Julio França
(Org.)
Simpósios 2
O medo como prazer estético:
o insólito, o horror e o sublime nas narrativas iccionais
INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS
Anais do VII Painel
Relexões sobre o insólito na narrativa iccional
II Encontro Nacional
O insólito como questão na narrativa iccional
Rio de Janeiro
2011
FICHA CATALOGRÁFICA
J801i
Insólito, mitos, lendas, crenças – Anais do VII
Painel Reflexões sobre o Insólito na narrativa
ficcional/ II Encontro Regional Insólito como
Questão na Narrativa Ficcional – Simpósios 2/
Júlio França (org.) – Rio de Janeiro: Dialogarts,
2011.
Publicações Dialogarts - Bibliografia
ISBN 978-85-86837-XX-X
1. Insólito. 2. Gêneros Literários. 3. Narrativa
Ficcional. 4. Literaturas. I. García, Flavio. II.
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. III.
Departamento de Extensão. IV. Título
CDD 801.95
809
Correspondências para:
UERJ/IL/LIPO – a/c Darcilia Simões ou Flavio García
Rua São Francisco Xavier, 524 sala 11.023 – B
Maracanã – Rio de Janeiro – CEP 20 569-900
[email protected]
Copyrigth @ 2011 Júlio França
Publicações Dialogarts
(http://www.dialogarts.uerj.br)
Coordenador do volume:
Flavio García – flavgarc@gmail
Coordenadora do projeto:
Darcilia Simões –
[email protected]
Co-coordenador do projeto:
Flavio García –
[email protected]
Coordenador de divulgação:
Cláudio Cezar Henriques –
[email protected]
Organizador:
Júlio França
Diagramação e projeto de capa:
Elisabete Estumano Freire –
[email protected]
Supervisão de arte –capa e folha de rosto:
Carlos Henrique Braga Brandão –
[email protected]
Marcos da Rocha Vieira –
[email protected]
O TEOR DOS TEXTOS PUBLICADOS NESTE
VOLUME, QUANTO AO CONTEÚDO E À FORMA, É
DE INTEIRA E EXCLUSIVA RESPONSABILIDADE DE
SEUS AUTORES.
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Educação e Humanidades
Instituto de Letras
Departamento de Língua Portuguesa,
Literatura Portuguesa e Filologia Românica
UERJ – SR3 – DEPEXT – Publicações Dialogarts
2011
VII Painel Reflexões sobre o Insólito na narrativa ficcional
II Encontro Regional O Insólito como Questão na Narrativa Ficcional
Insólito, Mitos, Lendas, Crenças
Instituto de Letras da UERJ, 29, 30 e 31 de março de 2010
Miniauditório do Bloco D, 11 andar, Pav. João Lira Filho
Campus Maracanã
Uma realização do SePEL.UERJ
Seminário Permanente de Estudos Literários da UERJ
Atividade do Grupo de Pesquisa/ Diretório CNPq
Estudos Literários: Literatura; outras linguagens; outros discursos
Coordenação:
Flavio García
Marcello de Oliveira Pinto
Regina Michelli
Parcerias:
Publicações Dialogarts
(http://www.dialogarts.uerj.br)
LABSEM/ FAPERJ – Laboratório Multidisciplinar de Semiótica
(http://www.labsem.uerj.br)
NDL – Núcleo de Desenvolvimento Linguístico
(http://programandl.blogspot.com)
CiFEFil – Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos
(http://www.filologia.org.br)
Articulações com Grupos de Pesquisa/ Diretório CNPQ:
Estudos Literários: Literatura; outras linguagens; outros discursos
(http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalhegrupo.jsp?grupo=0326802VKL7YRI)
Estudos da Linguagem: discurso e interação
(http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalhegrupo.jsp?grupo=20198023EOV5HQ)
Semiótica, leitura e produção de textos – SELEPROT
(http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalhegrupo.jsp?grupo=0326802KF6LE99)
Crítica Textual e Edição de Textos
(http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalhegrupo.jsp?grupo=0326801CJERBHT)
Apoios:
Direção do Instituto de Letras
Coordenação Geral do Programa de Pós-Graduação em Letras
Coordenação do Mestrado em Literatura Portuguesa
Coordenação da Especialização em Literatura Portuguesa
Chefia do Departamento de Língua Portuguesa, Literatura Portuguesa e Filologia Românica
Coordenações dos Setores Acadêmicos de Literatura Portuguesa e de Língua Portuguesa
SUMÁRIO
Apresentação: .............................................................................................................................................................................6
SIMPÓSIO ‐ O medo como prazer estético: O insólito, o horror e o sublime nas narrativas
ficcionais
Sob o signo de Plutão: digressão sobre os limites do horror e do terror ...................... 12
Anderson Pires da Silva
O tema da travessia: não tema, no portal está o poético ............................................. 20
Célia Regina de Barros Mattos
Medo e estranhamento na literatura infantil: estratégias narratológicas e recursos
estéticos para arrepiar os leitores ................................................................................ 29
Daniela BUNN
Entre devires e afetos: o terror como impossibilidade da escrita
em Rubens Figueiredo .................................................................................................... 36
Gabriel Cid de Garcia
Medo e miséria em “Crianças à venda. Tratar aqui”..................................................... 49
Jorge Amaral
Fontes e sentidos do medo como prazer estético ......................................................... 58
Júlio FRANÇA
Medo e morte em Álvares de Azevedo, Guy de Maupassant e Edgar Allan Poe ......... 68
Karla Menezes Lopes NIELS
Vitimas e algozes do medo no conto “Feliz Ano Novo”, de Rubem Fonseca ............... 79
Luciano CABRAL
O detalhe como ornatus e o medo do outro em "O coração denunciador" ............... 87
Paloma LIMA
Os reflexos do medo nas personagens de “O bloqueio”, de Murilo Rubião e“Medo da
eternidade”, de Clarice Lispector. .................................................................................. 94
Thalita Martins Nogueira
6
APRESENTAÇÃO:
A história, ainda recente, dos Painéis “Reflexões sobre o Insólito na narrativa
ficcional”, agora em sua sétima edição, coincidindo com a realização do I Encontro
Regional do Insólito como Questão na Narrativa Ficcional, tem sua gênese na criação
do Grupo de Pesquisa Estudos Literários: Literatura; outras linguagens; outros
discursos 1 cadastrado no Diretório de Grupos do CNPq em 2001.
Respondia-se a uma exigência da UERJ – Universidade do Estado do Rio de
Janeiro – para que seus professores doutores pudessem desenvolver atividades
correlacionadas à pesquisa, solicitar determinadas modalidades de bolsas e auxílios
variados. Atendendo a essa exigência, um grupo de professores de literaturas, do
Departamento de Letras da FFP – Faculdade de Formação de Professores – da UERJ,
campus São Gonçalo, reuniu-se e, dessa reunião, originou-se o Grupo. Participaram
daquele momento fundador Maria Alice Pires Cardoso de Aguiar, hoje aposentada e, na
gênese, líder do Grupo; Flavio García, atual líder, na época da fundação, vice-líder;
Fernando Monteiro de Barros, já vice-líder, após a aposentadoria de Maria Alice, hoje
integrando outro grupo; e Regina Michelli, colaborada ativa até os dias atuais.
Diante da necessidade de o Grupo promover ações efetivas de pesquisa e
divulgá-las para a Universidade e a sociedade em geral, surgiu, em 2002, como projeto
de extensão universitária, o SePEL.UERJ – Seminário Permanente de Estudos
Literários da UERJ 2 , promovendo cursos livres e pequenos eventos acadêmicos, na
expectativa de, inicialmente, dar unidade às pesquisas individuais dos integrantes do
Grupo. Entre os objetivos expressos na instalação do SePEL.UERJ já despontavam,
além dos cursos livres e pequenos eventos, a publicação de um periódico e de títulos
temáticos e a realização de eventos aglutinadores de maior porte.
Em junho 2006, em parceria com o Publicações Dialogarts, outro projeto de
extensão da UERJ 3 , foi lançado o número 1 do CaSePEL – Cadernos do Seminário
Permanente de Estudos Literários (ISSN 1980-0045) 4 , reunido artigos oriundos de
1
(Hhttp://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalhegrupo.jsp?grupo=0326802VKL7YRIH),
2
(Hhttp://www.sepel.uerj.brH)
3
(Hhttp://www.dialogarts.uerj.brH)
4
(Hhttp://www.dialogarts.uerj.br/casepel.htmH)
7
aulas dadas em cursos livres anteriormente oferecidos. De lá para cá, o periódico
migrou para a publicação de números temáticos, privilegiando os projetos de pesquisa
dos membros de sua equipe, com dois números anuais, um para cada semestre.
A aposentadoria de Maria Alice, a passagem de Fernando Monteiro de Barros
para outro Grupo de Pesquisa em que seus projetos encontravam maior aderência e a
transferência de Flavio García da FFP para o Instituto de Letras no campus Maracanã,
fragilizaram as ações do projeto, implicando a suspensão dos cursos livres e de eventos.
No segundo semestre de 2006, aproveitando o engajamento de seus bolsistas de
PIBIC – Programa de Incentivo a Bolsas de Iniciação Científica –, Flavio García
promoveu um curso livre, oferecido pelo SePEL.UERJ, nas dependências da FFP.
Discutia-se, uma vez por semana, nos três primeiros tempos de aula da tarde, os
mecanismos de construção narrativa próprios ao gênero Fantástico, dialogando com
outros gêneros, especialmente com o Maravilhoso ou Sobrenatural, o Estranho, o
Realismo Maravilhoso ou Mágico e o Absurdo.
Desse curso, nasceu a idéia da realização do I Painel “Reflexões sobre o
Insólito na narrativa ficcional”, do qual somente participaram alguns alunos, ao lado
dos bolsistas PIBIC. Assim, em 15 de janeiro de 2007, Flavio García e Marcello de
Oliveira, juntamente com aqueles alunos e bolsistas, promoveram, no miniauditório da
FFP, durante todo o dia, apresentações de trabalhos e debates, já publicados sob o título
A banalização do insólito: questões de gênero literário – mecanismos de construção
narrativa 5 .
O evento impulsionou o projeto de pesquisa de Flavio García, que passou a
contar com vários bolsistas voluntários e mais bolsas, agora financiadas pela própria
UERJ, pelo CNPq e pela FAPERJ. Acrescido, o grupo do professor e seus bolsistas
promoveu novo curso, focalizando o conjunto da obra do escritor mineiro Murilo
Rubião, apontada por muitos críticos como escritor fantástico, mas objeto de inúmeras
celeumas teórico-metodológicas. O curso, semelhantemente ao anterior, transcorreu nas
dependências da FFP, durante o primeiro semestre de 2007, tomando os três tempos
iniciais de aulas de uma tarde.
Do mesmo modo que antes, desse curso emergiu o II Painel “Reflexões sobre o
Insólito na narrativa ficcional”: O insólito na narrativa rubiana – Reflexões sobre o
insólito na obra de Murilo Rubião, realizado de 7 a 9 de agosto de 2007, também nas
5
(Hhttp://www.dialogarts.uerj.br/avulsos/livro_insolito.pdfH).
INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4
8
dependências da FFP. Diferentemente do evento anterior, deste não participaram
somente alunos do curso e bolsistas. Somava-se, ao projeto de pesquisa, Marcello de
Oliveira Pinto, focalizando, em polo oposto ao de Flavio García, a recepção do insólito,
bem como inscreveram-se participantes externos. Parte dos trabalhos apresentados
encontra-se publicada sob o título Murilo Rubião e a narrativa do insólito6 .
O grupo crescia com novas adesões e a aglutinação de outros projetos e bolsistas
em seu entorno, reunindo projetos de EIC – Estágio Interno Complementar –,BICFAPERJ – Bolsa de Incentivo à Graduação – e Extensão. A esse crescimento,
correspondeu o fortalecimento do SePEL.UERJ e do Grupo de Pesquisa Estudos
Literários: Literatura; outras linguagens; outros discursos, representado pela
unidade que ora se compunha entre Flavio García – dedicado às reflexões acerca do
insólito na construção da narrativa –, Marcello de Oliveira Pinto – dedicado às reflexões
acerca do insólito na recepção da narrativa – e Regina Michelli – dedicada às reflexões
acerca do insólito na literatura infanto-juvenil. Não se tratava de um projeto de um
pesquisador, mas de um projeto de grupo, com diferentes enfoques, conduzindo dentro
de um Grupo de Pesquisa orgânico e articulado por um projeto de extensão produtivo.
No segundo semestre de 2007, seria oferecido, ainda nas dependências da FFP e
nos mesmos moldes dos cursos anteriores, um terceiro curso de extensão, focalizando a
manifestação do insólito na narrativa de ficção, em suas vertentes literária e fílmica.
A partir desse curso, organizou-se o III Painel “Reflexões sobre o Insólito na
narrativa ficcional”: o insólito na Literatura e no Cinema, último evento realizado nas
dependências da FFP, de 8 a 10 de janeiro de 2008. O III Painel contou com maciça
participação de público externo, tanto na apresentação de trabalhos quanto na
assistência, podendo ser considerado o primeiro ápice climático do projeto. Os resumos
dos trabalhos foram publicados e dão mostra do que foi o evento 7 . Os trabalhos
apresentados durante sua realização, incluindo comunicações, conferências e palestras,
aparecem publicados em Narrativas do Insólito: passagens e paragens 8 , Poéticas do
Insólito 9 e III Painel... – Comunicações 10 .
6
(Hhttp://www.dialogarts.uerj.br/avulsos/MuriloRubiao/LIVRO_RUBIAO.pdfH)
7
(Hhttp://www.dialogarts.uerj.br/avulsos/CadernodeResumos/CADERNODERESUMOS.pdfH)
8
(Hhttp://www.dialogarts.uerj.br/avulsos/insolito/narrativasdoinsolito.pdfH)
9
(Hhttp://www.dialogarts.uerj.br/avulsos/insolito/Poeticas_do_Insolito.pdfH)
10
(Hhttp://www.dialogarts.uerj.br/avulsos/insolito/Comunicacoes_III_Painel.pdfH)
Julio França (org.)
9
Novo curso viria a ser oferecido, ainda nas dependências da FFP e ainda nos
mesmos moldes dos cursos anteriores, tendo sido esse o último curso lá oferecido,
igualmente àquele último Painel. O curso percorreu narrativas curtas do mineiro Murilo
Rubião, retomando experiências de curso anterior, e se dedicou à leitura críticointerpretativa de obras do escritor português Mário de Carvalho, podo em tensão a
apreensão do sólito/insólito no universo narrativo e nos atos de leituras.
Seguindo uma mesma tendência já apontada, logo após o curso foi promovido o
IV Painel “Reflexões sobre o Insólito na narrativa ficcional”: tensões entre o sólito e
o insólito, de 22 a 24 de setembro de 2008, mas, dessa vez, no Instituto de Letras da
UERJ, no campus Maracanã. Prejudicado pela longa greve que assolou a Universidade,
o evento esteve parcialmente esvaziado, porém, ainda assim, dele participaram
personalidades externas, do Estado e de fora dele, com absoluta e ampla integração de
todos os docentes e discentes, de graduação e de pós-graduação, envolvidos no projeto
de pesquisa, no projeto de extensão e no grupo de pesquisa. Nessa ocasião, foi
publicado um Cd Rom com sete títulos já publicados digitalmente pelo projeto, em
parceria com o Publicações Dialogarts.
Do IV Painel, encontram-se publicados IV Painel... – Caderno de resumos11 ;
Comunicações Livres
12
; e Comunicações Coordenadas13 . Durante o V Painel, foram
publicados em CD Rom, juntamente com o Caderno de Resumos, os textos integrais das
Comunicações Livres e da Coordenadas daquele IV Painel.
Enfim, o I Painel dedicou-se às reflexões sobre os mecanismos de construção do
Fantástico na narrativa; o II Painel, à manifestação do insólito na narrativa rubiana; o
III Painel, às construção e recepção do insólito nas narrativas literária e fílmica; o IV
Painel, às tensões entre o sólito e o insólito. O V Painel, coincidente com a realização
de um I Encontro Nacional O Insólito como Questão na Narrativa Ficcional,
refletiu sobre o insólito como questão na narrativa de ficção, ampliando os conceitos de
narrativa e debruçando-se sobre o insólito como uma questão-problema central para a
continuidade das pesquisas.
11
(Hhttp://www.dialogarts.uerj.br/avulsos/insolito/Cadernos_de_Resumos_IV_Painel.pdfH)
12
Hhttp://www.dialogarts.uerj.br/avulsos/Comunicacoes_Livres_IV_Painel.pdfH)
13
(Hhttp://www.dialogarts.uerj.br/avulsos/Comunicacoes_Coordenadas_IV_Painel.pdfH).
INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4
10
O VII Painel, coincidente com o II Encontro Nacional O Insólito como Questão
na Narrativa Ficcional, teve por focalização temática as relações e Insólito, Mitos,
Lendas, Crenças.
O evento apóia-se nas pesquisas em desenvolvimento na célula mãe do Grupo,
envolvendo, principalmente, os interesses primários de Flavio García (UERJ/
UNISUAM) – a construção do insólito na narrativa –, Marcello Pinto (UERJ/ UNIRIO)
– a recepção do insólito – e Regina Michelii (UERJ/ UNISUAM) – o insólito na
literatura infanto-juvenil.
Este volume reúne os textos integrais das apresentações orais realizadas nas
sessões dos diferentes Simpósios promovidos durante o evento, enviados à coordenação
dentro dos prazos estipulados e em conformidade com as normas básicas definidas para
a publicação. O teor dos textos aqui publicados é de inteira responsabilidade de seus
autores, e a revisão lingüístico-gramatical procurou respeitar, ao máximo, opções de
estilo e uso da língua. Outro volume reúne textos integrais apresentados nas sessões dos
simpósios promovidos ao longo do evento.
Prof. Dr. Flavio García
Prof. Dr. Marcello Pinto
Prof.ª Dr.ª Regina Michelli
Julio França (org.)
SIMPÓSIO
Omedo como prazer estético:
Oinsólito, o horror e o sublime nas
narrativas ficcionais
12
Sob o signo de Plutão: digressão sobre os limites do
horror e do terror
Anderson Pires da Silva *
A literatura européia no século XIX ajudou a consagrar uma variante mais
perversa da narrativa fantástica: o horror. Nesse sentido, propomos uma reflexão sobre o
sobrenatural e como o cinema, adaptando obras icônicas do gênero (Drácula,
Frankenstein, Histórias extraordinárias, entre outras), transformou o conto de horror
em filme de terror.
A distinção básica entre horror e terror consiste no primeiro ser da ordem do
psicológico e o segundo da ordem física. Enquanto um gênero literário, o horror ficou
escondido desde a Antiguidade até o final do século das luzes, foi uma invenção da
modernidade.
Em sua Poética, Aristóteles argumentava que a tragédia deveria provocar
“compaixão e terror”. Ao assistir o espetáculo trágico, o espectador purgava essas
emoções através dessa forma pré-freudiana de sublimação chamada catarse. O “terror”,
baseado na visão de cenas chocantes, não estava relacionado com a sensação de medo,
mas com uma espécie de indignação moral.
Até o Renascimento, a “narrativa de horror” estava mesclada ao épico e ao
trágico, assim como depois estará misturada aos contos folclóricos. Muitos autores
recorrerão a elementos fantásticos, sem que necessariamente tenham o objetivo de
provocar medo. Hamlet é assombrado por um fantasma. Porém, ninguém (infelizmente)
teve a ousadia de dizer que a tragédia de Shakespeare fosse um “teatro de horror”. E
menos de um século depois, o fantasmagórico se tornará um subgênero do conto
fantástico. O mesmo pode ser dito a respeito dos contos folclóricos, afinal serão deles
que sairão as figuras do “lobisomem” e do “vampiro”.
O conceito de “grotesco” foi um dos principais movimentos de particularização
do horror dentro do vasto terreno do fantástico. O termo “grotesco” (do italiano grotta >
gruta) foi cunhado para designar uma série de pinturas desconhecidas encontradas em
escavações na Itália no final do século XV. Depois foi aplicada às pinturas delirantes de
*
Doutor em letras (Puc-Rio).
INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4
13
Bosch. Em literatura, Edgar A. Poe a empregou como título da reunião de seus contos
noturnos: Tales from grotesque and arabesque 14 .
Segundo Wolfgang Kayser, Poe empregou a palavra grotesco em dois sentidos:
“para designar uma situação concreta, na qual a ordem do mundo saiu fora dos eixos, e
para designar o teor de estórias inteiras, onde se narra o horripilante inconcebível, o
noturno inexplorável e, às vezes, o fantasticamente bizarro” (KAYSER, 1986, p. 78).
Edgar Allan Poe, em grande parte dos seus contos grotescos, e também no
famoso poema “O corvo”, trata do homem vivendo isolado. O solitário é um dos seus
personagens prediletos. A solidão pode tanto resultar de uma tragédia particular (o
viúvo do poema) quanto de um modo misantropo de viver. A abertura do conto
“Manuscrito encontrado numa garrafa” ilustra bem essa condição: “De minha pátria e
de minha família, pouco tenho a dizer. A má conduta e a passagem dos anos afastaramme de ambas” (POE, 1981, p. 69).
Outra particularidade dos personagens de Poe é o caráter racional. Nesse ponto,
há duas ramificações em sua obra - a narrativa arabesca dos contos policiais e a
narrativa grotesca dos contos sobrenaturais. No primeiro caso, a astúcia do detetive se
impõe sobre o desconhecido. Em “Os crimes da rua Morgue” é preciso que Dupin, com
seu incrível poder de dedução, desfaça todo o cenário inexplicável do crime. Aquilo que
a razão não oferece uma resposta satisfatória é o primeiro passo a aceitação do
sobrenatural. Por isso, no segundo caso, após perderem a base racional das coisas, os
personagens cedem à loucura e à violência. Eis o relato do narrador de “O gato negro”,
após a revelação de que havia assassinato a esposa:
Quanto aos meus pensamentos, é loucura falar. Durante um instante, o
grupo de policiais deteve-se na escada, imobilizado pelo terror. [...]. O
cadáver, já em adiantado estado de decomposição, e coberto de sangue
coagulado, apareceu ereto, aos olhos dos presentes. Sobre sua cabeça,
com a boca vermelha dilatada e o único olho chamejante, achava-se
pousado o animal odioso, cuja astúcia me levou ao assassínio e cuja
voz reveladora em entrega ao carrasco. (POE, 1981, p. 51).
Para Baudelaire, nenhum escritor havia, até então, escrito com “maior magia
sobre as exceções da vida humana e da natureza”, sobre a alucinação que dá lugar à
dúvida, sobre a histeria dominando a vontade e a contradição entre nervos e espírito:
“Ele analisa o que há de mais fugaz, sopesa o imponderável e descreve, naquela maneira
14 No Brasil, o livro foi traduzido como Histórias extraordinárias, seguindo a tradução francesa feita por
Charles Baudelaire.
Julio França (org.)
14
minuciosa e científica cujos efeitos são terríveis, todo este imaginário que paira em
torno do homem hipersensível e o conduz ao mal” (BAUDELAIRE, 1989, p. 110).
Nos contos de Poe estão mapeados os lugares da cartografia do horror do século
XIX: anti-sociabilidade, casas assombradas, neuroses, delírios. Progressivamente, as
esses temas se somaram outros, através de escritores como Theóphile Gautier, que
ingressaram em uma visão absolutamente fantástica sobre a existência, ou Lautréamont,
que criou um imaginário puramente macabro e herético. Tal diversidade levou Todorov
a classificar a narrativa fantástica em quatro subgêneros: estranho-puro, fantásticoestranho, fantástico-maravilhoso e maravilhoso-puro.
Segundo Todorov, o fantástico ocupa um tempo de incerteza, a dúvida se é
regida por forças desconhecidas. Em um extremo há o estranho, como se verifica nos
contos de Poe, o evento fora do comum emerge de uma situação cotidiana (de um
cenário realista), para se configurar como estranha a ela. Em outro, há o maravilhoso,
como em Gautier, em que predomina uma visão puramente sobrenatural da existência.
A literatura fantástica se desenvolveu como uma sombra da literatura realista, como um
lugar muito escuro até para as luzes do esclarecimento. Ou como Todorov define: “uma
má consciência desse século XIX positivista” (TODOROV, 2008, p. 166).
De certo, a literatura fantástica, em qualquer uma de suas variantes, não se
submete facilmente ao mesmo instrumental crítico aplicado às obras realistas, em
qualquer uma de suas variantes. O comentário de Antonio Candido sobre Noite na
taverna, de Álvares de Azevedo, é revelador nesse sentido: “É como se o autor tivesse
conseguido elaborar, em atmosfera fechada, um mundo artificial e coerente, um jogo
estranho, mas fascinador, cujas regras aceitamos” (CANDIDO, 2008, p. 504).
Muitos autores brasileiros se exercitaram em uma ou outra linha da narrativa
gótica, porém sempre vigorou uma forte tendência realista em nossa literatura. O
próprio Candido a explica como um sintoma do empenho dos escritores brasileiros em
pensar a literatura como meio de reflexão sobre a realidade brasileira, o que impediu
maiores vôos da imaginação. Além disso, o repertório gótico, com seus vampiros e
animais demoníacos, se adotado, significava imitação servil do estilo europeu, uma
espécie de “satanismo provinciano”. Grande parte da desqualificação da escrita de
Azevedo deriva de sua excessiva dependência a Byron.
Noite na taverna ignora solenemente o nacionalismo romântico e, ao mesmo
tempo, tenta se inserir no panorama internacional. É um texto moderno e polifônico.
Cada capítulo é narrado por um personagem, que destaca aspectos diferentes do cenário
INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4
15
macabro. Ao final, Álvares de Azevedo realiza um inventário dos principais temas da
narrativa gótica: a necrofilia, a devassidão sexual, o incesto e a heresia.
Não nos parece que os escritores do século XIX estivessem muito interessados
em uma distinção entre horror e terror, já que ambos eram variantes do gênero
fantástico. No entanto, Henry James, na obra A volta do parafuso (1898) se preocupa
em distingui-los, logo na abertura da novela:
Ouvimos a história ao redor da lareira, com a respiração suspensa;
mas, afora a observação de que era horripilante, tal como
necessariamente devem ser os estranhos casos relatados em um
casarão antigo, na véspera de natal, não lembro de nenhum outro
comentário até o momento em que alguém, por fim, disse ser este o
único caso que conhecia em que aparições como aquela afligiram uma
criança. [...]. Ainda posso ver Douglas diante do fogo: “ninguém até
hoje ouviu a história, salvo eu. É horripilante demais!”. Em termos de
terror? – lembro de ter perguntando. Ele pareceu dizer não, não era
assim tão simples: “De horrível... de horror”! (JAMES, 2008, p. 12).
Segundo essa concepção, o terror é menos complexo do que o horror. O prólogo
serve para Henry James criar um jogo intertextual entre aquele que apresenta a história e
o enredo propriamente dito: o diário da governanta. Através da leitura do diário, nos é
errado uma clássica história de fantasma e possessão espiritual. O que interessa a James
não é a possessão em si, ou até mesmo a existência de fantasmas, mas sim o lento
processo de desagregação mental e sentimentos ambíguos da governanta com relação ao
menino Miles.
A experiência do horror – para ficarmos na definição de Poe, como algo que
“vem da alma” – envolve a convivência com algo fora do normal (aparição de mortos, a
demência, os pensamentos macabros) que provoca uma inexplicável sensação de medo.
É algo que se sente de dentro para fora. Não por acaso, nos contos de Poe são
abundantes os monólogos.
Por outro lado, a concepção de terror envolve uma ameaça externa, algo que
vem de fora e é parcial ou inteiramente desconhecido – daí a derivação terrorismo. Mais
do que isso, a experiência do terror envolve as fobias (em particular aranhas e cobras), a
tortura e a violência explícita. Talvez por isso, o terror encontrou no cinema um terreno
muito mais fértil do que na literatura. É uma experiência de impacto visual. No entanto,
se fosse buscar um antecedente na literatura, não hesitaria em apontar O inferno de
Dante, principalmente por causa das ilustrações de Gustave Doré.
Julio França (org.)
16
Segundo Jorge Luis Borges, o inferno de Dante é antes de tudo uma câmara de
tortura. Essa diferenciação aparece em seu estudo sobre o pesadelo, outro elemento
pertencente à semântica do horror. Para Borges, os sonhos são uma atividade estética,
da ordem do dramático, sendo o pesadelo uma sensação do horror 15 . Na abertura do
poema, Dante já menciona como a imagem da “floresta negra” enche o seu peito arfante
de “horror” e “medo”. Essa sensação, à medida que atravessa os círculos do inferno,
deixa de ser algo interno para ser algo externo, isto é, a visão das torturas atrozes
submetidas aos condenados que provoca outra sensação, a de terror. Daí entendemos
porque Borges afirma que “o inferno não é um pesadelo” (BORGES, 1992, p. 52).
A sensação de terror nasce do choque visual. Não foi por acaso, as primeiras
obras clássicas do cinema do horror surgiram no cinema expressionista alemão, como
por exemplo, Nosferatu, de Murnau. Aliás, a primeira adaptação da novela de Bram
Stoker, e também a primeira versão não autorizada da obra..
