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A relevãncia civil do casamento católico

1994, Africana

... A relevãncia civil do casamento católico. Autores: Jorge Bacelar Gouveia; Localización: Africana, ISSN 0871-2336, Nº 14, 1994 , págs. 155-185. Fundación Dialnet. Acceso de usuarios registrados. Acceso de usuarios registrados Usuario. Contraseña. Entrar. Mi Dialnet. ...

A RELEVÂNCIA CIVIL DO CASAMENTO CATÓLICO1 Por Dr. Jorge Bacelar Gouveia2 I INTRODUÇÃO 1. Apresentação do tema I. O tema que nos propomos versar nesta comunicação pertence ao âmbito do Direito da Família e respeita à relevância civil do casamento católico, numa apreciação simultaneamente teorética, histórica e doutrinária. Trata-se de saber se e em que medida o acto de casamento católico, nos termos em que o mesmo é definido e regulado pelo Direito da Igreja Católica, tem reflexos no Direito da Família, sector do Direito Estadual que se destina a regular as relações sociais no seio desta instituição. Mas dentro da análise que iremos efectuar, à luz dos ditames da Ciência do Direito da Família, numa visão puramente juscientífica deste problema, priviligiaremos uma tríplice perspectiva segundo a Teoria do Direito da Família, a História do Direito da Família Moçambicano e a Doutrina do Direito da Família Moçambicano: com a primeira, há uma preocupação de índole teorética, tendente a esboçar, em asbstracto e numa dimensão susceptível de interessar a qualquer Direito da Família Positivo, o quadro das modalidades possíveis de relevância civil do casamento católico; na segunda, registamos a evolução das respostas que o 1 Versão escrita da comunicação proferida em 24 de Maio de 1994 em Maputo, no âmbito das I Jornadas de Direito Civil, organizadas pelas Faculdades de Direito da Universidade Eduardo Mondlane e da Universidade de Lisboa, que tiveram as seguintes participações: Professor Doutor José de Oliveira Ascensão – Posse e propriedade; Dr. Luís Filpe Sacramento – Da hereditabilidade do direito de indemnização: Dr. Paulo Câmara – Arrendamento urbano na ordem jurídica moçambicana; Dr. Armando Dimande – Responsabilidade do empreiteiro; Professor Doutor Miguel Teixeira de Sousa – Incumprimento e venda de coisa defeituosa: Dr. Ramos Ascensão – Direito Civil e Direito Económico no moderno Estado Social de Direito; Dr. Carlos Jeque – Contrato de depósito. Texto publicado na revista Africana, VIII, nº 14, Porto, 1994, pp. 155 e ss., e também em Jorge Bacelar Gouveia, Estudos de Direito Público de Língua Portuguesa, Almedina, Coimbra, 2004, pp. 65 e ss. 2 Assistente convidado da Faculdade de Direito da Universidade Eduardo Mondlane e Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Direito Familiar Moçambicano, ao longo do evoluir dos tempos, tem dado a esta matéria; pela terceira, finalmente, somos elucidados acerca da caracterização que o Direito da Família actualmente vigente em Moçambique faz da eficácia civil do casamento católico3. II. Mas poder-se-á perguntar: por que motivo, dentro da enorme plêiade de assuntos para os quais o Direito Civil Moçambicano requer soluções, e que constitui o tema genérico das presentes I Jornadas de Direito Civil, se escolheu precisamente o da relevância civil do casamento católico? Podemos elencar três motivos que terão sido decisivos. Em primeiro lugar, cumpre realçar a sua importância no contexto de qualquer Direito da Família, ou até mesmo de qualquer Direito Civil, importância que advém não apenas do facto de se situar num melindroso ponto de confluência entre dois ordenamentos jurídicos distintos – o ordenamento jurídico estadual e o ordenamento jurídico eclesiástico – como também do seu enorme interesse social, enquanto domínio que se prende, indelevelmente, à vida das pessoas e que conforma o modo por que as mesmas pautam os seus comportamentos individuais e colectivos4. Por outro lado, e a despeito dos múltiplos esforços que a Ciência do Direito Civil Moçambicano tem feito, que aproveitamos neste ensejo para enaltecer publicamente, continua a registar-se, infelizmente, um certo abandono do Direito da Família, área em que rareiam os estudos juscientíficos, sendo nosso propósito dar um pequeno contributo para o esclarecimento de uma das suas questões mais candentes, para as quais é urgente encontrar caminhos e linhas coerentes de desenvolvimento legislativo5. Recorde-se ainda que, sendo o ano de 1994 dedicado pela Organização das Nações Unidas6 e pela Igreja Católica7 à família, o tratamento, num estudo de 3 Se a perspectiva histórica se apresenta para alguns como descritiva e relativamente dispensável, o mesmo já não pode dizer-se tanto da perspectiva teorética como da perspectiva doutrinária, porquanto é aquela que possibilita a compreensão e sistematização dos dados normativos e das soluções com que esta trabalha. 4 E essa importância não diminui, ao contrário do que muitos possam pensar, nos lugares em que, como poderá ser o caso de Moçambique, a religião católica não se apresenta como maioritária, porquanto a expansão dos valores transmitidos através do casamento tem uma validade universal, muitos deles, aliás, expressamente reconhecidos por outras confissões religiosas. 5 Do ponto de vista doutrinário, não é possível deparar com quaisquer estudos relativos a esta matéria, sendo justo realçar o papel dos tribunais moçambicanos – dos quais devemos referir o Tribunal Supremo – no encontrar de soluções para os numerosos problemas que a nova situação de Moçambique veio trazer, fazendo as vezes, em muitos casos arduamente, do papel que competiria à doutrina. 6 Cfr. Resolução nº 44/82 da Assembleia Geral das Nações Unidas, adoptada na 44ª sessão, 78ª sessão plenária, de 8 de Dezembro de 1989, na qual se afirma nos pontos 2 e 4 o seguinte: ”2. Decide que as principais actividades para celebrar o ano se deverão organizar aos níveis local, regional e nacional o apoio das N.U. e dos organismos afins, e visam melhorar a compreensão dos governos, dos responsáveis e do público de que a família é a célula natural e fundamental da sociedade; Direito Civil, da relevância civil do casamento católico surge como uma particular forma de comemoração deste evento, que se quer especialmente devotado à problemática familiar nas suas mais variegadas incidências. III. A potencial dispersão temática que estas reflexões poderiam desencadear aconselha a excluir das nossas preocupações aspectos que, apesar de hipoteticamente ligados ao respectivo aprofundamento, neste momento não podemos curar. A apreciação deste tema, que tem muito de interdisciplinar, não nos irá levar ao estudo do Direito Canónico, dado que nos posicionamos do lado do Direito Estadual, aferindo em que circunstâncias o casamento católico, regulado por aquele ordenamento jurídico, tem efeito civis, e muito menos chegaremos à avaliação da posição que a Igreja Católica tem relativamente a esta questão. A dimensão especificamente jurídica que pretendemos imprimir a esta indagação força-nos também à renúncia de outras dimensões – como a sociológica, a etnológica, a política ou a ideológica – que pudessem interessar, sem olvidar que em Moçambique a realidade social, mercê de uma história recente e bastante atribulada, é pouco conhecida e apesar de muitas vezes se continuar a preferir abordagens não jurídicas. Já dentro de um contexto puramente jurídico, não nos abalançaremos sobre questões de Direito da Família Comparado8 ou de Política Legislativa de Família9, por se não compaginarem com os limites que nos são estabelecidos no âmbito desta iniciativa académica. 4. Convida todos os governos, as instituições especializadas, as organizações integovernamentais e não governamentais relacionadas com a família, e também as organizações nacionais interessadas, a que não negligenciem esforços para a preparação e a celebração do ano e para cooperarem com o Secretário-Geral com o fim de se atingirem os objectivos;” 7 Que foi particularmente celebrado pelo Papa João Paulo II com a Carta às Famílias, de 2 de fevereiro de 1994, na qual o sumo Pontífice explica nestes termos a sua importância (nº 3): “Precisamente por estes motivos, a Igreja saúda com alegria a iniciativa promovida pela Organização das Nações Unidas, de fazer de 1994 o Ano Internacional da Família. Esta iniciativa manifesta como é fundamental o problema familiar para os Estados que são membros da ONU. Se a Igreja deseja tomar parte nesta iniciativa, fá-lo porque ela própria foi enviada por Cristo a “todas as nações” (Mt 28,19). Não é a primeira vez, aliás, que a Igreja assume como sua uma iniciativa internacional da ONU. Basta recordar, por exemplo, o Ano Internacional da Juventude em 1985. Deste modo, torna-se presente no mundo, realizando a intenção tão querida ao Papa João XXIII e inspiradora da Constituição conciliar Gaudium et Spes”. 8 Isso não significa, no entanto, que não possamos ilustrar algumas das situações a tratar com ensinamentos que podemos colher em alguns Direitos Estrangeiros, dos quais evidenciamos, justificadamente, o Direito Português. 9 Que neste momento têm uma acentuada acuidade na medida em que se trabalha, há já alguns anos, na reforma do Direito Civil da Família, que desde a criação do Estado Moçambicano em 1975 nunca obteve uma modificação sistemática de fundo, havendo apenas a indicar alterações pontuais, tanto mais importante quanto é certo ter-se entretanto transformado radicalmente as concepções subjacentes a muitos institutos familiares. 