Revista Ciência Pantanal
Vol. 03 | nº 01 | 2017
ISSN 2357-9056
Aves
semeadoras
Ao disseminarem sementes de
frutos nativos, mutuns, aracuãs,
cujubis, jacus e jacutingas
promovem a renovação natural
das matas e capões do Pantanal
Págs. 14 a 17
Porcos invasores
Javalis e javaporcos ameaçam
invadir a planície e acabar
com 200 anos de convivência
pacífica dos monteiros com
a fauna pantaneira
Págs. 42 a 47
1
“Apostamos em iniciativas
coletivas para disseminar
boas informações e colocá-las
a serviço do bem comum.
Foto: Lucas Leuzinger
Acreditamos num futuro
com menos lacunas de
conhecimento e mais esforços
de conservação, no qual
teremos capacidade de
entender e manter
o delicado equilíbrio
ecológico do Pantanal”
Editorial
O equilíbrio é coletivo
É um privilégio participar da história do Pantanal com algumas contribuições para o conhecimento
e a conservação de sua natureza e cultura, mesmo se modestas. Apreciamos ainda mais quando essas
contribuições abrem novas portas de pesquisa ou motivam novos visitantes a se deslocarem até a
região para entrar em contato com a rica biodiversidade e a calorosa hospitalidade pantaneira.
Temos orgulho em abrir este terceiro volume da revista Ciência Pantanal, editado pela
Wildlife Conservation Society (WCS), com um artigo sobre arte rupestre. De certa forma, podemos
considerar como uma publicação os registros em pedra feitos por caçadores e coletores entre
10 mil e 3 mil anos atrás. Suas pinturas e gravuras mostram felinos, répteis e humanos ao lado
de espirais, losangos e outras figuras geométricas. Os significados se perderam no tempo,
mas parece clara a intenção de contar à posteridade como era a fauna e o Pantanal de então.
Curiosamente, foram bandos atuais de queixadas que nos levaram – pesquisadores da WCS Brasil –
a descobrir alguns dos vestígios milenares, localizados nos paredões entre o planalto e a planície,
nos arredores de Maracaju. Com a posição gravada no GPS, procuramos o historiador e antropólogo
Rodrigo Simas de Aguiar e ele acrescentou mais um sítio aos seus locais de estudo sobre as origens
da ocupação humana no Mato Grosso do Sul (assunto desta edição).
Torcemos por mais descobertas ao alcance dos turistas a bordo de bicicletas, dos observadores de
fauna e dos hóspedes de pousadas comunitárias. Com seu ritmo menos frenético, essas modalidades
de ecoturismo (apresentadas nesta edição) podem render experiências extraordinárias, se não junto
a registros da pré-história, ao menos bem pertinho dos animais pantaneiros do nosso tempo.
A par das iniciativas de Pagamentos por Serviços Ambientais, restauração florestal e revitalização da
Reserva da Biosfera (três outros assuntos desta revista), o ecoturismo pode nos ajudar a manter uma
perspectiva de futuro para o Pantanal. Talvez um futuro no qual os pequenos mamíferos se tornem
mais conhecidos; as incríveis formigas pantaneiras se transformem em atração; as salinas e seus
habitantes deixem de ser cheios de mistérios e passemos a dar a devida importância ao vínculo entre
inundações, plantas aquáticas e a reprodução dos peixes, além de valorizar os “jardineiros” florestais,
como mutuns, jacutingas e demais aves de grande porte, semeadoras de matas e capões.
Acreditamos nesse futuro com menos lacunas de conhecimento e mais esforços de conservação,
no qual teremos mais capacidade de entender e manter o delicado equilíbrio ecológico do Pantanal.
Acreditamos que informações cientificamente embasadas podem contribuir para a solução de conflitos,
sejam pequenos estranhamentos – como a “ocupação” de edificações humanas por espécies silvestres
em busca de abrigo e alimento – sejam gigantescos confrontos – como o número crescente de
atropelamentos de animais em rodovias e a poluição genética associada à invasão de javalis/javaporcos.