No cinema havia uma distinção, não muito clara, sutil, entre “horror” e “terror”.
O primeiro sugere, o segundo explicita. Por exemplo, em O bebê de Rosemary, de
Roman Polanski, a atmosfera de “terror e compaixão” é mostrada através da degradação
física e psicológica da mãe, mas a grande revelação final, a aparência do bebê nascido
da cópula com o demônio, não é revelado. Toda a sensação de pavor advém de uma
repulsa moral à atitude do marido que, por ambição, negocia o corpo da própria esposa
com o diabo.
O ponto de transição de um cinema de horror, baseado na sugestão, e de um
cinema de terror, baseada na exposição, foi O exorcista. Assim como em Polanski, o
filme de William Friedkin segue uma trilha traçada pela literatura gótica: o satanismo.
Quando o filme foi exibido, muitas pessoas passaram mal na sala de exibição. Conta-se
que um representante da Igreja da Escócia chegou a declarar que “preferia tomar um
banho em excremento de porco a ver esse filme” (BISKIND, 2009, p. 233). As cenas
mais chocantes, como a da menina possuída se masturbando com o crucifixo,
apostavam na junção entre heresia e deformação corporal. Segundo Peter Biskind, o
filme é “repleto de nojo pelo corpo da mulher e suas funções”, por isso está “inundado
de pânico menstrual”.
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“Tendríamos en los sueños, pues, la más antigua de las actividades estéticas; muy curiosa porque es de
orden dramático. […]. Y tuvo la sensación de horror que es la pesadilla, porque la pesadilla es, ante todo,
la sensación del horror ”. (BORGES, 1992, p. 47-8).
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O cinema irá criar e aprofundar uma experiência de medo baseada mais no terror
físico do que no horror psicológico. Filmes como O bebê de Rosemary ou O exorcista
ainda estão próximos da noção de horror gótico, tanto que se aproveitam dos mesmos
temas: seitas satânicas, pactos com o diabo, sacrifícios, heresias. A violência é implícita.
O exorcista já investe na degradação física, porém o que há de explícito nele serve
muito mais para demonstrar a força do diabo, ou seja, a sensação de medo deriva de
nossas crenças nos dogmas católicos, por isso uma das cenas mais fortes do filme é a da
menina possuída se masturbando com cruz.
Outro filme a se aproveitar do tema satanista foi A profecia, de Richard Donner.
O tema da criança prometida ao demônio é retomado em outra chave. Agora, os
estereótipos de inocência presentes na imagem infantil são substituídos pela crueldade.
O vilão do filme é Damien, o filho da besta. A criança era o personagem central da
novela de Henry James. A oposição entre o comportamento infantil, portanto ingênuo,
do menino Miles se contrapunha à maldade do espírito possessor de Quint. O horror,
então, derivava dessa espécie de corrupção espiritual da criança. Já no filme de Donner,
a criança já nasce má, e isso que provoca o medo: a perversão da inocência.
Porém, A profecia aponta para um elemento que irá predominar nos filmes de
terror: a matança. Ao contrário de O bebê de Rosemary e O exorcista, em que não há
muitas mortes, a história de Damien é repleta de assassinatos. Uma parte da criatividade
dos roteiristas foi investida em imaginar mortes violentas.
O filme que consagra o terror físico no cinema é Halloween, de John Carpenter.
A partir dele, o psicopata é o personagem central da trama de terror. Trata-se, então, de
violência explícita, uma exibição contínua de corpos dilacerados, cabeças cortadas,
enfim, jogos mortais. Quase sempre, pensemos também no Jason de Sexta-feira 13, o
psicopata é motivado por algum trauma na infância. No entanto, a cada seqüência, a
motivação para o mal interessa menos ao espectador do que a variedade das formas de
assassinato e tortura.
Os motivos que levaram o psicopata a ser tornar um personagem carismático nos
últimos anos - ele é o herói da série Dexter - ainda serão estudados a fundo pela
psicologia. A sensação que o filme de terror provoca, uma sensação física, é de ordem
diferente à provocada pelo horror.
O horror alcança seu pleno efeito quando mergulha o leitor/espectador no mundo
desajustado de suas personagens, o lento e gradual processo de desagregação mental
que elas representam. Nesse sentido, uma das personagens mais dramáticas, é a mãe da
Julio França (org.)
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menina Regan em O exorcista. Interpretada pela atriz Ellen Burstyn, a personagem
Chris Macneil é a representação da mulher emancipada: profissional, divorciada, mãe.
Há uma ambigüidade no nome “Chris”, também pode ser usado no masculino, traz um
implícito “Chris(t)”. No início do filme predomina o seu sorriso jovial, ao final, às cenas
mais fortes, são os closes em seu rosto enrugado e o olhar dolorido. É através do seu
olhar que somos carregados para um universo de dor.
O horror é dramático. O terror é espetacular. O personagem principal é o
adolescente. È o período da descoberta do corpo, da perda da virgindade. Ele é a vítima
predileta do psicopata. Em quase todos os filmes do gênero, alguém é assassinado no
momento da relação sexual. Prazer e morte. Há algo de casto. É como se houvesse
alerta: não vá transar na floresta escura, minha filha, porque você irá morrer. Não é por
acaso que o psicopata, nos anos 80, no auge da aids, tornou-se uma celebridade.
O terror atinge seu efeito quando o espectador levanta da cadeira, fecha os olhos
ou aperta as mãos. Ele não provoca medo, mas sustos. Aterrorizar significa assustar.
Quando vemos em uma cena um braço sendo cortado por uma serra elétrica, nos
levamos instintivamente as mãos ao nosso braço. A sensação de terror deriva da dor
física. Aparentemente, o terror é amoral, por isso não precisa se preocupar com questões
de “bom tom”.
Essa concepção de medo derivado da tortura física – uma fórmula de sucesso –
tornou-se a principal caracterização do terror no cinema. Um exemplo final é a presença
de 120 dias em Sodoma, de Passolini, incluído na lista de filmes de terror reunidos no
livro 1001 filmes para se ver antes de morrer. O que levou os críticos a categorizá-lo
como uma película de terror? Quando vemos o filme, a resposta é óbvia: a tortura física
as quais os padres submetem os jovens, indo desde o dilaceramento até a sodomia.
Portanto, o filme de terror pretende provocar no espectador não uma sensação de
medo, mas sim certo desconforto, uma agressão ao olhar, por isso, é comum os
espectadores não acostumados com essas produções fechar os olhos.
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Arte poética. São Paulo: Ediouro, s/d.
AZEVEDO, Álvares. Noite na taverna. São Paulo: 3 livros, 1984.
BAUDELAIRE, Charles. Edgar Poe: sua vida e obra. In: Poe desconhecido. Porto
Alegre: L&PM, 1989.
INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4
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BISKIND, Peter. Como a geração sexo-drogas e rock’n roll salvou Hollywood. Rio de
Janeiro: Intrínseca, 2009.
BORGES, Jorge Luis. Siete noches. Mexico: Tierra firme, 1992.
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Ouro sobre
azul, 2007.
JAMES, Henry. A volta do parafuso. Porto Alegre: L&PM, 2008.
KAYSER, Wolfgang. O grotesco. São Paulo: Perspectiva, 1986.
POE, Edgar Allan. Histórias extraordinárias. São Paulo: Abril cultural, 1981.
TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 2008.
Julio França (org.)
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Otema da travessia: não tema,
no portal está o poético
Célia Regina de Barros Mattos 16
Poderíamos buscar os germes do nosso século na Revolução Científicofilosófica do século XVII, na qual o modelo de Newton, instalando a visão mecanicista
do universo, cria um sobredeterminismo responsável pela alienação do homem do nosso
tempo. Essa alienação significa o homem completamente apartado do universo, um ser
que em nada participa da sua dinâmica porque as leis que o regem estão de tal modo
determinadas e fixas que independem de sua atuação.
Aliada a Newton, a Filosofia Cartesiana o isola do todo, fazendo-o esquecer-se
da experiência com o uno primordial, tornando-o impotente.
Se percorrêssemos a trilha deixada por Foucault, em busca dos mecanismos e
dispositivos de controle, utilizados pela burguesia, mascaradamente em nome da moral,
poderíamos avaliar o quanto o homem distanciou-se e a que ponto, mecanismos tão
poderosos fragmentaram esse homem e a sua realidade, desvelando conflitos e
inquietações, até então latentes, que eclodem como o grande desmascaramento dos
mecanismos de poder da burguesia.
Também o advento da Psicanálise concorre para que o século XX se manifeste
como ruptura e transformação. Pensadores como Heidegger, Sartre, Nietzsche e outros
apontam para a crise de valores que caracteriza o estar-no-mundo do homem deste
século.
Por essas considerações podemos imprimir, no início do século XX, a marca de
uma revolução cultural que mudará radicalmente os caminhos da arte. Em todos os
pontos do mundo ocidental surgiram movimentos vanguardistas experimentando novos
processos de criação. Os "ismos" se sucedem numa lista interminável, sobressaindo-se o
surrealismo que, rompendo com as estruturas do pensamento lógico burguês, propõe um
mergulho no mundo dos sonhos, buscando encontrar ali uma realidade que ultrapasse a
superfície das aparências, realidade que revele estruturas míticas e arquetípicas
presentes no inconsciente coletivo.
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Professor Adjunto da Faculdade de Letras da UFRJ
Pós-doutoranda do IEL - Instituto de Linguística Aplicada da UNICAMP
Pesquisador colaborador do CNPq de Maria José Coracini em Análise do Discurso
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Poderíamos resumir a revolução que se impôs ao mundo ocidental com um
único ponto comum a todos os movimentos que propunham mudanças - a cisão com o
mundo burguês e seus valores ultrapassados.
É esse, exatamente, o eixo que sustenta a criação das obras que apresentaremos a
seguir.
O texto cinematográfico O Anjo Exterminador de Luis Buñuel, guardadas as
devidas peculiaridades discursivas, revela em sua estrutura, marcas que o aproximam da
proposta neofantástica de Júlio Cortázar, presente em seus contos.
Sensivelmente influenciado pela vanguarda europeia, Cortázar inaugura um
novo estilo e sabe que, para expressar uma nova realidade com possibilidade de
exploração do mundo interior e onírico, dos pesadelos e obsessões e das zonas do
imaginário onde os vasos comunicantes entre a realidade e o sonho, o ordinário e o
maravilhoso, a aparência e a essência, anulam os opostos, para expressar essa realidade
sabe que necessita dominar o universo simbólico surrealista, recorrente em sua obra e
brilhantemente presente no filme O Anjo Exterminador, de tal modo que permitiu-nos
cotejá-lo com “Casa tomada”, conto de Cortázar.
Um casal de irmãos solteiros e maduros vive, num casarão em Buenos Aires,
uma vida insípida, submissos a uma rotina de trabalhos domésticos rigorosamente
marcada pelo relógio, criando hábitos cumpridos pontualmente: acordavam às 7, faziam
a limpeza pela manhã, almoçavam ao meio dia "siempre puntuales”.
São remanescentes de uma família de classe média que “por muitas gerações
ocupara o casarão”.
A descrição detalhada da casa e a enumeração das tarefas diárias denotam um
vazio preenchido por um fazer mecânico, repetitivo. "Irene era una chica nacida para no
molestar a nadie, aparte de su actividad matinal se pasaba el resto del día tejiendo en el
sofá de su dormitorio".
São burgueses enclausurados num espaço tão impregnado de hábitos, costumes,
manias e neuroses, resultantes de regras socioculturais tão fortes que os impede de viver
produtiva e criativamente. "no necesitábamos ganarnos la vida, todos los meses llegaba
la plata de los campos y el dinero aumentaba".
Um dia, algo anormal acontece que altera o ordinário. Uma das atividades de
rotina é cortada por um som surdo que vem da sala de jantar, como uma cadeira que cai,
ao que responde imediatamente o irmão com o gesto brusco de fechar a porta e trancá-la
com chave, fato que naturalmente informa à irmã "han tomado la parte del fondo".
Julio França (org.)
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Tal acontecimento se repete e o resto da casa é tomado, deixando-os no saguão.
Mais uma parte é trancada pelos irmãos que abandonam a casa com o cuidado de
trancarem bem a porta e livrarem-se da chave, para que não entrasse nenhum ladrão na
casa tomada.
Ao instalar-se o insólito tão naturalmente, o objetivo é cobrar de seus moradores
uma revisão dos valores aos quais estavam submetidos e um rompimento da cadeia de
hábitos aos quais estavam condicionados, experiência a que se negam,quando optam
pelo abandono da casa, escravos do relógio, elemento carregado de sentido no universo
burguês: "como me quedaba el reloj pulsera, vi que eran las doce de la noche. rodeé con
ml brazo la cintura de Irene y salimos así a la calle".
O conto é encerrado tendo o relógio como personagem principal, funcionando
como marca de submissão e manutenção do status quo. Os irmãos não enfrentam a casa
tomada para não terem de ingressar numa nova ordem. A submissão ao tempo
cronológico denuncia a mudança só de espaço físico.
O filme O Anjo Exterminador apresenta estrutura bem mais complexa:
Um grupo de pessoas de classe média é convidado para jantar em casa de
amigos depois de um espetáculo de ópera. A partir do convite que está dentro do
previsível, as cenas tomam dois cursos: umas seguem o curso natural e outras aparecem
entrecortadas por situações que indicam sinais de alteração da normalidade.
Ao mesmo tempo em que as últimas providências para o jantar são tomadas e
chegam os convidados, um movimento compulsivo de abandono da casa, invade o
espaço da criadagem. Sente-se no ar, uma necessidade imperiosa de deixar a casa, como
se algo os empurrasse. Só os ricos devem ficar, é o que se depreende inicialmente.
Seguem-se outros índices de alteração como a inversão de pratos, o tombo do
garçom – uma brincadeira intencionalmente preparada pela anfitriã que provoca risos e
descontração –, o aparecimento de um urso negro e um bando de carneiros na cozinha,
situação a qual Luzia, a anfitriã, está perfeitamente integrada, o que provoca no
espectador, estranheza.
Essa soma de incidentes deixa clara a sensação de incômodo, que cresce em
proporções significativas e o jantar transcorre com marcas que caracterizam uma classe
determinada. Com seus hábitos, atitudes e condicionamentos os convidados traduzem a
ordem fixa e fechada dos valores sociais burgueses:
1) Chegam em bando, movidos pelo convite que aceitam fiéis às determinações
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cerimoniosas da etiqueta, determinações que normatizam o tratamento e a
convivência no grupo social. Tudo isso o fazem sem consulta prévia ao interior
de si mesmos, o que indica incapacidade de serem seus próprios guias e
senhores.
2) Observa-se também, desgaste nas instituições família/casamento. Estes se
sustentam apenas na superfície da aparência, ocos e corroídos no interior, onde o
amor, a cumplicidade e o respeito são desconhecidos pelos parceiros. Ao
contrário de projetos de vida comum, o que se revela é mentira e hipocrisia nas
relações conjugais, sem que a máscara do disfarce e a segurança contratual
sejam sequer ameaçadas. Luzia, a anfitriã, tem encontros íntimos com seu
amante em sua própria casa. Um marido revela à mulher, seu conhecimento do
romance que mantém com o professor de seus filhos.
3) A entrada em grupo é marcada pela aparência de riqueza, opulência, felicidade e
bem-estar. Vestem-se de forma sofisticada deixando evidente que o fazem
dentro dos padrões da moda, sem a presença marcante da criatividade,
ressaltando o toque pessoal.
4) Comunicam-se por clichês, demonstrando conhecimento superficial, vazio de
sentido. Conversam sobre o universo da arte e da cultura de forma puramente
discursiva, distanciados do que lhes é essencial. Suas falas não passam de
fragmentos que demonstram o estar-em-dia com as curiosidades; às vezes
entrecortadas por maledicências e outras chegando ao sem-sentido: "o que é
pátria? é um conjunto de rios que vão dar no mar. O que é morrer? sim, morrer
pela pátria”.
5) As imagens e símbolos vão descrevendo a esterilidade do mundo burguês, cheio
de elementos inúteis, representados, por exemplo, pelos pés-de-galinha, na bolsa
de uma convidada.
Adaptados ao texto cinematográfico cinema, Buñuel lança mão dos mesmos
recursos técnicos propostos por Cortázar, presentes em seus contos: Para ressaltar os
pontos que deseja enfocar, ilumina, reforça através da repetição, dizendo o mesmo de
várias formas, procedimentos que deixam clara sua proposta surrealista.
Julio França (org.)
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O recurso técnico de repetição das cenas tem função primordial no
desenvolvimento do tema - o ritmo mecânico da vida burguesa, condicionada a um
cotidiano estéril de hábitos.
Nesse clima, arrasta-se o jantar e termina, sem que, inexplicavelmente, nenhum
convidado se retire. Fica claro que um grupo específico foi selecionado por algum poder
superior para vivenciar tal experiência. Isso se conclui pelo movimento em sentido
inverso que, também, inexplicavelmente, afastou os criados. Esse grupo escolhido é o
protagonista - o homem burguês. Por isso não há hierarquia na ordenação dos
personagens – tudo o que um expressa poderia ser expresso por outro. Cada personagem
traduz um aspecto da vida burguesa, daí as tomadas de cena em plano geral e uma forte
atuação em conjunto.
Impossibilitados de sairei são lançados na aventura. As situações-limite, que têm
que enfrentar os personagens, são produzidas com a utilização da técnica surrealista do
enfocamento que enfocando o trivial, obriga a agudeza, faz saltar o maravilhoso,
metamorfoseia a realidade.
À medida que vão sendo pressionados pelas / limitações, situações prosaicas do
cotidiano como o pequeno espaço de uma sala, sem água nem comida, dividindo a vida
privada no espaço público, zonas embrutecidas, até então, são ativadas, cobrando
superação e, o simples comentário "adoro as coisas que saem da rotina", dito por um
personagem, evolui em observações de mal-estar, reclamações, grosserias, xingamentos,
choro, lamentos, ataques histéricos, delírios, sonhos, pesadelos, medo, lascívia, vício até
a agressão física que culmina com ameaça de morte.
Os pés inchados e o mau cheiro – aquelas mazelas íntimas3socialmente
escondidas –, emergem com violência, obrigando-os a verem-se uns nos outros. O outro
se torna matriz especular da verdade que cada um precisa enfrentar.
É importante incluir neste ponto o papel daqueles animais, inexplicavelmente
instalados na cozinha. No auge do desespero, quando já está instalado o caos, entrem
eles em cena, representando o bestial escondido no homem. Um urso negro, símbolo das
forças elementares, dos instintos da fase inicial da evolução do homem, emblema da
selvageria e da brutalidade e carneiros brancos, símbolo da pureza, da clareza da
consciência – o cordeiro de Deus, atualizador do contato do religare.
A presença dos animais acelera o movimento de superação. Não podem
enfrentar-se cara a cara com o mais baixo e monstruoso de si mesmos. Temos aí um
dado que referenda o processo psicanalítico. Com os mesmos processos da psicanálise,
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o texto surrealista desnuda o homem da falsa roupagem que lhe veste a cultura e a
sociedade. Iluminando aquela zona oculta e obscura, tornando conhecido o
desconhecido, abre ao homem as portas da consciência e o consequente resgate da
unidade perdida.
Com esses elementos, Buñuel desvenda os mistérios da ambivalência humana
terra/céu ou pagã/cristã, se os transpusermos para a simbologia bíblica.
Este é o espaço neofantástico. É nessa zona de trânsito que se instala o insólito,
subvertendo a ordem imposta pelo exacerbado uso da razão, pela submissão ao
estabelecido e institucionalizado, pela tradição que impede a instauração do novo. É
exatamente aí que todos se submetem, em grupo, ao rito de passagem.
Abrirei parêntesis para caracterizar o neofantástico: Aquilo que no fantástico
tradicional era considerado sobrenatural porque, violando a ordem estabelecida causava
medo e calafrio, ingressa agora no texto de forma nova. O neofantástico não precisa de
seres extraordinários para instalar-se. Sua marca essencial é a naturalidade: Assim, com
naturalidade, irrompe a nova ordem, dentro da ordem fundada; de forma trivial e
prosaica, sem preparação, advertências ou premonições. É Sartre que, em incursões no
texto da “Metamorfose” de Kafka, oferece subsídios que abrem a Todorov novas ideias
sobre o fantástico.
Dentre os elementos do surrealismo francês resgatados por Cortázar no
neofantástico, selecionamos a mulher por sua importância fundamental no texto de
Buñuel Como a mulher surrealista ela é inspirada e inspiradora, é vidente e intercessora
entre a realidade concreta/racional e a zona mágica. Comunica-se com o absoluto sem
esforço.
É uma mulher, Walquíria, que no filme realiza o ritual de sacrifício do cordeiro,
mensagem recebida nas tentativas de contato com poderes superiores, para remissão dos
pecados. "e preciso sacrificar o cordeiro, é preciso sangue inocente”. É uma mulher,
Walquíria, quem, inicialmente quebra, de maneira inexplicável, um vidro da janela,
oferecendo-nos um índice de sua atuação final já que o vidro é um elemento que, por
sua transparência, favorece a passagem de uma realidade à outra. É Walquíria que é
virgem e é ela ainda que, iluminada pela intuição, recebe a grande revelação – o sentido
da experiência vivida lhe é revelado bem como a saída lhe é apontada, no clímax da
situação limite.
Vemos aí outro elemento transportado do surrealismo, presente no neofantástico
– a intuição e outros estados de expansão da mente, contrapondo-se à razão. No filme,
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todas as vias de controle e equilíbrio racionais foram improdutivas para a superação da
experiência do insólito. A criativa e inspiradora intuição vence a razão.
Acrescentaremos, ainda, a forte marcação simbólica do referente bíblico: Como
no filme o que se vive é uma experiência religiosa, um perfeito rito de passagem, o texto
é uma alegoria pascal. O símbolo mais significativo é a mesa e os comensais, símbolo
da Santa-Ceia, onde Cristo, ao lavar os pés e dar o corpo para ser comido, institui o
sacrifício eucarístico que é a missa. Da mesma forma que a ceia de Cristo, esta também
não teve criados para servir.
A burguesia que sempre muito bem vestida exibiu-se, transformou a missa em
repetição mecânica, sem viver o mito, insensível à linguagem simbólica da ritualística.
Isso porque sempre experimentaram o rito da missa como cerimônia que fria e distante.
Agora, a experiência obriga que se viva a missa como celebração de uma presença.
"todas as vezes que fizerdes isto, fazei em memória de mim, a minha carne será
verdadeiramente comida e meu sangue verdadeiramente bebido".
Os personagens atravessam uma longa noite de agonia, padecimento e morte,
período que representa a paixão e morte de Cristo e, como no domingo de Páscoa,
atualizam o ritual da comunhão, quando a fome os obriga a vivenciar experiências que
tocam os fundamentos e verdades originais. A fome os obriga a estabelecer contato
direto com o alimento: matam o carneiro e servem-se a si próprios, comendo até papel
símbolo inquestionável da hóstia que é servido em prato pequeno como a pátena da
missa. Como Moisés que com a vara extraiu água do rochedo para salvar seu povo do
cativeiro, com o mesmo gesto, arrebentam o cano e fazem jorrar água em forma bruta,
original. A água só adquire valor simbólico, exatamente porque não sai da torneira, de
forma convencional. A casa está localizada na Rua da Providência, índice que antecipa
o desfecho: Depois de exorcizado o urso pela palavra mágica maçônica, manifesta-se a
"grande esperança" na figura do carneiro que é sacrificado. A imolação do cordeiro de
Deus os liberta da longa noite de agonia, na aurora do domingo de páscoa.
Também em “Casa Tomada” encontramos uma paráfrase que a aproxima da
história bíblica da queda: Os irmãos, expulsos da casa por um mandato irreversível,
lembram a expulsão de Adão e Eva do paraíso.
Concluindo, nos perguntaríamos: Que identidade há entre os dois textos, o
literário e o cinematográfico? Que mensagem querem transmitir seus autores?
Há quatro pontos comuns fundamentais:
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1) A escolha do protagonista - a classe média burguesa.
2) Uma ordem rígida e fechada a qual estão condicionados e que os faz atuar frente
à vida de forma mecânica e estereotipada, completamente afastados de sua
essência.
3) Um acontecimento insólito que, de forma violenta instala nova ordem,
obrigando-os a encarar-se a si mesmos, colocando-os em situações limite,
sentindo intimamente suas fragilidades e feras escondidas, negadas ao longo da
vida pela absorção fria e inquestionável de verdades impostas socialmente,
apartando-os da verdade essencial.
4) A utilização de procedimentos afins, guardadas as respectivas peculiaridades,
que aproxima o filme de Buñuel da proposta neofantástica de Cortázar.
Em “Casa Tomada” e O Anjo Exterminador, Cortázar e Buñuel, mergulhando na
fonte geradora, descendo até o abismal, desmascarando o ethos social e acionando o
dâimon elementar, atualizando mitos e arquétipos, tocam o absoluto e experimentam a
grande aventura de reviver a linguagem e dar-lhe sentido.
E o medo, onde está? É a partir daí que propomos o salto. Um mesmo salto visto
de dois ângulos.
O primeiro nos libera do que até agora vinha sustentando este trabalho: do
historicismo acadêmico, do estilo, da época; com esse gesto ousado, ultrapassamos o
surrealismo, o neofantástico, Cortázar e Buñuel. Este salto dispensa Cronos e seu
arsenal histórico-psicofilosófico e seu dados explicativos, nos quais se apoia e justifica
o poético.
Mas o poético em nada se apoia nem se justifica. O poético é. É porque é
originário; isso o aproxima do sagrado. Sagrado e poético são da mesma ordem.
Mas, insistimos, como se justifica o medo do sagrado se, comprovadamente, o
mundo divino não cessa de nos fascinar: o sonho, a imaginação, o mito, a magia
sinalizam a necessidade de o homem dar forma intelectual a uma nostalgia.
Não só a criança que, segundo Piaget, entre uma explicação racional e outra
maravilhosa, escolhe fatalmente a maravilhosa, o selvagem, o bêbado, o velho e o louco
apreendem o mundo fora da lógica racional, acenando com vivências sagradas.
Julio França (org.)
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Como explicaríamos a recusa ao sagrado por parte do homem comum? O que é
o sagrado, onde está, como o encontramos? Não está em outro lugar senão em nós
mesmos. Mas no “nós” que em nós é desconhecido.
O desconhecido, aí reside a essência do medo – aquilo que, fazendo parte do
homem, tanto fascina como repele. O medo que o impede de dar o salto pelo terror da
morte – o terror do salto mortal que, se por um lado o lança ao desconhecido, o coloca
rumo ao vazio de si mesmo, que ainda não sendo, aguarda ser.
É desse homem que falamos, do homem moderno sujeito aos limites das paredes
de uma casa: uma casa que o aprisiona outra que o expulsa, um homem involucrado
dentro dos limites aceitos pela ciência moderna, que implicam sempre limitação, um
homem imune ao divino.
Desse modo enfocamos o medo – o mais ameaçador dos medos que obstaculiza
a vivência do sagrado sem, contudo, impedir que se realize pela leitura, a vivência do
poético.
REFERÊNCIAS:
CORTÁZAR, J. “Casa Tomada”. In: Bestiario. Buenos Aires: Sudamericana, 1971.
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Medo e estranhamento na literatura infantil:
estratégias narratológicas e recursos estéticos
para arrepiar os leitores
Daniela BUNN ∗
... nem só de lobos vivem os medos
A presença do medo é recorrente em muitas histórias da tradição oral que tinham
como intuito ensinar uma lição, assustar ou mesmo alertar as crianças sobre situações de
perigo. Madrastas, bruxas, lobos ou ogros devoradores de crianças completavam o
círculo sobre os medos do escuro, das sombras, de crescer, de morrer, de não ter o que
comer ou de falar com estranhos.
Bruno Bettelheim (1980, p. 203) ressalta que a estratégia de Charles Perrault nos
contos compilados era a de produzir histórias admonitórias, para ameaçar
deliberadamente as crianças a partir de finais, como afirma, produtores de ansiedade.
Mesmo assim, segundo Maria Tatar (2004), tanto Perrault como os irmãos Grimm se
empenharam em eliminar os elementos grotescos e obscenos dos contos originais
camponeses, sendo que em alguns a Chapeuzinho, por exemplo, come os restos do lobo
saboreando a carne e bebendo vinho. Nas versões contemporâneas o medo e o pavor
causado tanto pelo lobo como por outros personagens são subvertidos, pois em algumas
o lobo acaba se casando com a vovó ou mesmo com a Chapeuzinho.
Os adultos durante muito tempo foram (e ainda são) especialistas em amedrontar
as crianças. Quem não se lembra de algum personagem folclórico ou de uma lenda
urbana que assombrava a infância: o boi-da-cara-preta, o homem do saco, o bichopapão, as bonecas que matavam crianças. Sandra Corazza ao traçar um percurso sobre a
história da infância, em seu livro Infância e Educação (2002, p. 71), afirma que “as
gentes novas, agora ‘indefesas’, começaram a ter medo das coisas e, para incrementar
mais ainda este medo, o Indivíduo criou um exército de personagens perigosos, como o
bicho-papão, [...] a cigana que roubava crianças, [...] a madrasta perversa, vampiros, [...]
predadores, homenzinhos verdes [...]” e colocou tudo isso nos meios de comunicação e
de entretenimento (como os gibis, revistas, filmes, desenhos animados), criando, ao
∗
Mestre em Literatura e professora do Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Catarina.
