Notas
para
Obra
Completa
para
Piano
de
Schoenberg
During his lifetime and even –astonishingly – in the half-century
since his death, the music of Arnold Schoenberg
has been influential and controversial out of all proportion
to the frequency with which it has ever been performed
or otherwise disseminated
Richard Taruskin, The Musical Times, 2004
A história das gravações da obra completa de Schoenberg confirma em
absoluto a frase de Taruskin em epígrafe. Não sendo de modo nenhum
conforme ao seu estatuto mítico de compositor fulcral do Século XX será mais
conforme à dificuldade habitualmente associada à sua música.
Essa dificuldade é antes de mais nada verificada na recepção da sua
obra por parte dos frequentadores de concertos, que vê em Schoenberg o
primeiro e fundamental responsável pelo esoterismo isolacionista que marcou o
modernismo musical durante todo o Século XX. Para além disso a relativamente
reduzida discografia da obra para piano releva uma segunda dificuldade: não só
provocou a problemática recepção píblica como não foi propriamente adoptada
pelos pianistas. Os casos que se podem apontar revelam em primeiro lugar o
facto de terem sido já “especialistas de música contemporânea” - como MarieFrancoise Bouquet e Claude Hellfer em França – aqueles que se tornaram
intérpretes da música dos compositores da Segunda Escola de Viena. As duas
notáveis excepções na sua discografia confirmam esta regra pela sua
particularidade. Glenn Gould, o genial e excêntrico pianista canadiano editou em
1968 as cinco peças que constituem o legado pianístico de Schoenberg. Alguns
anos mais tarde Maurizio Pollini fê-lo igualmente; o pianista italiano pertencia ao
grupo de amigos de Claudio Abbado e de Luigi Nono, genro de Schoenberg.
Pollini teve sempre interesse por alguma música do século XX ao contrário de
pianistas de estatuto equivalente que normalmente se circunscreveram ao
“grande” repertório canónico clássico-romântico acrescentado nalguns casos por
obras de Prokofiev e poucos mais. Não se cumpriu a profecia-expectativa de
Schoenberg que esperava que o tempo viesse a permitir a aceitação geral da
sua música.
Para já algumas informações sobre as datas da composição destas
obras. As três peças Op 11 foram compostas em 1909; as Seis pequenas peças
Op 19 em 1911; as Cinco peças para piano Op 23 em 1921 e completadas em
1923, data composição da Suite Op 25. As duas peças Op 33a e 33b são de
1930.
A primeira ideia associada a Schoenberg é a da invenção da série de
doze sons. Este procedimento técnico, que visava obter uma forma de organizar
o total cromático de acordo com princípios lógicos sobretudo no que respeita às
deduções a partir de uma forma serial original, surgiu após uma longa
maturação durante a qual Schoenberg viveu uma crise criativa que o impediu de
completar sequer uma peça durante uma década. As Suites Opus 23 e Opus 25
são justamente das primeiras peças a serem compostas já com a nova técnica e
se confrontadas com o Opus 33a e 33b, publicadas já nos Estados Unidos,
permitem vislumbrar a evolução das técnicas seriais de Schoenberg. No entanto
mais rica ainda para os ouvintes será comparar as peças Opus 11 e Opus 19 da
chamada fase da atonalidade livre com as outras 3 obras seriais.
Para além das comparações tradicionais entre estes dois grupos de
peças, que abordaremos mais adiante, foi preciso esperar por Wolfgang Rihm
para voltar a olhar para as obras da fase atonal de Schoenberg não como
antecipações cromáticas do princípio serial – mas ainda não completamente
“organizadas” – mas antes como exemplos prodigiosos de expressão musical
intuitiva e livre.
Adorno e Boulez marcaram a recepção de Schoenberg nos círculos
estreitos da música contemporânea. Enquanto o primeiro, sempre no fio da
navalha que caracterizava a sua prosa torrencial e contraditória, de tão
dialéctica, considerava que, se o dodecafonismo correspondia às “tendências
objectivas do material musical”, simultaneamente revelava a presença
inquietante da racionalidade própria da sociedade administrada, Boulez foi talvez
mais claro sendo as suas preocupações centradas exclusivamente na linguagem
musical. Para ele, Schoenberg não tinha sido capaz de levar até às últimas
consequências a sua descoberta genial. Assim, esconjurou o uso das formas
barrocas e a rítmica típica das obras seriais de Schoenberg em detrimento da
eleição momentânea de Webern como o verdadeiro modelo a seguir. Enquanto
Adorno criticava um excesso de racionalidade, Boulez censurava o defice de
aplicação do modulo 12 apenas às “alturas”, como se dizia com o vocabulário
da época.
