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Wittgenstein e o Externalismo

O presente texto visa apresentar, em caráter preliminar, uma avaliação wittgensteiniana de alguns pressupostos de um dos principais argumentos em favor do externalismo semântico: o experimento mental da Terra Gêmea, desenvolvido por Putnam no seu clássico “The Meaning of ‘Meaning’”. Primeiramente, pretendo mostrar que alguns dos mencionados pressupostos externalistas parecem implicar a possibilidade do erro maciço. A seguir pretendo expor esquematicamente um argumento wittgensteinano contra essa possibilidade. Esse argumento procura mostrar que o erro maciço é incompatível com a normatividade essencial da linguagem. Esse aparente conflito entre a filosofia de Wittgenstein e o externalismo não esconde as semelhanças entre ambos. Entretanto, creio que essas semelhanças são algumas vezes exageradas. Embora a idéia wittgensteiniana de publicidade da gramática tenha afinidades com o externalismo semântico, a idéia de autonomia (ou “arbitrariedade”) da gramática parece estar em franco conflito com ele. Mas vou tratar desses últimos pontos apenas de passagem no final do texto.

em Smith, P.J. & Silva Filho, W. (org.) (2007) Ensaios sobre Ceticismo. São Paulo: Alameda. Wittgenstein e o Externalismo Alexandre N. Machado Universidade Federal da Bahia [email protected] Temos um sistema de cores como temos um sistema de números. Esses sistemas residem na nossa natureza, ou na natureza das coisas? Como se deveria dizer? — Não na natureza das coisas. Esse sistema, então, tem alguma coisa de arbitrário? Sim e não. É aparentado com o arbitrário e com o nãoarbitrário. Wittgenstein (1967), §§357-358 1. Introdução Uma teoria sobre uma determinada propriedade F é externalista1 se dela se segue a possibilidade que, de duas coisas que possuem as mesmas propriedades intrínsecas (e, por isso, são intrinsecamente indistinguíveis entre si), apenas uma delas possua a propriedade F. O que determina que uma delas possui a propriedade F é sua relação com outra coisa. Chamemos uma propriedade assim de externa.2 Há muitas propriedades que são obviamente externas. Entretanto, alguns filósofos contemporâneos sustentam, contra boa parte da tradição filosófica, que, apesar das aparências em contrário, certas propriedades que são 1 “Externalismo” é um anglicismo. Entretanto, para não correr o risco de dificultar a compreensão do meu texto sem necessidade, vou adotar o uso desse neologismo que se tornou comum entre filósofos brasileiros. 2 Poderíamos também chamá-la de extrínseca. Mas vou usar “externa” para uniformizar a terminologia. 1 geralmente consideradas internas são, ao menos em alguns casos,3 externas. Dentre essas propriedades estão a propriedade que um indivíduo tem de ter uma crença cognitivamente justificada (externalismo epistemológico), de ter um evento mental com um determinado conteúdo (externalismo sobre o conteúdo mental) e de ser capaz de usar uma expressão lingüística com um determinado significado (externalismo semântico).4 Há dois outros aspectos do externalismo filosófico que são importantes. Um deles é uma ênfase no caráter social daquilo que determina a posse de uma propriedade externa. Quando o argumento contra o internalista baseia-se principalmente nesse aspecto, o externalismo recebe o nome de “antiindividualismo”. O outro aspecto importante do externalismo é o caráter nãoepistêmico daquilo que determina a posse de uma propriedade externa. Isso significa que, se F é uma propriedade externa, é possível que a seja F e não saibamos isso. Esse último aspecto do externalismo tem conseqüências que, à luz da tradição (internalista), parecem absurdas. Para um externalista epistemológico, é possível que um sujeito tenha uma crença cognitivamente justificada e seja incapaz de identificar explicitamente (não tenha acesso cognitivo a) aquilo que a justifica. Se a identificação daquilo que justifica cognitivamente uma crença constitui a justificação dessa crença, então se pode dizer, de um modo um tanto paradoxal, que, para um externalista, um sujeito pode ter uma crença justificada e ser incapaz de produzir uma justificação dessa crença.5 Para um internalista, isso é simplesmente impossível. Para um externalista semântico, é possível que um sujeito use um termo de modo incorreto e não tenha acesso cognitivo àquilo que mostraria o seu erro, a saber, o significado do termo.6 Para um internalista, isso é simplesmente impossível. O presente texto visa apresentar, em caráter preliminar, uma avaliação wittgensteiniana de alguns pressupostos de um dos principais argumentos em favor 3 Se em alguns casos as propriedades em questão são externas, isso é suficiente para mostrar que a tese geral da tradição, que em todos os casos elas são internas, é falsa. 4 O que está em questão aqui, portanto, é a natureza dos fatos descritos por afirmações das seguintes formas: “S sabe que p”, “S crê (deseja, espera, teme, etc.) que p” e “S usa ‘p’ para dizer que ____”. 5 Alguns evitam esse paradoxo, abandonando os termos “justificada” e “justificação” e dizendo que um conhecimento não é necessariamente uma crença verdadeira justificada. 6 Essa não é a afirmação de que o externalismo implica a possibilidade do erro maciço. Não se trata de uma afirmação nem sobre todos nem sobre a maioria dos usos do termo. 2 do externalismo semântico: o experimento mental da Terra Gêmea, desenvolvido por Putnam no seu clássico “The Meaning of ‘Meaning’”. Primeiramente pretendo mostrar que alguns dos mencionados pressupostos externalistas parecem implicar a possibilidade do erro maciço.7 A seguir pretendo expor esquematicamente um argumento wittgensteinano contra essa possibilidade. Esse argumento procura mostrar que o erro maciço é incompatível com a normatividade essencial da linguagem. Esse aparente conflito entre a filosofia de Wittgenstein e o externalismo não esconde as semelhanças entre ambos. Entretanto, creio que essas semelhanças são algumas vezes exageradas.8 Embora a idéia wittgensteiniana de publicidade da gramática tenha afinidades com o externalismo semântico, a idéia de autonomia (ou “arbitrariedade”)9 da gramática parece estar em franco conflito com ele. Mas vou tratar desses últimos pontos apenas de passagem no final do texto. 2. Terra Gêmea Segundo Putnam, a concepção tradicional do significado inclui duas teses, a saber: (I) Conhecer o significado de um termo é estar em um estado psicológico. 7 Essa afirmação pode soar no mínimo estranha para quem sabe que Donald Davidson, um externalista, argumentou contra a possibilidade do erro maciço. Mas não vou me ocupar aqui com as diferenças e semelhanças entre Davidson e Wittgenstein. 8 Philip Petitt (1983), por exemplo, concorda com Tyler Burge (1979) que a filosofia de Wittgenstein é uma contribuição para o anti-individualismo defendido por Burge. Essa avaliação está baseada na tese interpretativa segundo a qual, para Wittgenstein, a linguagem é essencialmente social, o que excluiria a possibilidade de uma linguagem solitária (que não deve ser confundida com uma linguagem privada). Creio que essa tese interpretativa está equivocada. Mas não vou discutir esse ponto aqui (cf. Machado (2004)). Anthony Rudd (1997) argumenta de forma bem sucedida contra a tentativa de Gregory McCulloch (1995) de harmonizar o externalismo de Putnam e a filosofia da linguagem de Wittgenstein. Mas seus argumentos são diferentes dos apresentados aqui. 9 Cf. epígrafe do presente texto. 3 (II) O significado de um termo determina sua extensão (identidade de significado implica identidade de extensão).10 Na tese (I), explica Putnam, a expressão “estado psicológico” é entendida em sentido estrito (narrow). No sentido estrito, um estado psicológico é um estado que não implica a existência de nada exterior ao sujeito.11 A expressão “significado”, em ambas as teses, é entendida como sinônima de “intensão”. Os conceitos de intensão e extensão foram forjados pela tradição para dar conta da aparente ambigüidade da expressão ordinária “significado”, que ora parece ser usada no sentido de “intensão”, ora no sentido de “extensão”. A extensão de um termo é o conjunto das coisas às quais o termo se aplica verdadeiramente (é aquilo que é significado pelo termo). O conceito de intensão serve para dar conta dos casos de termos que, aparentemente, têm a mesma extensão, mas significados distintos, como, por exemplo, os termos “cordato” (ser que possui coração) e “renato” (ser que possui rins). Os significados, nesses casos, são normalmente concebidos como condições necessárias e suficientes para que um objeto pertença à extensão do termo; para que o termo se aplique verdadeiramente a um objeto. Putnam chama atenção para uma conseqüência de (I) e (II): (I) implica que o estado psicológico (em sentido estrito) que constitui o conhecimento do significado (a compreensão) determina a intensão12 e, portanto, dado (II), determina a extensão. O experimento da Terra gêmea visa justamente mostrar que essa conseqüência de (I) e (II) é falsa: a extensão de um termo não é determinada por um estado psicológico (em sentido estrito). Putnam procura mostrar que é justamente uma certa interpretação da inversa de (II) que é verdadeira: é 10 Cf. Putnam (1975), p. 219. Todas as traduções contidas nesse artigo são de minha autoria. Doravante, as referências não especificadas são todas de Putnam (1975). 