Reportar condicionais: uma questão
de ponto de vista
Reporting conditionals: a matter of viewpoint
Lílian Ferrari
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Abstract
This paper focuses on embedded conditional constructions in Brazilian
Portuguese. Based on mental space theory, the analysis shows that
the traditionally accepted notion of coherent epistemic stance has to
be reviewed in order to account for embedded conditionals which
occur in indirect reported speech. Since non-coherent epistemic
stance may also occur, it is argued that the cognitive notion of
Viewpoint can provide a general explanation for the occurrence of
both coherent and non-coherent embedded conditionals.
Keywords
Conditionals; Epistemic stance; Embedding; Viewpoint.
Resumo
Este trabalho enfoca construções condicionais encaixadas no discurso
reportado, com o objetivo de investigar as relações entre estrutura
sintática e informações semântico-pragmáticas associadas a essas
construções. A investigação de condicionais atestadas em textos escritos
demonstra que a visão tradicionalmente aceita de uniformidade de
postura epistêmica em condicionais preditivas (FILLMORE, 1990;
DANCYGIER; SWEETSER, 2005) deve ser reavaliada, tendo em
vista que casos de não-uniformidade também são observados nesses
contextos. Argumenta-se que o primitivo discursivo de Ponto de Vista,
em seus desdobramentos na configuração de espaços mentais,
118
FERRARI
permite uma explicação unificada para as diferentes combinações
modo-temporais que as condicionais encaixadas em Espaços de Fala
podem apresentar (CUTRER, 1994; FAUCONNIER, 1997).
Palavras-chave
Condicionais; Postura epistêmica; Encaixe; Ponto de vista.
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 16, n. 1, p. 117-140, jan./jun. 2008
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1. Introdução
A
idéia de que construções gramaticais são pareamentos de forma e
significado caracteriza um dos principais programas de pesquisa da
lingüística contemporânea (FILLMORE; KAY; O’CONNOR, 1988;
GOLDBERG,1995, 2006; LANGACKER, 1987, 1991; TOMASELLO, 2005).
Estendendo a noção de signo lingüístico para o âmbito da gramática, essa abordagem
pretende resgatar a importância do caráter simbólico da linguagem, contrapondose à visão gerativa tradicional que prioriza o estabelecimento de regras algorítmicas
capazes de especificar as estruturas sintáticas de uma língua (CHOMSKY,
1968, 1980). Ainda com relação ao paradigma saussureano, pode-se dizer que a
gramática de construções retoma o conceito de arbitrariedade relativa do signo, ao
postular que a gramática constitui uma rede de construções relacionadas entre si e
motivadas por laços de herança de natureza semântico-pragmática.
O presente trabalho enfoca construções condicionais preditivas encaixadas
no discurso reportado, com o objetivo de rediscutir a noção de uniformidade de
postura epistêmica, tradicionalmente aceita na literatura referente a condicionais
(FILLMORE, 1990; DANCYGIER, 1998; DANCYGIER; SWEETSER, 2005).
Com base em exemplos atestados em corpus eletrônico, a análise demonstra que
a exigência de uniformidade, refletida em seqüências compatíveis de tempos
verbais, não é uma restrição sintática inerente às construções condicionais, mas
decorre de fatores discursivo-pragmáticos que podem ser tratados adequadamente
com base nas ferramentas teóricas oferecidas pela teoria dos espaços mentais.
Partindo-se de estudos anteriores (CUTRER, 1994; FAUCONNIER,
1997), que apontam a existência de diferentes possibilidades de alocação do
ponto de vista (PV) no momento do encaixe de construções argumentais simples
em Espaços de Fala (diretamente na Base; no Espaço de Fala via Base; ou
diretamente no Espaço de Fala), argumenta-se que, no encaixe de construções
condicionais, a escolha com relação ao estabelecimento de ponto de vista exibe
graus adicionais de complexidade: a) o PV pode recair sobre a Base, de onde
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120
são introduzidos os espaços condicionais P e Q; b) o PV pode recair sobre o
Espaço de Fala, a partir do qual são criados os espaços P e Q; c) o PV pode
recair sobre a Base para a criação do espaço P e deslocar-se para o Espaço de
Fala para a criação do espaço Q. Nos dois primeiros casos, fixa-se um único
ponto de vista e a postura epistêmica (neutra ou distanciada) será uniforme; já
em “c”, verifica-se duplicidade de ponto de vista e não-uniformidade de postura
epistêmica, que muda de neutra para distanciada.
O trabalho está organizado da seguinte forma: na seção 2, são delineados
os principais pressupostos teóricos que embasam o tratamento cognitivista das
construções condicionais; a seção 3, resumem-se achados referentes à
correlação entre discurso reportado e estratégias de estabelecimento de ponto
de vista, especificando-se, na seção 3.1, as estratégias de encaixe de
construções condicionais no discurso reportado; as seções 4 e 5 analisam
ocorrências reais de condicionais encaixadas no discurso reportado em textos
escritos, enfocando casos de uniformidade de postura epistêmica e associandose casos de não-uniformidade a estratégias de deslocamento de ponto de
vista.Por fim, discutem-se casos de condicionais encaixadas em espaços
epistêmicos, com o objetivo de demonstrar que as estratégias de estabelecimento
de ponto de vista são menos flexíveis nesses contextos.
2.
