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Marcela e Alexandre; Família Costheck Abílio: Rose, Romeu e Vanessa. Família quartas-feiras, Filosofia em Pânico, MST, ZoomB, Esqueleto Coletivo, Barulho, Escola Nacional Florestan Fernandes, galera do Largo da Batata, violão. Tamo junto. Resumo No dia 25/07/2010 o programa Pânico na TV levou ao ar uma brincadeira realizada ao vivo com seus próprios humoristas. Logo que chegaram ao aeroporto de Guarulhos vindos da África do Sul, onde cobriram a Copa da FIFA, foram recebidos pela produção que lhes ofereceu uma carona merecida, já que a equipe estava exausta da viagem e, segundo o próprio programa, havia trabalhado sem descanso e em péssimas condições. Ao invés de irem para casa,
Ao Prof. Dr. Manoel Oriosvaldo de Moura, Ori, orientador dedicado, que nos mobiliza, constantemente, na busca por um mundo mais humano. À Elaine, Diana e Marta, pela seriedade e respeito com que apreciaram o meu trabalho no exame de qualificação. Aos amigos do GEPAPe, Wellington, e aos novos integrantes, pelos profícuos momentos de estudo, que contribuem para o meu desenvolvimento pessoal e profissional. Às professoras participantes da Oficina Pedagógica de Matemática em Ribeirão Preto, pela aprendizagem compartilhada. Aos professores do Departamento de Teoria e Prática de Educação, em especial aos da área de Prática de Ensino, pelo apoio oferecido durante a realização desta pesquisa. À Longhini, pela revisão deste texto. Às amigas Angélica, Cida Favoreto, Aparecida Augusta e Vanessa, pelas contribuições valiosas. Aos meus pais, Ester e Osvaldo, que sempre apoiaram minha caminhada. À D. Maria e a Edimara, por cuidarem, com amor e dedicação, dos meus filhos para que eu pudesse realizar este estudo. À minha irmã, meus cunhados, cunhadas, sobrinhos e sobrinhas, que sem perceberem, só por existirem, contribuíram para o desenvolvimento desta pesquisa. Ao Eraldo, pela ajuda com seus conhecimentos na área de computação. Aos amigos e amigas, Thiago pelo carinho na medida certa. Aos funcionários da secretaria do Programa de Pós Graduação -USP e do setor de Capacitação Docente da Universidade Estadual de Maringá pelo atendimento preciso. À CAPES, pelo apoio financeiro. RESUMO MORAES, S. P. G. Avaliação do processo de ensino e aprendizagem em Matemática: contribuições da teoria histórico-cultural. 2008. Tese (Doutorado em Educação) -Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.
No livro com o sugestivo título "The fall of Rome and the end of Civilization", Bryan Ward-Perkins faz uma forte crítica às interpretações que relativizam o declínio do
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
RESUMO: O objetivo deste trabalho foi investigar os efeitos do uso de água salina em diferentes estádios de desenvolvimento de plantas de feijão-de-corda sobre a eficiência de utilização de água e de nutrientes. O experimento foi conduzido no campo e obedeceu ao delineamento em blocos ao acaso, com cinco tratamentos e cinco repetições. Os tratamentos empregados foram: T1 -água de poço com condutividade elétrica (CEa) de 0,8 dS m -1 durante todo o ciclo; T2 -água salina (CEa de 5,0 dS m -1 ) durante todo o ciclo; T3, T4 e T5 -água salina de 0 a 22 dias após o plantio (DAP), de 23 a 42 DAP e de 43 a 62 DAP, respectivamente. As plantas dos tratamentos T3, T4 e T5 foram irrigadas com água de poço nas demais fases do ciclo. Aos 8; 23; 43 e 63 DAP, as plantas foram colhidas e determinaram-se a matéria seca total e de grãos, a eficiência no uso da água, considerando a produção de matéria seca total (EUA P ) e a produção de grãos (EUA GR ), e a eficiência de utilização de nutrientes (K, Ca, N, P, Fe, Cu, Zn e Mn). A aplicação de água salina durante todo o ciclo (T2) reduziu a EUA P e a EUA GR , enquanto a aplicação de água na fase inicial do ciclo (T3) reduziu a EUA GR e a eficiência de utilização da maioria dos nutrientes. Por outro lado, a irrigação com água salina dos 23 aos 42 DAP (T4) e dos 43 aos 62 DAP (T5) não afetou as eficiências nos usos de água e de nutrientes.
A prática de excertos orquestrais como contributo para o desenvolvimento da leitura à primeira vista na aprendizagem de violino no Ensino Especializado da Música, 2017
The current internship report concludes the module of Supervised Practice of Teaching – a professional internship that belongs to the Masters’ program of the course Music Education from the University of Minho. This internship took place during the academic year 2016-2017 in the Conservatory of Music Calouste Gulbenkian of Braga, in the disciplinary groups M24 – Instrument, Violin; and M32 – Instrumental Ensemble. The Project on which the Pedagogical Intervention was based, was realised with pupils of different stages of the Portuguese Educational System: Three pupils from “1° ciclo”3 until “3° ciclo” and two from upper school. Tests of sight reading (initial and final) were made, and the results compared with those from another group of five pupils (control group) for methodology evaluation purposes. The main task of the Project was to approach the practice of orchestral excerpts in violin lessons, and with it to develop sight reading to bring the work of orchestral excerpts to the classroom, as a pedagogical practice. This has shown valuable benefits to the development of sight reading as well to other skills, increasing the range of known repertoire and maturity leading to greater musical experience. Various data collection tools were used, such as interviews with students, recordings, interviews with the cooperating teacher and also with experts in the field. The interest of violin teachers in applying this practice in their classes was also investigated. Through the results obtained it was possible to observe that the Project contributed to an important development of sight reading skills of these students and to a better understanding and exploration of excerpts from the orchestral symphonic repertoire, as well as to an awareness of the pertinence of the introduction of this type of work in violin lessons.
As metodologias de análise de recursos originárias da Visão Baseada em Recursos, como o modelo proposto por Mills (2002) e o VRIO proposto por Barney e Hesterly , são correntes de pensamento renomadas na área de estratégia empresarial, porém são atividades de difícil aplicação prática nas organizações. A partir disso, este artigo tem como objetivo analisar a vantagem competitiva gerada por um software interno de gestão organizacional para uma empresa que realiza assessoria educacional por todo o nordeste do Brasil e tem sua sede em Natal no Rio Grande do Norte. Para realizar tal atividade a coleta dos dados foi feita através de um questionário com perguntas abertas dirigidas aos sócios diretores da empresa, seguido de uma entrevista para maiores esclarecimentos de dúvidas. Trata-se de uma pesquisa exploratória descritiva, com abordagem qualitativa, através do método estudo de caso. Os resultados demonstraram que o software gera vantagem competitiva a empresa, porém essa não é sustentável devido a sua fácil imitabilidade.
II
A cada edição o Big Brother Brasil impõe a seus participantes situações mais árduas. O diretor do programa explica porque isso ocorre: "Da mesma forma que esses caras se preparam para participar, a gente aprende a surpreendê-los. De um programa para outro, percebemos que eles estão mais espertos e, então, nos preparamos para ficar mais espertos ainda. É meio que um jogo de gato e rato o tempo todo." 33 Há uma relação direta entre o que se sabe a respeito do programa e o grau das dificuldades a serem transpostas. Por exemplo: os confinados sabem que a maioria das provas para a conquista da "liderança" é "de resistência", então se preparam, como esportistas, "física e psicologicamente". Já que o terror funciona mediante o susto, a direção trata de criar ardis para que os níveis de atordoamento e sofrimento se mantenham elevados. Foi o que aconteceu algumas horas antes da tortura da garagem: o programa simulou uma "prova do líder" na qual as pessoas deveriam ficar em pé, segurando pedaços de corda que as ligavam umas às outras, sem tocar no círculo desenhado no chão, até que o último a sair não ganhasse nada 34 .
Assim, quanto mais esperto se tornar o participante, mais cruel a prova à qual será submetido e mais estúpido será o seu voluntariado. E isso não segundo um julgamento Benthaminiano: o desprazer se torna maior que a recompensa; há, portanto, um erro de cálculo por parte dos aprisionados. Segundo esse raciocínio, a presunção da esperteza seria falsa. Eles, de fato, não sabem o que fazem: ou estão enganados quanto à recompensa ou estão enganados quanto ao sofrimento necessário para conquistá-la. Mas eles são sim a nata da astúcia, o próprio gato da brincadeira o admite. Se algum dia a justificação utilitário-hedonista fez algum sentido é porque tinha como pressuposto a aparência da equivalência. Nos programas em que as pessoas fazem o 31 Idem, ibidem. 32 Rodrigues, Silvia Viana. Dom de Iludir. Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de Sociologia da FFLCH-USP, 2005. 33 " 'Big Brother' não é cultura, é um jogo cruel", diz Boninho. Folha de São Paulo, 21/03/2010. 34 http://correio24horas.globo.com/noticias/noticia.asp?codigo=54364&mdl=29. Última visita: 10/06/2010. 18 papel de si mesmas essa aparência se dissipa. Elas podem até receber um cachê -como os antiquados trabalhadores da representação cênica -por cada dia de aprisionamento vigiado 35 , o que já daria à emissora aquele algo mais do qual Marx falava. Porém, ao serem elas mesmas, não realizam menos trabalho que um ator contratado, pelo contrário, absolutamente tudo o que fazem, da cama ao chuveiro, se converte em trabalho. Absolutamente tudo o que são, das idiossincrasias às neuroses, se converte em lucro para a emissora. E a forma de pagamento a essa outra forma de trabalho, que é a substância manifesta dos realities, se realiza apenas no prêmio final. Logo, entre todos os participantes, apenas um terá seu trabalho de ser vigiado recompensado. Ainda assim, não custa questionar, é possível estabelecer uma grandeza para esse trabalho? Um, dois milhões de reais pagam por aquilo o que um sujeito é? A desavergonhada resposta positiva a essa questão, dada pela própria existência do espetáculo da realidade, trás à luz aquilo o que o ideal de justiça burguês outrora mascarara: por trás da equivalência está a subsunção. O simples fato de apenas um entre quinze receber o seu quinhão já deixa bastante claro que não estamos mais no reino da justiça, e nem pretendemos estar. Essa apropriação imediata não é apenas conhecida, é ela que faz desse jogo aquilo o que ele é: um jogo de aniquilação. E de tudo isso os espertos estão carecas de saber, por isso são tão espertos. Sabem o quanto terão que penar se quiserem lograr êxito; mais que isso, sabem perfeitamente bem que as chances dessa pena ser em vão são bastante superiores àquelas de não o ser. Sabem também que, por isso mesmo, não podem titubear diante dos outros, ou serão passados para trás. Se nossa questão se pautasse pelo grau de esclarecimento apresentado pelos protagonistas de reality shows o problema estaria desde já resolvido. A racionalidade instrumental reina entre esses que, ao fim e ao cabo, só querem mesmo receber o peso de seu caráter em ouro.
Se os aprisionados são assim tão esclarecidos, onde se encontra sua estupidez? Do ponto de vista do diretor, os participantes podem fazer o papel de otários quando confrontados com suas armadilhas 36 . A burrice seria, então, apenas contingente, parte do jogo de gato e rato, no qual o titereiro busca se colocar sempre um passo à frente, criando elementos surpresa que realmente surpreendam. Porém mesmo nas mais que freqüentes exceções às regras do programa é possível que se subestime a sapiência dos participantes. Eles entenderam imediatamente que aquela 35 Isso não é uma certeza, pois o contrato ilegal assinado pelos participantes desses programas é algo como um segredo de Estado. 36 "O que me incomoda é quando não conseguimos provocar esses caras e eles conseguem ficar 'armados'. Mas geralmente a gente consegue desmontá-los", diz Boninho. " 'Big Brother' não é cultura,é um jogo cruel". 19 palhaçada pré-"prova do líder" não era a palhaçada válida: "Certeza que isso não é a prova ainda", "Eles falaram que quem sair não pode comer. Então é porque vai ter outra coisa de noite" 37 . Ao mesmo tempo em que mantinham essa conversa, eles permaneciam em pé, formando uma roda, segurando cada qual a sua cordinha, por mais de uma hora, esperando as desistências que não vieram, como um bando de imbecis. A cena é fantasmática, como se aqueles corpos não pertencessem àqueles que ponderavam. Não se trata, portanto, de uma situação fluida, na qual a consciência e o engano são intercambiáveis de acordo com as circunstâncias. Gato e rato habitam harmoniosa e simultaneamente um mesmo sujeito.
No programa A Fazenda, o termo utilizado para o ritual de expulsão é "roça". Apesar de indicar a dimensão de rebaixamento daqueles que deixam a "sede da fazenda" a caminho de uma possível eliminação, não se popularizou. Isso porque a derrota não admite meios-tons, ela é absoluta, equivale à extinção. Segundo um participante da décima edição, "o paredão é que nem a morte" 11 , estar no paredão é estar "jurado de morte" 12 . Em se tratando de fantasia ideológica é o exagero que apresenta a efetividade, nesse caso, o exagero ficou aquém do fantasma do paredão. Pois a saída da casa é ao mesmo tempo a passagem para uma outra realidade e para realidade alguma. Trata-se de uma morte, mas de uma morte sem transcendência, pois do lado de lá do paredão está a aniquilação simbólica, o esquecimento.
Esse é apontado por outro termo que interpela na mesma proporção em que se espraia: "Ex-BBB" é uma categoria que abarca um grupo específico de sujeitos e simplifica uma situação 10 Idem, p. 184. 11 http://diversao.terra.com.br/tv/bbb10/noticias/0,,OI4297527-EI14684,00.html. Última visita: 02/03/2011. 12 http://180graus.com/bbb10---big-brother-brasil/to-jurado-de-morte-diz-dourado-apos-ser-indicado-ao-paredao-300252.html. Última visita: 03/03/2011. complexa. A expressão não os define pelo que são, foram ou prometem ser, mas por aquilo o que foram e deixaram de ser. Mas ao contrário dos ex-cônjuges, aquilo o que não mais são, por definição, não era mesmo para permanecer. São pessoas que entraram provisoriamente no espetáculo, um mundo eterno -não por existir desde sempre, mas por abolir tudo o que possa haver de substancialmente novo e que, por isso mesmo, transforma notoriedade em mumificação e a isso chama fama. "Ex-BBBs" são os temporários da fama. Evidentemente isso não os distingue da maioria esmagadora dos ditos famosos, que surgem e evaporam cotidianamente. Mas a ritualização de sua eliminação e, principalmente, seu batismo postmortem positivam e dão forma ao esquecimento fabricado pela indústria cultural. Aqueles que participaram do Big Brother Brasil permanecem em uma espécie de limbo sustentado pela designação. Como espectros, eles não desaparecem de fato: são presença obrigatória em programas de baixo prestígio mercadológico, nos quais comentam as novas edições do prestigiado reality show -isso até que "ex-BBBs" mais "frescos" assumam o posto -e no carnaval do ano posterior ao de sua participação; às vezes se materializam em algum acontecido de pouca repercussão e nenhuma importância, para os quais as manchetes invariavelmente reservam um "lembra dele?" 13 Em todos os casos, não há a menor preocupação com a pseudo-individualização do estrelato à qual se referem Adorno e Horkheimer 14 . Pelo contrário, eles aparecem como categoria vazia, sua aparição é ao mesmo tempo uma ausência. Isso é ainda mais evidente em uma brincadeira recorrente na TV e na internet, uma espécie de quiz no qual pessoas são abordadas para tentarem se lembrar de fulano ou beltrano, "ex-BBB". A recordação daqueles indivíduos mostrados nas fotos ou evocados pelo nome é secundária, fundamental é a lembrança permanente de seu esquecimento. 15 Mais que a memória viva do esquecimento ao qual são relegados, os "ex-BBBs" encarnam uma piada vaga. O termo nunca é usado na forma neutra de uma classificação, ele é uma pecha e 13 "Lembra dela? Ex-BBB Michelle faz ensaio fotográfico"; "Lembra dos ex-BBB Thyrso e Emilio? Foram curtir samba no Salgueiro!"; "Lembra dela? Ex-BBB Solange reaparece no Rio"; "Lembra do ex-BBB Alberto Cowboy, o vilã do BBB7? Lança CD sertanejo"; "Ex-BBB Michel -lembra dele? -ataca de DJ"; "Ex-BBB Agostinho (lembra dele?) se veste de mulher em peça de teatro"; "Lembra da ex-BBB Pink?! Pois ela é candidata"... Fonte: Google -digitar "lembra ex-BBB" para 257.000 resultados. Última visita: 04/03/2011. 14 Adorno; Horkheimer. "A indústria Cultural". In: Dialética do Esclarecimento. 15 Em uma entrevista, Fernando Bacalow, participante da sétima edição, apresentou esse paradoxo: "Foi uma fase muito marcante da minha vida. (...) Você renasce como uma fênix, das cinzas. Você passa a ser uma outra coisa na época que você está na crista da onda. Você trabalha bastante, ganha-se bastante dinheiro. Porém, parece que todo o seu conteúdo, tudo o que você viveu até então é esquecido... que eu estudei, que fiz faculdade, que isso, que aquilo. Todo mundo se esquece e lembra de você só como um ex participante de um reality show. Esquece que você é um ser humano, que você é de carne e de osso. (...) Sou novo ainda, tenho 28 anos e não quero ser lembrado pro resto da minha vida pelo...". Se eu pudesse completar a frase interrompida pelo entrevistador, diria: "não quero ser lembrado pro resto da minha vida pelo meu esquecimento". Programa BBB na Berlinda do dia 16/02/2011. Última visita: 06/03/2011. assim é reconhecido por aqueles que a carregam 16 . Mesmo os que lograram passar de temporários para contratados (uns três ou quatro entre os mais de cento e cinqüenta que até hoje passaram pelo programa) alegam terem sofrido "preconceito" por sua condição de "ex-BBBs" 17 . Alguns argumentam que isso se deve à sua hiper-exposição no programa. Contudo, aquele que se expõe por mais tempo se mantém imune à chacota. O "vencedor da edição X do BBB" não é um "ex-BBB", ele tem nome e imagem. Assim como os demais, tende a ser esquecido, mas a pergunta que o retirou do brilho dos holofotes foi diferente: "quem você quer que vença?" ao invés de "quem você quer eliminar?". O fato de não ter saído via
Apesar do enigma da eliminação, os aprisionados do Big Brother não abrem mão de suas "estratégias de jogo". São duas as principais: "ser você mesmo" ou "jogar". Posturas às vezes postas como contraditórias e excludentes, já que na "vida real" as pessoas não estão "jogando". Em outros momentos, no entanto, a "estratégia" é "ser você mesmo", pois isso seria um sinal de honestidade, a pessoa não estaria "simulando" algo que ela não é. Mas a honestidade pode estar justamente na postura oposta: a afirmação veemente de que aquilo é um jogo que deve ser jogado. Disse um dos vencedores do programa: "a minha estratégia é não ter estratégia, o que já é uma estratégia" 8 . Ao fim e ao cabo ninguém nega que se trata de um jogo, cada qual escolhe suas armas, e "elimina" o outro para não ser "eliminado". O único pecado é "não jogar", não no sentido de "ser você mesmo", mas no sentido de não agir em prol da eliminação de alguém. Na nona edição do programa o apresentador se mostrou preocupado com a "passividade" dos participantes: "Vocês estão cruzando os braços, mas se há uma coisa exclusiva desta edição é que não há um favorito uma semana antes da final. Por isso, o que pode ser chamado de falta de combatividade pode ser fatal para a chance de vocês". 9 O que vem a ser essa "combatividade" e como isso altera as chances de alguém pouco importa, o fundamental é não cruzar os braços, ir à luta, batalhar... Temos então um critério, mas é um critério sem conteúdo: o movimento. As ditas "samambaias", aqueles que não falam, não aparecem, ficam "em cima do muro", se "acomodam" em suma, que não aparentam atividade, qualquer atividade, são os únicos que se tornam alvos certos. Como afirmou certa vez um participante do reality O Aprendiz: "como ganhar a gente nunca sabe, agora o caminho para perder a gente sabe, não tem erro" 10 . Ele se referia a uma colega que foi eliminada por "não ter agido" na "sala de reunião", enquanto os outros membros de sua equipe a atacavam. Esse programa é um processo seletivo para executivos, cujo grandioso prêmio, após muito trabalho gratuito, é a oportunidade de trabalhar ainda mais: um emprego na empresa do empresário-apresentador da vez 11 . O Aprendiz é um festival de injunções paradoxais, próprias de qualquer manual de gestão: pensar em si / pensar na equipe; comandar /obedecer; seguir regras / romper regras; ser modesto / ser pretensioso; concorrer / cooperar etc. É necessário fazer tudo isso e muito mais, mas, acima de tudo, é preciso fazer. Na semana seguinte à dessa demissão, outro saiu por motivo idêntico, para O imperativo da "pró-atividade", por incrível que pareça, tem um significado preciso. Mais que um abstrato "ser a favor da atividade", significa um abstrato antecipar-se aos problemas que ainda não existem, mas que podem vir a existir. E se, por um lado, o futuro é incerto, por outro não há nada mais palpável que a linha de aniquilação. Por isso a "acomodação" não é apenas algo desvalorizado, ela é sempre "fatal". Aqueles que, segundo os juízes, fazem um bom trabalho e repetem a façanha no desafio seguinte estão tão ameaçados quanto os que fizeram algo considerado ruim, pois não se mostraram ainda melhores. Com base nesse critério os encarregados das eliminações não têm a menor vergonha de dizer que para fulano a exigência é uma e para beltrano é outra. Em uma final do America´s next top model 13 uma das modelos foi, para o júri, "perfeita" em seu desfile, a outra recebeu algumas críticas; venceu a segunda, 15 Os seriados e filmes policiais americanos chegam a ser engraçados nesse aspecto. Nas tomadas internas em que não há tiros, lutas ou perseguições, mas a tentativa de "juntar as peças do quebra-cabeças", a delegacia parece um formigueiro. No primeiro plano ficam os detetives principais, em torno dos quais correm, atarefados, os outros. Eles valorizada que mal esconde o terror que a conforma: "correr pela rua dá uma impressão de pavor. (...) A postura da cabeça, tentando manter-se erguida, é a de alguém que se afoga, o rosto tenso assemelha-se à careta de dor. Ela tem que olhar para a frente, quase não consegue olhar para trás sem tropeçar, como se seu perseguidor -cuja visão deixa-a gelada de horrorjá respirasse em sua nuca. Outrora, corria-se de perigos demasiados terríveis para que se lhes fizesse face e, sem saber, disso ainda dá testemunho quem corre atrás do ônibus que se afasta velozmente. O regulamento de trânsito não precisa mais levar em conta os animais selvagens, mas ele não conseguiu apaziguar a ação de correr." 16 Correr é um ato cindido. A premência de alcançar o que está à frente é sempre também a fuga febril de uma ameaça que se aproxima por trás. O objeto a ser conquistado equivale ao caminho a ser vencido tanto quanto "correr atrás" equivale a "agüentar a pressão". Aquele que corre estica seus braços, dedos e olhar ao ônibus que já dobra a esquina, à árvore que impedirá o animal de alcançá-lo. Nesse gesto, árvore e ônibus tornam-se objetos do mais cristalino desejo. A ambivalência da pressa se fixa na vitória de quem apenas se safou, sua conquista é a conservação. Na época de Theodor Adorno o caminhar era o ritmo "ao qual nosso corpo se habituou como o normal", mas na disparada eventual ainda se fazia ouvir a "violência arcaica que de outro modo guia imperceptivelmente cada passo" 17 . Hoje ela é mais que perceptível, pois o grito "Corre!" é uma ameaça permanente e também o único horizonte em nossa sociedade, como para o "prisioneiro a quem a escolta manda fugir para ter um pretexto de assassiná-lo". Nossos heróis e modelos, especialmente na figura do empreendedor bem-sucedido, são aclamados por nada mais que sua capacidade de auto-conservação. Como quando a CEO da Xerox afirma com orgulho que buscou a inspiração para a reestruturação de sua empresa no livro Endurance, "que mostra como há mais de um século o desbravador inglês Ernest Shackleton livrou-se de uma tragédia que liquidou sua embarcação na Antártida, comendo pingüim e foca, à deriva num bloco de gelo" 18 . Já uma consultora de grandes empresas no Brasil escreveu um livro cujo título já diz muito: "Sobreviver: Instinto de vencedor", ela se inspirou em pessoas como "o modelo Ranimiro Lotufo, que perdeu a perna direita num acidente" e "Edith Eva Eger, sobrevivente do campo de concentração nazista de Auschwitz" 19 . O ar puro que respiram os "vencedores" só parece grande coisa porque sob sua cabeça está pintado um mar revolto. Que imagem pavorosa! E é essa a face macilenta da nossa esperança. Pânico e aspiração são não param, mas participam da conversa central atirando seus insights ao ar, os protagonistas capturam tudo o que é acrescentado em tom de jogral até que, em dois minutos, o caso está solucionado. Uma cena de ação na qual os tiros são as palavras, ou o ideal do brainstorming, adorado pelos managers. 16 objetivamente convergentes no mundo do puro movimento. Aspirar é querer e é também levar ar aos pulmões. Por isso a propaganda do caráter empreendedor não mente quando afirma seu desejo irrefreável pelo que está adiante, trata-se da ânsia real daqueles que sentem a respiração da fera na nuca. Mente deslavadamente quando aplaude esse ritmo "extorquido ao corpo por uma ordem ou pelo terror" 20 como único possível. Brasil do Chile quando lá deixado sem dinheiro 21 . Em uma prova na qual os aspirantes a executivos tiveram que praticar rapel, uma das concorrentes afirmou que não "rendeu" por não estar em seu "ambiente". Roberto Justus questionou: "você só consegue trabalhar bem nos ambientes que são favoráveis a você?". Após essa demissão óbvia, a "conselheira" do empresário -há dois executivos que trabalham nas empresas do apresentador e que, no programa, o auxiliam nos escrachos -disse: "ela se entregou, foi uma desistente", Justus completou: "não tem uma coisa que me incomode mais que a pessoa passiva. Numa situação de pressão como essa, numa situação de sobrevivência, a pessoa tá entregue" 22 . A "passividade", nesse caso, diz respeito à recusa da candidata de "sair de sua zona de conforto", como gostam de dizer os gurus da mobilização total. No desconforto está a mensuração da "adaptabilidade", e também a produção de trabalho polivalente. Mas uma modelo que saiba atuar e um roqueiro que interprete pagode é o mínimo exigido, é preciso bem mais que romper as limitações das competências, é preciso romper quaisquer barreiras. completo o movimento -o que não é raro -ninguém sai. Aquele que se rende a seu próprio organismo não serve. Justus explica melhor: "A Carol tá fraquejado dentro do Aprendiz, então a Carol falou com a produção, ela tá cansada, tá difícil essa pressão, ela tem problemas físicos, de saúde. E ela não agüenta essa pressão. Tudo o que eu não preciso dentro do meu grupo é alguém que não tem força para enfrentar uma seleção como essa quando se predispôs a enfrentar uma seleção como essa. Portanto, Carol, você está demitida." 23 Essa pediu para sair, já uma modelo queria permanecer na competição apesar de ter ficado doente, chegando a ser hospitalizada. No rito de eliminação seguinte a apresentadora lhe disse: "Monique, we look at you and wonder: 'does she want this enough?' We've had girls that have been siiiiiick. I.V.'s! Oxygen! But they've gotten up, and they've trekked through the jungle on an elephant to do a photo shoot. So we wonder, just how sick was she?" 24 . Os jurados interpretaram sua doença como má vontade. Eliminada.