11 Uma alteração de estado psicológico em sentido estrito é aquela que é detectada por um detector pessoal (personal scanner, cf. Pettit (1983), p. 446), isto é, por uma máquina que detecta qualquer alteração na res extensa e na res cogitans de uma pessoa e apenas essas alterações. Ela é incapaz de detectar alterações no ambiente em que a pessoa se encontra. 12 O argumento para isso é simples: conhecer o significado de uma expressão é saber qual intensão é o seu significado. Saber que I1 é o significado de A e saber que I2, é o significado de A são estados psicológicos distintos. O mesmo ocorre com saber que I1 é o significado de A e saber que I1 é o significado de B. Portanto, é impossível que duas pessoas estejam no mesmo estado psicológico (em sentido estrito) e compreendam a mesma expressão de modo distinto (atribuam a ela intensões diferentes). Cf. p. 221. 4 a extensão que determina o significado. Mas “significado” nessa tese invertida não é mais entendido como a intensão do termo. Para mostrar isso Putnam nos convida a imaginar uma situação contrafactual em que duas pessoas que são exatamente idênticas, inclusive no que respeita aos seus estados psicológicos (em sentido estrito), e que têm o mesmo comportamento lingüístico com relação a um determinado termo, usam esse termo com significados distintos (cf. pp. 223-7). Vou apresentar os principais pontos do experimento de Putnam porque alguns deles serão examinados mais adiante. Imaginemos que em algum canto do universo exista um planeta, a Terra Gêmea, que é exatamente igual à Terra em quase todos os aspectos. Lá há seres humanos iguais aos que existem na Terra, alguns deles falam Português, há flora, fauna, mares, montanhas, etc. Uma das diferenças entre a Terra e a Terra Gêmea é que na Terra Gêmea o líquido que preenche lagos, rios e mares, que mata a sede, congela a 0°C e ferve a 100°C ao nível do mar, é, quando puro, insípido, inodoro e incolor, etc. (o líquido que tem o mesmo “estereótipo” do líquido que nós chamamos de água), não é formado da molécula H2O, mas de uma molécula mais complexa cuja abreviação é XYZ. H2O e XYZ, em circunstâncias normais de pressão e temperatura, são indistinguíveis. Mas, não obstante a diferença, os terráqueos gêmeos (os habitantes da Terra Gêmea) chamam XYZ de água. Se os terráqueos (os habitantes da Terra) viajassem até a Terra Gêmea, provavelmente também chamariam XYZ de água. Mas “água”, no Português terráqueo, significa (tem a extensão) H2O. Por isso, se os terráqueos descobrissem que o líquido da Terra Gêmea é constituído de XYZ, eles corrigiriam sua suposição inicial e diriam que, no Português da Terra Gêmea, “água” significa, não H2O, mas XYZ. Algo análogo ocorreria se os terráqueos gêmeos visitassem a Terra. Portanto, no cenário do experimento de Putnam, a palavra “água” tem dois significados (no sentido “pré-analítico” de “significado”), pois tem duas extensões. No sentido que “água” tem na Terra Gêmea, o que nós chamamos de água, H2O, não é água. No sentido que “água” tem na Terra, o que os terráqueos gêmeos chamam de água, XYZ, não é água. O passo crucial do experimento de Putnam consiste em imaginar que as visitas mútuas entre terráqueos e terráqueos gêmeos se dão em 1750, numa época em que ninguém sabia, nem tinha condições de saber, que “água”, na Terra, significa H2O e que, na Terra Gêmea, a mesma palavra significa XYZ. Suponhamos que nessa época vivessem Oscar1, um terráqueo, e Oscar2, um terráqueo gêmeo que é física e (o que é mais importante) psicologicamente idêntico a Oscar1. (Mas a identidade psicológica aqui inclui apenas estados psicológicos num sentido estrito.) Nessa época, eles poderiam atribuir e negar os mesmos predicados àquilo que cada um chama de água, ou seja, poderiam ter os mesmos “hábitos lingüísticos” (p. 247). Não há nenhuma crença que Oscar1 tenha 5 sobre o que ele chama de água que Oscar2 não tenha sobre o que ele, Oscar2, chama de água.13 Mas se o significado de “água” na boca de Oscar1 e Oscar2 não é o mesmo, porque a extensão dessas expressões não é a mesma, dado que na boca de Oscar1 “água” significa H2O e na boca de Oscar2 “água” significa XYZ, e se Oscar1 e Oscar2 estão nos mesmos estados psicológicos, então a extensão de “água” (e, portanto, seu significado) não pode ser determinada por esses estados psicológicos. Uma das suposições desse último passo do experimento de Putnam é que, em 1750, “água” tinha a mesma extensão que tem atualmente. Em favor dessa suposição, Putnam argumenta que o uso de termos para espécies naturais é governado pela seguinte exigência: quando digo “Isso é F” (onde “F” é um termo para uma espécie natural), suponho que há uma relação de identidade de espécie entre isso e aquilo que se vem chamando de F.14 Além disso, segundo Putnam, a relação de identidade de espécie entre instâncias de espécies naturais é teórica: questões de identidade e diferença desse tipo necessitam algumas 13 Mas crenças são estados psicológicos que possuem conteúdo (referido por uma frase em que: “S acredita que p”). Portanto, se a identidade do conteúdo é determinada por algo externo e a identidade da crença é determinada pela identidade do conteúdo, então a identidade da crença é determinada por algo externo. Mas parece ser justamente um resultado do experimento mental da Terra Gêmea que o conteúdo das crenças sobre espécies naturais é determinado pela referência dos termos para espécies naturais que aparecem na expressão dessas crenças. Conseqüentemente, de acordo com esse experimento mental, ao menos crenças sobre espécies naturais não são estados psicológicos em sentido estrito, mas o são em sentido amplo. Sendo assim, Oscar1 e Oscar2 não podem ter exatamente as mesmas crenças, embora tenham exatamente os mesmos estados psicológicos em sentido estrito. Na introdução a The Twin Earth Chronicles, Putnam confessa que, quando publicou “The Meaning of ‘Meaning’”, não tinha certeza sobre as conseqüências de suas reflexões para a filosofia da mente. Ele afirma que acabou concordando com Tyler Burge (1979) que, naquele texto, ele erroneamente deixou espaço aberto para o “conteúdo estrito” e para os “estados mentais estritos” (cf. Putnam (1996), p. xxi). 14 Essa suposição pode ser falsa. As coisas que se vem chamando de F formam o conjunto F. Suponhamos que parte desse conjunto, o conjunto F1, seja formado por coisas que pertençam a uma espécie diferente daquela a que pertencem as restantes. Nesse caso, diria Putnam, estamos enganados ao pensar que todas as coisas que pertencem a F pertençam à mesma espécie natural. Isso aconteceria, por exemplo, se parte do líquido que preenche os rios, lagos, e oceanos da Terra, etc., fosse XYZ. (Examinaremos essa possibilidade na próxima secção.) Nesse caso, o conjunto dos Fs não seria uma espécie natural, mas o conjunto de duas espécies naturais. 6 vezes de investigação científica e são sempre revogáveis à luz de novas investigações.15 Dessa forma, é possível que em 1750 todos os terráqueos chamassem de água o que, na verdade, seria XYZ. Nesse caso, todos os terráqueos estariam usando a palavra “água” de modo errado, mas sem o saber. Mais que isso: não seria possível que eles verificassem seu erro, pois a verificação de seu erro dependeria de um conhecimento científico indisponível naquela época. E esse conhecimento científico ― sobre o mundo, e não sobre nossas mentes ― seria em parte constitutivo do conhecimento do significado de “água”. Além disso, argumenta Putnam, mesmo que esse conhecimento estivesse disponível, para efeito de correção do uso, não seria necessário que todos os usuários do termo “água” o tivessem, dada a “divisão social do trabalho lingüístico”. Delegamos aos especialistas a tarefa de corrigir nosso uso (cf. pp. 227-229). Apesar de argumentar que, ao menos em alguns casos, a extensão determina o significado, Putnam não identifica significado e extensão.16 A extensão determina o significado na medida em que é parte do significado. O outro 15 Cf. p. 225. Putnam concorda com Saul Kripke (1972) que termos para espécies naturais são “designadores rígidos”, isto é, designam a mesma coisa em todos os mundos possíveis. Por isso, afirmações tais como “Água é H2O” são necessárias, isto é, verdadeiras não apenas no mundo atual, mas em todos os mundos possíveis, pois se “água” e “H2O” são designadores rígidos e designam a mesma coisa no mundo atual, então designam a mesma coisa