O Pantanal não tem barreiras físicas ou geográficas para conter essas ameaças. Por isso, apostamos
em iniciativas coletivas para disseminar as boas informações e colocá-las a serviço do bem comum.
E contamos com você para nos ajudar!
Obrigado por estar conosco!
Carlos Durigan
Diretor WCS Brasil
Alexine Keuroghlian
Diretora WCS Brasil Pantanal
AUTORES
Alessandro Pacheco Nunes
Programa de Pós-Graduação Ecologia
e Conservação – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
[email protected]
Alexandra Penedo de Pinho
Centro de Ciências Biológicas e da Saúde – Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul –
[email protected]
Antonio Conceição Paranhos Filho
Universidade Federal do Mato Grosso do Sul
[email protected]
Arnaud Leonard Jean Desbiez
Royal Zoological Society of Scotland e Instituto
de Conservação de Animais Silvestres – ICAS
[email protected]
Cleber José Rodrigues Alho
Universidade para o Desenvolvimento do Estado
e Região do Pantanal –
[email protected]
Daline Pereira
Ministério do Meio Ambiente –
[email protected]
Don Eaton
WCS Brasil –
[email protected]
Eliane Vicente
Instituto Arara Azul –
[email protected]
Emiko Kawakami de Resende
Embrapa Pantanal –
[email protected]
Emília Patrícia Medici
Instituto de Pesquisas Ecológicas e Iniciativa Nacional
para Conservação da Anta Brasileira –
[email protected]
Fátima Aparecida Sonoda
Secretaria de Estado de Meio Ambiente de Mato Grosso
[email protected]
Flávia Accetturi Szukala Araujo
Projeto Água Brasil na Bacia do Guariroba – WWF Brasil
[email protected]
Flávia Neri de Moura
Instituto de Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul
[email protected]
Gilberto Luiz Alves
Universidade para o Desenvolvimento do Estado
e Região do Pantanal e Instituto Cultural Gilberto Luiz Alves
[email protected]
Julia Correa Boock
Programa Cerrado Pantanal – WWF Brasil
[email protected]
Julio Cesar Sampaio da Silva
Programa Cerrado Pantanal – WWF Brasil
[email protected]
Laércio Machado de Souza
Associação de RPPNs do Mato Grosso do Sul – REPAMS
[email protected]
Leonardo Avelino Duarte
Avelino Duarte Advogados Associados
[email protected]
Maitê Tambelini dos Santos
Centro de Pesquisa do Pantanal –
[email protected]
Marcelle Aiza Tomas
Centro de Ciências Biológicas e da Saúde – Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul –
[email protected]
Maria Isabel Lescano
Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (graduação
[email protected]
Maristela Benites
Instituto Mamede de Pesquisa Ambiental e Ecoturismo
[email protected]
Mozart Sávio Pires Baptista
Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (graduação)
[email protected]
Nely Tocantins
Universidade Federal de Mato Grosso
[email protected]
Nicholas Kaminski
Fundação Neotrópica –
[email protected]
Nilton Carlos Cáceres
Departamento de Ecologia e Evolução – Universidade Federal
de Santa Maria – niltoncaceres!gmail.com
Nuno Rodrigues da Silva
Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
[email protected]
Paulo Robson de Souza
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
[email protected]
Raquel de Faria Godoi
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
[email protected]
Reinaldo Lourival
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
[email protected]
Renata Andrada Peña
Programa Cerrado Pantanal – WWF Brasil
[email protected]
Rodrigo Luiz Simas de Aguiar
Laboratório de Arqueologia – Universidade Federal
da Grande Dourados –
[email protected]
Rogerio Silvestre
Laboratório de Ecologia de Hymnoptera – Universidade Federal
da Grande Dourados –
[email protected]
Rudi Ricardo Laps
Departamento de Ecologia – Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul –
[email protected]
Simone Mamede
Instituto Mamede de Pesquisa Ambiental
e Ecoturismo – Universidade para o Desenvolvimento do Estado
e Região do Pantanal –
[email protected]
Thaís Alves de Lima
Programa Cerrado Pantanal – WWF Brasil
[email protected]
Wagner Fischer
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
[email protected]
Walfrido Moraes Tomas
Embrapa Pantanal –
[email protected]
Wellington Hannibal
Universidade Estadual de Goiás e Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul –
[email protected]
A fecundidade vem com a inundação
10 - 13
Aracuãs, jacutingas e mutuns:
os grandes semeadores do Pantanal
14 - 17
Os mistérios das salinas
18 - 21
Animais invasores ou nossos convidados?