Esse é o subtexto de todos os chamados reality shows de transformação estética. No programa Esquadrão da moda 37 , a participante é inscrita por conhecidos para que tenha seu modo de vestir devidamente descartado. Os especialistas (uma modelo e um consultor de estilo) primeiro assistem e comentam, junto aos conhecidos e à vítima, a um vídeo realizado à sua revelia, que mostra seu "visual" no trabalho e em encontros sociais. Então a não voluntária é achincalhada por todos, para que se convença de que, em primeiro lugar, aquele modo de vestir é prejudicial à sua imagem; em segundo lugar, mudar, por si só, é bom. Essa aula é posta em prática quando, no estúdio, os experts jogam todas as roupas da participante em uma lata Extreme makeover: Home edition -a casa é "recauchutada" -e Extreme makeover: weight loss edition -o peso é "enxugado". 39 Feldman, Ilana. "O pavor da carne: entrevista com Paula Sibila". In: Revista trópico.
http://pphp.uol.com.br/tropico/html. Acesso em 20/07/2010. Curiosa mesmo é a persistência do paradigma do gozo como chave explicativa de nossa sociedade, quando a última moda em alimentação, recomendada para que se tenha uma vida saudável, é a "ração humana" 40 . Mesmo as propagandas, esse termômetro preciso para a medição da voz do Outro, cada vez mais apelam à "responsabilidade" do consumidor em lugar da promessa de prazer imediato, especialmente no que tange à ecologia e à gestão do corpo 41 .
Um dos argumentos que sustentam a hipótese do gozo é o discurso, cada vez mais escasso, das empresas e manuais de gestão, de que o trabalho deve deixar de ser um fardo, deve dar prazer etc. Vladmir Safatle, por exemplo, afirma que a demanda por flexibilidade deriva da "plasticidade infinita da produção das possibilidades de escolha no universo do consumo", sendo assim "os dispositivos de controle no mundo do trabalho são agora decalcados das dinâmicas em operação nas práticas de consumo", derivam de uma "ética do direito ao gozo" 42 . Essa se contrapõe à ética do trabalho, característica da "sociedade da produção", 40 O nome é esse mesmo! Trata-se de uma evolução das já abstratas barrinhas de cereais. É uma mistura de aproximadamente uma dúzia de ingredientes em pó (soja em pó, farelo de trigo, farelo de aveia, gergelim, levedo de cerveja, linhaça dourada moída...), que promete emagrecimento e vida longa e que provavelmente não tem gosto de coisa alguma -não sei, pois não comi e nem pretendo dar-me a esse desprazer. 41 Isleide Fontenelle se deu conta dessa tendência ao analisar a "redenção como uma nova forma de mercadoria". O que os estudiosos da ideologia maternal desconsideram é a mutação ocorrida no mundo do trabalho e, em conseqüência, na esfera do consumo graças à teoria, e principalmente à 44 Safatle, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. p. 125. 45 Trata-se de uma exploração baseada em "diferenciais de mobilidade", na qual aqueles que se movem por mais espaços com maior velocidade se apropriam da mais-valia dos menos voláteis. Por trás da aparência de uma "rede horizontal", na qual os diversos trabalhos autônomos colaboram, está uma cadeia de acumulação que vai do capital financeiro, passando pelas multinacionais, suas empresas terceirizadas até chegar ao trabalho precário, ainda produtor de mais-valia. Luc Boltanski e Eve Chiapello. El nuevo espíritu Del capitalismo. p. 481-483. 46 "O desejo, ou a traição da felicidade. Entrevista com Slavoj Zizek". Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br.
Última visita: 17/07/2011. 47 Essa relação é assim formulada em seu texto a respeito do "hedonismo envergonhado", bem como em "A paixão na era da crença descafeinada": "a 'biopolítica' concentra o grosso de seus investimentos na luta contra tais males [provenientes do consumo imoderado], buscando desesperadamente soluções que reproduzam o paradoxo do chocolate laxante". prática, do capital humano. As mercadorias deixaram de ser tidas como coisas a serem gastas, como algo que é exaurido no uso; cada um dos produtos que usamos já é também, ao mesmo tempo, um investimento em nosso capital. E isso não apenas no que tange à educação ou aquisição de informações, López-Ruiz cita Gary Becker -um dos teóricos do capital humanoquando esse afirma que o consumo de vitaminas é um investimento em si 48 . Mas não é necessário lermos essa bibliografia para nos darmos conta da metamorfose do consumo, ela é onipresente. O fetiche máximo das mulheres taradas por marcas, a horrível bolsa Louis Vuitton, é assim descrita por uma de suas consumidoras: "Vejo como um investimento. É bolsa que vai com tudo, de dia e de noite, e nunca sai da moda", outra declarou: "No meio em que trabalho, a pessoa se sente muito deslocada se não tem uma" 49 -taradas? E quando eu gastei um dinheiro que não tinha para comprar uma guitarra que eu não sabia usar, um amigo me disse: "não se preocupe, pense nisso como um investimento", e não foi a primeira vez que ouvi isso ao me deixar levar por mercadorias simpáticas. Tal afirmação não é uma racionalização pós-coito, nem um alívio para consciências endividadas -recordando: já não há culpa. O caráter duplo da mercadoria foi desdobrado quando, no próprio ato de consumo foi inserida a abstração da troca. O "descafeinado" é essa abstração -ou, segundo a formulação de Zizek, é a extração da "substância" da coisa -, é o cuidado necessário para que o capital-saúde não se deprecie e possa permanecer em circulação no mercado; a subtração da gordura dos produtos alimentícios é a eliminação de sua materialidade corpórea com a permanência de um corpo; e a "ração humana" é a utilidade em sua dimensão mais abstrata, desprovida de qualquer preocupação com o gosto, o gozo -o próprio nome do produto é uma anti-propaganda e essa é sua propaganda já muito bem sucedida. As mercadorias passaram a ser reconhecidas como tendo valor de troca em seu uso; e o uso propriamente dito está subordinado à função da troca, visto que o imperativo-mestre é o da sobrevivência em meio à concorrência e não o gozo. Por isso as compras no reality Esquadrão da Moda não são prazerosas, não se trata de consumo, mas do investimento daquelas pessoas em si mesmas para que não sejam aniquiladas. Como dizem os especialistas de todos os programas: "não é fácil, mas é necessário".
Isso não significa que retornamos ao mundo edipiano da moderação e de uma identidade fixa do eu. Não estamos nem em uma "sociedade da produção" nem na "sociedade do consumo".
Melhor seria chamá-la "sociedade do investimento", na qual não há a protelação do gozo ou o queimor da satisfação imediata, ou melhor, ambos os aspectos assumem uma nova relação. O 48 López-Ruiz, Oswaldo Javier. O Ethos dos executivos das transnacionais e o espírito do capitalismo. p. 223. 49 "A proliferação do monograma". In: Revista Veja. Edição 2172 de 07/06/2010. consumo de uma bolsa, por exemplo, não vale tanto por seu uso quanto por aquilo em que tal uso pode se converter: a ostentação de uma "imagem de sucesso". Sendo assim, consumir é ainda um imperativo, mas passa a envolver a relação entre cálculo e risco própria da especulação. O risco de não comprar determinada bolsa ou de investir no acessório inadequado, digamos, uma bolsa idêntica comprada em camelô e fabricada pela mesma sweat shop, é o de perder "empregabilidade". Segundo López-Ruiz: "O consumo-investimento (e não a poupança) é o que nos dá a possibilidade, senão de mobilidade social, pelo menos de continuar pertencendo a mesmo grupo social. Se deixamos de investir (consumir) temos o alto risco de não ter nada no futuro: qual será nosso capital humano? Que experiência teremos capitalizado?" 50 . Assim como o capital, devemos ao mesmo tempo fazer circular ininterruptamente nossas qualidades -entesourar-nos é pecado -e garantir que ocorra nossa valorização -o hedonismo é um perigo.
Temos então um caminho para a compreensão da ascese sem transcendência que marca o corpo: a gordura é a imagem sintética da estagnação do capital humano e da ausência de um cálculo adequado para a capitalização de si. Por isso a mesma mídia que hoje se segura como pode para não mais afirmar que negro é vagabundo, não tem o menor pudor de gritar a todo pulmão e de todas as formas possíveis que o obeso é um vagabundo: gordura é preguiça, doença, irresponsabilidade e por aí vai. Os reality shows de emagrecimento são um espetáculo de crueldade à parte, e abrangem todos os subgêneros: assumem a forma de competição entre equipes, de consultoria e, como não poderia deixar de ser, de transformação via cirúrgica ou outros métodos igualmente violentos; esses são alguns dos programas mais explicitamente brutais, nos quais o sofrimento e a humilhação parecem não ter limites: pessoas são chamadas de baleias, inúteis, sujas, estúpidas, porcas e nojentas enquanto são obrigadas a andar pro horas a fio, carregar toras, passar fome... Há um reality do tipo consultoria no qual a nutricionista analisa as fezes de sua vítima e depois, para convencê-la de sua animalidade descontrolada, dispõe sobre a mesa de jantar sacos plásticos cheios de gordura derretida, então afirma: "isso é o que você come, você é o que você come." 51 Mas a corrida em direção a um corpo virtual não pára por aí, outra característica demasiado concreta são as rugas. Marcas de vida são a negação visível de uma vida que deve ser direcionada para a frente -não como progresso linear, mas em saltos de auto-revolução. Permanecer jovem tem no Brasil e nos EUA tem um nome bastante significativo: Perder para ganhar, foi produzido no Brasil pelo SBT e punha em competição duas equipes de obesos que eram tratados como no exército. No "paredão", eram eliminados membros da equipe que, no cômputo total, haviam perdido menos quilos. O "paredão" era uma sessão aberta ao público de semi-nudez e pesagem. um sentido que vai muito além da estética: é mostra de que nada se guardou, de que o corpo e seu investidor permanecem uma tabula rasa pronta ao ajuste para o mercado 52 . Quando as pessoas imprimem abstração em seus corpos, o resultado não poderia ser outro que a fantasmagoria daqueles rostos inorgânicos, em cuja boca inchada, olhos repuxados, nariz afunilado e maçãs perfeitamente arredondadas, saltadas e simétricas, podemos vislumbrar metabolismo embalsamado. Percebemos "no ser vivo os direitos do cadáver" 53 .
As pessoas não são naturalmente vis, o mundo no qual estão submersas sim. Nas palavras de um participante do Big Brother: "O programa é sádico. (...) Aquele ambiente é muito hostil, muito pesado. Você sofre muito, muito, muito". 15 Esse sadismo não é uma característica singular dos reality shows, esses programas só existem, mais que isso, só se tornam assistíveis, mais que isso, só contam com a colaboração do público, porque o mal foi instituído como "sistema de gestão", como "princípio organizacional" 16 . Sua origem, como já vimos, é a vitória do capital e a aniquilação de todo o resto. Sua arquitetura, como já vimos, é um mundo hostil.
Entretanto, a adesão e a colaboração não são simples respostas racionais às ameaças 14 http://www.youtube.com/watch?v=pFkUH-Xpk-o&feature=fvwrel.
http://www.youtube.com/watch?v=DRIKh9mebdY&feature=related. Última visita: 18/08/2011. 15 http://tvuol.uol.com.br/#view/id=bbb-na-berlinda-com-michel-turtchin-e-marcelo-arantes-04021C346CD8A10327/mediaId=9046648/date=2011-01-26&&list/type=tags/tags=346630/edFilter=all/. Última visita: 30/03/2011. 16 O mal pode ser considerado estrutural, para Dejours, quando as condutas que geram sofrimentos e injustiças a outrem são, em primeiro lugar, "instituídos como sistema de direção, de comando, de organização ou de gestão, quando elas pressupõem que a todos se aplicam os títulos de vítimas, de carrascos, ou de vítimas e carrascos alternativa ou simultaneamente". Em segundo lugar, quando são "públicas, banalizadas, conscientes, deliberadas, admitidas ou reivindicadas, em vez de clandestinas, ocasionais ou excepcionais." Dejours, Cristophe. A Banalização da injustiça social. p. 77. onipresentes, apesar do cinismo reinante assim fazer crer. E isso precisamente porque a sociedade não é constituída por sádicos ou psicopatas: as pessoas sofrem, sofrem muito. E sofrem pelos outros. E sofrem pelo mal que praticam aos outros.
Geralmente vistos como hipócritas, os rodeios aflitos dos participantes quando devem cumprir o trabalho sujo de levar os outros ao "paredão" são sintomas disso. Roberto Justus e Pedro Bial costumam chamar, impacientes, esses cuidados de "diplomacia" ou "política", em um sentido pejorativo, como se fossem parte da estratégia do "jogo"; já os participantes votados acusam os outros de terem sido falsos, ou de terem manipulado as amizades em prol da vitória. O que não deixa de ser uma acusação estranha, pois da perspectiva do "jogo", todos devem, cedo ou tarde, se destruírem. Essa perspectiva fica bastante clara nas palavras do jogador profissional Alexandre Frota: "Tem uma cláusula no contrato que diz que é um jogo de convivência. Se é um jogo de convivência então você assinou um contrato para jogar. Então como a pessoa vai lá para dentro para não jogar? Num programa em que você tem que se aliar a algumas pessoas, fazer alguns conchavos, ser filha da puta. Em Auschwitz, Primo Levi se deu conta de um "fenômeno curioso: a ambição do 'trabalho bem feito' está tão enraizada que impele a 'fazer bem' mesmo trabalhos adversos, nocivos aos seus e à sua parte". Ele cita o caso de um pedreiro de Fossano, cujo imenso ódio aos alemães não o impediu de construir muros sólidos e bem assentados, que protegeriam seus inimigos das bombas inimigas. "Como se vê, o amor pelo trabalho bem-feito é uma virtude fortemente ambígua" 19 . Em nome do trabalho bem feito é possível a realização de uma tarefa que, de outro modo, seria reprovada pelo próprio sujeito que a realiza. Porém, mais que isso, é possível que sejam realizadas as atividades mais moralmente repugnantes quando assumem a forma de trabalho ao invés de crimes. Ao se debruçar sobre o mais terrível espaço da zona cinzenta, aquele ocupado pelos Esquadrões Especiais, Primo Levi citou um de seus sobreviventes: "Ao fazer esse trabalho, ou se enlouquece no primeiro dia, ou se acostuma" 20 .
Encaminhar pessoas à sala de banho na qual serão asfixiadas, retirar-lhes as roupas e pertences, esperar que morram, recolher os corpos, jogá-los em fornos industriais e depois lavar o chão era atividade tida por trabalho; Levi o chama, a certa altura, "ofício". Já Dejours cita Christophe Browning em sua descrição do "trabalho de extermínio" realizado pelos soldados enviados ao Leste para "proceder à limpeza étnica": "Dentro em pouco, no decorrer de seu aprendizado, sua preocupação se concentra exclusivamente na execução do trabalho: A propalada e elogiada autonomia do capital humano ganha uma nova perspectiva quando observada pelo prisma da bifurcação do zelo. Ela evidentemente não é uma verdade pois, como todos sabem, nem toda a iniciativa é bem quista por quem dá e tira empregos. Porém tampouco é pura mentira, já que a qualidade e o aprimoramento do processo produtivo não são mais função de uma burocracia intermediária, cabem de fato à inteligência do trabalhador 24 . Trata-se de uma mentira, mas de uma mentira objetiva. O empreendedorismo do trabalhador não é uma obediência automática às prescrições da direção, e sim uma resposta à necessidade de salvaguarda psíquica do próprio sujeito contra a ausência de tal prescrição 25 . Desse caminho tortuoso e irracional deriva a hiper-exploração do trabalho.