em todos os mundos possíveis e, portanto, não é possível um mundo em que algo seja água (pertença à extensão de “água”) e não seja H2O (não pertença à extensão de “H2O”). No entanto, Putnam sustenta que é concebível que uma experiência nos convença racionalmente que água não é H2O e conclui que nem tudo que é concebível é logicamente possível. Se “conceber” pode ser traduzido aqui por “pensar o sentido da frase”, então a conclusão de Putnam implica que, contrariamente ao que Wittgenstein diz no Tractatus, conceber que p não envolve representar a possibilidade de que p, não envolve considerar um mundo possível em que é o caso que p. Entretanto, conceber que p envolve pensar como as coisas seriam se fosse o caso que p (se “p” fosse verdadeira), mesmo quando “p” expressa uma impossibilidade lógica? Mas o que é o caso é possível. Portanto, pensar como as coisas seriam se fosse o caso que p envolve pensar como as coisas seriam se fosse possível que p. Conseqüentemente, se “p” expressa uma impossibilidade lógica, conceber que p envolve pensar como as coisas seriam se o impossível, que p, fosse possível. Mas em que isso se difere de representar a possibilidade de que p? 16 Na introdução a The Twin Earth Chronicles, Putnam queixa-se que alguns de seus críticos não prestam atenção no fato de sua teoria do significado não identificar significado e extensão (Putnam (1996), p. xxi). Espero que a reflexões do presente artigo não contenham o mesmo defeito. 7 componente do significado é o estereótipo.17 O estereótipo é um componente epistêmico e relativo do significado: trata-se da crença que certas características são compartilhadas pelos membros da extensão do termo. A posse dessa crença por parte do usuário é condição para que ele conheça o significado do termo, na medida em que contém os critérios para se determinar se algo pertence à extensão do termo (cf. pp. 228, 248). Mas, segundo Putnam, as crenças estereotípicas são expressas por afirmações que não são nem necessárias, nem analíticas. Negar que sejam analíticas, para Putnam, consiste em negar que sejam imunes à revisão.18 Com essa ressalva Putnam pretende evitar as críticas de Quine à analiticidade.19 A afirmação “Tigres possuem listras”, por exemplo, apesar de expressar uma crença estereotípica, pode ser falsa e, por isso, é revisável. Sendo assim, apesar de a crença que tigres possuem listras ser baseada no conhecimento do significado de “tigre”, de tal forma que diríamos que aquele que acredita que tigres não possuem listras não conhece o significado de “tigre”, a afirmação “Tigres possuem listras” pode ser falsa, como de fato é. Se descobrirmos que se trata de uma falsidade, podemos restringir seu domínio à maioria dos membros da extensão ou, nos casos mais extremos, retirar-lhe o estatuto de crença estereotípica. Por essa razão, os estereótipos são sempre relativos a uma situação epistêmica específica, dependendo muito da cultura da sociedade de que o usuário do termo faz parte (cf. p. 249). Dentre as muitas teses defendidas por Putnam, há uma que merece especial atenção aqui. Apesar de a identidade de extensões entre dois termos não implicar a identidade dos significados desses termos, (DEDS) a diferença de extensões implica uma diferença de significados, não importando que o estereótipo associado a esses termos seja o mesmo. A seguir vamos examinar essa tese. 3. Terra Antiga Uma questão importante para examinarmos a tese (DEDS) é a questão sobre como um termo para uma espécie natural adquire significado; sobre como 17 Estou ignorando algumas complicações aqui, como os marcadores sintáticos e semânticos. 18 Todavia, mesmo que a tradição acreditasse que toda afirmação analítica é imune a revisão, os conceitos de analiticidade e de imunidade à revisão são distintos. 19 Cf. Quine (1961). Voltarei a esse ponto na secção 5. 8 dotamos de significado um termo para uma espécie natural. Putnam diz muito sobre as condições para que um termo para uma espécie natural tenha um significado e sobre como explicamos esse significado, e isso sugere muita coisa sobre como ele pode adquirir esse significado. Obviamente, é necessário fixar a extensão do termo.20 Mas como isso é feito? Em meio à explicação da indexicalidade dos termos para espécies naturais, Putnam afirma que há duas maneiras de se “informar alguém sobre o que se quer dizer [what one means] por meio de um termo para uma espécie natural” (p. 229): definição ostensiva e descrição. Isso sugere que a definição ostensiva é um meio para se dotar um termo para espécie natural de significado. Como exemplo de definição ostensiva, Putnam oferece “Isso (esse animal) é um tigre” (onde “animal” é um “marcador semântico”, que pode ser explícito ou implícito). Naturalmente, uma definição ostensiva somente pode ser feita na presença de um membro da extensão do termo definido. Mas como podemos nos assegurar disso no caso em que o termo está sendo dotado de significado? Ou seja, como podemos identificar um membro da extensão do termo, dado que ela ainda não foi fixada? Voltaremos a essa questão mais adiante. O que importa nesse ponto é o seguinte: seja como for que consigamos fixar a extensão de um termo por meio de uma definição ostensiva, segundo (DEDS), se dois termos forem definidos ostensivamente e a definição de cada um deles fixar diferentes extensões para cada termo, então esses termos terão significados distintos, quer saibamos disso, quer não, mesmo que o estereótipo associado aos dois termos seja o mesmo. Para examinarmos essa última conseqüência, vamos imaginar uma situação contrafactual em que uma definição ostensiva fixa a extensão de um termo. (Uma situação semelhante é considerada por Putnam. Entretanto, como veremos, ele a interpreta de forma diferente da forma como será interpretada aqui.) Suponhamos que a Terra seja exatamente igual ao que era antes de termos a palavra “água” (ou qualquer sinônimo) no nosso vocabulário, exceto em um aspecto: o líquido que preenche os rios, lagos, mares, chove, ferve a 100°C e congela a 0°C ao nível do mar, etc., é, em algumas partes da Terra, H2O e, em outras partes, XYZ. Chamemos a Terra assim descrita de Terra Antiga. Os habitantes da Terra Antiga são como nós éramos antes de termos a palavra “água” (ou qualquer sinônimo) no nosso vocabulário; com os mesmos interesses e costumes. Na Terra Antiga a ciência não se desenvolveu o suficiente para poder dizer que o que preenche os rios, etc., é em parte H2O e em parte XYZ. Agora suponhamos que haja duas tribos na Terra Antiga, Alfa e Ômega. Ne20 Entretanto, “fixar a referência” não significa que, após fixada, a referência de um termo se torna imutável. “Fixar a referência” significa aqui o mesmo que “estabelecer a referência” ou “dotar de referência”. 9 nhum membro de uma tribo mantém contanto com qualquer membro da outra. Suponhamos que um membro de Alfa, A, e um membro de Ômega, B, tenham a mesma idéia: nomear o líquido que preenche os rios, etc. Na região próxima a Alfa, a única conhecida pelos membros de Alfa, há apenas H2O preenchendo os rios, etc. Na região próxima a Ômega, a única conhecida pelos membros de Ômega, há apenas XYZ preenchendo os rios, etc. Suponhamos que A coloquese solitariamente diante de uma porção de H2O e diga “Isso é água”. De modo similar, B coloca-se solitariamente diante de uma porção de XYZ e diz “Isso é água”. A primeira pergunta importante aqui é: para Putnam, esse procedimento de A e B seria suficiente para dotar “água” de significado?21 Prima facie isso não se ajusta muito bem à convicção de Putnam de que o significado tem uma natureza social, pois o procedimento de A e B não parece ter uma natureza social. Sobre essa objeção há duas coisas importantes a serem ditas. Em primeiro lugar, parece que há, sim, um componente social na definição ostensiva de A e B. Para ver isso, basta perguntar como A e B selecionaram aquilo que eles pretendiam nomear. Eles selecionaram algo que era importante não apenas para eles, como indivíduos, mas que tinha uma importância para todos os membros de Alfa e de Ômega. É razoável supor que eles selecionaram algo que todos os membros das suas tribos acreditavam (implicitamente) pertencer a um conjunto de coisas que possuem certas características comuns, embora ainda não tivessem um nome para isso. È razoável supor, portanto, que eles se basearam num estereótipo socialmente estabelecido daquele tipo de coisa. É claro que a definição ostensiva foi realizada de modo solitário. Mas ― e essa é a segunda observação sobre a objeção acima ― por que isso não poderia ser assim? O que há de errado em supor que um nome foi criado por um indivíduo que depois o ensinou aos demais membros da sua sociedade? É evidente que “água”, de acordo com o externalismo de Putnam, não tem a mesma extensão na definição de A e na definição de B e, portanto, dado (DEDS), o significado de “água” não é o mesmo para A e para B. De acordo com a definição ostensiva de A, se A aplicar o termo “água” a uma porção de XYZ, dizendo “Isso é água” ao apontar para uma porção de XYZ, por exemplo, 21 Para Kripke, esse procedimento é claramente suficiente. Doutra forma como seria possível o conhecimento a priori sobre o que é contingente? Segundo Kripke, se uma pessoa fixar a referência do termo “1 metro” apontando para a barra S e dizendo “1 metro = comprimento de S”, então ela saberá a priori, isto é, independentemente de ulteriores experiências, que S tem um metro de comprimento, embora (segundo Kripke) seja contingente que S tenha 1 metro de comprimento. E o que vale aqui para “metro”, um termo que nomeia um objeto abstrato, vale também para “ouro”, um termo para uma espécie natural. Cf. Kripke (1972), p. 135. 