Dos legumes de vagem em Apício, De re coquinaria
Autor(es):
Cândido, Guida da Silva
Publicado por:
Imprensa da Universidade de Coimbra
URL
persistente:
URI:http://hdl.handle.net/10316.2/37538
DOI:
DOI:http://dx.doi.org/10.14195/0872-2110_59_14
Accessed :
20-Mar-2017 12:17:56
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COIMBRA • 2014
BOLETIM DE
59
ESTUDOS
CLÁSSICOS
ASSOCIAÇÃO
PORTUGUESA
DE ESTUDOS
CLÁSSICOS
INSTITUTO
DE ESTUDOS
CLÁSSICOS
IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
COIMBRA UNIVERSITY PRESS
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http://dx.doi.org/10.14195/0872-2110_59_14
DOS LEGUMES DE VAGEM EM
APÍCIO, DE RE COQUINARIA1
ABOUT THE POD VEGETABLES IN APICIUS’ DE RE COQUINARIA
GUIDA DA SILVA CÂNDIDO
MESTRE EM ALIMENTAÇÃO: FONTES, CULTURA E SOCIEDADE.
INVESTIGADORA DO CECH DA FLUC NO PROJECTO DIAITA
Resumo: Este estudo procura abordar as diversas utilizações dos
legumes de vagem no tratado De re coquinaria de Apicius. Após uma
breve identificação do seu autor e de uma contextualização da incon‑
tornável obra da antiguidade clássica que é este trado de culinária,
parte ‑se para uma abordagem específica ao Livro V, cuja temática
são os legumes de vagem. Os Romanos cultivam uma multiplicidade
de legumes ou leguminosas (legumina), isto é, os legumes de vagem,
logo, com grãos. O comércio de legumes secos, torrados, inteiros,
em pedaços, ou em farinha é praticado com muita intensidade.
Identificam‑se os alimentos, as técnicas e receitas. Finaliza‑se com
duas sugestões culinárias que representam um exercício de recons‑
tituição arqueológica e de recriação.
Palavras‑chave: De Re Coquinaria; Apício; Alimentação; Antiguidade
Clássica; Património alimentar
Abstract: This study addresses the distinct uses of leguminous veg‑
etables under the treaty De re coquinaria by Apicius. After a short
1 Trabalho elaborado no âmbito da unidade curricular Sabores do Passado: a Cozinha
Grega e Romana, do Mestrado em Alimentação – Fontes, Cultura e Sociedade, da Faculdade
de Letras da Universidade de Coimbra, lecionada pela Doutora Carmen Isabel Leal Soares.
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identification of the author and contextualization of this master‑
piece in ancient classics, this paper focuses on Book V, whose theme
is leguminous vegetables. Ancient Romans used to plant a great
variety of vegetables and legumes (legumina), i.e., leguminous veg‑
etables, thus, vegetables with grains. Trade in vegetables, whether
they were dried, toasted, whole, in pieces, or as vegetable flour,
was extensive. This text identifies the ingredients, techniques and
recipes. It ends by proposing two culinary suggestions, which rep‑
resent an exercise of archaeological reconstitution and recreation.
Keywords: De Re Coquinaria; Apicius; food; Classical Antiquity; food
heritage
1. APÍCIO – ESCRITOR? COZINHEIRO? EXCÊNTRICO?
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Tendo dispendido na cozinha cem milhões de sestércios e dissipado em
cada um dos festins inúmeros côngios principescos e a enorme contribuição
do Capitólio, pressionado pelas dívidas, viu-se então compelido a examinar
pela primeira vez as suas contas; calculou restarem-lhe dez milhões e, como
se assim icasse reduzido a passar fome, pôs im à vida envenenando -se2 .
O relato não poderia ser mais esclarecedor em relação à personalida‑
de de Marco Gávio Apício. Adverso, pouco lisonjeiro, criticável e cáustico.
