, p. 454-455)
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Estudos Teóricos ou Históricos
Claudinei A. de F. da S.
portamento que diz mais respeito à estrutura fundamental do ser feminino; estrutura dinamicamente operante à
qual, de fato e de direito, inscreve-se corporalmente em
sua fenomenalidade trans-ginecológica ou biológica. Essa inscrição já rompe com todo solipsismo uma vez que
é coextensiva a outro corpo (da gestação ao nascimento).
Sob esse aspecto, a coexistência original toma um sentido bem peculiar, já que é a partir dela que se prefigura
um pacto simbólico, intencional entre a mãe e a criança.
Uma história aí se escreve a quatro mãos, desde esse pano de fundo, dado o caráter existencial dessa experiência
realmente única.
É uma vez aberto esse cenário que a noção de gênese trabalhada por Buytendijk se reveste singularmente
de um sentido fenomenológico. Não se trata de explicar
tão somente, mas, de compreender a essência do vínculo materno. Essa é a diferença de base entre uma análise tributariamente naturalista do espírito materno e uma
descrição fenomenológica (intencional). Basta ver que a
formação de tal espírito não se restringe a uma categorização rigidamente organicista. Ela é uma gênese histórica marcada sob o signo da existência para além de toda
determinação fisiológica. Como, então, situar melhor tal
alcance hermenêutico?
Buytendijk acredita perspectivá-lo por meio de uma
relação sui generis: “a modalidade do encontro” (Buytendijk, 1952b; Silva, 2014). Trata-se de um nível fenomenológico mais elaborado, vivo e, portanto, real no circuito
do mundo inter-humano e das coisas. É o que exemplarmente presenciamos, de maneira extraordinária, no próprio vínculo materno em que a atitude da mãe não apenas
gera, mas acolhe, revelando, por meio de tal gesto, uma
estrutura intencional (Buytendijk, 1960). É mediante essa estrutura (Gestalt) que o gesto materno pode encerrar
uma dimensão mais primordial do encontro em sua efetividade, em carne e osso.
Sendo assim, antes de detidamente explorar tal argumento, Buytendijk examina quatro aspectos teóricos essenciais: de início, a opinião popular acerca da identidade
entre feminilidade e espírito materno; em seguida, a concepção de um instinto maternal; em terceiro, ele revisita,
em linhas gerais, a teoria psicanalítica, para, finalmente,
discorrer sobre o caráter histórico-social da atitude especificamente materna.
breves teorias da maternidade
Feminilidade e espírito materno
Comecemos pela opinião vulgar. A feminilidade é vista, de modo geral, segundo uma velha e legendária máxima atribuída a Napoleão: Tota mulier in utero. Em meio a
essa venerável tradição, rememora Buytendijk, se firmou
um consenso de que a mulher cumpre o seu destino pela
experiência capital da maternidade:
As célebres mães da literatura francesa clássica, como Andromaque ou Athalie, manifestam um espírito
heroico de sacrifício, compreendido como a revelação
da verdadeira feminilidade. Em numerosos romances
se confere o mais alto lugar à maternidade, pelo qual
a mulher se completa. Quando a mulher é concebida
como um ser humano completo, seu amor maternal
não põe problemas. (Buytendijk, 1960, p. 458)
Já, na literatura, se retrata o que também ocorre no
cotidiano, ou seja, transcorrem situações adversas como, p. ex., a figura da mãe desnaturada, insensível, rude
ou apática. Sobre isso, Hélène Nahas (1957) focaliza, no
contexto literário e dramatúrgico moderno de viés existencialista, o inverso negativo do espírito materno, isto
é, seus fracassos. Há, mormente na obra de Sartre, uma
espécie de ódio difuso da criança, no sentido de ser perversa e manhosa. Nesse caso, não restam dúvidas, que a
imagem tradicional da maternidade seja, de modo iconoclástico, desconstruída, sobretudo, se tal espírito estiver existencialmente desfocado do plano de uma escolha
decisiva. Lembremos que, para Sartre, a liberdade brota de uma escolha originária inalienável (Sartre, 1943).
A mulher, portanto, “está condenada a ser livre já que não
se poderia encontrar outros limites à sua liberdade, além
da própria liberdade, ou, se preferirmos, que não somos
livres para deixar de ser livres” (p. 515).
Instinto maternal
O segundo aspecto se relaciona à própria definição de
instinto materno. Tal instinto se conceitua tendo como
paradigma, o comportamento animal, lato senso. É o que
a biologia clássica postula ao distinguir rigorosamente os
comportamentos inatos instintivos dos comportamentos
adquiridos (por força do hábito). Nessa cosmovisão, tudo
é explicado teleologicamente, à medida que se professa,
como metaforiza Buytendijk, uma “sabedoria da natureza”, quer dizer, uma ideia que dava “lugar às especulações filosóficas ou teológicas, mas, sobremaneira, porque
ela tinha suscitado uma imagem romantizada do inatismo das pulsões internas, inconscientes, que determinam
o curso da vida quanto aos seus aspectos dominantes e
sua destinação posterior” (Buytendijk, 1960, p. 459). Ora,
pois: é partindo dessa fé professada em torno do instinto
materno que a sabedoria natural fora aceita pelos cientistas. Os inúmeros exemplos coletados do reino animal
se tornam, sob essa premissa, provas irrefutáveis. E complementa Buytendijk (1960, p. 459):
É inútil acrescentar que essa teoria clássica parece
ser perfeitamente comprovada pelo fato de que cada
espécie animal assegura, pelas condições sexuais e
maternais específicas, a continuidade das gerações.
É necessário aplicar essa concepção ao homem, espe-
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 47-56, jan-abr, 2018
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F. J. J. Buytendijk e a Gênese do Espírito Materno
A que conclusão chegamos? “A de que o comportamento maternal dos animais superiores se apoia sobre
algumas reações elementares inatas, mas que também é
determinada situacional e historicamente” (Buytendijk,
1960, p. 459).
Teoria psicanalítica
Buytendijk abre alas agora para a psicanálise que,
aliás, mostrou-se bem próxima da teoria biológica das
energias instintivas. Entre os inúmeros escritos de Freud
e de seus seguidores relacionados à gênese do amor materno, o que temos é uma imagem um tanto vaga de certos conceitos corolários como libido, sexualidade infantil, complexo de Édipo e castração, bem como o de fenômenos de recalque, projeção, identificação, sublimação.
Ao mesmo tempo, Buytendijk faz referência ao trabalho
de Sylvia Brody, Patterns of mothering (1956), o qual – na
opinião do pensador holandês – soubera melhor descrever, do ponto de vista psicanalítico, o desenvolvimento
inicial da conduta materna, fundado sobre a observação
de uma menina de quatro anos.
Essa menina interage com o seu irmãozinho de um
ano e seis meses, sem, contudo, deixar de supervisioná-lo. Ela repassa-lhe brinquedos, instruindo-lhe sobre cada
funcionamento. Ela o estimula o tempo todo, à maneira
de sua mãe, com muito tato e paciência. É fato, porém,
que, meses antes, a garotinha havia externado certa hos-
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Com a entrada no estágio dito fálico, os desejos eróticos ativos são suscitados pela irritabilidade dos órgãos sexuais, pela observação de uma relação física
dos pais e, frequentemente, pela curiosidade em olhar
o nascimento de outras crianças. Por causa de o amor
infantil ser sem limite e não ter um objeto ou um fim
específico, ele culmina no desejo mais ambicioso, por
parte da garotinha: fazer qualquer coisa corporalmente com a mãe, obter dela uma criança a fim de tornar-se igual a ela, ou melhor, dar uma criança à sua mãe
para satisfazê-la, porque as “mães devem ter crianças”. Há, pois, muitos desejos que se confundem no
desejo de um bebê: o desejo ativo da menina de ser
uma mãe parecida com a sua própria mãe. (Buytendijk, 1960, p. 461)
A esse respeito, Buytendijk marca, por fim, sua posição:
A nossa experiência confirma, sem dúvida, que, no
estágio emotivo perturbador de inúmeras meninas
se forma desejos e imaginações vagas que estão em
relação à atitude materna; logo, no cuidado de uma
criança. Em geral, se vê que essa imitação da mãe se
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 47-56, jan-abr, 2018
Estudos Teóricos ou Históricos
Eles têm demonstrado que o comportamento maternal
depende da situação e também das experiências anteriores à posição no mundo dos filhotes. Sem dúvida,
há uma disposição constitutiva da fêmea, diferenciada pelos hormônios durante o período de maturação
sexual e após o acasalamento. A influência dos hormônios depende, conforme as pesquisas, em parte das
relações sociais, não pontualmente sexuais, durante a
juventude do animal; noutra parte, o efeito dos hormônios se explica por uma mudança de irritabilidade ou
da regulação térmica. (Buytendijk, 1960, p. 459-460)
-
Por outro lado, não deixa de ser significativo o fato de
que a análise científica “nos obriga a corrigir a hipótese
de um instinto materno, mesmo os dos mamíferos, concebido como uma disposição autônoma inata” (Buytendijk, 1960, p. 459). É o que atestam os estudos etnológicos:
tilidade em relação à figura materna por conta dos caprichos e cuidados com o bebê. Aí, então, os pais relataram
que haviam advertido a filha no sentido de agir de uma
forma mais dócil com o irmão pequeno, pois, em breve,
ele seria capaz de dominá-la. Apesar das recomendações
paternas um tanto jocosas, a menina, a exemplo de sua
mãe, escolhe em adotar uma atitude mais passiva em relação ao nenê. No fundo, o que ocorre? Psicanaliticamente falando, a menina termina por recalcar o desejo de ver
seu irmãozinho negligenciado ao invés de ser amado. Se
ocupando de seu irmão, ela se prepara – segundo a autora
– de um modo masoquista ao restabelecer-lhe uma parte
de seu ego-identificado e de sublimar as suas tendências
sádicas. O que tal mudança de comportamento revela?
Não há dúvida de que esse processo advém do desenvolvimento psicológico normal, ou seja: “a adaptação de
uma tendência instintiva e ativa a uma intenção de passividade, de acordo com as exigências da realidade e com
o ideal do ego” (Buytendijk, 1960, p. 461).
Ao reconstituir a gênese do espírito materno por meio
do vínculo entre a criança e sua mãe durante os primeiros anos de vida, Brody narra, ao longo desse período, a
maneira como a mãe satisfaz todos os desejos passivos da
criança. Tal comportamento é corroborado por Brunswick
(1940), citado por Brody (1956, p. 378): “A criança (com
a idade pouco perto dos quatro anos) reage à presença de
sua mãe por uma espécie de agressão primitiva, defensiva,
que é um subproduto e uma proteção de sua atividade,
bem como uma defesa de sua passividade original mal
superada”. Essa interpretação psicanalítica se encerra, segundo o comentário de Buytendijk, nos seguintes termos:
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cialmente porque os hábitos estáveis das sociedades
humanas agem de uma maneira tão imperiosa que o
sujeito acredita estar possuído por forças interiores
das quais ele ignora a origem. Esses hábitos inalteráveis, experimentados como a garantia de segurança e
da dignidade da humanidade, são valorizados pelas
vocações, pela voz da consciência, pelas leis inscritas
no coração. (Buytendijk, 1960, p. 459)
Claudinei A. de F. da S.
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Estudos Teóricos ou Históricos
exprime em jogos ou aceitando pequenos trabalhos domésticos, encorajados pelo ambiente (milieu). Pode-se
também aprovar a tese psicanalítica de que a menina
será, muitas vezes, mais tocada pela rivalidade que o
menino e que a sua ligação com a mãe lhe permita,
com maior facilidade, conquistar um mundo de segurança, de paz e de consentimento. No exemplo descrito por Sylvia Brody, somos informados de que a menina tem escolhido aceitar a atitude de sua mãe. Mas
o que significa a noção de “escolha” na vida infantil?
(Buytendijk, 1960, p. 461-462)
Ao lançar essa pergunta, diversamente do que poderia
supor, Buytendijk não se filia à visão sartriana. Na verdade, ele se encaminha, na contramão, da leitura de Beauvoir
(1949, p. 85) que postula “haver, em todos os psicanalistas, uma recusa sistemática da ideia de escolha e da noção de valor que lhe é correlativa; caracterizando aí uma
falibilidade intrínseca do sistema”. Não parece ter sido o
caso, como acima, de Brody, segundo o tom interrogativo
do comentário final de Buytendijk. Para este, a escolha é
sempre motivada. Ou seja: o “motivo” não é uma “causa”
(Buytendijk, 1959) haja vista que implica um significado,
uma decisão. É que a dimensão decisória (tanto na criança quanto no adulto) jamais depende de uma liberdade
absoluta (segundo a acepção existencialista reportada),
embora para essa concepção, a liberdade não se determina como um fato ou acontecimento natural.
Ora, essa crítica, todavia, visa atingir outro alvo da
doutrina psicanalítica, a saber, sua teoria dos instintos.
Por isso, nota Buytendijk (1960, p. 462): “embora aceitando, pois, vários princípios postos pela psicanálise, eu
não creio que se possa explicar a gênese do espírito materno por um “mecanismo”, um jogo determinado de tendências instintivas e de forças imperativas da realidade”.
É bem verdade, por uma parte, que “não se aceita nem
na psicanálise, nem na etnologia, um instinto social primário ou um instinto de maternidade. As duas disciplinas aceitam uma pulsão sexual geral que, nos períodos
críticos, leva à formação dos hábitos” (Buytendijk, 1960,
p. 462). O que em termos buytendijkianos se enuncia
aqui é tão somente o limite da noção de instinto como um
mecanismo ou dispositivo interno explicativo acerca da
maternidade. Esta, reiteremos, não é nem uma vocação,
nem um instinto, mas uma estrutura de outra ordem. É o
que retomaremos e aprofundaremos, agora, ao ilustrar o
quarto e último aspecto da vivência materna.
projeto existencial
Uma vez traçados, em linhas gerais, alguns lugares-comuns ou posições teóricas, Buytendijk refina seu argumento concernente à existência de um espírito materno.
Sua posição põe a toda prova que certas características da
espiritualidade humana e, em especial, feminina se mos-
tram de uma maneira peculiarmente evidente. Para tanto,
dois aspectos devem serem considerados: i) o estatuto da
possibilidade de um projeto existencial animado por um
espírito materno geral e ii) a amplitude do próprio amor
materno via o engendramento desse espírito.
Buytendijk se reporta, de relance, a O Segundo Sexo
de Simone de Beauvoir, tido por ele, como um trabalho
notável e penetrante acerca da condição feminina em nossa civilização. Entrementes, à par do elogio, o autor não
poupa uma fina crítica:
A Sr.ª Beauvoir (1949, p. 323) tem razão: “Não existe
instinto materno”, mas quando lemos: “Não há mãe
‘desnaturada’, posto que o amor materno nada tem de
natural; mas, precisamente, por causa disso, há mães
más”, seremos obrigados a perguntar qual é o sentido
que cabe atribuir à palavra “má”. O primeiro princípio, a ideia forte da autora é que a mulher se faz por
conta de suas decisões livres, mas a ideia de uma liberdade absoluta, de uma transcendência em qualquer
caso orientada para uma ordem de valores objetivos,
desveladas pelos encontros, exclui uma escolha autenticamente boa ou má. (Buytendijk, 1960, p. 463)
Buytendijk reforça seu ponto de vista em relação ao
existencialismo sartriano e, em particular, à obra de Beauvoir. Para o crítico holandês, muito embora tais autores
situem a experiência humana como um projeto existencial, a gênese do espírito materno deve ser buscada para
aquém ou, talvez, além de um caráter transcendente da
liberdade ao qual à mulher estaria absolutamente condenada. Em rigor, Buytendijk quer pensar outro estatuto
da liberdade; uma liberdade vivida, situada, encarnada
junto às coisas e, não, alhures, à maneira existencialista,
a título de uma consciência translúcida e autônoma que
permanece estranha ao mundo.
A teoria buytendijkiana da liberdade se encontra nesse registro: ela postula uma coexistência original, na qual
estamos engajados após o nascimento, prefigurada em
nosso corpo e no mundo percebido. É sob esse prisma
que se pode falar de uma interioridade espiritual que, no
fundo, não é um puro espírito, mas uma subjetividade
encarnada, expressão máxima de um paradoxo genuíno,
conforme De Waelhens (1967, p. 205): “assim como, em
nossa experiência, toda presença é o signo de uma ausência, ela indica uma ausência da qual antecipa a presença”. Essa relação entre o presente e o ausente é o signo
da ambiguidade inalienável da condição humana, e, em
particular, da experiência materna. Observa atentamente
Buytendijk (1960, p. 464):
A gênese do espírito materno tem sua origem nos primeiros encontros de um sujeito que é feminino pelas
características pré-existenciais de sua corporeidade.
Esses caracteres não são contingentes; eles determinam uma presença no mundo que atravessa a expe-
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 47-56, jan-abr, 2018
52
F. J. J. Buytendijk e a Gênese do Espírito Materno
É aqui, não resta dúvida, que se encontra um dos pontos mais controversos de sua doutrina. A propósito, não
é de se surpreender até onde essa posição sofrera duros
ataques vindos de todas as partes, como do movimento
feminista. Le Football (1952a, p. 32) é outro estudo emblemático no qual Buytendijk sustenta a tese de que se
trata de um jogo caracteristicamente masculino. Tivesse ele vivido até os tempos atuais, talvez se apercebesse
do disparate dessa leitura um tanto anacrônica em que
se assiste a uma significativa evolução do futebol feminino! De todo modo, o que nos interessa, malgrado tais
excentricidades, plausivelmente discutíveis, é o de não
perdermos o foco central de seu texto. Se, por um lado,
Buytendijk parece construir certo estereótipo do femini-
53
Buytendijk vai mais longe: teoriza uma ética do cuidado como essencialmente mais feminina que masculina. Isto porque:
A espiritualização dessa atitude pela aceitação de uma
intencionalidade integral de devoção, de um dom de
si ao humano que reclama o cuidado, se chama espírito maternal. Esse espírito é – como todo espírito
– plenamente humano porque ele ultrapassa a natureza, como também o corpo. Se se pretende que há,
em nossa civilização, uma afinidade do homem ao espírito militar ou ao espírito geométrico e da mulher
ao espírito materno ou ao espírito de caridade, cabe
acrescentar que essa afinidade significa a introdução
ou a prefiguração de uma decisão pessoal. (Buytendijk, 1960, p. 468)
Essa passagem salta aos olhos. Nela, Buytendijk eleva
o sentido último da ética do cuidado tendo, no espírito
materno, sua expressão paradigmática, por excelência.
Não se trata de um instinto, mas, sim, de uma estrutura
intencional que transcende os limites de uma definição
meramente fisiológica. O espírito materno concebido como uma intencionalidade puramente humana e universal é, por princípio, independente da natureza da mulher
indicando uma maternidade possível. Nem as diferenças de motricidade, nem as experiências infantis, nem a
influência do meio conduzem fatalmente a certo “espírito”. É útil não esquecer que não é livre a escolha que
se apoia sobre uma corporeidade, uma historicidade e
situações dadas. A realidade do homem é uma unidade
incompreensível de “fatalidade e de liberdade” (Buytendijk, 1960, p. 468).
Disso advém outra questão posta pelo autor: “Qual é
a relação dos sentimentos espontâneos, dos valores e do
amor, ou se quiser, daquele amor do qual Santo Agostinho
dizia que é ‘espiritual até na carne e carnal até no espírito’”? (Buytendijk 1960, p, 469). Eis uma possível resposta:
O sentimento mais próximo do dinamismo de adaptação e do cuidado que ele engendra é a ternura. Kunz
fortemente descreveu bem esse sentimento opondo-o à
agressividade. A ternura é primariamente uma reação
espontânea; é a expressão de um sentimento de enternecimento, suscitado por um ser ou por uma coisa que,
pela sua doçura, sua fragilidade, seu charme, “chama”
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 47-56, jan-abr, 2018
Estudos Teóricos ou Históricos
[...] se manifesta no comércio com as coisas, nos movimentos de expressão, no modo de falar e de reagir
às palavras do adulto. O dinamismo de adaptação se
exprime no gosto das meninas, nos trabalhos de agulha, na repetição de movimentos lúdicos, na corda de
pular, na bola contra a parede, em atividades de circuito fechado sem iniciativas criadoras. (Buytendijk,
1960, p. 467)
espírito materno e cuidado
-
Tanto em seu clássico La Femme (1954/2010) quanto
em Attitudes et mouvements (1957, p. 431-439), Buytendijk advoga que o caráter decisivo no tocante à origem
de uma existência feminina não se funda estritamente
na anatomia, mas num dinamismo peculiar: o modo de
execução dos movimentos. Ele caracteriza esse dinamismo como um estilo comportamental. É um fato, nota ele,
de que há uma diferença, por mínima que seja, entre o
movimento constitutivo da menina e do menino. O primeiro, em função de um maior tónus muscular, é mais
rígido, brusco, enérgico enquanto que, no segundo estilo,
percebemos um movimento mais dócil, flexível, menos
expansivo e reativo, típico da feminilidade. Tal diferença
revela uma entrada num mundo específico, isto é, esboça um esquema fundamental de um modo de existir. Comentando Madinier, ilustra Buytendijk (1960, p. 465): “a
motricidade é uma intencionalidade original; ela é, certamente, a matriz de toda intencionalidade; ela é fonte e
forma da significação”. A gênese de uma existência masculina ou feminina parte justamente de tais estilos dinamicamente intencionais.
Nessa perspectiva, Buytendijk elabora a teoria de uma
gênese da feminilidade sem prescindir de uma simples
observação voltada às primeiras fases da gênese masculina e feminina bastante conhecidas nos jogos preferidos e
nas relações afetivas. Ele volta a retratar: o estilo feminino
no à primeira vista como um autor um tanto extemporâneo, é de se levar em conta, por outro, o quanto o estilo
comportamental da mulher é elevado comparativamente
ao do homem. Sua proposição em torno da categoria de
cuidado, mostra-se, particularmente reveladora sob esse
aspecto à medida em que o cuidado é oposto ao trabalho.
Artigos
riência a partir já da primeira juventude desvelando
uma ordem de valores primários. Estes aqui representam a constituição geral de um mundo feminino
que se diferencia sob a influência da educação e do
meio social.
Claudinei A. de F. da S.
a carícia da mão, do olhar, da voz. O gesto, a palavra,
o olhar tenro (ao pé da letra) descobrem o terno. Para
a menina que, pela sua motricidade de adaptação e
pela identificação com a sua mãe, começa a cultivar
o ato de ternura ao olhar as bonecas, os animais e os
objetos, se abre ao horizonte da existência feminina.
(Buytendijk, 1960, p, 469)
Buytendijk aprofunda ainda mais esse sentimento de
enternecimento inscrito na dinâmica própria do espírito
materno, sob a ética do cuidado:
Artigos
-
Estudos Teóricos ou Históricos
O que faz da ternura um ato propriamente humano é a
intenção que, por meio do gesto terno, do terno olhar,
da terna palavra visa em se tornar presente como pessoa e cuidar-se do outro. Essa ternura humanizada é a
expressão de um espírito materno que ultrapassa um
sentimento brotado pelo encontro. A “ternura” espiritualizada é detentora de valor, fonte de valorização;
ela se encarna em todos os domínios de uma existência animada por um espírito materno. Esse espírito
limita-se inadequadamente quando se vê, na ternura,
tão só uma aptidão ou uma disposição à maternidade.
(Buytendijk, 1960, p, 469)
Buytendijk chama a atenção para a importância dessa estrutura única. É o elo entre a atitude espiritual e os
sentimentos espontâneos que constitui a ilusão por assim
dizer charmosa de que uma mulher maternalmente se
mostra como que natural. É que essa manifestação amorosa constitui, aos seus olhos, um protótipo ou modelo
de todos os amores (Buytendijk, 1960, p. 470). Alega então nosso autor que se “aceitarmos que o espírito materno realiza um amor desinteressado, nos comprometemos
com uma problemática que transborda amplamente o tema proposto” (Buytendijk, 1960, p. 470).
Nessa direção, já nos situamos longe, bem longe, de
toda antinomia, entre o ato e o dado, eu e outrem. Ora,
tais contradições, projeta Buytendijk (1960, p. 470; grifo
nosso), são “superadas pela concepção de uma subjetividade transindividual e de uma coexistência originária”.
Trata-se de uma reflexão que se prolonga, nos tempos
atuais, tanto na filosofia quanto na psicologia. Como nota Madinier (1938, p. 95): “O amor não é um desenvolvimento da simpatia; essa pode prepará-lo e condicioná-lo,
mas o amor vem de outro lugar. Ele é uma nova forma
de ser”. É o que, para além de Heidegger, Binswanger teria entrevisto:
A existência (Dasein) é, desde então, a possibilidade
originária de um encontro amoroso, de um ser comum,
um ser a dois e não dois. A realização dessa forma de
existência supõe que a existência não se compreende
em si-mesma a partir do mundo, mas a partir de seu
fundamento como dom, presente ou graça. (Binswanger, 1942, p. 153)
Em meio a esse circuito hermenêutico, Buytendijk
(1960, p. 471) reconhece um dom: “O espírito materno é
a decisão definitiva a essa coexistência, implicando, de
uma só vez, o valor revelado de um dom. Este espírito não
procede de uma predileção subjetiva, mas de uma solidariedade fundamental, expressa na perfeição do vínculo entre a mãe e a criança”. Nesses termos, podemos dar razão
a Alain (1927, p. 239) quando atesta que “o amor materno não escolhe [...]. A ideia de escolher e de recusar não
pode entrar nesse modelo de amor”. Ora, parece evidente
que todas essas referências mencionadas por Buytendijk
em função de seu valor filosófico ou psicológico apenas
corroboram o pressuposto de sua tese nuclear segundo
a qual o espírito materno desvela uma gênese bem mais
do que instintiva ou vocacional. É o que se reitera nas linhas finais de seu texto:
É preciso, pois, concluir que jamais está em questão
uma gênese autônoma da individualidade humana,
de um si-chamado homo natura. A existência se constitui por uma dialética, em suma, por uma corporeidade significando um esquema de mundo e significada por este. Essa dialética torna explícito o co-devir
de uma maneira que representa, ao mesmo tempo, o
destino, a vocação; enfim, a inspiração e a aspiração
da vida pessoal e sua destinação. O espírito materno
não está, portanto, nunca formado definitivamente.
Ele se transforma nas profissões diversas e pelas circunstâncias de fato, mas sem perder a intencionalidade do cuidado, a sensibilidade do coração e o amor
fiel pelos valores revelados de um dom. (Buytendijk,
1960, p. 472)
Ao ler mais essa passagem, difícil não perceber sobre
o quanto Buytendijk parece ambientar-se, tão proximamente a Winnicott, na atmosfera da psicanálise infantil
(Winnicott, 2006; Dors, 2015a, 2015b, 2016). Trata-se de
uma convergência também instrutiva para com Goldstein, autor do qual Buytendijk partilhara muitas de suas
intuições (Silva, 2012; 2015).
concluindo
Para finalizar, duas ordens de questões poderiam, a
princípio, ser evocadas, numa direção recíproca. A primeira delas situa até onde Buytendijk é um espiritualista ao evocar a noção de espírito materno. A segunda circunscreve em que medida essa problemática abre outra
que poderia muito bem ser-lhe seu complemento mais
imediato: o espírito paterno.
O texto, do início ao fim, deixa claro a forte intenção
de rebater toda forma de espiritualismo, mormente se essa
rubrica designar algum gesto que acene alguma posição
doutrinária como a do idealismo alemão ou do neocriticismo francês. Buytendijk se coloca como que inteira-
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 47-56, jan-abr, 2018
54
F. J. J. Buytendijk e a Gênese do Espírito Materno
55
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Artigos
mente avesso à categoria clássica de espírito, razão pela
qual ele visa uma maior aproximação com autores como
Merleau-Ponty e Gabriel Marcel. Com relação ao primeiro, o pensador holandês retoma conceitos capitais como
a de estrutura do comportamento, percepção, experiência originária e o sentido da história. É nessa medida que
a tese anti-darwiniana de Merleau-Ponty (1945, p. 199),
de que “o homem é uma ideia histórica e não uma espécie natural”, ganha um peso considerável nas reflexões
buytendijkianas. E é sob esse prisma que a noção de gênese se revestia estruturalmente pela dinâmica da historicidade em franco diálogo com o movimento psicanalítico que, como se sabe, o fenomenólogo francês travara
intenso debate.
De Gabriel Marcel, Buytendijk reinscreve a significação última da ideia de encarnação e seu valor ontológico
transcendente. Situar, portanto, a categoria de espírito,
nesse contexto, é, antes, evocar um nível de experiência mais radical, isto é, concreta, carnal. Fato é que tanto Marcel quanto Merleau-Ponty são críticos contumazes do idealismo fenomenológico de matriz husserliana/
sartriana bem como da tradição fortemente espiritualista
que marcara época, na passagem de século (XIX-XX), na
França. Assim, o que Buytendijk busca é ressignificar a
noção de espírito projetando-a noutro horizonte. A experiência da maternidade talvez seja um caso exemplar
dessa dimensão única e irredutível que se abre. Fica patente, à letra do texto, que, em inúmeras de suas formulações (até pelas fontes citadas), paira sempre uma inspiração de cariz teológico-cristã. Isso, contudo, de modo
algum compromete o seu sentido e alcance, sobretudo
naquilo que sua obra pode revelar de originalmente fenomenológico.
Finalmente, parece-nos, ainda, que a concepção
buytendijkiana de espírito não separa, na esfera mais ampla da experiência humana, a essência profunda da maternidade e da paternidade. Aliás, ambos os níveis coexistem, inextrincavelmente. É verdade também que, sob
certos aspectos, a leitura de Buytendijk soa um sintomático conservadorismo à luz de nosso tempo em meio, é
claro, ao caloroso debate que as questões de gênero têm
assumido, de maneira implacável e, programaticamente,
propositiva. O que, certamente, não diminui a relevância e
o caráter genuíno e por que não provocativo de suas teses.
Em face disso, por evidentes razões teóricas sem perder
a perspectiva histórica, Buytendijk acentua bem mais o
horizonte feminino da vivência humana tendo, pois, na
maternidade um ângulo vivo e privilegiado de interesse.
Nessa visão de conjunto, o estatuto psicológico-fenomenológico de seu trabalho diz muito. Trata-se de unir; não
de separar. É esse vetor, enfim, fenomenológico que a obra
buytendijkiana se orienta ao formular uma noção inteiramente nova e, ao fim e ao cabo, não reducionista acerca
do mistério da vida, cujo cenário tem, na figura da mãe,
um protagonismo exemplar.
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 47-56, jan-abr, 2018
Claudinei A. de F. da S.
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Claudinei Aparecido de Freitas da Silva - Doutor pela UFSCar (2007),
Mestre pela UNICAMP (2000) com Pós-Doutorado pela Université Paris
I - PANTHÉON-SORBONNE (2011-2012) na área de Filosofia. Graduado pelo IFA (1990) e pela UNIOESTE (1994). Docente e Orientador nos
Cursos de Graduação e Pós-Graduação (Mestrado) de Filosofia. Email:
[email protected]
Recebido em 14.09.16
Primeira Decisão Editorial em 29.03.17
Aceito em 19.05.17
Artigos
-
Estudos Teóricos ou Históricos
Winnicott, D. W. (2006). Os bebês e suas mães. Trad. J. L. Camargo. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes.
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 47-56, jan-abr, 2018
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Considerações Fenomenológico-existenciais sobreNºo DOI:
Habitar
no Semiárido Brasileiro
10.18065/RAG.2018v24n1.6
cOnsiderações FenOMenOlógicO-exisTenciais
sObre O habiTar nO seMiáridO brasileirO
Existential-phenomenological Considerations on Inhabiting the Brazilian Semi-arid
Consideraciones Fenomenológico-existenciales sobre el Habitar en el Semiárido Brasileño
maíRa leiTe esCóRCio
elza maRia do soCoRRo duTRa
resumo: O semiárido brasileiro vem passando por mudanças paradigmáticas nas últimas décadas. Da perspectiva do “combate à
seca” para a “convivência com o semiárido”, políticas públicas têm sido empreendidas com diferentes focos. Este estudo traz reflexões fenomenológicas calcadas na perspectiva heideggeriana acerca das mudanças relacionadas ao modo como o sertanejo habita o sertão. O paradigma do combate à seca traz consigo representações de um semiárido de aridez, restrição e escassez, imagem
veiculada pela literatura e mídia do início e meados do século XX, período histórico de intensa migração nordestina. Já no início
do século XXI temos o emergente paradigma da convivência que procura mostrar um sertão como lugar de pertencimento e possibilidades. A partir da revisão da literatura de pesquisas com sertanejos, foi possível lançar um olhar crítico para uma realidade
que desvela o sertão como abrigo do antigo e do novo paradigma,ao mesmo tempo exercendo ligação no modo como o sertanejo
habita sua terra, uma vez que ele é sempre ser-no-mundo. Assim, o semiárido se abre como lugar onde o humano habita no modo
da familiaridade ou do estranhamento, iluminados a partir da experiência de cada um.
Palavras-chave: Semiárido; Convivência; Heidegger; Habitar; Fenomenologia.
resumen: El semiárido brasileño (Sertão) sufrió cambios paradigmáticos en recientes décadas. La perspectiva de “combate a la
seca” se ha transmutado en “convivencia con el semiárido” y así políticas públicas fueron establecidas con diferentes propósitos. Este estudio presenta algunas reflexiones fenomenológicas con base en la tradición heideggeriana para tratar de las transformaciones en la manera como el sertanejo habita su tierra. El paradigma del combate a la seca representa el semiárido en su aridez, restricción y escasez con imágenes presentadas en la literatura y la media nacional de la primera mitad del siglo XX. En inicio del siglo XXI se erige el paradigma de la convivencia presentando un Sertão como lugar de pertenecimiento y posibilidades.
A partir de un trabajo de revisión de la literatura de investigaciones con sertanejos fue posible observar críticamente una realidad
que conserva a un tiempo el antiguo y el nuevo paradigma influenciando la manera como el sertanejo habita su tierra, ya que él
es siempre ser-en-el-mundo. De esta manera, el semiárido se abre como lugar para habitar en el modo de familiaridad o de alejamiento iluminado por la experiencia de cada uno.
Palabras-clave: Semiárido; Convivência; Heidegger; Habitar; Fenomenologia.
57
-
Atualmente vivemos uma crise hídrica mundial (Veriato et al, 2015). Lugares antes marcados pela abundância de água, hoje sofrem esquemas de rodízio e as pessoas precisam desenvolver novas formas de viver com essa
situação. São Paulo é um dos Estados que já foi destino
de inúmeros retirantes nordestinos em busca de melhores
condições de vida devido ao fenômeno das secas. Agora,
início do século XXI, é notícia nacional a baixa de seus
reservatórios de água. Informações do jornal “Folha de S.
Paulo” trazem que a crise se iniciou no ano de 2014, teve
seu auge no início de 2015 e, em 2016, os reservatórios
vem se recuperando gradativamente1.
1
Folha de S. Paulo (18 de julho de 2016). Caderno Cotidiano. Recuperado de: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/07/1628415crise-da-agua-acompanhe-o-nivel-dos-reservatorios-de-sao-paulo.
shtml.
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 57-65, jan-abr, 2018
Artigos
introdução
Estudos Teóricos ou Históricos
Abstract: Brazilian semi-arid (Sertão), one of the four sub-regions of the Northeast of the country, has undergone paradigmatic
changes in the past decades. It has shifted from the perspective of “fight against drought” to that of a “coexistence with the semiarid” and thus State policies have been implemented with different focuses. The present study brings a heideggerian phenomenological approach to the changes in the way the people in the Sertão inhabit the land. The paradigm of fighting the drought is
known for representing the semi-arid with aridity, restriction and scarcity. Those are the images presented by Brazilian national
literature and by the national media in the first half of the XXth century, period of intense emigration from the mentioned area.
The beginning of the XXIst century saw the emergence of the paradigm of coexistence in which the Sertão was presented as a
place of possibilities and presence. Through a work of literature review this paper was able to establish a critical view over the
current reality of the Sertão as a place for the old and the new paradigms. Both perspectives are present in the way people inhabit the land and connect with it, considering that humans are always being-in-the-world. In that sense, the semi-arid is given as a
place for inhabiting in familiarity or estrangement affected by the experience of each other.
Keywords: Semi-arid; Coexistence; Heidegger; Inhabit; Phenomenology.
Artigos
-
Estudos Teóricos ou Históricos
Maíra L. E.; Elza M. do S. D.
Seja resultado de fenômenos climáticos, somados à
ingerência de recursos (Automare, 2015), o fato é que,
segundo relatório Mundial das Nações Unidas sobre o
Desenvolvimento de Recursos Hídricos 2015 – Água para
um Mundo Sustentável (ONU, 2015), o fenômeno da falta
de água tende a se agravar nos próximos anos e a demanda por água tende a crescer em 55% até o ano de 2050.
Mas, afinal, como a vida é possível sem esse recurso essencial para sua manutenção? Partindo de uma perspectiva fenomenológica existencial, o humano é o pastor do
ser (Heidegger, 1946/2005b), sendo a existência sempre
interpelada por sentido. Dessa maneira, perguntar sobre
a manutenção da vida na perspectiva da irregularidade
da água traz consigo a necessidade de nos aproximarmos
de quem vive nesse horizonte de sentido.
O homem do semiárido brasileiro tem sua existência
marcada por essa irregularidade na oferta de água e periodicamente atravessa períodos estendidos de seca. Atualmente o semiárido vem sofrendo transformações paradigmáticas, passando da perspectiva do “combate à seca”
para a da “convivência com o semiárido”.
O presente artigo tem como objetivo trazer reflexões
fenomenológicas heideggerianas acerca das mudanças de
paradigma no modo como o sertanejo do semiárido brasileiro habita sua terra natal, o sertão. Para o estudo atingir
esse objetivo, foram tomados como base de reflexão teórica alguns textos clássicos da ontologia heideggeriana, tais
como Ser e Tempo (Heidegger, 1927/2005a) e a conferência “Construir, Habitar e Pensar” (Heidegger, 1954/2012).
Em seguida, foram reunidos artigos científicos, livros, dissertações, informações a respeito de migrações de órgão
oficial como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), assim como de jornal de grande circulação,
a saber, Folha de S. Paulo.
Foi realizada uma leitura crítica do material obtido
através da revisão de literatura e algumas reflexões fenomenológico-existenciais foram tecidas, culminando com
o seguinte percurso: num primeiro momento, é realizada
a retomada do paradigma do “combate à seca” e suas possíveis implicações no modo como o sertanejo habita o sertão. Em seguida, é lançada uma reflexão crítica acerca do
paradigma emergente da “convivência com o semiárido”
com o objetivo de problematizar se essa nova perspectiva
está trazendo novas possibilidades de pertencimento para
o homem do sertão. Por fim, anunciamos a coexistência
dos dois paradigmas no semiárido brasileiro com considerações fenomenológicas a respeito dessa implicação.
Parte do território brasileiro é composto pelo clima
semiárido. Essa região, segundo dados do Ministério da
Integração Nacional (2005), caracteriza-se pela irregularidade das chuvas, clima quente, bioma da caatinga, e alta
evaporação da água. A região ocupa 9 Estados Brasileiros
e abrange 86% da região nordeste.
Nos últimos 30 anos, o semiárido sofreu mudanças de
paradigmas políticos. Se por quase cem anos as políticas
públicas se voltavam para a seca como um fenômeno a
ser combatido (Carvalho, 2006), atualmente o semiárido
é tido como uma região onde a convivência é possível
(Lindoso, 2013). Ocorre, então, uma mudança de paradigmas. Silva (2003, p. 64) afirma que:
Percebe-se que estas duas perspectivas, do combate
à seca e da convivência com o semi-árido, estão estreitamente articuladas com diferentes paradigmas
de desenvolvimento que informam as percepções sobre aquela realidade, selecionam os problemas e os
seus enfoques específicos e indicam os modelos válidos de intervenção na superação de seus problemas
específicos.
