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A sentença-Ramsey, Carnap e o realismo estrutural (2017)

2017

In: Polymatheia (Online), v. 10, p. 11-25, 2017.

Polymatheia – Revista de Filosofia 11 A SENTENÇA-RAMSEY, CARNAP E O REALISMO ESTRUTURAL Marco Antônio Sousa Alves1 Resumo: O presente artigo tem duas pretensões básicas: (1) analisar a sentençaRamsey, sobretudo a interpretação feita por Rudolf Carnap, mostrando qual o papel que ela desempenha no debate acerca do realismo e do anti-realismo científico; e (2) mostrar como, contrariamente às intenções empiristas e anti-realistas de Carnap, a sentençaRamsey conduz ao realismo estrutural, no qual mitigamos o realismo e sua pretensão de nomear as entidades que compõem o mobiliário do mundo e também o anti-realismo e sua descrição de teorias como meros construtos formais. Palavras-chave: Carnap, Ramsey, Teoria científica, Sentença-Ramsey, Realismo estrutural. THE RAMSEY-SENTENCE, CARNAP, AND THE STRUCTURAL REALISM Abstract: This article has two basic aims: (1) analyze the Ramsey-sentence, specially the interpretation made by Rudolf Carnap, trying to show the role it plays in the debate about scientific realism and antirealism; and (2) present how, against the empiricist and antirealistic intentions of Carnap, the Ramsey-sentence leads to a structural realism, where the realism is mitigated in its ambitions to name the entities in the world, as well as the antirealism in its description of theories as mere formal constructs. Keywords: Carnap, Ramsey, Scientific theory, Ramsey-sentence, Structural realism. Introdução O presente artigo tem duas pretensões básicas: (1) analisar a sentença-Ramsey (Ramsey-sentence), sobretudo a interpretação feita por Rudolf Carnap; e (2) mostrar como ela conduz ao realismo estrutural (structural realism). Para introduzir o tema, colocarei algumas questões, inspiradas e/ou retiradas de Carnap.2 Pode-se dizer, em linhas gerais, que teorias científicas usam predicados para entidades inobserváveis a fim de explicar fenômenos observáveis. Daí surge a questão: como esses predicados 1 Doutorando em Filosofia pela UFMG. Professor de [email protected] 2 cf. Carnap, R. An introduction to the philosophy of science, p. 248. Lógica Fortaleza – Volume 10 – Número 16, Jan./Jun. 2017 ISSN: 1984-9575 da FAJE. E-mail: Polymatheia – Revista de Filosofia 12 adquirem significado empírico? Ou seja, será que os termos teóricos (propriedades, forças, eventos descritos em uma teoria) não têm significado da mesma forma que os termos observacionais? Genes, elétrons, etc., têm significado empírico? Esses termos descrevem a estrutura real do mundo ou são apenas uma invenção abstrata e artificial? Podemos dizer que um elétron existe no mesmo sentido que uma barra de ferro existe? De que forma os termos teóricos se conectam com o mundo real e se sujeitam a algum teste empírico? Como diferenciá-los dos termos metafísicos, que povoam a tradição filosófica e não possuem qualquer significado empírico? Essas perguntas, ainda que possam ser consideradas insidiosas por um realista, permitem vislumbrar um pouco o que se pretende tratar. Dentro da questão mais geral acerca do realismo científico, que opõe aos realistas (que dizem que os termos teóricos descrevem entidades teóricas existentes) os anti-realistas (que negam qualquer comprometimento ontológico com os termos teóricos), há um capítulo bem interessante e complexo, introduzido por Ramsey e desenvolvido por Carnap. Esse capítulo da questão, que desenvolverei a seguir, trata da possibilidade de se retirar qualquer comprometimento ontológico dos termos teóricos sem, contudo, reduzi-los seja a termos observacionais, seja a meros instrumentos lógicos. Na primeira parte, apresentarei o que veio a ficar conhecido como sentença-Ramsey e, na segunda parte, analisarei a interpretação de que ela abre uma via média entre realistas e anti-realistas que se pode chamar de realismo estrutural. 