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A ficção e o poema

   A ficção e o poema Antonio Machado, W. H. Auden, P. Celan, Sebastião Uchoa Leite Copyright © 2012 by Luiz Costa Lima Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009. Capa Rita da Costa Aguiar Preparação Jacob Lebensztayn Índice remissivo Luciano Marchiori Revisão Renata Del Nero Marise Leal Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Lima, Luiz Costa A ficção e o poema — Antonio Machado, W. H. Auden, P. Celan, Sebastião Uchoa Leite / Luiz Costa Lima — 1a ed.— São Paulo : Companhia das Letras, 2012. ISBN 978-85-359-2129-8 1. Crítica Literária 2. Ficção - História e crítica 3. Poesia - História e crítica I. Título. 12-05897 CDD-809.3 -809.1 Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção : História e crítica 809.3 2. Poesia : História e crítica 809.1 [] Todos os direitos desta edição reservados à   .. Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32 04532-002 — São Paulo — SP Telefone (11) 3707-3500 Fax (11) 3707-3501 www.companhiadasletras.com.br www.blogdacompanhia.com.br Sumário Preâmbulo: A mímesis-zero ........................................................................   :    1. Dos riscos de estar sozinho — Um título a ser esclarecido ................... 1.1. Primeira ponta: a Teoria estética de T. W. Adorno ........................ 1.1.1. A mímesis na Teoria estética adorniana ................................. 1.2. Segunda ponta: Derrida ou a Amazônia da escrita ....................... 1.2.1. Ramificações do fluxo: “La double séance” ............................. 1.2.2. Ramificações do fluxo: “La mythologie blanche” .................... 1.2.3. Adorno e Derrida: esboço de um exame comparativo ......... 1.3. Terceira ponta: por uma revisão do conceito de mímesis .............. 1.3.1. Final de um retrospecto ......................................................... 2. O discurso, entre a codificação e a apropriação individual ...................            :    1. Heidegger e a questão da poesia ............................................................. 1.1. Da esperança à frustração .............................................................. 1.1.1. Análise de “Germanien” ......................................................... 1.1.2. Hölderlin: retorno ou extravio? .............................................     1.2. Adorno: “Parataxis” ........................................................................ 1.3. Walter Benjamin: “Dois poemas de Friedrich Hölderlin” ............. 1.4. Heidegger: Hölderlin e a essência da poesia .................................. 1.5. Heidegger: “Der Ursprung des Kunstwerks” .................................... 1.6. Reflexão complementar ................................................................. 2. O mundo condensado ............................................................................ 2.1. Diálogo inicial ................................................................................ 2.2. Em busca de um melhor caminho ................................................. 2.3. Observações finais ..........................................................................           : ...   1. Antonio Machado ................................................................................... 1.1. Razão do capítulo ........................................................................... 1.2. O marasmo espanhol ..................................................................... 1.3. A sociedade industrial e a crise da linguagem ............................... 1.4. Antonio Machado ante a modernidade ......................................... 1.5. Considerações finais ....................................................................... 2. W. H. Auden ............................................................................................ 2.1. Uma ilha separada do continente .................................................. 2.2. Três primeiras aproximações ......................................................... 2.3. Duplicidade de leituras .................................................................. 2.4. A linguagem conversacional do cotidiano ..................................... 2.5. A dimensão ontológica como limite da impessoalidade ............... 2.6. O subsolo ........................................................................................ 3. Paul Celan ............................................................................................... 3.1. Sob o signo da carnificina .............................................................. 3.2. A que aponta a letra ........................................................................ 3.3. Evento e língua ............................................................................... 3.4. A morte transfigurada .................................................................... 3.5. As linhas interpretativas ................................................................. 3.6. Der Meridian ................................................................................... 3.7. A questão da metáfora .................................................................... 