A cada período histórico marcado por distintos paradigmas de desenvolvimento, corresponde uma perspectiva adotada no direcionamento de políticas públicas e,
consequentemente, essas perspectivas brotam de compreensões daquele contexto específico. É dessa maneira que
autores (Carvalho, 2006; Chacon, 2007; Lindoso, 2013;
Silva, 2003) apresentam o paradigma do “combate à seca” como pautado num modelo mecanicista de controle
da natureza, enquanto que o paradigma da “convivência”
se orienta numa ótica de sustentabilidade.
Apesar de muitos sertanejos terem migrado para a região Sudeste em meados do século XX, segundo dados de
estudo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística – (IBGE, 2011), atualmente essas migrações têm
diminuído. O que estaria ocasionando essa permanência
do sertanejo no semiárido se as secas ainda ocorrem? Essa
pergunta anuncia a necessidade de uma reflexão acerca
do habitar do sertanejo.
Partindo da perspectiva heideggeriana do humano como ser-no-mundo (Heidegger, 1927/2005a) num horizonte
histórico, consideramos que os acontecimentos, sentidos
e significados correntes sobre um determinado lugar se
relacionam diretamente com os modos de ser e estar do
humano, com sua existência: “A essência da pre-sença
está em sua existência” (Heidegger, 1927/2005a, p. 77).
Dessa maneira, é importante realizar uma aproximação
com o contexto da existência humana que aqui propomos,
a dizer, o semiárido brasileiro, a fim de compreendê-lo.
O sertão e suas mazelas
No final do século XIX ocorreu uma grande seca no
nordeste brasileiro, o que fez com que os olhares do governo, até então monárquico, se voltassem para a região.
A proposta foi, então, a de realizar obras que atendessem
às necessidades de água do homem do semiárido (Campos,
2006; Chacon, 2007; Lindoso, 2013). Contudo, Malvezzi
(2007) aponta que foi apenas no início do século XX que
a Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS) foi criada.
Ela posteriormente se transformaria em Departamento
de Obras Contra as Secas (DNOCS). Autores como Cam-
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 57-65, jan-abr, 2018
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Considerações Fenomenológico-existenciais sobre o Habitar no Semiárido Brasileiro
59
No final da década de 1950, o Grupo de Trabalho para
o Desenvolvimento do Nordeste (GTDN), coordenado
pelo economista Celso Furtado, confirma que as ações
governamentais de combate à seca, além de ineficazes,
contribuíram para reprodução das crenças difundidas
pelas elites locais de que a seca era responsável pelo
subdesenvolvimento regional.
Desta maneira, percebemos que o paradigma do “combate às secas” pouco contribuía com os sertanejos, consolidando a imagem da seca como responsável pelo subdesenvolvimento. Em contraponto a esse imaginário reducionista, o sertão também é conhecido por suas festas
populares (Malvezzi, 2007) e o sertanejo por sua forte religiosidade (Pontes, 2014), que inúmeras vezes se associam difundindo crenças e costumes. Um exemplo dessa
mistura pode ser observado nas festas religiosas, como os
reisados, festas juninas e procissões. Como crença, temos
o dia de São José, celebrado no dia 19 de março, dia em
que havendo chuva, o inverno será bom.
Nesse mesmo contexto, dados mostram a ocorrência
de um grande fluxo migratório da região Nordeste para
outros Estados brasileiros com maior intensidade no período do primeiro ciclo da borracha (1879) e durante o
auge da industrialização brasileira, entre 1950 e 1980.
A esse respeito Gomes (2006, p. 144-5) afirma:
A concentração fundiária, concomitante à modernização do campo somada às mudanças nas relações de
trabalho e de poder, provocam uma grande expropriação e estimulam a grande emigração, agravadas nos
ciclos das secas. Nesse mesmo tempo, o CentroSul se
transforma em um grande pólo de atração pela dinâmica de sua economia.
Assim sendo, as motivações que impulsionaram as
migrações são múltiplas, nos dois grandes períodos destacados, e estão relacionadas a diversos fatores que extrapolam a ocorrência das secas, trazendo à tona a busca
por oportunidade de trabalho e a existência de relações
de poder e exploração na região semiárida. Como estão
estes fluxos migratórios atualmente?
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 57-65, jan-abr, 2018
Estudos Teóricos ou Históricos
Essa política privilegiou a construção de grandes obras
com o objetivo de estocar a água, como os açudes e algumas iniciativas de perímetros irrigados, ignorando características da região, como o próprio fato da evaporação
da água no semiárido ser grande. Assim, alguns autores
(Furtado, 1967; Malvezzi, 2007) apontam que essas obras
beneficiavam mais os grandes latifundiários do que os
pequenos produtores. Nesse aspecto, outra importante
dimensão da região se desvela: uma íntima relação entre
seca e poder (Santos, Santos & Santos, 2014; Travassos,
Souza & Silva, 2013). Os detentores de terra, conhecidos
como coronéis, beneficiavam-se dos recursos públicos
destinados a grandes obras de baixo impacto para a população em geral.
Essa fase é difundida por Callado (1960) junto com
a ideia da “indústria da seca”. Esse termo diz respeito à
equivocada ideia de que a seca seria a única responsável
pela miséria do semiárido, fazendo com que recursos fossem destinados para a construção de obras vultosas na
região. Contudo, esses recursos acabavam por alimentar
um ciclo de obras paliativas, conforme descreve Malvezzi
(2007, p. 13): “Políticos pedem auxilio federal. Constroem grandes obras – nem sempre de forma honesta –, mas,
mais adiante, elas estarão secas de novo, por evaporação.
Sustenta-se assim, ao infinito, a indústria da seca”. Mais
uma vez, a questão das relações de poder e exploração
despontam no universo sertanejo, sendo este um dos fatores preponderantes relativos à situação de escassez e
êxodo rural agravados nos períodos de seca ao invés do
fenômeno da seca em si.
É possível visualizar, então, que essa maneira de olhar
para o semiárido cria um viés a respeito do homem do
sertão. Durante esses anos, temos a publicação de importantes obras clássicas da literatura brasileira, como “Os
Sertões” de Euclides da Cunha, “O Quinze” de Raquel
de Queiroz, “Vidas Secas” de Graciliano Ramos. Elas retratam o sertão e o sertanejo ressaltando os aspectos do
ambiente hostil, do sofrimento oriundos dos períodos de
seca, e trazem a imagem do sertanejo como um “forte”
por sobreviver às intempéries climáticas.
Alguns autores (Buriti & Aguiar, 2008; Ferraz, 2011;
Queiroz & Pereira, 2012) afirmam que tanto a literatura
como a mídia contribuíram para criar e difundir um ima-
-
Ao se instituir uma política de combate à seca uma série de políticas assistenciais de emergência foi empreendida, não atentando para produzir um conhecimento mais aprofundado desta região do país e de suas potencialidades e como também de entender como essa
região se articula em sua pluralidade e com o mundo.
ginário do sertão como local de seca e escassez. Buriti &
Aguiar (2008, p. 12) destacam que “os próprios sertanejos eram pejorativamente chamados de ‘flagelados’, que
‘invadiam’ os grandes centros urbanos como ‘desocupados’ que se tornavam uma ‘ameaça’ à ‘ordem’ e à higiene
enfaticamente propalada pelos médicos e sanitaristas daquele período”. Considerar que o problema do semiárido
se restringe à ocorrência de secas, assim como entender
o sertanejo como um “flagelado”, é um reducionismo que
deve ser desconstruído e repensado à luz do contexto
histórico e social em que ele vive, uma vez que o humano vive num horizonte de sentido histórico. Silva (2003,
p. 363) afirma que:
Artigos
pos (2014), dividem em fases as diferentes intervenções
estatais que foram empreendidas nesse período de aproximadamente cem anos na região, compreendido como
período marcado pelo paradigma de “combate às secas”.
Para Carvalho (2006, p. 5):
Artigos
-
Estudos Teóricos ou Históricos
Maíra L. E.; Elza M. do S. D.
Estudos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2011) indicam uma mudança nesses fluxos,
evidenciando uma queda na migração de nordestinos
para a região Sudeste na última década. Diante desse panorama político e social do sertão nordestino, quais impactos são possíveis de vislumbrar na própria existência
do sertanejo?
A partir de Heidegger (1927/2005a), o humano (Dasein/
Ser-aí) é compreendido como único ente cujo ser está em
jogo e é sempre ser-no-mundo, essa uma unidade indissociável. O mundo, para além de região, localidade, pode
ser compreendido enquanto trama de significados (Vattimo, 1987) na abertura da existência. Aberto e lançado no
mundo, o homem é tocável pelo que vem a seu encontro,
graças ao existencial da disposição, também compreendido
como humor, e da compreensão, mais um existencial que
caracteriza a abertura originária do humano. Heidegger discorre acerca de outros existenciais em sua obra “Ser e Tempo” (1927), tais como decadência, discurso, cuidado, entre
outros, ressaltando seu caráter de interdependência. Entretanto, nesse artigo nos debruçaremos sobre o “habitar”.
Ainda em “Ser e Tempo” (1927), Heidegger indica que
temos o ser-em derivado do ser-no-mundo e “O ser-em é,
pois, a expressão formal e existencial do ser da pre-sença
que possui a constituição essencial de ser-no-mundo” (Heidegger, 1927/2005a, Parte I, p. 92. Grifo do autor). O sentido trazido pelo autor para esse existencial diz respeito a
ser familiar, pertencer, morar junto a. É possível também
compreendermos esse existencial como uma possibilidade humana de “se sentir em casa”, acolhido e pertencente a algum lugar na dispersão cotidiana, intimamente
articulado ao existencial da disposição/ humor, segundo
Heidegger (1927/2005a). Na condição de existencial, o
ser-em é constituinte do humano, da própria existência.
Já no ano de 1951, em sua conferência “Construir, habitar e pensar”, Heidegger se aprofunda mais nesse existencial e discorre acerca dele como “habitar”. Nela, recobra uma discussão sobre a origem das palavras no alemão
e seus significados, afirmando que construir originariamente tem o significado de habitar, no sentido de cultivar. Nesse sentido, “habitar é bem mais um demorar-se
junto às coisas. Enquanto resguardo, o habitar preserva
a quadratura naquilo junto a que os mortais se demoram:
nas coisas” (Heidegger, 1954/2012, p. 131).
Fazendo referência à quadratura como uma simplicidade que abarca céus e terras, deuses e mortais, o autor
ressalta que, habitando, o humano se demora junto às
coisas, num cultivo. E é através de um exercício de pensamento e questionamento que o construir e o pensar
pertencem ao habitar.
Cabe ressaltar aqui que, quando Heidegger faz essa
mudança de compreensão de “Ser e Tempo” para a referida
conferência, já está em uma fase de seu pensamento em
que se volta para o estudo do ser e da linguagem (Teixeira,
2006). Assim, algumas noções ganham novos contornos
em seu pensamento. “Ser-em” passa a ser compreendido
de maneira ampliada como “habitar”; a noção de mundo
ganha também o sentido de origem como terra, assim como o humano (Dasein/Ser-aí) passa a ser denominado como homem/mortal, desvelando sua condição existencial.
Num exercício de pensamento nos deparamos com o
humano que existencialmente habita a terra, tem suas raízes na própria existência, sendo existência. Esse humano experiencia momentos de seca e tem sua condição de
vida, a água, indisponível. A fim de nos aproximarmos
da experiência a partir de quem a vive, vejamos o que o
sertanejo tem a falar sobre si mesmo considerando algumas pesquisas levantadas através da revisão de literatura.
Em estudo realizado por Villas & Campos (2006) sobre
as representações da seca para sertanejos de Jusante dos
açudes Orós (Ceará) e Armando Ribeiro Gonçalves (Rio
Grande do Norte), em junho de 2003, alguns sertanejos
foram escutados. A partir de entrevistas com homens e
mulheres sobre o que é a seca, os pesquisadores relataram que a população atribui esse fenômeno à miséria e à
opressão do poder público, assim como o referiram como
algo complexo e difícil de falar a respeito.
A pesquisa põe em destaque que a população do semiárido faz uma relação entre seca, miséria e políticas
públicas, indo além da imagem da seca como única responsável pela miséria. Quando lançamos olhar para o
sertanejo do semiárido a partir do paradigma do “combate às secas”, percebemos uma existência que estaria se
movendo num horizonte de relações desiguais de poder
e exploração. Tais políticas nem sempre beneficiam a população em geral e não promovem uma perspectiva que
instigue a “combater” um fenômeno climático do qual não
se possui controle. Ao mesmo tempo, essa existência se
enraíza num universo cultural de festas e religiosidade,
devendo ser considerado que muitas pessoas ainda vivem no meio rural.
Malvezzi (2007) pensa que o sertanejo, tendo condições de vida para ficar em sua terra, ele o faz, sendo as
festas um de seus fatores de agregação. Segundo o autor,
“essa permanência esta ligada ao “prazer” de estar ali e
ser sertanejo. Explica muito da permanência do povo sertanejo no meio rural; os estados nordestinos são os mais
rurais do Brasil” (Malvezzi, 2007, p. 32).
Se o sertanejo tem um enraizamento em sua terra que
ultrapassa as mazelas políticas e sociais aos quais ele está exposto, como Malvezzi (2007) propõe, uma mudança
de paradigma, do “combate à seca” para a “convivência
com o semiárido” poderia lhe trazer novas possibilidades de existência.
Mudanças de paradigma: novas possibilidades de
existência?
O paradigma da convivência com o semiárido tem seus
pressupostos já anunciados nos anos de 1980 (Lindoso,
2013). Contudo, é no final da década de 90, com a “Decla-
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 57-65, jan-abr, 2018
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Considerações Fenomenológico-existenciais sobre o Habitar no Semiárido Brasileiro
‘Convivência’ guarda em si o valor da tradição, por
meio da valorização dos conhecimentos dos sertanejos
e sertanejas com a semiaridez, suas ‘leituras’ dos sons
da mata, cantos de pássaros, condições atmosféricas,
direções do vento etc., ou seja, com as formas sutis de
comunicação desse povo com o universo simbólico,
61
O estudo de campo nos possibilitou a percepção da
trajetória de mudanças, a partir do trabalho, dos sertanejos com seus entraves sociais. Esse “fenômeno”
está permeado, nos discursos de sofrimento que nos
levam à emergência de um novo homem capaz de tecer o seu destino e nos apresentar outras formas de
inclusão, pela mão do trabalho – do arado ao bordado.
A emergência do novo homem do sertão, protagonista, criativo e ativo é destacado nesse estudo. São pessoas
que ao invés de mudarem de cidade, de região para a manutenção de sua sobrevivência, escolheram permanecer
e se reinventar, percorrendo novos caminhos de vida no
mesmo chão. Não há como afirmar, no entanto, que essa
experiência se deu a partir da mudança de paradigmas
que tem ocorrido no semiárido. Porém, as novas alternativas se abriram para esses sertanejos também porque a
região viabilizou uma possibilidade, desconstruindo o
imaginário reducionista do sertão como local apenas de
seca e escassez.
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 57-65, jan-abr, 2018
Estudos Teóricos ou Históricos
A ideia de que o paradigma da convivência possui
duas dimensões, uma social e uma ambiental, estando a
primeira subordinada à segunda, leva à compreensão de
que o sertanejo não precisa lutar e ir contra o ambiente
em que ele vive. Outrossim, ele pode reconhecer seus limites e potencialidades a fim de desenvolver formas de
produção e de vida que estejam de acordo com a região.
Nesse sentido, ao invés de “combater à seca”, vista como
fenômeno hostil a enfrentar, o sertanejo tem a possibilidade de reconhecimento e do convívio a partir de modos
que respeitem as características regionais e ambientais
do semiárido.
Nesse sentido, a perspectiva da convivência estaria
propiciando novas formas de existência para o sertanejo,
atribuindo novos significados para essa região até então,
por muitos, estigmatizada. Habitar o semiárido a partir
do paradigma da convivência estaria, então, fortalecendo
o enraizamento do sertanejo em sua terra natal?
Alguns autores (Carvalho, 2006, 2011; Lindoso, 2013;
Malvezzi, 2007; Silva, 2003) têm direcionado seus estudos na perspectiva da convivência como uma nova forma do homem do sertão estar no semiárido. Eles relacionam esse paradigma como possibilidade das pessoas
“ganharem voz” na construção de políticas, participando
de maneira ativa.
Numa perspectiva fenomenológica, Carvalho (2011)
defende que o paradigma da convivência gera um novo
sentido de pertencimento para o sertanejo, abrindo-o para
novos significados para com os outros na mundanidade
semiárida. Para a autora, a convivência diz respeito a uma
nova forma de identidade. Segundo Carvalho (2011, p. 71):
Este paradigma então seria um novo modo de se relacionar com o mundo e com os outros de forma a valorizar saberes tradicionais, compreensões da natureza
que sempre estiveram presentes na vida semiárida e modos de ser-no-mundo com os outros mais cooperativos.
A proximidade do sertanejo com a natureza semiárida dá
notícias de um homem que possui uma relação de proximidade e intimidade com a sua terra, desvelando raízes e
compreensões de quem habita e pertence num resguardo.
A convivência com o semiárido, para Carvalho (2011),
é uma forma de solicitude, termo utilizado por Heidegger (1927/2005a) para designar um modo significante do
humano se relacionar com outro humano. Olhar para a
convivência como solicitude traz a implicação de pensar
no sertanejo para além dos estereótipos fatalistas em relação à seca como pivô de sofrimentos até então disseminados por algumas mídias (Queiroz & Pereira, 2012), em
consonância com alguns interesses das oligarquias sertanejas (Chacon, 2007). Implica, ainda, reinserir o sertanejo
como protagonista de sua história.
Uma experiência inusitada é apresentada por Martins,
Buriti & Chagas (2007) no interior do Ceará, onde seis sertanejos agricultores redimensionaram sua atividade laborativa e passaram a bordar. Em sua pesquisa etnográfica,
os autores destacam que os sertanejos entrevistados afirmaram ter enfrentado preconceitos entre eles mesmos
pelo fato do bordado ser tradicionalmente uma atividade feminina. Contudo, com a necessidade de tecer novos
caminhos de subsistência, o bordado se abriu como possibilidade, denotando mudanças e aberturas nos modos
de ser do homem do sertão. Segundo Martins, Buriti &
Chagas (2007, p. 36):
-
É importante ressaltar que, no paradigma da convivência, estão relacionadas duas dimensões: uma dimensão social (num sentido amplo que envolve tanto
práticas produtivas quanto saberes e especificidades
culturais) e outra ambiental. A dimensão social deve
se “adequar” à dimensão ambiental.
as práticas de coletividade, os sistemas de dádivas e
de obrigações comunitárias.
Artigos
ração do Semiárido” e o início da Articulação do Semiárido (ASA), que autores consideram que essa mudança de
paradigma de fato ocorreu. Foi a partir da mobilização de
Organizações Não Governamentais (ONGs), aliadas à população, e movimentos sociais que já apresentavam insatisfações com as políticas do antigo paradigma, somadas
a preocupação de âmbito nacional e internacional com o
desenvolvimento sustentável (Chacon, 2007) que nasce
a noção de “convivência com o semiárido”. Para Cunha
& Paulinho (2014, p. 31):
Artigos
-
Estudos Teóricos ou Históricos
Maíra L. E.; Elza M. do S. D.
Resultados preliminares de uma pesquisa com familiares de agricultores suicidas de 5 municípios do interior
do Rio Grande do Norte que fazem parte da região semiárida foram divulgados por Dutra & Roehe (2013) com o
objetivo de compreender aspectos existenciais possivelmente relacionados ao fenômeno do suicídio dos agricultores. Nesse estudo, os familiares entrevistados apontam
as condições de vida na região como um dos fatores que
poderiam ter influenciado a decisão pelo suicídio.
De acordo com falas de alguns entrevistados, fica em
destaque o desemprego, a falta de perspectivas para os
jovens e a vontade de mudança de cidade. Compreendido
como contexto de vida inóspito e limitante nas possibilidades de ser, a morte se anunciaria como possibilidade
última, revelando que “quando os entrevistados descrevem suas condições de vida, mostram a relação entre suas possibilidades e o mundo em que, necessariamente,
todo ser humano habita” (Dutra & Roehe, 2013, p. 115).
Algo de diferente se instaura a partir dessa pesquisa: o
semiárido tecido como local de pertencimento e possibilidades mostra um novo contorno nas falas dos sertanejos
que denunciam suas condições de vida como limitantes.
Será que o paradigma da convivência com o semiárido
ainda é incapaz de mudar o modo como o sertanejo habita o sertão?
Em outro estudo realizado em Afogados da Ingazeira
(PE) sobre a implementação do programa de convivência
com o semiárido “Um Milhão de Cisternas” (P1MC), Pontes (2011) diz que as famílias ainda não tinham clareza
que as cisternas faziam parte de um programa financiado pelo governo federal. Elas atribuíam sua implantação
a uma “dádiva” ou associavam-na a algum político especifico. Um significado religioso é atribuído ao beneficiamento das famílias com uma política pública e ainda
associado a relações de apadrinhamento político, muito
comum em meados do século XX.
O desconhecimento da população acerca dos novos
programas sociais vinculados ao paradigma da convivência, assim como o desvelamento da existência de relações
de poder e favorecimento (Santos, Santos & Santos, 2014)
associadas às obras no semiárido, sugerem a coexistência
de duas perspectivas no semiárido brasileiro: a do combate à seca e a da convivência com o semiárido, conforme
destacado por Pontes (2011).
O sertão: abrigo do antigo e do novo
Através de uma aproximação com a experiência de
sertanejos a partir de alguns estudos que lhes deram voz,
é possível refletirmos acerca das mudanças proporcionadas com as mudanças de paradigmas no semiárido brasileiro. Se por um lado a proposta do combate à seca traz
ideias pejorativas e reducionistas a respeito do sertão e
do sertanejo (Campos, 2014; Chacon, 2007; Silva, 2003),
por outro, a perspectiva da convivência parece veicular
uma imagem de sustentabilidade, pertencimento e protagonismo para a região (Carvalho, 2011; Lindoso, 2013).
Contudo, a perspectiva da convivência com o semiárido é recente e, apesar de atualmente as políticas públicas se orientarem a partir de seus ideais, existem relações de poder históricas no semiárido que alimentaram
e ainda encontram lugar, ocasionando a coexistência de
diferentes paradigmas (Pontes, 2011). Todavia, é no solo de antigos e novos paradigmas que o sertanejo habita
sua terra, optando pela permanência em maior escala do
que em outros momentos históricos, conforme indicam
dados do IBGE (2011).
Assim, o sertanejo do semiárido está enraizado num
universo de significados históricos de exploração, escassez, religiosidade, uma vez que o humano habita uma
pré-compreensão de si e do mundo que o move. Ao mesmo tempo, novas possibilidades de ressignificação mundana desabrocham em seu horizonte de sentido, vindo
ao seu encontro a noção de pertencimento e valorização
regional. São dois modos distintos de olhar para essa realidade que tem se apresentado para o próprio sertanejo;
compreensões dicotômicas, com significados pejorativos
e valorativos. Esse contexto de ambivalência paradigmática estaria trazendo algum impacto no modo como o sertanejo habita?
Autoras como Fortunato & Neto (2010) apontam que
o paradigma da convivência com o semiárido tem procurado construir uma memória da região como local de
protagonismo social, pertencimento e possibilidades, ao
passo que a designação sertão ficou atrelada à ideia de pobreza, miséria e exploração. Elas afirmam que essa nova
perspectiva também atende a interesses e homogeneíza
a imagem do sertanejo e, “a partir dessa compreensão, a
memória do Semiárido, como contraponto à memória do
sertão, passa a assumir duas funções essenciais: manter
a coesão interna e defender as fronteiras daquilo que os
habitantes do semiárido devem ter em comum” (Fortunato & Neto, 2010, p. 59).
As autoras sugerem um movimento de homogeneização do sertanejo a partir da perspectiva da convivência
com o semiárido, assim como uma nova forma de exploração. É possível considerarmos, sob essa ótica, que a própria homogeneização humana é um modo de nivelamento
de possibilidades de ser-no-mundo, o que implica numa
restrição da existência cotidiana. Nesse sentido, ao invés
de novos modos de habitar o semiárido se abrirem como
possibilidade, num resguardo, mais uma vez o sertanejo estaria submetido aos ditames paradigmáticos de uma
outra proposta de ações e políticas locais. Essa proposição nos remete novamente à assertiva de que a região semiárida é marcada por relações de poder históricas que
perduram ainda hoje com outras roupagens, conforme as
autoras chamam a atenção.
A noção pejorativa associada à ideia de sertão, assim
como de combate à seca, se contrapõe a noção de semiárido e convivência, como lugar de pertença e possibilida-
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 57-65, jan-abr, 2018
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Ao considerarmos esse viés, a compreensão que se
abre é a de que as mudanças que vêm ocorrendo no semiárido estariam distanciando o sertanejo de sua terra, ao
invés de reaproximá-lo. As relações tradicionais estariam
63
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-
O sentimento de pertencer ao sertão não apenas desaparece, mas é verdadeiramente extirpado, visto que é
traduzido como atraso. Essa destruição do nexo das
relações sociais afeta não apenas as pessoas, mas toda uma teia de atitudes e processos que norteiam a
cultura sertaneja, inclusive no que se refere à relação
do Homem com a Natureza.
sendo dissolvidas, ao invés de resguardadas, ocasionando uma experiência de desenraizamento. Na pesquisa de
Dutra & Roehe (2013) essa perspectiva do desenraizamento ganha força, já que as condições de vida dos familiares de agricultores suicidas são tidas como limitantes e
frustrantes. Esses significados atrelados à vida sertaneja
falam sobre a experiência dessas famílias num contexto
mais atual, cujo peso de ser e ter que ser foi levado ao limite por alguns familiares.
Por outro lado, Pontes (2011) traz a experiência do
programa de implementação de cisternas em Afogados
de Ingazeira - PE. Em seu estudo, algumas observações
importantes a respeito da mudança de paradigmas são
mostradas: algumas famílias não quiseram participar da
iniciativa porque não tinham como dispor do trabalho
de participação nas reuniões formativas, do trabalho
braçal e da alimentação para os trabalhadores; algumas
mulheres lamentaram a não participação devido ao único envolvimento do marido ser com bebida alcoólica; a
maioria das famílias participaram da iniciativa e aprovaram; não ficou claro para os participantes de quem
era a iniciativa, sendo que alguns acreditavam que estava vinculada a algum político “bondoso”; ainda assim,
algumas famílias se engajaram no processo e tiveram
acesso a uma formação política mais crítica a partir das
reuniões formativas.
As informações resultantes das entrevistas e observações do estudo de Pontes (2011) falam tanto de um novo
modo de relação com a água e com a tecnologia das cisternas, como numa outra compreensão política de algumas famílias, levando o sertanejo a experienciar novas
possibilidades de enraizamento em sua terra. Ao mesmo
tempo, também revela as dúvidas de alguns sertanejos a
respeito de como essa tecnologia chegou até sua comunidade: seria beneficiamento de algum político? Um outro
achado diz respeito a não mobilização de algumas famílias devido a impossibilidade de trabalhar na construção
das cisternas.
A partir dessas três pesquisas, o anúncio da coexistência de dois paradigmas tão dicotômicos no contexto
semiárido parece abrir o sertanejo para novas maneiras
de habitar o semiárido. As contradições e ambivalências desses modelos político-sociais podem suscitar familiaridade e estranhamento e até mesmo viabilizar o
apelo da disposição da angústia e do tédio no confronto com a finitude. Na medida em que é tocado a partir
de sua abertura, o sertanejo tem a possibilidade de se
voltar para sua existência de novas maneiras nas ocupações cotidianas.
Voltar o olhar para o habitar enquanto modo em que
o humano está junto às coisas numa demora, resguardando cada coisa em sua essência (Heidegger, 1954/2012), é
a proposta heideggeriana. Quando pensamos em demora
junto às coisas, os existenciais da espacialidade e da temporalidade se abrem, remetendo ao local de habitação, de
morada humana e a sua temporalidade. Assim, ao reali-
Artigos
de. Porém, por se tratar de uma região regida pelos dois
paradigmas e pessoas singulares, é importante olharmos
para essa realidade como múltipla e diversa, com marcas
características de um horizonte histórico.
Assim, Cunha & Paulinho (2014) alertam sobre a existência de contradições dentro do paradigma da convivência, questionando se ele de fato visa à transformação dos
modos de ser e relações de exploração do semiárido ou
se diz respeito a um conservantismo de vanguarda, calcado na ideia de adaptação do sertanejo ao seu contexto
marcadamente desigual com relações que o mantêm em
situações de pobreza. Trazendo a política da construção
de cisternas como paradigmática da convivência, Cunha e
Paulinho (2014, p. 54) afirmam que “as cisternas não são
anunciadas como alternativas paliativas enquanto não é
possível oferecer para os moradores das comunidades rurais do interior do Nordeste água tratada e encanada. Elas
simbolizam a capacidade de adaptação do sertanejo, sua
criatividade”. A reflexão proposta pelos autores traz um
apelo crítico para o paradigma emergente da convivência
com o semiárido que precisa ser considerado.
Compreendemos aqui que o semiárido de hoje é local
em transformação: contexto do antigo e novo paradigma
político, múltiplas possibilidades e apelos, ambiguidades
e contradições, banhado pela forte religiosidade sertaneja.
Apreendendo esse cenário, aberto e lançado na facticidade
cotidiana, o sertanejo experiencia essas transformações.
Existencialmente ele habita, seja no modo da familiaridade, enraizado em sua terra, seja no modo do estranhamento, num distanciamento.
O modo como essas transformações atuais tocam o
sertanejo são problematizadas neste artigo a partir dos já
citados estudos de Chacon (2007), Dutra & Roehe (2013)
e Pontes (2011). O primeiro estudo faz uma leitura crítica a respeito da política de águas no Estado do Ceará,
versando sobre o paradigma da convivência. Nesta pesquisa, Chacon (2007) destaca que mesmo o novo paradigma não inclui o sertanejo e, apesar de se interessar por
seu ponto de vista, ele não é considerado. Desta maneira,
afirma que a modernização da região, com a chegada da
energia elétrica e de novas tecnologias, acaba por trazer
novos significados para a vida no sertão. Segundo Chacon (2007, p. 38):
Estudos Teóricos ou Históricos
Considerações Fenomenológico-existenciais sobre o Habitar no Semiárido Brasileiro
Maíra L. E.; Elza M. do S. D.
zarmos uma aproximação com o local de desvelamento
do ser, seu contexto, a dizer, o sertão nordestino, e lançar luz às questões emergentes e históricas, é o esforço
de compreensão do habitar desse mesmo homem que se
mostra. Contudo, estudos que tragam a voz do sertanejo
a respeito das mudanças que vêm ocorrendo em sua terra
ainda são difíceis de serem encontrados, o que restringe
o nosso intento.
Portanto, devemos considerar que as mudanças de
paradigma sustentam os modos diferenciados pelos
quais o sertanejo habita o semiárido. Este é um fenômeno que desvela inúmeras faces a partir do olhar que
se lança para ele e merece então um cuidado. Entretanto, é possível vislumbrar que tais paradigmas projetam
ideias e ações no sertão e exercem influência nas relações correntes, uma vez que o humano é ser-no-mundo,
pertencendo tanto no modo da familiaridade como no
do estranhamento.
Artigos
-
Estudos Teóricos ou Históricos
Considerações inais
Afirmar que o paradigma do combate à seca está associado à imagem do sertão como local de seca e escassez,
enquanto a perspectiva da convivência com o semiárido
traz um sentido de pertencimento e familiaridade, é uma
proposição questionável. O modo como o sertanejo habita o sertão é permeado pela coexistência desses paradigmas, contudo, não pode ser por eles definido. Habitar o
semiárido diz respeito tanto ao panorama histórico e político, quanto à maneira que cada sertanejo experiencia
sua existência em sua região.
Conforme esclarece Dutra (2008), a partir da compreensão da fenomenologia existencial inspirada em Heidegger, o humano enquanto ser-no-mundo já anuncia a
condição ontológica e social do homem, pois “não é possível pensar o humano fora de um contexto social, de um
mundo geográfico, histórica e socialmente já constituído,
o que significa, acima de tudo, pensar o homem como um
ser de relação” (p. 233). O humano, sempre ser de relação no mundo, promove implicações sociais e históricas
em seu horizonte enquanto tece relações, sentidos e significados únicos. Dessa maneira, as mudanças que vêm
ocorrendo no semiárido iluminam possibilidades de ser,
estar e pertencer à região.
Portanto, é necessário realizarmos uma leitura crítica dessa mudança de paradigmas, uma vez que o semiárido brasileiro abriga as duas perspectivas e leituras,
acolhendo o ontem e o hoje que coexistem com suas mazelas e possibilidades de vida, que se abrem e fecham.
Nesse movimento de desvelamento e ocultação de significados e sentidos, nesse horizonte histórico ungido
por relações de poder, multiplicidade cultural e religiosa, é que o semiárido desabrocha como possibilidade
de morada humana a partir da experiência de cada sertanejo no ser-tão.
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Grande do Norte. Email:
[email protected]
Elza Maria do Socorro Dutra - Professora Titular em Psicologia Clínica
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, pesquisadora
do Programa de Pós Graduação em Psicologia da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte – UFRN, orientadora de Mestrado e Doutorado.
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acOMpanhaMenTO TerapêuTicO eM saúde MenTal:
esTruTura, pOssibilidades e desaFiOs para a
práTica nO sus
Therapeutic Accompaniment in Mental Health:
Structure, Possibilities and Challenge to its Practice in Unique System of Health
Acompañamiento Terapéutico en Salud Mental:
Estructura, Posibilidades y Desafíos para la Práctica en el Sistema Unico de Salud
luis FeliPe FeRRo
milTon CaRlos maRioTTi
adRiano FuRTado holanda
miRian aPaReCida nimTz
resumo: O campo da Saúde Mental experiencia atualmente uma intensa revisão teórico-prática e, como desdobramentos, novos
equipamentos e propostas terapêuticas vêm tomando corpo pragmático. O Acompanhamento Terapêutico (AT) insere-se neste
contexto destinando ações das mais diversas ordens para proporcionar acompanhamento às diferentes demandas dos indivíduos
com transtorno mental e ao resgate de sua subjetividade. Como fruto analítico da experiência de cinco anos de estruturação de
uma proposta de AT junto ao estágio de saúde mental do curso de Terapia Ocupacional de uma Universidade pública Brasileira
e das reflexões decorrentes de experiências na Psicologia, o trabalho que se apresenta intenciona subsidiar a estruturação do AT
junto ao campo da saúde mental, especificidade dada aos serviços vinculados ao SUS. Formas estratégicas para a captação de recursos humanos, possibilidades organizativas para sua prática e elucidações quanto à potência do AT tornam-se, logo, vigas mestras da contribuição aqui pretendida.
Palavras-chave: Saúde Mental. Terapia Ocupacional. Acompanhamento Terapêutico. Saúde Coletiva. Subjetividade.
Artigos
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Estudos Teóricos ou Históricos
Abstract: The field of Mental Health currently experiences an intense theoretical and practical review and, as developments, new
equipment and therapeutic approaches are taking place. Therapeutic Accompaniment (AT), into this context, proposes various
actions to provide follow-up to the different demands of individuals with mental disorders and the rescue of their subjectivities.
As an analytical result of a 5 years experience in structuring AT proposed by Occupational Therapy course at an public University
in Brazil and reflections resulting from experiments in psychology, this work aims to provide subsidies for structuring the AT in
Mental Health field, specificity applied to SUS’ services. Strategic ways to raise funds and human resources, organizational possibilities for its practice and elucidations of the AT’ potentials become, thus, the girders of this paper’s intended contributions.
Keywords: Mental Health. Occupational Therapy. Therapeutic accompaniment. Public Health. Subjectivity.
resumen: El campo de la Salud Mental actualmente vivencía una intensa revisión teórico-práctica y, como desarrollos, nuevos
equipos y enfoques terapéuticos están en estructuración. El Acompañamiento Terapéutico (AT) se inscribe en este contexto proponiendo acciones de varias órdenes para proporcionar seguimiento a diferentes demandas de personas con trastornos mentales
y el resgate de su subjectividad. Como resultado del análisis de 5 años de la experiencia en AT propuesto por el curso de Terapia
Ocupacional de una Universidad publica Brasileña y de las reflexiones resultantes de experiencias en la Psicología, el trabajo que
se presenta pretende ofrecer subsidios para la estructuración del AT junto al campo de la salud mental, con enfoque en el SUS.
Maneras estratégicas para recaudar recursos humanos, posibilidades de organización para su práctica y aclaraciones acerca de la
potencia del AT hacense, luego, vigas de la contribución aquí prevista.
Palabras-clave: Salud Mental. Terapia Ocupacional. Acompañamiento terapéutico. Salud Pública. Subjectividad.
introdução
Em dezembro de 2011, o Ministério da Saúde anunciou, por meio da portaria 3.088, a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), configurada para proporcionar acompanhamento comunitário a pessoas com transtorno mental.
A RAPS reafirmou em sua estrutura alguns equipamentos
já socialmente instaurados e inseriu em seu escopo institucional algumas experiências que vinham logrando êxito
em âmbito nacional (Brasil, 2011a).
Em sua proposta basal, intervenções singulares passariam a se dar de acordo com as demandas dos usuários,
familiares e coletivos, procurando enfrentar problemáticas que compõem complexo quadro psicossocial e afetam,
consequentemente, a população alvo da Saúde Mental em
sua relação comunitária (Brasil, 2011b). Neste contexto,
tanto uma série de equipamentos como toda uma gama
de propostas terapêuticas vêm sendo inauguradas, embora muitas vezes a passos lentos, vivenciando uma revisão
criativa de seus conceitos e práticas. Não nos abstemos
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 66-74, jan-abr, 2018
66
Acompanhamento Terapêutico em Saúde Mental: Estrutura, Possibilidades e Desafios para a Prática no SUS
acompanhamento Terapêutico: conceito, história e
contribuições ao campo da saúde Mental
Embora historicamente com diferentes denominações,
amigo qualificado, atendente terapêutico, atendente psiquiátrico, auxiliar psiquiátrico, acompanhante terapêutico, propostas de acompanhamentos próximos e singulares
que transbordavam os limites físico-institucionais foram
67
Em contexto Latino-Americano, um movimento crítico quanto ao modelo manicomial na Argentina da década de 1960 proporcionou terreno para a edificação da
prática do AT (Pulice, Manson & Teperman, 2005). As
primeiras referências ao uso do termo Acompanhamento Terapêutico
(...) ocorrem na Argentina, na clínica do Dr. Eduardo
Kalina, conhecida por CETAMP - Centro de Estudos
e Abordagem Múltipla em Psiquiatria. Também nesta
clínica, em 1985, surge o primeiro livro publicado sobre o tema, intitulado Acompañantes Terapéuticos y
pacientes psicóticos, escrito pelas psicólogas Susana
Kuras de Mauer e Silvia Resnizky, que consiste em um
manual introdutório e sistematizador do acompanhamento terapêutico e foi traduzido no Brasil em 1987.
(Benatto, 2014, p. 8)
Ainda, o embrião do que viria a se constituir como
acompanhamento terapêutico pôde ser evidenciado no
Brasil nos anos de 1960 e 1970.
O acompanhamento terapêutico foi introduzido no
Brasil sob a denominação de “atendente psiquiátrico”, na Clínica Pinel em Porto Alegre, nos anos 60 e 70
(Berger, Moretin & Braga Neto, 1991). Posteriormente
foram encontrados registros de uma segunda experiência, no final da década de 60 no Rio de Janeiro, na
Clínica Villa Pinheiros, sob a denominação de “auxiliar psiquiátrico”, com forte embasamento psicanalítico. Nessa mudança de nomenclatura – passando de
atendente psiquiátrico a auxiliar psiquiátrico – as funções deste profissional mantêm-se inalteradas, assim
como o foco de atendimento, visto que a clínica de
Porto Alegre – primeira experiência – serviu de base
de inspiração para a clínica do Rio de Janeiro – segunda experiência. (Benatto, 2014, p. 8-9)
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 66-74, jan-abr, 2018
Estudos Teóricos ou Históricos
Contudo, embora tanto a prática como a produção
intelectual sobre o dispositivo AT apresente substancial
crescimento nas últimas décadas, a organização metodológica para sua estruturação no SUS ainda necessita de
contribuições mais adensadas (Benatto, 2014). Nesta vertente, é intenção do material que se apresenta proporcionar reflexões críticas que possam subsidiar a implantação
e organização do AT no cotidiano dos serviços de Saúde
Mental do SUS. Para tanto, o relato da experiência de cinco anos dos docentes envolvidos na estruturação da proposta de AT junto ao estágio de saúde mental do curso de
Terapia Ocupacional da Universidade Federal do Paraná
(UFPR) proporcionará aporte ao ensaio aqui pretendido.