1. A sentença-Ramsey O texto básico para se estudar a sentença-Ramsey é o artigo Theories, escrito por Frank Plumpton Ramsey em 1929. Convém, de início, ressaltar que se trata de um trabalho fragmentário e precursor, de difícil penetração e variadas interpretações. Quanto à dificuldade imposta pelo texto para sua compreensão, cito Psillos, para quem “Theories é um artigo profundo e denso. Ele praticamente não prepara o terreno. A visão de Ramsey é apresentada de forma compacta e não é contrastada ou comparada a outras visões”.3 Não se pretende, neste artigo, desatar nenhum nó e nem apresentar 3 Psillos, S. Ramsey`s Ramsey-sentences, s.p. (tradução minha). Fortaleza – Volume 10 – Número 16, Jan./Jun. 2017 ISSN: 1984-9575 Polymatheia – Revista de Filosofia 13 alguma nova interpretação, mas apenas enfrentar o texto apoiando-se, sobretudo, em Rudolf Carnap, Stathis Psillos e Grover Maxwell. Quanto ao caráter precursor da obra, basta observar que se trata de um trabalho escrito ainda na década de vinte do século XX para perceber seu pioneirismo, pois o tema só veio a entrar na ordem do dia já na segunda metade da década de cinqüenta. Sobre a história do desenvolvimento desse debate, gostaria de abrir um pequeno parêntese para contar como Carnap descobriu (ou melhor, redescobriu) a obra de Ramsey. Essa história se justifica também como introdução à questão. Assim, ao invés de falar do que antecedeu a publicação do artigo de Ramsey, falarei do que se passou depois, mais de vinte anos depois, época em que a sentença-Ramsey entrou no debate da filosofia da ciência. 1.1. De como Carnap redescobriu a sentença-Ramsey Carnap é daqueles filósofos dos quais é difícil dizer quais teses ele sustentou, uma vez que as constantes mudanças de posição fazem de seus textos o retrato de uma permanente transformação. Esse traço, contudo, não deve ser visto imediatamente como o sinal de uma fraqueza, mas antes como a marca de alguém que levou a sério as críticas recebidas, apesar de ter insistido toda a vida em manter alguns pontos-chave do empirismo lógico. Quanto à questão do vocabulário das teorias científicas, abordaremos o abandono de Carnap de uma postura reducionista ou eliminativista e a posterior redescoberta da sentença-Ramsey. Primeiro, Carnap, juntamente com seus colegas do empirismo lógico, sustentou uma proposta reducionista ou eliminativista, na qual os termos teóricos presentes em uma teoria poderiam todos ser reduzidos a termos observacionais. Esta possibilidade eliminava o problema do sentido e da existência dos termos teóricos, pois poderiam sempre ser traduzidos em termos observacionais. Carnap mantém esta postura até 1936, quando publica Testability and Meaning, texto em que seu empirismo já aparece mitigado. Nessa obra, Carnap observa que termos disposicionais (como frágil e solúvel) não podem ser totalmente definidos valendo-se apenas de termos observacionais. A disposição ela mesma é algo que não pode ser observado. Na ausência de uma definição explícita (apenas em termos observacionais), Carnap admitiu uma interpretação parcial Fortaleza – Volume 10 – Número 16, Jan./Jun. 2017 ISSN: 1984-9575 Polymatheia – Revista de Filosofia 14 (partial interpretation) do significado dos termos teóricos. Essa possibilidade de uma interpretação parcial abriu a porta para uma abordagem mais mitigada do empirismo lógico que, a partir de meados dos anos cinqüenta, passou a adotar uma nova visão acerca da linguagem da ciência, conhecida como modelo da dupla linguagem (double language model). O problema da proposta reducionista ou eliminativista apareceu quando se percebeu que o discurso teórico tem um excesso de significado (excess or surplus meaning), ou seja, ele possui termos teóricos (T-terms) e postulados que são irredutíveis aos termos observacionais e leis. Ao aceitar isso (o excesso de conteúdo dos termos teóricos), estamos a um passo de aceitar um tipo de realismo científico, no qual os termos teóricos têm referência factual, ou seja, designam entidades teóricas ou inobserváveis. Carnap percebeu logo que o empirismo lógico estaria em perigo se se aceitasse que entidades teóricas são reais. O desafio que se impunha a ele era manter a abordagem empirista evitando comprometimentos ontológicos com entidades teóricas. Na tentativa de vencer esse desafio, Carnap passa por uma espécie de corda-bamba e articula uma posição que não é realista, pois não aceita nenhum comprometimento existencial para as entidades inobserváveis das teorias