3.8. O nome e a coisa ............................................................................. 4. Sebastião Uchoa Leite: um depoimento ................................................ 4.1. Uma prévia necessária .................................................................... 4.2. Profundidade e superfície ..............................................................                          Notas ........................................................................................................... Referências bibliográficas ............................................................................ Bibliografia geral ......................................................................................... Obras do autor ............................................................................................. Índice remissivo ...........................................................................................      Preâmbulo A mímesis-zero “[...] Unborn selves await their turn.” The self contained: Beckett’s fiction in the 1960, Rubin Rabinovitz Na obra em que mais me ative à tentativa de repensar o fenômeno da mímesis, Mímesis: desafio ao pensamento (2000), foi introduzida a questão da mímesis-zero. Seu tratamento foi, no entanto, quase tão só nominal: “[...] Que dizer daquele instante originário em que a mímesis apenas parte, sem ainda estar imantada por um objeto?” (Costa Lima, L.: 2000, 148-9). A referência era tão ligeira que, durante um seminário, fui surpreendido quando uma orientanda, Aline Magalhães Pinto, referiu-se à expressão e, ante minha alegação de que a desconhecia, mostrou-me onde a empregara. Surpresa que aumentou quando Aline e outra orientanda, Laíse Araújo, se encarregaram de mostrar, em papers autônomos, a plausibilidade de um conceito, que, como dizia a primeira, “em sua inexistência” permanecia “em construção” (Magalhães Pinto, A.: 2010, 10). Paradoxal, a formulação era precisa. Aquele estágio foi ultrapassado desde que seus papers foram escritos. E sua busca de concretude subiu um grau. O que segue apenas consolida a consistência que a mímesis-zero deve à disposição das duas leitoras.  Acrescentem-se dois pontos: (a) desde a condenação platônica da mímesis, passando pelo antípoda aristotélico e por sua tradução domesticadora, imitatio, a mímesis foi sempre considerada a partir de sua posição quanto à physis ou às instituições humanas do mundo. O julgamento que dela se fazia privilegiava seu relacionamento com o que não era ela — a natureza ou o mundo. É bem sabido que Platão a excluía de sua república ideal porque a mímesis limitar-se-ia a duplicar o que é, fosse no plano inatingível das ideias, fosse em sua imperfeita correspondência, no plano da existência. A modificação a ser cumprida por Aristóteles teve sua ponta de radicalidade abandonada ao ser entendida pelos romanos como imitatio. Se os romanos assim não voltavam ao entendimento platônico era porque lhes bastava pensar que o que o Ocidente veio a entender como obra de arte é subordinado a algo já existente. Com a conhecida sequência das etapas — o cristianismo deixando de ser perseguido pelo Império, depois, tornando-se sua religião oficial, a seguir a dissolução do domínio romano e a relevância da Igreja — a imitatio manteve-se como critério de fidelidade e submissão à vontade do Criador. Ou seja, embora mudassem os critérios — o de duplicação das formas puras, as ideias (Platão), a relativa divergência quanto a um cosmo harmonioso (mímesis, em Aristóteles, enquanto relacionada à natura naturans), sua domesticação pragmática (a tradição romana) ou sua submissão ao sagrado (no pensamento cristão até, inclusive, à releitura de Aristóteles na tradução renascentista) — o valor concedido à mímesis dependia do que dela era excluído. A primeira importância da indagação da mímesis-zero não está em ser comparada com o externo — physis ou mundo — senão que na indicação da energia que nela vibra. É pela focalização do que pulsa na mímesis-zero que algum ganho será obtido no entendimento de sua composição; (b) quem conheça o Mímesis: desafio ao pensamento saberá que não fora aí que começara a tentativa de repensar a mímesis, senão em Mímesis e modernidade (1996), quando então encontrei o maior estímulo na obra de Freud. Também saberá que o embasamento para o que tenho feito, em termos de teoria da literatura, se encontra em Kant, sobretudo em sua Terceira crítica. Uma coisa e outra não significam ou que use um instrumental psicanalítico na abordagem  da obra literária, ou que pretenda ser um kantiano ortodoxo. Ora, a conduta a adotar na indagação da mímesis-zero sofre certa mudança, pois, em sua base, dependerá do ajuste da reflexão kantiana desenvolvida na estética transcendental com parte do aparato freudiano, a que se acrescentará a incorporação de autores (René Girard e Mikkel Borch-Jacobsen) que desenvolvem autonomamente a perspectiva freudiana. O papel que me concedo será conformar peças conceituais, que, por si mesmas, não se ajustam entre si. Começo por recordar os elementos da estética transcendental que serão básicos. Da separação entre o fenomênico, aberto ao conhecimento, e o noumênico, sobre