Espaços mentais e condicionais
A teoria dos espaços mentais prevê que a compreensão e a produção da
linguagem envolvem a construção de domínios cognitivos organizados e
interconectados, que são independentes da linguagem, mas dos quais a linguagem
depende para a interpretação do significado. As expressões lingüísticas são
concebidas como manifestações superficiais dessas construções subjacentes,
altamente abstratas; as sentenças fornecem instruções parciais e subespecificadas
para: a construção de domínios; a subdivisão e o fracionamento da informação em
diferentes domínios; a estruturação dos elementos e relações dentro de cada domínio;
e a construção de conexões entre elementos em domínios diferentes e conexões
entre esses mesmos domínios (FAUCONNIER 1994, 1997; FAUCONNIER;
SWEETSER, 1996, FAUCONNIER; TURNER, 2002).
A interpretação do discurso resulta da construção de uma configuração
de espaços hierarquicamente relacionados e interconectados. À medida que
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cada sentença é produzida, a configuração de espaços é dinamicamente
atualizada, baseada em pistas lexicais e gramaticais fornecidas pela sentença.
Os espaços são pragmaticamente elaborados pelo conhecimento subjacente
formatado em Frames, que se desdobram em Enquadres Lexicais (recortes no
interior de uma determinada cena, sob a perspectiva das escolhas lexicais) e
Modelos Cognitivos Idealizados (MCIs) (FILLMORE, 1982; LAKOFF, 1987).
Além disso, são também elaborados por processos de inferenciação e raciocínio.
À medida que o discurso se desenvolve, novos espaços são criados em
função de pistas fornecidas por “construtores de espaços” (space-builders), por
marcadores gramaticais tais como tempo e modo, ou por informação pragmática.
Os construtores de espaços apresentam-se de formas variadas: sintagmas
preposicionais, conectivos, cláusulas que exigem complementos, entre outros.
No caso das condicionais, verifica-se a criação de uma configuração de
espaços que serve como moldura informacional com potencial dedutivo. A
prótase da condicional possibilita a introdução de um espaço mental P, que funciona
como um operador sobre o discurso subseqüente, e abre um domínio discursivo
por enquadramento específico. Sweetser (1990) assinala que em condicionais
do tipo “Se P, (então) Q”, o evento P é uma condição suficiente (e, em alguns
casos, necessária) para a ocorrência do evento Q.1 Visto que as noções de
necessidade e suficiência se relacionam semanticamente à noção de causalidade,
pode-se concluir que as construções condicionais são projeções hipotéticas de
manifestações causais diretas.
Tais projeções, segundo a autora, podem atuar em três domínios distintos:
de conteúdo, epistêmico e pragmático. Nas condicionais de conteúdo, a
realização do evento ou estado de coisas descrito na prótase é uma condição para
a realização do evento ou estado de coisas descrito na apódose. Essa condição
pode ser conceptualizada de modo neutro (Se o Fluminense ganhar, jogará a
Libertadores) ou de modo distanciado (Se o Fluminense ganhasse, jogaria
a Libertadores). No domínio epistêmico, as condicionais expressam a idéia de
que o conhecimento do evento ou estado de coisas expresso na prótase seria uma
condição suficiente para o estabelecimento da conclusão expressa na apódose
(Se o Fluminense jogou o Mundial, é porque ganhou a Libertadores). As
condicionais pragmáticas, por sua vez, expressam a realização de um ato de fala
representado na apódose, com base no estado de coisas descrito na prótase (Se
precisar de ajuda, meu nome é Cris).
FERRARI
122
2.1. PPostura
ostura epistêmica e primitivos discursivos
Considerando as condicionais de conteúdo, Fillmore (1990) propôs a noção
de postura epistêmica, que indica a suposição do falante sobre a realidade
descrita em P.2 Segundo o autor, a relação epistêmica que o falante estabelece
com o mundo representado na condicional poderá ser de dois tipos: o falante o
concebe como distinto do mundo real (postura epistêmica contrafactual), ou
exime-se de indicar o status do mundo alternativo representado na condicional
(postura epistêmica neutra). Os exemplos abaixo ilustram essas possibilidades,
respectivamente:3
(1) Se o Fluminense ganhasse a Copa do Brasil, jogaria a Libertadores.
(2) (Eu não sei, mas) se o Fluminense ganhar a Copa do Brasil, jogará a Libertadores.
Em estudos recentes em Lingüística Cognitiva, as construções condicionais
têm merecido análises baseadas em configurações de espaços mentais, que
incluem normalmente três primitivos discursivos: Base, Ponto de Vista e Foco.
Esses primitivos podem ser assim definidos (DINSMORE, 1991; CUTRER,
1994; FAUCONNIER, 1997):
Base – funciona como âncora da configuração; em geral, é o espaço que
serve de ponto de partida para o discurso, e ao qual se pode
sempre retornar.
Ponto de Vista – é o espaço a partir do qual outros espaços são criados
ou acessados.
Foco – é o espaço ao qual se adiciona conteúdo.
Retomemos os exemplos (1) e (2), representando-os diagramaticamente:
(1) Se o Fluminense ganhasse a Copa do Brasil, jogaria a Libertadores.
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B
PV
P (“ganhasse”)
P.E.C.
F
Q (“jogaria”)
F’
Diagrama 1 – Configuração referente ao exemplo (1)
B= base; PV= ponto de vista; P= prótase; Q= apódose;
PEC= postura epistêmica contrafactual; F= foco; F’= foco’
O diagrama acima evidencia o fato de que, tomando-se a Base como PV,
o Espaço P é construído a partir de uma postura epistêmica contrafactual. Além
disso, é o espaço ao qual inicialmente se adiciona estrutura (Foco), podendo ser
co-temporal ou futuro em relação à Base. O Espaço Q é então construído no
interior do domínio condicional, mantendo-se o PV na Base, e adicionando-se
nova estrutura a esse espaço (Foco’).