científicas, nem instrumentalista, pois as teorias científicas não são apenas instrumentos de predição e controle. É justamente esta via média que se busca compreender melhor neste artigo, e é aí que a sentença-Ramsey aparece. Mas, antes de aprofundar esta questão, voltemos à história do desenvolvimento do pensamento de Carnap. Em 1956, no texto The methodological character of theoretical concepts, e em 1958, em Observation Language and Theoretical Language, Carnap abandona completamente a proposta reducionista ou eliminativista e coloca lado a lado, na linguagem das teorias científicas, o vocabulário observacional (Vo) e o vocabulário teórico (Vt), composto de postulados teóricos (T-Postulates) e regras de correspondência (C-Rules). Em linhas gerais, a proposta de Carnap consistiu em dividir a linguagem total da ciência em duas sub-linguagens: a observacional Lo (completamente interpretada) e a teórica Lt (cujo vocabulário descritivo Vt consiste em temos teóricos). A Lt é mais rica e contém toda classe matemática (expressões e variáveis para todos os objetos). Enquanto uma sentença da Lo descreve um evento Fortaleza – Volume 10 – Número 16, Jan./Jun. 2017 ISSN: 1984-9575 Polymatheia – Revista de Filosofia 15 observável e pretende que ele seja real, a Lt não funciona exatamente assim. Questões quanto à realidade dos elétrons ou dos campos eletromagnéticos são questões ambíguas. Carnap aceita um certo comprometimento existencial, mas diz que afirmar a realidade de um sistema de entidades como um todo (elétrons, por exemplo) é algo diferente de afirmar a existência de entidades teóricas particulares (uma certa configuração de elétrons, por exemplo). No desenvolvimento do pensamento de Carnap, ele acreditou ter encontrado uma posição satisfatória somente após ter reinventado e desenvolvido a abordagem da sentença-Ramsey para teorias científicas. Carl Gustav Hempel teria mostrado a Carnap que a posição que ele vinha desenvolvendo já havia sido levada a termo por Ramsey. Em uma carta escrita a Hempel em 1958 e citada por Psillos, diz Carnap: O caso da sentença-Ramsey é um exemplo muito instrutivo sobre como nos iludimos facilmente com respeito à originalidade de nossas idéias. Na conferência de Feigl de 1955 [...] eu representei a forma existencializada de uma teoria como uma recente idéia original minha. [...] Eu procurei no livro do Ramsey no lugar que você se referiu e lá estava, claramente sublinhado por mim mesmo. Não há dúvida que eu tinha lido isso antes no livro do Ramsey. Creio que foi na época de Viena ou Praga. De qualquer forma, eu tinha me esquecido completamente tanto da idéia quanto da origem.4 Realmente, só a partir da segunda metade da década de cinqüenta que Ramsey reaparece no cenário dessa discussão. O capítulo sobre a sentença-Ramsey, que está no livro The philosophical foundations of physics (reimpresso como An introduction to the philosophy of science), foi escrito em 1961, finalizado em 1964 e publicado apenas em 1966. O aparecimento tardio, porém, não retira o valor de sua redescoberta, como Carnap salienta em vários momentos. A sentença-Ramsey aparece como uma espécie de fórmula mágica, capaz de resolver o problema da existência dos termos teóricos. Convém agora analisar mais de perto o que vem a ser a sentença-Ramsey e por que Carnap acreditou que ela poderia ajudá-lo a evitar qualquer comprometimento ontológico com os termos teóricos sem precisar cair no reducionismo ou eliminativismo. 4 Psillos, S. Carnap, the Ramsey-sentence and the realistic empiricism, p. 259-260 (tradução minha). Fortaleza – Volume 10 – Número 16, Jan./Jun. 2017 ISSN: 1984-9575 Polymatheia – Revista de Filosofia 16 1.2. Da visão de Ramsey acerca das teorias científicas No artigo Theories, de 1929, Ramsey sustenta que teorias pretendem explicar fatos, que podem ser capturados no interior de um sistema primário. Um sistema primário é entendido como o conjunto de todas as leis (proposições gerais do sistema primário) e fatos observacionais singulares (as conseqüências ou afirmações singulares). A totalidade dessas leis e conseqüências é, para Ramsey, aquilo que a teoria afirma ser verdadeiro. Como esclarece Ramsey: “Primeiro, consideremos os fatos a serem explicados. Estes