Texto apresentado no VII Painel Reflexões sobre o Insólito na Narrativa Ficcional e II Encontro Nacional
O Insólito como Questão na Narrativa Ficcional/UERJ, 2010.
Julio França (org.)
30
mesmo tempo, heróis idealizados pelas crianças: Tarzan, Mandrake, Zorro, SuperHomem, He-Man, Robocop, Jaspion, Tartarugas Ninjas até os mais recentes (p. 72).
Atualmente, na literatura infantil, escritores e ilustradores - de forma lúdica,
realista, surreal, fantástica ou nonsense - proporcionam sensações peculiares de medo e
de estranhamento utilizando estratégias narratológicas e variados recursos estéticos. O
medo como prazer estético apresenta-se de forma diferenciada das primeiras
compilações e podemos ver claramente a linha divisória entre amedrontar e superar os
medos. Foco a análise em dois personagens: o lobo e a Chapeuzinho Vermelho.
Chico Buarque, em Chapeuzinho Amarelo (1979), apresentou uma protagonista
amarelada de medo, tinha medo de tudo (inclusive do lobo): "Tinha medo de trovão.
Minhoca, pra ela, era cobra. E nunca apanhava sol porque tinha medo da sombra."
Maria Antonieta Antunes da Cunha, em Literatura Infantil (1985), faz uma minuciosa
análise do livro de Buarque iniciando pelo título, observando a mudança de cor e a
carga semântica do amarelo - sorriso amarelo, amarelo de susto, amarelo de medo.
Porém, quando a menina depara-se com o lobo, o medo passa e ela fica só com o lobo.
O lobo desestrutura-se com tal atitude e para manter sua fama de malvado, tenta
assustar a menina e inutilmente grita “lobo” inúmeras vezes para que o medo volte.
Num jogo de palavras, Buarque embaralha as letras praticando uma metamorfose em
seu lobo, ou melhor, uma alimentomorfose (roubdo conceitos outros ao modo de
Deleuze e este, para quem se lembra, assemelha-se ao “sapomorfose” de Cora Rónai)
bem marcada pela passagem do lobo ao bolo:
LOBOLOBOLOBOLOBOLOBOLOBOLO
O lobo vira bolo mostrando uma inversão entre o ser que come e o que deveria
ser comido, porém a Chapeuzinho não o devora. O leitor, que espera a situação
conhecida entre a menina inocente e o lobo gentil e sedutor, estranha 17 . O lobo na
história de Buarque tenta ser mau mostrando seus dentes pontiagudos e seus olhos
vermelhos, como podemos ver nas ilustrações de Ziraldo para a edição de 2005 (Figura
1), porém a imagem que prevalece é a de um lobo desestruturado e decepcionado,
sentado no chão vestindo seu paletó vermelho, sua gravata azul, um colete xadrez e uma
17
Por meio de estranhamentos, segundo as propostas de Rodari (1982), pequenos elementos subvertidos
ou incluídos na história servem para despertar no leitor um interesse sobre os novos rumos da história ou
um olhar diferenciado, no caso em estudo, sobre seus medos. Ideias aprofundadas na Gramática da
Fantasia (1982, p. 172).
INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4
31
calçaa amarela (F
Figura 2), seguida pelaa imagem naa qual o lobbo “já não eera mais um
m LOBO. Era um BO
O-LO. Um bolo de lobbo fofo, trem
mendo que nem pudim
m, com med
do da
Chappeuzim. Com
m medo de ser comido com vela e tudo, inteirrim” (Figurra 3).
Figura 1: lobo tentandoo assustar ; Figuura 2: lobo deseestruturado; Figgura 3: lobo tenntando assustar
(
(ilustrações
de Ziraldo, 2005)
Um vãoo de mais de trezenttos anos de
d história, de avançoos tecnológ
gicos,
mudaanças cultuurais instala--se entre ass ilustraçõess de Maxfieeld Parrish,, Walter Crrane e
Gusttave Doré do
d século XIX
X
e as apenas
a
exem
mplificadass: da meninna assustada das
xiloggravuras anttigas à mennina que veence seus medos
m
“maiss medonhoss”. Ao penssar na
imaggem da Chhapeuzinho na contem
mporaneidad
de
percebemos váriaas mudançaas de
fisionnomia: criaança, adolesscente, joveem ou idosaa, sendo moorena, ruivaa, loira ou negra
n
(usanndo chapéuus de todas as cores), demonstraada por exccesso de caaricaturizaçãão ou
simpplesmente por
p garatujjas. Para o lobo, o principal aspecto dee mudança é a
antroopomorfizaçção ao longo dos tempos: um lobo
o com feiçõões animalizzadas e grottescas
cede espaço a um
u lobo orra satirizadoo ora vestid
do elegantemente, sem
mpre bípide – do
lobo pop-star de
d Ana Marria Machadoo ao lobo-b
bolo de Buaarque. Mesm
mo os lobos que
aindaa encontram
m as Chapeuuzinhos na floresta são
o ilustrados com paletóós e muitas vezes
v
gravaatas e gannham as passarelas
p
d moda no
da
n imagináário dos illustradores com
vestiimentas quee dão (assim
m como as botas ao Gato)
G
statuss, um estaddo humanizaado e
requiintado.
O inglêss Tony Rosss, em O menino
m
quee gritava ollha o lobo (2009), naarra a
históória de um menino quue, como o próprio títtulo desvennda, vive ggritando “O
Olha o
lobo!” e quandoo gritava todos fugiam
m de medo. O lobo dessa história é também muito
m
a
moçar
elegaante e educado (“para um lobo”) e sempre atravessava
as montanhhas para alm
Julio FFrança (org.)
32
vestiido de gala. Depois de tantas menttiras, ningu
uém mais coonfiava no m
menino até que o
verdaadeiro lobo apareceu e decidiu coomer todos os adultos deixando
d
o menino de lado,
mas depois muddou de ideiia e comeu-o no jantaar: “acontece, fazer o qquê?” (frasee que
fechaa a história)). Na ilustraação a seguuir, é possív
vel perceberr a glamourrização pelaa qual
passoou a imageem do lobo,, desestrutuurado ou ain
nda assustaador, os lobbos ficaram, sem
dúvidda, mais eleegantes.
Figura 4: lobo elegantemente vestidoo para comer.
Do loboo à meninaa: Matilde Rosa
R
Araújjo apresentta um chappeuzinho de cor
meira
diferrenciada. O Chapeuzinnho Cinzennto (2008) é uma hisstória narraada em prim
pessooa sobre o envelhecim
mento. Em meio
m
às refflexões e memórias
m
dee um chapéu
u que
não é mais verm
melho, uma voz trêmulla, rouca, su
urda, paira a presença de um lobo
o que
camiinha manso para não assustá-la,
a
l
lambe
doceemente as mãos
m
da vellha que sorrri em
uma versão quee fala da morte,
m
do ennvelhecimen
nto e das relações
r
fam
miliares. Ricardo
Azevvedo em Coontos de engganar a morrte (2005) afirma
a
que é um grandee erro consiiderar
a moorte como asssunto proibbido ou inaddequado para crianças,, o importannte é que a morte
m
esteja simbolicaamente preseente tanto no
n texto com
mo nas imaggens.
O medo da morte, por
p exemploo, está preseente no connto originalm
mente conh
hecido
comoo “Irmãozinnho e Irmãzzinha”. Na quarta
q
ediçãão de “Contoos de infânccia e do lar””, dos
irmãoos Grimm, em 1840, os pais biiológicos foram
fo
substtituídos porr um pai e uma
madrrasta que acabara por
p
se tornnar a verrdadeira viilã da histtória, morrrendo
INSÓLLITO, MITOS,, LENDAS, CRE
ENÇAS – Sim
mpósios 2 – Dialogarts – ISB
BN 978- 85- 8688 37- 81- 4
33
inexpplicavelmennte no fim, o que atribuui a alguns críticos
c
umaa certa ligaçção entre a bruxa
b
e a madrasta
m
(TA
ATAR: 20004). De quallquer formaa, a fome, prrincipal mote dessa hisstória,
leva o pai, incitado pela figgura feminina a abando
onar os filhhos na floressta. E como
o nem
só dee lobos viveem os medoos, não poderia deixar de lado, tom
mando o gaancho da história
menccionada, as bruxas.
Arden Druce
D
em Brruxa, Bruxaa venha à minha
m
Festaa (1995) ussa uma exceelente
q
colocaa a criança num lim
miar entre estranham
mento,
estraatégia narraatológica que
expectativa e meedo, estratéégia compleementada peelas ilustraçções de Patrricia Ludlow
w que
abalaam o expecttador, geram
m ansiedadee e, ao mesmo tempo, um silêncioo pensante. Uma
sériee de seres assustadores
a
s são conviddados por uma
u
bruxa a participarr de uma feesta e
cada convidadoo só confirm
ma sua preesença desd
de que um outro comppareça. A trama
t
amarrra o convitte à presençça de seres horrendos
h
(exemplifica
(
ados nas Fiiguras 5) co
omo a
bruxa, o gato, o espantalhoo, a coruja, a árvore, o duende,
d
o dragão,
d
o pirrata, o tubarrão, a
cobraa, o unicórnnio, o fantassma, o babuuíno, o lobo
o com uma touca
t
(e aquui já começçamos
a verr faces maiss aliviadas) e por fim, a Chapeuzinho Vermeelho, personnagem no qu
ual os
expectadores lannçam sua ânncora (enfim
m, ufa!, um personagem
m conhecidoo).
Figura 5: o babuíno,
b
a bruuxa e o pirata
Márcio SeligmannS
Silva (20055) relembraa que na peerspectiva dda teoria po
oética
clásssica, mais precisament
p
te com Arisstóteles, o abalo
a
prom
movido por cenas choccantes
que geram
g
no expectador
e
sensações de
d pena ou de medo, pode
p
ter um
ma consequ
uência
tantoo prazerosa como útil. Não à toaa a atração
o por cenass de violênncia ou trag
gédias
incitaam a curiossidade e fazeem com quee um aglom
merado de geente se desloque perantte um
cadávver, um acidente de trânsito
t
ou perante a cena
c
de um
m crime. Em
m “Do deliicioso
horroor sublime ao abjeto e à escrituraa do corpo”” (p. 31-45), Seligmannn-Silva traçça um
Julio FFrança (org.)
34
panorama sobre a teoria e os conceitos de sublime e a crise no paradigma sobre o belo e
mais ainda sobre o “horror deleitoso” que, segundo Burker (1993, apud SELIGMANNSILVA: 2005), proporciona deleite quando são atenuadas ou em nosso caso, residem
apenas no imaginário.
O sublime, o indescritível, apresenta-se, por exemplo, no filme A bruxa de Blair
(1999), pois a bruxa não aparece em nenhuma das cenas, apenas o clima de suspense
paira no ar. O filme brinca com o medo: o medo de bruxa, de monstros que nós mesmos
criamos, o medo de ficar perdido numa floresta escura. O filme aguça a imaginação do
expectador que não sabe com quem está lidando e nos lembra muito bem do fantasma,
do bicho-papão, do vulto no quarto, do medo de ter alguém em baixo da cama ou do
boi-da-cara-preta, seres que povoam o imaginário.
Talvez seja pelo caráter inominável que as crianças confundam, no livro a
Bruxa, bruxa, o horrível unicórnio azul com um simples cavalo, o tenebroso babuíno
por um simples macaco, o tubarão por uma baleia e o fantasma (ser sem forma) por um
capitão, por um pirata ou até pelo Barba Azul. A surpresa é revelada na última página
do livro quando vemos um fila de crianças fantasiadas indo em direção ao castelo e
associamos os convites realizados a uma festa à fantasia.
De qualquer forma, as crianças sabem (ou acabam aprendendo) o limite entre a
imaginação e a possibilidade do real, sentem medo sim, estranham sim, pois nossos
escritores e ilustradores usam artifícios bem convincentes e assustadores para arrepiar
os leitores, mais no fim da história, as crianças encontram conforto em personagens bem
conhecidos como o lobo, a Chapeuzinho, o contador da história ou simplesmente
fechando o livro.
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo:
Duas Cidades; Ed. 34, 2004.
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fada. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1980.
BUARQUE, Chico. Chapeuzinho amarelo. Ilustrações de Ziraldo. Rio de Janeiro: Ed.
José Olympio, 2005.
BUNN, Daniela. Da história oral ao livro infantil. In: Revista Estação Literária. Vagão1 v. Curitiba: [s.n.], 2008, pp. 50-57.
CORAZZA, Sandra. Infância e Educação. Petrópolis: Vozes, 2002, pp. 57-77.
INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4
35
CUNHA, Maria Antonieta Antunes. Literatura Infantil - Teoria e Prática. São Paulo:
Ática, 1985.
DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 1998.
SELIGMNN-SILVA, Márcio. “Do delicioso horror sublime ao abjeto e à escritura do
corpo”. In: O local da diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução.
São Paulo: Ed. 34, 2005, pp. 31-45.
TATAR, Maria. Contos de Fadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
Julio França (org.)
36
Entre devires e afetos: o terror como
impossibilidade da escrita em Rubens Figueiredo
Gabriel Cid de Garcia 18
Produtor cultural – UFRJ
Doutorando em Literatura Comparada – UERJ
O conto contemporâneo pode ser entendido como uma forma literária capaz de
afastar-se dos revestimentos da representação. Se nas literaturas de outrora pudemos
demarcar um lugar específico para o sujeito em uma obra literária, assim como uma
função delimitada para o narrador, este solo de definições se torna cada vez mais fluido
na literatura contemporânea. O narrador não está preocupado com a verdade que possa
advir de sua narrativa, se existe um respaldo real para o narrado que possa garantir para
ele a certeza a respeito daquilo que se conta.
De acordo com Nádia Batella Gotlib (2002), o conto pode ser considerado antes
um problema teórico do que um gênero literário. Este furtar-se às classificações bem
delineadas, racionalmente fundamentadas, reflete os diferentes desdobramentos que a
busca de um elemento comum para o conto teve que sofrer ao longo da história, onde
cada conto, em si mesmo, seria desde sempre problemático, caso teórico por excelência,
imune à generalização. Esta particularidade do conto, sua qualidade de inclassificável
enquanto gênero, associada à pluralidade de estilos que comporta, explicita a
aproximação do fazer literário à ideia de devir, de vir a ser, a um fluxo permanente e
ininterrupto que possibilita as mudanças que dissolvem qualquer remissão a identidades
e essências. Livre de ideologias que buscam representar a realidade ou um determinado
estado de alma, o conto inauguraria uma relação com o mundo que não se diferencia da
criação artística, onde a vida e a ficção se tornam indiscerníveis.
Não se trata mais de relacionar o narrado a alguma verdade ou a alguma essência
que se situe para além do texto, como um significado último a se alcançar. O narrado
passa a questionar-se enquanto tal, apontando para uma compreensão diferenciada do
sujeito, não mais preso aos ditames cartesianos que o elevaram a um patamar desde o
18
Doutorando em Literatura Comparada pela UERJ, mestre em Literatura Portuguesa pela mesma
instituição, bacharel e licenciado em Filosofia pela UFRJ. Produtor cultural da UFRJ. Professor substituto
de Estética do Departamento de Teoria e História da Arte, do Instituto de Artes da UERJ. Organizador do
livro ‘Ciência em foco: o olhar pelo cinema’ (Garamond, 2008). Membro dos grupos de pesquisa
‘Imagem, corpo e subjetividade’ (UFF) e ‘Dionysos’ (UERJ), vinculados ao CNPq. Atua
na interface entre a arte e a filosofia.
INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4
37
qual poderia conhecer a si mesmo e ao mundo metódica e racionalmente. É contra
qualquer possibilidade de método e ultrapassando a compreensão da tradição ocidental
acerca da razão, que a literatura contemporânea parece se deslocar. De acordo com
Deleuze, “escrever é um devir, escrever é atravessado por estranhos devires que não são
devires-escritor, mas devires-rato, devires-inseto, devires-lobo, etc.” (Deleuze, 2004, p.
21).
Para todos os propósitos, podemos dizer que o conto Alguém dorme nas
cavernas, de Rubens Figueiredo, nos interessa. É por meio dele que uma certa
concepção de literatura pode mostrar-se associada a uma dimensão impessoal que
problematiza a instância identitária do homem, e por extensão, do narrador. Partimos do
pressuposto de que o conto apresenta propriamente aquilo que Gilles Deleuze chamou
de registro de devires, uma vez que o filósofo francês relaciona o devir à componente
fragmentária dos contos. Para sustentar tal pressuposição, analisaremos alguns aspectos
pontuais do conto, sobretudo a presença do devir-animal no personagem Simão,
explicitando sua importância para se pensar a arte desvinculada de qualquer relação com
a verdade em termos de identidade, correspondência ou adequação aos princípios
transcendentes que por muito tempo pautaram a tradição do pensamento ocidental.
Em sua obra Mil Platôs (2004), em conjunto com Félix Guattari, Deleuze coloca
a questão que nos incita a pesquisar o conto rubiniano: comparados a fragmentos de
contos, como poderia haver um registro próprio dos devires? A questão inicialmente nos
apresenta uma propriedade destes devires: o que eles designam não pode ser aprisionado
por meio de significações, tampouco descrito de forma pontual, pois desta forma
suporíamos uma certa imutabilidade em seus processos. Podemos somente grafá-los em
sua dispersão, construir gráficos que permitam supor a leitura de seu funcionamento.
Assinalando suas componentes, algo sobre sua natureza pode daí ser inferido. A
possibilidade de compreensão do devir deve, portanto, afastar-se de qualquer análise
que privilegie associações com modelos de identificação universalizantes, que busque
significados simbólicos e estruturais, verdades ocultas no texto. Acercando-se do rigor
diante daquilo que é singular, que não poderia ser compreendido senão por meio de
relações, um conto e, em específico, o conto de Rubens Figueiredo, pode apresentar
propriamente, com toda sua fragmentação, o registro destes devires.
Logo no início do conto, somos apresentados à Casa construída no meio da
Floresta, em pleno território dos lobos. É na apresentação do hábito de se alimentar os
lobos, à noite, que uma diferença na relação que lobos e homens mantêm com o espaço
Julio França (org.)
38
pode ser evidenciada: “Param a qualquer sinal de movimento e quando não se sentem
seguros recuam, ainda que só alguns centímetros. Criam um espaço vital onde antes
havia apenas chão, capim, terra.” (FIGUEIREDO, 1994, p. 27). Esta descrição do
movimento dos lobos é também uma descrição enviesada dos homens. Porém, o espaço
que os homens criam para sobreviver não é o mero espaço selvagem, natural, mas a
Casa, a civilização, construída igualmente sobre o chão, sobre o capim e sobre a terra,
ou seja, a criação de uma forma sobre o informe. Segundo Deleuze, toda sociedade é
atravessada por determinados fenômenos que, desprovidos de lei, aparecem como
irredutíveis a qualquer captura significante. É por meio destas sugestões que o conto nos
introduz nesta atmosfera de indefinição e escamoteio que marca a condição mesma do
que o filósofo conceitua como o devir-animal.
Sendo um personagem que oscila entre o mundo dos lobos e o mundo dos
homens, apresentando características de ambos, não seria correto afirmar que Simão se
transforma em um homem-lobo, um lobisomem. O que existe é a tensão entre os dois
mundos efetuada a partir da presença de um devir-animal, que não designa a
transformação gradual do homem em animal, mas antes, se coloca como condição
suficiente do entrelaçamento irredutível de ambos, alcançando uma dimensão impessoal
que não diz respeito mais a uma ou outra espécie determinada 19 . De acordo com
Deleuze, “um devir não é uma correspondência de relações. Mas tampouco é ele uma
semelhança, uma imitação e, em última instância, uma identificação.” (DELEUZE,
2004, p. 18). Se esta definição negativa do devir vem a explicitar o que ele não é, na
passagem que se segue, Deleuze esmiúça a consistência própria do conceito:
Os devires-animais não são sonhos nem fantasmas. Eles são
perfeitamente reais. Mas de que realidade se trata? Pois se o devir
animal não consiste em se fazer de animal ou imitá-lo, é evidente
também que o homem não se torna “realmente” animal, como
tampouco o animal se torna “realmente” outra coisa. O devir não
produz outra coisa senão ele próprio. É uma falsa alternativa que nos
faz dizer: ou imitamos, ou somos. O que é real é o próprio devir, o
bloco de devir, e não os termos supostamente fixos pelos quais
passaria aquele que se torna. O devir pode e deve ser qualificado como
devir-animal sem ter um termo que seria o animal que se tornou.
(Ibid., p. 18).
19
José Gil afirma ser uma constante na história o interesse dos homens por monstros, caracterizado pelo
desejo de se buscar uma imagem estável da própria humanidade. Porém, o que faz com que, ainda que
repulsivo, o monstro provoque atração, é seu posicionamento em uma zona fronteiriça entre a
humanidade e a inumanidade do homem. A este respeito, ver Gil, 2006, p. 125. Ainda que não se torne
um monstro, Simão apresenta características que fazem com que o jogo entre humanidade e inumanidade
seja recorrente no conto.
INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4
39
É por isso que afirmamos que Simão, ao longo de sua metamorfose, não se torna
propriamente lobo, ou qualquer criatura que admitiria uma repartição igualitária das
identidades tanto do homem como do lobo. O que existe é um campo de indefinição
onde homem devém lobo, sem haver uma complementação ou um telos para o processo.
Ainda segundo Deleuze,
O devir-animal do homem é real, sem que seja real o animal que ele se
torna; e, simultaneamente, o devir-outro do animal é real sem que esse
outro seja real. É este ponto que será necessário explicar: como um
devir não tem sujeito distinto de si mesmo; mas também como ele não
tem termo, porque seu termo por sua vez só existe tomado num outro
devir do qual ele é o sujeito, e que coexiste, que faz bloco com o
primeiro. É o princípio de uma realidade própria ao devir (a idéia
bergsoniana de uma coexistência de “durações” muito diferentes,
superiores ou inferiores à “nossa”, e todas comunicantes). (Ibid., p.
18).
O devir forma blocos que desterritorializam os termos antes pautados pela ideia
de identidade e unidade, apresentando em si sua imbricação em uma dimensão
impessoal. O devir-animal é, portanto, perfeitamente real, e irrompe em Simão como
um clamor desejante que o atravessa e o faz buscar a efetuação de uma potência de
matilha. Esta potência impessoal contrapõe-se à vida na Casa, já que esta se ocupa da
disciplinarização dos ímpetos do exterior. É neste sentido que os ameaçadores lobos do
conto mantêm com a Casa uma relação singular. Temos na Casa a presença de
habitantes que vivem radicalmente de acordo com os desígnios da Bíblia (dentre eles, o
vegetarianismo), sendo a própria Casa um local dedicado à preparação dos jovens para o
sacerdócio. Por outro lado, temos na Floresta a imagem de tudo aquilo que a própria
Casa tem como função domesticar: a selvageria, a Natureza em sua nudez originária.
Simão é o narrador que nos conta sua experiência de ter sido enviado a esta Casa por ter
o comportamento de um menino selvagem, irrequieto, indisciplinado. O fato importante
a se notar é que esta mesma fúria incontrolável presente no menino Simão é apresentada
por ele como sendo um mecanismo de defesa:
Mentia a respeito de tudo, coisas importantes ou ninharias. Dava
gritos esganiçados, fechava os olhos e tapava os ouvidos se alguém
me flagrasse numa mentira. Em desespero, eu defendia alguma coisa
dentro de mim que não podia ser tocada por ninguém.
(FIGUEIREDO, 1994, p. 29)
Este estado natural de Simão foi sendo acalmado pela presença de Gregório, o
bibliotecário surdo e mudo que o apresentara ao mundo dos livros. É Gregório quem
Julio França (org.)
40
percebe algo de diferente em Simão, e resolve preparar seu caminho a partir de
sugestivas leituras escolhidas a dedo na biblioteca, e até mesmo por meio de marcações
em diversos livros, que Simão viria a descobrir após a morte do bibliotecário. Uma
curiosidade acerca de Gregório é que ele nunca conseguia organizar totalmente a
biblioteca após o incêndio que aconteceu na Casa: “[...] todos sabiam que se Gregório
conseguia pôr em ordem um setor da biblioteca era sempre ao preço da desordem em
prateleiras que já havia arrumado antes.” (Ibid., p. 29). Talvez haja aqui uma referência
ao Princípio da Incerteza, de Werner Heisenberg, que afirma ser impossível, para um
observador, lançar um olhar para uma coisa sem modificar também esta coisa
observada. Qualquer totalização acerca do saber, qualquer ideia de acabamento ou fim
voltada ao conhecimento, seria já ilusória e utópica face à complexidade e pluralidade
dos elementos matizados do real, todos interdependentes.
Ainda neste cenário de incertezas, Simão descreve o rosto de Gregório como
algo que parece estar em constante mutação, cuja aparência se assemelha à água, com
uma superficial transparência revelando uma abissal profundidade. Este mistério que
envolve Gregório também o aproxima de uma relação particular com os lobos20.
Recorrente na obra de Rubens Figueiredo, a água adquire neste conto também um papel
fundamental. É por meio dela que mais uma vez podemos estabelecer a relação de
continuidade e pertencimento entre a Casa e a Floresta. Muitas vezes a água é trazida ao
texto para dar a ver o fluxo natural e impessoal que constitui tanto a Casa como a
Floresta. A Casa, no entanto, recebe a água e a organiza, distribuindo-a pelos aposentos
através dos canos que se originam lá onde ela é armazenada, no tanque que se localiza
nos fundos da Casa.
Esta ideia reforça nossa suspeita de que toda a Casa se configura em um esforço
para se domesticar a Natureza. Além da água, a carne também exerce um importante
papel na narrativa. Inicialmente já entendida como um interdito em uma comunidade de
vegetarianos e religiosos, onde ela simbolicamente adquire um sentido alusivo à
tentação e ao desejo, a carne é trazida à Casa para saciar a vontade dos visitantes e
servir de alimento também aos lobos, no espetáculo que Estevão arquiteta todas as
20
As leituras sugeridas por Gregório a Simão mereceriam um capítulo à parte. Repleto de referências
clássicas às metamorfoses de homens e lobos, uma destas passagens nos relata uma lenda grega que diz
que uma transformação ocorrerá ao homem se o lobo o olhar antes daquele conseguir vê-lo. A lenda,
curiosamente, possui duas versões: em uma, o homem se transformaria em lobo; na outra, o homem
ficaria surdo. Estas duas versões podem sugerir a condição tanto de Simão como de Gregório. Ver
FIGUEIREDO, 1994, p. 35-36.
INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4
41
noites. Furtivamente, no entanto, Simão consegue experimentar a carne crua, forçando
seu corpo a assimilar aquele alimento tão estranho:
Tubos e câmaras dentro de mim resistiam como se fosse uma invasão,
queriam rejeitar, expelir, a própria carne se agarrava às paredes
internas do meu corpo no empenho de não ser engolida. Carne contra
carne. Mas eu forçava, e um pedaço depois do outro foi deslizando
dentro de mim. Eu sufocava um pouco, a respiração entrecortada.
Arfava e gemia sem querer. Eu queria, mas meu corpo não. (Ibid., p.
48)
A água da Casa e da Floresta, de coloração escura avermelhada, se mostrava
contaminada pela carne que lhe conferia propriedades nutritivas. Esta associação da
água com a carne explicita de forma mais enfática o co-pertencimento entre o interior da
Casa e seu exterior, ou ainda, mais precisamente, aquela componente que não se deixa
organizar ou domesticar, tornando a água notável, palpável, quase concreta, sólida,
trazendo a vivacidade para quem a bebe. De acordo com a narração de Simão, Raquel
“contemplava o copo cheio erguido contra a luz, mastigava um pouco o líquido,
estalava os lábios. Era um beijo. Era carne. Mas eu ainda não sabia” (Ibid., p. 33).
Este último desconhecimento de Simão não se apresenta como algo pontual no
conto. A narrativa é permeada de indeterminações quanto à origem de diversos anseios
e desejos de Simão. Passagens como “Não sei quando [...]” (Ibid., p. 30), “Sem que eu
percebesse, [...]” (Ibid., p. 32), “Não sei quando começou.” (Ibid., p. 34), são
recorrentes, questionando a possibilidade de uma demarcação inicial para tais processos,
que desde sempre estavam em atuação, embora não se possa precisar quando eles se
apresentaram à consciência. Foi desta forma que se iniciou a relação de Simão com os
lobos. Após o horário destinado à alimentação dos lobos, quando o personagem Estevão
jogava pedaços de carne para alegria dos visitantes que costumavam assistir ao
espetáculo, Simão passou a esperar os lobos exatamente no ponto onde termina o jardim
e começa a Floresta. Por si só, este ponto marca a indeterminação entre a civilização e a
selvageria. No início os lobos estranhavam mas logo passaram a demorar mais tempo
perto de Simão, por perceberem nele algo especial:
Não sei quando comecei a me mover perto deles. Devo ter ficado pelo
menos um ano sem me mexer, plantado no final do jardim, noite após
noite, uma árvore sem raízes. Ninguém na Casa sabia disso. Com
Estevão, os lobos eram espetáculo. Comigo, a convivência era
diferente. Não havia cálculo, não havia interesse. Não sei o que havia.