22 - 25
Atenção! Bichos na pista!
26 - 29
Não há recuperação sem manutenção
30 - 33
O futuro é ambientalmente correto
34 - 37
Iniciativas privadas para o bem público
38 - 41
Quando o choque de gerações vira conflito racial
42 - 47
A Reserva da Biosfera do Pantanal
48 - 51
As incríveis adaptações das formigas pantaneiras
52 - 55
Aves e matas são interdependentes
56 - 59
Ecoturismo a serviço da mudança de atitude
60 - 63
Os quase desconhecidos do Alto Paraguai
64 - 67
p.06
p.26
p.60
EXPEDIENTE
Conselho Editorial
Coordenadora Editorial
Fotos de capa
Carlos Durigan
Alexine Keuroghlian
Jeffrey Himmelstein
Diretor WCS Brasil
Ana Vasconcellos Garrido
Gerente de Programa WCS Brasil
Alexine Keuroghlian
Coordenadora do Programa Pantanal
da WCS Brasil e Coordenadora Geral
da revista Ciência Pantanal
Maria do Carmo Andrade Santos
Conselho Técnico
Fabio de Oliveira Roque
UFMS
Andrea Cardoso Araujo
UFMS
Marina Schweizer
Fazenda Barranco Alto
(jacutinga e mutum)
Fotos na contracapa
Don Eaton (foto aérea),
Simone Mamede (uirapuru-laranja),
Liana John (besouro),
Wellington Hannibal (rato-arborícola)
e Jeffrey Himmelstein (mutum)
Design e produção gráfica
Coordenadora Técnica da revista
Ciência Pantanal
Cyntia Cavalcante Santos
Donald Eaton
Daniela Venturato Giori
Coordenador Científico da revista
Ciência Pantanal
Biológica (colaboração com a
comunicação)
Sugestões, contribuições e dúvidas
[email protected]
Leonardo Duarte Avelino
Silvia Santana
Endereço e telefone para contato
Rua Spipe Calarge, 2355,
Vila Morumbi, Campo Grande, MS
Assessor Jurídico da revista
Ciência Pantanal
Liana John
Editora Executiva da revista
Ciência Pantanal
Biológica
jornalista (colaboração com a
comunicação)
Editora Executiva
Liana John
(Jornalista responsável MTb 12.092)
Approach Comunicação
CEP 79052-070 Tel (67) 3388 6917
Tiragem
1.300 exemplares
Foto: Gediendson Ribeiro de Araujo
06 - 09
Foto: Simone Mamede
Esboços da pré-história pantaneira
Foto: Rodrigo Luiz Simas de Aguiar
SUMÁRIO
As incríveis
adaptações
das formigas
pantaneiras
Fotos: Paulo Robson de Souza
Formigas
Elas são acrobatas, agricultoras, carpinteiras,
arquitetas e construtoras, estrategistas e guerreiras;
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oZkbZ]hlZf[b^gm^l^ÜnmnZ»^l\ebf§mb\Zl'=^jn^[kZ%
são boas bio-indicadoras em estudos ecológicos!
Rogerio Silvestre e Paulo Robson de Souza
S
ó a quantidade de nomes
científicos já dá uma ideia da
versatilidade das formigas: há no
mundo pelo menos 16 mil espécies
válidas nomeadas. Na região
Neotropical, entre o México e a
Argentina, são conhecidas mais
de 4.500 espécies. E o Brasil é,
sem dúvida, o país mais rico em
número de espécies, apesar de
restarem ainda muitas formigas
por descobrir, em ambientes pouco
explorados e de difícil acesso.