Em todo o caso esta trilogia - Schoenberg, Adorno e Boulez - criou aquilo
que se transformou, por um lado, numa vulgata na qual é virtualmente
impossível
discernir quem disse o quê e, por outro lado, no discurso
hegemónica que dominou o ensino da composição e, até certo ponto, o
pensamento musical no campo contemporâneo até grosso modo 1980. Um bom
exemplo, entre os muitos possíveis, desta posição encontra-se no texto de
Henry-Louis de la Grange incluído no CD de Gould. O autor escreve sobre o Op
11: “A primeira e a segunda desta peças traem ainda influências nitidamente
românticas. Schoenberg permanecerá sempre fiel a certas fórmulas pianísticas
herdadas de Brahms, mas que aqui insere num contexto inteiramente novo.
Com efeito usa uma linguagem resolutamente atonal, de uma polifonia cada vez
mais serrada, ao mesmo tempo que tende para o “total cromático” e a “variação
perpétua”, princípios de base da futura técnica serial”.
Um dos erros mais comuns da musicologia e da critica musical é assumir
sem hesitações tudo aquilo que Foucault problematizou em torno da noção de
autor. É desta assumpção do conceito de autor e do conceito de obra que deriva
a tendência para leituras retrospectivas daquelas duas obras atonais.
Nós sabemos efectivamente que, mais tarde, Schoenberg criou os
princípios do dodecafonismo serial. Deste conhecimento actual dá-se o pequeno
passo para ouvir e interpretar estas obras como contendo já em si, em germe, o
princípio serial. É isto que explica que os teóricos americanos da Set Theory
tenham dedicado inúmeros escritos e análises ao estudo das peças atonais de
Schoenberg, à procura de princípios intervalares de similitude ou equivalência
entre grupos de notas, justamente aquilo que caracterizava, por definição, uma
série dodecafónica: ser uma determinada estrutura de notas e intervalos dotada
de propriedades invariantes. Este método que foi proposto principalmente em
The Structure of Atonal Music de Allan Forte a partir dos escritos de Milton
Babbit do final dos anos 1940 mas os seus limites analíticos residem
principalmente no facto de se concentrar apenas nas relações entre grupos de
notas sem ter em conta sequer o ritmo para não falar de um vislumbre de
análise de figuras ou gestos.
O meu ponto principal neste aspecto considera que a noção de autor,
com a sua ilusão intrínseca de abarcar “toda a obra”, descarta a contingência
humana que, apesar dos lugares comuns das narrativas hegemónicas sobre a
história da música do século XX, é absolutamente decisiva na criação artística.
O exercício que é necessário fazer é colocarmo-nos na situação e na
circunstância de Schoenberg nesse período atonal. Teria sido absolutamente
inevitável para ele evoluir na direcção da criação da série? Teria sido possível,
como hipótese técnica, que Schoenberg tivesse prosseguido o seu modo de
compor desse período?
Claro que estou a ouvir os partidários que restam da noção da “tendência
histórica do material” (adornianos orfãos de Adorno) – conceitos aliás idênticos
aos conceitos marxistas sobre a evolução das sociedades – afirmarem: “Mas, na
verdade, o serialismo já lá estava implicitamente, em estado potencial e, por
isso, o percurso de Schoenberg correspondeu efectivamente às tendências
históricas do material”. Não creio. Julgo que alguns aspectos de ordem
ideológica e mesmo psicológica terão sido muito (mais) importantes.
Dentro das determinações que conduziram o compositor nessa direcção
avulta, por exemplo, a consciência messiânica de uma missão a cumprir.
“Alguém tinha de o fazer, ninguém se ofereceu, respondi eu à tarefa”. Esta ideia
deriva da sua inserção total no pensamento de raiz hegeliana - “A história do
mundo é a do progresso da consciência da liberdade”– e a convicção de que no
campo musical cabia aos alemães cumprir esse desígnio histórico. Tinha sido
Franz Brendel o primeiro autor a publicar, já em 1852, uma Geschiste der Musik
in Italien, Deutschaland und Frankreich aplicando conscientemente a dialéctica
hegeliana, “que não se limitava a mostrar que as coisas mudam, mas qual era o
propósito das mudanças”, ou seja, o seu fim.
