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Critical Theory and Social Justice

Teoria Crítica e Justiça Social Teoria Crítica e Justiça Social NEFIPO Núcleo de Ética e Filosofia Política Coordenador: Prof. Dr. Denilson Luís Werle Vice-coordenador: Prof. Dr. Darlei Dall’ Agnol Campus Universitário – Trindade – Florianópolis Caixa Postal 476 Departamento de Filosofia – UFSC CEP: 88040-900 http://www.nefipo.ufsc.br/ Projeto gráfico: Daniel Schiochett Capa: Leon Farhi Neto Foto: Alessandro Pinzani Diagramação: Daniel Schiochett Apoio: Licença de uso Creative Commons: (http://creativecommons.org/licenses/by-nc/3.0/deed.pt) SUMÁRIO Prefácio ............................................................................................ 7 Em defesa da sociedade redistributiva Stefan Gosepath.................................................................................. 9 Liberalismo, Justiça Social e Responsabilidade Individual Álvaro de Vita ................................................................................ 29 A questão dos sentimentos morais nas filosofias políticas de inspiração kantiana: O caso de Rawls Andre J. L. A. Berten ..................................................................... 75 John Rawls and the Idea of a Liberal Perfectionism Christoph Horn .............................................................................. 103 Restrições Culturais Universais aos Direitos Humanos Jean-Christophe Merle ................................................................... 119 Justiça social e carências Alessandro Pinzani ........................................................................ 133 Capabilities and primary goods: the metric and the scope of social justice Gustavo Pereira .............................................................................. 161 Body, Beauty and Justice Maria Borges .................................................................................. 171 The Normative Claims of a Latin American Democratic Ethos: Bourdieu's Habitus, Critical Theory, and Social Philosophyc Nythamar de Oliveira ..................................................................... 187 PREFÁCIO Os ensaios que se apresentam aqui são norteados por dois vieses teóricos, a saber, a filosofia política rawlsiana e a teoria crítica (em particular na versão de Axel Honneth e de outros teóricos como Nancy Fraser). Estes dois vieses acabaram dominando o debate filosófico sobre justiça em nossos dias. Como se sabe, Rawls propõe em sua obra Uma teoria da justiça um modelo de organização social e política liberal centrado na noção de justiça distributiva. Por outro lado, muitos pensadores que se reconhecem na tradição da Teoria Crítica defendem que a questão central da justiça não é a da distribuição econômica, mas sim a do reconhecimento. Às vezes, este viés é considerado como oposto polemicamente à tradição liberal da qual Rawls faz parte. É nossa convicção que faça mister estabelecer um diálogo entre os representantes destas duas vertentes a fim de determinar as diferenças e as proximidades. Os trabalhos aqui reunidos representam justamente um início de diálogo entre tradições aparentemente tão distantes, na busca de um terreno comum entre elas. Não se trata de meros comentários aos textos de Rawls, Honneth etc., mas de tentativas de discutir problemas teóricos relevantes para uma teoria da justiça, seja qual for seu enfoque. Os temas vão da fundamentação dos direitos humanos (Merle) às carências básicas (Pinzani), das questões de justiça ligadas ao corpo (Borges) aos sentimentos morais (Berten), da questão da responsabilidade individual nas teorias liberais (Vita) ao uso de capability approach na definição dos bens primários (Pereira), da discussão da ideia de perfeccionismo liberal (Horn) à defe- 8|C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e sa do enfoque das teorias distributivas da justiça (Gosepath) e à análise de um possível ethos democrático latino-americano (Oliveira). Os organizadores do presente livro, por fim, agradecem a Capes pelo apoio na realização de um evento que reuniu os autores dos ensaios aqui reunidos, permitindo que fossem discutidos antes de sua publicação. Boa leitura! Os organizadores Página |9 EM DEFESA DA SOCIEDADE REDISTRIBUTIVA Stefan Gosepath 1 Desde a antiguidade a justiça é um dos princípios fundamentais que se deseja em uma organização social, assim como um, se não o conceito normativo central da política. Embora seja atribuído um sentido geral unitário e a-histórico ao conceito de justiça, desde sempre há divergências sobre concepções específicas desta. Apesar das inúmeras disputas presentes no debate sobre justiça, aqui referir-me-ei apenas a uma atual, relativa ao estatuto da justiça distributiva. Os defensores do chamado paradigma distributivo entendem que uma distribuição justa representa o aspecto fundamental da justiça. Os opositores 2 , pelo contrário, consideram ser uma ‘imagem’ incorreta da justiça, na qual é fácil ficar preso e da qual é difícil ou até impossível conseguir libertar-se. Ao invés disso, defendem uma concepção de justiça que se preocupa primariamente com o status social das pessoas e considera como ponto de partida 1 2 A versão alemã (original) está disponível em: Regina Kreide, Claudia Landwehr, Katrin Toens (Hg.), Demokratie und Gerechtigkeit in Verteilungskonflikten, Baden-Baden: Nomos 2011. Entre eles se encontram diversos pensadores como Iris Young, Jürgen Habermas, Axel Honneth, Rainer Forst, Samuel Scheffler, Elisabeth Anderson etc. 10 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e da justiça uma relação de reconhecimento recíproco entre iguais, assim como uma relação de poder que lhe seja adequada. A justiça distributiva seria um, mas somente um aspecto, não fundamental, da justiça. A visão centrada na distribuição de bens e orientada pelos beneficiários da distribuição não pode ser absolutizada (ver a crítica de Rainer Forst em FORST 2009 e 2011), já que deixaria de lado aspectos essenciais da justiça. A visão fixada nos bens negligenciaria o sentido político da justiça. Neste debate sobre o estatuto da justiça distributiva há, contudo, consenso entre as partes ao menos sobre um ponto, e vale a pena, em minha opinião, lembrar-se disso. O sentido geral do conceito de justiça é entendido, em geral, da seguinte maneira: uma ação é justa se atribui a cada um o que é seu. A partir de Ulpiano, isso é resumido na fórmula suum cuique (ver Platão na República 433a), portanto, a justiça se refere por definição ao que é adequado ou ao que cabe a alguém. Em primeiro lugar, este conceito amplo coloca a justiça em uma relação estrita com o direito e com a convenção (relativa à aplicação dos standards de justiça) e, sucessivamente, no próximo nível de reflexão, com a moral (com o juízo imparcial dos standards de justiça; cf. Tugendhat 1997). A justiça se refere, então, in primis à totalidade das reivindicações e obrigações mútuas, isto é, dos direitos e deveres morais que os seres humanos se atribuem reciprocamente do ponto de vista da imparcialidade. Apesar de todas as diferenças, todas as teorias modernas da justiça salientam que todas as pessoas devem ser consideradas livres e iguais a partir deste ponto de vista moral. Disso deriva também o princípio procedimental da justificação (que todas elas compartilham): tanto a justicação, quanto a determinação do conteúdo da justiça resultam de uma ideia geral, a saber, da ideia de que os princípios de justiça são expressão da vontade, comum a todas as cidadãs e a todos os cidadãos, de atribuir-se reciprocamente o status de pessoas autônomas e iguais. 3 3 Cf. Honneth (2009: 4 s.), que, contudo, define a componente material do consenso de maneira diferente de mim, já que não considera como S t e f a n G o s e p a t h | 11 Portanto, se a) o conceito de justiça como suum cuique, b) o status moral igual de todos e c) o princípio fundador não são objeto de disputa, então o debate sobre o paradigma distributivo concerne, propriamente, a correta determinação dos componentes materiais da justiça, ou seja, o critério com base no qual se pode julgar a justiça ou a injustiça de determinada situação. Se, como exposto acima, entendemos a justiça como a totalidade das reivindicações e das obligações mútuas, isto é, dos direitos e deveres morais, que os seres humanos possuem do ponto de vista da imparcialidade, então, parece óbvio – ao menos aos olhos dos defensores do paradigma distributivo – assumir uma concepção fundamental da justiça em termos de justiça distributiva. Pois, conforme esta determinação do conceito de justiça, cada concepção da mesma deve oferecer uma resposta fundamentada à seguinte questão: quem é devedor de que a quem, em que circunstâncias, em que maneira, por quê, a partir de que perspectiva, com base em qual princípio e com que aplicação concreta? As diversas concepções de justiça distributiva derivam do fato de estas variáveis, contidas no conceito geral de justiça, serem interpretadas de maneira diferente, resultando em concepções de justiça específicas. Então, o conceito de justiça coloca o problema para o qual as diferentes concepções de justiça oferecem suas soluções (cf. Korsgaard 1996: 114). Conforme o paradigma distributivo, a tarefa material da justiça consiste em realizar certa distribuição daqueles bens que garantem a todos os membros da sociedade o status de livres e iguais e lhes permitem perseguir seus projetos, escolhidos autonomamente, na medida em que são compatíveis com a igual liberdade de cada um. Objeto da justiça como distribuição, assim concebida, são recursos enquanto bens para qualquer fim. “Recursos” (ou “bens”) é o termo geral que compreende bens materiais (como dinheiro, trabalho, propriedade), bens sociais (como chances, privilégios, prestígio) e bens políticos (como direitos, autoridade e libercentral o status entre pessoas autonomas iguais, mas as iguais liberdades subjetivas de ação. 12 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e dade[s]). A expressão é intencionalmente ampla, para compreender tudo o que uma sociedade considera valioso e como sendo objeto potencial de uma distribuição justa. Uma teoria da justiça distributiva não se ocupa somente da distribuição de bens que as pessoas desejam direta ou indiretamente, mas também da distribuição de ônus, ou seja, de todas as desvantagens que as pessoas querem evitar, mas que devem tomar sobre si. Sem querer reduzir as diferentes formas de justiça a uma única, os defensores do paradigma distributivo veem a distribuição justa dos recursos como sendo primária, no sentido de fundamental para todos os outros tipos de justiça. Isso desperta, frequentemente, a falsa impressão de que justiça seja identificada com “justiça distributiva”. Ao paradigma distributivo se oferecem várias objeções críticas, que tentarei, em seguida, refutar. Destarte, explicarei melhor o papel da justiça distributiva. Em particular, vários comentadores apontam para os seguintes problemas, com os quais se depara o paradigma distributivo: (i) A ampliação do paradigma distributivo leva a uma reificação das relações sociais e das regras institucionais. Objeto da justiça não são, na realidade, bens a serem distribuídos. 4 (ii) O paradigma distributivo deveria conceber todas as questões de justiça na forma de modelos distributivos, em vez de levar a sério os processos sociais que lhes subjacem. (iii) O paradigma distributivo não vê, portanto, a questão de como surgem “no mundo” os bens a serem distribuídos, ou seja, não vê as questões ligadas à produção e à sua organização justa, assim como a questão política de quem (e em que maneira) decide sobre estruturas produtivas e distributivas, ou seja, a questão do poder. Neste contexto, posso replicar somente de maneira breve a estas várias críticas, ocupando-me dos três pontos críticos mencionados, a saber, (1) da concepção de bens, (2) da concepção das relações sociais e (3) do estatuto da justiça política. 4 Esta é, sobretudo, a crítica de Iris Young (1990: Cap. 1) ao paradigma distributivo. Cf. A contraposição de justiça (distributiva) e reconhecimento em Fraser (2001: 23–106) e em Fraser/Honneth (2003). S t e f a n G o s e p a t h | 13 1. Bens A justiça distributiva – esta é a objeção que se ouve frequentemente – tende a concentrar a justiça social na alocação de bens materiais como recursos, renda e riqueza, ou à distribuição de posições sociais, em particular do trabalho. A justiça distributiva – assim a objeção – se ocuparia exclusivamente de bens, enquanto direitos (dos cidadãos) e chances não são bens que possam ser distribuídos. 5 Os direitos regulamentam antes as relações entre agentes; indicam o que os seres humanos podem ou não podem fazer em suas relações com outros. Este argumento deveria solapar a ideia de que a questão da sociedade justa deveria ser entendida como uma questão da justa distribuição de bens (fundamentais) como liberdade, direitos, poder, chances e renda. 6 Esta argumentação não exclui, contudo, uma concepção distributiva dos direitos. Os bens, enquanto condições do agir humano, podem ser divididos em duas classes: condições estruturais e recursos individuais (cf. Kersting 2000: 31). A primeira compreende os pré-requisitos institucionais das biografias individuais, as condições gerais constitucionais dos planos de vida individuais, bem como os direitos jurídicos (sobretudo aqueles relativos à integridade física e à segurança e as liberdades), a constituição política e o sistema econômico. 5 6 Assim, por ex., Habermas (1997: 169–195; 1992: 505 s.). Iris Young, in Justice and the Politics of Difference, tenta mostrar isso com base em três exemplos: (a) Os direitos, em particular os que não se referem a bens, não são bens que possam ser distribuídos ou possuídos – por ex. a liberdadade de expressão (Young 1990: 25); (b) chances (por ex. chances de formação e educação) são condições que possibilitam ações e não coisas que se possuem; não faz sentido falar em “propriedade de chances” (ibid.); (c) o respeito de si (self-respect) não é uma entidade ou um agregado mensurável que possa ser separado das pessoas. Uma teoria da justiça de Rawls (1975) serviu por muito tempo no debate contemporâneo como o modelo preeminente deste enfoque nos bens. Em tempos mais recentes, contudo, alguns autores como Anderson (1999) e Scheffler (2003) tentaram mostrar que a teoria de Rawls (sobretudo nas suas obras mais tardias) pode ser lida do ponto de vista de uma teoria distributiva bem como daquele de uma teoria relacional. 14 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e Trata-se de condições de fundo que devem ser garantidas pelo Estado e que permitem assegurar de maneira permanente uma distribuição equitativa de recursos individuais. A segunda, por sua vez, compreende recursos naturais internos como os talentos, as predisposições, as capacidades, a saúde, e recursos materiais sociais e externos como alimentos, vestuário, moradia e as condições materiais da capacidade de agir e da autonomia. Esta distinção suscita, às vezes, a dúvida sobre a possibilidade de as condições estruturais, embora sendo o resultado da ação humana, poderem ser consideradas como um objeto adequado da justiça distributiva. As liberdades e os direitos – afirma a objeção que estamos discutindo – não são bens distributivos. A isso respondo que a ideia de direitos iguais, inclusive de direitos iguais a iguais liberdades – ideia que é central na modernidade – pode ser interpretada somente como sendo baseada sobre certa distribuição igual de bens. Os críticos opõem a esta afirmação dois argumentos que, contudo, não me parecem persuasivos. Em primeiro lugar, se afirma que os direitos fundamentais não podem ser entendidos como bens fundamentais, mas devem ser vistos como direitos fundamentais, que constituem a autonomia das cidadãs e dos cidadãos. 7 Os direitos não deveriam ser colocados no mesmo plano de bens a serem distribuídos. Em segundo lugar, para os críticos, os direitos regulamentam as relações entre atores. Especificam o que é lícito aos seres humanos fazer nas suas relações recíprocas, e não podem, portanto, ser possuídos ou distribuídos como bens. Este argumento deveria excluir a alternativa, que no meu entendimento é óbvia e é aqui defendida, de considerar a questão da sociedade justa como a questão de uma justa distribuição de bens fundamentais como liberdades, direitos, poder e renda. 8 Ambos os argumentos podem ser defendidos, mas nenhum deles exclui de fato uma visão distributiva de direitos iguais. 7 8 Cf. Habermas (1997: 175; cf. também 1992: 505 e ss.). Habermas se refere aqui a Young (1990: 25). Esta posição é defendida também por Hart (1973: cap. VIII.1). S t e f a n G o s e p a t h | 15 Afinal, também no paradigma distributivo, um elemento fundamental do ponto de vista filosófico-moral ou de uma teoria da justiça é o respeito pelos outros enquanto pessoas iguais e autônomas, perante as quais somos devedores de uma justificação por tudo o que os concerne. Portanto, o fato de apontar para a circunstância de que direitos, liberdade, chances etc. devem ser fundamentados recorrendo ao status de pessoa não representa uma objeção contra o paradigma distributivo. Mais específica e mais questionada é a ideia defendida pelos teóricos distributivos de que tipo e alcance dos direitos, liberdade, chances etc. a serem garantidos deveriam ser determinados com base no modelo de distribuição de bens. Em relação ao primeiro argumento, se pode objetar que direitos, liberdades, chances, autorrespeito e dignidade humana são bens em sentido amplo, que consideramos valiosos e que deveríamos possuir. O status de bem não depende meramente de preferências subjetivas contingentes, mas também essencialmente do status argumentativamente fundamental de pessoa igual e autônoma. Direitos, liberdades, chances etc. representam, naturalmente, uma espécie particular de bens e diferem daqueles que podem ser consumidos. Direitos, liberdades e chances, contudo, não são dados simplesmente como bens naturais, mas são criados somente através da organização da convivência social, e são criados na medida em que a distribuição de outros bens (no que diz respeito aos direitos tais bens são, sobretudo, liberdades, chances de acesso a posições sociais e possibilidades de ascensão social) é regulada socialmente. Mas se a distribuição destes bens é regulamentada intencionalmente a partir do ponto de vista da justiça e não é abandonada a processos sociais aparentemente naturais, então o ponto de vista norteador em termos de teoria da justiça consiste na justa distribuição de direitos e chances. Possuímos direitos e chances não no sentido exato em que possuímos bens materiais em termos de propriedade, mas a propriedade ou a posse pode ser entendida (também) como um conjunto de direitos morais. Neste sentido, há uma regula- 16 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e mentação de reivindicações morais no que diz respeito a bens materiais bem como a direitos e chances, isto é, de reivindicações sobre quais bens, direitos e chances nos podem ser atribuídos legitimamente e sobre como nos é lícito usá-los. A questão: “a quem devem ser atribuídos quais direitos e deveres?” é colocada e respondida da mesma maneira que a questão da distribuição de bens. Os princípios da justiça distributiva, que determinam a quem deve ser atribuído o que, em que circunstância e com base em qual princípio, determinam as reivindicações que cidadãs e cidadãos devem reconhecer-se reciprocamente do ponto de vista moral. Destarte, eles fundam direitos morais e os deveres correspondentes. Os direitos positivos são, então, uma forma específica, a saber, legal ou jurídica, de reivindicações que as pessoas se reconhecem reciprocamente. Oferecer uma justificativa para (certos) direitos não é outra coisa se não justificar intersubjetivamente uma distribuição de certos (tipos de) bens como algo que devemos atribuir-nos reciprocamente ao nos reconhecermos como iguais. Sobre o segundo argumento pode ser afirmado o seguinte: justamente o princípio da justiça distributiva, que especifica quais bens devem ser distribuídos com base em quais critérios, determina também as reivindicações que os seres humanos devem reconhecer-se reciprocamente no processo de justificação. Os direitos são uma formulação especificamente moral e/ou jurídica das reivindicações que as pessoas se reconhecem mutuamente. Oferecer uma justificativa para direitos iguais significa justificar intersubjetivamente a distribuição de um determinado bem que os seres humanos devem atribuir-se reciprocamente para tratar-se mutuamente como iguais. Contudo, os próprios direitos não são um bem que possa ser distribuído, já que eles são as regras (protegidas por sanções) que garantem a distribuicao de bens. 9 No caso da distribuição originária, direitos fundados com base nas regras 9 A existência de uma diferença entre recursos e direitos ou liberdades é defendida também por Dworkin (1987: 1–54) e Ladwig (2000: cap. 4.3). S t e f a n G o s e p a t h | 17 estabelecidas são atribuídos às cidadãs e aos cidadãos. 10 Portanto, não é um erro categorial conceber a especificação destes direitos como distribuição. Os direitos, enquanto direitos de dispor de bens, resultam da distruibuição de bens e se referem a bens, já que determinam a reivindicação legítima relativamente a estes. Portanto, tipo e alcance dos direitos e dos deveres são determinados através da justa distribuição de bens. Na medida em que os bens são distribuídos, as pessoas recebem também os direitos morais correspondentes. E na medida em que a ordem, que é assim legitimada moralmente, é institucionalizada, também são atribuídos às pessoas direitos legais caracterizados pela possibilidade de serem implementados. Portanto, os direitos são bens de segunda ordem. Sua produção e distribuição são determinadas pela distribuição de bens (e ônus). Não podem ser distribuídos diretamente; contudo, na medida em que os bens de primeira ordem são distribuídos de maneira justa, também os direitos morais, enquando bens de segunda orden, são atribuídos – e o mesmo vale para os deveres que derivam da distribuição do ônus. 2. Relações sociais O paradigma distributivo defende, então, com razão a ideia de que a justiça distributiva não é limitada aos bens materiais, mas concerne também bens não materiais como poder, chances e respeito de si. Contudo, aos olhos dos críticos, isso leva a outro problema, bem mais grave (cf. Young 1990: 24 e ss.): se a justiça distributiva é extendida metaforicamente a coisas não materiais, estas seriam tratadas como coisas quase estáticas e não como funções de relações e processos sociais. Isso teria como consequência que estruturas sociais e contextos institucionais, que frequentemente determinam o modelo 10 Alguns destes direitos relativos a bens podem ser transferidos. Outros, como os direitos relativos a liberdades básicas, são considerados como sendo tão fundamentais para a autonomia da pessoa, que não é possível transferi-los e nem renunciar-lhes. 18 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e da distribuição, seriam negligenciados, já que não é fácil conciliá-los com o paradigma distributivo, pois os bens a serem distribuídos (por ex. justiça cultural e simbólica, regras sociais, procedimentos, influências, classes, condições de produção e instituições como Estado, família e sociedade civil) não são bens materiais. Os contextos institucionais, nos quais acontece a distribuição, acabariam sendo ignorados, embora contribuam para determinar os padrões da distribuição mesma. Destarte a questão propriamente política de quem e de que maneira decide sobre estruturas da produção e da distribuição – isto é, a questão do poder – não seria formulada de maneira adequada ou seria até ignorada completamente (cf. Forst 2011 e 2009: 207). A lógica da distribuição se serviria de uma representação errada destas dimensões, já que possuiria uma concepção errada dos correspondentes problemas de justiça. Reificaria aspectos da vida social que deveriam ser entendidos antes como funções de regras e relações sociais. Além disso, a justiça social seria conceitualizada principalmente como estrutura de um estado final e não seria aplicada a processos sociais. 11 Assim, os sujeitos seriam concebidos como beneficiários passivos (cf. Forst 2011; 2009: 207). Esta crítica pode afetar somente aquelas teorias da sociedade e da justica que, de fato, consideram somente os resultados da distribuição. Contudo, isso é inaceitável por razões morais, já que no caso de ações individuais não pode ser julgado moralmente tão somente o resultado em si, mas é necessário também levar em conta a maneira em que se chegou a ele. Tal maneira e sua qualidade moral influenciam o juízo moral sobre o resultado. 12 O que vale para ações individuais vale mutatis mutandis também para distribuições sociais. Um juízo acerca da justiça deve considerar também o contexto das instituições sociais e certas condições sociais. Para muitos problemas de justiça não são relevantes padrões ou estados 11 12 Uma crítica análoga se encontra em Nozick (1976: cap. 7). Esta crítica às teorias da justiça orientadas exclusivamente pelo resultado é avançada particularmente por Pogge (cf. por ex. Pogge 2002: cap. 1.4). S t e f a n G o s e p a t h | 19 finais de uma distribuição num determinado momento, mas a (re)produção de um padrão distributivo habitual e permamente. Este importante ponto de vista sobre as causas das situações e da sua injustiça estrutural pode e deve ser levado em conta por uma teoria distributiva da justiça. O paradigma distributivo, portanto, não pode esquecer a questão do poder, embora isso tenha acontecido frequentemente. 13 Deve – e pode – pensar a justiça também de outro ponto de vista que o dos ‘beneficiários’, colocando de maneira radical a questão política da determinação das estruturas de produção e distribuição dos bens e exigindo uma reestruturação, em vez de uma mera redistribuição. Contudo, o paradigma distributivo entenderá tal reestruturação em termos de uma redistribuição de bens como direitos, liberdades e chances. Isso nos leva ao terceiro ponto. 3. Justiça política Ora, com certeza não é suficiente incluir no juízo de um estado o contexto social no qual ele surgiu. Antes, é essencial questionar a justiça dos processos sociais, como salientam não somente os críticos, mas como consideram também os próprios defensores do paradigma distributivo na tradição do contrato social (in primis Rawls). Esta perspectiva se baseia sobre um entendimento geral do que significa ser membro de uma sociedade, no qual esta pertença é vista como um pacote de direitos e deveres, de vantagens e desvantagens, que cidadãs e cidadãos se atribuem reciprocamente com base num livre consenso (cf. Rawls 1975, assim como a nota 5). O pressuposto neste caso é o respeito recíproco como livres e iguais que cidadãs e cidadãos se devem reciprocamente e que estão dispostos a reconhecer-se. Este pressuposto representa, por sua vez, um caso do paradigma distributivo, embora se trate de um caso limítrofe. A criação de uma sociedade justa por parte de indivíduos livres e 13 Esta acusação é feita, entre outros, por Forst (2011; 2009: 217). 20 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e iguais é uma questão de justiça distributiva. Partindo de uma reflexão normativa sobre a maneira de organizar a estrutura básica da sociedade, cidadãs e cidadãos definem e distribuem entre si direitos e deveres. Com isso, não se quer dizer que direitos e deveres enquanto bens a serem distribuídos se encontram presentes de antemão; antes os direitos e deveres que regulamentam a autonomia das pessoas são criados no próprio processo da sua distribuição. Por isso, os direitos podem ser entendidos nos moldes do paradigma distributivo. Para tanto, a questão da justiça é colocada a partir de uma situação de ‘distribuição originária’ em uma ‘situação originária’. Com isso se entende uma situação hipotética e pré-estatal, na qual não há ainda direitos e deveres políticos definidos, embora haja princípios morais. Ora, a questão é: nesta situação (que diferentes teorias concebem de maneira diversa), como se pode criar junto com outros uma sociedade de maneira tal que sua estrutura seja regulamentada de forma justa? O que está em questão é a justa distribuição originária de direitos e deveres, quando estes ainda não foram estabelecidos. Em primeiro lugar, se deve esclarecer quais reivindicações podem valer como legítimas, para em seguinda especificá-las através da correspondente distribuição de bens e de ônus. Ao mesmo tempo, devem ser indicadas regras de convivência e instituições sociais admissíveis ou até necessárias. Ao introduzir regras de convivência e instituições sociais, no foco da teoria da justiça entra algo mais do que a mera distribuição de bens. Nisso a teoria da justiça mantém, contudo, seu caráter distributivo, na medida em que concebe as regras de convivência e as instituições sociais de tal maneira que sua justiça resulte da justa distribuição de bens e ônus e das correspondentes liberdades, reivindicações, deveres e chances. Cada resultado é legítimo na medida em que surge no contexto desta distribuição social e de suas regras. Este modelo da distribuição originária e da criação de uma sociedade é relevante hoje porque cada vantagem ou desvantagem numa sociedade deve ser justificável perante todos. Cada pessoa deve poder reclamar para si todas as vantagens, em particular todos S t e f a n G o s e p a t h | 21 os bens que possui, como sendo justos. A justiça nos põe uma obrigação a justificar todas as situações que, em princípio, poderiam ser modificadas, isto é, a justiça ou injustiça destas situações deve ser constatada por meio do princípio de justificação e, caso seja necessário, imediatamente modificada. O que está em questão é, portanto, a legitimidade dos estados de coisas sociais. Tal questão não pode ser respondida através de uma reconstrução de razões meramente históricas; os estados de coisa atuais devem, antes, poder ser descritos persuasivamente como o resultado de uma distribuição inicialmente justa e de regras sociais equitativas. Portanto, cada proposta de alternativa ao construtivismo hipotético-procedimental que tente realizar uma reconstrução normativa está destinada ao fracasso. Uma teoria da justiça reconstrutiva deste tipo é defendida, por exemplo, por Axel Honneth como resultado da sua crítica aos procedimentos de justificação hipotéticos e imparciais. Honneth critica que os teóricos da justiça não podem assumir um papel decisivo e discutir sobre a justa organização de domínio ou de distribuição dos bens como se estivessem sentados a mesa de elaboração de projetos. Relações intersubjetivas e de reconhecimento representam antes relações de poder historicamente determinadas e ativas de antemão também sem que estejamos conscientes delas; a reivindicação de libertar-se delas para, ao mesmo tempo, incluí-las em nossas considerações é uma ilusão vazia e vã como a intenção de querer formá-las a nosso bel prazer ou de distribuí-las (Honneth 2009: 11 s.). Por isso, a teoria do reconhecimento de Honneth não acredita na possibilidade de construir um ponto de vista imparcial, a partir do qual fundamentar os princípios de justiça; antes, os reconstrói a partir do processo histórico das relações de reconhecimento, no qual eles são ativos de antemão enquanto normas de estima e consideração recíprocas. A uma teoria da justiça ‘reconstrutiva’ deste tipo, contudo, deve faltar qualquer critério independente para julgar os standards normativos imanentes a uma práxis historicamente contingente. Para chegar a tal critério, não existe outro caminho que uma teoria da justiça que 22 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e opere com suposições hipotéticas, ainda que abstração, idealização e suposição hipotética possam ser consideradas (compreensivelmente) insatisfatórias por uma teoria da justiça que se vê como uma teoria política crítica. Além disso, tal modelo de contrato social, baseado sobre o paradigma distributivo, pode integrar dois pontos de vista essenciais para um modelo normativamente adequado: por um lado, o da participação democrática em deliberações e decisões públicas e, por outro, o do poder social e político. Ambos estes pontos de vista – assim como os críticos (cf. Young 1990: 30-33) – seriam negligenciados ou concebidos de maneira errada pelos modelos distributivos. Os teóricos da justiça distributiva poderiam responder admitindo que, de fato, os bens a serem distribuídos não são somente, ou não são principlamente, bens materiais, mas também bens imateriais como liberdades, direitos, chances, poder social e participação nas decisões. Contudo, o paradigma distributivo pode incluir este aspecto, levando em conta também a distribuição destes bens (ou categorias de bens).14 Tais bens imateriais podem ser concebidos segundo a lógica da distribuição e, não obstante, ser considerados de maneira adequada ao seu significado e ao seu caráter processual nas sociedades reais. O poder é menos algo que se possui ou um atributo de indivíduos e deve ser visto, antes, como uma relação entre pessoas. Uma pessoa possui poder social somente porque outros lhe atribuem tal poder. Neste sentido, o que é decisivo é a relação destas pessoas entre si. Para poder julgar o poder, então, devem ser julgadas as relações estruturais entre pessoas. Isso pode acontecer somente a partir do pano de fundo de certa compreensão de regras de convivência e de instituições sociais justas. Ora, teorias distributivas da justiça desenvolveram regras deste tipo, como vimos. Algo análogo vale para o segundo ponto de vista, relativo ao modo em que deveria ser concebida a autodeterminação democrática do povo. Grosso modo, a resposta é: ela deve 14 Ver o modelo distributivo em Gosepath (2004: cap. IV e V). S t e f a n G o s e p a t h | 23 desenvolver-se com base em regras justas do poder legítimo ou do exercício legítimo do domínio para instituições sociais – neste caso para o governo. Poder e domínio possuem uma base estrutural e são o resultado das consequências (intencionais e não intencionais) das ações de muitos indivíduos. Uma teoria pura da distribuição de bens materiais estaria destinada ao fracasso, neste caso. A resposta à questão do poder legítimo se orienta, mais uma vez, por distribuições e por regras para a convivência social e para instituições sociais que possam ser justificadas numa posição originária. Para realizar uma crítica das relações de poder existentes, tais regras devem ser expostas e criticadas. Esta seria a tarefa de uma teoria crítica que tivesse como alvo particular aquelas justificativas falsas e ideológicas que levam a consolidar e esconder relações de poder injustificáveis. Para tanto é preciso, por um lado, fazer uma análise social adequada que esclareça a questão de quem domina a quem; por outro lado, é preciso fazer um diagnóstico crítico dos discursos de justificação. Da perspectiva de uma teoria ideal da justiça, se trata até da ‘questão originária’ da legitimidade (mas não da justiça): como, quando e onde é legítimo o exercício do poder – e não somente daquele político, mas também daquele econômico. Cabe, contudo, manter separadas justiça política e legitimidade. Alguns opositores do paradigma distributivo parecem entender a questão da justiça primariamente como uma questão de domínio político justificado, fazendo com que os conceitos da justiça e da legitimidade se encontrem. Assim, Forst afirma: “O impulso fundamental contra a injustiça não é primariamente o de querer possuir algo ou de querer possuir mais, mas o de não querer mais ser dominado, coagido ou atropelado em sua reivendicação e em seu direito fundamental a uma justificação [...]” (Forst 2011: 4 e s.; realce no original). O direito a uma justificação, que Forst caracteriza com razão como fundamental, é o direito moral fundamental de cada pessoa a que tudo o que lhe é ‘feito’ – isto é, tudo o que lhe acontece contra sua vontade originária e que poderia ser diferente – deva poder ser justificado perante ela em condições de 24 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e liberdade e igualdade. Esta exigência fundamental de justificação é ela mesma um direito moral e se refere a todos os tipos de ações – inclusive àquelas que normalmente não consideramos do ponto de vista da justiça, como, por exemplo, a ajuda humanitária. O poder representa um problema não somente em contextos de justiça, mas também em contextos mais amplos. Assim, o poder não pode ser uma razão específica para a justiça, mas é uma razão de validade da moral em geral. 15 Por isso, não pode ser a “questão primária” da justiça. Se, contudo, o direito à justificação é entendido como direito genuinamente político – e não como um direito que subjaz à moral em geral –, então o risco é o de cair num curto-circuito, já que de uma condição moral de legitimidade é derivada uma exigência política e, ao final, democrática de legitimidade. Contudo, sem outros argumentos (que, ao meu ver, não são fáceis de serem oferecidos) da necessidade geral de justificar cada ação, que uma vontade alheia impõe a uma outra pessoa, não deriva a fundamentação de procedimentos eficazes que garantam legitimidade por meio de um consenso universal concreto no âmbito de um processo democrático (normalmente por meio de uma decisão majoritária). Pelo menos deveria ser demonstrado por que o filósofo excelente (à semelhança do sábio Salomão ou do rei-filósofo de Platão) não poderia decidir melhor se uma reivindicação é justificada do ponto de vista geral e recíproco ou não. Por mais crítica e democrática que a teoria discursiva das relações de justificação se apresente, é sempre o teórico que, com base nos critérios da reciprocidade e da universalidade, consegue julgar se a moral ou a justiça foram respeitadas. Até os procedimentos e instituições democráticas discursivo-construtivas de uma basic structure of justification, que deveriam ser acionadas e que deveriam tornar possíveis relações de justificação efetivamente jus15 A questão da razão de validade de princípios de justiça se ocupa com os pressupostos (de caráter moral, mas também não moral) que é necessário que sejam dados, para que possamos sensatamente procurar princípios de justiça e aplicá-los. Sobre este ponto ver Jugov (no prelo) e Risse (2007: 1). S t e f a n G o s e p a t h | 25 tas, são determinadas por filósofos antes de qualquer aplicação discursiva. Pois a justiça fundamental deve ser determinada recorrendo ao discurso e apontando para as condições necessárias para situações equitativas de justificação. De certa maneira, porém, cada teoria política normativa que se concebe como teoria procedimental deve – contra sua intenção declarada – antecipar os resultados normativos do proecedimento e caracterizar de antemão algumas das condições dele; esta tensão se aguça tanto mais fortemente quanto mais se concebe o procedimento que deveria gerar justiça não como um experimento mental, mas como um processo real no mundo social. 16 Inclusive quando o ponto de partida de uma teoria crítica da justiça for constituído por relações políticas factuais, nas quais os oprimidos e os deprivados de direitos exigem uma justificação da sua situação, também uma teoria deste tipo não pode renunciar a hipóteses e idealizações. Pois quando não é possível oferecer nenhuma justificação recíproca e universal para as situações factuais, se coloca para o teórico da justiça a exigência de modificar a situação política e a distribuição do poder. Destarte se coloca de novo a questão abstrata, tão frequentemente e tão injustamente ridiculizada, de como deveria ser constituído o mundo social para que nele possa haver justiça e de como podemos chegar até lá a partir do status quo. A crítica das relações de justificação deve, portanto, partir de antemão de uma visão fundamentada de relações de justificações corretas ou, pelo menos, melhores. Isso remete uma teoria crítica da justiça a uma concepção elaborada de teoria ideal da justiça, que, portanto, não pode ser evitada, se não quisermos renunciar a um critério para julgar uma situação injusta existente. Finalmente, posso chegar à seguinte conclusão: A ideia de uma distribuição justa, considerada do ponto de vista da sua lógica, isto é, das inferências decisivas, é conciliável com 16 Assim também Honneth (2009: 6 s.), referindo-se a Habermas. 26 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e tudo o que, intuitivamente, conectamos com a ideia de justiça. A ideia da distribuição não limita a justiça a bens materiais, mas é aplicável também a coisas tão importantes como direitos, deveres, influência e chances. Estas coisas podem ser pensadas também segundo a lógica da distribuição. Nada do que é relevante quando se fala em justiça é inconciliável com a ideia básica de que, no contexto do ideal da justiça, o ponto é o de não dar uma vantagem indevida a ninguém. A justiça diz respeito, em suma, àquela parte da moral, que se ocupa da distribuição de bens e ônus. Trata-se de desenvolver uma ideia de justiça que possui uma ideia central, que precisa de procedimentos, reflexões e pontos de vista diferentes em diferentes situações de aplicação. Os critérios de justiça variarão correspondentemente. Deste ponto de vista, devem ser levadas a sério a pluralidade e a diversidade dos fenômenos que podem ser objetos do conceito de justiça. Contudo, neste contexto um ponto deveria ter ficado claro, pelo menos como esboço: estes diversos aspectos são todos aspectos, justamente, de uma única ideia, a saber, a ideia de não privilegiar ninguém. (Tradução de A. Pinzani) Referências Anderson, Elizabeth 1999, What Is the Point of Equality?, in: Ethics 109, p. 287–337. Dworkin, Ronald 1987, What is Equality? Part 3: The Place of Liberty, in: Iowa Law Review 73, p. 1-54. Forst, Rainer 2009, Zwei Bilder der Gerechtigkeit, in: Rainer Forst et al. (Hrsg.), Sozialphilosophie und Kritik. Axel Honneth zum 60. Geburtstag, Frankfurt am Main, p. 205–228. 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Além de expor o modo como entendo essa posição, vou contrastá-la com duas perspectivas normativas não igualitárias, e com uma terceira que, embora possa, com base em uma delimitação menos estrita do que aquela que aqui vou adotar, ser também considerada como uma variante de liberalismo igualitário, apresenta uma interpretação significativamente distinta das aspirações normativas do igualitarismo. Serão examinados os méritos relativos do liberalismo igualitário em contraste com uma teoria política liberal anti-igualitária, o “libertarianismo”, e, a seguir, em contraste com uma perspectiva normativa sobre questões de disparidades socioeconômicas que não constitui propriamente uma teoria política, e sim uma posição não igualitária que está associada à defesa de um padrão de suficiência. Contra esta posição, serão expostas algumas das razões 30 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e segundo as quais devemos nos preocupar não somente com a abolição da pobreza, mas também com desigualdades relativas. Por fim, o contraste será com uma modalidade de igualitarismo que vem sendo denominado, na literatura teórica recente sobre justiça distributiva, luck egalitarianism. Não há como considerar, neste artigo, todas as posições que se apresentam no debate normativo sobre disparidades socioeconômicas. Mas é possível, mediante o confronto com algumas dessas posições, esclarecer o modo pelo qual o liberalismo igualitário interpreta a justiça social em uma sociedade democrática e, em particular, precisar o lugar que deve ser reservado à responsabilidade individual em uma visão igualitária. Em um dos fronts da discussão que vem a seguir, salientarei as razões que temos para defender certa interpretação do igualitarismo contra perspectivas normativas anti ou não igualitárias. No segundo front, o esforço será o de mostrar que essa interpretação valoriza a responsabilidade individual, mas de um modo que, diversamente do luck egalitarianism (como espero evidenciar), não faz nenhuma concessão à crítica conservadora segundo a qual o igualitarismo deve ser rejeitado porque “corrói o caráter individual”, ao não recompensar o esforço consciencioso e ao premiar (com transferências compensatórias) aqueles que não são “merecedores”. 