2. Sequência da exposição I. A ordem por que as diversas matérias compreendidas pela presente exposição nos aparece é condicionada pela natural articulação lógica que se deve estabelecer entre elas. Numa primeira parte, de teor teorético, descreveremos os vários modelos abstractamente concebíveis de relevância civil do casamento católico, os quais têm uma potencialidade de aplicação a quaisquer Direitos Positivos. Nas segunda e terceira partes, faremos a aplicação dos modelos descritos ao Direito da Família Moçambicano, qualificando cada sistema concretamente escolhido, primeiro na sua evolução histórica e depois no Direito actualmente vigente. II. Esta comunicação compreende, portanto, a existência de três partes substantivas distintas. A primeira dedicar-se-á à sistematização e explanação de cada um dos modelos de relevância civil do casamento católico, aos termos em que tem sido aplicado em alguns Estaods estrangeiros e à ponderação das vantagens e desvantagens que os juscivilistas normalmente lhes assinalam. A segunda cuidará da evolução histórica do Direito da Família Moçambicano, tanto ainda na fase colonial como mais tarde já com a independência política, no que se divisa a existência de quatro períodos: 1) de 1867 a 1910; 2) de 1910 a 1940; 3) de 1940 a 1975; 4) de 1975 a 1990. A terceira – a mais importante para a Ciência de Direito da Família Moçambicano pela sua actualidade – respeitará ao sistema de relevância civil do casamento católico efectivamente adoptado nos dias de hoje, momento em que, depois de referirmos as fontes normativas pertinentes e a posição que quase pacificamente tem sido defendida, avançaremos com a nossa própria posição. Terminaremos com a enunciação das conclusões, que sintetizarão tudo quanto tiver sido dito. II A RELEVÂNCIA CIVIL DO CASAMENTO CATÓLICO NA TEORIA DO DIREITO DA FAMÍLIA 3. Os diferentes modelos de relevância civil do casamento católico I. Uma das maiores singularidades que o casamento oferece é o facto de pela sua regulamentação tanto se interessar o Estado como a Igreja Católica. Do ponto de vista estadual, o casamento é tratado pelo Direito Civil Familiar, pelo qual é considerado, a par do parentesco, da afinidade e da adopção, como uma das fontes das relações jurídicas da família10. É um domínio que compreensivelmente o Estado chama a si, na medida em que se constitui como a mais proeminente instituição social, incumbindo-lhe a regulação, em termos coativos, da vida em sociedade. Do ponto de vista religioso, o casamento é considerado como um dos sacramentos entre baptizados e é na legislação e jurisdição da Igreja Católica que esse acordo de vontades deve encontrar a sua disciplina11, com excepção dos seus efeitos mere civiles, na inteira disponibilidade do Estado. O casamento entre não baptizados, validamente celebrado, é do mesmo modo deixado à regulação do Estado, mas desde que conforme ao Direito Natural12. II. A observação dos vários Direitos Civis Familiares que os ordenamentos jurídicos hoje apresentam um pouco por toda a parte, bem como o estudo da sua evolução histórica, principalmente nos Estados que chefiaram grandes processos de transformação civilizacional, mostram que a relevância que é atribuída ao casamento católico por este ramo jurídico não é sempre a mesma, antes se tornando possível, senão mesmo necessário, forjar alguns modelos com as várias combinações que são logicamente admissíveis, todas elas, aliás, já experimentadas. Os juscivilistas que estudam esta problemática apresentam habitualmente essas relações intersistemáticas na base de três diferentes sistemas ou modelos: o sistema do casamento civil obrigatório, o sistema do casamento civil facultativo e o sistema do casamento civil subsidiário13 14, sendo o segundo sistema, por sua vez, Na verdade, dispõe o art. 1576º do Código Civil Moçambicano: “São fontes das relações jurídicas familiares o casamento, o parentesco, a afinidade e a adopção”. 11 O Código de Direito Canónico de 1983, no seu cânone 1055, § 1, dá do matrimónio definição: “O pacto matrimonial pelo qual o homem e a mulher constituem entre si a comunhão íntima de toda a vida, ordenada por sua índole natural ao bem dos cônjuges e à procriação e educação da prole, entre baptizados, foi elevado por Cristo, Nosso Senhor, à dignidade de sacramento”. 12 O regime do casamento católico consta dos cânones 1055 a 1165 do Código de Direito Canónico. Sobre o regime do casamento católico, v. GONÇALVES PROENÇA, Relevância do direito matrimonial canónico no ordenamento estadual, Coimbra, 1955, p.p. 319 e ss.; PEREIRA COELHO, op. cit., pp. 127 e ss. e 352 e ss.; ORLANDO GOMES, Direito de família, 7ª ed., Rio de janeiro, 1990, pp. 57 e ss.; ANTUNES VARELA, op. cit., pp. 260 e ss. 13 Sobre os sistemas de relação entre o casamento civil e o casamento católico, v. JACINTO FERNANDES RODRIGUES BASTOS, Direito de Família – Segundo o Código Civil de 1996, I, Viseu, 1976, p. 40; PEREIRA COELHO, op. cit., pp. 136 e ss.; JEFFERSON DAIBERT, Direito da Família, Rio de Janeiro, 10 ainda normalmente desdobrável em dois subsistemas, um em que o casamento católico tem relevância civil apenas enquanto acto ou cerimónia, com o restante regime integralmente regulado pelo Direito Civil, e um outro pelo qual já se admite que seja o Direito Canónico a disciplinar os vários aspectos pertinentes ao casamento católico, todos eles aceites pelo Direito Civil. III. A nosso ver, importará fazer três observações relativamente ao modo clássico em que esta questão tem sido colocada: uma respeitante ao prisma adoptado para a sua análise, outra referente ao número de sistemas encontrado e a terceira quanto à terminologia fixada. O ponto de partida assente na figura do casamento civil como obrigatório, facultativo e subsidiário não nos posiciona imediatamente na questão da relevância civil do casamento católico, dado que se situa no lado oposto do casamento civil, e destina-se a mostrar em que circunstâncias é que o mesmo se relaciona com o casamento católico. Ora, o que está aqui em causa é exactamente o inverso, o que nada tem que ver com o casamento civil, podendo até acontecer que esta modalidade de casamento nem sequer exista, ou, indo ainda mais longe, que a lei civil atribua relevância a mais de uma espécie de casamento religioso. O elenco dos três sistemas referidos igualmente nos parece incompleto, pois que outras combinações lógicas com aplicações práticas há que neles não encontram acolhimento. Estamos a pensar em dois modelos diametralmente contrastantes: de um lado, o modelo pelo qual só o casamento católico é que tem relevância civil e nem mesmo o casamento civil existe como figura autónoma; do outro lado, pode acontecer que a lei civil vá ao extremo de poibir a própria celebração do casamento católico, não se bastando com a sua irrelevância. Para além disso, consideramos que a subdivisão que se opera dentro do modelo dito de casamento civil facultativo, a que aludimos, justifica plenamente a respectiva autonomização em dois modelos diversos, porquanto se saldam numa diferença qualitativa digna de nota15. Do ponto de vista terminológico, a utilização da adjectivação em torno do casamento civil, porquanto cada modelo é nominado por referência a este, não retrata convenientemente que o que se pretende frisar são as relações entre o casamento católico e o Direito Civil. Essa nomenclatura poderia valer se estivesse em causa o casamento religioso em geral, sem especificar uma das suas espécies, 1980, pp. 29 e 30; ORLANDO GOMES, op. cit., pp. 52 e ss.; PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, IV, 2ª ed., Coimbra, 1992, pp. 46 e 47. 14 PEREIRA COELHO (op. cit., p. 136) adita ainda o sistema do casamento religioso obrigatório. 15 Diversidade que PEREIRA COELHO (op. cit., pp. 139 e 140) devidamente salienta, apesar de os incluir no mesmo sistema do casamento facultativo. mas o que é certo é que a nossa apreciação se restringe ao casamento católico, devendo portanto na terminologia dar-se logo uma devida ideia a esse propósito16. IV. O resultado destes nossos reparos salda-se na necessidade de encararmos esta problemática à luz das possíveis relações intersistemáticas que se conhecem entre ordenamentos jurídicos diferentes, que podem ser de três espécies – de conflito, de indiferença e de coincidência, consoante a posição do primeiro em relação ao outro seja de oposição, de neutralidade ou de reconhecimento. Aplicando esta classificação do relacionamento entre ordenamentos jurídicos à relevância civil do casamento católico, que concretiza uma das possíveis relações entre o Direito Canónico e o Direito Civil, adoptamos uma classificação tripartida de modelos matrimoniais, com possibilidade de haver ainda submodelos ou subdivisões: - o modelo da proscrição civil; - o modelo da irrelevância civil; e - o modelo da relevância civil 4. O modelo da proscrição civil I. O modelo da proscrição civil do casamento católico consubstancia-se na proibição da sua celebração ou do reconhecimento, sempre no foro religioso, do estado de casado. A repressão estadual do casamento católico afere-se pela existência de normas de teor proibitivo, muitas vezes completadas pela adição de sanções civis ou até penais. II. Os exemplos que vivificam a oposição do Direito Estadual ao casamento católico são escassos e encontram-se normalmente em regimes totalitários de matriz soviética, em estados fundamentalistas islâmicos ou em Estados laicistas. Alguns dos Estados totalitários de matriz soviética pretenderam, muitas vezes mesmo a todo o custo, eliminar as manifestações religiosas das respectivas comunidades, o que obviamente também abrangeu o próprio casamento católico, com a alegação de que assim se poria em causa o fundamento ideológico monista de uma sociedade marxista-leninista-materialista. 