Porém, apesar do ciclo infernal do sofrimento ir de encontro à ampliação da extração de maisvalia, o modo de acumulação flexível não ocorre sem contradições. Na cozinha dos infernos, 24 O mesmo pode ser dito com relação àquela estranha burocracia nazista, cuja estrutura dissolvente Hannah Arendt se esmerou em descrever. Talvez hoje essa organização não parecesse tão estranha quanto para aqueles que buscaram julgar Eichmann. Parte das dificuldades que encontraram para definir sua responsabilidade no crime que cometera deriva da organização fluida da qual fazia parte. Segundo Raul Hilberg, em depoimento para o filme Shoah de Claude Lanzmann, o "processo burocrático de destruição" só foi possível graças à criatividade de seus funcionários: "Surpreendentemente, muito pouco de novo foi inventado até, é claro, que veio o momento em que tiveram que ir além do que já havia sido estabelecido por precedente e tinham que asfixiar estas pessoas ou, em algum sentido, eliminá-las em larga escala. Então esses burocratas se tornaram inventores!". Entre o desejo sem conteúdo do Füher e a tarefa cumprida estava o zelo dos membros do partido. 25 Quiçá o empreendedorismo atávico do pobre brasileiro, mais conhecido como malandragem, seja devido a esse mesmo mecanismo de defesa. Afinal, esse é o país-exceção por excelência. Eis uma hipótese que merece reflexão. temos uma visão cristalina do que em outros programas apenas desconfiamos. O trabalho sob pressão não apenas é o oposto do "healthy", defendido por Ramsay, como pode ser incrivelmente improdutivo, e isso mesmo do ponto de vista do adorado business. É impressionante a quantidade de pratos que retornam à cozinha em um único dia de serviço. As falhas são primárias: comida queimada, malpassada, crua, excessivamente salgada, sem tempero. Nada que cozinheiros experientes, como são os participantes, cometam com tamanha regularidade. A quantidade de ingredientes desperdiçados, por não haver tempo para que sejam melhor preparados ou simplesmente porque são usados como projéteis por Ramsay, é absurda. Há dias nos quais o caos é tamanho que a produção se vê atravancada, o atendimento é encerrado e os clientes são convidados a se retirar. É imenso o tempo perdido pelas interrupções grosseiras do chefe executivo, ou pelas discussões ferozes e inúteis entre os participantes, ou quando os mesmos são obrigados a abandonar seu posto para poderem observar as falhas uns dos outros, ou quando alguém congela, se atrapalha, chora por medo, ou quando alguém passa mal. Na terceira temporada do programa, um concorrente desmaiou na cozinha e foi levado às pressas para o hospital. Lá recebeu um telefonema de Ramsay: "I'm so, so sorry that you're not feeling better". O participante, pressentindo o que estava por vir, disse em tom de súplica: "Chef Ramsay, I've worked all this time to come to this point to work for you". "I really appreciate you trying damn hard to get back here. The bad news is: you have a serious illness, to doctor's orders you cannot come back to this kitchen". Mastigado e cuspido, o sous-chef deu seu depoimento final: "I feel disappointed. I worked almost forty years in the kitchen… for what?" Para ele, todo o seu trabalho pregresso foi em vão, ele perdeu suas fichas de aposta; para o restaurante também, desperdiçou força de trabalho altamente qualificada e, ainda mais importante, "motivada". Para Christophe Dejours "a escalada do gerenciamento pela ameaça tem limites. Além de um certo nível e de certo prazo, o medo paralisa" 26 . Porém, mais que isso, o medo amplia as falhas no processo produtivo que, devido ao próprio medo, devem ser omitidas, o que gera ainda mais problemas que não têm tempo para serem solucionados... Quando Ramsay grita para algum de seus subordinados: "Why are you lying at me?", seu tom de voz já adiantou a resposta. A ocultação de erros, a omissão de informações, o embelezamento de balanços, a falsificação de dados em memorandos ou a pura mentira tornaram-se expedientes tão comuns que foram nomeados por Dejours "estratégia de distorção comunicacional". Desconfio -há que se pesquisar -que o surto de recalls na última década, no Brasil e no mundo, de empresas de vários setores, em especial automobilístico e de informática, tenha algo a ver com isso 27 .
Em geral, esse custo para as empresas é creditado à sua crescente responsabilidade para com o consumidor, o retorno incerto é a "confiabilidade" 28 ; em outros momentos, é debitado da falta de qualificação profissional de seus trabalhadores 29 . Em momento algum é aventado como sintoma do pavor que empurra a produção e da conseqüente teia de enganação que vai do trabalhador à própria empresa, passando pela gerência 30 . Se o engajamento do trabalho é hoje conquistado mediante a ameaça, a incompetência, como falha daquela inteligência definida por Dejours, é invariavelmente cultivada por essa mesma lógica e, através dela, tornase retroativa. Onde não há tempo para a tentativa e erro, não é esse que tende a desaparecer, mas seu oposto. "Mas o sistema funciona e parece mesmo poder funcionar duradouramente dessa maneira" 31 . O círculo vicioso do sofrimento não é necessariamente útil para a produção, apesar de ambos tenderem a se retroalimentar, mas é indubitavelmente útil para a manutenção do movimento. Para além, e às vezes contra, a produção de valor, está a produção de indiferença e colaboração com o mecanismo de eliminação de gente. Entre o trabalho e o trabalho sujo está a distância que separa o movimento real de valorização do capital e sua ilusão de pureza; entre eles cresce a olhos vistos uma bolha de sofrimento.
A ausência de transcendência não resulta de alguma forma de conciliação: "o mundo é bom porque é assim e é assim porque é bom"; os holofotes estão todos voltados para o mal-estar:
"o mundo é cruel e é tudo o que pode ser". As análises que levam em conta o cenário do Big Brother não nos deixam esquecer dos corredores ocultos através dos quais se deslocam as câmeras 34 . Porém o mais surreal não é o que está escondido, mas o que é alardeado: são aqueles sofás confortabilíssimos dispostos parede-a-parede com um imenso forno no qual os participantes, fantasiados de galinhas e enfiados em sacos plásticos, serão atirados por horas a fio 35 . Já os clientes do restaurante dos infernos não contam sequer com uma parede, entre eles e o que ocorre na cozinha, está apenas um balcão 36 . A transparência de nossa ideologia tem foco, e não está no conforto do sofá ou no deleite da refeição preparada por um Chef renomado. Por isso o cinismo contemporâneo não assume preferencialmente a forma da "ironização das condutas e valores" 37 . Quando um presidente afirma que não haverá trabalho para todos, quando Boninho diz que seu programa é cruel ou quando, na casa em que convivem as modelos, a produção pendura o seguinte aviso: "this is not a fraternity, this is a 34 Essa característica tipicamente masculina pode também ser adotada pelas mulheres em situações nas quais precisam se defender de suas próprias atividades. Não é à toa que o depoimento típico das moças que participam do Hipertensão é: "quero provar que as mulheres também são fortes" 40 . Por outro lado, elas são as primeiras a votar nos homens para o "paredão" que é a prova final: "vou votar no Marcão porque eu acho melhor eliminar homem que é mais forte do que as mulheres". 41 Como vemos pelas provas do programa, a força em questão não é necessariamente física: engolir um coquetel de baratas, larvas e olhos de cabra não exige músculos tampouco agilidade. Os participantes de reality shows precisam contar, isso sim, com a astúcia psíquica que produz frieza de espírito. É por isso que outro paradoxo do Big Brother não pode ser descartado prontamente como asneira. A cada semana um eliminado é recebido por seus familiares e pelo apresentador do lado de fora da casa. Esse será infalivelmente saudado por todos com a frase "você já é um vencedor por ter chegado até aqui". Ora, a despeito de toda a retórica sobre o jogo implacável, sobre a luta de vida ou morte, sobre a guerra, todos são vencedores? O que a primeira vista parece condescendência é um elogio sincero da "força" demonstrada por aquele sujeito ao se deixar aprisionar, se 38 O quadro foi pendurado na casa das modelos na quarta edição. 39 Safatle, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. 40 http://eptv.globo.com/lazerecultura/NOT,0,0,312522,Hipertensao+Conheca+participantes+de+ novo+reality+show+da+Globo.aspx. Última visita: 20/08/2011. 41 http://www.youtube.com/watch?v=q7rZyXF7x4w&feature=related. Última visita: 20/08/2011. deixar torturar e, principalmente, ao votar nos outros para que sejam excluídos. Trata-se do elogio à desenvoltura diante do sofrimento alheio. Por isso também a afirmação típica do término dos suplícios, "aprendi muito aqui", tem seu lado de verdade. É a mesma lição oferecida em um estágio de uma empresa francesa, na qual "cada um dos 15 participantes recebeu um gatinho. O estágio durou uma semana e, durante essa semana, cada participante tinha de tomar conta do seu gatinho. Como é óbvio, as pessoas afeiçoaram-se ao seu gato, cada um falava do seu gato durante as reuniões etc. E, no fim do estágio, o diretor deu a todos a ordem de… matar o seu gato" 42 . A aula pode ser sintetizada pelas palavras de um participante de A Colônia: "In survival mode, there's a lot of things that you have to let go of.
As far as moral goes, sometimes it has to be every man for itself. The compassion part of it, you have to kill it" 43 .
Assim como nos desafios de Jigsaw, a chave é de fácil alcance, difícil é tocá-la. E essa dificuldade deve ser alardeada. Não apenas os sofrimentos são sublinhados, como devem ser postos como um dever, precisam ser vistos como um sacrifício que está além da vontade do sujeito. "A violência, a injustiça, o sofrimento infligido a outrem só podem se colocar ao lado do bem se forem infligidos no contexto de uma imposição de trabalho ou de uma 'missão' que lhes sublime a significação." 44 O trabalho sujo é e deve ser reconhecido como algo avesso ao prazer, só assim passa a ser valorizado como coragem. Por isso o pecado primeiro não é a demonstração de sofrimento, mas a desistência. Aquele que desiste trai os que "não tiveram escolha". Já os que topam, os "corajosos", estão amparados pela justificação da necessidade. É dessa perspectiva deve ser compreendido o mistério Eichmann: "em vez de dizer: 'Que coisas horríveis eu fiz com as pessoas!', os assassinos puderam dizer: 'Que coisas terríveis eu tive de ver na execução dos meus deveres, como essa tarefa pesa sobre meus ombros'" 45 . Quando a Lei obriga a aniquilação é o bem que se converte em tentação: "Eles [os nazistas] conseguiam inverter a lógica de resistir à tentação: a tentação a se resistir era a própria tentação de sucumbir à piedade e simpatia elementares em presença do sofrimento humano, e seu 'esforço' ético era dirigido para a tarefa de resistir a essa tentação de não matar, torturar e humilhar. Minha própria violação dos instintos éticos espontâneos de piedade e compaixão é assim transformada na prova de minha grandeza ética: para cumprir meu dever, estou 42 "Um suicídio no trabalho é uma mensagem brutal -entrevista a Christophe Dejours". Disponível em:
Uma desistência real não é o mesmo que pedir para sair. Essa diferença é o suficiente para deter o campo simbólico semovente, eis a violência verdadeira, que simplesmente não pode ser admitida. A capacidade de arrancar as coisas do lugar, evidenciada pelo espanto de Justus ao reconhecer o ineditismo do ocorrido, é o que separa o gesto do rapaz da reação do empresário: essa violência despudoradamente vã que assistimos todo santo dia nesses novos programas de televisão. Trata-se de uma brutalidade que só está lá por estar, pois mesmo o objetivo, já em si estúpido, de construir vencedores é desproporcional às provações. Isso fica ainda mais claro em shows nos quais ela aparece em visível descompasso com os demais elementos. Cake boss é um programa americano que acompanha o dia-a-dia de uma confeitaria especializada em bolos monumentais 7 . Além do desfile de chocolate, açúcar e nozes, é exibido um trabalho artesanal realizado com cuidado, paciência e delicadeza.
Entretanto, em nenhum episódio pode faltar ao menos uma cena de discussão e gritaria na cozinha. A imagem de abertura, com o dono da empresa, também ele confeiteiro, segurando um pau-de-macarrão de forma quase ameaçadora indica que o doce deve ser o elemento secundário, apesar de serem os gritos o aspecto irritante, artificial e dispensável. Sem querer, o programa mostra a distância efetiva entre um trabalho bem feito e a histeria atuada do imperativo da produtividade. Isso também transparece em um reality de seleção protagonizado pelo renomado designer francês Philippe Starck 8 . O primeiro episódio começa com a seguinte explicação: "Why am I here? It´s definitively not for fun (...) I try to help your tribe, your society, your civilization to have a better life, that´s the subject. And I know it looks a little heavy, a little ridiculous, but I don´t care, I hate cynicism." Em uma das tarefas do primeiro episódio, os estudantes foram ao supermercado para adquirirem uma mercadoria que indicasse sustentabilidade e outra que mostrasse o oposto. Um dos participantes levou uma bicicleta, que é um veículo não poluente etc. Starck mostrou como por trás de uma idéia ecologicamente correta e amplamente difundida pode estar um engano grave: "how can this bike cost this price so ridiculous? It´s impossible to do it whithout slaves". Os piores colocados na tarefa tiveram que pensar em novas soluções para permanecerem no programa. O rapaz da bicicleta então mostrou uma revista de fofoca e afirmou ser uma leitura que não ensina nada e uma mercadoria tão descartável quanto a fama. Starck gostou: "We are on the way! That means we are not talking about a product, we are talking about what is behind… all the interaction that is a product". No instante seguinte ele anunciou, com visível desconforto, a chegada da "bad part", é o momento da eliminação. "We know that there is not room for everybody, that means that we are obligés to select two personnes to go home, which is not fun." 9 Starck sabe que a expulsão é violenta e o demonstrou com uma exagerada expressão de condolência. Não obstante seu constrangimento, bem como seu ódio ao cinismo, ele o fez. Na prática, a descartabilidade das pessoas é mais aceitável que a da mercadoria, ainda que se saiba e se condene o trabalho descartável que produziu a bicicleta. O ponto é: por que expulsar? O programa não poderia simplesmente mostrar essa crítica da mercadoria e a tentativa de criação de objetos mais racionais? Fiz essa pergunta a uma amiga que assistiu comigo ao episódio, disse ela: "Ah, Sil! É um reality show, se não fosse assim nem teria o programa". Ela tem razão, a eliminação é obrigatória, pois sem ela não haveria... eliminação. 7 Cake Boss, transmitido pelo canal de TV a cabo LIV. 8 Philippe Starck: design for life, produzido pela BBC e transmitido no Brasil pelo canal de TV a cabo Multishow. O formato é idêntico aos outros: confinamento, disputa, provas, julgamento, eliminação... 9 http://vimeo.com/6604817. Última visita: 10/04/2011. É esse excesso de violência estéril e despropositada a força motriz da permanência. Por isso não é possível que se retire essa mais-violência sem que o todo o resto desmorone. A tentativa razoável de Starck, de educar contra o fetiche da mercadoria e suas implicações, se escora na obrigatoriedade externa a seu objetivo, sem a qual não seria posta em prática, com a qual se torna inconsistente, para não dizer absurda. O espetáculo da realidade nos impõe uma questão tão óbvia que parece ingênua: se o descarte é destino e seu critério é incerto, porque tamanho esforço? Porque as pessoas não passam seus dias à beira da piscina, à espera da decisão do público, ao invés de agirem em seu pequeno mundo de abundância como se fosse o reino da escassez? Porque não dividem o prêmio e sossegam ao invés de buscarem a aniquilação mútua? A pergunta é ingênua porque a resposta é óbvia: sem guerra, sem programa. Não fosse o fuzilamento iminente e os demais rituais de sofrimento a audiência se veria confrontada, aí sim, com o "deserto do Real", o tédio insuportável, a completa ausência de sentido. Por isso o capitalismo contemporâneo gera um excesso sobre um excesso. No ponto cego entre a mais-valia e a mais-violência está a garantia de sua sobrevida duplamente irracional -pois não basta estarmos em meio ao círculo infernal da produção de necessidades, estamos também submetidos à violência banal que lhe confere movimento. Assim como sem o "jogo" não haveria reality show, sem a fantasia segundo a qual não há lugar para todos, sem o fantasma da inutilidade, sem o imperativo da eliminação, sem o estado de guerra, não poderíamos retomar uma "normalidade" produtiva, pois o sistema capitalista é a própria produção de escassez e risco. Ele já é, em si mesmo, o "deserto do Real", apenas agimos como se não fosse. Se do lado de cá da tela a resposta à pergunta óbvia é geralmente cética, na maioria das vezes jocosa, nos realities é invariavelmente furiosa, pois o desmoronamento da mercadoria se torna palpável pela simples menção do despropósito da violência. No Big Brother 11, um participante cogitou a possibilidade de indicar alguém ao "paredão" pelo jogo do palitinho, a bronca do soberano vazou no áudio do pay per view: "Atenção seu Cristiano. Pode ser uma brincadeira a sua frase ou pode ser de verdade. Se você der a entender que você usou a sorte para decidir o seu indicado, o senhor vai estar eliminado do jogo. Esse jogo é um jogo de comprometimento." 10 A escolha pode até ser arbitrária, mas é vetado que "se dê a entender", afinal, a atuação do embate alicerça o show. Na terceira edição houve uma prova em que os participantes deveriam passar quatro dias acorrentados para garantir sua alimentação completa. Um deles pensou em desistir logo no começo: "o pior que pode acontecer é ficar 10 http://portalps.virgula.uol.com.br/noticias/irritado/6589/vaza-audio-de-boninho-dando-bronca-em-cristiano-no-bbb11.html. Última visita: 11/04/2011. sem comida". O programa admite que o competidor seja vencido pelo cansaço, mas não que recuse o sofrimento gratuito: "pra que eu fui falar isso", afirmou em entrevista o sensato, "Nossa! O cara [Boninho, é claro] me esculachou bonito. Me deu uma bronca que até perdi o rumo" 11 . Mais uma vez, a ordem é pedir pra sair. Desistir sem tentar é pecado mortal, pois a violência vã não é apenas auto-referida, é autopropulsionada. Para Zizek essa violência é uma "passagem ao ato impotente", pois serve ao propósito do moto contínuo do existente. A máquina de moer gente nazista punha em movimento o mundo para que não se movesse, a violência revolucionária detém o movimento. "A Revolução de julho registrou um incidente em que essa consciência se manifestou. Terminado o primeiro dia de combate, verificou-se em vários bairros de Paris, independente uns dos outros e na mesma hora, foram disparados tiros contra os relógios localizados nas torres" 12 . A paralisação brusca é outro tipo de agressão. Para Walter Benjamin, a verdadeira agressão. E se o progresso hoje já não se envergonha de aparecer como o que sempre foi, um trem desgovernado, é sinal de que já demoramos tempo demais para puxar o freio de emergência. A bordo de um bonde que passou a atropelar aqueles que o perdem, o medo de bater o nariz no vidro é a verdadeira loucura. Na suspensão dessa permanência cruel e impotente está a recusa, essa sim, carregada de poder. É urgente, verdadeiramente urgente, inventá-la.
IV
Quando o Boninho afirma, a respeito dos participantes: "Eu os encaro como peças de um produto, de um jogo" 47 , isso não significa que ele é um daqueles personagens esfomeados de desenhos animados que olham para o parceiro e enxergam um sanduíche, ou estaria sofrendo de delírios alucinatórios. Entretanto, em sua relação com os participantes ele age como se fossem coisas (a serem devoradas), em sua prática ele é um alucinado. Não vivemos, portanto, em uma sociedade pós-ideológica tal como uma leitura apressada do cinismo poderia fazer crer. A fantasia ideológica se organiza como uma "crença exteriorizada", um ritual do qual participamos independente do quão irracional seja, independente das racionalizações que eventualmente criamos para justificar nossa participação. Tomemos como exemplo aqueles inúmeros casamentos contemporâneos de uma certa classe média esclarecida. Neles, as mudanças no ritual são inúmeras, da cor do vestido à organização da cerimônia, das músicas à locação, da ausência do sacerdote à sua substituição por amigos inspirados, já vi um noivo rir diante do padre e outros tantos dizerem que só trocaram alianças "pela família", há aqueles que fumam maconha para adentrar a nave e os caras-de-pau (ainda mais que o "normal") que dizem só querer os presentes, já assisti até a uma lamentável leitura de um trecho do Minima Moralia por parte da noiva "de esquerda" em pleno altar. Aos conservadores preocupados em ser esse um ritual em desuso, os progressistas de minha geração podem propiciar certo alívio. A despeito de tudo o que condenam, da religião à família patriarcal, da monogamia à tradição, tiveram sua cerimônia. Todo o distanciamento subjetivo diante da 46 Zizek, Slavoj. "Como Marx Inventou o Sintoma?" In: Zizek, Slavoj (org). Um Mapa da Ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. p. 316. 47 "'Big Brother' não é cultura, é um jogo cruel", diz Boninho. prática -a ironia esperta, a terceirização da crença, os deslocamentos criativos, a crítica ao pé do juiz de paz etc -longe de enfraquecerem o ritual, reforçam-no. Pois não é a cerimônia que perde seu sentido, -ao fim e ao cabo ainda é um casamento -é a crítica que se torna débil. Essa crítica, no entanto, cumpre um novo papel, o avesso daquele pensado por Marx: trata-se de um reforço à maior ilusão de nossa sociedade, a ilusão segundo a qual por aqui ninguém mais é bobo.