O uso de agentes que não ficavam atuando apenas
dentro do hospital, e que ainda não tinham sido batizados de “acompanhantes terapêuticos”, começou a
ficar potencializado, juntamente às novas experiências que estavam sendo gestadas no campo da saúde
mental. A prática das atividades terapêuticas dentro
do hospital e também fora das comunidades terapêuticas ganhou um novo impulso a partir das propostas
da reforma psiquiátrica que teve início em alguns países da Europa. Félix Guattari (1992) escreveu sobre
as suas experiências institucionais ainda na década
de 1950, na Clínica de La Borde, na França, o mesmo
acontecendo com Franco Basaglia (1982), no início da
década de 1960 e, principalmente, na década 1970,
na Itália. (Silva & Silva, 2006)
-
[uma] atenção pormenorizada e próxima aos usuários e suas diferentes demandas. Frente à padronização das ações em saúde (...), o AT instaura-se de
maneira crítica para compor ações singulares voltadas às demandas dos indivíduos e de seus familiares.
A área de atuação do AT é maleável e mutante, essência fundamental de sua prática. O AT circula pela cidade, atravessa serviços de saúde, de lazer, de cultura, moradias, para encontrar e responder ao que lhe é
mais imprescindível e caro – as demandas do usuário.
(Ferro et al, 2014, p. 610)
estimuladas pelos ideais das reformas psiquiátricas (Nogueira, 2009; Benatto, 2014).
Artigos
dos exemplos: equipes de Consultório na Rua, Centros
de Atenção Psicossocial, Serviços Residenciais Terapêuticos, Unidades de Acolhimento, Centros de Convivência,
Grupos de Convivência e Geração de Renda, Grupos de
Direitos Humanos e Controle Social, Acompanhamento
Terapêutico entre outros (Lopes & Leão, 2002; Fonseca,
2008; Ferro, Cardoso, Fedato & Fracaro, 2012). Todos estes
exemplos representam, antes de tudo, um passo importante na direção da revisão de padrões e modos tradicionais
de se “ver”, perceber e lidar com a “loucura”, a “doença
mental” e com a experiência da saúde mental.
Tomando o foco intencionado ao presente manuscrito,
o Acompanhamento Terapêutico (AT) insere-se neste quadro de maneira bastante profícua. Embora com a atuação
não restrita à Saúde Mental, o AT se instaura de maneira
orgânica às propostas do campo (Pitiá & Furegato, 2009;
Estellita-Lins, Oliveira & Coutinho, 2009; Ribeiro, 2009;
Acioli Neto & Amarante, 2013; Disconsi, Cavedon, Greff,
Chassot, Galvão, Leães & Carvalho, 2013). Em sua configuração, o AT propõe
Luis F. F.; Milton C. M.; Adriano F. H.; Mirian A. N.
A nomenclatura Acompanhamento Terapêutico, por
fim, é assumida no Brasil na década de 1970 e 1980 e
desde então vem configurando importante campo teórico-prático (Nogueira, 2009; Benatto, 2014). Para sua operacionalização, a proposta do AT conta com a figura do
acompanhante terapêutico (at), o qual proporciona atenção que contempla as demandas singulares dos sujeitos
e/ou grupos atendidos. O AT transpassa muros institucionais e, de maneira parceira, participa de problemáticas intrinsecamente ligadas ao cotidiano dos usuários
procurando criativamente estratégias de enfrentamento
(Ribeiro, 2009).
Em contraposição à suposição da neutralidade do terapeuta como condição sine qua non para o tratamento,
o Acompanhamento Terapêutico impõe ao profissional o
desafio de colocar em cheque seu conhecimento e imergir, junto com usuário, em um campo vivencial para intervenções criativas que possam responder de maneira
resolutiva às dificuldades na relação do usuário com o
seu meio comunitário.
Artigos
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Estudos Teóricos ou Históricos
A angústia de fazer uma clínica com pouquíssimos
enquadres possibilita que os acompanhantes sejam
mais desprendidos de sua técnica, utilizando-a apenas na medida do necessário. Na verdade, a técnica
parece ser criada em consonância com as exigências
de cada acompanhamento, tornando-a tributária da
experiência clínica, e não um conjunto rígido de regras que aprisionem acompanhante e acompanhado
em um modelo a ser seguido, sem que a singularidade do que ali aconteça seja levada em consideração.
(Ribeiro, 2009, p. 80)
Em diálogo com o atual campo discursivo da Saúde
Mental, o AT destaca-se enquanto dispositivo ímpar para
a composição de possibilidades de intervenção junto às
problemáticas cotidianas do usuário, aliando e posicionando ações que conjuguem de maneira intrínseca, orgânica e estratégica dificuldades e potencialidades individuais, familiares e comunitárias (Freitas, 2013; Gerab
& Berlinck, 2013).
O dia-a-dia, o contexto familiar, social, o lazer, vistos de dentro da realidade cotidiana vivenciada nos
atendimentos sinalizarão os caminhos a serem percorridos, os objetivos a serem traçados e o término do
trabalho, constituindo um impulso para a reconstrução de uma autonomia de base e para a plena utilização dos recursos e potenciais disponíveis no cotidiano do paciente. Trata-se de reabilitação enquanto
reconstrução da existência. Esta reconstrução solicita
rotinas e ritmos. As necessidades psicossociais específicas dos pacientes em reabilitação determinam esta
reconstrução, como a capacidade de lidar com problemas cotidianos, desenvolvimento de auto-estima,
habilidades sociais, desenvolvimento de autonomia e
prática da cidadania. (Estellita-Lins, Oliveira & Coutinho, 2009, p. 207)
Em seu percurso comunitário com o usuário, o AT experiencia a concretude em sua face mais nua, dessintonizando a prática do consultório para a assunção de uma
clínica da alteridade.
O AT é prática de trocas em que os intercâmbios sociais estão na base dos acontecimentos construídos
nos atendimentos. Da mesma forma, é prática interdisciplinar sem demarcações territoriais de saberes
ou excesso de identidades (...). O AT promove a saúde no mais aberto dos espaços, transita pela cidade
e apropria-se dela como lugar de habitação e convivência coletiva, campo de negociações e de exercício
de contratualidade social e cidadania. (Fiorati & Saeki, 2008, p. 766)
Embora ao dispositivo seja imprescindível a manutenção de sua mobilidade e permeabilidade frente aos
processos de vida do acompanhado na conjugação entre
objetivos terapêuticos e intervenções, suas ações devem
organizar-se de maneira sistemática para ampliação de
sua potência e para proporcionar enfrentamento efetivo
das problemáticas evidenciadas. É neste sentido que o
presente trabalho pretende tecer contribuições teórico-práticas para o campo do Acompanhamento Terapêutico.
acompanhamento terapêutico: entre possibilidades,
recursos humanos e airmação da desigualdade
Embora o Acompanhamento Terapêutico proporcione
inegável contribuição para o desenvolvimento de projetos
terapêuticos no campo da saúde mental, a sua estruturação apresenta diferentes problemáticas. A primeira delas
diz respeito à sua implantação.
Em diálogo com diferentes gestores de equipamentos
de saúde mental, uma barreira sempre evidenciada para a prática do AT é a dificuldade na obtenção de recursos humanos. Como um gestor de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) pode, por exemplo, dedicar 1,
2, 3, horas semanais de um de seus profissionais para
acompanhar de maneira próxima somente um usuário?
Como empreender, com recursos humanos limitados, a
proposta do AT e, com isso, ampliar as possibilidades
de cuidado comunitário aos usuários dos serviços de
saúde mental?
Distante de assumir a potência do dispositivo de maneira romantizada, interessa-nos discutir algumas das problemáticas de sua implementação inseridas no contexto
capitalista que lhe subjaz; afinal, o fato é que famílias com
maior aporte de recursos financeiros podem organizar-se
para contratar profissionais, muitas vezes pós-graduados,
para pragmatizar tal empreitada. Como se daria, contudo,
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 66-74, jan-abr, 2018
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Acompanhamento Terapêutico em Saúde Mental: Estrutura, Possibilidades e Desafios para a Prática no SUS
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Figura 1: Possibilidades de captação de recursos humanos
para a prática do Acompanhamento Terapêutico
1
O PTS, previsto pela atual política pública de Saúde Mental, constitui-se como guia para o desenvolvimento das ações em Saúde, estabelecendo e direcionando intervenções singulares e processuais,
sejam individuais ou coletivas, de maneira intersetorial. Para maior
aprofundamento, consultar OLIVEIRA (2007) e Miranda, Coelho e
Moré (2012).
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 66-74, jan-abr, 2018
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A partir da apresentação de algumas das possibilidades de captação de recursos humanos para a estruturação
da prática do Acompanhamento Terapêutico, foco dado
aos serviços de saúde mental do SUS, cabe a elucidação
de algumas problemáticas que vivenciamos nestes 5 anos
de implantação do dispositivo para, em seguida, elaborarmos analiticamente algumas possibilidades de (re) organização do trabalho.
Como acima registrado, o AT, na experiência que queremos aqui apresentar, está vinculado ao estágio curricular
em Saúde Mental do departamento de Terapia Ocupacional da Universidade Federal do Paraná, com exercício da
prática em um dos CAPS parceiros da região. Inicialmente,
reservamos carga horária semanal para a prática do Acompanhamento Terapêutico no estágio semestral, contudo
evidenciamos naquele momento algumas dificuldades.
Em alguns momentos desta experiência, os usuários
eram apresentados aos estudantes sem definição precisa
de suas ações, mesmo com tentativas consecutivas dos
docentes supervisores de alinhamento com a equipe, o
que, na prática, cerceava a potência do dispositivo. A limitação temporal do AT, já apontada como problemática
em outras experiências (Nogueira, 2009), aprofundava-se
aqui. Para além, muitas vezes, era sensível certa dificuldade dos profissionais responsáveis pelo caso, no estabelecimento do Projeto Terapêutico Singular1 (PTS), o que
Estudos Teóricos ou Históricos
acompanhamento terapêutico e estruturação de ações
em saúde mental: entre desencontros e potência
Artigos
tal prática no SUS? Cabe-nos, como pesquisadores e docentes de uma Universidade Pública pensar de maneira
estratégica algumas formas de operacionalizar o AT no
âmbito do SUS, bem como a aproximação entre ensinoserviço, considerando as Diretrizes Curriculares Nacionais
que apregoam a formação de profissionais para o SUS.
Reconhecidamente, a maioria dos programas de Acompanhamento Terapêutico no SUS estão vinculados a Universidades (Nogueira, 2009; Silva, Costa & Neves, 2010;
Benatto, 2014). Em diferentes experiências retratadas pela
literatura, o AT toma corpo por meio de práticas vinculadas a estágios obrigatórios ou projetos de extensão – nossa
experiência junto ao dispositivo na Universidade Federal
do Paraná reafirma tal quadro.
Embora seja incontestável a afirmação da importância
do vínculo longitudinal entre AT e usuário para a concisão das propostas terapêuticas (Maia, 2006), as iniciativas pautadas em estágios obrigatórios apresentam a limitação própria ao período letivo (Nogueira, 2009; Ferro et
al., 2014). No curso de Terapia Ocupacional, por exemplo,
os estágios obrigatórios são semestrais e localizados temporalmente em 4 meses, o que impõe certas limitações
na experiência de utilização do dispositivo. O mesmo
acontece com os estágios do curso de Psicologia da UFPR.
Atualmente os departamentos de Terapia Ocupacional,
Psicologia e Enfermagem da UFPR estruturaram, em parceria com a prefeitura de Curitiba, um programa de extensão que prevê, enquanto uma de suas ações, a prática do
AT. Embora o programa tenha sido composto de maneira
a contornar algumas das limitações temporais próprias à
configuração do estágio, a barreira ainda é presente – a
vinculação do estudante ao programa, seja por meio de
bolsa ou voluntariamente, apresenta circunscrição de 1
ou, ao máximo, 2 anos.
Procurando ampliar a especialização dos profissionais
no exercício do AT, possibilidades estratégicas podem se
constituir no estabelecimento de parcerias institucionais
com cursos de pós-graduação em Acompanhamento Terapêutico. Nesta vertente, a concessão de campo de prática para o AT pode, por um lado, garantir tanto duração
temporal mais prolongada como maior especialização das
ações dos ats. Outra possibilidade que poderia se apresentar para a implantação do Acompanhamento Terapêutico no âmbito da Saúde Mental do SUS é a configuração
de cursos de AT vinculados aos equipamentos de Saúde
Mental, os quais, ao proporcioná-los, garantiriam por um
lado formação profissional para o AT e, por outro, campo
de prática para seus usuários.
Embora o dispositivo seja de imprescindível valor ao
campo da Saúde Mental (mesmo que não somente a este),
sua inserção encontra-se relacionada de maneira orgânica ao contexto econômico, político e social que imprime,
neste panorama, substanciais variações qualitativas para
a população atendida pelo SUS. A figura 1 apresenta algumas das possibilidades de captação de recursos humanos para a prática do AT.
Luis F. F.; Milton C. M.; Adriano F. H.; Mirian A. N.
Artigos
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Estudos Teóricos ou Históricos
adicionava uma frouxidão às ações e processo terapêutico, e deixava o estagiário sem os recursos necessários
para a elaboração de ações úteis ao desenvolvimento do
PTS do usuário
Novas informações e possibilidades estratégicas de
intervenção, neste contexto, permaneciam adormecidas
frente à insegurança de alguns estudantes em aplicá-las
de maneira solitária e sem apoio próximo da equipe do
CAPS. Outros estudantes, por vezes, realizavam ações
de maneira impulsiva e que, no decorrer do estágio, demonstraram complexa repercussão. Neste contexto, toda
uma nova lógica de funcionamento e um outro desenho
programático passou, ao menos em nossa experiência, a
ser imprescindível para a estruturação/ampliação da potência do AT. O fluxograma que se segue, explicita sua
configuração.
Fluxograma 1: Estruturação para a prática do AT no campo da Saúde Mental do SUS
Contraste nítido: se o AT for desenvolvido por um dos
profissionais com graduação concluída e especialização
no dispositivo, contratado sem limitações temporais, é
inevitável a assunção de diferentes responsabilidades
por tal profissional na elaboração e execução de variadas
ações terapêuticas. Contudo, o AT, se reservado à incipiência do trabalho de estudantes em período de estágio
curricular, de 15 semanas da formação sua potência certamente é subaproveitada.
No primeiro, segundo e terceiro passos do fluxograma acima exposto, a defesa argumentativa é que os profissionais possam reunir-se para discussão e eleição de
casos que mais se beneficiariam do dispositivo, haja vista
a impossibilidade estrutural do fornecimento indistinto
do AT no SUS2.
Nestas oportunidades, tais profissionais elaborariam
objetivos mais circunscritos, advindos de sua maior propriedade dos casos, que pudessem reverter em ações que
contribuiriam para movimentar determinados Projetos Terapêuticos Singulares ligados aos usuários. Desta forma, o
estudante, no momento do ingresso no AT junto ao estágio,
poderia em breve momento e com o acompanhamento do
2
Reafirma-se aqui a necessidade do vislumbre para conduzir de maneira madura à elaboração de necessárias ações sociais de enfrentamento e à proporção da equidade prevista, por meio da contratação
de recursos humanos
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 66-74, jan-abr, 2018
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Acompanhamento Terapêutico em Saúde Mental: Estrutura, Possibilidades e Desafios para a Prática no SUS
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riscos tende a ser observada. Contudo, acreditamos que
se o processo de desvinculação puder ser trabalhado pelo
profissional de referência, pontuando tanto para estudante
como para usuário tal desligamento e reforçando as positividades advindas do dispositivo e o vínculo mais duradouro do usuário com a equipe de referência, tal processo
pode contribuir para minimizar ainda mais tais arestas e,
com isso, potencializar os benefícios do dispositivo AT.
Acreditamos que neste ponto, o processo de “transmissão do vínculo”, se é que se poderia assim denominar
o processo de passagem da responsabilidade da tarefa de
um estagiário para o outro, poderia minimizar os riscos
deste desligamento e fortalecer o estabelecimento de vínculo com o novo AT ou estagiário. Este processo tem sido
utilizado em outros campos de estágio de Saúde Mental
como forma de atenuar a quebra sistemática de vinculo a
cada quatro meses, para estabelecimento de novo vínculo
que previamente já se sabe que durará outros quatro meses. Ao longo do tempo o usuário acaba se “acostumando”
e parece que o vínculo fica mais focado nos objetivos e na
função do estagiário/AT do que propriamente na pessoa,
com a consciência de que as figuras permanentes são o
supervisor e o professor orientador.
Sob nosso ponto de vista, portanto, o AT constitui instrumento importante para integrar projetos centrados
em um modo de atenção psicossocial, pois ambos:
estabelecem práticas que se opõem às formas manicomiais de tratamento e alinham-se às propostas da
reforma psiquiátrica; compõem ações de resgate da
contratualidade como cidadão; representam formas de
cuidado que se apóiam na singularização do sujeito,
na medida em que implica o indivíduo em sua dimensão subjetiva, sociocultural e histórica; são práticas
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 66-74, jan-abr, 2018
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Para além de configurações institucionais que possam
potencializar e estruturar a prática do Acompanhamento Terapêutico, algumas considerações sobre as possibilidades de contribuição do dispositivo para o campo da
Saúde Mental do SUS ainda necessitam de maior aprofundamento.
A atenção singularizada e próxima, propiciada pelo
Acompanhamento Terapêutico, conjugada com sua flexibilidade de intervenções e liberdade de transpor espaços
físico-institucionais, se permite, por um lado, a implantação de ampla gama de ações terapêuticas, por outro
configuram algumas barreiras para sua prática no SUS.
Ao AT, como já explicitado, é mister o destino de suas
ações para responder às demandas apresentadas pelos
acompanhados. E, ao assumir a mobilidade do dispositivo, suas intervenções possíveis podem ter emprego da
mais variada sorte.
Estudos Teóricos ou Históricos
acompanhamento Terapêutico e saúde Mental:
possibilidades do dispositivo
Artigos
técnico de referência, inteirar-se do caso e ter orientações
claras sobre ações e objetivos, já previamente elaborados
pela equipe de referência. A explanação a respeito dos
casos e estratégias, neste contexto, poderia se dar pela
figura do técnico de referência ou mesmo do supervisor
do campo de estágio à ocasião do ingresso do estudante.
A elaboração do item 4 poderia, por sua vez, proporcionar estrutura à produção qualitativa e temporalmente
maximizada de vínculo entre AT e acompanhado e, com
isso, aligeirar a implantação de ações. Em porte de ações
já bem definidas pela equipe de referência do usuário, em
conjugação orgânica com seu PTS, e com vínculo potencializado, o AT em curto espaço poderia passar a desenvolver as intervenções que lhe coubessem. “Versatilidade, mobilidade e a disposição para o imprevisto e para o
improviso, não como se tais fossem acontecimentos extraordinários, mas considerando-se que, nessa clínica, os
mesmos fazem parte do dia-a-dia” (Ribeiro, 2009, p. 81).
À prática do AT é inevitável o fio da navalha. O AT é
e deve possuir a fluidez que lhe é própria, contudo acreditamos que os guias para as ações se por um lado devem
ser bem planejados, por outro devem enxergar e dar vazão
aos processos vitais de cada usuário, sempre em constante
mutação. Tal fluxo deve encontrar respaldo estrutural na
prática do AT, para isso, tanto equipe, quanto profissional de referência e supervisor de estágio devem possuir
espaço de escuta do processo colocado em andamento.
Espaços de discussão dos casos, seja na forma de supervisão, de conversas com profissional de referência,
da participação nas reuniões de equipe, são fundamentais para proporcionar a sustentação para tal escuta. No
fluxograma, estas aberturas, previstas no item 7, podem
permitir a porosidade necessária ao AT, possibilitando
reconfigurar, ao decorrer do processo, tanto intervenções
quanto objetivos. A instituição destas estruturas permite,
ainda, proporcionar maior segurança ao estudante na (re)
elaboração e implantação de ações terapêuticas.
Uma das problemáticas vivenciadas junto ao AT diz
respeito ao processo de desvinculação do estudante e do
usuário. Um vínculo próximo com o usuário necessita da
devida distinção entre o aspecto profissional e o vínculo de amizade para que, no momento do desligamento,
tanto usuário como estudante não se mostrem resistentes. Pois bem, a experiência permitiu-nos amadurecer em
vários dos aspectos já enunciados e, com maior especificidade, no último item do fluxograma 1. A chance de
tais riscos apresentarem-se ao usuário e/ou família que
contrata serviços de profissionais mais especializados é
mais baixa incontestavelmente. Contudo, para a prática
do AT em serviços públicos, foco aqui dado aos vinculados ao campo da saúde mental, é necessária a elaboração
de algumas estratégias.
Se todo um processo da prática do AT estiver melhor
desenhado, contando com momentos de supervisão, concretude e clareza de objetivos e ações terapêuticas, além
de contato próximo com a equipe, a minimização de tais
Luis F. F.; Milton C. M.; Adriano F. H.; Mirian A. N.
Artigos
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Estudos Teóricos ou Históricos
de trocas, pois os intercâmbios sociais estão na base
das construções e acontecimentos possíveis, e constituem práticas interdisciplinares, sem demarcações
de territórios e fragmentação dos saberes e práticas.
(Fiorati & Saeki, 2008, p. 767)
Se o AT pode ser utilizado para acompanhar o usuário
em seu percurso vital, auxiliando-o na composição companheira de um cotidiano mais salutar, suas ações não
precisam necessariamente ter foco exclusivo no acompanhado. O acompanhamento individualizado do caso permite intervir, ao aprofundar-se, em diferentes fatores que
influenciam de maneira substancial o processo de saúde do usuário. O foco das ações do AT podem se dar, em
determinado momento, na família ou em determinados
componentes da rede social de apoio do usuário.
Para além disso, embora muito da atuação do AT seja reservado a intervenções fora de muros institucionais,
em determinado momento o AT pode realizar o acompanhamento no “intramuros”. Caso o usuário seja internado
em momento de crise, por exemplo, o AT pode deslocar
seu atendimento para analisar possibilidades de suporte
ao usuário no espaço do hospital psiquiátrico ou mesmo
para a equipe profissional da instituição, ampliando a
efetividade do tratamento e sua conjugação com os objetivos de seu PTS. Ainda, como acima citado, há a oportunidade do destino de suas ações para outros membros
da Rede Social de Apoio do usuário.
Em adição, a possibilidade da relação do AT com outros equipamentos da rede de serviços, pode facultar a
aproximação e ampliar a dialogicidade entre o serviço
de saúde de referência (em nosso caso, o CAPS) e outros
pontos da rede, contribuindo sobremaneira para o exercício do trabalho em rede. Encaminhamentos de usuários
a determinadas instituições, muitas vezes sem qualquer
resolução e transformação de seu cotidiano, poderiam
ser acompanhados de perto pelo AT, tecendo parcerias
e pontes institucionais que maximizariam a potência do
trabalho em rede e reverteriam, inquestionavelmente, para a edificação de projetos de vida dos sujeitos atendidos
pelos serviços de saúde mental.
O AT pode, ainda, configurar ações para levantamento de possibilidades territoriais para enfrentamento
de determinadas problemáticas vivenciadas pelo usuário: associações, tratamento para hipertensão, grupos
de convivência, possibilidades de trabalho, lazer, esporte, etc.
Para além, algumas informações sobre os usuários,
seu processo de saúde-doença, relações pessoais ou com
seu território, muitas vezes permanecem sombreadas
para a equipe de referência de um determinado serviço
de saúde. A prática do AT pode ser destinada a realizar
aprofundamento em determinados casos para que informações aprofundadas e fidedignas possam ser coletadas
para auxiliar a equipe de referência a elaborar determinadas intervenções terapêuticas.
Em suma, o trabalho junto ao AT é e deve ser fluido e
criativo, pautado nas diversas transformações vitais que
possam permear a vida do usuário, sua família e sua comunidade/território. A figura 2, sem a intenção de restringir
as possibilidades criativas das ações do AT, é destinada
a esquematizar algumas das possibilidades proporcionadas pelo dispositivo.
Figura 2: Possibilidades de ações vinculadas ao Acompanhamento Terapêutico
Considerações inais
No manuscrito aqui apresentado, para além da assunção abrilhantada do AT enquanto profícuo dispositivo, nos interessou explorar algumas de suas dificuldades e possibilidades estratégicas para a organização de
sua prática no SUS, foco dado neste momento ao campo
da Saúde Mental.
Da captação possível de recursos humanos, da elaboração analítica de possibilidades de estruturação de sua
prática ao levantamento de suas potencialidades singulares, pretendeu-se aqui colaborar para a reflexão sobre
o dispositivo e sua implantação.
A assunção da diferença entre a prática do AT em âmbito privado e público proporciona o aparecimento de terrenos singulares, os quais exigem estratégias que dialoguem com o atual cenário social na busca de, ao menos,
diminuir criativamente algumas das limitações evidenciadas. Tais buscas, contudo, reafirmam cotidianamente
as diferenciações sociais impostas pela situação do dispositivo dentro de um contexto capitalista. Para enfrentar as diferentes dificuldades para a implantação e organização do AT, neste manuscrito apresentadas, por certo
uma estratégia seria a contratação de mão-de-obra mais
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 66-74, jan-abr, 2018
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Acompanhamento Terapêutico em Saúde Mental: Estrutura, Possibilidades e Desafios para a Prática no SUS
especializada, que apresentasse vinculo/condições trabalhistas que proporcionassem ações técnicas que perdurassem longitudinalmente, e é nesse sentido que as diferenciações se apresentam.
Perguntas críticas, aqui inevitáveis, surgem: até quando agentes vinculados à saúde, como os autores que assinam este manuscrito, necessitarão elaborar propostas,
funcionamentos e formas alternativas para procurar potencializar práticas do SUS, neste caso a do AT, assumindo
as limitações estruturais dos serviços públicos de saúde?
Quando, dentro dos serviços públicos, conseguiremos um
número adequado de profissionais para este tipo de atendimento? Quando será possível falar veementemente em
equidade nos serviços de saúde? Ademais, parece-nos que
o AT, como dispositivo plenamente passível de realização,
situa-se no entremeio de práticas clínicas tradicionais e
de outras inovadoras, mas que certamente sua atuação
pode – e deve – ser vista como uma alternativa tanto para a prevenção, quanto para o acompanhamento de situações que demandam sobremaneira, de um serviço que
invariavelmente padece de condições ditas “adequadas”.
Neste sentido, o AT surge não como uma prática concorrente, mas mesmo como a possibilidade da efetivação de
um tratamento verdadeiramente concreto, objetivo e humanizador no campo da Saúde Mental.
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luis Felipe Ferro - Graduação em Terapia Ocupacional pela Universidade de São Paulo. Mestre em Psicologia e doutor em Ciências pelo
Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade de
São Paulo - USP. Docente do Departamento de Terapia Ocupacional da
UFPR. Email:
[email protected]
Milton Carlos Mariotti - Doutor em Ciências da Saúde pela UFPR. Mestre em Educação pela UFPR. Graduado em Terapia Ocupacional pela
PUCCampinas. Professor Adjunto do Departamento de Terapia Ocupacional do Setor de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Email:
[email protected]
Mirian Aparecida Nimtz - Graduada em Enfermagem e Obstetricia
pelas Faculdades da Zona Leste de São Paulo, Mestre em Enfermagem
pela Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo - EEUSP e
Doutora em Enfermagem pela Escola de Enfermagem da Universidade
de São Paulo - EEUSP. Atualmente ocupa o cargo de Professora Adjunto
da Universidade Federal do Paraná- UFPR e Professora colaboradora do
Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal
do Paraná (PPGENF- UFPR). Email:
[email protected]
Recebido em 24.02.2017
Primeira Decisão Editorial em 03.05.2017
Aceito em 12.07.2017
Artigos
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Estudos Teóricos ou Históricos
Adriano Furtado Holanda - Psicólogo, Doutor em Psicologia, Docente do Curso de Psicologia e do Programa de Mestrado em Psicologia
na Universidade Federal do Paraná (UFPR), Coordenador do Laboratório de Fenomenologia e Subjetividade (LabFeno-UFPR) e Coordenador
do Grupo de Trabalho Psicologia & Fenomenologia na Anpep. Email:
[email protected]
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Intencionalidade e Comportamento: a PercepçãoNº
Vivente
Merleau-Ponty
DOI: em
10.18065/RAG.2018v24n1.8
inTenciOnalidade e cOMpOrTaMenTO:
a percepçãO ViVenTe eM Merleau-pOnTy
Intentionality and Behavior: the Living Being Perception in Merleau-Ponty
Intencionalidad e Comportamiento: la Percepcion Viviente em Merleau-Ponty
PedRo henRique sanTos deCanini maRangoni
danilo saReTTa VeRissimo
resumo: Nos trabalhos iniciais de Merleau-Ponty, a percepção é definida como tema específico de investigação, posto que, para o
filósofo, ela se encontra na junção do sujeito e das suas condições orgânicas de vida. Em A estrutura do comportamento, seu primeiro livro, Merleau-Ponty realiza estudos acerca do sujeito perceptivo considerado do exterior, daí a importância que adquirem,
para o autor, a noção de comportamento e as pesquisas experimentais da psicologia animal e da psicopatologia. Na obra, o problema do organismo e da animalidade é reescrito mediante a refutação da construção científica da realidade biológica. O pensamento estrutural permite a Merleau-Ponty tratar o campo de percepção animal a partir de um registro intencional, fruto de uma
concepção dialética, e não causal do comportamento. Com base nas discussões entabuladas por Merleau-Ponty em A estrutura do
comportamento, contamos evidenciar os elementos fundamentais de interpretação da percepção animal em termos de intencionalidade. Definir o comportamento em um registro intencional significa afirmar que a atividade orgânica é instituinte e significativa.
É através da ação, pautada por normas vitais, que o organismo instaura um meio significativo para si.
Palavras-chave: Merleau-Ponty; comportamento; intencionalidade; organismo.
O conceito de intencionalidade não se encontra formalizado n’A Estrutura do Comportamento, primeiro livro
de Merleau-Ponty (1942/2006). Vale considerar, inclusive,
que referências incipientes a Husserl aparecem apenas no
último capítulo da obra. Se não há, nesse trabalho, uma
teoria explícita da intencionalidade vivente, nele são apresentados, por outro lado, importantes elementos que po-
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dem ser interpretados sob o prisma da intencionalidade.
Esta é a nossa tese. Ao usarmos o termo intencionalidade
estamos nos referindo, nesse contexto, a uma diretividade comportamental mediada, no caso dos animais, por
processos gestálticos de seleção e atribuição de sentido.
Merleau-Ponty, n’A estrutura do comportamento, reinterpreta o conceito, herdado da tradição fenomenológica,
oferecendo uma nova via de análise calcada na ideia de
Gestalt. Em sua acepção geral, a intencionalidade é uma
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 75-83, jan-abr, 2018
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introdução
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resumen: En los primeros trabajos de Merleau-Ponty, la percepción es definida como un tema de investigación específica, ya que,
para el filósofo, ella se encuentra en la unión del sujeto y de sus condiciones orgánicas de vida. En La estructura del comportamiento, su primer libro, Merleau-Ponty realiza estudios acerca del sujeto perceptor considerado del exterior, de ahí la importancia
que adquieren, para el autor, el concepto de comportamiento y los estudios experimentales de la psicología animal y de la psicopatología. En la obra, el problema del cuerpo y la animalidad es reescrito por medio de la refutación de la construcción científica
de la realidad biológica. El pensamiento estructural permite Merleau-Ponty tratar el campo de la percepción animal a partir de
un registro intencional, resultado de una concepción dialéctica e no causal del comportamiento. Con base en las discusiones elaboradas por Merleau-Ponty en La estructura del comportamiento, podemos destacar los elementos clave de la interpretación de
la percepción animal en términos de intencionalidad. Definir el comportamiento en un registro intencional significa decir que la
actividad orgánica es creadora y significativa. Es a través de la acción, guiada por normas vitales que el organismo establece un
medio significativo para si mismo.
Palabras-clave: Merleau-Ponty; comportamiento; intencionalidad; organismo.
Estudos Teóricos ou Históricos
Abstract: In the early works of Merleau-Ponty, perception is defined as a specific research topic, since, for the philosopher, it is
at the junction of the subject and its basic living conditions. In The Structure of Behavior, his first book, Merleau-Ponty performs
studies on the perceiving subject considered from outside, hence the importance that acquire, for the author, the notion of behavior and the experimental studies of animal psychology and psychopathology. In the work, the problem of the body and animality is rewritten by the refutation of the scientific construction of the biological reality according to structuralist biology and psychology. Structural thinking allows Merleau-Ponty to treat the animal’s perception field from an intentional record, the result of
a dialectical, not causal, conception of behavior. Based on discussions made by Merleau-Ponty in The Structure of Behavior, we
highlight the key elements of interpretation of animal perception in terms of intentionality. Define the behavior of an intentional
record mean to say that organic agriculture is instituting and meaningful. It is through action, guided by vital norms that the body
establishes a significant means for you.
Keywords: Merleau-Ponty; perception; behavior; intentionality; organism.
Pedro H. S. D. M.; Danilo S. V.
Artigos
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Estudos Teóricos ou Históricos
propriedade de referência, isto é, ela diz respeito ao fato
de que toda consciência é, essencialmente, voltada para
o mundo. No âmbito da subjetividade vivente, a intencionalidade vital se caracteriza como a referência a metas
ou a conjuntos de estímulos que são selecionados pelo
organismo segundo suas normas internas.
Numa teoria do comportamento vivente comprometida com a dimensão intencional da experiência, entende-se
que os organismos constituem seu próprio meio a partir
de suas significações vitais. É através da ação, pautada por
normas vitais, que o organismo instaura um meio próprio
para si. A constituição ativa do ambiente a partir de suas
próprias demandas nos indica que a essência de todo vivente é ser o centro de sua própria vida. Na primeira obra
de Merleau-Ponty, o problema da intencionalidade segue
os contornos das discussões realizadas sobre o comportamento em contraponto ao naturalismo científico.
Nosso propósito é, justamente, delinear considerações a respeito da intencionalidade na obra A Estrutura do
Comportamento, de Merleau-Ponty. Nosso objetivo principal consiste em evidenciar os elementos que, neste livro,
apontam para uma teoria da intencionalidade vivente que
não se restrinja à ordem humana. Para tanto, iniciamos a
discussão mostrando como Merleau-Ponty contrapõe-se
à antinomia clássica entre consciência e natureza ao propor um retorno à ideia de comportamento. Analisamos,
brevemente, as conceitualizações da psicologia científica de então, a fim de evidenciar o movimento pelo qual
Merleau-Ponty se distancia do mecanicismo ao inserir o
organismo como sujeito da percepção. Enfatizamos, ademais, o percurso pelo qual Merleau-Ponty descreve a atividade vivente, imbuindo-se do conceito de forma, visando
superar o mecanicismo vigente nas teorias comportamentais científicas. Ao final, nos deparamos com a questão
da diferença antropológica, abordada por Merleau-Ponty
através do conceito de multiplicidade perspectiva.
comportamento e naturalismo
As primeiras obras de Merleau-Ponty, A Estrutura do
Comportamento (1942/2006) e a Fenomenologia da Percepção (1945), integram um mesmo programa filosófico,
cujo tema central é o problema da percepção. Em seu livro de estreia, Merleau-Ponty esclarece que seu objetivo
consiste em “compreender as relações entre a consciência e a natureza – orgânica, psicológica ou mesmo social”
(1942/2006, p. 1). Trata-se, em outras palavras, de questionar as possibilidades de articulação entre o que é exteriormente dado, no sentido empírico do objeto exterior,
e aquilo que é propriamente da esfera ideal, e que pertence ao reino da consciência (Moinat, 2012, p. 92). Com
efeito, para o filósofo, nem a noção empírica de natureza nem tampouco a concepção filosófica de consciência,
herdada de Descartes, são suficientes para se descrever a
experiência perceptiva. Deparamo-nos, de um lado, com
as explicações derivadas da filosofia transcendental, que
enfatizam o estudo das estruturas formais da consciência,
sendo consideradas “investigações reflexivas”. A crítica de
Merleau-Ponty dirige-se principalmente ao pensamento
neokantiano (Ferraz, 2009). Para o neokantismo, “o mundo
é o conjunto de relações objetivas sustentadas pela consciência” (Merleau-Ponty, 1942/2006, p. 1). A consciência,
conforme esse campo teórico, relaciona-se apenas com o
que fora estabelecido por suas propriedades cognitivas.
As ciências que se apropriam deste pressuposto têm como
característica a modulação da realidade conforme a escolha do modelo adotado. Por exemplo, “segundo um modelo físico mecânico, a realidade aparece como conjunto
de partículas em movimento, segundo um modelo dinâmico, como um conjunto de forças em interação” (Ferraz,
2009, p. 22). Em outra perspectiva, em conformidade ao
empirismo, as investigações pautadas pelos parâmetros
das ciências naturais são chamadas de explicativas. Esta
espécie de investigação tem como alicerce epistemológico o pensamento causal. Segundo esta ordem científica, considera-se que todo fenômeno pode ser explicado
de acordo com as categorias de causa-efeito advindas da
observação do mundo físico. No âmbito d’A Estrutura do
Comportamento, este tipo de pensamento é representado
pela psicologia científica, tendo-se como modelo principal a fisiologia de Pavlov.
Frente às posições do naturalismo científico e da filosofia reflexiva, devemos nos perguntar: por qual razão
Merleau-Ponty (1942/2006) adota, como linha de análise
dos problemas propostos, a noção de comportamento? De
acordo com o filósofo, o comportamento, considerado por
ele mesmo, é neutro em relação às distinções entre o fisiológico e o psíquico. O comportamento expressa o debate
do agente com o meio físico e social. Foi no behaviorismo watsoniano, no contexto da negação da interioridade
da consciência e do foco exclusivo no estudo fisiológico,
que o comportamento foi definido como soma de reflexos naturais e condicionados. Merleau-Ponty mostra que
a análise minuciosa da noção de comportamento possibilita a crítica à exterioridade do método científico do behaviorismo clássico. Evita-se, por outro lado, a imersão no
ideário racionalista. Como ressalta Geraets (1971), ao se
inserir a consciência como conceito-chave no estudo da
percepção, assume-se o risco de impor a primazia da interioridade sobre o mundo percebido. Ante as definições
fornecidas pelas ciências e pela filosofia reflexiva, a noção
de comportamento adquire, sob a pena de Merleau-Ponty,
o estatuto de “exigência metodológica”, pois tal conceito
resiste às apropriações polarizantes do pensamento causal
ou do pensamento criticista. O comportamento, em sua
neutralidade constitutiva, “permanece fiel aos dados fornecidos pela simples descrição” (Bimbenet, 2004, p. 38).
Neste sentido, A Estrutura do Comportamento afronta o naturalismo científico partindo de uma revisão dos
conceitos que sustentam a exterioridade como princípio
epistemológico. A descrição destes fundamentos anun-
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maior aplicabilidade dos achados e, consequentemente,
torna viável a sua discussão pelos pares. Segundo Watson (1930), a negação da consciência envolve uma busca
por uniformidade metodológica.
Com este intuito, e ancorando-se na reflexologia pavloviana, Watson formula uma teoria do comportamento
que torna possível o controle experimental e a generalização dos dados obtidos. O psicólogo americano define
toda atividade comportamental em termos de estímulo e
resposta. Para esta ciência do comportamento, o behaviorismo, o estímulo define-se como a propriedade ambiental
de suscitar determinadas variações no organismo, sejam
comportamentais ou fisiológicas (Watson, 1930). Qualquer
objeto do entorno do organismo pode desempenhar o papel de estímulo. Por resposta Watson compreende toda
atividade orgânica. Deste modo, ao invés de inferir processos mentais que regeriam a dinâmica comportamental,
o behaviorismo propõe que toda resposta seja avaliada em
termos dos estímulos ambientais.