10 estará dizendo algo falso, pois uma porção de XYZ não possui uma relação de identidade de espécie com aquilo estava presente na sua definição ostensiva. Suponhamos agora que A e toda a tribo Alfa tenham de mudar-se do lugar onde vivem logo após A fixar a extensão de “água” e logo após A ensinar a nova palavra aos demais membros da tribo. Os membros de Alfa vão morar num lugar onde o que preenche os rios, etc. não é composto de H2O, mas de XYZ. Suponhamos que, a partir do momento em que chegaram ao novo lugar, os membros de Alfa usem “água” sempre para falar ostensivamente de porções de XYZ, que existem no novo local, e nunca para falar de porções de H2O, que existem na sua terra natal. Eles nunca dizem, por exemplo, “A água da nossa terra natal era muito melhor que essa aqui”, mas apenas coisas como “Isso é água”, “Traga-me uma porção daquela água ali”, “Essa água está gelada”, etc. Esse comportamento lingüístico é em grande medida improvável. Mas, para o presente propósito, basta que não seja impossível. O que podemos concluir da conjunção dessa possibilidade e da tese que A fixou, mesmo sem o saber, H2O como a extensão de “água”? Parece claro que disso se segue que todas as afirmações dos membros de Alfa que contêm “água” e foram feitas depois da mudança são falsas. Portanto, parece que algumas considerações externalistas sobre o que é suficiente para que um termo para uma espécie natural adquira significado implicam a possibilidade do erro maciço no uso desse termo. Howard Wettstein, ao comentar o mote das teorias da referência direta, a saber “Contato lingüístico sem contato epistêmico”, afirma: “Pretendo ficar longe de questões sobre se uma comunidade que esteja de algum modo sistematicamente enganada sobre as coisas poderia usar linguagem para falar sobre o mundo” (Wettstein (2004), p. 75, nota 1). Pois é meu objetivo aqui responder a essa questão sob a luz do externalismo de Putnam. Alguém poderia objetar que, quando a tribo Alfa mudou de lugar, o termo “água” sofreu uma mudança de extensão e, por isso, de significado. Afinal, fixar a extensão não é o mesmo que torná-la imutável. Se houve uma mudança de significado, não há erro maciço, pois, de acordo com o novo significado, as afirmações dos membros de Alfa que contém “água” não são falsas, mas verdadeiras. O problema com essa objeção é que ela não deixa clara a diferença entre um caso em que houve mudança de significado e um caso em que simplesmente se cometeu um erro, em que se disse algo falso. O que está em questão, entretanto, não é a incapacidade de se traçar um limite preciso entre os dois tipos de casos, mas a incapacidade de se traçar um limite qualquer, seja preciso seja impreciso. O que é difícil aqui é traçar um limite, mesmo que impreciso, que seja fiel ao externalismo. Nesse caso, aquilo que determina essa diferença deve ser algo externo, não-epistêmico, pois se trata de uma mudança na extensão do termo. Sem isso, dizer que houve uma mudança de extensão parece ser uma resposta ad hoc, gratuita, formulada apenas para evitar uma 11 conseqüência indesejável. Sem um limite entre mudança de significado e erro, o difícil é evitar a necessidade do acerto maciço, ou seja, o difícil é não excluir a possibilidade do erro.22 Como foi dito, Putnam considera uma situação contrafactual semelhante àquela da Terra Antiga. Ele diz: Se H2O e XYZ tivessem sido ambos abundantes na Terra, então […] teria sido correto dizer que havia duas espécies de ‘água’. E ao invés de dizer que ‘a coisa na Terra Gêmea revelou não ser realmente água’, teríamos de dizer que ‘ela revelou ser a espécie XYZ’de água. [p. 241] Aqui deveríamos perguntar: por que é o líquido que podemos encontrar em todos os oceanos, rios, lagos, etc. da Terra que determina (parcialmente) o que queremos dizer por “água” e não apenas aquele que podia ser encontrado em alguns lugares da Terra, a saber, aqueles lugares próximos de onde viviam as pessoas que batizaram esse líquido? E se nos restringíssemos a essas áreas e nelas houvesse H2O e nas demais, XYZ, como na Terra Antiga? Nesse caso, 22 Esse é um resultado curioso, pois o externalismo é algumas vezes defendido como a única alternativa para explicar a possibilidade do erro onde o internalismo tradicional parece falhar. Se o significado de “Aristóteles”, por exemplo, for determinado por um conjunto de descrições que uma pessoa associa a esse nome, dentre as quais está “o professor de Platão”, então a frase “Aristóteles é o professor de Platão” não apenas não será falsa como será analiticamente verdadeira. Entretanto, o caso dos termos para espécies naturais é diferente do caso dos nomes próprios em aspectos importantes. O erro seria possível mesmo que o significado fosse totalmente determinado pelo estereótipo. Um membro de Alfa pode julgar que uma porção de líquido é água porque possui algumas das características estereotípicas da água. Mas talvez ela não possua outras características estereotípicas da água e, por isso, não seja água. Além disso, um indivíduo pode não conhecer todas as características estereotípicas da água. Ele pode aprendê-las aos poucos de outros membros de Alfa. Talvez essa possibilidade seja dependente de um caráter social do significado. Mas mesmo que isso seja verdade, a sociedade não é um determinante externo do mesmo modo como o externalismo diz que H2O o é. Que H2O é a extensão de “água” é, segundo Putnam, algo independente de que qualquer membro de Alfa o saiba. Mas que certas características compõem o estereótipo de água é algo que não é independente de que qualquer membro de Alfa o saiba (o estereótipo tem uma natureza social e epistêmica). A sociedade é externa em relação ao indivíduo e H2O é externo em relação à sociedade (e, portanto, ao indivíduo). Por isso, se definimos externalismo semântico como a doutrina segundo a qual significados são externos no segundo sentido, parece possível ser anti-individualista sem ser externalista (cf. o final da última seção). 12 contrariamente ao que diz Putnam na passagem acima, XYZ não seria uma espécie de água. E o que dizer da situação inversa? Por que é o líquido que podemos encontrar em todos os oceanos, rios, lagos, etc. da Terra que determina (parcialmente) o que queremos dizer por “água” e não todos aqueles que podem ser encontrados em outros planetas e possuam o mesmo estereótipo? O mundo possível imaginado por Putnam pode muito bem ser o mundo atual. Se esse for o caso, por que as porções XYZ da Terra Gêmea, em 1750 não fariam parte da extensão de “água”? Porque estão muito distantes? A questão importante aqui é: o que determina que algo pertença à classe de coisas que escolhemos dar o nome de “água”? A resposta de Putnam parece ser: o estereótipo e o fato de estar na Terra. Mas qual é a razão para o segundo critério? A classe de coisas que escolhemos dar o nome “água” devia estar determinada pelo que sabíamos ou, ao menos, julgávamos saber sobre as coisas que pertencem a ela. Quais coisas? As coisas que tinham um determinado estereótipo. Era isso que tornava essas coisas importantes e, portanto, tornava importante agrupá-las em uma classe e nomeá-las.23 Portanto, parece que não tínhamos nenhuma razão para restringir a classe de coisas que queríamos nomear a coisas que somente podiam ser encontradas na Terra. Conseqüentemente, assim como haveria duas espécies de água, se H2O e XYZ tivessem sido ambos abundantes na Terra, haveria duas espécies de água, se houvesse uma Terra Gêmea à época do batismo da água.24 A reflexão acima não visa mostrar que a análise que Putnam oferece do significado termo “água” está errada. Mas visa mostrar que se ela for usada para explicar como esse mesmo termo adquiriu significado, parece que temos algumas conseqüências indesejáveis. Voltarei a esse ponto na última secção. Mas qual é o problema com a possibilidade do erro maciço? A seguir vou expor de forma bastante esquemática minha interpretação do que Wittgenstein acredita ser o problema. 