arqueologia
NA REGIÃO DA SERRA DAS ANDORINHAS
Edithe Pereira
Parque Martírios-Andorinhas:
Conhecimento, História e Preservação
HISTÓRICO DA ARQUEOLOGIA NA REGIÃO
DA SERRA DAS ANDORINHAS
A Serra das Andorinhas, localizada no município de São Geraldo do
Araguaia, no sudeste do Pará, possui um rico e diversificado patrimônio
arqueológico que, no entanto, ainda é pouco conhecido e estudado. Para
entender o valor desse patrimônio e sua importância para a pré-história
amazônica, é preciso considerar os sítios arqueológicos da Serra das Andorinhas dentro de um contexto mais amplo que se estende pela
mesopotâmia Araguaia-Tocantins.
A existência de sítios arqueológicos na região do rio Araguaia é conhecida
desde o século XIX. A maioria das informações registradas corresponde
a sítios com arte rupestre, sendo o mais famoso a Ilha dos Martírios
(Fig.8.1), localizado em frente à vila de Santa Cruz que, por sua vez, está
situada na base da Serra das Andorinhas.
Esse sítio tornou-se conhecido por servir como referência para a localização de supostas minas de ouro na região. As inúmeras gravuras encontradas nas rochas da ilha eram associadas pelos bandeirantes aos instrumentos utilizados no martírio de Cristo - coroa de espinhos, cravos, martelos,
escadas, cruzes, lanças e o galo que cantou à meia-noite – por esse motivo,
o local passou a ser conhecido como Ilha dos Martírios. Vários autores
fizeram referência a essa ilha, no entanto, poucos foram os que realmente
observaram as gravuras rupestres nela existentes.
Além da Ilha dos Martírios, outros sítios com gravuras rupestres foram
registrados na bibliografia sobre a região. Um deles é o sítio Pedra Escrita (Fig.8.2) mencionado por Coudreau (1897) no final do século XIX
e pelo historiador Manoel Rodrigues Ferreira em 1973 (Ferreira 1974).
Um outro importante sítio com gravuras rupestres na região do baixo rio
Araguaia é o Lajeiro do Cadena (Fig. 8.3, 8.4) (Pereira 2001a, 2003).
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Localizado nas proximidades da cidade de Conceição do Araguaia, esse
sítio foi mencionado pela primeira vez por Vellard (1931), que registrou o
lugar com o nome de Lajeiro da Conceição.
Ainda que existissem informações sobre sítios arqueológicos no baixo
Araguaia, nenhuma pesquisa arqueológica havia sido desenvolvida na região até a primeira metade da década de 1980. Em 1986, por meio do
projeto para a implantação da Hidroelétrica de Santa Isabel (UHE-Santa
Isabel), o Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) e a Fundação Casa da
Cultura de Marabá (FCCM) foram procurados pela empresa responsável
pela obra para realizarem o levantamento arqueológico na área, que seria
afetada pela construção da referida hidroelétrica. Naquela oportunidade,
teve início apenas o levantamento bibliográfico sobre a região, uma vez
que o projeto foi em seguida paralisado.
Apesar dessa paralisação, a FCCM deu prosseguimento ao levantamento
arqueológico na região. Os resultados do trabalho desenvolvido pela
FCCM evidenciaram não apenas o potencial arqueológico, mas também
permitiram descortinar uma região de rara beleza, onde serras, cavernas,
cachoeiras, praias, áreas de mata, cerrados, campos e chapadas associados
a uma fauna riquíssima despertaram ainda mais o interesse pela sua preservação. Somam-se a isso as tradições culturais e a história recente marcada
pela Guerrilha do Araguaia.
O potencial arqueológico revelado pela FCCM para a região da Serra das
Andorinhas foi, segundo Atzingen et al. (1999), a mola propulsora para a
criação do Parque Estadual da Serra dos Martírios/Andorinhas. Porém, mesmo com esse trabalho e com os passos iniciais que foram dados no sentido
de uma pesquisa arqueológica e espeleológica na área (Kern et al. 1992), a
região carece de pesquisas arqueológicas sistemáticas que permitam uma caracterização e contextualização das evidências arqueológicas da região.
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Arqueologia na região
da Serra das Andorinhas
Considerando a necessidade de aprofundamento das informações
coletadas pela FCCM, Pereira (2000) realizou a análise das gravuras rupestres
de dois sítios documentados pela Fundação, situados nas proximidades
da Serra das Andorinhas. Os resultados dessa análise são apresentados na
segunda parte deste trabalho.
Em 2000, o projeto para a construção da Hidrelétrica de Santa Isabel foi
retomado sendo iniciado o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) do
empreendimento. Nesse estudo, uma vez mais, o potencial arqueológico
da região é evidenciado através do registro de 22 novos sítios arqueológicos localizados nas margens do rio Araguaia no trecho compreendido
entre a cidade de Santa Isabel do Araguaia e a Ilha Nazaré (Pereira 2001b).
A esse número somam-se ainda 92 sítios documentados pela FCCM,
localizados nas áreas de impacto direto e indireto do empreendimento,
entre as quais se encontra a Serra das Andorinhas.
O POTENCIAL ARQUEOLÓGICO
Atualmente, são conhecidos na região da Serra das Andorinhas 80 sítios
arqueológicos que apresentam material cerâmico e lítico. Deste total, 56
estão localizados em pequenos abrigos e grutas e 18 estão situados a céu
aberto. A arte rupestre está presente na região e foi registrada em oito
sítios, sendo três1 com gravuras e cinco com pinturas rupestres (Atzingen
et al. 1999, 2003; Pereira 2003).