o qual se pode conjecturar, resulta que todo pensamento tem por fundamento a relação imediata entre o sujeito e o objeto, efetivada pela intuição. É a intuição que afeta o espírito ao estabelecer uma ponte entre o sensível e o passível de ser conhecido (cf. Kant, I.: 1781, B 34). A transitividade que a intuição supõe entre o fenomênico e o capaz de impressionar os órgãos dos sentidos explica o título da seção. Ela se chama “estética” em correção ao propósito de Baumgarten, que criara o termo, a partir do grego “aísthesis” (percepção), a fim de “submeter a princípios racionais o julgamento crítico do belo, elevando as suas regras à dignidade de uma ciência. Mas esse esforço foi vão” (Kant, I.: 1781, asterisco ao & 1). Dir-se-ia que Kant fez o propósito de Baumgarten recuar, se o correto não fosse afirmar que Baumgarten procurava criar uma ciência onde não poderia haver ciência. O contato da mente humana com a matéria sensível não promove, necessariamente, uma ciência senão que, de maneira mais modesta, oferece a primeira ferramenta para uma efetiva teoria do conhecimento, cuja validez moderna se formula a partir da Crítica da razão pura. Para que assim suceda será preciso que a aísthesis, como mais de um século depois assinalará Husserl, seja submetida a uma redução (epokhé): isto é, deixe de ser encarada em sua atualidade empírica, provocadora da representação deste ou daquele objeto, para que seja vista como arsenal dos “princípios da sensibilidade”, antes de que eles entrem em atuação. Sem que fale em “redução”, Kant a seu modo a pratica ao declarar: Designo por estética transcendental uma ciência de todos os princípios da sensibilidade a priori. Tem que haver, pois, uma tal ciência, que constitui a primeira parte da teoria transcendental dos elementos em contraposição à que contém os princípios do pensamento puro e que se denominará lógica transcendental (B 36).  A passagem indiretamente ainda ajuda a compreender o sentido kantiano de “transcendental”. A “estética”, concernindo aos princípios da sensibilidade a priori, forma um dos polos do transcendental, de que o outro, referente às puras operações do pensamento, é constituído pela “lógica”. Os dois polos do transcendental kantiano significam que o aparato da apreensão humana contém uma área geral, potencialmente capaz de atuar, mesmo antes que seu agente seja empiricamente afetado. Seguem-se algumas pequenas definições que serão decisivas: a intuição se atualiza em face de um objeto cuja única determinação decisiva consiste em que seja de natureza fenomênica. Onde há intuição, há, por parte de seu receptor, representação, e o efeito da capacidade representativa é a sensação que se passa a ter de algo. Intuição, representação, sensação, por conseguinte, são as respostas intelectivas do agente humano ao contato com o fenômeno. Fora dessa cadeia está a matéria, que, ao entrar no raio de afecção do humano, se lhe mostra como fenômeno e provoca a sua sensação. Vale ainda se perguntar pela relação entre matéria e fenômeno, do ponto de vista do receptor humano. Se esse aspecto não é bem precisado, poder-se-ia supor que à matéria corresponderia uma pluralidade de fenômenos, da qual se desencadearia ora esse, ora aquele, em conformidade com a condição psíquica do receptor. Semelhante resposta seria satisfatória apenas do ponto de vista empirista. Para Kant, ao contrário, a diversidade fenomênica não é provocada pela diversidade de intuições, que, de sua parte, seria ativada pela particularidade anímica de seu agente. Esse caminho antes seria um extravio porque, estando em uma área transcendental, aí não se lida com a diversidade empírica. No campo do transcendental, a presença do fenomênico no agente-receptor humano se atualiza segundo determinadas relações. Daí Kant falar em “forma do fenômeno” (Form der Erscheinung). Dela deriva passagem fundamental: Uma vez que aquilo, no qual as sensações unicamente se podem ordenar e adquirir determinada forma, não pode, por sua vez, ser sensação, segue-se que, se a matéria de todos os fenômenos nos é dada somente a posteriori, a sua forma deve encontrar-se a priori no espírito, pronta a aplicar-se a ela e portanto tem que poder ser considerada independentemente de qualquer sensação (B 34). A forma se dispõe a priori no espírito do agente-receptor humano. Não dependente pois da cadeia formada por intuição, representação, sensação, a  forma a priori será ativada, isto é, assumirá relações, a partir das sensações. É fundamental reiterar-se que a cadeia de reações provocada por um fenômeno não suscita efeitos aleatórios. Se assim sucedesse, a estética transcendental converter-se-ia no polo do caos, contra o qual haveria de lutar o polo da Lógica. O transcendental humano seria então o espaço do transtorno e não a área que guarda a promessa de conhecimento. De todo modo, para que se evitem equívocos, ainda se observe que àquilo que Kant chama de “forma pura das intuições sensíveis” (reine Form sinnlicher Anschauungen) (B 35) não corresponde à forma visível que se inferirá de uma representação. Noutras palavras, a descrição oferecida corresponde à estética transcendental e não a qualquer modalidade de experiência, muito