4. Erro maciço e normatividade A estratégia do argumento de Wittgenstein contra a hipótese do erro maciço consiste em mostrar que ela é incompatível com a normatividade essencial da 23 Não podemos determinar o que era importante para nossos antepassados como pais que dizem que conhecem melhor a vida e, por isso, sabem o que é melhor para os seus filhos. 24 As reflexões contidas nos dois últimos parágrafos vão na mesma direção, creio, de algumas das reflexões de Eddy Zemach (1996, cf. esp. pp. 61-2). 13 linguagem.25 Se concebermos a asserção como um lance num jogo de linguagem, então o objetivo de Wittgenstein consiste em mostrar que não é possível que façamos apenas laces errados. Um modo paradoxal de se formular essa afirmação consiste em dizer: se todos os lances fossem errados, então nenhum seria errado. (Mas, como veremos, há um modo não paradoxal de formular essa afirmação.) Em uma passagem das Investigações Filosóficas, Wittgenstein expressa esse ponto da seguinte maneira: “Se pode acontecer que alguém faça uma jogada errada em um jogo, poderia ocorrer que todas as pessoas em todos os jogos não fizessem nada mais do que lances errados.” Somos porém tentados aqui a entender mal a lógica da nossa expressão, a representar a aplicação de nossas palavras incorretamente. Muitas vezes, ordens não são seguidas. O que ocorreria, todavia, se ordens nunca fossem seguidas? O conceito de “ordem” perderia sua finalidade. [Wittgenstein (1958), §345] Wittgenstein sustenta que inferir que o erro maciço é possível do fato que algumas vezes erramos é cometer um erro que é um caso especial do seguinte erro geral: concluir que algo pode ocorrer sempre do fato que ocorre algumas vezes.26 A rejeição da hipótese do erro maciço está vinculada, na filosofia de Wittgenstein, a sua rejeição da concepção realista de verdade, segundo a qual a verdade é absolutamente (a razão do advérbio será explicada adiante) independente do conhecimento. A concepção realista da verdade pode ser vista como o resultado de um caso especial da inferência de que algo pode ocorre sempre a partir da afirmação que ocorre algumas vezes: se uma proposição pode ser verdadeira (ou falsa) independentemente de que alguém saiba isso, então todas as proposições podem ser verdadeiras (ou falsas) independentemente que alguém saiba isso. Essa tese sobre a verdade implica a possibilidade do erro ma25 O conteúdo dessa secção é apresentado de modo bem mais detalhado em Machado (2006). O objetivo principal dessa secção não é exegético. Por isso, mesmo que a interpretação de Wittgenstein apresentada aqui seja questionável, mais importante é o grau de convencimento do argumento apresentado. 26 Ele inicia a passagem citada acima dizendo justamente o seguinte: “‘O que ocorre algumas vezes poderia ocorrer sempre.’ ― Que espécie de proposição é essa? É como a seguinte: se ‘F(a)’ faz sentido, então ‘(x).F(x)’ faz sentido.” (idem) De acordo com Wittgenstein, há muitos contra-exemplos da tese que se “F(a)” faz sentido, então “(x).F(x)” faz sentido. Não faz sentido pedir a alguém para escrever todos os números cardinais, embora faça sentido pedir que escreva algum número cardinal (cf. Wittgenstein (1974), p. 266). Outro exemplo é a suposição que o comportamento de alguém poderia ser sempre fingimento. 14 ciço. Por isso a rejeição dessa possibilidade é, por modus tollens, a rejeição da concepção realista da verdade. Mas a rejeição wittgensteiniana da concepção realista da verdade não está apoiada em uma redução (seja parcial, seja total) da verdade ao conhecimento. Ele não nega que, em certo sentido, a verdade seja independente do conhecimento. O que ele nega é que ela seja absolutamente independente do conhecimento, isto é, que haveria verdade mesmo que não houvesse nenhum conhecimento.27 O primeiro passo para justificar essa negação, é reconhecer alguns aspectos da relação entre a verdade e a prática de asserir. Asserir é expressar um juízo por meio do proferimento de uma frase (normalmente do modo indicativo). Julgar é considerar um pensamento ou proposição como verdadeiro. Portanto, asserir é expressar, por meio do proferimento de uma frase, o ato de considerar um pensamento como verdadeiro. Naturalmente, quando alguém mente ou é irônico, profere uma frase, mas não considera o pensamento expresso verdadeiro. Portanto, dizer a verdade não é o objetivo desses atos. Mas esses casos são logicamente derivados. Isso significa, por exemplo, que não se pode aprender a mentir (asserir não sinceramente) antes de se aprender a asserir sinceramente. Não faz nenhum sentido dizer que alguém sempre mentiu.28 Antes de aprender a mentir que p (intencionalmente levar as pessoas a acreditar falsamente que se acredita que p) por meio do proferimento de “p”, deve-se aprender a asserir (sinceramente) que p.29 Uma maneira de se formular esse ponto é dizendo que a verdade é o objetivo primitivo da asserção. Não é o seu único objetivo possível. Mas não se aprende a asserir se não se aprende a (tentar) dizer a verdade. Dizer algo falso pode apenas ser um objetivo derivado da asserção. Não se pode ensinar uma criança 27 O que está em jogo aqui é a distinção entre as seguintes teses sobre a relação entre conhecimento e verdade: Realismo do senso comum: para toda proposição “p”, é possível que “p” seja verdadeira (ou falsa) e ninguém saiba que “p” é verdadeira (ou falsa). Realismo metafísico: é possível que, para toda proposição “p”, “p” seja verdadeira (ou falsa) e ninguém saiba que “p” é verdadeira (ou falsa). É o realismo metafísico que é alvo da critica de Wittgenstein, não o realismo do senso comum. 28 E aqui temos outro contra-exemplo da tese que se “F(a)” faz sentido, então “(x).F(x)” faz sentido. 29 Em mais de uma ocasião Wittgenstein apela para reflexões sobre o que é possível na aquisição de certos conceitos a fim de exibir uma relação lógica entre eles. Ele afirma, por exemplo, que não se pode aprender a dizer “Isso parece F” antes de aprender a dizer “Isso é F” (cf. Wittgenstein (1967), §§413-425). Por isso, não é possível que tudo seja, em última análise, aparência. 15 a asserir ensinando-a a mentir ou a ser irônica. Não se pode ensiná-la a mentir usando pela primeira vez frases com nomes de cores, por exemplo, se ela não aprendeu ainda a dizer a verdade usando essas frases. Há um caso em que usamos frases da forma indicativa e não asserimos, seja sinceramente seja não sinceramente. Isso ocorre quando usamos uma frase como o antecedente de uma condicional. Mas podemos aprender a asserir condicionais apenas depois de aprendermos a asserir sinceramente frases mais simples. O objetivo de se usar um predicado é fazer asserções. Portanto, o objetivo primitivo de se usar um predicado é dizer a verdade. Deve-se primeiro aprender a dizer a verdade usando “vermelho”, por exemplo, antes que se possa mentir ou dizer ironicamente que algo é vermelho, ou antes que se possa dizer que algo é vermelho como um antecedente de uma condicional. Agora devemos examinar a relação entre o objetivo primitivo da asserção e a normatividade essencial da linguagem. Dado que é o objetivo primitivo da asserção, a verdade determina o caráter normativo essencial desse ato lingüístico. Uma atividade é normativa se, e somente se, pode-se (faz sentido) avaliá-la como correta ou incorreta. Em outras palavras: uma atividade é normativa se, e somente se, segue-se regras ao se realizá-la.30 Se A é uma atividade normativa, então faz sentido dizer que se faz A corretamente ou incorretamente. Ela é realizada corretamente porque (embora não apenas porque) é realizada de acordo com a regra ou as regras que são constitutivas de A. Ela é realizada incorretamente quando se está tentando, sem sucesso, seguir essas regras. Mas fazer algo de acordo com essas regras não é suficiente para seguí-las, pois isso poderia ocorrer por acidente. Deve-se de algum forma tentar intencionalmente seguí-las. Nesse sentido, uma máquina (um relógio, p.ex.) e fenômenos naturais não-intencionais (a rotação da Terra, p.ex.) não podem seguir regras, embora possam fazer coisas de acordo com elas, isto é, embora possam fazer 30 Ian Hanfling diz que “[u]ma ação, ou um modo de proceder, pode ser correto ou incorreto por uma variedade de razões, algumas envolvendo regras, outras não.” (Hanfling (1989), p. 148) Se o que ele quer dizer é que uma ação pode ser correta ou incorreta mesmo quando nada como o que Wittgenstein chamou de regra estrita está envolvido (cf. Wittgenstein, (1975b), p. 25), isto é, uma regra que determina condições necessárias e suficientes para o uso de uma expressão, então ele está correto. Mas não há nenhuma razão pela qual uma toda regra deveria ser uma regra estrita. Não há tampouco razão pela qual uma regra deveria poder ser formulada em uma frase. Pode-se explicar uma regra por meio de exemplos, por meio de uma série de aplicações da regra. Regras estritas são apenas um dos membros da família de regras. 