Para Adorno – que via na fase atonal o momento exemplar do percurso
criativo de Schoenberg - e a sua tendência para aplicar conceitos da recémcriada psicanálise freudiana às suas análises musicais - uma delas teria sido “o
medo da liberdade”. A fase “da liberdade” – anterior à conceptualização do
sistema dos doze sons – tinha sido, no entanto, muito problemática para o
compositor. Apesar dos sucessos das suas peças pós-românticas - Gurre-Lieder
e Noite Transfigurada – e mesmo de Pierrot Lunaire, obra composta pouco
depois do Op. 11 e do Op 19, sobretudo a partir do Quarteto nº 2, Schoenberg
foi muito criticado em Viena e radica nesse facto a necessidade que levou à
criação de uma Sociedade de Concertos para apresentar em público as obras
do seu círculo. Das acusações de caos sonoro derivou para o compositor uma
gradual necessidade de, após ter consumado a sua missão destrutiva –
consumar o fim da tonalidade - evoluir para um sistema de composição que lhe
permitisse organizar o total cromático que tinha atingido o que ele próprio definia
como a “emancipação da dissonância”. Para Schoenberg era agora necessário
organizar as dissonâncias que ele próprio tinha “emancipado”. A sua ideia de
Grundgestalt – o núcleo original de onde derivasse o todo – concretizava-se na
série dodecafónica de uma forma que, para além disso, se inseria na ideia de
Goethe da Urpflanz – a planta arquetipal – base do objecto artistico, feito a partir
de uma célula original, considerado como organismo, dotado de vida própria, em
função das suas virtualidades internas, o chamado organicismo. Segundo
Taruskin, Schoenberg escreveu no seu caderno de esquissos, aquando a
composição do Quinteto de Sopros Op. 26 o seguinte: “Penso que Goethe
estaria muito satisfeito comigo”. A série era a promessa do perfeito organicismo.
O sucesso desta ideia e destes argumentos foi muito superior ao sucesso
da música de Schoenberg. É deveras espantoso ouvir ainda hoje a repetição
destes argumentos enunciados com um tom solene de descoberta pessoal pour
épater les jeunes compositeurs e vários outros tipos de ignorantes. Finalmente,
a sua obsessão com o seu próprio lugar na história da tradição alemã da qual
resultaram as ambiguidades do seu discurso oscilando entre a recusa radical da
tradição tonal – a partir do conceito disseminado do “colapso da tonalidade” - e a
tentativa de legitimar justamente no passado o seu uso de motivos e a sua
técnica da “developing variation”, por exemplo, no artigo “Brahms, the
progressive”.
Face a tudo o foi dito penso não será de todo descabido colocar a
hipótese de, apesar de ter sido essa a evolução real que Schoenberg
prosseguiu, ela não ter constituído nenhuma resposta obrigatória a uma
qualquer necessidade histórica mas ter sido antes uma opção do compositor. Na
verdade
muitos
outros
compositores
contemporâneos
e
posteriores
a
Schoenberg não partilharam a sua opção e continuaram a compor com base
noutros pressupostos. A narrativa hegemónica procurou excluí-los da história,
procurou anular ou desqualificar o seu trabalho e é por essa razão que
assistimos actualmente a vários esforços no sentido de reescrever a história da
música do século XX, definitivamente mal contada durante demasiados anos.
Sublinhar este aspecto – a opção em detrimento da raiz - reconfigura o
contexto teórico e ideológico que marcou fortemente a nossa visão da obra de
Schoenberg. É nessa perspectiva que se pode e deve voltar a ouvir estas peças.
Já não sob o peso das perspectivas anteriores mas simplesmente como peças
de um compositor importante. Certamente que todo o contexto descrito é
relevante para uma compreensão plena do seu percurso. Mas o tempo e as
suas propriedades, tanto escultóricas como assassinas, obriga-nos a recolocar
as questões de um outro modo.
É nesse sentido que se pode interpretar a posição de Rihm. Ao incluir o
Schoenberg da fase atonal como exemplo de liberdade, ao lado do Beethoven
dos últimos quartetos, de Debussy, Varèse e, acima de todos, Robert
Schumann, Wolfgang Rihm chama a atenção para aquilo que me parece ser o
mais importante: o facto de haver mais “potencial de futuro” nessas obras de
Schoenberg do que no seu sistema posterior.
Gostaria de terminar estas notas sobre este excelente e importante disco
– com interpretações transbordantes de energia e clareza – com uma referência
pessoal ao percurso de Madalena Soveral. Esta petite histoire poderia poupar
algum trabalho aos musicólogos históricos futuros, que, em Portugal, tem uma
existência incipiente e bastante confinada às estufas universitárias onde tem
lugar as suas investigações, se o assunto lhes merecesse algum interesse.
Por volta de 1976, Álvaro Salazar iniciou na Escola de Música do Porto,
dirigida por Hélia Soveral, um dos primeiros senão o primeiro curso de análise
musical em Portugal. Essa disciplina não era então curricular. A esse grupo de
jovens interessados, na descoberta dos mistérios da música contemporânea, do
qual fazia parte, juntou-se pouco depois Madalena Soveral. Após uma estadia
em Paris a pianista regressou ao Porto onde nos satisfazia a ânsia modernista,
até então frustrada, com recitais que incluíam as Klavierstück IX e XI de
Stockhausen, a Sonata de Alban Berg e várias das obras incluídas neste CD.
Esta gravação, deste modo, não só realiza um documento essencial e inédito na
discografia portuguesa – que provavelmente permanecerá único durante muitos
anos – como dá materialidade a um percurso artístico exemplar para a nossa
geração.
António Pinho Vargas, Outubro de 2008