(Ibid., p. 34).
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42
Posteriormente, o elo entre Simão e os lobos vai se intensificando, até o ponto
destes não mais o estranharem, permitindo a ele se tornar um membro a mais da
matilha: “corremos juntos, eu e eles, para dentro da Floresta. O mato não fazia ruído nos
meu pés.” (Ibid., p. 54). Este elo firmado entre Simão e os lobos vai desafiando a outra
vida vivida por ele na Casa, influenciado também pelo fascínio causado pela jovem
espeleóloga Raquel, hóspede ocupada em estudar as cavernas da região.
A acolhida de Simão pela matilha nos oferece novos insumos para a teorização
que nos propomos. O estado de Simão, unindo-se de vez aos lobos, não poderia ser
pensado como uma evolução. A evolução, nos moldes tradicionais, supõe uma
passagem de um estado de indiferenciação para um estado de diferenciação. Este
esquema apresentaria problemas ao assumir que qualquer evolução só poderia se dar,
tendo em vista a seleção natural, por filiação ou hereditariedade. Deleuze pensa de outra
maneira:
O neo-evolucionismo parece-nos importante por duas razões: o animal
não se define mais por características (específicas, genéricas, etc.),
mas por populações, variáveis de um meio para outro ou num mesmo
meio; o movimento não se faz mais apenas ou sobretudo por
produções filiativas, mas por comunicações transversais entre
populações heterogêneas. (DELEUZE, 2004, p. 19).
Com a capacidade de se estabelecerem em grupos, não só restritos aos animais
da mesma espécie ou gênero, as populações de animais prefigurariam uma maneira
heterogênea de perseverar, diferencial, à medida que podem ocasionar mudanças no
ambiente e entre si muito mais rapidamente do que nos períodos estipulados para a
evolução tradicional.
Se o neo-evolucionismo afirmou sua originalidade, é em parte em
relação a esses fenômenos nos quais a evolução não vai de um menos
diferenciado a um mais diferenciado, e cessa de ser uma evolução
filiativa hereditária para tornar-se antes comunicativa ou contagiosa.
Preferimos então chamar de “involução” essa forma de evolução que
se faz entre heterogêneos, sobretudo com a condição de que não se
confunda a involução com uma regressão. O devir é involutivo, a
involução é criadora. Regredir é ir em direção ao menos diferenciado.
Mas involuir é formar um bloco que corre seguindo sua própria linha,
“entre” os termos postos em jogo, e sob as relações assinaláveis.
(Ibid., p. 19)
O contágio entra em cena como uma forma de evolução que substitui, em
eficácia, a evolução por filiação, justamente por colocar em jogo elementos
heterogêneos. As epidemias, as catástrofes e – no caso da literatura –, o vampiro, são
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exemplos de catalisadores de mudanças que se efetuam colocando em circuito
diferentes elementos de diversas ordens, podendo oferecer uma mudança muito mais
radical e drástica no ambiente, apenas pela união de diversos fatores, alheios a qualquer
relação homogênea dada por hereditariedade. Simão involui ao deixar sua identidade
dissolver-se neste entre-lugar que não é nem homem nem lobo, mas que é
suficientemente o lugar de irrupção e troca de devires, expressões impessoais 21 .
Notemos que esta involução ocorre por baixo das relações que podem sofrer algum tipo
de demarcação. Talvez por isso ele tenha provado a ignorância quanto aos processos
vividos e sentidos por ele anteriormente, que se presentificavam na forma de expressões
que traziam a incerteza quanto ao narrado. É naquilo que Deleuze define como uma
paticipação anti-natureza que a involução existe e por meio do sujeito, no caso, Simão,
vem à superfície, mas somente para evidenciar, por meio dela, a profundidade ou o semfundo desde onde fala. Por esta aliança, Deleuze quer marcar a oposição diante das
teorias tradicionais da biologia, a capacidade de contato e bi-implicância entre espécies,
gêneros e elementos diferentes, que desafiam a ordem natural: formar uma matilha ou
um bando, um agregado que possa fortalecer-se pela dissolução da primazia da unidade.
É antes de se constituir como um sujeito que Simão comporta o devir-animal, fenômeno
que nele sempre atuou em estado de latência, cujos efeitos se produziram como
impaciência e insatisfação com a ordem estabelecida, já que, “num devir-animal,
estamos sempre lidando com uma matilha, um bando, uma população, um povoamento,
em suma, com uma multiplicidade.” (Ibid., p.19) Designando esta dimensão exterior, o
que é próprio à Floresta, por multiplicidade, Deleuze enfatiza o afastamento de qualquer
tipo de tentativa de perceber alguma unidade, alguma identidade ou essência no deviranimal, pois afinal,
Devir não é certamente imitar, nem identificar-se; nem regredirprogredir; nem corresponder, instaurar relações correspondentes; nem
produzir, produzir uma filiação, produzir por filiação. Devir é um
verbo tendo toda sua consistência; ele não se reduz, ele não nos
21
Estas expressões impessoais podem ser chamadas de hecceidades, que são processos que atuam entre os
sujeitos ou entre os termos da relação, mas que são eles mesmos desprovidos de função e forma. O
próprio Deleuze já afirmou que os contos comportam hecceidades, e por isso poderiam encarnar de forma
própria a metamorfose que atua sobre as coisas e os sujeitos. Ver DELEUZE, 2004, p. 47. O conceito
medieval de hecceidade, introduzido por João Duns Escoto no século XIII, difere das doutrinas platônica
e aristotélica ao estabelecer que as coisas singulares são cognoscíveis em sua própria singularidade,
entendendo a inteligibilidade destas mesmas coisas como atributo de sua singularidade, e não mais de
uma ideia e uma forma universal. Para a relação deste conceito a uma teoria do conto, ver GARCIA,
2005.
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conduz a “parecer”, nem “ser”, nem “equivaler”, nem “produzir”.
(Ibid., p. 19)
Tal consistência é a que podemos notar no conto de Rubens Figueiredo. Dotado
de suficiência, devir é um verbo intransitivo que designa um processo que vem à
expressão no devir-animal, o qual desterritorializa tanto Simão quanto os lobos. Não
sendo da ordem da filiação, o devir nasce formando alianças, de bando, matilhas,
justamente por colocar em jogo diferentes seres, de escalas e reinos totalmente
diferentes, que adquirem um novo estatuto à medida que são capazes de produzirem
suas simbioses. Percebemos aqui que a matilha não apenas designa, no conto, o bando a
que Simão passa a pertencer, mas antes todo o domínio do real, com suas séries e
domínios heterogêneos, que se furtam à fixidez das significações e produzem suas
relações anômalas. É a respeito da escrita que o próprio conto fala, ao mesmo tempo em
que os conceitos trabalhados por Deleuze também se associam ao fazer literário.
A condição lupina de Simão, seu desejo de fundir-se aos lobos, era algo que ele
procurava compartilhar com Raquel. As descrições de Simão que envolvem Raquel não
hesitam em aproximá-la igualmente de algo selvagem, em perfeita harmonia com as
coisas naturais. Simão chega a afirmar que ela era “uma espécie de bicho” (Ibid., p. 33).
Por perceber nela esta afinidade com uma dimensão animalizada, Simão não hesita em
buscar meios de aproximá-los, seja convidando-a para o limite do jardim para
experimentar a companhia dos lobos, seja passeando pelas trilhas que levam às
cavernas. Sua relação com Raquel, no entanto, pode ser entendida como a tensão
existente entre a curiosidade natural e a captura exercida pelo saber científico, que
admitiria uma certa frieza no lidar com as cavernas. É neste ponto que o interesse de
Raquel por Simão encontra um impasse: o interesse de Raquel não poderia nunca se
afinar com aquele de Simão, pois o dela seria sempre ainda mediado pela objetividade
científica. É por isso que no desfecho, após a morte de Raquel nas cavernas, Simão
venha a constatar a impossibilidade de compartilhar seu segredo: “Ela queria o meu
segredo e o meu segredo não lhe serviu para nada. Talvez fosse isso que ela queria. O
que não se pode possuir, tem que ser destruído. Meu erro foi não entender que era
melhor ficar sozinho.” (Ibid., p. 58).
O segredo de Simão, seu devir-animal, não estaria acessível para Raquel caso ela
se ocupasse dele apenas de forma objetiva, pragmática, utilitarista. Seu segredo não
seria passível de nenhuma leitura, ou nenhuma compreensão real, caso esta fosse
lançada desde um solo que não o da dimensão impessoal lá onde ele [o segredo] se
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oculta. Qualquer compreensão objetiva seria considerada tardia, um acréscimo inócuo
que não compreenderia o fenômeno, mas apenas o produto de sua redução formal.
Mesmo alijado do mundo dos homens, instalado neste entre-lugar, Simão ainda escreve.
É porque existe o registro da palavra de Simão que o conto pode também existir. O
registro de devires é exercido pelo próprio Simão, no limiar de sua consciência, no
esfacelar de seu corpo, que se recusa a adaptar-se à nova condição. Este mesmo registro
de Simão se dá não de forma linear, mas de forma fragmentada, apresentando-se, o
próprio conto, como uma resposta consistente à questão inicial proposta por Deleuze. É
através dos últimos escritos de Simão, apresentados ao longo do conto, que podemos
voltar (talvez sem nunca ter saído) ao tema da escrita, agora já munidos de um
ferramental conceitual adequado.
Para mim é difícil escrever. Não por alguma emoção ou escrúpulo
próprio, como os que os autores gostam de alegar, disfarçando de dor
o que não passa de presunção. Para mim é difícil escrever porque só
tenho este caderno amarrotado e sempre úmido, apoiado na terra ou na
pedra de superfície desigual. E para segurar a caneta só posso contar
com os dentes e com o que me resta da mão. (Ibid., p. 28)
A primeira parte desta passagem, possivelmente a que mais ressoa com a
totalidade do conto, é um ataque direto à imagem do narrador herdada da tradição
metafísica ocidental. É como se Simão nos dissesse que não se trata, neste conto, de um
narrador com características iluministas ou românticas, onde a consciência tem um
papel fundamental e a certeza sobre o que é narrado diz respeito ou à verdade do mundo
exterior ou à verdade interior do próprio narrador. A sequência final, que explicita as
causas da dificuldade de escrever, não oferecem nenhuma justificativa elegante,
apresentando a crua justificativa da dificuldade de Simão – e do narrador
contemporâneo. A umidade do papel, o estado deplorável do caderno, a superfície de
pedra, desigual, tudo alude à concretude do mundo e sua anterioridade em relação aos
sujeitos constituídos. A unidade do conhecimento, tributária da ideia de verdade, é
perturbada pela potência de matilha formada pelos devires, que destituem a razão de
suas propriedades universais, dando lugar a afetos que não se confundem com
sentimentos pessoais ou localizáveis. Temos, portanto, uma condição híbrida e
impessoal para o homem, tributária da insuficiência de parâmetros que garantam, para
um sujeito fragmentado, qualquer certeza. Por esta via, é inevitável pensar que a
condição de Simão não só espelha a da sociedade ocidental, como lhe é constitutiva. A
selvageria não é algo exterior que reside num lugar além da razão. Ao contrário, a
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própria razão já pode ser considerada como um efeito produzido a partir deste estado
selvagem que lhe é imanente.
Neste cenário onde as referências se desestabilizam, a literatura viria a cumprirse como uma escrita lupina, como lobiferação, para usar a terminologia de Deleuze: um
esforço para destruir a ordenação significante e se instaurar no limiar entre a convenção
e a destruição desta mesma convenção, dissolvendo as posturas predicativas que ao
longo da tradição privilegiaram o verbo ser em detrimento do devir. Como afirma
Simão, “onde estou, escrever é quase uma aberração. Não é coisa deste mundo nem do
outro. Não é o que eu sou, não parece com o que eu fui.” (Ibid., p. 44) Desta forma,
rompe-se com o regime de interioridade do sujeito, desprovido já de qualquer essência
formal, eterna, universal. O que existe é apenas a capacidade engendradora de fluxos
impessoais pré-individuais que confundem conteúdo e expressão, tomando conta do
narrador, que deixa de possuir qualquer certeza e domínio sobre o narrado, a ponto de
evidenciar, por fim, a própria incapacidade de escrever.
Os contos, traduzindo o movimento do devir a partir de seus registros,
apresentam com maior intensidade e propriedade a possibilidade de um conhecimento
radical sobre o real. O homem opera seus devires-animais nos agenciamentos que
estabelece com as multiplicidades de termos heterogêneos, e o registro destes devires,
destes recônditos inauditos de uma dimensão inumana do homem, podem ser
apresentados por meio da arte. A estética vem a substituir, de forma sutil, a metafísica.
A partir de fluxos impessoais, o sujeito pode adquirir e admitir diversas
configurações. É o que afirma Deleuze, quando explicita que a matilha não cessa de
trabalhar por baixo e perturbar de fora as grandes construções identitárias ocidentais,
como a família e o Estado. A Floresta, a terra, a pedra, ou antes a potência de matilha
vislumbrada nestes elementos selvagens, se mantém como o outro da Casa, sua
dimensão não domesticada, mas que também a engloba e a condiciona, e a perverte por
dentro, mantendo-se à espreita, até o momento onde se vê aflorar o devir-animal que faz
com que se retorne à inumanidade, sempre presente. Em seu estudo sobre monstros,
José Gil nos explicita este co-pertencimento da humanidade à inumanidade:
Qualquer coisa em nós, no mais íntimo de nós – no nosso corpo, na
nossa alma, no nosso ser – nos ameaça de dissolução e caos. Qualquer
coisa de imprevisível e pavoroso, de certo modo pior do que uma
doença e do que a morte (pois é não-forma, não-vida na vida),
permanece escondido mas pronto a manifestar-se. A fronteira para
além da qual se desintegra a nossa identidade humana está traçada
dentro de nós, e não sabemos onde. (GIL, 2006, p. 125-126).
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É esta peculiar capacidade de pertencer desde sempre à inumanidade, de
perceber sua proximidade no humano, o que provoca ao mesmo tempo pavor e atração.
Os elemento terríveis da narrativa contribuem para a evidenciação dos limites entre o
humano e o inumano, donde advém o medo gerado pela implosão dos fundamentos que
garantiam até então a razão e a ordem. Entendendo o conto como uma forma de acesso
ao caos, a experiência literária do medo que ele propicia pode ser pensada como um
modo suficiente de se viver concretamente o que é expresso na ficção, visto que é
próprio da linguagem da ficção – de acordo com Maurice Blanchot (1997) – colocar o
leitor em contato com uma não-realidade capaz de presentifica as coisas e o mundo por
meio da consistência das palavras. Esta propriedade da ficção faz com que o leitor seja
capaz de sentir atração pelo desconhecido.
No conto, é também uma atração que leva Simão a conceder atenção às
montanhas, à carne, aos lobos, enfim, a tudo que se antecipa à ordem humana. Simão
gostava de se aventurar pelas cavernas. Assim como Gregório, ele conhecia seus
segredos, suas entradas e saídas, suas nuances. A caverna é, para Simão, uma outra
biblioteca. Ela detém o silêncio no qual ele pode mergulhar para devir-lobo. A
biblioteca, entretanto, pode ser vista também como uma caverna, assim como a própria
Casa. Em ambas, a diferença reside apenas no modo de se lidar com a terra, com a
pedra, que vai admitir formas mais ou menos trabalhadas, que podem ou não se afastar
de seu estado bruto. Esta relação entre a caverna e a Casa, a caverna e a biblioteca,
evidencia a mesma relação entre o silêncio e a palavra, perfeitamente encarnada em
Gregório, cuja inevitável omissão da palavra faz com que sua presença seja ainda mais
intensa.
A mesma relação é a que o próprio conto evidencia, o registro de devires que ele
apresenta, o embate entre sua forma e aquilo que o corrói por dentro, fragmentando-o,
fazendo com que seus elementos se apresentem ao mesmo tempo como familiares e
estranhos, problematizando o próprio contar, à medida que a palavra, a linguagem, é
posterior ao ruído, ao uivo, ou ainda, ela é o próprio ruído domesticado, disciplinado,
ordenado. É mesclando os domínios da razão e da desrazão, do pessoal e do impessoal,
que a literatura, enfim, pode tornar visíveis os devires inauditos no homem, que
perscrutam e contestam sua natureza. A ficção brasileira contemporânea, com este belo
exemplo do conto de Rubens Figueiredo, é um convite a se instalar no limiar entre a
Casa e a Floresta, perturbando-nos de fora contra qualquer indicio de remissão à
identidade, à conformidade a modelos privilegiados, no interstício entre o uivo e a
Julio França (org.)
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palavra, a forma e o informe, a caverna e a Casa, o humano e o inumano, o caos e a
ordem, sem deixar margem para qualquer decisão. Escrever não pode mais deixar de
ser, em nossa época, uma tarefa dos lobos. São eles que nos permitem tomar por
ilusórias as pretensões humanas.
REFERÊNCIAS:
BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Trad. Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro:
Rocco, 1997.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. 4 v.
Trad. Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 2004.
FIGUEIREDO, Rubens. O livro dos lobos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
GARCIA, Gabriel Cid. “A continuidade inesgotável da literatura: o conto comportando
uma hecceidade”. In: Cadernos do IL (UFRGS), nº 30, Jun. 2005, p. 63-89.
GIL, José. Monstros. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2006.
GOTLIB, Nádia B. Teoria do conto. Rio de Janeiro: Ática, 2002.
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Medo e miséria em
“Crianças à venda. Tratar aqui”.
Jorge Amaral 22
RESUMO: A partir da análise do conto “Crianças à venda. Tratar aqui”, do livro Sete
ossos e uma maldição, de Rosa Amanda Strausz, este trabalho pretende desenvolver
reflexões acerca do medo enquanto resultado de um meticuloso processo de construção
literária. Como, no conto analisado, a atmosfera do medo é estabelecida pela
manipulação de elementos capazes de sugerir a possibilidade de existência de forças que
escapam à lógica aparente da realidade material, este trabalho busca demonstrar como o
insólito e o temor pelo desconhecido podem chegar à consciência do receptor também
como objeto estético, e não apenas como simples mecanismos de suscitação efeitos
sensoriais. No entanto, além dessas reflexões, será demonstrado que toda essa atmosfera
que caracteriza a possibilidade da presença do insólito se ergue a partir de uma realidade
que talvez seja ainda mais assustadora do que a supostamente sobrenatural, uma vez que
diz respeito às deploráveis ações a que o indivíduo é capaz, após atingir um elevado
grau na escala de miserabilidade social.
PALAVRAS-CHAVE: Horror; Medo; Sobrenatural; Insólito; Miséria.
Em “Crianças à venda. Tratar aqui”, conto que abre o livro Sete ossos e uma
maldição, de Rosa Amanda Strausz, o que logo salta aos olhos é a força com que o
signo da miséria conduz a movimentação dos personagens. Marialva, uma mulher muito
pobre, vivendo em “Um casebre miserável, perdido numa curva do rio, sem eletricidade,
sem comida, sem dinheiro, sem remédio, sem nada”, e sem a mínima condição
econômica de dar conta da criação de seus filhos, encontra na comercialização de sua
prole a forma ideal para a melhora de sua qualidade de vida. Quando Marialva decide
vender os filhos, estavam vivos apenas cinco dos nove que teve, os outros quatro
haviam morrido em consequência das condições de misérias a que estavam expostos.
Curiosamente, o ato cruel de converter os filhos em mercadoria provinha não apenas no
anseio de ascensão social, mas também do medo de que os que ainda estavam vivos
pudessem também ser entregues ao mesmo triste destino dos irmãos mortos. No início,
então, o conto apresenta a morte como uma consequência inevitável do processo de
degradação social. No entanto, como resultado desse processo de extrema
miserabilidade, o medo da morte que assola a personagem não é compartilhado também
pelo leitor. Este, antes, é tomado pelo sentimento de repulsa, causado tanto pelo quadro
22
Mestre em Literatura Brasileira (UFRJ)
Julio França (org.)
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de miséria que foi desenhado, quanto pela radical atitude da mãe. Aqui, o leitor é
atingido não apenas no âmago de seus códigos morais, mas também no cerne de sua
estrutura emocional.
Diante, então, dessa atitude (que para o leitor pode soar fria e desumana, mas
para a personagem reflete nada mais que o instinto de autopreservação), Marialva
começa a vender os filhos e a se convencer de que esse é realmente o caminho mais
eficaz para se distanciar definitivamente do mau agouro da miséria perene.
O primeiro filho vendido, Tião, comprado por uma família dos Estados Unidos,
é um exemplo de que fizera a coisa certa. Pois, um mês depois da viagem do filho, ela
recebe uma foto do menino, “limpo e sorridente, bem vestido e já mais gordinho, no
meio de brinquedos e livros novos, e abraçado a seus novos pais”. Ao ver a foto, o
contraste entre o cenário no qual o filho vendido é apresentado e o quadro em que ela se
encontra ajuda a tornar sua atitude mais amena aos olhos leitor, que é levado a repensar
seus códigos éticos, tornando-se de algum modo, digamos, mais “corruptível”. E com a
venda dos outros filhos Francineide e Ronivon, o texto torna ainda mais aguda a
justificação do ato de Marialva, sobretudo quando nos explicita o destino que o dinheiro
da venda das crianças rendeu à matriarca, ou seja, “uma cabra, três galinhas, um
cobertor para as noites frias, sabão de tomar banho e uma panela nova”.
A venda do próximo filho, Fabiojunio, ocorreu sem problemas para Marialva.
No entanto, quando a família compradora manda as fotos do menino para a mãe, novos
elementos são inseridos na trama. Ao contrário do que ocorrera com os primeiros três
filhos vendidos, este não demonstrava a mesma felicidade. Na verdade, Marialva não
percebera nenhuma diferença, sobretudo porque a foto viera acompanhada de uma nova
soma em dinheiro, o que reforçava sua convicção de que efetuara um grande negócio.
Quem, na verdade, nos alerta para a estranheza da foto é Simara, a filha mais velha, que
só não foi vendida porque já passara da idade, já completara 10 anos, ficando, assim
com a tarefa de ajudar a mãe nos afazeres domésticos. Ao contrário dos outros irmãos,
Simara percebe no desenho um outro cenário, no qual o menino “Estava sozinho, de pé,
com os braços estendidos ao longo do corpo, no meio daquele jardim imenso. Parecia
triste”. Este é um quadro aparentemente corriqueiro, que poderia simplesmente refletir o
estado de espírito do garoto, que poderia estar triste em face ao distanciamento da
família, por exemplo. No entanto, para o leitor, que já se aproximara do texto com a
consciência aberta para a possibilidade de eventos insólitos, isso parece ser já um
indício da ocorrência de algo mais significativo. A cada foto enviada, acompanhada de
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certa quantia em dinheiro, Marialva ficava mais feliz, ao mesmo tempo em que Simara
percebia uma maior estranheza no aspecto cada vez mais cadavérico do irmão. Assim,
ao mesmo tempo em que a matriarca sente-se cada vez mais feliz, pensando em comprar
um fogão e ter “comida todos os dias”, o aspecto do filho vai ficando cada vez mais
soturno, preocupando cada vez mais a pequena Simara. Na última vez em que recebera
a carta, no entanto, Simara decide olhar a foto mais detalhadamente, e percebe,
estarrecida, que seu irmão estava mutilado, pois no lugar de seus olhos, estavam apenas
dois pequenos buracos fundos e negros.
Quando ela vai à igreja procurar ajuda, os aspectos sobrenaturais já começam a
se desenhar com mais nitidez, não propriamente pela aparência macabra do menino,
mas pela atitude do padre que, procurado por Simara, a acompanha até cidade em que
reside a família compradora, e leva uma pesada cruz de prata e um vidro de água benta.
A atitude do padre nos fornece indicações de que algo localizado além do plano físico
pode já estar atuando. Quando vai procurar o pároco da igreja da cidade, é registrada a
primeira indicação explícita da atuação do sobrenatural, pois, segundo o texto, “As fotos
diziam claramente que se tratava de um caso de bruxaria”. Aqui, o texto atinge um
estágio bastante significativo, impulsionado pelos sentimentos de estranhamento e
incerteza, baseados na possibilidade de atuação de forças de um mundo comandado por
leis desconhecidas. Sob o ponto de vista do leitor, essa mesma sensação, acompanhada
por sentimentos igualmente desconfortáveis, como a expectativa da ocorrência de fatos
que podem comprometer sua integridade física, encontra-se numa espécie de
encruzilhada paradoxal. Pois, da mesma forma que o desconforto é causado pelo medo
de que algo de maligno possa atingir os personagens, o prazer é o produto da absoluta
certeza de que esse mesmo leitor está totalmente imune às consequências do contato de
tais forças maléficas. Como afirmam nomes ligados ao gênero, como Lovecfart, na
recepção de uma obra,
na qual o resultado do processo de realização estética é
sobretudo incitar a sensação de medo, está a certeza que esse mesmo medo pode ser
algo extremamente agradável para a consciência do leitor, uma vez que já está implícita
a segurança de se estar completamente imune às ações dos sujeitos causadores desse
medo. Essa inclinação ao prazer do medo, de certa forma, pode ser entendida, a partir da
afirmação de Lovecraft, na qual o medo é “A emoção mais antiga e mais forte da
humanidade...”. Sensações como a dor ou o receio de que algo terrível possa nos
acontecer podem nos fazer entrar em contato com os campos mais sensíveis de nossa
consciência. Esse tipo de sentimento pode ser, segundo Edmund Burke, muito mais
Julio França (org.)
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poderoso e significativo que sensações prazerosas. E uma obra de arte literária, por
exemplo, pode nos pôr em contato com essas sensações por intermédio de arranjos
estéticos, dos quais podemos tirar proveito dos sentimentos mais tenebrosos, sem o
risco de sermos vítimas desses atores. Neste sentido, quando Simara e o padre (munido
de cruz a água benta, sob a certeza de que se trata de um caso de bruxaria) vão em busca
de algo ainda totalmente encoberto pelo véu da incerteza, passamos a estar diante do
tipo de medo, segundo Lovecraft, mais antigo e poderoso, ou seja, o “o medo do
desconhecido”. Se a menina e o padre fossem em busca do menino desaparecido, com a
certeza de que se tratasse de alguma ação de sádicos que tinham por diversão arrancar
os olhos de crianças, ou de uma gangue que atuasse no ramo de comercialização de
órgãos, por exemplo, essa mesma sensação de medo não atingiria o auge de sua
magnitude, pois os caminhos aí já estariam traçados, limitados pela realidade não menos
cruel da violência urbana. Mas os personagens, além de não saberem o que os espera,
ainda estão envolvidos pelo temor da atuação de forças sobrenaturais. Aqui, o medo do
desconhecido é oriundo da possibilidade de se tratar de algo que escape à realidade
imediata, algo situado no além-matéria que é imune às formas físicas de defesas.
No entanto, tal sensação de incerteza experimentada pelos personagens vai se
concretizando em terror quando, ao chegar à igreja da cidade, descobrem que o
endereço da família compradora não existe. Aqui, a relação entre a foto de Fabiojunio
em uma casa que já não mais existe aproxima ainda mais os personagens da ação de um
elemento sobrenatural. Afinal, como alguém poderia tirar uma foto em um lugar que já
não mais existe? Obviamente, nossa inclinação para ir ao encontro de explicações
lógicas nos leva a acreditar que a misteriosa família pode ter fotografado o garoto em
outro lugar que não a do endereço declarado. No entanto, uma afirmação do padre local
trata de dissolver essa possibilidade lógica. Ao verificar o endereço e perceber o ar
aflito em que se encontra a menina, ele afirma: “Seu irmão está morto.” E arremata,
estabelecendo de vez a atmosfera de terror, antes apenas sugerida por uma cadeia de
possibilidades: “Preparem-se para ver uma coisa terrível.”
Na literatura, ao contrário de veículos audiovisuais, como o cinema, por
exemplo, o elemento causador do susto só pode ser construído a partir de um
encadeamento de signos verbais que, em determinado ponto, atingem o ápice da
sensação de terror. No cinema, há o recurso do súbito, sobretudo pela possibilidade de
as imagens já estarem condicionadas apenas ao seu próprio poder de autossignificação.
Na literatura, tais imagens só chegam à consciência do leitor por meio de um
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encadeamento de palavras. Assim, o horror oriundo de uma obra literária é munido de
uma característica singular, na qual não há a possibilidade do súbito. Assim, o susto,
que numa obra audiovisual pode ser conseguido por meio do aparecimento repentino de
uma imagem impactante, num texto, é sempre construído de acordo com a forma com
que o enunciado estruturado.