16 coisas regularmente. É possível que sigamos regras “mecanicamente”. Mas esse, novamente, é um caso derivado. Pode-se tocar o piano mecanicamente porque se aprende não mecanicamente a tocá-lo. Finalmente, seguir uma regra não é o mesmo que seguí-la infalivelmente. Pode-se seguir uma regra cometendo-se alguns erros. E não há nenhuma razão para pensar que existe uma fronteira precisa entre seguir uma regra cometendo erros e não seguí-la. Em relação ao objetivo primitivo da asserção, assere-se corretamente se diz-se a verdade. Caso contrário, assere-se incorretamente. A regra primitiva geral que seguimos ao asserir é, portanto: (PR) Diga que p apenas se p. Se alguém está tentando mentir, por exemplo, então não está tentando seguir (PR). Mas a possibilidade de mentir é dependente da habilidade de seguir (PR). Dado que o objetivo primitivo de se usar um predicado é asserir, um predicado é usado corretamente se é usado para dizer a verdade, caso contrário é usado incorretamente. Vejamos agora a relação, segundo Wittgenstein, entre normatividade e significado. É bem sabido que, para Wittgenstein, o significado está essencialmente relacionado à normatividade.31 Esse ponto é normalmente expresso naquelas passagens nas quais ele diz que o significado de uma expressão é o seu uso.32 Muitas dessas passagens mostram que um aspecto central do que ele chama de “uso” é sua normatividade.33 Felizmente, no caso de haver qualquer dúvida sobre isso, há uma passagem em que Wittgenstein o diz explicitamente: “Agir de acordo com a regra é FUNDAMENTAL para nosso jogo de linguagem. Isso caracteriza o que chamamos descrição” (Wittgenstein (1996), p. 330). Portanto, se o uso significativo de uma expressão é um uso normativo, no sentido recém explicado, então conhecer o significado de uma expressão envolve conhecer as regras que determinam o uso significativo dessa expressão. E “conhecer as regras” envolve aqui ser capaz de distinguir as ações que estão de acordo com as regras daquelas que não estão. Isso implica que se deve ser capaz de seguir essas regras? É claro que há casos em que se sabe quais ações estão de acordo com uma dada regra, embora não se seja capaz de seguí-la, de realizar essas ações. Isso ocorre quando conhecemos a regra, digamos, “por 31 Saul Kripke enfatiza esse ponto no seu livro sobre Wittgenstein (cf. Kripke (1982), e Boghossian (1989)). 32 Cf. Wittgenstein (1996), p. 257; (1974), p. 65; (1975b), p. 4; (1958), §43. 33 Cf. Wittgenstein (1974), p. 53; (1975b), p. 11; (1958), §§207-208, 558. 17 descrição”. Mas creio que, de acordo com Wittgenstein, este é um outro exemplo do que poderia acontecer algumas vezes, mas não sempre. A capacidade de conhecer regras que não se é capaz de seguir pressupõe a habilidade de seguir regras. Para parafrasear Russell, para conhecer uma regra “por descrição”, deve-se conhecer outras “por familiaridade”. Sendo assim, a posse de conhecimento semântico envolve a habilidade de seguir regras semânticas.34 Portanto, dado que, no sentido explicado acima, alguém usa um predicado corretamente se o usa para dizer a verdade, caso contrário o usa incorretamente, entender o significado de um predicado envolve, em casos primitivos, a habilidade de seguir as regras que determinam seu significado, isto é, envolve a habilidade de dizer a verdade usando o predicado. Se se é incapaz de dizer a verdade usando o predicado, então não se compreende o predicado, a menos que seja um predicado cujo significado aprendeu-se “por descrição”. Mas esse não é o caso de certos conceitos fundamentais tais como conceitos de cores e os números, por exemplo. Vamos olhar esse ponto mais de perto examinando alguns exemplos. Imagine que alguém diga “A neve é preta” enquanto olha para a neve. Talvez esteja brincando ou esteja usando uma das palavras da frase, ou todas elas, em um sentido incomum. Mas suponha que perguntamos a essa pessoa sobre isso e ela diz que nada disso é o caso. Isso não mostraria que, afinal, a despeito das aparências, ela não compreende alguma palavra da sua frase ou mesmo nenhuma delas? Em uma passagem de Zettel, que é paralela à passagem das Investigações citada acima, Wittgenstein nota que esse ponto pode ser expresso paradoxalmente: Como pode ser que o sentido e a verdade (ou a verdade e o sentido) das proposições colapsem ao mesmo tempo? (Mantenham em pé ou derrubem um ao outro?). 34 Horwich (2002) argumenta que nem a verdade nem o significado são intrinsecamente normativos, embora tenham uma importância (import) normativa. É desejável acreditar no que é verdadeiro, mas não porque a verdade em si mesma seja normativa. Horwich formula a importância normativa da verdade e do significado por meios de duas teses: “(T) É desejável acreditar apenas no que é verdadeiro” e “(M) Se uma sentença significa que cães latem, é desejável aceitá-la apenas se cães latem; e se uma sentença signifca que matar é errado, devemos almejar aceitá-la apenas se matar é errado… e assim por diante”. (p.135) Se Wittgenstein está correto, então Horwich está errado, pois, como vimos, devemos almejar a verdade não porque elas seja útil, mas porque de outra forma seriamos incapazes de aprender a asserir. 18 E não é como se quiséssemos dizer: “Se isso e aquilo fosse o caso, então não faria sentido dizer que é o caso”? Assim, p.ex.: “Se todos os lances fossem falsos, não faria nenhum sentido falar de um ‘movimentos falso’”. Mas esse é apenas um modo paradoxal de formular. O modo não paradoxal seria: “A descrição geral… não faz nenhum sentido”. [Wittgenstein (1967), §§131-3] O paradoxo mencionado por Wittgenstein é o seguinte: como pode a frase “Todos os As são Bs” não fazer sentido no caso em que for verdadeira? Uma frase não deveria fazer sentido para que fosse verdadeira? Wittgenstein diz que a fim de expressar o ponto sem paradoxo, dever-se-ia dizer que “Todos os As são Bs” não faz sentido e, portanto, não expressa nenhuma possibilidade. Ele expressa esse ponto também de outro modo, através do conceito de erro: algumas vezes, quando não se diz a verdade por meio de uma frase, mesmo quando se almeja dizer a verdade, não é o caso que se esteja cometendo um erro; não porque haja algum espaço entre estar errado e estar correto, mas porque algumas vezes a incorreção é devida a nossa falta (duradoura ou momentânea) de habilidade para seguir as regras relevantes. É verdade que, nesses casos, nós, que temos essa habilidade, podemos dizer que a frase em questão, “A neve é preta”, por exemplo, é falsa. Mas isso não se deve ao fato de essa frase ser significativa na boca daquele que não sabe seguir as regras relevantes, mas porque nós sabemos como fazê-lo e, portanto, sabemos que dizer que a neve é preta é dizer algo que não está de acordo com (PR). A expressão “falsa”, nesse contexto, significa meramente que se está dizendo algo que não está de acordo com as regras relevantes. Encontramos esse uso de “falso” também na avaliação de frases nas quais se comete o que se costuma chamar de “erro categorial”. Por exemplo: poder-se-ia dizer que a frase “Meu pensamento tem um metro” é falsa. Mas ela não seria falsa porque meu pensamento tem outra extensão. Se alguém disser que meu pensamento tem um metro, não estará errado sobre a extensão do meu pensamento, mas simplesmente não saberá usar uma ou todas as palavras da frase “Seu pensamento tem um metro”. Sendo assim, dizer que essa frase é falsa não é expressar a crença de que meu pensamento não tem um metro. O que a frase “Meu pensamento não tem um metro” poderia significar, exceto que não faz sentido dizer que meu pensamento tem um metro? Dizer que a neve é preta não é cometer um erro categorial. Não obstante, tal como erros categoriais, isso mostra que o falante não sabe como usar alguma palavra ou todas as palavras da frase. Mas se uma pessoa não sabe como usar uma palavra, então, a despeito das aparências em contrário, quando ela a usa, essa palavra não tem significado. Mas se ela não tem significado, então a frase em que a palavra é usada não tem sentido e, portanto, não é nem verdadeira 19 nem falsa. Bem, talvez haja uma diferença gradativa aqui entre habilidade máxima para usar uma palavra e a incapacidade total de usá-la corretamente. Mas não devemos perder o foco da nossa investigação: a possibilidade do erro maciço. Se o erro maciço fosse o caso no uso de um predicado, então não há dúvida que aquele que usa esse predicado é totalmente incapaz de usá-lo corretamente. Nesse caso, todas as frases nas quais ele usa esse predicado seriam desprovidas de sentido. Agora estamos em condição de sumariar o argumento de Wittgenstein contra a possibilidade do erro maciço (e contra a concepção realista de verdade, se ela implica essa possibilidade). Vimos que dizer a verdade é o objetivo primitivo da asserção e que o objetivo de se usar um predicado é asserir. Disso se segue que o objetivo primitivo de se usar um predicado é dizer a verdade. Vimos também que um predicado é usado corretamente quando é usado para dizer a verdade. Pode-se então concluir que se um predicado nunca é usado para dizer a verdade, então nunca é usado corretamente. Mas, se um predicado nunca é usado corretamente, então nunca é usado com sentido. Portanto, se um predicado nunca é usado para dizer a verdade, então nunca é usado com sentido. Ora, se o erro maciço fosse o caso no uso de um predicado, então esse predicado nunca seria usado para dizer a verdade e, portanto, nunca seria usado com sentido. Mas se nunca fosse usado com sentido, as frases em que fosse usado não seriam nem verdadeiras nem falsas. Portanto, ou as frases que usamos para asserir têm sentido, mas nem todas (nem a maior parte) das nossas asserções são falsas, ou toda vez que usamos uma frase com o objetivo de asserir não dizemos algo verdadeiro, mas tampouco dizemos algo falso. Em qualquer dos dois casos, o erro maciço, a falsidade de todas ou da maioria das nossas asserções, está descartada. 