(2)
Se o Fluminense ganhar a Copa do Brasil, jogará a Libertadores.
B
PV
P(“ganhar”)
P.E.N.
Foco
Q (“jogará”)
F’
Diagrama 2 – Configuração do exemplo (2)
B= base; PV= ponto de vista; P= prótase; Q= apódose; PEN= postura
epistêmica neutra; F= foco; F’= foco’
FERRARI
124
O diagrama 2 assemelha-se ao anterior em termos de construção dos
Espaços P e Q e de alocação de PV e Foco. A diferença entre os dois diagramas
reside no fato de que, no Diagrama 2, o Espaço P é construído a partir de uma
postura epistêmica neutra.
3. Discurso Reportado e PPonto
onto de Vista
Em se tratando do discurso reportado, Cutrer (1994) demonstrou que
percursos temporais específicos são criados na configuração de espaços mentais.
Segundo a autora, os verbos dicendi estabelecem espaços que fracionam o
conteúdo do que é dito, dentro dos seguintes moldes:
a . o Ponto de Vista é preenchido pelo falante ou pelo experienciador do evento
de fala reportado;
b. o Espaço de Fala e todos os espaços subordinados ao Espaço de Fala constituem
um Domínio de Fala, de modo que configurações contendo um Domínio de
Fala têm dois Pontos de Vista inerentes, um da Base e outro do Espaço de Fala.
c. Os espaços do Domínio de Fala têm status de FATO ou PREDIÇÃO em
relação ao Espaço de Fala.
d. Espaços do Domínio de Fala podem ser acessados através dos seguintes
percursos temporais: diretamente do Espaço de Fala, diretamente da Base,
da Base passando pelo Espaço de Fala.
Com relação aos tipos de acessos descritos acima, destaquemos os
seguintes exemplos, adaptados de Fauconnier (1997, p. 89-92):
I - Acesso ao Domínio de Fala diretamente do Espaço de Fala:
(3)
João anunciará à meia-noite que queimou os documentos duas horas antes.
Em (3), o evento de fala (anúncio de João) é posterior à Base, tendo o
status de predição; portanto, é codificado pelo futuro do indicativo (anunciará).
Com relação ao evento reportado (queima dos documentos), o Espaço de Fala
passa a ser o PV, como evidencia o uso do pretérito perfeito (queimou). Esse
percurso temporal pode ser assim representado:
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(Ia) Base ---
Espaço de Fala --Futuro (PV‘)
(anunciará)
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Espaço do Evento
Reportado
(queimou)
II - Acesso ao Domínio de Fala diretamente da Base:
(4) João anunciou no início da semana que ele queimará os documentos amanhã.
Em (4), o evento de fala (anúncio de João) é anterior à Base, tendo o
status de fato. Com relação ao evento reportado (queima dos documentos),
a Base continua sendo o PV, como evidencia a escolha do futuro do indicativo
(queimará).4 Nesse caso, o percurso temporal é o seguinte:
(IIa) Base (PV) ---
Espaço de Fala --Passado
Espaço do Evento
Reportado
(anunciou)
(queimará)
III - Acesso ao Domínio de Fala do Espaço de Fala (via Base):
(5) Tom anunciou ontem que ele queimaria os documentos dois dias depois.
Em (5), o evento de fala (anúncio de João) é anterior à Base, tendo o
status de fato; é, portanto, codificado pelo pretérito perfeito (anunciou). Com
relação ao evento reportado (queima dos documentos), o PV desloca-se da
Base para o Espaço de Fala, como evidencia o uso do futuro do pretérito
(queimaria). Esse percurso temporal pode ser assim representado:
(IIIa) Base (PV) ---
Espaço de Fala --Passado (PV‘)
Espaço do Evento
Reportado
(anunciou)
(queimaria)
Como os esquemas (I) a (III) indicam, o trabalho de Cutrer (1994) abriu
caminho para a compreensão das relações entre escolhas modo-temporais e ponto
de vista em construções de estrutura argumental simples encaixadas em Espaços
de Fala. Nas seções a seguir, analisar-se-á fenômeno semelhante em um novo
contexto sintático: o das construções condicionais encaixadas nesses espaços.
FERRARI
126
3.1. O encaixe de condicionais
Como vimos, o reconhecimento de que a postura epistêmica do falante
determina escolhas modo-temporais constitui uma das importantes contribuições
da investigação sobre as construções condicionais. Sendo a postura epistêmica
definida como a associação ou dissociação mental do falante com o mundo
descrito na prótase, as condicionais caracterizam-se por exibirem postura
hipotética ou contrafactual (FILLMORE, 1990).5
Quando o falante mantém uma postura epistêmica hipotética, a condicional
sinaliza neutralidade (não há associação nem dissociação mental com o evento
ou estado de coisas expresso em P). É o que ocorre em construções como Se
chover, o jogo será cancelado. Já nos casos que evidenciam postura
epistêmica contrafactual, a condicional sinaliza distanciamento (o falante
assume que há divergência entre o estado de coisas descrito em P e o mundo
real). Por exemplo, Se chovesse, o jogo seria cancelado refere-se a uma
situação presente ou futura, em que o falante considera improvável que chova.