ocorrem em um universo discursivo que chamaremos de sistema primário, este sistema sendo composto de todos os termos e proposições (verdadeiras ou falsas) no universo em questão”.5 Além do sistema primário, Ramsey indica a existência de um sistema secundário, que é uma construção teórica que pretende explicar o sistema primário. Ele é um conjunto de axiomas (ou postulados teóricos – T-terms – usando a terminologia de Carnap) e um dicionário (ou regras de correspondência – C-Rules – usando a terminologia de Carnap). O dicionário é constituído por uma série de definições das funções do sistema primário nos termos das funções do sistema secundário, o que faz com que os dois tipos de termos funcionem juntos em uma teoria. Em suma, cabe ao dicionário ligar as variáveis aos predicados observacionais. Ramsey chega a sustentar que o sistema secundário é eliminável, pois podemos simplesmente nos prender ao sistema primário sem delinear um sistema secundário. Essa tese aponta para um instrumentalismo eliminativista ou reducionista, no qual as expressões teóricas são em massa sistematicamente eliminadas e, então, o problema do significado delas não aparece. Contudo, apesar de aceitar a possibilidade dessa eliminação, Ramsey observa em seguida que ela implicaria em uma complexidade e arbitrariedade das definições, o que seria metodologicamente inadequado. O problema é que as leis e conseqüências podem ser feitas verdadeiras por diferentes conjuntos de fatos e correspondendo a cada um deles nós podemos ter diferentes definições. Encontrar um único conjunto de definições que irá fazer o dicionário e axiomas 5 Ramsey, F. P. Theories, p. 101 (tradução minha). Fortaleza – Volume 10 – Número 16, Jan./Jun. 2017 ISSN: 1984-9575 Polymatheia – Revista de Filosofia 17 verdadeiros é um problema ainda insolúvel. O fato de não haver uma única solução que satisfaça os axiomas está baseado, em parte, no fato de o sistema secundário possuir uma grande multiplicidade ou um maior grau de liberdade que o sistema primário. E esse crescimento da multiplicidade, segundo Ramsey, é uma característica universal das teorias úteis.6 Para Ramsey, a distinção entre sistema primário e secundário não é fixa e estática. Assim, podemos substituir uma variável (do sistema secundário) por um nome ou uma constante (movendo-a para o sistema primário), quando acreditamos saber qual o seu valor. Em outras palavras, com o crescimento da ciência e de nosso conhecimento do mobiliário do mundo, nós modificamos nossa afirmação existencial em desenvolvimento. Somos, portanto, livres para trocar uma variável por um nome. Ramsey parece, neste ponto, caracterizar o sistema secundário como fictício e dizer que sua importância está apenas no fato de ele ser um mero sistematizador do conteúdo do sistema primário. Na realidade, não há distinção em princípio entre qualidades fictícias ou não. Ao crescer nosso conhecimento do mundo, funções proposicionais que expressavam qualidades fictícias (e eram substituídas por variáveis existencialmente ligadas ou determinadas) podem muito bem ser tomadas para caracterizar quantidades conhecidas e então serem re-introduzidas na teoria em desenvolvimento (growing theory) como nomes ou constantes. Ele dá o exemplo do calor, que deixou de ser fictício ao se descobrir que consiste no movimento de pequenas partículas. Não é necessário, para Ramsey, que o significado das afirmações no sistema secundário sejam dadas por seus critérios no sistema primário.7 A teoria não precisa ser vista como um resumo daquilo que se pode dizer no interior do sistema primário. As leis e conseqüências não podem representar toda a base empírica da teoria. Para construir uma teoria por meio de definições explícitas não é preciso que os axiomas devam se seguir das leis e conseqüências apenas. Assim, apesar da suspeita inicial de que Ramsey estaria assumindo uma postura instrumentalista reducionista ou eliminativista, ele, mais à frente no texto, diz que as teorias têm um conteúdo excedente (excess content) sobre seus sistemas primários, de modo que a possibilidade de certo 6 7 cf. Ramsey, F. P. Theories, p. 111. cf. Ramsey, F. P. Theories, p. 117. Fortaleza – Volume 10 – Número 16, Jan./Jun. 2017 ISSN: 