menos àquela, que só se desenvolverá na Terceira crítica, a experiência estética. Essa não concerne à forma pura da intuição senão que se configura de acordo com as propriedades particulares do agente particular que a realiza. (Dizê-lo não pretende insinuar que a experiência estética se confunde com uma disposição formal, porém, mais simplesmente, que ela lida com uma forma intrinsecamente distinta da “forma pura”, encerrada no transcendental.) Relembrados esses princípios elementares, não é difícil inferir que a “forma pura” supõe uma epokhé, se é possível dizer-se realizada aprioristicamente,1 das intuições múltiplas e que, dessa redução, resultam as formas puras da intuição: o espaço e o tempo. As considerações acima, feitas a partir da demonstração do caráter a priori do espaço, valem igualmente para o tempo. Mas o raciocínio é de tal modo semelhante que posso ser mais econômico: O tempo é [...] simplesmente uma condição subjetiva da nossa (humana) intuição (porque é sempre sensível, isto é, na medida em que somos afetados pelos objetos) e não é nada em si, fora do sujeito. Contudo, não é menos necessariamente objetivo em relação a todos os fenômenos [...] (B 51). Espaço e tempo são as formas a priori da sensibilidade e constituem a primeira fonte fundamental possibilitadora do conhecimento: O nosso conhecimento provém de duas fontes fundamentais do espírito, das quais a primeira consiste em receber as representações (a receptividade das im pressões) e a segunda é a capacidade de conhecer um objeto mediante estas representações (espontaneidade dos conceitos); pela primeira é-nos dado um objeto; pela segunda é pensado em relação com aquela representação (como simples determinação do espírito) (B 74). A representação sensível do fenômeno supõe a atualização das formas puras de espaço e tempo; a ela se acrescenta, conforme se nota pela citação acima, a Spontaneität der Begriffe. Seria essa explicação suficiente para termos o mínimo raio iluminador do processo que engendra a mímesis? Não, ainda não. Ressalte-se contra ela que a combinação da intuição com o conceito, da estética com a lógica, fez-se no plano transcendental, ou seja, em um aparato contido no agente humano e condicionador de sua capacidade de conhecer; apenas condicionador e não deflagrador. É por não considerar a diferença entre o transcendental e o empírico, em consequência entre a lógica transcendental e a que se exerce no plano das relações fenomênicas, que a Estética de Baumgarten pretendia inferir leis que presidiriam a obra de arte. Onde o objeto de arte começa a ser pensado conforme princípios tão só lógicos, as leis que dele se extraiam não passarão de regras normativas. O que vale dizer, da análise transcendental kantiana não poderia ter derivado senão uma estética normativa. Contudo, embora sem cogitar nessa consequência, Kant dará condições para que se abandone a imobilidade escura em que o transcendental, dentro da arquitetura que a Crítica da razão pura montava, o deixaria. Antes de verificá-lo, recordemos o que diz Kant sobre as condições transcendentais da sensibilidade: O espaço não é mais do que a forma de todos os fenômenos dos sentidos externos, isto é, a condição subjetiva da sensibilidade, única que permite a intuição externa. Como a receptividade do sujeito, mediante o qual este é afetado por objetos, precede necessariamente todas as intuições desses objetos, compreende-se como a forma de todos os fenômenos possa ser dada no espírito antes de todas as percepções reais, por conseguinte a priori, e, como ela, enquanto intuição pura na qual todos os objetos têm que ser determinados, possa conter, anteriormente a toda a experiência, os princípios das suas relações (B 42).  Se ao espaço corresponde a intuição externa, é o tempo (cf. B 50) que possibilita a intuição interna. Como se conclui que tempo e espaço assim formam o embasamento do conhecimento em geral, é também evidente que sua própria posição generalizante os tornaria inadequados para que, a partir deles, algo procedente fosse dito sobre a experiência particular da mímesis. A mesma passagem, contudo, que assinala os limites da doutrina transcendental dos elementos dá condições de avaliar-se onde procurar o que aí ainda faltava: Para confirmação desta teoria da idealidade do sentido externo, bem como do interno [...], pode ser particularmente útil a observação seguinte: tudo o que no nosso conhecimento pertence à intuição (com exceção do sentimento de prazer e desprazer e a vontade, que não são conhecimentos) contém apenas simples relações (B 66). Duas observações daí se destacam: o que pertence à intuição aponta apenas para relações. Ora, conquanto as relações sejam um elemento considerável na análise do objeto investido de carga estética, isto é, passível de suscitar uma experiência estética, se as relações o esgotassem, o objeto estético abrangeria apenas uma dimensão sintática e não ainda uma de ordem semântica. Em segundo lugar, embora se concretize no plano do sensível, e não da pura lógica, a intuição não diz respeito ao que não é conhecimento — o sentimento de prazer e desprazer, e a vontade (Gefühl der Lust und Unlust, und den Willen). A única função