1 II “Liberalismo”, como outros termos centrais do nosso vocabulário político, não tem um significado consensualmente compartilhado na teoria política e na discussão pública. Se o que está em questão é a justiça social e política, há duas ver1 Uma versão “clássica” (não tanto por seus méritos intelectuais, e sim muito mais pela influência que exerceu no debate público estadunidense) dessa crítica, que é voltada a qualquer tipo de ação compensatória por parte do Estado, é a de Charles Murray em Losing Ground. Murray (1994[1984)) sustentou que os benefícios do welfare state destroem o caráter e encorajam as mulheres pobres a terem filhos para obter benefícios maiores de assistência social. Á l v a r o d e V i t a | 31 tentes teóricas do liberalismo contemporâneo que contrastam de forma nítida. Antes de contrastá-las, cabe apontar uma ideia que, formulada de modo genérico, é compartilhada por ambas as vertentes. Um Estado liberal justo deve ter como um de seus objetivos centrais propiciar a seus membros as condições para que cada um possa agir com base em suas próprias convicções sobre aquilo que tem valor intrínseco na vida. De acordo com essa visão, não cabe à autoridade política determinar que objetivos e fins – quer isso diga respeito a ideais morais, religiosos ou políticos ou ao bem e à felicidade individuais – as pessoas devem se empenhar em realizar em suas vidas. O exercício do poder político, que sempre envolve o emprego da coerção coletiva da sociedade, não pode se justificar com base na suposição de que há uma doutrina verdadeira, quer se trate de uma religião ou de uma doutrina moral ou política, sobre o que constitui a boa vida para o homem, à qual aqueles que estão submetidos a esse poder devem se conformar. Dispor de soberania para determinar que convicções de valor moral devem guiar as próprias escolhas em um âmbito de independência individual preservado de interferências arbitrárias é aquilo que, para qualquer vertente de liberalismo político, responde pela ideia de liberdade. A primeira formulação dessa visão, ainda que não despida de ambiguidades (o termo “liberalismo” só se incorporou definitivamente ao vocabulário político ocidental na segunda metade do século XIX), é a que se encontra na Carta acerca da tolerância (de 1689), de John Locke. E essa é essencialmente a visão que vamos encontrar nas obras de políticas de uma longa linhagem de pensadores que contribuíram para o liberalismo político, como Montesquieu, Kant, Benjamin Constant, Tocqueville e Stuart Mill. Mas como entender as condições que, sob um Estado liberal justo, capacitam cada pessoa a viver de acordo com suas próprias convicções de valor moral? A resposta a essa questão responde pela delimitação de posições no campo do liberalismo político contemporâneo. Uma delas vem sendo designada pelo neologismo “libertarianismo” e está associada 32 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e a teóricos políticos como Friedrich Von Hayek e Robert Nozick. O valor político central, para essa vertente, é uma noção de “liberdade negativa” – o termo foi cunhado por Isaiah Berlin em seu clássico ensaio de 1958, intitulado “Dois conceitos de liberdade” – que tem por foco a não interferência, sobretudo por parte da autoridade política (mesmo se exercida de forma democrática), em direitos de propriedade ou “titularidades” adquiridos por meio de uma cadeia de transações de mercado voluntárias e não fraudulentas. Dessa perspectiva, a justiça tem duas características distintivas: (1) é uma virtude da conduta individual, não um atributo que possa ser imputado a uma ordem social e política, ou cuja ausência possa ser criticada em uma ordem social e política; e (2) e é uma virtude que se exprime por meio de deveres negativos, tais como “não interfira arbitrariamente na integridade física ou na propriedade de outros”, “não descumpra suas promessas e contratos válidos”, “não aja de forma desonesta ou fraudulenta”, “não impeça uma pessoa de praticar sua religião ou de exprimir seu pensamento e suas opiniões” e assim por diante, e que se impõem como restrições não excepcionáveis às linhas de conduta que agentes individuais, privados e públicos, podem escolher. Nozick (1974: 28-35) denomina essas injunções morais de “concepção side constraints” de direitos individuais. Mas empregar a linguagem dos direitos, nesse caso, não deixa de ser um equívoco, já que a ideia não é que certos direitos devem ser garantidos igualmente a todos, e sim que agentes privados e especialmente públicos estão sujeitos à exigência de se abster de adotar linhas de ação que, por mais socialmente desejáveis que possam ser, tenham o efeito colateral de violar “titularidades legítimas” (como são definidas pela própria teoria política libertariana). O foco não recai sobre a igualdade de direitos, quaisquer que sejam; a motivação central é o não descumprimento de deveres que incidem sobre a conduta. Observo, a esse respeito, que Sen comete um equívoco de interpretação, parece-me, ao afirmar que “todas as principais teorias éticas do ordenamento social têm em comum a aprovação da igualdade com base em alguma variável focal”, e Á l v a r o d e V i t a | 33 ao valer-se como exemplo, para sustentar isso, da teoria de Nozick: “um enfoque libertariano (como a teoria da titularidade desenvolvida de modo vigoroso em Anarchy, State, and Utopia,de Robert Nozick) pode conferir prioridade a amplas liberdades que devem ser garantidas igualmente a cada pessoa” (Sen 1992: 3). Não há essa ideia, no libertarianismo, de que “amplas liberdades” devem ser garantidas “igualmente” a todos. Essa é uma interpretação incorreta da teoria side-constraints de direitos individuais. De acordo com essa teoria, você está sob um dever não excepcionável de não violar os deveres morais que se aplicam à conduta individual (de agentes públicos ou privados); se e como “amplas liberdades”, mesmo aquelas restritas à garantia um âmbito de liberdade negativa, serão garantidas a todos constitui outra questão, sobre a qual a teoria de Nozick (e o libertarianismo de modo geral) nada tem a dizer. Disso se segue que nada além de um Estado mínimo, comprometido com um Estado de direito que converta em obrigações legais as restrições morais à ação que garantem a liberdade negativa tal como interpretada acima, com ênfase na não violação de direitos irrestritos de propriedade, pode se justificar em nome da justiça. É possível que vastas desigualdades socioeconômicas se produzam em uma “sociedade livre”. Mesmo sendo lamentável, isso não justifica que a autoridade política empregue a coerção coletiva da sociedade para realizar um padrão de justiça social. Se há desigualdades, isso não é produto das intenções ou dos planos de ninguém em particular, e sim de decisões tomadas de forma descentralizada por agentes individuais que decidem livremente – e são responsáveis pelas consequências das decisões que tomam – o que fazer com os recursos sobre os quais têm titularidade plena, nisso se incluindo o exercício dos próprios talentos e capacidade produtiva. Ninguém, em particular, pode ser responsabilizado pelas desigualdades socioeconômicas, e, muito menos ainda, a “sociedade”. Esse é um dos sentidos que pode ser atribuído à célebre frase de Margaret Thatcher de que “não há semelhante coisa como a sociedade”. E, mais funda- 34 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e mentalmente, a tentativa de realizar um padrão de justiça distributiva na sociedade implica necessariamente a violação de deveres negativos não excepcionáveis, isto é, implica o emprego arbitrário e, portanto, injusto, do poder político. A segunda vertente do liberalismo contemporâneo a ser considerada, quando o foco recai em concepções de justiça social e política, é aquela à qual se aplica a denominação “liberalismo igualitário”. John Rawls é a personalidade central dessa vertente, mas a ela também estão associados, com nuances importantes nas posições que defendem, e em fronts diversos de debate, teóricos políticos como Brian Barry, Ronald Dworkin, 2 Norman Daniels, Thomas Nagel, Thomas Pogge, Joshua Cohen e Philippe Van Parijs. Para essa segunda vertente, não é suficiente, para que cada cidadão disponha das condições que lhe permitem viver sua vida de acordo com suas próprias convicções de valor moral, que seja institucionalmente garantida uma esfera de liberdade negativa; ademais, é preciso que os arranjos institucionais básicos da sociedade, políticos e socioeconômicos, propiciem a cada cidadão a capacidade efetiva de fazê-lo. É essa noção de “liberdade efetiva” que distingue fundamentalmente o liberalismo igualitário do libertarianismo. Sobre os alicerces daquilo que pode ser denominado “justiça liberal”, em sentido mais restrito, para se referir aos direitos e liberdades que Benjamin Constant batizou de “liberdades dos modernos”, deve se erguer, para o liberalismo igualitário, um edifício de justiça social. Para chegar à concepção de justiça que dá substância a essa noção de liberdade efetiva, há ao menos três ideias a salientar. A primeira delas é a de que o objeto primário da justiça não é a conformidade da conduta de agentes individuais a deveres negativos não de caráter absoluto, mas sim aquilo que Rawls, em Uma teoria da justiça, denominou “estrutura básica da sociedade”. Esta noção, que não é de natureza normativa (mas que tem implicações normativas), abrange as principais 2 Embora Dworkin certamente possa ser colocado no campo do liberalismo igualitário, sua interpretação do igualitarismo, como se evidenciará na seção III, diverge sensivelmente do liberalismo rawlsiano. Á l v a r o d e V i t a | 35 instituições que distribuem ou que produzem a distribuição de direitos, oportunidades e recursos na sociedade, entre as quais se encontram: (1) as instituições que dizem respeito à distribuição de direitos e liberdades fundamentais; (2) as instituições que determinam a forma de acesso às posições de autoridade e poder (incluindo as oportunidades que o sistema político oferece para empresas e indivíduos ricos exercerem influência sobre as campanhas eleitorais); (3) as instituições, em particular o sistema educacional e o sistema de saúde, que determinam as oportunidades de acesso às posições ocupacionais mais valorizadas; e (4) o conjunto de instituições, abarcando as normas que regulam o direito de propriedade, o direito de herança e o sistema tributário e de transferências, que determinam a distribuição da renda e da riqueza na sociedade. O foco na distribuição de direitos, oportunidades e recursos – de “bens primários sociais”, na linguagem de Rawls – e na estrutura básica da sociedade implica o reconhecimento, contrariamente à posição libertariana e à frase de Thatcher mencionada acima, de que a sociedade gera, sim, padrões persistentes de desigualdade e tem formas sistemáticas de distribuir as pessoas em hierarquias de poder, status e dinheiro. E se isso é assim, ainda que esses padrões de desigualdade não tenham resultado de atos individuais de injustiça, nem tenham resultado de ações deliberadas de ninguém, em particular, há uma responsabilidade coletiva – que, em uma democracia política, recai sobre os cidadãos e seus representantes – de alterar as instituições de modo a tornar a estrutura básica mais justa. Mas o que seria, da ótica do liberalismo igualitário, uma sociedade justa? Isso nos leva a uma segunda ideia fundamental, esta de natureza normativa. O ponto de partida da teoria política do liberalismo igualitário não é uma concepção de liberdade, e muito menos de liberdade negativa, e sim uma noção de igualdade. Uma sociedade justa é uma ordem social e política cujas instituições principais garantem a todos os cidadãos certa condição que podemos denominar “igualdade humana fundamental” ou “igualdade moral”. O adjetivo “moral”, aqui, 36 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e tem o sentido de explicitar que se trata de uma igualdade de status, e não exatamente de uma igualdade socioeconômica estrita do tipo que (podemos especular) os socialistas clássicos tinham em mente. A igualdade moral ou, para empregar o termo consagrado por Tocqueville, embora lhe conferindo uma conotação normativa mais positiva, a igualdade de condições é assegurada quando os arranjos institucionais básicos de uma sociedade – sua “estrutura básica” – devotam a seus cidadãos, independentemente de quanto dinheiro ou riqueza cada um possua ou de seus talentos e capacidade produtiva, um tratamento igual que só é possível àqueles que são portadores de direitos iguais. Em uma sociedade justa, a distribuição das vantagens e dos ônus da cooperação social se faz levando-se em conta e de modo a reforçar esse status social e moral igual. Essa é uma ideia normativa retirada da tradição democrática ocidental, ao menos quando não reduzimos suas aspirações normativas somente – não que isso seja pouco – à instituição de um governo democrático, mas também, e especialmente, quando as captamos mediante um ideal de sociedade de cidadãos livres e iguais. Esse ideal foi primeiramente formulado, de modo explícito, nas declarações de direitos do século XVIII, da Revolução Americana e da Revolução Francesa. De modo explícito, mas restrito a uma noção limitada do que antes denominei “justiça liberal”. Não se supunha, no século XVIII, que houvesse alguma incompatibilidade entre a linguagem moral dos “direitos iguais” e a escravidão e formas patentes de tratamento desigual entre homens e mulheres, no casamento, nas oportunidades educacionais e ocupacionais e nos direitos políticos. No entanto, parece razoável supor que o fundamento normativo que já se exprimia mesmo nessa concepção restrita de justiça liberal, a ideia de que todos os cidadãos merecem um tratamento e um respeito iguais, forneceu o combustível moral necessário para que um grande número de pessoas passasse a perceber essas desigualdades como formas intoleráveis de injustiça. Á l v a r o d e V i t a | 37 Estendida desse modo, a justiça liberal pode abarcar as “liberdades dos modernos”, direitos políticos iguais e uma noção de igualdade formal de oportunidades – no sentido de que ninguém seja institucionalmente impedido, por conta de desigualdades adscritícias (étnicas, raciais ou de gênero) de cultivar e exercer seus talentos, de escolher livremente sua ocupação e de disputar as posições mais valorizadas na sociedade. O liberalismo igualitário confere uma importância especial aos valores abrangidos por essa concepção de justiça liberal; isso se manifesta, em particular, na rejeição à posição de que a realização de outros objetivos socialmente desejáveis, como o desenvolvimento econômico ou a igualdade econômica, possa ser invocada como justificação para sacrificar aqueles valores. Mas a justiça liberal não é suficiente para substanciar a noção de liberdade efetiva que foi mencionada acima como o componente do liberalismo igualitário que mais fortemente o distingue do libertarianismo. Aqui é preciso introduzir uma concepção de justiça social ou de justiça distributiva. Uma forma de fazer isso consiste em mostrar a justiça social como uma extensão natural da justiça liberal. Se estivermos preocupados com os direitos e liberdades civis e políticos fundamentais, que constituem o elemento central da noção de justiça liberal aqui empregada 3 , então deveremos 3 Note-se que um direito irrestrito de propriedade – quer de recursos externos, quer daquilo que se obtém do exercício dos próprios talentos e capacidade produtiva – não é incluído entre as liberdades fundamentais. A forma de identificá-las, e de justificar normativamente a importância especial que o liberalismo igualitário lhes confere, passa por mostrar a conexão que têm com as faculdades morais (remeto o leitor ao último parágrafo da seção I) que as pessoas devem desenvolver e exercer em sua capacidade de cidadãos iguais. Concepções amplas do direito de propriedade (como a noção de “titularidade” do libertarianismo) não podem ser consideradas, como sustenta Rawls (Rawls, 2011: 353-354), condições para o desenvolvimento e o exercício dessas faculdades. “Titularidades” ou direitos “legítimos” de propriedade, dessa perspectiva, são aqueles que resultam de uma estrutura básica justa. Para exemplificar, suponhamos que um welfare state fortemente redistributivo seja um componente de uma estrutura básica justa. Sob esse arranjo institucio- 38 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e também nos preocupar com oportunidades iguais de exercer esses direitos e liberdades. Um ponto a salientar, a esse respeito, é que tanto a concepção de justiça liberal como a de justiça social derivam de um fundamento normativo único, a ideia da igualdade humana fundamental. Mas como é possível extrair uma concepção específica de justiça distributiva dessa ideia genérica de igualdade moral? Isso nos leva para a terceira ideia fundamental do liberalismo igualitário, também de natureza normativa. Trata-se do julgamento moral segundo o qual é injusto que as pessoas sofram as consequências distributivas de diferenças pelas quais não são responsáveis. Essas diferenças geram desigualdades socioeconômicas – de oportunidades, de renda e riqueza – que deveriam ter seus efeitos tanto quanto possível mitigados pela estrutura básica de uma sociedade democrática justa. Em uma sociedade de cidadãos iguais, a distribuição de vantagens sociais pela estrutura básica da sociedade não pode ocorrer de acordo com fatores que são arbitrários de um ponto de vista moral. Denominemos esse argumento, formulado por Rawls em Uma teoria da justiça, “argumento da arbitrariedade moral”. Isso diz respeito a fatores que se impõem às pessoas como contingências sociais – entendendo-se por isso posição e status social, riqueza e background cultural da família, a denominada “loteria social” – ou como contingências naturais – talentos e aptidões naturais que, em simbiose com a “loteria social”, se converterão em capacidades produtivas desigualmente recompensadas (somente a título de ilustração, nesse ponto da exposição, mencione-se que, nos Estados Unidos da primeira década dos anos 2000, a razão entre o rendimento médio dos presidentes de corporações, os “chief executive officers”, e o rendimento médio dos empregados chegou a níveis abissais de 531:1 4 ). A ideia é a de que há uma 4 nal, aquilo a que as pessoas têm titularidade é a sua renda líquida, não a sua renda bruta. Em artigo publicado em The New York Times intitulado “Our Banana Republic”, Nicholas D. Kristof (Kristof 2010) comenta que essa razão passou de 42:1, em 1980, para 531:1, em 2001. Na seção III, adiante, Á l v a r o d e V i t a | 39 distinção de importância normativa capital, na reflexão sobre a concepção de justiça distributiva que é mais apropriada a uma sociedade democrática, entre aquilo que resulta de escolhas individuais genuínas – e que, portanto, resulta de empenho e mérito diferenciados, que podem ser considerados da ótica da responsabilidade individual – e contingências que deixam muitas pessoas em pior situação do que outras sem que isso possa ser atribuído a escolhas conscienciosas das primeiras. Essa distinção normativa fundamental está por trás da divisão profunda que se manifesta na discussão pública e acadêmica sobre a natureza da justiça distributiva nas sociedades liberais de hoje. A divisão básica é a que existe entre os que identificam a justiça social com o combate a desigualdades moralmente arbitrárias que os arranjos institucionais básicos da sociedade podem e devem mitigar e aqueles que acreditam que o alcance da justiça é mais limitado, entre os quais se encontram os que supõem que uma sociedade liberal justa está isenta de responsabilidade por certas formas “naturais” de diferença. Quem adota esta última posição, não o faz, necessariamente, com base em um ponto de vista libertariano puro, mas sim, muito frequentemente, com base em uma concepção meritocrática de justiça social segundo a qual a sociedade tem a responsabilidade de combater a pobreza severa e de prover oportunidades que permitam às pessoas chegarem, por meio de seus próprios esforços, até onde seus próprios talentos e capacidades lhes possibilitem. As desigualdades de renda e riqueza resultantes, nesse caso, são atribuídas a mérito e a esforço individuais diferenciados, nisso se incluindo o esforço de cultivar os próprios talentos e de elevar seu valor de mercado. Essa é certamente a ideologia mais poderosa de justificação de desigualdades socioeconômicas nas sociedades liberais do presente. É uma ideologia afirmada não somente pela direita política, mas que também impregnou a crítica feita por correntes políticas de centro-esquerda, como a “Terceira Via” volto a essa questão do crescimento da desigualdade econômica em países desenvolvidos como os Estados Unidos. 40 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e da Grã-Bretanha dos anos Tony Blair, às ideias de responsabilidade e de justiça sociais depreciativamente rotuladas “Old Labour”. A concepção de justiça social do liberalismo igualitário adota o primeiro dos dois pontos de vista que acabo de mencionar: no que diz respeito à justiça distributiva, o design da estrutura básica da sociedade deve ter por finalidade mitigar os efeitos de desigualdades “arbitrárias de um ponto de vista moral” para a distribuição de vantagens sociais e de oportunidades de vida. Isso abrange as desigualdades raciais e de gênero, as desigualdades de classe social – entendendo-se por isso, no presente contexto, sobretudo as desigualdades de riqueza, de posição social e background cultural e educacional das famílias nas quais a loteria social determina que as pessoas nasçam – e as desigualdades que resultam de recompensas diferenciadas aos portadores de talentos e capacidade produtiva diferentes (um fator que resulta dos efeitos combinados e cumulativos da loteria genética e da loteria social). A ideia de que desigualdades que são arbitrárias, no sentido em que aqui se está entendendo, devem ser mitigadas, leva à recomendação de dois princípios de justiça social. Um deles é um princípio de igualdade de oportunidades que cobra, pode-se dizer assim, as promessas não cumpridas da ideologia meritocrática das sociedades liberais. Para haver igualdade de oportunidades, não basta um princípio de “carreiras abertas ao talento”, segundo o qual as posições ocupacionais mais valorizadas devem ser alocadas aos que são mais qualificados para exercêlas e que mais se empenharam em desenvolver seus talentos e capacidade produtiva. Também é preciso que, em um momento suficientemente anterior no tempo – que provavelmente volta até as condições nutricionais e de saúde da mãe durante a gestação e ao acesso à educação infantil de qualidade – todos tenham tido as mesmas oportunidades de adquirir as qualificações necessárias para competir em pé de igualdade pelo acesso às universidades de elite, a empregos de qualidade e às posições ocupacionais mais valorizadas. Isso requer, dos arranjos institucionais básicos e políticas públicas, a garantia Á l v a r o d e V i t a | 41 de um mínimo social adequado (a abolição da pobreza), a garantia de oportunidades educacionais iguais (da educação infantil ao ensino médio) e o acesso igual à assistência médica de qualidade àqueles que têm uma condição similar de saúde. 5 Isso significa que, em uma sociedade de cidadãos iguais, a opção por escolas privadas e por seguros de saúde e hospitais privados caros seria equivalente à satisfação de outros gostos dispendiosos que alguns poucos podem se permitir, como o consumo de bens e a realização de viagens de férias de luxo, mas que não afeta o status social igual e a igualdade de tratamento garantidos a todos. Mas mesmo que a pobreza fosse abolida e que esse princípio forte de igualdade de oportunidades fosse realizado em um grau muito maior do que hoje é caso nas sociedades liberais – no caso do Brasil, esse déficit é dramático: o que há é um sistema de apartheid educacional de fato, que vai da educação infantil de alta qualidade aos cursos mais competitivos das universidades de elite 6 –, isso não bastaria, da ótica do liberalismo igualitário, para realizar a justiça social. Ainda que uma meritocracia equitativa pudesse ser plenamente realizável 5 6 Ver nota 14 adiante. Ao afirmar isso, não estou dizendo que nenhum progresso ocorreu na educação pública no Brasil. Nos últimos quinze anos, o acesso ao ensino fundamental foi universalizado. Também se elevou consideravelmente o acesso ao ensino médio dos jovens de 15 a 17 anos (passando de 64%, em 1995, a 85% em 2009), embora a proporção de jovens de 19 anos com ensino médio completo permaneça muito baixa, atingindo 45% no ano de 2007 (Veloso, 2011: 216). Também houve melhorias no financiamento da educação fundamental e secundária, com a criação, primeiro do FUNDEF, e, depois, do FUNDEB (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação), em 2007, e com a instituição de um sistema abrangente de avaliação da educação básica. Mas a qualidade da educação pública nos ensinos fundamental e médio permanece muito baixa e ainda não há nenhum esforço mais sistemático de expandir, ou mesmo de avaliar a qualidade da educação oferecida nesse nível, a educação infantil, que tem uma importância crucial para o desempenho escolar futuro das crianças (Veloso, 2010: 220-21; 231). Ainda não há razões suficientes para qualificar o juízo incisivo expresso no texto. 42 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e – o que não é – o mundo social que disso resultaria se pareceria mais com uma hierarquia social fundada no mérito diferenciado do que uma sociedade de cidadãos que têm um status social e moral igual. Essa é uma das razões pelas quais um princípio de igualdade de oportunidades deve ser complementado, da ótica do liberalismo igualitário, por um princípio de reciprocidade, ou de fraternidade, segundo o qual a distribuição de vantagens sociais – sobretudo de renda e riqueza – deve ser em grande medida dissociada de talentos e de capacidade produtiva diferenciados. Rawls exprimiu essa exigência por meio de seu “princípio de diferença”, segundo o qual as desigualdades socioeconômicas só são justificáveis se forem estabelecidas para elevar no nível máximo possível as expectativas do “indivíduo representativo” que se encontra na posição mínima da sociedade. Uma consequência de um princípio de justiça dessa natureza é que, mesmo que um mínimo social relativamente generoso seja garantido mediante benefícios em dinheiro (como o Programa Bolsa Família e as transferências indexadas ao salário mínimo, no caso brasileiro) e benefícios em espécie (na forma da provisão de serviços públicos de educação e saúde de qualidade), as desigualdades que estão acima desse mínimo devem ser reduzidas mediante tributação redistributiva da renda, da riqueza e de heranças e doações. Isso é necessário para fazer com que as desigualdades econômicas contribuam para elevar o quinhão de renda e riqueza daqueles que levaram a pior nas loterias social e genética, e, desse modo, fazer com que essas desigualdades contribuam para que os que se encontram na posição mais desprivilegiada também contem com os recursos necessários para viver de acordo com suas próprias convicções sobre o que confere valor moral à vida. Sem essa exigência, a noção de liberdade efetiva do liberalismo igualitário seria moralmente vazia. Essa posição contrasta não só com o liberalismo tradicional de Hayek e Nozick, mas também, como já foi mencionado, com a daqueles que acreditam que o alcance da justiça social está limitado à abolição da pobreza e à garantia de certo Á l v a r o d e V i t a | 43 de padrão de “vida decente” para todos. Aqui, uma primeira área de controvérsia se apresenta, que não se limita ao contraste com a posição libertariana. Harry Frankfurt exprimiu vigorosamente esse ponto de vista não igualitário em um ensaio dos anos 1980 intitulado “Equality as a Moral Ideal”. Segundo Frankfurt, “a igualdade econômica não se reveste, enquanto tal, de especial importância moral. Com respeito à distribuição de recursos econômicos, o que tem importância do ponto de vista da moralidade não é que todos tenham o mesmo, e sim que cada um tenha o suficiente. Se todos tivessem o suficiente, seria moralmente irrelevante caso alguns tivessem mais do que outros. Vou me referir a essa alternativa ao igualitarismo – a saber, a de que aquilo que é moralmente importante em relação a dinheiro é que todos tenham o suficiente – como a ‘doutrina da suficiência’. (Frankfurt 1987: 2122) Importa pouco, no momento, que o distribuendum adotado por Frankfurt seja o dinheiro ou a renda, já que essa é uma suposição simplificadora; o argumento não seria alterado caso a igualdade ou suficiência fossem definidas em alguma outra dimensão, como a do welfare ou do bem-estar interpretado de forma utilitarista, oportunidades, satisfação de necessidades ou capacidades no sentido de Amartya Sen. Mantendo-se essa suposição simplificadora, poderíamos definir “suficiência” com base, por exemplo, na definição de pobreza relativa empregada pela União Europeia, segundo a qual são pobres, em termos relativos, aquelas pessoas que têm uma renda inferior a 50 ou 60% da “renda mediana” de sua sociedade, isto é, aquele nível de rendimento que divide a população entre os 50% mais pobres e os 50% mais ricos. Pode-se considerar que esse é um padrão modesto de suficiência e que um padrão dessa natureza deve ser definido de alguma outra forma. 7 Não há dúvida de que a questão é relevante – talvez essa 7 No caso do Brasil, enquanto o rendimento mensal familiar médio per capita, no ano de 2009, era de 764,2, a mediana do rendimento familiar per capita era de 465,00 reais (IBGE 2010, p. 129). 60% da renda mediana, em 2009, corresponderiam a 279,00 reais. Em maio de 2011, o go- 44 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e seja, afinal, a questão central que Amartya Sen está tentando responder em seus trabalhos no campo da teoria da justiça (minha avaliação é o de que enfoque de Sen da capacidade deve ser interpretado, visto sob a ótica mais favorável, como um esforço teórico de formulação de um padrão de suficiência, e não como uma vertente de igualitarismo; substanciar esse ponto de vista, no entanto, exige uma argumentação que aqui não tenho como desenvolver). Mas o ponto a enfatizar no momento é outro: se, em dada sociedade, a renda de ninguém cai abaixo de 60% da renda mediana e se, portanto, aceitando-se a suposição simplificadora que estou fazendo, certo padrão de suficiência é assegurado a todos, isso significaria que questões de desigualdade distributiva perdem sua relevância moral? Diversamente daquilo que, valendo-se de um neologismo selvagem, pode ser denominado “suficientarismo”, os igualitários, de modo geral, entendem que vastas desigualdades de renda e riqueza que estão acima de um limiar de suficiência, como quer que seja definido, são moralmente objetáveis com base em um sentido de iniquidade comparativa. Da ótica do liberalismo igualitário, que propõe uma interpretação específica do igualitarismo, essas desigualdades constituem iniquidades, isto é, devem ser vistas como injustiça social, porque resultam, não de escolhas individuais responsáveis e de mérito individual diferenciado, e sim de fatores que são arbitrários de um ponto de vista moral. Dessa ótica, mesmo que todos tivessem vidas “suficientemente boas”, desigualdades que deixassem alguns em situação pior do que outros, sem que isso pudesse ser imputado a escolhas responsáveis dos primeiros, ainda seriam moralmente objetáveis. Como observa Brian Barry em seu último livro (Barry 2005) 8 , a desigualdade tem efeitos que nada tem a ver com a 8 verno brasileiro estabeleceu a linha de pobreza extrema em 70,00 reais mensais per capita e a linha de pobreza, em 140,00 reais mensais per capita (aproximadamente metade, portanto, do que resultaria caso a definição europeia fosse adotada). Esta foi sua última contribuição significativa à teoria da justiça social, antes de sua morte, em 2009. Á l v a r o d e V i t a | 45 pobreza, entre os quais a competição, que é tanto maior quanto maiores forem os níveis de desigualdade de renda e riqueza em uma sociedade, por “bens posicionais” (Barry 2005: 176179). O que importa, nesse caso, não é quanto uma pessoa tem, em termos absolutos, e sim quanto ela tem em comparação a outros em sua sociedade. O que uma pessoa desprivilegiada é capaz de fazer com os recursos que tem, em sua sociedade, depende em parte dos recursos que outros, mais privilegiados, têm. Isso não diz respeito somente ao poder de compra de determinados bens – pensemos, por exemplo, na medida em que o acesso à moradia em condições apropriadas e em áreas urbanas que contam com uma infra-estrutura adequada depende do poder relativo de compra – mas também a oportunidades educacionais e ocupacionais. Quando muitos têm uma formação educacional de nível superior, o acesso às posições mais disputadas dependerá de se ter frequentado uma universidade de elite. Além disso – continuo seguindo a análise de Barry –, os ricos podem assegurar melhores oportunidades ocupacionais a seus filhos, em comparação a outros com níveis similares de qualificação, por intermédio de seus contatos. Somente parte da transmissão de vantagens sociais de uma geração para outra se faz via educação e, quanto mais os estilos de vida daqueles que estão em estratos sociais diferentes discreparem, e essa discrepância será maior quanto maiores forem os níveis de desigualdade, tanto mais exclusivos serão os contatos úteis. Por fim, os ricos têm como poupar seus filhos de certas escolhas condicionadas pela aversão ao risco que, no longo prazo, podem não se revelar as mais favoráveis. Os ricos, como enfatiza Barry, têm como possibilitar que seus filhos façam uso de capital que ninguém lhes emprestaria comercialmente, ou que assumam riscos financeiros que ninguém que seja prudente pode se dar ao luxo de assumir, quer para se arriscar em um negócio próprio, quer para se aventurar em uma carreira profissional que pode exigir custos pesados e recompensas pequenas, no curto prazo, mas trazer recompensas grandes (inclusive, mas não exclusivamente, financeiras) em um prazo mais longo. Em suma, quem se 46 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e preocupa com oportunidades iguais deve também se preocupar com a desigualdade e com a equidade comparativa. O igualitarismo e o “suficientarismo” muitas vezes coincidem nas recomendações que fazem, sobretudo quando há níveis elevados de pobreza na sociedade, mas é importante enfatizar que a igualdade – tal como aqui a estou interpretando – e a realização de um padrão de suficiência são preocupações morais distintas. Há duas outras considerações, independentes do argumento de mitigar os efeitos das loterias social e natural, que justificam a redução de desigualdades de renda e riqueza, como um objetivo político distinto da abolição da pobreza e da garantia de um mínimo social decente. São duas considerações interligadas, que salientam os efeitos corrosivos que níveis elevados de desigualdade produzem sobre o apoio público à expansão do welfare state e a políticas redistributivas voltadas para beneficiar o quintil inferior da sociedade. Uma delas diz respeito àquilo que Ian Shapiro denomina “abismo de empatia” (Shapiro 2003: 133-135; 140-141) que se abre entre os estratos sociais superiores e os vinte por cento de baixo na distribuição de renda e riqueza. “Se o abismo entre você e os pobres que você vê em volta é tão vasto a ponto de que nenhuma calamidade que você possa imaginar que se abata sobre você poderá colocá-lo nas circunstâncias deles, então desparecem quaisquer razões prudenciais que você possa ter para melhorar a sorte deles (Shapiro 2003: 133).” Iniquidades relativas muito elevadas têm efeitos tóxicos sobre a solidariedade social. O “abismo de empatia” anda junto, e essa é a segunda consideração, com os efeitos deletérios que níveis elevados de desigualdade econômica têm sobre o funcionamento dos sistemas políticos democráticos, ao possibilitarem que os ricos e super-ricos exerçam uma influência desproporcional – por meio de contribuições financeiras a campanhas eleitorais e de condições privilegiadas de acesso à comunicação política – sobre as deliberações políticas. Isso, por sua vez, torna mais difícil a adoção de reformas institucionais e de políticas de Á l v a r o d e V i t a | 47 redistribuição de renda e riqueza e, de fato, tornam mais difícil a adoção e a sustentabilidade ao longo do tempo de políticas que objetivam melhorar as condições do quintil inferior da sociedade mesmo em termos absolutos. Dizer que uma tributação progressiva da renda, riqueza e heranças é uma exigência da justiça social não implica ignorar os obstáculos políticos que se apresentam à realização de tal exigência. Mas esses obstáculos não são peculiares à visão de justiça social do liberalismo igualitário – eles se apresentam a toda e qualquer forma de igualitarismo que só conceba sua própria realização sobre as bases da justiça liberal e por meio da democracia política. Antes de seguir adiante, há um ponto a ser mais enfatizado. O sentido do igualitarismo, da ótica do liberalismo igualitário, não pode ser reduzido a somente um de seus componentes normativos como, por exemplo, o princípio de diferença, que tem por objeto a distribuição de renda e riqueza na sociedade. Embora isso seja obviamente importante, não define o fim último da justiça social. Em uma passagem de Uma teoria da justiça em que se expressa claramente a ideia de liberdade efetiva que formulei acima, Rawls afirma que “considerando-se os dois princípios em conjunto, a estrutura básica deve ser organizada de forma a maximizar o valor para os menos favorecidos do sistema de liberdade igual compartilhado por todos. Isso é o que define o fim da justiça social” (Rawls, 2008: 251). Se as exigências combinadas dos três componentes normativos que examinei antes são realizadas pela estrutura básica da sociedade, o que se alcança não é simplesmente uma forma de igualdade distributiva, e sim, como afirmei no início, uma forma de igualdade de status que coloca os cidadãos em um pé de igualdade social e política. Rawls (2008: 79; 91; 120-130) denominou “igualdade democrática” esse ideal de igualdade de status. 9 Como observa Elizabeth Anderson (Anderson 1999: 312-314), aquilo a que os movimentos políticos igualitários historicamente se opuseram não foi tanto 9 Norman Daniels ((Daniels 2003) interpreta de forma similar o igualitarismo de Rawls. 48 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e à distribuição de bens, em si mesma, e sim a relações sociais de desigualdade que geravam, e que se supunha que justificassem, desigualdades na distribuição de liberdades, oportunidades e recursos. Em consonância com esse espírito do igualitarismo, o ideal de igualdade democrática se opõe a hierarquias sociais fundadas em distinções raciais e de gênero, de berço e classe social e de talento e capacidade produtiva desiguais. E a forma de igualdade que os igualitários deveriam perseguir, de acordo com esse ideal, propõe uma ordem social e política na qual direitos e liberdades fundamentais, oportunidades e recursos sociais escassos sejam distribuídos tendo em vista o propósito central de garantir um status social e moral igual aos cidadãos. Se essa forma de igualdade, que sem dúvida é mais elusiva do que uma noção de igualdade simples, como a igualdade de renda, for realizada, os cidadãos contarão com os recursos institucionais necessários para exercer a liberdade efetiva, tal como a interpretei antes, e para desenvolver no grau necessário as faculdades morais que os capacitam a serem membros plenamente cooperativos da sociedade ao longo da vida inteira: a faculdade de constituir e de revisar uma concepção do próprio bem e a faculdade de cooperar com outros com base em princípios de justiça. III Passo, agora, a examinar uma linha de objeção à teoria da justiça distributiva do liberalismo igualitário que, diversamente da vertente de liberalismo tradicional que antes discuti, e diversamente da “doutrina da suficiência”, encontra-se dentro do próprio campo teórico do igualitarismo. É uma linha de objeção que pode ser formulada com base em teóricos como G. A. Cohen, Ronald Dworkin, Richard Arneson e John Roemer, que têm sido identificados, na literatura filosófica recente sobre justiça distributiva, como “luck egalitarians”. O que esses autores têm em comum é uma defesa do igualitarismo que interpreta de forma particularmente extremada o “argumento da arbitrariedade moral”, de Rawls, a que Á l v a r o d e V i t a | 49 antes fiz menção. Essa defesa pode se apresentar como uma crítica à esquerda à ideia de “igualdade democrática” do liberalismo igualitário. Mas, como veremos, a contribuição específica dessa vertente à teoria da justiça distributiva encontra-se no esforço de abrir um espaço maior, em uma visão igualitária, à responsabilidade individual. Essa é uma temática importante, tanto na teoria da justiça como no debate político sobre o tipo de ação pública que se justifica para compensar desvantagens sociais. Espero conseguir mostrar as razões que há para rejeitar o tratamento normativo que o “luck egalitarianism” dá à responsabilidade individual e para preferir a forma como o liberalismo igualitário compatibiliza igualitarismo e responsabilidade pessoal. Esse é o tópico do qual me ocuparei no restante deste artigo. Entre as críticas de G. A. Cohen às desigualdades excessivas que seriam autorizadas por um dos componentes do ideal de igualdade democrática, o “princípio de diferença”, está a de que, embora a condenação à arbitrariedade moral da fortuna social e da fortuna genética desempenhe um papel importante em sua justificação, esse princípio no melhor dos casos “mitiga” e não corrige os efeitos dessa arbitrariedade. A despeito dessa “mitigação”, é provável que, em uma sociedade que implemente o “princípio de diferença” ou um princípio similar de justiça distributiva, aqueles que têm talentos e capacidades produtivas com maior valor de mercado acabarão entre os grupos em melhor situação, ao passo que aqueles que levam a pior nas loterias social e natural, acabarão entre os grupos menos privilegiados. O princípio de diferença não pode chegar a ser, como Rawls salienta, um “princípio de reparação” que objetive compensar as pessoas por todas as contingências sociais ou naturais que produzam desvantagens relativas (Rawls 2008: 120-121). Contra isso, se poderia objetar que um princípio genuinamente igualitário exigiria uma compensação mais efetiva para quaisquer desigualdades que deixam uma pessoa em situação pior do que outra sem que essas desigualdades possam ser justificadas por escolhas conscienciosas da primeira. Para G. A. Cohen (Cohen 1989: 916), a interpreta- 50 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e ção correta do igualitarismo é a de que o propósito da igualdade a ser realizada em uma sociedade justa é a eliminação de desvantagens involuntárias, isto é, desvantagens pelas quais aqueles que as sofrem não podem ser considerados responsáveis porque não refletem escolhas que os indivíduos tenham feito ou fariam. Os “igualitários da fortuna” – adotemos essa tradução para “luck egalitarians” – não estão de acordo entre si sobre o que deve contar como “desvantagens involuntárias”. Mas todos eles aceitam a distinção proposta por Ronald Dworkin entre dois tipos de sorte: a “sorte opcional” e a “sorte bruta” (Dworkin 2000: 73-78). A sorte opcional é o resultado de um jogo no qual se entrou conscientemente ou de um risco conscientemente assumido. A sorte bruta é o resultado que se produz sem que o agente tenha feito nada para produzi-lo. Na visão de Dworkin, é justo que as pessoas sofram as consequências da sorte opcional, mas a sorte bruta é uma forma moralmente arbitrária de distribuir recursos. Algum detalhamento da argumentação complexa que Dworkin desenvolve para sustentar sua interpretação da igualdade distributiva em uma sociedade de cidadãos iguais, isto é, em uma sociedade na qual o Estado trata seus cidadãos com “uma consideração e um respeito iguais”, se faz necessário. Dworkin contrasta dois equalisanda para a teoria da justiça distributiva: a “igualdade de bem-estar” (Dworkin 2000: 11-64) e a “igualdade de recursos” (Dworkin 2000: 65-119). A igualdade de bem-estar (ou de “welfare”) é a posição normativa segundo a qual a igualdade distributiva só pode ser alguma função dos “bemestares” subjetivamente definidos de indivíduos. Essa posição, a que Sen se refere como “welfarismo” (Sen 1992: 73-75 e 95101; 1999: 59-60), abarca, mas não se resume a interpretações da igualdade distributiva que estão no campo da ética utilitarista. Aqui vou me concentrar no equalisandum que Dworkin considera a expressão mais apropriada do princípio – que corresponde precisamente à noção de igualdade humana fundamental, a que me referi antes – de “consideração e respeito iguais”: a igualdade de recursos. Á l v a r o d e V i t a | 51 O problema essencial para chegar a uma concepção justificável de igualdade de recursos, de acordo com Dworkin, pode ser formulado da forma como se segue. Se os indivíduos fossem idênticos – em suas circunstâncias sociais e genéticas e em suas ambições e preferências – então uma interpretação atraente da igualdade de recursos consistiria em dar a cada um uma parcela igual dos recursos externos da sociedade. Mas os indivíduos diferem em suas circunstâncias e também em suas ambições e preferências. As circunstâncias da pessoa podem ser consideradas parte de sua dotação de recursos, elas são os atributos do ambiente social ou genético de uma pessoa que afetam sua capacidade de realizar seu plano de vida ou suas preferências e que, portanto, caem do lado da “sorte bruta”, ao passo que ambições e preferências caem do lado da “sorte opcional”. O ponto central da concepção de Dworkin é o de que uma concepção atraente de igualdade de recursos deve ter por objetivo igualar os complexos de recursos em seu conjunto – isto é, os complexos de recursos externos e internos – das pessoas. Mas muitos dos recursos “circunstanciais” não podem ser transferidos de uma pessoa para outra como, por exemplo, os pais que uma pessoa tem, genes, deficiências de vários tipos e talentos naturais. A questão que se apresenta, então, é: que distribuição de recursos externos transferíveis pode-se supor que produza uma igualdade de complexos abrangentes de recursos? Há três possibilidades que Dworkin examina tendo por referência (é uma suposição simplificadora) uma economia de troca simples. Em uma economia desse tipo, há uma dotação agregada fixa de recursos e uma sociedade constituída por indivíduos que têm preferências distintas em relação a esses bens. Na primeira possibilidade, que Dworkin denomina “divisão mecânica”, a igualdade de recursos seria entendida como uma alocação de divisão igual pela qual cada um dos indivíduos dessa sociedade receberia uma parcela per capital igual dos recursos externos. Mas nenhuma “divisão mecânica de recursos” como essa pode satisfazer o “teste da inveja” (Dworkin 2000: p.67): nenhuma divisão é igual se, uma vez 52 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e realizada, alguém preferir o quinhão de recursos que coube a alguma outra pessoa ao seu próprio. Uma igualdade estrita de resultados, em suma, não é uma interpretação atraente do ideal de igualdade porque não leva em conta as diferenças de ambições, preferências e planos de vida entre os indivíduos. Isso é levado em conta na segunda possibilidade considerada por Dworkin, que consiste em definir a igualdade de recursos como qualquer alocação (em equilíbrio) que fosse alcançada mediante um dispositivo de mercado, partindo-se de uma distribuição inicial igual de recursos. Dworkin descreve essa segunda possibilidade recorrendo a uma parábola sobre imigrantes náufragos em uma ilha deserta que dividem os recursos externos da ilha por meio de um leilão no qual cada um faz seus lances a partir de uma dotação inicial igual de conchas (Dworkin 2000: 66-71). O leilão hipotético é um dispositivo que tem por objetivo captar a ética da igualdade de recursos. A ideia central é que os recursos devotados à vida de cada pessoa devem ser iguais. Essa ideia central requer uma métrica – estamos falando, é claro, de uma métrica normativa. Para Dworkin, a métrica que leva em conta diferenças de ambições e preferências individuais é a do “custo de oportunidade” (Dworkin 2000: 149), daí porque o dispositivo contratualista (se podemos denominá-lo assim) do leilão hipotético é similar a um mercado. O leilão propõe que a única medida correta para avaliar o montante de recursos sociais escassos que são destinados à vida de uma pessoa consiste em perguntar quão importantes esses recursos são para outros. Esse custo de oportunidade deve figurar no senso que uma pessoa tem do que é ou do que deve ser legitimamente seu e no julgamento de cada pessoa sobre a vida que ela deveria levar. Se um dos hipotéticos imigrantes valoriza especialmente um pedaço de terra na praia, porque adora tomar banho de sol, então ele deve se dispor a pagar por esse recurso um preço que reflita o custo em que outros incorrem por terem de abrir mão do direito de empregar esse mesmo recurso para outras finalida- Á l v a r o d e V i t a | 53 des. 10 Uma das críticas centrais de Dworkin à “igualdade de bem-estar” – à interpretação da igualdade segundo a qual o propósito central deveria ser o de igualar as pessoas tanto quanto possível no nível de bem-estar (de “welfare”) que alcançam pela satisfação de seus próprios gostos, preferências e ambições – é a de que não leva em conta os custos de oportunidade aqui considerados. Se cultivo “gostos caros” como, por exemplo, gostos por vinhos e iguarias raros – estou pensando em um exemplo de Kenneth Arrow, que coloca em questão a possibilidade de realizar comparações interpessoais de bem-estar entre um indivíduo que satisfaz suas preferências gastronômicas com água e farinha de soja e outro, que se sente profundamente infeliz sem vinhos e iguarias raros (Arrow 1973, p. 254) – não posso esperar subsídio da sociedade à satisfação desses gostos. Se somente fosse preciso levar em conta diferenças de preferências, gostos e ambições, a teoria de Dworkin recomendaria parar por aqui. Arranjos de mercado que, no mundo real, cumprissem de forma aproximada o papel do leilão hipotético, garantiriam a igualdade de recursos. Mas isso deixa fora da interpretação da igualdade distributiva diferenças que se devem à “sorte bruta”, como dotações distintas de recursos internos. A terceira possibilidade considerada por Dworkin envolve não somente um leilão ou um dispositivo de mercado para tratar das diferenças de preferências e ambições, mas também a ideia de um mercado hipotético de seguros concebido para levar em conta, em um primeiro momento, as deficiências físicas e mentais severas (os casos mais evidentes de má sorte bruta) e, em um segundo momento, os talentos e capacidade produtiva que têm baixo valor de mercado (Dworkin 2000: 73-99). Suponhamos que as partes do contrato social hipotético de Dworkin – os náufragos da ilha deserta – encontrem-se situadas em uma posição original na qual há um “véu de ignorância” fino: as partes conhecem suas preferências e planos de vida, mas não sabem se são portadoras de 10 Esse exemplo é de Van Parijs (1995: 48-54). 