1984-9575 Polymatheia – Revista de Filosofia 18 tipo de realismo está aberta. Esse conteúdo excedente é visto quando a teoria é formulada como expressando um juízo existencial. Ramsey considera as teorias como construções significativas existenciais (juízos), que podem ser avaliadas em termos de verdade e falsidade. Assim, ele se distancia dos empiristas lógicos, como Schlick e o primeiro Carnap, para quem as teorias eram sistemas dedutivos formais que flutuavam livremente, pois nenhum conceito que ocorria na teoria designava algo real. Para eles, a construção de uma ciência dedutiva estrita tinha apenas o sentido de um jogo com símbolos, uma mera construção sintática. O insight de Ramsey vai contra essa postura, pois não precisamos divorciar a teoria de seu conteúdo nem restringi-la ao interior do sistema primário, contanto que se trate a teoria como um juízo existencial. Ramsey trata as funções proposicionais do sistema secundário como variáveis, mas, em oposição aos empiristas lógicos, ele pensa que uma teoria empírica não acarreta apenas uma afirmação “se... então”, mas existem entidades que satisfazem a teoria (o que é capturado pelos quantificadores existenciais com os quais a teoria é prefixada). Os quantificadores existenciais fazem com que o sistema axiomático (axiom-system) passe de um conjunto de fórmulas abertas (open formulas) para um conjunto de sentenças (portanto, com valor de verdade – truth-valuable). 1.3. Dos juízos existenciais ou sentenças-Ramsey Após essa breve apresentação da abordagem de Ramsey das teorias científicas, convém entrar detalhadamente em sua grande contribuição: a sentença-Ramsey. O insight básico de Ramsey é o seguinte: numa perspectiva empirista, o que realmente importa é o conteúdo empírico da teoria. Ao se apresentar uma teoria, usa-se termos teóricos e predicados. Contudo, não precisamos tratá-los como nomes. Ou seja, eles não precisam se referir a entidades (objetos, coisas no mundo). Isso não é necessário para um uso legítimo da teoria. Ao invés de nomes de diversos tipos que juntos formam uma proposição atômica, Ramsey sugere que o sistema primário tem uma estrutura e qualquer estrutura pode ser representada por números. Todos os termos do sistema primário podem ser adequadamente simbolizados por números. Pode-se simplesmente tratar as funções proposicionais (termos teóricos e predicados) da linguagem teórica Fortaleza – Volume 10 – Número 16, Jan./Jun. 2017 ISSN: 1984-9575 Polymatheia – Revista de Filosofia 19 como genuínas variáveis que são ligadas a quantificadores existenciais e que resultam na construção de uma sentença. Como uma sentença, a construção resultante possui valor de verdade. Logo, ela pode ser usada para expressar um juízo. A sentença-Ramsey implica a existência de classes de entidades que realizam a sentença-Ramsey, mas ela não se compromete com a existência de algum conjunto particular dessas entidades. Ramsey oferece o seguinte exemplo: cores e odores têm uma estrutura que pode ser designada por três números (sendo 0 a ausência de cor ou odor). O momento 3 tem a cor 1 e o odor 2 e pode ser assim escrito: χ (3) = 1 e ф (3) = 2, χ e ф correspondendo às formas gerais da cor e odor e sendo, provavelmente, funções com um número limitado de valores (por exemplo, ф (3) = 55 pode ser sem sentido, pois não existe o 55 o odor). Esse exemplo pode parecer estranho, e a estranheza se deve ao fato de que, ainda que esta mudança possa ser feita, ela não traz vantagens em casos como este, em que temos relativamente poucos termos. Mas, em casos mais complexos, como o tempo, nós não podemos nomeá-lo e, assim, ao invés de o tomarmos em sua individualidade, indicamos apenas sua posição. Tentaremos explicar melhor como isso funciona. Quando dizemos que “x é um fóton” não se trata de um predicado, mas de uma variável existencialmente ligada ou determinada (existentially bound variables). Ou seja, uma teoria começa tacitamente com quantificadores (propriedades existem, chamamos elas “ser um fóton, tal que...”, etc.). Assim, Ramsey escapa da questão acerca da existência desses termos, dizendo que há certos eventos observáveis que podem ser descritos por certas funções matemáticas dentro do quadro de um certo