Na teoria reflexológica de Pavlov, a atividade orgânica
é explicada pelas propriedades absolutas do excitante, de
forma que “é indispensável, em primeiro lugar, um agente externo que provoque a excitação” (Pavlov, 1917/1970,
p. 187). A contração da pupila sob uma forte luz, a resposta defensiva frente às ameaças ambientais, a salivação
intensa em contato com estímulos alimentares, representam exemplos de respostas fisiológicas precisas, determinadas por propriedades específicas dos estímulos. Pavlov (1917/1970) escreve: “Não há mais lugar para o acaso. Os fenômenos estão, novamente, ligados por relações
causais” (p. 188). Lembremos que, para Merleau-Ponty
(1942/2006), “uma ação mecânica, quer tomemos a palavra no sentido restrito quer no sentido amplo, é aquela em
que a causa e o efeito são decomponíveis em elementos
reais que se correspondem um a um” (p. 250). A eficácia
de um determinado estímulo é averiguada segundo sua
capacidade de “excitar”, por meio de propriedades físico-químicas, um determinado receptor circunscrito. Fatores
como o lugar da excitação, a intensidade do excitante e
suas propriedades físico-químicas são determinantes na
consecução da resposta. A reação representa, para a teoria
clássica, o componente final do arco reflexo e, simboliza a
parte eminentemente “ativa” do processo. Caracteriza-se
a reação como o único tipo de atividade do organismo, o
que implica considerar que a recepção dos estímulos exprime uma operação passiva. Em outros termos, segundo a teoria do reflexo, os processos sensório-motores são,
em princípio, diferentes. Eles constituem-se como duas
ordens de acontecimentos. Assim, ao se explicar a atividade reflexa como a soma de processos isolados, que se
comunicam apenas de forma pontual, toda a reação do
organismo a agentes externos permanece no âmbito da
reatividade (Buytendijk, 1952, p. 200). Vejamos, a seguir,
como Merleau-Ponty, por intermédio do conceito de forma, reformula a noção de comportamento e restabelece
ao organismo seu papel de agente.
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cia na prosa merleau-pontyana uma preocupação voltada
para o tipo de ontologia que sustenta o naturalismo. No
lugar de se ater somente aos fatos trazidos pela análise
experimental, é preciso colocar em evidência que toda
ciência pressupõe um fundo metafísico (Furlan, 2001).
A própria evolução dos modelos científicos acarreta mudanças epistemológicas, de modo que é necessário que
a análise filosófica se detenha em uma revisão dos pressupostos formulados pela ciência. O estabelecimento de
uma ontologia naturalista, fundada em uma visão objetiva do Ser, implica a assunção, por parte do cientista, de
uma determinada forma de compreender as “leis da natureza” (Merleau-Ponty, 1984, p. 227) e, por conseguinte,
de formulá-las. Esta forma singular de organização da realidade baseia-se, especialmente, no pensamento causal.
Para Merleau-Ponty, a reflexão sobre a neutralidade do
comportamento nos revela todo prejuízo metafísico que
fora legitimado pelo pensamento causal. A causalidade
tratada n’A Estrutura do Comportamento é, em seu cerne, realista. Postula-se que a realidade existe à parte do
observador, de modo que os fenômenos seguem padrões
causais e independentes do sujeito. Nesta perspectiva,
como veremos mais a fundo, o comportamento e, logo, o
organismo, são descritos como componentes de uma realidade considerada como uma soma de elementos independentes. Tal como um mosaico, figura geométrica na
qual a organização do todo é dada pela relação isolada
de cada parte entre si, a atitude naturalista adotada pela
psicologia no estudo do comportamento considera que o
entendimento da totalidade dos fenômenos demanda a
investigação de cada parte isoladamente.
N’A Estrutura do Comportamento, as abordagens científicas que se propõem ao estudo experimental da conduta
enfatizam o caráter determinante dos processos fisiológicos na dinâmica comportamental. O realismo assume, neste ponto, a forma do materialismo fisiológico, que define
a consciência como determinação de fenômenos físicos e
fisiológicos. Os representantes do realismo, aos quais se
refere Merleau-Ponty, são o behaviorismo americano e a
fisiologia de Pavlov. Vejamos brevemente as linhas gerais
de tais programas.
Em seu célebre artigo, Psicologia como o Behaviorista
a vê, Watson (1913) estabelece que a coerência da pesquisa em psicologia só é alcançada mediante a exclusão
de referências a estados subjetivos. Trata-se, em outras
palavras, de eliminar do vocabulário behaviorista toda
terminologia que insinue a investigação da consciência.
A utilização de termos como percepção, imagem, sensação, pode subentender, segundo o behaviorista, o retorno
à linguagem metafísica utilizada na psicologia introspeccionista. Para Watson, um dos méritos das ciências naturais reside no princípio de generalidade sob o qual deve
se apoiar qualquer hipótese científica. A reprodução dos
experimentos sob determinadas condições-chave deve
resultar em dados equivalentes, independentemente das
condições exteriores ao experimento. Isso possibilita uma
Estudos Teóricos ou Históricos
Intencionalidade e Comportamento: a Percepção Vivente em Merleau-Ponty
Pedro H. S. D. M.; Danilo S. V.
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Estudos Teóricos ou Históricos
a noção de forma e a intencionalidade vivente
A estratégia metodológica adotada por Merleau-Ponty
consiste em aproximar-se do discurso científico visando
trazer a lume as consequências filosóficas de se descrever o comportamento como objeto das ciências naturais.
Merleau-Ponty recorre ao conceito de forma da escola
alemã de Psicologia da Gestalt com o intuito de reformular o papel assumido pela consciência. Se, de um lado,
a psicologia científica recorre à fragmentação como ferramenta de explicação dos fenômenos, por outro lado, a
noção de forma revela que o campo perceptivo é originalmente estruturado, configurando-se como uma totalidade, cujo sentido é imanente à estruturação do campo.
Isso significa que a experiência perceptiva não pode ser
reduzida à soma dos elementos que compõem o mundo
percebido. Diferentemente dos princípios atomistas que
regem a fisiologia de Pavlov, uma organização gestáltica
pressupõe que “cada momento é determinado pelo conjunto dos outros e seu valor respectivo depende de um
estado de equilíbrio total” (Merleau-Ponty, 1942/2006,
p. 144). A forma, diferente do elemento, é introduzida na
descrição do mundo percebido sem pressupor nada que
não possa ser encontrado no próprio mundo percebido.
Recomenda-se, então, seguir “as articulações naturais dos
fenômenos” (Merleau-Ponty, 1942/2006, p. 63). Deve-se,
em outros termos, retomar a prioridade do mundo fenomenal e postular que a consciência, antes de assumir os
modos de ser do cogito cartesiano, é, fundamentalmente,
consciência perceptiva.
Para a Psicologia da Gestalt, o mundo que se doa para
a consciência é primeiramente um mundo de conjuntos
significativos e não de representações ou estímulos físicos, tal como postula a reflexologia pavloviana. No naturalismo científico, ademais, o aspecto fenomênico do
corpo vivo é substituído pela análise detalhada dos processos moleculares que compõem a conduta. É necessário alterar, portanto, a própria noção de organismo, ou de
ser-vivo, apresentada pelas ciências biológicas de orientação mecanicista. Diante das teorias que explicam a atividade orgânica recorrendo a pressupostos mecanicistas,
ou, ainda, ante a ideia de que haveria uma força vital que
animaria a matéria, a noção de forma permite descrever o
organismo como “uma estrutura indecomponível de comportamentos” (Merleau-Ponty, 1942/2006, p. 67). Köhler
(1929/1968), proeminente psicólogo da Gestalt, fornece
um importante quadro das implicações assumidas pelo
paradigma da forma:
Nosso ponto de vista será que, em vez de reagir aos
estímulos locais por meio de fenômenos locais e mutuamente independentes, o organismo reage ao padrão
de estímulos aos quais está exposto, e que esta reação é um processo unitário, um todo funcional, que
oferece, na experiência, uma cena sensorial e não um
mosaico de sensações locais. (p. 64)
No que concerne ao organismo, o que significa renunciar ao atomismo em prol da noção de forma? A alteração da perspectiva atomista para a semântica da forma permite reavaliar a função do estímulo como causa
do comportamento. A excitação não é, desse modo, um
processo isolado da própria atividade do organismo. Entre o conjunto de estímulos atuantes e a postura do organismo frente ao mundo percebido, as relações não são de
exterioridade, mas de imbricação. Tal crítica não sugere,
contudo, que a organização gestáltica exija a presença de
algo como um aparelho psíquico. Computadores e instrumentos musicais são exemplos de máquinas que produzem infinitas combinações de respostas a depender da
configuração dos excitantes enviados. Permanece, todavia,
um questionamento: é válido afirmar que um organismo
reage aos excitantes do mesmo modo como o instrumento
responde aos comandos do pianista que o toca? Merleau-Ponty responde negativamente, pois o piano em-si não
constrói a unidade melódica, que só é possível graças à
performance do músico e à doação daquele que escuta.
A coesão funcional da atividade vivente difere da lógica
de um instrumento, sobretudo, porque o próprio organismo contribui na elaboração do ambiente externo. Este
princípio é basilar na definição da atividade vivente como
intencional. Se é inviável considerar o comportamento
como um desdobramento de ações exteriores, é porque
“o comportamento é a causa primeira de todas as estimulações” (Merleau-Ponty, 1942/2006, p. 14).
Não se trata de negar a dimensão físico-química dos
fenômenos, e sim de superar a visão pela qual o estímulo seria equiparado a uma realidade física. Ao descrever
a relação dos organismos com estímulos significativos,
viabiliza-se o retorno ao campo biológico, no qual os excitantes são ocasiões, e não causas, para manifestação dos
comportamentos. Nesta configuração, a relação entre estímulo e organismo passa a ser pautada por valores funcionais, que são prescritos de antemão pela própria situação
orgânica e motora do vivente. Por exemplo: determinados
organismos são mais sensíveis a Gestalten auditivas, enquanto outros embasam sua atividade, principalmente,
em conjuntos visuais. Esta relação, que polariza certos
conjuntos de estímulos em detrimento de outros, não se
perfaz segundo a suposição de uma entidade interna que
organizaria o sentido, tal como uma substância pensante,
visto que o ambiente antecipa-se na atividade; ele é, para o animal, “o conjunto de coisas que interessam à sua
ação” (Bimbenet, 2014, p. 104).
Façamos uma breve comparação. No âmbito dos fenômenos físicos, por exemplo, o equilíbrio dos sistemas pode
ser definido a partir da interação entre as forças externas
e as forças internas. Se tanto os sistemas físicos, quanto
os sistemas vitais, estruturam-se em torno da noção de
equilíbrio, qual seria a diferença fundamental entre um
sistema físico e um sistema orgânico? Para Merleau-Ponty,
os agentes externos desempenham funções distintas nos
dois casos. Em um sistema físico, as forças externas inte-
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Intencionalidade e Comportamento: a Percepção Vivente em Merleau-Ponty
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“Não entendemos aqui por norma um dever ser que faria o ser; é a
simples constatação de uma atitude privilegiada, estatisticamente
mais frequente, que dá ao comportamento uma unidade de um novo gênero” (Merleau-Ponty, 1942/2006, p. 249).
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O conhecimento aplicado sobre a vida, na perspectiva
naturalista, não visa à própria vida, mas, antes, direciona-se a processos fisiológicos que, ao invés de constituírem
a lei primordial de toda ação, participam do organismo a
título de patamares sensíveis, estruturas gerais do comportamento que adquirem sentido apenas se inseridas
na dialética que as faz emergir como atividade biológica.
Perde-se de vista, na atitude naturalista, o fundo intencional de todo comportamento, o qual consiste, precisamente, na “propriedade que ele [o organismo] tem de estabelecer, por si mesmo, as condições de seu equilíbrio”
(Merleau-Ponty, 1942/2006, p. 240). O vivente não busca diminuir o estado de tensão a qualquer custo; o organismo é “unidade de significado”, as correlações que
este estabelece com seu ambiente não são mediadas por
gradientes físicos, são antes “coordenações de sentido”
(Merleau-Ponty, 1942/2006, p. 243). A inserção da forma
no universo da vida exige que a ciência se depare com o
mundo percebido, pelo qual a atividade orgânica aparece
como um núcleo sensível de exploração e criação de um
mundo circundante (Umwelt).
A apropriação do fundamento estrutural na descrição da ordem vital conduz Merleau-Ponty (1942/2006) a
propor uma organização da natureza vivente segundo níveis de integração comportamental. Trata-se de delimitar
a experiência vivente a partir das possibilidades de ação
inerentes a cada domínio comportamental. Esta estratégia
é a maneira pela qual o filósofo evita recair em prejuízos
ontológicos que se limitam a explicar a vida através de
fatores externos a ela. Há, segundo Merleau-Ponty, diferentes graus de expressão da natureza, a saber, as formas
física, vital e espiritual. A noção de forma permite descrever a dimensão vivente como “um modo de ser que
somente pode ser conhecido adequadamente a partir de
si mesmo” (Bimbenet, 2011/2014, p. 108).
De acordo com a taxonomia de Merleau-Ponty, a classificação das ordens comportamentais compreende três
estilos de expressão da vida: as formas sincréticas, as formas amovíveis, e as formas simbólicas. Elas representam
níveis diferenciados de assimilação e interpretação das
relações com o ambiente circundante, e não simplesmente
três gêneros de formas animais. Vislumbra-se, em cada ordem, uma espécie nova de relação com o espaço e o tempo.
No primeiro nível, o sincrético, Merleau-Ponty delimita os comportamentos cujas capacidades de orientação
rumo aos aspectos da situação vivida não ultrapassam as
normas prescritas pelo instinto. O organismo, neste caso,
Estudos Teóricos ou Históricos
[...] a forma do excitante é criada pelo próprio organismo, por sua maneira peculiar de se oferecer às ações
do exterior. Sem dúvida, para poder subsistir, ele deve
encontrar um certo número de agentes físicos e químicos. Mas é ele, segundo a natureza de seus centros
nervosos, segundo os movimentos dos órgãos, que
escolhe no mundo físico os estímulos aos quais será
sensível. (Merleau-Ponty, 1942/2006, p. 15)
Artigos
ragem segundo princípios de autodistribuição dinâmica
que tendem a aproximá-lo de uma condição de equilíbrio
de forças. Deste modo, as configurações possíveis de um
sistema físico são engendradas a partir de condições presentes e reais, que cumprem o papel de estímulos regulatórios da organização interna (Merleau-Ponty, 1942/2006,
p. 227). Nas estruturas orgânicas, por outro lado, o equilíbrio funcional não depende exclusivamente de processos de autodistribuição de forças. A singularidade de um
organismo está em sua capacidade de apresentar comportamento, o que quer dizer que as condições de equilíbrio são criadas segundo as próprias normas vitais do
organismo. A força externa não é uma entidade alheia ao
sistema. O que se encontra fora do organismo só é constituído como objeto de atenção ou como força influente
a partir das próprias normas1 internas que regulam a atividade sensível. Nessa direção, Ellis (2006) afirma: “Nós
somos conscientes das informações aferentes apenas na
medida em que nós ativamente ‘prestamos atenção’ a elas,
e este processo de direcionamento da atenção é motivado
pelas necessidades do organismo” (p. 46, grifos do autor).
Estabelece-se, portanto, no caso dos organismos vivos,
uma “intencionalidade de tipo funcional”, que se efetiva
como uma espécie de “compreensão vital do meio” (Bimbenet, 2004, p. 55). Com o intuito de destacar que a atividade vivente só pode ser compreendida como ação orientada e, portanto, dotada de sentido, fiamo-nos na ideia de
que o estímulo considerado como acontecimento físico
não é suficiente na descrição do comportamento. Por intencionalidade vital nos referimos, nesse contexto, à ideia
de que os perceptos do animal são Gestalten com valores
funcionais inerentes. A visada de um organismo ao mundo pode ser definida como intencional enquanto insere
no ato mesmo de dirigir-se às coisas uma espécie de modulação do meio conforme significações vitais próprias.
N’A Estrutura do Comportamento, a gênese dessa questão remete diretamente à distinção realizada por Koffka
(1935/1975) entre meio comportamental e meio geográfico. Para este psicólogo da Gestalt, os espaços nos quais
ocorrem as ações de um organismo não se limitam apenas
à topografia geográfica das situações. A atividade não se
desdobra somente em um ambiente físico. Os modos peculiares que cada organismo apresenta ao selecionar os
estímulos ambientais constituem-se como níveis de ação
que não são dedutíveis da relação do organismo com uma
realidade substancial (Merleau-Ponty, 1942/2006, p. 202).
Entre o meio geográfico e o comportamento, estabelece-se outro plano de ação, que é, sem dúvida, dependente
do campo geográfico, mas que não se limita ao escopo de
suas determinações. Este outro locus do comportamento
é o meio comportamental (Koffka, 1935/1975). A seguinte
citação fornece uma síntese do que, a nosso ver, caracteriza a intencionalidade vital:
Artigos
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Estudos Teóricos ou Históricos
Pedro H. S. D. M.; Danilo S. V.
“está aprisionado no quadro de suas condições naturais
e não trata as situações inéditas senão como alusões às
situações vitais que lhe são prescritas” (Merleau-Ponty,
1942/2006, p. 163). O comportamento de um sapo que
persevera em atirar sua língua no vidro de um recipiente, dentro do qual se encontra uma minhoca, é regido por
esquemas instintivos que não o permitem uma abstração
dos contextos vividos. Por outro lado, observam-se também comportamentos inibitórios, como na situação em
que o mesmo animal mastiga um inseto com gosto ruim.
De acordo com Merleau-Ponty, a presença de comportamentos aparentemente desprovidos de sentido, como
no caso da minhoca, assim como o aparecimento de fenômenos de frenagem, como no caso do inseto, compõe
um quadro de condutas prescritas pelas normas vitais do
organismo. Não são as “particularidades físicas da situação presente” que delimitam o espectro de condutas possíveis, antes, são “as leis biológicas do comportamento”
que orientam a ação. O autor explica: “Devemos chamar
instintivo um comportamento que responde literalmente a um complexo de estímulos mais que a certos traços essenciais da situação” (Merleau-Ponty, 1942/2006,
p. 164). Neste nível, a aprendizagem pelo condicionamento torna-se um processo duvidoso, visto que a conduta
orienta-se segundo determinados a priori estabelecidos
pelo aparelho instintivo.
O segundo nível de integração comportamental é representado pela ordem amovível. São observados, nesse
patamar, alguns desenvolvimentos de estratégias comportamentais inéditas em relação às do nível anterior.
As condutas, nesse caso, não são estritamente determinadas pelo aparelho instintivo, podendo operar conforme aspectos abstratos das situações vividas. As formas
amovíveis relacionam-se com determinados sinais, ou
categorias, que não são dependentes, stricto sensu, do
material visual apresentado. Por exemplo, em experiências de adestramento com galinhas, os animais foram treinados a escolher a cor mais clara entre duas nuances de
cinza. Após a cor mais clara ter se tornado reflexógena,
o experimentador troca a nuance mais escura por uma
ainda mais clara que a primeira. Ao repetir-se o experimento de condicionamento, percebe-se então que o animal escolhe a cor mais clara do novo par de cinzas, e não
a nuance antes reflexógena (Merleau-Ponty, 1942/2006,
p. 166). Conclui-se disso que o conteúdo aprendido não
é tanto um conteúdo, “este cinza”, ou “aquele cinza”,
mas uma categoria – “mais claro”. “O adestramento não
introduz no comportamento uma contiguidade de fato.
O sinal é uma configuração (Sign-Gestalt)” (Merleau-Ponty, 1942/2006, p. 166).
A capacidade de imitação dos símios antropóides é um
exemplo de aprendizagem que não se limita à reprodução
automática dos movimentos vistos, mas que emerge do
organismo como o poder de conferir uma coesão interna
à situação. Analisemos o seguinte relato de pesquisa. Em
um experimento com chimpanzés (Köhler, 1929/1957) en-
volvendo a manipulação de caixas, um alimento é pendurado no teto de uma jaula. Em um primeiro momento,
a visão do objetivo instiga o chimpanzé, e este executa
uma série de saltos sem recorrer à caixa. Após muitas
horas sem que o animal apresente indícios de resolução
do problema, o experimentador posiciona a caixa debaixo do alimento e toca a comida com as mãos. A caixa é,
então, deslocada para longe do objetivo e o experimentador deixa a sala. Rapidamente, o animal põe em prática
todo o esquema percebido, apoderando-se do alimento.
Neste caso, a imitação parece-nos um fenômeno automático, uma espécie de aprendizagem por analogia. Outra
situação nos oferece um contraste interessante. Trata-se
da observação, também realizada por Köhler, dos comportamentos de um chimpanzé considerado “menos inteligente” em relação aos seus companheiros. A situação
era semelhante a do caso anterior. Mesmo atentando-se
para as ações dos outros animais, que subiam nas caixas
e pegavam os alimentos, este chimpanzé continuava a realizar movimentos inúteis. Sua imitação apenas recortava
dos atos totais dos companheiros alguns movimentos, não
se constituindo como uma boa forma. Os deslocamentos
da caixa eram feitos de modo fortuito, sem relação com o
alimento. Conforme as análises de Köhler, para um chimpanzé “inteligente”, a caixa e o alimento convergem para
um mesmo momento, fazem parte do mesmo ato. Há uma
coerência interna entre a percepção da caixa, a percepção
do alimento e os movimentos necessários para se alcançar
o objetivo. De maneira distinta, no caso do “animal menos inteligente”, “ele verá fases isoladas do desempenho
todo, não as percebendo como partes relacionadas com a
estrutura essencial da situação, como partes da solução”
(Köhler, 1929/1978, p. 54)
Estas considerações ilustram, igualmente, a importância de um método descritivo que se atenha aos significados
comportamentais que emergem das situações-problema
vividas pelo organismo. As comparações clássicas, que
identificam o funcionamento animal ao funcionamento
de uma máquina, deixam de lado o aspecto circular imanente à relação organismo-meio. Em outras palavras, a
constituição de um meio emerge de um processo dialético,
que já apresenta o organismo em constante transformação.
É mais plausível, portanto, descrever o organismo por
meio de uma metáfora musical, a qual permite compreender a atividade como fenômeno de estrutura. “A atividade do organismo seria literalmente comparável a uma
melodia cinética, já que toda mudança no fim de uma
melodia modifica qualitativamente seu início e a fisionomia do conjunto” (Merleau-Ponty, 1942/2006, p. 168).
Se a intencionalidade vital representa esta capacidade dos organismos vivos de constituir um meio de acordo
com significações vitais próprias, que se esboça desde o
inicio da escala zoológica, o que pode ser dito em relação ao fenômeno humano? Devemos manter essa espécie
de intencionalidade como um aspecto fundante de nosso
espaço perceptivo?
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 75-83, jan-abr, 2018
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É essa possibilidade de expressões variadas de um mesmo tema, essa “multiplicidade perspectiva” que faltava
ao comportamento animal. É ela que introduz uma conduta cognitiva e uma conduta livre. Tornando possíveis
todas as substituições e pontos de vista, ela libera os
“estímulos” das relações atuais nas quais meu ponto
de vista particular os prende, dos valores funcionais
que as necessidades da espécie definidas para sempre
lhes atribuíam. (Merleau-Ponty, 1942/2006, p. 192)
É sob a insígnia da multiplicidade, da dispersão, do desprendimento sensível, e não da unificação pela razão, que
se encontra a percepção humana. Antes de nos aprofundarmos nas implicações antropológicas resultantes do pers-
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Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 75-83, jan-abr, 2018
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O critério de hierarquização da natureza utilizado por
Merleau-Ponty não é compatível com a classificação utilizada pela biologia clássica. Para esta última, o parâmetro fundamental de ordenação da natureza consiste em
categorizar os fenômenos a partir da distinção entre simples e complexo. Apesar de permanecer em uma esfera
de classificação hierárquica, a noção de forma permite a
Merleau-Ponty reconhecer a originalidade inerente a cada estrutura de comportamento. A descrição da natureza
levada a cabo pela ideia de ordem culmina, necessariamente, no reconhecimento de uma diferença estrutural
entre os comportamentos humanos e animais.
As formas simbólicas designam as estruturas de comportamento próprias aos seres humanos. Assim escreve
o filósofo: “No comportamento animal os signos permanecem sempre sinais e nunca se tornam símbolos” (Merleau-Ponty, 1942/2006, p. 192). Tomemos o exemplo que
inaugura a descrição das formas simbólicas n’A Estrutura
do Comportamento. Um cachorro treinado para pular em
cadeiras ao comando do adestrador mostra-se incapaz de
realizar a tarefa caso as cadeiras sejam substituídas por
poltronas, ou banquinhos. De modo inverso, observa-se
que esta possibilidade de tematização do signo está na
base da aptidão humana em formar hábitos. Toda atividade, ou hábito, exige uma ordenação funcional que está
diretamente em sintonia com a tarefa realizada. Segundo
Merleau-Ponty, não podemos supor uma construção rígida
entre estímulo e movimento que oriente a formação dos hábitos. Um músico, que improvisa em outros instrumentos
que não os seus, possui, justamente, uma habilidade passível de ser transposta à nova situação, e não montagens
rígidas. É notável o fato de que o hábito emerge como atividade integrada, ou como tematização dos signos locais.
O símbolo, diferente do signo, faz referência a um
conjunto de relações, cujo sentido é transponível e independe dos materiais concretos da situação. Perceber, para um ser humano, significa atuar inclusive na esfera do
virtual, tangendo não somente os aspectos atuais da situação, mas variando infinitamente seus pontos de vista.
pectivismo, observemos de perto o que significa esta “falta” no comportamento animal, referida na citação acima.
Os fatores que impedem um comportamento sincrético
de ascender a uma conduta simbólica tornam-se significativamente visíveis em dois casos experimentais: em tarefas
que envolvem o desvio de objetos e em tarefas que envolvem relações estáticas. Em um experimento realizado por
Köhler (1929/1957), um dispositivo, similar a uma gaveta,
foi instalado do lado de fora da jaula dos chimpanzés, e
uma banana foi colocada ali pelo pesquisador. Todos os
lados desta gaveta estão fechados, exceto um, o que está
diametralmente oposto à jaula. Tendo como instrumento
um bastão, a tarefa do chimpanzé consiste em tentar trazer
o objeto para si, fazendo com que este realize um desvio.
Fazer o objeto realizar o desvio com o bastão é, para o animal, uma tarefa muito mais complexa do que realizar um
desvio com o próprio corpo. O cerne da “insuficiência”
simbólica de seu comportamento consiste nisto: “o animal não pode se colocar no lugar do objeto e ver a si próprio como o objetivo. Não pode variar os pontos de vista,
como não poderia reconhecer uma mesma coisa de diferentes perspectivas” (Merleau-Ponty, 1942/2006, p. 185).
A aptidão para se colocar no lugar do objeto, ou no lugar
do outro, exige que o espaço vivido, compreendido aqui
como a espacialidade concreta e atual, seja substituído
pelo desenrolar da ação em um espaço virtual, campo de
ações possíveis, e que não estão diretamente relacionadas
aos aspectos formais da situação. Verifica-se, igualmente,
que a física dos chimpanzés está inteiramente restrita a
um ponto de vista auto-centrado. Os chimpanzés são capazes de equilibrar-se em cima de uma pilha de caixas,
visto que todo o eixo gravitacional da construção passa
a ser regido pelo corpo do animal, mas são incapazes de
construir estruturas fisicamente estáveis.
A carência do comportamento animal consiste, portanto, na incapacidade de tratar o objeto como uma coisa, ou
seja, como uma “unidade concreta capaz de entrar, sem se
perder, numa multiplicidade de relações” (Merleau-Ponty,
1942/2006, p. 185). A alteração do valor funcional do objeto na percepção animal não é vivida como a alteração de
uma perspectiva, que manteria preservada a invariância
do objeto. A mudança súbita do contexto altera o valor
funcional do objeto, derivando-se disso comportamentos
que parecem tratar o mesmo objeto como se fossem dois
objetos distintos. Por este motivo, Merleau-Ponty afirma
que o animal não se utiliza de um instrumento no sentido integral da palavra. Um instrumento comporta uma
multiplicidade de usos sob uma estrutura invariável.
O galho de árvore utilizado como bastão, comenta Merleau-Ponty, é suprimido, no comportamento do chimpanzé,
como galho-de-árvore. O valor funcional do objeto, que
está diretamente ligado à composição total do campo de
ação, atua como um verdadeiro “buraco-negro” em relação às outras perspectivas possíveis. Isto é, a função atual
suprime as funções precedentes. No comportamento humano, ao contrário, “o galho de árvore transformado em
Artigos
a multiplicidade perspectiva e o fenômeno humano
Estudos Teóricos ou Históricos
Intencionalidade e Comportamento: a Percepção Vivente em Merleau-Ponty
Pedro H. S. D. M.; Danilo S. V.
Considerações inais
Apresentamos uma interpretação da percepção vivente, de acordo com a primeira obra de Merleau-Ponty
(1942/2006), à luz do conceito de intencionalidade. Apesar de não encontrarmos em A estrutura do comportamento uma conexão direta entre o termo intencionalidade e a
experiência vivente, concluímos que é possível abordar
a percepção animal a partir desta noção, desde que esta
seja considerada sob o prisma da ideia de Gestalt. Trata-se, portanto, de definir a intencionalidade animal como
uma estrutura dinâmica que se direciona ao meio orientada por normas vitais próprias.
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Estudos Teóricos ou Históricos
bastão continuará justamente um galho-de-árvore-transformado-em-bastão, uma mesma ‘coisa’ em duas funções
diferentes, visível ‘para ele’ sob uma pluralidade de aspectos” (Merleau-Ponty, 1942/2006, p. 273).
No regime das formas simbólicas instauram-se, portanto, relações que ultrapassam os valores funcionais
dos objetos, e que se dirigem à “estrutura-coisa”. A multiplicidade perspectiva é o emblema de uma percepção
propriamente humana. A multiplicidade perspectiva torna possível, mais especificamente, a constituição de um
mundo inter-humano, visto que a capacidade de variar
os pontos de vista permite a criação de novos meios e a
reformulação das estruturas dadas, sejam elas sociais ou
naturais. Com efeito, para Merleau-Ponty, a especificidade da ordem humana não consiste em sua capacidade de
criar. Trata-se, antes, da capacidade de reinventar, reformular e ultrapassar as estruturas vigentes2. Um exemplo
simples e patente acerca disso está no fato de que o homem é o único ser que cria instrumentos cuja finalidade é criar outros instrumentos. Para o animal, o objeto é
circunscrito pelo círculo de normas vitais e, deste modo,
apresenta-se como objeto de interesse apenas em relação
à função que assume em um determinado contexto; inversamente, a percepção humana insere-se em um mundo
de objetos de uso (Gebrauchs-objekte), cujos valores funcionais não se reduzem às possibilidades dadas pelos a
priori monótonos do instinto. Antes, estes objetos de uso
são a expressão de uma cultura partilhada. A multiplicidade perspectiva, operante no seio da percepção humana, nos remete, via direta, ao problema da constituição de
um mundo comum. Em oposição à subjetivação radical
do animal – a particularização de seu ambiente – o perspectivismo humano nos oferece a chave de nossa crença
na absolutidade do mundo, na medida em que a visada
humana constitui-se, primordialmente, como “intencionalidade compartilhada” (Bimbenet, 2014).
Artigos
2
“O que define o homem não é a capacidade humana de criar. O que
define o homem não é a capacidade de criar uma segunda natureza- econômica, social, cultural – para além da natureza biológica, é
sobretudo a capacidade de superar as estruturas criadas para criar
outras” (Merleau-Ponty, 1942/2006, p. 272).
De início, sublinhamos as críticas realizadas por Merleau-Ponty à psicologia científica, a qual define o comportamento a partir de pressupostos deterministas e mecanicistas. Em seguida, mostramos a centralidade do conceito
de Gestalt no projeto de redefinição da atividade vivente
a partir do seu caráter intencional. Após caracterizarmos
a atividade animal como intencional, apresentamos, ao
final do artigo, as diferenças principais entre a percepção humana e animal, destacando o lugar ocupado pelo
conceito de multiplicidade perspectiva n’A Estrutura do
Comportamento.
As teorias científicas do comportamento, à época de
Merleau-Ponty, consideram que a conduta pode ser decomposta em elementos reais encontrados no mundo físico. Supõe-se, assim, que o comportamento se origina de
uma série de relações causais que desencadeiam, invariavelmente, uma resposta precisa. Merleau-Ponty identifica nesta proposta a exclusão da dimensão intencional da
ação. Sob os auspícios da noção de Gestalt, o filósofo empreende o exame das teorias científicas do comportamento
tendo em vista superar a visão pela qual o organismo seria um ente passivo e o comportamento um elemento do
mundo real. Nesse sentido, de acordo com Merleau-Ponty,
a estruturação do campo perceptivo não é um processo
que ocorre independentemente do organismo. Deve-se levar em consideração que os fatores funcionais, referentes
às capacidades de cada espécie e cada indivíduo, atuam
seletivamente na percepção do ambiente, apresentando
como objetos de interesse ao organismo apenas aquilo que
surge como correlato de suas próprias normas e necessidades vitais. Essa dimensão centralizadora da percepção
animal indica que a estruturação de um ambiente próprio
é um processo que, necessariamente, implica as demandas
do organismo. Este modo de compreender a atividade vivente esquiva-se dos pressupostos vigentes na psicologia
científica, e exige que o organismo seja considerado uma
totalidade indecomponível cujas ações são irredutíveis a
elementos de anatomia ou de fisiologia. Merleau-Ponty
refere-se à necessidade de abordarmos a relação organismo/meio em termos dialéticos, o que significa dizer que
a realidade biológica é o encontro das estruturas físicas
(anatômicas e fisiológicas) e dos aspectos funcionais do
organismo servindo na constituição de um meio através
de uma atividade normativa.
Convém considerar que estas ideias encontram diversos adeptos em discussões contemporâneas. Observamos,
por exemplo, que no cenário atual de pesquisas nas áreas de filosofia fenomenológica e ciências cognitivas, as
questões levantadas por Merleau-Ponty em A Estrutura
do Comportamento servem como aporte crítico frente ao
pensamento objetivista contemporâneo. Alguns autores,
como, por exemplo, Varela, Thompson e Rosch (1993),
Thompson (2007) e Ellis (2006), recorrem à filosofia de
Merleau-Ponty, inclusive ao problema da intencionalidade vivente, com o intuito de criticar os paradigmas
representacionalistas da cognição, e ressaltar o papel da
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 75-83, jan-abr, 2018
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Intencionalidade e Comportamento: a Percepção Vivente em Merleau-Ponty
ação na construção de domínios cognitivos. Este é um
dos desdobramentos possíveis de se pensar a atividade
vivente pelo viés da intencionalidade. Outro importante
representante deste movimento de resgate de temas contidos n’A Estrutura do Comportamento é o filósofo Etienne Bimbenet (2014), cuja obra destaca-se por propor uma
fenomenologia da diferença antropológica (a comparação
entre comportamentos humanos e animais) assumindo
como conceito-chave a ideia de multiplicidade perspectiva, utilizada por Merleau-Ponty para descrever a essência pluralizante do ver humano.
Com efeito, a clarificação da estrutura experiencial vivente remete, diretamente, ao questionamento da
estrutura experiencial humana. Ao longo da história da
filosofia, as teorias referentes à natureza humana são inteiramente influenciadas pelo modo como se compreendeu
a animalidade. Enquanto o animal é, tradicionalmente,
considerado uma espécie de autômato, o ser humano, por
sua vez, diferencia-se pelo advento da razão. O fenômeno
humano surge, nesta lógica, pela justaposição da matéria
pensante à matéria corpórea. Para Merleau-Ponty, ao contrário, se a percepção animal não se deixa explicar pela
eficácia do estímulo físico atuando em seus receptores, é
porque seus processos não são causalmente determinados
pelo meio e, portanto, trata-se de uma atividade que, justamente, modula o meio a partir de si. Ao reconhecermos
a originalidade das estruturas vitais, torna-se viável tratar
o fenômeno humano como uma nova ordem de comportamentos, que congrega aspectos da ordem vital, mas que
se diferencia estruturalmente desta. Ao tratarmos da animalidade como uma perspectiva radical sobre o mundo,
polarizando o ambiente a partir de seus interesses vitais,
subsumindo tudo ao seu próprio ponto de vista, somos
conduzidos a definir a racionalidade humana, não mais
como a unificação do sentido pela razão, mas, inversamente, como a multiplicação do ver, a virtualização da
percepção e, necessariamente, como o encontro com um
mundo intersubjetivo.
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Danilo Saretta Verissimo - Docente do Departamento de Psicologia
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da Faculdade de Ciências e Letras de Assis - Universidade Estadual
Paulista (UNESP), Brasil. Endereço Institucional: Av. Dom Antônio,
2100, Parque Universitário, Assis, SP – Brasil. CEP: 19800-000. Email:
[email protected]
Estudos Teóricos ou Históricos
Recebido em 29.11.2016
Primeira Decisão Editorial em 11.06.2017
Aceito em 02.08.2017
Artigos
Watson, J. (1930). Behaviorism. Londres: Kegan Paul, Trench
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83
Pedro Henrique Santos Decanini Marangoni - Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Ciências e Letras de Assis - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Brasil. Email:
[email protected]
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Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 75-83, jan-abr, 2018
Ana M. M. C. F.
Nº DOI: 10.18065/RAG.2018v24n1.9
inFância, FilOsOFia da educaçãO e FenOMenOlOgia:
aprOxiMações necessárias
Childhood, Education Philosophy and Phenomenology: Necessary Approaches
Niñez, Educación Filosofía y Fenomenología: Enfoques Necesarios
ana maRia monTe Coelho FRoTa
resumo: Este trabalho tem como objetivo propor o início de uma discussão entre a filosofia da educação, a fenomenologia hermenêutica e a infância. Parte da consideração de que a filosofia da educação tem avançado bastante nos estudos acerca da infância
e da criança, apontando direções possíveis de ruptura com paradigmas alicerçados na modernidade. Avança, principalmente, na
busca de construir uma aproximação com a hermenêutica heideggeriana, considerando alguns pontos de convergência entre as
filosofias referidas. A partir de então, levanta alguns pontos de tangenciamento possível entre os pensamentos. Além disso, sabedora da ausência de uma discussão sobre a infância e a criança na obra de Heidegger, ausência justificada pela preocupação de
Heidegger com a questão ontológica do sentido do ser, busca olhar para elementos ônticos que possibilitem reflexões inspiradas
na filosofia hermenêutica, proporcionando uma maior compreensão da infância.
Palavras-chave: Fenomenologia Hermenêutica; Filosofia da Educação; Infância.
Abstract: This work aims to start a discussion between philosophy of education, phenomenology, hermeneutics, and childhood.
It has as a starting point the consideration that philosophy of education has been doing a great progress in the studies about childhood and child, pointing to possible directions of rupture with paradigms supported in modernity. This paper seeks to build a
closer relation with heideggerian hermeneutic, considering some points of approximation between the philosophies. From then
on, it brings some possible points of tangency between the perspectives. Furthermore, knowing that there is a lack of discussion
between childhood and child in Heidegger’s work, justified by Heidegger’s preoccupation with the ontological question of the
sense of being, we attempt to look at ontological elements that enable reflections inspired in the hermeneutic philosophy, providing a better comprehension of childhood.
Keywords: Phenomenology; Philosophy of Education; Childhood
Artigos
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Estudos Teóricos ou Históricos
resumen: Este trabajo tiene como objetivo proponer el inicio de una discusión entre la filosofía de la educación, la fenomenología hermenéutica y la infancia. Parte de la consideración de que la filosofía de la educación está muy avanzado en los estudios
de la infancia y los niños, señalando las posibles direcciones de ruptura con los paradigmas a tierra en la modernidad. Avances
sobre todo en la construcción de relaciones más estrechas con la hermenéutica de Heidegger, teniendo en cuenta algunos puntos
de convergencia entre esas filosofías. Desde entonces, plantea algunos puntos de tangencia entre los pensamientos. También, y
consciente de la ausencia de una discusión de la infancia y el niño en la obra de Heidegger, ausencia justificada por la preocupación de Heidegger con la pregunta ontológica del significado de ser, localizan los elementos que permiten reflexiones inspiradas
en la filosofía hermenéutica, para promover una mejor comprensión de la infância.