54 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e alguma deficiência, nem sabem que nível de renda serão capazes de auferir de seus talentos adequadamente desenvolvidos. Por trás desse véu de ignorância, cada um dos imigrantes poderia comprar recursos externos da ilha fazendo uso de seu quinhão inicial igual de conchas (de recursos), mas poderia também empregar uma parte disso para se segurar contra ter nascido com uma deficiência severa e contra a contingência de só ser capaz de obter, do exercício de seus talentos e capacidade produtiva, um nível baixo de renda. Haveria um equilíbrio nessa economia de mercado em que houvesse mercados para ocorrências contingentes no qual as partes comprariam contratos de seguro que lhes prometessem compensação caso essas pessoas se revelassem sofrer, no mundo real, de deficiências de diferentes tipos ou caso seus talentos só lhes permitissem obter um nível baixo de renda. Esse ponto de equilíbrio por trás do véu de ignorância é a referência segundo a qual avaliar a distribuição de recursos externos no mundo real e conceber um sistema de tributação progressiva da renda e da riqueza, e de transferências, que assegure a igualdade de recursos (Roemer, 1996: cap. 7). Como determinar esse ponto de equilíbrio ou, reformulando a questão, que nível de cobertura seria racional contratar, considerando-se que, quanto maior a cobertura contratada – no mundo real, quanto mais generosos forem as transferências e os benefícios do welfare state necessário para compensar os efeitos da sorte bruta –, tanto mais elevados terão de ser os prêmios (isto é, os impostos) a serem pagos? Um nível muito elevado de cobertura, o que equivale a uma pessoa ter direito de ser compensada por ser desprovida de talentos e capacidade produtiva que lhes propicie um nível de renda que está bem acima da média, escravizaria os mais talentosos. Sendo necessário colocar os prêmios em um nível muito elevado (isto é, dado que um nível muito elevado de tributação seria necessário para financiar um nível tão generoso de cobertura), os mais talentosos teriam de dar o máximo de sua capacidade produtiva para meramente pagar os prêmios a que estariam sujeitos. Partindo-se desse caso extremo, a racionali- Á l v a r o d e V i t a | 55 dade ex ante (sob o véu de ignorância) de escolha de um dispositivo hipotético de seguro contra não ter determinados talentos se tornaria mais forte conforme diminuísse o nível de cobertura contratado. Conforme esse nível cai, mais isso se aproxima do caso padrão de seguro (privado), em que as pessoas aceitam um pequeno custo financeiro certo para evitar uma perda que, por mais improvável que lhes pareça ser no presente, é grande o suficiente para motivá-las a arcar com o ônus do prêmio. Dworkin supõe que todos escolheriam, se pudessem, se segurar contra não ser capaz de ganhar aquilo que os colocaria no trigésimo centil da distribuição de renda, bastante acima do nível de renda adotado nos EUA e na GrãBretanha para que uma pessoa faça jus a transferências compensatórias. Garantindo-se a todos o direito de não cair abaixo desse limiar, ultrapassá-lo torna-se uma questão de sorte opcional, “pois quem quer que tenha as qualificações necessárias para obter um ganho que se encontra, digamos, no nível do trigésimo centil também terá os talentos para obter um ganho em um nível mais elevado, e por isso preservará uma considerável liberdade de escolha com respeito ao tipo de trabalho [que prefere], e com respeito à combinação que prefere entre trabalho e esforço na atividade de trabalho e consumo adicional” (Dworkin, 2000: 98). Iniciei essa discussão afirmando que, à primeira vista, o “igualitarismo de fortuna” poderia se apresentar como uma crítica à esquerda ao ideal de igualdade democrática do liberalismo igualitário, já que, ao passo que este ideal propõe mitigar os efeitos de contingências sociais e naturais, o sentido do igualitarismo se exprimiria de forma mais clara na exigência de que as desvantagens relativas devidas à “sorte bruta” sejam eliminadas. Mas examinando-se bem as coisas, grande parte do apelo do igualitarismo de fortuna vem não propriamente de seu impulso igualitário, e sim do lugar mais proeminente, em comparação ao liberalismo igualitário, reservado à escolha e à responsabilidade individuais. John Roemer (Roemer 1996: cap. 7) e Will Kymlicka (Kymlicka 1990: 71-85) veem nisso a marca da contribuição do igualitarismo de fortuna – de 56 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e Dworkin, em particular – à teoria da justiça distributiva. O lugar mais proeminente à responsabilidade individual se manifesta já na formulação de princípios fundamentais de justiça social. Ao formular seu princípio de igualdade de recursos, e combinando a segunda e a terceira possibilidades que foram examinadas antes, Dworkin afirma que por um lado, devemos, sob pena de violar a igualdade, permitir que a distribuição de recursos em qualquer momento dado seja (como podemos dizer) sensível à ambição. Ou seja, essa distribuição deve refletir o custo ou o benefício para outros das escolhas que as pessoas fazem de tal forma que, por exemplo, aqueles que escolhem investir ao invés de consumir, ou consumir de forma mais modesta ao invés de mais cara, ou trabalhar de formas mais úteis ao invés de menos úteis, devem poder reter os ganhos que se produzem dessas decisões em um leilão igual seguido de livre-comércio. Mas, por outro, não devemos permitir que a distribuição de recursos seja, em qualquer momento dado, sensível a dotações [endowment sensitive], isto é, afetada por diferenças de capacidade do tipo que produz diferenças de renda, em uma economia de laissez-faire, entre indivíduos com as mesmas ambições. (Dworkin 2000: 89) Embora nem todos os teóricos “luck egalitarians”, como Richard Arneson e G. A. Cohen, estejam de acordo com a noção de Dworkin de igualdade de recursos, todos eles aceitam a justiça de quaisquer desigualdades que resultam de escolhas conscienciosas de pessoas adultas. E, como já foi mencionado, todos eles aceitam e colocam grande ênfase na distinção de Dworkin entre resultados pelos quais os indivíduos são responsáveis – que resultam de suas escolhas voluntárias e que, portanto, estão sob a égide da “sorte opcional” – e resultados ou desvantagens relativas pelos quais não são responsáveis – e que, portanto, estão sob a égide da “sorte bruta”. Mas essa ênfase na escolha e na responsabilidade individuais, longe de levar a uma interpretação mais plausível do propósito do igualitarismo, representa uma vasta concessão à crítica conservadora mencionada no início deste artigo, que justamente sustenta que o igualitarismo corrói a responsabilidade indivi- Á l v a r o d e V i t a | 57 dual ao tirar recursos daqueles que são “merecedores” e ao garantir benefícios e resultados independentemente de empenho e de escolhas pessoais. Permitam-me abrir um parêntese nesse ponto da discussão. O princípio da responsabilidade individual encontrase por trás da justificação dos níveis crescentes de desigualdade de renda e riqueza que se verificam em muitos países do mundo, de forma mais acentuada nos países desenvolvidos anglo-saxônicos, mas também em países do sul da Europa, na Índia e na China. Mas há dois pesos e duas medidas quando se trata de apelar à responsabilidade individual no debate público de questões que têm relevância para a justiça social. Inicio o parêntese com algumas breves observações sobre esse aumento da desigualdade. Um estudo recente dos economistas Anthony Atkinson, Thomas Piketty e Emmanuel Saez mostra que a parcela da renda total que, nos Estados Unidos, vai para os 1% mais ricos (aqueles que, em 2007, tinham uma renda anual acima de 400 mil dólares), passou de 9% em 1970 para 23,5% em 2007, o que corresponde ao nível mais elevado de desigualdade de renda desde 1928 (Atkinson, Piketty e Saez 2011).11 Para cada dólar de crescimento real da 11 No caso do Brasil, na primeira década do século XXI, houve não somente redução nas taxas de pobreza absoluta, como também uma redução expressiva da desigualdade de renda. De acordo com uma estimativa (Soares 2010), o coeficiente de Gini de desigualdade de renda (multiplicado por 100) caiu de 59,4 pontos em 2001 para 55,9 pontos em 2006, o que equivale a uma redução de 0,7 ponto em média por ano nesse período. Mas, considerando-se que entre os fatores que explicam essas reduções encontram-se a expansão de programas sociais como o Bolsa-Família e a política de elevação do valor real do salário mínimo (que impactou as transferências indexadas ao salário mínimo e, muito provavelmente, também os salários que estão próximos ao salário mínimo no mercado de trabalho), há dúvidas sobre a eficácia dessas políticas para garantir a continuidade dessas tendências de queda no futuro. Seriam precisos 12 anos consecutivos com essa medida de 0,7 ponto de redução ao ano do coeficiente de Gini para que o Brasil atingisse os níveis de desigualdade de renda que os Estados Unidos, o mais desigual dos países ricos da OCDE, apresentavam em 2006. E seriam necessários 24 anos com essa média anual de redução para o Brasil atingir os 58 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e renda entre 1976 e 2007, 58 centavos foram para os 1% mais ricos. Na maior parte desses países, uma parcela significativa dos ganhos dos 1% mais ricos se deveu a um forte crescimento dos rendimentos de trabalho mais elevados (em comparação aos rendimentos de capital), especialmente os salários e gratificações dos executivos de nível mais elevado. A desigualdade também aumentou de forma acentuada entre os que se encontram no 90º. centil e os que se encontram no 50º. centil da distribuição de ganhos salariais. Os ganhos dos assalariados que se encontram no 90º. centil, tais como os que desempenham funções gerenciais, cresceram muito mais rapidamente do que os salários dos trabalhadores, tais como operários e assistentes administrativos, que se encontram no 50º. centil (Rajan, 2010). Invertendo tendências à redução da desigualdade de renda que se verificavam, em países como os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, desde a Segunda Guerra Mundial, a partir da década de 1980, a distribuição de renda se tornou mais desigual, e os ricos, especialmente os que se beneficiam dos supersalários (incluindo os bônus) do setor financeiro, tornaram-se e continuam se tornando cada vez mais ricos. Não há uma causa única para essa inversão. Certamente as reduções de impostos para os mais ricos nos anos 1980, nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha sob os governos (respectivamente) Reagan e Thatcher, e que foram mantidas por todos os governos subsequentes, contribuíram para isso. Também há fatores que respondem pelo crescimento da desigualdade de renda pré-tributação. No caso de uma economia capitalista desenvolvida como a dos Estados Unidos, as mudanças tecnológicas requerem e recompensam de forma cresníveis de desigualdade de renda que o Canadá apresentava em 2006. “Se continuarmos reduzindo nosso coeficiente de Gini a 0,7 ponto ao ano pelos próximos 24 anos [de 2006 a 2030], não será possível ter grandes favelas coexistindo com condomínios de luxo, indivíduos à beira da fome no sertão do Cariri no mesmo país cujos céus são cruzados por executivos viajando na segunda maior frota de aviões particulares do mundo, nem um exército de empregados particulares passando as roupas, encerando os pisos e lavando os banheiros da classe média” (Soares, 2010: 376). Á l v a r o d e V i t a | 59 centemente diferenciada a força de trabalho de alta qualificação educacional e profissional; no entanto, as oportunidades educacionais permanecem muito desiguais. Como Rajan (2010) observa, isso é especialmente importante para explicar o aumento do diferencial, mencionado acima, entre aqueles que obtêm rendimentos que os colocam no 90º. centil e aqueles, os que estão na posição do “trabalhador mediano”, que obtêm rendimentos que os colocam no 50º. centil. Não tenho como examinar de forma apropriada a questão, que envolve uma discussão empírica complexa, mas cabe pelo menos mencionar uma mudança de cunho ideológico que tem conexão com a temática que estou discutindo. Já foi dito que a ideologia do mérito e do esforço individuais presta-se a justificar as desigualdades que beneficiam especialmente os ricos e os super-ricos. Entretanto, no capitalismo dos anos 1980 em diante, essa justificação se dissociou inteiramente da velha ideologia calvinista, que se fundava em uma ética do esforço e da responsabilidade individuais, mas que tinha por componentes, no que diz respeito à conduta dos mais privilegiados, certo sentido de “noblesse oblige”, o cultivo da confiança e da boa fé nas relações econômicas e um compromisso com a criação de valor econômico no longo prazo. O novo herói do capitalismo, como se evidenciou de forma dramática na crise financeira de 2008, que resultou na chamada “Grande Recessão” da qual o mundo desenvolvido (no momento em que escrevo, em agosto de 2011) ainda está longe de se recuperado, já não tem peias morais de espécie alguma. Quaisquer práticas, mesmo aquelas que envolvem as condutas de risco excessivo exemplificadas pela produção de “inovações financeiras” como derivativos lastreados em hipotecas “subprime”, e que foram protagonizadas por grandes instituições financeiras de países capitalistas desenvolvidos com as bênçãos das agências de avaliação de risco de alto prestígio nos denominados “mercados”, são permissíveis, se tiverem por objetivo maximizar o valor das ações, a rentabilidade imediata e as “stock options” dos executivos. E, como foi o caso até o momento, nenhum executivo de alto nível das 60 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e instituições financeiras envolvidas foi pessoalmente responsabilizado pelas consequências desastrosas, para as vidas de milhões de pessoas, de tais “práticas inovadoras”. Não parece absurdo especular que, entre as causas da Grande Recessão, encontrem-se não somente as falhas de regulamentação financeira e a própria desigualdade de renda entre ricos e superricos, por um lado, e o restante da sociedade 12 , por outro, mas também um fenômeno mais profundo e de consequências imprevisíveis: um colapso moral do capitalismo. 13 Tocqueville 12 13 Raghuram Rajan, ex-economista-chefe do FMI, e que esteve entre os poucos de sua profissão (ao lado de Nouriel Roubini e Kenneth Rogoff) a antever e a alertar para os riscos de uma crise financeira mundial como a que eclodiu em 2007 e assumiu grandes proporções com a quebra do Banco Lehman Brothers em setembro de 2008, sustenta que o crescimento da desigualdade de renda nos Estados Unidos foi uma das causas importantes – essa é, para Rajan, uma das “falhas geológicas da economia mundial” – da crise (Rajan, 2010: cap. 1), que passou despercebida para a maior parte dos analistas. Conforme os rendimentos no topo disparavam, os políticos nos Estados Unidos procuraram formas de responder às angústias da classe média e da classe média baixa – aqueles cujos ganhos os colocam nas proximidades do 50º. centil da distribuição de ganhos salariais – com os salários estagnados e com a crescente insegurança do emprego. Como não podiam elevar facilmente o salário do “trabalhador mediano” (Rajan acredita que fazer isso depende crucialmente de elevar a qualidade da educação, da educação pré-escolar ao ensino médio, e de elevar as oportunidades de acesso à educação superior de qualidade), os políticos dos dois partidos nos Estados Unidos optaram pela via de menor resistência política e deram a seus eleitorados mais para gastar fomentando uma explosão do crédito, especialmente por meio do crédito imobiliário. “(...) a resposta política à crescente desigualdade – quer tenha sido cuidadosamente planejada ou uma reação não premeditada às demandas do eleitorado – foi expandir os empréstimos às famílias, especialmente as de renda baixa. Os benefícios – consumo crescente e mais empregos – foram imediatos, enquanto o pagamento da conta inevitável pôde ser postergado para o futuro. Por mais cínico que isso possa parecer, o crédito fácil tem sido utilizado como paliativo ao longo da historia por governos que se mostram incapazes de enfrentar diretamente as ansiedades mais profundas da classe média” (Rajan, 2010: Introduction). É o que faz o economista Antón Costas em um artigo intitulado “Quiebra moral de la economía de mercado”, publicado no jornal El País de 18 de abril de 2011. Á l v a r o d e V i t a | 61 observou, há mais de 150 anos atrás, em O Antigo Regime e a Revolução, que privilégios dissociados de um sentido de “noblesse oblige” geram um senso de indignação entre os estratos inferiores da sociedade que pode servir de combustível para ideias de mudança radical (Tocqueville, 2009 [1856]: Livro II, cap. 1). Constitui outra questão a de saber se forças políticas de esquerda serão capazes de traduzir esse senso de indignação, e o mal-estar no capitalismo, em uma visão coerente e praticável de justiça social. Não me arriscarei a fazer previsões sobre os efeitos de longo prazo da crise de 2008. O ponto que quero ressaltar com este parêntese é mais limitado. Altos executivos de grandes corporações e bancos raramente são responsabilizados pelas práticas temerárias e condutas de risco que não têm outro propósito que não o de maximizar no curto prazo a “bottom line” de suas companhias. Quando tudo dá errado, como em 2008, quando desmoronou, nos países do Atlântico Norte, a gigantesca “pirâmide de Ponzo” montada com base em produtos financeiros “inovadores” lastreados em “hipotecas podres”, os novos heróis do capitalismo ainda podem recorrer ao argumento do “too big to fail” para justificar que gigantescos mecanismos de socialização das perdas sejam colocados em prática pelos Estados e para que, dessa forma, escapem de enfrentar as consequências de suas condutas. De outra parte, como ressalta Brian Barry (Barry 2005: pp. 142-153), e nesse ponto fica claro por que falar em duplo padrão, o princípio da responsabilidade individual recai com extrema dureza, nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, sobre os que fraudam os “testes de meios” (ao não declarar pequenas rendas que obtêm na economia informal) e os “testes de trabalho” para obter benefícios de assistência social. De modo mais geral, reformas dos sistemas de bem-estar social foram realizadas nos dois lados do Atlântico, e sob os governos de centro-esquerda de Clinton e Blair, com base na ideia de que os benefícios em dinheiro de assistência social não constituem direitos, justificados por exigências de justiça, e devem ter por contrapartida a “responsabilidade pessoal” dos beneficiários. 62 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e No caso dos Estados Unidos, entre as condicionalidades do programa “Temporary Assistance For Needy Families”, que foi criado em 1997 para substituir o programa Aid to Families With Dependent Children (um dos componentes centrais do “New Deal” de Roosevelt), está a de que mães de crianças pequenas, em famílias uniparentais pobres, disponham-se a realizar pelo menos 30 horas semanais de “atividades de trabalho”. De desempregados e mães solteiras pobres espera-se, para que façam jus a modestas transferências monetárias, que assumam a responsabilidade pela sua situação e que se empenhem em encontrar formas de sustentarem a si próprios. Esses são os pobres “responsáveis” e, por isso, “merecedores” de apoio público. A análise precedente ressalta o quanto há de hipocrisia em se exigir “responsabilidade pessoal” de mães solteiras pobres, desempregados, pessoas doentes e outros beneficiários de programas de assistência social, e mesmo dos chamados “welfare cheats”, quando os super-ricos do setor financeiro e de grandes corporações, ademais de contarem com uma ideologia que justifica suas remunerações extraordinariamente elevadas com base no mérito individual, podem tomar suas decisões e fazerem suas escolhas, ao que parece, em uma zona moralmente livre. Fecho o parêntese dizendo que isso deveria servir de alerta contra os esforços teóricos para levar em conta um princípio de responsabilidade individual já no nível da formulação de princípios fundamentais de justiça. Voltemos à discussão do igualitarismo de fortuna. Não estou afirmando que Dworkin e outros “luck egalitarians” endossariam um tratamento à responsabilidade pessoal tão mesquinho quanto o que acabo de examinar, no caso dos beneficiários de programas de assistência social nos Estados Unidos e na GrãBretanha. Mas há um componente desse tratamento que contamina a teoria da igualdade distributiva do igualitarismo de fortuna: a distinção entre os desprivilegiados “merecedores” e os “não merecedores”, entre os que são ou não responsáveis por sua má fortuna. Á l v a r o d e V i t a | 63 Recordemos o que foi dito antes sobre a distinção central de Dworkin. Para as desvantagens que se devem à má sorte opcional, aquelas que resultam de gostos e preferências que a pessoa escolheu cultivar ou de riscos nos quais a pessoa escolheu incorrer, nenhuma compensação é devida por parte da sociedade. Para esses casos, como vimos, aplica-se a métrica dos “custos de oportunidade” que só pode ser realizada por arranjos de mercado e que obriga a pessoa a assumir a responsabilidade pelas consequências desfavoráveis de suas próprias preferências, ambições e escolhas. Para as desvantagens que se devem à má sorte bruta, aplica-se a métrica normativa do “seguro hipotético”, que justifica as compensações e benefícios de um welfare state. Mas, como Elizabeth Anderson sustentou em importante ensaio de crítica ao “igualitarismo de fortuna” (Anderson 1999), há problemas no tratamento dispensado tanto às vítimas da má sorte opcional como às vítimas da má sorte bruta. Há vítimas da má sorte opcional que uma interpretação plausível do igualitarismo não pode admitir que fiquem ao relento, isto é, que arquem inteiramente com as consequências de suas escolhas. Para exemplificar, pensemos nos casos de pessoas que desenvolvem hábitos alimentares que podem lhes causar sérios problemas de saúde, ou de pessoas que praticam esportes que podem resultar em acidentes que causam deficiências graves ou ainda, para mencionar um dos exemplos de Anderson, no de pessoas em situação de vulnerabilidade (normalmente mulheres) que cuidam de outros, de filhos, de pessoas doentes ou de idosos. Estaríamos justificados em supor, nesses casos e em outros semelhantes, que a sociedade oferecer compensação a essas pessoas pelas desvantagens que sofrem seria moralmente equivalente a subsidiar gostos caros? Por outro lado, as razões oferecidas para compensar as desvantagens devidas à má sorte bruta estigmatizam os beneficiários. Em uma sociedade na qual o igualitarismo de fortuna fosse adotada como concepção pública de igualdade distributiva, seria publicamente reconhecido que as pessoas que merecem compensação pelas desvantagens que sofrem, têm direito a isso não em virtude de seu 64 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e status moral e social igual, e sim em virtude de sua dotação inferior de recursos internos – seja porque são portadoras de deficiência e de necessidades especiais, seja porque seus talentos e capacidade produtiva têm pouco valor de mercado. Aqueles que pleiteariam compensação em nome da justiça o fariam com base em uma dotação de recursos internos considerada inferior à de outros na sociedade. Será essa base pública de justificação à compensação de desvantagens compatível com o princípio de “consideração e respeito iguais” pelos cidadãos, que Dworkin considera a “virtude soberana” de uma sociedade justa? Extremar o “argumento da arbitrariedade moral”, com o propósito de abrir espaço para a responsabilidade pessoal na formulação de princípios fundamentais de justiça, acaba por solapar o ideal de igualdade democrática, tal como interpretado pelo liberalismo igualitário. O que esse ideal propõe é que as desvantagens a serem compensadas e as necessidades a serem satisfeitas, como quer que tenham se produzido, se pela sorte opcional ou pela sorte bruta, são aquelas que têm relação com as capacidades dos cidadãos que são definidoras de sua condição de pessoas morais livres e iguais – a faculdade moral de constituir uma concepção do próprio bem e a faculdade moral de um senso de justiça. A suposição é que uma noção de “igualdade de bens primários”, interpretada de forma apropriada, pode dar conta das “necessidades dos cidadãos” assim entendidas. 14 Essa suposição abre outra frente de 14 Norman Daniels, em vários de seus trabalhos (Daniels 2003; 2010) empenha-se em demonstrar um ponto que simplesmente pressupus (sem argumentar) na seção I deste artigo: o de que o ideal de igualdade equitativa de oportunidades tem implicações não somente para a distribuição de oportunidades educacionais e de acesso a posições ocupacionais e de responsabilidade, mas também para a garantia do acesso a serviços de saúde de qualidade. Necessidades relativas à saúde têm um peso crucial para a liberdade efetiva de uma pessoa, do modo como essa ideia de liberdade foi interpretada na seção I acima. As desigualdades de condição de saúde devem ser entendidas, como Daniels enfatiza, como “necessidades dos cidadãos”, que devem ser enfrentadas por meio de um sistema público de saúde que objetive garantir, tanto quanto possí- Á l v a r o d e V i t a | 65 discussão, dessa vez com o enfoque da capacidade que vem sendo desenvolvido por Amartya Sen. Um dos mantras de Sen é a proposição segundo a qual diferenças de dotação natural e de situações sociais implicam capacidades diferenciadas de converter recursos distribuídos por instituições (tais como os bens primários sociais) em diferentes combinações de functionings valiosas ou em diferentes “conjuntos capacitários”. Tratei desse debate em outro trabalho (Vita 1999). Valeria a pena reexaminá-lo, não somente porque é preciso levar em conta uma contribuição recente de peso de Sen (Sen, 2009) à teoria da justiça, mas também para avaliar em que medida uma crítica similar àquela que aqui desenvolvi ao tratamento que o igualitarismo de fortuna dá à “má sorte bruta”, especialmente às diferenças naturais, não se aplicaria também ao enfoque da capacidade. Mas isso terá de ficar para outro momento. IV O que levou o igualitarismo de fortuna a se equivocar – como sustentei que é o caso – na interpretação das aspirações normativas do igualitarismo? Argumentei que isso se deve à tentativa de incorporar um princípio de responsabilidade pessoal já no nível da formulação de um princípio fundamental de justiça distributiva. E as recomendações que se seguem disso, quer esse princípio seja interpretado como a “igualdade de recursos” proposta por Dworkin, quer seja interpretado como “igualdade de acesso à vantagem” proposta por G. A. Cohen, têm a implicação de que o Estado – os cidadãos considerados como um corpo coletivo – deverá fundamentar a compensação de desvantagens sociais em juízos moralizantes sobre preferências, ambições e escolhas individuais, e sobre dotações naturais e capacidades produtivas “inferiores”. vel, e de forma razoável e equitativa, o “funcionamento normal” dos cidadãos ao longo da vida inteira. 66 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e Finalizo este artigo tratando da seguinte questão: se a interpretação do igualitarismo de fortuna tem essa implicação problemática, que lugar, afinal, o liberalismo igualitário reserva à responsabilidade individual em sua própria interpretação do igualitarismo? Para responder a essa questão, examinarei uma incoerência que G. A. Cohen afirma ter encontrado na teoria de Rawls, que diz respeito justamente a esse tópico.15 O problema, que, como nota Cohen, apresenta-se ao pensamento igualitário de esquerda de modo geral, é o de “reconciliar a representação do indivíduo como capaz de dirigir responsavelmente a formação de seus próprios gostos com as suposições de que Rawls se vale em outros momentos para justificar seu igualitarismo” (Cohen, 1993: 13-14; Cohen, 1989: 912-916). De um lado, estão as suposições necessárias à justificação do igualitarismo. Rawls rejeita a ideia de que a distribuição desigual de oportunidades e recursos escassos possa se justificar pelo mérito individual. O argumento é que o mérito individual – um atributo que é indissociável das preferências, gostos e ambições de uma pessoa como, por exemplo, as atitudes individuais que valorizam o trabalho e o esforço persistente em detrimento do lazer, a poupança em detrimento do consumo imediato, a disposição de assumir riscos, e assim por diante – é fortemente condicionado por fatores moralmente arbitrários. Vejamos o que diz Rawls na seção 48 de Uma teoria da justiça: As parcelas distributivas (...) não estão correlacionadas com o valor moral, uma vez que a distribuição inicial dos talentos naturais e as contingências do seu cultivo e desenvolvimento nos primeiros anos de vida são arbitrárias de um ponto de vista moral. O preceito que intuitivamente parece chegar 15 Aqui estou reformulando uma passagem de um trabalho anterior, no qual também analisei essa objeção de G.A. Cohen a Rawls (Vita, 2007: 165-171). Meu objetivo, naquele trabalho, era fazer uma crítica ao “welfarismo subjetivo”. Agora me parece que a objeção de Cohen é mais bem enquadrada em uma discussão do “igualitarismo de fortuna”, que é a perspectiva normativa adotada pelo próprio Cohen. Á l v a r o d e V i t a | 67 mais próximo de recompensar o mérito moral é o da distribuição segundo o esforço, ou melhor, segundo o esforço consciencioso. Mais uma vez, porém, parece claro que o esforço que uma pessoa está disposta a fazer sofre influência de suas capacidades e talentos naturais e das alternativas que estão a seu alcance. Outros fatores permanecendo constantes, é mais provável que os mais talentosos se esforcem conscientemente, e parece não haver um modo de não levar em conta sua maior boa fortuna. A ideia de recompensar o mérito é impraticável. (Rawls, 2008: 387-388) 16 De outro lado, acompanhando o raciocínio de Cohen, está a suposição de que o indivíduo deve ser responsável pelo cultivo de seus próprios gostos, preferências e fins. Rawls apela a essa suposição para explicar por que sua concepção de igualdade distributiva não necessita preocupar-se com a satisfação de “gostos caros” que, como mencionei brevemente antes, é um problema para as concepções, entre as quais concepções utilitaristas de igualdade, que concebem a igualdade distributiva como uma função de “utilidades” ou de “bemestares” subjetivamente definidos. Permitam-me citar a passagem completa de Rawls (que também é citada por Cohen) que é pertinente ao ponto em questão: Como pessoas morais, os cidadãos têm parte da responsabilidade na formação e no cultivo de seus próprios fins últimos e preferências. Não se pode considerar uma objeção ao emprego dos bens primários o fato de que isso não acomoda aqueles que têm gostos caros. É preciso argumentar, ademais, que é desarrazoado, senão mesmo injusto, supor que tais pessoas são responsáveis por suas preferências e exigir que elas se virem o melhor que podem. Mas sustentar esse argumento parece pressupor que as preferências dos cidadãos estão fora de seu próprio controle, como se fossem inclinações e anseios que simplesmente sobrevêm. A impressão que se tem, nesse caso, é que se veem os cidadãos como portadores passivos de desejos. O emprego dos bens primários, entretanto, apoia-se na capacidade que temos de assumir a responsabilidade por nossos próprios fins. (Rawls, 1982: 168-169) 16 Ver também a seção 17 de Uma teoria da justiça (Rawls, 2008: p. 124). 68 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e Cohen acha que as duas partes da teoria de Rawls não se encaixam. As preferências individuais são vistas de uma forma, quando se trata de desqualificar o mérito como um princípio distributivo para a estrutura básica da sociedade, e de outra, quando o que está em questão é justificar a não satisfação de gostos caros. O liberalismo igualitário rawlsiano e, Cohen supõe, o pensamento igualitário de modo geral parece se defrontar com a desconfortável impossibilidade de conciliar as suposições que fundamentam um princípio de igualdade distributiva com as suposições que fundamentam um princípio de responsabilidade pessoal. Na leitura “luck egalitarian” que Cohen faz da solução para esse problema, se poderia supor que a justificação de compensação por desvantagens estaria sempre na dependência de juízos sobre se essas desvantagens podem ser atribuídas à sorte bruta – e, portanto, a circunstâncias que fora do alcance de escolhas individuais autônomas – ou à sorte opcional – e, portanto, são desvantagens pelas quais os indivíduos podem ser responsabilizados. “De acordo com minha interpretação”, diz Cohen, “o igualitarismo não prescreve a correção ou a compensação da desvantagem enquanto tal. Essa interpretação tem por alvo, mais precisamente, a desvantagem ‘involuntária’, que é aquela que não reflete a escolha do agente. (...) Ao avaliar se a justiça (em contraste com a caridade) requer ou não redistribuição, o igualitário pergunta se alguém que sofre de uma desvantagem poderia tê-la evitado ou se agora tem como evitá-la. Se poderia tê-la evitado, não tem nenhuma pretensão à compensação, de um ponto de vista igualitário.” (Cohen, 1989: 920). Estamos de volta à distinção problemática, que está no coração do igualitarismo de fortuna, entre os que são merecedores e os que não são merecedores de compensação por parte da sociedade. Há, entretanto, um sério mal-entendido na objeção de Cohen a Rawls. Julgamentos sobre preferências, ambições e escolhas individuais, e sobre a responsabilidade pessoal, não desempenham nenhum papel na justificação dos princípios de justiça do liberalismo igualitário e não desempenham nenhum Á l v a r o d e V i t a | 69 papel nas comparações interpessoais de bem-estar baseadas no índice de bens primários. Essas comparações não envolvem nenhum juízo sobre preferências e escolhas individuais nem sobre o que as pessoas merecem individualmente tendo em vista a distinção entre escolha e circunstância, ou entre “sorte opcional” e “sorte bruta”. O objeto da justiça é a estrutura básica da sociedade e não o de constituir juízos moralizantes sobre atitudes e escolhas individuais imprudentes ou autocentradas, nem a reparação de supostas injustiças da natureza em casos individuais – e observe-se que, em outros de seus escritos (Cohen, 1992; e, especialmente, Cohen, 1997), Cohen investe justamente contra essa ideia central do liberalismo igualitário de que o foco da justiça deve se restringir à estrutura básica, não alcançando condutas, atitudes e escolhas individuais. A suposição é a de que há direitos e liberdades, oportunidades e recursos que as pessoas, mesmo divergindo em seus valores e atitudes individuais, têm razões para valorizar. A suposição seguinte é a de que as instituições básicas da sociedade devem ser moldadas de forma a assegurar que o acesso a uma parcela equitativa desses bens e oportunidades permita a cada cidadão exercer a liberdade efetiva, do modo como essa ideia foi interpretada antes, e desenvolver e preservar as capacidades morais que lhe possibilitem ser um membro cooperativo da sociedade ao longo da vida inteira. O que cada um fará com os recursos institucionais que lhes foram propiciados – que preferências e gostos cultivará, que fins tentará realizar – isso já não será, via de regra, um assunto da sociedade. Se a forma de igualdade distributiva prescrita pelo ideal de igualdade democrática for realizada pelas instituições básicas da sociedade, posições relativas desiguais (diferenças de renda, por exemplo) poderão resultar de preferências e escolhas individuais distintas, que é o âmbito apropriado para a manifestação da responsabilidade pessoal em uma visão igualitária. Mas a responsabilidade pessoal não desempenha nenhum papel na justificação do próprio ideal de igualdade democrática e na justificação das recomendações institucionais que objetivem realizar esse ideal. 70 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e A conclusão a que chegamos está muito longe de confirmar a contradição apontada por G.A. Cohen. Somente a garantia da igualdade distributiva na estrutura básica da sociedade torna possível evitar juízos públicos sobre o mérito intrínseco de preferências e escolhas individuais, ou sobre a “inferioridade” de determinadas desvantagens individuais que se devem à má sorte bruta, e oferecer um tratamento normativamente apropriado para a responsabilidade pessoal em uma visão igualitária. Referências ANDERSON, Elizabeth S. (1999), “What is the Point of Equality?” Ethics 109, pp. 287-337. ARNESON, Richard. (1990), “Liberalism, Distributive Subjectivism, and Equal Opportunity for Welfare”. 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P á g i n a | 74 P á g i n a | 75 A QUESTÃO DOS SENTIMENTOS MORAIS NAS FILOSOFIAS POLÍTICAS DE INSPIRAÇÃO KANTIANA: O CASO DE RAWLS Andre J. L. A. Berten Introdução Nós estamos acostumados a frequentar filosofias morais e políticas de três tipos: kantianas, aristotélicas e utilitaristas 1 . Essas filosofias fundamentam as normas morais em última instância sobre a “razão”, mesmo se os significados desse conceito não somente variam, mas divergem de maneira importante. (1) Podemos catalogar as filosofias morais e políticas de orientação kantiana – Rawls, Dworkin, Habermas, e seus numerosos seguidores – de ‘racionalistas’, no sentido em que o fundamento das normas deve ser procurado no uso da argumentação racional ou na deliberação racional. Os cidadãos do Liberalismo político, dotados de dois poderes morais, são cidadãos ‘racionais e razoáveis’. A deliberação argumentada produtora de normas morais, na Teoria do agir comunicativo, é uma deliberação racional, etc. Essas posições são tipicamente 1 É o caso, por exemplo, de várias introduções à ética, como aquelas de Borges, Dutra e Dall’agnol (2002) ou de Canto-Sperber e Ogien (2004) 76 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e modernas, a racionalidade é uma racionalidade subjetiva e as construções políticas ficam muitas vezes ligadas a uma teoria ou outra do contrato social. A questão dos sentimentos existe (por exemplo, o medo da morte em Hobbes, ou a sociabilidade originária em Locke, ou outras formas de descrição quase fenomenológica da natureza humana). Mas esses sentimentos naturais dão origem a um tratamento racional, ou devem ser totalmente transformados pelo estabelecimento do contrato, baseado sobre argumentos racionais. (2) As éticas de orientação aristotélica, no sentido amplo, como aquelas de Hans Georg Gadamer, Hannah Arendt ou Bernard Williams, ou o pensamento político de tipo comunitarista, podem integrar uma consideração dos sentimentos morais, mas não como sentimentos individuais. Essas éticas, geralmente inspiradas de perto ou de longe da Ética a Nicômaco, relacionam os sentimentos morais com as virtudes e com o ideal de uma vida razoável. No debate entre os liberais e os que foram chamados de comunitaristas, como MacIntyre, Sandel ou Taylor (entre outros), há uma valorização do contexto concreto da ação, da tradição, das crenças culturais e correlativamente, uma desconfiança dos sentimentos considerados como propriedades individuais. Embora a moral comunitarista fica crítica da racionalidade moderna, ele se apoia contudo sobre uma certa concepção da razão, mesmo se se trata de uma razão por assim dizer premoderna, razão substancial, incluída nos conteúdos semânticos das crenças. (3) Finalmente, as éticas de orientação utilitarista ou consequencialista, como aquelas de Bentham, Mill, Sidgwick… são éticas racionalistas embora baseadas sobre um sentimento fundamental. Mas esse sentimento, o interesse próprio ou interesse coletivo, fica rigorosamente inscrito num esquema racional. Não é por acaso que o modelo utilitarista está na base de quase toda a teoria econômica moderna e contemporânea e inscreve-se dentro das teorias da escolha racional e de seus derivados. Um dos grandes problemas de todas as filosofias morais racionalistas é a questão da motivação moral, isto é a rela- A n d r e B e r t e n | 77 ção entre o cognitivo, o que podemos considerar como ‘justo’ do ponto de vista racional, e a ação prática, o que nos incentiva a agir conforme esse conhecimento. Segundo a máxima célebre de Hume, “a razão, sozinha, não pode nunca ser motivo para uma ação da vontade” (Hume 2000, II, 3, 3, 449). Essa questão da motivação é mais evidente para os kantianos. Mas ela se coloca também para os consequencialistas (ou utilitaristas), na medida em que, se o interesse próprio pode com efeito motivar, a exigência de universalidade – por exemplo, da maximização do interesse coletivo – constitui uma norma que fica longe dos ‘sentimentos’. Para superar essa dificuldade, podemos entender por que os filósofos que defenderam uma teoria dos sentimentos morais – de Shaftesbury e Hutcheson até Hume e Adam Smith – insistiram, de uma maneira ou de outra sobre a universalidade dos sentimentos morais, seja a simpatia, a benevolência, a compaixão, ou outros. As morais do sentimento respondem a questão da motivação na medida extamente onde há uma ligação interna forte entre motivação e sentimento em geral, e uma convergência empírica entre o teor dos sentimentos e as concepções tradicionalmente consideradas como morais. As teorias desses “sentimentalistas” não negam o papel da razão na determinação da ação, mas subordinam a razão aos sentimentos que são então os determinantes primeiros da ação e das regras da ação, e portanto da ação moral. Se existem razões para pensar que possuimos ou podemos possuir sentimentos morais, podemos também entender por que estamos incentivados a agir moralmente. Se, à diferença dessas últimas teorias, a universalidade dos sentimentos é problemática, será a razão que ficará encarregada de não somente fundamentar as normas morais, mas ainda de fornecer as motivações para agir conforme os seus imperativos. A questão pode ser formulada a partir do problema evocado por Habermas: como reintroduzir na prática as respostas desmotivadas às questões descontextualizadas resultantes do formalismo e universalismo da moral dos princípios? Habermas reconhece que toda moral cognitivista 78 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e “confrontará o agente com as questões da aplicação específica à situação e do ancoramento motivacional dos discernimentos morais. E os dois problemas só podem ser resolvidos se uma coisa vem se ajuntar ao juízo moral: o esforço hermenêutico e a interiorização da autoridade.” (Habermas 2003, 214) Ao passo que a hermenêutica, importante quando se trata da aplicação concreta das normas, fica no nível teórico, o ancoramento motivacional diz imediatamente respeito ao agir. Talvez pode aparecer, aqui, um pouco decepcionante de constatar que Habermas atribui a motivação moral à interiorização da autoridade, mas a teoria do agir comunicativo possui numerosos outros recursos para garantir o ancoramento motivacional – principalmente, a ideia de racionalização do mundo da vida. Porém a dificuldade reaparece incidentemente, por exemplo com o conceito de ‘patriotismo constitucional’ (Habermas 1989 ; 2002). Pois o “constitucional” refere a um senso da justiça, a um conjunto normativo que pertence à moral e ao direito, que pode pretender à universalidade, mas que, enquanto formal e universal, pode faltar de fornecer motivação. O patriotismo pelo contrário refere aos conteúdos de uma ética, de uma cultura e dos apegos que ligam os cidadãos a valores concretos. Aplicando a Habermas o imperativo da prioridade do justo sobre o bem, diremos que o constitucional tem a prioridade sobre o patriótico. Não obstante, a motivação deve vir do patriótico, o que não deixa de levantar uma dificuldade: já que os componentes do patriotismo são contingentes, culturais, não há garantia de sua convergência (ou congruência) com as exigências de uma democracia constitucional. Habermas responderá que numa democracia deliberativa, todos os motivos podem ser debatidos no espaço público. Contudo, se as motivações provêm somente do bem viver, ou das doutrinas abrangentes, há uma desconexão radical entre o justo e o bem, entre as exigências morais universalistas e os motivos éticos ligados à realização da vida boa. Sobra então a antiga questão: por que ser moral? Existiria um ‘senso moral’ ou um ‘senso da justiça’ suscetível de motivar eficazmente os cidadãos das democracias? Me parece que Haber- A n d r e B e r t e n | 79 mas pode apoiar-se sobre uma tal motivação apenas se a racionalização do mundo da vida irriga de tal maneira as esferas da vida ética e das concepções da vida boa que se torna indeterminada a distinção entre o uso pragmático, ético e moral da razão. Porém, as oposições rígidas – entre ética e moral, entre valores e direitos (como, por exemplo, na crítica a Rawls), tornam difíceis esse recurso. Pelo contrário, Rawls ou Dworkin, de maneira diferente, abrem um espaço pelas motivações vindo da esfera de vida boa 2 . Por enquanto, tratarei essencialmente de Rawls e do papel dos sentimentos morais na sua obra. Pois as teses de Rawls – apesar de reinvidicarem-se da tradição kantiana e, portanto, de um certo racionalismo moral –, teses sobre o senso da justiça, sobre a congruência entre o justo e o bem, e sobre as condições da estabilidade numa sociedade bem ordenada, mostram, no meu modo de ver, que a defesa rigorosa e racional dos princípios de justiça, exposta aos procedimentos do equilíbrio reflexivo, não pode prescindir de uma base de sentimentos morais – o que se verifica, entre outro, nas considerações sobre as ‘três leis psicológicas’. Apesar da distância considerável entre Rawls e os teoristas dos sentimentos morais, a teoria da justiça não pode eliminar a necessidade dos sentimentos morais, pelo menos para segurar a estabilidade da estrutura de base de uma sociedade bem ordenada. Se, do outro lado, os sentimentos morais dependem essencialmente do contexto e, mais precisamente, das características das sociedades modernas, relativamente democráticas e constitucionais, pode-se perguntar em que medida as ditas ‘leis psicológicas’ não são também leis culturalmente e historicamente situadas, portanto relativas à figura do cidadão racional e razoável. As teses dos sentimentalistas escoceses, que postulavam formas de altruismo, benevolência ou simpatia naturais, isto é um certo senso moral natural, embora otimistas demais, podiam talvez fornecer uma base credível para dar conta de alguns aspectos do reconhecimento da 2 Dworkin defende um concepção do liberalismo onde liberdade, igualdade e comunidade devem constituir uma unidade (Dworkin 2000)) 80 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e validade das normas e da estabilidade relativa dos laços sociais. Postular um senso moral como capacidade ou competência, simultaneamente cognitiva e sentimentalista, cujas condições de desenvolvimento não implicam necessariamente uma forma de racionalização tipicamente moderna, poderia encontrar apoio nas pesquisas contemporâneas de psicologia cognitiva do desenvolvimento. O investimento sentimentalista nos princípios de justiça ou nos procedimentos do Estado de direito seriam então a aplicação dessa disponibilidade moral tornada possível e medida pela justiça existente na sociedade. 