16 Mas é evidente que o quadro de relações que iremos estabelecer entre o casamento civil e o casamento católico igualmente se aplicará a outras espécies de casamento religioso, mas que por necessária delimitação temática e por interesse jurídico prático não nos ocupam nesta comunicação. Nos Estados fundamentalistas islâmicos, por força da exclusividade que a confissão ocupa e que reflecte a própria fusão do poder político com a religião, as outras confissões religiosas, como a católica, não são reconhecidas, poibindo-se assim a sua prática, com naturais consequências também sobre o casamento católico. Nos Estados laicistas, embora se proclame a separação entre o Estado e o fenómeno religioso, na prática dificulta-se ou impede-se a realização do casamento católico, normalmente indirectamente pelo cumprimento de certos formalismos, como acontece quando se exige a prévia celebração do casamento civil. III. A utilização deste modelo patrimonial defronta-se com sérias dificuldades de aceitação tanto no plano dos princípios como ao nível sociológico. No que toca aos princípios, o primordial a recordar é a violação flagrante da liberdade religiosa em que se contabiliza, ao vedar-se o exercício de um acto da religião católica, que é o casamento. O Estado deve garantir à pessoa um conjunto mínimo de direitos de liberdade, nos quais se integra, como um dos mais importantes, a liberdade religiosa, em reconhecimento da sua dignidade, que postula a sua autonomia moral. E mesmo que o Estado apenas imponha a prévia celebração do casamento civil para a celebração do casamento religioso, aí estamos perante uma inadmissível intromissão da esfera civil na esfera religiosa, forçando os nubentes à prática de um acto civil. Quer dizer: à lei civil já não basta não reconhecer o casamento católico; quer mais, quer ainda apsrionar a sua celebração a um acto civil que para os nubentes não tem qualquer significado, numa atitude, não de neutralidade, mas de antireligiosidade óbvia. De acordo com uma visão mais do foro sociológico, este modelo não consegue absorver a inelutável diversidade que se vive em cada comunidade, mesmo que percentualmente o número de praticantes da confissão religiosa do Estado seja superior, e daí que nunca se adeque verdadeiramente à realidade que quer disciplinar. 5. O modelo da irrelevância civil I. O modelo da irrelevância civil do casamento católico caracteriza-se pela circunstância de o Estado não reconhecer quaiquer efeitos ao casamento católico dentro do seu ordenamento jurídico, embora obviamente não impeça ou dificulte a sua realização no foro estritamente religoso. Só o casamento civil, celebrado de harmonia com a lei civil e tendo por estatuto o que esta lhe reservar, se apresenta com validade no plano jurídico17. Este modelo matrimonial teve a sua origem em França, no seguimento da Revolução Francesa, que teve, aliás, como uma das principais preocupações ideológicas o combate à influência social da Igreja Católica. O preceito constitucional que ficaria celebrizado pertencia à primeira Constituição francesa, de 1791, no qual podia ler-se que “La loi ne considère le mariage que comme contrat civil”18. Houve, no entanto, dois importantes precedentes nos Países Baixos e na Inglaterra, onde o casamento civil já tivera sido reconhecido, no primeiro em 1580 e no outro em 165319. II. A observação comparada dos diversos Direitos Positivos permite chegar à conclusão de que é este o modelo actualmente maioritário no contexto mundial ou, pelo menos, nos países mais significativos do ponto de vista do Direito Civil Familiar. É de referir os exemplos da Bélgica, Holanda, Alemanha, Suiça, Rússia, Hungria e Roménia. III. A vantagem que a doutrina tem apontado a este modelo matrimonial prende-se com a possibilidade de, mais facilmente, unificar o casamento em torno de um único regime e evitar a dispersão ou o tratamento inigualitário das relações matrimoniais em função das opções religiosas de cada um, vantagem que Pereira Coelho considera “apreciável em países muito divididos sob o ponto de vista religioso”20. Mas também se tem dito que este modelo tem como demérito a desnecessária duplicação das celebrações por parte dos nubentes, que terão de realizar, sucessivamente, o casamento civil e o casamento católico21. IV. Quanto a nós, temos as maiores dúvidas acerca da pretensa vantagem da unificação matrimonial em matéria de casamento, sem esquecer de que se trata de um dos domínios mais importantes da esfera da personaldiade do indivíduo. Não consideramos que haja a necessidade de no Direito do Estado se possuir uma unidade do Direito Matrimonial, numa época em que se tem defendido, por vezes com tanta veemência, a peculiaridade cultural e religiosa dos povos e das minorias. 17 Sobre o sistema da irrelevância civil do casamento católico, v. PEREIRA COELHO, op. cit. pp. 137 e ss.; ANTUNES VARELA, op. cit. pp., 194 e 195. 18 Art. 7º da Constituição Francesa de 1791. 19 Cfr. PEREIRA COELHO, Curso de Direito da Família, I, 2ª ed., Coimbra, 1970, p. 91, nota nº 1. 20 Op. cit. I. p. 95. 21 Cfr. PEREIRA COELHO, op. cit. p. 139. Mas também se relembre que este modelo, afora este aspecto, não se conforma, em rigor, com os ditames da liberdade religiosa, pelos quais, no tocante ao Direito Canónico, se solicita o reconhecimento civil do casamento católico tal como ele é celebrado ao abrigo deste Direito. 6. O modelo da relevâcia civil I. O modelo da relevância civil do casamento católico confere eficácia, em termos de Direito Civil, a esse acto religioso, valendo o mesmo com o respectivo título e enquanto celebrado nos termos definidos pelo Direito Canónico. É um modelo que, em todo o caso e para a sua melhor compreensão, sugere a sua subdivisão em três submodelos, variando apenas a intensidade desse reconhecimento civil. São eles: - o submodelo da relevância civil formal; - o submodelo da relevância civil plena; e - o submodelo da relevância civil exclusiva. II. Com o submodelo da relevância civil formal do casamento católico, o Direito Estadual reconhece-lhe efeitos civis, mas encarando-o somente como acto, cerimónia ou rito, e continua a reservar para si a regulação dos restantes aspectos de regime, que ficam assim subtraídos ao domínio do Direito Canónico. O casamento católico, nos termos deste submodelo, tem apenas uma relevância civil na forma de celebração ou no acordo de vontades que se exprimem, mas no restante o regime é o estipulado na lei civil22. Trata-se de um submodelo que tem tido projecção nalguns ordenamentos jurídicos civis, como nos casos da Inglaterra, Suécia, Noruega, Islândia, Dinamarca, Estados Unidos da América, Grécia, Brasil e outros países da América do Sul23. III. O submodelo da relevância civil plena do casamento católico, que como o primeiro os autores igualmente integram no apelidado sistema de casamento civil facultativo, traduz-se no reconhecimento, por parte do Estado, do casamento católico não somente enquanto rito, mas agora como instituto global, dotado de um regime próprio, definido unicamente pelo Direito Canónico. Aqui o casamento 22 Sobre o sistema da relevância civil forma, v. PEREIRA COELHO, Versão portuguesa do relatório apresentado à Assembleia Geral da Comission Internationale de l’État Civil de 11 de Setembro de 1975, in Boletim do Ministério da Justiça, nº 251, 1975, pp. 29 e ss.; IDEM, op. cit., pp. 140 e 141; ANTUNES VARELA, op. cit. I, pp. 195 e 196. 23 Cfr. PEREIRA COELHO, op. cit., pp. 139 e 140, nota nº 2; IDEM, op. cit., loc. cit., p. 30. católico é integralmente válido para o Direito Civil de acordo com o regime que lhe é atribuído pelo Direito da Igreja Católica quanto às suas diversas vertentes24. Este submodelo matrimonial aparece na prática jurídica de alguns países, como é o caso de Itália, Espanha e República Dominicana. É este também o submodelo que actualmente vigora em Portugal25, embora se verifique, depois da Reforma de 1977, um certo hibridismo, o que leva à sua qualificação como submodelo mitigado. Quanto à generalidade do regime, o casamento católico continua a ser regulado pelo Direito Canónico, nomeadamente em matéria de divergências entre a vontade real e a vontade declarada, de vícios na formação da vontade e de declaração de nulidade do casamento, respectivas causas e regime processual. Só quanto à dissolução por divórcio é que rege a lei do Estado, por força das alterações introduzidas a partir de 1975, possibilitadas pela modificação da Concordata, passando agora a dizer-se que “Celebrando casamento católico, os cônjuges assumem por esse mesmo facto, perante a Igreja, a obrigação de se aterem às normas canónicas que o regulam e, em particular, de respeitarem as suas propriedades essenciais”, dispondo-se de seguida que “A Santa Sé, reafirmando a doutrina da Igreja Católica sobre a indissolubilidade do vínculo matrimonial, recorda aos cônjuges que contraírem o matrimónio canónico o grave dever que lhes incumbe de se não valerem da faculdade civil de requerer o divórcio”26. IV. O submodelo da relevância civil exclusiva do casamento católico implica que o Estado, no que respeita ao casamento, se subordina ao Direito Canónico, apenas reconhecendo o casamento católico nos termos em que o mesmo é regulado nesse Direito, tendo a Igreja Católica a exclusividade na definição dos que podem aceder à sua celebração. Nesta hipótese, o casamento civil fica confinado para as pessoas que não podem realizar o casamento católico de acordo com os ditames do Direito Canónico, ou seja, os que não receberam o baptismo válido, os que não se converteram à fé católica ou os que abjuraram da sua crença27, não havendo qualquer opção a fazer entre casamento católico ou casamento civil28. 