Como ilustram os exemplos acima, a postura epistêmica é tradicionalmente
tratada como um fenômeno unificado e coerente: uma vez que se estabelece
uma postura hipotética ou contrafactual para a prótase P, a mesma postura é
conseqüentemente herdada pela apódose Q. Nas condicionais hipotéticas do
Português, a escolha do futuro do subjuntivo em P (por exemplo, Se chover)
costuma requerer a escolha de tempos do futuro em Q (o jogo será cancelado/
o jogo vai ser cancelado).6 Sendo assim, construções como Se chover, o jogo
seria cancelado não são normalmente atestadas. Por outro lado, em condicionais
contrafactuais, o uso do pretérito imperfeito do subjuntivo (Se chovesse ) não
indica passado cronológico, mas distância epistêmica. Coerentemente, a apódose
preserva a postura epistêmica de distanciamento através do uso do futuro do
pretérito (o jogo seria cancelado). Mais uma vez, em função da pressão por
coerência, sentenças como Se chovesse, o jogo será cancelado também não
costumam ser atestadas em textos falados ou escritos.
Observa-se, entretanto, que embora a uniformidade de postura epistêmica
pareça ser a situação não-marcada, é possível relativizar essa generalização nos
casos em que a construção condicional ocorre no discurso reportado. Assim,
quando existe um Espaço de Fala no qual a condicional se encaixa, parece haver
graus adicionais de liberdade. Em casos como Ele disse que se P, Q, verificase uma dupla possibilidade de encaixe, que tanto pode ser marcado através da
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conformidade dos verbos do espaço condicional à estrutura do espaço passado
(Ele disse que se chovesse, o jogo seria cancelado), quanto através da nãoassimilação da estrutura temporal do espaço passado pela condicional encaixada
(Ele disse que, se chover, o jogo será cancelado). Além disso, há ainda a
possibilidade de flexibilização do referido encaixe, de modo que a prótase não
assimile a estrutura temporal de passado, enquanto que a apódose demonstre
conformidade a essa mesma estrutura (Ele disse que, se chover, o jogo seria
cancelado).
No caso de construções complexas como as condicionais, o que se
verifica é que a assimilação ou não da estrutura temporal do Espaço de Fala pela
construção condicional encaixada decorre de diferentes possibilidades de
estabelecimento do Ponto de Vista (PV). Com base nessa observação, a análise
do fenômeno nas seções subseqüentes será organizada em torno dos seguintes
argumentos principais:
a. o PV pode ser mantido na Base, de onde são criados os espaços P e Q
(ex.: Ela disse que, se chover, o jogo será cancelado).
b. o PV transfere-se para o Espaço de Fala Passado, via Base, de onde são
criados os espaços P e Q ( ex.: Ela disse que, se chovesse, o jogo seria
cancelado).
c. o Espaço P é criado tomando-se a Base como PV, enquanto o espaço Q,
parte da Base, mas adota o Espaço de Fala Passado como PV (ex.: Ela
disse que, se chover, o jogo seria cancelado)
Nos casos “a” e “b” acima (em que a estrutura temporal da condicional
é assimilada pela estrutura temporal de passado do Espaço de Fala ou em que
a estrutura temporal da condicional não sofre assimilação, mas mantém-se
vinculada ao espaço Base, respectivamente), verifica-se a manutenção do ponto
de vista em um único espaço e a decorrente uniformidade de postura epistêmica.
Entretanto, no caso “c”, verifica-se flexibilização do ponto de vista, que se desloca
da Base para o Espaço de Fala Passado, acarretando uma estrutura epistêmica
não-uniforme.
Essas possibilidades serão detalhadas nas seções subseqüentes, com base
em exemplos coletados em sites de busca na internet (google) e em corpus
eletrônico, que disponibiliza dados do português brasileiro escrito
(http://corpusdoportugues.org).
FERRARI
128
4. Condicionais reportadas e uniformidade de postura
epistêmica
Com relação a sentenças que apresentam estrutura argumental simples,
como “Ana viajará às duas”, o que se verifica é que tais sentenças podem ser
posteriormente reportadas mantendo-se o Ponto de Vista na Base ou deslocandoo, via Base, para o Espaço de Fala Passado ( “Ela disse que Ana viajará às duas”
ou “Ela disse que Ana viajaria às duas”). No primeiro caso, a escolha da forma
“viajará”indica que o PV mantém-se na Base. No segundo caso, o deslocamento
do PV da Base para o Espaço de Fala Passado exigiu que o verbo “viajar”
adotasse a marcação temporal de futuro do pretérito (“viajaria”).7
No caso das condicionais encaixadas, a situação torna-se um pouco mais
complexa, já que há dois espaços (P e Q) subordinados ao Espaço de Fala. A
situação não-marcada é que os espaços P e Q sejam tratados de forma uniforme
(criados a partir do mesmo PV). Como no caso de encaixe de sentenças com
estrutura argumental simples, os novos espaços podem ser criados a partir do
Espaço Base ou do Espaço Passado, via Base. Se o PV é mantido na Base, a
estrutura temporal da condicional permanece inalterada em relação à sua
estrutura original, como ilustra o exemplo a seguir:
(6) O ministro não quis adiantar o seu voto, mas disse que se não houver
quorum na sessão extraordinária (oito ministros presentes), ele decidirá
“ad referendum”. (Jornal Agência do Estado, Santa Catarina, 1996/1997)
O exemplo acima mescla elementos de discurso indireto e direto. Com
relação à estrutura dêitica, verifica-se que a condicional reportada é alterada com
relação ao pronome “ele” e ao sufixo verbal de 3ª pessoa do plural (decidirá), já
que a fala original não poderia ter utilizado esses elementos (provavelmente, o
que foi dito foi algo como “Se não houver quórum..., eu decidirei...”). Entretanto,
com relação à estrutura temporal, como ocorreria em caso de discurso direto,
a fala reportada mantém os tempos verbais da fala original (futuro do subjuntivo/
futuro do presente).