1. Fontes da ordem moral No começo das Lições sobre a história da filosofia moral (Rawls 2005) 3 , Rawls coloca a questão das fontes da ordem moral e mostra que essa questão foi importante nos debates dos séculos XVII e XVIII, quer dizer na emergência da problemática tipicamente moderna. Essa contextualização histórica da questão não é indiferente. Não se trata de uma tentativa metafísica de determinar essencialmente um fundamento das normas morais, pois, como se sabe, a recusa de respostas metafísicas ao benefício de posições políticas e contextuais se tornou cada vez mais clara no pensamento de Rawls. No entanto, a maneira de Rawls interrogar a história da filosofia moral não deixa de ser uma maneira de exemplificar as questões e preocupações filosóficas que atravessam a sua obra inteira. Por exemplo, a referência à natureza humana e aos sentimentos naturais tem, na obra de Rawls, um estatuto senão ambíguo, pelo menos problemático e indica a dificuldade de integrar, dentro de uma teoria moral de inspiração kantiana, isto é dentro de uma teoria da razão prática, a perspectiva dos sentimentos morais. Rawls mostra primeiro que, de maneira geral, para os pensadores dos séculos XVII e XVIII, as fontes da ordem 3 A seguir, as referências as obras de Rawls no texto parecerão somente com a data da edição utilizada. A n d r e B e r t e n | 81 moral podiam ser as seguintes: “a ordem moral que nós é exigida deriva de uma fonte externa ou de algum modo da própria natureza humana (como a razão ou o sentimento, ou ambos) e das exigências da nossa vida conjunta em sociedade”. (2005, 12) A história do pensamento moderno orientou-se cada vez mais para com uma fonte imanente, seja ela individual ou social – e a longa análise que Rawls propõe de Hume é uma ilustração disso. A fonta externa, seja religiosa ou cósmica, se ainda pode sustentar doutrinas abrangentes, deve ser excluída do espaço público sendo dado o pluralismo de fato das sociedades modernas. O debate pode então concentrar-se sobre a natureza da fonte imanente. Vamos deixar de lado, provisoriamente, a alternativa “natureza humana” ou “vida em sociedade” para focalizar uma das questões centrais da reflexão de Rawls e que pode ser considerada como um prolongamento dos debates da filosofia moral moderna: qual é o elemento da natureza humana que deve ser concebido como fonte das normas morais: “a razão ou os sentimentos, ou ambos”? Essa primeira questão não pode ser dissociada de uma segunda questão, colocada nas Lições, a de saber se “o conhecimento ou a consciência de como devemos agir é diretamente acessível apenas a alguns, ou a poucos (o clero, digamos), ou é acessível a toda pessoa que seja normalmente razoável e conscienciosa?” (2005, 12) Se quisermos ligar esta questão à primeira, deveremos perguntar-nos se a razão é uma característica comum a todos os homens ou se seu uso fica reservado aos inteletuais, aos ‘filósofos’. Deveremos também perguntarnos se existe um sentimento moral universal ou se o senso moral é o resultado de uma educação reservada a uma classe ou a uma elite. Embora essas questões sejam aquelas do debate de filosofia moral dos séculos XVII e XVIII, não há dúvida que fazem parte também da reflexão de Rawls ao longo de sua elaboração de uma teoria da justiça. Mas particularmente, teremos que nos perguntar se os indivíduos racionais e razoáveis caracterizam a humanidade enquanto tal ou se devemos concebê-los apenas como indivíduos tipicamente modernos, 82 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e isto é o produto de um mundo da vida racionalizado. E se for o caso, será que todos os indivíduos modernos alcançam o tipo de consciência moral típico dos cidadãos razoáveis e racionais? Rawls concordaria totalmente com a ideia kantiana de que a razão pode espontaneamente andar além da experiência e ser dialética – por exemplo, se ela não aceita o que Rawls chama de ‘burdens of judgment’, isto é o reconhecimento dos limites da razão ou do juízo. Não obstante, sobre essa caracterização da razão, devemos acrescentar uma distinção entre razão teórica e razão prática. Se a razão teórica pode enganarse, a razão prática kantiana é imediatamente universal. Para Rawls, porém, parece claro que a razão prática – o senso da justiça, por exemplo – é o resultado de uma educação ou de condições socio-políticas. Essa questão, aliás, não diz somente respeito à razão, mas também aos sentimentos, pois se, como veremos, certos sentimentos morais são o resultado de relações afetivas positivas e se, por conseguinte, podemos pensar a uma certa ‘educação’ dos sentimentos, essa educação implica em instituições cujo modelo é no final das contas democrático, isto é moderno. Podemos indicar desde agora que essa ‘historicização’ dos sentimentos constitui uma diferença essencial entre Rawls e Hume, entre Rawls e os teóricos dos sentimentos morais em geral. A terceira questão evocada por Rawls nas Lições, é a questão da motivação, questão central, como vimos, para saber se podemos pensar não somente num ‘senso da justiça’, mas também um ‘desejo de justiça’: Cumpre que sejamos persuadidos ou compelidos a nos conduzirmos de acordo com as exigências da moral por alguma motivação externa, ou somos constituídos de tal modo que temos em nossa natureza motivos suficientes que nos compelem a agirmos conforme devemos sem a necessidade de incitamentos externos. (2005, 12) Em outras palavras, como Rawls responde às questões habermasianas do ancoramento motivaconal? E qual é o papel dos sentimentos nesse ancoramento? Essa questão é si- A n d r e B e r t e n | 83 multaneamente psicológica e política. É psicológica no sentido empírico em que tange às tendências naturais, à interiorização das normas, aos sentimentos de afecção, de amor, de culpabilidade, etc. É política ou socio-política, na medida em que a formação das motivações fica dependente do contexto não somente familiar, associativo, mas também institucional, político – como o indica o conceito de sociedade bem ordenada. Além dessas interrogações, Rawls nota que os escritores desse período [os séculos XVII e XVIII] concordam mais ou menos quanto àquilo que de fato é certo ou errado, bom ou mau. Não diferem quanto ao conteúdo da moralidade, quanto a quais são realmente seus primeiros princípios, dos direitos e deveres e das obrigações. Nenhum deles duvidava que a propriedade devia ser respeitada, todos celebravam as virtudes do respeito das promessas e dos contratos, da sinceridade das boas ações, da caridade e muitas outras coisas. O problema para eles não era o conteúdo da moralidade, mas sim seu fundamento. (2005, 15) A percepção social de uma generalidade ou quase universalidade do conteúdo das normas morais pode ter levado os filósofos desse período a postular um senso moral natural. Mas para nós, isso sugere antes que as questões éticas e metaéticas dependem do contexto histórico. Se o problema não era de conteúdo, é porque um ‘sentimento moral’ ou ‘senso moral’ análogo provinha das evidências sociais desse tempo e dessa cultura? Para precisar a posição de Rawls sobre essas questões, tomarei três corpos de reflexões: em primeiro lugar a distinção entre duas tradições de interpretação do desenvolvimento moral ; em seguida, as teses sobre as três leis psicológicas, e finalmente as descrições das formas de desejo, derivados de objeto, de princípios e de concepções políticas. 84 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e 2. Duas teorias sobre o desenvolvimento moral Segundo Rawls a questão do ancoramento das motivações pode ser respondida de duas maneiras diferentes e ambas são teorias do desenvolvimento moral, já que Rawls nunca defende a ideia que os sentimentos morais são inatos. A primeira tradição teórica é empirista e utilitarista (de Hume a Sidgwick). É uma teoria do aprendizado social cujo um objetivo importante é de “fornecer as motivações faltantes” para fazer o que é justo e evitar o que é injusto, na medida em que normalmente o que é bom socialmente não é objeto de nosso desejo interessado e o que é de nosso interesse não é útil à sociedade. “A sociedade deve de algum modo corrigir esses defeitos. Isso acontece pelo meio da aprovação e da desaprovação dos pais e de outras autoridades que, quando necessário, recorrem a recompensas e castigos” (2008, § 69, 565) 4 . Esse aprendizado deve ser feito muito cedo na vida, de sorte que os motivos ou as razões da obediência às normas fiquem fora da consciência. Rawls inclui nessa tradição a psicologia de Freud – e é também aquilo que Habermas chamava de interiorização da autoridade, segunda a teorização da psicanálise freudiana. “A outra tradição do aprendizado moral provem do pensamento racionalista e é ilustrada por Rousseau e Kant e, às vezes, par J.S. Mill, e, mais recentemente, pela teoria de Piaget.”(2008, 567) Poderiamos acrescentar também a teoria do desenvolvimento moral de Kohlberg (1981) que reconhece o paralelismo entre sua teoria do desenvolvimento moral e a teoria da justiça de Rawls. Nessa segunda perspectiva, em vez de oferecer motivacões ausentes, é preciso atribuir aos indivíduos capacidades inteletuais e emocionais inatas ou inclinações naturais tornando possível a consciência moral. 4 A aprovação e desaprovação são elementos centrais da determinação do juízo moral nas teorias dos sentimentos morais, e particularmente em Adam Smith (Smith 2002) A n d r e B e r t e n | 85 Quando as capacidades de entendimento amadurecem e as pessoas passam a reconhecer seu lugar na sociedade, e são capazes de adotar o ponto de vista de outras, elas prezam os benefícios mútuos que decorrem de se establecerem condições justas de cooperação social. Temos uma empatia natural para com as outras pessoas e temos uma susceptibilidade inata aos prazeres da solidariedade e do auto-domínio, e isso constitui a base afetiva dos sentimentos morais, quando temos uma compreensão clara das nossas relações com nossos associados, de uma perspectiva geral apropriada. (2008, 567) Rawls não toma partido entre essas duas concepções do aprendizado moral, embora muitas de suas elaborações ficam mais próximas da tradição racionalista – como se devia esperar de uma teoria da justiça de cunho kantiano. Pelo menos, Rawls se interessa ao desenvolvimento moral conforme ocorreria numa sociedade bem ordenada e, nesse caso preciso, a concepção racionalista parece mais adequada. É nesse sentido que devemos ler o esboço de uma teoria do desenvolvimento moral, isto é uma reconstrução das etapas pelo meio das quais uma pessoa poderia vir aderindo aos princípios de justiça, aceitando a forma de socialização que essa adesão implica. 3. As três leis psicológicas Essas teorias do desenvolvimento moral são importantes quando tentarmos avaliar a significação do capítulo da Teoria da justiça sobre “O senso da justiça”, capítulo no qual Rawls apresenta e discute o que ele chama de “as três leis psicológicas”. Pois as leis psicológicas são, de fato, tendências ou capacidades, e mesmo assim, tendências que aparecem em condições favoráveis. Uma primeira formulação dessas três leis psicológicas aparece num artigo de 1963, com o mesmo título, “The Sense of Justice” (1999, 96sq), onde Rawls propõe uma reconstrução da gênese do senso da justiça. É interessante que, nesse artigo, é a partir da descrição fenomenológica do senso da culpa, da “culpabilidade” [guilt] que é pensada a gênese do senso moral, e que é a partir desse sentimento 86 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e de culpa que Rawls pretende mostrar a naturalidade do senso moral, isto é a relação entre o senso moral e as atitudes naturais. “Na descrição psicológica que segue, são descritos os estágios de desenvolvimento pelos quais o senso da justiça pode nascer de nossas atitudes naturais.” (1999, 100) Rawls reconhece que essa construção se apoia sobre a obra de Piaget 5 , e na Teoria da justiça, ele afirmará que, ao lado de Kant e Rousseau, a teoria de Piaget constitui uma das tradições na explicação da gênese do senso moral. No entanto, a incidência do sentimento de culpa como indicador dos sentimentos naturais, embora fique presente no capítulo equivalente da Teoria da justiça, não conserva nela a mesma importância. O artigo de 1963 marca talvez de maneira mais clara uma das orígens do pensamento moral de Rawls, isto é, suas raizes religiosas 6 . Nas características gerais dessa reconstrução em três estágios, Rawls parte de uma situação considerada como ‘normal’, isto é um contexto de relações positivas de amor, confiança mútua, cooperação, benevolência. Na verdade é um conjunto de características fortemente idealizadas. Se o texto de 1963 ainda pode deixar pensar que Rawls considera que o que revelam os sentimentos de culpa são sentimentos naturais, a ideia de uma essência natural do homem que permitiria de qualificar qualquer afastamento como perversão ou mesmo “culpa“ no sentido religioso, essa ideia ainda metafísica será cada vez mais afastada. A reflexão ulterior sobre os sentimentos naturais corresponderia antes ao que Habermas chama de “quase transcendental”, isto é uma reconstrução das condições de possibilidade da emergência dos sentimentos morais em geral, e em particular do senso da justiça, não como condições de possibilidade “universais e necessárias”, mas como 5 6 PIAGET Jean (1932), The Moral Judgment of the Child, London, Routledge and Kegan Paul A tese de mestrado de Rawls (2009), publicada postumamente, dizia respeito a questões teológicas, a graça e o pecado. Rawls defendia uma interpretação “comunitária” dos valores religiosos. A n d r e B e r t e n | 87 condições de possibilidade determinadas historica e politicamente 7 . Rawls distingue três estágios no desenvolvimento da moralidade – cuja estrutura, inspirada de Piaget (1932), é parecida com o modelo de desenvolvimento moral de Lawrence Kohlberg (1981): os estágios da autoridade, da associação e dos princípios. A emergência dos sentimentos morais fica fortemente ligada a ideia de mutualidade ou reciprocidade (ideia que, como se sabe, ficará um critério essencial de adesão aos princípios de justiça). Na situação de autoridade, amor e confiança para aqueles que têm autoridade é uma resposta normal ao amor dos pais para a criança ; no estágio da associação aparecem as atitudes naturais de amizade, de afecção e de confiança mútua ; e no terceiro estágio, onde se firma o senso da justiça, Rawls indica a “terceira lei psicológica” da maneira seguinte: Essa lei afirma que, quando as atitudes de amor, de simpatia e confiança mútua são geradas de acordo com as duas leis psicológicas anteriores, o reconhecimento de que nós e aqueles com quem nos preocupamos somos beneficiários de uma instituição consagrada e duradoura tende a engendrar em nós o correspondente senso de justiça. Surge em nós o desejo de aplicar os princípios de justiça e de agir segundo eles, quando percebemos como as instituições sociais que a eles atendem promoveram o nosso bem e o bem daqueles com quem nos associamos. Com o tempo passamos a admirar o ideal da cooperação humana justa. (2008, 584-585 tr. mod.) Em 1963, Rawls insiste fortemente sobre a relação entre sentimentos morais e atitudes naturais e deduz dos sentimentos de culpa que: a ausência de certos sentimentos morais implica a ausência de certas atitudes naturais ; ou, alternativamente, que a presença de certas atitudes naturais implica a responsabilidade para certos sentimentos morais. Essas proposições são verdades 7 Essa afirmação escapa ao relativismo porque em Rawls – como em Habermas aliás – há uma teoria da modernidade que é também uma filosofia da história limitada (veja Berten 2011). 88 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e necessárias: elas valem em virtude das relações entre os conceitos dos sentimentos morais e das atitudes naturais. (1999, 109) Rawls abandonará depois expressões como “verdades necessárias”, expressões metafísicas, mas não abandonou a ideia dessa conexão entre sentimentos morais e atitudes naturais. Dá então exemplos que ilustram o que podemos – em termos quase humeanos – chamar uma simpatia natural ou pelo menos uma empatia natural, embora Rawls não usar o termo aqui: ficar assustado quando alguém ameaça um amigo, etc. e acrescenta: O amor é um sentimento – isto é, entre outras coisas, um conjunto de disposições a sentir e manifestar emoções primárias de uma certa maneira. Agora, as verdades necessárias da forma mencionada encima assertam simplesmente que a disposição a sentir-se culpado em certas circunstâncias é um caráter definitório como o é da atitude natural do amor, a disposição de estar alegre na presença do outro ou estar triste quando está ferido.” (1999, 110) A teoria da justiça não pressupõe uma natureza humana essencial e universal mas está construída sobre o pressuposto da possibilidade de sentimentos naturais positivos entre as pessoas. Se não for o caso, a construção do laço social se tornaria problemática, senão impossível. Assim, de maneira repetitiva, Rawls elimina da sua construção da justiça os ‘egoístas puros’, não porque não podem existir, mas porque o fato da sociedade ter uma certa ordem e reproduzir-se implica que a maioria das pessoas não funcionam como egoístas racionais 8 . Rawls, como todas as teorias dos sentimentos morais ou as teorias do intuicionismo racional moral (quase todos os teoristas do século XVIII, os “iluministas escoceses”) recusa a descrição psicológica hobbesiana ou aquela defendida por 8 Uma sociedade de egoístas racionais seria uma sociedade anômica, para utilizar aqui o conceito de Durkheim. Rawls partindo do fato das sociedades existentes deve construir um modelo de justiça compatível com as atitudes gerais mais comuns. A n d r e B e r t e n | 89 Mandeville. A condenação é radical. Rawls não diz que os egoístas racionais não poderiam chegar a noção da justiça como eqüidade – o que é evidente – mas que “se é uma lei psicológica que os indivíduos só procurem seus próprios interesses, é impossível que tenham um senso eficaz da justiça (conforme definido pelo princípio de utilidade).” (2008, 562) É por isso que devemos supor uma certa base natural aos sentimentos de benevolência, simpatia, etc, todos esses sentimentos que Shaftesbury, Hutcheson, Hume e Smith atribuiam aos homens. Certo, Rawls não considera que esses sentimentos são absolutamente naturais (inscritos numa natureza humana fora de todo contexto histórico, social ou cultural) mas, como ele não cessa de o repetir, em algum grau pelo menos, a natureza humana é tal que, quando vivemos com instituições justas e que beneficiamos delas, adquirimos o desejo de agir justamente. Isso é verdade desde a primeira educação e em todos os estágios do desenvolvimento moral. Com efeito, o que é que acontece com pessoas que nunca agem em acordo com seu dever de justiça? Não existe então entre eles laços de amizade e confiança mútua. “Se tais laços existissem, aceitariam outras razões que aquelas de convenência e de auto-interesse” (1999, 111). Essas pessoas podem ter raiva ou ficar chateadas (ou que não reflete sentimentos morais) mas são incapazes de sentir ressentimento e indignação a respeito da ação de um outro como sendo injusta. Pois o ressentimento e a indignação são sentimentos morais. E aqui Rawls introduz uma caracterização essencial do que é um sentimento “moral”: é um sentimento que tem uma justificação. Não é o caso da raiva ou do medo, mas sim do ressentimento e da indignação. “Ambos requerem uma explicação que invoca um conceito moral, digamos, o conceito de justiça, e os seu(s) princípio(s) associado(s) e assim faz referência ao bem ou ao mal.” (1999, 111) Como veremos, essa relação a princípios é central e coloca questões difíceis, mas indica pelo menos que a teoria rawlsiana dos sentimentos morais fica submetida à razão desde que é o objeto de uma argumentação (explicação ou justificação). 90 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e Essa falta de laços de amizade e confiança, essa impossibilidade de sentir ressentimento ou indignação correspondem a uma falta de senso da justiça. No artigo de 1963, a relação entre sentimentos morais e atitudes anturais é particularmente estreita, até implicar numa certa antropologia de tipo metafísica: “uma pessoa que falta do senso da justiça é também sem ter certas atitudes naturais e certos sentimentos morais de tipo particularmente elementar. Dito de uma outra maneira, alguém que falta de um senso da justiça falta de certas atitudes e capacidades fundamentais incluídas sob a noção de humanidade.” (1999, 111) Essa relação entre senso da justiça e atitudes naturais, ou entre senso da justiça e sentimentos, embora pensada mais tarde de maneira mais empírica, fica fundamental para entender o percurso de Rawls tanto na Teoria da justiça que no Liberalismo Político. Se no artigo de 1963, Rawls ainda defende teses que não são compatíveis com o “político, não metafísico”, no meu modo de ver, a teoria dos sentimentos morais fica contudo central, não como que ligada a uma teoria naturalista, mas como uma reconstrução dos sentimentos ou tendências que devemos pressupor para dar conta das realizações das democracias liberais constitucionais. Essa relativização poderse-ia ser considerada como um pragmatismo, desde que a introdução, no capítulo 8 da Teoria da justiça, da problemática da formação dos sentimentos morais fica logo ligada ao problema da estabilidade. Essa entrada em matéria é importante. A questão da estabilidade é uma questão pragmática e não uma questão de fundamento. Uma das críticas de Habermas é que Rawls abandona uma justificação forte para limitar-se a uma questão pragmática. “Eu gostaria de examinar, diz Habermas, se o consenso geral cuja a teoria da justiça não pode prescindir, joga um papel cognitivo ou somente um papel instrumental, ou dito de uma outra maneira, se tem por função primeira aprofundar a justificação da teoria ou, na luz da teoria já justificada, explicitar uma condição necessária da estabilidade social.” (Habermas-Rawls 1997, 27) O que incomoda Habermas é que um teste de aceitabilidade (se a teoria da justiça é susce- A n d r e B e r t e n | 91 tível de ser aceita e proporcionar a estabilidade desejada) – finalmente, um teste pragmático – seria “do mesmo tipo que um teste de consistência” (Habermas-Rawls 1997, 29). A exigência de compatibilidade da teoria da justiça com a psicologia moral pode também aparecer com uma exigência pragmática. Portanto, a questão do senso da justiça inclui necessariamente uma componente psicológica (embora, essa ‘psicologia’ não seja nada antropológica ou natural): a questão é primeiro a de saber como os membros de uma sociedade bem ordenada adquirem o senso da justiça e qual é a força relativa desse sentimento quando é definido por diferentes concepções morais. A ideia de aquisição significa que o senso da justiça não é um sentimento inato 9 , mas se desenvolve plenamente numa sociedade justa, numa sociedade bem ordenada. Como se sabe, por Rawls, uma sociedade bem ordenada está governada por uma concepção pública da justiça e a publicidade é um elemento essencial na formação ou no desenvolvimento dos sentimentos psicológicos. A condição de publicidade estipula que uma sociedade bem ordenada é “… uma sociedade na qual todos aceitam e sabem que os outros aceitam os mesmos princípios de justiça e as instituições sociais básicas respeitam – e são conhecidas por respeitar – esses princípios.” (2008, 560) Rawls pode acrescentar imediatamente que esse fato “implica que seus membros têm um desejo forte e en geral efetivo de agir conforme o exigem os princípios de justiça” (ib.) ou ainda “os que participam desses arranjos institucionais adquirem o correspondente senso de justiça e desejam fazer sua parte para preservá-las”. (2008, 561) Notemos logo que em todas essas citações, a passagem entre o cognitivo e o prático é constante: o senso da justiça, isto é o conhecimento ou o saber do que é justo, se conecta com uma disposição prática, o desejo de agir conforme esse conhecimento. O saber público das condições de uma sociedade bem ordenada ou condições de justiça favorecem certas atitudes dos cidadãos. Esse contexto de uma sociedade bem 9 Em Shaftesbury, Hutcheson, Hume, o senso moral ou a simpatia, são qualidades ‘naturais’ ou ‘inatas’. 92 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e ordenada corresponde às condições relacionais que favorecem o estabelecimento da terceira lei psicológica. E é nessa medida que Rawls pode pretender mostrar que sua concepção da justiça como eqüidade é mais estável que as outras (o utilitarismo principalmente) isto é que sua concepção corresponde mais aos princípios de psicologia moral: “a justiça como eqüidade (…) tem probabilidade de alcançar maior estabilidade do que as alternativas tradicionais já que está mais alinhada com os princípios da psicologia moral.” (2008, 562-3) 4. A ideia da moral fundada sobre princípios A formulação por Rawls da terceira lei psicológica não deixa de colocar dificuldades na medida em que não é evidente que as pessoas possam apegar-se a princípios. Rawls formula claramente essa dificuldade: Agora eu gostaria de considerar o processo pelo qual uma pessoa se apega a esses princípios da mais alta ordem por eles mesmos, de forma que, do mesmo modo como na fase anterior da moralidade de associação ela desejou, digamos, ser um bom esportista, ela agora deseja ser uma pessoa justa. (2008, § 72, 583-584 mod.) Como que agir justamente pode ser atrativo? Conforme a tese de Kohlberg, Rawls pode afirmar que uma pessoa que “alcança as formas mais complexas da moralidade de associação (…), certamente tem um entendimento dos princípios de justiça.” (2008, 583). Mas entendimento não significa vontade ou motivação de agir segundo esses princípios e não resolve a questão da passagem do cognitivo ao prático. Para entender essa passagem, me parece importante de notar uma característica do pensamento de Rawls, que poderiamos chamar de “continuista”. Vimos como na formulação das três leis psicológicas, a segunda fica na continuidade da primeira e a terceira assume as duas primeiras. Destarte, no nível dos princípios, ainda há a presença de sentimentos morais vindo das relações anteriores. Pois a pessoa que chega ao A n d r e B e r t e n | 93 nível inteletual da moral dos princípios “criou vínculos com muitos indivíduos e comunidades específicas, e está disposta a seguir os padrões morais que a ela se aplicam em suas diversas posições e que são reforçados pela aprovação e pela desaprovação sociais.” (TJp § 72, 583) Esses sentimentos morais são do tipo apegos, afecções, mas com uma extensão maior (como, por exemplo podemos sentir compaixão não somente para com os nossos próximos, mas, por identificação, por pessoas que aparecem numa reportagem televisual). Não são sentimentos regidos por principios: Parece que, enquanto a pessoa entenda os princípios de justiça, sua motivação para acatá-los, pelo menos durante algum tempo, provém, en geral, de seus laços de amizade e camaradagem com os outros e de seu interesse em obter a aprovação da sociedade mais ampla. (2008, 583 mod.) Porém, essa motivação fica insuficiente. É verdade que Rawls critica a ideia kantiana que a motivação moral poderia ser o desejo de fazer o que é justo somente porque é justo (sem nenhuma outra razão): ele considera isso como puramente arbitrário e que não poderia servir de base para a estrutura de uma sociedade bem ordenada. Isso significa que uma teoria deontológica pura não é possível. Contudo, e como um leitmotive, a prioridade do justo sobre o bem só pode significar não somente que existe um sentimento do justo, mas que esse sentimento deve ter a prioridade sobre os sentimentos de apegos, amizade, amor, etc. Ao inverso de Hume que pensa que a razão é somente um complemento dos sentimentos, Rawls aceita que é o senso do justo que comporte complementos sensíveis. Ou, dito de outra maneira, devemos pensar que os sentimentos podem ser compatíveis com a racionalidade. Na Teoria da justiça, Rawls se interroga sobre a “racionalidade dos desejos” (2008, § 63, 504). A expressão mesma de “racionalidade dos desejos” ou de “desejos racionais” é fundamental. Se quisermos introduzir os desejos ou os sentimentos dentro de uma perspectiva moral, devemos lhes atribuir 94 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e uma certa racionalidade. Se não for o caso, não exisitiria normas morais, nem ordem moral e estariamos condenados a uma forma ou outra de emotivismo. Os desejos e os sentimentos fazem parte da psicologia humana. Quando Rawls atribui aos cidadãos uma ‘psicologia moral razoável’, essa psicologia diz respeito aos ‘desejos’. Rawls descreve três tipos de desejos (derivados de objetos, de princípios e de concepções políticas). A noção de desejos derivados de objetos não coloca muitos problemas (desejos físicos, ou desejos de status, de glória ou de poder, de riqueza, etc., ligações, afetos, lealdades). Esses desejos podem em geral constituir elementos do que é uma vida boa ou o bem-estar. Embora Rawls fale aqui de psicologia ‘razoável’, o primeiro tipo de desejos descrito pertence antes ao indivíduo racional. Isso faz sentido se admirtimos os conceitos gerais da ação intencional, isto é, no quadro conceitual da folk psychlogy, a ação que se inscreve na lógica do sistema crenças e desejos. Essa primeira forma de desejo corresponde mais a ideia de um indivíduo racional que de um indivíduo razoável, se a racionalidade primária, que liga um desejo a crenças, constitui o modelo da ação racional. Aliás, Rawls liga a noção de desejo racional à ideia de um plano de vida racional, plano racional se e somente se compatível com os princípios da escolha racional e escolhido com plena racionalidade deliberativa (2008, 505). No Liberalismo político, o poder ou a capacidade de escolher uma concepção do bem ou uma forma de vida boa é um poder ou capacidade moral (2000, L II, §7). Nessa perspectiva, não é difícil entender que um desejo e um sentimento ligado a esse desejo pudessem ser considerados como racionais. Mas é conceber a possibilidade de desejos derivados de princípios ou de concepções políticas que não é tão evidente. Em primeiro lugar, Rawls fala de desejos “derivados de princípios”: ele não quer dizer com isso que desejamos os princípios enquanto tais, mas que o alvo ou o objeto do desejo “não pode ser descrito sem o emprego de princípios, racionais ou razoáveis” (2000, II, § 7, 128). Somente um ser racio- A n d r e B e r t e n | 95 nal ou razoável pode ter tais desejos, porque somente um ser racional ou razoável pode entender e aplicar esses princípios. A diferença com o primeiro tipo de desejo é que aqui a referência a princípios se torna explícita. Por exemplo, o comportamento econômico – segundo a descrição padrão do homem economicus – é uma forma de conduta orientada por um desejo (de lucro, por exemplo) que integra referência às leis do mercado ou qualquer outra lei que permite de racionalizar o comportamento econômico. Em nota, Rawls enfatiza que “a força, ou peso, dos desejos derivados de princípios é inteiramente determinada pelo princípio ao qual o desejo está ligado, e não pela força psicológica do desejo em si.” (2000, II, § 7, 128, nota 31). Na lógica teleológica da racionalidade em finalidade, essa observação pode ser ilustrada pela tese de Max Weber (1920) segundo a qual a característica do capitalismo não é o desejo bruto de lucro, mas um desejo submetido a um princípio, uma regra, então um desejo ordenado, portanto racional. Na mesma nota, Rawls escreve: “essa força [psicológica], suponho que existe e possa fazer parte de explanações da forma segundo a qual as pessoas agem realmente, mas nunca de que como devem se comportar, ou de como deveriam ter-se comportado, moralmente falando.” Se pode-se falar de racionalidade de um desejo, é na medida em que a questão normativa não pode ser reduzida ao desejo bruto mas requer uma explicação ou uma justificação. Avançando prudentemente, diremos que é possível reconhecer a racionalidade de um desejo no quadro de uma racionalidade instrumental ou teleológica. A moral utilitarista ou consequencialista adota categorias normativas funcionais, mesmo se a extensão universalista das normas de maximização do bem-estar já ultrapassa o quadro primário dos desejos racionais. O passo seguinte diz respeito aos desejos derivados de princípios e ditos razoáveis: aqueles que regulamentam a maneira pela qual uma pluralidade de agentes (ou uma comunidade ou sociedade de agentes), quer de pessoas ou grupos individuais, devem se condu- 96 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e zir em suas relações mútuas. Os princípios de eqüidade e justiça que definem os termos eqüitativos de cooperação são exemplos canônicos, assim como os princípios associados com as virtudes morais reconhecidas pelo senso comum, tais como a honestidade e a fidelidade. (2000, II, § 7, 129) Esse tipo de desejos razoáveis se explica somente se admitimos a tese da continuidade a partir do segundo estágio psicológico, que faz que quando os demais nos tratam com honestidade ou equidade, estamos naturalmente levado a agir da mesma maneira. Os mecanismos psicológicos que estão operando nesses comportamentos ou nessas atitudes devem provavelmente fazer apelo a sentimentos conscientes e inconscientes, e portanto não racionais, mas pelo menos ao nível dos comportamentos externos e da consciência que os acompanha, as normas morais podem aparecer como racionais (como nos jogos repetitivos) e razoáveis, porque correspondem a um sentimento (quase) natural de solidariedade, de afecção, etc. As normas rferem portanto a princípios. Finalmente, há também os desejos derivados de uma concepção política. Para nós, esses são os mais importantes… (2000, II, § 7, 129) A partir da definição do ideal do cidadão, pode-se dizer que: “os cidadãos não são apenas membros normais e plenamente cooperativos da sociedade, mas também querem ser tais membros e ser reconhecidos como tais” (2000, II, § 7, 129) Esse “querer” pode ser entendido como um desejo derivado de princípios políticos. Se aceitarmos a continuidade que, dos apegos primários, nos leva a agir segundo princípios racionais e razoáveis, não veremos dificuldade ao aceitarmos desejos derivados de uma concepção política. Ao vivermos numa sociedade justa, uma sociedade bem ordenada, sabendo que os outros conhecem e querem respeitar os princípios de justiça, poderemos entender por que desejaremos viver segundo essas exigências, mesmo se elas não correspondem a desejos imediatos e imdiatamente auto-interessados. Aqui Rawls escreve: A n d r e B e r t e n | 97 Observe aqui o óbvio caráter não-humeano dessa interpretação da motivação e como ela se contrapõe às tentativas de limitar os tipos de motivação que as pessoas têm. (2000, II, § 7, 130). É assim que Rawls marca sua diferença com as morais dos sentimentos. Não se pode restringir as motivações a ser ‘paixões’ (ou ‘sentimentos’ no sentido forte). Nas Lições, quando Rawls examina a mesma questão dos desejos derivados de princípios, ele se pergunta se o ‘apetite geral para o bem’ de Hume pode ser considerado como um desejo derivado de um princípio. Mas desde que o uso da razão para Hume é instrumental, o desejo do bem enquanto tal não pode encontrar um ‘princípio’. Para Hume, a razão não pode ser fonte de motivação, ela pode só corrigir eventualmente um desejo ou uma paixão, mostrando seu caráter irrealizável. No limite, poder-se-ia dizer que Hume reconheceria desejos derivados de princípios racionais, mas nunca de desejos derivados de princípios razoáveis ou de concepções políticas. Devemos entender aqui o que Rawls quer dizer quando ele diz que Hume não tem uma teoria da razão prática: ele não tem uma teoria que liga a ação prática ou ação moral à razão, e portanto, que liga a razão à moral em geral. É por isso que os motivos ou as motivações morais são, numa perspectiva humeana, unilateralmente orientados pelos sentimentos ou pelas paixões. Rawls, pelo contrário, pode, a partir de sua reconstrução do desenvolvimento psicológico, encarar a complexidade da psicologia humana e a diversidade das motivações possíveis. Nessa psicologia, a educação, o contexto social e afetivo, a formação cultural introduzem formas de desejos ou de motivação que não podem reduzir-se a desejos imediatos. Desse ponto de vista, a passagem do cognitivo ao prático se inscreve no que poderiamos chamar de uma pragmática (apesar de Rawls não utilizar esse termo). O elemento cognitivo aparece na formulação seguinte: Capazes de raciocínio e julgamento, podemos entender doutrinas complexas do justo e da justiça, sejam religiosas ou fi- 98 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e losóficas, morais ou políticas, assim como as doutrinas do bem. (2000, II, § 7, 130 mod.) E a passagem ao prático segue imediatamente: Podemos nos ver atraídos por concepções e ideias que expressam tanto o justo quanto o bem. Como fixar limites para o que pode atrair as pessoas na deliberação e o pensamento e fazê-las agir em conseqüência? (2000, II, § 7, 130 mod.) Assim, a visão da justiça como eqüidade conecta o desejo de realizar um ideal político de cidadania com as duas capacidades morais dos cidadãos e sua faculdades normais, na medida em que estes são educados para aquele ideal pela cultura pública e suas tradições históricas de interpretação. Isso ilustra o papel amplo de uma concepção política em sua função educativa. (2000, II, § 7, 131) Em nota, Rawls dá o exemplo de um desejo derivado de uma concepção política (como aquela proposta por Scanlon: o desejo de agir de maneira que pudesse ser justificada). Aceitar a existência desse desejo e descobrir o que o satisfaz apenas pode ser pensado no quadro de uma psicologia complexa e, evidentemente, não humeana, ou pelo menos integrando a perspectiva humeana num espaço maior e mais rico. Rawls acrescenta aqui, em nota, uma sugestão interessantíssima: Uma linha de pensamento e reflexão é necessária para explicar em detalhes o que requer o desejo dependente de concepção. Portanto, isso significa que, depois que os desejos derivados de um concepção política são reconhecidos com elementos do que Williams chama de ‘elenco de motivações de uma pessoa’ – acredito que ele admitiria essa possibilidade – então a fronteira entre sua visão supostamente humeana e a visão de Kant, ou aquelas relacionadas a esta, começa a se dissolver.” (2000, II, § 7, nota 33, 130-131 mod.) A fronteira entre uma visão humeana e uma visão kantiana – entre uma visão das fontes da moral nos sentimentos ou na razão – tende a desaparecer: com efeito, na minha leitura, falar de um desejo derivado de princípios ou de uma con- A n d r e B e r t e n | 99 cepção política, implica que os motivos da ação conforme as normas morais são motivos de tipo sentimental: mesmo se, ao inverso de Hume, Rawls pensa a formação desses desejos a parti da história e se, principalmente, encaixa os sentimentos na razão que lhes dá forma, orientacão e limites. Se quisermos entender melhor de que sentimento se trata, eu penso – sem argumentar essa hipótese – que ‘o desejo de reconhecimento’ é a forma de desejo moral que poderia ser deduzido da importância que Rawls dá à reciprocidade, à mutualidade e à publicidade nas suas argumentações. Conclusão Se a teoria da justiça pode ser considrada também como uma teoria dos sentimentos morais e políticos, se tornou cada vez mais claro que, para Rawls, a teoria psicológica dos sentimentos não determina uma essência humana, a-histórica, universal, eterna. Trata-se antes da psicologia que podemos atribuir aos cidadãos modernos, racionalizados, formados numa tradição de liberalismo e de democracia constitucional. É isso que Rawls chama da “psicologia moral razoável” dos cidadãos, uma psicologia moral baseada na concepção política da justiça como eqüidade. “Não é uma psicologia originária da ciência da natureza humana, e sim de um esquema de conceitos e princípios que expressa uma certa concepção política da pessoa e um ideal de cidadania.” (2000, II, § 8, 132) As características dessa psicologia moral razoável nem podem ser derivadas de uma concepção qualquer moderna da justiça, utilitarista ou aristotélica por exemplo, mas se restringem à ser a psicologia razoável da justiça como eqüidade. Existem, nas sociedades democráticas modernas várias teorias políticas e várias teorias morais. A decisão entre elas não depende de uma descrição verdadeira ou empírica da psicologia dos indivíduos. Não se trata da “descrição” psicológica dos indivíduos das sociedades modernas, mas antes de uma idealização normativa dos sentimentos dos cidadãos que, por sorte, viviriam numa sociedade bem ordenada. Podemos, contudo, se a teo- 100 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e ria do desenvolvimento moral é correta, admitir a plausibilidade da congruência entre as motivações dos cidadãos numa sociedade bem ordenada e as exigências de justiça. Isso se apoia de novo sobre a ideia de reciprocidade e de publicidade. A sensibilidade moral dos cidadãos é “uma disposição em propor termos eqüitativos de cooperação que é razoável de supor que os outros aceitem, assim como uma disposição de se sujeitar a esses termos, desde que haja garantias de que os outros farão o mesmo.” (2000, II, § 7, 127) Referências BERTEN, André. Racionalização e aprendizado em Habermas e Rawls, in FERREIRA DA SILVA Genildo (org.), História e civilização, Salvador, EDUFBA, pp.25-42. 2011. BORGES, Maria de Lourdes, DUTRA, Delamar Volpato & DALL´AGNOL Darley. O que você precisa saber sobre ética, Rio de Janeiro: DP&A. 2001 CANTO-SPERBER, Monique & OGIEN, Ruwen. Que devo fazer? A filosofia moral, trad. 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Probably its most attractive version is still that formulated by John Rawls. By emphasizing the idea that what the citizens of a state basically want to see realized are elementary liberties and individual claim rights against the state, liberal accounts (especially that of Rawls) fit very well our shared moral intuitions – much better than the theoretical alternatives, say Hegelianism, Marxism, Critical theory, or Utilitarianism. The tradition of W. v. Humboldt, Mill, Berlin, Rawls and Dworkin seems to be attractive in interpreting the state as a functional means dedicated to serve the individual’s interests. The individual and its freedom self-determination must be at the bottom of political normativity. The version of liberalism defended by Rawls implies an additional advantage: his approach is able to deal with some of the fundamental questions of socioeconomic justice. But on the other hand, the weak point of political liberalism is, in my opinion, the lack of clarity concerning its axiological foundations. Liberalism does not do a similar good job regarding a general theory of human goods. This seems to be the domain of perfectionist accounts in political philosophy. 