do aparato transcendental é servir à cognição do fenomênico. O que implica que, ainda neste estágio, o aparato transcendental equivale a uma máquina imóvel; pronta para se ativar, sem que algo a acione. Ora, sem a intervenção de um elemento dinâmico não poderíamos explicar um fenômeno. Ou seja, teremos de encontrar a fonte que, articulada ao que encarecemos em Kant, possa esclarecer nossa ainda enigmática mímesis-zero. É aqui que entra Freud, com sua teoria da libido. (Reunir Kant a Freud, embora em termos bastante parciais, antes se parece com uma bricolagem, do que com uma tentativa séria de produção de conhecimento.) A libido se qualifica para o papel que se lhe confia porque supõe não só uma possibilidade, isto é, algo pertencente à área do conhecimento senão que se define como substrato das transformações da pulsão sexual (cf. Laplanche, J. e Pontalis, J.-B.: 1971, 224). Como ainda assinalam os autores, tais transforma ções podem-se dar quanto ao objeto, quanto ao fim ou quanto à fonte da excitação sexual. Dadas as três possibilidades de transformação, ao supor que o exercício da mímesis implica a atualização da energia libidinal, qual daquelas possibilidades seria a apropriada? Sem que este fosse o objeto da indagação freudiana, pela passagem seguinte infere-se que ele, se considerasse a mímesis, a visse como uma transformação da libido quanto ao fim, mais precisamente como sublimação: “A impressão visual continua a ser o caminho pelo qual a excitação libidinal é mais intensamente despertada e [...] se transforma em beleza” (Freud, S.: 1905, 55). É desnecessário prolongar a citação até ao momento em que Freud fala explicitamente da arte como modo de desvio (ablenken) ou sublimação (sublimieren) da “curiosidade sexual” (sexuelle Neugierde) (id., ib.). Mas o relacionamento da mímesis com a libido, mediante o desvio (ou sublimação) do fim que provocaria a descarga da energia pulsional não é adequado para definir a mímesis, nem mesmo em seu estágio inicial. Por certo que não se nega a importância de associá-la a algo corporal, à diferença das propriedades assinaladas por Kant; este é o papel por excelência da libido. Tampouco se nega que aí suceda um desvio quanto à carga libidinal, mesmo porque se essa, ao alcançar seu fim, momentaneamente faz cessar a excitação corporal, já o mais alto alcance da mímesis, o mímema enquanto obra de arte, constitui, nos termos de Kant, uma finalidade sem fim — “[...] o belo, cujo julgamento tem por fundamento uma mera finalidade formal, isto é, uma finalidade sem fim [...]” (eine Zweckmäßigkeit ohne Zweck) (Kant, I.: 1790, & 15).2 Portanto, se não se nega o desvio, a “sublimação” que se daria no mímema, o desvio ou a sublimação teria um caráter radicalmente diverso do de uma descarga de energia. A diferença de direção do desvio precisa pois ser estabelecida. Em termos puramente psíquicos, a libido, enquanto energia, se relaciona à pulsão (Trieb) como processo dinâmico que conduz o organismo a tender a um fim, alcançado mediante o contato com o objeto provocador de prazer sexual. Ao se relacionar, de maneira muito menos direta, com a mímesis, a libido, em vez de vazar sua energia, a retém e a prolonga no objeto que constitui.3 A partir da diferença entre as duas cadeias, torna-se possível ir além da conclusão extraída dos Três ensaios sobre a sexualidade. Para isso, ainda voltemos a Freud. Será então importante o que diz especificamente da pulsão:  A pulsão é [...] um dos conceitos de separação entre o anímico e o corpóreo (Abgrenzung des Seelischen vom Körperlichen). A hipótese mais simples e primeira sobre a natureza das pulsões seria que elas não têm qualidade alguma, senão que são levadas em conta apenas como medida de exigência de trabalho para a vida anímica. [...] A fonte da pulsão é um processo de excitação em um órgão (Organ) e seu alvo mais imediato consiste na superação deste estímulo orgânico (Organreizes) (Freud, S.: 1905, 67). Porque situada entre o psíquico e o corpóreo, a pulsão tem por desiderato a descarga de uma excitação. Como então supor que a posição da mímesis é a mesma: a mímesis estaria diretamente associada a algum órgão?! Isso posto, vislumbra-se que o relacionamento da mímesis com a libido tem como marca decisiva que aquela se desvia do fim a que a libido, enquanto associada à pulsão, está condicionada; desviar-se do fim agora significa deixar de prestar um serviço ao corpo e, ao contrário, condensar sua energia no “corpo” artificial que cria, que então se torna propriamente eine Zweckmäßigkeit ohne Zweck. Pela aproximação de parte do legado kantiano com parte do freudiano, apenas se abre a vereda que procuro vislumbrar. Para isso, de imediato, conto com a ajuda da reflexão desenvolvida por René Girard e Borch-Jacobsen. De ambos importará uma pequena parcela de suas elaborações, mesmo entre aquelas que concernem ao papel que concedem à mímesis. A questão que se põe Girard é muito mais ampla do que é aqui exposto. Sua preocupação básica consiste em mostrar que a sociedade humana é constantemente ameaçada pela violência que ela própria provoca. É pela iminência da violência que o autor procura explicar o papel da religião e a função do ritual