sistema teórico. Esses juízos existenciais de Ramsey (Ramsey`s existencial-judgements) são conhecidos como sentença-Ramsey (Ramseysentence), termo esse cunhado por Hempel. Seu papel é eliminar os problemáticos predicados das teorias enquanto mantém sua estrutura e conseqüências observacionais. Expondo isto de uma forma mais técnica, temos que a sentença-Ramsey RTC junta os axiomas da teoria TC (T indica os postulados teóricos da teoria e C indica os postulados que dão as regras de correspondência) em uma única sentença, que substitui todos os predicados teóricos por variáveis distintas e então liga essas variáveis colocando um igual número de quantificadores existenciais. Em suma, a sentençaFortaleza – Volume 10 – Número 16, Jan./Jun. 2017 ISSN: 1984-9575 Polymatheia – Revista de Filosofia 20 Ramsey elimina os termos teóricos (T-terms) como tais e provê uma abordagem do conteúdo empírico da teoria. São três os passos para essa façanha: a) Primeiro passo: pegamos uma teoria empírica que podemos representar da seguinte maneira: TC (t1 . . . tn, o1 . . . om). Aqui, t indica os termos teóricos e o os termos observacionais. b) Segundo passo: substituímos os termos teóricos (T-terms) por variáveis. Podemos representar o resultado da seguinte forma: TC (x1 . . . xn, o1 . . . om). Aqui, x indica uma variável. c) Terceiro passo: quantifica-se existencialmente as variáveis. Ou seja:  x1 . . .  xn TC (x1 . . . xn, o1 . . . om). Ou ainda, resumindo:  x TC (x, o). Termos teóricos se tornam variáveis existencialmente ligadas ou determinadas (existentially bound variables). A fórmula precedida por um quantificador existencial diz que há ao menos uma entidade (do tipo ao qual se refere) que satisfaz a condição expressa pela fórmula. Resumindo, a sentença-Ramsey RTC é lida assim: “Existem algumas (não especificadas) relações tais que TC (x1 . . . xn, o1 . . . om) é satisfeita quando as variáveis designam essas relações (ou seja, existem relações r1 . . . rn tais que TC (x1 . . . xn, o1 . . . om) é satisfeita quando xi designa o valor ri, e 1  i  m)”. Desta forma, a sentençaRamsey captura o conteúdo factual da teoria e constitui uma formulação adequada para as necessidades da ciência. Carnap oferece um interessante exemplo dessa tradução da teoria em uma sentença-Ramsey.8 Tomemos o símbolo “Mol” para uma classe de moléculas. Ao invés de chamar algo “uma molécula”, chamemos isso “um elemento de Mol”. De maneira similar, “Hymol” significa “a classe de moléculas de hidrogênio”, e “uma molécula de hidrogênio” é “um elemento de Hymol”. Em termos gerais, a linguagem teórica contém termos de classe (class terms) e termos de relação (relation terms). Como diz Carnap, isso não significa dizer que coisas como elétrons simplesmente desaparecem, mas sim que o que quer que seja que exista no mundo e que é simbolizado pela palavra ‘elétron’ desaparece.9 A sentença-Ramsey continua afirmando, através de seu quantificador existencial, que há algo no mundo que tem todas as propriedades que o físico atribui ao 8 9 cf. Carnap, R. An introduction to the philosophy of science, p. 249. cf. Carnap, R. An introduction to the philosophy of science, p. 252. Fortaleza – Volume 10 – Número 16, Jan./Jun. 2017 ISSN: 1984-9575 Polymatheia – Revista de Filosofia 21 elétron. Isto não questiona a existência ou realidade disso, mas apenas propõe uma maneira diferente de falar sobre isso. Outro exemplo que pode ilustrar o que foi dito é oferecido por Maxwell.10 Tomemos uma axiomatização simplificada da teoria cinética: “Todos os gases são compostos inteiramente por moléculas. As moléculas estão em movimento rápido e em freqüente colisão, etc.”. Para fins de simplificação, consideremos que ‘moléculas’ é o único termo teórico. A sentença-Ramsey dessa teoria diria algo como: “Há um tipo de entidade tal que todos os gases são compostos inteiramente por essas entidades. Elas estão em movimento rápido e em freqüente colisão, etc.”. 