104 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e By contrast, perfectionist approaches have a bad press (or at least had it for a long time) – despite the fact that they provided the most frequent model of pre-modern and early modern political philosophy. They are often considered to be somewhat out-dated and old-fashioned since they are based on a substantial theory of the human good. What makes liberalism so attractive in comparison with perfectionist models is its formalism, proceduralism, and its axiological neutrality – i.e. its renouncement to draw upon such a substantial theory. Presupposing a conception of the good seems to amount to a context-dependent and value-loaded account of political reality, appropriate only for a society which is based on widely shared forms of life-style and traditional social norms. Rawls’ ‘fact of reasonable pluralism’ is often characterized to be the adequate response to the plurality of preferences given typically modern societies. Perfectionist accounts are on the verge to slip into some sort of paternalism (or at least seem to be akin to paternalistic intuitions). But is the contrast between the two kinds of political philosophy overstated? I think that perfectionism can be described in a more open and modern way. It might even be possible to combine the fundamental advantages of both positions and to create something like a ‘liberal perfectionism’. This idea is precisely what I want to defend in this talk – of course in a very rough and sketchy form. I What I want to do first is to have a closer look at John Rawls’ theory of goods in A Theory of Justice [1971] and in his second major book Political Liberalism [1993]. As is well known, he defends the same list of so-called ‘social primary goods’ in both of these monographs (as well as in several other writings), containing “basic rights and liberties; freedom of movement, and free choice among a wide range of occupations; the powers of offices and positions of responsibility; income and wealth; and the social bases of self-respect: the C h r i s t o p h H o r n | 105 recognition by social institutions that gives citizens a sense of self-worth and the confidence to carry out their plans” [2001: 58-59]. Rawls assumes that these goods are all-purposive means and that rational agents always want to have rather more than less of them. The crucial point with these goods is, for the Rawlsian account of justice, that it enables us to make interpersonal comparisons. For Rawls, the equal or unequal distribution of these advantages is of crucial importance for the level of justice reached in a given society. According to Rawls, the goods in question are decisive indicators of the social position of an individual: Someone (or a group of citizens) is better-off if he or she (or it) has significantly more of the goods of this list. It is of course well-known that Rawls wants to see the goods distributed following two different principles of justice. While the same amount of basic rights and liberties must be guaranteed to everyone, all socioeconomic advantages and social privileges can be allocated in unequal parts, according to the famous twofold principle which has an aspect of equal chances (“fair equality of opportunity”) and of possible differences (as far as they are “to the greatest benefit of the leastadvantaged members of society“). The first group of goods must be distributed in equal shares – in Rawls’ own words: “Each person has the same indefeasible claim to a fully adequate scheme of equal basic liberties, which scheme is compatible with the same scheme of liberties for all”. To be sure, Rawls’ Kantian intuition to give the rights a status of invariant equality and invulnerability is certainly highly attractive. In the same vein, it is certainly in accordance with our moral intuitions that Rawls postpones principle 2a and 2b following a lexicographic order. But even if one admits – as I would do – that there are several good arguments in favor of the (twofold) second principle, one can raise doubts if his entire procedure to spell out a list of primary goods is satisfying and persuasive. One fails to see what basically justifies the list of goods and the rules connected in it. At best, it seems to be a more or less expression of our shared convictions. 106 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e What makes things even worse for a defense of Rawls’ position is that he gives us two highly divergent basic explanations of his list. Whereas in 1971 he defends the selection of goods by means of their general usefulness for the life of a rational agent, in his later writings, the justification is altered; later on, he traces them back to the ‘two moral powers’ (namely having a sense of justice and developing a conception of the good). […] What remains is the impression of arbitrariness and conventionalism. But let us consider the case more closely. In fact, Rawls’ conception of social primary goods can be criticized (and has been criticized) in very different ways. Why e.g. exactly these goods? One fails to see what might guide the selection and what makes the list complete according to our author. Additionally, the goods under consideration seem to be too different in kind to represent a convincing totality (claim rights, the possession of institutional power, material things, psychic goods; intrinsic goods – instrumental goods). Why does Rawls not include, e.g., health-care, elementary social security against extreme poverty and long-term unemployment, a right of education, etc.? What I want to do, however, is not to provide a general criticism, but to raise some objections from a perfectionist point of view. In a condensed form, my considerations are these: [1] As I just pointed out, one does not understand what (a) justifies the items on the list to be there, and (b) what makes the list a complete whole. Rawls does not tell us a convincing story about the origin and the limits of his account of social primary goods. [2] He additionally does not give us a satisfying account of what a human being basically wants to see realized in his or her life, and which part of that can be subsumed under the heading of ‘justice-sensitive’. To my mind, a good is justicesensitive if the moral identity of a citizen is touched by an element of the institutional design of society. But given this definition, goods of the above-mentioned type (health-care, protection against extreme poverty, an efficient educational system) are justice-sensitive goods. One might defend Rawls by C h r i s t o p h H o r n | 107 indicating that he wants to avoid a list of goods which is extensive and unmanageable. To be sure, one of Rawls’ basic concerns is to offer a theory of justice which is operative and workable. But for this advantage of his theory, he pays the high price of neglecting crucial contents of our sense of fairness. [3] What I take to be the basic mistake of a Rawlsian approach towards basic goods is this: He considers autonomy as a liberal, not a perfectionist concept. Consequently, he thinks that he need not or even must not give a full account of what rational autonomy consists in. This is the point where perfectionism comes in. Can one preserve the advantages of liberalism and simultaneously add the vantages of a wellconsidered axiology? II To my mind, the crucial problem is this: Is there such a thing as ‘liberal perfectionism’? At first glance, this might sound like a contradictio in adjecto. In order to give a more appropriate answer, I will turn now to some basic facts about classical and recent forms of political perfectionism. Under the heading of perfectionism one usually subsumes philosophical accounts which describe the normative fundaments of political reality in terms of a teleological theory of goods. According to the perfectionist point of view, human beings possess are (more or less) stable and essential nature which is correlated with certain goods and different mental states of fulfillment. The goods under consideration are described as necessary, basic and relevant for a successful life lead by an individual; and the states of fulfillment are intrinsically desirable and valuable psychic conditions a person can be in. These goods and states resp. need not be characterized as objectively preferable ones – as e.g. in the case Aristotle’s political account which is based on his concept of eudaimonia-constitutive goods. We should carefully distinguish between a human nature perfectionism and an objective goods perfectionism (see Wall 1998: ch. 108 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e 1). The term ‘nature’ leaves more chances to give an open and pluralistic image of how a life can succeed. Human individuals are disposed, following political perfectionism, to follow their nature and to be about certain goals or ends. According to their nature, they can reach a specific sort of personal excellence which has traditionally been called virtue (see Foot 2003). Based on the concepts of relevant goods, desirable mental states, a stable human nature and certain forms of personal excellence, a perfectionist account of political reality describes the function of a state in terms of fostering and supporting human beings in realizing their idea of a valuable or happy life. Historical exponents of political perfectionism have been, e.g., Plato, Aristotle, Aquinas, Leibniz, Hegel, Marx or Nietzsche. In view of these names the immediate suspicion comes up that perfectionism is both anti-modern and antiliberal (and indeed, one may consider Alasdair MacIntyre [1995] und [1999] as a contemporary example of such a position). As far as I see, all perfectionist theories take their ideas of perfection from one of the following four fields: (a) a perfect social reality, e.g. a state of ideal unity and unanimity among the citizens, (b) a perfect form of government, e.g. a theocratic realm of God or the rule of an omniscient socialist party, (c) an ideal of improving human nature, as e.g. in the case of eugenically idealized persons, and (d) the idea of supporting human beings who are looking for their happiness, virtue or perfection as individuals. It is this last form (d) which I described before, and clearly, only this form has a chance to be reconcilable with a political liberalism. We should leave the other versions (a-c) aside. With regard to type (d) one can emphasize – as e.g. Joseph Raz, Steven Wall, George Sher, and Jeffrey Stout did – that perfectionism need not be principally opposed to political liberalism. Instead, one can combine perfectionism with the idea of a right-based normative individualism. The genuine perfectionist element consists in that human nature (i.e. basic features, dispositions, and capabilities) are at the bottom C h r i s t o p h H o r n | 109 of the theory, not individual preferences. A perfectionist of that type is able to integrate the perspective of individual rights and liberties and describe the best political order as the one which optimally fosters human nature (see on this Hurka 1993: 147). The liberal critique of perfectionism contains several important points the most important of which is that of paternalism. It was already Wilhelm von Humboldt in his writing Ideen zu einem Versuch, die Gränzen der Wirksamkeit des Staates zu bestimmen [1792/1851] who rejected the idea that a political order should have the function to make its citizens happy, especially against their will. Instead, Humboldt emphasizes the irreducible singularity of the individual. A similar objection from the suspicion of paternalism, even in a much more acute form, has been formulated by Isaiah Berlin. One can draw back the objection to Berlin (1969) that any perfectionism is close to political intolerance and totalitarianism. John Rawls, in ch. 50 von A Theory of Justice as well as in Political Liberalism raised the objection that perfectionism cannot provide an attractive option for those who have to select a basic order in the ‘original position’ since they do not possess a substantial conception of the good. In addition to the objection of paternalism (1) one should emphasize two further criticisms: (2) perfectionists tend to neglect the duty of neutrality which should be observed by the state, and (3) they usually give a unitary account of human nature which ignores the legitimate pluralism of our modern world. (1) Paternalism: The best way to answer the challenge of illegitimate paternalism is to accept it as an objection directed against many pre-modern perfectionist positions. Clearly, the best possible polis described by Aristotle in books VII and VIII of his Politics is a paternalistic state, and the same holds true for the civitas spelled out in Aquinas’ De regimine principum. But on the other hand, the moment of paternalism need not be involved as soon as a political theory is perfectionist. One can even turn the objection against the liberals by pointing out that, even if they do not say that openly, must partake in 110 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e some sort of legitimate paternalism (a fact which Rawls explicitly acknowledged), namely in the following three different aspects: (i) No liberal state can tolerate a completely subjective or decisionist form to determine one’s preferences. There is no way out of the difficulty that a state must rule out certain intolerant religious or political ideas (or at least not support them), especially those based on racism, nationalism, sexism and intolerance. But this is already true on a personal level. If someone would claim that sadism, brutality and aggressive behavior is part of what constitutes his or her personal good life, we would not accept this (perhaps strong) desire since this preference would violate crucial interests of other persons. (ii) The same holds true for cases in which we can speak of self-damaging, self-destruction or selfhumiliation. Even liberals must acknowledge that cases can occur in which the state should defend the ‘well-considered interests’ of a person against his actual desires (take e.g. the interdiction to sell one of someone’s kidneys). (iii) Even liberals (and perhaps exactly them) use to emphasize the ideas of self-improvement. They point out that a state should encourage as many people as possible to gain knowledge and competences and to develops one’s abilities (cf. Rawls’ Aristotelian principle). But this clearly presupposes a substantial idea of what it means to cultivate valuable talents – valuable for the agent, his or her social context, or for the society as a whole. Maybe one can go even further and describe liberal ideals of education and personal cultivation on the basis of the old perfectionist idea of self-directed duties (officia erga me). (2) Neutrality: Perfectionism seems to violate the principle that the state should be neutral towards all ideas of leading a good life adopted by its citizens. There should be no doubt that this idea is an absolutely important and not negligible one. But to my mind, the problem of an adequate grade of neutrality and a necessary form of intervention is relevant for every political philosophy whatsoever. It is not confined to perfectionist political orders. A good way to make this point clear is what J.S. Mill described as the harm principle. Any state, C h r i s t o p h H o r n | 111 even one which emphasizes the central importance of freedom and liberties, risks to violate basic interests of some groups of citizens. Even freedom and liberties can do ‘harm’, namely to those who are opposed to typically modern ideas of self-determination and individualism. Imagine e.g. a very traditionalist religious group living at the countryside; this group tries to live what they take to be the ‘will of God’. Should one admit that these people are permitted to organize the education of their children even if they reject basic facts of evolutionary biology? Even if one concedes this point one could not admit that women play a minor or under-privileged role within the group. (3) Pluralism: As I already mentioned, perfectionists are not forced to maintain that there is only one valuable or desirable form of life. They can be pluralists, given that they can plausibly argue for a plurality of dispositions which all exist in human nature. Moreover, it is mistaken to see autonomy primarily as a liberal concept. Autonomy is basically a perfectionist idea. One can thus reply to the objections raised by Humboldt, Berlin, and Rawls that even liberal approaches implicitly go back to an idea of a more or less developed human freedom. Freedom or autonomy is based on a bundle of capabilities which must be in an evolved state, not in a primitive condition. In a sense, liberalism is a branch of political perfectionism, namely that group of positions which are exclusively confined to the idea of a perfect autonomy (see on this Raz 1986: ch. 5). Precisely the basic liberal value of individual autonomy cannot be spelled out without a clear picture of what it means for a human being to lead a successful, desirable, good, and happy life. Then it appears to be doubtful that liberal approaches characterize themselves as axiologically neutral. They presuppose a substantial theory of the good, as I tried to spell out with regard to Rawls. When liberals (as they normally do) prefer the ideal of a self-selected biography and a self-achieved social advancement they are presupposing the same sort of perfectionist idea as those people who praise certain biographies which are dedicated to art, science, reli- 112 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e gion, or social welfare. The immediate connection of the concept of liberty with perfectionist ideas becomes evident as soon as tries to classify certain classical authors, say Aristotle or J.S. Mill, to one of the two camps. Both philosophers show considerable parts of the seemingly exclusive position. If it turns out to be true that liberalism and perfectionism have strong overlapping aspects in common, then it might make good sense to compare the axiological fundaments as far as they are explicitly formulated. In the case of liberalism, these are normally lists of elementary liberties; as we saw, John Rawls went one step further and additionally introduced a socioeconomic principle into liberalism. My criticism against him was that his implicit and explicit theory of goods has no clear fundament in human nature; instead, he justifies his list with regard to rational advantages and, later on, with culturally shared liberal ideals. If you take, by contrast, perfectionist accounts, e.g. the list of basic goods or valuable states of mind formulated by John Finnis [1980], M. Nussbaum [1992] or Richard Arneson [2000], then a similar suspicion must come up since, they too, seem to lack a somewhat systematic and coherent theory of human nature. At least they seem to more or arbitrarily collect what one might call ‘elements of a valuable life’. By contrast to this procedure, what seems much more attractive is a theory of basic goods which is formulated on the basis of the fundamental good of rational autonomy. Bibliography Arneson, R. 1999: Human Flourishing vs. Desire Satisfaction, in: Social Philosophy and Policy 16, 113-142. ––– 2000: Perfectionism and Politics, in: Ethics 111, 37-63. ––– 2003: Liberal Neutrality on the Good: An Autopsy, in: S. Wall/G. Klosko (Hgg.), Perfectionism and Neutrality, Lanham, 191-208. C h r i s t o p h H o r n | 113 Bird, C. 1996: Mutual Respect and Neutral Justification, in: Ethics 107, 62-96. Braybrooke, D. 1987: Meeting Needs, Princeton. Brighouse, H. 1995: Neutrality, Publicity and Public Funding of the Arts, in: Philosophy and Public Affairs 24, 35-63. Brink, D. 2003: Perfectionism and the Common Good. Themes in the Philosophy of T.H. Green, Oxford. 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RESTRIÇÕES CULTURAIS UNIVERSAIS AOS DIREITOS HUMANOS Jean-Christophe Merle Quando no debate sobre os Direitos Humanos se fala do relativismo cultural, pensamos na diferença determinada pelas culturas particulares entre concepções dos Direitos Humanos ou em uma rejeição fundamental aos direitos humanos, que se funda na diferença dos valores culturais. Os valores ocidentais também podem fundamentar uma tal rejeição, como demonstraram Burke, Nietzsche ou Schmitt, ao criticar os Direitos Humanos. A maioria dos defensores de Direitos Humanos universais tem se esforçado a manter as especialidades da cultura ocidental fora da sua concepção de Direitos Humanos: pensa-se no individualismo ocidental em contraste a supostos “valores asiáticos” coletivos ( Sem, 1997; Habermas, 1999; 220ff.), tais como ordem e disciplina. Assim eles não reparam que na fundamentação dos Direitos Humanos há elementos que permitem sua limitação cultural. 1. A justificação dos Direitos Humanos através do Contrato Social ou através do domínio do ato (Tatherrschaft) Em seguida lido com dois modelos através dos quais os Direitos Humanos comumente são fundados: a teoria do con- 120 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e trato e aquela que eu tomo como uma teoria do domínio ampliado do ato. Estes modelos têm uma semelhança: em ambos se encontram os requisitos para a validade dos Diretos Fundamentais, que pressupõem que já existe uma relação entre o possuidor de um direito humano e o destinatário da respectiva obrigação. Criticarei esse pressuposto, pois ela contradiz o conceito de Direitos Humanos. Começo com o modelo da teoria do contrato. Habermas afirma: “Direitos Humanos possuem a face de Janus [...] independentemente de seu conteúdo moral eles possuem a forma de direitos jurídicos. Eles se comportam como regras morais, o que traz o rosto humano, mas como normas jurídicas eles protegem indivíduos somente na medida que eles pertencem a uma comunidade jurídica – em regra cidadão de um Estado-nação”. (Habermas 1998, 177; similar: Habermas 2010, 47). O rosto de Janus se baseia na tese da “igual originalidade de liberdades direitos”. A justificação dessa tese se desenvolve em quatro passos: 1 – A soberania popular ou a “construção racional da vontade política” (Habermas 1998, 175), pressupõe direitos de comunicação e participação, que são espécies de Direitos Humanos. 2 – Então a participação efetiva no processo legislativo só é possível quando o cidadão também é sujeito de direito. Os direitos de comunicação e participação pressupõem então liberdades individuais, que são outra espécie de Direitos Humanos. 3 – Liberdades individuais somente podem existir em uma comunidade jurídica livre. 4- Tal comunidade jurídica necessita da formação da vontade política na medida do processo da comunicação racional. Assim fecha-se o círculo e se apresenta uma “conexão interna entre Direitos Humanos e soberania popular” (Habermas 1998, 175). Aqui se deixa em suspenso se a realização dos Direitos Humanos e a soberania do povo realmente não podem ocor- J e a n ‐ C h r i s t o p h e M e r l e | 121 rer uma sem a outra. Mesmo quando esse é o caso, trata-se de uma conexão interna entre Direitos Humanos e soberania do povo apenas na realização dos Direitos Humanos, e não na sua fundamentação, que sozinha pode levantar a reivindicação de originalidade. Já na “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” francesa de 1789 se diferenciava Direitos Humanos (por exemplo, o Art. 1: Os homem nascem livre e iguais em direitos e assim permanecem) de direitos do cidadão (por exemplo Art. 6: A lei é o resultado da vontade geral. Todos os cidadãos possuem o Direito de pessoalmente ou através de seu representante participar na sua formação). Habermas permanece então estar devendo as provas de sua tese. Com a face de Janus Habermas representa a fundamentação e a realização dos Direitos Humanos como igualmente constitutivas dos Direitos Humanos. Mas na verdade somente a fundamentação é relevante para o conceito e a validade dos Direitos Humanos; a realização é um problema importante, mas secundário. De uma outra maneira também Rawls apresenta uma fundamentação contratual dos Direitos Humanos. A observância dos Direitos Humanos pertence principalmente aos critérios de uma sociedade pacífica e está ancorada na “Lei do Povo”. O caso mencionado por Rawls, de violações de direitos humanos que não ameaçam a ordem internacional, o levou, em uma nota de rodapé e sob condições específicas, a conceder um direito de intervenção humanitária, sem qualquer fundamentação. Habermas menciona duas opções para a realização global dos Direitos Humanos: ou uma combinação entre democratização dos Estados e Direitos Individuais de livre escolha ou a construção de uma ordem jurídica democrática mundial. Neste meio tempo também se concede um direito de intervenção. O segundo elemento é o modelo do domínio ampliado do ato (Tatherrschaft no sentido de Claus Roxin), que predomina em Shue e prevalece em Pogge. Compreendo esse modelo como uma fundamentação dos Direitos Humanos, na qual os Direitos Humanos são reivindicações por danos 122 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e causados ou permitidos conscientemente por instituições públicas. Pogge afirma: “Alguém pode abordar este ponto através do Art. 17.2 da Declaração Universal dos Direitos do Homem: ‘Ninguém deve ser arbitrariamente privado de sua propriedade.’ Se um carro é roubado, o seu proprietário certamente foi privado de sua propriedade, e de forma arbitrária. Ainda assim, nós não chamaríamos isso de uma violação do Art. 17.2 ou de uma violação dos Direitos Humanos. Por que? Por que é somente um carro? Eu acho que não: o carro pode ser o bem mais importante do proprietário: e o furto de comida também não seria considerado uma violação de Direitos Humanos, ainda que dissesse respeito a uma reserva de comida para o inverno. Um confisco arbitrário do carro por parte do governo é, por outro lado, considerado uma violação dos Direitos Humanos, ainda que o proprietário tenha muitos outros carros. Isso sugere que as violações de Direitos Humanos, para serem consideradas como tais, devem ser, de alguma forma, oficiais, e que os Direitos Humanos somente protegem indivíduos contra violações de certas fontes.” (Pogge 2002, 57) O domínio do ato não precisa resultar de um ato, mas pode resultar de uma omissão. Por isso eu a denomino teoria do tipo ampliada (“O governo não precisa organizar ou encorajar tais atividades – ele simplesmente permanece ocioso: ele se omite em decretar leis que prescrevam tais condutas ou, se tais leis estão editadas, ele falha em aplicá-las de forma eficaz”; Pogge 2002,62) 2. Objeções baseadas em nossas intuições morais. Neste modelo as obrigações legais não são tomadas como correlatas dos Direitos Humanos, mas os Direitos Humanos como correlatos das obrigações legais do Estado. Pogge não possui um conceito material de Direitos Humanos, mas um conceito formal: um Direito Humano precisa ser um Direito cuja violação foi praticada por um Estado ou por um Estado poderia ter sido evitada, se ele tivesse concebido suas J e a n ‐ C h r i s t o p h e M e r l e | 123 instituições de outra forma ou se ele tivesse tomado as medidas certas contra a violação privada do direito. Por isso eu denomino o primeiro modelo, o modelo do domínio, e o segundo modelo o modelo do domínio ampliado do ato. A responsabilidade dos Estados que excedem a abstenção de violação de Direitos se encontra em primeiro plano não só em Pogge, mas também em Beitz (Beitz 2009) e Shue (Shue 1980). As razões de Pogge para esse entendimento são corretas. Ele desenvolve um “entendimento institucional dos Direitos Humanos” em oposição a um “entendimento interativo” e o descreve da seguinte forma: “governos e indivíduos tem a [...] responsabilidade de trabalhar para uma ordem institucional e para uma cultura pública que assegurem que todos os membros da sociedade tenham acesso seguro aos objetos de seus direitos humanos. Portanto, ligar o cumprimento de direitos com insegurança ao invés de violação pode fazer a diferença em dois tipos de casos. Uma pessoa pode desfrutar de X ainda que o seu acesso a X seja incerto [...]. Reciprocamente, uma pessoa pode ser temporariamente privada de X, talvez por um crime praticado por um inescrupuloso oficial do governo, em uma sociedade que é muito efetiva em prevenir crimes relevantes.” (Pogge 2002, 65). A proteção e a realização dos Direitos Humanos não podem se confundir com seu conceito ou com sua justificação. Tal confusão levaria a contradições dos elementos fundamentais dos Direitos Humanos. Antes de tentar demonstrar isso, gostaria de diferenciar a questão da proteção ou da realização dos Direitos Humanos de uma outra questão, que originalmente foi formulada por Bentham como crítica aos Direitos Humanos, mas que funcionou como incentivo ao pensamento sobre a teoria dos Direitos Humanos. Bentham vê na "Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão", um apelo a uma revolta contra qualquer autoridade governamental, porque essa declaração contém direitos absolutos, ou seja, Direitos que nada, nem 124 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e mesmo os direitos dos outros limitam. A Teoria da Justiça de Rawls reconhece como primeiro princípio da Justiça um sistema de liberdades fundamentais iguais tão amplas quanto possível para todos, sem se comprometer com uma lista de liberdades básicas. Habermas percebe a “Idéia de Direitos Humanos já no “Direito Fundamental kantiano à liberdade subjetiva de ação” (Habermas 1998, 174), isto é, no conceito de Direito kantiano como conceito de uma ordem na qual os Direitos limitam a todos reciprocamente. Assim Habermas deve concluir que os Direitos Humanos não são absolutos e que na formulação de seu conceito não se estipule catálogos, que devem ser determinados apenas à luz de circunstâncias empíricas. Esses Direitos limitados não são porém ainda Direitos positivos (legal rights), mas Direitos morais (moral rights). Assim, não é possível derivar de um tal sistema de direitos, o que Habermas considera como uma das faces de Janus. “[...] como normas jurídicas os Direitos Humanos protegem um indivíduo somente na extensão da comunidade jurídica à qual ele pertence – em regra o cidadão de um Estado nacional.” Os Direitos Humanos podem ser pensados em uma ordem jurídica global supra-positiva, de modo que não é preciso que seu conceito contenha a pertinência a uma “determinada comunidade jurídica” ou a um Estado Nacional. Chegamos ao denominado conceito jurídico formal, no qual Pogge fundamenta o domínio do ato. Primeiramente devemos constatar que esse critério não fornece um conceito completo de Direitos Humanos, pois muitos direitos, que nem Pogge bem como outros autores não consideram como Direitos Humanos passam por esse critério. Ao contrário, nem todos os Direitos Humanos passam por esse critério, ao qual vou me referir para a identificação dos Direitos Humanos a partir das nossas instituições morais. Aqui temos três exemplos. Primeiro exemplo, que evidentemente apela para nossas instituições morais: do exemplo de Pogge, do automóvel roubado, podemos entender, que de acordo com Pogge os J e a n ‐ C h r i s t o p h e M e r l e | 125 Direitos Humanos devem preencher tanto o critério do domínio do ato em relação as suas violações quanto um outro critério, a saber, eles devem se relacionar aos bens “mais importantes” ou “mais necessários para a vida”. As nossas intuições morais contradizem Pogge. Quando o automóvel furtado ou os alimentos furtados eram essenciais para as vítimas então os Direitos Humanos à vida e à integridade física foram feridos, mesmo que a infração tenha sido cometida por um ofensor privado e o Estado combata o crime de forma muito eficiente. Em tal caso não se dá o domínio do ato. Para se evitar mal entendidos deve ser considerado o seguinte. Ser o bem um bem essencial para a vida das vítimas não é o suficiente, do ponto de vista de nossa intuição moral, para se derivar um Direito Humano. Quando uma catástrofe natural leva vidas humanas, não se lesou, desta forma, os Direitos Humanos das vítimas, pois a sua sobrevivência não se faria possível em qualquer ordem jurídica. Pela mesma razão, no caso de uma morte em legítima defesa nenhum Direito Humano à vida será lesado. No exemplo de Pogge é a propriedade das vítimas – o automóvel e o alimento – bastante compatível com o conceito de Direito. O Direito Humano das vítimas não resulta contratualmente de uma comunidade de Direito, mas eles existem também sem essa Comunidade jurídica positiva. Um segundo exemplo também pode ser encontrado em Pogge. Quando encontramos duas ilhas sem qualquer relação, elas podem ou lesar os seus direitos ou suas Instituições podem falhar ao tentar evitar lesões dos Direitos Humanos na outra ilha. Quando em uma das duas ilhas a fome irrompe, se a fome é ou auto-infligida ou causada por desastre natural, então, a outra ilha não lesou Direitos Humanos e conseqüentemente não possui qualquer dever em relação o outra ilha. Com isso defendem Pogge e Shue teses opostas, ambas porem com foco nas instituições. Sobre os Direitos Humanos de subsistência Shue propõe uma lista de deveres correspondentes: 126 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e Deveres de não eliminar o único meio de subsistência de uma pessoa – dever de evitar a privação. Dever de proteger as pessoas da privação dos únicos meios de subsistência por outras pessoas – Dever de proteger da privação. Dever de prover a subsistência daqueles incapazes de prover para si mesmos – Dever de ajudar os privados (Shue 1980, 53). Pogge compartilha com Shue somente os dois primeiros, abandonando o terceiro. Nossa intuição moral nos diz, entretanto, que os Direitos Humanos aos meios de subsistência existe para todos os homens, desde que a sobrevivência de todos os homens seja possível (assim somente são exceções os casos de muitas vítimas, de fome mundial ou similares). A existência do terceiro dever significa que a obrigação de ajudar permanece, mesmo quando a necessidade não decorre da lesão a um Direito. Somente se esse Direito de ajudar não fosse cumprido poderia se falar em uma lesão ao Direito. A situação é semelhante com criminosos condenados: embora o Estado não fira os seus Direitos, pois na verdade o que ocorre é o contrário, o Estado obriga-se a zelar pela sua sobrevivência. Se assim não fosse, o Direto Humano do criminoso à vida seria lesado. Também a teoria do contrato não conseguiu justificar esse dever. Um terceiro exemplo encontra-se em Tugendhat: os necessitados – os deficientes – possuem Direitos Humanos que não surgem em virtude de uma lesão decorrente de um ato do Estado ou privado, nem de um contrato social. Tugendhat salienta com razão: “O Contratualismo é [...] uma Moral do forte. Os desamparados não estão protegidos por essa rede do contratualismo, e se os fortes chegarem a um acordo com os fracos sobre uma regulação, como seria o caso de um contrato, e se o resultado for percebido como moral com direitos iguais, então esse aparecem do mesmo modo como na moral Kantiana ( Tugendhat 1993, 356). A partir da moral Kantiana surge, segundo Tugendhat, o conceito de Direito Kantiano como limitação mútua da liberdade a partir J e a n ‐ C h r i s t o p h e M e r l e | 127 de uma lei universal e os direitos morais correspondentes. Nesse contexto, os direitos humanos resultam do status moral de todos os seres humanos enquanto seres humanos, independentemente de elementos de um contrato social ou dos domínio do ato sobre lesões anteriores. 3. Fundamentação para essa relação de tensão Os autores previamente criticados sabem, certamente, que nossa intuição moral sobre os Direitos Humanos não dependem do contrato social ou dos domínio do ato. Pelo menos desde Hohfeld 1919 (ver Hohfeld 2001), esses autores não podem perder de vista o fato que direitos implicam deveres correlatos. Não obstante, muitos autores atuais querem justificar os Direitos Humanos com a teoria contratualista e com a teoria do domínio do ato. Como se pode explicar isso? Três possibilidades culturais são possíveis: 1 – O surgimento da soberania popular e dos Direitos Humanos ocorreram quase que simultaneamente no início da era moderna ocidental. Opõe-se à esta explicação o fato da “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” e outras importantes declarações reconhecem a diferença entre Direitos Humanos e Direitos do Cidadão. 2 – No debate público sobre os Direitos Humanos deve-se observar os interesses dos participantes, embora esses interesses não devessem ser considerados no debate ético sobre a fundamentação dos Direitos Humanos. Nesse sentido, a cultura ocidental é marcada por dois interesses. Na dimensão interna do Estado, os Direitos Humanos eram e continuam conectados com os direitos de emancipação do povo e com os direitos individuais. Nessa medida eles são considerados, com algumas exceções, como mais vantajosos. Entre as exceções estão, na minha opinião, por exemplo, a alta proporção deles que queriam o restabelecimento da pena de morte. Onde os índices de criminalidade são altos ou aumentam, pode grande parte da população aceitar os maus tratos na prisão, ainda que relutantemente. Na dimensão in- 128 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e ternacional são conferidos porem aos povos ocidentais deveres correlatos aos Direitos Humanos, porque eles chegaram mais provavelmente a uma situação empírica que tornava possível cumprir esses direitos. Assim apresentam-se especialmente os Direitos Humanos sociais e econômicos. Isso explica, que autores como O’Neill, que por um lado sustentam a unidade universal dos Direitos Humanos, acentuem o ônus dos Direitos Humanos dos deveres correlatos (cf. O’Neill 2005, 436 seg.) Nessa perspectiva o segundo grupo de deveres estatais (deveres de proteger da privação), que se encontram na lista de Shue e são sublinhados por Pogge, certamente representam uma ampliação, quando comparados com a restrição tradicional ao primeiro grupo de deveres estatais (deveres de evitar a privação). A favor de uma contribuição global sobre os recursos naturais apresenta Pogge, entre outros, o seguinte argumento: regras institucionais do comércio internacional favorecem os países ricos e a corrupção nos países em desenvolvimento é mantida por interesses dos países ricos e suas corporações, o que fere o segundo grupo de deveres de Shue. A discussão não alcança o terceiro grupo de obrigações de Shue. Quando se trata da colisão de interesses controversos em questões éticas, muitos autores contemporâneos adotam o minimalismo como estratégia. Esse minimalismo consiste em limitar as reivindicações controversas, para aumentar a chance de aceitação da parte contrária. Como indício do minimalismo vejo o fato de que autores como Habermas ou Pogge dificilmente procuram argumentar contra o terceiro Grupo de Direitos Humanos de Shue, embora eles na verdade o rejeitem. Essa estratégia pode, de resto, estar segura de seu sucesso, pois, como Habermas sempre sublinha, os Direitos Humanos desenvolvem continuamente uma dinâmica de questionamento acerta dos preconceitos e discriminação. O que me interessa nesse ponto é que o minimalismo nos conduz, nessa constelação, a autorizar diferenças culturais como freios. Como não há um direito global – ou uma ordem jurídica mundial – ainda que em construção, a justificação da J e a n ‐ C h r i s t o p h e M e r l e | 129 teoria contratualista leva o Estado a ter os deveres contra seus cidadãos ou contra aqueles que nele residem. A justificação por domínio do ato vai alem e pode, por exemplo, beneficiar as pessoas mais pobres do mundo. Ela permite também reivindicações de Direitos Humanos com base em uma justiça corretiva, em relação a atos injustos antes praticados. Mas quando nem um contrato social nem o domínio do ato conectam um Estado com possuidores de direitos humanos, então somente um outro Estado é responsável pelos deveres correlatos. Quando o último não cumpre as suas obrigações, isso não modifica o fato que o primeiro Estado não possui o dever de intervir e assumir a responsabilidade. A lesão aos Direitos Humanos é assim atribuída às instituições políticas e às práticas do país competente, ou seja, à sua cultura política. Isso atribui à questão se um país estrangeiro possui domínio do ato que alcança a lesão aos direitos humanos ao menos em parte uma importância central. A resposta a essa pergunta depende da respectiva análise da causa empírica que levou à lesão dos Direitos Humanos. Partindo desse princípio normativo, Pogge e Rawls, com base em deferentes análises empíricas, chegam a conclusões contrárias: Pogge conclui existirem elementos de uma justiça global distributiva, que Rawls opta por rejeitar, na qual a pobreza global se refere à cultura política dos estados isolados: corrupção administração fraca, falta de educação pública, discriminação contra mulheres no mercado de trabalho, proibição que mulheres trabalhem etc. 3 – Tal debate omite os deveres para com as vítimas de catástrofes naturais, as vítimas de crimes privados bem como aqueles praticados contra pessoas que possuem deficiência grave, aos quais correspondem direitos humanos dessas vítimas. Aqui aparece um outro elemento cultural que atua como um freio contra a universalidade dos direitos humanos: aquele que não possui direitos humanos, em virtude de uma determinada relação existente, pode atribuir o seu infortúnio somente ao acaso. Aqui se observa o modelo do Direito Civil e do Direito Penal. Na intuição moral, bem como em seu sentido histórico original, o conceito de Direitos Humanos 130 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e segue outro modelo. Os Direitos Humanos não devem restaurar o Status quo ante e o Direito, mas, mais que isso, fornecer novos Direitos a todas as pessoas, que pertencem à natureza humana e não dependem de qualquer relação. Os Direitos humanos são exclusivamente dirigidos ao futuro. Na visão tradicional dos Direitos Humanos a Cultura é considerada como condição humana, que ainda deve ser alcançada, para que os Direitos dos Homens sejam realizados (originalmente no sentido de originados, não no sentido de os cronologicamente primeiros). A realização desses direitos não será pensada somente como ação de salvamento, mas, também, e antes de tudo como emancipação técnica e emancipação das condições naturais. A este respeito, o dever de ajudar não representa um peso em um jogo de soma zero, mas um avanço conjunto e um ganho para todos. O atual debate ocidental parece combinar dois elementos heterogêneos: 1. Um elemento emancipatório da Cultura como cultivo de toda a humanidade, 2. um modelo clássico de filosofia política: a concorrência por bens escassos e uma espécie de contrato social que entende a cultura como fator de divisão e a conecta com interesses. O ocidente não precisa entender este modelo clássico não como algo típico de sua cultura ocidental, mas perceber que este modelo pode ser visto em funcionamento em todas as partes do mundo. Assim ele implementa não intencionalmente um freio cultural contra a reivindicação universal dos Direitos Humanos, enquanto, por outro lado, procura proteger a validade universal dos direitos humanos contra deformações culturais. Essa oposição pode ter impacto nos Direitos Humanos a longo prazo, mais que qualquer especificidade cultural. (Tradução de Hugo Schayer Sabino e Alexandre Trivisonno) J e a n ‐ C h r i s t o p h e M e r l e | 131 Bibliografia: Beitz, Charles R. 2009: The Idea of Human Rights, Oxford University Press. 13 Habermas, Jürgen 1998: Die postnationale Konstellation, Frankfurt a.M.: Suhrkamp. Habermas, Jürgen 1999: Der interkulturelle Diskurs über Menschenrechte, in: Brunkhorst, H. u. Lutz-Bachmann, M. (Hrsg.): Recht auf Menschenrechte. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 216-227. Habermas, Jürgen 2010: Das utopische Gefälle. Das Konzept der Menschenwürde und die realistische Utopie der Menschenrechte, in: Blätter für deutsche und internationale Politik 8/2010, 43-53. Hohfeld, Wesley Newcomb Hohfeld 2001: Fundamental Legal Conceptions as Applied in Judicial Reasoning, Dartmouth: Ashgate. O’Neill, Onora 2005: The Dark Side of Human Rights, in: International Affairs, Heft 81, 427-439. Pogge, Thomas 2002: World Poverty and Human Rights, Cambridge: Polity Press. Sen, Amartya 1997: Human Rights and Asian Values. Sixteenth Morgenthau Memorial Lecture on Ethics and Foreign Policy, New York: Carnegie Council on Ethics and International Affairs. Shue, Henry 1980: Basic Rights. Subsistence, Affluence and U.S. Foreign Policy, Princeton NJ: Princeton University Press. Tugendhat, Ernst 1993: Vorlesungen über Ethik, Frankfurt a.M. : Suhrkamp. JUSTIÇA SOCIAL E CARÊNCIAS Alessandro Pinzani Quase todas as teorias da justiça social contemporâneas preferem evitar o conceito de carência (need) em prol de outros como bens primários (Rawls), recursos (Dworkin), capabilities (Sen e Nussbaum) etc. Creio que existem duas razões que explicam este desinteresse e tentarei rechaçá-las ambas, para salientar a centralidade do conceito de carência para uma teoria da justiça social. A primeira razão tem a ver com o fato de tal conceito estar tradicionalmente ligado à ideia de uma natureza humana – ideia fortemente criticada nas últimas décadas. Ocupar-me-ei deste aspecto na segunda parte deste texto, enquanto na primeira tratarei da segunda razão, que aponta para o risco de cair numa falácia naturalística: do fato de que temos carências básicas não se pode derivar nenhuma proposição normativa relativa à satisfação das carências. Por ex., só poderíamos fundamentar um eventual direito a tal satisfação apelando para conceitos que por sua vez não se relacionam diretamente com as carências, isto é, para conceitos como dignidade humana etc. Trata-se de uma objeção relevante, e para responder-lhe deveremos seguir uma dupla estratégia. 