O cínico aperta o nó da ilusão, nó que está em seu próprio pescoço. Naquela falsa prova do Big Brother os participantes seguem um ritual mais poderoso que sua consciência, o círculo e os pedaços de corda que seguravam formavam a prova da liderança mesmo que todos soubessem que não era nada daquilo. Por isso é possível afirmar que os voluntários não são burros, mas seu voluntariado é: é em sua prática que se encontra o logro não obstante seu saber a esse respeito.
Assistir a um reality show é testemunhar um apanhado de rituais absurdos, ditos e sabidos, realizados como se fossem a coisa mais natural do mundo. Esses rituais acreditam pelos sujeitos, mas acreditam em que? É a forma e o sentido dessa fantasia que o presente trabalho pretende analisar, pois ela é a mediação através da qual o cínico se encaminha à forca e carrega outros com ele. Forca que, nesse caso, está a meio caminho da metáfora e da literalidade. Isso porque não lidamos aqui com um ritual como outro qualquer, não se trata de uma festa ou do consumo, ambos cerimoniais oferecidos aos deuses do prazer. Trata-se de algo mais perturbador, pois o que se vê nos reality shows é a proliferação de rituais de sofrimento. são como a ante-câmera de um filme pornográfico. Mas esse programa tem lá sua história -se é que podemos denominar assim o desenvolvimento de um produto a partir de pesquisas de mercado -e ao longo dos mais de dez anos em que vem sendo veiculado é notável o aumento de importância do dito "jogo" em detrimento dos encontros e desencontros sexuais. Ainda que os participantes volta e meia se encontrem sob o edredom cenográfico, não mais o fazem "ingenuamente", cada beijo é cuidadosamente ponderado diante das câmeras por seus protagonistas e pelos demais participantes: "Eles só 'ficaram' por estratégia de jogo", "será que vão pensar mal de mim lá fora?", "vão votar em nós porque juntos estamos mais fortes"... Também a arquitetura e a decoração do espaço aos poucos passaram a privilegiar o desconforto (com cores e padrões atordoantes em móveis e paredes) e a disputa (com a construção de muros ou quartos com graus variados de comodidade, visando a cisão entre os participantes). Até mesmo as tão características cenas de bundas ociosas à beira da piscina são deixadas de lado pela edição ao mais sutil sinal de tramóia, manipulação ou paranóia. Todos os elementos do programa orbitam o núcleo da competição feroz, especialmente os afetos. Na edição de 2010, uma das jovens pôde receber uma carta de familiares como prêmio por ter vencido uma prova, nessa lia-se:
Um amigo que trabalhou em uma agência de publicidade contou que certa vez, já no fim de uma reunião de avaliação, seu chefe disse: "Sabe como eu demitia as pessoas na empresa X?
Eu simplesmente colocava um papel em branco em sua frente e ficava em silêncio até que a pessoa, constrangida, perguntasse do que se tratava. Então eu respondia: 'já que você ficou 40 Arantes, Paulo, "O pensamento único e o marxista distraído", p. 121. 41 Programa BBB na Berlinda do dia 02/03/2011. http://televisao.uol.com.br/ultimasnoticias/multi/2011/03/02/04029C3362D0996327.jhtm?bbb-na-berlinda-com-tessalia-serighelli-04029C3362D0996327. Última visita: 01/04/2011. parado, esperando uma resposta minha, é sua carta de demissão'". O patrão narrou a história enquanto a demonstrava, colocando uma folha de papel diante de um funcionário. Após alguns instantes de silêncio, ele riu muito e disse: "era assim mesmo". Disse meu amigo: "esse papel em branco me assombrou por três anos, enquanto trabalhei lá". Era seu "paredão", sua linha de aniquilação particular.
"Um interrogatório". Foi a definição de uma conhecida a respeito da entrevista de emprego a qual se submetera. Ela contou que foram feitas muitas perguntas simples e objetivas, as respostas deveriam ser igualmente fatuais e diretas; uma explicação ou comentário adicional eram o suficiente para gerar um olhar de reprovação do entrevistador, seguido de um quaseríspido "isso não lhe foi perguntado". As perguntas se sucediam velozmente, à queima-roupa, as respostas deveriam obedecer à velocidade imposta como as mãos devem se moldar às máquinas para não serem decepadas. Entretanto, o que impressionou a entrevistada -até então ela havia considerado a entrevista "inteligente" por "poupar tempo" e ir "direto ao ponto" -foi o insistente retorno a questões feitas anteriormente. "Parece que eles achavam que eu estava mentindo" "queriam ver se eu cairia em contradição". Se ela fosse suspeita de ter mentido no currículo, porque a teriam aprovado nas primeiras triagens? 42 . Certamente não era disso o que se tratava, mas sim daquilo o que os manuais de gestão -dos mais aos menos explicitamente sádicos -bem como os reality shows -idem -ensinam: é necessária a capacidade de "agüentar a pressão". E a prática social que estabelece as condições ideais de temperatura e pressão é a seleção.
A seleção já não é apenas o ritual de entrada no mercado de trabalho, como poderia supor o colarinho-branco de Wright Mills. Em um mundo no qual o mercado é soberano e restrito, o "mecanismo de seleção" que o define passa ao centro das relações sociais. Por isso não é possível nos determos em uma banca de jornal sem nos depararmos com o sempre novo e sempre igual manual para processos seletivos: devemos falar assim e vestir assado, ou falar assado e vestir assim, mas sempre devemos. Essa compulsão midiática infla o fantasma do descarte ao mesmo tempo em que aponta para um sintoma: a elevadíssima rotatividade da força de trabalho faz com que se encare o crivo do mercado inúmeras vezes ao longo da vida. 43 42 A idéia de tratar pessoas que aumentam ou inventam seus currículos como criminosas não é tão esdrúxula, pelo menos não o é para o deputado que formulou o Projeto de Lei 6561/09, que tramita atualmente na Câmara dos Deputados. O projeto de lei prevê pena de 2 meses a 2 anos de prisão para esses malandrinhos desesperados que fazem as pobres empresas perderem tanto tempo checando suas informações, depois de tanto empenho na formulação de processos seletivos tão criteriosos. http://origin.revistavocerh.abril.com.br/noticia/especiais/conteudo_596456.shtml. Última visita: 04/04/2011. 43 Bernardo, João. "Trabalhadores: classe ou fragmentos?". Contudo, se a seleção de "fora para dentro" se propaga é apenas porque ninguém pode ou deve permanecer. A voz de comando da flexibilidade faz com que as empresas incorporem os procedimentos seletivos em seu funcionamento regular, se é que a deriva do trabalho sob os mais variados tipos de contratos precários pode ser chamada regularidade. O estágio é a forma pela qual o amálgama entre a exceção e a norma aparece com maior clareza. Nele, o trabalho realizado é, ao mesmo tempo, uma prova, mediante a qual o novato pode ou não ser efetivado. Mas não é somente nesses inúmeros interstícios da precariedade que a seleção se torna permanente. Mesmo aqueles que logram o almejado emprego não estão livres da peneira. A "avaliação de desempenho" é um dispositivo da gestão flexível que funciona como uma espécie de seleção "de dentro para fora". Ela é apresentada pela parolagem gerencialista como "uma discussão franca e aberta", na qual o empregado pode "exprimir-se livre e objetivamente". De fato, trata-se de uma "prática ideológica e um dispositivo de sujeição" 44 que, mediante notas, gráficos, rankings e até conselhos, materializa o risco do descarte. O procedimento torna-se a prova empírica, palpável e sofrida, da situação vulnerável na qual se encontram também aqueles que estão "dentro". As avaliações se alastram sob formas variadas -como entrevistas, relatórios, testes, questionários, auto-avaliações e até gincanas imbecis e vexatórias que, assim como nos processos de admissão, são nomeadas "dinâmicas" -e aparecem nos mais diversos momentos, podendo ser ordinárias ou extraordinárias, estar em reuniões ou ocorrerem ao lado da máquina de café. Segundo um de seus incontáveis entusiastas, há "dois tipos de avaliação: a avaliação formal, que ainda é usualmente feita uma vez ao ano, sendo conduzida como parte da política da organização, e a avaliação rotineira ou informal." 45 A avaliação onipresente faz com que o contratado deva provar incessantemente ser merecedor do privilégio que é seu emprego, assim como o faz o aspirante ao mesmo privilégio. Nessa porta giratória infinita, a entrada e a saída são faces de um mesmo processo, entre elas está o vidro de uma seleção tornada permanente 46 .
Não é à toa que o espetáculo incorpora a seleção em seu âmago. Digo incorpora, e não representa, pois os reality shows são, em sua maioria, processos seletivos televisionados. Seus participantes encontram-se na mesma situação ambivalente dos estagiários ou dos empregados sob constante avaliação, situação que, excetuando-se a condição jurídica, é a 44 45 Guillen, Terry. Avaliação de desempenho. São Paulo: Nobel, 2000, p. 11. 46 Sabe qual é o nome da entrevista de seleção para o ingresso no processo seletivo que é o Big Brother Brasil? Cadeira Elétrica. Então as pessoas se livram do eletrochoque para se encaminharem ao fuzilamento. Isso me recorda uma das anotações de Theodor Adorno sobre Kafka: "o nexo imanente se concretiza como uma fuga de prisões" em que se "pula de uma situação desesperadora e sem saída para outra". Adorno, Theodor W. "Anotações Sobre Kafka". In 47 Bauman, Zygmut. Medo Líquido. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 2008. 48 Levi, Primo. É isso um Homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988, p. 131. adaptabilidade", "falta de continuidade", "impermanência" 49 . Por isso Hannah Arendt não o analisa como estrutura, mas como um organismo semovente. A hierarquia de poder era um labirinto de duplicações de cargos e funções, flutuações de comandos, eliminação e criação de tarefas, chefias ou departamentos inteiros além de constantes mudanças de status. Em termos mais contemporâneos, tratava-se de uma organização flexível, acima da qual estava o líder e seus desejos 50 -também ao contrário do que se imagina, não se tratavam de tarefas concretas, mas de princípios vagos -abaixo do qual estava essa rede de deslocamentos, em que os diversos organismos "competiam ferozmente uns com os outros" 51 para a realização desses desejos, em especial, do desejo de aniquilação. A mobilidade de nosso mundo obedece a desejo semelhante: o "enxugamento". A expulsão de toda a materialidade, marcada pelo fechamento de fábricas, demissões em massa e terceirizações, resulta das pressões do capital financeiro desregulamentado que, a partir da década de 70, passou a ditar o ritmo e as regras da produção. A flexibilização da produção nada mais é que a resposta do capital produtivo ao princípio incerto e urgente de rentabilidade 52 . Em ambos os casos, a permanência do movimento é tarefa paradoxal, tarefa essa solucionada mediante a prática da seleção. No caso do nazismo, "uma seleção [racial] permanente que não pode parar, e que exige a constante radicalização dos critérios pelos quais é feita a seleção, isto é, o extermínio dos ineptos. (...)
Porque o líder totalitário enfrenta duas tarefas que a princípio parecem absurdamente contraditórias: tem que estabelecer o mundo fictício do movimento como realidade operante de cada dia e tem, por outro lado, de evitar que esse mundo adquira nova estabilidade" 53 .
Do mesmo modo, a empresa contemporânea não pode jamais se "acomodar", ela deve exibir a mobilidade exigida pelos volúveis investidores. Segundo Richard Sennett: "Enormes pressões foram exercidas sobre as empresas, para que se fizessem belas aos olhos do primeiro voyeur que passasse; a beleza institucional consistia em demonstrar sinais de mudança e flexibilidade internas, dando pinta de empresa dinâmica, ainda que tivesse funcionado perfeitamente bem na época da estabilidade" 54 . O que Sennett não leva em consideração é que nossa ficção de 49 Apesar de Hannah Arendt se deter no discurso ideológico nazista como uma "idéia" cuja "lógica interna faz desaparecer as contradições" e que visa uma "explicação total" 56 , ela compreende que sua eficácia não reside nessa explicação, mas o compreende quando analisa a organização do movimento e não sua ideologia. Em contraposição à "idéia" que funciona de modo a barrar o pensamento, a seleção como "racismo em movimento" funciona não obstante a argumentação: "à base dessa 'organização viva', os nazistas podiam dispensar o dogmatismo" 57 . A ideologia nazista não estava calcada em seus dogmas, mas em seus rituais, dentre os quais o central era a seleção. Por isso o espaço da seleção pura, o Campo, dispensava por completo a propaganda 58 . Lá, a organização do inferno, inteiramente desprovida de explicação, mesmo da mais esdrúxula, funcionava com precisão. A proliferação de cerimoniais "insensatos e infindáveis" 59 , tão inúteis que pareciam palhaçada 60 , servia à ratificação da propaganda inexistente. A privação de instalações sanitárias no caminho para os Campos, bem como a nudez obrigatória na chegada atuavam a animalidade dos inocentes 61 . A inutilidade das chamadas, enfrentadas em qualquer clima e em pé, durasse o tempo que durassem, uma ou duas vezes ao dia, objetivavam a inutilidade das vítimas 62 . A privação de colheres, não obstante haver "no depósito milhares de colheres de alumínio, de aço ou até de prata" 63 , era a prova vivida de que não eram as colheres, mas os Homens que estavam sobrando, era a prova da existência dos supranumerários, era a prova da necessidade da supracitada "geração de mais vagas". Naquele "mundo indecifrável" 64 os rituais absurdos mantinham as pernas em marcha mesmo que já não houvesse banda 65 . 56 Idem, p. 521-522. 57 "Esse racismo em ação tornava a organização independente de quase todo ensinamento concreto de qualquer 'ciência racial', e também independente do anti-semitismo". Idem, p. 436. 58 "Onde o reino do terror atinge a perfeição, como nos campos de concentração, a propaganda desaparece inteiramente; na Alemanha nazista, chegou a ser expressamente proibido". Idem, p. 393. 59 "Infindáveis e insensatos são os rituais obrigatórios: cada dia, de manhã, deve-se arrumar a cama, perfeitamente plana e lisa; passar nos tamancos barrentos a graxa patente para isso destinada; raspar das roupas as manchas de barro (as de tinta, gordura e ferrugem, pelo contrário, são admitidas); à noite, a gente deve submeter-se ao controle dos piolhos e ao da lavagem dos pés, aos sábados, fazer-se barbear e raspar o cabelo, cerzir ou fazer-se cerzir os farrapos; aos domingos, submeter-se ao controle geral da sarna e ao dos botões do casaco, que devem ser cinco". Levi, Primo. É isso um homem? p. 32. 60 "Uma banda de música começa a tocar, ao lado do portão do Campo; toca 'Rosamunda', essa canção popular sentimental, e isso nos parece tão absurdo que nos entreolhamos sorrindo com escárnio. Nasce em nós uma sombra de alívio; talvez essas cerimônias todas sejam apenas uma gigantesca palhaçada, ao gosto teutônico. A banda, porém, depois de 'Rosamunda', continua tocando uma música após a outra, e lá aparecem nossos companheiros, voltando em grupos de trabalho. Marcham em filas de cinco, com um andar estranho, não natural, duro, como rígidos bonecos feitos só de ossos; marcham, porém, acompanhando exatamente o ritmo da música". Idem, p. 29. "Um monte de perguntas, para que? Tudo isso é uma complicadíssima farsa para rir de nós. E este seria um hospital onde mandam a gente ficar de pé, nu, para fazer-lhe perguntas?". Idem, p. 49. 61 acreditassem não basta, é necessário inserir mais outros. Por isso os "peritos" em fim do mundo -que são os peritos do nosso mundo: segurança, engenharia e psicologia -jogam no espaço de confinamento atores contratados que destroem o que havia sido construído e roubam os víveres racionados. Nessas cenas está posta a violência atuada que é real, e de que modo o expert em segurança poderá impedir uma agressão física mais grave é um mistério, provavelmente o mistério que captura os telespectadores. O ponto pacífico de todas as produções pós-apocalípticas é uma vivência de choque, na qual a construção de quaisquer relações, que não as estritamente instrumentais, é impossível. Mas A Colônia impõe aos voluntários a missão paradoxal da "reconstrução da sociedade". Com as ferramentas disponíveis em seu "abrigo" -uma fábrica abandonada, símbolo do presente -eles devem produzir "conforto" e, se possível, até algum "luxo". A nova sociedade deve ser a mesma que explodiu: "funcional", deve ser uma "sociedade habitável". O imaginário contemporâneo não transpõe a barreira do fetiche e da reificação: são as coisas que formam a sociedade, os indivíduos apenas pedem licença para aí morarem. Apenas sobre essa ilusão é possível levar a cabo a loucura que é a tarefa proposta, na qual os humanos devem ser instrumentalizados e/ou destruídos para que a sociedade possa renascer. Em um dos episódios, por exemplo, ocorre uma disputa entre dois "colonos" e um deles precisa ser "sacrificado" para que a produção das coisas prossiga, qualquer outra solução é inimaginável 76 . A loucura desse "near future" é presente, nela conforto é defesa, produtividade é sobrevivência e estabilidade é guerra.
A vida se torna um girar em falso. Os voluntários da "colônia" passam seus dias trabalhando para à noite serem saqueados, então trabalham para que não sejam saqueados, mas os especialistas se encarregam da nova destruição. Afinal de contas, aquilo é o fim do mundo, os experts sabem e provam que lá não há alívio. Também por isso, antes de se encaminharem à sua fábrica zumbi, os voluntários devem passar por um "shock to the sistem": trinta horas de privação de sono, praticamente sem comida ou água. Todo esse planejamento para que a experiência seja o mais espontânea possível. Esse ponto cego da intromissão dos peritos é o mesmo presente na noção de "sociedade de risco". Como um diagnóstico de época, essa 76 http://www.discoverybrasil.com/web/colonia/episodios/. Última visita: 22/04/2011. A idéia de que em situações catastróficas a sobrevivência impele à destruição mútua não resiste apenas a toda contra-imaginação, resiste a fatos. A cena mais surpreendente que eu assisti do tsunami no Japão não foi daquelas de ondas cinematográficas arrastando barcos que pareciam de papel, mas uma imagem do supermercado. A câmera viaja pelas prateleiras vazias até se deter em uma mesa com latas empilhadas, em torno da qual estão umas vinte pessoas segurando suas sacolas vazias. Elas se entreolham e inclinam a cabeça naquele sinal de pequena reverência dos japoneses, aos poucos pegam cada uma sua lata. A cena é silenciosa, passou em branco em meio à verborragia midiática. Ninguém pareceu se dar conta de que ali nenhuma "natureza humana" os levou a morder os calcanhares uns dos outros. O tema da imagem era a escassez, faltaram a guerra e a percepção de sua ausência. definição captura um mundo realmente dissolvente, no qual a impermanência é regra. Essa dissolução, entretanto, não é composta pelo acaso, como o termo faz crer, mas por seu oposto, a tentativa de controle do futuro, própria da temporalidade capitalista 77 As regras eram simples: os três estariam confinados no quarto por um período indefinido de tempo, devendo usar macacões brancos enquanto lá estivessem. Eles poderiam sair desse "confinamento dentro do confinamento", nas palavras do apresentador Pedro Bial, a qualquer momento, bastando 82 Também por isso os canais científicos são uma fonte privilegiada de acesso aos nossos devaneios -incluindo aí a vasta gama de programas sobre assombrações e outras para-normalidades. A ciência contemporânea é provavelmente o maior exemplo do controle descontrolado no qual se converteu a sociedade, e apagar fogo com querosene se tornou sua única especialidade. 26/04/2011. 94 As "pegadinhas" são as avós do espetáculo de realidade. São sustos aplicados aleatoriamente a pessoas aleatórias, visando a captura da espontaneidade negada pelo aparato televisivo. Elas surgem já na década de 40 como prova cabal de que a única espontaneidade permitida será aquela provocada pelo aparato, e a única reação possível será de constrangimento ou terror. 95 As interações diretas entre a produção e os cativos nunca devem ser televisionadas. As cenas do pay per view, nas quais o áudio desaparece e só podemos ver os rostos atentos e temerosos dos cativos, só não são mais assombrosas do que o fato de ninguém estranhá-las. A presença do decreto é sempre também uma ausência, ela soa como o golpe da sorte. No programa editado, há apenas duas mediações para a comunicação das prescrições. A primeira, ordinária -apesar de não regular -é realizada pelo apresentador, que ficou famoso por suas charadas carregadas de ironias, grosserias e citações impactantes -que vão de Guimarães Rosa a Wittgenstein -juntas, essas formas adquirem um tom oracular. Pedro Bial também construiu sua aura e por ela foi construído, ele é o "sábio", cujo obscurantismo é confundido com profundidade. Além das regras das atividades, ele comunica "sinais" quase astrológicos que, como tais, são longa e cuidadosamente analisados pelos participantes, exatamente como faz K. ao receber a carta assinada por Klamm. Carta essa que é voltada para ele, para sua situação presente, mas que "é antes -pelo aspecto do envelope -uma carta muito antiga, que já está ali faz muito tempo" 99 . Assim como é inconcebível que as mulheres da aldeia recusem os funcionários do castelo ao receberem suas cartas de convocação, é do destino das mulheres do Big Brother estarem disponíveis àqueles que as solicitarem. Não foi apenas aquela do drama epistolar que recebeu essa mensagem dos céus; em 2010, uma das moças foi assediada por um rapper americano que se apresentou em uma das festas, ela o recusou por três vezes.