Apesar da grande quantidade de sítios arqueológicos conhecidos, ainda
são poucas as pesquisas arqueológicas realizadas na região. Uma primeira
aproximação sobre o potencial espeleológico e arqueológico da Serra das
Andorinhas foi apresentado por Kern et al. (1992). No que se refere à
arqueologia, esse estudo apresentou alguns indicadores da potencialidade
da região sem, no entanto, aprofundar a sua análise. A partir do estudo de
restos da cultura material encontrados em quatro sítios arqueológicos si-
tuados nas localidades de Brejo dos Padres, Fazenda Noleto e Santa Cruz
dos Martírios, os autores sugerem que a área foi ocupada por grupos
caçadores-coletores do horizonte pré-cerâmico e por grupos horticultores
de floresta tropical do horizonte cerâmico.
O primeiro foi relacionado com o Complexo Pré-Cerâmico de Carajás e
o segundo inserido no contexto da tradição ceramista Tupiguarani. Em
ambos os casos, a contextualização regional foi feita a partir da identificação de similaridades com a matéria-prima e a técnica de manufatura (horizonte pré-cerâmico) e a técnica de decoração e a manufatura da cerâmica (horizonte cerâmico). Quanto à arte rupestre, os dois sítios mencionados no trabalho - Pedra Escrita e Ilha dos Martírios - são descritos de
forma geral e sem maiores considerações com relação às características
estilísticas dos grafismos e a sua contextualização regional.
A ocupação pré-cerâmica na região é sugerida por Kern et al. (1992) a partir
do material lítico encontrado em cavernas e abrigos da Serra das Andorinhas. Este material estaria, segundo os autores, relacionado com o Complexo Pré-Cerâmico de Carajás devido às semelhanças com o tipo de matériaprima usado (quartzo) e a manufatura empregada - técnica bipolar.
A presença de grupos horticultores na região da Serra das Andorinhas
é sugerida por Kern et al. (1992) a partir da análise de 169 fragmentos
cerâmicos coletados em sítios na região da Serra das Andorinhas. A
maioria desses fragmentos (128) não apresenta decoração. Esta só foi
identificada em 41 fragmentos em que se observam os tipos corrugado,
vermelho, digitado, entalhado e pintado (preto, branco e vermelho).
O aditivo utilizado foi fundamentalmente a areia (grãos de quartzo leitoso
e hialino), apresentando também lamínulas de mica, do tipo muscovita.
Os autores sugerem ainda a possibilidade de terem existido dois grupos,
sendo um deles caracterizado por usar a mica em grande quantidade como
Parque Martírios-Andorinhas:
Conhecimento, História e Preservação
Figura 8.1 – Aspecto da Ilha dos Martírios onde grande número de gravuras se distribuem nos lajeiros da ilha.
Figura 8.2 – Gravuras rupestres do sítio Pedra Escrita esculpidas na laje de quartzito.
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Arqueologia na região
da Serra das Andorinhas
Figura 8.3 – Aspecto geral do sítio Lajeiro do Cadena.
Figura 8.4 – Detalhe de um painel com gravuras rupestres do sítio Lajeiro do Cadena I.
Parque Martírios-Andorinhas:
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aditivo na argila e o outro por utilizá-la em menor quantidade. No entanto, ressaltam que tal abundância pode não ser intencional, visto que a rocha característica desta região é o quartzito micáceo.
Novas informações sobre a arqueologia da região da Serra das Andorinhas foram obtidas durante as pesquisas para o Estudo de Impacto
Ambiental da UHE-Santa Isabel. Durante os trabalhos de campo para a
elaboração do referido EIA, foi feita coleta de uma amostra do material
cerâmico e lítico encontrado na superfície de 19 dos 22 novos sítios documentados. No total foram coletados 439 fragmentos de cerâmica, sendo que a maioria (309) não apresenta qualquer tipo de decoração. Nos
130 fragmentos com decoração há o predomínio dos tipos vermelho,
corrugado, engobo branco, pintado e inciso. Outras decorações como
ponteado, modelado inciso ponteado, digitado, entalhado, inciso ponteado e ungulado, aparecem em menor quantidade. O aditivo mais freqüente é a associação de areia e mica, seguida apenas de areia. Outros aditivos,
como carvão, cauixi, cariapé e rocha triturada, aparecem quase sempre
associados com areia, mas em quantidade muito pequena (Pereira 2001b).
Em 2006, a Área de Arqueologia do Museu Goeldi recebeu a doação de
um pequeno vasilhame de cerâmica semi-inteiro e de mais de uma centena de fragmentos cerâmicos (Fig. 8.5) encontrados por moradores da
Vila de Santa Cruz2. Esse material apresenta as mesmas características do
material analisado por Kern et al (1992) e por Pereira (2001b).
Mesmo considerando os limites que uma analogia feita a partir de dados
bibliográficos implica, pode-se considerar de forma preliminar que há
algumas semelhanças quanto ao uso do aditivo e às técnicas decorativas
predominantes na cerâmica da região. O predomínio da combinação dos
aditivos areia e mica nos fragmentos cerâmicos provenientes da pesquisa
realizada por Pereira (2001b) parece coincidir com o que foi observado
por Kern et al. (1992) para cerâmica proveniente dos sítios arqueológicos
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localizados na Serra das Andorinhas. No que diz respeito à técnica decorativa, observa-se em ambos os casos a presença comum do vermelho,
do corrugado, do pintado e do entalhado. A ocorrência de um número
maior de tipos decorativos apontada por Pereira (2001b) está relacionada, certamente, com o tamanho da amostra, que é superior àquela coletada por Kern et al. (1992).
Como é possível observar, as pesquisas realizadas na região até o momento tiveram caráter exploratório, permitindo apenas tecer comentários
gerais sobre a arqueologia do baixo Araguaia. Pesquisas detalhadas nos
sítios da região são necessárias para confirmar as hipóteses sugeridas. Afirmar que a presença do homem nesta região remonta há mais de 8 mil
anos requer, necessariamente, estudos aprofundados com escavações controladas no interior dos abrigos e cavernas e datações.