Quem foi afinal este escritor, gastrónomo e cozinheiro? Qual a iden‑
tidade de Apício? Nascido durante o reinado de Tibério, cerca de 25 a.C,
Apício pertence à pequena aristocracia, filho de cavaleiro e amigo de
membros da família imperial, graças à sua fortuna e fama.
Rodeado por uma pequena corte de jovens aristocratas ‑ pretensos
gastrófilos ‑ que propõe iniciar na arte da culinária, um ócio prejudicial
aos olhos de Séneca.
2 Séneca, Ad Heluiam, 10,8 ‑9.
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As suas excentricidades culinárias chegaram até à atualidade. In‑
ventar pratos com ingredientes inusitados como calcanhares de ca‑
melos, línguas de pavões, flamingos ou rouxinóis afiguram‑se como
ousadias que não deixam ninguém indiferente. Da mesma forma que
a preparação de uma espécie de foie gras, engordando gansas com figos
secos e matando ‑as com o excesso de vinho e mel para depois aprovei‑
tar os fígados, ou a preparação de garum3 confecionado com fígados
de salmonetes, no qual mergulha posteriormente salmonetes vivos,
são práticas que lhe conferem essa aura de extravagância inequívoca.
No entanto, se se atender às fontes, descobre ‑se que este dotado
cozinheiro da antiguidade revela preocupações em tudo semelhantes
aos grandes chefs da atualidade: a qualidade da matéria ‑prima, os
ingredientes e as técnicas aplicadas no processo de confeção 4. Apesar
da dominante controvérsia à volta desta figura lendária, Apicius é
um nome incontornável na História da Culinária e da Gastronomia,
permanecendo como sinónimo de cozinheiro ou designação popular
de glutão5 .
2. DE RE COQUINARIA – CONTEXTUALIZAÇÃO DA OBRA
No momento em que Feuerbach proferiu a máxima “Diz‑me o que
comes, dir‑te ‑ei quem és!” não estaria a referir‑se à cozinha da an‑
tiguidade clássica nem tão pouco ao tratado de culinária de Apício,
De re coquinaria. Contudo, essas sábias palavras poderiam ser aplicadas
de uma forma transversal à história da alimentação.
3 O garum é um líquido ou milho culinário, preparado com pedaços de peixes de
menor qualidade e vísceras dos mesmos, juntamente com ervas e deixados ao sol por
um período de 1 a 3 meses em processo de fermentação.
4 Rodrigues 2010: 10 ‑11.
5 Tertuliano, Apologia 3, 6.
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O Homem é o que come. E o que come é também aquilo que gostaria
de ser. Ontem e hoje, a alimentação da humanidade poderá dividir‑se
em dois campos essenciais que se traduzem na necessidade e no prazer.
E ambas as escolhas refletem hierarquias sociais e culturais, bem como
as relações de poder6.
A juntar à escolha dos alimentos, aos básicos e aos supérfluos, surgem
ainda as técnicas de preparação e confeção. Estes princípios constituem
um elemento diferenciador ou unificador. A que se juntam ainda as
questões da mesa e etiqueta; os rituais e normas; as interdições e uma
gramática de saberes tão extensa quanto complexa.
A investigação acerca dos saberes e dos sabores do passado recorre com
frequência aos tratados de culinária e gastronomia, nomeadamente aos
livros de receitas. Dificilmente poderemos estabelecer comparação entre
os atuais livros de culinária, profusamente ilustrados e rigorosamente
descritos, e as fontes que nos chegam da antiguidade clássica e mesmo de
épocas mais tardias como a Idade Média ou a Renascença, onde as infor‑
mações relativas a quantidades e técnicas são limitadas ou negligenciadas.
De Re Coquinaria ‑ a fonte visada nesta leitura e interpretação ‑ é
um compêndio de receitas de culinária da Antiga Roma, reunido por
Marco Gávio Apício. Este conjunto de livros ou capítulos, compostos
por Apício, foram, e continuam a ser, um sucesso que se concentra nas
receitas e simultaneamente na personalidade excêntrica do seu autor.