No dia seguinte, ao vivo, Bial disse: "nem você tem culpa de ter uma bunda bonita, nem ele de ser pegador", disse ela que não ficou chateada pois um "não" resolveu a situação, Bial então retrucou: "eu acho que você provocou", ela teve que se defender novamente, "eu só estava dançando", e ainda completou: "eu não esperava que ele fosse fazer isso, nunca ninguém fez isso comigo", o apresentador terminou o assunto com a malícia dos funcionários: "você é que não tá lembrando" 100 . Uma terceira foi levada ao pranto em 2009, quando o apresentador enviou a mesma mensagem, então de forma cifrada: "tem homem para você na casa?" 101 .
Assim como em Guantánamo, afirma o narrador, médicos monitoram os sinais vitais dos participantes: "está funcionando, vamos continuar mantendo o controle", diz o médico. Então os voluntários são proibidos de ir ao banheiro após serem forçados a tomar muita água "pois o stress causa desidratação". Um deles urina no uniforme: "humilhação é parte da técnica, diminui o orgulho e a auto-estima." Finalmente eles vão para suas "jaulas", cópias exatas daquelas da prisão fora do mundo americana; o que assistíramos até então era apenas a introdução. Intercaladas às cenas de tortura -variações de temperatura, "interrogatórios", fome, "sleep adjustement" 117 , exercícios forçados, "prolongued stress positions", "non injurial physical contact", privação de sentidos, humilhação e assédio sexual, "forced grooming" 118 , humilhação religiosa -e muito sofrimento, sublinhado por closes nos rostos dos voluntários, são mostradas cenas do narrador, que apresenta o relatório "declassified" do FBI a respeito de Guantánamo. Ele explica as conseqüências psíquicas dessas técnicas e afirma serem consideradas ilegais, desumanas e degradantes pela ONU. Um primeiro participante a deixar o "exercício" teve hipotermia; o segundo, um voluntário de religião muçulmana, pediu para sair após ser desnudado diante dos outros; e um terceiro após ter sido assediado sexualmente, ter seu cabelo raspado e ter passado por privação de sentidos, exposto a som branco e amarrado em posição fetal. Cada uma das desistências era acompanhada de uma sentença ambígua do narrador: "ele durou apenas Xhs". Após a desistência, os depoimentos: aqueles que eram favoráveis às torturas em Guantánamo "para salvar vidas" mudaram de opinião, os de opinião contrária aumentaram suas certezas. Ao final do "exercício" os restantes ouvem um congratulations -eles sobreviveram. A conclusão desse espetáculo da realidade é a mesma questão do início: "as práticas em Guantánamo traem os valores que o ocidente afirma estar defendendo?" Em 2001, Slavoj Zizek analisou artigos de conservadores americanos que propunham o debate a respeito da legitimidade da tortura. Segundo ele: "ensaios como o de Alter, que não defendem abertamente a tortura, mas apenas a apresentam como um tema legítimo de debate, são ainda mais perigosos do que endossar explicitamente a tortura: enquanto pelo menos neste momento o endosso explícito seria chocante demais e portanto rejeitado, a mera 117 Segundo o narrador, os EUA negam que haja privação de sono em suas prisões, mas Donald Rumsfeld aprovou essa técnica de interrupção constante do padrão de sono tendo em vista gerar desorientação. 118 Termo utilizado pelos militares americanos, significa algo como preparação forçada da aparência (de animais): um dos voluntários tem seu cabelo raspado diante dos demais e outro, um muçulmano, é ameaçado de ter sua barba raspada. apresentação da tortura como tema legítimo nos permite cortejar a idéia enquanto mantemos a consciência limpa ("É claro que sou contra a tortura, mas discuti-la não fere ninguém!").
Essa legitimação da tortura como tema de debate muda o pano de fundo dos pressupostos e das opções ideológicas muito mais radicalmente do que sua defesa declarada: ela muda todo o campo." 119 Ainda que os EUA já se utilizassem da prática há muito tempo, colocar a tortura pediu outro, limpo, aos soldados. Um deles perguntou: "porque você quer isso?", o voluntário respondeu cabisbaixo: "porque vocês me forçaram a mijar na roupa, Sr.", "Você escolheu mijar nela, teve sua chance", "Eu acredito que não tive chance, Sr", "Você acredita no que acredita, você teve escolha, fazer ou não fazer, você escolheu fazer. A resposta é não." Seja porque "estamos em guerra" ou porque "estamos em guerra (econômica)", em um mundo de falsas urgências toda a escolha é negativa, entre necessidades. 119 Zizek, Slavoj. "A terceirização da tortura". Folha de São Paulo, 16/12/2001.
O permanente deslocamento dos critérios de seleção e seus incontáveis paradoxos são funcionais para a manutenção do movimento, tanto ou mais que a própria seleção. Os modismos gerencialistas não devem ser menosprezados, tampouco suas exigências tomadas como impossíveis, pois se tornam factíveis na mesma medida de seu absurdo. Se a arrogância fosse tiro certeiro para a conquista de um emprego ou, de outro modo, a humildade, poderíamos fingir, mas saberíamos o que fingir e passaríamos a acreditar na virtude eleita; 27 O filme Crônica de um Verão, de 1960, realizado por Edgar Morin e Jean Rouch dá uma dimensão palpável para as pessoas da geração do pânico do que era viver no saudoso welfare state. Apesar da proposta do filme ser um questionamento da forma documentário, ele acaba por exibir uma fotografia do tédio angustiante na Paris do início da década de 60 e, sem querer, aponta para o que estava por explodir. Uma colega e eu o escolhemos como objeto de debate para um curso que ministramos a respeito da Europa do século XX, como introdução ao assunto 68. Um dos alunos, dentre os que não dormiam, comentou: "Então eles estavam reclamando de barriga cheia, a gente tá muito pior e agüenta". Detalhe: dei esse curso em uma faculdade privada de elite, para jovens que costumam passar seus verões no inverno de Paris. 28 Na entrevista supracitada, "Só os flexíveis sobrevivem", a consultora de escrotices e afins discorre sobre o termo do dia: "A resiliência se manifesta em qualquer pessoa, em qualquer situação, especialmente na vida cotidiana. As tragédias põem à prova a resiliência que se consegue ter no dia-a-dia. Diante de uma situação limite, é sobreviver ou sucumbir. (...) É preciso agir. Quando enfrentam dificuldades, os sobreviventes pedem ajuda, mandam e-mails, telefonam, buzinam, procuram um terapeuta, conversam com os amigos. Tendo passado por Auschwitz ou não". O ideal de autonomia no trabalho se esfumaçou; em seu lugar, esse elogio imoral à subvida na barbárie. Então o apresentador deu a seu "aprendiz" trinta segundos para uma decisão. Tamanho prazo foi desnecessário, à resposta imediata, "eu fico", seguiram-se aplausos 31 .
A origem desses aplausos é a mesma do pesar da exclusão: a vitória final do capital. Pois este não apenas derrotou seu inimigo como transformou os sobreviventes à sua imagem. E assim como não se pode descartar a força fantasmática da ameaça de descarte, tratar a teoria do capital humano como bobagem, na qual não se acredita realmente, é desconsiderar a forma como as pessoas agem. Pois apesar de nenhum executivo acordar de manhã, pegar sua pasta e dizer à esposa: "estou indo investir meu capital", é assim que age quando vai a uma festa fazer networking. É assim que agimos nós, acadêmicos, quando trabalhamos para nosso currículo Oswaldo López-Ruiz chama a atenção para o erro operante nessa celebrada "emancipação" do trabalho. Ao capital humano importa menos o emprego e mais seu "nível de empregabilidade", ou seja, a capacidade de reunir "capital-destreza" para que possa permanecer investindo. Visto que a empresa capitalista é o lócus preferencial dessa valorização -onde se adquire experiência, conhecimento, renome etc -"estar desempregado não significa só ter perdido o emprego, mas também, estar perdendo empregabilidade" 33 . Não obstante todo o discurso a respeito da autonomia do empresário de si, esse permanece em situação de dependência com relação à empresa; seus objetivos devem, portanto, estar sempre "alinhados" aos daquela que garante a manutenção do valor do investimento -não necessariamente sua valorização, já que ter emprego pouco significa se a pessoa não se "reciclar" sempre. Ou seja, esse novo empreendedor arca com os riscos de suas escolhas sem ter, de fato, a liberdade de tomá-las. Trata-se de uma desproporção de forças nem um pouco subjacente no discurso daquele que realmente opta; daquele que tem, não duas ou três, mas vinte e oito mil opções. "investimos nossas qualidades" em determinado negócio agimos como um capital específico, o capital financeiro. O capital humano não circula no mercado como um valor de uso: como força de trabalho ou outra mercadoria qualquer; nossas capacidades são como dinheiro que emprestamos a determinada empresa para que retornem ampliadas. Como o capital portador de juros -que "busca 'fazer dinheiro' sem sair da esfera financeira, sob a forma de juros de empréstimos, de dividendos e outros pagamentos recebidos a título de posse de ações e, enfim, de lucros nascidos de especulação bem-sucedida" 34 -esperamos uma remuneração pelo risco assumido, ou seja, por uma valorização futura que pode ou não ocorrer. Por isso não parece estranho aos participantes de reality shows não terem a totalidade de seu trabalho remunerado na forma de salário. Eles agem como proprietários de ações, especulando com suas idiossincrasias-dinheiro; eles sabem que correm o risco de perder seu investimento, mas apostam em uma capitalização futura na forma do grande prêmio. O prêmio pode ser dinheiro propriamente dito ou uma oportunidade de ampliação de sua "empregabilidade", como quando os vencedores são agraciados com um posto fixo na indústria da fama ou na empresa do apresentador ou em alguma famosa agência de modelos. Entretanto, até mesmo aqueles que perdem podem ver algum retorno de seu investimento pelo simples fato de darem visibilidade à sua "marca", seu nome -essa forma de valorização é ainda mais evidente no programa A Fazenda, no qual os nem tão famosos afirmam com todas as letras que aquela exposição tem a finalidade econômica de incrementar seu capital-celebridade. É em nome desse mesmo prêmio que inúmeros jovens se oferecem quase gratuitamente para alguns estágios, neles não apenas incrementam seus conhecimentos como valorizam seus currículos.
São também os prêmios, e não os salários, o grande chamariz para os novos empreendedores. E a única contrapartida pública da Natura ao exército de trabalhadoras-consultoras a ela disponíveis e por ela exploradas são viagens, anéis, festas e toféus 35 Como já vimos, superar é atropelar as pedras no caminho, no caso deste participante/ candidato a um emprego, é necessário atropelar a gestação de seu filho para, "no futuro", colher os frutos de seu investimento no programa -se não for eliminado, é claro. Do mesmo modo, a "adaptabilidade" significa a renúncia de quaisquer propriedades que sejam estáveis, é necessário que o capital humano possa circular sem entraves e com rapidez. Segundo Boltanski e Chiapello, o profissional ideal deve ser desapegado, um nômade. Deve saber renunciar a amizades que não lhe sejam proveitosas, bem como às relações familiares, deve se liberar do "peso de sus proprias pasiones y de sus valores", por isso não pode ser crítico, deve ser tolerante. O capital humano "no tiene otras determinaciones que las provenientes de la situación y las conexiones em las que está implicado". Mas deve, principalmente, ser um camaleão, sacrificar sua personalidade: "el individuo ligero sacrifica una cierta interioridad y una fidelidad a si mismo, para poder ajustarse mejor a las personas com las que entra em contacto y com las situaciones, siempre cambiantes." 36 Em outros termos, o capital humanotudo o que somos, fazemos ou com o que nos relacionamos -deve funcionar como dinheiro, deve se fazer abstração.
Em seu estudo a respeito do holocausto, Moishe Postone 63 busca estabelecer uma relação entre os desenvolvimentos históricos amplos e a especificidade do programa de extermínio levado a cabo pelo nazismo, sem reduzir um ao outro. A chave para tal compreensão é o fetiche da mercadoria e sua duplicidade. Para Postone, o nazismo é uma forma fetichizada de anti-capitalismo, pois permanece preso à aparência imediata da mercadoria como concretude natural, e do dinheiro, como pura abstração. O que não se leva em consideração nesse anticapitalismo capitalista é a mercadoria também em sua dimensão abstrata e o dinheiro como fruto das relações sociais. Em outros termos, a dualidade da forma-mercadoria é hipostasiada, 59 Benjamin, Walter. Obras Escolhidas. V. III. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1996. p. 127. 60 Idem, p. 129. A próxima carta, a próxima jogada... isso me lembra de outra expressão bizarra de nossos tempos.
Quando alguém não está satisfeito com seu parceiro amoroso demonstra seu desapego dizendo: "a fila anda", ou pior: "a fila tem que andar". Imagino as pessoas como caixas eletrônicos nos quais depósitos e saques são realizados rapidamente para que o próximo seja atendido. e o capitalismo é apreendido apenas em sua dimensão abstrata, cega, universal, autônoma; é apreendido como um "processo puro", desconectado das relações sociais 64 . Já a dimensão concreta da forma-mercadoria é tida como "natural", e por isso é aclamada como meio de resistência aos males do universal abstrato. Daí os paradoxos da ideologia nazista, por exemplo, ao saudar ao mesmo tempo a vida camponesa e a grande indústria. Ambas as imagens capturam a dimensão concreta que se contrapõe à abstração de um processo que ocorre às costas dos sujeitos. E qual seria a imagem daquilo o que deve ser combatido? Os judeus não foram escolhidos à toa, e isso não apenas por sua ligação com as finanças, mas também por sua condição política quando de sua emancipação no século XIX: eles haviam conquistado a cidadania, mas não a assimilação -Segundo Hannah Arendt, entre outras coisas, por seus próprios interesses 65 -eles eram, então, "cidadãos puros": sem compartilhar da cultura dos diversos países, pertenciam às nações abstratamente. Nesse sentido, os judeus não eram tidos por capitalistas, eles eram o próprio capital; e as teorias de uma conspiração judaica internacional traduziam esse sujeito universal, intransparente, intangível, poderoso e destrutivo. A revolta não era contra os judeus propriamente ditos, mas contra essa dimensão da dualidade capitalista que eles encarnavam.
A riqueza dessa concepção não está apenas na reinserção do holocausto em um modelo explicativo geral, mas também na compreensão de sua especificidade: sua completa insensatez do ponto de vista da racionalidade instrumental. Os massacres eram um fim em si, não geraram lucro -o desperdício de mão-de-obra chegou a chocar alguns de seus "empregadores" -tampouco eram necessários como forma de controle político -eles não eram considerados opositores políticos do movimento, mas seu extermínio era ainda mais imperativo. Essa característica, sublinhada por Hannah Arendt e Primo Levi, recebe uma nova luz através da ótica de Postone, segundo a qual os campos de concentração eram uma "grotesca negação de fábricas": "Auschwitz was a factory to 'destroy value', that is, to destroy the personifications of the abstract. It´s organization was that of a fiendishlly inverted industrial process, the aim of which was to 'liberate' the concrete from the abstract. The first step was to dehumanize and reveal the Jews for what they 'really are' -ciphers, numbered 64 Essa concepção é bastante semelhante às críticas de nosso "capital produtivo" ao "capital financeiro": um é bondoso, pois gera empregos, produz usos etc e o outro é malvado, pois não produz nada, é apenas um jogo de pessoas gananciosas etc. Essa fórmula foi muito usada na crise dos subprimes de 2008. O problema era de ordem moral: a ambição desmedida de certas "maçãs podres" e não de um sistema, em si, perfeito... 65 Arendt, Hannah. Origens do totalitarismo. abstractions. The second step was then eradicate that abstractness, trying in the process to wrest away the last remnants of the 'use-value': clothes, gold, hair" 66 . É possível pensarmos no mundo atual como um espelhamento da revolta nazista? Se, seguindo os passos delineados por David Harvey, Boltanski e Chiapello 67 , entendermos a origem político-cultural da acumulação flexível como uma revolta contra a dimensão concreta do capitalismo -representada, especialmente, pelo "peso" das fábricas -podemos ter uma noção mais clara do porque é tão assustadoramente fácil a comparação de aspectos de nosso mundo com Auschwitz -e isso não apenas em trabalhos acadêmicos considerados excessivamente pessimistas, na nota 32 desse capítulo temos um exemplo insuspeito de como a analogia vem sendo usada irrefletidamente e sem maiores sobressaltos. O processo neoliberal de "desindustrialização" pode ser compreendido, também da perspectiva da subjetivação, como uma "grotesca negação de fábricas". Nossa identificação fetichista com o caráter abstrato da forma-mercadoria nos leva a uma recusa de quaisquer representações de concretude; buscamos extrair das mercadorias e de nós mesmos uma materialidade que se tornou sinônimo de sujeira. Por isso as metáforas médico-higienistas, caras à ideologia nazista, retornam com valor invertido, e são utilizadas para o Estado e objetos, para pessoas e empresas 68 . "Extrair a gordura" é visto, em todos os casos, como um processo doloroso, mas necessário. Talvez por isso tenha se tornado banal o uso do termo "malhar" em referência à prática de exercícios físicos, ele explicita um espancamento auto-direcionado e auto-dirigido, cuja finalidade é a aniquilação da corporeidade dos corpos. Talvez por isso aqueles que têm nojo de seus próprios corpos não se acanhem em exibi-los na TV e ainda serem devidamente escarnecidos ao longo do processo; no final, eles apresentam o orgulho daqueles que se ofereceram a um sacrifício necessário, são os mártires da ascese imanente. Seria esse o sentido da afirmação desses que acabaram de passar por sua "via-crúcis", de que então descobriram seu "verdadeiro eu" ("what they really are")? Talvez, mas quando leio a descrição 66 Postone, Moishe. "The Holocaust and the trajectory of the twentieth century", p.95. 67 Harvey, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 2008. Luc Boltanski e Eve Chiapello. El nuevo espíritu Del capitalismo. 68 A respeito das justificativas para os processos de reengenharia, Christophe Dejours afirma: "A guerra sã é antes de tudo uma guerra pela saúde (das empresas): 'enxugar os quadros', 'tirar o excesso de gordura', 'arrumar a casa', 'passar o aspirador', 'fazer uma faxina', 'desoxidar', 'tirar o tártaro', 'combater a esclerose' etc. (...). É sabido que os tratamentos higiênico-dietéticos são dolorosos, assim como as intervenções cirúrgicas, e para eliminar o pus é preciso lancetar ou extrair o abcesso, não é mesmo? As metáforas médico-cirúrgicas são particularmente apropriadas para justificar as decisões de remanejamento, rebaixamento, marginalização ou dispensa, que causam às pessoas sofrimento, aflições e crises." Dejours, Christophe. A banalização da injustiça social. Rio de janeiro: Editora FGV, 2000. p. 14.
de Primo Levi a respeito de seu corpo, então transmutado em cera 69 , não consigo evitar que me ocorra a imagem hoje trivial de moças anoréxicas. A obrigatoriedade do confinamento, até mesmo em programas nos quais, a princípio, é desnecessário, mais que expor a intimidade dos participantes, inclui o que antes era tido por "tempo livre" na esfera heterônoma da produção. Observar a "garra" de um aspirante a executivo quando se engalfinha com seu colega de quarto é um índice valioso para a contratação de alguém que não medirá esforços para produzir; já o acanhamento de uma modelo em uma festa/prova é sinal de um social skill deficitário, ela não agrega valor a ela mesma ou à agência que a contratará caso vença. A mesma crítica que se debruça sobre o exibicionismo dos participantes de realities deveria antes se questionar sobre o trabalho realizado nos "empregos home office" ou aquele realizado à mesa do bar sob a alcunha de networking. O espetáculo da realidade reproduz a subsunção total do trabalho sob o regime de acumulação flexível. Todo o tempo é de produzir, pois toda a ação é um investimento, necessário para quem não quer perecer, em capital humano.
Realidade
"Lembre do seu sonho e se doe a essa oportunidade: você conseguiu isso na melhor época da sua vida -solteira e começando sua profissão. Esquece o mundo aqui fora (...) viva intensamente essa oportunidade surreal e não se esqueça que você é solteira e mostre o diabinho que tem dentro de você" 50 . A carta refletia o comentário generalizado dos telespectadores internautas, bem como algumas observações maldosas do apresentador: a moça demonstrava muitas saudades do namorado e, por isso, não estaria se "entregando" ao programa, estaria alheia à disputa, muito "passiva", correndo o risco de ser eliminada. Assim, com a delicadeza de um hipopótamo, os parentes incitaram a jovem a submeter sua sexualidade à competição, afinal, mais importante que o romance é a "oportunidade". Em um primeiro momento, a moça verteu lágrimas preocupadasquiçá nem tanto com o suposto término de seu relacionamento, quanto com sua imagem: "vou ser a chorona do BBB" 51 -mas a mensagem foi prontamente compreendida: "é uma dica explícita" 52 , afirmou. Na festa seguinte ela não titubeou e, digamos assim, incorporou a "diabinha" evocada por sua família. A artificialidade da performance foi tão evidente que inspirou um de seus concorrentes a apelidá-la de "caps lock", em referência à palavra "solteira" que, na carta, foi redigida em maiúsculas 53 . Para os espertos meia palavra basta, quando em destaque a compreensão é imediata: o apego afetivo atrapalha o sucesso. Mais que uma demonstração de libertinagem, ela ofereceu uma prova de seu compromisso com o "jogo". Daí a artificialidade indisfarçada não ter prejudicado a personagem, ao contrário dos prognósticos anteriores ao drama epistolar, ela foi finalista 54 .
