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Fontes e sentidos do medo como prazer estético

2011, INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS

O medo como prazer estético: o insólito, o horror e o sublime nas narrativas ficcionais Anais do VII Painel Reflexões sobre o insólito na narrativa ficcional II Encontro Nacional O insólito como questão na narrativa ficcional Rio de Janeiro 2011 Julio França (Org.)

Julio França (Org.) Simpósios 2 O medo como prazer estético: o insólito, o horror e o sublime nas narrativas iccionais INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS Anais do VII Painel Relexões sobre o insólito na narrativa iccional II Encontro Nacional O insólito como questão na narrativa iccional Rio de Janeiro 2011 FICHA CATALOGRÁFICA J801i Insólito, mitos, lendas, crenças – Anais do VII Painel Reflexões sobre o Insólito na narrativa ficcional/ II Encontro Regional Insólito como Questão na Narrativa Ficcional – Simpósios 2/ Júlio França (org.) – Rio de Janeiro: Dialogarts, 2011. Publicações Dialogarts - Bibliografia ISBN 978-85-86837-XX-X 1. Insólito. 2. Gêneros Literários. 3. Narrativa Ficcional. 4. Literaturas. I. García, Flavio. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. III. Departamento de Extensão. IV. Título CDD 801.95 809 Correspondências para: UERJ/IL/LIPO – a/c Darcilia Simões ou Flavio García Rua São Francisco Xavier, 524 sala 11.023 – B Maracanã – Rio de Janeiro – CEP 20 569-900 [email protected] Copyrigth @ 2011 Júlio França Publicações Dialogarts (http://www.dialogarts.uerj.br) Coordenador do volume: Flavio García – flavgarc@gmail Coordenadora do projeto: Darcilia Simões – [email protected] Co-coordenador do projeto: Flavio García – [email protected] Coordenador de divulgação: Cláudio Cezar Henriques – [email protected] Organizador: Júlio França Diagramação e projeto de capa: Elisabete Estumano Freire – [email protected] Supervisão de arte –capa e folha de rosto: Carlos Henrique Braga Brandão – [email protected] Marcos da Rocha Vieira – [email protected] O TEOR DOS TEXTOS PUBLICADOS NESTE VOLUME, QUANTO AO CONTEÚDO E À FORMA, É DE INTEIRA E EXCLUSIVA RESPONSABILIDADE DE SEUS AUTORES. Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Instituto de Letras Departamento de Língua Portuguesa, Literatura Portuguesa e Filologia Românica UERJ – SR3 – DEPEXT – Publicações Dialogarts 2011 VII Painel Reflexões sobre o Insólito na narrativa ficcional II Encontro Regional O Insólito como Questão na Narrativa Ficcional Insólito, Mitos, Lendas, Crenças Instituto de Letras da UERJ, 29, 30 e 31 de março de 2010 Miniauditório do Bloco D, 11 andar, Pav. João Lira Filho Campus Maracanã Uma realização do SePEL.UERJ Seminário Permanente de Estudos Literários da UERJ Atividade do Grupo de Pesquisa/ Diretório CNPq Estudos Literários: Literatura; outras linguagens; outros discursos Coordenação: Flavio García Marcello de Oliveira Pinto Regina Michelli Parcerias: Publicações Dialogarts (http://www.dialogarts.uerj.br) LABSEM/ FAPERJ – Laboratório Multidisciplinar de Semiótica (http://www.labsem.uerj.br) NDL – Núcleo de Desenvolvimento Linguístico (http://programandl.blogspot.com) CiFEFil – Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos (http://www.filologia.org.br) Articulações com Grupos de Pesquisa/ Diretório CNPQ: Estudos Literários: Literatura; outras linguagens; outros discursos (http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalhegrupo.jsp?grupo=0326802VKL7YRI) Estudos da Linguagem: discurso e interação (http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalhegrupo.jsp?grupo=20198023EOV5HQ) Semiótica, leitura e produção de textos – SELEPROT (http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalhegrupo.jsp?grupo=0326802KF6LE99) Crítica Textual e Edição de Textos (http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalhegrupo.jsp?grupo=0326801CJERBHT) Apoios: Direção do Instituto de Letras Coordenação Geral do Programa de Pós-Graduação em Letras Coordenação do Mestrado em Literatura Portuguesa Coordenação da Especialização em Literatura Portuguesa Chefia do Departamento de Língua Portuguesa, Literatura Portuguesa e Filologia Românica Coordenações dos Setores Acadêmicos de Literatura Portuguesa e de Língua Portuguesa SUMÁRIO Apresentação: .............................................................................................................................................................................6 SIMPÓSIO ‐ O medo como prazer estético: O insólito, o horror e o sublime nas narrativas ficcionais Sob o signo de Plutão: digressão sobre os limites do horror e do terror ...................... 12 Anderson Pires da Silva O tema da travessia: não tema, no portal está o poético ............................................. 20 Célia Regina de Barros Mattos Medo e estranhamento na literatura infantil: estratégias narratológicas e recursos estéticos para arrepiar os leitores ................................................................................ 