Apenas dois países têm diversidade
semelhante: Austrália e Indonésia,
cada qual com cerca de 1.500
nomes de espécies registrados. O
Brasil provavelmente abriga mais
de duas mil espécies. Na região
do Pantanal, aproximadamente
250 espécies de formigas
foram identificadas ou estão
em fase de identificação, após
coletas realizadas pelos autores,
suas equipes e pesquisadores
associados, nas regiões do
Miranda-Abobral, Passo do
Lontra, Serra do Amolar, Maciço
do Urucum e no Chaco de
Porto Murtinho. Os exemplares
associadas a esses ambientes
estão depositadas na coleção
de Hymenoptera do Museu de
Biodiversidade da Universidade
Federal da Grande Dourados
(UFGD), com réplicas mantidas
na Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul (UFMS) e no
Centro de Pesquisas do Cacau
(CEPLAC), na Bahia.
ambientes naturais desaparecerem
numa velocidade muito maior do
que se adquire conhecimento sobre
novas espécies. Em favor de sua
sobrevivência, as formigas contam
com uma imensa capacidade de
adaptação, sendo um dos grupos
de insetos mais bem sucedidos,
com uma história evolutiva de mais
de 100 milhões de anos. Acredite
ou não, elas conviveram com
dinossauros nas paisagens
do Brasil Central!
No Pantanal, a diversidade de
formigas é expressa tanto pela alta
riqueza de espécies como pela
grande abundância de indivíduos.
Elas habitam quase todos os
tipos de fisionomias vegetais do
Pantanal, como capões, paratudais,
cordilheiras, pastagens, florestas
Como acontece com outros
secas, matas ciliares e vegetação
animais, a grande barreira
de ambientes úmidos das áreas
nos estudos de diversidade de
inundadas. Uma gama enorme
formigas é exatamente o fato de os de adaptações está refletida
Revista Ciência Pantanal 53
nas diversas maneiras com as
quais elas utilizam os recursos
e nas diferentes estratégias de
comportamento apresentadas
pelas espécies. Sem contar o modo
como se organizam: a sociedade
das formigas é extremamente
elaborada, com distinção de castas
reprodutivas e operárias, exercendo
diferentes funções na colônia.
Espécies distintas têm formas
diversas de organização social e
maneiras diferentes de responder a
dificuldades impostas pelo ambiente
ou pelas alterações do meio.
O importante papel funcional das
formigas, dentro dos ecossistemas,
no Pantanal, e as numerosas
interações – diretas ou indiretas
– com os outros organismos na
comunidade pantaneira justificam
a escolha frequente deste grupo
de insetos para estudos de
biodiversidade. As formigas
costumam ser boas candidatas
a indicadores ecológicos. Sua
diversidade é especialmente
usada, por exemplo, com o
objetivo de avaliar o grau de
perturbação ocasionado pelas
constantes simplificações dos
ecossistemas naturais.
A capacidade de conviver com
as flutuações climáticas sazonais,
no ambiente pantaneiro, também
demonstra a grande plasticidade
das formigas na forma de explorar
os recursos. Algumas adaptações
são peculiares, principalmente pela
possibilidade de o ambiente ser
inundável em determinadas épocas
e pelo fato de a maioria das
espécies terem colônias perenes.
Os locais onde as formigas
constroem seus ninhos são tão
diversos quanto seus hábitos
alimentares. Algumas espécies
– como as saúvas, formigas
cortadeiras do gênero Atta –
constroem ninhos grandes, que
podem chegar a seis metros de
profundidade. Esses ninhos são
As formigas Pseudomyrmex triplarinus têm abrigo nos ramos de novateiro (Triplaris
americana) e, em troca, defendem a árvore de agressores (acima e na pág. ao lado)
A grande barreira
nos estudos de
diversidade
de formigas
é o fato de os
ambientes naturais
desaparecerem
numa velocidade
muito maior do
que se adquire
conhecimento sobre
novas espécies
facilmente encontrados por causa
dos murundus, aqueles montes de
terra depositados sobre o solo ao
redor das entradas do ninho, com
vários olheiros conectados.