O imperativo da carta é o mesmo desse programa em particular e dos reality shows em geral: lute e vença a qualquer custo, ainda que para isso você precise (fingir) gozar. Mesmo em outra subcategoria do gênero, os "realities de transformação", cujo tema a princípio não é o "jogo", mas a mudança "radical" de algum aspecto da vida do participante, o foco (mais ou menos explícito) é invariavelmente a correria necessária para que não se perca o trem desgovernado da concorrência. No Esquadrão da moda, transmitido pelo SBT, amigos e familiares armam uma arapuca para que seu conhecido seja entregue nas mãos de dois especialistas em moda. Esses, após ministrarem algumas sessões de humilhação, acabam por "mudar radicalmente o visual" do "mal vestido". Não obstante a pessoa receber uma generosa soma em dinheiro a ser gasta em roupas, na maioria das vezes a maratona consumista aparece como suplício. Seja por que a pessoa não gosta do esporte, seja por que deve negar tudo o que até então lhe parecia apropriado vestir, pelos especialistas, mais que isso, a estrutura do programa faz com que seja penoso, pois a pessoa é obrigada a gastar todo o dinheiro em apenas dois dias. Ela deve ser produtiva ou, em termos mais correntes, deve ser eficiente. Em segundo lugar, a dádiva não são as roupas em si, mas o upgrade necessário para uma melhor colocação no mercado, ou para a mais modesta garantia de que não haja rebaixamento. Essa, a justificativa da intervenção, é repetida à exaustão, daí a ocupação do selecionado estar sempre em primeiro plano no momento em que é convencido a participar. Se a vítima é professora, dizem que não será levada a sério por seus alunos a não ser que melhore sua aparência; se afirma que tem dois empregos, fica cansada e por isso busca conforto no vestir, a resposta da especialista é: "mas você sabe que o mercado é competitivo e você sabe que para se manter você precisa se dedicar, e sua imagem é uma dedicação que você tem que ter" 55 ; se é uma dona de casa "talvez esteja desempregada porque se veste mal", uma voz em off complementa: "claro, estar bem vestida é o mínimo pedido em uma entrevista de emprego." 56 Mesmo programas conhecidos nos Estados Unidos como reality X, que supostamente tem como tema o erotismo, ou mesmo a pornografia, são elaborados tendo em vista a disputa entre participantes 57 . E se essa regra é clara nos sucessos mercadológicos, nas derrotas se torna ainda mais transparente. Apesar do Big Brother Brasil 11 ter apresentado a maior taxa de bolinagem, exibicionismo, embriaguês, troca-troca e formação de casais, sendo considerado por uma das 55 66 Horkheimer, Max. Temas Básicos da Sociologia. São Paulo: Cultrix, 1973. p. 203. 30 participantes: "Obviamente tem os que rendem mais do que os outros, mas a gente procura sempre atender a todos. (...) Um personagem que não fala muito, ao menos um pouquinho ele vai aparecer, para o telespectador não esquecer que ele está na casa. (...) Às vezes até vamos buscar algum 'acontecimento' [daquele a quem ela chama "apagado"], porque nem vem para mim, de tão nada que ele é. Tem momentos em que eu termino um programa e pergunto: 'Nossa, cadê fulano, que não apareceu?'. Aí eu vou buscar uma cena dele sentado no canto do jardim, para mostrar que, enquanto os outros estavam conversando, ele estava isolado. Mas é claro que umas pessoas rendem mais do que as outras, mas, se as pessoas não rendem, a gente não pode fazer nada." 67 Deve-se notar que ela nega a efetivação de sua pretensão à neutralidade (outra que não é boba), mas se há privilégios na exposição a causa é objetiva, é culpa daqueles que não sabem aparecer. Em nenhum momento a editora-chefe tenta nos enganar a respeito do realismo do show, o logro brota de sua sinceridade. Ele está no fato inapelável, diante do qual "a gente não pode fazer nada", de que aqueles que não falam ou se isolam ou não agem são um "nada". E o IBOPE não a deixa mentir, se há uma coisa que gera angústia na audiência é um reality show no qual as pessoas aparecem como "samambaias" 68 . Essa imensa mentira real é apenas uma entre as tantas que proliferam em um mundo "pró-ativo", um mundo no qual timidez, silêncio e introspecção são burrice ou doença 69 , pois "não rendem". Apontar essa mentira, entretanto, não significa afirmar que tímidos podem sim ser produtivos, essa falsa recusa apenas corrobora o fato de que gente é para render -eis a fantasia de ambas as realidades. Reality shows não simulam o mundo vivido, eles o repõem. Pois efeitos especiais também costuram nosso cotidiano e também aí agimos como se fossem reais: nós disputamos, eles selecionam... 67 Feldman, Ilana. "A fabricação do BBB: entrevista com Fernanda Scalzo". In: Revista trópico. Grifo meu.
http://pphp.uol.com.br/tropico/html. Acesso em 20/06/2010. 68 "Os fãs até mesmo desenvolveram um mantra que era constantemente repetido na comunidade: 'Eliminem as samambaias primeiro!'. Samambaia é o apelido dado aos participantes percebidos como passivos por não se exporem dentro da casa, ou mesmo por evitarem expressar opiniões que podem ser vistas como polêmicas. Um grupo de participantes sem personalidade é o pior pesadelo para um fã de BBB." Campanella, Bruno. "A comunidade de fãs do bbb: um estudo etnográfico", p. 11. Notar que também nessa formulação silêncio = "falta de personalidade". 69 Um amigo meu contou que certo dia passou diante de uma igreja e notou uma pequena placa disposta na porta lateral. Nela constavam os horários dos grupos de ajuda a viciados: "Alcoólicos anônimos", "Narcóticos anônimos", "Introvertidos anônimos" e "Mulheres que amam demais anônimas". Não acreditei e procurei na internet. É verdade, há ainda amor em demasia! III Também por isso as análises que tomam um caminho diverso e pensam os reality shows como um acesso direto ao Real não se sustentam. No texto "A face oculta, sinistra e fascinante do espetáculo do real" 70 , Rodríguez afirma que esses programas abrem a possibilidade de darmos vazão à nossa pulsão escópica ao exibir, sem mediações, sexo, corpo e morte. Tendo por base a psicanálise lacaniana, a autora distingue o Real da realidade, essa última entretecida por "discursos e signos". Por isso ela se vale do termo espetáculo do real ao invés de espetáculo da realidade: "No espetáculo do real o aspecto radical da imagem invade a tela e não deixa nenhum espaço para a representação. A matéria dos corpos nos seus momentos extremos aparece arrasando todo o espaço" 71 . De fato, o corpo é objeto de devassa na programação da TV contemporânea, seja na imagem-estupro da dançarina de funk, seja na imagem-necropsia de cadáveres reais ou fictícios 72 . Uma das coisas mais estapafúrdias que eu já assisti é um programa erótico-educativo americano chamado "sexo para meninas do século 21", que no Brasil foi transmitido pelo canal pago GNT em 2007. Parte da didática consistia na instalação de uma microcâmera em um pênis, ambos eram então introduzidos em um canal vaginal 73 . A cena pode ser muito engraçada, mas está longe de ser um acesso instantâneo ao Real. Assim como o corpo exposto do nudista está mais carregado de símbolos do que aquele coberto pelo maiô, essa vagina estava recoberta pela linguagem pseudo-científica da narradora, pela assepsia do aparelho e da própria imagem, mas sobretudo pelas cenas "externas" que foram intercaladas. Nessas, um casal jovem e de aparência atlética pratica um sexo suave e seco sobre lençóis de cetim. Não é por que um corpo aparece como carne que estamos livres das representações que o envolvem, e sua exibição ad nauseam não nos arrasta "ao mais pretérito de nós mesmos, ao tempo de nossa 70 83 Na experiência levada a cabo por Milgram, as pessoas não se sabiam cobaias, mas a maioria agiu de acordo. Em março de 2010, o canal France 2 transmitiu o documentário "Jusqu'où va la télé?", nele a experiência foi reproduzida em um cenário de game show. 83% dos participantes aceitaram puxar a alavanca que eletrocutaria seu concorrente (no caso, um ator), obedecendo aos brados da platéia e da apresentadora: "punição!". O objetivo do filme era mostrar como as pessoas são capazes de agir contra seus próprios princípios quando participam de programas de TV, a crítica se voltava especificamente aos reality shows. Ao sociologizar aquilo o que esses programas tomam por natureza, o documentário também acaba por apartar a situação produzida do mundo que a rodeia: o problema passa a ser a TV. A contextualização da questão nega a crueldade como natureza, mas perde de vista a crueldade como segunda natureza. Ela não se extinguiria caso o espetáculo de realidade fosse proibido (como não se extinguiu com a derrota do nazismo). Além disso: é possível levar a sério um teste sobre a desumanidade da qual as pessoas são capazes fazendo delas cobaias? Enquanto houver testes, a hipótese da crueldade será confirmada, pois a maior prova da desumanidade é a existência do experimento. O experimento só existe onde o pensamento se tornou impotente.
Das regras
Lei I
A Lei do Big Brother é a eliminação. Mais que um jogo no qual um vence, trata-se de um jogo no qual todo o resto perde, daí o maior índice de audiência ocorrer sempre no dia do "paredão". Nesse dia, dois, três ou até quatro participantes são levados à votação do público, aquele que obtiver maior percentagem deixa o programa. O termo, que remete às execuções por fuzilamento em Cuba, foi reempregado por um participante da primeira edição do programa global no lugar do original "dia de eliminação". A expressão aderiu com tanta força ao princípio ao qual remete que até em programas concorrentes é difícil fixar outra, nesses, volta e meia ocorre um ato falho 1 . Deslocada e repetida à exaustão, a palavra-chave do Big Brother perdeu seu teor histórico e político, em seu lugar surgiu um buraco negro de significação, ao mesmo tempo difuso e mortificante. A expressão indica a principal regra do programa, a situação dos participantes com relação à disputa, o dia em que ocorre a eliminação e o cenário construído nesse dia, no qual uma arquibancada é montada do lado de fora da casa para que as torcidas recebam o eliminado ao vivo. A palavra designa estatuto, circunstância, tempo e espaço. Transformada em adjetivo, a expressão grassa tanto quanto como substantivo sem substância: "emparedado", termo que lembra mais os contos de Allan 1 A expressão também aparece em legendas de reality shows americanos transmitidos no Brasil, tais como Hell's Poe do que a revolução cubana, tornou-se igualmente polivalente, mas para além da objetividade do "jogo", ele aponta para um estado de espírito, que pode ir da melancolia à fúria. Por fim, o termo é empregado como verbo, nesse caso o uso é categórico, pois "emparedar" é um imperativo, e isso já no infinitivo. Klemperer registrou a transformação de toda uma língua em propaganda. Talvez a maioria dos termos da LTI tenha caído em desuso, mas essa anti-linguagem sobreviveu, inane e poderosa 3 . Para Slavoj Zizek, é justamente dessa fraqueza que emana sua eficácia. Por não se ligar a nada e poder se ligar a tudo, a palavra-slogan remete sem mediação ao significante puro. Através dela, fitamos o olhar da Medusa: a arbitrariedade sobre a qual se funda a ordem social. No vácuo das palavras engessadas e barateadas está posta a tautologia da resposta paterna aos 2 Klemperer, Victor. LTI: A linguagem do terceiro Reich. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009. 3 Se há um escândalo gerado pela Teoria Crítica, ele está na percepção dessa permanência da ideologia dos assim chamados regimes totalitários nas democracias do pós-guerra. Os Frankfurteanos identificaram a mesma virulência notada por Klemperer nos "bons e baratos" dos comerciais e na "personality" atribuída à estrela de cinema tanto quanto no oco "progresso" da propaganda política. Em sua forma, a ideologia dos derrotados venceu a guerra, ainda que o termo "Füher" tenha se tornado tabu. "As próprias designações se tornam impenetráveis, elas adquirem uma contundência, uma força de adesão e de repulsão que as assimila a seu extremo oposto, às fórmulas de encantamento mágico. (...) A repetição cega e rapidamente difundida de palavras designadas liga a publicidade à palavra de ordem totalitária." Adorno; Horkheimer. Dialética do Esclarecimento. P. 172-173. Sobre progresso: Adorno, Theodor W. "Progresso". In: Palavras e Sinais. Rio de Janeiro: Vozes, 1995. A Linguagem infecciosa descrita por Klemperer venceu e ainda reina soberana e sem-vergonha, como atesta a menina dos olhos da publicidade contemporânea, o chamado "marketing viral". porquês das crianças: "porque sim" responde, melhor dizendo, respondia outrora o pai.
Outrora, pois a língua-propaganda expõe diretamente o núcleo absurdo da reprodução social -"Coca-Cola é isso aí" 4 , responde agora nossa LTI -, ela dispensa a relação ambígua da autoridade por representação. Sua prescrição não é a como a do rei, que em sua própria figura representava a sociedade e, assim, justificava a dominação. Do mesmo modo, essa linguagem não se organiza como uma justificação de tipo racional que, através da argumentação e coerência, busca representar a sociedade. A LTI subjuga sem procuração, ela confronta as pessoas como a Lei que dispensa as demais leis, em outros termos, "ela funciona como supereu" 5 . Como uma pergunta retórica, essa linguagem interpela o sujeito ao mesmo tempo em que recusa qualquer relação com seu pensamento 6 . Essa relação de total exterioridade é algo que Klemperer percebeu e ao mesmo tempo recusou. Em fevereiro de 1945, em meio ao caos dos bombardeios, Klemperer fugiu com sua esposa de Dresden, então ele pôde tirar sua "prova dos nove": por todos os lados, e não apenas em seu limitado espaço de exílio, a língua alemã tornara-se LTI. Ele também se deparou com o estranho fenômeno que outras testemunhas apontaram: a tranquilidade com a qual os até então fanáticos seguidores de Hitler recusavam sua fé: "agora, todos rejeitavam o Terceiro Reich". Apesar disso, Klemperer não deixou de acreditar no comprometimento subjetivo dos alemães com o nazismo: "elas [as profissões de fé em Hitler] vinham do coração, de corações devotos, não eram somente da boca para fora" 7 . Talvez por ter sido não apenas tocado, mas gravemente ferido por aquelas palavras, ele tenha deixado de lado sua própria descoberta: que a LTI funcionou tão bem precisamente por ser usada "mecanicamente" 8 , por não estar no coração de ninguém. É por isso que mesmo quando o colapso do regime estava gravado em um céu em chamas, quando "até uma criança percebia" 9 era possível encontrar um ou outro que ainda repetia o chavão: 4 A empresa é mestre em significantes-sem-significado, além desse slogan criado em 1982, ouvimos sem escutar o fatal "Sempre Coca-Cola" em 1993 e o traumático "Essa é a real", de 2003. 5 Zizek, Slavoj. Eles não sabem o que fazem, p. 31. 6 O abuso de perguntas retóricas em propagandas comerciais não é fortuito. A interrogação aponta para uma falta que solicita a presença do outro, ainda que esse seja o próprio sujeito da pergunta, cindido na operação do pensamento. A pergunta retórica seqüestra a solicitação contida na interrogação e transforma a falta em chantagem. Por isso, após a pergunta retórica, o slogan fica à vontade para o uso do imperativo: "Quer emagrecer? Use...", "quer ser um vencedor? Participe...". Ao contrário da exclamação, a interrogação é uma abertura para o que pode ou não ser construído, portanto, para o que ainda não é -e talvez por isso sua forma gráfica seja sinuosa, ao contrário da rigidez enfática do traço com o ponto em baixo. A pergunta retórica não apenas pressupõe uma resposta como transforma tudo o que não seja ratificação em impossibilidade. A pergunta retórica forja o óbvio. Assim como anula o interlocutor, a pergunta retórica se desvencilha daquele que a elabora, pois ela é a voz do Outro. 7 Klemperer,Victor. LTI,p. 185. 8 Idem,p. 55. 9 Idem,185. "Em Hitler eu acredito!" 10 . Eram essas palavras que acreditavam, antes e independentemente dos sujeitos ou de seus próprios olhos. Assim funciona o "paredão", mais que designar uma regra do programa, nele transparece sua Lei. Por isso não é difícil para os eliminados, ainda no palco montado do lado de fora da casa, tomarem um distanciamento maduro do que acabara de lhes ocorrer. No instante em que deixam, fuzilados, o "paredão", toda a fúria ou mágoa demonstradas no período em que estiveram "emparedados" desaparece. A maioria afirma que "aprendeu muito", que aquilo foi uma "experiência única", que não guarda rancor etc. Mesmo aqueles que demonstram trazer o ressentimento junto a sua mala imediatamente racionalizam a derrota: "eu não joguei direito", "o povo preferiu assim", "ele jogou melhor". Essas reações são geralmente tidas por hipócritas pelos telespectadores, seriam apenas mais um cálculo para angariar simpatia, já que o cálculo anterior se mostrara equivocado. A leitura oposta, que é a mesma, é a de que as lágrimas e escândalos dentro da casa não passavam de cálculo para angariar piedade, atenção ou seja lá o que for. Pouco importa, pois se nem sempre a intenção corresponde ao gesto, esse invariavelmente responde à Lei. Seja mediante a paixão, o cálculo ou a paixão calculada, diante do "paredão" todos agem como se estivessem com uma arma apontada para a testa, como se estivessem diante do Fim.
Dos jogadores
Almas
Não que o que era conhecido por "tempo livre", e que hoje simplesmente deixou de existir, fosse, de fato, um tempo apartado da esfera não-livre da produção de valor. Como afirmou Adorno a respeito daquele já distante mundo de bem-estar: "O tempo livre é acorrentado ao 69 "O enfermeiro aponta as minhas costelas ao outro, como se eu fosse um cadáver na sala de anatomia; mostra as pálpebras, as faces inchadas, o pescoço fino; inclina-se, faz pressão com o dedo em minha canela, indicando a profunda cavidade que o dedo deixa na pálida carne, como se fosse cera". Levi,Primo. É isso um homem? p. 48. seu oposto. (...) Nele prolongam-se as formas de vida social organizada segundo o regime do lucro" 70 . E isso em três sentidos: em primeiro lugar, porque a diversão e o descanso serviam para "restaurar a força de trabalho", eram, portanto, "mero apêndice do trabalho". Em segundo lugar, porque essa reserva de tempo era mediada pelo consumo de produtos da indústria da diversão, seja de barracas de camping, seja de peças de teatro. Por fim, o tempo livre adotava a forma própria do trabalho, sob a alcunha de hobby. Já na sociedade da afluência, o "tempo livre" devia ser produtivo: "Ai de ti se não tens um hobby, se não tens ocupação para o tempo livre!" E por isso mesmo deveria ser rigidamente apartado do tempo de trabalho, pois assim "as pessoas não percebem o quanto não são livres lá onde mais livres se sentem" 71 . A produção de valor era ainda o esteio das relações sociais, mas estava, através dessa falsa delimitação, foracluída. Os tempos livre e não-livre se anulavam mutuamente e tornavam-se, ambos, tempos do sempre-igual. A vida era preenchida por dois tédios. Adorno faz um contraponto a essa situação ao citar sua própria experiência: "Eu não tenho qualquer 'hobby'. Não que eu seja uma besta de trabalho (...). Mas aquilo com o que me ocupo fora da minha profissão oficial é, para mim, sem exceção, tão sério que me sentiria chocado com a idéia de que se tratasse de 'hobbies' (...). Compor música, escutar música, ler concentradamente, são momentos integrais da minha existência, a palavra 'hobby' seria escárnio em relação a elas. Inversamente, meu trabalho, a produção filosófica e sociológica e o ensino na universidade, têm-me sido tão gratos até o momento que não conseguiria considerá-los como opostos ao tempo livre, como a habitualmente cortante divisão requer das pessoas. Sem dúvida, estou consciente de que estou falando como um privilegiado, com a cota de casualidade e culpa que isso comporta; como alguém que teve a rara chance de escolher e organizar seu trabalho essencialmente segundo suas próprias intenções." 72 A flexibilização do trabalho foi uma resposta pervertida ao desejo legítimo e real de que tal situação deixasse de ser um privilégio. Os movimentos da década de 60 e 70, nos países centrais do capitalismo, foram a formulação desse desejo, ainda hoje largamente incompreendido, seja por quem sente saudade do tédio, seja por quem acredita que tal desejo foi realizado. Trata-se do desejo por um trabalho que realize a integralidade da existência. E não é outra coisa o trabalho: "Por força de trabalho ou capacidade de trabalho entendemos o conjunto das faculdades físicas e espirituais que existem na corporalidade, na personalidade viva de um homem e que ele põe em movimento toda vez que produz valores de uso de 70 Adorno, Theodor W. "Tempo livre". In: Palavras e Sinais. Rio de Janeiro: Vozes, 1995. p. 70;p. 73 Antunes, que tomam a adesão dos trabalhadores ao sobre-trabalho flexível como fruto de manipulações ideológicas das empresas e gestores. Segundo ele: "Embora realmente a adesão do trabalhador resulte em benefícios para a empresa, embora sua participação com idéias represente ganho para o capital, é preciso questionar até que ponto esse envolvimento, hoje, resulta de um engodo. Pois, ainda que no passado promessas tenham sido feitas ou intenções e objetivos de dominação 'camuflados', até que ponto isso persiste? Parece que, atualmente, estamos num momento onde, assim como a idéia de progresso vale em si, sem precisar prometer algo melhor, (... A incorporação da subjetividade do trabalhador no processo produtivo não foi, portanto, uma novidade, sua incorporação como parte central do controle do trabalho sim. Sob organização taylorista, a inteligência foi utilizada de modo ambíguo: era necessária para o funcionamento da produção, mas era também utilizada como forma de resistência cotidiana, por exemplo, no controle do próprio trabalhador sobre seu tempo ou como sabotagem 78 . Segundo João Bernardo, os movimentos das décadas de 60 e 70 foram decisivos para esse conhecimento até então menosprezado ou mesmo negado: "nos inúmeros casos em que a amplificação das lutas deu lugar a ocupações de fábricas e de estabelecimentos comerciais e em que os trabalhadores, em vez de se limitarem a tomar conta das instalações, fizeram-nas funcionar, muitas vezes durante períodos prolongados, os capitalistas perceberam que quem sabia usar a inteligência para lutar também sabia usá-la para gerir" 79 . A organização toyotista resultou, para Bernardo, dessa tomada de consciência da classe dirigente. Aquilo o que os sindicatos demoraram demais a compreender, que aquelas lutas não visavam aumento salarial, mas a mudança do estatuto do trabalho, foi não apenas entendido como funcionalizado em prol da produção capitalista. As reivindicações foram abraçadas pela gestão empresarial que, através do conceito de "recursos humanos" desenvolvido na década de 80, passou a formular e aplicar técnicas voltadas para a relação subjetiva do trabalhador com a produção. Os trabalhadores foram chamados a cooperar ativamente com seus conhecimentos e experiências, foram estimulados a se apaixonar pela "cultura empresarial", foram incentivados a se utilizar de sua criatividade e a assumir responsabilidades, foram "motivados". Essas novas técnicas vieram responder àquele tédio infernal, descrito por Adorno e, ao mesmo tempo, à perigosa ambigüidade no uso da inteligência descrita por Bernardo e Dejours.