24 Sobre o sistema da relevância civil plena do casamento católico, v. PEREIRA COELHO, op. cit., loc. cit., p. 30; IDEM, op. cit., pp. 141 e 142; ANTUNES VARELA, op. cit., I, p. 196. 25 Sobre o sistema português de relevância civil do casamento católico, v. PEREIRA COELHO, op. cit., loc. cit., p. 31; IDEM, op. cit., pp. 153 e ss; JACINTO FERNANDES RODRIGUES BASTOS, op. cit., I, pp. 58 e ss.; JOÃO DE CASTRO MENDES e MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Lisboa, 1991/1992, pp. 42 e ss.; PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, op. cit., IV, pp. 47 e ss.; ANTUNES VARELA, op. cit., I, pp. 204 e ss. 26 Redacção do Protocolo Adicional à Concordata de 7 de Maio de 1940, celebrado em 1975. 27 Cfr. Can. 1055 do Código de Direito Canónico e ANTÓNIO LEITE, O casamento canónicoconcordatário, in Scientia iuridica, X, 1961, p. 361. 28 Sobre o sistema da relevância civil exclusiva do casamento civil, v. PEREIRA COELHO, op. cit., pp. 142 e ss; ANTUNES VARELA, op. cit., I, pp. 197 e 198. Foi este o submodelo que vigorou até há pouco tempo em Espanha, sistema jurídico em que o casamento civil só era admitido quando “se prove que nenhum dos contraentes professa a religião católica”29. A comprovação da não pertença à religião católica, com a lei da liberdade religiosa, Lei nº 44/67, de 28 de Junho, e o Decreto de 22 de Maio de 1969, era feita através de simples comunicação do facto ao pároco do seu domicílio, comunicação que permitia a realização do casamento civil. V. A doutrina do Direito da Família também tem apresentado, para cada um destes submodelos, méritos e inconvenientes que, se analisados globalmente, acabam por salientar uma relativa aceitabilidade de cada um deles, o que aliás se vê facilmente pelo facto de já todos terem sido praticados recentemente e em países mais ou menos homogéneos do ponto de vista dos respectivos sistemas jurídicos. O submodelo da relevância civil formal tem a vantagem de conservar a unidade matrimonial entre cônjuges casados civil e catolicamente, dado que o regime das relações matrimoniais é o mesmo. E tem como segunda vantagem o facto de, ao contrário do que se passava com o modelo da irrelevância civil, já não forçar à duplicação de celebrações, aproveitando-se a celebração do matrimónio católico para daí se retirarem, integralmente, os efeitos civis30. Ao submodelo da relevância civil plena é-lhe também reconhecida utilidade no que tange à poupança de esforços dos nubentes que pretendam realizar o casamento católico, não tendo de participar em duas celebrações. No entanto, autores há, como é o caso de Pereira Coelho, que consideram que neste caso a evitação dessa dupla celebração se faz “agora à custa da unidade do direito matrimonial, que é sacrificada”31. E é este mesmo autor que acrescenta que neste submodelo não se consegue a harmonia entre o Direito Civil e o Direito Canónico, porquanto as “uniões que são legítimas em face de um deles não o são necessariamente em face do outro”32. O submodelo da relevância civil exclusiva tem como benefício a total coincidência entre o ordenamento estadual e o ordenamento canónico em matéria matrimonial, não havendo discrepância quanto ao que ambas as ordens normativas consideram legítimo ou ilegítimo. Em contrapartida, considerar-se que este submodelo põe em causa a liberdade religiosa e de culto, porquanto o Estado obrigaria as pessoas à prática de um acto religioso, mesmo aos nubentes que, apesar de baptizados, deixassem de praticar a fé católica, pois como afirma Pereira Coelho, seria sempre esta a conclusão, “ainda que se permita o casamento civil aos baptizados que façam declaração de apostasia, pois uma das manifestações da 29 Art. 42º do Código Civil Espanhol, na redacção da Lei de 24 de Abril de 1958. Cfr. PEREIRA COELHO, op. cit., I, pp. 96 e 97. 31 Op. cit., I, pp. 97 e 98. 32 Op. cit., I, p. 98. 30 liberdade religiosa é, certamente, a faculdade de retardar a opção que em matéria religiosa se faça e mesmo de não revelar essa opção”33. VI. Em face das objecções que levantámos quanto aos dois modelos anteriores, o modelo que julgamos em abstracto preferível só pode ser, por exclusão de partes, o da relevância civil do casamento católico. É o que melhor exprime a necessidade de corresponder aos legítimos anseios dos nubentes de verem a sua relação matrimonial católica legalizada e com efeitos ao nível do Direito do Estado. Mas como este modelo comporta, dentro de si, um desdobramento em três submodelos, coloca-se oportunamente a questão de saber qual deles é que se apresenta como mais consentâneo com os valores que necessariamente devem estar aqui presentes. A nossa posição propende para considerar que o subsistema ideal é o da relevância civil plena do casamento católico, havendo que salientar alguns óbices quer quanto ao subsistema da relevância civil formal quer quanto ao subsistema da relevância civil exclusiva. No que toca ao primeiro, somos de opinião de que o exercício de uma religião, no que ela tenha de específico no caso do casamento, não se contenda com o mero reconhecimento do acto de casamento. Há todo um conjunto de matérias, principalmente os efeitos pessoais, que justificam que o Direito Canónico possa ter relevância civil e a sua preterição pode dificultar – senão mesmo obstruir – o livre exercício da confissão religiosa em causa34. Relativamente ao outro, pensamos que, com efeito, não se adequa integralmente à liberdade religiosa, porquanto esta impõe que a pessoa não seja forçada a declarar que não perfilha certa religião em ordem à realização do acto civil matrimonial. 33 Op. cit., I, p. 100, nota nº 1. Leia-se, a este propósito, o seguinte trecho de JAVIER HERVADA (Comentários ao Código de Direito Canónico, Braga, 1984, p.. 647 e 648), comentando o can. 1059 do Código de Direito Canónico: “Com algumas variantes de redacção este c. reproduz o c. 1016 do CIC 17. Reafirma a jurisdição exlcusiva da Igreja sobre o matrimónio canónico, salvo os efeitos meramente civis que são da competência do poder civil. Em boa técnica jurídica, o ordenamento estatal deve reconhecer o matrimónio canónico, não como uma mera forma de contrair, mas como um sistema matrimonial com força própria. O chamado sistema de matrimónio civil obrigatório, ao desconhecer a jusrisdição da Igreja, supõe o desconhecimento de um ordenamento jurídico primário – o canónico - , posição inaceitável deste ponto de vista jurídico. O desconhecimento do ordenamento canónico não é uma consequência necessária da confessionalidade do Estado, mas um corolário do agnosticismo do Estado, que é uma forma de confessionalidade: a confessionalidade laicista. O Estado confessional deve reconhecer o facto religioso, com todas as suas consequências, também – no caso da Igreja Católica – a existência do ordenamento canónico, pois é o reconhecimento de um facto social, dotado de juridicidade originária”. 34 O subsistema da relevância civil pela do casamento católico consegue, de um modo notável, ultrapassar todos estes problemas. Sem deixar de reconhecer-se a plena relevância a este acto, entende-se que as pessoas podem optar pelo casamento civil em respeito à sua liberdade religiosa. III A RELEVÂNCIA CIVIL DO CASAMENTO CATÓLICO NA HISTÓRIA DO DIREITO DA FAMÍLIA MOÇAMBICANO 7. Periodização da evolução histórica I. A apreciação da evolução histórica do Direito da Família em Moçambique quanto aos modelos matrimoniais que foram adoptados impõe a divisão de todo esse tempo por uma fase prehistórica, para o perídodo correspondente ao direito colonial, e por uma fase histórica, já depois da independência política. Se porventura não fará muito sentido estudar o Direito vigente em Moçambique ao tempo colonial em termos de organização política, dado que Moçambique como Estado só nasceu em 1975, o mesmo já não se dirá do Direito da Família em matéria de sistemas matrimoniais. É que a lei civil que nos dias de hoje regula a actividade jusprivada moçambicana remonta ainda ao tempo colonial e não há a assinalar quaisquer mudanças estruturais que tivessem sido levadas a cabo por reformas legislativas profundas35. II. A periodização a fazer na evolução dessa pré-história e história do Direito Familiar Moçambicano implica a autonomização de quatro diferentes momentos, a começar com a primeria versão do Código Civil de 1867 e a terminar com a entrada em vigor da Constituição Moçambicana de 1990. São eles: 1º) período: de 1867 a 1910; 2º) período: de 1910 a 1940; 3º) período: de 1940 a 1975; 4º) período: de 1975 a 1990. 35 As modificações que se registaram em matéria de Direito Civil atingiram apenas alguns aspectos muito parcelares do conjunto de domínios codificados pelo Código Civil de 1966. Cumpre frisar, por exemplo, a matéria da propriedade da terra e do divórcio. 8. 