Ao falar acerca de questões relacionadas ao prazer do medo, o cineasta Alfred
Hitchcock acaba adotando uma postura bastante particular (mas ainda sim digna de
menção) sobre a diferença entre o terror e o suspense. Como sua principal área de
atuação foi o audiovisual, Hitchcock acaba estabelecendo bem a distinção entre a
construção do medo produzido para as telas daquela feita para as páginas. Para ele, a
diferença entre suspense e terror estaria exatamente no caráter súbito com o qual a cena
é construída. Segundo o cineasta, não há a possibilidade de existência de terror se não
houver a presença do súbito. Assim, o terror está necessariamente ligado à ideia de
estarrecimento em relação a algo ocorrido repentinamente. Qualquer movimentação que
escape a essa regra, já estaria inserido no universo do suspense. É claro que não
poderemos aplicar esse princípio ao discurso literário, exatamente pela sua incapacidade
de construção do súbito, consequência da própria natureza do discurso verbal. Assim, se
aplicarmos a teoria de Hitchcock à realidade literária, chegaríamos à equivocada
conclusão de que seria impossível existir literatura de terror. Na verdade, a natureza do
discurso literário de terror é proveniente de uma outra ordem. E a consciência receptiva
do leitor, de alguma forma, já se aproxima de uma obra literária de terror com a
consciência alerta para essas diferenças de linguagem. Um leitor de horror já se
aproxima do texto envolvido pela expectativa do desconforto, do medo, e até de
estarrecimento, mas não do susto. A obra literária sugere uma forma de recepção mais
particular, na qual a mais súbita das cenas estaria, ainda sim, sujeita à inevitável
vagarosidade do encadeamento lógico de palavras. Neste sentido, embora estejam
intimamente ligados pelas emoções que compartilham, leitor e personagens
experimentam sensações distintas de terror. O súbito da imagem presenciada pelo
personagem chega à consciência do leitor de outra forma. E é nessa posição que estão
Simara e o leitor, quando ela constata que o casarão no qual seu irmão tirara a foto na
semana anterior é, na verdade, um casarão abandonado havia anos: “Ao olhar para a
cena, Simara deu um grito. Reconheceu, ao longe, o casarão abandonado. No entanto, à
sua frente, erguia-se uma ruína, abandonada havia anos meio ao terreno desolado”. Para
reforçar o estarrecimento da personagem, o texto não deixa dúvida de se tratar
Julio França (org.)
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realmente do mesmo local: “Não havia dúvida nenhuma, era a casa da foto. Ou era a
casa como teria sido muitas décadas atrás.” O objetivo do texto é mostrar a perplexidade
da menina ao constatar que uma força misteriosa poderia estar agindo naquele episódio.
Ao perceber a possibilidade da ação de forças desconhecidas, sacramenta-se e presença
daquilo que Lovecraft chamou de “medo cósmico”. O sentimento resultante da ameaça
de algo situado no exterior do imediatamente explicável. O mistério supramaterial do
maligno. E é diante desses quadros, cuidadosamente expostos por meio de uma sucessão
arranjos verbais, que o mistério do horror se estabelece.
Mas curiosamente, mesmo com o estabelecimento de toda essa atmosfera, o
medo não chega a tingir nossa pequena heroína. Embora a narrativa tenha incitado o
sentimento do medo no leitor, em Simara o que se sobressai é a esperança de encontrar
seu irmão, mesmo diante dos cada vez mais evidentes traços de atuação do elemento
sobrenatural. Simara “não tinha medo”, diz o texto, “não sentia nada além de uma
urgência imensa e de uma esperança meio improvável de ainda encontrar o irmão”. Mas
é exatamente a ausência desse sentimento que vai sacramentar o fim das esperanças de
nossa pequena heroína, quando ela avista um antigo cemitério com nove tumbas, duas
delas em que estão as fotos do casal que levara seu irmão, com a data da morte, ocorrida
cinquenta anos antes, e mais sete pequenos jazigos. No último, a foto de seu irmão, a
mesma foto que lhe fora enviada na semana anterior. No entanto, como se trata de uma
heroína de apenas 10 anos, é importante afirmar, portanto, que estamos diante de um
indivíduo com a consciência ainda em formação, na qual não há ainda muito espaço
para a surpresa do insólito. Ao mesmo tempo em que as fronteiras emocionais estão
ainda bastante indefinidas, a sensibilidade de uma criança ainda está aberta a
possibilidades da ocorrência de fatos que estejam em desacordo com a lógica racional
de um adulto. Assim, da mesma forma que o medo deu lugar à coragem para buscar seu
irmão, agora, ao presenciar aquele estranho fato, e consciente da impossibilidade de
salvar o irmão, Simara não se estarrece, e nem tenta traçar um caminho intelectual que
possa dar sentido àquela sucessão de acontecimentos absurdos. Na verdade, como
afirma o texto, “tudo o que Simara queria era voltar para casa e contar para a mãe o que
tinha descoberto.” Para ela, não pesa o estranho fato de seu irmão estar morto e
enterrado, ao mesmo tempo em que aparece em uma foto numa casa que não já existe.
Para ela, o que importa, sobretudo, é a perda do irmão.
Ao retornar para casa, no entanto, a figura da mãe traz de volta à cena a força do
signo da miséria. Ao chegar em casa, a expectativa se encontrar uma mãe preocupada,
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devido ao zelo que deveria ter pelos filhos, logo é quebrada, pois “A velha senhora
estava radiante quando abriu a porta para a filha.” E aqui acrescenta-se à história um
novo elemento insólito, quando a mãe se dirige à filha, tranqüila e contente: “Porque
você não disse que ia visitar seu irmão? Perguntou a mulher com um sorriso.” E antes
que a menina esboce qualquer reação em relação à estranha declaração de Marialva, esta
lhe mostra um envelope com uma foto. O parágrafo referente é bem significativo, pois
representa um outro ponto de virada na narrativa, na qual nossa heroína converte-se em
mais uma vítima dessas misteriosas forças do mal:
Simara avançou para o envelope. A primeira coisa que viu foi a foto. Uma foto
dela, vestida com roupas elegantes e antiquadas, de pé, braços estendidos ao longo do
corpo, no pátio dos fundos da casa, onde havia o cemitério, embora a foto não mostrasse
cemitério algum. Só um bonito jardim, com o gramado muito bem cuidado e árvores
frondosas ao fundo.
Inexplicavelmente, a heroína agora passava a vítima da mesma força maligna e
misteriosa a que tinha sido vítima o seu irmão, indicando, com isso, que o desconhecido
continuava atuando, mesmo quando o elemento narrativo não apontava para tal. A única
ponte de ligação dos fatos é a mãe. As forças malignas representadas pelo estranho casal
lançaram mão da força da miséria da mãe para tomar posse das crianças. Ou seja, o
insólito, o sobrenatural, o maligno, o além-matéria, aqui, atuam tendo o aspecto social,
ou seja, a miséria, como o seu grande veículo de realização.
A mãe não abre espaço para explicações. Suas pretensões de ascensão de status
(sejam sejam essas pretensões acompanhadas pela preocupação com a qualidade de vida
dos filhos ou não) não abrem espaço para conjecturas sobre forças extramateriais. E
antes que sua filha, estarrecida, falasse algo, suas palavras selam o destino de nossa
pequena heroína, agora vítima: “Leu a carta? Eles ficaram encantados com você! E
completou: “E vêm buscá-la hoje mesmo, à noitinha. Você nem imagina como me
pagaram bem!”. E o conto termina sem explicações definitivas, mas com as portas
abertas para um vasto campo de possibilidades. As questões sobrenaturais evidentes, a
diferença entre a casa da foto e a que Simara conhecera, o cemitério com as sepulturas
de um casal morto há cinquenta anos, mas que foi à casa de Simara comprar seu irmão
e, posteriormente, a ela mesma, são todas questões não elucidadas, que fazem parte do
arranjo construtivo do conto, e que reforçam ainda mais a atmosfera misteriosa da
trama.
Julio França (org.)
56
CONCLUSÃO
Apesar de não se mostrar explicitamente, mesmo com algumas indicações de
texto, o elemento sobrenatural é latente no desenvolvimento do conto. No entanto,
podemos observar que, mesmo tratando do medo cósmico, do medo do desconhecido,
este não é o veículo impulsionador do texto. Na verdade, o grande motor de
desenvolvimento da trama é o processo de degradação social a que pode chegar o ser
humano. É ele o grande trampolim para o desenvolvimento do elemento sobrenatural.
Na verdade, o conto é um grande duelo de forças entre o horror sobrenatural,
caracterizado pelo misterioso casal, e a deterioração social, caracterizada pela extrema
miséria de Marialva. Os momentos finais do conto são bastante representativos nesse
aspecto. Ao voltar para casa, ainda consternada pelos terríveis e misteriosos
acontecimentos que vitimaram seu irmão, Simara não encontra uma mãe aflita, pronta
para compartilhar com ela e o leitor, os inexplicáveis acontecimentos. Sua mãe, que já
havia perdido quatro de seus nove filhos para a miséria, entregava de bom grado os dois
últimos de sua prole para o macabro. No entanto, esse mesmo elemento macabro que
parecera tão incômodo aos olhos do leitor, representava para ela, a mãe, um promissor
sinal de ascensão social, um alívio do implacável e lancinante fardo da pobreza. Para
ela, medo é oriundo do instinto de autopreservação da morte social. A degradação
social, para Marialva parece muito mais amedrontador que o elemento macabro,
causador do medo cósmico. Por isso, ela não percebe a evolução do aspecto cadavérico
de seu filho com os constantes envios das cartas do casal misteriosos. Exatamente
porque, acompanhada dessas cartas, estava certa quantia em dinheiro, que a aliviava de
algo para ela bem mais maligno, exatamente por ser mais imediato.
Assim, esse entroncamento de forças é um bom exemplo de como uma obra
pode funcionar como cenário de batalha entre dois segmentos. Se por um lado, temos
um aspecto do horror sobrenatural capaz de fazer com que o leitor, por intermédio do
prazer sublime do desconforto, se desgarre da realidade física de sua vida cotidiana, por
outro, temos a força da miséria social puxando-o de volta, como que o alertando para o
fato de que, em alguns momentos, a urgência das mazelas humanas, causadas pela
degradação social, pode parecer bem mais assustadora, uma vez que diz respeito a uma
realidade mais fiel à nossa, parecendo, então, muito mais sólida, muito mais cruel.
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REFERÊNCIAS:
CAUSO, Roberto de Souza. Ficção cientifica, fantasia e horror no Brasil: 1875 a 1950.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
FRANÇA, Julio. “O horror na ficção literária; reflexão sobre o ‘horrível’ como uma
categoria estética.” In:______. Anais do XI Congresso Internacional da Abralic. São
Paulo, 2008 [no prelo].
GOTTLIEB, SIDNEY (org.). Hitchcock por Hitchcock: coletâneas de textos e
entrevistas. Rio de Janeiro: Imago. 1998.
KING, Stephen. Dança macabra: o fenômeno do horror no cinema, na literatura e na
televisão dissecado pelo mestre do gênero. Tradução de Louisa Ibañez. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2007.
LOVECRAFT, Howard Phillips. O horror sobrenatural em Literatura. Tradução de
Celso M. Paciornik. Apresentação de Oscar Cesarotto. São Paulo: Iluminuras, 2007.
STRAUSZ, Rosa Amanda. Sete ossos e uma maldição. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2007.
Julio França (org.)
58
Fontes e sentidos do medo como prazer estético
Júlio FRANÇA 23
1. INTRODUÇÃO
O simpósio “O medo como prazer estético: o insólito, o horror e o sublime nas
narrativas ficcionais”, realizado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, nos dias
29, 30 e 31 de março de 2010, no âmbito do II Encontro nacional do insólito como
questão na narrativa ficcional, pretendeu, a partir da leitura de narrativas ficcionais,
refletir sobre o medo como uma emoção estética produzida pela criação literária.
Inerente à natureza humana, o medo está intimamente ligado aos mecanismos de
proteção contra o perigo. Sendo uma emoção relacionada aos nossos instintos de
sobrevivência, a experiência humana do medo vem quase sempre acompanhada pela
consciência de nossa mortalidade. O medo atávico em relação ao nosso derradeiro
destino é a garantia da atração e da universalidade de uma longa tradição de narrativas
que tematizam o mistério da morte – sua insondabilidade, sua inexorabilidade.
No presente ensaio, pretendemos refletir sobre os sentidos extraliterários do
medo e sobre suas relações com o que chamaremos aqui de literatura do medo –
aquelas narrativas ficcionais que o senso comum agrupa sob termos concorrentes e
sobrepostos, tais como “horror”, “gótico”, “dark fantasy”, “sobrenatural”, “terror”, entre
outros, mas que manteriam, como elemento comum, uma reconhecida capacidade e/ou
intenção de produzir esse efeito característico.
2. SENTIDOS DO MEDO
“O medo é a coisa de que mais medo tenho no mundo”, diz Michel de
Montaigne (1991, p. 40) no ensaio Do medo, em que reflete sobre a referida emoção.
Chamava-lhe a atenção como o medo seria capaz de nos arremessar para fora da área de
controle do bom-senso. Ao citar o poeta latino Ênio – “o pavor expulsa então de meu
coração toda sabedoria” (apud ibidem, p. 41) –, Montaigne revela-nos sua admiração – e
23
Doutor em Literatura Comparada (UFF). Professor Adjunto de Teoria da Literatura (UERJ).
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temor – por um sentimento capaz de alterar nossas crenças morais, nosso senso do
dever, nossas cognições e nossas percepções da realidade.
Para Montaigne, as causas do medo são secundárias. A força dessa emoção
residiria exatamente na possibilidade de ela aflorar, independentemente da
racionalidade, razoabilidade e justeza das suas causas 24 . Isso porque o medo é uma
experiência passiva, algo que experimentamos à revelia de nossa vontade. Não é,
porém, neutro como as sensações: é uma emoção, e como tal, carregada de afetos. O
medo não é uma pura informação sobre o mundo à nossa volta, mas o resultado de um
juízo que fazemos sobre o mundo – sobre o quão ameaçadores objetos, seres ou eventos
podem ser.
O medo é uma emoção negativa e associada a um sofrimento singular: sofre-se
não por algo que esteja ocorrendo no presente, mas que poderá vir a ocorrer. Em seus
extremos estão a incerteza e o desespero: a primeira acompanha o medo de algo que é
incerto; o segundo, de algo que é inexoravelmente fatal. Sendo um sentimento negativo,
provocado por uma idéia de que sofreremos no futuro, muitos filósofos o trataram como
uma dor ilusória, uma paixão inútil, que nos faz sofrer duas vezes: na antecipação da
dor e na dor propriamente dita.
O medo não é, contudo, desprovido de um lado positivo. Ele está intimamente
ligado aos mecanismos de autopreservação. Não apenas os seres humanos, também os
animais experimentam o medo quando expostos a situações que representem riscos às
suas vidas. As reações dos animais às ameaças foram descritas e nomeadas por Walter
Bradford Cannon 25 com a já célebre expressão fight or flight response. O biólogo
observou que, em situações de ameaça, os mamíferos em geral apresentavam um
conjunto de alterações fisiológicas provocadas pelo sistema nervoso simpático:
aceleração ou diminuição dos batimentos cardíacos, respiração muito rápida ou muito
lenta, o aumento da pressão arterial, descargas de adrenalina, paralisação ou
exteriorização violenta etc. Mais recentemente, pesquisadores 26 ampliaram a descrição
24 Como na frase célebre de Franklin Delano Roosevelt, no seu “Discurso de Posse”, em 1933: “So, first
of all, let me assert my firm belief that the only thing we have to fear is fear itself – nameless,
unreasoning, unjustified terror which paralyzes needed efforts to convert retreat into advance.” (In:
ROSENMAN, Samuel, ed. The Public Papers of Franklin D. Roosevelt, Volume Two: The Year of Crisis,
1933. Nova Iorque: Random House, 1938).
25 In: CANNON, Walter Bradfor. Bodily Changes in Pain, Hunger, Fear and Rage: an account of recent
researches into the function of emotional excitement. Nova York: Appleton, 1915.
26 Ver GRAY, Jeffrey Alan. The Psychology of Fear and Stress, 2nd ed. Cambridge, Cambridge
University Press, 1988.
Julio França (org.)
60
das reações possíveis de medo diante das ameaças e propuseram a expressão expandida
"freeze, flight, fight, or fright response". Além da fuga e da luta, outras duas reações
distintas a situações aterradoras foram acrescentadas: o freeze response –
correspondente a um processo de hiperatenção e de alerta, em que o indivíduo
concentra-se, “parando, olhando e escutando”, para perceber os sinais da ameaça à sua
volta – e a fright response, o momento em que a presa “finge-se de morta”, em uma
imobilidade tônica muito similar aos sintomas de pânico observados em casos de stress
pos-traumático em humanos 27 .
A íntima relação entre o medo humano e nossos instintos mais primitivos de
sobrevivência leva-nos a lembrar que a experiência do medo vem quase sempre
acompanhada da consciência de nossa finitude. Contudo, apenas nós, humanos, estamos
cientes de que a morte é inevitável 28 . A consciência da morte garante-nos poder temê-la,
mesmo quando nossas vidas não se encontram sob ameaça imediata: eis o mais humano
de todos os medos, algo que Hughes Lagrange (1996, p. 173) chamaria de medo
derivado, a noção que temos de nossa vulnerabilidade e de estarmos sempre suscetíveis
a perigos que não se manifestam claramente. Essa tão humana sensação de insegurança
interfere em nossa vida e em nossas escolhas, e é consequência da própria consciência
da inevitabilidade de nossa morte e do reconhecimento da instabilidade de nossa
existência. Tal sentimento de desproteção é alimentado continuamente pela memória de
ameaças passadas, por relatos de experiências de risco alheias, por nossas convicções
sobre os perigos a que estamos submetidos etc.
3. FONTES DO MEDO
Outro aspecto singular do medo humano está diretamente relacionado ao fato de
ele prescindir da “presença” de sua causa: muitas vezes, sequer somos capazes de
objetificar a origem de nosso medo. Nesses casos, somos tomados pelo que costumamos
chamar de angústia 29 – a experiência do medo onipresente, tão comum em nossa
27
Cf. BRACHA, H. Stefan et al. Does "Fight or Flight" need updating? In: Psychosomatics 45:448-449,
October 2004. Disponível em: http://psy.psychiatryonline.org/cgi/content/full/45/5/448. Acesso em 08 de
março de 2010.
28
Para Hegel, o homem era o animal mortal que deixa de ser animal quando se entende mortal (apud
WOLFF, 2007, p.19)
29
Falamos aqui em “angústia” não no sentido utilizado por Freud, em sua análise do aparelho psíquico,
que denominava de “angústia” ao conflito entre a vontade do Id e a repressão do Superego, mas em um
sentido aproximado ao empregado por Soren Kierkegaard, para quem a necessidade humana de projetar
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sociedade contemporânea. Citando Craig Brown, Zygmunt Bauman comenta sobre
como temos sido submetidos a um inventário de perigos constantemente renovados:
Por toda parte, houve um aumento das advertências globais. A cada
dia surgiam novas advertências globais sobre vírus assassinos, ondas
assassinas, drogas assassinas, icebergs assassinos, carne assassina,
vacinas assassinas, assassinos assassinos e outras possíveis causas de
morte iminente (Craig Brown apud BAUMAN, 2008, p. 12).
O homem contemporâneo é bombardeado pelo alardeamento constante de que o
mundo é um lugar perigoso. Independentemente da efetiva letalidade dessas inúmeras
ameaças (bugs do milênio, ácaros de tapete, vítimas da doença da vaca louca,
fatalidades por causa de alimentos geneticamente modificados, atos terroristas, balas
perdidas), elas são tantas, tão disseminadas e tão pouco controláveis por nós que, na
ocasião em que nos defrontamos com uma fonte explícita do medo, experimentamos,
como comenta Bauman (2008, p.7), um tipo de alívio que sucede ao desconforto e à
ansiedade de não se reconhecer o perigo real. Diante de uma ameaça visível e material
podemos, ao menos, refletir sobre nossas possibilidades de superá-la.
O medo é mais assustador quando difuso, disperso, indistinto,
desvinculado, desancorado, flutuante, sem endereço nem motivo
claros; quando nos assombra sem que haja uma explicação visível,
quando a ameaça que devemos temer pode ser vislumbrada em toda
parte, mas em lugar algum se pode vê-la. “Medo” é o nome que
damos a nossa incerteza: nossa ignorância da ameaça e do que deve
ser feito (...) (ibidem, p. 8).
Para Bauman, aquilo que não conseguimos administrar nos é desconhecido e
tudo o que é desconhecido nos é assustador. “Medo”, diz ele, “é outro nome que damos
a nossa indefensabilidade” (ibidem, p. 125). Muitos autores de ficção de horror
compartilham da ideia de que o desconhecido é uma fonte de medo. H. P. Lovecraft
(2007), por exemplo, defendia a existência de uma relação fundamental entre a ficção
de horror e as origens primitivas de nossas crenças em realidades sobrenaturais.
Enquanto os aspectos positivos do desconhecido teriam sido, desde muito cedo na
história do homem, capitalizados e formalizados pelos rituais religiosos convencionais,
o lado mais sombrio e maligno dos mistérios cósmicos acabaria encampado pelas
narrativas populares e folclóricas.
incessantemente o futuro e se deparar, no limite, com a morte era a causa desse sentimento de ameaça
imprecisa e indeterminada.
Julio França (org.)
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Incerteza e perigo seriam as catalisadoras das narrativas sobrenaturais populares.
O desconhecido representaria uma fonte constante de possibilidades perigosas e
malévolas. A combinação entre a sensação do perigo, a intuição do mal, o inevitável
encanto do maravilhoso e a curiosidade possuiria uma vitalidade inerente à própria raça
humana. Lovecraft dava ênfase a um certo tipo de narrativa de horror – a “literatura de
medo cósmico”, cuja característica principal é estar relacionada com os resquícios de
nossa consciência primitiva, sempre suscetível a crenças em realidades obscuras,
desconhecidas e à margem daquilo que entendemos por natural. Ele avaliava como
esteticamente superiores as narrativas de horror que tomam como tema o desconhecido
ou eventos que estejam para além das leis naturais e que privilegiam os efeitos do medo
“cósmico” no leitor, em detrimento dos efeitos do medo “físico” 30 .
Em sua História do medo no Ocidente, Jean Delumeau (2001, p. 14-5)
demonstrou como, tradicionalmente, sentir medo sempre foi visto como algo
vergonhoso. Indicaria tibieza de caráter, origem plebéia e ausência de virilidade, e
realçaria o contraste entre a coragem heróica do nobre e a covardia do homem comum.
Quando, porém, a fonte do medo é o desconhecido, covardes e corajosos parecem se
igualar. Nas palavras do personagem sem nome do conto “O medo”, de Guy de
Maupassant:
O medo (e os homens valentes podem sentir medo) é algo terrível,
uma sensação atroz, uma espécie de dilaceramento da alma, um
tremendo espasmo da inteligência e do coração, cuja simples
lembrança nos faz estremecer de angústia. Mas quando se é corajoso,
isso não acontece diante de um ataque, nem diante da morte
inevitável, nem diante de qualquer das formas conhecidas do perigo;
isso acontece em determinadas circunstâncias anormais, sob
determinadas influências misteriosas e diante de riscos vagos
(MAUPASSANT, 1997, p. 28).
O potencial fóbico do desconhecido residiria tanto em sua imprevisibilidade
quanto em nossa incapacidade de enfrentá-lo de modo racional. Não é por acaso,
portanto, que os temas sobrenaturais são uma constante na ficção do medo. Mas as
fontes de temor são mais vastas e diversificadas. Freud, em “Civilization and its
discontents”, enumera três possíveis fontes do sofrimento e, por extensão, do medo:
O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio
corpo, condenado à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode
30
Cf. FRANÇA, Julio. Fundamentos estéticos da literatura de horror; a influência de Edmund Burke em
H. P. Lovecraft. In: GARCIA, Flávio (org.) Cadernos do Seminário Permanente de Estudos Literários.
(no prelo).
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dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do
mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de
destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos
relacionamentos com os outros homens. O sofrimento que provém
dessa última fonte talvez nos seja mais penoso do que qualquer outro.
Tendemos a encará-lo como uma espécie de acréscimo gratuito,
embora ele não possa ser menos fatidicamente inevitável do que o
sofrimento oriundo de outras fontes (FREUD, 1974, p. 95).
Bauman desdobra o pensamento freudiano e procura categorizar nossa relação
com o medo a partir do grau de previsibilidade dos perigos. A ciência contribuiu e
contribui cada vez mais decisivamente para prever, amenizar e conter as ameaças
provindas de nosso próprio corpo e da Natureza – embora, no segundo caso, tenhamos
acompanhado a disseminação de crenças na reação do planeta às desregradas
intervenções humanas, através de catástrofes naturais cada vez mais frequentes. Mas a
percepção de nossa sociedade sobre os riscos representados pelos outros homens é a de
que a aleatoriedade da ação humana atingiu níveis de indeterminação jamais
experimentados 31 . Parecemos convencidos de que nossos pares são capazes de produzir
males “tão cruéis, insensíveis, empedernidos, aleatórios e impossíveis de prever (muito
menos cortar pela raiz) quanto o foram o terremoto, o incêndio e o maremoto de
Lisboa” 32 (Bauman, 2008, p. 85).
A modernidade e o canto eufórico do progresso podem ter trazido ao homem a
falsa expectativa de um presente livre das causas do medo. Bauman (2008, p. 170)
comenta que embora aqueles que vivam hoje na parte “desenvolvida” do mundo sejam,
estatisticamente, “o povo mais seguro da história da humanidade”, a sensação de medo
dos outros seres humanos é crescente. Para o sociólogo polonês, pelo menos desde o
julgamento dos criminosos nazistas – cujos testes psicológicos revelavam serem homens
comuns, apenas cumprindo suas obrigações – aprendemos que monstruosidades não são
cometidas apenas por “monstros”:
A lição mais devastadora de Auschwitz, do Gulag ou de Hiroshima,
do ponto de vista moral, não é que poderíamos ser postos atrás do
arame farpado ou enviados à câmara de gás, mas que (nas condições
31
Bauman (2008, p. 79), baseado nos trabalhos de Susan Neiman (Evil in modern thought: an alternative
history of philosophy. Princeton University Press, 2002) e de Jean-Pierre Dupuy (Petite métaphysique
des tsunamis. Seuil, 2005), comenta que os filósofos modernos separaram a aleatoriedade dos desastres
naturais da intencionalidade ou premeditação dos males morais.
32
Por outro lado, lembra Bauman (2008, p. 106), os desastres naturais parecem cada vez mais “seletivos”,
isto é, suas principais vítimas são quase sempre aqueles alijados dos benefícios do mundo
contemporâneo: “é (...) gritante que a aparente seletividade dos desastres ‘naturais’ deriva de uma ação
humana moralmente pregnante”.
Julio França (org.)
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adequadas) poderíamos ficar de sentinela ou espargir cristais brancos
em chaminés. E não que uma bomba atômica pudesse cair sobre
nossas cabeças, mas que (nas condições adequadas) nós poderíamos
lançá-la sobre as cabeças de outras pessoas (ibidem, p. 89).
Nas condições ideais, cada um de nós é capaz de se transformar em um
monstro. A literatura do medo explora continuamente essa apavorante ideia: tome-se,
por exemplo, o recorrente topos do “duplo”, em que a contemplação de um “outro eu”
encerra o terror de descobrir sermos quem somos – como em The strange case of Dr.
Jekill and Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson. Pelo menos desde as últimas décadas
do século XX, o medo gerado por eventos produzidos por causas humanas se faz muito
presente nesse gênero de ficção. Não parece ser acidental, portanto, que o sucesso de
um escritor como Stephen King seja apontado pela crítica literária como consequência
de sua escolha por ambientar suas histórias de horror na vizinhança de seu leitor e por
procurar nas trivialidades do cotidiano os gatilhos do medo. Em O iluminado, romance
exemplar de sua carreira, nenhuma ameaça sobrenatural equipara-se ao horror da
violência familiar.
4. O MEDO ARQUETÍPICO
Embora o medo do outro pareça ser a variante hegemônica em nossa sociedade,
o desconhecido ainda desempenha um papel fundamental na ficção do medo. Ele é a
mola mestra de narrativas que exploram uma região da experiência humana sobre a qual
a ciência, o discurso da verdade logicamente demonstrada, pouco tem a dizer. Os
desvãos entre a fé religiosa e o conhecimento científico parecem ser o habitat ideal
dessas histórias que aproveitam o fato de que as respostas da Ciência à inevitabilidade
da morte ainda soem, muita vezes, tão precárias quanto as do Mito. O próprio Freud
traçava paralelos entre o comportamento humano em relação ao medo da morte e as
antigas concepções animistas do universo:
É como se cada um de nós houvesse atravessado uma fase de
desenvolvimento individual correspondente a esse estágio animista
dos homens primitivos, como se ninguém houvesse passado por essa
fase sem preservar certos resíduos e traços dela, que são ainda capazes
de se manifestar, e que tudo aquilo que agora nos surpreende como
“estranho” satisfaz a condição de tocar aqueles resíduos de atividade
mental animista dentro de nós e dar-lhes expressão (FREUD: 1996, p.
257-8).