Palabras-clave: Fenomenología; Filosofía de la Educación; Infancia
iniciando a conversa
Vamos nos despreocupar com os resultados de nosso
encontro. Simplesmente, encontremo-nos para
ouvir outras vozes, para ouvir outras histórias. Para
viajarmos. Sairmos daqui, de nosso lugar.
(Pulino, Resistência e Criação na Formação de Professores)
A infância constitui-se, na contemporaneidade, numa
categoria social, campo de estudo de diferentes disciplinas e olhares científicos. Tem se configurado como foco
de discussões, debates e reflexões, intentando alargar
sua compreensão. Hoje existe uma clareza muito grande, um movimento assumido amplamente, no sentido de
considerar a criança um devir, um ser aberto às possibilidades. Ao mesmo tempo, a criança sai de um lugar de-
finido anteriormente, como aquele ser incompleto e em
processo de desenvolvimento, para outro lugar, habitado
por uma compreensão mais aberta e prenhe de possibilidades (Frota, 2007). Nesta direção, Castro (2013) já nos
alerta para uma linha de questionamento contemporâneo
que desconstrói a diferença entre a criança e as outras categorias geracionais, tal como produzida pela perspectiva desenvolvimentista e evolucionista, característica do
nosso tempo. O que está em estado nascente, assegura a
estudiosa, “é justamente a pluralidade do devir, as possibilidades diversas e múltiplas de ser que são abandonadas ao longo do percurso da história de cada um” (p. 23).
Seria algo, tal como afirma Larrosa (2013, p. 186), como
“(...) devolver à infância, a sua presença enigmática e de
encontrar a medida da nossa responsabilidade pela resposta, ante a exigência que esse enigma leva consigo”?
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 84-90, jan-abr, 2018
84
Kohan (2004, 2007, 2010, 2011), Agamben (2005) e
Larrosa (2013 e 2015) trazem a compreensão da infância como um tempo aberto ao atravessamento da experiência. Acenam com a possibilidade de se ver a criança
como um radicalmente outro, rompendo de vez com sua
representação como um ser da falta e da incompletude.
Ao convocar tal debate, colocamo-nos diante de uma
possibilidade existencial que ultrapassa a cronologia e o
tempo linear, abrindo-nos à possibilidade de também nos
relacionarmos com a infância a partir de um outro tempo,
um tempo acontecimental, aiônico, uma vez que “a suposta linearidade e avanço do tempo e dos fatos enreda-se nos eventuais percalços que assinalam o reducionismo imposto por um modelo unívoco de temporalidade”
(Castro, 2013, p. 28).
Finalmente, a partir da filosofia hermenêutica heideggeriana, partindo da sua ontologia e, numa tentativa de
compreensão ôntica de algumas estruturas também ônticas, teço reflexões que me possibilitam uma aproximação
de um diálogo possível com a infância, à luz desta inspiração. Apesar de Heidegger não se referir à criança ou
1
Trabalho com as ideias defendidas pelos filósofos Kohan (2004, 2007,
2010, 2011), Agamben (2005) e Larrosa (2013, 2015), que pensam a
infância e a criança num movimento intitulado filosofia da educação, construído a partir das ideias de Foucault. Assim, a partir deste
momento, ao me referir ao termo filosofia da educação, retorno meu
pensamento a estes autores.
85
O devir-criança ou um encontro mágico com a ilosoia
da educação
(...) que a importância das coisas não se mede com uma
fita métrica nem com balanças nem barômetros, etc.
Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo
encantamento que a coisa produza em nós
(Manoel de Barros, Poesia Completa)
A possibilidade de compreender a infância como um
devir nos convoca para uma difícil tarefa: a desconstrução da categorização cronológica da existência humana
e de sua caracterização unívoca. Uma tarefa por demais
necessária, mas deixada para outro momento. Por agora,
olhemos para a infância. Segundo esta opção de aborda-
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 84-90, jan-abr, 2018
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A infância pronuncia uma palavra que não se entende. A infância pensa um pensamento que não se pensa. Dar espaço a essa língua, aprender essa palavra,
atender esse pensamento pode ser uma oportunidade não apenas de dar um espaço digno, primordial e
apaixonado a essa palavra infantil, mas também de
educar a nós mesmos.
à Infância, pois apresenta uma ontologia do ser, falandonos somente do Dasein e do seu modo de ser-no-mundo,
parece-me que rompe de vez com a ideia de temporalidade linear, que é o tempo que atravessa o ciclo de vida dos
humanos, tal como apresentado na contemporaneidade,
e na civilização oriental. Além disso, também defende
questões importantes relacionadas ao tempo da técnica,
inspirando uma possibilidade de crítica radical à categorização do ciclo vital.
Kohan (2007) apresenta a criança como um estrangeiro, como aquele ser que fala uma língua não domesticada, que rompe e transgride, que é capaz de se dizer
algo de modo novo, inaugural. Fala da criança concreta,
ôntica. Já Heidegger (1959/2012), se refere ao estrangeiro como aquele que se desprende, que se despede, caminhando por uma vereda diferente. Fala de uma ontologia.
Refere-se à poesia. Pergunto-me, seria possível aproximar
as perspectivas dos filósofos? Faz-se possível um diálogo
fecundo entre a concretude da criança e da infância, pensada pela filosofia da educação, e a ontologia do ser, do
Dasein heideggeriano? Será que Heidegger, ao afirmar que
“o desprendimento é o lugar da poesia porque a harmonia dos passos ressoantes e iluminadores do estrangeiro
inflama a travessia obscura dos que o seguem num canto
em escuta” (p. 59), estaria pensando que a poesia reflete a fala do estrangeiro? E que o estrangeiro seria aquele
que, como ele afirma, o que escuta o viandante: “um amigo ausculta o estrangeiro. Auscultando, o amigo segue o
desprendido, tornando-se ele mesmo um viandante, um
estrangeiro” (p. 57)?
Também para Heidegger (1959/2012) “a linguagem fala” (p. 9). Assim como usada para se comunicar, ela também pode nos conduzir a nós mesmos, levando-nos para
o lugar de um modo de ser de nossa essência. Nas palavras de Heidegger, “recolher-se no acontecimento apropriador” (p. 9). Então, se a criança fala, como um estrangeiro que é, e ausculta como um viandante, como fazermos para escutá-la? E onde se encontra essa criança na
nossa existência fática?
Artigos
Pretendo, pois, com este estudo, aproximar-me de uma
compreensão possível da infância e da criança, tendo como fonte de inspiração a filosofia da educação1 para, com
ela, e com alguns elementos da hermenêutica filosófica
heideggeriana, abrir um diálogo inaugural acerca do tema. Sei que trago somente elementos iniciais, incipientes e insuficientes para a tarefa que me proponho. No
entanto, é preciso começar. É necessário lançar-me nesta
difícil tarefa para, quem sabe, poder contar com novos
olhares e mãos.
Encontro-me com reflexões da filosofia da educação
que servem de respaldo para questões que me inquietam
e que podem se traduzir em indagações: poderá ser a infância um momento existencial para além do cronológico?
Se assim o é, podemos nos pensar como seres possíveis
de ter todas as idades ao mesmo tempo? Sem elementos
para aprofundarmos estas questões, sigamos. A filosofia
da educação traz uma contribuição muito importante aos
estudos que têm sido feitos nesta seara: a criança precisa
dizer-se. Além disso, para Kohan (2004, p. 131):
Estudos Teóricos ou Históricos
Infância, Filosofia da Educação e Fenomenologia: Aproximações Necessárias
gem, a compreensão do devir-criança fez-se imperante:
o devir-criança é um encontro entre um adulto e uma
criança!2 Deste modo, “(...) aproxima os adultos da potencialidade infantil e, com isso, pode gerar novas perspectivas sobre a realidade, levando-nos ao questionamento
de algumas certezas e nos conduzindo, enfim, a reflexões
esclarecedoras” (Amorim, 2012, p. 177-78). A filosofia da
educação fala de um tempo que não é o cronológico, e sim
o aiônico. Nesta compreensão, é a existência concreta e
presente que importa mais do que a cronológica. O tempo khronos, nesta perspectiva, perde seu reinado, dando
espaço para o acontecimento, que não é o que sustenta
a divisão da existência do homem em fases ou estágios
que compõem o ciclo vital. É mesmo um tempo que possibilita uma experiência pessoal e intransferível, tempo
esquecido na era da técnica.
Com relação à divisão do tempo humano em estágios,
Oliveira (2012) assegura: essa é uma “tentativa de objetivar
algo que nos escapa. Queremos nomear a experiência humana, ordená-la, classificá-la” (p. 180), pensamento que
corrobora com minha reflexão. Seria mesmo um signo de
uma época da técnica, eu diria. Na verdade, ao fazermos
isso, corremos sério risco de perdermos a experiência e,
com ela, a possibilidade de chegarmos a sermos o que somos (Larrosa, 2013). A experiência é vista como algo que
coloca em risco a objetividade e a eficiência técnica da
modernidade, sendo, por isso mesmo, temida e evitada.
Agamben (2005) e Larrosa (2015) parecem falar por
mim ao considerar que o homem moderno foi expropriado
da possibilidade de ter experiências na vida. Deste modo, a criança traz de volta esta viabilidade, por instaurar
um tempo-espaço no qual ainda não é um ser que usa socialmente a linguagem, mas está sempre mergulhado nela. A infância seria, deste modo, um tempo que permite
pensar que, para falar, não basta simplesmente aceder a
uma língua sem fraturá-la. Socialmente, torna-se necessário transformar a linguagem em fala. Neste processo,
a história é essencial. Assim, experiência e infância são
essenciais para falar!
Para chegarmos a sermos o que somos, alerta Kohan
(2011), é necessário fazermos uma ontologia crítica de nós
mesmos, demandando que cheguemos às condições históricas e genealógicas que nos constituem. Se assim não
o fizermos, corremos o risco de ficarmos somente com o
que nos é ensinado a sermos. Seremos aquilo que constitui
o horizonte dos tempos da técnica: um vir a ser3, já defi2
Artigos
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Estudos Teóricos ou Históricos
Ana M. M. C. F.
3
Pensar a infância através de um movimento de devir supõe fraturar
diversas figuras da infância que povoam o imaginário do pensamento ocidental, fundadas numa visão linear da história e da linguagem,
definindo-a como espaço da continuidade (descontinuidade) e da
unidade/totalidade (pluralidade): a imagem bio-psico-social da infância (...) Essas concepções da figura da infância vinculam-se, respectivamente, a uma concepção da temporalidade histórica linear,
homogénea, progressiva, e a uma concepção nostálgica do passado
(Vilela, 2010, p. 56).
Nesta perspectiva, o vir a ser seria um desenvolvimento que cumpre
o que é esperado e descrito como próprio dentro do ciclo vital e das
fases desenvolvimentais.
nido anteriormente, com pouco espaço de transgressão e
invenções. Fica clara a urgência de pensarmos a questão
com relação à verdade que constitui os indivíduos em sujeitos do conhecimento; ao poder pelo qual nos constituímos como sujeitos atuantes sobre os outros; e, finalmente,
a ética, por meio da qual nos constituímos como sujeitos
morais. O homem contemporâneo foi expropriado da experiência, também acredita Larrosa (2015, p. 28): “É experiência aquilo que nos passa, ou que nos toca, ou que
nos acontece, e, ao nos passar, nos forma e nos transforma.
Somente o sujeito da experiência está, portanto, aberto à
própria transformação”. Muito ressaltada a ausência da
experiência pelo homem moderno, ela é compreendida
como um impedimento para uma existência rica e plena.
Nesta direção, continua o filósofo:
(...) se chamamos existência a esta vida própria, contingente e finita, a essa vida que não está determinada
por nenhuma essência e por nenhum destino, a essa
vida que não tem nenhuma razão sem nenhum fundamento fora dela mesma, a essa vida cujo sentido se
vai construindo e destruindo no viver mesmo, podemos pensar que tudo o que faz impossível a experiência faz também impossível a existência. (2015, p. 33)
A partir destas reflexões, a infância se deixa ver a partir de dois planos: do ôntico, do qual olho para a criança
concreta, problematizando o lugar no qual ela tem sido
colocada na contemporaneidade, submetida que é, ao
“adultocentrismo” e à técnica. Por outro, do campo ontológico, do qual a compreendo como uma possibilidade
de existência, capaz de romper com o tempo cronológico
e com os estágios desenvolvimentais, podendo dizer-se
em qualquer momento da sua vida.
Voltando à filosofia da educação, temos que a infância pode ser tomada como o nascimento de uma possibilidade de ruptura com a aridez e infecundidade modernas, afastando-se da compreensão única de que ela é
um tempo da vida compreendido entre o nascimento e a
entrada na puberdade. Inaugura, assim, a possibilidade
de se poder ser criança na existência, sem marcação cronológica. A infância é estrangeira num mundo da técnica. Como tal, fala uma língua nova; pensa o que não se
pensa; transita por onde não se costuma andar; inventa,
cria, rompe. A infância vive num tempo que comporta o
Kronos e o Aion. Não se regula pelo relógio, somente. Assim, não se esgota em si mesma e sim, no esvaziamento
acontecimental e da experiência.
Com a filosofia da educação questiono o mito da infância como um tempo que se mede pelas horas. Duvido
da crença na criança como um ser em processo de evolução, que se contrapõe ao adulto, acabado no seu processo de desenvolvimento. Reflito acerca do mito da criança
que não fala, que não sabe, que ainda não é capaz. Considero que experiência e infância não antecedem cronologicamente à linguagem, sendo, de fato, condições da
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Infância, Filosofia da Educação e Fenomenologia: Aproximações Necessárias
A infância que afirmamos é uma dimensão ainda não
suficientemente pensada da existência humana. É uma
chance de assumir a descontinuidade como condição
ontológica da existência, uma abertura dessa experiência ao imprevisto, ao que pode ser de outra forma,
ao que ainda não sabemos e nem podemos. (p. 251)
A partir desta perspectiva, a infância deixa de estar
associada à falta, à incompletude e insuficiência, convidando-nos a vê-la, escutá-la e (re)conhecê-la para além
das características elencadas historicamente. Para tanto,
a filosofia nos oferece uma possibilidade de olhar para a
infância a partir de “outras temporalidades, que não estão sob a égide do tempo cronológico, fator de medição e
quantificação da realidade, positivizada e delimitada pela
palavra, pela escrita e pelo número” (Castro, 2013, p. 29).
A filosofia da educação nos convida a olhar a infância como uma possibilidade de inovação, de irrupção do
pensamento e do porvir. Agamben (2005) é brilhante ao
nos interpelar, chamando-nos a romper com a imagem da
criança frágil, tímida e incompleta, passando a considerá-la condição de ruptura, experiência, transformação. Na
busca de dar prosseguimento as minhas reflexões, passo
agora a me debruçar sobre a fenomenologia hermenêutica
heideggeriana e algumas pistas possíveis de proximidade
com esta discussão.
heidegger: o que escuto no seu silêncio?
Olhos de Criança onde o céu volta
a encontrar a nudez das estrelas
(Jacobo Fijman)
87
Concordando com essa posição teórica, penso em caminhar mais um passo: dentro deste horizonte histórico
que somos nós, como pensar a criança e a infância refletindo sobre sua determinação? Como a filosofia de Heidegger pode nos ajudar nesta tarefa tão espinhosa? Mais
uma vez peço inspiração a Feijoo e Feijoo (2015): “(...)
pretendemos conquistar aquilo que nos dará bases para
poder pensar a criança sem nos perdermos na poeira dos
possíveis nem de nos amalgamarmos ao aprisionamento
dos necessários (p. 12).
Comecemos com Heidegger (1927/1995): Dentre as estruturas de possibilidades que fazem parte do humano,
está o ser-no-mundo como a mais básica delas. Seguem-se a temporalidade, a espacialidade, o encontrar-se, o
compreender e a linguagem. Ao Dasein é impossível ser,
sem ser-no-mundo, que é sua constituição fundamental.
Heidegger assegura que o homem é mundano, que ele é,
sendo no mundo. O Dasein é ser-aí, é estar-aí-junto-com-os-outros. Ele é junto aos outros, habitando o mundo, cuidando de ser. Existe, pois, uma inevitável ligação entre o
homem e o mundo. Esta compreensão é pré-ontológica,
pois que construída de forma irrefletida e inquestionada,
tornando-se aquilo que define o modo de ser do Dasein.
Para Costa (2015, p. 70), “(...) esta historicidade elementar
do ser-aí, na maior parte das vezes, permanece escondida
dele mesmo, que a partir de então toma a si e, consequentemente, seu horizonte histórico como absolutos”. Em Ser
e Tempo, Heidegger pretendeu abalar as certezas de uma
tradição metafísica e instaurar a possibilidade de pensar
para além destas amarras. E conseguiu!
Seguindo nesta direção, surge uma primeira possibilidade de reflexão: O que é a infância? Quem é criança?
Como é ser criança? Perguntas abertas, e que trazem consigo algumas rupturas com conhecimentos cristalizados,
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Estudos Teóricos ou Históricos
Trata-se, deste modo, de uma questão política: pensar
por si mesmo. Não é questão de idade ou capacidade e,
sim, de condição e de sentido. Adoto Kohan (2007), mais
uma vez, para falar por mim:
a criança se constitui a partir do mundo fático que é
o seu ser. É em um horizonte hermenêutico com a familiaridade que lhe é própria e na que cada um conquista o horizonte que torna possível agir. O existente
segue orientações do mundo que é o dele.
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Essa forma de subjetividade, que chamamos de infância, não tem idade. Ela é emancipatória na medida
em que abre as portas a uma experiência múltipla de
nós mesmos. Na medida em que emancipa a própria
infância de uma imagem de si mesmo que a apressa
(...). Na medida em que ela é experiência, é inerentemente transformadora do que somos, sem importar a
idade. (p. 249)
Heidegger, em sua obra, diz pouco sobre a infância
ou a criança. Somente afirma que a criança é um Dasein,
um ser-no-mundo, vivente num mundo da técnica. Apesar do filósofo não se dedicar a essas reflexões, considero
possível buscar uma aproximação entre a hermenêutica
filosófica heideggeriana e a infância, caminho que ainda
está muito pouco desvelado, inclusive para mim. Pensemos em alguns elementos.
Heidegger (1996/2008) refere-se à criança apontando
para seu caráter de poder-ser. É, no entanto, uma referência insuficiente para pensarmos a criança e a infância. Cabe a nós fazermos esta aproximação. Feijoo e Feijoo (2015, p. 11) considera que, a partir da perspectiva
heideggeriana,
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linguagem. Compartilho com a crença de que a criança
fala! Conclamo a todos nós escutá-la na sua outridade.
A infância é aqui entendida para além da cronologia,
da fisiologia, dos limites legais. É compreendida como
aquela singularidade silenciada, que não pode ser assimilada pelo sistema. Como faz questão de frisar Kohan
(2011), seria mesmo uma forma de subjetividade.
Ana M. M. C. F.
construídos a partir de matrizes também metafísicas. Na
nossa tradição histórica a criança é pensada e compreendida como habitando um tempo da infância, delimitada
por uma temporalidade cronológica; tem suas características descritas de modo naturalizados e biologizantes;
tem seu tempo organizado categorialmente, juntamente
com outros estágios, ou fases, como a adolescência, adultez e velhice. É bem verdade que Heidegger não nos falou sobre a criança. Mas também é correto afirmar que
suas reflexões podem nos ajudar a pensar sobre ela. Ao
dizer que “embora experienciado e reconhecido pré-fenomenologicamente, o ser-no-mundo se torna invisível
por via de uma interpretação ontologicamente inadequada” (1927/2015), o filósofo pode ser compreendido como
alertando para a invisibilização das possibilidades existenciais da criança, ao ser esmagada dentro de uma fase
cronológica, universal, biologizante, tornando-se um mero vir-a-ser. Escutemos o que ele nos fala:
Artigos
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Estudos Teóricos ou Históricos
Uma analítica da presença constitui, portanto, o primeiro desafio no questionamento da questão do ser.
Assim, torna-se premente o problema de como se deve alcançar e garantir a via de acesso à presença. Negativamente: a esse ente não se deve aplicar, de maneira construtiva e dogmática, nenhuma ideia de ser
e de realidade por mais evidente que seja. Nem se
devem impor à presença categorias delineadas por
tal ideia. Ao contrário, as modalidades de acesso e de
interpretação devem ser escolhidas de modo que este
ente possa mostrar-se por si mesmo e em si mesmo.
(1959/2012, p. 54)
No horizonte de nossa tradição, como a criança pode
dizer-se se ela não tem sua fala escutada? Se ela é considerada um ser em processo de evolução, para se tornar
completa e capaz, somente como um adulto? Pela tradição, principalmente a partir do olhar da psicologia desenvolvimentista, a criança é definida principalmente
pela falta, pela ausência de capacidades e em evolução
para se tornar adulta. Não estaria Heidegger (1927/2015)
falando de coisas assemelhadas aos filósofos da educação quando afirma:
Todavia, a própria significância, com que a presença
sempre está familiarizada, abriga em si a condição ontológica da possibilidade de a presença, em seus movimentos de compreender e interpretar, poder abrir
significados que, por sua vez fundam a possibilidade
da palavra e da linguagem? (p. 138)
Se Kohan afirma que a criança fala, Heidegger diz que
o Dasein abriga em si a possibilidade de falar. E o Dasein
criança, quem seria ele? Certamente um ser-aí, não definido pelo tempo cronológico somente; um ser vivente.
Um estrangeiro no mundo? Sem respostas para tais questões, sigo com Heidegger.
Com a ideia de co-pertencimento entre homem e mundo, Heidegger fala do acontecimento do Dasein, desde
sempre atravessado pelo mundo. Além disso, a vida é
dada ao homem como possibilidade, sob determinadas
condições, não existindo qualquer substrato anterior,
que lhe dê qualquer segurança primeira. O Dasein é um
devir, significando que tem que cuidar de si. A responsabilidade pelo cuidar de ser é condição humana, básica
e intransferível. Acontece que, a maior parte das vezes, e
escondido pelo projeto da técnica, a pessoalidade, a experiência, a possibilidade de falar uma linguagem poética, estrangeira, são quase totalmente aniquiladas na decadência da impropriedade.
A era da técnica faz um malogro com as possibilidades de ser, entregando um modelo a ser seguido. As possibilidades de trazer a marca pessoal desaparecem, para
valorizar a eficácia do projeto social. Com inspiração na
ideia da criança como aquele que é capaz de falar, defendida pela filosofia da educação, penso, ontologicamente,
no Dasein-criança como possibilidade de dizer, apropriando-se de uma fala mais originária. Aí, retornando para o
campo ôntico, a infância poderia ser vivida em qualquer
momento existencial, pois que seria determinada por outros aspectos, que não a cronologia ou a biologia.
Seria a criança um estranho? No dizer de Heidegger
(1959/2012, p. 30), “estranho significa comumente o que
não é familiar, o que não nos diz respeito, mas sobretudo o que nos pesa e inquieta”. A criança se inaugura no
mundo, onticamente falando. Aliás, ela e mundo se inauguram, ao mesmo tempo, fenomenologicamente. Deste
modo, ela inaugura, dentre as possibilidades, a de invenção, de transgressão. Ela incomoda, amedronta, pelo potencial transgressor que traz consigo. Ao mesmo tempo,
o Dasein-criança, enquanto ontologia do ser, ao se fazer
estrangeiro no mundo, pode falar uma língua estranha, ser
um poeta, podendo apropriar-se de algo originário, próprio, experiencial? Aqui falo da criança como condição
de ser no mundo. Porém, como diz Heidegger (1927/2012,
p. 185), “o impessoal é e está no modo da consistência do
não si-mesmo e da impropriedade”. Deste modo, a criança
pode ser compreendida como um modo de ser que desvela uma possibilidade de ruptura, inauguração, transgredindo a impropriedade? Talvez sim, considerando o que
afirma Heidegger (1927/2015):
se já o ser da convivência cotidiana que, do ponto de
vista ontológico, parece vizinho ao ser simplesmente
dado, é diferente em princípio, então não se pode, de
forma alguma compreender o que é propriamente si-mesmo como algo simplesmente dado. O ser do que
é propriamente si-mesmo não repousa num estado excepcional do sujeito que se separou do impessoal. Ele
é uma modificação existenciária do impessoal como
existencial constitutivo. (p. 188)
Assim como acontece com relação à inspiração que
recebemos da filosofia da educação, que nos vem nos pla-
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(...) O menino entrega ao mundo
O dom da sabedoria
Que nasce do coração.
Porque é do amor e da infância
Que o mundo tem precisão
(Thiago de Melo - Faz escuro, mas eu canto)
Quero finalizar estas reflexões pensando em um aspecto que considero fundamental na fenomenologia hermenêutica: a questão da indissociabilidade homem-mundo.
Heidegger defende a existência de uma ligação inevitável
entre homem e mundo. O Dasein, afirma, é ser-no-mun-
89
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inventando: quem conta um conto acrescenta um
ponto
do-junto-com-os-outros. E nosso tempo, nosso mundo
contemporâneo, é moldado pelo tempo da técnica. Deste
modo, a partir da sua análise em Ser e Tempo, o homem
é tecido a partir de um modo de ser que tem como paradigmas objetividade, racionalidade, mecanicismo, individualismo.
A Filosofia da educação, aqui apresentada a partir de
Kohan, Larrosa e Agamben, corrobora para esta análise,
afirmando, dentre outros elementos, que no tempo da
técnica a experiência foi suprimida da nossa existência,
retirando do homem a possiblidade de se aproximar de
algo que lhe seja comum. A falta da experiência impede
a ruptura e negação do domínio paradigmático do tecnicismo, marca predominante do projeto modernista. Acredito, pois concordo com esta perspectiva, que a infância,
por ser um tempo no qual a fala estrangeira é existente,
aparece como uma possibilidade de constituir-se como
uma rota de fuga, aberta para o exercício de múltiplas
possibilidades.
Como segundo elemento de análise trago, a partir
de Heidegger, a singularização e propriedade humana.
Compreendo, a partir dele e da filosofia da educação, que
nosso tempo contemporâneo tenta retirar do homem o sofrimento existencial, a angústia, a dúvida, o trabalho demorado e artesão de construção da própria vida, afastando as distintas possibilidades de experiência. À criança é
negada a possibilidade de ser por si mesma, sendo vista
como um ser incompleto, um ser em vias de se tornar um
adulto. Deste modo, ela está sempre atrás do adulto, pois
caminha para se tornar um. É um vir-a-ser. A Filosofia da
educação propõe que a criança assuma seu lugar de voz,
podendo falar e se dizer, no campo ôntico. No dizer de
Kohan, a infância resiste aos movimentos concêntricos e
totalizantes. No campo ontológico, a criança seria uma
possibilidade de – na estrangeiridade –, conquistar uma
língua mais própria. Enquanto ontologia do ser, o Dasein
pensado ônticamente, a partir desta sugestão, seria um
modo de ser meditante, transgressor, singular?
Finalmente, o terceiro elemento que quero trazer para estas considerações é a questão da temporalidade.
A classificação dos estágios do desenvolvimento é centrada
no tempo cronológico. Para Heidegger, a temporalidade é
uma condição de ser. Heidegger fala de um tempo que não
é o kronos e sim o aiôn. Assim, o que é levado em conta
prioritariamente é o tempo existencial, acontecimental, e
o foco da experiência não é o tempo linear. Semelhante ao
que pensa a filosofia da educação: o tempo da infância não
é o da idade cronológica e sim o tempo acontecimental.
A partir destas reflexões, podemos pensar a infância
como um modo de ser marcado pela afetação, pela possibilidade de falar uma língua estrangeira, por poder viver
mais livremente a experiência. A infância, então, pode vir
a ser compreendida como um tempo existencial, rompendo com a determinação cronológica, tão cara para a era
da técnica. Ainda nesta linha de pensamento, torna-se
possível pensar que podemos habitar e sermos habitados
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nos ôntico e ontológico, algo semelhante, parece acontecer
com Heidegger: A partir dele, inspirada na sua ontologia
fundamental, critico a categorização na qual a criança é
posta, uma vez que não é possível uma compartimentalização do Dasein! Além disso, por se guiar por um tempo diferente do cronológico, um tempo acontecimental, a
ontologia heideggeriana não pode compreender o Dasein
limitado por idade ou características biológicas, somente.
Contam muito mais a experiência e a facticidade. Deste
modo, indagamo-nos: se pensamos a infância como um
tempo de rupturas e abertura de possibilidades, tal qual
sugerem Kohan, Larrosa e Agamben, podemos imaginar
o Dasein habitando um tempo, aqui denominado de infância, a partir do signo da transgressão, do pensamento
que medita, da apropriação de uma fala originária? Se isso
for possível, torna-se inevitável questionar o formato com
que a infância e a criança são apresentadas na contemporaneidade, e as derivações que daí são tomadas, como
verdades absolutas.
Falamos de uma criança, Dasein, que desvela um modo de ser. Sua temporalidade é outra, que não somente
a cronológica. Isso coloca a possibilidade de ela se fazer
presente por toda a existência. Falamos aqui de um espaço e de um tempo, de um modo de estar no mundo, não
linear, constitutivos do ser-aí, o que impede que o Dasein
seja tomado como um ente simplesmente dado.
Heidegger (1987/2001) explicita uma subjetividade
constituída na era da técnica. Deixa perceber como a técnica provoca no homem um modo peculiar de ser. A partir desta tradição, a criança se encontra um passo atrás do
adulto, caminhando para um vir-a-ser-adulto. Mas, para
além desta possibilidade, que mais ela pode ser?
Na verdade, queremos acreditar, que a infância é a
condição de ser afetado que nos acompanha a vida toda.
O dito e o não dito, a falta de palavras, a ausência de voz
(in-fans), nos afetos abertos e ampliados. Deste modo, fenomenologicamente, o Dasein-criança parece referir-se ao
novo, às possibilidades transgressoras, seja no plano da
ontologia, seja no campo da onticidade.
Estudos Teóricos ou Históricos
Infância, Filosofia da Educação e Fenomenologia: Aproximações Necessárias
Ana M. M. C. F.
pela infância, que pode ser acessada em qualquer tempo
da existência. Sermos crianças, portanto, seria possibilitado por uma ruptura com o vir-a-ser e abertura ao devir;
pela experiência resgatadora, que nos possibilitaria uma
conquista de um modo de ser mais próprio.
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Ana Maria Monte Coelho Frota - Graduada em Psicologia e Mestre em
Educação pela Universidade Federal do Ceará, com Doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de
São Paulo. Terminou estágio pós-doutoral na Universidade Federal do
Rio Grande do Norte em 2017. Atualmente é professora associada da
Universidade Federal do Ceará, lotada no Departamento de Economia
Doméstica. Vinculada ao Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero,
Idade e Família (NEGIF), Núcleo de Desenvolvimento da Criança (NDC)
e ao Núcleo de Linguagem Desenvolvimento e Educação da Criança (LIDELEC) do Programa de Pós-graduação em Educação Brasileira da Universidade Federal do Ceará. Atua como supervisora clínica no curso de
Psicologia da UFC, na área da psicologia fenomenológica-existencial.
Endereço Institucional: Endereço: Av. Antônio Sales, 2367, ap. 401 - Dionísio Torres. CEP 60135-101 - Fortaleza - Ceará. Email:
[email protected]
Recebido em 22.06.2016
Primeira Decisão Editorial em 03.12.2016
Aceito em 02.08.2017
Frota, A. M. (2007). Diferentes concepções da infância e da
adolescência: a importância da historicidade para sua compreensão. Estudos e Pesquisas em Psicologia (UERJ), 7 (1),
147-170.
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Kohan, W. (2011). Infância. Entre Educação e Filosofia. Belo Horizonte: Autêntica.
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 84-90, jan-abr, 2018
90
A Construção do Ser Mulher na Agricultura Familiar:
uma 10.18065/RAG.2018v24n1.10
Perspectiva Logoterapêutica
Nº DOI:
a cOnsTruçãO dO ser Mulher na agriculTura FaMiliar:
uMa perspecTiVa lOgOTerapêuTica
The Construction of Being a Woman in Family Farming: a Logotherapeutic Perspective
La Construcción del Ser Mujer en la Agricultura Familiar: una Perspectiva Logoterapéutica
FRanChesCa CaRolina BaRonio
luCiene geigeR
resumo: Este trabalho buscou investigar a relação do “ser mulher” no contexto da agricultura familiar a partir de uma perspectiva
logoterapêutica desenvolvida pelo austríaco Viktor Emil Frankl. Por meio de uma revisão narrativa de caráter qualitativo, buscou-se definir o perfil do Ser Mulher na agricultura familiar com o descritor “mulheres rurais” nas bases de dados Biblioteca Virtual
em Saúde (BVS) e Biblioteca Digital de Teses e Dissertações (BDTD). Foram utilizados materiais do período de publicação do ano
de 2011 a 2016. Os materiais foram analisados por meio de análise de conteúdo resultando em duas categorias. Em ”Ser mulher:
uma construção autoral ou um destino a cumprir”, identifica-se o ser mulher vinculado aos papeis de mãe, esposa e cuidadora,
fruto de uma construção social. Por sua vez, “Mulheres agricultoras: sobre trabalho e parentalidade” trata das formas de trabalho
não valorizadas vinculadas ao ser mãe e esposa. A partir do referencial da Logoterapia pode-se entender como constroem sentidos
de vida e as alternativas de uma liberdade de sentido para uma escolha autêntica que promova saúde. A partir dessa compreensão, esperou-se possibilitar ao profissional da saúde reflexões que vislumbrem alternativas de intervenções logoterapêuticas para
promoção de saúde e de existências mais plenas de sentido.
Palavras-chave: Mulheres agricultoras; Logoterapia; Sentido de Vida.
“O ser humano é capaz de mudar o mundo para melhor,
se possível, e de mudar a si mesmo para melhor, se
necessário”
(Viktor E. Frankl, Em Busca de Sentido)
91
A agricultura familiar, compreendida como uma forma
de produção agrária em menor escala, com alternativas
de trabalho mais manuais e artesanais, utilização de mão
de obra basicamente familiar ou de grupos de convívio da
vizinhança e amigos, tem sido fonte de produção e movimentação de capital social (Gonçalves & Vital, 2014). Em
decorrência disso, movimenta implicações na elaboração
de políticas públicas para a sua garantia e manutenção
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 91-97, jan-abr, 2018
-
introdução
Artigos
resumen: Este trabajo busca investigar la relación del “ser mujer” en el contexto de la agricultura familiar a partir de una perspectiva logoterapéutica, desarrollada por el austríaco Viktor Emil Frankl. Por medio de una revisión narrativa de carácter cualitativo,
se buscó definir el perfil del Ser Mujer en la agricultura familiar, con la expresión “mujeres rurales” en las bases de datos Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) y la Biblioteca Digital de Teses e Dissertações (BDTD). Fueron utilizados materiales con publicación en
el periodo de 2011 a 2016. Los mismos fueron analizados por medio de su contenido, resultando en dos categorías. En “Ser mujer:
una construcción autoral o un destino a cumplir” se identifica el ser mujer vinculado a los papeles de madre, esposa y cuidadora,
fruto de una construcción social. Por otro lado, “Mujeres agricultoras: sobre trabajo y la crianza de los hijos” trata de las formas
de trabajo no valorizadas vinculadas al ser madre y esposa. A partir del paradigma de la Logoterapia se puede entender como se
construyen sentidos de vida y las alternativas de una libertad de sentido para una elección auténtica que promueva salud. A partir de esta comprensión, se espera posibilitar que los profesionales de la salud reflexionen y vislumbren alternativas de intervenciones logoterapéuticas para promoción de salud y de existencias más llenas de sentido
Palabras-clave: Mujeres agricultoras; Logoterapia; Sentido de Vida.
Estudos Teóricos ou Históricos
Abstract: This work investigated how “being a woman” is cinstructed in the context of family farming from a logotherapeutic perspective developed by the austrian Viktor Emil Frankl. Through a qualitative narrative review, it was sought to define the profile
of “being a woman” in family farming with the descriptor “rural women” in the databases Virtual Health Library (BVS) andBiblioteca Digital de Teses e Dissertações (BDTD). Materials published from 2011 to 2016 were used and analyzed by content analysis
resulting in two categories. “Being a woman: an authorial construction or a destiny to fulfill” identifies the construction of being
a woman tied to the roles of mother, wife and caregiver, resulted from a social construction. In turn, “Women farmers: work and
parenting” approaches undervalued types of work related to being a mother and wife. From the referencial of Logoterapy it can
be understood how they find meanings of life and the alternatives of a freedom of meaning for an authentic choice that promotes
health. From this understanding, we hope to promote reflections to health professionals to envisage alternative logotherapeutic
interventions to promote health and more meaningful lives.
Keywords: Rural women; Logotherapy; Meaning of Life.
Artigos
-
Estudos Teóricos ou Históricos
Franchesca C. B.; Luciene G.
(Gonçalves & Vital, 2014; Salvaro, Lago & Wolf, 2013). Primeiramente, deve-se esclarecer que a agricultura familiar
é, conforme os autores, um cenário no qual o trabalho se
dá basicamente através da força familiar e comunitária.
A partir disso, a discussão a respeito dos papéis de gênero e suas devidas ocupações vem sendo tema de diversas
publicações a respeito desse panorama. (Lassak, 2010;
Nogueira & Toneli, 2016; Pinto et. al., 2013).
Historicamente podemos identificar uma evolução do
ser mulher através dos estudos científicos que trazem a
discussão de gênero para reflexão. O que se pode perceber
é que a partir do século XIX, a diferença entre ser mulher
e ser homem era evidenciada em seus papéis sociais e de
poder e, segundo a autora, essa teoria era reforçada com
uma justificativa biológica de que seus corpos eram diferentes e complementares: o homem servia para ocupar
espaços públicos e a mulher estava destinada aos afazeres do lar (Pinto, 2005). Para as mulheres do campo ou
agricultoras, o construto “ser mulher” é reforçado por um
atravessamento “teológico”1 um tanto determinista, ficando seu papel social definido desde a infância como filha,
mãe de família, reprodutora e doméstica (Lassak, 2010).
Dessa forma, o ser mulher somente passa a ser reconhecido pela maternidade e pelo matrimônio (Pinto, 2005).
A partir dos anos 1970 e o avanço dos estudos feministas, essa visão determinista sobre ser mulher começa
a ser amplamente questionada, resultando numa nova
concepção do conceito como uma construção, ou seja,
“[...] é consequência de uma extensa e intrincada rede de
significações sociais” (Pinto, 2005, p. 14). A partir de então, abordar “a mulher” seria restringir-se ao biológico e,
supostamente, universal, enquanto que ao se referir “às
mulheres” se estaria atentando para a possibilidade de
construção que cada mulher pode fazer da sua existência,
apontando para o respeito à diversidade de vivências a
despeito de papéis predeterminados, conforme abordam
os estudos feministas (Pilar, 2013), mas também para a
possibilidade de liberdade de escolha e de autoria do próprio destino, conforme a Logoterapia.
A Logoterapia, fundada pelo psiquiatra e neurologista austríaco Viktor Emil Frankl, também conhecida como
Psicoterapia do Sentido da Vida e considerada a terceira
escola vienense de psicoterapia, tem como objeto de estudo o sentido da vida (Kraus, Rodrigues & Dixe, 2009).
Segundo Frankl, (2008), essa terapia tem como objetivo
principal auxiliar a pessoa a encontrar um sentido em
sua vida. Num processo particular de construção através da análise existencial, a pessoa é colocada como ser
responsável diante do sentido de sua vida, sendo o terapeuta um facilitador desse processo (Xausa, 1986; Kraus
et al., 2009).
Tendo sido prisioneiro de campos de concentração
durante a época do nazismo na Alemanha e perdido sua
1
A utilização da palavra “teológico” foi escolhida por ser assim citada
na obra referenciada. Com a intenção de ser a citação mais fidedigna,
optamos por assim mantê-la.
família e seus bens, Viktor E. Frankl pôde experienciar o
sofrimento e o desejo de sobreviver e, por meio do contato com outras tantas pessoas naquele contexto, agarrou-se
à possibilidade de estudá-las como forma de se manter
lutando por sua vida (Xausa, 1986). Após sua libertação,
Frankl veio a publicar sua autobiografia “Em busca de
sentido” na qual relata sua experiência como um movimento que impulsionou a escrita do livro “Em busca de
Sentido”, importante publicação para o desenvolvimento
da Logoterapia (Frankl, 2008) e sua consequente compreensão do ser humano.