1º) período: de 1867 a 1910 I. O primeiro período é caracterizado pela vigência da primeira versão do Código Civil de 1867, que terminou com a implantação da forma institucional republicana em 5 de Outubro de 1910. O problema é que as fontes normativas constantes deste Código, fruto de uma acesa polémica que envolveu a relevância civil do casamento católico, não se alinharam num mesmo fio programático. Dois dos preceitos que regulavam esta matéria inclinavam-se no sentido da admissibilidade do casamento civil apenas para não católicos, ficando os católicos submetidos ao casamento católico36 37. No entanto, prescrevia-se paralelamente, e num sentido aparentemente contrário, a proibição da realização de qualquer inquérito prévio acerca da religião dos nubentes38 e a impossibilidade da anulação de casamento por motivo religioso39. II. Pela leitura singela dos dois primeiros preceitos, a conclusão imediata a que se chegaria seria a de que se teria optado pela relevância civil exclusiva do casamento católico, dado que o casamento civil só podia ser celebrado por aqueles que não professassem a religião católica. Mas a disposição que proibia qualquer inquérito prévio acerca da religião dos nubentes, bem como o artigo que repudiava a ideia de anulação do casamento civil por motivo religioso, depõem contra essa consagração da relevância civil exclusiva do casamento católico, pela faculdade de os nubentes poderem optar pela celebração deste ou do civil. A conclusão que se retira é a de que durante este período vigorou efectivamente um sistema próximo do modelo da relevância civil plena – e não exclusiva – do casamento católico40. III. Essa resposta poderia ser considerada como satisfatória caso os dados legais disponíveis fossem apenas os mencionados. A verdade, porém, é que a lei civil introduziu duas significativas limitações ao regime do casamento católico. Por um lado, estendeu os impedimentos impedientes do casamento civil aos impedimentos aplicáveis ao casamento católico, havendo como consequência a 36 Art. 1057º do Código Civil de 1867. Art. 1072º do Código Civil de 1867. 38 Art. 1081º, 2ª parte, do Código Civil de 1867. 39 Cfr. art. 1090º do Código Civil de 1867. 40 Neste sentido, PEREIRA COELHO, op. cit., p. 147; PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, op. cit., IV, p. 47; ANTUNES VARELA, op. cit. I. pp. 198 e ss. 37 punição penal do ministro religioso que celebrasse algum casamento contra o disposto na lei civil41. Por outro lado, impunha-se, para se unificar o registo dos casamentos, a remessa da acta do casamento católico, no prazo de quarenta e oito horas, ao oficial do registo civil, a fim de que fosse por este registada42. IV. Não estamos, assim, diante de um sistema que se baste com a aplicação integral das normas canónicas, mas inversamente coexistia com duas importantes limitações civis de regime tendentes a aproximar o casamento católico do casamento civi43. A solução a encontrar enquadra este regime, portanto, no submodelo da relevância civil plena, sim, mas na sua vertente mitigada, pela aposição de dois limites oriundos do Direito Civil, que têm por objectivo evitar uma acentuada disparidade de efeitos entre o casamento católico e o casamento civil. 9. 2º) período: de 1910 a 1940 I. O segundo período coincide com o regime estabelecido pelo Decreto nº 1, de 25 de Dezembro de 1910, que veio instituir uma nova disciplina em matéria de casamento, e pela posterior aprovação do Código de Registo Civil de 1911. O Decreto nº 1, de 25 de Dezembro de 1910, o primeiro diploma do novo poder instalado e bem revelador da preocupação revolucionária em torno da matéria do casamento e da religião em geral, continha várias disposições com relevo directo para a questão do sistema matrimonial adoptado: em primeiro lugar, declarou-se o casamento como um contrato “puramente civil”44; em segundo lugar, estabeleceu-se, categoricamente, que só o casamento celebrado perante o respectivo oficial do registo civil, com as condições e na forma estabelecida na lei civil, é que seria válido45; em terceiro lugar, as causas de nulidade ou anulação do casamento ficaram pertencendo exclusivamente ao foro civil46. O Código de Registo Civil de 1911, por seu lado, veio confirmar estas radicais alterações legislativas, impondo o princípio da precedência obrigatória da realização do casamento civil quanto à cerimónia do casamento religioso47, sob pena de pesadas sanções. 41 Respectivamente, cfr. art. 1058º e art. 1071º do Código Civil de 1867. Art. 2476º do Código Civil de 1867. 43 Cfr. PEREIRA COELHO, op. cit., pp. 147 e 148. 44 Cfr. art. 2º do Decreto nº 1, de 25 de Dezembro de 1910. 45 Cfr. art. 3º do Decreto nº 1, de 25 de Dezembro de 1910. 46 Cfr. art. 65º do Decreto nº 1, de 25 de Dezembro de 1910. 47 Cfr. arts. 312º e 313º do Código do Registo Civil de 1911. 42 II. Deste conjunto de elementos normativos, considera-se que a qualificação do sistema da relevância civil do casamento católico se alterou substancialmente, entendendo-se ser agora o da sua irrelevância civil48. Ao Direito do Estado deixa de interessar, por completo, a celebração do casamento católico ou o regime próprio que o rege segundo as normas da Igreja Católica. Só o casamento civil se considera válido. Por outro lado, acentuando ainda mais a vertente antireligiosa que é clara em todo este período, verifica-se que ao legislador não foi suficiente apenas a irrelevância civil do casamento católico como ainda impôs a obrigatoriedade do casamento católico ter de ser precedido pela realização do casamento civil. III. Quer parecer-nos, todavia, que é necessário ir um pouco mais longe e julgar este acervo de fontes como perfilhando, não um modelo de mera irrelevância civil do casamento católico, mas um modelo de proscrição civil do mesmo. Só o próprio facto de se forçar à prévia celebração do casamento civil no caso de os nubentes pretenderem celebrar o casamento católico seria, por si só, elemento mais do que bastante para justificar este entendimento. Mas se olharmos ao contexto político-social da altura, da laicização social militante, e, principalmente, a algumas das normas da nova Constituição de 1911, então já não poderemos ter quaisquer hesitações de que, na verdade, assim foi. Embora se admitisse a liberdade de religião e de crença e outros direitos de separação do Estado da Igreja Católica49, manteve-se em vigor, por exemplo, a legislação que extinguiu inúmeras instituições religiosas50. 10. 3º) período: de 1940 a 1975 I. O terceiro período é marcado, do ponto de vista normativo, por dois importantes documentos: a Concordata celebrada entre Portugal e a Santa Sé, de 7 de Maio de 1940 (incorporada no Direito da Metrópole pelo Decreto nº 30 615 e no Direito Ultramarino pelo Decreto nº 35 461) e o novo Código Civil de 1966. A Concordata estabeleceu a obrigatoriedade de o Estado Português reconhecer efeitos civis aos casamentos celebrados em conformidade com as leis canónicas51, impôs a renúncia, por parte dos cônjuges, à faculdade civil do divórcio52, e cometeu o conhecimento das causas concernentes à nulidade do 48 Neste sentido, ANTÓNIO LEITE, op. cit., loc. cit. p. 360; PEREIRA COELHO, op. cit., p. 149; PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, op. cit. IV, p. 47; ANTUNES VARELA, op. cit. I, p. 199. 49 Cfr. art. 3º, §§ 4º e ss., da Constituição de 1911. 50 Cfr. art. 3º, §§ 12º, da Constituição de 1911. 51 Art. XXII, 1ª parte, da Concordata de 7 de Maio de 1940. 52 Art. XXIV da Concordata de 7 de Maio de 1940. casamento católico e a dispensa do casamento rato e não consumado aos tribunais e repartições eclesiásticas53. O Código Civil de 1966, por seu turno, confirmou o sentido desses preceitos, ao tratar o casamento civil e o casamento católico como dois actos distintos, em correspondência com regimes igualmente diferenciados, a indissolubilidade por divórcio foi também prevista na nova lei civil para os casamentos católicos celebrados depois de 1 de Agosto de 194054. II. O sistema assim gizado enquadra-se na modalidade da relevância civil plena do casamento católico55, por este valer no Direito Civil como acto jurídico materialmente regulado pelo Direito Canónico. III. É, contudo, um sistema de relevância plena mitigada pelas duas imposições que foram assinaladas, mas que não põem em causa a sua essência, e que também difere bastante do sistema consagrado na primeira versão do Código Civil de 1867. Neste caso, parafraseando Pereira Coelho, tratou-se de uma “transacção” entre o Estado Português e a Igreja Católica no tocante ao regime do casamento católico: o Estado Português reconheceu os seus efeitos civis, não permitiu que os seus tribunais lhe aplicassem o divórcio e deixou para o foro eclesiástico a apreciação da sua validade; em contrapartida, a Igreja Católica aceitou que a lei civil aplicasse o seu conjunto de impedimentos, que regulasse o processo preliminar de publicações e de registo e que decretasse a separação de pessoas e bens56. 11. 4º) período: de 1975 a 1990 I. O quarto período engloba ao mesmo tempo as normas da Constituição de 1975 pertinentes e as modificações introduzidas no Código Civil e no Código de Registo Civil. Quanto às normas constitucionais, apenas é de registar a intenção de o Estado proteger o casamento, juntamente com a família, a maternidade e a infância57. Relativamente ao Código Civil, sublinhe-se a existência de alterações tácitas e expressas importantes. Por um lado, caducaram, por inconstitucionalidade 53 Art. XXV, 1ª parte, da Concordata de 7 de Maio de 1940. Art. 1790º do Código Civil de 1966, na versão inicial. 