No exemplo (6), portanto, a condicional encaixada exibe postura epistêmica
neutra e uniforme, uma vez que o PV mantém-se na Base, conforme o Diagrama
3 a seguir:
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B
PV
Espaço de
Fala
Passado
P(“houver”)
F
Q(“decidirá”)
F’
Diagrama 3 – Configuração referente ao exemplo 6 (O ministro disse que
se não houver quórum na sessão extraordinária..., ele decidirá “ad
referendum”).
Outra possibilidade de manutenção de ponto de vista é a assimilação
completa da estrutura temporal da condicional pelo Espaço Passado. Há casos
em que o PV tem que ser mantido no passado porque o evento descrito não tem
mais validade no presente. O exemplo a seguir ilustra esse fenômeno:
(7) “Saí da Globo porque queria mudar para Nova York, mas meu ex-marido
foi ao Boni (José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, vice-presidente da
emissora ) e disse que se a Globo me contratasse aqui ele sairia da
emissora”, conta. (O Estado de São Paulo, 1997)
Em relação ao exemplo acima, o contexto indica que a reconstituição
adequada da condicional originalmente pronunciada seria algo como “Se a Globo
a contratar, sairei da emissora”. A estrutura neutra “Se P (futuro do subjuntivo),
Q (futuro do indicativo)” funcionou como ponto de partida para a implementação
de uma camada de passado no momento do encaixe, gerando a estrutura “Se P
(pretérito imperfeito do subjuntivo), Q (futuro do pretérito”). O Diagrama 4
representa o encaixe:
130
FERRARI
B
PV
Espaço de Fala
Passado
(disse que...)
P(“contratar”+ morfol.)
Passado+Futuro=
“contratasse”)
F
Q(“sairia”)
F’
Diagrama 4 – Configuração referente a o exemplo 7 (“...disse que se a Globo
me contratasse aqui ele sairia da emissora”).
Diferentemente do que ocorreu no exemplo (7), o evento descrito na
condicional poderia ser futuro não só em relação ao Espaço de Fala, mas também
em relação ao Espaço Base (“hoje”). Nesse caso, haveria a opção entre manter
o PV na Base ou deslocá-lo para o Espaço de Fala. No exemplo (8), em que o
evento descrito na condicional é também futuro em relação à Base, escolheuse o deslocamento do ponto de vista para o passado:
(8) Após a decisão, o ministro relator Ilmar Galvão disse que se recebesse o
processo..., na segunda-feira assinaria o despacho fixando prazos para
as diligências e indicando os novos peritos. (Folha de São Paulo, 1994)
No exemplo acima, seria perfeitamente aceitável um encaixe do tipo
Ilmar Galvão disse que se receber o processo, na segunda-feira assinará
o despacho... É possível que a opção de deslocar o PV para o Espaço de Fala
Passado esteja relacionada a fatores pragmáticos, por exemplo, a sinalização da
perspectiva do falante reportado, sem que seja necessário o comprometimento
do jornalista com essa perspectiva. Em termos de configuração de espaços
mentais, o exemplo (8) comporta-se de forma semelhante ao exemplo (7) e sua
representação diagramática.
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131
Por fim, é possível que o uso do pretérito imperfeito do subjuntivo na prótase
reflita também a não-assimilação da estrutura temporal do Espaço de Fala
Passado pela condicional. Isso pode ocorrer quando a condicional originalmente
pronunciada já apresentava estrutura distanciada, como é o caso do exemplo a
seguir: 8
(9) Cristina ficou furiosa e disse que se naquela companhia houvesse
alguma justiça, a vedete seria mesmo ela, já estava cheia desses papelórios
de mocinha, pra lá de enjoativos, sabia cantar e dançar e tinha boas pernas, aliás
cantava e dançava e não recebia (Queiroz, Dinah Silveira de, 1954, A Muralha)
Em (9), o contexto discursivo demonstra que a condicional reportada já
era originalmente distanciada (se houvesse alguma justiça, ...). Nesse caso, o
PV continua na Base; a diferença com relação aos exemplos anteriores é que
a condicional encaixada já exibia tempo verbal no pretérito em função da
sinalização de postura epistêmica negativa.
5. Condicionais reportadas e flexibilidade de ponto de vista
Na seção anterior, analisamos as relações entre localização do PV e
escolhas modo-temporais nos casos em que se mantém a uniformidade de postura
epistêmica. A presente seção abordará uma outra possibilidade: a de que a
mudança de PV da Base para o Espaço de Fala Passado acarrete nãouniformidade de postura epistêmica. Observemos os seguintes exemplos,
retirados de atas de reuniões de trabalho:
(10) (Sylvio Petrus) Disse que se for perguntado se concorda ou não com
uma carreira única para os docentes, a resposta seria a de que não
tem posição. (www.andes.org.br/cn_carreira/Relat%F3rio%201GT%20
MEC_ANDES_13%20mar%202006.pdf)
(11)
Hans comentou que se Santa Maria assumir toda a manutenção, a
equipe atual poderia ser alocada a outros projetos, provavelmente em
outras Unidades. (www.cgi.unicamp.br/zope/database/pdf/atas/
reuniao_02-10-2002.pdf )
Nos exemplos (10) e (11), o que se verifica é uma duplicidade de ponto de
vista. Na introdução da prótase, o PV é mantido na Base; para a apódose,
132
FERRARI
entretanto, o redator, partindo da Base, desloca o PV para o Espaço de Fala Passado.