A obra foi alvo de diversas alterações pelas mãos dos que a utilizavam,
essencialmente os cozinheiros, verificando ‑se acréscimos e supressões.
O formato atual, composto por dez livros, tem a sua origem no século
IV da nossa era7.
Com receitas que denotam um claro gosto inusitado e remetem para
o exótico, poder‑se‑á interpretar como um livro de gastronomia imperial
6 Esta análise é feita por diversos autores que se debruçam sobre a História da
Alimentação, nomeadamente Castro 2012: 69.
7 Além dos dez livros iniciais, acresce o contributo de outro livro da autoria de
Vinodário, como refere Rodrigues 2010: 14.
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exclusiva da classe alta. Essa leitura será redutora se nos dispensarmos
de analisar todos os ingredientes que compõem a obra e que apontam
para receitas de gosto mais popular e do quotidiano. Desta forma, os
seus utilizadores terão sido um grupo mais abrangente onde se encai‑
xam personagens urbanas e cosmopolitas, com gostos transversais que
englobam o exotismo mas também a frugalidade culinária.
Distante da sobriedade da cozinha equilibrada do siciliano Arqués‑
trato e com uma negação evidente do alimento cru, Apício combina
o cozido e o assado, frequentemente por necessidade, em elaborações
que neutralizam o sabor primário dos ingredientes.
A influência grega é manifestamente considerável, sublinhando uma
troca entre culturas e salientando a passagem da cozinha romana de
rústica a sofisticada. Posteriormente são detectáveis as analogias entre
esta cozinha de Apício e o que irrompe na mesa da Europa medieval.
Em resumo, De re coquinaria reúne, nos seus dez livros, o gosto pra‑
ticado por uma sociedade cosmopolita; a herança mediterrânea; a de‑
finição de práticas e sabores culinários.
As temáticas são variadas, um caminho que se faz desde as recei‑
tas elementares e económicas até às mais aprimoradas. Não descura
ainda a inclusão de sugestões de conservação dos alimentos bem como
receitas medicinais.
Cada livro é uma obra independente, que forma um todo coerente,
mas que se individualiza pela organização temática. A saber: O cozinheiro
aplicado; Picados; O hortelão; Receitas diversas; Legumes de vagem; Aves; O
cozinheiro perdulário; Quadrúpedes; Mar e O pescador.
Analise ‑se o livro V – Legumes de Vagem.
3. LEGUMES DE VAGEM | LIVRO V
Os Romanos cultivam uma multiplicidade de legumes ou leguminosas
(legumina), isto é, os legumes de vagem, logo, com grãos. O comércio de le‑
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gumes secos, torrados, inteiros em pedaços, ou em farinha é praticado com
muita intensidade. É esta a forma mais usual para a sua longa conservação.
– Das ervilhas (Pisum sativum, pisum)
Muito familiares na Roma antiga, são usualmente conservadas secas,
condição em que se preservam por extensos períodos de tempo. São
fervidas antes de se comerem. Se a cozedura se prolongar, transformam‑
‑se numa sopa suave8.
196
– Das favas (Vicia Faba, faba)
A fava é durante muito tempo a base da alimentação romana, culti‑
vada de forma intensiva para servir a alimentação de todos, sobretudo
dos mais desfavorecidos. A sua combinação com presunto é a matriz
da alimentação dos pobres, dos trabalhadores braçais, dos camponeses
e gladiadores. Em concreto, é o alimento de todos os que necessitam
de robustez no seu quotidiano.
São comidas cruas, cozidas, fritas ou ainda transformadas em fa‑
rinha (lomentum) para fazer pão9.
A variedade de favas é considerável. Contudo, a Fava de Baias culti‑
vada na zona de Nápoles e mencionada por Apício, é a mais apreciada
e de melhor categoria.