2. O Realismo Estrutural Nesta segunda parte do artigo, pretendo mostrar como a sentença-Ramsey pode ser interpretada como uma abertura a uma certa postura realista chamada realismo estrutural. De início, convém definir o que vem a ser isso. Trata-se de uma postura realista, pois afirma a existência de um mundo independente de nossas representações, e é estrutural, uma vez que o que é conhecível do mundo é apenas sua estrutura.11 Em suma, podemos resumir essa posição no seguinte slogan proposto por Psillos: é a tese de que o conhecimento pode atingir apenas as características estruturais do mundo.12 O realismo estrutural assume uma clara posição intermediária. Ele não se confunde com o realismo mais forte, que afirma a existência de entidades específicas e sustenta a possibilidade de a ciência conhecê-las em suas teorias. Indo além da estrutura, esta postura realista forte atinge o conteúdo, a matéria, nomeando o mobiliário 10 cf. Maxwell, G. The ontological status of theoretical entities, p.16. Podemos dividir o realismo estrutural em dois grupos: o epistemológico e o metafísico ou ontológico. Esta distinção apareceu inicialmente em um importante texto de James Ladyman de 1998, chamado What is structural realism?, e guia a discussão atual sobre o tema. O primeiro tipo é aquele que sustenta que o conteúdo cognitivo de uma teoria é inteiramente capturado pela sua sentença-Ramsey e o segundo tipo, mais problemático e misterioso, sustenta não apenas que nosso conhecimento está limitado à estrutura do mundo, mas vai além ao afirmar que tudo o que há além do fenômeno é a estrutura. O realismo estrutural epistemológico levanta a questão acerca daquilo a que temos acesso epistêmico. Já o realismo estrutural metafísico coloca outro problema em jogo, acerca da estrutura da natureza e a relação entre estrutura e conteúdo. Qual é a diferença entre matéria e forma, conteúdo e estrutura? Trata-se de uma diferença objetiva na natureza ou ela existe apenas em nossas representações da natureza? Não pretendo aprofundar essas questões, mas apenas situar o tipo de realismo estrutural que será tratado aqui, e que parte da sentença-Ramsey e da tese epistemológica de que apenas conhecemos do mundo suas características estruturais, reveladas pelas teorias. Sobre o tema, cf. Pooley, O. Points, particles, and structural realism; e também Van Fraassen, B. C. Structure: its shadow and substance. 12 cf. Psillos, S. Is Structural Realism Possible?, s.p. 11 Fortaleza – Volume 10 – Número 16, Jan./Jun. 2017 ISSN: 1984-9575 Polymatheia – Revista de Filosofia 22 do mundo. Da mesma forma, o realismo estrutural não se confunde com o anti-realismo ou instrumentalismo, que reduz as teorias a simples instrumentos ou construtos formais sem qualquer pretensão de se referir a qualquer entidade real. O realismo estrutural aponta claramente para uma linha média e, em função disso, atraiu tanto anti-realistas quanto realistas. Como observa Psillos, há duas vias de chegada ao realismo estrutural:13 a) Um trajeto de subida (the upward path), que parte de premissas empiristas em direção a uma postura realista sustentável; b) Um trajeto de descida (the downward path), que parte de premissas realistas em direção a uma postura realista enfraquecida ou mitigada. Como salienta Votsis, o número de adeptos do realismo estrutural é crescente.14 Conta-se em suas fileiras nomes importantes como Maxwell, Worrall e Ladyman. Mesmo notáveis anti-realistas aproximam-se de posições realistas estruturais, mas, para deixar claro que não se trata de assumir uma postura realista tout court, preferem nomear suas propostas de empirismo estrutural (structural empiricism), como Otávio Bueno, ou estruturalismo empírico (empiricist structuralism), como Van Fraassen. Voltando então ao tema tratado na primeira parte do artigo, gostaria, a seguir, de mostrar como podemos discordar da interpretação carnapiana da sentença-Ramsey, mostrando sua feição realista. Carnap, ao menos segundo Maxwell, também pode ser enquadrado entre os pensadores que abraçaram o realismo estrutural. Seu trajeto é o de alguém que, mesmo sem abandonar o empirismo lógico, vê-se obrigado a mitigar suas posições iniciais e afastar-se cada vez mais do puro instrumentalismo em direção a certo realismo. Em Carnap, encontramos claramente colocada a diferença entre fato (fact) e estrutura (framework), cara ao realismo estrutural. É bem verdade que Carnap, em 1958, no texto Observation language and theoretical language, interpretou a sentença-Ramsey