Da mesma forma, são necessários estudos detalhados para a caracterização do horizonte cerâmico na região. A filiação da cerâmica arqueológica
da região da Serra das Andorinhas à Tradição Tupiguarani parece ser
consenso entre os pesquisadores que atuaram na região, no entanto os
estudos devem ir além da análise de uma única variável - a cerâmica - para
a caracterização da ocupação humana nesta região. Escavações controladas para o entendimento da ocupação dos sítios e sua cronologia, bem
como sua contextualização regional se fazem necessárias.
Dado o enorme potencial arqueológico da região, é preciso que os estudos prossigam além da mera quantificação de sítios. De pouco adianta
saber que a região é detentora de tamanho potencial se o mesmo não é
estudado com profundidade. É preciso pesquisar para conhecer e não só
quantificar para promover. A divulgação prematura de sítios arqueológicos, ou seja, antes de que estejam devidamente pesquisados e preparados
para receber a visitação pública, pode se transformar em um perigoso
agente de destruição desse patrimônio.
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Arqueologia na região
da Serra das Andorinhas
A ARTE RUPESTRE NA REGIÃO
DA SERRA DAS ANDORINHAS
Na Serra das Andorinhas, foram localizados até o momento cinco sítios
com pinturas rupestres. Situados em pequenos abrigos no setor norte da
Serra, estes sítios apresentam um conjunto de pinturas rupestres elaboradas principalmente na cor vermelha e ocasionalmente nas cores amarelo e
preto (Atzingen et al. 1999, Pereira 2003). Os grafismos representados
parecem ser essencialmente geométricos, no entanto, a escassa documentação existente sobre eles não permite maiores detalhes sobre as formas
representadas. Esta restrição limitou sobremaneira a sua análise e a comparação com pinturas rupestres de outras regiões.
No entorno da Serra das Andorinhas, foram localizados três sítios com gravuras e um com pinturas rupestres (Fig. 8.6). O sítio com pinturas rupestres
(PA-AT-268: Sucupira II) está localizado no interior de um pequeno abrigo
situado na margem esquerda do rio Araguaia (Fig. 8.7, 8.8). As pinturas, elaboradas em vermelho, apresentam formas geométricas (Pereira 2001, 2003).
Entre os sítios com gravuras rupestres dois estão situados em ilhas no rio
Araguaia - TO-XA-01: Ilha dos Martírios e TO-XA-19: Ilha de Campo – e
um na margem esquerda desse rio – PA-AT-100: Pedra Escrita. Os sítios
Ilha dos Martírios e Pedra Escrita estão situados nas proximidades da Vila
de Santa Cruz e correspondem aos sítios mais bem documentados até o
momento, tanto em termos de registro histórico como da documentação
das gravuras rupestres. Por este motivo o presente estudo sobre a arte rupestre
da região da Serra das Andorinhas foi centralizado nestes dois sítios.
As primeiras informações sobre as gravuras rupestres dos sítios Pedra Escrita e Ilha dos Martírios remontam ao século XIX. O primeiro, situado na
margem esquerda do Rio Araguaia, em frente à Ilha dos Martírios, teve
suas gravuras mencionadas pela primeira vez pelo naturalista francês Henri
Coudreau (Coudreau 1897), no final do século XIX. Lagenest (1958) foi
o responsável pela primeira reprodução dos desenhos gravados nas rochas deste sítio de que se tem notícia. Na década de 1970, Ferreira (1974)
menciona que encontrou algumas gravuras situadas na margem esquerda
do Rio Araguaia em “uma laje plana colocada verticalmente”. Na década
seguinte, coube à Fundação Casa da Cultura de Marabá realizar a documentação das gravuras rupestres deste sítio (Pereira 2000).
A existência de gravuras rupestres na Ilha dos Martírios foi relatada desde
o século XVIII por Bandeirantes que percorreram a região em busca de
ouro. A grande quantidade de mica existente nas rochas daquela ilha levou
muitos exploradores a pensar que se tratava de ouro, surgindo a partir daí
a lenda sobre a existência desse mineral na região. Este fato originou uma
série de roteiros que se destinavam a indicar o caminho que levaria ao
“ouro dos Martírios” (Ferreira 1960).
Diversos exploradores mencionaram em seus roteiros um lugar onde
apareciam gravados nas rochas, desenhos semelhantes aos instrumentos
utilizados no martírio de Cristo: a coroa de espinhos, cravos, martelos,
escadas, cruzes, lanças e o galo que cantou à meia noite. Essa semelhança
deu origem ao nome do local, que passou a ser conhecido como Ilha dos
Martírios (Ehrenreich 1948).
A Ilha dos Martírios e suas gravuras seriam mencionadas ainda por outros viajantes que percorreram o Rio Araguaia (Mattos 1875, Siqueira 1886,
Coudreau 1897, Vellard 1933, Magalhães 1975), mas foi somente em 1948
que Ehrenreich (1948:89-93) publicou pela primeira vez a reprodução de
algumas das figuras gravadas nesta ilha.
O suposto mistério que envolvia a localização precisa da região dos Martírios
e suas gravuras rupestres foi tema de estudo do historiador Manoel Rodrigues
Ferreira (1960, 1973, 1974, 1982). Despertou também a imaginação de
Parque Martírios-Andorinhas:
Conhecimento, História e Preservação
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Figura 8.6 - Localização dos sítios com arte rupestre no entorno da Serra das
Andorinhas.
Figura 8.5 – Vasilhame cerâmico e fragmentos cerâmicos com decorações diversas
provenientes do sítio PA-AT-77: Santa Cruz, localizada na Vila de Santa Cruz.
Figura 8.7 – Abrigo onde estão as pinturas rupestres do sítio Sucupira II.
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Arqueologia na região
da Serra das Andorinhas
escritores que ambientaram seus romances na região do Rio Araguaia, tendo
como pano de fundo a Ilha dos Martírios (Marins 1977).
nos aspectos morfológicos e técnicos dos grafismos e, para auxiliar essa análise, principalmente no aspecto quantitativo, foi criado um banco de dados.