do sacrifício. É nos interstícios desse propósito que analisará o papel da mímesis. Em vez de explicitar, como fizera Hobbes, a razão pela qual a violência desempenha tal função primária na sociedade dos homens, Girard parte da tentativa multissecular de dominá-la. Sua contenção seria feita pela instituição do sacrifício. É interessante notar que o sacrifício, embora investido de tamanha função, não ocupa este patamar pela consciência que dela têm os cidadãos ou, muito menos, como invenção de algum genial condutor de povos: “A operação sacrificial [...] supõe um certo desconhecimento. Os fiéis não sabem e não devem saber o papel desempenhado pela violência” (Girard, R.: 1972, 17). A comunidade escolhe a vítima propiciatória, que atrai sobre si as supostas razões  da violência e assim se torna depositário da violência coletiva e positiva. É em torno da vítima sacrificada que se formula todo um ritual e toda uma ordem religiosa, que correspondem ao aparato de uma sociedade que, liberada da violência indiscriminada e impura, procura manter o equilíbrio de sua salvação por uma violência purificada.4 Mas a solução não dura para sempre. Escolhendo seus exemplos no Velho Testamento e, sobretudo, na tragédia grega, da qual fará análises exemplares, Girard encontra na crise sacrificial o reverso do sacrifício purificador. “A usura do sistema sacrificial sempre aparece como uma queda na violência recíproca; os próximos que sacrificavam em conjunto vítimas terceiras poupavam-se reciprocamente” (id., 69). A novidade da interpretação de Girard e as ressalvas que lhe são feitas resultariam, em seus próprios termos, da incapacidade do pensamento moderno de entender a função do sacrifício: A noção de crise sacrificial parece suscetível de esclarecer certos aspectos da tragédia. É o religioso, por uma boa parte, que fornece sua linguagem à tragédia; o criminoso considera-se menos como um justiceiro do que como um sacrificador. Sempre se visualiza a crise trágica do ponto de vista da ordem que está em vias de nascer, jamais do ponto de vista da ordem em vias de se extinguir. A razão desta carência é evidente. O pensamento moderno jamais pôde atribuir uma função real ao sacrifício (id., 69-70). A tragédia grega, por conseguinte, é contemporânea de uma crise sacrificial. Daí que seu destaque será decisivo para a compreensão quer do sacrifício, quer do comportamento coletivo quanto à vítima: A tragédia é o equilíbrio de uma balança que não é a da justiça mas a da violência. [...] A tragédia começa ali onde desabam tanto as ilusões dos partidos como a da imparcialidade. [...] São as represálias, ou seja, as retomadas da ação violenta, que caracterizam a ação trágica. A destruição das diferenças aparece de modo particularmente espetacular ali onde a distância hierárquica e o respeito são, em princípio, maiores, por exemplo, entre o filho e o pai (ib., 72-5). A tragédia é motivada por uma crise sacrificial, alimenta-se do mito, mas não mantém a tecitura mítica porque não oferece uma “origem” para a violên cia senão que a desenvolve e a faz circular pela ação trágica encenada. Noutras palavras, na tragédia grega como na sociedade que a alimenta, atualiza-se o mesmo vetor “diferença”. A sociedade vive a “crise das diferenças”, a tragédia sobrevive à sociedade que a motivara não por explicá-la senão, para falar em termos kantianos, por fundir a experiência sensível (estesia), o sentimento de prazer ou desprazer e a vontade na cena ocupada pelas personae (máscaras): “A crise sacrificial deve-se definir como uma crise das diferenças, ou seja da ordem cultural em seu conjunto” (ib., 77). Assim o Édipo rei ocupa a reconhecida posição princeps porque leva a cabo as consequências últimas da perda das diferenças de que a ordem social depende: “O pensamento que assimila a violência à perda das diferenças deve levar ao parricídio e ao incesto como último termo de sua trajetória” (ib., 115). Com o que, embora muito de passagem, assinala-se o papel que Girard concede à religião: “[...] O religioso tem o mecanismo da vítima emissária por objeto; sua função é perpetuar ou renovar os efeitos desse mecanismo, ou seja manter a violência fora da comunidade” (ib., 140). As considerações precedentes seriam ociosas, fosse porque fragmentárias, fosse por extrapolarem a questão de que trato especificamente, se não servissem de ancoradouro para a questão da mímesis. Parto pois da inserção dessa no corpo da violência. Na ausência de um sistema de diferenças, associado a uma vítima sacrificial, “a violência se torna o significante do desejável absoluto, da autossuficiência divina, da ‘bela totalidade’ que já não pareceria assim se deixasse de ser impenetrável. [...] O desejo mimético é uno com o contágio impuro; motor da crise sacrificial, destruiria toda a comunidade se aí não houvesse a vítima emissária para interrompê-la e a mímesis ritual para impedi-la de retornar” (ib., 220-1). Encontra-se, portanto, a mímesis nas duas pontas da cadeia: enquanto mecanismo multiplicador da violência que propaga o contágio e enquanto interruptora do mecanismo destrutivo, por meio da “mímesis ritual”. É ela, por conseguinte, o meio de atualização por excelência do móvel