134 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e I Num primeiro passo, deveremos esclarecer em que sentido as carências devem tornar-se objeto de uma teoria da justiça social. Justiça e satisfação das carências são conexas, mas não diretamente: uma sociedade não é eo ipso injusta por satisfazer certas carências e deixar insatisfeitas outras. Além disso, uma proposição relativa a tal conexão não precisa ser normativa, como no caso da afirmação “Já que os seres humanos têm carências, estas devem ser satisfeitas por uma sociedade justa”; tal proposição pode ter caráter meramente descritivo, como no caso da afirmação: “Os seres humanos têm carências, cuja satisfação pode [mas não: deve] ser utilizada como critério para estabelecer o grau de justiça de uma sociedade”. Nesta medida, ao apontar para a conexão mencionada, não se estaria ainda cometendo uma falácia naturalística. O segundo passo consiste em mostrar que a razão de ser da sociedade é justamente a de satisfazer carências. Sua finalidade principal não é a de garantir direitos, realizar valores ou distribuir bens ou recursos, já que todos estes são meros meios para alcançar um fim mais fundamental, a saber, a satisfação das carências de seus membros. Pode espantar o fato que a maioria das teorias se concentra sobre os meios em lugar de se concentrar sobre o fim. A razão desta negligência deveria ser procurada na ideia dominante segundo a qual a sociedade existe para ajudar seus membros a realizarem suas metas definidas individualmente. Em outras palavras, os indivíduos esboçariam planos de vida e a sociedade os ajudaria a realizá-los. Isso, contudo, deixa aberta uma questão: sobre que base os indivíduos elaborariam seus planos de vida? Ainda que se afirmasse que o fazem com base em suas preferências, desejos, valores etc., todos estes poderiam ser reconduzidos a carências. A maioria das teorias mencionadas reconhece que certas carências básicas como alimentação, saúde, etc. são importantes, mas não consideram ou até negam que as carências desempenhem um papel central na formulação A l e s s a n d r o P i n z a n i | 135 dos planos de vida. Não compartilho esta posição. Já que as carências formam a base sobre a qual os indivíduos elaboram seus planos de vida, definem seus fins principais e buscam os meios adequados para alcançar tais fins (por ex. direitos individuais, bens sociais etc.), cada teoria da justiça social e, de modo mais geral, cada teoria normativa da sociedade se refere indiretamente às carências. Estas, portanto, são sempre pressupostas por cada teoria deste tipo. 1 Então, se uma teoria centrada na noção de carências, como a proposta aqui, cai numa falácia naturalística, todas as outras teorias normativas da sociedade ou todas as outras teorias da justiça social o fazem também. Outra razão pela renitência em servir-se do conceito de carência se refere ao seu estatuto epistêmico ou até ontológico. Nega-se que haveria algo como carências humanas universais. Os relativistas culturais afirmam, por ex., que não há carências compartilhadas por todos os seres humanos, mas tãosomente carências definidas culturalmente. Um professor japonês, responsável pelo “Programa de desenvolvimento humano e social” da Universidade das Nações Unidas, observou que em japonês não há nenhuma palavra para “carência” e que “no âmbito da sociedade e da cultura japonesas não há nenhum conceito de carência em sentido objetivo” (apud LEDERER 1980, 7 s.). Mas então, como se deveria descrever a situação de uma moradora de rua japonesa que vaga na neve sentindo frio e fome e buscando abrigo e comida? Deveríamos dizer que isso é um mero desejo, um mero apetite, um mero querer? Ou deveríamos antes dizer que ela deseja ou quer abrigo e comida porque necessita deles? Se não aceitássemos que há aqui uma carência objetiva, estaríamos afirmando que o fato de ela procurar abrigo e comida é mera expres1 Uma posição análoga é defendida por Thomas Scanlon: “Criteria of relative well-being […] will have a central place in any moral theory that does not start with a system of rights taken as standing in need of no defense. [...] Moral and political theories are often not very explicit about the criteria of well-being that they invoke” (SCANLON 1975, 655 s.) 136 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e são de um capricho subjetivo, ao qual não corresponde nenhuma necessidade real. Em suma, ela estaria pedindo abrigo e comida, mas poderia viver também sem eles. Contrariamente a esta visão, acho que estamos perante carências objetivas – mas isso me obriga a definir melhor o conceito de carência. Este termo é visto frequentemente como sinônimo ou de “desejo”, isto é, de “preferência subjetiva”, ou de “impulso”. Portanto, cabe primeiramente mostrar que as carências não são nenhuma destas coisas. Esta tentativa de definir o conceito de carência ou de necessidade como algo objetivo vai contra o uso linguístico comum, que quase não distingue entre carências constatáveis objetivamente, por um lado, e faltas percebidas subjetivamente, por outro. A ideia de que as carências não passariam de preferências subjetivas é típica de uma perspectiva econômica ortodoxa. A partir de tal perspectiva, somente os indivíduos podem definir seus interesses ou seus desejos (cf. DOYAL e GOUGH 1991, 10, assim como NEVITT 1977). Isso é questionável. Tal visão é posta em questão pelo fato de que há limites ao conhecimento e à racionalidade dos indivíduos. De fato, às vezes os seres humanos não sabem o que necessitam de verdade. Pode ser que não disponham das informações relevantes, como no caso de um diabético que ainda não sabe da sua situação e, depois de um desmaio, pensa que precisa de açúcar, enquanto na realidade necessita de insulina. Ou pode ser que não disponham de bastante força de vontade, como no caso de um viciado que sabe perfeitamente que deveria renunciar à sua droga, mas não é capaz de fazê-lo. Ou pode ser que tenham identificado uma solução errada para seu problema, como no caso de alguém que tenha um problema de saúde e prefira tomar água benta em vez de procurar um médico. Além disso, nossa situação pode levar-nos a desejar coisas que estão simplesmente ao nosso alcance, em vez de coisas das quais necessitaríamos de verdade, mas que não podemos alcançar. Por ex., os pobres tendem a reduzir o escopo de seus desejos e interesses, na consciência de que suas opções são fortemente limitadas pela sua própria situação (isto é, pela sua A l e s s a n d r o P i n z a n i | 137 pobreza) 2 . Em outras palavras: a maneira pela qual os indivíduos definem suas carências é determinada pela sua situação subjetiva e não pode, portanto, ser considerada como uma constatação objetiva relativa às suas carências reais. Por isso, uma teoria das carências humanas deveria renunciar à perspectiva da primeira pessoa, que caracteriza muitas teorias da moral ou da ação, e assumir a perspectiva da terceira pessoa (isto é, de um observador imparcial), a partir da qual as carências se deixam descrever independentemente das representações individuais. Além disso, deveria considerar as diferenças entre os seres humanos, mas não as que surgem por causa das personalidades individuais, antes as que dependem da situação social dos indivíduos e de sua capacidade de saber e desejar o que eles deveras precisam. Não se podem negligenciar estes aspectos em nome de uma primazia meramente formal do justo sobre o bem. Não há nada justo no fato de que indivíduos, ao tomarem decisões importantes para sua vida, sejam movidos por ignorância, engano ou falta de informações corretas, fazendo com que tais decisões se voltem contra seu bem-estar. A justiça exige antes que eles possam tomar decisões bem informadas e que, portanto, seja eliminado (através da educação, da difusão de informações relevantes, de campanhas etc.) qualquer obstáculo que impeça que alcancem a necessária competência epistêmica. A alternativa a definir as carências como preferências subjetivas seria a de ver nelas forças naturais irresistíveis, impulsos ou pulsões que forçariam os indivíduos a se comportarem de certa maneira para satisfazê-las. Ao descrever as carências desta maneira naturalística, quase fisiológica, evita-se aparentemente o risco do subjetivismo. Contudo, pulsões ou impulsos não correspondem sempre às necessidades reais. Podemos estar submetidos a impulsos que nos prejudicam e que, portanto, vão contra nossas verdadeiras necessidades, como no caso de uma pessoa obesa que sinta o impulso de 2 Sobre este ponto ver SEN 1985a, 191 e 1985b, 20. 138 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e comer sempre mais, embora o que ela necessita seja uma dieta, para não ameaçar sua própria saúde. Destarte não se afirma simplesmente que as carências ou necessidades se diferenciam das preferências (ou dos desejos) e dos impulsos; além disso, nega-se que elas possuam caráter subjetivo. Em outras palavras, elas são expressão de uma necessidade objetiva e não dependem das peculiaridades de indivíduos específicos, embora se manifestem sempre de forma peculiar em cada indivíduo. Já foi observado que “cada indivíduo em certo sentido é (a) igual a qualquer outro indivíduo, (b) igual a alguns outros indivíduos e (c) diferente de qualquer outro indivíduo” (KLUCKHOHN et alii 1953, 53). É igual a todos os outros indivíduos em relação às suas características biológicas; é igual a alguns outros indivíduos na medida em que compartilha com eles certas qualidades; é diferente de cada outro indivíduo porque dispõe de uma biografia peculiar e de experiências pessoais que são somente dele. Dever-se-ia, então, afirmar que possui carências em triplo sentido: como ser humano em geral, como membro de um grupo (definido como for) e como indivíduo. Contudo, isso depende da maneira por que se entende neste contexto o termo “indivíduo”. Ao dizer que cada indivíduo é diferente de todos os outros, não nos referimos a suas carências, nem a suas características fisiológicas e psicológicas, mas à circunstância de que tais carências e características são combinadas nele de maneira peculiar e de que a probabilidade que se apresentem exatamente na mesma forma num outro indivíduo é extremamente mínima ou nula (isso depende do papel que se atribui ao ambiente ou aos genes na formação da personalidade individual). O fato de que, neste sentido, ninguém é igual aos outros não implica que cada indivíduo possua carências que nenhum outro indivíduo possui. Se, por ex., sofre de depressão ou de diabete, suas carências ou necessidades relativas a tal situação serão mais ou menos as mesmas de qualquer indivíduo depressivo ou diabético, independentemente das demais peculiaridades. Neste sentido, o indivíduo possui carências somente ou (a) enquanto ser humano em geral ou (b) A l e s s a n d r o P i n z a n i | 139 enquanto membro de um grupo ou categoria (por ex. do grupo dos indivíduos diabéticos). De tudo isso se segue que a insatisfação de uma carência provoca não somente um sofrimento subjetivo, mas um dano constatável objetivamente. Para dar um exemplo muito concreto, os efeitos da má nutrição infantil sobre o desenvolvimento físico e intelectual são constatáveis objetivamente e, em parte, até mensuráveis, enquanto que a frustração que deriva do fato de ter que renunciar à comida preferida pode ser constatável somente quando expressada exteriormente, mas nunca medida objetivamente. Até agora afirmamos somente que (1) as carências não são desejos, preferências ou impulsos e que (2) não possuem caráter objetivo, embora sejam ligadas epifenomenicamente às experiências biográficas peculiares de cada indivíduo. Contudo, não oferecemos ainda uma definição positiva delas. Se olharmos para a estrutura das carências, podemos constatar que temos a ver não somente com uma falta que precisa ser preenchida, mas também com os meios para este fim. O primeiro ponto a ser esclarecido, então, é a questão se a carência diz respeito a um meio ou a um fim. A que nos referimos, quando dizemos, por ex., que um indivíduo necessita de alimentação: ao estado final de estar nutrido ou aos meios para tal estado, isto é, aos alimentos ou à possibilidade de consegui-los? Isso pode parecer irrelevante, já que necessitamos de alimentos para nos alimentarmos e, vice-versa, só podemos alimentar-nos, se recebermos alimentos. Mas o fato de subsistir uma relação prática entre os dois momentos não faz deles a mesma coisa – nem do ponto de vista lógico, nem do ponto de vista prático. Mais uma vez, lidamos com um problema que surge por causa do uso linguístico cotidiano. Diz-se, por ex., que comer é uma necessidade básica, mas com isso se entende na realidade a obtenção de um estado de nutrição alcançado por meio do ato de comer. Isso significa também que o ato de comer é um meio necessário para estar bem nutrido e, neste sentido, não é completamente incorreto falar da necessidade de comer, ainda que, de fato, se devesse 140 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e falar da necessidade de alcançar os meios para comer. Em outras palavras, ter uma carência (por ex. precisar de nutrição) significa precisar dos meios para satisfazê-la (por ex. precisar dos alimentos necessários a tal fim). A carência de algo é sempre carência dos meios necessários à sua satisfação, e estes podem, por sua vez, pressupor a existência de outros meios, isto é, de meios de segunda ordem. Por ex., a necessidade de nutrir-se corresponde implicitamente à necessidade de conseguir alimentos e esta à necessidade de dispor dos instrumentos financeiros indispensáveis para comprar alimentos ou de dispor dos instrumentos ligados à produção direta de alimentos (à cultura da terra, à criação de gado, à colheita de frutos etc.). As carências se distinguem dos impulsos e dos desejos também do ponto de vista de sua força motivacional. Contrariamente a eles, uma carência não visa necessariamente evitar um sofrimento percebido subjetivamente. A força de uma carência depende de dois elementos: por um lado, de peculiaridades individuais (o fato de ser descritíveis a partir da perspectiva de um observador imparcial não significa que as carências não possuam aspectos subjetivos) e, por outro lado, do seu caráter fundamental. Um bom exemplo é oferecido por indivíduos que praticam uma ascese rigorosa por razões religiosas ou indivíduos que por razões ideológicas praticam uma greve de fome e eventualmente se deixam morrer de fome. Este último exemplo permite fazer observações importantes em relação ao segundo elemento. Aparentemente a carência relativa à nutrição é mais fundamental do que a lealdade a uma visão religiosa ou ideológica; contudo, os exemplos citados mostram que tal caráter fundamental não significa eo ipso que a carência mais básica possui uma maior força motivacional do que carências menos básicas. Este é um primeiro passo em direção à relativização da ideia de carência básica. Um segundo passo consiste na revisão da distinção tradicional entre carências fundamentais e derivadas. Os objetos das carências podem ser, por sua vez, meios para satisfazer outras carências: por ex., posso precisar de nutrição não A l e s s a n d r o P i n z a n i | 141 somente para sobreviver, mas também para possuir a força suficiente para sustentar minha família através do meu trabalho físico. É impossível estabelecer uma hierarquia absoluta de carências ou necessidades, ainda que seja possível identificar carências mais “básicas” ou fundamentais do que outras, já que sua satisfação é condição para a satisfação de outras carências, como no caso daquelas ligadas à sobrevivência ou ao bem-estar físico. Neste sentido, a necessidade de nutrição é mais básica do que a necessidade de alcançar a iluminação religiosa, já que sem a primeira não se pode viver e, portanto, não se podem possuir outras necessidades, incluída a segunda. Contudo, alguns indivíduos podem renunciar a alimentar-se e sacrificar sua vida para alcançar iluminação religiosa. Em suma, uma carência básica ou fundamental não é uma carência superior ou mais valiosa, mas simplesmente uma carência cuja satisfação é pré-condição para a satisfação de outras carências. Poder-se-ia falar de carências primárias e secundarias, mas esta escolha terminológica parece-me esconder uma avaliação normativa implícita. 3 Poder-se-ia também falar de carências de primeiro e segundo nível, mas prefiro falar de carências fundamentais e derivadas. Uma carência derivada é aquela cuja satisfação depende da satisfação de outra. Mas pode ser que sua satisfação seja, por sua vez, condição para a satisfação de mais uma carência: neste caso, ela se tornaria fundamental em relação a esta última. Portanto, denominar uma carência de fundamental ou derivada se torna uma questão de perspectiva. Isso não é nada óbvio, pelo contrário: a maioria das teorias das carências 4 tende a elaborar uma hierarquia de valor ou importância relativamente a elas. Por outro lado, desta maneira a ideia de carências básicas ou fundamentais é relativizada sistemática e objetivamente (isto é, no que diz respeito à sua posição em relação a outras carências), assim como subjeti- 3 4 A impressão é a de que as carências primárias possuiriam um valor maior e, portanto, deveriam sempre ser satisfeitas, enquanto as secundárias não seriam tão importantes. Por ex. a obra pioneira de Abraham Maslow (MASLOW 1943 e 1954). 142 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e vamente (isto é, no que diz respeito à atitude individual perante elas). O último passo para definir o conceito de carência consiste em situá-lo no contexto de uma perspectiva teleológica ou fracamente perfeccionista. Cada carência, ou – mais exatamente – sua satisfação, pode ser um fim ou um meio para outros fins, porém todas as carências possuem um fim superior ou último, a saber: garantir a sobrevivência e o bem-estar do ser que as possui. É verdade que o conceito de bem-estar recebe diferentes significados para cada ser, porém cada ser tende a tal estado. Neste sentido, pode-se designar – positivamente – o objeto das carências como algo que um ser necessita para sobreviver ou alcançar bem-estar, e – negativamente – como algo sem o qual um ser morre ou se encontra num estado de mal-estar. Ao falarmos em “carência” ou “necessidade” no uso cotidiano, referimo-nos precisamente a estas duas situações e, portanto, ao objeto da carência ou necessidade. Ao dizermos que nutrir-se é uma necessidade, na realidade entendemos que nutrir-se é uma condição necessária para nossa sobrevivência e nosso bem-estar. Contudo, a perspectiva teleológica não consiste simplesmente em salientar o caráter instrumental das carências, mas em afirmar também que o ser humano possui a capacidade de desenvolver-se sempre mais. Este desenvolvimento representa um processo aberto, que não encontra um fim através da obtenção de um estado de presumida perfeição da natureza humana (daí a oportunidade de falar em perfeccionismo fraco). Se entendermos este desenvolvimento como relativo ao bem-estar, então não há nenhum estado de bemestar perfeito, mas sempre e somente um estado de maior ou menor bem-estar. Independentemente de como o conceito de bem-estar será definido em seus pormenores, podemos dizer que uma sociedade pode ser julgada com base no grau em que fomenta o bem-estar de seus membros – mais precisamente, pela medida em que, ao distribuir por meio de instituições sociais (como o mercado) os meios para satisfazer as carências individuais, as exigências de cada membro são consideradas A l e s s a n d r o P i n z a n i | 143 de maneira igual (isso pode eventualmente levar a uma distribuição desigual, como foi salientado por muitos autores, entre outros por Amartya Sen em SEN 1992 et passim). A justiça de uma sociedade (no sentido da justiça social)5 consiste precisamente nisso. Portanto, não há sociedades absolutamente justas ou injustas, mas somente sociedades mais ou menos justas (ou injustas). Tal comparação pode ser feita em relação a outras sociedades, assim como em relação a diferentes momentos históricos da mesma sociedade. 6 Permanece sem resposta a questão da definição do bem-estar. Para esclarecer melhor este conceito, apresentarei de maneira sucinta uma teoria fracamente perfeccionista da personalidade e das carências, segundo a qual em cada nível de personalidade o bem-estar resulta de um certo grau de satisfação das carências correspondentes. Não é possível definir de antemão este grau de satisfação, já que depende de fatores culturais e individuais, como – espero – resultará claro em seguida. Em primeiro lugar, apresento embaixo os diferentes níveis de personalidade e as correspondentes categorias de carências ou necessidades com seus objetos por meio de uma tabela. 5 6 Outra forma de justiça seria a justiça meramente formal, que consiste em seguir determinados princípios como a igualdade perante a lei, o princípio do devido processo legal etc; Poder-se-ia objetar que o conceito de sociedade aqui utilizado é pouco determinado, assim como o de justiça: o que deve ser medido e comparado é a justiça de instituições sociais em geral ou somente a das instituições políticas? Ou a justiça como atitude dos membros da sociedade? No momento, prefiro deixar sem resposta tais questões. 144 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e Níveis de personalidade 1. Indivíduo • Ser vivo • Animal 2. Ser humano (homo sapiens sapiens) • Ser cultural • Ser etário • Ser sexual e de gênero 3. Persona 4. Sujeito agente • Ator • Agente • Pessoa com identidade epistêmica 5. Pessoa ética • Sujeito moral • Ser afetivo (membro de família, amigo etc.) • Membro da sociedade civil (sujeito econômico) • Cidadão, estrangeiro, imigrado em busca de asilo, imigrado ilegal Categorias de necessidades ou carências Necessidades biológicas • Necessidades vitais • Necessidades animais Necessidades básicas humanas • Necessidades culturais • Necessidades etárias • Necessidades de gênero e sexuais Necessidades jurídicas Necessidades ligadas à autonomia básica • Necessidades do ator • Necessidades do agente • Necessidades ligadas à identidade epistêmica Necessidades éticas Objeto principal das carências Bem-estar biológico • Sobrevivência e reprodução • Desenvolvimento físico e psicológico Bem-estar humano mínimo • Pertença cultural • Bem-estar etário • Identidade de gênero, orientação e bem-estar sexual Proteção jurídica (direitos) Autonomia básica • Liberdade de ação • Agency • Definição de si e credibilidade • Necessidades ligadas à ação moral • Necessidades afetivas Autonomia ética e bemestar significativo (vida boa) • Autonomia moral significativa • Bem-estar afetivo e familiar • Necessidades socioeconômicas • Bem-estar socioeconômico • Necessidades políticas • Autonomia e participação politicas Tabela 1 A l e s s a n d r o P i n z a n i | 145 Não me ocuparei de cada nível em seus pormenores, mas esclarecerei somente os últimos dois de maneira paradigmática. No que diz respeito aos primeiros três níveis, gostaria, contudo, de fazer algumas observações. Como se vê, na tabela a palavra “indivíduo” é usada para qualquer ser vivo, já que indica somente o membro de uma espécie biológica; para o membro da espécie homo sapiens sapiens, especificamente, se usa a expressão “ser humano”. Enquanto os primeiros dois níveis representam uma espécie de hierarquia classificatória, ou seja, uma especificação sempre maior (de ser vivo a ser humano, a ser sexual), os últimos três não são hierárquicos, mas representam unicamente diferentes perspectivas, a partir das quais a pessoa pode ser observada e descrita. São, portanto, os níveis da personalidade propriamente dita. O primeiro deles, o terceiro na tabela, diz respeito ao sujeito de direitos e deveres jurídicos, aqui chamado de persona, conforme uma tradição muito antiga. O quarto nível é o do sujeito agente. Enquanto tal, a pessoa possui necessidades ligadas a uma autonomia básica. De fato, uma pessoa pode desenvolver sua autonomia em vários graus. Em sentido básico, o termo indica a capacidade de escolher uma estratégia de ação e de realizá-la. Isso implica, por sua vez, a capacidade de pôr-se fins, de possuir convicções sobre os meios mais adequados para eles, e de prever ao menos em parte as consequências possíveis do seu agir. Todas estas capacidades podem ser possuídas em graus diferentes (não somente por seres humanos, mas também por alguns animais não humanos). Este tipo de autonomia é necessário para ser um ator em sentido técnico, isto é, para ser considerado como um sujeito que age de maneira sensata. Pressupõe certas condições materiais como liberdade de movimento ou um mínimo de força física (a saber, a força física necessária para realizar a estratégia de ação escolhida). Estas condições implicam necessidades ou carências, cuja satisfação é necessária para poder agir em geral e que na tabela foram denominadas de necessidades do ator: dizem respeito às mencionadas liberdade de movimento e força física, assim como ao desen- 146 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e volvimento das próprias faculdades mentais pelo menos até o ponto a partir do qual o ator entende quais são as opções de ação entre as quais pode escolher e quais serão as consequências prováveis de sua escolha. Neste nível a autonomia corresponde à mera liberdade de ação. Contudo, num grau superior, pode ser entendida como a capacidade de assumir a responsabilidade pelas próprias ações, ou seja, de justificar tais ações perante si mesmo e os outros. Isso faz do sujeito que age algo mais do que um simples ator, a saber, um agente no sentido próprio. Este tipo de autonomia, que caracterizo com o termo inglês de agency, se encontra exclusivamente nos seres humanos, e é ligada a ulteriores capacidades como: (1) a de compreender-se reflexivamente como ator (ou seja, de assumir uma atitude reflexiva perante as suas ações); (2) de prever também as consequências de longo prazo das suas ações; (3) de tornar compreensíveis também para outros as razões de suas próprias ações. Trata-se de capacidades cognitivas, sem as quais não podemos assumir a responsabilidade pelas nossas ações. Por ex., uma pessoa psicótica que pratica uma ação em um raptus não pode ser declarada responsável por tal ação, justamente porque não é capaz de entender o que está fazendo (opinião, esta, compartilhada pela maioria das ordens jurídicas). Isso remete a outro aspecto importante: o agente deve ser reconhecido pelos outros como sendo responsável pelas próprias ações. Este é um nível mínimo de reconhecimento: a pessoa é considerada não simplesmente como um ator que realiza certo ato, mas como um agente que pode ser responsabilizado por este ato e que deve poder-se eventualmente justificar. Ambos os tipos de autonomia (liberdade de ação e agency) representam formas básicas de autonomia. Elas são acompanhadas da capacidade de oferecer uma definição de si, que denomino de identidade epistêmica, inspirando-me em Miranda Fricker (FRICKER 2007, 14 ss. et passim). No quinto nível, o ser humano é visto como pessoa ética, que tenta realizar o que considera uma vida boa (independentemente da questão de onde e de como desenvolveu sua ideia de vida boa). Neste sentido, ele é primeiramente um su- A l e s s a n d r o P i n z a n i | 147 jeito moral autônomo; em segundo lugar, possui uma vida afetiva e familiar (ainda que esta possa ser limitada temporalmente); 7 em terceiro lugar, ocupa uma posição na sociedade e no seu sistema econômico; em quarto lugar, participa da vida política desta sociedade (lembrando que também a exclusão – voluntária ou forçada – da vida política é uma forma de participação, ainda que negativa). Em todos estes âmbitos, a pessoa pode conduzir uma vida boa (uma vida familiar boa, uma vida social boa etc.). Como se vê, neste ponto me deixei inspirar muito pela Filosofia do direito de Hegel, porém mais como hipótese de trabalho que por convicção da validade do modelo hegeliano. A autonomia correspondente a este nível possui vários graus de desenvolvimento. Uma pessoa se torna cada vez mais autônoma na medida em que (1) desenvolve seu plano de vida de maneira independente dos modelos dominantes em seu ambiente (ambiente que pode ir dos círculos sociais mais restritos, como família, amigos, comunidade local, até os mais amplos, como cultura, crença religiosa etc.) e em que (2) os princípios, com base nos quais fundamenta direitos e deveres para si e para os outros, se tornam mais universais ou gerais. Enquanto a obtenção de uma maior autonomia no primeiro caso é importante para a pessoa mesma, já que se trata de ampliar suas chances de uma vida boa, no segundo caso ele é importante também para os outros. Uma pessoa capaz de elaborar modelos de vida que sejam menosprezados pelo seu ambiente imediato pode ter mais opções para viver uma vida boa, como no caso de uma mulher que provenha de uma família fortemente machista e patriarcal e que resolva morar sozinha, ainda que isso signifique abandonar seu lugar de nascimento e transferir-se para outra cidade ou para um lugar longínquo. Uma pessoa que comece a ver e a tratar outras pessoas de maneira diferente do que o fazem as pessoas do seu ambiente, reconhecendo-lhes mais direitos morais, con7 A vida familiar pode ser limitada à infância (como no caso de uma pessoa que, uma vez adulta, não estabeleça nenhuma relação amorosa e nenhuma amizade, conduzindo uma vida solitária). 148 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e tribui ao surgimento de um ambiente melhor para estas pessoas e para suas escolhas de vida, como no caso de um irmão da mulher mencionada que, contrariamente à sua família, começasse a considerar legítimos a escolha e o tipo de vida dela e a atribuir também às outras mulheres aqueles direitos que o resto de sua família segue negando-lhes por causa de suas visões machistas. Este tipo de autonomia pode, como já se disse, ser mais ou menos desenvolvido; este processo é, em linha de princípio, interminável: não há um ponto a partir do qual não é possível tornar-se mais autônomo. Por outro lado, há limites evidentes que dependem de circunstâncias concretas: causas ligadas ao contexto específico (à época histórica, ao ambiente sociocultural etc.), experiências subjetivas e biográficas, possibilidades genéticas. Joseph Raz (RAZ 1986, 154) fala neste sentido de autonomia significativa (significant autonomy). Pessoas significativamente autônomas são aquelas que, além de serem atores racionais, desenvolvem um plano de vida que inclui o engajamento por causas que consideram importantes para ganhar e manter dignidade e respeito de si. Pois há uma ligação importante entre autonomia, por um lado, e dignidade e autorrespeito, por outro. Se alguém tem a sensação de não estar agindo autonomamente, mas de ser forçado a agir de certa maneira, seu autorrespeito sofre por isso e ele não será capaz de reconhecer como suas as ações por ele praticadas. Portanto, a autonomia não representa somente um elemento da personalidade, mas é também o objeto de uma importante necessidade e um aspecto central do bem-estar de um ser humano. Já que este pode ser definido como um estado, em que uma pessoa conseguiu satisfazer as carências mais importantes para o nível de personalidade correspondente, neste caso estamos referindo-nos à necessidade de sentir-se responsável pelas suas próprias ações. Isso implica uma série de condições e pressupostos que dependem da existência de instituições sociais e que podem ser direta ou indiretamente objetos de políticas públicas (portanto, também objetos de uma teoria da justiça social). No centro na teoria em tela, encontra- A l e s s a n d r o P i n z a n i | 149 se não o conceito de autonomia em si, mas uma autonomia entendida como um aspecto importante do bem-estar humano e como condição fundamental para a satisfação de necessidades humanas. Ela é, ao mesmo tempo, meio para um fim e parte do fim a ser realizado, como salienta Amartya Sen, ainda que no contexto de outra concepção de autonomia (cf. SEN 1992). II O conceito de carência ou necessidade básica é frequentemente posto em conexão com a ideia de que existiria uma natureza humana imutável definível justamente recorrendo às carências básicas. Chamo esta posição de naturalismo ingênuo. Não se trata de uma posição meramente essencialista, já que não se limita a afirmar que existem necessidades constatáveis objetivamente, mas afirma também que há uma natureza humana imutável (nisso consiste, justamente, sua ingenuidade). Em lugar disso, defenderei uma posição de naturalismo histórico, pela qual a natureza humana se forma historicamente, não somente no sentido óbvio, porém nada trivial, de que há uma história da evolução humana, mas também em uma ótica filosófico-antropológica, a partir da qual a dimensão histórica é uma qualidade característica que distingue homo sapiens sapiens das outras espécies animais. Como observou certa vez Max Horkheimer, até nossos órgãos de percepção possuem um caráter histórico, pois os usamos conforme as exigências e as possibilidades de nossa época: nosso mundo histórico, isto é, o mundo plasmado pelos seres humanos, plasma também nossa maneira de percebê-lo (HORKHEIMER 1992, 217 s.). Longe de ser uma tabula rasa, na qual tudo pode ser escrito, como afirma uma posição que chamarei de culturalismo ingênuo, 8 o ser humano é determinado biológica 8 Para uma crítica do culturalismo ingênuo e da visão da mente como tabula rasa ver PINKER 2004. 150 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e e culturalmente, a saber, através das condições genéticas e culturais nas quais desenvolve sua personalidade. Atualmente, há um enorme debate sobre o peso relativo que deveríamos atribuir a estas duas posições (ao naturalismo e ao culturalismo), mas neste contexto não é necessário entrar neste assunto. É suficiente salientar que nossa personalidade individual é determinada por ambos os aspectos: pelo genético, biológico e natural, por um lado, e pelo histórico, cultural e artificial, por outro. A afirmação de que haveria uma oposição entre natureza e cultura é falsa, se com isso se entende a existência de uma diferença insuperável. Trata-se antes de uma relação dialética: a cultura modela elementos naturais dados que representam a matéria bruta do seu agir e, ao mesmo tempo, os limites de tal ação. A realidade não pode ser explicada a partir de um ponto de vista exclusivamente cultural ou natural, imaterial ou material, espiritualista ou materialista. Para melhor entender isso, poderíamos remeter à afirmação hegeliana segundo a qual “o ser do eu é uma coisa” e “a coisa é Eu” (HEGEL 2005, 532). Se afirmássemos que o Eu é simplesmente uma coisa, assumiríamos uma posição naturalista ingênua, como fazem alguns pesquisadores das áreas da biologia evolucionária ou das neurociências; se, pelo contrário, afirmássemos que a própria coisa é Eu, apontaríamos para o fato de que na realidade há sempre (também quando a consideramos do ponto de vista meramente materialista) um elemento que não é material, mas espiritual em sentido hegeliano, isto é, ligado à atividade humana. O mundo nunca é dado simplesmente como objeto da nossa percepção e do nosso conhecimento, mas é sempre produzido também por nossa atividade. Segundo Heidegger (1983, 383), o ser humano é “formador de mundo” (weltbildend). Contribuímos a produzir nosso ambiente e nossa própria natureza, em sentido material e imaterial: através da manipulação concreta, mas também ao descrevê-los e interpretá-los. 9 Esta atividade criadora leva Robert Brandom a afirmar que seres essencialmente 9 O Hegel do período de Jena utiliza para esta dupla atividade o termo “trabalho”. A l e s s a n d r o P i n z a n i | 151 conscientes de si como os humanos não possuem natureza, mas tão somente história (BRANDOM 2004, 47). Um ser essencialmente consciente de si é, ao mesmo tempo, essencialmente autoconstituinte. Servindo-se de um vocabulário tipicamente hegeliano, Brandom afirma que “um ser deste tipo pode modificar o que é em si, ao modificar o que é para si”. Isso significa que “uma mudança da concepção de si traz consigo uma mudança do self do qual ela é uma concepção”. Tais seres “se tornam algo diferente ao se considerarem algo diferente” (IBID., 46). Alexandre Kojève observou, comentando Hegel, que o ser natural, o animal, é essencialmente “dado”, enquanto o ser humano pode transcender-se, isto é, ir além da própria natureza inata. Este transcender-se significa, contudo, “a morte” do elemento animal no homem. Por isso, Kojève define o ser humano como “a doença mortal do animal”. O ser humano existe como tal somente na medida em que transcende o animal que o “sustenta” (KOJÈVE 1947, 553 s.). Este é um ponto importante, pois o que distingue o ser humano dos outros animais não é a consciência de si no sentido trivial de uma consciência da própria individualidade ou da capacidade de afirmar-se e transformar-se, mas no sentido da capacidade de dar uma interpretação do seu self e da sua natureza. Esta capacidade está ligada de maneira essencial à capacidade de utilizar a linguagem de maneira peculiar. Utilizamos a linguagem não somente para nos comunicarmos entre nós ou para expressar nossos estados de ânimo, como os outros animais, mas também para explicar o mundo e nosso agir. O homem é o animal que pode dar razões. Esta capacidade se encontra na base do desenvolvimento daquilo que chamamos de cultura. Os outros animais não possuem culturas. Podemos registrar diferenças entre grupos da mesma espécie no que diz respeito à interação com o ambiente: à maneira de caçar, aos hábitos alimentares etc. Mas uma cultura é mais do que isso: é uma maneira de interpretar o ambiente circunstante, de dar-lhe um significado, de encontrar razões para sua constituição. A mencionada oposição entre natureza e cultura parte do falso pressuposto de que a cul- 152 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e tura não seja natural – pressuposto comum ao naturalismo ingênuo e ao culturalismo ingênuo. Na realidade a cultura é consequência das características naturais da espécie homo sapiens sapiens e de sua evolução. 10 A característica principal é, como já dissemos, a capacidade de interpretar a própria natureza servindo-se da gramática das razões. Destarte, o ser humano toma distância de si mesmo e se torna capaz de observar-se de um ponto de vista exterior, procurando uma explicação pela circunstância de possuir certas qualidades e certas necessidades. Desta maneira, os mecanismos naturais são reinterpretados e, eventualmente, modificados – e talvez seja isso o que Brandom quer dizer ao afirmar que um ser essencialmente consciente de si é essencialmente autoconstituinte. Este é o ponto de vista da posição que chamei de naturalismo histórico. Tudo isso tem consequências importantes para uma teoria das carências humanas. A partir da perspectiva históriconaturalista, tais carências não são simplesmente dadas, nem são expressão de uma natureza humana imutável, como afirma a posição naturalista ingênua. Isso, contudo, não significa que não existam ou que sejam definidas só culturalmente, como afirma a posição culturalista ingênua (representada pelo professor japonês citado acima). As carências possuem um caráter complexo e objetivo, que vem à tona em vários níveis. Em primeiro lugar, trata-se da possibilidade, já mencionada, de defini-las independentemente das atitudes subjetivas dos indivíduos. Nem por isso, porém, devem ser descritas como algo imutável, já que não se referem a uma natureza humana imutável, mas a uma natureza que se encontra num processo de devir histórico. Portanto, também as carências humanas se encontram neste processo e, apesar de seu caráter objetivo, denotam certa plasticidade. O processo de distanciamento da própria natureza animal para interpretá-la não implica a libertação das necessidades animais, mas sua redefinição. Elas se tornam necessidades 10 Sobre a origem e a evolução das culturas de uma perspectiva evolucionista ver BOYD & RICHERSON 2005. A l e s s a n d r o P i n z a n i | 153 humanas, porque são definidas à luz deste distanciamento e desta autointerpretação. Não é possível justificar o próprio agir remetendo simplesmente à sua satisfação; espera-se antes que a pessoa situe suas carências e as estratégias para satisfazê-las no contexto de um sistema de referências (de razões, de valores, de expectativas, de hábitos etc.) reconhecido coletivamente. Isso se torna evidente quando se consideram as complexas regulamentações às quais é submetida em todas as culturas a satisfação das necessidades sexuais. Para que a referência a uma necessidade e à sua satisfação possa ser aceita como razão que justifique um comportamento, ela deve ser compreensível e aceitável como tal no interno de um determinado contexto social. Destarte, a satisfação concreta da carência, que possui um caráter puramente individual, se distingue conceptualmente da satisfação justificada, isto é, aceita coletivamente, na qual é decisiva a dimensão coletiva. No contexto social, as carências são redefinidas; em particular, os meios para sua satisfação se tornam o objeto de regulamentações sociais que, frequentemente, dificultam tal satisfação e a condicionam ao preenchimento de condições que o indivíduo satisfaz com muita dificuldade. Freud mostrou com clareza quanto é importante este processo de aculturamento para que o animal homo sapiens se torne o ser humano que conhecemos (FREUD 1997). Este processo de regulamentação e civilização, contudo, não acontece casualmente, mas é objeto de justificativas que assumem, finalmente, a forma de discursos de legitimação. Chegamos assim ao papel da sociedade em relação à satisfação das carências. III A sociedade existe para garantir a satisfação das carências humana. Diversos tipos de sociedade definem tais carências de maneira diferente, garantindo sua satisfação em maneiras e níveis diversos. O leque de possibilidade vai de socieda- 154 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e des à la Mad Max, 11 nas quais as únicas carências que o arranjo social tenta satisfazer são a sobrevivência e a segurança perante inimigos, a sociedades como o Estado de bem-estar social de tipo escandinavo, no qual o espectro de carências satisfeitas pela sociedade é extremamente amplo. Ora, toda sociedade historicamente dada, independentemente de sua natureza, possui um discurso legitimatório que justifica sua organização interna, em conformidade com a que anteriormente foi definida a característica peculiar do ser humano, sua diferença específica, a saber, a capacidade de oferecer razões. 12 A estabilidade de uma sociedade está ligada ao fato de a maioria de seus membros aceitar a validade do discurso legitimatório. Quando este idem sentire se enfraquece e um número crítico de membros (número que varia em cada sociedade e nos diferentes momentos históricos) não o compartilha mais, a sociedade é obrigada a modificá-lo, e isso pode até levar a uma mudança social, econômica ou política radical (como por ex. no caso das revoluções). Neste discurso legitimatório, a sociedade define também as carências humanas que pretende satisfazer e a maneira em que isso vai acontecer. Pense-se no American Way of Life, que promete bemestar e liberdade individual por meio do mecanismo do livre mercado e da iniciativa privada, sem interferência estatal. Ou, pelo contrário, no mencionado modelo escandinavo, que garante amplos direitos sociais e certo nível de bem-estar a todos os cidadãos independentemente de seus esforços individuais para alcançá-lo. O discurso legitimatório representa o elo que permite passar da dimensão descritiva à normativa sem cair na falácia naturalística ou, melhor, na falácia do is-ought. Não se trata de descrever as tarefas da sociedade em relação à satisfação das carências de seus membros, para em seguida, a partir de tal descrição, estabelecer um dever neste sentido por parte da 11 12 Refiro-me à trilogia fílmica Mad Max (1979), Mad Max 2 (1981) e Mad Max Beyond Thunderdome (1985) de George Miller. Retomo aqui e em seguida algumas considerações desenvolvidas em PINZANI 2012. A l e s s a n d r o P i n z a n i | 155 sociedade. Trata-se antes de levar a sério as promessas que a sociedade faz aos seus membros, para em seguida verificar se tais promessas são mantidas e, caso não o sejam, por que razões: se por circunstâncias contingentes, por má fé dos grupos dirigentes ou pela impossibilidade de realizá-las em geral. Justamente neste contexto, a teoria crítica da sociedade encontra seu lugar: na análise do discurso legitimatório e em sua crítica. Para dar um exemplo: poder-se-ia criticar a sociedade capitalista e globalizada contemporânea por não realizar sua promessa de garantir a plena autonomia individual (o indivíduo fica preso em mecanismos impessoais que lhe tornam impossível decidir de forma verdadeiramente autônoma sobre sua vida) ou, alternativamente, pôr em questão o próprio ideal de autonomia individual (quer por ser a base daquele individualismo que provoca fenômenos de desagregação social que resultam, por sua vez, em formas de alienação características da sociedade atual; quer por ser um conceito vazio ao qual nada corresponde num sistema econômico que, como o capitalismo, é governado por forças anônimas e superindividuais). Neste sentido, devemos distinguir várias perspectivas, a partir das quais é possível uma crítica interna da sociedade ou de seus sistemas econômico, político, jurídico etc. A primeira é uma perspectiva meramente funcional: o alvo da crítica é um mau funcionamento do sistema. Um exemplo clássico seria a crítica ao capitalismo que o acusa de não produzir o bem-estar para todos que ele promete criar (pelo menos segundo seus teóricos mais apologéticos como Milton Friedman). Este tipo de crítica julga geralmente ser possível otimizar o sistema por meio de alguns ajustes: ela leva a sério as promessas não mantidas e não pensa que é impossível realizálas pela própria lógica da sociedade ou do sistema em questão. A segunda é uma perspectiva moral que aponta para o fato de a sociedade (ou o sistema) ir contra uma norma ou um ideal moral aceitos pela própria sociedade (ou pelo próprio sistema). Um exemplo é a crítica ao capitalismo que o acusa de explorar o trabalhador e, portanto, de quebrar a justiça que ele pretende seguir (na ideia da justa recompensa, do contrato 156 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e livre entre empregador e empregado etc.). Também neste caso, permanece aberta a possibilidade de que uma mudança interior ao sistema (uma moralização ou a eliminação duma situação de injustiça específica) possa fazer com que ele esteja à altura de seus próprios valores e ideais morais, mas nem sempre isto é possível (por ex.: na ótica marxista da teoria da mais-valia, o capitalismo é intrinsecamente injusto, pois se baseia na exploração do operário e não pode renunciar a tal exploração, sem deixar de ser capitalismo). A terceira é uma perspectiva ética que salienta como a vida numa determinada sociedade não é uma vida boa conforme os seus próprios critérios de vida boa. Um exemplo é a crítica ao capitalismo que o acusa de criar alienação em vez de tornar os indivíduos autônomos. A partir desta ótica, novamente, pode-se pensar que a sociedade consiga eliminar os obstáculos que impedem os indivíduos de viver uma vida boa, ou pensar que a situação de alienação permanece irremediável. Isto significa que o crítico social assume uma perspectiva que é, ao mesmo tempo, interna e externa à realidade social que pretende criticar. É interna enquanto parte dos ideais e valores próprios da sociedade em questão; é externa na medida em que se distancia do próprio objeto para avaliar se e como a sociedade realiza seus ideais e valores. Assim, se quisermos considerar quais são as carências que a sociedade brasileira contemporânea pretende satisfazer e quais as maneiras pelas quais pretende fazer isso, para depois verificar se isso acontece de fato na realidade, poderíamos, por ex., tomar como ponto de partida o preâmbulo da constituição de 1988, no qual se afirma que o Estado democrático é “destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”. Ou ainda o artigo 1º, inciso III (a República Brasileira tem como fundamento, entre outros, “a dignidade da pessoa humana”), o artigo 3º (“Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o A l e s s a n d r o P i n z a n i | 157 desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”), o artigo 170 (“A ordem econômica fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social [...]”) e o artigo 193 (“A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais”). A identificação dos fundamentos e dos objetivos fundamentais do Estado brasileiro constitui elemento essencial do discurso legitimatório de nossa sociedade. Representa, portanto, um critério relevante para medir o grau em que tal sociedade mantém suas promessas e para estabelecer se seu arranjo institucional merece ser considerado legítimo pelos seus membros. Contudo, não pode ser este o único critério, pois a constituição de um Estado, embora represente uma dimensão fundamental para a existência de uma sociedade, não esgota as possíveis definições de si que tal sociedade constrói. Tornar-se-ia necessário, portanto, analisar também o discurso legitimatório não institucional, que perpassa a discussão pública na mídia e chega até à esfera privada das famílias etc. – tarefa, esta, particularmente difícil e sobre a qual não posso estender-me no presente contexto. Referências BOYD, Robert; RICHERSON, Peter J. The Origin and Evolution of Cultures. Oxford: Oxford University Press, 2005. 