– Do grão ‑de ‑bico (Cicer, ‑eris, Cicer arientinum)
No mundo clássico, o grão ‑de‑bico é servido como tragemata, sobre‑
mesa10. São comidos verdes; fritos; ou secos e depois cozidos. A sopa de
grão‑de‑bico é comum e acessível como comida de rua na Roma antiga11.
8 Dalby 2003: 252.
9 André 1961: 35‑37.
10 Os Romanos consumiam frequentemente estas leguminosas como sobremesa.
Serão as “azevias” herdeiras desta prática? As “azevias” são um doce da cozinha tra‑
dicional portuguesa da região alentejana.
11 Dalby 2003: 84.
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– Do feijão ‑frade (Passiolus, fasiolus)
Introduzidos em Itália pela Grécia, são um dos raros exemplos em
que os romanos não esperam o pleno desenvolvimento do fruto e des‑
perdiçam reservas futuras para o inverno12.
4. AS RECEITAS
Em De re coquinaria, Apício, revela a cozinha que o distingue de outros
gastrónomos e da simplicidade da cozinha mediterrânea. O trio ‘pão,
vinho e azeite’, tão identitário da civilização clássica, não tem neste
conjunto de livros uma representatividade predominante. Registados
no grande conjunto de receitas, o vinho e o azeite têm papéis secun‑
dários. O azeite, essencialmente como gordura, impondo ‑se a outras,
nomeadamente a manteiga e a banha – conotadas com a cozinha dos
povos bárbaros – expressa uma aplicação residual.
O vinho como condimento, também ele incorporado em grande nú‑
mero de receitas, não se prenuncia como elemento de destaque, antes
como ingrediente de base.
A cozinha de Apício é uma cozinha de cheiros e aromas, de espe‑
ciarias e ervas que se sobrepõem, que se anulam no excesso. É também
uma cozinha com justaposição de várias proteínas, algumas bizarras,
como os genitais femininos do gado porcino. O garum e o liquamen
distinguem‑se pela constante enunciação em receitas doces e salgadas.
Atesta‑se uma predisposição para o agridoce tão comum na cozinha
asiática dos nossos dias.
– Com ervilhas e favas
Identificadas onze receitas com ervilhas, das quais cinco referentes
a purés, a enumeração dos ingredientes pode fazer‑se segundo uma
12 André 1961:39 ‑40.
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distinção de categorias, aplicada a todas as outras receitas enunciadas
no capítulo do Livro V.
As proteínas empregues são diversificadas e determinadas recei‑
tas chegam combinadas e sobrepostas, destacando ‑se as carnes, com
uma representatividade reduzida de peixe. Neste caso, apenas sibas
(sepia), uma espécie semelhante aos chocos, estão presentes na receita
de Ervilhas índicas13.
Figuram os ovos, o leitão (porcellus), vulva de porca (uulua, ae), mio‑
leiras (cerebellum), salsichas (farcimen, inis) da Lucânia, gordura de porco
(omentum), presunto (petasio, onis), almôndegas (isicium), tordos (turdus),
passarinhos (aucella) e frango (pullus).
Do rol de ervas aromáticas empregues neste receituário constam:
coentro (coriandrum), lingústica (ligusticum), alcaravia (carui), aneto
(anethum), manjericão (ocimus), orégão (origanum) e gengibre (gengiber,
eris), as mais das vezes, acumuladas e não de uso individual. Acrescem
as especiarias: cominho (comminum), pimenta (piper, eris) e pimenta
branca (piper album). Componentes denominados molhos e condimentos
são igualmente utilizados: o vinho (uinum), com algumas derivações
(vinho branco – uinum candidum – e de passas – passum), o vinagre, o
azeite (oleum), o mel (mel, mellis) e o insubstituível liquamen, presente
na totalidade de receitas com ervilhas.
A referência a fruta ocorre isoladamente, na receita de Empadão de
ervilhas, com a introdução de pinhão. Da mesma forma, os vegetais estão
próximos da total ausência exceptuando a cebola (cepa), muito importante
na cozinha greco‑romana, e o alho‑porro (porrum capitatum).