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Para Freud, em nosso desenvolvimento como indivíduos vivenciaríamos uma
fase, especificamente na infância, em que nossas atividades mentais se aproximariam
das do homem primitivo: idéias de que o mundo é povoado por espíritos, crenças nas
mais diversas técnicas mágicas, o assombro contínuo diante de um mundo repleto de
proibições e ameaças. Através de um processo racional de educação, tais resquícios
ancestrais foram sendo gradativamente reprimidos, mas permaneceriam latentes e
suscetíveis a serem ativados nas circunstâncias ideais:
Todas as pessoas supostamente educadas cessaram oficialmente de
acreditar que os mortos podem tornar-se visíveis como espíritos, e
tornaram tais aparições dependentes de condições improváveis e
remotas (ibidem, p. 259-60).
Freud estava ciente de que uma das principais fontes do medo eram as
experiências de algum modo relacionadas à morte – cadáveres, suposto retorno dos
mortos, espíritos, fantasmas etc. Isso se deveria à limitada evolução do nosso
conhecimento sobre tais assuntos: “Dificilmente”, diz ele, “existe outra questão (...) em
que as nossas idéias e sentimentos tenham mudado tão pouco desde os primórdios dos
tempos (...) como a nossa relação com a morte” (ibidem, p. 258). Para o ensaísta, a
combinação entre “a força da nossa reação emocional original à morte e a insuficiência
do nosso conhecimento científico a respeito dela” (ibidem) era a principal responsável
pela intensidade peculiar das experiências que envolviam o sentimento do medo:
A biologia não conseguiu ainda responder se a morte é o destino
inevitável de todo ser vivo ou se é apenas um evento regular, mas
ainda assim talvez evitável, da vida. É verdade que a afirmação
“Todos os homens são mortais” é mostrada nos manuais de lógica
como exemplo de uma proposição geral; mas nenhum ser humano
realmente a compreende, e o nosso inconsciente tem tão pouco uso
hoje, como sempre teve, para a idéia da sua própria mortalidade. (...)
Uma vez que quase todos nós ainda pensamos como selvagens acerca
desse tópico, não é motivo para surpresa o fato de que o primitivo
medo da morte é ainda tão intenso dentro de nós e está sempre pronto
a vir à superfície por qualquer provocação (ibidem, p. 259).
As idéias relacionadas à morte seriam o gatilho perfeito para ativar nossas
crenças primitivas reprimidas. Os grandes autores da literatura do medo – Edgar Allan
Poe, H. P. Lovecraft, Stephen King, entre outros – conhecem bem essa máxima. O
temor relacionado à morte talvez seja o mais disseminado dos medos. Não por acaso,
entre as invenções culturais mais universais estão a negação da morte como um fim e a
suposição de inúmeras outras formas de sobrevivência a ela.
Julio França (org.)
66
Não poucos filósofos esforçaram-se para demonstrar que o medo da morte é
irracional, visto que a morte só é vivenciada como uma experiência de segundo grau –
como quando do falecimento de alguém próximo. É, contudo, o trabalho da imaginação
que faz com que eu possa imaginar a mim mesmo morto, privado das potencialidades da
vida, interrompido em meu desejo de vida eterna.
No medo da morte, desdobramo-nos imaginariamente. Existe aquele
que sou, atualmente, aquele que sente medo, que está vivo, e aquele
que imagino, a mim morto, e é isso, é ele, sou eu, aquele eu que me
assusta (Wolff, 2007, p. 35).
O medo produzido pela imaginação do sujeito, que projeta e sofre com seu “eu
morto”, parece-nos bastante semelhante aos mecanismos de identificação entre leitor e
personagem nas narrativas ficcionais do medo. Em outras palavras, o processo que
conduz à experiência de nosso medo mais primitivo, universal e intenso – o medo da
morte – é similar ao que nos leva, no ambiente ficcional, a sentirmos medo sem
efetivamente corrermos risco.
5. O MEDO ARTÍSTICO
Tanto nossas crenças e convicções quanto nossa imaginação podem dar origem
ao medo. De algum modo, portanto, o medo que experimento ao me imaginar morto
assemelha-se ao que sinto, por exemplo, colocando-me no lugar de um personagem
ficcional em uma cena aterrorizadora. Porém, as emoções relativas à autopreservação
são dolorosas quando estamos expostos às suas causas, mas quando experimentamos
sensações de perigo sem que estejamos realmente sujeitos aos riscos, isto é, quando a
fonte do medo não representa um risco real a quem o experimenta, entramos no campo
das emoções estéticas e de prazeres peculiares (catarse, sublimidade, horror artístico
etc.), sobre os quais os Estudos Literários vêm refletindo há séculos.
No plano artístico, devemos entender o “medo” como um efeito de recepção e
estamos interessados em compreender os mecanismos responsáveis por sua produção.
Mais do que uma questão de subjetivismos e idiossincrasias, o medo como efeito
estético é por nós considerado o resultado de um planejamento, isto é, o fruto de
processos construtivos relacionados à criação da obra literária. Ao nos referirmos à
categoria do “medo artístico”, não pensamos em um efeito contingente de recepção, mas
no resultado produzido por um artefato (a obra literária) concebido para suscitar essa
emoção específica.
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Fazendo uso de uma metáfora poeana, a consideração da composição artística
como uma maquinaria da produção de efeitos permite-nos considerar o medo tanto em
sua dimensão textual – a elaboração artesanal – quanto em sua dimensão ligada à
recepção – os sentidos culturais do medo. Além disso, abre espaço para a integração do
autor nesse processo, como alguém capaz de manipular ao menos alguns dos elementos
constitutivos da produção de sentidos na literatura.
REFERÊNCIAS :
BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente: 1300 – 1800. Tradução de Maria
Lucia Machado. Tradução de notas de Heloísa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras,
2001.
FREUD, Sigmund. O estranho. In:______. Obras psicológicas completas de Sigmund
Freud; edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud.
Vol. XVII. Tradução de Eudoro Augusto Macieira de Souza. Rio de Janeiro: Imago,
1996. pp. 233-269.
______. O Mal estar na civilização; edição standard brasileira das obras psicológicas
completas de Sigmund Freud. Vol. XXI. Tradução de Eudoro Augusto Macieira de
Souza. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
LAGRANGE, Hugues. La civilité à l’épreuve. Crime et sentiment d’insecurité. Paris:
PUF, 1996.
LOVECRAFT, Howard Phillips. O Horror Sobrenatural em Literatura. Tradução de
Celso M. Paciornik. Apresentação de Oscar Cesarotto. São Paulo: Iluminuras, 2007.
MAUPASSANT, Guy de. O medo. In:______. Contos Fantásticos; "O Horla" & outras
histórias. Seleção e tradução de José Thomaz Brum. Porto Alegre: L&PM, 1997.
MONTAIGNE, Michel de. Ensaio XVIII – Do medo. In:______. Ensaios. Tradução de
Sérgio Milliet. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (p. 39-40).
WOLFF, Francis. Devemos temer a morte? In: NOVAES, Adauto (org.). Ensaios sobre
o medo. São Paulo: Editora SENAC SP / SESC SP, 2007. (p. 17-38)
Julio França (org.)
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Medo e morte em Álvares de Azevedo,
Guy de Maupassant
e Edgar Allan Poe
Karla Menezes Lopes NIELS 33
RESUMO: “O medo é a coisa de que mais medo tenho no mundo” disse Montaigne em
um de seus ensaios (MONTAIGNE,1991, p. 40). O medo do desconhecido é um
sentimento inerente à constituição humana e o gênero de horror é caracterizado pela
capacidade de explorar essa característica. Entretanto, a literatura insólita em geral,
fantástica ou de horror, produz um medo que pode emanar de qualquer tema desde que
provoque um desconforto no leitor que o atraia à leitura. Sobretudo os temas
relacionados à morte e à sobrevida causam efeitos singulares. Refletindo sobre tais
aspectos, propomos uma análise comparativa entre os contos “Genaro” de Álvares de
Azevedo, “Gato Preto” de Edgar Allan Poe e “Aparição” de Guy de Maupassant,
procurando estabelecer relações entre eles. Para tanto, consideraremos os pontos de
hesitação dessa obras, tomando como base os estudos de Lovecraft, de Todorov e de
King.
PALAVRAS CHAVES: Medo, Morte, Insólito, Álvares de Azevedo, Edgar Allan Poe,
Guy de Maupassant.
INTRODUÇÃO
“O medo é a coisa de que mais medo tenho no mundo” disse Montaigne em um
de seus ensaios. E o medo do desconhecido é um sentimento inerente à constituição
humana. Esse sentimento, capaz de alterar nossas crenças e nossa percepção da
realidade, tem sido explorado pela literatura de horror, tanto que tal gênero pode ser
caracterizado pela capacidade de produzir tal emoção. Entretanto, a literatura insólita
em geral produz um medo que pode emanar de qualquer tema, desde que provoque um
desconforto no leitor, atraindo-o a esse tipo de literatura, enfeitiçando-o através de um
mundo possivelmente sobrenatural. Tais temas quando relacionados à morte e à
sobrevida causam efeitos singulares, pois, o mistério envolto em tudo que se refere à
morte eleva a imaginação humana à sua máxima capacidade.
O ficcionista contemporâneo Stephen King, no prefácio de Sombras da Noite,
diz que “o medo nos cega e nós tateamos com toda a ávida curiosidade do autointeresse, tentando construir um todo a partir de uma centena de pedaços (...). E a
33
Autor: Karla Menezes Lopes NIELS, graduanda. Universidade do estado do Rio de Janeiro (UERJ,
FAPERJ).
[email protected]
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grande atração da ficção de horror através dos tempos é o fato de se prestar como um
ensaio para a nossa própria morte” (KING, 1978, p. 17). O medo é assim visto como um
fator de educação sentimental – o leitor entende a sua vulnerabilidade através da
vulnerabilidade do personagem. Posteriormente o romancista no ensaio Dança Macabra
levanta a intrigante questão: por que as narrativas que lidam com horror e medo atraem
as pessoas? A resposta estaria relacionada ao medo como um efeito de leitura. O
ensaísta acentua esse fato ao dizer que:
(...) inventamos horrores para nos ajudar a suportar horrores
verdadeiros. Contando com a infinita criatividade do ser humano, nos
apoderamos dos elementos mais polêmicos e destrutivos e tentamos
transformá-los em ferramentas – para desmantelar estes mesmos
elementos. O temo catarse é tão antigo quanto o drama na Grécia (...),
mas, mesmo assim, ele tem seu uso (...). (KING, 2007, p. 24)
O horror ficcional apresenta-nos uma resolução momentânea, que ameniza, por
um curto tempo, nossos horrores mais profundos, ou seja, podemos experimentar
sensações de perigo sem que a fonte do medo represente um risco real. A força da
narrativa de horror residiria exatamente nesse sentimento de reintegração que poderia
emanar de um gênero especializado em morte, medo e monstruosidades. Relacionado a
isso, Montaigne fala do medo como um sentimento que pode nos dar “asas” ou nos
imobilizar, e, “principalmente quando sob a sua influência recobramos a coragem que
ele nos tirara contra o que o dever e a honra determinavam, que o medo revela sua ação
mais intensa” (MONTAIGNE,1991, p. 40).
É justamente a experiência advinda desse sentimento o que impulsiona o
processo catártico no ato de leitura. Entramos, portanto, no campo das emoções
estéticas, pois a experimentação de tais sensações é capaz de produzir esse prazer
peculiar que Aristóteles denominara catarse. O conceito aristotélico está relacionado à
produção e à expurgação das emoções através da ficção, o que é de suma importância
para a consideração dos efeitos de recepção. A esse respeito, convem lembrar que os
temas relacionados com a morte e com a sobrevida têm gerado uma infinidade de
narrativas que produzem esse efeito receptivo muito particular: o medo.
Tais narrativas – fantásticas, de terror ou de horror – requerem temas que
possibilitem “acontecimentos estranhos” e manifestações do “efeito fantástico” –
hesitação advinda de acontecimentos ambíguos (cf. TODOROV, p. 100) – para que o
efeito receptivo esperado seja realmente atingido. Ou seja, é preciso que haja
Julio França (org.)
70
acontecimentos que levem tanto narrador como leitor a se questionarem sobre a
coerência e a veracidade dos fatos, e a duvidarem também da própria sanidade.
Refletindo sobre tais aspectos, propomos, no presente artigo, uma análise
comparativa entre os contos “Genaro” de Álvares de Azevedo, “Gato Preto” de Edgar
Allan Poe e “Aparição” de Guy de Maupassant. Tal análise abarca autores do séc. XIX,
de diferentes momentos e de diferentes nacionalidades, para assim, tentar demonstrar a
amplitude desse sentimento. Para tanto, consideraremos os pontos de hesitação dessa
obras, estabelecendo como base os estudos de Lovecraft, de Todorov e de King,
procurando estabelecer relações entre essas obras cuja interseção será o medo e a morte.
MORTE E SOBREVIDA
Para King (2003, p. 110), as narrativas ligadas ao horror procuram “aqueles
medos pessoais enraizados” na mente humana, em especial os relacionados à morte. “A
morte e a decomposição tornam-se inevitavelmente horríveis e inevitavelmente um
tabu” (ibidem, p. 111), se consideramos o fato que para grande maioria da humanidade
ela é um mistério e, portanto, o perfeito ponto de pressão “psicológica” a ser explorado
por narrativas que pretendem amedrontar seus leitores. É como se tudo que fosse
velado, no caso a morte, despertasse interesse no público leitor. O leitor se apavora, mas
busca o estranho prazer advindo da sua experiência com a morte através da leitura.
Os contos tomados como objeto de estudo desse artigo, “Aparição”, “Gato
preto” e “Genaro” tematizam a questão da vida após a morte e a influência dos mortos
sobre os vivos. Portanto, as nossas considerações focarão especificamente as
aproximações e os distanciamentos dessas narrativas no que tange a essa temática e ao
efeito receptivo produzido.
No conto “Aparição”, o velho marquês de la Tour-Samuel, durante uma reunião
íntima em uma antiga mansão, conta uma história sobre um fato que denomina
“estranho”, acontecido com ele em sua juventude. Antes de iniciar o relato diz que
aquele dia deixou-lhe “uma marca, uma cicatriz do medo” e prossegue dizendo que a
“noite” lhe dá medo” (MAUPASSANT, 1997, p. 36). Nesse ponto, o narrador começa a
criar uma atmosfera bastante propícia, pois, relaciona o medo com elementos como a
noite. A noite remonta à escuridão; e quem não sente medo do escuro? A estratégia
narrativa aqui usada é crucial para fazer com que os ouvintes do marquês, bem como os
leitores, fiquem apreensivos com o que há de vir.
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Prossegue, então, dizendo que em julho de 1827, quando passeava pelo cais,
encontrou-se com um amigo que há muito tempo não via. Esse lhe contou sobre a
calamidade que lhe sucedera – a morte de sua mulher apenas um ano após o casamento.
Como ele deixara o castelo em que moravam logo após o enterro, pediu ao narrador que
fosse à sua antiga residência buscar, no antigo quarto do casal, alguns papéis de que
precisava. O marquês não recusou prestar-lhe o favor e dirigiu-se para o castelo no dia
seguinte. Ao chegar à mansão, o narrador a descreve como algo que parecia estar
abandonado há cerca de vinte anos. Ao descrição em estilo gótico contribui para
aumentar a ansiedade irracional dos ouvintes daquele narrador, bem como do leitor.
Finalmente, quando chega ao quarto da morta, tenta abrir as janelas para
iluminar o ambiente, mas sem êxito. Pouco depois, enquanto procurava pelos
documentos, diz ter julgado “ouvir, ou melhor, sentir um leve roçar” atrás de si. O medo
começa a se apoderar dele que, entretanto, tenta racionalizar o fato, até que diz que “um
grande e doloroso suspiro, soltado junto ao meu ombro, fez-me dar um salto louco de
dois metros” (idem, p. 41-2). O medo do desconhecido é trabalhado de maneira
magistral. O protagonista volta-se e dá de encontro com o espectro de uma mulher.
Tomado de pavor, diz que não pensara em nada no momento da aparição, pois, “tinha
medo” (ibidem).
Vejamos que apesar da tentativa de racionalização por parte do narrador, a perda
dos sentidos e do bom senso cede espaço à irracionalidade do medo. O sentimento passa
a ser acompanhado de incerteza e desespero – sensações também experimentadas pelo
leitor –, levando o narrador a não mais pensar na lógica dos acontecimentos. Seu pavor
é tão grande que as suas ações subsequentes serão mecânicas. Quando a aparição pede
que lhe penteie os cabelos, ele o faz sem refletir. Ao voltar a si, é invadido por um
“desejo febril” de fuga, e, foge.
No conto homônimo, Genaro relata que morava na casa de Godofredo Walsh,
cuja filha, Laura, que sustentava uma paixão pouco correspondida por ele, engravidou e
morreu em consequência dessa paixão. Após o falecimento da moça, seu pai é levado à
loucura com a traição de Genaro e de sua esposa Nauza. Num dado até o momento em
que a louca sede de vingança de Godofredo é extrema, o narrador dirá ter sentido que:
(...) um tremor, um calafrio se apoderou de mim [dele, o narrador].
Ajoelhei-me, e chorei lágrimas ardentes. Confessei tudo: parecia-me
que “era ela que o mandava, que era Laura que se erguia de entre os
lençóis de seu leito, e me acendia o remorso, e no remorso me rasgava
o peito” (AZEVEDO, 2000, p.585 – grifo nosso)
Julio França (org.)
72
Ao dizer que “um calafrio” se apoderara dele, o narrador expõe todo o terror e
toda a pressão fóbica que sentiu naquele momento. O medo que sentira foi tanto que o
levou a chorar “lágrimas ardentes” e a confessar tudo ao seu algoz. O medo da morta é
descrito como mais intenso do que o medo de morrer.
Quando Genaro reflete sobre sua situação de forma coerente e finaliza dizendo
friamente que teve “medo”. Apesar de ser uma emoção relacionada aos instintos
humanos de sobrevivência, ela vem acompanhada da consciência do fim. O medo,
portanto, não se apoderou dele como ocorrera quando pressentiu a presença da Laura
morta. Como podemos verificar abaixo:
Eu estava ali pendente junto à morte. Tinha só a escolher o suicídio ou
ser assassinado. Matar o velho era impossível. Um luta entre mim e
ele fora insana. Ele era robusto, a sua estatura alta, seus braços
musculosos me quebrariam como o vendaval rebenta um ramo seco.
Demais, ele estava armado. Eu – era uma criança débil: ao primeiro
passo ele me arrojaria da pedra em cujas bordas eu estava.... Só me
restaria morrer com ele – arrasta-lo na minha queda, mas para quê?
E curvei-me no abismo: tudo era negro: o vento lá gemia embaixo nos
ramos desnudados, nas urzes, nos espinhais ressequidos, e a torrente lá
chocalhava no fundo escumado nas pedras.
Eu tive medo. (idem, p. 586-7)
O trecho acima mostra-nos que Genaro tem mais medo daquilo cuja origem
ignora – daquela que supõe estar morta – do que da perda da própria alma. O
personagem não teme a morte, mas tudo o que alegoricamente ela significa, e,
principalmente, teme a crença babilônica 34 da imortalidade da alma.
Assim como no caso de “Genaro”, no conto “O gato preto” há a influência dos
mortos sobre os vivos e essa idéia apavora seu protagonista. O narrador possuía um gato
todo negro, do qual arrancou um dos olhos em um dia em que estava embriagado e
furioso pelo bichano ter-lhe arranhado a mão. A perversidade do narrador aumentava
dia a dia, até levá-lo a enforcar o animal sem motivo aparente.
Nesse mesmo dia, a sua casa é incendiada, restando em pé somente a parede do
quarto, onde se via estampada a imagem de um “gato gigantesco” (POE, 1993, p. 48)
com uma corda envolvendo-lhe o pescoço. Apesar de racionalizar esse acontecimento, o
34
Segundo o The Religion of Babylonia and Assyria (JASTROW, Jr., 1898, p. 556), Babilônia era um
lugar muito religioso com mais de 50 templos dedicados aos mais diversos deuses. Os babilônios
acreditavam na imortalidade da alma humana. Apesar da evidência da crença de outros povos na
sobrevida à morte, acredita-se que a crença – como conhece o mundo Ocidental – tenha se difundido a
partir muros dos babilônicos após a sua queda.
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narrador fica apavorado e é atormentado pela sua consciência. O pavor é de tal ordem
que o conduz ao desespero! No entanto, para amenizar sua culpa e esquecer o
acontecimento sobrenatural, adota um gato muito parecido ao que assassinara, a não ser
por uma pequena mancha branca no pescoço que, dia após dia, diminuía até parecer
uma marca de corda – algo que o narrador descreve como “a imagem da coisa odiosa,
abominável: a imagem da forca! Oh, lúgubre e terrível máquina de horror e de crime, de
agonia e de morte!” (idem). Nesse ponto da narrativa o medo toma conta do nosso
protagonista. A simples ideia de um gato reencarnado que volta para vingar-se do seu
assassino leva-o à extrema loucura e a tornar-se assassino de sua própria esposa.
Pressionado pelos tormentos que a presença daquele gato inspirava, o narrador
tenta matar o novo gato, mas, por engano mata sua esposa, cravando-lhe uma foice no
crânio. Para livrar-se do corpo, empareda-o na adega do porão do prédio em que agora
morava. Por engano, acaba sepultando junto o gato que, três dias depois, através de um
“uivo agudo, um grito agudo, metade de horror, metade de triunfo, como somente
poderia ter surgido do inferno” (idem, p. 51) acaba por delatar aos policiais o lugar onde
jazia o corpo, frustrando o crime perfeito. Ou seja, parece que em cada momento o gato
retornava para atormentá-lo e vingar a sua morte.
O medo do sujeito morto é levado ao extremo neste conto. A ambientação da
narrativa confere as condições ideais de pressão fóbica para que o protagonista se
transforme num monstro. Diferentemente dos contos anteriores, ele perde todo o senso
racional, e toma atitudes que só alguém tomado de pavor é capaz de tomar.
Voltemos à declaração de Montaigne: “O medo é a coisa de que mais tenho
medo no mundo”. Como nos foi demonstrado pelo texto poeano, o medo é capaz de
propiciar as atitudes mais ignominiosas. Quando temos medo, agimos por impulso e por
instinto, às vezes da mesma maneira que fariam os animais acuados.
O MEDO E A HESITAÇÃO
Lovecraft no seu longo ensaio monográfico sobre o tema, O horror sobrenatural
em literatura,fala-nos do medo do desconhecido como sendo algo inerente à
constituição humana. E, como já dissemos, as “literaturas de horror” estão justamente
relacionadas a esse sentimento de medo físico ou psicológico – um desconforto que
determinados temas podem despertar no leitor, como o medo do desconhecido ou a
ocorrência de eventos sobrenaturais, que serão chamados pelo ensaísta de “medo
Julio França (org.)
74
cósmico”. Um medo relacionado com os resquícios da primitiva consciência humana,
suscetível a crenças em realidades obscuras, desconhecidas e à margem do que se
entende por natural. E, sua produção requer “uma certa atmosfera inexplicável e
empolgante de pavor de forças externas do homem” (LOVECRAFT: 2007, p. 17).
King, por sua vez, apresenta para as narrativas de horror três níveis de medo –
em função do caráter mais ou menos explícito dos elementos utilizados para a produção
das emoções relacionadas ao medo, a saber: “Terror”, Horror” e “Repulsa”. Desses, o
terror é visto por ele como um movimento artístico que estimula uma pressão fóbica,
relacionado com tudo aquilo que a mente humana é capaz de imaginar sem a
necessidade da percepção sensorial do objeto causador do medo.
Nesse nível há apenas uma sugestão de algo ruim ou sobrenatural, num processo
de participação criativa do leitor. Para nós trata-se de um efeito receptivo mais próximo
ao gênero fantástico 35 e ao medo cósmico de Lovecraft (2007, p. 13), justamente por
exigir do leitor certo grau de imaginação e distanciamento da vida cotidiana para que
construa o sentido sugerido pelo texto. Assim como em relação ao medo cósmico, nesse
nível do medo há apenas uma sugestão de algo ruim ou sobrenatural, num processo de
intervenção ev participação criativa do leitor – sua imaginação, portanto, precisa entrar
em ação e construir o sentido sugerido.
Apesar de as obras por nós analisadas fazerem diferentes percursos por esses
níveis “medonhos” ao explorarem a temática da morte e de os conceitos apresentados se
aproximarem quando vistos em relação ao desconforto que produzem, prenderemos à
nossa atenção sobretudo à premissa Lovecraftiniana, por entendemos ser o conceito
mais próximo aos efeitos de recepção aqui analisados.
Quando consideramos o conto de a Noite na Taverna a partir dessas premissas,
observamos que a obra de Azevedo privilegia o que pelo ensaísta foi chamado de “medo
físico” ou “horrível vulgar” 36 (LOVECRAFT: 2007, p. 16), uma produção superficial e
inferior ao “medo cósmico” – desconforto gerado pelo medo do desconhecido ou da
ocorrência de eventos sobrenaturais–, pois valoriza aspectos físicos a sobrenaturais. No
35
A segunda condição para a concepção do gênero fantástico, segundo Todorov, tem a ver com a
identificação do leitor com o personagem. Claro que o ensaísta de vertente estruturalista julga tal
condição como não essencial, mas para a consideração de efeitos de leitura a catarse torna-se
fundamental.
36
O simples assassinato ou apelos violentos em que o maior medo gerado não é somente o medo do
desconhecido ou do obscuro, mas o medo da morte e da dor física.
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entanto, o ensaísta afirma haver a possibilidade de somente uma parte do texto ser capaz
de produzir tal tipo elevado de medo:
(...) boa parte da obra fantástica mais seleta é inconsciente, aparecendo
em fragmentos memoráveis espalhados por material cujo efeito geral
pode ser de molde muito diferente. (ibidem, p. 17)
Em consonância com isso, encontramos em “Genaro”, como nos demais contos,
alguns pontos de incerteza em que os protagonistas e o leitor são submetidos à
experiência do “medo cósmico”. Após o falecimento de Laura, seu pai é levado à
loucura e o narrador-personagem conclui que parecia que era ela, a morta, “(...) que o [o
pai] mandava, que era Laura que se erguia de entre os lençóis de seu leito, e me acendia
o remorso (...)” (AZEVEDO, 2001, p.585).
O uso do verbo “parecer” no pretérito imperfeito do indicativo “introduz uma
distância entre a personagem e o narrador” (TODOROV, 2007, p. 44) mesmo se
tratando de um narrador-personagem. Portanto, a modalização propicia uma sugestão de
sobrenatural, ao se insinuar a influência de Laura sobre seu pai após seu falecimento.
Uma modalização verbal que pede a intervenção do leitor para que preencha a lacuna ali
deixada. O verbo, portanto, introduz uma sugestão que não se aprofunda no decorrer do
conto, fazendo-se necessário que o sujeito participe na construção do sentido do que é
sugerido. Para um leitor cético a sugestão passa por alto e a leitura encaminha-se para a
solução natural. Já um leitor com determinadas crenças religiosas direcionaria
provavelmente sua leitura para uma solução sobrenatural. As crenças e a imaginação –
além da incerteza e do perigo – tornam-se, nesse caso, potencializadores e catalisadores
do medo.
A sensação de sobrenatural experimentada pelo narrador pode ser entendida,
portanto, como um leve medo cósmico advindo da incerteza que Todorov chama de
“efeito fantástico”, uma hesitação que é produzida somente “durante uma parte da
leitura” e que conduz narrador e leitor a duvidar da natureza dos acontecimento e
conduzindo o leitor à experimentar a sensação da catarse (TODOROV, 2007, p. 48).
Em “Gato preto” a dúvida do narrador quanto à aparição da figura do gato na
parede do quarto após o incêndio é bastante explícita na narrativa: “Logo que vi tal
aparição – pois não podia considerar como sendo outra coisa –, o assombro e terror que
se me apoderaram foram extremos. Mas finalmente, a reflexão veio em meu auxílio”
(POE, 1993, p.45). Tal reflexão leva-o a uma conclusão que explica o fato naturalmente,
apesar de o fato ser, no mínimo, bastante singular.
Julio França (org.)
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É digno de nota que os narradores de “Gato Preto” e de “Genaro” sempre
racionalizem os acontecimentos, hesitando em encará-los como sobrenaturais. Mas o
narrador de “Gato preto” difere do de “Genaro” em um pequeno ponto. Para o narrador
do conto de Poe, a crença relativa à sobrevida é muito clara, em que a ausência de
verbos no pretérito imperfeito não condiciona à duplicidade de sentidos externos à
narrativa. Mas, que dizer de “Aparição”? No conto, parece não haver tal hesitação entre
uma explicação ou outra, o que temos é a produção do medo explicito no protagonista
do início ao fim da narrativa. Não há tentativas por parte do narrador de racionalizar os
acontecimentos. A princípio, ele duvida dos acontecimentos, mas não tenta trazê-los
para um mundo científico-natural. A hesitação, portanto, jaz no momento em que o
narrador sente a presença da morta atrás de si. Nesse momento especificamente ele não
tem plena certeza que se trata de uma aparição apesar de estar inclinado – por causa do
seu medo – à crer que havia ali um espectro.