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One of the most intensive discussions that have taken part in the debate on distributive justice is the one aiming at an answer to the question “equality of what?” The answer intends to establish which the most appropriate metric to evaluate a social situation is. This metric or informational basis establishes what information is considered relevant to compare which persons are better and worse positioned. Opportunities, income, resources, primary goods or capabilities, are feasible metrics of justice, and among these metrics primary goods and capabilities have been prominently present in the debate. Primary goods are all-purpose means that enable someone to carry out his life plan, while capabilities capture the different possibilities someone has to transform means or resources into well-being. Therefore, capabilities specify the 162 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e real freedom people have to pursue and fulfill their ends. For example, for the Rawlsian perspective, concerned with assigning an objective set of means, two people would be treated equally if they had equitable access to the same set of primary goods; however, if one of those two people had a chronic illness or very basic education while the other was healthy and had gained a higher level of education, their chances to turn primary goods into well-being would be significantly different. Primary goods and capabilities reflect two spaces in which to process the evaluations of justice, and the partisans of both perspectives have taken part in an important debate about which of these evaluative spaces is the best.1 I believe that the discussion processed by Rawls and Sen about this topic has ended up in a kind of draw, in which Sen`s criticisms have been overcome by the answers given by Rawls. Sen’s criticism has not had a great impact on Rawls’s position, since Rawls considered it as a contribution to be taken into account in the stages that follow the original position, in particular the legislative stage, i.e., in a moment in which applicability requires to handle more information in order to take decisions of justice, and in which a more comprehensive metric than the primary goods can be very useful. 2 Sen disagrees with in this respect and says that the recognition of the special circumstances that affect someone, such as a disability, should be integrated in the principles of justice because situating these circumstances in the legislative stage has a limited reach. The variations in conversion of opportunities, Sen says, are not merely “special needs” which can be specially considered in the legislative stage, but they reflect pervasive variations in the human condition and for that reason they should be considered by the principles of 1 2 Cf. Harry Brighouse and Ingrid Robeyns (Eds.), Measuring Justice. Primary Goods and Capacities, (Cambridge, Cambridge University Press, 2010) John Rawls, “Social unity and primary goods”, in A. Sen and W. Bernard (Eds), Utilitarianism and beyond (Cambridge, Cambridge University Press-Editions de la Maison des Sciences de l’Homme, 1982) 159-185, 168, note 8. G u s t a v o P e r e i r a | 163 justice. Sen sustains that the Rawlsian concern for “special needs” could be useful in identifying and counterbalancing the effect of handicaps such as blindness, but it would not be the case with variations connected, for instance, to “proneness to illness” or “adverse epidemiological surroundings”. This leads Sen to affirm that capabilities and functionings are a better metric than primary goods in order to provide the necessary institutional design and make policies to counterbalance the mentioned circumstances. 3 In his last answer to Sen, Rawls said that his description of the primary goods take into account Sen’s basic capabilities, understood as “the capabilities of citizens as free and equal persons in virtue of their two moral powers”. 4 This is why the primary goods index is built by asking what things are necessary for citizens to be able to exert their moral personality powers and maintain their status of free, equal and fully cooperating members of society. 5 It can be said that the moral personality powers operate as the ultimate criterion to settle the primary goods set, and Sen’s capabilities can be subsumed under the moral personality powers. However, Sen’s criticism becomes strong and maintains its initial intention if the focus is moved from what Rawls calls an ideal theory to a nonideal theory, and thus to the possibilities of realizing justice in democratic societies. This is specially pointed out by Sen, who highlights that the absence of reasonable people is a great difficulty a theory of justice must face. 6 To develop the relevance of this difficulty Sen pays special attention to circumstances such as poverty or marginalization, which undermine the capabilities that permit reaching the condition of full and cooperating members. 3 4 5 6 Amartya Sen, The Idea of Justice, (The Belknap Press of Harvard University Press, Cambridge Massachusetts, 2009) 261. John Rawls, Justice as Fairness. A Restatement (Cambridge, Massachusetts, The Belknap Press of Harvard University Press, 2001) 169. Rawls, Justice as Fairness, 169-170. Cf. Sen, The idea of justice, 79. 164 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e The movement towards a nonideal theory, which covers the aforementioned circumstances, is not specially made by Rawls, although it is required in order to translate justice into real societies. It is in this task where the capability approach manifests its strength because the metric of capabilities can conceptualize in a better way than primary goods how people are affected by circumstances that justice must neutralize in order to ensure people’s equal dignity. It can be sustained that depending on the scope of justice the discussion between primary goods and capabilities leads to different conclusions; the metric of capabilities is a good candidate only when the scope of justice includes real societies. In particular, the metric of capabilities is very useful when it comes to securing a minimum or sufficient development of elementary capabilities 7 that allow someone to pursue a life plan, share social cooperation and take part in the life of society, i.e. to be an equal and free citizen. This minimum development of capabilities can also ensure the motivational structure one person has and which enables her to act as an autonomous subject. The motivational structure of a person is constituted by the practical relations-to-self of self-trust, selfrespect, and self-esteem which are someone’s different forms of perceiving oneself and works as preconditions to someone’s agency. 8 This interpretation of the concept of capability has the particularity of covering circumstances traditionally associated to justice like rights, opportunities and means, as well as the ones traditionally associated to recognition like the aforementioned practical relations-to-self. This implies that a citizen, besides the Rawlsian two moral powers –i.e. a capacity to have, revise and pursue a conception of good and the capacity 7 8 Cf. Martha Nussbaum, Women and Human Development. The Capabilities Approach (New York, Cambridge University Press, 2000), Elizabeth Anderson, “What Is the Point of Equality”, Ethics, 109 (2), 1999, 287337. Cf. Axel Honneth, The Struggle for Recognition. The Moral Grammar of Social Conflicts. Translated by Joel Anderson (Cambridge, Polity Press, 1995). G u s t a v o P e r e i r a | 165 for a sense of justice-, must have the capacities to take part in dialogues, justify her own position with reasons, raise claims or express dissent. These features of a citizen as an autonomous subject are adequately covered by the interpretation of the concept of capability in terms of justice and recognition, which is a contribution to the development of a nonideal theory of justice. When I refer to recognition as an aspect covered by the metric of capabilities I mean the interpersonal relationship in which someone’s normative expectations are considered by someone else, who in turn is relevant and recognized by this person as able to give recognition. While this relationship in its most basic formulation is achieved between two people who give and receive mutual recognition of their normative expectations, in social life the ones who give and receive recognition can also be collective actors such as State institutions or different types of associations that recognize their members. In these cases it may be affirmed that there is a mediation of recognition between individuals and collective actors. This definition does not exhaust the idea of recognition, but restricts it to the context that has direct impact on social justice issues. The importance of recognition for justice is that the participants in such relationships acquire practical relations-to-self, which are preconditions for someone to be able to participate in the life of society as an agent. In a Hegelian vein the practical relation-to-self is the capacity to reflexively ensure one’s own competences, i.e., they are forms of self-perception and are the outcome of the reciprocal recognition relationships we establish, in such a way that in those relationships, for instance the respect that others give us is crucial to ensure our self-respect and the esteem which is granted by others results in our self-esteem. Self-trust, selfrespect, and self-esteem are the practical relations-to-self I consider. Following Honneth’s recognitional approach it can be said that self-respect is acquired in relations in which personal dignity is respected universally and which are institu- 166 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e tionalized in the legal corpus of a society. 9 Self-trust consists in the most basic self-confidence a subject can have and it is acquired in the intimate relationships such as the ones between mother and son, spouses or friends. As for self-esteem this practical-relation-to-self is the result of the worth that others attribute to our acts and contributions to society, and it depends on a symbolic net of shared values, according to which each member of a community is recognized as valuable. These three practical relations-to-self constitute the motivational structure of a subject, which is a precondition for action. A person without enough self-trust obtained in close relationships will not be capable of demanding to be treated as an equal, and without the self-respect which arises from feeling equally treated, that person will not be able to demand the recognition of her particular abilities on which her selfesteem is founded. 10 Without these practical relations-to-self, autonomy cannot be achieved. I sustain that the metric of capabilities, as a consequence of its high sensitivity to interpersonal variability, is a suitable way to guarantee the practical relations-to-self presented. Of these three practical relations-to-self, only selfrespect can be ensured by means of the direct action of State institutions, for instance, through the public policies implemented and the rights granted. In this case a metric of capabilities or primary goods are equally suitable to ensure selfrespect. This is because the appropriate measures to guarantee 9 10 Stephen Darwall presents a distinction between recognition respect and appraisal respect. Recognition respect is grounded on the recognition of capacities possessed by all persons as they have a moral status or dignity, while appraisal respect is grounded in our judgment of someone´s character, merits, virtues or accomplishments. In both cases it is possible to bear attitudes towards oneself, i.e, recognition self-respect and appraisal self-respect. My use of the concept of respect is restricted to Darwall´s recognition respect, because it is owed equally to every person, though I emphasize the interpersonal way of acquiring it. Cf. Darwall Stephen, “Two Kinds of Respect”, Ethics, 88 (1), 1977, 36-49. Cf. Honneth, The Struggle for Recognition, 107, 126. G u s t a v o P e r e i r a | 167 self-respect can be generally and equally implemented; therefore the high sensitivity to interpersonal differences of the informational basis of capabilities is not necessary. As for the self-trust obtained in intimate life and the self-esteem acquired as a result of how our abilities are valued by society, they go beyond the scope of the direct intervention of institutions, but they can be indirectly influenced by them. It is quite obvious that institutions cannot guarantee, through direct intervention, that someone be a good father, husband or friend, or that certain kind of jobs or professions are considered as contributing in a better way than others to the society, getting for this reason a greater social prestige. However, although self-trust and self-esteem are beyond the scope of the direct intervention of institutions, they can be indirectly influenced by institutions. As both practical relations-to-self allow ensuring the condition of autonomous subject, they must be taken into account for designing social policies and the metric of capabilities is the most suitable for that. Though Sen and Nussbaum do not explicitly present this possibility, it is feasible to reconstruct the need for ensuring the aforementioned practical relations-to-self through what they say about the development of capabilities that allows someone to live a life she or he has reasons to value. Nussbaum’s capabilities list is a good guide to explicitly state the need for guaranteeing self-trust. 11 As already said, this practical relation-to-self is acquired in the reciprocal recognition relationships that people establish in intimate life. In this kind of relationships, one of Nussbaum’s capabilities contribute in a significant way: the one related to emotions, which consists in “Being able to have attachments to things and people outside ourselves; to love those who love and care for us.” In particular Nussbaum remarks that “Supporting this capability means supporting forms of human association that can be shown to be crucial in their development”. 12 This is 11 12 Cf. Nussbaum, Women and Human Development, 78-80. Nussbaum, Women and Human Development, 79. 168 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e why in these forms of human association, mediated by love and care, a person acquires enough self-assurance so as to carry out a life plan. In this process it is necessary to ensure certain kind of interpersonal relationships that allow someone to feel loved and cared for by those he or she loves in turn. The informational basis of capabilities also captures the relevance that self-esteem has for people. In Sen’s proposal it is possible to perceive the importance he attributes to this practical relation-to-self when he considers how unemployment affects people’s self-esteem. About this topic Sen says that the absence of income inherent to unemployment can be compensated by income support, such as unemployment benefits, but unemployment implies more than absence of income and has consequences like the undermining of motivation, abilities and self-confidence, as well as family relationships and social life. 13 Sen’s intention is to criticize the focus on income to evaluate the impact of unemployment. Through this criticism he exposes the indispensable requirements for someone to lead a life plan successfully, highlighting the fact that motivation, self-confidence and successful interpersonal relationships are necessary for reaching the goals someone considers valuable. As for Nussbaum, in connection with self-esteem she establishes some guidelines for public action in order to give women a greater bargaining power in the family. Among the mentioned lines are “the importance of perceived contribution” and “the importance of a sense of one’s own worth”. 14 The former focalizes in the fact that women’s domestic labour is usually undervalued and this reduces the possibilities that women have a symmetric control of resources with men within the family. The latter consists in the self-perception women have of their value and how valuable their projects are. Both guidelines aim at strengthening the possibilities that women, through the development of their self-esteem, can reach their goals. 13 14 Cf. Amartya Sen, Development as Freedom (New York, Knopf, 1999) 94. Nussbaum, Women and Human Development, 286-289. G u s t a v o P e r e i r a | 169 Summing up, the metric of capabilities can identify the circumstances that make possible or affect the practical relations-to-self of self-trust and self-esteem, as well as selfrespect, and this is especially useful for the evaluation of social situations and for the designing of social policies. In addition, the emphasis I made on interpersonal relationships, and in particular on the reciprocal recognition relationships, leads me to an interpretation that introduces the need of guaranteeing the motivational structure of the subject in terms of capabilities and functionings. The need for realizing justice in real societies arises when the matter of autonomy acquisition appears and requires a suitable metric that can identify the necessary measures to acquire such autonomy. In consequence, the greater sensitivity to the circumstances that contribute or impede that a person lead a life plan, engage in social cooperation and take part in the processes of decision making, points at the capabilities as a suitable metric of justice to reach those objectives. P á g i n a | 170 P á g i n a | 171 BODY, BEAUTY AND JUSTICE Maria Borges 1. Justice and the arbitrariness of nature What is justice? In the book Justice as fairness, John Rawls understands justice as fairness. In his theory, justice should be a virtue of major institutions. A theory of justice, whatever conception of justice one holds, “still agree that institutions are just when no arbitrary distinctions are made between persons in the assigning of basic rights and duties and when the rules determine a proper balance between competing claims to the advantage of social life.” 1 . The idea of a theory of justice is that the basic structure of societies determines various social positions, and that men born into different positions have different expectations in life. These positions cause inequalities, to which the principles of justice should apply. For John Rawls, theory of justice as fairness can be stated in two principles: Firstly: Each person has the same equal right to the most extensive basic liberty compatible with a similar liberty for others. 1 John Rawls , A Theory of Justice (Cambridge: Harvard University Press, 1971), p. 5 172 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e Secondly: social and economic inequalities are to be arranged so that they are both (a) reasonable expected to be to everyone’s advantage, and (b) attached to positions and offices 2 open to all. Not only different social positions lead to different expectations in life, but also the distribution of natural assets can lead to different prospects. In the distribution of natural assets and abilities, some are more fortunate than others. For John Rawls, the natural distribution is not just or unjust, but only the ways in which institutions deal with them: Natural distribution is neither just nor unjust; nor is it unjust that persons are born into society at some particular position. These are simply natural facts. What is just and unjust is the 3 way the institutions deal with these facts. Differences in natural distribution are natural facts. A theory of justice, according to Rawls, should build institutions that overcome the arbitrariness of fortune and the accidents of nature. Justice and injustice are not in nature itself, but just or unjust is the way institutions incorporate the arbitrariness found in nature. I am concerned here about the differences in beauty among women. I would like to analyze whether they lead to differences in life perspectives and, if so, how a society could deal with theses natural aspects in order to avoid social injustices. 2. Beauty and life perspectives for women Nancy Etcoff published in 2000 the book The Survival of the Prettiest, the Science of Beauty that soon became a best seller in USA. 4 This book has a trivial and polemic thesis. The thesis is 2 3 4 John Rawls, A Theory of Justice, p. 60. John Rawls, A Theory of Justice, p. 102. Nancy Etcoff Survival of the Prettiest, The Science of Beauty, (New York: Doubleday, 1999). M a r i a B o r g e s | 173 that men prefer the most beautiful women as mate partners, intelligence being indifferent or negative for this choice. Women, on the contrary, would prefer the most powerful or rich men, or the men with greater social status. The polemic thesis is that this difference is a biological and natural one. Etcoff shows that, the most beautiful girls in High School “marry up,” meaning that a beautiful girl will usually marry a man whose social economic status is higher than hers. Etcoff refers to the experiment conducted by the anthropologists Townsend and Levy. 5 In this experiment, male and female college students in the United States viewed models who had been pre-rated for physical attractiveness and who were dressed in costumes representing three levels of economic status. From this, the college students reported their willingness to engage with these models in six relationships involving various levels of marital potential and sexual involvement. The experiment reached the conclusion that the physical attractiveness of partners tends to be more important to men than women in actual relationships. Although both sexes are influenced by socio economic status and physical attractiveness, these components are weighted differently by potential partners. They claim that: … for men, the sexual desirability of potential partners is primarily determined by their physical attractiveness, and sexual desirability acts as a threshold of acceptability for other relationships requiring more investment. For women, cues to potential partners’ socio economic status are a potent determinant of partner’s acceptability for relationships that require significant levels of investment; if a man exceeds this threshold of acceptability, then the woman may decide to have sex with him. 6 5 John M. Townsend and Gary D. Levy, “Effect of potential partner´s physical attractiveness and social economic status on sexuality and partner selection,” Journal of Sexual Behavior 19 (1990), 149–164. See also John M. Townsend, “Mate selection criteria. A pilot study,” Ethology and Sociobiology 10 (1989): 241–253. 6 Towsend and Levy, Effect, 386. 174 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e According to Etcoff this is one of the experiences which highlight the male preference for beauty, regardless of the socio economic status and the female preference for the male socio-economic status. It is not surprising that until the second half of the twentieth century, the pattern of an interesting woman was a beautiful woman. It is astonishing, however, that even after the feminist movement of the twentieth century and the entrance of women into the job market, the pattern is still the same, as Towsend & Levy have suggested. Many others researches have reached the same conclusion as the Towsend & Levy experiment. One of these experiments aimed at showing the relationship between beauty and BMI and having or not having a stable relationship. According to research conducted in an American High School, overweight girls have a lesser possibility of a stable relationship. It was also found that the most beautiful girls are more likely to have a stable relationship, beauty being synonymous with having a slimmer body. 7 This research considered relationships between the attractiveness and body image variables and current relationship status, and the sample was dichotomized into those not currently involved in an exclusive relationship and those currently dating one person exclusively, either living with a partner, engaged, or married. Comparisons between those respondents involved in a relationship and those not involved are presented in Table 1.1 below. Statistically significant differences and small to medium effect sizes were demonstrated with regard to BMI, experimenter-rated facial attractiveness, and self-rated bodily attractiveness. Compared to peers who were not currently in a relationship, those respondents in a relationship were relatively slimmer and objectively more attractive, and perceived their bodies to be more attractive. 7 Michael W. Wiederman and Shannon R. Hurst, “Body Size, Physical Attractiveness, and Body Image Among Young Adult Women,” The Journal of Sex Research 35 (1998): 272–81. M a r i a B o r g e s | 175 In a relationship not in a relationship Variable Mean Mean F d Body Mass Index 24.08 (4.54) 26.39 (6.81) 7.62 (FN**) .39 Experimenter-Rated Attractiveness 4.14 (.76) 3.88 (.71) 5.86 (FN*) .35 Self-Rated Facial 4.89 Attractiveness (1.32) 4.69 (1.00) 1.86 .20 Self-Rated Bodily 4.19 Attractiveness (1.32) 3.64 (1.33) 8.19 (FN**) .41 Body Dissatisfaction 39.04 (EDI) (10.77) 40.42 (9.47) .89 .14 Appearance Orientation 45.62 (8.20) 43.41 (7.84) 3.64 .27 Social Avoidance due 6.83 to Concerns About (3.81) Appearance 6.6 (3.44) .11 .05 Table 1 Attractiveness, body image and current relationship Beauty has also been proven to be an important mate preference for human males according to another research, conducted by David Buss entitled “Sex differences in Human Mate Preferences: Evolutionary Hypotheses Tested in 37 cultures.” 8 This was a cross-cultural study, aimed at testing evolution based hypotheses that explain species-typical or sextypical mate preferences. According to Buss, mate preferences are important because they can affect the current direction of sexual selection by influencing who is differentially excluded from and included in mating. He wanted to test some predictions that had already been made in previous studies. One of these predictions was that a woman’s mate value should be 8 David Buss, “Sex Differences in Human Mate Preferences: Evolutionary Hypothesis Tested in 37 Cultures,” Behavioral and Brain Sciences 12 (1989): 1–14. 176 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e determined more by her reproductive capacity, with youth and physical appearance being powerful clues to this capacity. Thus, these qualities are more highly valued by men. On the other hand, a man’s mate value is determined by the external resources he can provide. Consequently, female mate preferences have more emphasis on characteristics indicative of one’s potential to provide resources, such as ambition, industriousness and earning capacity. Thirty-seven samples, from a total of 10,047 people, were obtained from thirty-seven cultures, located on six continents and five islands. The instrument used by David Buss was composed of biographical data, the age difference preferred between self and partner and a third section in which the subjects were asked to rate eighteen characteristics on how important or desirable they would be in choosing a mate. Among these characteristics were dependable character, sociability, chastity, intelligence, good financial prospect, good looks, ambition and industriousness. A four-point scale was used, ranging from 3 (indispensable) to 0 (irrelevant or unimportant). Thirty-six females valued a “good financial prospect” in a potential mate more highly than males did. Thirty-four expressed a higher valuation than males for “ambition and industriousness.” The average age difference preferred between males and females is 2.66 years and the preferred age to marry is 27.49. When one subtracts the main age difference preferred from the age males want to marry, we find that men prefer to marry females who are approximately 24.83 years old. All thirty-seven samples showed sex differences, but males valued the characteristic “good looks” higher than women. For Buss, “the hypothesis that male’s value physical attractiveness in potential mates more than females do is strongly supported by the cross-cultural data.” 9 The importance of physical attractiveness remains even after marriage. In a research paper called “The Continuing 9 Buss, Sex Differences, 1989. M a r i a B o r g e s | 177 Role of Physical Attractiveness in Marriage,” Margolin and White 10 showed that decreases of physical appearance normally associated with ageing, affect husbands’ behaviour towards their wives more than wives towards their husbands. Men who believe that their spouse has declined in physical appearance but that they have not are more likely than other men to report sexual problems in their marriage. They found that 23% of men are unhappy when their spouse gained weight, against 8% when the spouse and husband have equally gained weight and 5% when it was only the husband who had gained weight. For women, 7% are unhappy when their husband only had gained weight, 6% when spouse and husband had gained weight and 7% when the woman only gained weight. What the above research confirms is that feminine beauty and youth are the main female assets in the mate market, and that social-economic status is the main asset for men. Today the additional problem of this equation is that, contrarily to the women of the past, whose only value as a woman was their beauty and youth, women are also valued by what were once masculine assets. Intelligence, culture, education, and professional achievements are socially valued for women in the public world. Unfortunately, these are not the most valuable assets for women in the mate market. Beauty is still more important for men than for women, not only as the initial attraction between partners, but also in a long-term relationship. In the USA, on a scale from 3 (indispensable) to 0 (irrelevant), men rate good looks in a long term partner at 2.11 and women rate it at 1.47. 11 But is this still the case in marriage, or is the masculine search for beauty replaced by other feminine assets? In 1939, a research showed that in marriage, on a 0-3 scale, men ranked beauty at 1.5, while women rated it at 94. 10 Leslie Margolin and Lynn White, “The continuing role of physical attractiveness in Marriage,” Journal of Marriage and Family 49 (1987): 21–27. 11 Etcoff, Survival, 63. 178 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e In 1989, men and women were asked the same question. Men rated beauty at 2.1, while women rated it at 1.67. 12 Although beauty rose in importance for both sexes, it is still more important for men. 3. The challenge of cosmetic surgery Many scholars have stressed that beauty was a ideal for all civilizations. In this sense, all the civilizations were civilizations of beauty. Rebecca Popenoe put this in a very challenging way: All societies have notions of what is beautiful and all societies modify the human body in some way. Archaeological finds from 30,000- 50,000 years ago indicate that enhancing the body through adornment of various kinds accompanied the emergence of modern cultural life. Aesthetical ideals and the modification of the human body to achieve them thus appear to be human social universals that have been part of societies throughout history”. 13 I will address the pros and cons of plastic surgery as a means to attain these ideals of beauty, the main cons being the submission to mutilation and unrealistic patterns, the pros being the possibility of women reshaping their bodies on order to the overcome natural differences that could lead to institutional injustices. 3.1. Mutilation What is the ultimate difference between following certain patterns of beauty and having plastic surgery? Are we not submitting ourselves to the male or consumer society when 12 Etcoff, Survival, 61. 13 Popenoe, Rebecca. Feeding Desire: Fatness, Beauty and Sexuality Among a Saharan People.(London: New York: Routledge, 2003) p. 2 M a r i a B o r g e s | 179 we follow the trends of fashion, over exercise in aerobics classes or follow the latest Hollywood diet? My point is that cosmetic surgery could be seen as mutilation. It is true that we submit ourselves to imposed patterns when we over exercise or follow fashion trends or use push-up bras, or high heels. However, when it comes to plastic surgery perhaps we are going too far by crossing a line, the line of mutilating our body. Western women are the first to usually condemn mutilation in third and eastern worlds. One of the most common mutilations is feminine genital one. Many supporters of the genital mutilation belong to some kind of religious law. As Martha Nussbaum express in Sex and Social Justice, there is no authentic religious argument that supports that practice: Female genital mutilation is frequently defended with discourse that appeals to its basis in Islam. It would appear that these appeals are at the very least tendentious, given that there is no authentic religious argument supporting the compulsory practice. Nonetheless, religious discourse of a kind has been powerful in defending the practice and branding the attack on it as westernizing. 14 Some people maintain that genital mutilation is a part of a culture and, without that, women would suffer not only the penalties of law, but also a form of social segregation. Even if we accept this mutilation is part of a culture, we at least feel superior to theses societies and proud of our western societies where women are not obligated to submit themselves to mutilation in order to be accepted by society. But is that really true? If patterns of beauty are so important to men when choosing a partner, not following them could lead to social ostracism. As we have seen, female beauty is important to attract a male partner, to have sex, to date and to marry 15 14 15 Martha Nussbaum, Sex and Social Justice ( New York: Oxford University Press, 1999 ), p. 93 Towsend and Levy, John M. Townsend and Gary D. Levy, “Effect of potential partner´s physical attractiveness and social economic status on sexuality and partner selection,” Journal of Sexual Behavior 19 (1990), 149–164. 180 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e and female body weight is crucial to have a stable relationship and to keep a happy marriage 16 However, one could still argue that women are not obliged to have plastic surgery as some eastern woman are obliged by law to have genital mutilation. Let us suppose that genital mutilation is not unlawful and still keeps all its cultural meaning. Some women will probably continue to have the procedure, as well as many women still use the Burka, even after the fall of the Taliban Regime. One could say that they do that because they have a false consciousness of what is right, or because they do not want to be a social outcast. But in which way is this different from the so called self-sufficient western woman who decide to undergo cosmetic surgery to be accepted by man as a potential partner? Lets suppose that we consider plastic surgery is a mutilation. What is the problem in cutting ourselves in order to be beautiful? Mutilation has been condemned by many philosophers, from western and east world. The Chinese Confucian Doctrine prohibited physical abuse of the body. This doctrine was totally against body mutilation. However, one of the customs of ancient China, the foot binding, was one of the exceptions to the rule against mutilation. Cosmetic surgery is on par with foot binding and genital mutilation as forms of bodily discipline and control. With the spread of cosmetic surgery, not only are our genitals or feet, but also the whole of our bodies, a raw material to be sculpted into a form that is considered a more perfect expression of the ideals of beauty. Urla and Swedlung advance that the explosion of body sculpting techniques has transformed the female body in a cultural plastic body: The explosion in technologically assisted modifications through cosmetic surgery, piercing, aerobics, and nautilus all 16 Margolin and White, “The continuing role of physical attractiveness in Marriage,” Journal of Marriage and Family 49 (1987) M a r i a B o r g e s | 181 point to a conception of the body as raw material to be fragmented into parts, molded, and reshaped into a more perfect form. Lacking any essential truth, the body has become, like Barbie, all surface, a ground for staging cultural identities. 17 3.2. The Barbie Ideal: The Impossible Role Model The slender body image of the post-war period was embodied in a doll which was and still is the icon of the ideal feminine body: the Barbie doll. Barbie first appeared in 1959 and quickly became the best-selling product of Mattel. One Barbie is sold every two seconds. Mattel estimates that the average number of dolls per owner is seven and that 95 percent of young girls in the USA have at least one Barbie. Barbie is a model for girls all over the world, and is the ideal of femininity and beauty for post-war women. The Barbie doll remains in the imagery of these girls as an ideal to attain. The Barbie doll personified the post-war lifestyle of teenagers. As Urla and Swedlund explain: Barbie dolls seemed to cleverly reconcile both of these concerns by personifying the good girl who was sexy, but didn’t have sex, and was willing to spend, spend, and spend. Amidst the palpable moral panic over juvenile delinquency and newfound sexual freedom, Barbie was a reassuring symbol of solidly middle-class values. 18 Barbie is a perfect icon of late capitalism because she is a symbol of femininity, of a gendered body and of endless consumption. The Barbie doll, however, had a bad period in the 1970s, with the impact of the feminist movement and the criticism of sexist imagery. The way Mattel reacted to this 17 Jaqueline Urla and Alan Swedlund, “The Anthropometry of Barbie: unsettling ideals of the Feminine Body in Popular Culture,” in Feminism and The Body, ed. Londa Shiebinger, (New York: Oxford Univeriity Press, 2000), p. 423. 18 Urla and Swedlund, Anthropometry, 400. 182 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e sales decrease was to give her a more up-to-date image. Before the 1970s she had only a traditional feminine wardrobe as a fashion model, ballerina, stewardess etc. After the 1970s and until the present, she is dressed in more updated professions. For example she appeared in 1973 as “Medical Doctor” Barbie, followed by “TV News Reporter,” “Corporate Executive” and even “Astronaut” and “Aqua” Barbie. Barbie has also followed the multicultural trend, with Shabi, Barbie’s African American friend, whose body and facial features were created to imitate real African American woman. Although Barbie has adapted in order to fit in with the new career woman, as well as the claims of multicultural society, her body remains the same. But is this body an attainable ideal? Urla and Swedlund have carried out research aimed at measuring Barbie dolls in order to estimate their dimensions if they were life sized. They view this experiment “as an occasion for the students to turn the anthropometric tables from disciplining the bodies of living women to measuring the ideals by which we have come to judge ourselves and others.” 19 The measurements were taken in the Physical Anthropology Laboratory at the University of Massachusetts. The students decided to translate the measurements of Barbie using two standard formulas: (1) if Barbie was a fashion model (5’10”) (1.77), and; (2) if she were the average American women (5’4”) (1.62). In the first case, her chest, waist and hip measurements would have been 35”-20”-32.50” (89cm-51cm81cm). In the second case, 32”-17”-28” (81cm-43cm-71cm). This is surely an unattainable ideal for women that will only lead to anorexia and bulimia. Barbie represents the contradiction of our society, because she embodies the ideal of a super thin body and hyper consumption. This contradiction is a mark of advanced capitalist economies: in a society of commodity excess, the in19 Urla and Swedlund, Anthropometry, 414. M a r i a B o r g e s | 183 citement to consume comes with the social condemnation for overindulgence. The thin female body is the result of selfcontrol in a society of excess of food and desirable products. According to Urla and Swedlund not all bodies are subjected to the same degree of scrutiny. It is women who suffer most from criticism if they fail to comply with the patterns of the beautiful body. They explain: It is the women’s bodies and desires in particular where the structural contradictions – the simultaneous incitement to consume and the social condemnation for overindulgence – appear to be most acutely manifested in bodily regimes of intense monitoring and discipline … Just as it is women’s appearance that is subject to greater social scrutiny so it is that women’s desires, hungers, and appetites are seen as most threatening and in need of control in a patriarchal society. 20 As we have seen, the Barbie doll’s body represents an ideal that contradicts the average female body. Is the slender body a symbol of submission to a classical ideal of women, who in order to be happy should be beautiful and feminine? The slender ideal also represents the denial of the maternal ideal, which is represented in pendulous breasts, round stomach and hips. Her beauty is made of control and mastery, characteristics often associated with masculinity. The ideal body of a society visually expresses the concepts and ideals of that society and what they think are the most important values. Although there are always some unchanging patterns of the ideal female body, each phase in history has its own ideal of beauty. The slender body is the ideal of beauty in a society and time where women enter the work market and abandon the world of family. The slender body expresses the values of the market society: competition. Many feminists have called attention to the point that cosmetic surgery can also be used to reshape the women’s body and for women to take control of one’s body. In this 20 Urla and Swedlund, Anthropometry, 419. 184 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e sense, we could consider cosmetic surgery as a way to overcome natural injustices. If today we have the possibility of reshaping our body, could this be considered an improvement in our capacity of choice? Perhaps the idea to choose the way we look is a sign of autonomy, a way not to be bound to by our given natural body. However, we should still question if we are choosing to change the way we look because we really want it or we are forced by social constraints. As Urla and Swedlung claim that their “concern is not to decry the corruption of a fictitious ‘natural’ body, but to underscore how these acts of self-recreation are inflected by power and desire”. 21 Plastic surgery can free the person from the body one was born with, however, it does not erase the social and power pressures that compel women to have certain kinds of body transformations. 4. Overcoming injustices based on natural arbitrariness In his theory of justice, Rawls is clear about the mistake in stating the existence of natural injustices. Only institutions can be just or unjust. In order to have a just society, its major institutions should not incorporate the arbitrariness found in nature. The difference in beauty among women seems to lead to different social treatments. As we have seen, according to Buss and other researches, beauty is highly relevant to male mate preferences and mate preferences are important because they can affect the current direction of sexual selection by influencing who is differentially excluded from and included in mating and in marriage. We can conclude that marriage is not a fair institution. However, we cannot influence the choice in the mate market by forbidding some kinds of exclusion, as we do in other major institutions by forbidding discriminations based on economic, social or ethnic grounds. 21 Urla and Swedlund, Anthropometry, p. 424. M a r i a B o r g e s | 185 The way we can avoid the injustice based on differences on beauty, is by changing our strict patterns of beauty. I guess that can be accomplished by mass media that show a plurality of body styles. In this sense, we put into question the existence of only one model of beauty and probably increase the justice of institutions. P á g i n a | 186 P á g i n a | 187 THE NORMATIVE CLAIMS OF A LATIN AMERICAN DEMOCRATIC ETHOS: BOURDIEU'S HABITUS, CRITICAL THEORY, AND SOCIAL PHILOSOPHYC Nythamar de Oliveira 1 1. One of the best approaches to make sense of ongoing social, political problems in Latin America is by means of an interdisciplinary research program that takes into account both the complex historical and cultural makeup of the Latin American peoples, including their respective modern quests for a national identity, and the social analyses that seek to unveil their rationale combined with economic and political variables. In this essay, I shall try to offer some insights into the Brazilian reception of a critical social theory, as I reconsider contributions both from sociological and normative standpoints in interdisciplinary researches that seek precisely to avoid the theoretical imposition of particular categories upon different social contexts, so as to attend to the critical insertion of such analyses to be carried out, as it were, as an "im1 I am grateful to Hans-Georg Flickinger, Ingo Bode, Holger Schoneville, Alessandro Pinzani, Christoph Horn, and Stefan Gosepath, for their critical remarks and comments in presentations of this paper in Kassel and Florianopolis. 188 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e manent critique" of such complex processes and phenomena. The so-called liberation theology and related grassroots movements that flourished in Brazil and elsewhere in Latin America in the 1960s and 70s, leading up to the consolidation of a social-democratic political culture with the election of left-wing governments 2 and, in the Brazilian case, two presidents from the Workers' Party, Lula da Silva (2003-2010) and Dilma Rousseff (2011-present), were in many ways indebted to the emancipatory, neo-Marxist research program of critical theory (Kritische Theorie), just as they recast some of the complex insights into Brazilian identity as originally offered by the social, historical analyses of national thinkers such as Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Florestan Fernandes, Celso Furtado, Raymundo Faoro and Fernando Henrique Cardoso, together with the seminal contributions by left-wing intellectuals such as Helio Jaguaribe, Alvaro Pinto and Nelson Werneck Sodré. In effect, Brazilian liberation philosophy interestingly recasts Marx, Nietzsche, and Freud's hermeneutics of suspicion in rather agonistic, structural or functionalist terms that appropriate (especially in authors such as Rubem Alves, Augusto Boal, Paulo Freire and Leonardo Boff) the mixed blessings of critical theory in the utopian, negative dialectics of its first-generation exponents (Benjamin, Adorno, Horkheimer, Bloch, Marcuse), without attending to the normative, sociological claims that would characterize the pragmatist turn of the second and third generations of the Frankfurt School (Habermas, Honneth). 