Nos ninhos de saúvas, muitos
inquilinos moram sem pagar
aluguel: aranhas, vagalumes,
traças, grilos, percevejos, lacraias,
outras espécies de formigas
inquilinas e até mesmo cobras,
lagartos, sapos e corujas. As
saúvas e as quenquéns (gênero
Acromyrmex) carregam sem parar
todas as folhas das árvores que
escolhem cortar, mas elas não
comem as folhas. Na verdade,
as formigas cortadeiras são as
“agricultoras” mais antigas do
mundo: elas cultivam o fungo
Leucoagaricus em “jardins”
subterrâneos escondidos no interior
Formigas // As incríveis adaptações das formigas pantaneiras
do formigueiro. As formigas
mantêm com esse fungo uma
estreita relação de mutualismo
(ou seja, uma associação entre
duas espécies com vantagens
para ambas). Elas reproduzem e
cultivam o fungo em seus jardins
e com ele alimentam suas crias
– as larvas. A parte usada pelas
formigas são as hifas ou filamentos
produzidos pelo fungo para crescer
e expandir a área colonizada.
Uma associação bastante
interessante do tipo formigasplantas envolve o pau-de-novato
ou novateiro Triplaris americana.
Trata-se de uma árvore de grande
porte (até 20 metros de altura),
comum nas margens de vários
rios do Pantanal, incluindo o
Miranda e o Paraguai. As folhas
possuem quase dois palmos
de comprimento e a copa tem
formato de cone. Por volta do
mês de setembro, as plantas
femininas exibem exuberante
florada avermelhada, enquanto
as masculinas apresentam cachos
pendentes, formados de minúsculas
flores cor de creme.
O nome científico do gênero
(Triplaris) refere-se às flores de três
pétalas e o da espécie T. americana
remete ao fato de ser uma árvore
típica do continente americano.
Já os nomes populares surgiram
da brincadeira dos peões mais
experientes com recém-chegados,
conforme contam os pantaneiros.
Eles pedem aos novatos para ir ao
mato pegar lenha e maldosamente
apontam para o novateiro. Logo
após as primeiras machadadas,
cai nas costas do desavisado uma
“chuva” de formigas. As ferroadas
são o “batismo” do iniciante.
Como no caso anterior, a árvore
oferece seus ramos ocos para
formigas extremamente agressivas
instalarem seus ninhos. Em troca,
as inquilinas protegem sua “casa”,
seja contra herbívoros capazes de
causar dano às folhas ou qualquer
pessoa que inadvertidamente
mexer nos ramos ou nas folhas.
Se provocadas, essas ferozes
formigas usam o ferrão sem
piedade, injetando minúsculas
gotinhas de veneno no corpo do
Fotos: Paulo Robson de Souza
Existem formigas menos
conhecidas, que passam todo o
seu ciclo de vida no subsolo e
quase nunca sobem à superfície
ou caminham sobre o solo. São
subterrâneas, como é o caso do
gênero Strumigenys, com mais
de 800 espécies descritas. Em
geral, são muito pequenas, com
mandíbula especializada, própria
para a captura de minúsculos
animais, que compõem sua
dieta, como “pulgas-de-jardim”
(colêmbolos) e “centopeias”
(miriápodos).
Em contraste, existem espécies
totalmente arborícolas. Elas
habitam diversos tipos de
cavidades disponíveis nas copas
das árvores, nos ramos, casca,
galhos e folhas ou constroem
seus ninhos em aglomerados de
raízes de plantas epífitas, caso
das bromélias e orquídeas. As
plantas que abrigam formigas
são chamadas de mirmecófitas.
Muitas delas possuem estruturas
próprias para sustentar as
formigas, conhecidas como
domácias. Em troca do abrigo,
as formigas inquilinas protegem
as plantas dos herbívoros
desfolhadores, sejam pequenos
(como lagartas e gafanhotos) ou
grandes (como macacos).