Em linhas gerais, podemos arrazoar que a ambiguidade – a hesitação gerada
pelo ápice de cada um dos contos – são os principais catalisadores do medo, mais do
que o espectro, mais do que a visão, mais do que a sensação. As dúvidas do narrador e
do leitor criam um momento intercessor recheado de suspense – a atmosfera ideal da
literatura fantástica e de horror.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os contos analisados se assemelham ao sugerirem a possibilidade de uma
sobrevida após a morte, bem como pelo terror expresso pelos narradores em face de
acontecimentos de cunho sobrenatural. A forma pela qual tais temas são apresentados
no decorrer das narrativas causa um tipo curioso de hesitação – um incômodo oriundo
da contemplação de determinadas cenas, capaz de causar tanto ao narrador como ao
leitor um “desconforto” que gera medo, emoção fundamental na recepção da literatura
de horror.
Pudemos perceber que em todos os exemplos analisados, quer o narrador, o
personagem, ou o leitor foram levados a titubear entre duas soluções: estar diante de
uma manifestação do mundo dos vivos ou do mundo dos mortos. O que nos mostra um
momento intercessor entre o real e o imaginário, entre o natural e o sobrenatural que
pressupõem a geração do medo.
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O gênero de horror, como vimos, é caracterizado pela capacidade de produzir
medo. Tal sentimento pode dar-se de duas formas no interior da narrativa: (1)
explicitamente (o “medo físico” e o “horrível vulgar” de Lovecraft, e a “repulsa” de
King) e (2) implicitamente (o “medo cósmico” de Lovecraft, o horror e o terror de
King). E o medo é a força motriz do imaginário do leitor. Um sentimento que é
enfatizado pelos movimentos de leitura que levam o leitor a crer que vivencia a própria
história que está lendo. E, é enfatizado não só pelos acontecimentos, mas, sobretudo,
por um narrador em 1ª pessoa – um narrador capaz de transmitir os seus medos
interiores ao leitor. Assim, o prazer estético do medo tem o papel de deslocar o leitor
para dentro da narrativa, levando-o a vivenciar seus medos sem correr riscos efetivos,
expurgar suas emoções, e conhecer a si mesmo
O fato de hesitar entre uma explicação natural ou sobrenatural tem a ver não
somente com a construção da narrativa, mas, sobretudo, com quão crédulo é o leitor.
Falamos de um leitor empírico e não um engendrado pelo texto. Claro que o medo,
como posto no decorrer do artigo, se manifesta principalmente nos personagens e é
nesses que prendemos nossa atenção, tendo em vista que o trabalho com o leitor
empírico pode, em muitos casos, ser inviável dado à sua subjetividade.
Portanto, entender como o medo atua no leitor empírico serve para compreender
as questões levantadas por King em Dança Macabra comentadas no início deste artigo:
Por que nós gostamos de “horrores ficcionais”? Por que esse prezar mórbido em
vivenciar no texto literário o infortúnio e a morte?
REFERÊNCIAS:
AZEVEDO, Álvares de, 1831-1852. Obra completa: volume único. Alexei Bueno
(org.). Textos críticos de Jaci Monteiro et al. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000.
JASTROW, Jr., Morruis. The religiopn of Babylonia and Assyria. Boston, EUA, 1898.
Disponível em: <http://www.scribd.com/doc/3084351/The-Religion-of-Babylonia-andAssyria-by-Jastrow>.
LOVECRAFT, Howard Phillips. O Horror Sobrenatural em Literatura. Tradução de
Celso M. Paciornik. Apresentação de Oscar Cesarotto. São Paulo: Iluminuras, 2007.
MAUPASSANT. Guy de. Contos Fantásticos: O horla e outras histórias. Seleção e
tradução de José Thomaz Brum. Porto Alegre: L&PM Editores, 1997.
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo: Nova
Cultural, 1991. São Paulo: Nova Cultural, 1991.
Julio França (org.)
78
KING, Stephen. Dança macabra; o fenômeno do horror no cinema, na literatura e na
televisão dissecado pelo mestre do gênero. Tradução de Louisa Ibañez. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2007.
KING, Stephen. Sombras da noite. Tradução de Luiz Horácio da Matta. Rio de Janeiro:
Editora Globo, 1978.
POE, Edgar Allan Poe. Histórias Extraordinárias. Trad. De Brenno Silveira e outros.
São Paulo, 1993.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Trad. Maria Clara Correa
Castello. São Paulo: Pespectiva, 2007.
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Vitimas e algozes do medo
no conto “FelizAno Novo”, de Rubem Fonseca
Luciano CABRAL 37
Todos nós sentimos medo; uns mais, outros menos. O fato é que sempre
reagimos de alguma forma quando diante de um perigo iminente. Biologicamente, esta
reação é um mecanismo natural de preservação e, assim sendo, nós a compartilhamos
com os animais e reagimos tal como eles reagem. Contudo, o medo não é inato; ele é
construído a partir de experiências de risco. Ao nos depararmos com algo (um predador,
um criminoso, uma situação perigosa, um local perigoso) que faça com que lembremos
de experiências de risco anteriores, é esta lembrança, esta proteção contra o sofrimento,
que nos faz reagir.
Se quando generalizamos o medo nós nos aproximamos dos animais, quando o
detalhamos nos afastamos deles drasticamente. Os medos humanos, tanto os que
objetivam preservação da espécie quanto os que produzem prazer estético, são mais
variados e complexos. Em “Civilization and its discontents”, Sigmund Freud aponta três
fontes de “ameaças de sofrimento”: (i) do nosso próprio corpo – pela nossa fragilidade,
susceptibilidade a doenças e ao envelhecimento; (ii) do mundo externo – pelo destrutivo
e incontrolável poder da natureza e pelos desastres que ela provoca; e (iii) da nossa
relação com outros homens. E continua:
O sofrimento proveniente dessa última fonte talvez seja mais doloroso
que qualquer outro. Tendemos a encará-lo como um tipo de acréscimo
gratuito, embora ele não possa ser menos decisivamente inevitável do
que o sofrimento oriundo de outras fontes (FREUD, 1974, p. 95).
Apesar de termos conseguido, de certo modo, minimizar a ação do tempo sobre
o nosso corpo, sua inegável fragilidade lembra-nos a todo o momento da nossa
mortalidade, da nossa finitude. Ainda que tentemos prever a ação da natureza, munidos
de aparatos sofisticadíssimos e altamente confiáveis, sua força destrutiva está longe de
ser controlada. Daí tomarmos estas duas fontes de ameaça como fatalidades, de modo a
amenizarmos nosso sofrimento. Porém, quando se trata da terceira mencionada por
Freud, a nossa relação com outros homens, cada vez mais efêmera, distante, insegura e
imprevisível, já não nos sentimos confortáveis. E se localizamos esta relação numa
37
Graduando (UERJ), orientado pelo Prof. Dr. Julio França.
Julio França (org.)
80
metrópole, o desconforto tende a ser muito maior. O presente ensaio discute a brutal
relação urbana entre os homens e o inevitável encontro de duas classes antagônicas, os
abastados e os desprovidos, no conto “Feliz Ano Novo”, de Rubem Fonseca.
Os dois parágrafos iniciais do conto já prenunciam antagonismos. No primeiro, o
protagonista vê pela televisão – em um aparelho que ele afirma, e comprova, que
comprou – a notícia de que as “lojas bacanas” estão vendendo rápida e facilmente seus
produtos de réveillon para as “madames” (FONSECA, 1998, p. 13). A televisão, ao
mesmo tempo em que o aproxima da classe consumista (afinal, ele pôde comprá-la), o
afasta desta mesma classe, ao mostrar que sua condição é absurdamente limitada e que
os “artigos finos para comer e beber” (IBID., p. 13) são, para ele, inatingíveis. No
segundo parágrafo, a “cachaça”, a “galinha morta” e a “farofa dos macumbeiros”
(IBID.), ainda que tenha que esperar até o dia seguinte para obtê-las, estão bem mais
próximo da realidade do protagonista. Abastados e desprovidos estão colocados, logo de
início, nos seus devidos lugares.
Os antagonismos, ao longo do conto, não são apenas econômicos, mas também
físicos e culturais. O personagem Pereba “não tem dentes, é vesgo, preto e pobre”
(IBID., p.14); o protagonista refere-se a Dona Candinha como “preta velha” (IBID.,
p.15). Além disso, o grau de escolaridade do protagonista autoriza-o a não ser
supersticioso: “Pereba sempre foi supersticioso. Eu não. Tenho ginásio, sei ler, escrever
e fazer raiz quadrada. Chuto a macumba que quiser” (IBID., p. 13). Saber ler e escrever
autoriza-o, inclusive, a contar a historia.
Os participantes da festa de réveillon, por outro lado, não são descritos pelas
características físicas, mas somente pelas econômicas – suas vestimentas e posses: “(...)
uma mulher toda enfeitada, de vestido longo vermelho” (IBID., p. 17); “Toda penteada,
aquele cabelão armado, pintado de louro, de roupa nova, rosto encarquilhado (...)
(IBID., p. 18); “Usava um lenço de seda colorida em volta do pescoço” (IBID., p. 19); e
ainda: “O quarto da gordinha tinha as paredes forradas de couro. A banheira era um
buraco quadrado grande, de mármore branco (...). A parede toda de espelhos. Tudo
perfumado” (IBID., p. 18). Estes contrastes reafirmam o que Zygmunt Bauman diz
sobre a terceira fonte de sofrimento de Freud: “a miséria de origem social”. Para ele, a
“supervalorização”, na terminologia de Robert Castel 38 , do individuo e sua consequente
“fragilidade e vulnerabilidade” (as duas “reviravoltas” simultâneas que se iniciaram na
38
Cf. CASTEL, Robert. L’Insecurite sociale: que’est-ce qu’etre protege?, Paris, Seuil, 2003, p.5.
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Europa da era moderna), são as causas da constante sensação de insegurança que temos
hoje, por já não estarmos mais atrelados aos vínculos sociais que antes nos protegiam.
Uma vez estabelecida, esta supervalorização do indivíduo torna-se inversamente
proporcional aos benefícios e proteções coletivos oferecidos, pois as regras impostas
para que ela permaneça impedem que os benefícios sejam universais: quanto mais
individualmente nos posicionamos, menos protegidos nos sentimos. Bauman completa:
Por isso, se a proteção de fato disponível e as vantagens que
desfrutamos não estão totalmente à altura de nossas expectativas; se
nossas relações ainda não são aquelas que gostaríamos de
desenvolver; se as regras não são exatamente como deveriam, e a
nosso ver, poderiam ser; tendemos a imaginar maquinações hostis,
complôs, conspirações de um inimigo que se encontra em nossa porta
ou embaixo de nossa cama. Em suma, deve haver um culpado, um
crime ou uma intenção criminosa (BAUMAN, 2009, p. 15).
De fato, as regras vigentes não valem para todos, nem valem da mesma maneira
para todos. Os benefícios e proteções oferecidos, não sendo universais, formam uma
massa de desprotegidos ávidos por se valerem dos mesmos benefícios e proteções dos
que são protegidos pelas regras impostas. A supervalorização do indivíduo transformounos, obrigatoriamente, em competidores (afundados até o pescoço em uma sociedade
baseada no mérito), fora de qualquer vínculo social que pudesse trazer segurança.
Inseguros, resta-nos apenas desconfiar de todos e temer tudo que venha dos outros –
suas ações, suas intenções, sua posição geográfica, social e econômica. Passamos,
assim, a temer constantemente a imprevisibilidade dos outros e seus potenciais atos
criminosos. Segundo Bauman, esta pode ser a origem da insegurança moderna:
Poderíamos dizer que a insegurança moderna, em suas varias
manifestações, é caracterizada pelo medo dos crimes e dos
criminosos. Suspeitamos dos outros e de suas intenções, nos
recusamos a confiar (ou não conseguimos fazê-lo) na constância e na
regularidade da solidariedade humana (IBID., p. 16).
Amedrontados por sermos incapazes de prever os atos alheios, nós nos valemos
de câmeras, códigos, alarmes, cofres e senhas; apavorados por não reconhecermos os
outros 39 como nossos semelhantes escolhemos viver rodeados por cercas, muros,
fechaduras, correntes, cadeados e chaves, porque “manter-se à distância parece a única
39
Os outros são aqui entendidos não como o faz Bauman – como estranhos, anônimos, os sem face com
que nós cruzamos todos os dias nas ruas ou mesmo os que estão em torno das cidades grandes – mas
como aqueles que carregam características diferentes das que consideramos positivas para nós, sejam elas
físicas, étnicas, geográficas, culturais e, acima de tudo, econômicas.
Julio França (org.)
82
forma razoável de proceder” (BAUMAN, 2008, p.92). Este desejo de distanciamento
cada vez maior fez com que a arquitetura das zonas urbanas fosse transformada de tal
forma que o crescente número de condomínios fechados (áreas de vigilância feroz que
possuem, dentro delas, os mesmos serviços oferecidos em uma metrópole, ainda que em
menores proporções) não surpreende. O medo do imprevisível, da imprevisibilidade dos
outros, trouxe outro sentido para os termos “norte” e “sul”, hoje sendo pouco
empregados com o sentido cartográfico que os originaram. Estes termos referem-se a
áreas econômicas brutalmente antagônicas e trazem a confirmação de que os benefícios
e proteções, de fato, não são para todos.
Em Feliz Ano Novo, os personagens conseguem distinguir facilmente o norte e o
sul. O protagonista declara que assaltou “um supermercado no Leblon” (FONSECA,
1989, p. 14), enquanto o personagem Zequinha, relembrando seus amigos mortos por
policiais, diz sobre um deles: “O Minhoca! Crescemos juntos em Caxias (...)” (IBID., p.
14). Em uma metrópole como o Rio de Janeiro – que não se comporta de maneira muito
diferente de qualquer outra –, estes locais têm seu prestigio ou seu demérito marcados
pelo fator econômico. O conto localiza sem dificuldades as áreas em questão: o leitor
percebe que assim como Caxias está para o “norte”, Leblon está para o “sul”. O norte é
a origem dos algozes, dos pobres, dos criminosos – dos imprevisíveis. No sul, estão
vítimas, os ricos, os abastados – aqueles de quem esperamos um comportamento regular
e, por isso, previsível. Esta divisão separa não apenas Caxias e Leblon, mas também
Nilópolis e São Conrado. O primeiro é o local rejeitado pelo protagonista: “Tás
querendo que eu vá morar em Nilópolis?” (IBID., p. 20); o segundo é o bairro nobre
carioca escolhido pelo grupo para cometer o assalto: “Puxamos um Opala. Seguimos
para os lados de São Conrado (IBID., p. 17).
Se a supervalorização do individuo tornou frágeis e vulneráveis os vínculos
sociais e se a distância entre o norte e o sul cresce a cada dia, esperamos ansiosos o
momento de podermos construir uma fronteira intransponível, uma barreira
extremamente eficaz contra qualquer ato imprevisível dos outros. Mais intolerantes e
mais apavorados, nós os empurramos para “espaços marginais, off-limits, nos quais não
podem viver nem se fazer ver” (BAUMAN, 2009, p.26). Sendo o lucro o objetivo
capitalista, e já que, para aumentá-lo, é preciso obter os mesmos (ou melhores)
resultados procurando diminuir cada vez mais os custos do trabalho realizado, os que
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foram empurrados para os espaços marginais não são mais, como aponta Castel 40 , os
“temporariamente excluídos”. São, como afirma Bauman, os “supérfluos e excluídos de
modo permanente” (IBID, p. 22). Os espaços marginais são, e serão, ocupados pelos
desempregados, todos descartados em prol da lógica do capitalismo. Ainda diz Bauman:
A exclusão do trabalho é vivida mais como uma condição de
“superfluidade” (...); equivale a ser recusado, marcado como
supérfluo, inútil, inábil para o trabalho e condenado a permanecer
“economicamente inativo”. Ser excluído do trabalho significa ser
eliminável (e talvez já eliminado definitivamente), classificado como
descarte de um “progresso econômico” (...) (IBID., p. 23-4).
Uma vez empurrados definitivamente para a margem e não gozando dos
benefícios oferecidos pelas regras vigentes, os desempregados misturam-se e
confundem-se com os criminosos 41 porque “não menos sutil é a linha que separa os
“supérfluos” dos criminosos (...)”. Estes distinguem-se daqueles “mais pela
classificação oficial e pelo tratamento que recebem que por suas atitudes e
comportamentos” (IBID., p. 24). Não importa nem um pouco o nome pelo qual os
tratamos ou se há uma diferença, ainda que sutil entre eles; apenas queremos todos para
sempre longe dos nossos olhos.
Ainda que tentemos permanecer distantes de desconhecidos, as cidades atraem
um ir e vir constante de pessoas que nunca vimos antes: “A cidade é um espaço em que
os estrangeiros existem e se movem em estreito contato” (IBID., p. 36). Elas oferecem
oportunidades que nenhum outro espaço atualmente consegue oferecer: emprego,
moradia, serviços de saúde, produtos e serviços diversos e entretenimento. Porém,
novamente é preciso ser dito: nem todos têm acesso aos mesmos benefícios. As cidades
buscam mão-de-obra ao mesmo tempo em que a rejeitam. Então, qual outro lugar se
pode ir que ofereça as mesmas oportunidades?
As oportunidades na cidade são oferecidas para os que estão dentro dela e ali
podem, de algum modo, permanecer. O protagonista do conto irrita-se com a
observação que o personagem Zequinha faz do prédio enquanto os dois sobem “pelas
escadas imundas e arrebentadas” (FONSECA, 1989, p. 20): “Fudido, mas é Zona Sul,
perto da praia” (IBID.). Morar no Rio de Janeiro, e mais especificamente, na zona sul, é
usufruir, pelo menos, alguns desses benefícios seletivos. A favela é o avesso das casas
40
Cf. Castel, R.L’Insecurite sociale: que’ est-ce qu’etre protégé?, Paris, Seuil, 2003, p. 47.
41
Para Bauman (2009, p. 24), os criminosos são pessoas que estão destinadas à prisão, já estão presas,
vigiadas pela policia ou simplesmente fichadas.
Julio França (org.)
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de São Conrado, mas ainda assim, encravada na parte nobre da cidade, carrega o
prestigio local.
Preto, vesgo e pobre, faminto, sem fumo, sem cachaça e sem farofa, oriundo da
zona norte, excluído permanentemente do (e pelo) regime capitalista e empurrado para
os espaços marginais, o personagem Pereba, ao mesmo tempo, percebe e recusa sua
condição miserável quando nega: “E frango de macumba eu não como” (IBID., p. 15).
Bauman (2008, p. 9), com base nos estudiosos do comportamento animal, afirma que
todos os animais oscilam entre duas alternativas de reação quando na presença imediata
do perigo: fuga ou agressão. Pereba, Zequinha e o protagonista do conto de Fonseca
decidem pela segunda alternativa.
Ao invadirem a festa de réveillon em São Conrado, os três personagens não
mostram compaixão alguma, ou qualquer outro sentimento positivo, para com seus
participantes. Quando se depara com a dona da casa morta no quarto, o protagonista
comenta: “Pra que ficou de flozô e não deu logo? O Pereba tava atrasado. Além de
fudida, mal paga” (FONSECA, 1989, p. 18); ao tentar retirar um anel do dedo da mãe
da dona da casa, também morta, ele diz ter sentido “nojo” (ibidem). Ele também
observa minuciosamente o quarto e o banheiro, descrevendo as paredes, os materiais e
os tecidos. Toda aquela ostentação deve ser manchada por ele, deve ser suja, pois é uma
ostentação que perpetua a segregação, o exclui e o empurra para a margem.
Calmamente, o protagonista arruma a colcha de cetim na cama e defeca sobre ela.
Outro ponto brutal – de um conto inteiramente brutal – é a maneira como o
protagonista e o personagem Zequinha confirmam sua “teoria”. Relembrando o que
dissera o último sobre seu desejo de matar um policial usando a carabina doze, uma
arma de grosso calibre e forte poder de fogo, “pra jogar o puto de costas na parede e
deixar ele pregado lá” (IBID., p. 16), o protagonista atira em um participante da festa e
o impacto do tiro o arremessa contra a parede. Querendo mostrá-lo que, para ter sucesso
no seu intento, seria preciso atirar em alguém que estivesse próximo à porta: “Tem que
ser na madeira, numa porta. Parede não dá (...)” (IBID., p. 19), Zequinha faz o mesmo
com outro participante e o resultado comove o protagonista:
Vê como esse vai grudar. Zequinha atirou. O cara voou, os pés saíram
do chão, foi bonito, como se ele tivesse dado um salto para trás. Bateu
com estrondo na porta e ficou ali grudado. Foi pouco tempo, mas o
corpo do cara ficou preso pelo chumbo grosso na madeira (IBID., p.
20).
INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4
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A sociedade moderna concluiu, aludindo aos especialistas em cálculo de risco
citados por Bauman, que todos somos suscetíveis ao mal; todos nós, sem exceção,
somos perfeitamente capazes de cometer tanto um pequeno delito quanto um crime
hediondo – todos nós somos monstros em potencial. Após estudar e analisar o
julgamento de Eichmann em Jerusalém, o sociólogo polonês alerta:
A lição mais devastadora de Auschwitz, do Gulag ou de Hiroshima,
do ponto de vista moral, não é que poderíamos ser postos atrás do
arame farpado ou enviados a câmara de gás, mas que (nas condições
adequadas) nós poderíamos ficar de sentinela ou espargir cristais
brancos em chaminés. E não que uma bomba atômica pudesse cair
sobre nossas cabeças, mas que (nas condições adequadas) nós
poderíamos lançá-la sobre as cabeças de outras pessoas (BAUMAN,
2008, p. 89).
Somos vítimas quando estamos amontoados em campos de concentração ou
recebendo bombas atômicas sobre a cabeça; também o somos quando estamos acuados
como reféns de sequestradores ou servindo de cobaias para patéticas “teorias” de
assaltantes durante um réveillon. Mas também somos algozes quando apoiamos o lucro
ou desenvolvemos armas de destruição em massa; somos algozes quando nos
supervalorizamos individualmente e competimos entre nós, contra nós mesmos, e
empurramos os excluídos para espaços marginais ou quando nos trancamos em
condomínios fechados de segurança máxima por total medo da imprevisibilidade dos
outros – um medo causado pela diferença e pela indiferença; um medo gerado pelo fim
dos vínculos sociais. Com isso, os antagonismos tornam-se cada vez mais profundos e
cada vez mais duradouro é o medo. Os ricos e os pobres, os artigos finos e as oferendas
religiosas, as madames e os bandidos, os úteis e os supérfluos, os consumistas e os
limitados, os abastados e os desprovidos, nesse contexto, serão os eternos opostos que
compõem o cenário urbano. Embora pareça haver uma distinção clara entre eles, vítimas
e os algozes são duas partes do mesmo monstro.
REFERÊNCIAS:
BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.
______. Medo líquido. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2008.
FONSECA, Rubem. Feliz ano novo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
Julio França (org.)
86
FREUD, Sigmund. O Mal estar na civilização. Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. XXI. Tradução de Eudoro Augusto
Macieira de Souza. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
MERRIAN-WEBSTER’s encyclopedia of literature. Springfield/Massachussetts:
Merrian-Webster, 1995.
INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4
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Odetalhe como ornatus e o medo do outro em
"Ocoração denunciador"
Paloma LIMA ∗
Esse trabalho resulta da minha dissertação de mestrado defendida no início deste
mês na UFES, intitulada “Flores do medo: o trabalho do ornamental em histórias
fantásticas de Edgar Allan Poe”. Vou tratar aqui especificamente do conto, “The telltale heart”, “O coração denunciador” e alguns dos conceitos-chaves de minha
dissertação: ornatus, detalhe e medo.
O campo nocional relativo ao termo ornatus, diferentemente do que ocorre hoje
na maior parte das discussões acerca do fazer literário, ocupou quase sempre – e desde
Aristóteles – um lugar de grande relevo como qualidade do discurso ou como elemento
a ele relacionado. Ornamento relaciona-se tanto com o que é concreto na cena,
vestimentas, cores, elementos de mobília e decorativos, quanto com aquilo que não é
palpável. O que é ornamental, portanto, nesse sentido, está relacionado a um certo
arranjo intencional, a uma forma proposital de organização, mais que aos elementos que
ordena.
O que orna também persuade e, embora esse sentido de ornamento tenha caído
em desuso na idéia hoje corrente de literatura, ele possuía papel de grande relevo na
retórica antiga. Do ponto de vista da elocutio, por exemplo, o discurso deveria possuir
determinadas qualidades ou virtudes, responsáveis pela excelência do dizer, dentre as
quais a ornamentação (LAUSBERG: 1966, p. 9-11, § 453-460), entendida como
elegância de estilo. Ela é também a virtude responsável pelo agrado que o discurso
produz e a impressão positiva que deixa no ouvinte. O ornatus é uma virtude decisiva
para a constituição da microestrutura do discurso retórico, e é de todas a mais cobiçada,
observa H. Lausberg (LAUSBERG: 1966, p. 50, § 538).
Articulado na teia da argumentação com o fim de deleitar, instruir e mover à
ação, segundo Lausberg, o ornamento é um elemento decisivo para o cumprimento da
complexa finalidade do discurso retórico, pois é elaboração artística da prova e
proporciona ao discurso retórico uma capacidade de desautomatização da comunicação
que substancialmente o diferencia das demais formas de discurso. O ornamento é assim
∗
Mestre em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo.
Julio França (org.)
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compreendido pela retórica clássica. Para refletir sobre a natureza narrativa dos contos
poeanos em minha dissertação e também especificamente no conto que hoje examino,
porém, quando optei por uma reflexão de viés retórico, desejei manter em vista estas
idéias, sem me limitar a elas.
Com Wellbery e Bender, prefiro pensar em termos de retoricidade, ou seja, a
retórica "não mais como título de uma doutrina e uma prática, nem forma de memória
cultural" (WELLBERY e BENDER: 1998,
p. 32), mas como uma condição de
realização de todo metadiscurso. Minha intenção aqui, portanto, não é a de buscar no
conto de Edgar Allan Poe um exame de categorias retóricas clássicas relativas ao
ornamento, considerando que não é possível reavivá-las em nosso tempo, nem
tampouco buscar componentes formais e temáticos fixos nos textos poeano, mas
observar o labor simbólico do texto, suas operações persuasivas.
Na obra de Edgar Poe, ornamentos concretos e abstratos se arranjam de modo a
dar credibilidade ao narrador e à história que compartilha, ainda que esta seja a história
de sua loucura. O ornatus, sobretudo ao aparecer como detalhe da narrativa, investe-se
de verossimilhança: uma história contada através dos detalhes, do mundo concreto do
personagem e de sua forma de expressão, suscita a impressão de um arranjo natural, que
por sua vez, aliado à natureza temática dos contos, inclusive daquele selecionado para
esta comunicação, inspiram o medo.
Do mesmo modo que a noção clássica de retórica atualiza-se, também o modo
de pensar o ornamento transforma-se. O tema tem sido analisado de modo menos
categórico e apriorístico, menos em termos de funções, que pressupõe causa e
consequência, e mais em razão dos modos de funcionamento do ornatus. Nesse sentido,
podemos pensar a palavra ornamento em termos de motivos, ou conforme a definição de
Jean-Claude Bonne, "d’unités essentiallement formelles, éventuellement répertoriables à
l’intérieur d’une tradition artistique (ou transférables de l’une à l’autre)" (BONNE:
1997, p. 103-118). Essas unidades, segundo Bonne, se formam por repetição, variações,
ou combinações diversas e se inscrevem em composições de objetos, imagens ou
monumentos. Mais que a um procedimento esse funcionamento do ornatus corresponde
a uma mentalidade, ornamentalité, um modo de pensar que cria verdades a partir de
marcas. O trabalho do ornamental é uma verdade criada a partir do ornamento e é
também o modo de criá-la. Esse duplo movimento conceitual rompe os fundamentos da
noção da existência de uma linguagem a-retórica ou mesmo de uma observação aretórica. Logo, o que passarei a observar em "O coração denunciador" são modos
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possíveis de persuasão através de uma ornamentalidade que se constitui em domínios
retóricos e que, em lugar de classificar para ensinar, artisticamente organiza-se à luz da
negociação de realidades, tendo sempre em vista que aquilo que é apenas o é porque
poderia ser de outro modo. No conto, os detalhes organizam-se de modo ornamental,
como pilar e encrustação da narrativa, criando as circunstâncias do medo.
Em "O coração denunciador", fragmentos e detalhes arranjam-se de modo a criar
as verdades responsáveis pelo medo no conto: sucessivas transferências e substituições,
por proximidade de sentido, relação de semelhança ou por outras implicações mútuas
tranformam-no em um conto denunciador também no sentido de revelar artifícios
retóricos e ornamentos em ação, em pleno trabalho do ornamental.
Poe inicia a narrativa falando do estado de espírito em que se encontra o
personagem. 42 O depoimento convoca o leitor a acompanhar a história não de um louco,
mas a de um aflito. Essa distinção com que o narrador inicia o conto nos parece
importante: embora anuncie que algum tipo de doença tenha lapidado seus sentidos,
aguçando-os, o narrador faz questão de afirmar que essa doença não dilapidou sua
percepção do mundo. É a história de uma aflição, portanto.