55 Assim, ANTÓNIO LEITE, op. cit. loc. cit. p. 361; PEREIRA COELHO, op. cit., loc. cit., pp. 27 e ss; PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, op. cit., IV, p. 48; ANTUNES VARELA, op. cit. I, pp. 200 e ss. 56 Op. cit. p. 150. 57 Cfr. art. 29º, nº 2, da Constituição de 1975. 54 superveniente, as normas existentes que reconheciam eficácia civil do casamento católico58. Mas também atente-se nas modificações pontuais expressas pelas quais, na nova redacção do preceito civil alusivo às causas justificativas da não homologação dos casamentos urgentes, deixou de haver qualquer referência à qualificação do casamento como casamento católico pelas autoridades eclesiásticas59, não se fazendo também excepção à ressalva de direitos de terceiro quanto ao casamento católico no caso da retroacção de efeitos do registo60. O Código de Registo Civil61 também foi alvo de alterações profundas, que naturalmente tiveram os seus reflexos em matéria de relevância civil do casamento católico. Foram expressamente revogados todos os preceitos que pressupunham os efeitos civis desse acto de casamento. No que toca à Concordata celebrada entre Portugal e a Santa Sé, em 7 de Maio de 1940 aplicável a Moçambique, ela caducou, quanto à parte moçambicana62, pela superveniência da nova Constituição, que determinou a automática cessação de vigência de toda a legislação anterior contrária63. II. Esta apresentação do novo Direito Civil vigente em Moçambique relacionado com a matéria do casamento católico deixa ver claro que se deu uma transformação substancial no sistema que tinha sido predominante até então. A qualificação do sistema adoptado que mais facilmente lembra ao intérprete é o correspondente ao modelo de irrelevância civil do casamento católico. Essa opinião estaria em consonância com a concepção de Estado perfilhada em matéria de relações com o fenómeno religioso, que seria a de um Estado laico, no qual o poder político não possui qualquer religião, de acordo com a modalidade da separação absoluta, ao não se privilegiar qualquer confissão religiosa em particular. 58 Que são os arts. 1587º, 1588º, 1589º, 1596º, 1597º, 1598º, 1599º, 1625º, 1626º, 1654º, al. a), 1655º, 1656º, 1657º, 1658º, 1659º, 1660º, 1661º do Código Civil de 1966. 59 Cfr. art. 1624º, al. a), do Código Civil, na nova redacção do Código de Registo Civil dada pelo art. 188º do Decreto-Lei nº 21/76, de 22 de Maio. 60 Cfr. art. 1670º, nº 2, in fine, do Código Civil, na nova redacção do Código de Registo Civil dada pelo art. 211º do Decreto-Lei nº 21/76, de 22 de Maio. 61 Levada a cabo pelo Decreto-Lei nº 21/76, de 22 de Maio, em cujo preâmbulo se podia ler o seguinte quanto aos objectivos visados: “A principal preocupação do presente decreto-lei foi, por um lado, eliminar regras que são incompatíveis com os princípios vigentes e, por outro lado, simplificar quanto possível a prática do registo civil, afastando tudo aquilo que se considerou inútil, com vista a facilitar a actividade dos Serviços”. 62 Em termos de sucessão nos tratados celebrados por Portugal e aplicáveis a Moçambique, a Frente de Libertação de Moçambique afirmou no ponto 14 do Acordo de Lusaka de 7 de setembro de 1974 que “declara-se disposta a aceitar a responsabilidade decorrente dos compromissos financeiros assumidos pelo Estado Português em nome de Moçambique desde que tenham sido assumidos no efectivo interesse deste território”. 63 Cfr. art. 79º da Constituição de 1975. Algumas normas constitucionais testemunhariam precisamente essa ideia: afirma-se que a “República Popular de Moçambique é um Estado laico, nela existindo uma separação absoluta entre o Estado e as instituições religiosas”64; dizse que na “República Popular de Moçambique as actividades das instituições religiosas devem conformar-se com as leis do Estado”65; declara-se que “Na República Popular de Moçambique o Estado garante aos cidadãos a liberdade de praticar ou de não praticar uma religião”66. III. Uma análise um pouco mais detida leva-nos, contudo, a pensar que a melhor qualificação para o sistema matrimonial deste momento de evolução do direito civil não é essa, mas antes a do sistema coincidente com o modelo de proscrição civil do casamento católico, pelo qual este acto canónico, ainda que implicitamente admitido, era na prática hostilizado do ponto de vista jurídico. Tal conclusão só pode ser percebida à luz da concepção verdadeiramente praticada no tocante às relações entre o Estado e as confissões religiosas, não de Estado laico ou arreligioso, mas sim de Estado laicista ou antireligioso, situação em que o poder político tem por objectivo fazer desaparcer todas as irupções de religiosidade dos cidadãos. É a conclusão que podemos extrair não só da atenta leitura do articulado constitucional e da ideologia que o informava como igualmente da prática política e social. A referência constitucional expressa, num dos artigos da Constituição de 1975, ao facto de se dizer que “A República Popular de Moçambique realiza um combate enérgico contra o (...) obscurantismo ...”67 implica que se pretendeu apagar todas as expressões religiosas, uma das atitudes consideradas na altura como de obscurantismo. O quotidiano vivido nesse período mostrou também que por pate do poder político havia a orientação de fazer diminuir ou mesmo extinguir a religiosidade popular”68. 64 Art. 19º, nº 1, da Constituição de 1975. Art. 19º, nº 2, da Constituição de 1975. 66 Art. 33º, nº 1, da Constituição de 1975. 67 Art. 15º, da Constituição de 1975. 68 E quanto à Igreja Católica, o resultado foi em alguns casos as perseguições a sacerdotes e o encerramento de templos. Sobre as dificuldades vividas no período do regime totalitário de tipo soviético pela Igreja Católica de Moçambique, v. LUCIANO DA OCSTA FERREIRA, Igreja Católica em Moçambique: que caminho?, Maputo, 1993. pp. 15 e ss. Este mesmo autor descreve (op. cit. p. 21) deste modo impressivo o período conturbado por que passou a Igreja Católica Moçambicana: “Porém, a mais bela demonstração da “novidade” que irrompeu nesta Igreja são os exemplos de vida oferecida, os testemunhos de martírio, as provações de toda a sorte assumidas por casua de Cristo e do Seu Evangelho de paz e bem. Raptos, emboscadas, ataques, pilhagens, prisões ... e a própria morte, são o maior sinal da autenticidade do novo modo de ser Igreja e a melhor promessa da sua consolidação, pelo caminho ministerial”. 65 IV A RELEVÂNCIA CIVIL DO CASAMENTO CATÓLICO NO ACTUAL DIREITO DA FAMÍLIA MOÇAMBICANO 12. As fontes normativas pertinentes I. A caracterização do sistema adoptado pelo Direito da Família Moçambicano neste momento vigente deve partir da prévia identificação das fontes normativas relevantes. Como já tem sido frequente nas últimas décadas, numa tendência que se foi acentuando com o incremento do Estado Social de Direito, a localização destas fontes normativas deixou de pertencer unicamente aos códigos civis, para se alargar ao próprio texto constitucional69 e até, nalguns Estados, mercê de circunstâncias particulares, à legislação extravagante. Mais recentemente, fruto da crescente internacionalização dos ordenamentos jurídicos estaduais, é ainda possível encontrar disposições relativas ao casamento em textos de Direito Internacional. É exactamente isso o que acontece com o Direito da Família Moçambicano, cujas fontes mais significativas – e que são também as que relevam no especifíco domínio em que nos encontramos – se repartem pela Constituição, pelo Código Civil, por alguma legislação extravagante70 e por textos de Direito Internacional. II. Ao nível constitucional, deparamos com dois importantes preceitos, integrados no capítulo IV do título I da Constituição de 1990, reservado à organização económica e social, que estabelecem duas orientações básicas em matéria de casamento. Por um lado, garante-se a instituição matrimonial, ligando-a à família, definida previamente como a célula base da sociedade, e afirma-se que o “Estado reconhece e protege, nos termos da lei, o casamento como instituição que garante a prossecução dos objectivos da família”71. Por outro lado, eleva-se ao estalão constitucional a necessidade da liberdade do consentimento no acto de casamento, ao dizer-se que no “quadro do 69 Sobre a constitucionalização do Direito da Família, v. ANTUNES VARELA, op. cit., I, pp. 153 e 154. 