A flexibilidade de postura epistêmica decorre, portanto, dessa duplicidade.
Em textos literários, a flexibilidade de postura epistêmica pode servir como
recurso de aproximação com a oralidade, como ilustra o exemplo a seguir:
(12) Mas quando eu falei de aumentar o preço, vixe! Os home viraro bicho.
Um deles teve lá em casa e garrou a xingá eu mais a Maria Preta e disse
que se o preço subir nós íamos acertar as contas no acampamento.
(Cabral, Pedro Corrêa, 1993, Xambioá: Guerrilha do Araguaia)
Da mesma forma que nos exemplos anteriores, para a introdução da prótase
(se o preço subir), o PV é mantido na Base (espaço que serve de âncora para
a narrativa); em seguida, o narrador desloca o PV para o Espaço de Fala Passado
(nós íamos acertar as contas no acampamento), conforme ilustra o Diagrama 5:
B
PV
P(“subir”)
F
Q(“ir”+morfol.
Passado+Futuro=
“íamos”)
F’
Diagrama 5 – Representação do exemplo 12 (...disse que se o preço subir
nós íamos acertar as contas no acampamento)
No exemplo (12), o narrador compartilha com o falante reportado (“um
deles”) o ponto de vista a partir do qual se estabelece a hipótese de aumento do
preço, mas o deslocamento do ponto de vista para o Espaço de Fala Passado (via
Base) permite que o ato de fala reportado na apódose – uma ameaça – seja
mantido no domínio discursivo do falante reportado (nós íamos acertar as contas
no acampamento).
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É de se notar, ainda, que as diferentes possibilidades de alocação do ponto
de vista na introdução de espaços condicionais podem permitir ocorrências de
mesclagem entre discurso direto e indireto, em que o evento P seja reportado
indiretamente e o evento Q, diretamente. Vejamos o exemplo a seguir:
(13) O líder do PFL no Senado, Agripino Maia, disse que se o depoimento
for retardado, “não tem alternativa senão a CPI do Silvinho”.
(www2.uol.com.br/oimparcial/090520061caderno.htm)
O uso de aspas no exemplo acima indica que a apódose foi introduzida
diretamente do Espaço de Fala Passado; ao passo que a prótase havia sido acessada
diretamente da Base. Nesse caso, não se verifica heterogeneidade de postura
epistêmica no que se refere à estrutura temporal; como falante e falante reportado
adotam postura epistêmica neutra, não há incompatibilidade entre tempos verbais.
A heterogeneidade, nesse caso, refere-se aos participantes: ao ser introduzida
a partir da Base, a prótase adota o PV do falante; por outro lado, ao tomar
diretamente o Espaço de Fala como ponto de partida, a apódose adota o PV do
falante reportado.
6. Encaixe em espaços epistêmicos
Tendo em vista que condicionais encaixadas em Espaço de Fala apresentam
possibilidades variadas de alocação do ponto de vista, com conseqüentes reflexos
na estrutura sintática dessas construções, a questão que se coloca em seguida
é a do grau de generalidade do fenômeno. Pode-se concluir, com base no discurso
reportado, que condicionais encaixadas em outros tipos de espaços apresentarão
a mesma flexibilidade?
A resposta parece ser negativa. A análise dos dados demonstrou que a
flexibilidade de ponto de vista não se verifica para as condicionais encaixadas
em Espaços Epistêmicos, apesar de esses espaços serem introduzidos por verbos
que atuam como construtores de espaços mentais (ex.: saber, pensar, achar).
Vejamos o que ocorre com os verbos “pensar” e “achar”. Tais verbos
sinalizam processos mentais referentes ao sujeito da conceptualização, mas não
necessariamente ao falante. Por isso, uma sentença do tipo Dunga acha que jogos
contra Peru e Uruguai serão difíceis destaca uma opinião sob o ponto de vista
de Dunga (e não do redator). Isso porque, caso o redator compartilhasse do ponto
FERRARI
134
de vista de Dunga, tenderia a dizer Dunga sabe que jogos contra Peru e
Uruguai serão difíceis. Analogamente, em uma sentença como Meu chefe
pensa que estou trabalhando, trata-se também de uma opinião que se
estabelece sob o ponto de vista do referido “chefe”; caso contrário, a versão mais
apropriada da sentença seria Meu chefe sabe que estou trabalhando.9
Quando os verbos “achar” e “pensar” abrem espaços pretéritos, o PV deverá
ser estabelecido nesses espaços, tendo em vista que a semântica desses verbos
embute a idéia de que é o ponto de vista do conceptualizador (e não do falante/
redator) que está em destaque. É o que ilustram os exemplos a seguir, em que
há encaixe de condicionais:
(14) Além disso, ele achou que se deixasse só crianças mutantes, a história
poderia ficar infantilizada. Por isso, acrescentou esse poder ao meu
personagem”, ... (televisao.uol.com.br/ultnot/2007/05/09/ult4244u124.jhtm
- 25k -)
(15) Ele pensou que se ele viesse para Seul ele poderia ganhar muito
dinheiro. Porém, ao invés de ganhar dinheiro, ele somente ficou doente e
sofreu muito ... (www.missaoboanoticia.com.br/htm/0804salvation.htm - 47k)
Os exemplos acima ilustram uma tendência categórica observada nos
dados: ao se encaixarem em espaços epistêmicos de passado abertos pelos
verbos “achar/pensar”, as condicionais herdam necessariamente a estrutura de
passado desses espaços.10
Com relação ao verbo “saber”, a situação é um pouco diferente. Quando
digo que Maria sabe que a Terra é redonda, é porque compartilho, como
falante, da crença de que A Terra é redonda. Em outras palavras, a semântica
do verbo “saber” exige que falante e sujeito da conceptualização compartilhem
o mesmo ponto de vista na Base.