central da conduta humana: a sede de violência. (Isso explicaria tanto que a mímesis não se restrinja à arte verbal e visual, quanto que se mostre cotidianamente.) Os exemplos escolhidos pelo pensador francês podem-se agrupar em duas colunas: a tragédia, por um lado, a mímesis ritual, por outro. O agrupamento, que não interessaria ao próprio autor, importa por facilitar a tarefa de esclarecer a mímesis, no seu instante zero. A partir do que extraio de Girard já posso dizer: a mímesis não é exclusiva à arte: seu âmbito coincide com o campo de incidên cia da violência, ou seja, abrange toda a sociedade humana. É mesmo porque o homem, como se sabe por Arnold Gehlen, não tem uma territorialidade própria, sendo, por isso, “aberto para o mundo”, que a propagação mimética não tem limites. Do ponto de vista da sociedade, para Girard, sua função se cumpre pela mímesis ritual. A violência se purifica ao concentrar-se em uma vítima. Já a tragédia, na coluna oposta, concerne à sua incidência no que, muitos séculos passados, será considerado parte do discurso autônomo da arte. A exemplo do que Georg Simmel diria do dinheiro, a mímesis desconhece um senhor: serve tanto de propagadora do contágio tendencialmente aniquilador de toda a sociedade, como para armar o cenário antagônico ao contágio destrutivo. Acrescente-se ainda: nas duas extremidades, sua presença não é regida pela consciência que seus agentes teriam do que realizavam. Reitere-se o que se afirmava no final da exposição da estética transcendental; a mímesis, ali referida em seu estágio zero, implica todas as faculdades humanas, fracassando toda tentativa de explicá-la a partir de uma decisão pessoal e consciente. Embora o resumo extraído da reflexão de Girard já permita ver a articulação entre violência e mímesis, ele ainda há de ser levado adiante. Trata-se de articular a mímesis ao desejo: “Voltamos a uma ideia antiga, mas cujas implicações são talvez desconhecidas: o desejo é essencialmente mimético; calca-se em um desejo modelo; elege o mesmo objeto que esse modelo” (ib., 217). A passagem acentua a relação entre o desejo e o mecanismo da rivalidade. Em termos mais diretos: do desejo, fonte da MÍMESIS, com o SER (como) e não o TER (isso ou aquilo). Identificada a questão, percebe-se que ela é reiterada ao longo do capítulo VI de La violence et le sacré. Não recuo ante o tamanho da passagem a ressaltar, porque ela bem mostra que a perspectiva então aberta se contrapõe à estrita leitura freudiana: O fato que, na crise sacrificial, o desejo não tenha mais outro objeto que a violência e que, de uma maneira ou de outra, a violência está sempre misturada ao desejo, este fato enigmático e esmagador não recebe luz suplementar alguma, mas ao contrário se afirmarmos que o homem é presa de um “instinto de violência”. Sabe-se hoje que os animais são individualmente dotados de mecanismos reguladores que fazem que os combates quase nunca cheguem à morte do vencido. A propósito de tais mecanismos que favorecem a perpetuação da espécie, é sem dúvida legítimo utilizar o termo instinto. Mas é então absurdo recorrer à mesma palavra para designar o fato  de que o homem careça de mecanismos semelhantes. [...] Em todos os desejos que observamos, não havia tão só um objeto e um sujeito, havia um terceiro termo, o rival [...]. Não se trata aqui de identificar prematuramente esse rival. De dizer com Freud: é o pai, ou com as tragédias: é o irmão. Trata-se de definir a posição do rival no sistema que ele forma com o objeto e o sujeito. O rival deseja o mesmo objeto que o sujeito. [...] O sujeito deseja objeto porque o próprio rival o deseja (ib., 215-6). A formulação sintética e capital está próxima: “Uma vez que suas necessidades primordiais estão satisfeitas e talvez mesmo antes, o homem deseja intensamente, mas não sabe exatamente o quê, pois é o ser que ele deseja. Um ser de que se sente privado e de que um outro lhe parece dotado” (ib., 217). O desejo é motivado pela presença de um rival, com o qual não só compete mas com que se identifica por antonomásia. É este último aspecto da tese de René Girard que aqui importa. Daí a associação a fazer dele com passagem de Borch-Jacobsen: O desejo é antes de tudo mimético, desde logo mobilizado por um “modelo” a que se conforma (a que se identifica) — e isso não é assim porque haveria um desejo qualquer de imitar, uma “pulsão de imitação” qualquer (isso seria ainda conceder em demasia à ideia de uma pretensão própria ao desejo) mas antes porque a mímesis informa o desejo, mostra-lhe sua direção e mais geralmente a suscita (Borch-Jacobsen, M.: 1982, 39). A passagem descarta-se da complexidade antropológica de Girard para acentuar apenas o último aspecto que ressaltamos em La violence et le sacré. Tem a mesma procedência outra passagem que ainda se enfatiza. Do meu ponto de vista, ela tem a grande vantagem de dissociar o desejo da vontade de posse e, portanto, do direcionamento objetal: “O desejo [...] não visa essencialmente à posse ou ao usufruto de um objeto, visa (se é que visa ao que quer que seja...) a uma identidade subjetiva. Seu verbo fundamental é ser (ser como), não ter (usufruir de)” (id., 42). Larguem-se então as amarras