Às Claras
Sem acesso, sem diálogo, sem
transparência
O registro e o acesso aos agentes de Relações Governamentais para o exercício da
Democracia. Manoel Leonardo Santos , Eduardo Ribeiro Galvão e Marcello Baird
19 de Setembro de 2017 - 08h12
Crédito @wikimedia commons/dominio publico
às clarasCongressoDemocraciaDestaquesLOBBYRelGovTransparência
As decisões políticas em regimes democráticos resultam de complexos processos nos
quais muitos atores interagem. Entre esses atores, os grupos e profissionais que
representam interesses organizados não podem ser desconsiderados, dada sua potencial
capacidade de colaboração e o importante papel que podem desempenhar fornecendo
informação relevante para a tomada de decisões.
Nesse sentido, grupos de pressão, movimentos sociais, interesses organizados,
profissionais de Relgov, dentre outros, precisam ser levados em conta, principalmente
se forem vistos como um conjunto de organizações e atores políticos que oferecem
grande quantidade de inputs ao sistema político.
Sendo assim, essa participação deve ser transparente e facilitada pelos órgãos públicos.
Portanto, o registro e o acesso aos agentes de Relações Governamentais e às
dependências desses órgãos é condição sine qua non para o exercício da democracia.
Não sem razão, a OCDE defende dois pilares que considera importantes para
incrementar a legitimidade da ação política: o acesso e a transparência
Segundo a organização, manter a confiança nas instituições democráticas exige uma
aplicação diária de bons princípios de governança na tomada de decisões, em particular:
– Transparência – o público tem o direito de saber como as decisões públicas foram
influenciadas por partes interessadas ou interesses organizados.
– Acessibilidade – é necessário proporcionar o acesso igual aos decisores políticos para
garantir que o “público” também tem voz, e não apenas os “privilegiado”.
1
Os dados coletados recentemente na única fonte disponível sobre o cadastro dos grupos
de interesses na Câmara dos Deputados, o cadastro da Primeira Secretaria, infelizmente
geram preocupação.
Os números
Levantamento no âmbito de pesquisa do Centro de Estudos Legislativos, do
Departamento de Ciência Política da UFMG em parceria com o IPEA, identificou todos
os cadastramentos de grupos de interesses e de assessores parlamentares realizados na
Primeira Secretaria da Câmara dos Deputados [1]. A pesquisa cobre o longo período de
1983 a 2016. Nesse período de 33 anos foram catalogadas nada menos que 746
diferentes organizações, sendo 544 da sociedade civil (73,1%), 165 órgãos de estado
(22,1%) e mais 37 organizações (4,9%) que foram classificadas como “Outros”[2]. A
observação mais detida da evolução desse cadastro, representada no Gráfico 1, mostra
um crescimento significativo do registro dos interesses organizados no parlamento no
período em foco. O crescimento vai de 47 cadastrados no biênio 1983/84 a 436 no
biênio 2015/16. Para que se tenha uma ideia da magnitude do incremento por biênio, foi
realizada uma regressão linear bivariada (reta de regressão no gráfico 1). O resultado
mostra que o incremento de uma unidade na escala do tempo (expressa em biênios)
impacta o crescimento de 17,703 registros, em média, no cadastramento (com
significância estatística de 99,9% e R2 = 0,813). Os dados ajudam a sustentar, portanto,
aquilo que estudos anteriores já registravam: a ação cada vez mais acentuada de grupos
de interesses da sociedade e do estado no processo legislativo.
Evolução do cadastro da Primeira Secretaria da Câmara dos Deputados
1983/2016.
Fonte: Elaborado com base nos dados da Primeira Secretaria da Câmara dos Deputados (2017).
O que se vê, portanto, é uma melhora constante no registro dos grupos de interesse, que
pautam suas ações basicamente com três objetivos: buscar influir no processo decisório,
tentar abrir canais de comunicação com o Poder Legislativo e obter informações
2
relevantes para o planejamento estratégico dos seus setores de interesse. Ou seja, o que
se vê ao longo do tempo é o aumento da participação plural de interesses representados,
o que vem acompanhado, como revelam outras pesquisas, da profissionalização do
lobby.