Somando-se a essa questão, tem-se o fato de que ao
longo da existência cada pessoa pode passar por diversas mudanças, algumas das quais podem levá-la ao sofrimento. Para mulheres, a perda e a separação de familiares e amigos, doenças crônicas e o processo de envelhecimento, a saída dos filhos de casa, entre outras, podem
se constituir em fontes de sofrimento. Conforme aponta
um estudo transversal realizado na Serra Gaúcha com
trabalhadores da agricultura familiar (Faria et. al., 1999),
a saída dos filhos e o consequente esvaziamento dos lares de casa constitui um fator importante observado na
prevalência de morbidade psiquiátrica.
Nesse contexto, no qual delas ainda é esperado o papel de cuidadoras, a responsabilidade de educar os filhos,
cuidar da casa e do marido (Pinto, 2005), pode-se pensar
o quanto o sentido de vida das mulheres pode ser afetado
com a saída de seus filhos ou a perda de seus companheiros, significando a perda de um papel social sobre o qual
se construiu um sentido de vida. Cita-se uma passagem
escrita por Natalie Rogers “Uma importante parte de mim,
de minha identidade não é mais necessária. E a necessidade de ser necessária representa uma parte importante
da identidade da maioria das mães” (1993, p. 41). Nesse
trecho de sua autobiografia em que retrata como foi a separação e a saída de casa, a autora exemplifica como para
ela o ser mãe é constituidor de um sentido de vida e como
essa ausência é carregada da necessidade de ressignificar
os sentidos. Lidar com tais mudanças remete diretamente
ao questionamento quanto à possibilidade de encontrar
novos sentidos de vida.
Há ainda as mulheres que questionam ou mesmo que
simplesmente não vivenciam alguns dos papéis tipicamente convencionados para serem desempenhados por
mulheres, como casar-se, ser mãe e cuidar do lar, que por
vezes enfrentam resistências e questionamentos constantes sobre ser mulher. Entendendo esses questionamentos
como adversidades na adultez, é necessário refletir sobre
a perspectiva do sentido de vida como alternativa de enfrentamento e promoção de saúde (Sommerhalder, 2010).
Pois Frankl (2008) afirma que, apesar de todo o sofrimento
e dificuldade em sua trajetória, o ser humano é capaz de
encontrar um sentido para sua existência, considerando
que qualquer situação em sua vida possa se tornar um
caminho para a vontade de sentido.
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 91-97, jan-abr, 2018
92
A Construção do Ser Mulher na Agricultura Familiar: uma Perspectiva Logoterapêutica
93
A partir das obras pesquisadas sobre o gênero e ruralidade, entende-se que construção do ser mulher, para além
de uma questão biológica de diferenciação entre macho
e fêmea, é uma construção pessoal e social que nos torna
pessoas e mulheres (Geiger, 2014), e no caso das mulheres rurais, esta construção é influenciadas pela família,
vizinhança e os espaços limitados em que elas circulam
(Maia & Sant’ana, 2011). Apesar de pequenos avanços no
decorrer dos anos da luta feminista, o modelo prevalecente
no contexto da agricultura familiar é o da mulher do lar,
que tem suas atividades de trabalho e lazer circunscritas
ao lar, sendo pouco valorizadas em consequência disso,
de modo a manter as ideologias patriarcais (Nogueira &
Toneli, 2016).
Nesse contexto, conforme Maia e Sant’ana (2011), os
papéis de gênero são evidenciados desde a adolescência.
Observa-se uma questão notável referente à diferenciação dos papéis de gênero desde essa fase vital: os meninos têm a possibilidade de atingir maior escolaridade e a
expectativa de ficarem como herdeiros das propriedades,
enquanto as mulheres permanecem no papel de cuidadoras. Além disso, amparados pela religião, a delimitação desses papéis se torna clara: as mulheres são vistas
como procriadoras destinadas aos afazeres domésticos
e ao cuidado dos filhos e do marido, e os homens trabalham na roça, tidos como provedores do sustento da casa (Lassak, 2010; Pinto et. al., 2013; Nogueira & Toneli,
2016). Assim, espera-se que as atividades permaneçam
e se perpetuem dentro da história familiar nesse cenário
rural. Compreende-se que o ambiente e os valores culturais aqui apresentados podem ser fatores importantes
para a construção de sentido.
Através da compreensão Logoterapêutica, Frankl
(1990) afirma que quando um objetivo de vida de cunho
existencial não se realiza, manifestam-se sentimentos de
solidão e de vazio. Esses são relacionados ao vazio existencial ou vácuo existencial, terminologia utilizada para retratar os dois sentimentos extremos que coabitam o
ser de angústia e tédio (Frankl, 2008). O vazio geralmente é fruto de uma frustração da vontade de sentido, que
seria inata a pessoa, considerada como uma motivação
primária na vida humana. A liberdade de sentido, como
conceito, é uma orientação para a realização de sentido (Studart, 2007). Se, por ventura, a vontade de busca
de sentido for frustrada, ocorre o que Frankl definiu como neurose noogênica, uma frustração das necessidades
existenciais decorrentes do sentimento de falta de sentido que podem aparecer em sintomas como drogadição,
depressão e demais comorbidades psiquiátricas (Silveira
& Gradim, 2015).
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 91-97, jan-abr, 2018
Estudos Teóricos ou Históricos
Para a produção deste estudo, de caráter qualitativo
e constituído de uma revisão bibliográfica narrativa, foi
realizada uma pesquisa nas bases de dados Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) e Biblioteca Digital de Teses e Dissertações (BDTD). Inicialmente não foi encontrado nenhum
material que relacionasse Logoterapia à construção do Ser
Mulher. A partir disso, optou-se por realizar uma busca
para delinear o perfil das mulheres rurais, sendo utilizada
a palavra-chave “mulheres rurais”. Foram consideradas
somente publicações em texto completo de 2011 até 2016
em língua portuguesa, e foram descartados materiais duplicados e que não abordassem em seus títulos e resumos
as temáticas de gênero ou planejamento de vida no contexto da agricultura familiar. No final resultando em 18
publicações na BDTD e 8 artigos na BVS. Ao final, após
a leitura dos resumos foram selecionadas 6 produções.
O procedimento escolhido para a análise dos materiais foi a análise de conteúdo conforme Bardin (2009),
caracterizada como um conjunto de técnicas de análise
de comunicações que utiliza procedimentos sistemáticos
e objetivos de descrição de seu conteúdo, permitindo inferências de conhecimentos por meio de pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados, com inferência e interpretação. Primeiramente, na pré-análise,
por meio de uma exaustiva leitura flutuante, tomou-se
contato com os materiais a serem investigados, selecionando aqueles que estavam de acordo com os objetivos
deste trabalho. Na segunda etapa, exploração do material,
os dados foram organizados nas categorias que emergiram, a saber, “Ser mulher: uma construção autoral ou um
destino a cumprir?“ e “Mulheres agricultoras: Sobre o trabalho e parentalidade”. Por fim, na terceira fase, que se
refere à interpretação, foram realizadas inferências com
base no referencial teórico logoterapêutico. A construção
das mesmas, por diversos trechos, parece se cruzar, visto
que na realidade o papel de ser mulher, engloba a parentalidade e o “auxílio” nas atividades da família, sem ter
uma grande divisão ou clareza desse espaço. Entretanto,
com a intenção de dar visibilidade a essas mulheres, optou por criar duas categorias distintas, mas que por vezes
dialogam e se complementam. Para realizar uma compreensão dos dados oriundos dessa análise, foi utilizado o
referencial teórico da Logoterapia.
Ser mulher: uma construção autoral ou um destino a
cumprir?
-
Método
resultados
Artigos
Assim, este estudo busca compreender o ser mulher
desde uma perspectiva logoterapêutica, identificando
como sentidos de vida podem estar relacionados com os
modos de ser mulher e como podem ser reconstruídos ao
longo da vida. A partir dessa articulação teórica e seus
achados, buscar-se-á refletir sobre quem são e como vivem essas mulheres da agricultura familiar e através da
Logoterapia tecer reflexões que possam auxiliar na construção de sua saúde e qualidade de vida.
Considerando-se que fatores culturais e modos de vida são ferramentas, segundo Sommerhalder (2010), para
a construção de significados e sentidos de vida, mulheres
cujos sentidos de vida foram elaborados e alimentados por
uma cultura na qual existem apenas para serem mães e
esposas podem sofrer psiquicamente. Frankl (1990) traz
para reflexão a questão do amadurecimento das mulheres e sua relação com o casamento e a maternidade. Para
o autor, ter como único sentido de vida o matrimônio e a
maternidade pode se tornar uma idolatria para uma mulher, fazendo-a acreditar ser sua vida sem sentido quando isso não se realiza. Dessa forma, poderá se tornar uma
mulher não realizada, tendendo ao desespero e, em casos
mais extremos, ao suicídio. Considerando as ideias de
Frankl, ousa-se dizer que uma intervenção fundamental
nesse contexto seria oferecer outras possibilidades a essas mulheres para encontrarem outros sentidos de vida
ou, ao menos, questionarem se o que vivem tem sentido,
sem que se sujeitem à idolatria e ao desespero.
Pensando essas mulheres e os valores sociais que auxiliam na busca por sentidos de vida, cabe questionar se
o sentido de vida ao ser mãe está atrelado ao destino de
ser mulher ou se é uma escolha autêntica dotada de liberdade de escolha frente a sua existência (Xausa, 1986).
Frankl (2008), em sua obra, buscou abordar o ser humano
como livre em sua autenticidade, tornando-se responsável
por sua autoconfiguração, de modo a não ser mero fruto
dos condicionantes ambientais que ali são apresentados:
“Em suma, é por meio de sua dimensão espiritual que o
homem pode objetivar as dinâmicas de condicionamento
a que está submetido, na medida em que sua autoconsciência o torna livre para decidir, para tomar uma atitude diante das formas de destino que se lhe apresentam.”
(Studart, 2015, p. 395).
Frankl (2008) conspirava que a tensão pela busca de
sentido mobiliza forças vitais, pois a orientação pela busca de sentido é para a pessoa2 algo de sua natureza. Divergindo de autores que veem essa tensão de forma negativa, Frankl acreditava que o ser humano é capaz de
mudar a si mesmo diante de todas as mudanças, com
uma orientação voltada a busca de sentido, sendo uma
alternativa saudável frente aos ocorridos. Assim, afirmava que, de maneira geral, existem três formas de se descobrir um sentido: fazer ou acreditar em algo; viver algo
ou amar alguém; ou vivenciar situações desesperadoras.
Ou seja, “o sentido como a Logoterapia o entende, é algo
bem simples, é uma potencialidade latente em cada situação e que deve ser descoberto” (Xausa, 1986, p. 145).
Assim, no decorrer da vida adulta, a busca de sentido é
contínua, e considerando o processo de envelhecimento,
fase que naturalmente exige maior capacidade de enfrentamento devido às perdas em geral que podem interferir
Artigos
-
Estudos Teóricos ou Históricos
Franchesca C. B.; Luciene G.
2
Pessoa: Utilizo aqui uma licença poética, na obra do autor Frankl refere-se sempre ao ‘homem’ quando retrata o ser humano em si, com
a intenção de não oprimir as mulheres que descrevo aqui, lanço mão
da palavra pessoa no decorrer da escrita.
na vontade de viver, a busca de sentido se mostra como
promotora de saúde, pois auxilia no enfrentamento de
enfermidades e possíveis adoecimentos nesse momento
de vida (Sommerhalder, 2010).
Dessa forma, a Logoterapia vem ao encontro de auxiliar na promoção de saúde e na busca primordial da
pessoa por sentidos de vida. A partir da compreensão da
literatura e da perspectiva da construção do ser mulher
no ambiente da agricultura familiar, pode-se pensar que
existem possibilidades de não adoecer quando existe um
movimento de autorreflexão e produção de saúde frente
a qualquer escolha, desde que sejam atribuídos sentidos
para as mesmas. Entende-se que a resposta para o sentido
numa perspectiva mais saudável não deve ser criada somente voltada para si, mas a pessoa tem em si uma orientação para a autotranscedência “O ser humano busca, acima de si próprio, algo que não é ele mesmo, um sentido
a cumprir ou um outro ser para além de si mesmo” (Xausa,1986, p. 144). Sobre a possibilidade da realização do
sentido ser impedida por alguma razão, Frankl (2008) já
afirmava que é possível descobrir sentido mesmo diante
de adversidades. Sendo assim, os sentidos de vida sempre podem ser ressignificados frente às escolhas diante
das situações impostas pela vida. O necessário para que
se promova saúde é que as escolhas de sentido não sejam
voltadas para dentro de si, mas que sejam autotranscendentes, de si para o mundo, pois é a existência que interroga a pessoa continuamente sobre os sentidos de sua
vida (Xausa, 1986).
Mulheres agricultoras: Sobre o trabalho e parentalidade
No que se refere ao papel político das mulheres na
ruralidade, foi somente a partir de agosto de 1994, com
o lançamento da cartilha “Nenhuma trabalhadora rural
sem documentos”, que trazia informações sobre a garantia de seus direitos civis perante o Estado, que o trabalho
das mulheres agricultoras foi visto e validado em seus
direitos (Salvaro, Lago & Wolf, 2013). Entretanto, apesar
desse marco, o trabalho dessas mulheres ainda é desvalidado, pois são elas que asseguram o bem-estar da família e a reprodução social, e apesar da extensa jornada de
trabalho, que implica cuidar da casa e ajudar os cônjuges
na lavoura, ainda é um trabalho não reconhecido financeiramente, o que implica no aumento da desigualdade
financeira (Costa et. al., 2014). A partir do momento em
que surgem políticas públicas que impulsionam um movimento de autorreflexão sobre o papel esperado, como
no caso da cartilha, essas mulheres passam a ter á oportunidade de vivenciar uma tensão saudável para a reorientação de sentido (Frankl,2008)
Ainda sobre a renda dessas mulheres, os dados do
censo de 2010 do IBGE apontam que na região rural sul
o rendimento das mulheres em relação ao total familiar é
de apenas 37,3%. Esse índice corrobora para a afirmação
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que optam por maior nível de ensino, logo migram para
fora deste contexto. Assim, os dados apontam que as perspectivas de escolha parecem limitadas: ou sair, ou ficar
na manutenção de um estereotipo cultural. Cabe salientar que a liberdade de escolha pode ocorrer em qualquer
uma das opções e ser transformadora de um processo de
saúde, porém é necessário que diante disso seja possível
tomar consciência deste potencial.
Assim, algumas mulheres, com a intenção de quebrar
com os modelos de identificação e diante da sua liberdade
de escolha, arriscam uma maior escolaridade migrando
para fora do lar (Maia & Sant’ana, 2011). Esta informação
corrobora com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2006), a respeito da agricultura familiar no Brasil, que vem apontando para uma diminuição
considerável do número de mulheres em relação ao de
homens no cenário rural, aproximadamente 1,5 milhões
de homens a mais que mulheres. Conforme os resultados
levantados por Maia e Sant’ana (2011), as questões de gênero evidenciam papéis desiguais em funções sociais e de
trabalho e renda que podem impulsionar essa saída. Desta forma, visando à diminuição de adoecimento das que
optam em ficar, e mesmo aquelas que buscam a saída, é
necessário refletir sobre as neuroses coletivas e a autenticidade das escolhas apresentadas. Para Frankl, neurose coletiva seria uma atitude passiva diante do fatalismo
apresentado pelo contexto, tornando-se uniforme com a
massa, porém, a alternativa diante disso é o questionamento de sua individualidade confrontando um medo à
liberdade e assumindo responsabilidade de si (Silveira
& Gradim, 2015).
Para tanto, os sentidos não são meramente criados
nem rigidamente estabelecidos; são questionados constantemente de forma singular através de valores criativos, vivenciais e de atitudes, ou seja, através da oferta de
um trabalho para o mundo, das experiências afetuosas,
da cultura e ambiente, e, por fim, as respostas que se dão
perante às dificuldades da vida (Silveira & Gradim, 2015).
Ainda, os valores de atitude, conforme Xausa (1986), “surgem quando fatos irreparáveis e irreversíveis acontecem
acima da capacidade humana de superá-los” o que, para Frankl, constituía-se na tríade trágica da dor, da culpa
e da morte, é sentir o sofrimento, assumir a responsabilidade e a culpa e entender a finitude da vida. “Pode-se
privar a pessoa de tudo, menos da liberdade última de
assumir uma atitude alternativa frente às condições dadas” (Frankl, 2008, p. 66-67).
A introdução da Logoterapia como forma de auxílio
para promover saúde no ambiente individual acredita,
conforme Frankl (2008, p. 135), que “O papel do logoterapeuta consiste em ampliar o campo visual do paciente
de modo que todo o espectro de sentido em potencial se
torne consciente e visível para ele”. Entretanto, considerando as contribuições do autor para movimentos da saúde coletiva, que visam ampliar essas práticas para uma
coletivização de demanda, pode-se pensar em espaços
Artigos
das relações de trabalho desiguais, sendo o poder financeiro ou de compra destinado aos homens, fortalecendo
a não formalização do trabalho dessas mulheres, bem
como a dependência do modelo patriarcal para obtenção de renda (Maia & Sant’ana, 2011, Pinto et. al., 2013).
A ironia desses achados traz a reflexão sobre um modelo
predominante sexista, que impulsionou nos anos 1970 a
necessidade das vertentes feministas que lutavam pelo reconhecimento das mulheres e igualdade no mercado de
trabalho (Pilar, 2013). Essas mulheres, além de trabalharem no meio rural no auxílio de renda familiar, enfrentam
a dura “jornada dupla”, pois dedicam em média o dobro
do tempo que os homens nos afazeres domésticos e reconhecem seu trabalho rural apenas como uma ajuda a
seus companheiros (Pinto et. al., 2013).
A função parental também aparece de modo muito
peculiar nos dados apresentados pelo IBGE (2006), que
aponta que quase dois terços das mulheres rurais são mães
entre os 15 e os 21 anos e não utilizam métodos contraceptivos. Tornar-se ou não mãe e esposa é, a priori, para
Frankl (1990), uma escolha, não sendo a pessoa vítima
de seu destino, mas sim responsável diante de si, pois o
destino se dá somente quando tal escolha não é possível,
como, por exemplo, vivenciar um desastre natural ou o
surgimento de uma doença (Pereira, 2015). Considerando
o contexto em que estão inseridas, pode-se considerar que
ser esposa e mãe é valorizado pela família e pela comunidade como uma ocupação esperada, apontando para duas
questões que mantêm a existência digna, segundo Frankl
(1990): ser útil e a consciência de uma tarefa a cumprir.
Por isso, para algumas mulheres, ser mãe e casar poderia
tornar-se uma escolha nesse contexto considerando que
é uma ocupação esperada. Entende-se que essa escolha
é tão cultural que em momento nenhum são convidadas
a refletirem sobre essa manutenção de papéis, podendo
não ser em si uma escolha singular e autêntica a respeito
dos lugares que ocupam. Aqui ao pensar sobre esas escolha, conforme Xausa (1986, p. 147), “A vida lhe faz uma
pergunta e ao respondê-la tornar-se-á ser responsável”.
Diante dos questionamentos de liberdade e autenticidade de escolha, enquanto os homens recebem heranças
de terra, ocupam trabalhos mais rentáveis com possibilidade de poder de investimento, as mulheres só se dedicam a trabalhos rentáveis após o período de escolarização
dos filhos, saída deles de casa ou óbito dos cônjuges, isso porque seu dever social é a manutenção dos modelos
patriarcais. Assim, observa-se um percentual alto de mulheres que permanecem no meio rural na manutenção de
seu status social por meio dos modelos familiares e culturais, alimentando a discrepância salarial na falta de seus
direitos garantidos (Maia & Sant’ana,2011). As mulheres
com maior escolaridade dedicam mais horas ao trabalho
rentável (IBGE, 2010), o que difere das mulheres rurais,
pois de acordo com Maia e Sant’Ana (2011); Salvaro, Lago e Wolf (2013), elas também têm um índice de escolaridade menor que os homens da agricultura familiar. Já as
Estudos Teóricos ou Históricos
A Construção do Ser Mulher na Agricultura Familiar: uma Perspectiva Logoterapêutica
Franchesca C. B.; Luciene G.
coletivos construídos com a participação comunitária,
juntamente com equipes de saúde que discutam os temas propostos pela logo: autotranscendência, valores de
atitude, criativos e vivenciais, vontade de sentido e vazio
existencial (Silveira & Gradim, 2015).
no contexto de pessoas de países subdesenvolvidos. No
caso dessas mulheres, a aplicação da Logoterapia pode
ter um potencial libertador ao oportunizar reflexões e a
busca de novos sentidos.
Considerações inais
Artigos
-
Estudos Teóricos ou Históricos
discussão
A leitura das obras escolhidas para elaboração das
categorias foi de suma importância para entender quem
são, hoje, as mulheres presentes na agricultura familiar
no Brasil. Os achados apontaram para movimentos culturais permanentes ao longo dos anos que ajudaram a perpetuar estigmas dentro da construção do ser mulher na
perspectiva da agricultura familiar, vinculando seu gênero
a um papel de reprodução e cuidado do lar. Nesse contexto, a manutenção desses estereótipos colabora para a
construção de sentidos de vida voltados para a idolatria,
quando a única opção se torna ser mãe e esposa e, consequentemente, sua não realização pode incorrer em vazio
existencial, ou seja, grande sofrimento e falta de sentido
para essas mulheres.
As oportunidades de ensino, trabalho e lazer são evidentemente diferentes para homens e mulheres, que de
acordo com dados levantados nos últimos anos, têm levado a uma maior prevalência de homens neste cenário.
Pôde-se verificar, entre as mulheres que migram para fora
da agricultura familiar, uma insatisfação com os modelos existentes e a busca por melhores condições de vida.
É preciso delimitar que o perfil aqui traçado pode ser diferente em outros contextos, pois sofre influência direta
dos aspectos culturais aos quais se encontra submetido.
Salienta-se o período histórico dos materiais selecionados foi dos anos de 2011 a 2016 não limitando-se a Estados brasileiros específicos, o perfil traçado pode sofrer
pequenas variações de acordo com a diversidade cultural
da agricultura familiar.
Consideradas como detentoras de tamanho poder, pois
são elas as responsáveis pela manutenção da agricultura
familiar, ainda que tal poder tenha pouco reconhecimento, observa-se a necessidade de questionar essas mulheres
frente a suas escolhas e responsabilidades. A permanência na vida do campo não precisa ser dotada de frustração existencial, pois conforme Silveira e Gradim (2015),
“a Logoterapia, especificamente, enfoca a atitude do paciente diante do problema”, podendo, assim, vir a ser um
instrumento favorável para a promoção de saúde especificamente nesse contexto, pois ajudaria essas mulheres a
lançarem um olhar para a autotranscendência, para além
de seu cotidiano, auxiliando na busca por novos sentidos de vida. Para Xausa (1986), a Logoterapia tem muito
a contribuir no campo da saúde mental, pensando os efeitos das perdas de sentido e evitando a formação de neuroses noogênicas; na área da psicologia social, refletindo
em como o sentido pode ser gerador de mudança social
Os temas aqui abordados foram fruto de uma pesquisa
bibliográfica com a intenção de relacionar a construção
do ser mulher na agricultora familiar, tecer luz sobre este
assunto pelo viés da Logoterapia, e, desta forma, possibilitar a reflexão sobre essas temáticas. Após a pesquisa
foi possível delimitar o perfil dessas mulheres em duas
categorias: ”Ser mulher: uma construção autoral ou um
destino a cumprir” e “Mulheres agricultoras: sobre trabalho e parentalidade”. A primeira retrata como ser mulher
na agricultura familiar está relacionado com matrimônio
e reprodução. Já a segunda traz dados importantes para
visualizar o cenário de trabalho destas mulheres. A priori, poderia se criar apenas uma categoria, pois ser mulher é dotado da função de cuidar dos maridos e filhos,
porém considerando que é um trabalho, foram mantidas
as duas categorias com a intenção de não oprimir essas
mulheres e reforçar a importância de se olhar sobre seus
modos de viver.
Este estudo não tem por intenção desconstruir a agricultura familiar. A partir dele, pretende-se fundamentalmente vislumbrar alternativas de construção de saúde
frente ao cenário atual dessas mulheres, buscando alternativas de, primeiramente, compreendê-las para articular intervenções potentes de sentido. Nota-se, como
de vital relevância para a perpetuação das mulheres na
agricultura familiar, a importância das mulheres nesse
contexto. Entretanto, são questionados modelos que estejam persistindo no enfraquecimento e adoecimento das
mesmas. A Logoterapia vem no auxílio de questionar essas escolhas autênticas e, assim, permitir um fortalecimento diante da autotranscedência e do manejo frente
às possibilidades.
Como alternativas para produzir saúde diante do contexto da agricultura familiar, sugere-se fortalecer o diálogo sobre a Logoterapia e a resiliência, fundamentais ao
processo de saúde, uma vez que “a resiliência torna-se a
operacionalização de algumas das consequências de se
encontrar o sentido da vida” (Silveira & Mahfoud, 2008,
p. 575). Arrisca-se, assim, mais um aliado aos movimentos da luta por empoderamento e produção de saúde em
diversos cenários. Ademais, pesquisas empíricas poderiam ser de grande valia na produção de material sobre
esta temática, já que não existem pesquisas disponíveis
na literatura, assim possibilitando visibilidade a essas
mulheres. A aplicação de intervenções também auxiliaria a validar as contribuições da Logoterapia no contexto
rural e no trabalho com mulheres.
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 91-97, jan-abr, 2018
96
A Construção do Ser Mulher na Agricultura Familiar: uma Perspectiva Logoterapêutica
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luciene geiger - Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul, com Especialização Clínica em Psicoterapia Centrada na Pessoa (Delphos Instituto de Psicologia), Pós-Graduação em Psicologia Transpessoal (UNIPAZ-SUL e FISUL) e Acupuntura (ABACO/CESCIS e Faculdades São Judas Tadeu - RJ). Atualmente
é docente e supervisora em Psicologia na Escola de Saúde e Bem-Estar
da Faculdade de Desenvolvimento do Rio Grande do Sul (FADERGS).
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Recebido em 15.12.2016
Primeira Decisão Editorial em 08.08.2017
Aceito em 06.09.2017
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Franchesca Carolina Baronio - Possui graduação em Psicologia pela Faculdade de Desenvolvimento do Rio Grande do Sul. Email:
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Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 91-97, jan-abr, 2018
textos
clássicos
...............
A Problemática da Dor Psicologia – Fenomenologia
Metafísica
Nº –DOI:
10.18065/RAG.2018v24n1.11
TEXTOS CLÁSSICOS
a prObleMáTica da dOr
psicOlOgia – FenOMenOlOgia – MeTaFísica1
1. O problema da dor na sociedade moderna
1
“Os males deste mundo são sempre mais reais que
seus bens” (Bossuet)2
No curso da vida cotidiana, com suas alternações de
ócio e trabalho, alegria e tristeza, poucas vezes se formula expressamente e de forma conceitual a grande pergunta acerca da essência e do sentido da existência humana. Contudo, isso não significa, que estes problemas não
existam e que não tenham produzido seu efeito. A vida,
em suas múltiplas manifestações, na secreta intimidade
do mais pessoal e inexprimível, ao menos nas formas públicas da sociedade humana, na estrutura das instituições
sociais e na administração do Estado, está a princípio determinada pela concepção que o homem tem de si mesmo
e, por tanto, também de seu próximo. Esta concepção de
si mesmo se dá em grande parte à tradição para a qual,
no entanto, cada época proporciona um aspecto diferente.
Quanto mais violentos são os choques que abalam a
história de um período, mais urgente é para a humanidade se enfrentar com os problemas da vida. A ruptura da
tradição obriga a esboçar uma nova imagem da natureza,
da origem e do destino da sociedade humana, uma imagem na qual se tornam visíveis os princípios que sustentam a concepção dos comportamentos próprio e alheio.
Quando estes princípios são cunhados e se tornam suficientemente diferenciados e, se encontram em clara e firme relação com a concepção da vida e do mundo, cobram
sua influência decisiva sobre a sociedade, impregnam por
meios conscientes e inconscientes as ações mais simples
da vida diária e as carimba com sua imagem. É apenas
quando se recebe uma resposta clara e válida à pergunta
sobre a essência e o sentido do sofrimento e da dor física
em particular, que se converte, então, em modelo para a
atitude espiritual e toda conduta de vida.
As premissas, segundo as quais se desperta a sensibilidade para o problema do sofrimento em todas as camadas da sociedade e cujas respostas exigem uma força con1
2
Buytendijk, F. J. J. (1958). El Dolor. In F. J. J. Buytendijk, El dolor: Fenomenología, psicología, metafísica (p. 15-59). Traduzido do alemão
por Fernando Vela. Madrid: Revista de Occidente.
Boussuet, Oraison funèbre de la Princesse de Gonzague.
101
vincente, dificilmente são obtidas fora da esfera religiosa.
Esta ensina a meditar sobre estas hipóteses e condições, o
que é confirmado pela história, embora, certamente, não
pela história que se pode chamar de “tempos modernos”.
Por mais difícil que possa ser conhecer as forças motrizes que atuam no interior de uma sociedade em determinada época, assim como calibrá-las com exatidão e
julgá-las com retidão, há algo, contudo, completamente
garantido: em contraste com os séculos precedentes, a religião já não constitui mais na consciência europeia, para a
maioria dos grupos da população que sustentam a cultura,
o clima no qual respiram e atuam. Por outro lado, é sabido
que estes grupos não estão unidos e abrigados por uma
mesma realidade espiritual incontestável. Assim, pois,
não é estranho que a pergunta sobre a essência e o sentido da dor não fale mais ao coração e à cabeça, porque já
não há uma resposta que possua validade geral e ofereça
segurança. O perguntar tem sentido unicamente quando
existe a possibilidade de uma resposta válida e, uma vez
que o homem de todos os tempos não conta de modo suficiente com experiência individual, saber teórico e forte
pensamento criador, lhe resta pouco mais que evitar os
múltiplos problemas da vida cujas respostas deficientes
não podem fazer mais que desorienta-lo, fazendo-o se
sentir inseguro interna e externamente até o intolerável.
O homem e suas experiências vitais não mudam em
sua essência mais profunda. Por esta razão também o
homem moderno mesmo na particularidade de sua vida
individual, sem manejo da tradição e da religião, se vê
impulsionado, por sua essência e pela natureza de sua
experiência, a perguntar pela causa mais profunda em
tudo o que o afeta pessoalmente, excedendo os motivos
ocasionais imediatos. Esta necessidade obedece a duas
razões. Em primeiro lugar, nas lidas e cuidados de sua
existência, nos impulsos obscuros que o importunam, nas
ameaças da Natureza e da cultura, no desejo insatisfeito
de bens materiais e espirituais, o homem encontra uma
realidade que se lhe impõe com sua potência concreta como o ser inconcebível das coisas em seu ser-assim e não
ser de outra maneira. Porém esta realidade – como ensina
a experiência – não precisa de conexão e sentido, ainda
que ambos sejam mais suspeitados que concebidos. Precisamente a relação que na experiência mesma se mos-
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 101-113, jan-abr, 2018
Textos Clássicos
F. J. J. Buytendijk (1948)
Textos Clássicos
F. J. J. Buytendijk
tra com fundamentos alijados, com potências invisíveis,
torna em nós e em nosso entorno a realidade angustiante. Esta angústia suscita uma pergunta, por mais que se
evite a sua formulação. Ainda na vida cotidiana, a ideia
de um cosmos espacial e temporalmente incomensurável, bem como de uma humanidade originada por uma
evolução natural – ideias que parecem tão familiares ao
homem moderno – se misturam com um elemento sentimental que se decanta na consciência quase sempre na
forma de destino ou azar.
Em segundo lugar, aquilo que afeta o homem impede
sua atividade, restringe sua liberdade e se opõe ao sucesso de seus desejos e à satisfação de seus instintos é, em
grande parte, produzido por uma ação de outros ou dele
mesmo. Também neste caso, surge uma pergunta sobre
as causas profundas, extremamente necessária quando se
reconheceu a verdade de que a liberdade e a razão são do
caráter da natureza humana. Não apenas o sentido da história, mas também o da justiça e da injustiça, da culpa, da
irreflexão e da apatia se tornam questionáveis e obrigam
um olhar para as experiências concretas em relações de
sentido mais remotas.
Por pequena que possa ser em geral a tendência e a
capacidade de refletir por si mesmo, nenhum homem –
cultura e sorte não importam – pode subtrair-se a tensão
entre a ideia assustadora de um fatum e a suspeita de um
sentido da história da própria pessoa e da comunidade a
qual pertence. Assim, portanto, ninguém que tenha um
vislumbre da concepção da vida e do mundo, pode, por
esta razão, negligenciar o problema do sofrimento. E ainda, cabe à arte do viver do ceticismo moderno, no que diz
respeito a toda problematização filosófica e religiosa, limitar-se ao prático e ao que é próximo mediato e ater-se na
atividade cotidiana às vinculações afetivas imediatas. No
entanto, devido à força escura da angústia e ao empobrecimento espiritual este ceticismo se degenera em uma cegueira para o profundo que se revela a nós continuamente
na imediatez evidente das coisas, dos estados de ânimo,
das paixões. Deste modo o homem perde como pessoa o
sentido que atesta na tranquila natureza e na movimentada cultura sua origem comum e cai em um isolamento
que só pode ser superado por uma atividade incessante
e pela perseguição da felicidade sensível.
Uma falsificação e romantização da história tentaram
nos fazer crer que as gerações anteriores se ocupavam menos de negócios e meditavam mais profundamente, sentiam com mais delicadeza e duvidavam menos. Contudo,
nunca existiu outra época na qual um instrumento mais
eficaz de educação e de esclarecimento público inibira a
reflexão em tal grau que mesmo o mal e o sofrimento são
nada mais que constatados e registrados. O conhecimento positivo é hoje muito maior que nunca. Sua estimativa resulta da diferenciação de uma cultura que devido à
necessidade de superar o afastamento espacial e temporal cada vez maior, desenvolve uma técnica que já não
se detém diante de nada. Obrigado pela sua natureza a
meditar sobre o sentido do sofrimento, porém, não obstante inclinado em virtude da peculiaridade da cultura
técnica ao ceticismo e ao interesse prático, o homem moderno, em geral, meditará sobre o problema da dor física
tão pouco ou tão evasivamente assim como sobre todos
os demais fenômenos ou manifestações fundamentais de
sua existência.
Porém algo persiste sem mudança: a realidade do sofrimento e de todos os males neste mundo, como Bossuet
já havia indicado. Portanto, deve-se esperar também que o
doloroso da dor, a amargura pulsante de todas as formas
de sofrimento serão, todavia, sentidos exatamente como
antes, e que a extensão e a profundidade da compaixão
sejam também tão grandes como nos séculos passados.
Porém, se unicamente tem o caráter de realidade aquilo
que se impõe a nós como um feito tido como irredutível,
e se “os males deste mundo” já não são vividos como
uma potência que se manifesta no ser do homem, então
já não são nem mesmo para a consciência “mais reais que
os bens”. Daqui se segue uma mudança na esfera afetiva que podemos compreender plenamente apenas quando se entende e se penetra a conexão da sensação da dor
com a atitude pessoal frente a ela. Inicialmente digamos
que a dor como assunto puramente individual, sem nenhuma conexão com uma realidade metafísica, sente-se
mais vivamente que qualquer outro estímulo e também
provoca raiva e desespero, porém lhe falta o pathos que
surge apenas com a consciência de nossa vinculação ao
próximo e finalmente a toda a espécie humana, cuja esmagadora carga de dores recai em uma pequena parte
também sobre nossos ombros.
O homem moderno considera a dor exclusivamente
como um incômodo que como todo estado desagradável
tem que ser combatida. Acredita-se que o combate contra a dor não exige nenhuma reflexão sobre o fenômeno mesmo. Mas em relação ao sofrimento psíquico essa
reflexão é assaz necessária. Este sofrimento provém tão
notoriamente das relações humanas, direito e costumes,
ódio e amor, circunstâncias sociais, educação, comunidade familiar e laboral, que obriga à meditação, e isso por
sua vez contribui a aliviar a (pena) e a conciliar-se com o
irremediável. Mesmo o sofrimento na enfermidade e na
morte aparecem hoje, todavia à luz de uma ideia: a fragilidade de todo o humano.
A dor, o irritante por excelência, provoca a pergunta:
O que precisa ser feito? A medicina é a instância competente para encontrar os meios de lutar contra a dor.
Esta finalidade foi alcançada por ela em grande medida e por esta razão ela tem contribuído para uma mudança na atitude frente à dor. O medo da enfermidade
e inclusive da morte é, em grande parte, medo do sofrimento. No entanto, a ausência de dor em um tratamento
cirúrgico moderno, a possibilidade de um auxílio médico rápido em um acidente, não afasta, como se poderia
supor, a angústia ante a ameaça da dor, nem aumenta a
alegria da vida.
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 101-113, jan-abr, 2018
102
Quem chegou em um país onde não existe absolutamente nenhum auxílio médico sabe que a resignação ao
destino, o encorajamento e a confiança dão mais satisfação interior que a possibilidade de chamar ao médico
a qualquer hora do dia. Tal possibilidade, certamente,
responde a uma necessidade, porém provoca uma nova
angústia e principalmente raiva, quando todo o aparato
que se tornou a medicina (e tudo que está relacionado a
ela) não funciona sem atrito. O homem moderno se irrita com muitas coisas que antes admitia serenamente. Se
indigna com a velhice, com a doença prolongada, com a
morte, mas prontamente com a dor. A dor não deve existir. A sociedade moderna exige em qualquer lugar e para
todo o mundo a aplicação de todos os meios disponíveis
para combater e evitar a dor: na oficina, em alto mar, na
cidade e no campo. Exige da ciência médica, com seus
progressos em diagnóstico e terapia, uma prevenção e
supressão sempre maior da dor. Todo médico, dentista,
cirurgião, ginecologista o sabe muito bem em sua experiência cotidiana. Originou-se uma “algofobia” que em seu
excesso se tornou inclusive uma praga e tem como consequência uma pusilanimidade que acaba imprimindo seu
selo em toda a vida.
Ao impulso do pensamento e do tratamento médicos contribui a simpatia compassiva aos sofrimentos dos
homens, porém esse generoso motivo mantém sua força
unicamente na medida em que reaviva constantemente
a clara intelecção da essência do homem e do sentido do
seu sofrimento. Se a medicina perde a conexão com ela,
converte-se em mera técnica, que obedece à sua própria
lei. Quando se torna autônomo, o combate contra a dor
não está mais a serviço da humanidade e dos valores morais em sua ordem hierárquica. Aspira e consegue, obediente à vontade cultural do mundo moderno, aproximar-se de uma forma burguesa de vida, que evitando absolutamente todos os estímulos e influxos perturbadores,
quer se assegurar da conservação de um bem-estar físico
agradável. Esta tendência obedece à vontade de uma luta
radical contra a dor.
É sempre discutível pronunciar um juízo de valor sobre uma forma de vida. Diante da concepção frequentemente defendida de que a atitude prática, estreita, limitada do “bourgeois” relacionada a todas as coisas da vida
significa empobrecimento interior, redução da atividade
e reatividade espirituais e, portanto, um interesse excessivo pelas coisas terrenas e imediatas, está a opinião de
que, precisamente, o refúgio em uma existência modesta, protegida, fundada materialmente, assegura a elevação
a uma ordem de validade geral e, por tanto, fortemente
moral. Em todo caso, a atitude “burguesa” diante da dor
tem eliminado o verdadeiro problema da dor, a pergunta
sobre a essência e o sentido do sofrimento físico, e como
consequência tem embotado o conhecimento da relação
sutil de enfermidade, dor e vida pessoal na imagem do
destino do homem. Na imagem que o “burguês” tem de
si mesmo, falta o traço doloroso da vulnerabilidade. Ele
103
sabe muito bem que pode sentir dores, porém lhe falta a
consciência de estar sempre à mercê da possibilidade do
sofrimento físico. Com isso, o “bourgeois” perde uma característica do ser do homem.