Nos casos de uso do verbo “saber” no passado, entretanto, abrem-se duas
possibilidades. Tanto é possível manter o PV na Base (“Maria soube que a Terra
é redonda”), quanto é possível que o PV se desloque para o espaço passado (“Maria
soube que a Terra era redonda”). A opção de deslocar o PV para o espaço passado
parece estar ligada ao fato de que a informação compartilhada na Base (“a Terra
é redonda”) pode ser transferida “por default” para os espaços subordinados.
Sendo assim, o deslocamento do PV não entra em choque com as exigências
semânticas do verbo (a informação compartilhada na Base licencia o uso do verbo
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 16, n. 1, p. 117-140, jan./jun. 2008
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“saber”, mas a possibilidade de transferência da informação para espaços
encaixados permite a transferência posterior do PV).
Construções condicionais podem ter, portanto, dupla possibilidade de
encaixe em espaços abertos por “saber”. Se o PV está na Base, verificam-se
exemplos do tipo abaixo:
(16) Soube que se o Coríntians perder na Justiça do Trabalho, vai recorrer
à FIFA, para ficar com os direitos federativos de Max . ...
(www.radioglobonatal.com.br/blog/marcos/2007/05/16/novela_max_
pode_ser_bem_mais_longa )
Por outro lado, se a condicional se refere a eventos passados, o PV poderá
deslocar-se para o espaço passado:
(17) Do site da RFM fui para o site da Cow Parade, li tudo o que tinha a ler,
guardei os guias para ler, etc...até que soube que se fossemos escolhidos
tinhamos que ir para Lisboa pintar. (:/ espiritonorte.blogspot.com/2006/
04/como-tudo-comeou_25.html - 23k )
Em resumo, podemos concluir que há um continuum de flexibilização do
ponto de vista em condicionais encaixadas, de modo que os verbos “achar/
pensar” determinam que o ponto de vista se estabeleça obrigatoriamente no
espaço epistêmico; o verbo “saber” admite uma escolha para o estabelecimento
do ponto de vista (na Base ou no Espaço Epistêmico), mas uma vez que a escolha
tenha sido feita não poderá haver deslocamento; os verbos de fala (“dizer”,
“falar”, “comentar”, etc) não só admitem que se opte pela alocação do ponto de
vista na Base ou no Espaço de Fala, mas também não exigem que a escolha seja
definitiva (o PV pode se manter na Base para a introdução da prótase e ser
deslocado da Base para o Espaço de Fala para a construção da apódose).
7. Conclusão
O presente trabalho enfocou construções condicionais encaixadas, com
o objetivo de rediscutir a noção de uniformidade de postura epistêmica,
tradicionalmente aceita na literatura referente a condicionais. Com base em exemplos
atestados, a análise demonstrou que se observam casos de uniformidade e nãouniformidade de postura epistêmica, que não podem ser explicados em função
FERRARI
136
de restrições sintáticas inerentes às construções condicionais, mas resultam de
fatores semânticos e discursivo-pragmáticos definidos com base nas ferramentas
teóricas oferecidas pela teoria dos espaços mentais.
Inicialmente, demonstrou-se que há três relações possíveis entre ponto de
vista e postura epistêmica para o encaixamento de condicionais em Espaços de Fala,
a saber: a. uniformidade de postura epistêmica com ponto de vista na Base; b.
uniformidade de postura epistêmica com ponto de vista deslocado para o Espaço de
Fala (via Base); c. heterogeneidade de postura epistêmica com ponto de vista inicialmente alocado na Base, e posteriormente, alocado no Espaço de Fala (via Base).
O trabalho argumentou, ainda, que o encaixe de condicionais em Espaços
de Fala decorre de características semânticas dos verbos dicendi associadas a
estratégias específicas de alocação de ponto de vista. Isso explica por que verbos
epistêmicos, cuja semântica já prevê informações mais rígidas sobre ponto de
vista, não autorizam estratégias tão flexíveis de encaixe de condicionais quanto
os verbos dicendi.
Vale destacar, ainda, que na medida em que se verifica que os fatores que
determinam a estrutura sintática das condicionais encaixadas são de natureza
cognitivo-discursiva, e que o mesmo ambiente sintático (tradicionalmente, orações
completivas) pode exigir diferentes combinações modo-temporais, o trabalho
constitui uma evidência importante para o hipótese de que construções gramaticais
resultam de uma estreita correlação entre sintaxe e semântica/pragmática.
Notas
Segundo a autora, a noção de “suficiente” é estabelecida levando-se em conta o
mundo real, não possuindo o sentido lógico de (necessário e) suficiente. Embora
muitas vezes as condicionais sugiram uma leitura do tipo “se e somente se”, Comrie
(1986) argumenta que essa leitura não é parte da semântica da conjunção se, mas
resulta de uma implicatura conversacional.