Apesar de a trajetória crescente ser contínua no tempo, especial atenção precisa ser
dedicada à interpretação da variação atípica registrada no último biênio. Em 2013/14,
foram realizados 257 cadastramentos de entidades. No biênio seguinte, 2015/2016, o
crescimento é exponencial, passando para 436 entidades cadastradas. A que se deve
esse crescimento tão significativo e sem precedentes na série histórica?
A crise
A hipótese mais plausível para tal crescimento, embora não seja única, é que nesses dois
anos tivemos uma atividade parlamentar também atípica. Neste período de crise
política, o acesso às dependências do Poder Legislativo tornou-se significativamente
mais restrito, o que, no nosso ponto de vista, pode ter induzido maior procura por
credenciais de acesso via cadastramento na Primeira Secretaria.
De fato, o biênio 2015/16 foi marcado por fatos muito relevantes. O mais importante foi
o longo processo de impeachment da Presidenta Dilma Rousseff. Nesse contexto,
facções pró e contra o processo ocuparam com vigor a Casa, que passou a ser palco de
inúmeras manifestações. No mesmo sentido, é importante lembrar que esse processo de
impeachment foi precedido de uma atividade parlamentar atípica. Aqui nos referimos
àquilo que a imprensa batizou de “pautas bomba”. Essas pautas marcaram um período
no qual o Executivo perdeu significativamente o seu poder de agenda nos trabalhos
parlamentares, tendo a Mesa Diretora, os parlamentares, os partidos e as comissões
assumido um protagonismo pouco comum da agenda legislativa. Esse período, como se
sabe, foi resultado de duas causas básicas: as dificuldades do Executivo em administrar
sua coalizão de governo e o conflito da coordenação política do Palácio do Planalto com
o Presidente da Câmara, Eduardo Cunha, que se declarou desde o início de seu mandato
como “de oposição”.
Por esses motivos, no período pré-impeachment não foram raras manifestações no
interior do parlamento, que passou a receber muitos grupos de interesse e manifestantes
que, afetados direta ou indiretamente por essa pauta, procuravam participar e influir no
processo decisório que envolvia proposições cujo conteúdo alterava significativamente
o status quo.
O efeito do “ritmo Cunha”
Aqueles que frequentam os corredores da Câmara dos Deputados puderam sentir o
aumento do ritmo e do volume de trabalho na gestão de Eduardo Cunha. O então
presidente da Câmara dos Deputados recriou comissões, desarquivou propostas de
deputados reeleitos, recheou a pauta do Plenário e acelerou a votação de diversos temas
que o interessavam.
A sensação para os profissionais que lidam com o Poder Legislativo era de que estava
havendo mais deliberações e em um ritmo mais acelerado. Equipes tiveram que mudar
seus procedimentos internos para se adequarem ao novo ritmo.
3
Essa sensação pode ser empiricamente confirmada pelo gráfico abaixo, que revela o
aumento do número de proposições tramitando e de proposições aprovadas. A série
histórica demonstra um aumento constante e acelerado. Contudo um detalhe salta aos
olhos: no biênio 2015-2017 a curva passa a ser mais acentuada, demonstrando um
incremento superior à média histórica. Esse aumento revela que no período houve um
aumento na produção e no trabalho legislativo relativamente ao número de proposições.
Outra hipótese que se levanta a partir desses dados é de que o aumento da atividade
legislativa, número de proposições e diversidade de temas, acarretam um maior
interesse dos grupos sociais em monitorar e participar desse processo.
Consequentemente a aceleração dessa atividade vem acompanhada de uma aceleração
do interesse relativo às pautas que passam a se movimentar com ganhos de quantidade e
de diversidade. E esse aumento do interesse social ocorrendo num momento em que as
casas legislativas aumentam a restrição de acesso leva os agentes representantes de
grupos sociais a procurarem credenciais que possam garantir sua entrada e participação.
Assim, o que se observa é que esses dois anos foram bastante intensos na Câmara. O
biênio foi marcado por muitas manifestações, que alteraram inclusive os procedimentos
de segurança e de acesso ao Plenário, por exemplo. Todo o aparato para garantir a
ordem nas atividades do parlamento acabou dificultando o acesso às dependências da
Casa e, à primeira vista, gerou maior demanda por credenciais.
Cumpre registar que os dados do cadastro da Primeira Secretaria inspiram cuidado.