como se as variáveis existencialmente quantificadas não classificassem entidades físicas inobserváveis, mas entidades matemáticas. Assim, o excesso de conteúdo das teorias ocorre porque elas caracterizam fisicamente entidades matemáticas. Esta interpretação de Carnap, chamada 13 14 cf. Psillos, S. Is Structural Realism Possible?, s.p. cf. Vostsis, I. Is structure not enough?, p. 885. Fortaleza – Volume 10 – Número 16, Jan./Jun. 2017 ISSN: 1984-9575 Polymatheia – Revista de Filosofia 23 por Feigl de positivismo sintático (syntactical positivism), é claramente uma forma de instrumentalismo, uma vez que dá uma interpretação matemática aos conceitos teóricos nas ciências empíricas, ou seja, sustenta que essas entidades são nada mais que úteis construtos formais e as teorias são apenas modelos matemáticos. Carnap manteve ao longo de sua vida uma posição assumidamente empirista e acreditou que a sentençaRamsey o auxiliava nessa tarefa, afastando-o dos realistas.15 Grover Maxwell discordou de Carnap quanto à crença de que a sentençaRamsey poderia conduzir a um tipo de instrumentalismo e foi o primeiro a apontar para a aproximação entre ela e o realismo. Apesar de as características (ou propriedades) estruturais não serem predicados de referência direta (não nomeiam entidades no mundo), isso não faz dessas estruturas meras características formais. Para Maxwell, a sentença-Ramsey, apesar de eliminar os nomes das entidades teóricas, ainda assim se compromete com a existência de certo número de tipos de entidades inobserváveis. 16 Ou seja, mesmo conseguindo evitar o uso de termos teóricos, ela não pode (nem na letra nem no espírito) eliminar a referência a entidades inobserváveis ou teóricas. Trata-se, portanto, de uma postura realista. Porém, a sentença-Ramsey desenvolve um realismo um pouco diferente, chamado de realismo estrutural. Para o realista estrutural, teorias científicas resultam em comprometimentos existenciais para entidades inobserváveis. Todo conhecimento sobre inobserváveis é conhecimento estrutural (structural knowledge), ou seja, conhecimento não das propriedades intrínsecas ou de primeira-ordem, mas das propriedades estruturais ou de ordem superior (higher-order). Sustenta-se que há uma certa estrutura que satisfaz a sentença-Ramsey e a estrutura do mundo é isomórfica a essa estrutura. Temos, portanto, como conseqüência da sentença-Ramsey, uma posição claramente realista estrutural, na qual apenas a estrutura do mundo inobservável seria conhecível, não as entidades elas mesmas. Segundo Maxwell: “Nosso conhecimento sobre o teórico é limitado às suas 15 Posteriormente, sendo muito criticado tanto pelos realistas quanto pelos anti-realistas, e influenciado pela leitura realista de Maxwell sobre a sentença-Ramsey, Carnap passou a adotar uma postura neutra, nem realista nem anti-realista. Ele sustentou que essas duas visões não estariam em conflito, sendo apenas maneiras diferentes de falar, constituindo, assim, um conflito essencialmente lingüístico. Seria, apenas, uma questão de qual jeito de falar é preferível em certas circunstâncias. 16 cf. Maxwell, G. The ontological status of theoretical entities, p. 17. Fortaleza – Volume 10 – Número 16, Jan./Jun. 2017 ISSN: 1984-9575 Polymatheia – Revista de Filosofia 24 puras características estruturais e nós somos ignorantes no que concerne à sua natureza intrínseca”.17 Conclusão Espero, após estas páginas pouco pretensiosas, ter atingido os dois objetivos deste artigo: (1) explicar melhor em que consiste a sentença-Ramsey e como ela entrou, pelas mãos de Carnap, no debate acerca do realismo e do anti-realismo científico, e (2) mostrar como a sentença-Ramsey, contrariamente às intenções empiristas e antirealistas de Carnap, nos conduz a uma posição intermediária nomeada realismo estrutural, na qual mitigamos o realismo e sua pretensão de nomear as entidades que compõem o mobiliário do mundo e também enfraquecemos o anti-realismo e sua descrição de teorias como meros construtos formais que flutuam independentemente de como o mundo é. Referências: CARNAP, Rudolf. The methodological character of theoretical concepts. In: FEIGL, H.; SCRIVEN, M. (eds.) 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