Seria um engano, entretanto, acreditarmos que se acredita no brilho propagandístico gerencial. O livro O poder das Organizações resultou de uma pesquisa realizada em uma multinacional em meados da década de 80, portanto, quando esse discurso e suas respectivas técnicas de mobilização começavam a ser difundidos. O discurso da empresa analisada era baseado na já clássica ideologia humanista-gerencial -"nos preocupamos com o desenvolvimento das pessoas"... E já então foi identificado pelos pesquisadores um distanciamento subjetivo de tal palavrório, vulgo cinismo, por parte de alguns de seus trabalhadores: "Alguns TLTXinianos não caem na armadilha da ideologia oficial humanista, que lhes parece 'hipocrisia americana'. (...) Eles dizem: 'TLXT é dura, a lógica desse mundo 78 Bernardo, João. Democracia Totalitária: Teoria e prática da empresa soberana. p. 84. 79 Idem. p. 80. capitalista é a dureza" 80 . E basta assistirmos a uma palestra motivacional, das mais às menos custosas, para sabermos que não passa de palhaçada orquestrada com respostas orquestradas; em termos adornianos, é puro phony. Ainda assim as pessoas se empenham, a mobilização é objetiva e total, a começar pelo fato das pessoas participarem desses rituais dementes. Contudo, é bastante provável que lá estejam como Winston nos "dois minutos de ódio" patrocinados pelo Grande Irmão no livro de George Orwell, 1984 80 Bonetti, Michel;Descendre, Daniel;Pagès, Max. O Poder das Organizações. p. 93. 81 Orwell, George. 1984. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1982 Assistimos, ao mesmo tempo, à submissão do zelo à ameaça, materializada por um pequeno relógio cujas imagens intercalam aquelas do trabalho apressado, materializada também pela mão amarrada às costas, pela mesa do júri, pela entrada súbita da apresentadora na cozinha -"did you really think it would be that easy?" 84 , disse ela certa vez, ao mudar as regras do desafio no meio do preparo -mas, principalmente, pelas palavras finais da jurada, seu bordão: "Pack your knifes and go". Anders, Günther. Kafka: Pró & Contra. São Paulo: Cossac & Naify, 2007. p. 104. 88 Idem, p. 105 89 "Onde, em rituais mágicos ou religiosos, se exigiu e se realizou a precisão, estava, com isso, eo ipso, pressuposto que as pessoas sabiam, irrevogavelmente, o que se objetava através desse passo; o que, através daquele, se evitava; o que, através dessa omissão, se estimulava; o que, através daquela, se punha em risco." Idem, p. 104. 90 Idem, p. 104-107.
Das provas
Fui empregado para espancar, por isso espanco. So the jeopardy is not because they're a lot more important, but I put them through the paces and understand that it's more of an entrepreneurial skill as well, not just dealing with the kitchen, the management, the delegations, the level of professionalism, but the overall aspect of it. Chefs today have got to be better than just cooks. They have to be more applicable to the ever changing climate. So we've seen a downturn globally in terms of the recession, so everyone's tightening their belts and even I'm tightening my belt. (…) And more importantly, across all that it's a business. Grifo meu. http://crushable.com/entertainment/interview-with-chef-gordon-ramsay-of-hells-kitchen/. Última visita: 09/08/2011. quanto o relacionamento entre os participantes. Além da preparação de alimentos, o trabalho é de gestão cooperativa-competitiva. Sendo assim, mais do que cozinhar bem e rápido, o concorrente deve suportar a pressão dos garçons e dos outros trabalhadores do salão, bem como dos clientes -que sabem bem onde estão, e fazem questão de prestar sua homenagem ao nome do restaurante, que é o mesmo do programa; deve fazê-lo também sob a pressão da concorrência entre as equipes e entre os membros de sua própria equipe; mas deve fazê-lo, principalmente sob a pressão devastadora do Chef executivo. O diretor da rinha, nesse caso, faz parte dela, ele não organiza as equipes, mas permanece na cozinha distribuindo, a seu bel prazer, ordens e punições. E essas são muitas. Gordon Ramsay tornou-se uma celebridade televisiva graças a seu método particular de lidar com os participantes do programa: a violência pura -a essa postura deve-se o nome do programa, sua vinheta é a imagem de Ramsey à frente de labaredas e um tridente; e quando um participante é eliminado, aparece uma imagem de seu retrato em chamas. Não se passa um minuto sequer sem que esse senhor não esteja gritando a todo o pulmão e com olhares ameaçadores, geralmente com os lábios colados ao ouvido de quem trabalha. Mas não grita outra coisa que insultos: "you donkey", "come here, you stupid bitch" "useless fucking pieces of shit", "you fucking prick", "move your fat ass", "fucking idiot", "little bastard", "dickface", "schmuck", "pig", "right now, I´d rather put poodle shit in my mouth than eat that" 3 . Como se não bastasse, entre uma grosseria e outra, ele esmaga pedaços de carne com a palma da mão, quebra pratos e outros utensílios, cospe comida, cospe na comida, atira alimentos que considera mal feitos pela cozinha, nas paredes ou diretamente no lixo. Também acontece de atirar panos de prato e comandas de pedido picadas no rosto dos participantes. Certa vez, jogou um grande pedaço de carne crua no peito de um concorrente, seguido de um "fucking bozo". Em outra ocasião atirou carne no ombro de um rapaz, ao perceber seu semblante dolorido, disse: "Did it fucking hurt? Fuck it". Também já esmagou ovos cozidos no peito de outro, limpando as mãos em seu avental. Pode acontecer dos participantes serem expulsos da cozinha, ou até mesmo do programa, no meio do serviço, aos gritos de "fuck off". Os rostos apresentam uma expressão constante de pânico, os olhos estão ora arregalados, ora no chão, e as pernas retrocedem enquanto aquela máquina de ofensas avança. Exceto a correria e as mãos eletrizadas, esses são os únicos gestos aceitos.
Uma risada nervosa, a moça foi expulsa; um gesto de ódio, Ramsay retrucou: "don´t fucking dare start gettig fucking pissed at me"; uma moça simplesmente saiu do ar, pifou em pé, ouviu: "She is dreaming... come on, you silly cow"; outro começou a chorar incontrolavelmente antes do restaurante ser aberto, não houve serviço naquela noite: "I´m 3 Às vezes as ofensas se voltam aos garçons e até a alguns clientes queixosos: "I´ll get more pumpkin and I´ll ram it right up your fucking ass."; "Don't whistle at me I'm not your fucking dog. You look more like a dog than I do". not going to do service whith this level of incompetence" 4 . Mas há também punições, digamos assim, estatutárias. Não é suficiente que o grupo perdedor escolha dois colegas para o sacrifício, seus membros ainda devem realizar algum trabalho exaustivo, como a limpeza da cozinha e do salão após o expediente, ou degradante, como comer carne crua.
A final do reality é uma inversão de papéis. Os dois finalistas jantam, bebem e conversam amistosamente com Ramsay, que apresenta um tom de voz e um sorriso até então inéditos.
Não, ele não é um monstro, segundo um jornalista que o entrevistou: "Ramsay was the very picture of restraint and decorum, winning his jaded, verging-on-cranky audience over with equal parts wit, candour, charm and plainspokenness". Não é um monstro, apenas sabe em que mundo vive e é isso o que busca ensinar. Para Ramsay, "We have to put the pressure on, vencer. E, em meio ao processo de seleção, tudo é cobrado, em especial, a impiedade diante da concorrência, diante daqueles que estão ao lado, que dormem na mesma casa, que realizam o mesmo trabalho e são cotidianamente humilhados pela mesma pessoa. Os participantes têm a intricada tarefa de fazer o trabalho em grupo funcionar e não deixar que ninguém mais, que não eles mesmos, se sobressaia. Então, em meio à disputa, os participantes se violentam entre si, geralmente no mesmo tom daquele de Ramsay.
No geral, os participantes se agridem de acordo com as circunstâncias, são todos contra todos, mas na oitava edição, essa agressão generalizada encontrou um foco. Um participante passou a ser sistematicamente assediado pelos outros, todos bem mais jovens que ele. Um dos concorrentes de sua equipe disse: "The fact that Raj is forty nine and still alive and not in jail or in an asylum is a fucking miracle". Um colega o humilhou ao dizer para o chefe executivo, e diante dos demais, que não acreditava em sua capacidade para preparar a entrada que lhe cabia. Na casa em que convivem, ele foi atacado em massa, foi xingado por um: "fucking idiot", outro se levantou e disse-lhe para calar a boca quando tentou retrucar, um terceiro atirou massa de pizza contra ele e disse: "you're a waste of life", os outros simplesmente silenciaram. redor mas também dentro, o 'nós' perdia seus limites, os contendores não eram dois, não se 8 Christophe Dejours cita alguns expedientes do mal no trabalho fora da tela, lista que qualquer um é capaz de exemplificar: "Trata-se, sobretudo, de infrações cada vez mais freqüentes e cínicas das leis trabalhistas". Um conhecido meu contou a história de uma empresa que não apenas se abstinha do registro de seus funcionários, como dava as diretrizes para a obtenção de notas falsas. "O mal diz respeito igualmente a todas as injustiças deliberadamente cometidas e publicamente manifestadas, concernentes a designações discriminatórias". Conheço uma moça cuja justificativa para a demissão do cargo de secretária foi seu "cabelo ruim". "Diz respeito ao desprezo, às grosserias e às obscenidades para com as mulheres". Nesse caso, aquela que me narrou o ocorrido foi a perpetradora do sofrimento: como advogada de uma fundação cultural, se incumbiu de explicar à funcionária não registrada que a empresa não tinha nada a ver com sua gravidez e que, portanto, ela teria que se virar com sua "condição" fora dali. Essa que me narrou o ocorrido trabalha hoje around the clock para poder garantir uma gravidez tranqüila em 2012. Outra conhecida foi trabalhar na mesma empresa em que trabalhava seu marido, a ela foi oferecido um terço do salário dele, sendo que realizaria a mesma função. Quando questionou o gerente, foi-lhe dito que sua colocação era absurda, não poderia se comparar a ele. E em uma empresa de contabilidade, foi oferecido a todos os trabalhadores de uma mesma equipe um aumento de salário, as duas únicas mulheres não viram a promessa cumprida em seus holerites. "O mal é ainda a manipulação deliberada da ameaça, da chantagem e de insinuações contra os trabalhadores, no intuito de desestabilizá-los psicologicamente". Ver exemplo do papel em branco no segundo capítulo. "E levá-los a cometer erros, para depois usar as conseqüências desses atos como pretexto para a demissão por incompetência profissional". Há quatro anos uma amiga entrou em depressão por ter sido demitida de uma ONG. Ela estava já esgotada por ter que trabalhar todos os fins de semana em uma "comunidade carente". Quando, em um domingo, avisou que não compareceria para descansar, foi demitida com a justificativa de que o "trabalho social" exige engajamento, ela havia demonstrado sua falta de compromisso com a "causa". "O mal também é a participação nos planos sociais, isso é, nas demissões cumuladas de falsas promessas de assistência ou de ajuda para tornar a obter emprego, ou então ligadas a justificações caluniosas para a incompetência, a inadaptabilidade, a lerdeza, a falta de iniciativa etc. da vítima". Ministrei uma aula a respeito desse livro do Dejours. No debate uma aluna contou que seu pai, gerente de recursos humanos de uma grande empresa, certa vez voltou para casa abalado, disse ela que nunca o havia visto chorar. Ele recebera a incumbência demitir muitas pessoas, entre elas amigos; mais que isso, teria que "inventar motivos que colassem" para a dispensa de cada um deles. "O mal é ainda manipular a ameaça da precarização para submeter o outro, para infligir-lhe sevícias -sexuais, por exemplo -ou para obrigá-lo a fazer coisas que ele reprova moralmente e, de modo geral, para amedrontá-lo". Na primeira edição do reality show A Fazenda, uma das participantes contou que certa vez se irritou e bateu em sua empregada. Conversa normal, papo de jantar, nada demais. Muita atenção para esse último exemplo: para alguns brasileiros o mal sofrido não é tão novo quanto para outros. Talvez daí derive uma certa nostalgia classe média de um bem-estar que por aqui nunca chegou a ser, ou nunca chegou a ser para todos. Dejours, Cristophe. A banalização da injustiça social. Rio de janeiro: Editora FGV, 2000. p. 76-77. distinguia uma fronteira mas muitas e confusas, talvez inúmeras, separando cada um do outro.
Entrava-se esperando pelo menos a solidariedade dos companheiros de desventura, mas os aliados esperados não existiam; existiam, ao contrário, mil mônadas impermeáveis e, entre elas, uma luta desesperada, oculta e contínua. Essa revelação brusca, que se manifestava desde as primeiras horas de cativeiro, muitas vezes sob a forma imediata de uma agressão concêntrica por parte daqueles em que se esperava encontrar os futuros aliados, era tão dura que derrubava a capacidade de resistir. Para muitos foi mortal, indireta ou até diretamente: é difícil defender-se de um golpe para o qual não se está preparado" 9 . Excetuando-se o choque da entrada, pois os participantes de reality shows sabem o que esperar (não exatamente como), e por isso ingressam em seus confinamentos já vestidos de cinza, esse mundo de "contornos mal definidos, que ao mesmo tempo separa e une o campo dos senhores e dos escravos" 10 é o que acompanhamos na TV.
O espetáculo da realidade está recheado da ambigüidade característica dos kapos, daqueles que, mediante sua colaboração, e graças apenas a ela, põem uma máquina de extermínio para funcionar. Também aqui, esse espaço acinzentado apresenta diversas camadas, mas os postos não são fixos, o que torna essa arena ainda mais movediça e suas mônadas mais impermeáveis. Daí a importância de papéis como o do "líder" ou "monstro", ou "anjo", no Big Brother, papéis que têm seus equivalentes em outros programas, como o "fazendeiro" no similar da Record ou o "líder de prova", no Aprendiz. Trata-se da definição de privilegiados temporários, aos quais é outorgado um pequeno poder, bem como vantagens competitivas sobre os demais. A distribuição de papéis ocorre mediante provas, indicação do grupo, indicação do público, pura sorte ou todas as anteriores. O pequeno poder pode ir da escolha da partilha de privilégios -como as modelos que, por terem vencido determinada prova, ganham o direito de tirarem maior número de fotos, e indicam uma colega para receberem uma cota um pouco menor -à indicação direta de alguém para o paredão. Esses poderes são migalhas do ponto de vista dos soberanos; do ponto de vista da sobrevivência, parecem imensos; do ponto de vista da manutenção da opressão são os mais funcionais. Pois nos interstícios dessas injustiças institucionalizadas se desenvolvem as rixas, inimizades, traições e desconfianças que dissolvem as fronteiras iniciais que porventura existissem entre algum 'nós' contra 'eles'. Vemos os laços entre os participantes serem corrompidos no exato instante em que um aponta para a cara do outro e diz: "eis meu escolhido"; no mesmo gesto, a corda da empresa em seus pescoços aperta. E nunca é menos dolorido para o que foi indicado a algum "paredão", ou que não foi indicado para compartilhar algum "quarto do líder", quando aquele que apontou afirma não ser "pessoal". O prêmio é sempre também um mal, fantasiado de dádiva, pois ganha-se à custa dos outros. É essa mesma lógica que organiza as diversas batalhas da guerra. As provas não testam a capacidade de uns, mas suas capacidades com relação às dos outros. Fazer um bom trabalho nunca é suficiente porque é necessário que o concorrente o faça pior; ficar em pé com a mão para cima ao longo de uma madrugada não tem valor algum se o concorrente conseguir ficar um segundo a mais na mesma posição. E os resultados dos desafios, às vezes obscuros, servem à distribuição simultânea de privilégios aos vencedores e castigos aos perdedores: se um ganhou mais comida o outro necessariamente deverá receber menos, ou de pior qualidade; se um recebe imunidade, o outro receberá humilhação; se um ganha um jantar com o chef executivo ou com uma modelo famosa, o outro terá que servi-los e lavar a louça. Nessas condições, ficar feliz pela vitória de outro é, no mínimo, difícil: aquele que ganha o faz sobre pescoço alheio, ainda que a sua revelia. Desse modo, a guerra proclamada é necessariamente guerra total: não acaba com a conquista de um território ou a rendição do inimigo, apenas com sua aniquilação, seu desaparecimento. É por essas e muitas outras que os golpes sistematicamente desferidos contra Raj por membros de seu próprio grupo não foi excepcional. Nas batalhas diárias de todos contra todos, os outros são imediatamente barreiras, tornam-se inimigos objetivos, independente dos sentimentos, ou ausência de sentimentos com relação a eles. Aquele que tentara auxiliar Raj, já cansado dos erros que, para sua cega surpresa, não diminuíam com os permanentes esculachos, pelo contrário, apenas aumentavam, afirmou: "my partner was trying to sabotage us". E a esmagadora maioria dos participantes de qualquer reality show não se cansa de afirmar coisas como: "nos damos bem, mas ele é meu oponente". Nas raras ocasiões em que os concorrentes se esquecem dessa máxima e buscam, de algum modo, prestar auxílio a alguém que se encontra em dificuldade, o risco de sempre se desdobra. Foi o que ocorreu na segunda temporada do America´s Next Top Model, quando uma das concorrentes entrou em pânico ao saber que seria suspensa sobre um vão de aproximadamente oito andares em uma construção -"I´m really scared, I don´t wanna die". Após chorar muito, ela conseguiu se deixar fotografar naquela situação enquanto era confortada por uma colega: "I take care of you, you take care of me". Após a sessão, o fotógrafo afirmou, orgulhoso: "Catie hang in there. It was a little traumatic for her, but she did it". Aquela que a auxiliara não fez, por isso mesmo, um bom trabalho e foi para a berlinda, onde ouviu: "I bet Catie´s picture´s are going to be better than yours. Because Catie was thinking about herself and you were thinking about Catie". E depois:
"One thing that the judges don´t understand is how could you let the attentions to another girl ruin your chances at winning this competition." 11 A dificuldade dos outros é um perigo do qual é necessário se afastar: "Aqui [no Campo] a luta pela sobrevivência é sem remissão, porque cada qual está só, desesperadamente, cruelmente só. Se um Null Achtzen 12 vacila, não encontrará quem lhe dê uma ajuda, e sim quem o derrube de uma vez, porque ninguém tem interesse que um 'muçulmano' a mais se arraste a cada dia até o trabalho". 13
Além das provações e injustiças e privilégios, pequenos macetes de gestão ampliam a distância entre os que apanham e os aproximam dos que batem. Interromper aqueles que estão concentrados em suas tarefas para que apreciem os erros do colega é um truque simples e eficaz. Tão eficaz quanto as remunerações e contratos individuais; tão eficaz quanto o controle de qualidade que, na empresa flexível, passa a ser de responsabilidade dos trabalhadores; tão eficaz quanto as avaliações individuais, uma espécie de sistematização da delação. Um participante do Aprendiz compreendeu que não era apenas aos outros, mas também a si mesmo, que prejudicava quando comentava as provas ou falava dos concorrentes diante das câmeras. Disse, então, aos membros de sua equipe para tomarem cuidado com o que dizem, pois cada palavra pode e deve ser usada contra eles no processo seletivo. Sua colega queria contar a respeito de algo que o membro da outra equipe lhe havia dito: "Ele me disse uma vez uma frase muito séria...". O rapaz não a deixou terminar: "Então fica com essa frase na cabeça e não fala... Entenda, Marina, que isso aqui que estamos falando agora não vão pôr no ar, vão só usar contra a gente. Isso que eu tô falando agora põe em cheque o programa inteiro. Isso é só pra eles verem e se protegerem". Questionado pela produção a respeito dessa estranha birra, disse em depoimento: "Realmente, o que a gente fala ali que cês tão filmando, é passado pra todo mundo. Ou não é passado? É passado. (...) Então justamente o que a gente fala ali... vocês se preparam. Se vocês têm tempo de se preparar, porque a gente não pode ter tempo de se preparar? Cês tão temendo alguma coisa que a gente faça? Por que vocês querem saber tudo o que a gente pensa?". O rapaz pôs o preto no branco, restabeleceu o "eles" e o "nós" com tamanha nitidez e precisão que todos os colegas concordaram e a moça desistiu da fofoca/delação. O equívoco do participante foi não acreditar em sua própria descoberta, pois a cena foi mostrada em sala de reunião, diante da outra equipe. Dito e feito:
11 America´s Next top model, ciclo 2, episódio 3. Transmitido do Brasil em 2011. 12 "Ele é Null Achtzen. Chama-se apenas assim: Zero-dezoito, os três algarismos finais da sua matrícula (...). Null Achtzen é muito jovem, o que representa grave perigo. Não apenas porque os rapazes agüentam menos que os adultos as fadigas e o jejum, mas, principalmente, porque aqui, para sobreviver, precisa-se de um longo treino para a luta de cada um contra todos, que os jovens raramente possuem. Null Achtzen nem está especialmente enfraquecido, mas todos evitam trabalhar com ele. Tudo já lhe é tão indiferente, que nem tenta fugir ao trabalho e às pancadas, nem procurar comida. Excetua todas as ordens que recebe; é provável que, quando for enviado à morte, ele vá com essa mesma absoluta indiferença". Levi
Hipertensão I
Hipertensão é um reality show da TV Globo, também dirigido pelo Boninho, que já teve duas edições e está em fase de pré-seleção para uma terceira. É um programa que, como o Big Brother, confina seus participantes e os põe para se digladiarem. O foco, entretanto, está menos no relacionamento que nas provas. São três por episódio: uma primeira dá imunidade a uma dupla; a segunda, chamada "prova de fogo" define uma dupla perdedora. Essa vai para 27 Apenas de 2009 a 2010 o número de recalls para automóveis simplesmente dobrou. A Apple realizou, nos últimos anos, recalls de Ipads, Iphones e Imacs e Macbooks. A Dell, a HP e a Toshiba recolheram computadores, a Nikon, máquinas fotográficas, a Phillips, secadores de cabelo, e até indústrias conhecidas pela excelência de seus produtos de luxo, como o Jaguar, têm lançado mão do procedimento. Todos esses reparos, que aos poucos viram regra, são realizados em produtos que podem acarretar riscos ao consumidor. Imaginemos a qualidade de produtos cujo risco é pouco ou dificilmente identificado, tais como alimentos processados. 28 http://economia.estadao.com.br/noticias/economia,dobra-numero-de-recall-de-veiculos-no-brasil,52036,0.htm. um "conselho", onde um terceiro participante será votado pelos demais para, com os outros dois, participar da "prova de eliminação", nessa, um participante é eliminado. É um reality difícil de descrever, pois além de ser um imbróglio de regras exceções, é um banquete de sofrimento e degradação servidos crus ao olhar. Deixemos, então, a tarefa para o site da emissora, que traduz com competência tal crueza. Parte das provas é "de aventura", o que quer dizer que os participantes devem realizar proezas estupidamente arriscadas. Exemplos: "Na prova 'abaixo de zero' os jogadores tiveram que, dentro da piscina, percorrer três camadas de gelo enquanto pegavam o maior número de sinalizadores luminosos em menos tempo".