Os relatos históricos acerca destes dois sítios tornaram-se referência obrigatória para aqueles que se dedicaram a estudar a arte rupestre na região
do rio Araguaia e seu entorno (Azevedo Netto 1994; Souza et al. 1979).
No entanto, tais estudos ainda se basearam apenas em relatos bibliográficos e nas figuras registradas por Ehrenreich (1948) que, apesar do
pioneirismo, constituíam uma pequena amostra do conjunto de gravuras
rupestres existente na Ilha dos Martírios.
A partir do reconhecimento inicial das gravuras rupestres dos sítios Pedra
Escrita e Ilha dos Martírios, foi constatado o predomínio quantitativo
dos grafismos puros3 em relação aos zoomorfos e antropomorfos. O
estudo dos grafismos puros constitui a parte mais problemática dessa
análise. A dificuldade provém tanto da complexidade e variedade das
formas representadas quanto da limitação de se estudar formas elaboradas por sociedades que não existem mais e sobre as quais não existe nenhuma referência escrita nem oral. Essa circunstância nos impede de conhecer o conceito que representava o motivo gráfico gravado na rocha e
limita seu estudo ao significante, ou seja, à forma como se percebe o
signo. No entanto, o estudo do significante também tem suas limitações,
visto que, ao desconhecer o seu significado, não se pode saber se um
signo se compõe de um ou mais motivos gráficos.
Quando, na década de 80, a Fundação Casa da Cultura de Marabá iniciou
a documentação das gravuras rupestres da Ilha dos Martírios e da Pedra
Escrita, havia decorrido mais de trinta anos da primeira divulgação dos
desenhos da Ilha dos Martírios feita por Paul Ehrenreich. Ao longo de
vários anos, os técnicos da Fundação decalcaram em plástico transparente
centenas de gravuras rupestres desses sítios. Esse material ficou guardado
até 1999 quando Pereira (2002b), a pedido da Fundação Casa da Cultura
de Marabá, iniciou a análise das gravuras rupestres destes sítios.
A METODOLOGIA DE ANÁLISE
O primeiro passo para a análise das gravuras foi a redução em escala
dos decalques, de modo que pudessem ser manuseados com facilidade,
permitindo seu estudo. Os painéis foram ordenados de acordo com os critérios estabelecidos pela FCCM no momento do decalque. Em seguida, procedeu-se ao reconhecimento dos grafismos. O detalhamento no estudo de
alguns painéis foi parcialmente prejudicado devido à fragmentação da sua
reprodução no momento de serem decalcados. Os critérios para a subdivisão em conjuntos ou partes não são claros e a ausência de informações sobre
a direção e distâncias entre eles acabou por limitar o estudo do conjunto.
Levando em conta estas restrições, a análise de Pereira (2002b) foi centrada
Apesar dessas dificuldades, era imperativo ordenar de alguma forma os
motivos gráficos, conhecer sua freqüência e verificar possíveis associações
com outras figuras. Para realizar esse ordenamento, optou-se pelo tratamento
individualizado dos motivos, visto não ter como isolar os grafismos puros
assim como foram concebidos pelos seus autores. O critério para segregar os
motivos foi o seu isolamento no painel, ou seja, quando se observa a ausência
de um vínculo visual com outra(s) figura(s) através de um ou mais traços.
Desta forma, esse tipo de grafismo foi identificado genericamente como
grafismo puro, sendo-lhe atribuída ainda uma segunda denominação de
acordo com a sua morfologia. Tal procedimento foi necessário devido à
grande quantidade de formas observadas.
Em muitos casos, a identificação dos temas não foi problemática, visto
que o isolamento da figura não suscitava nenhuma dúvida e sua recorrência
Parque Martírios-Andorinhas:
Conhecimento, História e Preservação
nos sítios era comum. Algumas vezes temas já identificados aparecem
unidos por um ou mais traços a outras figuras. Nesses casos, o conjunto
de figuras foi classificado genericamente como “figuras unidas”, mas cada
tema identificado foi devidamente descrito.
Para a análise das figuras antropomorfas e zoomorfas, seguiu-se a
metodologia utilizada por Pereira (1996) para a análise da arte rupestre da
região noroeste do Pará.
A CARACTERIZAÇÃO
DAS GRAVURAS RUPESTRES
As gravuras rupestres do sítio Ilha de Campo estão localizadas horizontalmente em blocos rochosos dispersos na parte central da ilha. Nesse sítio
foram identificados quatro blocos rochosos que apresentam um total de
sete gravuras que tem como tema predominante o soliforme (Fig. 8.9).
Ocorre ainda um grafismo representado por um círculo com cruz no
meio (Fig.8.10), um ponto cheio e uma figura sem forma definida. A
técnica de elaboração das gravuras foi o picoteado.
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vação das gravuras rupestres, pois, a cada ano, diferentes trechos da ilha
ficam cobertos por uma espessa camada de areia, muitas vezes ocultando
painéis com gravuras rupestres.
Na Ilha dos Martírios, as gravuras estão localizadas, principalmente, na
sua extremidade norte, onde se distribuem de forma irregular, seja em
grandes painéis com dezenas de figuras, seja através de figuras isoladas
(Fig. 8.11, 8.12, 8.13, 8.14). No sítio Pedra Escrita, além das gravuras
localizadas horizontalmente no lajeiro na margem esquerda do rio (Fig. 8.15),
há também um grande painel situado em uma laje disposta verticalmente
(Fig. 8.16, 8.17, 8.18).
Em ambos os sítios, a técnica utilizada para a elaboração das gravuras foi
a picotagem4, que dá ao sulco uma textura irregular. De maneira geral, as
figuras apresentam sulco profundo (até 3 cm de profundidade) e largo
(até 3 cm de largura). O tamanho das figuras é bastante variado, sendo
comum encontrar grafismos entre 20 cm e mais de um metro.