5. Compreensão parcial Vamos agora reexaminar o experimento da Terra Antiga com base nos resultados da secção anterior. Como vimos, o erro maciço no uso de um termo é possível em alguns casos, quando a regra de uso desse termo é conhecida “por descrição”. Mas esse não é o caso do uso de “água” por parte dos membros de Alfa. Esse termo foi dotado de significado (e, portanto, sua extensão foi fixada) e esse significado foi ensinado por meio de definições ostensivas. Entretanto, dado o externalismo, o erro maciço seria possível mesmo nesse caso. O externalista poderia replicar do seguinte modo. Dado que a extensão determina apenas parcialmente o significado de “água”, e dado que podemos ter 20 uma compreensão parcial do significado desse termo, na medida em que podemos conhecer o estereótipo associado a ele, podemos dizer que os membros de Alfa conhecem parcialmente o significado de “água”, mesmo no caso em que ignoram sua extensão e cometem um erro maciço ao usar o termo. Mas para que essa réplica fosse aceitável, não poderia haver erro maciço na aplicação dos critérios para “água”, na identificação de porções de água a partir do seu estereótipo. Entretanto, se lembrarmos do esforço de Putnam para evitar as criticas de Quine à analiticidade, veremos que o erro maciço não está excluído do uso do termo baseado no estereótipo. Na secção de “The Meaning of ‘Meaning’” em que Putnam procura mostrar que as críticas de Quine à analiticidade não atingem sua teoria do significado, ele afirma algo que parece confirmar o que se acaba de dizer sobre a possibilidade do erro maciço no uso de um termo baseado no estereótipo: Em nossa opinião há um sentido perfeitamente bom em que ser listrado é parte do significado de ‘tigre’. Mas não se segue, em nossa opinião, que ‘tigres são listrados’ é analítico. Se uma mutação ocorrer, todos os tigres podem ser albinos. A comunicação pressupõe que eu tenha um estereótipo dos tigres que inclui listras, e que sei que seu estereótipo inclui listras, e que você sabe que meu estereótipo inclui listras, e que você sabe que eu sei… (e assim por diante, à la Grice para sempre). Mas ela não pressupõe que qualquer estereótipo particular seja correto, ou que a maioria de nossos estereótipos permaneça correta para sempre. A obrigatoriedade lingüística não deveria ser um indicador de irrevisabilidade ou mesmo de verdade; assim podemos sustentar que ‘tigres são listrados’ é parte do significado de ‘tigre’ sem cairmos no problema da analiticidade. [p. 256] Em uma outra passagem, Putnam formula esse ponto de maneira geral: O fato de que um aspecto (p.ex., listras) está incluído no estereótipo associado à palavra X não significa que é uma verdade analítica que todos os Xs têm esse aspecto, nem que a maioria dos Xs têm esse aspecto, nem que todos os Xs normais têm esse aspecto, nem que algum X tem esse aspecto. [p. 250] Essas passagens parecem indicar que, embora seja necessário ter certas crenças estereotípicas para conhecer o significado de um termo para uma espécie natural, essas crenças não necessitam ser verdadeiras. Entretanto, em uma outra passagem, no final da secção que visa explicar o que são os estereótipos, Putnam parece dizer algo diferente: “O fato é que dificilmente [hardly] poderíamos conseguir nos comunicar se a maioria dos nossos estereótipos não fossem bem acurados tanto quanto eles podem ser [as far as they go].” (p. 251) Mas a afirmação de Putnam é fraca: ele diz “dificilmente poderíamos”, e não um 21 categórico “não poderíamos”; como se a questão aqui fosse chamar atenção para algo improvável, mas não impossível. Se essa interpretação está correta, ainda restaria por explicar por que isso é improvável, dado que não é impossível. Em uma outra passagem, Putnam parece dizer algo mais forte: Suponha que nosso hipotético falante aponte para uma bola de neve e pergunte ‘Isso é um tigre?’. Claramente não há muito sentido em se falar de tigres com ele. Comunicação significativa exige que as pessoas saibam alguma coisa a respeito daquilo sobre o que elas estão falando. […] O que sustento é que é exigido dos falantes que eles saibam alguma coisa sobre tigres (estereotípicos) a fim de que se considere que tenham adquirido a palavra ‘tigre’… …A comunidade lingüística também tem seus padrões mínimos com respeito à sintaxe e à ‘semântica’. [pp. 248-9] Mas o que Putnam diz aqui apenas parece mais forte do que ele diz na última passagem citada. O que mostra que não se trata de uma afirmação mais forte é a palavra “estereotípicos” entre parêntesis. Putnam está dizendo que se exige do falante que ele saiba que certas crenças são consideradas verdadeiras sobre aquilo de que se está falando (e que o próprio falante tenha essas crenças). Mas isso é diferente de dizer que se exige do falante que ele saiba que certas crenças são verdadeiras sobre aquilo de que se está falando. Portanto, o que se exige, segundo Putnam, é que o falante saiba algo não sobre aquilo de que ele está falando, mas sobre certas crenças que se tem sobre aquilo de que ele está falando. A atitude que se exige que o falante tenha com relação àquilo de que ele está falando é a de ter certas crenças, que, como mostram as outras passagens citadas, podem muito bem serem falsas. Enfim, parece que para excluir a possibilidade do erro maciço, Putnam deveria reconhecer uma relação necessária entre a verdade de ao menos algumas crenças estereotípicas e o conhecimento do significado. Mas dado que ele explicitamente rejeita essa alternativa porque quer evitar as críticas de Quine à analiticidade, parece que ele não pode excluir a possibilidade do erro maciço no nível dos estereótipos. E se ele não pode excluir a possibilidade do erro maciço no nível da extensão, então ele não pode excluí-la de modo algum. Parece que, para sustentar que, mesmo assim, o conhecimento do significado é possível, dever-se-ia abandonar a tese que o significado é normativo. 22 6. Conclusão: Wittgenstein e o externalismo Como Wittgenstein interpretaria o experimento da Terra Antiga? Para Wittgenstein não houve mudança de significado na mudança da tribo Alfa. O significado é determinado pelos critérios de aplicação do termo “água”, que, naquele contexto, é exaurido pelo estereótipo de água. Mas como Wittgenstein explicaria o fato de atualmente delegarmos aos cientistas a tarefa de determinar o que é água? Ou seja, como Wittgenstein daria conta da divisão social do trabalho lingüístico? Creio que ele diria que quando se descobriu que boa parte dos membros da extensão de “água” (que era determinada pelo estereótipo) tinha a estrutura H2O, percebeu-se que isso permitia fazer previsões muito úteis. Essa descoberta revelou que seria útil adotar H2O como um novo critério para o uso de “água”. Desse modo, ocorreu uma mudança de significado, com o preço de excluir da extensão de “água” algumas coisas que, de acordo com o critério antigo, a ela pertenciam. Daí em diante, no que respeita aos interesses para os quais é útil usar H2O como critério de “água”, a sociedade delega a certos especialistas a tarefa de determinar o que é e o que não é água, a tarefa de corrigir o uso que os demais fazem do termo “água”.35 Putnam examina e rejeita uma visão do significado semelhante à de Wittgenstein. 35 Mas, deve-se ter cuidado aqui. Como bem aponta Anthony Rudd, é empiricamente falso que em todos os usos de “água” estejam em jogo os interesses para os quais é útil usar H2O como critério de “água”. Também é empiricamente falso, como o próprio Putnam reconheceu anos depois da publicação de “The Meaning of ‘Meaning’”, que dentro da ciência haja sempre apenas um único interesse orientando o uso classificatório da linguagem. Cf. Rudd (1997), pp. 504ss, e Putnam (1994). Putnam recentemente vem defendendo um relativismo conceitual por meio do seu assim chamado “argumento da mereologia”. O relativismo conceitual é a teoria segundo a qual há diferentes maneiras legítimas de se descrever o mundo que têm diferentes pressupostos ontológicos, sendo a escolha entre essas maneiras de descrever o mundo uma questão de escolha entre diferentes convenções. Dessa forma, a questão sobre o que existe torna-se dependente de uma escolha dentre convenções lingüísticas alternativas (cf. Putnam (2005), cap. 2). Esse parece ter sido um afastamento radical do realismo de “The Meaning of ‘Meaning’”. Entretanto, não é claro se esse foi um afastamento suficiente para o abandono do essencialismo realista das espécies naturais sustentado em “The Meaning of ‘Meaning’”. Seja como for, parece que, para isso, bastaria aplicar o relativismo conceitual à história das mudanças de critérios da aplicação de um termo para espécie natural. 