Aqui, como em outros de seus contos 43 , logo no primeiro parágrafo já se sabe
que algo quase inacreditável aconteceu. Não há qualquer razão objetiva para a idéia fixa
que se forma na mente do narrador – a de matar seu vizinho idoso – a não ser o pálido
olho azul do homem velho, doente de catarata. O olho, nesse caso, é fragmento e é
detalhe. Não se trata, porém, de um recorte neutro na imagem do vizinho, já que é esse
fragmento que dá início ao desejo de tirar a vida do "velho abutre". O historiador da arte
Daniel Arasse propõe duas categorias de detalhe: o detalhe-particular (détailparticolare) e o detalhe-detalhe (détail-dettaglio), que não se opõem entre si, ao
contrário, podem guardar, em determinadas obras, um sentido de complementaridade.
Para ele, o particolare é uma pequena parte de uma figura, objeto ou de um conjunto
(ARASSE: 1996, p. 11). Arasse observa, porém, que tudo seria muito simples se o
detalhe não fosse também, além de um tipo de particular ou de fragmento, dettaglio no
42
“TRUE! — nervous — very, very dreadfully nervous I had been, and am; but why will you say that I
am mad? The disease had sharpened my senses — not destroyed — not dulled them. Above all was the
sense of hearing acute. I heard all things in the heaven and in the earth. I heard many things in hell. How,
then, am I mad? Hearken! and observe how healthily — how calmly I can tell you the whole story.”
(POE: 2002, p. 313).
43
Como, por exemplo, em "O barril de Amontillado"; "O caso do Sr. Valdemar"; "O enterramento
prematuro", entre outros (POE: 1965, p. 224; 303; 290).
Julio França (org.)
90
sentido italiano do termo, ou seja, o resultado ou o traço da ação daquele que "fez o
detalhe", seja ele o pintor ou o espectador. Nesse sentido, para Arasse, o detalhe
pressupõe um sujeito que "talha" um objeto. Ou, como sugere Omar Calabrese, a
produção de detalhes depende da ação de um sujeito sobre um objeto. A palavra detalhe
manifesta um programa de ação. Sua configuração depende do ponto de vista do
"détaillant" (CALABRESE: 1985, p. 75-77).
No conto de Edgar A. Poe, parece-nos que o entalhe deixa sua marca no quadro
da narrativa. O personagem, completamente tomado pelos sentimentos que o olho do
velho lhe inspira, deseja ardentemente arrancar aquele particular de seu contexto. A
história desse conto, portanto é, em grande parte, o conteúdo do que Calabrese
denomina "programa de ação" do detalhe.
Duas modalidades de detalhe estão presentes no conto: a pequena parte de um
objeto foi detalhada (entalhada segundo um desejo) para obter sua significação no
conto. Por outro lado, quando a vemos, leitores do texto, ela se faz notar outra vez, é
novamente marcada (re-marquée) (ARASSE: 1996, p. 12), entalhada pelo nosso olhar.
Observemos, então, que há pelo menos, três níveis de detalhes em "O Coração
Denunciador": aquele feito pela mão do autor, através de artífícios de pensamento e
linguagem, o entalhe literal feito no interior da obra, pelo narrador-personagem, e, por
fim, aquele que o olhar dos leitores refaz ao notar esses percursos.
Logo, o medo do olho do vizinho, medo que faz gelar o sangue do narrador, que
o paralisa e, ao mesmo tempo, é causa do movimento que dá origem ao enredo, é medo
do outro, mas é também medo de si. Existe um conflito diante do fragmento, mas
também do olhar que o detalhou, nesse caso, não o olhar do velho, mas o do próprio
personagem. Notemos que a palavra "eye", em inglês, soa, inclusive, de modo
semelhante a "I". O medo do olhar do outro é, ambivalentemente, também o medo de si.
A respeito dessas ambivalências, Schor observa que, em sua tese de
interpretação dos sonhos, Freud anui a existência de um certo trajeto de associações em
que a forte carga psíquica de um evento passa a outro evento aparentemente
insignificante. A esse movimento, Freud chama "déplacement", deslocamento (SCHOR:
1994, p. 109).
O deslocamento seria, então, uma estratégia que visa a disfarçar um detalhe
censurado pelo inconsciente através de uma banalização. Schor explica que para Freud,
diversos males a que se dedica a psicanálise, como a histeria, a paranóia e a obsessão
nervosa, são doenças do detalhe (SCHOR: 1994, p. 110). Assim, os detalhes possuem
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um status provilegiado na teoria freudiana, já que são os eventos ou objetos
aparentemente frívolos que recebem a carga dos outros "hiper-semantizados" (SCHOR:
1994, p. 109). Os eventos-índices passam a ter tamanha autonomia que ganham a
aparência de serem independentes na elaboração de sua carga psíquica, quando são, no
fundo, usurpadores de significações.
Tal como os percebemos, os ornamentos são um tipo de detalhe na medida em
que possuem uma aparente insignificância, mas carregam em si e no modo como se
organizam no texto, múltiplas significações, como fragmento e como dettaglio. Embora
concordemos com os termos do processo de deslocamento como descrito por Freud, é
importante ressaltar que, ao contrário do que ele propõe para a interpretação dos sonhos,
no texto literário não cabe pensar os detalhes, ou ornamentos, como usurpadores de
sentidos. De nossa perspectiva, a escolha de um detalhe e não de outro, possui
significação genuína. Essa escolha comunica-se com os demais elementos e opções
feitas na narrativa, dando uma infinita carga de sentidos ao texto poeano. Esses sentidos,
para serem investigados, não podem ser destacados do que representam, ao contrário,
devem ser observados tal como se encontram, em seu trabalho ornamental.
Assim, no conto, tendo sido arrebatado pelo olho do velho, e decidido a matá-lo
por conta desse fragmento e detalhe, o personagem passa a espreitar sua vítima em
busca da ocasião de concretizar o crime. A despeito, porém, do cuidado com que
realizava cada uma de suas ações, o personagem era impedido de atingir o desejado
desfecho fatal de seu plano por conta de um detalhe: sempre que chegava aos aposentos
da vítima e conseguia lançar sobre seu olho um único raio de luz que o atingisse de
modo estratégico, o olho estava fechado. Com o olho fechado, faltava o impulso de
matar o velho, pois não era a integridade do homem a razão do incômodo, mas
exclusivamente aquele seu particular. Não bastava para o assassino ver o olho do seu
vizinho, mas era necessário ter a sensação de ser visto por ele. Essa minúcia do olho
aberto, nos lembra o que diz o teórico da arte Georges Didi-Huberman no primeiro
capítulo de seu livro "O que vemos, o que nos olha": “O que vemos só vale – só vive –
em nossos olhos pelo que nos olha. Inelutável porém é a cisão que separa dentro de nós
o que vemos daquilo que nos olha” (DIDI-HUBERMAN: 1998, p. 29).
O olho precisa estar aberto para ser lido, detalhe e signo. Ao mesmo tempo, na
obra poeana, o olho precisa estar aberto para ser novamente fechado. Didi-Huberman
lembra que em Joyce, a perda da mãe de Stephen Dedalus faz que tudo que se apresenta
a ver seja olhado pelo prisma dessa perda. Assim também, o personagem poeano precisa
Julio França (org.)
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fechar definitivamente o olhar daquele velho para que possa "tocar" seu medo, sua
aflição diante daquele detalhe que o angustia de modo físico e inefável.
Na madrugada do crime, pé ante pé, o personagem penetra o quarto e observa o
velho que se sente observado. Ambos sentiam a iminência da morte, o velho agitava-se
e gemia. Sabendo-se visto, tendo sido tocado pelo olhar do velho, e incitado pelas as
batidas do coração de sua vítima, como que pelas batidas de um tambor,o narrador,
finalmente, consegue matá-lo.
Por fim, o olho não incomodaria mais. Após a morte do velho, é esse o primeiro
pensamento do narrador. Uma complexa trama de sensações atinge seu ponto máximo,
o olho fora definitivamente cerrado, com o que, assim esperava o assassino, seu
problemas também terminariam. Após o feito, o personagem esquarteja a vítima e
oculta os pedaços de seu corpo sob três tábuas do piso de madeira do quarto do defunto,
escondendo assim, todas as evidências do crime. Algum vizinho, porém, tendo ouvido
gritos, chama a polícia. Três oficiais chegam ao prédio.
É então que começa a segunda parte do tormento do narrador. Com seus modos
perfeitos, ele convence os oficiais de que tudo estava calmo e que nada de
extraordinário teria acontecido ali, naquela noite. Apesar de certo de ter cometido um
crime perfeito, um barulho começa a inquietá-lo, um som que aparentemente os
policiais não ouviam. O bater do coração era tão alto, tão intenso, que o personagem
não consegue acreditar que os oficiais não podiam ouvi-lo. Acha-se vítima de uma
zombaria. Ao mesmo tempo, o coração do morto insistia em denunciar a angústia do
personagem, batendo cada vez mais alto, cada vez mais forte.
O processo de deslocamento ou sinédoque, assim, fica ainda mais claro porque a
aflição do personagem não se encerra com o fechar do olho. Ele escolhe outra parte do
todo para representar sua angústia, desta vez, o coração. O que se perde ali, o vazio que
persegue o personagem, que o olha, seja ele materializado no próprio olhar cego ou em
um coração morto que ainda pulsa, é o verdadeiro tema do conto, o medo do outro, do
objeto externo, que é medo de si, medo do próprio entalhe que realiza no mundo, dos
próprios cortes de que é capaz. O personagem não suporta a angústia e, por fim, mostra
aos oficiais de onde vem o ruído ensurdecedor – do coração que pulsa sob a madeira. O
coração é, por fim, completamente exposto, aos olhos dos oficiais. É preciso que eles
também vejam, que eles também "toquem com os olhos", que saibam o que aconteceu.
Lendo Joyce, Didi-Huberman revira a sugestão que está em Ulisses, "fechemos os olhos
para ver", dizendo, sobre o trabalho visual que se dá quando vemos o mar, uma obra de
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arte ou alguém que morre, que é preciso que "abramos os olhos para experimentar o que
não vemos" (DIDI-HUBERMAN: 1998, p. 34). No texto poeano, esse é um trabalho do
ornatus: como detalhe da narrativa. Especialmente, assumindo a forma de detalhes
metonímicos, o trabalho do ornamental materializa vazios, ajudando-nos a ver o
invisível, mostrando, através da perda e da destruição dos corpos, outras lacunas que
não podemos adivinhar.
Podemos, sim, por outro lado, concluir que o outro a quem o personagem teme
personifica essas lacunas. Pensando que a palavra angústia e a palavra angina possuem a
mesma raiz latina, angor (DELUMEAU: 1989, p. 25), podemos compreender porque
Edgar Poe fez a opção pelo coração denunciador no desfecho do conto: a dor no peito
do assassino pulsa no coração de sua vítima. O detalhe que se destaca na visão do outro
denuncia o próprio personagem: na história poeana, podemos dizer, the eye tells the tale
of the "I", confirmando a afirmação de Schor, de que para Freud os detalhes são o
destino (SCHOR: 1994, p. 103) – caminho, contingência e ponto de chegada.
REFERÊNCIAS :
ARASSE, Daniel. Le Détail. Pour une histoire rapprochée de la peinture. Paris:
Flammarion, 1996.
BONNE, Jean-Claude. « De l’ornement à l’ornamentalité. La mosaïque absidiale de San
Clemente de Rome. » In: L’ornement dans la peinture murale. Colloque Saint-Lizier.
Poitiers: Université de Poitiers, 1997. p. 103-118.
CALABRESE, Omar. L’età neo-barroca. Rome-Bari: Laterza, 1985.
DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente 1300-1800. Trad. Maria Lúcia
Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Trad. Paulo Neves.São
Paulo: 34, 1998.
LAUSBERG, Heinrich. Manual de Retórica Literaria. Trad. José Pérez Riesco. Madrid:
Gredos, 1966.
POE, Edgar Allan. Tales of Mistery and Imagination. London: Everyman, 2002. Ed.
Graham Clarke.
______. Ficção completa, poesia e ensaios. Org. e trad. Oscar Mendes e Milton Amado.
Rio de Janeiro: Aguilar, 1965. SCHOR, Naomi. Lectures du détail. Paris: Nathan, 1994.
WELLBERY, David E. e BENDER, John. Retoricidade: Sobre o retorno modernista da
retórica. In: WELLBERY, David E. Neo-Retórica e Desconstrução. Trad. Angela
Melim. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998, p. 11-47.
Julio França (org.)
94
Os reflexos do medo nas personagens de
“Obloqueio”, de Murilo Rubião e
“Medo da eternidade”, de Clarice Lispector.
Thalita Martins Nogueira 44
Paradoxalmente, a existência nega a lógica e o
racional. A lucidez existe somente num momento
único, o momento de saber existencial, o momento
que pode coincidir com a morte.
(JOSEF: 2006, p. 207 - 208)
O medo é uma das inquietações humanas mais intrigantes e complexas, uma vez
que provoca no ser humano sensações e reações diversas. Tal perturbação é em geral
desencadeada pela experienciação de situações que ofereçam perigo tanto físico como
psíquico, acarretando na perda de segurança e equilíbrio interno do indivíduo. É com
base na definição acima proposta que o presente trabalho se justifica, já que se buscará
compreender os reflexos que esse medo produz em personagens de narrativas curtas de
Clarice Lispector e Murilo Rubião.
É relevante dizer que os sentimentos de medo que serão analisados na narrativa
clariciana “Medo da Eternidade”, bem como no conto rubiano “O bloqueio”
apresentam-se de maneira bastante diversa, confirmando assim a notável diferença na
construção narrativa de ambos os autores e no modo de abordagem do tema em questão,
apesar da grande proximidade conservada por eles no que diz respeito às inúmeras
aflições que perturbam suas personagens.
As personagens dos autores em questão configuram-se como prenunciadoras das
sensações de agonia e desespero trazidas pelo período histórico desintegrador no qual
vive o homem. Em um ambiente de desesperança em relação às descobertas científicas,
explicações de cunho religioso e/ou qualquer tipo de explicação alternativa, o homem se
vê impotente diante das questões que se colocam à sua frente, assim como de si mesmo,
uma vez que sua questão identitária já não demonstra o equilíbrio esperado, devido à
fragmentação do sujeito cartesiano bem delimitado. Segundo Stuart Hall,
um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as
sociedades modernas no final do século XX. Isso está fragmentando
44
Especializanda UERJ e Mestranda UFF.
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as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e
nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas
localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão
também mudando nossas identidades pessoais, abalando a idéia que
temos de nós próprios como sujeitos integrados. Esta perda de um
“sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou
descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento – descentração dos
indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si
mesmos – constitui uma “crise de identidade” para o indivíduo.
(HALL: 2005, p. 9)
Assim, o homem se torna incapaz de dar respostas plausíveis aos
questionamentos que surgem, estando impossibilitado de lidar de maneira coerente e
racional com as sensações diversas que acompanham esse período de transformação,
sendo uma delas o medo.
Bauman coloca em pauta a questão do medo dizendo que ele
é mais assustador quando difuso, disperso, indistinto, desvinculado,
desancorado, flutuante, sem endereço nem motivo claros; quando nos
assombra sem que haja uma explicação visível, quando a ameaça que
devemos temer pode ser vislumbrada em toda parte, mas em lugar
algum se pode vê-la. “Medo” é o nome que damos a nossa incerteza:
nossa ignorância da ameaça e do que deve ser feito – do que pode e
do que não pode – para fazê-la parar ou enfrentá-la, se cessá-la estiver
além do nosso alcance. (BAUMAN: 2008, p. 8)
É esse tipo de ameaça sem ancoragem bem definida e, por vezes, desencadeada
por aquilo que é, de certa forma, “irreal” ou inconcebível, que assombra as personagens
claricianas e rubianas em questão. O medo é um elemento vivo e de grande constância
nesse tipo de narrativa em que a condição humana é posta em cheque, fazendo com que
a condição de amedrontamento vivenciada domine as ações das personagens de modo a
configurar-se como companhia do desespero do qual o humano não consegue se
dissociar. Bauman afirma que,
no ambiente líquido-moderno, contudo, a luta contra os medos se
tornou tarefa para a vida inteira, enquanto os perigos que os deflagram
– ainda que nenhum deles seja percebido como inadministrável –
passaram a ser considerados companhias permanentes e indissociáveis
da vida humana. Nossa vida está longe de ser livre do medo, e o
ambiente líquido-moderno em que tende a ser conduzida está longe de
ser livre de perigos e ameaças. A vida inteira é agora uma longa luta, e
provavelmente impossível de vencer, contra o impacto potencialmente
incapacitante dos medos e contra os perigos, genuínos ou supostos,
que nos tornam temerosos. (BAUMAN: 2008, p. 15)
Julio França (org.)
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Observa-se que o medo acompanha o processo de transformação do homem. O
medo do indivíduo relaciona-se a diversos fatores históricos que ao longo dos tempos
colaboraram para delinear a condição líquido-moderna do homem tais como
desesperança em relação à ciência, sensação de impotência e incapacidade de resposta
diante dos questionamentos que surgem, e a consequente fragmentação identitária, que
corroboram na aparição de sensações de agonia e desespero que se ligam diretamente ao
medo.
Na crônica “Medo da eternidade”, de Clarice Lispector, a personagem principal,
que se incumbe de narrar uma de suas experiências de infância, expõe sua sublime
sensação de medo ao leitor, a partir de uma arguciosa analogia a um chicle de bola. Ao
experimentar pela primeira vez um chicle que sua irmã lhe dera, a personagem
autodiegética narra seu fascinante contato com a sensação de eternidade.
Afinal minha irmã juntou dinheiro, comprou e ao sairmos de casa para
a escola me explicou:
– Tome cuidado para não perder, porque esta bala nunca se acaba.
Dura a vida inteira.
– Como não acaba? – Parei um instante na rua, perplexa.
– Não acaba nunca e pronto.
Eu estava boba: parecia-me ter sido transportada para o reino de
histórias de príncipes e fadas. Peguei a pequena pastilha cor-de-rosa
que representava o elixir do longo prazer. (LISPECTOR: 1999, p.
290)
Nota-se que, nesse primeiro momento, a personagem fica maravilhada com
aquilo que desconhece, fantasiando em seu imaginário o possível prazer que tal
elemento ignoto proporcionaria a ela.
E eis-me com aquela coisa cor-de-rosa, de aparência tão inocente,
tornando possível o mundo impossível do qual eu já começara a me
dar conta.
Com delicadeza terminei afinal pondo o chicle na boca.
– E agora o que eu faço? – Perguntei para não errar no ritual que
certamente deveria haver. (LISPECTOR: 1999, p. 290)
Assim que sua irmã explica como deveria ela saborear o chicle cor-de-rosa,
ratificando seu caráter eterno, que só poderia ser perdido caso ela perdesse a bala, a
menina se vê espantada.
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Perder a eternidade? Nunca.
O adocicado do chicle era bonzinho, não podia dizer que era ótimo. E,
ainda perplexa, encaminhávamo-nos para a escola.
– Acabou-se o docinho. E agora?
– Agora mastigue para sempre. (LISPECTOR: 1999, p. 290)
No entanto, quando a personagem se depara com a verdadeira sensação
proporcionada por aquele chicle e a conseqüente reflexão trazida pela sua representação
imaginária, ela se frustra.
Assustei-me, não saberia dizer por quê. Comecei a mastigar e em
breve tinha na boca aquele puxa-puxa cinzento de borracha que não
tinha gosto de nada. Mastigava, mastigava. Mas me sentia contrafeita.
Na verdade eu não estava gostando do gosto. E a vantagem de ser bala
eterna me enchia de uma espécie de medo, como se tem diante da
idéia de eternidade ou de infinito.
Eu não quis confessar que não estava à altura da eternidade. Que só
me dava era aflição. (LISPECTOR: 1999, p. 290)
É interessante perceber que a representação do medo na narrativa clariciana não
se configura como uma ameaça real, isto é, cujo elemento de reprodução encontre-se
descrito nas marcas textuais como algo pertencente ao plano fatual vivenciado pela
personagem. O elemento que produz o medo, apesar de estar presente no imaginário da
personagem, oculta sua face. Valendo-se das palavras de Bauman, pode-se então dizer
que
o sentimento de impotência – o impacto mais assustador do medo –
reside, contudo, não nas ameaças percebidas ou imaginadas em si,
mas no espaço amplo, embora abominavelmente mobiliado, que se
estende entre as ameaças de que emanam os medos e nossas reações –
as disponíveis e/ou consideradas realistas. (BAUMAN: 2008, p. 32)
Na contemporaneidade as fontes de prazer estético do medo na literatura
ultrapassaram o campo do sobrenatural e atingiram o campo do sublime, do que é
indizível, encontrando seu espaço no silêncio reflexivo que inquieta o ser humano. Tal
viés do medo é experimentado pela personagem de Clarice Lispector, já que esse
sentimento não é da ordem de algo concreto, situação real de perigo que afronta
diretamente a personagem, mas por uma contradição apavorante que povoa apenas o
imaginário da mesma, fazendo com que ela se veja impossibilitada de encontrar
possíveis respostas aos questionamentos.
Julio França (org.)
98
Outra questão relevante a respeito da escritura clariciana e conseqüentemente da
crônica em questão, é a originalidade com que a autora coloca temas que desafiam o
sujeito humano, colocando sua existência em cheque de modo a engendrar situações que
impossibilitam um fechamento das questões discutidas. Afinal, como bem afirma Bella
Josef “As personagens de Clarice vivem num caos e lutam para compreender sua razão
de existir”. (JOSEF: 2006, p. 208).
A respeito do medo na narrativa rubiana, pode-se dizer que ele se constitui como
uma ameaça real para a personagem, à medida que é desencadeada por fatores externos
e, especificamente no conto em questão, pela destruição misteriosa do prédio onde a
personagem se encontra hospedada. Nesse contexto, a sensação de medo é provocada
pela situação insólita a que a personagem está submetida, além de não se configurar
simplesmente como algo fruto das reflexões da mesma, mas de ser absolutamente
legítimo na realidade vivenciada por ela, já que tal narrativa utiliza-se de marcas
textuais que apontam para uma natureza concreta do objeto responsável pelo
desencadeamento da sensação de pavor na personagem.
“O bloqueio”, de Murilo Rubião, apresenta uma personagem que se encontra
hospedada em um edifício recém-construído, sendo ela a única hóspede do mesmo. No
entanto, ela não estranha a situação de ser a única moradora, nem de ver o prédio ser
direcionado a uma completa destruição, já que ela permanece no edifício.
Ligou para a portaria. Tinha pouca esperança de receber
esclarecimentos satisfatórios sobre o que estava ocorrendo. O próprio
síndico atendeu-o:
– Obras de rotina. Pedimos-lhe desculpas, principalmente sendo o
senhor nosso único inquilino. Até agora, é claro.
– Que raio de rotina é essa de arrasar o prédio todo?
– Dentro de três dias estará tudo acabado – disse, desligando o
aparelho.
– Tudo acabado. Bolas. Encaminhou-se à minúscula cozinha, boa
parte dela tomada por latas vazias. Preparou sem entusiasmo o jantar,
enfarado de conservas. (RUBIÃO: 2008, p. 247)
Antes de realizar a ligação para a portaria do prédio para obter possíveis
esclarecimentos a respeito do barulho no edifício, a personagem Gérion é despertada de
seu sono pelo trabalho de uma máquina de construção civil.
Acordou em pânico: uma poderosa serra exercitava os seus dentes nos
andares de cima, cortando material de grande resistência, que se
estilhaçava ao desintegrar-se.
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Ouvia, a espaços, explosões secas, a movimentação de uma nervosa
britadeira, o martelar compassado de um pilão bate-estaca. Estariam
construindo ou destruindo?
De temor à curiosidade, hesitou entre verificar o que estava
acontecendo ou juntar os objetos de maior valor e dar o fora antes do
desabamento final. (RUBIÃO: 2008, p. 245-246)
Mesmo estando ciente de uma possível destruição, a personagem se vê imersa
em seus pensamentos sobre os motivos que o levaram a se hospedar naquele prédio,
bem como sobre a falta de motivação da mesma para retornar ao seu ambiente familiar.
Entretanto, no momento em que ela provavelmente decide render-se à necessidade de
retorno, vê-se impossibilitada de deixar o edifício, pois a construção começa a se
desintegrar diante dela.
Gérion descia a escada indeciso quanto a necessidade do sacrifício.
Oito andares abaixo, a escada terminou abruptamente. Um pé solto no
espaço, retrocedeu transido de medo, caindo para trás. Transpirava, as
pernas tremiam.
Não conseguia levantar-se, pregado ao degrau.
Foi demorada a recuperação. Passada a vertigem, viu embaixo o
terreno limpo, nem parecendo ter abrigado antes uma construção.
Nenhum sinal de estacas, pedaços de ferro, tijolos, apenas o pó fino
amontoado nos cantos do lote.
Voltou-se ao apartamento ainda sob o abalo do susto. Deixou-se cair
no sofá. Impedido de regressar a casa, experimentou o gosto da plena
solidão. (RUBIÃO: 2008, p. 248-249)
A personagem de Murilo Rubião vê na possibilidade de sua destruição física o
cessar das perturbações que a acometem. Nesse contexto, existe uma clara diferença
entre o conto rubiano e a narrativa clariciana no que tange à questão do medo, uma vez
que não há na narrativa de Clarice um direcionamento para a destruição física e/ou
psicológica da personagem. Em “Medo da eternidade”, o medo encontra seu espaço na
possibilidade de transporte do leitor para a esfera do intangível, daquilo que está para
além do entendimento humano, legitimando dessa forma a característica existencialista
tão cara à obra da autora em questão.
Em Murilo Rubião, pode-se dizer também que há certo fascínio por aquilo que
amedronta, além de haver uma expectativa da personagem para que atinja a condição de
não-existência na realidade fatual em que se encontra.
A par do desejo de enfrentá-la, descobrir os segredos que a tornavam
tão poderosa, tinha medo do encontro. Enredava-se, entretanto, em seu
fascínio, apurando o ouvido para captar os sons que àquela hora se
Julio França (org.)
100
agrupavam em escala cromática no corredor, enquanto na sala
penetravam os primeiros focos de luz. (RUBIÃO: 2005, p. 250)
Ao fim da narrativa, Gérion hesita entre ir ao encontro da máquina,
experimentando assim a destruição, e esperar que ela venha até ele para cumprir seu
intento.
Repetiu a experiência, mas a máquina persistia em se esconder, não
sabendo ele se por simples pudor ou se porque ainda era cedo para
mostrar-se, desnudando seu mistério.
No ir e vir da destruidora, as suas constantes fugas redobravam a
curiosidade de Gérion, que não suportava a espera, a temer que ela
tardasse em aniquilá-lo ou jamais o destruísse. (RUBIÃO: 2008, p.
251)
A partir do que foi exposto pode-se vislumbrar que o elemento insólito presente
em ambas as narrativas é parte essencial na construção narrativa das mesmas, uma vez
que as situações insólitas vivenciadas pelas personagens, devido ao estranhamento que
causam, têm como conseqüência o medo, que é o foco dos questionamentos
apresentados ao longo das análises empreendidas.
É interessante observar que, já em 1989, Antonio Candido observou a
proximidade e a relação existentes entre a literatura clariciana e rubiana, principalmente
no que diz respeito à inauguração de uma literatura inovadora no Brasil.
Mas chegando à última fase da ficção brasileira, que se manifesta nos
anos 60 e 70, devemos voltar atrás para registrar a obra de alguns
inovadores, como Clarice Lispector, Guimarães Rosa e Murilo
Rubião, que produziram um toque novo, percebido desde logo, nos
três casos, por um crítico de grande acuidade — Álvaro Lins; mas
que, sobretudo quanto aos dois últimos, só muito mais tarde seria
captado pelo público e a maioria da crítica. (CANDIDO: 1989, p. 206)
Analisando o medo em ambas as narrativas é possível perceber que o prazer
estético do mesmo funciona de modo a transferir para o leitor as possíveis sensações
experienciadas pelas personagens das mesmas, de modo a, através do efeito catártico,
retirar o leitor de seu ponto de equilíbrio e lançá-lo em reflexões a respeito do papel da
criação artística na sociedade em que está inserido, à medida que uma das possíveis
intenções da produção literária de uma sociedade é deslocar o pensamento crítico do
leitor. Como exemplos vivos de uma escrita de excelência na literatura brasileira do
século XX, Murilo Rubião e Clarice Lispector constroem narrativas que entregam ao
INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4
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leitor personagens que se configuram como reflexos do dilaceramento do indivíduo
contemporâneo dominados pelo medo originário de sua própria constituição humana.
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Trad. de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2008.
CANDIDO, Antonio. A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Editora
Ática, 1989.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. de Tomaz Tadeu da
Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
JOSEF, Bella. A máscara e o enigma - A modernidade: da representação à
transgressão. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora, 2006.
LISPECTOR, Clarice. “Medo da eternidade”. In:______. A descoberta do mundo. Rio
de Janeiro: Rocco, 1999, p.289-291.
RUBIÃO, Murilo. “O bloqueio”. In:______. Contos reunidos. São Paulo: Ática, 2005,
p.245-251.
Julio França (org.)