A área onde estão as gravuras da Ilha de Campo é periodicamente inundada e está sujeita a grande movimentação em virtude da dinâmica do rio o
que provoca a destruição das rochas e, por conseguinte, das gravuras rupestres.
Foram identificadas até o momento na Ilha dos Martírios 3.039 gravuras
rupestres; desse total, 2.958 correspondem a grafismos puros; 51, a
zoomorfos; e 29, a antropomorfos. Na Pedra Escrita, foram contabilizadas
589 gravuras, sendo 571 grafismos puros, 14 antropomorfos e 4 zoomorfos.
Nos sítios Pedra Escrita e Ilha dos Martírios as gravuras rupestres estão
localizadas quase sempre na posição horizontal, visto que, tanto na ilha
como na margem do rio, aflora um extenso lajeiro de quartzito. As cheias
anuais do Rio Araguaia fazem com que grande parte da Ilha dos Martírios fique submersa por aproximadamente seis meses (janeiro a junho/
julho). Durante esse período, ocorre uma intensa movimentação de sedimentos que são depositados em diferentes partes da ilha. O resultado
desse fenômeno, evidente durante o estio, implica diretamente na obser-
Os grafismos puros constituem, portanto, a maioria das figuras existente
na Ilha dos Martírios e na Pedra Escrita, correspondendo, em ambos os
casos, a cerca de 97% dos grafismos representados. Entre esses grafismos
se observa uma enorme variedade de temas, sendo muitos deles recorrentes. Alguns temas identificados apresentam variantes e ainda aparecem
estruturados em diversas combinações. Essas particularidades, associadas
ao fato de muitos desses temas serem comuns aos dois sítios, levaram
Pereira (2002b) a centralizar a análise nesses temas.
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Arqueologia na região
da Serra das Andorinhas
Figura 8.8 – Detalhe das pinturas rupestres do sítio Sucupira II.
Figura 8.10 – Aspecto do sítio TO-XA-19: Ilha de Campo.
Figura 8.9 – Gravura rupestre com tema soliforme no sítio TO-XA-19:
Ilha de Campo.
Parque Martírios-Andorinhas:
Conhecimento, História e Preservação
Figura 8.11 – Painel com dezenas de gravuras na Ilha dos Martírios.
Figura 8.13 – Detalhe de figura isolada na Ilha dos
Martírios.
Figura 8.12 – Lajedo de quartzito com gravuras na Ilha dos Martírios.
Figura 8.14 – Gravuras em lajedo na Ilha dos Martírios.
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Arqueologia na região
da Serra das Andorinhas
Figura 8.15 – Gravuras no sítio Pedra Escrita.
Figura 8.17 – Vista frontal da laje com gravuras rupestres do sítio Pedra Escrita.
Figura 8.18 – Detalhe de uma gravura com tema soliforme no sítio Pedra Escrita.
Figura 8.16 – Grande laje inclinada onde está o painel principal com
gravuras rupestres do sítio Pedra Escrita.
Parque Martírios-Andorinhas:
Conhecimento, História e Preservação
O tema mais representado numericamente é o “Machado” 5. Foram
contabilizadas mais de 500 gravuras com este tema na Ilha dos Martírios
e 30 na Pedra Escrita. Esse tema, cuja forma lembra um machado, ocorre
nos painéis com as seguintes combinações: isolado, em série, em par/
contrapostos, em par/um em frente ao outro e com dupla lâmina e suas
variantes (Fig. 8.19). O tamanho das figuras que representam este tema
varia de 10 cm a mais de 50 cm.
O tema soliforme e suas variantes (Figura 8.20) ocorre em grande quantidade na Ilha dos Martírios, são mais de 100 ocorrências. Na Pedra Escrita,
foram contabilizados apenas cinco. A “Santa” - denominação local para
uma forma triangular que lembra o manto de uma santa - ocorre 51
vezes na Ilha dos Martírios e 5 vezes na Pedra Escrita (Fig. 8.12, 8.21). Os
tamanhos dessa figura variam de 15 cm a mais de 1 metro.
Os Pontos Cheios - pequenas depressões circulares pouco profundas também
denominadas cúpulas (Clottes, 2000) - são numerosos (foram registrados
mais de 600) e apresentam uma série de variantes: isolados, em grupo aleatório, em série (Fig. 8.22). Outros grafismos, apesar de não se repetirem com a
mesma freqüência dos temas descritos acima, são também importantes, pois
constituem temas bem definidos que se repetem pelo menos duas vezes.
Nessa categoria, incluem-se o Círculo e suas variantes (Fig. 8.23), o Ancoriforme,
o Oculiforme6 (Fig. 8.24), o Pentiforme (Fig. 8.25), as Linhas Retas Trifurcadas, o
Cruciforme, o Ponto de Interrogação, a Forquilha (Fig. 8.26), entre outros
Além dos temas facilmente identificados devido ao seu isolamento e
recorrência, foram observados numerosos conjuntos de traços sem forma definida, que parecem corresponder a partes de uma figura de difícil
identificação, devido ao alto grau de desgaste ou por se tratar de figuras
aparentemente inacabadas. Ocorrem também temas cuja forma parece
ter sido registrada uma única vez. Essas figuras constituem um repertório
vastíssimo, bastante diversificado e de difícil ordenação.
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As representações de animais (zoomorfos) somam um total de 55 figuras, das quais 51 estão na Ilha dos Martírios e 4 na Pedra Escrita. Apesar
do esquematismo dessas figuras, foi possível reconhecer aves, jacarés e
lagartos. Outros possíveis animais foram observados, mas sua forma não
permitiu associá-los a animais conhecidos, por isso preferiu-se denominálos biomorfos. Não se observa entre as representações de animais a composição de cenas ou de qualquer relação entre as figuras. Os animais aparecem isolados ou em conjunto com grafismos puros e figuras humanas
sem que, aparentemente, haja qualquer relação entre elas.