Eciton burchellii coletadas
em Miranda-Abobral
Nesomyrmex spininodis
em galha do algarobo
Revista Ciência Pantanal 55
Camponotus sp. sobre plantas Azolla sp.
Balsa flutuante de Solenopsis invicta
agressor. As habitantes-defensoras
dessa árvore variam por toda a
América do Sul, mas, no Pantanal,
são das espécies Pseudomyrmex
triplaridis e P. triplarinus.
invicta, também chamadas de
formigas-de-fogo, devido às
irritantes ferroadas nas mãos
e nos pés de quem lida com
jardinagem e agricultura.
No extremo-sul do Pantanal, as
formigas da espécie Nesomyrmex
spininodis vivem em galhas nos
ramos do algarobo Prosopis
ruscifolia e toda sua atividade está
restrita a essa árvore. Elas chegam
a apenas 3 milímetros de tamanho,
são inofensivas e possuem colônias
com poucos indivíduos.
No período de seca, grandes
colônias vivem em ninhos
superficiais, no solo. Se as águas
sobem, as formigas saem do
ninho e se agarram umas às
outras, formando um aglomerado
flutuante. Ou seja, elas usam
os próprios corpos, presos
uns aos outros pelas garras,
para formar uma mini balsa. E
assim, navegando sem rumo, as
operárias transportam as rainhas
para fundar uma nova colônia,
onde e quando encontrarem
terra firme.
Uma espécie de formiga
carpinteira pantaneira –
Camponotus senex – usa a seda
produzida pelas próprias larvas
para unir folhas e construir seus
ninhos. Já suas “parentes” do
mesmo gênero – as formigas
Camponotus rufipes – são capazes
de construir seus populosos ninhos
com palha, na vegetação e em
troncos caídos. Em matéria de
moradia, as colônias de formigas
dos gêneros Pseudomyrmex,
Dolichoderus ou Cephalotes
parecem insuperáveis na discrição:
populações inteiras habitam galhos
ocos, com entradas minúsculas do
tamanho da cabeça da formiga!
Quando a questão é fugir da
inundação, uma estratégia curiosa é
a adotada pelas lava-pés Solenopsis
Em se tratando de ferocidade,
é preciso mencionar outro
grupo que ocorre no Pantanal:
as formigas-de-correição. São
diversas espécies pertencentes
à tribo Ecitonini. Elas não vivem
em ninhos fixos, são nômades
e mudam seus ninhos quase
diariamente. Na verdade, o ninho
é simplesmente um aglomerado
de formigas em frestas de troncos
ou dentro de cupinzeiros. Para
caçar, formam colunas com
milhares de indivíduos, devorando
tudo que se mover à sua frente
(principalmente invertebrados).
Em seus deslocamentos, invadem
cupinzeiros, formigueiros e até
ninhos de vespas ou de aves, nas
árvores. Na Amazônia, os índios
abandonam suas malocas, abrindo
espaço para essas formigas
executarem uma verdadeira faxina,
ao comer aranhas, escorpiões,
baratas e parasitas. A melhor
forma de lidar com elas é sair da
frente e rezar para que a correição
passe logo.
Entre os pantaneiros, os mais
tradicionais ainda incluem formigas
no cardápio. Eles fritam as içás
– as rainhas das saúvas – com
seus abdomens cheios de ovos e
as consomem como tira-gosto. O
hábito de se alimentar de formigas
é chamado de mirmecofagia.
Muitas espécies são utilizadas com
esta finalidade, no mundo.
Essas são algumas curiosidades
sobre as formigas e suas
estratégias de vida. Exercite seu
poder de observação e repare
na diversidade de formas dos
ninhos construídos por elas ou em
suas habilidades para garantir
o alimento e a sobrevivência da
colônia, às vezes com sacrifício de
um bom número de indivíduos.
Admire a capacidade de adaptação
desses incríveis insetos e, se
possível, fotografe ou registre em
vídeo suas façanhas.