As receitas de favas perfazem um total de cinco. O puré de favas
refere ‑se à sua utilização seca ou em farinha, designado conchicla14.
13 Índica, no original Indicum, refere ‑se à cor do prato após a sua confeção, devido
à tinta da siba, semelhante ao choco, como refere Castro 1999: 143.
14 A farinha de favas secas, lomentum, é utilizada no puré e no fabrico do pão por
ser bem tolerada pelo estômago. O puré é usualmente acompanhado de presunto, como
os demais pratos com favas. Idem: 145.
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No que concerne às receitas de favas frescas de vagem, conhecidas
por Favas de Baias, estas são aproveitadas de forma semelhante ao que
atualmente se faz com o feijão verde.
A extensa lista de condimentos e ervas aromáticas é comparável
às receitas com ervilhas. A saber: cominho, vinho, vinagre, liquamen,
azeite, mel, mostarda (senapi, is), coentro, ligústica, arruda (ruta) e aipo
(apium). O alho ‑porro é a única verdura incluída nas receitas.
Curiosamente, Apício indica receitas em que é facultativa a escolha
entre as ervilhas e as favas. Sendo em número de quatro, duas são de‑
signadas à moda de Vitélio15.
Paralelamente às outras receitas, o uso de alho ‑porro, a malva (malva) – a ocorrer pela primeira e única vez – e a inclusão de diferentes
ervas aromáticas, o funcho (feniculum), e a arruda, a que se junta no‑
vamente a ligústica, gengibre, aipo e coentro. Nas especiarias, surge
apenas a referência à pimenta e aos mesmos ingredientes líquidos. As
proteínas são vastas e variadas: ovos; almôndegas; salsichas de Lucânia.
As vísceras ou miudezas como o fígado (iecur, ‑oris), mioleira e moelas
(gizerium) e ainda os tordos e passarinhos são utilizados.
A técnica de cozer, utilizada na confeção das receitas com ervilhas,
é dominante. Apresenta‑se o processo de assar no Empadão de ervilhas16
e na receita Outro preparado de puré: puré com frango ou leitão17. Alude ‑se
isoladamente ao processo de trinchar18.
Registe ‑se os utensílios referidos nas descrições culinárias: panela
(caccabus); tabuleiro retangular (angular); almofariz (montarium); tra‑
vessa (lanx, cis); vaso de Cumas (cumana); prato para puré (conchiclar);
espeto (surculum) e terrina coberta (operculum).
15 Este imperador destacou‑se pelas suas recreações gastronómicas. Poderá tratar‑
‑se de receitas por ele criadas ou então a ele dedicadas. Idem: 144.
16 “[…] Asse salsichas da Lucânia […]”. Idem: 142.
17 “[…] unte o frango com gordura de porco, coloque -o numa terrina coberta, leve ao forno
para cozinhar lentamente e sirva […]”. Idem: 147.
18 “[…] frango trinchado […]”. Idem: 142.
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– Com grão ‑de ‑bico e feijão ‑frade
As receitas com ambas as leguminosas encontram‑se agrupadas na
categoria das mais elementares. Nas quatro sugestões enunciadas, a lista
de ingredientes é curta e sem os excessos praticados noutras receitas.
A única erva aromática incorporada é o funcho fresco. Acrescente‑se os
cominhos no campo dos condimentos, garum de vinho (oenagarum), pimen‑
ta, sal (sal, salis), liquamen e o azeite. Inserem‑se como proteína os ovos.
As técnicas referidas na preparação das sugestões com grão ‑de‑bico
e feijão‑frade incluem cozer e fritar. Permanece a ausência de referência
a quantidades de ingredientes, tempos de preparação e temperaturas
nos processos.