Cada animal tem uma forma própria de apresentação, repetida a cada vez
que ele é representado. As aves, por exemplo, se apresentam com o corpo
sempre na posição frontal e a cabeça de perfil. Sua principal característica é
apresentar as asas abertas (Figura 8.27). Tal postura sugere a representação
do animal em movimento ou que ele esteja secando ao sol com as asas
abertas, cena muito comum observada nos dias de hoje nos pedrais existentes ao longo do Rio Araguaia. Os lagartos (Fig. 8.28) e jacarés (Fig. 8.29)
estão representados sempre em visão dorsal com pequenos movimentos
sugeridos pela posição dos membros superiores e inferiores.
Os outros animais, não identificados – os biomorfos - também mantém
uma forma própria de apresentação que é repetida a cada vez que a
figura é representada (Figura 8.30). Essas figuras apresentam, de uma
maneira geral, as mesmas características variando apenas a forma de representação do tronco; em algumas figuras ele é redondo, enquanto em
outras é quadrado. As características comuns ficam por conta da forma
de representação da cabeça e dos membros superiores e inferiores.
As figuras humanas ocorrem em número bastante reduzido em ambos
os sítios e estão estruturadas de forma bastante simples e sempre na sua
forma completa, ou seja, com cabeça, tronco e membros (Fig. 8.31).
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Arqueologia na região
da Serra das Andorinhas
Figura 8.19- Forma de representação do tema “machado” e suas variantes
entre as gravuras rupestres.
Figura 8.20 - Forma de representação das gravuras rupestres do tema
“Soliforme” e suas variantes.
Figura 8.21 – Formas de representação do tema “Santa” que é bastante
recorrente entre as gravuras rupestres da Ilha dos Martírios.
Figura 8.22 – Formas de representação do tema “Pontos cheios” e suas
variantes.
Figura 8.23 – Formas de representação do tema “Círculo” e suas variantes.
Parque Martírios-Andorinhas:
Conhecimento, História e Preservação
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Figura 8.24 – Formas de representação das gravuras rupestres do tema
“Oculiforme” e suas variantes.
Figura 8.29 - Formas de representação das figuras zoomorfas
identificadas como Jacarés.
Figura 8.25 – Formas de representação das gravuras rupestres do tema
“Pentiforme”.
Figura 8.30 – Formas de representação das figuras identificadas
como Biomorfos.
Figura 8.26 – Formas de representação das gravuras rupestres de temas
diversificados, mas que se repetem pelo menos duas vezes nos sítios Ilha
dos Martírios e Pedra Escrita.
Figura 8..31 – Formas de representação das figuras identificadas
como “Antropomorfas” entre as gravuras rupestres.
Figura 8.27 – Formas do tema “Aves com asas abertas” comum entre as
gravuras rupestres da Ilha dos Martírios.
Figura 8.28 – Formas de representação das figuras zoomorfas
identificadas como lagartos.
Figura 8.32 – Formas de representação das figuras identificadas
como “Pegadas” entre as gravuras rupestres.
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Arqueologia na região
da Serra das Andorinhas
Representadas de maneira frontal, têm a cabeça redonda sem detalhe
anatômico do rosto, os braços estão sempre erguidos, algumas vezes as
mãos e os dedos estão indicados. O tronco aparece representado de
três formas: redondo, quadrado ou por um traço retilíneo. A expressão
de movimento é dada apenas pelos braços, que estão quase sempre
erguidos. A representação humana é sugerida ainda pela representação
de pegadas (Fig. 8.32).
A análise das gravuras rupestres dos sítios Pedra Escrita e Ilha dos Martírios permitiu identificar diversos elementos que possibilitaram a sua caracterização. O primeiro deles é o predomínio quantitativo dos grafismos
puros em relação às figuras humanas e de animais. Entre os grafismos
puros foram identificados diversos temas cujo isolamento e recorrência
permitiu considerá-los como uma unidade. Foram muitos os temas que
permitiram essa identificação, sendo impressionante a quantidade de vezes que alguns deles se repetem. Um exemplo é o “Machado” representado mais de 500 vezes. Além da repetição, destaca-se também a existência de diferentes combinações feitas a partir de um tema. Voltamos a
tomar como exemplo o “Machado”, que aparece com pelo menos quatro combinações diferentes, conforme se observa na Figura 8.19.
Os temas identificados como unidades aparecem isolados ou compondo
painéis em conjunto com figuras diversas ou o mesmo tema repetido diversas vezes. Outro aspecto importante relacionado a esses temas é sua apresentação em diversos tamanhos, podendo variar de 15 cm a mais de 1 metro.
As figuras humanas e de animais têm formas próprias de apresentação
que se mantêm, com pequenas variações, cada vez que a figura é representada. Seja nestas figuras ou nos grafismos puros, observa-se a manutenção de um estilo bem definido em grande parte das figuras gravadas
na rocha desses sítios.
Além dessas figuras, há uma quantidade enorme de formas que parecem
não se repetir e constituem um amplo e diversificado repertório cuja complexidade dificulta o agrupamento em tipos. Há também numerosos traços retilíneos e curvilíneos de tamanhos diversos gravados aparentemente
ao acaso e também conjuntos de traços incompletos que sugerem figuras
inacabadas ou parcialmente destruídas.
AS GRAVURAS RUPESTRES
DA REGIÃO DA SERRA DAS ANDORINHAS
NO CONTEXTO AMAZÔNICO
Os sítios Ilha dos Martírios e Pedra Escrita parecem estar intimamente
relacionados entre si, não apenas pela proximidade geográfica, mas, principalmente, pela similaridade e recorrência de suas gravuras rupestres. Suas
características apresentam paralelos com as gravuras de outros sítios do
sul do Pará, particularmente as dos sítios Lajedo do Cadena I e Lajedo
do Cadena II (Pereira 2001, 2003), localizados no município de Conceição do Araguaia. Tais paralelos estão relacionados ao predomínio dos
grafismos puros, à similaridade e recorrência de vários temas identificados entre os grafismos puros e a posição das gravuras predominantemente em lajeiros horizontais.