70 Exactamente o mesmo fenómeno de descodificação e de constitucionalização do Direito da Família ocorre em Portugal, no qual a respectiva disciplina se reparte por vários preceitos da constituição de 1976, pelo Livro IV do Código Civil de 1966 e por legislação extravagante, sem esquecer ainda o Direito Canónico. Sobre as fontes do Direito da Família Português, v. PEREIRA COELHO, op. cit., pp. 85 e ss.; JOÃO DE CASTRO MENDES e MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, op. cit., pp. 29 e ss. 71 Art. 55º, nº 2, da Constituição de 1990. desenvolvimento de relações sociais assentes no respeito pela dignidade da pessoa humana, o Estado consagra o princípio de que o casamento se baseia no livre consentimento”72. III. No que respeita ao Código Civil Moçambicano, a única alteração expressa a registar é a da introdução da possibilidade da dissolução do casamento civil por divórcio não litigioso, modificando-se simultaneamente algumas das normas do regime do divórcio litigioso73. No resto, e na matéria que nos ocupa, a caducidade das várias normas do Código Civil que reconheciam eficácia civil ao casamento católico manteve-se. IV. No plano internacional o texto emblemático da protecção dos direitos do homem, e que marcou a viragem decisiva para a respectiva internacionalização, é a Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas74 pouco depois do termo da II Guerra Mundial, e ainda no rescaldo dos inúmeros atropelos cometidos pelas ditaduras envolvidas nesse conflito. Nela se dispõe que a “partir da idade núbil, o homem e a mulher têm o direito de casar e de constituir família, sem restrição alguma de raça, nacionalidade ou religião”75, dizendo-se ainda que o “casamento não pode ser celebrado sem o livre e pleno consentimento dos futuros esposos”76. Mas o texto internacional ao qual o Estado Moçambicnao manifestaria a sua vinculação, através da respectiva ratificação, é o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos77, aprovado em 1966 e destinado, juntamente com o Pacto Internacional de Direitos Económicos, Sociais e Culturais, à pormenorização e vinculação contratual dos Estados da comunidade internacional. Nele se estabelece que o “direito de se casar e de fundar uma família é reconhecido ao homem e à mulher a partir da idade núbil”78, acrescentando-se que nenhum “casamento pode ser concluído sem o livre e pleno consentimento dos esposos”79. Estas duas disposições são antecedidas por um preceito genérico referente à família, no qual se declara que a “família é o elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito à protecção da sociedade e do Estado”80. 72 Art. 55º, nº 3, da Constituição de 1990. Trata-se da Lei nº 8/92, de 6 de Maio. 74 Texto aprovado em 10 de Dezembro de 1948. 75 Art. 16º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem. 76 Art. 16º, nº 2, da Declaração Universal dos Direitos do Homem. 77 Que foi ratificado pela Resolução nº 5/91, de 12 de Dezembro, da Assembleia da República. 78 Art. 23º, nº 2, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. 79 Art. 23º, nº 3, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. 80 Art. 23º, nº 1, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. 73 13. Posição defendida I. Perante a manutenção da legislação ordinária em matéria de casamento civil, a remontar ao período que marcou a evolução destas fontes entre 1975 e 1990, tem-se considerado que o sistema matrimonial actualmente em vigor na República de Moçambique se conserve, do mesmo modo, qualificável como correspondente ao modelo de irrelevância civil, em que o casamento católico e o casamento civil são regulados por ordenamentos jurídicos distintos, sem qualquer comunicação entre si. Esta é a posição que a doutrina juscivilista tem manifestado implicitamente, sendo também essa a opinião da jurisprudência, em que não se conhece qualquer evolução. A própria prática da celebração separada do casamento católico e do casamento civil pelos nubentes e pelas instituições religiosas e civis que assistem ao acto comprova a inalteração deste posicionamento. Assim se concluíria que, afinal, o período balizado pelo começo da vigência da nova Constituição Moçambicana nunca teria justificado a sua separação do período iniciado em 1975. As novas disposições constitucionais, em si mesma muito próximas das disposições constitucionais anteriores, não destoariam muito do mesmo espírito em que estava imbuída a Constituição Moçambicana de 1975. II. Por nós, não temos assim tanta certeza de que, de acordo com o novo texto constitucional, se tivesse pretendido conservar o regime matrimonial existente até então. É que, na formulação dos preceitos constitucionais agora existentes, há indicadores seguros de que se quis abandonar uma atitude de oposição, por parte do Estado ao acto de casamento católico. A referência mais desenvolvida ao instituto do casamento que se encontra no texto constitucional mostra um cristalino propósito de salientar o casamento como acto jurídico, de acordo com a liberdade que os nubentes têm para o praticar. Os preceitos normativos que podemos observar no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos apontam para a necessidade de haver, em matéria de casamento, o devido reconhecimento pelo Estado do casamento religioso celebrado entre os respectivos cidadãos. III. Essa diferente atitude que se verifica relativamente ao fenómeno religioso em Moçambique é também confirmada no plano mais amplo das relações entre Estado e Igreja, a atestar pela observação das fontes constitucionais e infraconstitucionais pertinentes. Do ponto de vista constitucional, embora se continue a proclamar que a “República de Moçambique é um Estado laico”81 e que a “acção das instituições religiosas conforma-se com as leis do Estado”82, inova substancialmente no ordenamento jusconstitucional ao já não falar-se na separação absoluta entre Estado e confissões religiosas, num sinal seguro de que já não se deseja manter o assento tónico numa visão laicista das relações entre o Estado e a Igreja. Não se esqueça, por outro lado, que à mera garantia da “liberdade de praticar ou de não praticar uma religião”83, se adita a ideia de que o “Estado valoriza as actividades das confissões religosas visando promover um clima de entendimento e tolerância social e o reforço da unidade nacional”84. Do ponto de vista infraconstitucional, o PIDCP adopta, do mesmo modo, posição largamente favorável a uma ampla liberdade religiosa85, através de um preceito em que se afirma que “Toda e qualquer pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de ter ou de adoptar uma religião ou uma convicção da sua escolha bem como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua convicção, individualmente ou conjuntamente com outros tanto em público como em privado, pelo culto, o cumprimento dos ritos, as práticas e o ensino”86. O sentido normativo que retiramos destes preceitos constitucionais e infraconstitucionais impele-nos a pensar que se abandonou a visão do Estado Moçambicano como um Estado laicista, em que o poder político quer abafar as diferentes manifestações religiosas, substituindo-a por uma concepção de Estado laico, com separação entre o Estado e a Igreja87, mas sem nunca tomar uma posição antireligiosa. A despeito do Estado não ter religião e de as actividades religiosas se apresentarem como apartadas das actividades do poder político, este não as hostiliza e até admite formas de colaboração. 14. Posição adoptada 81 Art. 9º, nº 1, da Constituição de 1990. Art. 9º, nº 2, da Constituição de 1990. 83 Art. 78º, nº 1, da Constituição de 1990, da redacção idêntica ao preceito congénere da Constituição de 82 1975. 84 Art. 9º, nº 3, da Constituição de 1990. Numa formulação muito próxima, aliás, da que se lê no art. 18º da Declaração Universal dos Direitos do Homem: “Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em provado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos”. 86 Art. 18º, nº 1, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. 87 Sobre as relações entre o poder político e o fenómeno religioso de acordo com o conceito de Estado laico, v. JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, IV, 2ª ed., Coimbra, 1993, p. 356. 85 I. Em face das alterações normativas que registámos, impõe-se tomar posição quanto ao sistema matrimonial que o actual Direito da Família Moçambicano consagra. Trata-se de saber, em primeiro lugar, qual o sistema adoptado no lugar do modelo da irrelevância civil, que parece ter sido abandonado, para que depois se esclareça qual a modalidade concreta em que o mesmo se concretiza. II. É nossa convicção que se pretendeu criar um sistema de relevância civil do casamento católico, que passa a ter, portanto, eficácia civil. Depõe nesse sentido, em primeira linha, a nova concepção das relações entre o Estado e as confissões religiosas, relativamente às quais o Estado se obriga a conferir, no plano jurídico, a devida valorização nas actividades que essas confissões religiosas desempenham. E um desses aspectos é, sem dúvida, o do casamento, acto que assume a máxima relevância enquanto união perpétua entre duas pessoas de sexo diferente e que condiciona o seu estatuto social. Pode mesmo ler-se na Constituição de 1990 que “as confissões religiosas gozam do direito de prosseguir livremente os seus fins religiosos, possuir e adquirir bens para a materialização dos seus objectivos”88. Depois, a associação, no plano constitucional, do casamento à prossecução dos objectivos da família, numa claríssima semelhança com o que acontece com o casamento católico, como pudemos observar aquando do estatuto da sua definição, mostra que a lei civil coincide com a estrutura do casamento católico, não lhe sendo, por isso, impossível conferir relevância jurídica. III. Mas como se sabe, a concretização do modelo da relevância civil do casamento católico efectiva-se pela implantação de três submodelos abstractamente idealizáveis e que já tivemos ocasião de descrever. Pergunta-se por que submodelo terá optado a Constituição Moçambicana. Recordando as objecções que dirigimos aos submodelos da relvância civil formal e exclusiva, é evidente que o reconhecimento da eficácia civil do casamento católico se deve fazer nos termos do submodelo da relevância civil plena. Aquele primeiro nunca satisfaria as reivindicações que o Direito Canónico formula no sentido da cabal aceitação do casamento católico como instituto regulado, nos seus traços essenciais, pelo direito religioso. O outro deparar-se-ia com um obstáculo inexpugnável da violação da liberdade religiosa. IV. A implantação deste sistema de relevância civil do casamento católico não se encontra, porém, acabada, porquanto apenas se possui o