Por maior e mais justificada que seja a fama da qual,
com todo direito, goza a medicina devido ao seu crescente poder sobre a dor física, por mais orgulhosa que possa
estar de seus progressos que poupam a dor a inumeráveis
seres humanos, devolvem bem-estar subjetivo, aumentam
a capacidade de trabalho, tornam suportável o leito de dor,
aliviam as agonias dolorosas; no entanto, apesar de tudo
isso, estas enormes possibilidades da medicina têm retirado da esfera metafisica e moral e, com isso, também da
religiosa, o problema da dor, a pergunta sobre seu sentido
levantada pela inteligência e pelo coração, transferindo-a
à esfera prática. Quem sente hoje uma dor intensa e duradoura a atribui à imperfeição técnica, à imprevisão, à
negligência ou ao atraso do auxílio médico.
Em todo caso, a exigência de uma luta radical contra a
dor também está moralmente permitida pela consciência
religiosa moderna. Pois o homem tem conquistado legitimamente seu poder sobre a Natureza. Até o homem religioso do nosso tempo considera os meios empregados para combater a enfermidade e a dor como uma dádiva, que
pertence a mesma ordem que todo bem-estar com o qual
a cultura nos presenteia e que, por conseguinte não tem
que ser em absoluto nocivo para a alma. Mesmo quando o
homem religioso sabe que a dor possui um valor que excede o educativo, fortalece o caráter, engrandece e induz
ao arrependimento e à purificação, este conhecimento se
concilia muito bem com o desejo de prevenir e combater
a dor. Mesmo para uma concepção cristã do mundo e da
vida, apoiada em sua grande tradição dos séculos passados, o conhecimento da significação extraordinária que a
dor possui para dar seu pleno sentido à existência humana não contradiz em nada a confiança incondicional na
medicina e na higiene e em sua amplíssima técnica para
prevenir e suprimir a dor. Precisamente o pensamento e
o sentimento cristãos respeitam a inclinação natural do
homem a subtrair-se de toda dor, veem na alegria e na paz
a verdadeira esfera sobre a terra, reconhecem, conforme
a sagrada tradição, o martírio como autêntica vontade
de Deus tão somente quando é inevitavelmente necessário. Este conhecimento maduro e profundo protege a vida cristã em toda a técnica moderna e todo pragmatismo
diante da insensibilidade no que diz respeito ao problema
da dor, por mais que apenas raramente se tenha buscado
uma solução conceitual3.
Muitos doentes demonstram, sem muitas palavras,
que para eles surgiu a verdadeira resposta à verdadeira pergunta, porque para eles o sentido da dor se realiza
3
Leriche discute brilhantemente o ponto de vista da luta contra a dor:
“É preciso abandonar a falsa ideia da dor benfeitora. A dor é sempre
um presente sinistro que diminui ao homem, o faz pior do que seria
sem ela e o dever estrito do médico é esforçar-se em suprimi-la, caso
seja possível”, A cirurgia da dor. 2. ed. Masson, Paris, 1940.
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 101-113, jan-abr, 2018
Textos Clássicos
A Problemática da Dor Psicologia – Fenomenologia – Metafísica
Textos Clássicos
F. J. J. Buytendijk
existencialmente em uma serena, clara resignação e uma
positiva comunhão com Cristo, “o homem da dor”. Então
o coração começa a compreender a alegria dos santos no
sofrimento, tão distinta do espirito da “sociedade moderna”. Então o homem penetra em um mundo esquecido, no
qual o chamado para o combate à dor não apaga o chamado no grito de dor. Quando um poeta da nossa época, Francis Jammes, escreveu: “Tenho apenas a minha dor e não
quero nada além dela que me foi e me segue sendo fiel”.4
Estas palavras podem ser apresentadas à consciência
moderna como uma inconcebível “algofilia”; na realidade,
nelas ressoa um testemunho como o de H. Bernhard, que
à frase do Salmo “Eu estou com ele na dor”, acrescenta:
“Senhor, presenteia-me perpetuamente com sofrimento
para que Tu estejas sempre comigo”.5 Perguntar significa
parar e olhar, liberta da atividade e da vinculação sensível
aos fenômenos em sua mudança fugaz. A pergunta cria o
silêncio da surpresa, a amplitude de um novo espaço e de
uma nova perspectiva. Porém desde Sócrates sabemos que
esta misteriosa força da pergunta reside em sua forma e
depende do momento em que aparece. Assim ocorre também com o problema da dor. Contra toda atitude prática e
pragmática, contra todo positivismo e racionalismo, toda
atividade técnica e toda deficiência de consciência religiosa, também na sociedade moderna pode ser inevitável
meditar sobre a significação e a essência da dor.
Porém o difícil é colocar a pergunta devidamente e quando falta a resposta à contra pergunta, perde-se toda visão e
toda a surpresa se volatiza. Assim o demonstra, por exemplo, um experimento feito em 1934 com alunos do último
curso do bacharelado pelo Ministério da Educação de Sajonia durante uma seleção para os estudos universitários.6
A pergunta, precisa e bem pensada, que deveria ser
respondida por escrito, dizia: “Suponham que fosse encontrado um meio pelo qual todos os homens que o usaram se tornaram livres de toda sensação dolorosa para o
resto da vida. Quais seriam as consequências desse descobrimento?”. Certo número de alunos recebeu esta invenção com entusiasmo. Muitos dos motivos alegados eram
muito singulares, por exemplo: “Os médicos teriam menos trabalho”, ou “sobrariam médicos depois disso”; “não
seria necessário tratar mais que as fraturas; os hospitais
ficariam vazios”. Incluindo: “O estômago não doeria por
comer muito nem doeria a cabeça por pensar muito; resumindo, seria uma invenção maravilhosa”.
Em algumas respostas se notava um certo conhecimento da relação entre a dor e a vida pessoal, por exemplo:
“Os homens seriam ainda piores do que já são; poderiam
gozar de tudo sem sofrer nenhuma consequência desagradável. A saúde da alma lhes seria indiferente. Chegar-se-ia em todo caso a uma grande unilateralidade e uniformidade e por esta razão a uma insensibilidade humana”.
O resultado dessa enquete não necessita explicação,
fala por si mesmo. Das respostas resulta que na consciência dos jovens pode-se despertar uma confusa noção
de uma certa finalidade e significação corretiva da dor.
Apenas a última resposta permite supor uma leve suspeita da conexão entre a dor e o sentido da vida humana.
A superficialidade e a formulação primitiva das respostas não são de se estranhar. Certamente não depende
apenas da idade dos interrogados. Pode-se supor que em
uma investigação entre acadêmicos não seriam tão distintas. O ensino, sobrecarregado com conhecimentos de
fatos, a formação científica com sua especialização, não
deixam margem para a cultura filosófica. A consequência
é que os problemas antropológicos estão fora do campo
de visão da maioria dos homens cultos. Se esta estreiteza visual se une ao fato de que para a sociedade moderna o problema da dor coincide quase por completo com
a questão da luta contra a dor, a consequência é o aspecto doloroso da experiência da dor permanecer intocável.
É exatamente isso que queremos investigar.
2. a problemática nas experiências pessoais da dor
“O sofrimento passa, porém o ter sofrido não passa
jamais”7 (Leon Bloy)8
Às vezes se conserva ainda na vida pessoal, algo que
para a generalidade se perdeu como força independente e eficaz, como monopólio claramente delimitado pela cultura. O fato de que a sociedade do nosso tempo já
não tenha “órgão” para a essência e para o sentido da dor
chegou até nós claramente do passado. Uma das causas
é a decadência da vida religiosa e, aliado a ela, o resfriamento do interesse de extensos setores pela filosofia. Como vimos, a substituição da reflexão criadora pelo ceticismo demolidor está intimamente ligada à atenção ao
técnico e ao prático.
Não obstante, a linguagem conserva algo da relação
original entre o fenômeno da dor e seu aspecto metafísico. A palavra alemã “Pein” (pain em inglês, pena em espanhol) provém do termo latino “poena”, e significou originalmente “castigo”9; “le mal”, em francês, é “malum”,
ou “malo”, e ambos os conceitos estão contidos em um
aspecto da concepção cristã da vida, enquanto esta nos
ensina que ao “malum quod est culpa”, responde Deus
com o “malum quod est poena”10. Se o torrencial meio da
7
8
9
10
4
5
6
Je n´ai que ma douleur et jê ne veux plus que´elle elle m´a été et m´est
encore fidèle.
Véase, Mgr. Von Keppler, Lijdensschool, Leuven, 1927, página 135.
F. Sauerbruch y H. Wenke, Wesen und Bedeutung des Schmerzes, p.
114 (Junker und Dünnhaupt, Verlag, Berlín, 1936).
Souffrir passe, avoir souffert ne passe jamais.
León Bloy, Le Pélerin de l´Absolu
Pena em espanhol, Pein em alemão, Pain em inglês, derivam do latim
(pena) com a significação originária (cristã) de “castigo, condenação”.
“Ao mal – pecado (este malum quod est culpa, de que fala São Tomás
de Aquino, esse mal criado pelo homem e que fere a Deus), Deus responde com o mal – dor (este malum quod est poena, que faz mal ao
homem)”, Charles Grolleau, Quelques propositions sur la douleur,
Etudes carmélitaines, 1936, vol. II, outubro, Desclée de Brouwer,
Paris.
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 101-113, jan-abr, 2018
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linguagem pode captar um reflexo de viva compreensão
para a conexão entre a dor física e o ser humano, isso indica que a problemática da dor não é um fruto tardio do
conhecimento natural mais minucioso, nem de diferenciações sutis de uma filosofia muito desenvolvida. Por
isso há boas razões para se supor que o fenômeno vivido
da dor mobiliza o homem a meditar tão necessariamente
com o fato da morte. Esta suposição deve ser comprovada mais detalhadamente. Para isso começamos com uma
investigação comparativa acerca dos sentimentos.
Os sentimentos de prazer são vividos como isentos
de problemas. Diferentes em intensidade, nível, volume
e efeitos, estão em uma vinculação mais solta ou mais íntima com impressões sensíveis, representações, juízos, recordações e esperanças. Costuma-se dividir os sentimentos em dois grupos: os sentimentos vitais e os espirituais,
sem desconhecer por isso sua conexão mútua. Os critérios
acerca de como se realiza esta conexão diferem muito uns
dos outros; no entanto, na maioria dos casos se vê a causa
nas reações vegetativas e no sistema nervoso simpático.
Em virtude de modificações do fluxo sanguíneo e da distribuição do sangue, da respiração e da atividade dos órgãos digestivos, se alteram os sentimentos. Estas funções
alteradas repercutem no estado emocional. Desta forma é
possível produzir em meio às reações corporais uma conexão entre os sentimentos vitais e espirituais de prazer.
No entanto, independentemente desses processos corporais, os diferentes sentimentos se encontram relacionados pelo modo que são vividos, por uma forma de viver, a qual vincula as emoções da mesma maneira que se
relacionam as propriedades intermodais das impressões
sensíveis. Da mesma maneira que estão relacionadas a luz
clara e o som claro, o odor sufocante e a música pesada,
uma superfície lisa e uma bebida fria, também se percebe uma propriedade Inter emocional na qualidade da vivência de todos os sentimentos de prazer.
Com conceitos tais como prazer, tensão, atividade,
alegria radiante, calor, plenitude, etc., tentamos expressar este traço comum. Na realidade, todas estas palavras
aludem ao caráter dinâmico que tem em conjunto uma
multiplicidade de seus sentimentos muito heterogêneos e que todos experimentamos quando nos alegramos e
nos sentimos felizes, excitados vital ou espiritualmente.
Nesta vivência se evidencia um aumento de intensidade,
uma renovada ou acentuada corrente de “vida” no nosso interior, um calor interno, uma libertação do frio e do
embotamento, e este sentimento nos penetra e domina.
Na vivência de todos os sentimentos de prazer encontramos o aumento positivo de intensidade do bem-estar e
a eliminação do desagradável, a libertação de um estado
anterior que inclusive aparece na vivência do prazer como seu negativo que, do mesmo modo que o fundo em
uma figura destaca nitidamente a forma, independente do sentimento de prazer. Basta lembrar um simples
exemplo: o primeiro passeio primaveril, a saída de uma
doença, o saciar da sede, assim se anuncia o que os dois
105
lados da vivência significam. Em todo prazer nos é dado
algo que preenche um vazio e isto vale para os prazeres
vitais baixos não menos que para os sentimentos puramente espirituais de felicidade, inclusive para a chamada
alegria sem motivos.
A plenitude de prazer ou de felicidade tem o caráter
de uma acentuação da unidade harmônica do sentimento da vida, de uma conexão entre corpo e alma, de esperança e de realidade, de dever ser e de ser. A princípio,
é o prazer de ter se livrado da contradição, dos conflitos,
das controvérsias, da tensão e das resistências que constituem a base de todo “problematismo”. Em todas as formas de bem-estar intenso, de prazer físico e espiritual, o
homem se esquece de si mesmo e de tudo ao seu redor
ao entrar em sua esfera de ilimitada plenitude vital, alegria e bem-aventurança. A separação de sujeito e objeto,
na qual se experiencia a contraposição ou objeção de algo
(“objetividade”), na qual este algo pode ser também um
conteúdo de consciência, é estranha ao prazer que não
se destaca do fundo do desprazer sofrido como algo que
se opõe a nós, mas, pelo contrário, infla, exalta, arrebata.
Assim, pois, o pressuposto para a reflexão, para a problemática, nem sequer existe na vivência do sentimento de prazer para que sua conexão com causas e efeitos,
com a situação, com o passado e o futuro, com a essência do homem e do absoluto possa se converter em objeto
de meditação. Na vivência mesma se volatizam todas as
perguntas, aparecem como fantasias disparatadas, como
tormentos desnecessários. A “pena”, que em toda questão ressoa como um não-saber que em seu tempo é, não
obstante, um possível poder saber, falta quando o homem
afunda diretamente na alegria.
O estado de felicidade, como uma vivência da felicidade em nosso interior, recusa todo problema. Inclusive
o aglomerado quase insensível dos múltiplos e pequenos
sentimentos vitais e espirituais de prazer que constituem
o estado “normal” de saúde e o cotidiano bem-estar, têm
vivencialmente – para falar com Scheler – o caráter de
“frivolidade metafísica”. Neles vive o homem seu bem-estar e depois luta com todas as suas forças. Quão rapidamente se esquece a dor e a enfermidade, uma vez que
tenhamos nos livrado delas! Leibniz11 já escreveu “Por
mais que a saúde seja o maior dos bens concernentes ao
corpo é, pois, a ela que dedicamos menos reflexão e o que
menos conhecemos”12.
Voltemos agora o olhar para os sentimentos de desprazer e consideremos primeiro, os sentimentos vitais, depois
o desprazer espiritual (a compaixão) e sua relação com a
dor e comprovemos em que medida estes estados emocionais impulsionam por si mesmos à pergunta, à meditação.
Uma variedade de sentimentos, cada qual de qualidade distinta, parece ser proveniente do interior do nosso
11
12
Leibniz, Lettres, t. I, carta 43.
Quoique la santé sit Le plus grand des biens qui concernent Le corps,
c´est pourtant celui auquel nous faisons Le moins de réflexion et que
nous connaissons le moins.
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Textos Clássicos
A Problemática da Dor Psicologia – Fenomenologia – Metafísica
Textos Clássicos
F. J. J. Buytendijk
corpo, suscitam inquietude e tensão e são experienciados
como perturbações desagradáveis. Assim são a fome, a sede, o cansaço, a opressão e o incômodo em todas as suas
nuances, etc., que como estados vitais desagradáveis se
diferenciam das impressões ingratas dos sentidos como a
luz que cega, as cores berrantes, as dissonâncias, as coisas asquerosas e outras semelhantes. Em contraposição às
impressões desagradáveis, os sentimentos vitais de desprazer dizem respeito ao próprio estado corporal e não a
um objeto exterior. Nos sentimos cansados, famintos, sedentos, enfermos. Diferente disso, a impressão irritante ou
repulsiva de um objeto ou uma situação é, para a vivência,
uma propriedade qualitativa dada do mundo exterior e
não possui em si e por si nenhuma tendência à reflexão.
Nos afastamos, fechamos os olhos, reagimos, porém não
refletimos. Além disso, a reação é o meio adequado para suprimir o sentimento desagradável. Se às vezes não
se consegue, então a causa não reside no sentimento de
desprazer em si ou em seu motivo direto, senão em fatores complicados. No entanto, os sentimentos vitais de
desprazer, os chamados “sentimentos comuns”, não são
eliminados, por uma reação direta, automática, mas é necessário responder a eles com uma ação deliberada: a fadiga exige repouso, a fome, alimentação, a sede, bebida.
Os estados vitais de desprazer têm o caráter de aspectos desagradáveis de vida e, em virtude desse caráter, são
estreitamente afinados à dor, que também muitas vezes
se atribui aos sentimentos vitais de desprazer. No entanto, existe uma diferença notável em dois aspectos. A dor
– falamos da dor “autêntica”, a crônica, a que tem que
ser suportada, não da dor fulminante, aguda do golpe, da
pontada ou da queimadura – não é apenas uma perturbação geral do modo em que nos encontramos, um estado
doloroso, mas – como veremos – é sempre um sentir-se
ferido, afetado em algum lugar. Tal localização falta nos
outros “sentimentos comuns”.
Em segundo lugar, existe uma diferença entre a resposta da inteligência e do sentimento. O desprazer puramente vital, tomado em si, incita à pergunta tão pouco
quanto a impressão sensível desagradável. O sentimento
dá testemunho tão claro de sua causa que impulsiona a
ações determinadas, por exemplo, a buscar alimento ou
a procurar descanso. Estas formas de atividade são, certamente, por seu sentido, inteligíveis como reações, porque
são suscitadas pelo sentir interno, porém se diferenciam,
contudo, das reações motoras aos estímulos desagradáveis que provêm do mundo exterior. Estas reações não
são apenas mais simples, mais diretas e não deliberadas,
são também menos determinadas por representações, esperanças e experiências. Assim, pois, esta diferença pode assinalar-se aproximadamente entre os conceitos de
“movimentos reflexos” e “ações instintivas”.
Em resumo, pode se dizer que os sentimentos vitais de
desprazer se aliviam constantemente por meio de atividades encaminhadas para suprimir o desprazer. As relações
entre o sentimento e o plano de ação, que relativamente à
sua execução está dado à consciência com todo sentido e,
portanto, isento de problemas. Estes sentimentos não nos
movem para a reflexão mais que os sentimentos de prazer.
Entre todas as classes de sofrimento espiritual e dor
física, existe uma diferença surpreendente. Não em vivacidade, profundidade ou repercussão, mas na atividade
interrogante que brota da emoção mesma. Como vivência, o sofrimento espiritual está entrelaçado com todo o
campo de representações e com as relações nas quais tem
sua fundamentação. Como dor espiritual, este sofrimento está fundido constantemente com todos os processos
psíquicos, sentimentos, volições e pensamentos. Suscita juízos que o reforçam ou o atenuam. A reflexão sobre
a conexão dos fenômenos que emanam direta ou indiretamente da situação de sofrimento não é certamente a
fonte, mas o canal por onde passa o sofrimento. O sofrimento espiritual está envolto em uma problemática própria. No entanto, não é, por sua vez, turvo e opaco, nem
problema, nem questão. Na medida em que nós mesmos
estamos presos na situação de sofrimento – e isso ocorre
sempre –, o estamos como pessoas. Da mesma forma que
a alegria, o sofrimento pode nos encher, nos inundar, nos
arrastar. A relação com a pensamento é em tal medida tão
análoga que em ambos os casos, tanto na alegria como
no sofrimento, a reflexão sobre a alegria ou o sofrimento exerce influência sobre a qualidade e a intensidade do
sentimento. Precisamente o sofrimento aciona muito sensivelmente a reflexão.
Em oposição aos sentimentos de felicidade que, como vimos, disparam um movimento expansivo interno,
um estar-fora-de-si da personalidade, um esquecer-se de
si mesmo, o sofrimento em as suas formas leva o homem
a ensimesmar-se, a fechar-se em si, exilando-se de tudo
o que não tem de uma maneira ou de outra alguma relação com a sua pena. Esta limitação do círculo visual,
este voltar-se constantemente a si mesmo, não acontece exclusivamente na esfera emocional, mas também no
pensamento. O sofrimento espiritual tem indubitavelmente uma dimensão interrogativa, porém a forma desta
atitude interrogativa é diferente na vivência da dor física.
A diferença reside, em parte, na relativa transparência do
sofrimento espiritual, e de outra parte, na circunstância
de que a dor física – em contraste com a dor pessoal – é
primariamente a vivência de um conflito que em si mesmo não tem sentido, que ocorre na própria existência.
Com isso nos referimos exclusivamente à dor física de
alguma duração, não à dor momentânea que – por mais
viva que seja – é esquecida muito rapidamente como vivencia e em sua expressão.
A dor crônica não impulsiona menos à reflexão que o
sofrimento espiritual, porém na dor já há algo pelo qual a
vivência se dá sem explicar para a inteligência corrente,
porque na experiência não se pode encontrar nenhum fundamento suficiente para isso. É concebível o fato de que
se sofra pela perda de uma pessoa querida, por um erro
cometido, por um amor não correspondido, por um dever
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 101-113, jan-abr, 2018
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não cumprido. O sentimento é, por sua vez, tão pouco irracional que nos parece incompreensível que alguém em
situação análoga não sofra. Apesar de toda a vivacidade
do sofrimento, que dá voltas sem cessar ao pensamento,
conforma-se com ele porque compreende-se que ele pertence às circunstâncias.
Porém, quem sofre de dor física pergunta de maneira
completamente diferente. É possível que conheça exatamente o motivo da dor – ferida, doença, inflamação –, e
um motivo é algo muito diferente de um fenômeno sem
sentido, de um incômodo sem sentido. No entanto, o afetado pergunta porque esta ferida, este órgão, esta parte
do corpo tem que doer tão vivamente e por tanto tempo.
Por que justamente comigo, por que precisamente agora
e precisamente aqui? Por que este estado de entrega, esta impotência, esta anulação de toda liberdade, inclusive
de pensar, sentir e querer, por que este desconserto? As
perguntas suscitadas pela dor têm o caráter de protesto.
A dor, como tal, é duplamente dolorosa porque é, ao
mesmo tempo, um enigma atormentador. Não apenas a
própria dor, mas também a dor dos demais, inclusive a
dos animais, nos coloca, em virtude da compaixão, uma
pergunta que brota do mesmo sentimento e depois se expressa em fórmulas mais ou menos racionais, sem que
por isso representem a resposta da inteligência ao sentimento. Quem compassivamente se representa a dor anônima de toda a humanidade, quem sabe escutar o grito
de dor de toda a criação pedindo sua redenção, percebe
neste “cri de couer”13, o caráter inevitável da problemática
no fenômeno da dor, comparável apenas à pergunta pelo sentido da doença, da morte, do mal e do pecado. Em
todos estes fenômenos sentimos a obscura desarmonia,
seu conflito com a conexão de sentido que é imanente à
toda vida. No entanto, apenas na dor experimentamos a
divisão das unidades orgânicas mais naturais: a divisão
da unidade entre nosso ser pessoal e nosso ser corporal.
Nada que venha de outras pessoas, nada estranho,
nenhum sucesso, palavra ou pensamento, nem sequer a
doença ou a morte, manifestam tão evidentemente seu
poder, apenas o nosso próprio corpo nos dói. Minha mão,
minha cabeça, doem a mim. Órgãos tais como o coração,
os rins, o estômago, que funcionam para mim sem que
me dê conta, negam-se a me servir, rebelam-se, doem e
me privam de meu domínio sobre mim mesmo. “Este impotente estado de entrega do ser vivo na dor, motiva nos
homens seu efeito reflexivo, a saber, a divisão do eu e do
corpo. Até no animal que se entrega indefeso à dor, esta
desavença entre o corpo e aquele que suporta o corpo,
tem uma representação elementar incipiente. Quando a
criatura sem um eu se retorce presa pela dor e estoura em
gritos frenéticos, parece nestes gritos querer evadir-se de
seu corpo doloroso, no qual o retorcer-se representa uma
reação difusa de fuga do ponto central persistente e fixo
da dor. Até a criatura sem eu tende, na dor, a fugir de seu
corpo, apenas sua submersão cega nele não lhe permite
se distanciar dele14.
Grito, queixa, lamento, as manifestações naturais da
dor, revelam com que intensidade se experimenta a desarmonia na dor, a impotência contra a ruptura entre o
eu e sua existência corporal. Felicidade e sofrimento nos
preenchem, no entanto, o sentimento de dor nos entrega
a um completo absurdo. Ante o tribunal da inteligência,
este absurdo elementar de toda dor, não apenas impulsiona ao protesto, mas, além disso, à pergunta positiva por
uma causa situada além de toda experiência.
Não é estranho que a experiência da dor, da qual nenhum homem se salva, nos liberte da frivolidade metafísica e nos obrigue a perguntar pelo sentido e pela essência deste “malum”. Sem dúvida, esta inquietação pode
se tornar inadvertida e inexpressiva na obscuridade de
todo sofrimento, porém assim como o cego percebe a silenciosa aproximação de alguém, naquele que sofre surge
a pergunta indeterminada juntamente com o angustioso
desamparo de toda realidade visível e palpável, que constitui a dor em toda sua obscuridade. O problema da dor
no âmbito das vivências pessoais se converte na pergunta
pela possibilidade da origem da dor na e pela unidade harmônica da vida. Enquanto experimentamos nossa própria
existência empírica e toda vida como exteriorização do
movimento próprio, da conservação própria e da própria
realização, a dor nos ensina até que ponto somos escravos, perecedores, impotentes, até que ponto a vida abriga
dentro dela a possibilidade de ser inimiga de si mesma.
A dor é também sombra e aviso da morte. Nos limites da experiência aparece a morte como o fim absurdo,
o qual não se pode pensar em consonância com a vida.
O único que se afirma é o limite exterior que também se
impõe à existência empírica individual e se deriva categoricamente da ideia da limitação de tudo o que existe,
porém, a dor é um limite da vida pessoal interior que não
mente em sua limitação exterior, mas se enlaça com a verdadeira interioridade do acontecer orgânico. A dor é o mal
mais real e, em consonância, o mal inevitável e incontornável que a vida encontra desde dentro, que a dificulta e a
ameaça. Todo homem, inclusive a criança e o santo, está
à sua mercê. Portanto, o problema da dor, assim como o
da morte, é uma questão de nossa vida pessoal, que apenas em nossa vida pessoal pode encontrar sua resposta.
Nós não morremos mais que uma vez, e a morte pode
nos acontecer repentinamente. Diferente disso, a dor se
sofre mais frequentemente, e exclusivamente com plena
consciência. É certo que “A dor passa, porém, ter sofrido
não passa jamais”15. Quem sofreu os horrores da dor muda para sempre. A dor mesma passa, dela se esquece rapidamente, e talvez sua sensação não seja mais lembrada.
Porém, o que é, então, essa cicatriz interna que o homem
leva consigo, como o signo oculto de uma ferida curada?
13
15
Nota das tradutoras: “grito do coração”
107
14
V. E., v. Gebsattel, Süchtiges Verhalten im Gebiet sexueller Verirrungen, Monatsschr. f. Psychiatr. U. Neurol., tomo 82, 1932, p. 127.
la doleur passe, avoir souffert ne passe jamais.
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Textos Clássicos
A Problemática da Dor Psicologia – Fenomenologia – Metafísica
F. J. J. Buytendijk
Qual é a causa de sua conduta distinta, de sua nova maneira de julgar, de sua nova atitude no que diz respeito
às coisas, aos demais homens e a si mesmo?
Apenas a irrecuperável perda da frivolidade metafísica explica porque o sofrimento experimentado não passa
jamais. Ainda que se entendam as palavras de Leon Bloy
como uma amarga lamentação, como alusão à solidão e
à persistência, como um requerimento à circunspecção
nas manifestações da inteligência e do coração, esta concepção se destacaria sobre o fundo da expulsão do paraíso da inocência não objetivável e da firmeza da frivolidade metafísica.
A problemática da dor se esgota para a sociedade de
nossa época no combate contra a dor, e para a vida pessoal se coloca, sem dúvida alguma, imediatamente a mesma
pergunta nascida da ingenuidade da vida. Porém, se a dor
continua, então começa uma segunda fase, o silêncio, o
gemido mudo, o grito inarticulado que não pede combate, senão salvação. Este grito saído da ingenuidade da vida natural já é a reação metafísica a um sentir-se afetado
aparentemente desprovido de sentido, que não pode, no
entanto, ser absurdo, porque a vida testemunha a significação de toda experiência.
No claro âmbito da irreflexão em que se vive uma
existência isenta de dor, a consciência está cheia de impressões sensíveis e das figuras com as quais tece o espírito. Porém, na obscuridade de sua dor, o homem está
sozinho em sua fragilidade interior, desconforme com seu
corpo dolorido, descobre uma nova realidade: o que existe. Esta descoberta é inesquecível: “ter sofrido não passa
jamais16”. A problemática pessoal contém uma questão
filosófico-antropológica, uma questão ontológica. Por
esta razão nenhum sistema filosófico pôde deixar de lado, sem refleti-lo expressamente, o problema da dor, e
não há religião que não tenha ensinado ao homem qual
é o sentido do sofrimento, porque e como se deve sofrer
como pessoa.
3. O problema da dor na ciência
Textos Clássicos
“A dor é um mistério sem outro análogo no mundo
da vida” (Pradines)17
Entre o saber e a vida existe uma contraposição, inclusive desarmonia e tensão, que afetam dolorosamente
o homem quando na urgência de sua pergunta pelo sentido e pela essência de suas vivências pede uma resposta
à ciência. O que a vida pergunta à ciência não pode ser
respondido quase nunca. Isto é decepcionante e inclusive
irritante quando se desconhece a índole e o valor da reflexão disciplinada, da investigação metódica em benefício
do conhecimento puro das leis do acontecer.
16
17
Avoir souffert ne passe jamais.
La douleur est um mystère sans analogue dans le monde de la vie.
A atitude científica ante os fenômenos é diferente da
conduta no trato com eles. Ambos os casos têm em comum, no entanto, o assombro ante o que acontece, a convicção de que há uma realidade por trás de toda aparência
e uma conexão necessária e indestrutível no espaço e no
tempo. O homem anseia apaixonadamente por uma resposta instantânea e decisiva que dirija suas ações e missões, e lhe permita ver claramente seu lugar e seu futuro
no meio de toda insegurança e obscuridade, nascida da
incoerente experiência.
Da ciência da natureza viva e da psicologia com ela
enlaçada intimamente esperamos, sobretudo, um conhecimento da verdadeira índole e da autêntica significação
dos fenômenos dados com a vida individual, sua evolução, suas ações e reações. A decepção pelo silêncio das
ciências biológicas sobre as coisas que o homem atual
considera importantes é uma das primeiras experiências
do ensino universitário, sobretudo no estudante de medicina, que quer abordar e resolver os problemas em meio
a plena vida, para ter uma base mais segura de seus tratamentos terapêuticos. Porém, no que diz respeito ao sonho e à fadiga, ao movimento e ao repouso, à puberdade
e à velhice, ao sentimento e à inteligência, ao instinto e
à vontade, a ciência não trata do que são realmente em
seu estado normal e são, e do que significam para a existência do homem.
Inclusive a psicologia se silencia totalmente sobre estas questões quando se consulta os manuais atuais, porque
o positivismo também domina esta ciência. E, por mais
que tenham sido muitos os experimentos e os dados estatísticos reunidos, é completamente ausente a tentativa
de fundamentar a vida sentimental em sua expressão pela linguagem e pelos gestos, seu enlace com os juízos de
valor, com a consciência moral, a conduta, assim como
as normas da inteligência e da razão. A pressuposição
de que todos estes problemas são demasiadamente complicados para uma solução, e não permitem tratamento
metódico nem investigação analítica, é tão equivocado
quanto o critério de que a ciência oferece fundamentos
e conhecimentos muito positivos dos processos elementares, com cujo auxílio se pode explicar toda a realidade
da vida humana.
Constantemente se ouve falar de uma impotência essencial, constitutiva, da ciência da vida, que em sua vinculação e orientação para a ciência da natureza inanimada, se vê com uma barreira metódica intransponível.
A consequência é que muitos se esforçam para resolver
os problemas da vida humana, omitindo o trabalho exato de investigação utilizado para obter resultados válidos
objetivamente. Sobretudo, se confiava no que o tratamento literário e poético da vida sentimental poderia chegar
a descobrir exemplarmente e expressar simpaticamente
o vivido em uma forma de compreensão que está proibida à ciência.
Tudo isso originou em nossos dias uma controvérsia
sobre os limites da investigação das ciências naturais, as-
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 101-113, jan-abr, 2018
108
sim como sobre os métodos e o objeto da psicologia, que
corre o risco de degenerar em uma discussão estéril sobre puras diferenças formais. Porém, independentemente
de tudo isso, no andamento da investigação mesma, são
excedidos muitos limites e abandonados princípios metódicos anteriores.
Agora são descobertos e pisam na ciência territórios
que já não pertencem por direito a uma especialidade,
nem mesmo a uma Faculdade universitária; com isto vemos abrirem-se novas perspectivas na ciência da vida
humana e a possibilidade de um conhecimento mais rico e mais valioso.
No entanto, subsiste um princípio: a intelecção da estrutura essencial das coisas e as relações plenas de sentido que há entre elas, exige uma experiência adquirida
com tal distanciamento que são eliminadas as aderências
sentimentais, juntamente som sua ótica falsa, e se consegue a liberdade do interesse desinteressado, que tem sido
e sempre será a vis motrix da ciência pura.
Esta exigência de distanciamento rege também o estudo da natureza viva, inclusive quando se trata de fenômenos que apenas tomam seu verdadeiro selo e caráter na
existência humana ou na intimidade da vida pessoal. Por
mais que o sentir, o co-sentir e o pós-sentir proporcionem
experiências de outro modo inacessíveis, a intelecção do
significado destas experiências em sua verdadeira natureza só o consegue uma ciência muito extensa das condições e causas, conexões e consequências.
É certo que o homem que nunca experimentou a dor
tampouco tem a possibilidade de meditar sobre ela, porém, a vivência ajuda tão pouco como a introspecção da
vivência para que se conheça a função da dor na vida
animal e na vida humana. Para isso, é necessário o conhecimento minucioso de todas as esferas da fisiologia e
da psicologia a qual pertence a dor como acontecimento
objetivo e como sentimento subjetivo, o que quer dizer:
intelecção da relação do ser físico e o ser consciente, do
indivíduo e o meio, da pessoa e o mundo, da saúde e da
doença, incluindo-se alguns fatos e teorias sobre a hierarquia dos organismos, o lugar do homem na natureza,
a significação das sensações e dos sentidos e o lugar que
ocupam os movimentos de expressão na totalidade da
atividade humana e animal.
O problema da dor representa uma questão biológica-psicológica típica, porém esta questão não pode ser levantada mais, quando a psicologia, conservando seu exato
método analítico e experimental, se liberta da coação dos
esquemas mecânicos de explicação; sabe utilizar a riqueza da análise fenomenológica e, de sua parte, a zoologia
se desprende dos prejuízos darwinistas, para recuperar a
possibilidade de referir o comportamento dos animais, os
fenômenos de expressão e a função dos órgãos dos sentidos à ideia do ser animal.
É de um interesse fundamental também a circunstância de que a diferenciação entre processos corporais
e processos de consciência não conduza à sua completa
109
separação e contraposição. Durante muito tempo se tentou, sob a influência do pensamento cartesiano e da autonomia da fisiologia, que estava orientada, ademais, para a físico-química, estabelecer uma separação metódica
e prática entre a teoria das funções psíquicas vitais e a
teoria dos fenômenos psíquicos. Em conformidade a este critério, se considerava perfeita a investigação fisiológica dos sentidos quando fornecia uma visão minuciosa,
detalhada, da origem e do curso das excitações nervosas,
por mais que, pelo contrário, a verdadeira questão, o conhecimento da função, só se consegue caso se conheça
sistemática e geneticamente as formas de relação entre o
organismo e o meio, que se desenvolvem nas percepções,
nas atitudes, na ação e nas expressões.
Apenas mediante tal aprofundamento e ampliação
das ciências dos objetos vivos pode ser levantada e respondida em parte a pergunta pela índole essencial e significação da dor.
Acreditou-se equivocadamente que a ciência, como
conhecimento positivo e ordenado pelas leis causais,
devia estar vinculada a uma filosofia autônoma da natureza que aspire compreender o sentido do que existe.
A situação metódica é distinta. Todas as ciências biológicas têm como objeto os organismos vivos, que nos são
dados como figuras relativamente independentes que, em
sua maneira de ser, tal como são, podem ser definidos e
determinados temporal e espacialmente. A forma do corpo
e do processo funcional são referidos a este ser-aí e esta
relação está, por sua vez, plena de sentido. Deste modo,
constitui o orgânico, como forma e como história, o objeto da ciência. Como forma, isto é, como totalidade que
nunca pode ser concebida a partir de suas partes, como
história e processo, isto é, como um acontecer independente, que se cumpre em e por virtude da forma, e no qual
o anterior no tempo domina o posterior, porém também,
ao inverso, o futuro ao passado.
Por esta razão, toda ciência da vida, fisiologia, biologia, psicologia, tem que referir seu conhecimento dos fatos ao modo de ser-aí do indivíduo, à espécie, sexo, raça
ou país ao qual pertence. O objeto da ciência da vida são
conexões plenas de sentido e por esta razão a biologia é
mais que uma mera ciência natural, uma vez que se define, segundo o protótipo da física, como conhecimento de
leis, até onde for possível como formulação matemática.
“A biologia não pertence às ciências exatas e, portanto, não goza do privilégio do método quantitativo” – disse
Weizsäcker, e acrescenta –: “A biologia é completamente inconcebível quando se entende que sua tarefa não é
diferente da física e da química, cujos problemas ela teria que resolver pela segunda vez, em condições muito
mais difíceis”18.
O acontecer vital é histórico e dotado de forma e por
esta razão está vinculado a imagens tempo-espaciais.
A biologia está sujeita a imagens e, como consequência,
parte do descobrimento de qualidades e de sua conexão
18
V. v. Weizsäcker, Handb. d. norm. u. path. Physiol., XI, 1, pág. 57.
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 101-113, jan-abr, 2018
Textos Clássicos
A Problemática da Dor Psicologia – Fenomenologia – Metafísica
Textos Clássicos
F. J. J. Buytendijk
inteligível. Esta finalidade predomina também no trabalho experimental dos fisiologistas, em toda a analítica de
seus métodos: reunir os fatos e intelecções obtidas por
diferentes caminhos em uma imagem do acontecer vivente. Esta imagem pode ser, às vezes, construtiva e mecânica, porque no organismo animal muitos fenômenos
transcorrem mecanicamente, basta pensar nas funções do
sangue, no desenvolvimento da tensão nos músculos, no
funcionamento das válvulas do coração ou na filtração
dos rins. Junto aos modelos destas funções dos órgãos está, no entanto, a de todo o organismo em seu intercâmbio
com o meio, e esta relação é incompreensível mecanicamente, porque as impressões que disparam o movimento
são, como este, sempre qualitativas e dotadas de forma.
A análise pode unicamente nos fazer conhecer os meios
pelos quais se realizam as funções animais.
Diante de tudo, temos que assinalar neste ponto o erro de querer explicar o comportamento do homem e do
animal pelo conhecimento do sistema nervoso. Sua estrutura e seu funcionamento nos proporcionam, como todas
as condições interiores e exteriores, uma compreensão
dos fatores limitantes, porém não da causa suficiente do
acontecer real precisamente aqui e agora. Não obstante,
o conhecimento minucioso dos processos corporais e das
estruturas que constituem seu substrato é de grande valor para a inteligência das funções individuais integrais
e das sensações e sentimentos que nelas se manifestam.
A razão para isto deve ser buscada na correlação que existe entre a função e seus meios de realização no vivente.