Estudos anteriores (Souza et al. 1979), baseados em análises estatísticas e
estilísticas, correlacionam com alguma reserva o sítio Ilha dos Martírios
ao Complexo Estilístico Simbolista Geométrico Horizontal, que se caracteriza “por uma elevada incidência de motivos geométricos, gravados
por atrito, sobre lajedos horizontais”.
Azevedo Neto (1994), ao estudar as gravuras rupestres do cerrado brasileiro, identifica um estilo - denominado Martírios - cujas características
estariam relacionadas à presença de gravuras rupestres em lajedos e blocos rochosos, localizados próximo aos grandes cursos d’água, sendo seu
Parque Martírios-Andorinhas:
Conhecimento, História e Preservação
repertório composto por “motivos figurativos, predominantes, e os geométricos, mais raros. Os signos que compõem o seu repertório são os
antropomorfos e zoomorfos, bastante estilizados, as máscaras, raros signos artefatuais e, em menor número, as retas, círculos, curvas e pontos”.
Esse estilo, identificado em dois sítios no estado do Tocantins - Ilha dos
Martírios e Mara Rosa - e um em Goiás (NI-74), apresenta, segundo Azevedo Netto (1994), uma grande diversidade temática e estilística, o que
colocaria em dúvida a sua existência. No entanto, o autor acredita que as
correlações estéticas encontradas entre este estilo e o Timehri, definido por
Williams (1985) para a arte rupestre das Guianas, indicaria um traço de
contato entre a arte rupestre da Amazônia e a do cerrado, esta representada
pelo estilo Martírios (Azevedo Netto 1994).
As limitações de análise consideradas pelos autores dos dois estudos acima mencionados devem-se às restrições das informações contidas nas
fontes bibliográficas consultadas. O trabalho de Ehrenreich (1948)
corresponde à fonte mais detalhada sobre as gravuras rupestres da Ilha
dos Martírios, no entanto, como o próprio autor afirma, só foram copiadas algumas figuras consideradas como as mais importantes.
Tendo em conta as novas informações advindas da análise das gravuras
rupestres da Ilha dos Martírios feita por Pereira (2000) a partir dos decalques realizados pela Fundação Casa da Cultura de Marabá, constata-se que
as figuras divulgadas por Ehrenreich (1948) correspondem a uma
pequeníssima parte do conjunto de gravuras rupestres existente neste sítio.
Tal constatação implica necessariamente uma reavaliação da inserção deste
sítio nos estilos apresentados por Souza et al. (1979) e Azevedo Netto (1994).
Em linhas gerais os sítios Pedra Escrita, Ilha dos Martírios e Ilha de Campo podem ser incluídos no Complexo Estilístico Simbolista Geométrico
Horizontal definido por Souza et al. (1979). No entanto, as peculiaridades
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que esses sítios apresentam não permitem enquadrá-los em nenhum dos
três estilos que compõem o complexo estilístico definido por estes autores.
Com relação ao estilo Martírios definido por Azevedo Netto (1994), dois
aspectos devem ser considerados. O primeiro refere-se aos temas representados e suas proporções7. Diferentemente do que foi afirmado por
esse autor, as formas geométricas (consideradas neste trabalho como
grafismos puros) ocorrem em grande quantidade e correspondem a mais
de 97% das 3.039 figuras identificadas. As figuras zoomorfas e
antropomorfas correspondem aos 3% restantes e, efetivamente, são bastante, estilizadas. Azevedo Netto (1994) menciona ainda a existência de
“raros signos artefatuais”, no entanto o tema “Machado” (que parece
enquadrar-se nesta categoria) é um dos mais recorrentes, sendo
contabilizadas mais de 500 representações do mesmo tema. O segundo
aspecto diz respeito a um possível contato entre a arte rupestre da Guiana
– representada pelo estilo Timehri – e a do cerrado – representada pelo
estilo Martírios.
O estilo Timehri, definido por Williams (1985), se caracteriza pela presença
de figuras antropomorfas completas e máscaras. As figuras completas são
marcadas pela existência de um Cocar Raiado Lunar (rayed lunate crest), Corpo com Vários Tipos de Atributos (bodice incorporating varios kinds of attribute)
e um arranjo de linhas verticais paralelas na base da figura sugerindo uma
saia de ráfia (a basal arrangement of parallel verticals suggesting the raffia “skirt”). As
representações exclusivas do rosto foram classificadas como máscaras e
subdivididas em quatro formas: redonda, triangular, lunar e quadrada.
Williams (1985) estabeleceu esta classificação tendo como base diversas
informações bibliográficas e pesquisas que realizou na Guiana. Trata-se
de uma classificação bastante geral e que foi aplicada a uma área extensa
que vai desde o norte da América do Sul até as Antilhas.
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Arqueologia na região
da Serra das Andorinhas
As características desse estilo são semelhantes às da Tradição Amazônia
definida por Pereira (1996, 2003), que por sua vez encontra paralelo com
diversos sítios com gravuras rupestres localizados em países vizinhos como
a Venezuela, Colômbia e Guianas. Na Amazônia Brasileira, em particular
no Pará, a presença dessa Tradição é marcante nos sítios localizados nos
terrenos da margem esquerda do Rio Amazonas. Por sua vez, os sítios
localizados na margem direita desse rio apresentam características diversas da Tradição Amazônia e vão se tornando cada vez mais distintas à
medida que se aproximam da região meridional do Pará, quando então
passam a dominar conjuntos de gravuras com características muito próximas àquelas já definidas para a região Centro-Oeste.
Entre as gravuras rupestres da Ilha dos Martírios e da Pedra Escrita estão
ausentes tanto as máscaras como as figuras humanas com as características
descritas por Williams (1985) para o estilo Timehri. As figuras humanas
estão presentes nesses sítios em pouca quantidade e sua representação, bastante simples e estilizada, não guarda semelhança com as do estilo Timehri.