Embora úteis[3], não há razão para acreditar que eles retratam com precisão a magnitude
dos múltiplos grupos de interesses que atuam na Câmara dos Deputados. Certamente
este número está subestimado e é factível inferir que muitos outros interesses atuam ali,
de maneira informal. Sobre esta atuação informal, infelizmente, não há informações
precisas e seguras, e isso afeta negativamente a transparência do processo decisório.
Fechando as portas
4
De fato, as votações de pautas polêmicas têm gerado inconvenientes para a segurança
no Parlamento. Episódios como a quebra da vidraçaria da chapelaria do Congresso em
abril deste ano por conta de manifestações desencadearam ações pontuais e paulatinas,
como a restrição de acesso, na votação da Reforma Trabalhista na comissão especial do
Senado, quando foi permitida a entrada apenas dos parlamentares e a imprensa da Casa.
Ainda ilustrando, foi noticiado que no dia 02 de agosto o acesso à Câmara teria
mudanças. Em função da sessão marcada para analisar a instauração de processo contra
o presidente da República, o acesso às dependências ficou novamente restrito. As
entradas ficaram limitadas a servidores, funcionários e portadores de crachá de
identificação; a visitação institucional foi suspensa; o acesso ao Salão Verde foi restrito
servidores com crachá de acesso especial e jornalistas credenciados; e o acesso ao
Plenário foi restrito a portadores de autorização especial distribuídos pela SecretariaGeral da Mesa.
Essas restrições evoluíram para a publicação do Ato da Comissão Diretora do Senado
(ATC) nº 11 de 2017, que dispõe sobre a identificação e o às dependências do Senado
Federal, revogando o ATC nº 8 de 2010.
O credenciamento de entidades da sociedade civil, que era permitido e regulado pelo
ATC nº 8 de 2010 foi revogado pelo ATC nº 11 de 2017. Pela nova normativa somente
podem requerer o credenciamento: os senadores, até o limite de cinco; empresas, órgãos
e organizações jornalísticas; órgãos e entidades instaladas nas dependências do Senado
Federal, até o limite de seis; órgãos e entidades públicos federais, limitadas a duas para
cada. Não há previsão do credenciamento para confederações, federações, fundações
públicas federais, associações de classes e organizações religiosas, como havia antes.
Já na Câmara dos Deputados os agentes de Relações Governamentais encontram menos
óbices. O regimento interno prevê no art. 259 que entidades de classe de grau superior,
de empregados e empregadores, autarquias profissionais e outras instituições de âmbito
nacional da sociedade civil podem credenciar representantes junto à Mesa. Nas
dependências da Câmara, esses credenciados têm maior facilidade de acesso embora
alguns locais tenham acesso restrito a servidores e parlamentares.
Mas ainda assim existem limitações que cerceiam a participação social. A Câmara
limita o número de credenciados por entidade de modo que instituições que possuem
diversos colaboradores acompanhando as atividades legislativas não podem ter todo seu
pessoal credenciado.
Outra limitação é que representantes terceirizados, como advogados e consultores, não
têm direito de requerer o credenciamento. Representantes de empresas também sofrem
das mesmas restrições. Organizações não governamentais que trabalham em redes e,
portanto, não estão formalmente constituídas padecem da mesma dificuldade. O crachá
de credenciado é restrito a entidades e órgãos públicos. Todas essas limitações geram
uma distorção nos registros, que não refletem a realidade de quantos profissionais
efetivamente circulam e exercem a atividade de defesa de interesses.
Na prática todas essas organizações contam com muitos colaboradores exercendo a
atividade de defesa de interesses. Ocorre que apenas uma pequena parte desses agentes
consta “no radar”. A maior parte não consta nos registros de credenciados. Esses
5
profissionais obtêm seu acesso como visitantes normais, recebendo um acesso diário
mediante o fornecimento de nome e identidade. Mas ficam de fora do mapa de
representantes de entidades, de participantes das discussões, de agentes influenciadores.
Pluralismo, acesso e direito de petição
A Carta Fundamental do Brasil foi apelidada de “Constituição cidadã” porque recebeu a
contribuição de diversos grupos sociais na assembleia constituinte. Justamente por ter
em sua gênese, seu DNA é pluralista, valor este previsto desde seu preâmbulo.
Ademais, tem no direito de petição o corolário da participação social nas discussões de
políticas públicas.