que sustentaram o raciocínio. Façamos como um barco que se dirigisse à sua aventurosa viagem. Procurou-se ver o  que é possível dizer sobre a mímesis-zero. Para isso, aproveitarei a troca de correspondências que estabeleci com minhas parceiras, Aline Magalhães Pinto e Laíse Araújo. Tenho a mímesis-zero como uma mímesis-sem; uma mancha ou nebulosa na psique de um agente, que, não tendo ainda forma, tampouco possui movimento. Mímesis-zero equivale a dizer que não contém figuras ou linhas de força configuradas. Ela é um como se, isto é, algo que, em estado de gestação, se for plenamente diante, será um objeto ficcional.5 Mímesis sem movimento porque mera potencialidade. Enquanto potencialidade, ela é uma mancha ou nebulosa já tocada pela libido. A junção entre mancha psíquica e libido significa que algo ou alguém, uma paisagem ou quem a atravessou, ali deixou uma marca que, por enquanto, provoca tão só uma impressão, no entanto duradoura. Esta paisagem? Não existe. Existe espaço Vacante, a semear De paisagem retrospectiva. Para que o “espaço/vacante” possa mover-se e conformar-se, há de ser impulsionado pela libido. Como “substrato das transformações da pulsão”, ao tocar a mancha da mímesis-zero, a libido estará direcionada por um objeto? Como o verso já o indica, a libido objetal tem importância secundária se a nebulosa se encaminhar para uma modalidade de mímesis de arte [da representação ou da produção, como distinguíamos desde Mímesis e modernidade (1980)]. Declará-la mímesis-sem ou idêntica ao zero significa que ela ainda se encontra em processo de gestação do que será sua consistente forma interna. Na procura de dar efetividade ao conceito em construção, em fazê-lo sair, nas palavras de Aline Magalhães Pinto, de sua “inexistência”, se antevê a seguinte alternativa: (a) a nebulosa pode-se converter tanto em nuvem que se condensa quanto se dissolver, (b) caso prepondere a condensação, comparar-se-á a uma bala ainda não pronta para o disparo, faca cuja lâmina ainda se afia. Se seu processo não sofrer interrupção, a condensação ou dará lugar à mímesis da representação — a semelhança com uma cena do real aparenta preponderar sobre diferenças com a mesma cena, e as diferenças ali se dispõem como armadilhas para iludir os incautos, que então afirmam que a obra exprime o real — ou à mímesis da produção — a semelhança no ponto de partida com o real é subver tida pelas diferenças produzidas pelo próprio relato ou composição, as quais terminam por constituir um real por sua própria feitura.6 A mímesis da representação descreve um estado de coisas; a mímesis da produção se cumpre por um processo de feitura. Em ambos os casos, o modelo identificatório de muito supera a vontade de posse; em consequência o propósito não é de ter um outro quanto de fazer surgir um outro: o ser do mímema. Venho a uma última observação: Konrad Fiedler (1841-95) deixou entre seus inéditos um fragmento, “Wirklichkeit und Kunst” [Realidade e arte]; ele é precioso, e não porque trate de mímesis ou da nebulosa que antecederia sua constituição. Se trabalhamos a mímesis-zero como um processo de gestação, encareço o trecho de Fiedler por mostrar que, na alternativa a que a nebulosa está sujeita — condensar-se ou dissipar-se — é a dissolução que prepondera: Aquilo que em cada homem deveria de novo se produzir é o conteúdo de uma tradição que se herda de geração em geração como um patrimônio morto. [...] O homem entra no mundo como uma individualidade nova e autônoma; mostra-se como o centro de um mundo que ali está só para ele; que, em um espírito humano, assim se espelha somente uma vez; que não pode se comparar com o mundo de um outro; e, de repente, dá-se conta que todo seu domínio consta de palavras que já foram possuídas por milhões e que ainda o serão por outros milhões; que todo seu domínio consta de valores que ele não produziu, que passam de mão em mão, como moedas que ele recebe daqueles que o construíram e que passam àqueles que o construirão. Daí se apodera dos homens uma sensação amarga de inadequação; compara a plenitude, a riqueza daquilo que, em seu interior, se eleva ininterruptamente em forma e figura com a árida, seca, convencional forma da palavra, em que gostaria de reconfigurar de dentro a se opor, por assim dizer de fora, como já presente, mas despida de todo frescor e plenitude. O homem rebela-se contra essa coação, esforça-se, procura emancipar-se e, no entanto, permanece submetido, pois toda tentativa de alcançar clareza e expressão fora dos caminhos trilhados está sujeita ao fracasso. Não se pode evitar a coação provocada pelas formas linguísticas herdadas, mas tão só superá-las (Fiedler, K.: s/d, II, 125-6).  Ricas que tenham sido as formas herdadas, a estereotipia as apaga, pois, quase sempre, nossas frases têm a vida de um palito de fósforo. A algazarra dos vivos é um cemitério ambulante, bem mais amplo que a casa dos mortos. A nebulosa com que se identificou a mancha ainda informe da mímesis-zero antes se desmancha do que se condensa: à sociedade antes interessa que a tradição se confunda com um patrimônio inerte. Deste modo, seus membros permanecem tranquilos enquanto cumprem os encargos que lhes são impostos. 