Considerando as características já definidas para as gravuras rupestres localizadas no sul e sudeste do Pará (Pereira 2000, 2001a, 2001b, 2002b),
percebe-se a existência de uma relação de continuidade entre os conjuntos
com gravuras rupestres do Centro-Oeste e aqueles localizados na parte
mais meridional do Pará, particularmente em Conceição do Araguaia.
Essa área, caracterizada por ser uma transição ambiental entre a Floresta
Amazônica e o Cerrado, parece ter oferecido condições análogas para o
desenvolvimento de atividades tecnológicas, favorecendo o deslocamento de grupos entre essas áreas. A ocorrência deste deslocamento parece se
confirmar pelas manifestações gráficas rupestres existentes na faixa de
transição ambiental, as quais apresentam características muito similares
àquelas das gravuras localizadas no Centro-Oeste e que foram apresenta-
das, por exemplo, por Robrahn-Gonzáles & De Blasis (1997), Souza et al.
(1979), Girelli (1994) e Schmitz et al.(1979).
Por outro lado, em sítios como a Ilha dos Martírios e a Pedra Escrita,
localizados um pouco mais ao norte, já não se observa esta relação de
continuidade. Vários temas são comuns, no entanto outros parecem ser
próprios daqueles sítios.
O estado atual do conhecimento sobre as gravuras rupestres do sul e
sudeste do Pará permite incluí-las no Complexo Estilístico Simbolista
Geométrico Horizontal definido por Souza et al. (1979), com variações
regionais distintas daquelas propostas por esses autores e também por
Azevedo Netto (1994). As gravuras rupestres dos sítios Pedra Escrita e
Ilha dos Martírios constituem certamente uma variação específica, ainda
sem paralelo, dentro deste Complexo.
OS RISCOS DO
PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO
As diferentes formas de destruição que têm atingido o patrimônio arqueológico da Amazônia vêm sendo registradas por alguns autores. Roosevelt
(1991), por exemplo, menciona a destruição nos tesos da Ilha de Marajó,
enquanto Pereira (2002a) dirige suas preocupações para a destruição dos
sítios com arte rupestre. Além das formas de destruição apresentadas por
estas autoras, registra-se também a retomada recente da prática de formação de coleções arqueológicas - comum no final do século XIX - por
empresários interessados em arte. Essa prática ilegal também contribui
para a destruição do patrimônio na medida em que este mercado estimula a retirada de peças dos sítios arqueológicos por amadores que, sem
preocupações científicas, retiram de qualquer maneira as peças com objetivo de vendê-las8.
Parque Martírios-Andorinhas:
Conhecimento, História e Preservação
O rico patrimônio arqueológico da região da Serra das Andorinhas não
está imune à destruição. Pelo contrário. As pinturas rupestres existentes no
sítio Abrigo da Neblina têm dividido seu espaço no suporte rochoso com
pichações recentes deixadas pelos visitantes. A Ilha dos Martírios já teve um
marco de cimento implantado a menos de um metro de um painel com
gravuras rupestres. Há alguns anos um político da região resolveu usar os
paredões rochosos desta ilha para fazer propaganda eleitoral.
Se concretizar-se o projeto de construção de uma usina hidrelétrica no
Rio Araguaia, a cerca de 10 quilômetros a jusante da Serra das Andorinhas, o patrimônio arqueológico dessa região estará comprometido. As
gravuras rupestres da Ilha dos Martírios e parte das gravuras do sítio
Pedra Escrita ficarão permanentemente submersas.
Também o turismo informal e descontrolado pode se transformar em
um fator de destruição dos sítios arqueológicos. A visitação pública a
sítios arqueológicos é importante, mas deve ser precedida de pesquisas
que permitam oferecer informações científicas sobre a ocupação préhistórica do local visitado. Além disso, uma série de medidas visando à
proteção física dos sítios e ações educativas, particularmente nas comunidades que vivem próximo aos sítios, devem ser tomadas antes da divulgação dos sítios como atrativo turístico de uma região.
A Ilha dos Martírios e a Pedra Escrita são, como todos os demais sítios
arqueológicos localizados em território nacional, um patrimônio da União
e pertencem, portanto, a todos os brasileiros. Estudar estes sítios é conhecer
o nosso passado e essa é uma tarefa cabe aos arqueólogos e aos organismos
governamentais. No entanto, preservá-los é um dever de todo cidadão.
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Arqueologia na região
da Serra das Andorinhas
NOTAS
1
Um desses sítios - o Ilha de Campo - foi registrado por Edithe Pereira em dezembro de 2006 durante a Oficina para o
Plano de Manejo do Parque Estadual Serra das Andorinhas/Martírios.
2
Material doado por Rita Lopes da Silva e Lucidalva Silva dos Santos.
3
Grafismo puro é o termo utilizado para designar as formas cujos traços não permitem identificá-lo com uma representação
material de nosso universo (Pessis & Guidon 1992).
4
A picotagem é uma técnica em que um instrumento é golpeado diretamente ou com o auxílio de outro instrumento
contra a rocha para formar um sulco.
5
Para alguns temas foi mantida a mesma denominação que a população local atribui aos grafismos. É o caso dos
“machados” e da “santa”.
6
Esse tema assemelha-se mais a um óculos do que propriamente aos olhos, mas na falta de um termo melhor foi
mantido oculiforme.
7
Com relação a este aspecto, o autor ressalta a pouca segurança contida nas fontes e que por este motivo não foram
incluídos na análise estatística de seu estudo.
8
Os sítios arqueológicos fazem parte do patrimônio cultural brasileiro e como tal são bens pertencentes à União. Os
danos e ameaças a este patrimônio são passiveis de punição conforme reza a Constituição Brasileira. O aproveitamento
econômico dos sítios arqueológicos é proibido pela Lei Federal n° 3.924, de 26 de julho de 1961.
Parque Martírios-Andorinhas:
Conhecimento, História e Preservação
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