3 My working hypothesis here is that the sociological and normative deficits that one still finds in various proposals of critical theory can be filled in by a phenomenology of liberation that takes both critical the2 3 Hugo Chávez in Venezuela, Néstor and Cristina Kirchner in Argentina, Tabaré Vázquez and José Mujica in Uruguay, Evo Morales in Bolivia, Michelle Bachelet in Chile, Daniel Ortega in Nicaragua, Rafael Correa in Ecuador, Fernando Lugo in Paraguay, and Ollanta Humala in Peru. See the highly original, seminal work by Gustavo Pereira, Las voces de la igualdad. Bases para una teoría crítica de la justicia. Montevideo: Proteus, 2010. N y t h a m a r d e O l i v e i r a | 189 ory and cultural studies into account, particularly the questions of gender, ethnicity, and race, beyond the capitalistsocialist divide. What I have dubbed the phenomenological deficit of critical theory allows indeed for the recasting of a phenomenology of liberation, precisely at the level of a weak social constructionism that mitigates and mediates some of the too-strong, objectivist claims of Marxism in liberation philosophy and some of the too-weak, subjectivist "representations" of postcolonial and cultural studies. In this sense, the fate of critical theory and of social philosophy in Latin America hinges upon the very consolidation of social democracy, itself bound to the ups and downs of globalized capitalism in developing societies. It is my contention here that, from a critical-theoretical standpoint, Brazilian social democracy may successfully take into account both the conservative criticisms of egalitarianism, populism, and paternalism (as found in political thinkers such as Denis Rosenfield) and the radical critique from the far-left (in Marxist philosophers like João Quartim de Moraes). In order to account for the normative dimension of a Brazilian democratic ethos we must tackle some of the very problems lying at the so-called "transition to democracy" shift from a 21-year military dictatorship to a full constitutional democracy in Brazil with the draft of the 1988 Constitution, so as to address the programmatic question: "Why, after all, should we stand up for democracy?"As I argued in a previous essay, the ongoing democratization process began with the transfer of power to a civilian president in 1985 and was both tried and radicalized with the impeachment of President-elect Collor in 1992, but is still under way, given all the social, economic inequalities and stances of corruption, impunity, and patrimonialism that continue to haunt this nation.(De Oliveira, 2004, p. 40). The social, political history of modern Brazil certainly helps us understand how we became this unequal, hybrid society characterized, in Weberian terms, both by modern features of rationalization, secularization, capitalism, and liberalism, and by premodern structures of feudalism, 190 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e patrimonialism, and clientelism. Some might suggest that this is the very reason why Brazil remains a natural candidate for the postmodern condition, insofar as modernity and its emancipatory ideals of autonomy, liberal, representative democracy, and social egalitarianism never came into full expression in most Latin American societies. In effect, the challenge of rethinking the meaning of our modern ethos is even more accentuated in our self-understanding of Brazilian social life. In this essay, I should like to partially revisit this problem in social theory by recourse to a social philosophical articulation of critical theory that takes self-understanding, socialization and reflexivity seriously, without the facile, uncritical importation of European categories or reinventing the wheel in another Latin-American, delirious patchwork. 2. In a recent research, I sought to reexamine Habermas's conception of lifeworld (Lebenswelt) in tandem with Rawls's procedural device of reflective equilibrium so as to recast Honneth's theory of recognition in terms of a reflexive, democratic ethos.(De Oliveira, 2009) Honneth's conception of reflexive democracy first appeared as an alternative to substantive models of liberation and participation (such as Arendt's republican conception of democracy) and to procedural models of deliberative democracy, because of their restrictive views of the public, political arenas (Rawls and Habermas). The idea of a "reflexive democracy" is also found in Olson and related to Giddens's conception of "reflexive modernity." (Beck, Giddens and Lash, 1994; Olson, 2006) More recently, Honneth spoke of reflexive freedom as a more defensible conception than the classical liberal view of negative freedom of contractualism and as the intermediate stage leading towards a social conception of freedom, which turns out to be an important element in his reactualization of Hegel's philosophy of right, as an alternative to both republican and procedural trends in Habermas's model of democracy.(Honneth, 2011, p. 44-117) Today's major task for critical N y t h a m a r d e O l i v e i r a | 191 theory, in Latin America and elsewhere, remains to be dealt with in normative reasons that, although cannot be found in empirical investigation, must respond to a given concrete, social reality where they start from. As Honneth aptly remarks in the opening words of his last opus, "one of the greatest limitations that plagues the political philosophy of the present is its uncoupling from societal analysis and hence the fixation on purely normative principles." [Eine der größten Beschränkungen, unter denen die politische Philosophie der Gegenwart leidet, ist ihre Abkoppelung von der Gesellschaftsanalyse und damit die Fixierung auf rein normative Prinzipien]. (Honneth, 2011, p. 14) Therefore, in order to come up with a selfunderstanding of whatever could be reasonably proposed as a Latin American or a specifically Brazilian take on critical social theory, one must of course be aware of many risks and limitations in trying to embark on this kind of interdisciplinary, cross-cultural research program, but I am convinced that this remains a certain, fruitful pathway to pursue. Let me just add that any interdisciplinary research in theories of social justice and democracy must avoid the two extremes of becoming too trivial and predictable either by focusing only on concrete, empirical finds in field research (e.g., data, statistics, and figures) relating to Brazilian social reality or by becoming so conceptually abstract to the point of losing contact with social reality. So-called "Latin Americanists" or "Brazilianists" are understandably more prone to fall into the first kind of reductionism, while social and political philosophers tend to take for granted their supposedly "universal" categories and conceptual schemes. One of the guiding questions for an interdisciplinary research program in democracy within the framework of Latin American and Brazilian studies could be thus recast: "Is there any such thing as a Latin American or Brazilian social philosophy?" Whenever one is faced with the challenge of doing Latin American or Brazilian social philosophy today, one must inevitably address the Heideggerian question whether philosophy isn't after all a European under- 192 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e taking and all theoretical approaches to our social reality would somehow be Eurocentric. As it has become a commonplace nowadays, while so-called continental philosophers tend to value historical, structural features in their approach, analytic philosophers would simply deal with concepts in their logical, semantic coherence and clarity, without paying too much attention to their historical, cultural genesis. And yet, the challenge of making sense of a Latin American philosophy has been actually pursued by both continental and analytical thinkers, not without reservations, concessions, and suspicions.(Nuccetelli, Schutte and Bueno, 2010) Social philosophy could be very helpful in articulating this immanent critique with the very social theory that tries to account for the complexity of social phenomena and analyses that bring together European and non-Western elements. All in all, if one regards philosophy as a worldview, lifestyle or mindset – contra Heidegger –, it is certainly the case that all Latin American indigenous peoples and non-Western traditions overall have their own respective sets of beliefs about the cosmos, life, and death. And yet anthropological, historical, and empirical descriptions of particular cultures, social worlds, common practices, myths and beliefs do not seem to count as philosophical accounts of "philosophy," which seem to presuppose critical inquiry, reflexivity, and impartiality, even if not necessarily understood in analytic, systematic or even universalist terms. So it seems perfectly reasonable to recast a Latin American or Brazilian social philosophy properly understood through the ongoing interactive, dialogical encounter between European and non-Western traditions, that is, insofar as it succeeds in rescuing the characteristically Latin American / Brazilian features of the highly complex, subtle combinations of Latin American indigenous thought and Afro-Latin American traditions with European nomadic thinking, reflecting the ongoing flux of Asiatic migrations, African and Semitic diasporas which ultimately make Latin American Philosophy quite unique. (Medina, 1992) N y t h a m a r d e O l i v e i r a | 193 There remains the normative challenge of subscribing to cultural relativism without embracing ethical relativism. 3. As noted above, it seems indeed plausible to reconstruct a social phenomenology of the Brazilian ethos by resorting to Habermas's tripartite, intersubjective aspects of the lifeworld oriented toward socially, linguistically shared understanding of everyday practices, understood in hermeneutic, reflexive terms, so as to deal with the moral, legal, and political contexts of signification, the problem of a normative conception of the person, and the challenge of a reasonable pluralism.(Habermas, 1984; 1989) A grammar of fairness must thus go beyond the procedural, fair distribution of material goods, and must be correlated to the fundamental principle of recognition (doing justice to the other in her otherness) and its implicit moral grammar of social conflicts, as Honneth has argued, in order to avoid equating cultural relativism with moral relativism and the postmodernist dissolution of the aesthetic and normative substance of the social lifeworld. I have thus assumed that the lifeworld (Lebenswelt) stands overall for the horizon of socially, culturally sedimented linguistic meanings that make up the background environment of competences, practices, and attitudes shared by social actors, without being reduced to a passive, static process. The problematic relationship between systems and lifeworld lies, therefore, at the bottom of the normative grounds of social criticism, just as the basic ideas of cooperation and competition have determined social philosophical approaches to political theory. Following Habermas and Honneth's criticisms of systemic, instrumentalized power, we may recast reflexive selfformations in a democratic political culture through intersubjective recognition and social policies for distributive justice, so that they cannot ultimately be separated from their correlated lifeworldly practices of self-esteem, self-care, and self-understanding. Honneth's theory of recognition successfully revisits the critique of power so as to address the phe- 194 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e nomenological deficit of critical theory inherent in any attempt to breaks away from the demonization of technological, instrumental domination of nature and human exploitation. (Honneth, 1996) The ongoing democratization of emerging societies and developing countries like Brazil is a complex process that has engaged diverse segments of civil society and still has a long way to go, as a reflexive model of radical democracy is to be accomplished not only by social movements from below, let alone by governors, the elites or intellectuals, as it were, from above, but ultimately by civil society as a whole and its deliberative, reflective commitments to solidarity and networks of social cooperation. What is at stake, after all, is the institutionalization of the social world, beyond traditional accounts of society and state. Honneth has convincingly shown the impossibility of maintaining communicative reason immune from the instrumentalization of social action in the very attempt to tackle the paradox of the rationalization of lifeworldly relations, as anticipated by Habermas's own account of socialization. Honneth seeks thus to rescue the lifeworldly, civil society's locus of the democratic ethos, which tends to be eclipsed by Rawls's idea of public reason and Habermas's public sphere. (Honneth, 1998) By all criteria, the normative thrust of a democratic ethos has been one of the major contributions of Habermas's monumental work to a discourse theory of law and democracy (between facts and norms, dealing with both Faktizität and Geltung) and to the critical theory of a democratic Sittlichkeit such as the one recently proposed by his successor. (Honneth and Joas, 1988; Habermas, 1998) To the extent that those pathologies cannot be tackled by the social engineering of systemic globalization and the latter equated with the ongoing democratization of institutions worldwide, the normative dimension of "theories of justice" must be translated into the very challenges faced by the Brazilian transition to democracy, particularly those taken up by civil society, social movements, and organizations –including, but not limited to, NGOs. The main problem of my research can be now restated: "How can a social theory N y t h a m a r d e O l i v e i r a | 195 account for normativity within a political culture whose democratic ethos is still in the making?" By effecting a rapprochement between the procedural conceptions of a reflective equilibrium (Rawls) and the lifeworld (Habermas) I have aimed at a hermeneutics of normativity correlated to the facticity of a democratic ethos inherent in a pluralist, political culture, capable of integrating semantic and pragmatic aspects of a gamut of practices and codifications (modus vivendi) that could be reasonably identified with that social ethos. Such a recasting of reflexive, democratic ethos, in this case, proves quite suitable for our endless experiments trying to make sense of the normative challenges of social-democratization in Brazil. Brazilian social and political thought in the 20th century has been caught between authoritarianism and democratization, under the sign of modernization, massive migrations from rural to urban areas, social movements, and the intellectual inputs of positivism and Marxism.(Stepan, 1989) Even as we speak of modernization in Brazil, we must call into question a reduction of modernization to rationalization, secularization, and the differentiation of systemic spheres, as both premodern and modern forms of social life and institutional arrangements coexist in our reflexive, democratic ethos. In effect, subtle and explicit forms of authoritarianism are not only to be understood in systemic terms, say, in governmental, administrative, juridical, and political stances, but end up betraying a certain complicity and tacit consent across different segments of civil society and even within the social tissue of everyday practices, as attested by the so-called jeitinho or the Brazilian way of bending the law, rules, and norms. Furthermore, the Brazilian dream of realizing a social democracy has been ultimately haunted by two populist pathologies at the heart of their political culture of paternalist cordiality: the myth of racial democracy and the liberationist utopia of social egalitarianism. While the conservative elites promoted the former and still call into question intersectional approaches to race and ethnic relations in Brazil, leftist and socially-engaged segments of society tend to take social democracy for granted 196 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e as a socialist promise to be delivered by a paternalist State to the poor. In order to avoid the ideological trends of this kind of approach, social theory must recast its own epistemic, normative claims in dialogue with social philosophy. 4. The Brazilian democratic ethos must deal with its own normative deficits from within. We must thus turn to "fieldwork in philosophy" in order to tackle not only the question of the Brazilian way itself, but whatever makes human sociability a determinate social ethos, a concrete Sittlichkeit, so as to address the question: "what is sociality all about?" After all, the full meaning of the social is best understood as it is to be found in a social ethos, in collective, social, cultural identities, where social practices are at once constitutive and regulative, in a normative sense that transcends a political, national identity (as denounced by social criticisms of totalitarian and nationalist regimes) but remains within the immanent, structural view of a social ontology. It seems that both a robust theory of social practice such as Pierre Bourdieu's conception of habitus and a weak social constructionism or a moderate constructivism converge on successfully responding to the systematic criticisms raised by analytic, social epistemology, by showing how they cannot be reduced to a postmodernist hype of sorts ("social construction of what?") nor be taken for another variant of relativism. Bourdieu's social theory departs, in effect, from a critique of sociological deficits within linguistic theories that fail to make sense of the inextricable connection between language and social life, including structuralist and other fashionable trends that seduced many continental circles in the last quarter of the 20th century, unveiling thus the normative deficit that pervades much of the Frankfurt School's critique of social theory in utilitarian and positivist accounts of social life and practices. The fascinating interlocution between social theory and social philosophy that we find in Adorno, Horkheimer, Marcuse, Habermas, and Honneth is also displayed in Pierre Bourdieu's N y t h a m a r d e O l i v e i r a | 197 work, itself akin in many ways to critical theory. In an interview carried out by Axel Honneth and others, Bourdieu avowed that he took his own "comprehensive theoretical intentions, which can be identified as habitus" as condensed, implicit forms of the concept of field ["Ich glaube, dass die umfassenden theoretischen Intentionen, die sich in Begriffen wie Habitus, Strategie usw. gleichsam verdichteten, in zwar kaum entfalteter, wenig expliziter Form, aber doch von Anfang an in meinen Arbeiten präsent waren (dagegen ist das Konzept des Feldes neueren Datums..."] (Bourdieu, 1985, p. 156). In another piece dealing with Bourdieu's contributions to social theory, Honneth offers some interesting criticisms of the former's ambiguous conception of cultural capital, at once utilitarian and representational in his attempt to overcome both structuralist and reductionist accounts of cultural, symbolic codifications, allowing for both distinction and recognition in social practices. (Honneth, 1995, p. 186-201). In the preface to his major work – Le sens pratique (Bourdieu,1980a), which was regarded as a carefully revised and enlarged version of his Outline of a Theory of Practice (1972) –, Bourdieu stages the problematic of a sociology of knowledge that articulates social theory and cultural practice without reducing the former to a mere epistemological discourse (as Mannheim's work was then dismissed) or the latter to an aesthetic symbolism (as most poststructuralists and postmodernists were identified with). Bourdieu situates thus his own contribution to the methodology of the social sciences somewhere between ethnology 4 and the history of social ideas, i.e. in terms of a "sociology of culture" and "social history," in a strategic move that reminds of Foucault's own recasting of cultural history vis-à-vis the École des Annales. 5 4 5 "Ethnologie," in French, understood as "cultural anthropology," as opposed to both physical and philosophical anthropology. Bourdieu expressly calls into question epistemological traditions that inherited Kant's ahistorical dualism. Cf. Roger Chartier, Cultural History: Between Practices and Interpretations. Cornell University Press, 1988. 198 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e Moreover, Bourdieu's pronounced interest in the sociological relation between language and power points to his methodological departure from Saussurean structuralism and Marxist positivism. The double-hermeneutical character of Bourdieu's social methodology can be clearly discerned in his critical account of the institutionalized distinction between "ethnology" and "sociology," in that the anthropologist's "splitting" (dédoublement) or "separation" (Bourdieu, 1980, p. 34) vis-à-vis her/his object of investigation often betrays a veritable "philologism" as the decoding of a given culture and its symbols naively presupposes an original, "true" meaning. Bourdieu's "double-hermeneutical" method is explicitly stated elsewhere, for instance, in Questions de sociologie: "The sociology of sociology is not... one 'specialty' among others but one of the first conditions of a scientific sociology." (Bourdieu, 1980b, p. 22) Therefore, in order to analyze the social world and its practices, one must first overcome the dualistic opposition of theoretical knowledge to practical knowledge. For neither the anthropologist nor the sociologist can avoid the pitfalls of "intuitive participation," on the one hand, and "ethnocentrism," on the other, unless they first recognize the "practical sense" (le sens pratique) which, according to Bourdieu, underlies all modes of theoretical knowledge. That is why Bourdieu sets out to "overcome" the subjectivismobjectivism dichotomy of objectivist and ethnomethodological modes of theoretical knowledge by reintegrating different sociological conceptions (notably, those of habitus, "field," and "class") at the very constitutive level of social practices to be observed and studied by anthropologists and sociologists. In effect, the relation between the observer and what is being observed is a particular case of the knowing-doing relation, which Bourdieu defines as the relation between a logic of theorizing ("logical logic") and a practicing logic ("pre-logical logic"). It is precisely to elucidate the sense of the latter ("the logic of practice," "le sens pratique") that Bourdieu goes on to elaborate a "Critique of Theoretical Reason." N y t h a m a r d e O l i v e i r a | 199 One legitimate question that can be raised as one goes through the first five chapters of Bourdieu's magnum opus is whether he is not ultimately seeking to reconcile the very phenomenological and objectivist views he criticizes. For Bourdieu, a science of the social world cannot be reduced either to a social phenomenology or to a social physics. Thus he seeks to "move beyond" (dépasser) the antagonism between these two modes of knowledge, so as to pass from the modus operatum to the modus operandi of social objectification. And yet his critique claims to construct the theory of the mode of generation of practices at the same time that it establishes an experimental science that requires, as a necessary moment in all research, "methodological objectivism." In social- epistemological we are dealing here with the problem of realism in opposition to noncognitivist and relativist views calling into question the possibility of objectivity. Bourdieu recasts a dialectical tension between "genesis" and "structure," between "empirical" analysis and "transcendental" synthesis, in a radical attempt to break away from the ahistorical objectification of structuralism and the intellectualist voluntarism of French phenomenology and rational-choice theories. Although it raises "the forgotten question of the particular conditions which make the doxic experience of the social world possible"(Bourdieu, 1980, p. 44), objectivism always implies a radical discontinuity between theoretical knowledge and practical knowledge. 5. What both Saussure and Lévi-Strauss objectify in a structural, regulating system of signifiers, phenomenology and ethnomethodologists fail to decypher as an "objectifying relationship," i.e. the epistemological break which, according to Bourdieu, is also a social discontinuity. Thus, Bourdieu's motto, "to objectify the objectification" (objectiver l'objectivation), translates his efforts to theorize the relationship between experiential meaning made explicit by social phenomenology and the objective meaning that is constructed by social phys- 200 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e ics or semiology. To move beyond the subject-object antinomy, one has not only to break with the native experience and the native representation of that experience but also to call into question the presuppositions inherent in the position of the "objective" observer –whom Bourdieu accuses of tending to privilege both epistemic and communicative functions. Bourdieu's theory of practice seeks thus to rid such an objectifying mode of knowledge of the distortions arising from the epistemological and social conditions of its production. By analyzing the logic of practice in its pre-reflective objectifying relations, Bourdieu seems to call into question an academically established tradition that articulates the theorypraxis nexus in terms of value. This, to my mind, serves to explain why Bourdieu places his critique of Jon Elster's methodological individualism on the same level of his attack upon Sartre's voluntarist, finalist theory of action. I refrain from pronouncing here a hasty judgment on Bourdieu's critique of Elster, simply because I am assuming that Bourdieu's entire theory of practice systematically addresses this particular problem. Thus when Elster accuses Bourdieu of inconsistently mixing a "causal account" and an "intentional and functional explanation" in the latter's conception of "distinction" (Elster, 1983, 69f.), Elster deliberately fails to take into account Bourdieu's relational (as opposed to valued) logic of practice and its holistic implications for the overcoming of the individual-society dichotomy. The social conception of habitus, developed in the third chapter, appears thus as a decisive feature of Bourdieu's critique of rational action theory and his ultimate attempt to come up with a conception of social practice that avoids the pitfalls of both continental and analytic accounts. In order to arrive at a definition of habitus vis-à-vis the objectification of practices, Bourdieu returns to his critique of objectivism. According to this view, the social world is constituted as a "spectacle offered to an observer who takes up a 'point of view' on the action and who, putting into the object the principles of his relation to the object, proceeds as it were N y t h a m a r d e O l i v e i r a | 201 intended solely for knowledge and as if the interactions within it were purely symbolic exchanges." (Bourdieu, 1980, p. 87) As against positivist materialism, the theory of practice claims that the objects of knowledge are constructed, not passively recorded, and, contrary to intellectualist idealism, that " the principle of this construction is the system of structured, structuring dispositions, the habitus, which is constituted in practice and is always oriented towards practical functions." (Bourdieu, 1980, p. 87) As Bourdieu himself indicates, what is actually at stake is not simply reversing Marx's eleventh "Thesis on Feuerbach" once again (namely, to interpret what has been changed, as it were, in der Praxis), but returning to "the thissidedness" of social, practical activity (say, as stated in Theses 1 and 2). In other words, to escape the dualism of the realism of the structure and the idealism of transcendental dialectic, Bourdieu rehabilitates Marxian social praxis (qua practice tout court) as "the site of the dialectic of the opus operatum and the modus operandi; of the objectified products and the incorporated products of historical practice; of structures and habitus."(Bourdieu, 1980, p. 88) Although keeping his distance from "official" Marxists (PCF intellectuals & Co.), Bourdieu clearly draws his structural conception of society from the "middle" Marx's 6 notion of class as the primary unity of analysis and its correlative function in the production and reproduction of social life, besides the systematic accounts of Durkheimian and Weberian influences that contribute to Bourdieu's sociology. Bourdieu's conception of habitus cannot be separated from the structurally correlated terms "class" and "field." 7 In effect, according to Bourdieu, society is a system of relatively autonomous but structurally homologous fields. In one of his most puzzling formulas, Bourdieu goes on to assert: 6 7 Notably the Marx of the "Theses on Feuerbach" and The German Ideology. The French word champ is semantically undercoded by the English term "field" --"discipline, force field, battlefield..." 202 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e { (habitus) (capital) } + field = practice. (Bourdieu, 1984, p. 101f.) Bourdieu seeks thus to avoid the hierarchical approach of structuralists by defining habitus as the system of internalized dispositions mediating between social structures and practical activities, being shaped by the former and regulating the latter. As he put it bluntly, The conditionings associated with a particular class of conditions of existence produce habitus, systems of durable, transposable dispositions, structured structures predisposed to function as structuring structures, that is, as principles which generate and organize practices and representations that can be objectively adapted to their outcomes without presupposing a conscious aiming at ends or an express mastery of the operations necessary in order to attain them. Objectively "regulated" and "regular" without being in any way the product of obedience to rules, they can be collectively orchestrated without being the product of the organizing action of a conductor. (Bourdieu, 1980, p. 88) A difficulty that immediately arises is, of course, related to the problem of social agency. After all, what is wrong with the conductor? For Bourdieu, the socialized agent, contra structuralism and rational-choice theories, is to be distinguished from the subject and the free individual. (Bourdieu, 1987, p. 17f., 78f.) Thus the habitus may well be accompanied by "strategic calculation" but, even in this case, the latter remains at the level of responsiveness in that conscious responses are themselves defined "in relation to objective potentialities, immediately inscribed in the present, things to do or not to do, things to say or not to say, in relation to a probable, 'upcoming' future (un à venir), which... puts itself forward with an urgency and a claim to existence that excludes all deliberation."(Bourdieu, 1980, p. 89) Bourdieu goes on to assert that "stimuli do not exist for practice in their objective truth," they always already presuppose "agents conditioned to recognize them." I think this rather puzzling emphasis on the structural nature of his "science of practice" is what accounts for much of the widespread misunderstanding among Bourdieu's N y t h a m a r d e O l i v e i r a | 203 critics. Although I shall not seek to take his defense in this essay, I think Bourdieu's point here is that a social account of action, in order to keep its social specificity, must presuppose that the social world is indeed "a world of already realized ends" (e.g. "procedures to follow," "paths to take") in accordance with the "permanent teleological character" of its "tools or institutions." In order to illustrate Bourdieu's appropriation of this quasi-phenomenological conception of the social world, it would suffice to recall the Heideggerian, trivial example of the hammer (Being and Time §§ 15-18) in his famous "Analysis of Environmentality and Worldhood in General," where each piece of equipment is defined in terms of what one uses it for (Bewandtnis, "involvement" but also its "functionality"). I cannot understand what a hammer is unless I recognize its place in the whole, its use in the way it is normally used, etc. Now, I can certainly use a hammer, say, as a weight that I place on top of loose papers to keep them from being scattered. And yet any other heavy object would do (a stone, for instance, or better still, a paper-weight). The main difference between the "genuine" and any other use of the hammer, as Heidegger points out, lies in the transparency of the former --so, when hammering a nail, "the hammering itself uncovers the specific 'manipulability' [Handlichkeit] of the hammer," (Heidegger, 1962, p. 98). In the same vein, a social institution like the church can be "used," say, in a revolutionary situation such as in Latin America, for purposes other than worshipping God (at least not in the traditional way). However, even the most irreligious liberationists committed to a Marxist program could not dispose of the ideological telos which characterizes the genuine, historical institution of the church as a religious ekklesia. In fact, the ideological impasse of liberation theologies, in their de-ideologizing, deconstructive moves, points to the impossibility of "isolating" individual agencies of emancipation (i.e. women, blacks, natives, homosexuals, and so forth) from the social structure to be transformed. Moreover, it simply became impossible to focus only on one source of oppression (e.g. the military, US imperialism 204 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e or Western capitalism) in the network of "institutionalized violence." This problem, being a structural one, seems to rather indicate that the very genesis of a social institution based on a logic of identity does not allow for liberating action to take place within the boundaries imposed by its raison d'être. Therefore, Bourdieu is not so much proposing a new "theory of action" as articulating the social structuring of any practice which takes place in-the-world. The limitations of a sourgrape situation is precisely that it remains too decontextualized, too idealized –or, as Bourdieu calls it "idéaltypique." Even though it truly depicts a common situation which can take place in everyday life, Elster's "rational actor" theory undermines the structural givenness of the social world, at once constituted by and constitutive of a bodily Dasein, always already a socially contextualized being: "Practical sense is a quasi-bodily involvement in the world which presupposes no representation either of the body or of the world, still less of their relationship." (Bourdieu, 1980, p. 111) 6. Bourdieu's immanent critique of rationality reintroduces thus the Wittgensteinian notions of game and play (the French jeu translating both in one single term, as the German Spiel) to illustrate his conception of "practical sense" as "feel for the game" (sens du jeu). The proleptic adjustment implied by Wittgenstein's notion of language-games allows Bourdieu to speak of the relation between habitus and social field as the learning of a game, homologous to what the acquisition of a mother tongue is to the learning of a foreign language. Just as beliefs imply, for the later Wittgenstein, a system of propositions, Bourdieu concludes that "belief is thus an inherent part of belonging to a field." (Bourdieu, 1980, p. 113) Granted, belief is understood here in its most accomplished form, as naive, native doxa, diametrically opposed to Kant's "pragmatic faith": "Doxa is the relationship of immediate adherence that is established in practice between a habitus and the field to which it is attuned, the pre-verbal taking-for-granted of the world that flows from practical sense." (Bourdieu, 1980, p. 115) N y t h a m a r d e O l i v e i r a | 205 Because it is an état de corps rather than an état d'âme ("disposition of feelings"), practical belief cannot account for rational decision-making processes but simply appears as the agent's passageway between habitus and social fields. According to Bourdieu, Practical sense, social necessity turned into nature, converted into motor schemes and body automatisms, is what causes practices, in and through what makes them obscure to the eyes of their producers, to be sensible, that is, informed by a common sense. It is because agents never know completely what they are doing that what they do has more sense than they know. (Bourdieu, 1980, p. 116) Bourdieu gives several examples from his own ethnographic researches in Kabyle culture to illustrate the subject's socializing "thrownness" in her/his everyday existence (e.g., the organization of the internal space of their house, which Bourdieu relates to their male/female structuring of sexuality). The conclusions of Bourdieu's field researches can be summed up in these two rather descriptive quotes: The structures that help to construct the world of objects are constructed in the practice of a world of objects constructed in accordance with the same structures. The 'subject' born of the world of objects does not arise as a subjectivity facing an objectivity: the objective universe is made up of objects which are the product of objectifying operations structured according to the same structures that the habitus applies to them. The habitus is a metaphor of the world of objects, which is itself an endless circle of metaphors that mirror each other ad infinitum. (Bourdieu, 1980, p. 130) And he goes on to make it explicit: In a society divided into classes, all the products of a given agent, by an essential overdetermination, speak inseparably and simultaneously of his/her class --or, more precisely, his/her position and rising or falling trajectory within the social structure --and of his/her body --or, more precisely, of all the properties, always socially qualified, of which he/she is the bearer: sexual ones, of course, but also physical proper- 206 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e ties that are praised, like strength or beauty, or stigmatized. (Bourdieu, 1980, p. 134) We can easily gather that the double poststructuralist problematic of the metaphysical, binary logic ("thinking in couples") and the philosophy of the subject (unity of a transcendental signified) underlies Bourdieu's theory of practice. This becomes even more explicit in the fifth chapter ("The Logic of Practice"), notably when Bourdieu criticizes the ahistorical "time" of scientific theory: "Practice unfolds in time and it has all the correlative properties, such as irreversibility, that synchronization destroys." (Bourdieu, 1980, p.137) For practice's tempo (rhythm) is constitutive of its meaning. "Science has a time which is not that of practice." And he concludes, in a quasi-Heideggerian play on words: "The 'feel' (sens) for the game is the sense of the imminent future [à-venir] of the game, the sense of the direction [sens] of the history of the game that gives the game its sense." (Bourdieu, 1980, p. 138) 7. That Bourdieu's "feel for the game" is applied to his own playful account of social practices and sociological theories constitutes no great surprise. I think one should leave aside this matter of style and taste when reading Bourdieu's works --after all, perhaps against his own will, Bourdieu is indeed representative of the new Homo academicus gallicus -would this "confirm" his theory of habitus? In any case, I should like to bring in the problem of the logic of the social sciences, once again, in the present context of the Methodenstreit. Bourdieu ridicules science's use of "synoptic diagrams" to apprehend simultaneously and in a single glance, uno intuitu et tota simul (Descartes) what, in practice, cannot be totalized without overlooking the very constitutive "nature" of these facts. It seems that we would be returning to the old value-facts question --and Bourdieu, to my mind, is very aware of this post-Kantian problematic, especially in his ap- N y t h a m a r d e O l i v e i r a | 207 propriation of Husserlian and Heideggerian concepts. His account of the structuralist ideology of rational discontinuities, betrayed in the theoretical conception of genealogies, maps, and calendars, points to his own poststructuralist concern with a history of ideas. Thus, when he says that "practice has a logic which is not that of the logician," he is seriously attempting a way out of Bachelard's metaphorology and Althusser's logicism. In this regard, I think that Wittgenstein is more than a source of inspiration for Bourdieu, in that language-games do not require a rational, theoretical understanding of the rules on the part of players involved. It remains to be shown whether Bourdieu's "logic of practice" fulfills the practical functions promised by his theory of practice. By way of conclusion, we can still resort to such an interesting conception of practice as habitus and combine it with recent developments in critical theory and social epistemology. For the Latin term habitus recasts somewhat the normative thrust of the Aristotelian notion of hexis and the civilizational, psychic individuation as it had already been used by Norbert Elias, as early as 1939, to refer to our "second nature" in the particular structures molded by social attitudes. As Bernardo Sorj has aptly remarked, Individuals have a habitus, which, generically speaking, refers to the internalization and embodiment of attitudes and knowledge shared by the specific social class or group to which they belong. But each individual is also able to engage in active, creative social interactions beyond his/hers social groups based on a cognitive and affective charting of society as a whole. This ability to map out and deal with the social world is affected in both practical and intellectual terms by the position each individual occupies in the social system. However this very ability presupposes that a world of values, codes, and knowledge is shared with the rest of society – and this is what constitutes the form of sociability observed in a given nation (or any other social system or subsystem). (Sorj, 2000, p. 47) Normativity is practical insofar as humans are conceived of as social beings, in their relational, intersubjective, 208 | C r i t i c a l T h e o r y a n d S o c i a l J u s t i c e societal, moral, ethical, legal, and political dealings. There remains a huge social epistemological task of relating this to a specifically theoretical take on knowledge, belief, and reason, without falling back into the theoretical reductions denounced by Bourdieu. There are indeed positive and negative features in both camps (continental social theorists and analytic philosophers) and we must continually seek to avoid reductionisms of both transcendental and naturalist camps, such as phenomenalism and physicalism, in our constant avoidance of both postmodernist, social constructionism and positivist realism. The very emergence of social epistemology within the analytic camp may strike some of us as an analytic recasting of Hegel's critique of Kant's solipsism and of the phenomenological, hermeneutical critical appropriation of NeoKantianism, so as to overcome the Platonic-Cartesian conception of knowledge as "justified true belief" and to unveil knowledge as "intrinsically social."(Goldman and Whitcomb, 2010) Our ongoing interdisciplinary research in social philosophy, especially in light of this proficuous interlocution with social epistemology and critical theory, might help us elaborate on analyses which mobilize habitus both in terms of their theoretical articulation and in terms of their grounding in empirical reality. On the one had, social practices have primacy over theoretical devices, just as sociability is prior to ethics and the political, as sociality unveils itself in the natural becoming of humans, as social evolution takes place within biological, evolutionary processes. On the other hand, naturalism cannot account for all reflexive, social developments, precisely because human beings also participate as social actors in the construction of this social reality. Even if one can no longer resort to a religious or moral principle as an absolute way of "giving reasons" for such and such action, the problem of normativity in social, legal, and political relations remain an open question. John Searle's ingenious account attempted precisely at solving that problem, as he combined a systematic account of epistemic objectivity with an ontological subjectivity that, in the last analysis, complements hermeneutic, phe- N y t h a m a r d e O l i v e i r a | 209 nomenological accounts such as the one proposed by Berger and Luckmann almost thirty years earlier. (Searle, 1995; Berger and Luckmann, 1966) Even though one doesn't have to go so far as to say that everything has been socially constructed or deny objectivity in scientific endeavors, it is quite reasonable to conceive of social practices in terms of constructionism, just as moral and political contractualism can be nowadays recast as variants of Kantian constructivism. (Hacking, 1999) It seems, therefore, that one may well proceed from an epistemic justification towards a moral epistemic justification (as long as one is not committed to an extreme noncognitivist view of ethics), so that one's goal may as well be having a system of moral beliefs and acting in accordance with moral epistemic norms. Substantive ethics and every case of normative ethics, including applied ethics, must come into being in social reality. Moral beliefs can be certainly justified according to traditional arguments of moral realism, universalism, intuitionism, and supposedly robust conceptions of rationality, as they can even be allegedly justified on religious grounds as allowed by cultural relativism. To be sure, many people would object, today, to religious and philosophical justifications. Social theory proves extremely helpful in keeping social philosophy and social epistemology closer to real, concrete people and their social, intersubjective relations. One may always move back and forth from descriptive to motivating and normative reasons, but one can never get rid of his/her sociality. References Beck, Ulrich, Anthony Giddens, and Scott Lash. Reflexive Modernization. Politics, Tradition and Aesthetics in the Modern Social Order. Cambridge: Polity, 1994. Berger, Peter L. and Thomas Luckmann, The Social Construction of Reality: A Treatise in the Sociology of Knowledge. 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