alicerce 88 Art. 78º, nº 2, da Constituição de 1990. constitucional, faltando o restante. A imposição constitucional é dirigida num certo sentido, mas importa que o legislador ordinário lhe dê execução, através das competentes normas jusfamiliares. Mas aqui verificamos um enorme desfasamento entre o sentido do texto constitucional e o texto legal do Código Civil: enquanto que o primeiro aponta no caminho da eficácia civil plena, o outro, fiel ao sistema anteriormente adoptado, corporiza as orientações inerentes à, pelo menos, irrelevância civil do casamento católico. Como superar então esta contradição entre a fonte constitucional e a fonte legal? Uma resposta mais superficial consideraria este problema como facilmente solúvel pela via da posição hierárquica relativa ocupada pelas normas constitucionais e legais no ordenamento jurídico. Funcionando o princípio da constitucionalidade89, as normas da Constituição prevaleceriam sempre sobre as normas ordinárias e portanto estas apenas tinham que se conformar com aquelas, quer fosse através de caducidade, por inconstitucionalidade superveniente, quer fosse através do necessário preenchimento de lacunas em zonas carecedoras de regulação legal. Outra possibilidade já mais complexa seria a de considerar que da mudança de orientação ao nível constitucional resultaria necessariamente a caducidade das normas familiares que não atribuíssem significado ao casamento católico e a revigência das normas por ela caducadas em 1975, através de um fenómeno de repristinação. Contudo, nenhuma delas nos convence e a nossa opinião defende a ideia de que a definição constitucional do modelo matrimonial pressupõe, como se pode ler no próprio preceito constitucional, a intervenção da lei, na medida em que o casamento como instituição é reconhecido e protegido “nos termos da lei”90. Temos, portanto, aqui uma omissão legislativa quanto à execução do sistema constitucionalmente perfilhado que só poderá ser colmatada pela actuação do legislador infraconstitucional no reconheciemnto da relevância civil do casamento católico. V. Por aqui se conclui que o Direito da Família Moçambicano, pelo menos na parte do casamento e concretamente na relevância civil do casamento católico, se encontra num crucial moemnto de viragem histórica, pontificada pela necessidade de uma reforma legislativa que adeque as fontes normativas infraconstitucionais existentes à plena realização dos imperativos constitucionais. 89 90 Cfr. art. 200º da Constituição de 1990. Art. 55º, nº 2, 2ª parte, da Constituição de 1990. O que é certo é que essa reforma tem tardado, o que só tem vindo a acentuar algumas disfunções na aplicação do Direito da Família. A incerteza e a insegurança das relações jurídicas em matéria familiar é muitíssimo grande, pois que ao lado de normas legais, relativamente às quais não se sabe ao certo a extensão da respectiva inconstitucionalidade, existe toda uma prática determinada superiormente do ponto de vista administrativo. Tem-se também corrido o risco de se conferir demasiado poder ao aparelho judiciário, a quem compete aplicar a lei, em certos casos criativamente, mas não tomar opções políticas de fundo, como por vezes acaba por suceder, em face da total ausência de orientações legislativas. Esse atraso tem-se justificado, em primeiro lugar, pelo tecnicismo que esta reforma exige, numa altura em que os estudos jurídicos ainda se encontram numa fase de lançamento, e após um longo período de reorganização das estruturas jurídicas nacionais motivada pela independência política. Tem-se falado igualmente na diversidade sociológica que se vive no país em matéria de casamento, não apenas no plano do casamento tradicional como também no plano do casamento religioso, com a existência de numerosas confissões religiosas, protelando qualquer esforço legislativo que possibilite a elaboração de uma lei com pretensão de efectividade social em todas as regiões moçambicanas. Mas estes obstáculos que se têm colocado à actividade reformista do Direito da Família Moçambicano não são, de modo algum, inultrapassáveis. Quanto ao tecnicismo que acompanharia essa reforma, nunca se pode ter a pretensão de fazer reformas perfeitas à primeira, mas apenas atingir um nível mínimo de qualidade, para que depois a sua execução vá dando sinais sobre o que deve ser corrigido. No que tange à diversidade sociológica, em parte o caminho está aberto pelo facto de a instituição do casamento, nos seus traços essenciais, ser definida em termos constitucionais, definição que permite avançar numa concepção de casamento marcada pelos valores da liberdade do consentimento – com o qual se inconstitucionalizam os casamentos forçados e herdados – e pela sua ligação à família, com as componentes da patenidade, da maternidade e da prole, bem como o igual estatuto da mulher face ao esposo – com os quais se inconstitucionalizam os casamentos que recusam a ideia de família, que alinham na poligamia ou poliandria ou que marginalizam a mulher para um papel secundário. É, na verdade, agora o momento de se avnçar com essa tão ambicionada reforma. V CONCLUSÕES 15. Quanto à parte II a) sendo o casamento um acto que simultaneamente interessa ao Estado e à Igreja Católica, surgem dois ordenamentos jurídicos com regimes específicos nesta matéria, o que leva à necessidade de se gizar um quadro com os vários modelos possíveis, devendo a classificação que distingue entre os sistemas do casamanto civil obrigatório, facultativo e subsidiário ser substituída pela classificação que separa os modelos da proscrição civil, da irrelevância civil e da relevância civil do casamento católico, que é baseada nas três relações – de conflito, de indiferença e de reconhecimento – que podem estabelecer-se entre ordenamentos jurídicos diferenciados; b) o modelo da proscrição civil consubstancia-se na proibição da realização do casamento católico como acto religioso ou do reconhecimento do respectivo estatuto, aliando-se normalmente a Estados totalitários de matriz soviética, Estados islâmicos ou Estados laicistas; c) o modelo da irrelevância civil implica que o casamento católico, de realização livre, não tenha quaisquer efeitos civis, numa separação absoluta entre o Direito Civil e o Direito Canónico; d) o modelo da relevância civil, que traduz a eficácia no Direito Civil do casamento católico com o respectivo título religioso, pode desdobrar-se nos submodelos da relevância formal – em que apenas se aceita o acto e não outros aspectos de regime – da relevância plena – pelo qual se reconhece a globalidade do instituto – e da relevância exlusiva – no qual o Direito Civil se subordina aos ditames do casamento católico quanto ao universo das pessaos que lhe estão submetidas. 16. Quanto à parte III a) a evolução histórica da relevância civil do casamento católico em Moçambique é susceptível de repartir-se por uma pré-história, que b) c) d) e) abrange os três primeiros períodos, de 1867 a 1910, de 1910 a 1940 e de 1940 a 1975, e uma história propriamente dita, de 1975 a 1990; o primeiro período define-se pela vigência da versão inicial do Código Civil de 1867, que nas suas várias disposições, embora aparentemente se tivesse orientado por um sistema próximo do da relevância civil exclusiva, na realidade consagrou um sistema de relevância civil plena, na modalidade mitigada; o segundo período é balizado pela elaboração da legislação republicana revolucionária de 1910 e pelo Código do Registo Civil de 1911, que introduziram um sistema da proscrição civil do casamento católico, pela obrigatoriedade da celebração prévia do casamento civil, apesar da doutrina considerar estar-se perante um sistema correspondente ao modelo da irrelevância civil; o terceiro período é marcado pela feitura da Concordata entre Portugal e a Santa Sé, de 1940, e mais tarde, pelo novo Código Civil de 1966, que adoptaram, de novo, o sistema da relevância civil plena do casamento católico, na modalidade mitigada; o quarto período, caracterizado já pela primeira Constituição Moçambicana e pelas alterações que se lhe seguiram no Código Civil e no Código de Registo Civil, fontes que introduziram, novamente, o sistema da proscrição civil do casamento católico. 17. Quanto à parte IV a) o Direito da Família Moçambicano que actualmente vigora, fundado numa pluralidade de fontes normativas, constitucionais, legais e internacionais, apresenta algumas alterações importantes em comparação com o período precedente, sobretudo no plano constitucional, ao reconhecer-se mais amplamente a instituição matrimonial, e no plano internacional, com a vigência em Moçambique do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, que contém alusões expressas à necessidade da protecção do casamento; b) a posição que tem sido implicitamente defendida pelos vários intervenientes em matéria de relevância civil do casamento católico indicia a manutenção da qualificação conferida ao sistema anterior, mas do nosso ponto de vista aspectos há que exigem essa sua revisão, a começar logo com a atitude laica mas não laicista do Estado relativamente às confissões religiosas; c) essa nova postura do Estado, aliada à ampla e efectiva liberdade religiosa defendida, aponta para a adopção de um sistema correspondente ao modelo de relevância civil do casamento católico, na modalidade da relevância plena, embora seja necessária ainda uma intervenção do legislador infraconstitucional, ao nível do Direito Familiar, para executar essas imposições constitucionais.