"Na prova, os participantes tiveram que dirigir um carro entre 60 e 70 km por hora, subir por uma rampa, capotar e parar com os pneus para cima. A estrutura foi planejada estrategicamente para que o carro girasse e explodisse!". "Na Prova de fogo, os participantes entravam em um carro que era afundado lentamente na piscina. O que estava como motorista devia sair do veículo e salvar o parceiro preso na mala". A marca registrada do programa, entretanto, está em outro tipo de "prova": "A prova 'lojinha de horrores' desafiou o estômago dos três participantes na berlinda, dessa vez, obrigados a comer ratinhos, baratas e ganhafotos -estes últimos, vivos!". "Na prova 'Túnel das Tarântulas' as mulheres tinham que ficar em um caixão e enfrentar os estranhos animais passeando por cima delas, enquanto os rapazes entravam em um recipiente de gelo em busca de chaves". "'Capacete dos Infernos': No desafio, Andressa, Nanda e Lucas ficaram algemados e sentados em uma cadeira giratória com uma caixa transparente na cabeça. A cada rodada, eram colocados ratos, cobras, sapos ou larvas dentro do recipiente. Eles tinham que suportar essa agonia até entrar o último bicho, quando deviam se livrar daquilo tudo rapidamente". "'Leite sem Parar': Os três jogadores deviam colocar a cabeça dentro de um tubo de vidro que ia se encher de leite com molho picante a uma velocidade constante. 'A idéia é resistir o maior tempo possível. Como? Fácil! Prender a respiração ou beber a maior quantidade de leite para evitar que ele suba. A decisão é de vocês!', explicou Glenda [Kozlowski, a apresentadora]" 32 . "Live or die, make your choice".
A semelhança dessas cenas com aquelas do filme de terror Jogos Mortais não é fortuita. Assim como Jigsaw, o programa busca eliminar fracos e forjar fortes. 32 Não obstante todas as precauções técnicas e médicas, os participantes se machucam -como não poderia deixar de ser. Um deles deslocou o braço em uma prova na qual foi arrastado por uma charrete. Outro foi eliminado do programa após ter queimado ambas as mãos em um tanque de gelo -isso mesmo, eliminado! Afinal, segundo a apresentadora, foi ele que "passou dos limites". http://hipertensao.globo.com/platb/hipertensao-2010/tag/provas/. http://hipertensao.globo.com/platb/hipertensao-2010/category/provas/. http://hipertensao.globo.com/platb/hipertensao-2010/2010/10/22/%E2%80%98capacete-dos-infernos%E2%80%99-e-eleita-a-prova-mais-radical-do-programa/. Grifo meu. Última visita: 19/08/2011. A dor perpetrada e exposta por esse programa -que nisso em nada se difere dos demaismostra uma outra relação de nossa sociedade com o sofrimento que não a de sua ocultação ou de seu controle pela via da medicalização e da psiquiatria. É um sofrimento que chega a ser exaltado, um sofrimento digno. Os participantes mostram com orgulho suas feridas; e mesmo nas provas mais degradantes, quando choram em desespero, desmaiam ou vomitam a vergonha ou o arrependimento inexistem. Esse mesmo orgulho é exibido fora das telas: ser um batalhador é o mesmo que ser um sofredor. Certa vez encontrei no supermercado uma jovem senhora que não via no bairro há alguns meses, eu mal a reconheci, pois estava 20kg mais magra. Sem que eu perguntasse, ela contou que estivera no hospital por vinte dias devido a uma grave pneumonia. Seu padecimento foi tamanho que os médicos perderam as esperanças, chegaram a anunciar a seu irmão a iminência do óbito. Quando o inesperado aconteceu, os médicos a aconselharam a descansar, pois sua doença fora causada por stress.
Ela me confirmou o diagnóstico, disse que seu emprego em uma imobiliária a estava matando.
Contou que, por ser a única mulher do escritório é constantemente designada para serviços subalternos, não obstante ser uma corretora como os demais; contou que seus colegas roubam-lhe os clientes com a condescendência da gerência e tripudiam sobre o feito; disse que não é registrada e que teve seu salário reduzido dias antes de seu colapso; disse que, em decorrência disso, e também da dívida com o hospital, passou a morar em uma república de moças após receber alta; contou que anda passando fome, por isso permanece magra; disse que, não obstante o conselho dos médicos, voltou ao trabalho dois dias após receber alta; por fim, contou que os dias de sua ausência foram descontados de seu salário. Nada disso foi dito em tom de lamento, pelo contrário, ao perceber que eu ficara abalada por sua aparência cadavérica e seu relato, disse: "não se preocupe, sou uma leoa, batalhei para sobreviver e é o que continuo fazendo". A dignidade desse sofrimento não está na transcendência, mas na persistência. Essa característica foi traduzida com precisão pelo marketing político do governo anterior -que deveu sua popularidade, em grande parte, à própria mística da persistência sofredora de Lula -"Sou Brasileiro e não desisto nunca". "endurecimento do coração". O sofrimento por nós valorizado é paradoxal e apenas nesse paradoxo pode ser valorizado: trata-se de uma agitação fervorosa no mundo que conserve, ao mesmo tempo, os sujeitos imperturbados, impassibilis. Nossa relação com a passio se diferencia daquela do estoicismo, pois a violência e a compulsão que lhe são características não são algo do qual se deve resguardar. Pelo contrário, aqueles que fogem às intempéries mundanas não são sábios, mas covardes. E tolos são aqueles que, de acordo com a concepção cristã, se entregam ao sofrimento como forma de oposição às injustiças; os sábios e corajosos as abraçam. Temos, então, um sofrimento no mundo e para o mundo. Nossos mártires não caem, porque sua salvação é a própria provação. Seu sacrifício é a negação do sacrifício.
Solitários
Solitários, reality show veiculado pelo SBT, arremessa pessoas em celas individuais minúsculas, nas quais não têm contato algum com o mundo externo. Os participantes comunicam-se apenas com uma voz robótica que explica as provações, dá ordens e indica punições. Em seus cárceres privados, eles perdem a dimensão de tempo (não há rotina) e espaço (a cela é um octógono pintado com cores berrantes); passam inúmeras vezes por situações de privação de sentidos e outras formas criativas de tortura -Exemplo: "De pés descalços em cima de uma plataforma de pregos os participantes tiveram que suportar a dor o maior tempo possível. O primeiro a desistir foi eliminado" 51 ; por fim, os concorrentes são privados de necessidades elementares: podem ser impedidos de dormir por ruídos e luzes irritantes, ou podem passar fome para, logo a seguir, terem que adivinhar as calorias de um prato de hambúrguer disposto a sua frente. A proximidade da cifra correta rendeu o prêmio da alimentação completa ao vencedor, quantidade que ia diminuindo até o perdedor, que foi obrigado a devolver a comida intacta à produção. Os perdedores das provas ou aqueles que delas desistem ao apertarem um botão estão imediatamente eliminados; ganha R$ 50.000,00 (em barras de ouro) aquele que não sucumbir. Não é preciso ir mais adiante nessa descrição para termos uma noção do estado dos participantes ao longo da competição: assistimos às pessoas enlouquecendo. Essa loucura pode não ser vista como tal, já que a roda viva de sofrimento, dor e embrutecimento é a regra, mas é precisamente o que assistimos 52 . Os participantes choram desesperados, passam mal, falam sozinhos, temem ou odeiam sua própria sombra, gritam, anestesiam-se, são exauridos 53 .
As cobaias do experimento cruel do SBT não estão solitárias porque se encontram privadas da companhia de outras pessoas. Há inúmeras vezes em que estamos sós mas não solitários, por exemplo, quando lemos um livro. Na formulação de Hannah Arendt, mesmo quando nos abandonamos aos nossos próprios pensamentos, estamos na companhia do outro que se desdobra em nós. A única experiência diante da qual nos encontramos completamente abandonados é a que o antropólogo Eduardo Viveiro de Castro chama "quase morte" 54 . Não se trata da própria morte, pois essa é o não-evento por excelência, é algo que sempre ocorre aos outros, jamais a nós mesmos 55 essa exterioridade absoluta, essa humanidade inteiramente alheia a nós, essa ausência porque quando você morre, você não existe mais para testemunhá-la. A morte é uma espécie de acontecimento paradoxal". absoluta de parentesco. (...) O estado é aquele que, precisamente, te ignora. Você está ali, diante dos guardas do castelo, e você nem faz a pergunta que devia ter feito, como dizia o outro." É a essa solidão que estão submetidos os solitários da TV e do sofá. Os pequenos soberanos e suas vozes descarnadas estão por todos os lados. A vida passa a ser composta por uma sucessão de quase-mortes. Como núcleo de uma vivência de choque, a quasidade perde o poder de gerar experiência, e a ela se contrapõe 56 . Ela já não é capaz de gerar narrativa, transformação ou diferença, perde a força de estabelecer sentido. Apesar de ser apresentado como o oposto dos demais reality shows de confinamento, por não haver convivência, Solitários apresenta uma fantasia central aos demais programas e às relações sociais em geral: estamos sós. Pois "cada um por si e a roda da fortuna contra todos" é tudo o que parece ter restado nesse mundo pós-apocalíptico. Estamos sós, mesmo que estejamos acompanhados. O alvo das práticas ideológicas aqui descritas -do descarte à seleção, do capital humano à viacrúcis, da ausência de regras à ausência de critérios; das provas de resistência, das indicações para a eliminação, dos jogos da verdade, das torturas... -não é a conquista da consciência dos dominados, mas a produção de sua solidão. E da solidão tais práticas derivam sua eficácia.
A luta de classes não desapareceu porque os avanços tecnológicos eliminaram o trabalho, tampouco porque as pessoas não se sabem exploradas, mas porque todos os santos dias vão à mata e fitam os olhos de seus fantasmas, todos os dias agem como se estivessem irremediavelmente solitárias. 56 Benjamin, Walter. "O Narrador". In: Obras Escolhidas, v. I.
Pede pra sair
I
Nem sempre um jargão fabricado e produzido em massa adere à vivência, como bem o sabem aqueles que sonham a completa manipulação, os publicitários. Por outro lado, quando o sucesso é estrondoso não pode ser desdenhado, não por ser uma manipulação bem sucedida, mas porque certamente toca em algum aspecto nuclear do edifício simbólico. O jargão é uma tolice aparentemente inofensiva, através da qual ouvimos a voz de comando do Outro. Por isso não é à toa que a "música" que repetia de modo incansável a frase "tô nem aí" tornou-se uma epidemia em 2003 1 , ela era indiferença ministrada em doses cavalares a conta-gotas. Já em 2007, o vírus foi a frase "pede para sair", oriunda do sucesso de bilheteria, o filme Tropa de Elite de José Padilha. A frase é repetida pelo capitão do Batalhão de Operações Policiais Especiais, o BOPE, ao longo de uma seleção de admissão, enquanto esbofeteia os aspirantes e os obriga a provas dolorosas. Como não poderia deixar de ser, o filme se tornou mote de um dos espaços privilegiados de mobilização disciplinadora da força de trabalho, as palestras motivacionais. O ex-capitão do BOPE, Paulo Storani, late para a platéia composta de executivos de uma grande seguradora: "Você é um operação especial ou é um convencional na sua atividade? O convencional é o invertebrado, é quem desmonta no primeiro tiro ou na primeira meta", seu ponto final: "E quem não está satisfeito...". A platéia completa: "pede pra sair". O 1 A música foi composta por "Latino" e gravada por "Luka". Além de ter virado trilha sonora da novela adolescente Malhação, da TV Globo, e de um comercial da Chevrolet, virou sucesso internacional, sendo uma das mais ouvidas na Alemanha, Itália e EUA. fim da palestra é marcado pela auto-designação dos membros da "tropa de elite" -do BOPE e daquela recém-forjada: "Eu sou caveira!" Uma das mobilizadas afirmou: "Nas palestras, fazemos uma auto-reflexão, buscando as características do 'caveira' dentro da gente." Mas há também os que se descobrem "invertebrados", segundo o diretor comercial da maior fabricante de lycra do Brasil: "Na empresa, a gente agora só se chama por número", segundo ele, dois funcionários "pediram para sair" após a aplicação dos princípios da palestra, "Um, três dias depois da palestra, e outro, 15 dias depois, porque viram que o bicho ia pegar" 2 . A cena ficcional apresenta os mesmos elementos que constituem nossa fantasia, e o jargão os sintetiza com precisão. Ele é intimidação na forma de conselho, pressupõe uma escolha livre ao mesmo tempo em que a recusa ao impor seus termos. Pedir para sair é cruzar a linha de aniquilação demarcada pelo próprio chicote que roga. Ele é um apelo ao desejo real de desistência e o massacre desse desejo pela ameaça maior, muito maior que a sombra da mão O tapa na nuca acompanhado do sarcástico "pede para sair" é a imagem da nossa dominação, uma dominação que não funciona pela coerção pura, mas que transforma força bruta em ideologia. Ele está em todos os lugares, está na multiplicação do assédio moral nas empresas, bem como na máxima brincalhona: "tá com medo? Porque veio?". Ele está nas palavras do médico que recusa um relatório para dispensa, pois "tem paciente que implora para retornar ao trabalho, mesmo sentindo a dor do cálculo renal". Está em cada uma das palavras aqui escritas apressadamente, pois o prazo inabalável é um tapa que empurra adiante, para que não se cruze a linha da aniquilação acadêmica 3 . Essa é a imagem que sintetiza o controle do trabalho no capitalismo atual em geral, e nos reality shows em particular. Quando se assiste ao 2 Prado, Maeli. "Caveira motivacional". In: Folha de S. Paulo -Revista da Folha, 23.03.2008. "O bicho vai pegar" é outro desses jargões virais, e é usado na música-tema do filme. Lembra a citação de Theodor Adorno, no terceiro capítulo desse trabalho, a respeito daqueles que correm. 3 Um querido amigo, que sentia o deadline respirar em sua nuca, escreveu o seguinte e-mail: "Estou me sentindo num filme sobre ameaça de bomba. Sabe aquela coisa de contagem regressiva rolando, e o cara precisando saber qual fio cortar para desarmar a bomba?". Respondi para ele: "O mais estranho é entregar o texto, no paradoxo de criticar o soberano da bomba no mesmo movimento em que se lhe obedece ao cumprir sua exigência".
Conselheiro -Eu acho que a atitude do suicídio que ele cometeu aqui, foi antes de tudo uma covardia em vez de uma coragem.
Justus -É, acho que essa é a lei que é a mais importante lei do universo, o que separa os fortes dos fracos. Que é assim na cadeia da natureza, né. Eu acho que ele provou para mim que não tinha a menor condição de estar no meio dessas pessoas e, quer saber, eu tô aliviado com a saída do Peter, só que ele tinha que ter a dignidade de ter ido até o final. Capítulo encerrado, vamos pra frente. 6 O trecho é longo, mas é o resumo não mediado dessa pesquisa. Aqui um mundo foi dito, sem ambigüidades, coalhado de paradoxos. Aqui está um capital humano que descobriu a mentira do que lhe fora prometido e se rendeu ao ritual, tarde demais; o ingênuo e um bando de espertos que silenciaram e, temporariamente, sobreviveram; um trabalho de competência indeterminada, não explicado, sem sentido; a tarefa que exige engajamento, mesmo que não haja o conhecimento para tal; o direito à vida, subsumido a um contrato; um soberano que dita direitos e ausência de direitos; um contrato sem regras, que devem ser cumpridas; o dono da sala, único dono da própria vida, pois chefe da palavra e da razão, sem feedbacks; a dignidade que reside apenas na submissão; uma "coitada" adoentada, fraca, que teve o que merecia; a linha de aniquilação, portas se fecham, agora sim, em definitivo; uma demissão descumprida que não perde seu caráter necessário, duplica; a sinceridade de um, suicida, a sinceridade do outro, assassina; o sofrimento de quem simplesmente não consegue mais continuar; a ética da obediência total; a covardia que é fugir aos tabefes, covardia de não "ir até o fim", covardia de negar o destino; a fraqueza dos suicidas metafóricos e reais; a Lei do mais forte e a força da Lei; e vamos pra frente.
Cartografia e Sensoriamento Remoto – Fundamentos e Uso – Volume 1, 2019
LSE Policy Review, 2022
Late Prehistoric Fortifications in Europe: Defensive, Symbolic and Territorial Aspects from the Chalcolithic to the Iron Age Proceedings of the International Colloquium 'FortMetalAges', 2020
International Journal of Sustainability in Higher Education, 2017
SA Journal of Information Management, 2012
Physica E: Low-dimensional Systems and Nanostructures, 2015
Institut français de Pondichéry; École Française D’extrême-orient. Collection Indologie 163., 2024
Clínica e Investigación en Ginecología y Obstetricia, 2011
International Journal of Surgery, 2013
BMJ case reports, 2017
International Journal of Art & Design Education, 2016
Journal of Computing in Civil Engineering, 2015
Book of Abstracts Convegno Chimica sotto l'albero , 2024