1
Fillmore não associou inicialmente a noção de postura epistêmica às condicionais
de conteúdo, já que não havia ainda uma classificação das condicionais nos moldes
que seriam propostos em seguida por Sweetser (1990). Entretanto, como seus exemplos
envolvem o que Sweetser tratou como condicionais de conteúdo, pode-se considerar
que o fenômeno da coerência de postura epistêmica foi inicialmente postulado para
as condicionais de conteúdo. Tendo em vista que estudos posteriores demonstraram que
as restrições temporais nas condicionais de conteúdo são mais rígidas do que nas
2
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epistêmicas e pragmáticas (DANCYGIER, 1998; DANCYGIER; SWEETSER,
2005), a discussão que proponho neste artigo visa a demonstrar que, mesmo nas
condicionais de conteúdo, a coerência de postura epistêmica não é categórica.
Há também a possibilidade de que o falante conceba o mundo representado na prótase
como sendo compatível com o mundo real. Nesse caso, entretanto, utilizaria uma
construção temporal (Quando o Fluminense ganhar a Copa do Brasil, seus
torcedores comemorarão).
3
Se o PV fosse deslocado para o Espaço de Fala Passado (via Base), a codificação
verbal teria que ser “queimaria”.
4
As construções temporais exibem postura real ou assumida, em que o falante
associa-se mentalmente ao mundo descrito na prótase (ex.: Quando eu terminar o
trabalho, farei compras).
5
A escolha do presente do indicativo também é possível (Se chover, eles cancelam
o jogo). Nesse caso, o que ocorre é o que Dancygier (2003) denominou temporal
backshifting (recuo temporal); trata-se de um uso do tempo presente com valor
cronológico de futuro. Sendo assim, mantém-se a coerência de postura epistêmica,
já que ambos os tempos verbais apontam para eventos presentes ou futuros, a partir
de uma postura epistêmica neutra.
6
Se a referência temporal do evento “viajar às duas” é passado em relação ao Espaço
Base e futuro em relação ao Espaço de Fala, o ponto de vista terá necessariamente
que ser alocado no Espaço de Fala (Ela disse que Ana viajaria às duas) . Mas, se o
evento for futuro em relação ao Espaço Base e ao Espaço de Fala, verifica-se dupla
possibilidade de alocação do ponto de vista : no Espaço Base (Ela disse que Ana
viajará às duas) ou no Espaço de Fala (Ela disse que Ana viajaria às duas). Nesse
caso, a escolha do falante parece ser influenciada por fatores pragmáticos, que
mereceriam um estudo à parte.
7
Como demonstram Dancygier e Sweetser (2005), é possível usar a morfologia
de passado com camadas “duplas” para indicar tempo passado e postura epistêmica
distanciada. Entretanto, uma outra camada de morfologia temporal não costuma
ser herdada de um Espaço de Fala Passado, se a postura epistêmica distanciada já
estiver marcada na condicional. Os exemplos a seguir ilustram esse fenômeno:
8
(1) Se João jogasse na loteria, ficaria rico.
Em (1), há uma camada única de morfologia de passado, que marca postura
epistêmica contrafactual (e não tempo passado, já que o falante pode estar se
referindo ao momento presente ou ao futuro). Se, entretanto, encaixarmos a condicional
em um Espaço de Fala Passado, a estrutura temporal se manterá inalterada:
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138
(2) Maria disse que, se João jogasse na loteria, ficaria rico.
No exemplo a seguir, a dupla camada de morfologia indica tempo passado
e postura epistêmica contrafactual:
(3) Se João tivesse jogado na loteria, teria ficado rico.
Entretanto, ao encaixarmos a condicional em um Espaço de Fala Passado, a estrutura
temporal também se mantém inalterada:
(4) Maria disse que, se João tivesse jogado na loteria, teria ficado rico.
O que se verifica, nesses casos, é que não há marcação morfológica extra para
sinalizar o ponto de vista do Espaço de Fala Passado em condicionais que já utilizam
morfologia de passado. A regra geral é, portanto, a seguinte: se a condicional já
usa morfologia de passado para marcar postura epistêmica contrafactual, uma
segunda camada de morfologia não é herdada de um Espaço de Fala Passado mais
alto. Da mesma forma, quando a condicional já marca originalmente postura
epistêmica contrafactual e tempo passado, não é possível adicionar uma terceira
camada de morfologia de passado para encaixá-la em um Espaço de Fala.
Vale notar que, embora os verbos “achar” e “pensar” exijam que o ponto de vista
se estabeleça no espaço epistêmico, há uma sutil diferença semântica entre ambos
no português brasileiro. No caso de “achar”, o falante mantém postura epistêmica
neutra com relação à proposição encaixada (ex.:. “achar que X” admite uma leitura em
que X está na Base e no espaço de crença (Maria acha que as frutas estão maduras –
e de fato, estão), mas também uma leitura em que o sujeito se equivoca em sua avaliação
(Maria acha que as frutas estão maduras – mas ainda não estão) ; já no caso de
“pensar”, a inferência convencionalizada é de que a proposição X não se sustenta
na Base (ex.: “pensar que X” implica necessariamente que o sujeito está equivocado
– Maria pensa que as frutas estão maduras – mas, na verdade, não estão).
9
Deve-se excluir apenas os casos em que o verbo “achar” é usado como dicendi.
Nesse caso, o PV pode ser manter na Base porque se trata de discurso reportado
e não de processo epistêmico.
10
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 16, n. 1, p. 117-140, jan./jun. 2008
139
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