23 A visão alternativa é que ‘ouro’ significa o que quer que satisfaça a ‘definição operacional’ contemporânea de ouro. ‘Ouro’, há um século, significava o que quer que satisfizesse a ‘definição operacional’ de ouro em uso há um século; ‘ouro’ agora significa o que quer que satisfaça a definição operacional de ouro em uso em 1973; e χρυσός significava o quer que satisfizesse a definição operacional de χρυσός então em uso. [p. 235] Putnam afirma que essa posição, anti-realista, é motivada por um “ceticismo sobre a verdade” (idem) e por “um desgosto por hipóteses inverificáveis” (p. 237). Ele afirma que, de acordo com essa posição, “faz pouco sentido dizer que o que está na extensão do termo de Arquimedes χρυσός deve ser determinado usando nossa teoria.” (p. 236) E isso tornaria a “comunicabilidade dos resultados científicos um milagre” (p. 237). Essa comunicabilidade, segundo Putnam, somente é possível se os critérios de uso dos termos teóricos forem não condições necessárias e suficientes, mas ao invés disso caracterizações aproximadamente corretas de algum mundo de entidades independentes de teorias. Em minha opinião, a hipótese de que isso é correto é a única hipótese que pode dar conta da comunicabilidade dos resultados científicos, da clausura das teorias científicas aceitáveis sob a lógica de primeira ordem, e de muitos outros aspectos do método científico. [idem] Não creio que a posição examinada por Putnam tenha as conseqüências que ele alega. Mesmo que não se possa determinar o que está na extensão do termo de Arquimedes χρυσός usando nossa teoria, disso não se segue que não se possa relatar a descoberta científica que fez com que adotássemos a estrutura molecular tal e tal como critério de “ouro”, de um modo que o próprio Arquimedes entenderia e aprovaria. Voltando ao exemplo da água, suponhamos que uma determinada porção de líquido, L, que tem o estereótipo de água, não seja composta de H2O. De acordo com a teoria criticada por Putnam, a afirmação de Arquimedes “L é água” (em grego) e a nossa afirmação “L é água” seriam ambas verdadeiras. Dado que a verdade aqui não transcende as teorias (não é realista), Putnam conclui que não se pode explicar por que se passou a adotar H2O como critério para “água”. Mas há um fato que pode ser descrito em qualquer das teorias: a maior parte do que se encontrava na classe de coisas que se chamava “água” é composta de H2O. Tanto realistas quanto anti-realistas concordarão com isso. O realista, entretanto, dirá que essa classe de coisas não é a extensão de “água”, pois ela inclui coisas que não são compostas de H2O. O anti-realista dirá que essa classe de coisas é a extensão de “água” e que a adoção de H2O como critério de “água” muda o significado e a extensão de “água”. Mas essa mudança de significado, dirá o anti-realista, é apoiada pela 24 grande utilidade que tem e, ele poderá acrescentar, essa utilidade se deve, ao menos em parte, a como o mundo é: a maior parte do que se encontrava na classe de coisas que se chamava “água” é composta de H2O. Isso é uma descoberta científica importante.36 O que parece não ser comunicável, do ponto de vista anti-realista, é uma descrição realista dessa descoberta, mas não a própria descoberta. Portanto, o anti-realista pode admitir que uma “mudança de significado pode ser forçada por descobertas empíricas” (p. 256), sem necessitar descrever a adoção de H2O como critério de “água” de modo realista. Como disse na introdução, creio que o externalismo de “The Meaning of ‘Meaning’” é incompatível com o que Wittgenstein chama de “autonomia da gramática”. Não credito que, para Wittgenstein, a linguagem tenha uma natureza essencialmente social, no sentido em que isso exclui a possibilidade de uma linguagem solitária (cf. nota 8). A publicidade da gramática é, certamente, um elemento, digamos, anti-cartesiano da filosofia da linguagem de Wittgenstein. Nesse sentido, Wittgenstein concorda que os significados (e a significação, ato de dotar uma expressão de significado) não estão “na cabeça”. No entanto, “público” não é sinônimo de “social”. Mas mesmo que se admita que, para Wittgenstein, a linguagem tenha uma natureza essencialmente social, ele também afirma que a gramática é autônoma (ou “arbitrária”). A gramática não presta contas a nenhuma realidade [Wirklichkeit]. Regras gramaticais determinam antes de tudo o significado (constituem-no) e, portanto, não prestam contas a nenhum significado e, nesse sentido, são arbitrárias. [Wittgenstein (1974), p.184] Está-se tentado a justificar as regras da gramática dizendo, por exemplo: ‘mas há afinal realmente 4 cores primárias’. E é contra essa possibilidade de justificação que nos dirigimos quando dizemos que as regras da gramática são arbitrárias.” [Wittgenstein (1974), pp. 185-6] Mesmo que seja social, “[a] gramática não presta contas a nenhuma realidade”, e, nesse sentido, não é determinada por nada exterior à sociedade, como o externalista pensa que H2O determina o significado de “água”. O conflito entre a filosofia da linguagem de Wittgenstein e o externalismo de “The Meaning of ‘Meaning’” aparece de forma mais vívida em uma passagem de Zettel: 36 Panu Raatikainen, afirma que, de acordo com o anti-realismo, “não é claro do que é a constituição química que foi descoberta [learned]”. (Raatikainen, nota 3) Ora, diria o anti-realista, foi descoberta a constituição química da maior parte do que se chamava “água”. 25 Nada é mais comum do que o significado de uma expressão oscilar, um fenômeno ser considerado algumas vezes como sintoma, algumas vezes como critério de um estado de coisas. E na maior parte das vezes em tais casos a mudança não é notada. Na ciência é normal tornar fenômenos que permitem medição exata critérios para uma expressão; e então se fica inclinado a pensar que agora o verdadeiro significado [egentliche Bedeutung] foi encontrado. Inúmeras confusões têm surgido desse modo. [Wittgenstein (1967), §438] É difícil compreender como passagens como essas poderiam ser acomodadas pelas interpretações da filosofia da linguagem de Wittgenstein que procuram conciliá-la com o externalismo de “The Meaning of ‘Meaning’”. Quanto ao externalismo de Davidson, essa é uma discussão para uma próxima oportunidade.37 Bibliografia Boghossian, P. (1989). “The Rule-Following Considerations”, Mind, vol. 98, n. 392, pp. 507-549. Burge, T. (1979) “Individualism and the Mental”, in P.A. French, T.E. Uehling, Jr e H.K. Wettstein (eds.) Midwest Studies in Philosophy, vol. 4, Minneapolis, MN: University of Minnesota Press. Hanfling, Oswald. (1989). Wittgenstein’s Later Philosophy. London: MacMillan. Horwich, P. (2002) “Norms of Truth and Meaning”. in: Schantz, R. (ed.) What is Truth? Berlin: Walter de Gruyter, pp. 133-145. Kripke, Saul. (1972). Naming and Necessity. Oxford: Basil Blackwell. ____. (1982). Wittgenstein on Rules and Private Language. Oxford: Blackwell. ____. (1972). Naming and Necessity. Oxford: Basil Blackwell. Machado, A.N. (2006) “Conhecimento e Verdade em Wittgenstein”, não publicado. ____. (2004) Lógica e Forma de Vida: Wittgenstein e a Natureza da Lógica e da Filosofia. Tese de Doutorado. Porto Alegre: UFRGS. McCulloch, Gregory. (1995) The Mind and Its World. London: Routledge. 37 Agradeço a Rogério Severo, César Schirmer dos Santos, Jônadas Techio, Waldomiro J. da Silva Filho, Ana Paula Döhler Machado e, principalmente, a Giovani Felice por comentários e criticas à primeira versão desse texto. 26 Pessin, A. & Goldberg, S. (eds.) (1996) The Twin Earth Chronicles. Twenty ears of reflection on Hilary Putnam’s “The Meaning of ‘Meaning’”. New York/London: M.E. Sharpe. Pettit, P. (1983). “Wittgenstein, Individualism and the Mental”, in Weingartner, P. & Czermak, J. (ed.) Erkenntnis und Wissenschaftstheorie, Akten des Internationalen Wittgenstein Symposiums, Wien: Hölder-PichlerTempsky, pp.446-455. Putnam, H. (2005) Ethics Without Ontology. Cambridge/MA: Harvard University Press. ____. (1996) “Introduction” in Pessin, A. & Goldberg, S. (eds.) (1996), pp. xvxxii. ____. (1994) “Aristotle after Wittgenstein”. in Words and Life. Cambridge/ Massachusetts: Harvard University Press, pp. 54-79. ____. 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