DA TEORIA À PRÁTICA
200
O mestrado em Alimentação: Fontes Cultura e Sociedade permite
reunir competências que visam a compreensão da temática da alimen‑
tação através da sua evolução ao longo da história, bem como as diversas
abordagens a este domínio, contextualizando o seu papel no foro do
património cultural. A caracterização da Cultura Alimentar nas dife‑
rentes épocas da história da Humanidade, fundada no estudo das fontes
orais, escritas e iconográficas, possibilita a reconstituição de receitu‑
ários de outros tempos. Constata‑se que esses contributos de gostos e
hábitos gastronómicos de um passado remoto, contribuem para o perfil
da cozinha contemporânea, possibilitando o exercício de interpretar de
forma linear as receitas ou, através dos produtos e técnicas indicados,
recriar sugestões culinárias idênticas ao passado, mas adequadas aos
palatos de hoje.As receitas agora apresentadas correspondem a duas
interpretações distintas. A primeira procura seguir com rigor as dire‑
trizes do receituário de Apício, mantendo os ingredientes e as técnicas.
Na segunda, uma livre interpretação de uma receita com favas pre‑
tende experienciar uma sugestão que incorpora ingredientes comuns às
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receitas de legumes do tratado De re coquinaria, desconstruindo mas fazen‑
do uso de técnicas, utensílios e princípios exequíveis à época do tratado.
– Interpretação de uma receita com ervilhas (V, 3, 4; 189)19
201
200 g de ervilhas descascadas
¼ de cebola picada
2 ovos cozidos
Azeite q.b.
Vinagre q.b.
Sal q.b.
19 Idem: 143, 144.
Receita executada pela autora e publicada no blog Panela sem (de)pressão em 2 de janeiro
de 2013. http://panelasemdepressao.wordpress.com/2013/01/02/de‑re‑coquinaria‑apicius/
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Cozem‑se as ervilhas em água. Escorrem‑se e colocam‑se em água
fria para travar o processo de cozedura. Voltam a escorrer‑se. Colocam‑
‑se numa taça. Junta‑se a cebola picada e tempera‑se com azeite, sal e
vinagre. Picam‑se os ovos cozidos e envolve ‑se no preparado de ervi‑
lhas, retificando o azeite.
202
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– Livre interpretação de uma receita com favas
Pasta de favas com ervas aromáticas20
203
200 g de favas descascadas
2 dentes de alho
Folhinhas de hortelã
2 colheres de chá de coentros em pó
Flor de sal a gosto
Pimenta moída
Azeite a gosto
Mostarda
Fatias de pão torrado
20 Receita executada pela autora e publicada no blog Panela sem (de)pressão em 1 de
maio de 2012. http://panelasemdepressao.wordpress.com/2012/05/01/de‑maio‑sao‑as‑favas‑2/
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Cozem‑se as favas em água e sal até ficarem tenras, cerca de 7 minutos.
Escorrem‑se e passam‑se por água fria, para manter a cor. Descascam‑se
as favas. Numa taça juntam‑se com azeite a gosto, os alhos ralados, o
gengibre igualmente ralado e os coentros em pó.
Tempera‑se com sal e pimenta. Apesar das favas terem sido tem‑
peradas na cozedura, talvez precisem de mais um pouco de sal depois
de misturadas com os restantes ingredientes.
Pisa‑se tudo num almofariz, de forma a ficar com pedaços inteiros
de favas. Barram‑se as fatias de pão torrado com uma fina camada de
mostarda e espalha‑se a mistura temperada de favas.
204
BIBLIOGRAFIA
Castro, Inês de Ornellas (1999), O livro de Cozinha de Apício. Um breviário do gosto
imperial romano. Collares. Sintra.
Aguilera, C. (2001), História da Alimentação Mediterrânica. Terramar. Lisboa.
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Equívocos”, in Contributos para a História da Alimentação na Antiguidade, C.
Soares e P. B. Dias (coords.), Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos.
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Apício, De Re Coquinaria I – III: introdução, tradução e notas. (2010) Rodrigues, A. P.
trad. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre.
205
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