Efeitos não intencionais e regulamentação
O que se observa na série histórica é que a formalização via cadastramento tem
tendência positiva, melhorando ao longo dos anos. Mas o período recente foi afetado
pela crise. Esse momento atípico gerou um efeito não intencional bastante positivo, pois
a dificuldade de acesso acabou gerando mais registro, o que é bom. Contudo, o caminho
para tornar esse cadastro melhor, incrementando a transparência e melhorando o acesso,
a nosso ver não pode depender de contingências. Ele deve ser fruto de uma boa
regulamentação. Afinal, esperamos todos que a crise seja passageira.
Proposta de regulamentação do credenciamento
Tramita na Câmara dos Deputados uma proposta que se mostra razoável na finalidade
de superar essas limitações e vencer o déficit de transparência gerado.
O Projeto de Resolução (PRC) nº 176 de 2016 propõe alteração do art. 259 para ampliar
o rol de credenciáveis para representantes de ministérios e entidades da administração
federal indireta, entidades de classe de grau superior, autarquias profissionais,
instituições de âmbito nacional da sociedade civil e pessoas jurídicas de direito privado,
sem limitação do número de credenciados.
A proposição tem em sua justificativa o argumento de que a redação atual do regimento
restringe a participação junto ao Legislativo de importantes segmentos da sociedade
civil e que essa reforma fomentaria a transparência, a ética e o acesso. A proposição
ainda aguarda designação de relator na Comissão de Constituição e Justiça. Aprová-la,
portanto, será seguramente um avanço significativo. Destaque-se, de todo modo, que
avanço similar precisaria ocorrer no âmbito do Senado, com vistas a garantir uma maior
transparência nas relações entre Estado e sociedade civil.
———————————
[1]
O artigo 259 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados determina que a
Primeira Secretaria deve manter o cadastro dos grupos de pressão e da imprensa que
atuam na Casa. O Regimento prevê, também, o cadastramento dos assessores
parlamentares dos órgãos do estado, representados pela burocracia estatal. O primeiro a
usar o cadastro dos grupos de interesse no legislativo como fonte de pesquisa foi Murilo
6
Aragão (1994). Em seu trabalho o autor usou os dados da Primeira Secretaria da
Assembleia Nacional Constituinte (ANC) (1987/1988) para fundamentar seu seminal
estudo sobre a atuação do lobby no legislativo.
A categoria “Outros” é formada por sociedades de economia mista, pelas instituições
financeiras e pelas empresas públicas, que por motivos conceituais não se encaixam
nem como órgão de estado nem como grupos de interesse da sociedade civil.
[2]
[3]
Embora ofereçam uma visão apenas parcial, o uso dos dados se justifica porque a
frequência bianual estabelecida para o recadastramento permite uma visão da evolução
do cadastro numa longa série histórica. Assim, ainda que o cadastro não seja obrigatório
e, portanto, não impeça a atuação de assessores parlamentares e lobistas, se cadastrar
representa vantagens significativas para o desenvolvimento da atividade, entre elas: (i) a
emissão de um crachá de identificação que dá ao cadastrado credibilidade na abordagem
ao parlamentar; (ii) o acesso facilitado às dependências fechadas do CN; (iii) o acesso
privilegiado ao estacionamento e ao prédio do CN, por exemplo, em dias nos quais está
fechado ao público; (iv) evitar passar pela revista e enfrentar filas, entre outros. Essas
vantagens foram apontadas pelos próprios lobistas e assessores em entrevistas
realizadas no âmbito dessa pesquisa. As mesmas entrevistas mostraram que 89,7% dos
entrevistados afirmaram que SIM, existem vantagens em se cadastrar na Primeira
Secretaria. (Santos, 2014b)
Manoel Leonardo Santos - Professor do Departamento de Ciência Política da
Universidade Federal de Minas Gerais e Diretor do Centros de Estudos Legislativos da
UFMG.
Eduardo Ribeiro Galvão - Professor do MBA em Relações Institucionais do Ibmec.
Marcello Baird - Professor do curso “Democracia e Legislativo” da Escola do
Parlamento da Câmara dos Deputados, professor do curso de Relações Internacionais da
ESPM e professor do MBA de Relações Governamentais da FGV.
Os artigos publicados pelo JOTA não refletem necessariamente a opinião do site. Os
textos buscam estimular o debate sobre temas importantes para o País, sempre
prestigiando a pluralidade de ideias.
7