A experiência nos ensina que no orgânico cada parte está
relacionada ao todo, por meio do qual o estudo do processo em cada parte de um órgão sensorial e do sistema
nervoso é de grande importância para a solução do problema da dor. Assim como uma composição musical se
compreende e se goza melhor por meio do conhecimento da técnica musical em todos os seus elementos, o conhecimento tipológico de uma espécie animal aumenta
com a extensão da análise morfológica, e penetra mais
profundamente na significação e índole dos sentimentos
e reações de expressão do homem quando se conhecem
os múltiplos fenômenos parciais e suas relações, que desempenham um papel no desenvolvimento de sua atividade e vida individual. Como Goethe dizia: “Na natureza vivente não acontece nada que não esteja em relação
com o todo, e quando as experiências se apresentam a nós
unicamente de modo isolado, quando temos que considerar os experimentos como fatos isolados, nem por isso
pode-se dizer que, efetivamente, sejam fatos isolados”.
Por mais desejável que seja superar a separação aparentemente bem fundada e realizada praticamente entre a fisiologia e a psicologia, no interesse do estudo das
funções pessoais e individuais, este desejo nunca pode
conduzir ao menosprezo dos experimentos analíticos nos
seus detalhes19. Seu valor é muito grande. O conhecimen19
P. ej., Grondproblemen van het dierlijk leven, Philosoph. Bibliotheek,
Amberes, 1938.
to das leis dos processos corporais, em relação com as estruturas morfológicas e com os fenômenos de consciência, que permitem os experimentos de laboratório, pode
também contribuir em grande medida para a solução das
diferentes questões que nos coloca o fenômeno da dor.
Sabe-se que desde sempre as ciências da vida pedem
pela adequação entre forma e função. Frequentemente consideram o trabalho de um órgão desde o ponto de
vista do princípio de economia. Nos organismos trata-se
sempre da adequação, e da utilidade de suas partes e de
seu comportamento para a preservação do indivíduo e
da espécie20.
Seria, portanto, uma questão tipicamente biológica –
frequentemente levantada – perguntar-se se a dor é útil,
quer dizer, conveniente no conjunto dos processos reguladores que garantem a integridade da estrutura corporal, o trabalho dos órgãos e a continuidade da existência
do indivíduo e da espécie em um meio determinado. No
entanto, a biologia, em virtude da tese da utilidade e conveniência da dor, incorre em uma equívoca situação metódica, em duplo sentido. Em primeiro lugar, com relação
ao princípio, por demais firme, de que a biologia, como
toda ciência natural, deve investigar exclusivamente as
relações causais, em todo caso, procurar o conhecimento
formal do curso legal dos fenômenos. A consideração da
idoneidade e utilidade não é então mais que um princípio
“heurístico”, um meio para descobrir as relações, porém
não uma contribuição direta à coisa mesma. Em segundo lugar, partindo do princípio fundamental da fisiologia mecanicista, florescente na segunda metade do século
passado, se segue que com as sensações e os outros conteúdos de consciência que “acompanham” os processos
corporais não há nada a ser feito propriamente na biologia.
A pergunta acerca de uma possível conveniência e
utilidade da dor só pode se referir então, ao efeito dos
fenômenos corporais, nos quais se apresenta ainda um
sentimento de dor. Não é estranho que até os casos em
que a explicação de utilidade parece convir perfeitamente – por exemplo, quando se retira o pé ao pisar em um
prego – justifiquem a pergunta de porquê em tais reações adequadas – presentes também nos animais – tem
que se manifestar-se ao mesmo tempo a dor também. Se
se indica, como Richet21 entre outros, o caráter de aviso
da dor, sobre cuja base o animal e o homem aprendem a
evitar uma repetição da experiência prejudicial, então já
se excedem os limites da fisiologia como teoria dos processos corporais.
Se se inclui o fenômeno da dor na esfera da psicologia, então é preciso ter em conta que todas as reações às
impressões dolorosas são processos corporais. Além dis20
21
P. ej., Grondproblemen van het dierlijk leven, Philosoph. Bibliotheek,
Amberes, 1938.
Wege zum Verständnis der Tiere, Max niehans Verlag, Zurich, 1938.
Buytendijk y Plessner, Die pshysuilogische Erklärung des Verhaltens.
Eine Kritik an der Theoria Pawlows (Acta Biotheoretica, vol. I), 1935,
pág. 151.
Ch. Richet, Dictionnaire de Physiologie, 1902, artículo “Douleur”.
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 101-113, jan-abr, 2018
110
so, ao se limitar a psicologia à teoria dos processos de
consciência, ficam em último plano todos os pontos de
vista funcionais e biológicos e, sobretudo, a pergunta pela natureza e significação da dor, quer dizer, pelo papel
que este fenômeno desempenha em toda vida animal e
humana. Se, além disso, se leva em conta a circunstância – uma experiência cotidiana – de que a dor depende, mais do que qualquer outro sentimento, do grau e da
qualidade dos movimentos concomitantes de expressão
(não causados por ela) e das reações vegetativas, esta circunstância nos persuade ainda mais pelo problema da
dor não poder ser considerado exclusivamente como uma
questão psicológica.
Temos que indicar, todavia, as dificuldades com as
quais tropeça uma explicação científica da dor. A primeira
está relacionada com a experiência de que a dor contrapõe,
de modo peculiar, a consciência de si mesmo ao próprio
corpo. Para compreender esta propriedade fundamental da
dor é indispensável uma teoria da corporeidade em geral
e do modo e maneira como ela é experimentada e vivida.
Nela se trata, em primeiro lugar, do problema da localização da dor e da teoria dos “signos locais” (Latze) ou
da teoria do “esquema corporal” (P. Schilder)22, ou da ontologia da existência corporal como tal. Se a questão tem
que ser tratada de modo rigorosamente científico, sem
prejuízos metódicos e sem a limitação do campo visual
derivada destes, será necessário refletir sobre os fenômenos fundamentais das verdadeiras relações em que estão
o homem e o animal com seu arredor e com seu próprio
corpo. Conceitos como “posicionalidade” remota e próxima, alheia e própria (Strauss), central e excêntrica (H.
Plessner), pertencem à esfera da biologia, que sem eles
perde profundidade e amplitude de visão sobre seu objeto.
Uma segunda dificuldade parece residir na questão
de se a dor pode ser considerada como um fenômeno
“normal” ou se tem relação com um sentimento de reação e suas exteriorizações, que excedem os limites da vida normal. Então, a dor pertenceria melhor à patologia
que à fisiologia. Neste caso, não teria sentido investigar
a significação da dor, mas seria melhor que se colocasse
em primeiro plano sua relação com a doença, a ferida e
a morte. Como um fenômeno anormal, a sensação de dor
não teria lugar entre as demais sensações dos sentidos,
visto que estas constituem o meio de contato normal entre o indivíduo e seu entorno. Porém, um processo patológico, precisamente um processo que como “incidente”,
ocorre com tanta frequência na vida, a dor, que não pode
escapar da biologia, do mesmo modo que não escapa a
reação de um traumatismo, a cura de uma ferida, a regeneração e a adaptação morfológica e funcional.
A ciência da natureza viva só pode levantar o problema da dor, e se for o caso responder-lhe, quando concebe o organismo realmente como vivo, ou seja, como um
ser que convive em algum lugar e de algum modo, como
a indissolúvel unidade de funções sensoriais e motoras;
quando os processos sensoriais não são concebidos como
excitações passivas, mas como processos condicionados
pela atividade e pela atitude do indivíduo, no homem
especialmente como um “encontro entre eu e o mundo
circundante” (Von Weisäcker)23, não como uma série de
causas e efeitos, mas como “decisões”. Em uma palavra:
apenas a biologia, que é diferente por princípio da ciência
da natureza inorgânica e possui seus próprios conceitos
e princípios de explicação, sem estar por isso separada
da psicologia, pelo fato de que “o objeto dos biólogos é
precisamente um objeto no qual habita um sujeito”, pode
ocupar-se do problema da dor.
Uma propriedade da existência animal individual, que se nota tanto na experiência imediata quanto
na investigação cientifica, consiste na unidade indissolúvel dos fenômenos psíquicos e corporais, os quais
mantém, no entanto, uma relativa independência. Esta
contraposição de unidade e dualidade tem que ser admitida como um dado último, irredutível, e tem que ser
mantida sempre em vista. Nem a circunstância de que
a unidade psicofísica é tão irrepresentável como a ação
recíproca ou o paralelismo entre corpo e psique, nem as
dificuldades do problema sobre ser e consciência necessitam ser para o pensamento filosófico causa para que
se abandone um dos pontos de vista na ciência de que
se teria que lidar com o objeto concreto. E, no entanto,
é isto que ocorre.
Enquanto antes se acentuava a independência entre o
físico e o psíquico, agora domina a tendência a considerar
exclusivamente o organismo à luz da unidade psicofísica.
Mesmo prescindindo de um grande número de obras que
falam demasiado de “totalidade”, muitas investigações
neurológicas e psiquiátricas modernas, caracteriológicas
e tipológicas, colocam a unidade no ponto central da existência humana (e animal). Os estudos sobre o equilíbrio e
a vertigem de Vogel24, Christian25, entre outros, demonstram a indissociável conexão entre sensações, sentimentos
e movimentos objetivos. Por último, temos que lembrar os
valiosos tratados sobre os movimentos de expressão, nos
quais se torna palpável a unidade psicofísica (Klages)26.
Neles às vezes se perde de vista a contraposição do corporal e do espiritual.
Contrário a todos eles Plessner27, em suas notáveis investigações sobre o riso e o choro, demonstrou que estas
formas de exteriorização apenas podem se explicar “dentro dos limites do comportamento humano” quando, apesar de toda a unidade entre alma e corpo, se manteve sua
contraposição polar como estrutura fundamental.
23
24
25
26
22
P. Schilder, Das Körperschema. Ein Beitrag zur Lehre vom Bewusstsein dês cigenen Körpers, Berlín, 1923.
111
27
V. v. Weizäcker, Der Gestaltkreis, Leipzig, 1940.
P. Vogel, Pflügers Archiv 228 (1931), p. 150, 682 e 230, (1932), p. 16.
P. Christian, Wirklichkeit und Erscheinungen in der Wahrnehmung Von
Beuegung, Zeitschr. f. Sinnesphysiol., tomo 68, 1940, p. 151-183.
L. Klages, Grundlegung der Wissenchaft vom Ausdruck, Leipzig, 1936.
H. Plessner, Lachen und Weinen. Eine untersuchung nach den Grezen
menschlichen Verhaltens, 1941, 2. ed. Francke Verlag, berna, 1949.
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Textos Clássicos
A Problemática da Dor Psicologia – Fenomenologia – Metafísica
Textos Clássicos
F. J. J. Buytendijk
Desde sempre, o médico que não se apega a teorias,
mas que segue a experiência direta, penetrou até o mais
profundo da verdade da unidade e da mútua independência entre o subjetivo e o objetivo. Para seu diagnóstico – segundo Weisäcker – toma os materiais onde pode
coletá-los e relaciona sem pudor algum as manifestações
subjetivas do paciente com os sintomas objetivos, por
mais que em virtude de sua educação moderna (positivista) quase sempre dê prioridade aos últimos. No entanto, o médico se consideraria frívolo, ligeiro, caso não
utilizasse em caso necessário, a mais insignificante manifestação subjetiva para encontrar em um caso obscuro
o modo de iluminá-lo.
O pensamento e tratamento médico nascem do contato pessoal entre o médico e o paciente, e por esta razão
tem que se tomar cuidado para não perder seu verdadeiro
objeto e seu “ethos”. O médico não é – segundo Krehl28 –
um erudito, um artista, um técnico, mas exclusivamente
médico. “Sua atividade tem algo em comum com a desses
tipos de homens, porém em sua última finalidade é completamente diferente e ainda muito mais, pois o objeto de
sua atividade é o homem como homem”.
Em certa medida, o juízo que se exige do médico pode basear-se em um esquema dos processos corporais,
das causas de suas perturbações e se pode aplicar este
conhecimento ao doente independente dos fatores pessoais. Quando muito, pode nele influir a história anterior,
a constituição, o meio vital, investigáveis objetivamente.
Porém, quando o paciente como sofredor29 pede ajuda em
sua dificuldade, o médico já não está diante de um caso,
mas diante de um doente e se exige dele mais do que se
exigiria de um erudito, de um técnico. Então, o médico deve compreender o homem, o são e o doente, e certamente
de uma maneira peculiar, na qual a pessoa concreta está
e deve estar contrária a si mesma, a seu próximo, a suas
obrigações vitais e exigências morais. Assim teve em conta O. Schwaz30 em sua Antropologia médica quando disse:
“A problemática médica está arraigada profundamente em
uma filosofia do espírito”. No contato pessoal com a humanidade que sente dor, o médico se vê constantemente diante do problema da dor em toda a sua amplitude.
Ainda quando o médico – em atenção às demandas
cada vez maiores que lhe são feitas – deve ver no conhecimento das ciências gerais da Natureza, como a Morfologia
e a Fisiologia, a base necessária de sua atividade profissional, ele tem que saber, contudo, mais da personalidade
humana que o leigo ou que aquele que adquiriu na prática
como conhecimento dos homens, conforme é chamado.
Exigir dele uma perfeita educação filosófica seria exagerado; um conhecimento superficial dos fundamentos ou
28
29
30
Citado por E. Lieck, Der Arzt und seine Sendung, Munich, 1927. Ver
também V. v. Weizsäcker. Der Arzt und der Kranke, Die Kreatur I, 1926,
p. 69-86 e Medizinische Anthropologie, Philos. Anzeiger II, 1927, p.
205-263.
Inserir nota das autores sobre a tradução de doliente.
O. Schwartz, Medizinische Anthropologie, Leipzig, 1929, p. VII.
da história da filosofia não produziria mais que decepções, porém uma profunda reflexão sobre os homens e o
humano, sobre o espírito e o espiritual é indispensável
para compreender o homem com dor e seu sofrimento.
O habitual desprezo pela filosofia impede a compreensão
do problema do sofrimento, portanto, também da essência e do sentido da dor, não menos que a separação entre psicologia e fisiologia, a qual – se bem admitida teoricamente – acaba sempre superada pelo médico em sua
prática. No homem doente o médico encontra o mistério
da unidade e a oposição entre a vida psíquica consciente
e inconsciente, assim como sua dependência corporal e
sua manifestação física na expressão e ao mesmo tempo
sua emancipação destas travas na liberdade, racionalidade e moralidade do espírito.
Em virtude da peculiaridade de seu objeto – que é o
homem são e o doente – a ciência médica – na medida
em que reflete realmente sobre seu objeto – pode constituir o marco de uma biologia teórica e de uma antropologia filosófica e, portanto, encontrar também o acesso
a um tratamento científico do problema da dor. Por três
razões o médico está obrigado a interessar-se pela dor.
Em primeiro lugar, porque, como já ensinou Hipócrates,
o médico como tal médico foi chamado por Deus para
aliviar a dor. Em segundo lugar, porque a dor como sintoma patológico é de importância fundamental para seu
conhecimento. E em terceiro lugar, porque ninguém como
o médico – apesar de toda sua atitude objetiva – observa
a dor de tão perto. É certo que também o médico, como
todo homem, pode estar pleno de compaixão para com
o paciente, porém sua tarefa mais importante não consiste em esbanjar consolos, mas em curar, portanto, em
saber. Por isto aplica-se a ele, por mais que tenha que ter
em conta o homem e não a enfermidade, a exigência da
devida distância e a eliminação dos afetos emocionais,
que enevoam o olhar, fixam o pensamento, colorem os
conceitos e perturbam o julgamento. Quando o médico
se inclina sobre o leito do enfermo, verá diante de si na
angustiosa tensão das feições do rosto, nas pupilas dilatadas, na pele pálida, no suor frio, na lamentação e na
agitação motriz, nas palavras de desespero e no pedido
de salvação, a imagem inteira do homem que padece pela
dor. E reconhecerá nela a relação estreita da dor na vida
vegetativa e animal e com tudo o que é puramente humano e pessoal, com as qualidades de caráter e os valores morais, com o obscuro poder do inconsciente, com a
força de vontade que é gerada na claridade da inteligência e no coração, com a atitude em que o homem, preso
nas cadeias dolorosas de sua corporeidade, está sujeito
a si mesmo e a Deus.
Então descobre o médico, como pensador científico,
a amplitude e a profundidade do problema da dor, a conexão da dor com os processos fisiológicos, psicológicos,
patológicos e pessoais, com o ser animal e humano. No
entanto, o médico silencia ante a dor, não se vê apenas
ante um problema, mas também ante um mistério, “um
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 101-113, jan-abr, 2018
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A Problemática da Dor Psicologia – Fenomenologia – Metafísica
mystère sans analogue dans le monde de la vie”31. Precisamente a dor torna-se evidente ao médico no homem com
dor como o absurdo absoluto na vida mesma, em sua mais
íntima interioridade. A dor é o “malum”, o que se opõe à
vida, o que obstrui e ameaça, no qual o homem, abatido
como um mísero animal, sofre mil mortes32.
Nesta treva de impenetrável absurdidade, percebe
também o médico na cabeceira do enfermo o resplendor
de uma luz misteriosa, o fulgor do que há de eternamente
imodificável na pessoa do homem, o qual pode ter sentido a falta de sentido do mundo.
Nota Biográfica
Frederik Jacobus Johannes Buytendijk (1887-1974). Biólogo, Antropológo, Psicólogo e Fisiologista holandês, nascido em Breda (29 de abril)
e falecido em Nijmegen (21 de outubro). Presidiu a Federação Internacional de Medicina do Esporte, de 1930 a 1933. Doutor em Medicina
pela Universidade de Amsterdam (1909), foi premiado por seus trabalhos sobre a função da adrenalina. Durante a I Guerra Mundial, foi mobilizado como médico militar, dirigindo o Departamento de Psiquiatria
e Neurologia do Hospital de Amsterdam. A partir de 1919, dedica-se a
temas relacionados à biologia e fisiologia, desenvolvendo experimentos
sobre o comportamento animal. Manteve estreitos contatos com personalidades como Helmut Plessner, Hans Driech e Max Scheler, influenciando suas publicações sobre Psicologia Comparada. Posteriormente,
aproxima-se de Viktor von Weizsäcjer e Viktor Emil von Gebsattel, marcando assim a influência da Fenomenologia sobre sua obra. Durante a
II Guerra Mundial, novamente mobilizado, é feito refém pelas forças
de ocupação nos Países Baixos, e é durante a prisão que escreve o livro sobre a Dor. Em 1946, é nomeado professor de Psicologia Geral na
Universidade de Utrecht; posteriormente (entre 1948-1963) leciona na
Universidade de Louvain.
31
32
Um mistério sem igual no mundo da vida.
Até que ponto o fenômeno da dor não tem sentido para o médico é
expresso por Leriche. Ainda que para o diagnóstico o sintoma da dor
tenha apenas um pequeno valor. “Para os médicos que vivem em contato com os doentes, a dor não é mais do que um sintoma contingente, perturbador, penoso, às vezes, difícil de suprimir, mas que quase
nunca tem grande valor par o diagnóstico nem para o prognóstico
“. “Reação de defesa? Aviso afortunado? Mas, de fato, a maioria das
enfermidades, e as mais graves, se instalam em nós sem gritar. Quase
sempre, a enfermidade é um drama em dois atos, o primeiro, calado,
sinuoso, se desenvolve no silêncio de nossos tecidos, com as luzes
apagadas, antes de que as velas se acendam. Quando a dor aparece,
quase sempre está já em segundo ato. É demasiado tarde. O desenlace já está em potência. É iminente. A dor não fez mais do que deixar
mais penosa e triste uma situação já há muito tempo perdida”.
“Eu, pergunto, que aviso nos dá uma neuralgia do trigêmeo? ”
“Se a natureza tivesse cuidado de nós, se tivesse as atenções que se
lhes supõem, não é quando um cálculo renal não pode já ser eliminado pelas vias naturais que nos advertiria, mas no momento em que
não é mais que o pó que se pode eliminar facilmente”, p. 39-40, obra
citada.
113
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 101-113, jan-abr, 2018
Textos Clássicos
Tradução: Jennifer da Silva Moreira (Universidade Federal do Paraná) e
Joanneliese de Lucas Freitas (Universidade Federal do Paraná).
revisão Técnica: Tommy Akira Goto (Universidade Federal de Uberlândia)
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Normas de Publicação da Revista da Abordagem Gestáltica
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daquelas abordagens que se fundamentam em bases teórico-científicas e filosóficas dentro das perspectivas humanistas, fenomenológicas e existenciais.
Atualmente, suas diretrizes editoriais procuram
privilegiar reflexões – numa perspectiva multiprofissional e interdisciplinar – em torno dos seguintes temas: a) Fenomenologia; b) Psicologia Fenomenológica;
c) Filosofias da Existência; d) Psicologias Humanistas
e Existenciais; e) Pesquisa Qualitativa em Ciências Humanas e Sociais.
Serão aceitos para apreciação artigos de pesquisa empírica e artigos teóricos, que envolvam temáticas relacionadas à saúde em geral, educação, humanidades, filosofia
ou ciências sociais e antropológicas.
2. informações gerais
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A revista proporciona acesso público a todo seu conteúdo, seguindo o princípio que tornar gratuito o acesso a pesquisas gera um maior intercâmbio global de conhecimento.
Os trabalhos deverão ser originais, relacionados à psicologia, filosofia, educação, ciências da saúde, ciências
117
sociais e antropológicas, e se enquadrarem nas categorias
que se seguem:
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Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 117-121, jan-abr, 2018
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sobre a conveniência da sua aceitação, podendo, inclusive, apresentar sugestões aos autores para as alterações
necessárias.
Quando a investigação envolver sujeitos humanos, os
autores deverão apresentar no corpo do trabalho uma declaração de que foi obtido o consentimento dos sujeitos
por escrito (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido)
e/ou da instituição em que o trabalho foi realizado (Comissão de Ética em Pesquisa). Trabalhos sem o cumprimento
de tais exigências não serão publicados.
Os autores serão notificados sobre a aceitação ou a recusa de seus artigos, os quais, mesmo quando não forem
aproveitados, não serão devolvidos.
4. Forma de apresentação dos Mauscritos
A revista da Abordagem gestáltica – Phenomenolo-gical Studies adota, em geral, normas de publicação baseadas no Manual de Publicação da American Psychological Association (APA) – 6ª edição, 2012.
Os manuscritos poderão ser redigidos em português,
inglês, francês ou espanhol.
Normas
4.1 Partes do Manuscrito
1. Folha de rosto identificada: a) título do trabalho
em português; b) título do trabalho em inglês; c) título do
trabalho em espanhol; d) indicação da categoria na qual
o trabalho se insere (relato de pesquisa, estudo teórico ou
histórico, revisão crítica de literatura, resenha); e) nome
completo e afiliação institucional dos autores (apenas
universidade); f) nome completo, endereço completo (inclusive CEP) e E-mail de pelo menos um dos autores para
correspondência com a revista e leitores. Esta deverá ser a
única parte do texto com a identificação dos autores, para que seja garantido seu anonimato. ATENÇÃO: A folha
de rosto identificada deve ser enviada, no sistema, como
“documento suplementar”, separada do texto principal.
O texto principal deve iniciar com o item a seguir (folha
de rosto sem identificação).
2. Folha de rosto sem identificação: a) título do trabalho em português; b) título do trabalho em inglês; c)
título em espanhol; d) indicação da categoria na qual o
trabalho se insere (relato de pesquisa, estudo teórico ou
histórico, revisão crítica de literatura, resenha).
3. Folha de resumos: a) resumo em português; b)
palavras-chave em português; c) abstract (versão do resumo para o inglês); d) keywords (versão das palavraschave para o inglês); e) resumen (versão do resumo em
espanhol); e) palavras-clave. Resenhas não precisam de
resumo. Maiores especificações no item a seguir.
Os trabalhos deverão ser digitados em programa Word
for Windows, em letra Times New Roman, tamanho 12,
espaçamento interlinear 1, 5 e margens de 2, 5 cm, em
papel formato A4, perfazendo o total máximo de laudas,
de acordo com o tipo de publicação desejada (ver Informações Gerais), observadas as seguintes especificações:
4.2 Especiicações do Manuscrito
a) Título – é recomendado que o título do artigo seja escrito em até doze palavras, refletindo as principais
questões de que trata o manuscrito. Deve ser redigido em
fonte 14, centralizado e em negrito. A seguir, devem vir,
em itálico, centralizados e em fonte 12, os títulos em inglês e espanhol.
b) Epígrafe – quando for necessária, poderá ser apresentada, em letra normal, com espaçamento interlinear
simples, fonte 10, e alinhamento à direita. O nome do
autor da epígrafe deverá aparecer em itálico, seguido da
referência da obra.
c) Resumo e Palavras-chave – deverão ser redigidos
em português, inglês e espanhol, em parágrafo único, espaçamento interlinear simples, fonte 10, entre 120 e 200
palavras. As palavras-chave (descritores), de três a cinco
termos significativos, deverão remeter ao conteúdo fundamental do trabalho. Para a sua determinação, consultar
a lista de Descritores em Ciências da Saúde – elaborada
pela Bireme e/ou Medical subject heading – comprehensive medline. Todas as palavras deverão ser escritas com
iniciais maiúsculas e separadas por ponto e vírgula. Incluir também descritores em inglês (keywords) e espanhol
(Palabras-clave).
d) Estrutura do manuscrito – os trabalhos referentes
a pesquisas deverão conter introdução, objetivos, metodologia, resultados e conclusão. O trabalho deverá ser
redigido em linguagem clara e objetiva. As palavras estrangeiras e os grifos do autor deverão vir em itálico.
e) Nomenclaturas e Abreviaturas – usar somente as
oficiais. O uso de abreviaturas e de siglas específicas ao
conteúdo do manuscrito deverá ser feito com sua indicação entre parênteses na primeira vez em que aparecem
no manuscrito, precedida da forma por extenso.
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 117-121, jan-abr, 2018
118
Normas de Publicação da Revista da Abordagem Gestáltica
119
4.3 Tipos comuns de citação no texto
– Citação de artigo de autoria múltipla
a) dois autores
O sobrenome dos autores é explicitado em todas as
citações, usando “e” ou & conforme a seguir: “O método
proposto por Siqueland e Delucia (1969)” ou “o método
foi inicialmente proposto para o estudo da visão (Siqueland & Delucia, 1969)”
b) de três a cinco autores
O sobrenome de todos os autores é explicitado na primeira vez em que a citação ocorrer de acordo com o exemplo: “Spielberger, Gorsuch, Siqueland, Delucia e Lushene
(1994) verificaram que”. A partir da segunda citação, inclua o sobrenome do primeiro autor seguido da expressão
“et al.” (sem itálico e com um ponto após o ‘al”). Omita o
ano de publicação na segunda citação em caso citações
subsequentes em um mesmo parágrafo.
Caso as Referências e a forma abreviada produzam
aparente identidade de dois trabalhos em que os co-autores diferem, esses são explicitados até que a ambiguidade seja eliminada.
Na seção de Referências, os nomes de todos os autores devem ser relacionados.
c) com mais de cinco autores
Neste caso, faça a chamada apenas com o sobrenome
do primeiro autor seguido de “et al.” e do ano de publicação na primeira e nas citações subsequentes. Na seção de
Referências, todos os nomes são relacionados.
– Citação de autores com o mesmo sobrenome
Se uma lista de referências possui publicações de dois
ou mais autores principais com o mesmo sobrenome, indique as iniciais do primeiro autor em todas as chamadas
do texto, mesmo que o ano de publicação seja diferente.
– Citações de trabalho discutido em uma fonte secundária
Caso se utilize como fonte um trabalho discutido em
outro, sem que o texto original tenha sido lido (por exemplo, um estudo de Flavell, citado por Shore, 1982), deverá
ser usada a seguinte citação: “Flavell (conforme citado por
Shore, 1982) acrescenta que estes estudantes...”
Na seção de Referências, informar apenas a fonte secundária (no caso Shore, 1982), com o formato apropriado.
Sugere-se evitar, ao máximo, o uso de citações ou referências secundárias.
– Citações de obras antigas reeditadas
a) Quando a data do trabalho é desconhecida ou muito antiga, citar o nome do autor seguido de “sem data”:
“Piaget (sem data) mostrou que...” ou (Piaget, sem data).
b) Em obra cuja data original é desconhecida, mas
a data do trabalho lido é conhecida, citar o nome do au-
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 117-121, jan-abr, 2018
Normas
f) Notas de rodapé – deverão ser numeradas consecutivamente na ordem em que aparecem no manuscrito
com numerais arábicos sobrescritos e restritas ao mínimo indispensável. Não coloque números de rodapé nos
títulos do texto.
g) Citações – deverão ser feitas de acordo com as
normas da APA (6ª edição, 2012). Em caso de transcrição integral de um texto com número inferior a quarenta
palavras, a citação deverá ser incorporada ao texto entre
aspas duplas, com indicação, após o sobrenome do autor
e a data, da(s) página(s) de onde foi retirado. Uma citação
literal com quarenta ou mais palavras deverá ser destacada em bloco próprio, começando em nova linha, sem
aspas e sem itálico, com o recuo do parágrafo alinhado
com a primeira linha do parágrafo normal. O tamanho da
fonte deve ser 12, e o espaçamento interlinear deverá ser
1, 5 como no restante do manuscrito. A citação destacada
deve ser formatada de modo a deixar uma linha acima e
outra abaixo da mesma.
h) Referências – denominação a ser utilizada. Não
use Bibliografia. As referências seguem as normas da
APA (6ª edição, 2012) adotando o sistema de citação autor-data e são listadas em ordem alfabética na lista de
referências. A fonte deverá ser formatada em tamanho
12, espaçamento interlinear 1, 5. O subtítulo Referências deverá estar alinhado à esquerda. A primeira linha
de cada referência inicia-se junto à margem esquerda e
as linhas subsequentes recuam 0, 75cm à direita, utilizando o recurso “deslocamento” do editor de texto.
Verificar se todas as citações feitas no corpo do manuscrito e nas notas de rodapé aparecem nas Referências e
se o ano da citação no corpo do manuscrito confere com
o indicado na lista final.
i) Anexos – usados somente quando indispensáveis
à compreensão do trabalho, devendo conter um mínimo
de páginas (serão computadas como parte do manuscrito) e localizados após Referências.
j) Figuras e Tabelas – devem surgir no corpo do texto, diretamente no local considerado adequado pelo(s)
autor(es). Devem ser elaboradas segundo os padrões definidos pela APA, com as respectivas legendas e títulos. Títulos de tabelas devem obedecer ao seguinte padrão: em linha isolada, coloque o número da tabela (Ex.:
Tabela 1), sem ponto final. Na linha seguinte, coloque o
título da tabela, em itálico, usando maiúsculas no início
das palavras (Ex.: Números Médios de Respostas Corretas de Crianças Com e Sem Treinamento Prévio). Títulos
de figuras devem obedecer ao seguinte padrão: coloque
o número da figura em itálico, seguido de ponto final.
Logo em seguida, coloque o título da figura, apenas com
a primeira letra do título em maiúsculas. (Ex.: Figura 1.
Frequência acumulada de sequências de respostas corretas). Os títulos das tabelas deverão ser colocados no alto
das mesmas, e os das figuras deverão ser colocados abaixo das mesmas. Encerre os títulos de figuras com ponto
final, mas não os títulos de tabelas.
Normas de Publicação da Revista da Abordagem Gestáltica
tor seguido de “tradução” ou “versão” e data da tradução
ou da versão: “Conforme Aristóteles (tradução 1931)” ou
(Aristóteles, versão 1931).
c) Quando a data original e a consultada são diferentes, mas conhecidas, citar autor, data do original e data
da versão consultada: “Já mostrava Pavlov (1904/1980)”
ou (Pavlov, 1904/1980).
As referências a obras clássicas, como a Bíblia e o Alcorão, cujas seções são padronizadas em todas as edições são
citadas somente no texto e não na seção de Referências.
– Citação de comunicação pessoal
Este tipo de citação deve ser evitada, por não oferecer informação recuperável por meios convencionais. Se
inevitável, deverá aparecer no texto, mas não na seção de
Referências, com a indicação de “comunicação pessoal”,
seguida de dia, mês e ano. Ex.: “C. M. Zannon (comunicação pessoal, 30 de outubro de 1994).”
4.4 Seção de Referências
Genericamente, cada entrada numa lista de referências
contém os seguintes elementos: autor, ano de publicação,
título e outros dados de publicação importantes numa
busca bibliográfica. Os autores são os responsáveis pelas
informações em suas listas de referências.
Assim, organize a lista de referências por ordem alfabética dos sobrenomes do primeiro autor seguido pelas
iniciais dos primeiros nomes. Ordene letra por letra, lembrando-se de que “nada precede algo”: Brown, J. S, precede Browning, A. S., embora o i preceda o j no alfabeto.
Em casos de referência a múltiplos estudos do mesmo
autor, organize pela data de publicação, em ordem cronológica, ou seja, do estudo mais antigo ao mais recente. Referências com o mesmo primeiro autor, mas com diferentes segundos ou terceiros autores, devem ser organizadas
por ordem alfabética dos segundos ou terceiros autores
(ou quartos ou quintos...). Os exemplos abaixo auxiliam
na organização do manuscrito, mas certamente não esgotam as possibilidades de citação. Utilize o Manual de
Publicação da APA/American Psychological Association
(2012, 6ª edição) para suprir possíveis lacunas.
4.4.1 Exemplos de tipos comuns de referência
Normas
– Artigo em periódico científico
Informar nome e volume do periódico em itálico, em
seguida, o número entre parênteses, sobretudo quando a
paginação é reiniciada a cada número.
Tenório, C. M. D. (2003b). O Conceito de Neurose em
Gestalt-Terapia. Revista Universitas Ciências da Saúde,
1(2), 239-251.
Garcia, C. A., & Rocha, A.P. R. (2008). A Adolescência como Ideal Cultural Contemporâneo. Psicologia Ciência e
Profissão, 28(3), 622-631.
– Artigos consultados em mídia eletrônica
Quando houver versão impressa (mesmo que em PDF,
usar regras anteriores).
Toassa, G., & Souza, M. P. R. de. (2010). As vivências:
questões de tradução, sentidos e fontes epistemológicas
no legado de Vigotski. Psicologia USP, 21(4). Recuperado
em Outubro de 2009, de <http://www.marxists.org/archive/luria/works/1930/child/ch06.htm
Evangelista, P. (2010). Interpretação Crítica da teoria de
Campo Lewiniana a partir da Fenomenologia. Centro de
Formação e Coordenação de Grupos em Fenomenologia.
Disponível em <http://www.fenoegrupos.com/JPM-Article3/index.php?sid=14
Ribeiro, C. V. S., & Leda, D. B. (2004). O significado do
trabalho em tempos de reestruturação produtiva. Estudos
e pesquisas em psicologia [online], vol. 4, supl. 2 [citado
em 13 Abril, 2011], p. 76-83. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/pdf/epp/v4n2/v4n2a06.pdf
– livros
Féres-Carneiro, T. (1983). Família: diagnóstico e terapia.
Rio de Janeiro: Zahar.
– Capítulo de livro
Aguiar, W. M. J., Bock, A. M. B., & Ozella, S. (2001). A
orientação profissional com adolescentes: um exemplo
de prática na abordagem sócio-histórica. Em M. B. Bock,
M. da G. M. Gonçalves & O. Furtado (Orgs.), Psicologia
sócio-histórica: uma perspectiva crítica em Psicologia (p.
163-178). São Paulo: Cortez.
Parlett, M. (2005). Contemporary Gestalt Therapy: Field
theory. Em A. L. Woldt & S. M. Toman (Eds.), Gestalt therapy History, Theory, and Practice (p. 41-63). California:
Sage Publications.
– livro traduzido em língua portuguesa
Salvador, C. C. (1994). Aprendizagem escolar e construção
de conhecimento. (E. O. Dihel, Trad.) Porto Alegre: Artes
Médicas. (Originalmente publicado em 1990)
Se a tradução em língua portuguesa de um trabalho em
outra língua é usada como fonte, citar a tradução em português e indicar ano de publicação do trabalho original.
No texto, citar o ano da publicação original e o ano da
tradução: (Salvador, 1990/1994).
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Normas de Publicação da Revista da Abordagem Gestáltica
– obra no prelo
Não deverão ser indicados ano, volume ou número de
páginas até que o artigo esteja publicado. Respeitada a ordem de nomes, é a ultima referência do autor.
Conceição, M. I. G. & Silva, M. C. R. (no prelo). Mitos sobre a sexualidade do lesado medular. Revista Brasileira
de Sexualidade Humana.
– Autoria institucional
American Psychiatric Association (1995). DSM-IV, Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (4ª ed.
Revisada). Porto Alegre: Artes Médicas
– relatório técnico
Birney, A. J. & Hall, M. M. (1981). Early identification
of children with written language disabilities (relatório
n. 81-1502). Washington, DC: National Education Association.
– Trabalho apresentado em congresso, mas não publicado
Haidt, J., Dias, M. G. & Koller, S. (1991, fevereiro). Disgust, disrespect and culture: moral judgement of victimless violations in the USA and Brazil. Trabalho apresentado em Reunião Anual (Annual Meeting) da Society for
Cross-Cultural Research, Isla Verde, Puerto Rico.
– Trabalho apresentado em congresso com resumo publicado em publicação seriada regular
Tratar como publicação em periódico, acrescentando
logo após o título a indicação de que se trata de resumo.
Silva, A. A. & Engelmann, A. (1988). Teste de eficácia de
um curso para melhorar a capacidade de julgamentos corretos de expressões faciais de emoções [resumo]. Ciência
e Cultura, 40 (7, Suplemento), 927.
– Trabalho apresentado em congresso com resumo publicado em número especial
Tratar como publicação em livro, informando sobre
o evento de acordo com as informações disponíveis em
capa.
Todorov, J. C., Souza, D. G. & Bori, C. M. (1992). Escolha e
decisão: A teoria da maximização momentânea [Resumo].
In Sociedade Brasileira de Psicologia (org.), Resumos de
comunicações científicas, XXII Reunião Anual de Psicologia (p. 66). Ribeirão Preto: SBP.
121
Meneghini, R. & Campos-de-Carvalho, M. I. (1995). Áreas
circunscritas e agrupamentos seqüenciais entre crianças
em creches [Resumo]. In Sociedade Brasileira de Psicologia (org.), XXV Reunião Anual de Psicologia, Resumos
(p. 385). Ribeirão Preto: SBP.
– Teses ou dissertações
Dias, C. M. A. (1994). Os distúrbios da fronteira de contato: Um estudo teórico em Gestalt-Terapia (Dissertação de
Mestrado). Universidade de Brasília, Brasília.
Santos, A. C. (2008) A crítica de Sartre ao ego transcendental na fenomenologia de Husserl (Dissertação de Mestrado em Filosofia). Centro de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria.
5. direitos autorais
Os direitos autorais dos artigos publicados pertencem
à revista da Abordagem gestáltica – Phenomenological
Studies. A reprodução total dos artigos dessa revista em
outras publicações, ou para qualquer outra utilidade, está
condicionada à autorização por escrito do Editor da Revista da Abordagem Gestáltica.
– reprodução parcial de outras publicações
Manuscritos submetidos à apreciação que contiverem
partes de texto extraídas de outras publicações deverão
obedecer aos limites e normas especificados para garantir a originalidade do trabalho submetido.
Recomenda-se evitar a reprodução de figuras, tabelas e
desenhos extraídos de outras publicações, mas caso o autor opte por fazê-lo deverá apresentar as cartas de permissão dos detentores dos direitos autorais para a reprodução
do material protegido e a inclusão de cópias dessas cartas junto ao manuscrito submetido. A permissão deve ser
endereçada ao autor do trabalho submetido à apreciação.
Em nenhuma circunstância, a revista da Abordagem
gestáltica – Phenomenological Studies e os autores dos
trabalhos publicados nessa revista poderão repassar a outrem os direitos assim obtidos.
6. correspondências
Editor
revista da Abordagem gestáltica –
Phenomenological Studies
ITGT – Instituto de Treinamento e Pesquisa
em Gestalt-terapia de Goiânia
Rua 1.128 nº 165 – Setor Marista/Goiânia-GO
CEP: 74.175-130
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(1): 117-121, jan-abr, 2018
Normas
– obras antigas com reedição em data muito posterior
Franco, F. de M. (1946). Tratado de educação física dos
meninos. Rio de Janeiro: Agir (Originalmente publicado
em 1790).