29 Daniela BUNN Entre devires e afetos: o terror como impossibilidade da escrita em Rubens Figueiredo .................................................................................................... 36 Gabriel Cid de Garcia Medo e miséria em “Crianças à venda. Tratar aqui”..................................................... 49 Jorge Amaral Fontes e sentidos do medo como prazer estético ......................................................... 58 Júlio FRANÇA Medo e morte em Álvares de Azevedo, Guy de Maupassant e Edgar Allan Poe ......... 68 Karla Menezes Lopes NIELS Vitimas e algozes do medo no conto “Feliz Ano Novo”, de Rubem Fonseca ............... 79 Luciano CABRAL O detalhe como ornatus e o medo do outro em "O coração denunciador" ............... 87 Paloma LIMA Os reflexos do medo nas personagens de “O bloqueio”, de Murilo Rubião e“Medo da eternidade”, de Clarice Lispector. .................................................................................. 94 Thalita Martins Nogueira 6 APRESENTAÇÃO: A história, ainda recente, dos Painéis “Reflexões sobre o Insólito na narrativa ficcional”, agora em sua sétima edição, coincidindo com a realização do I Encontro Regional do Insólito como Questão na Narrativa Ficcional, tem sua gênese na criação do Grupo de Pesquisa Estudos Literários: Literatura; outras linguagens; outros discursos 1 cadastrado no Diretório de Grupos do CNPq em 2001. Respondia-se a uma exigência da UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro – para que seus professores doutores pudessem desenvolver atividades correlacionadas à pesquisa, solicitar determinadas modalidades de bolsas e auxílios variados. Atendendo a essa exigência, um grupo de professores de literaturas, do Departamento de Letras da FFP – Faculdade de Formação de Professores – da UERJ, campus São Gonçalo, reuniu-se e, dessa reunião, originou-se o Grupo. Participaram daquele momento fundador Maria Alice Pires Cardoso de Aguiar, hoje aposentada e, na gênese, líder do Grupo; Flavio García, atual líder, na época da fundação, vice-líder; Fernando Monteiro de Barros, já vice-líder, após a aposentadoria de Maria Alice, hoje integrando outro grupo; e Regina Michelli, colaborada ativa até os dias atuais. Diante da necessidade de o Grupo promover ações efetivas de pesquisa e divulgá-las para a Universidade e a sociedade em geral, surgiu, em 2002, como projeto de extensão universitária, o SePEL.UERJ – Seminário Permanente de Estudos Literários da UERJ 2 , promovendo cursos livres e pequenos eventos acadêmicos, na expectativa de, inicialmente, dar unidade às pesquisas individuais dos integrantes do Grupo. Entre os objetivos expressos na instalação do SePEL.UERJ já despontavam, além dos cursos livres e pequenos eventos, a publicação de um periódico e de títulos temáticos e a realização de eventos aglutinadores de maior porte. Em junho 2006, em parceria com o Publicações Dialogarts, outro projeto de extensão da UERJ 3 , foi lançado o número 1 do CaSePEL – Cadernos do Seminário Permanente de Estudos Literários (ISSN 1980-0045) 4 , reunido artigos oriundos de 1 (Hhttp://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalhegrupo.jsp?grupo=0326802VKL7YRIH), 2 (Hhttp://www.sepel.uerj.brH) 3 (Hhttp://www.dialogarts.uerj.brH) 4 (Hhttp://www.dialogarts.uerj.br/casepel.htmH) 7 aulas dadas em cursos livres anteriormente oferecidos. De lá para cá, o periódico migrou para a publicação de números temáticos, privilegiando os projetos de pesquisa dos membros de sua equipe, com dois números anuais, um para cada semestre. A aposentadoria de Maria Alice, a passagem de Fernando Monteiro de Barros para outro Grupo de Pesquisa em que seus projetos encontravam maior aderência e a transferência de Flavio García da FFP para o Instituto de Letras no campus Maracanã, fragilizaram as ações do projeto, implicando a suspensão dos cursos livres e de eventos. No segundo semestre de 2006, aproveitando o engajamento de seus bolsistas de PIBIC – Programa de Incentivo a Bolsas de Iniciação Científica –, Flavio García promoveu um curso livre, oferecido pelo SePEL.UERJ, nas dependências da FFP. Discutia-se, uma vez por semana, nos três primeiros tempos de aula da tarde, os mecanismos de construção narrativa próprios ao gênero Fantástico, dialogando com outros gêneros, especialmente com o Maravilhoso ou Sobrenatural, o Estranho, o Realismo Maravilhoso ou Mágico e o Absurdo. Desse curso, nasceu a idéia da realização do I Painel “Reflexões sobre o Insólito na narrativa ficcional”, do qual somente participaram alguns alunos, ao lado dos bolsistas PIBIC. Assim, em 15 de janeiro de 2007, Flavio García e Marcello de Oliveira, juntamente com aqueles alunos e bolsistas, promoveram, no miniauditório da FFP, durante todo o dia, apresentações de trabalhos e debates, já publicados sob o título A banalização do insólito: questões de gênero literário – mecanismos de construção narrativa 5 . O evento impulsionou o projeto de pesquisa de Flavio García, que passou a contar com vários bolsistas voluntários e mais bolsas, agora financiadas pela própria UERJ, pelo CNPq e pela FAPERJ. Acrescido, o grupo do professor e seus bolsistas promoveu novo curso, focalizando o conjunto da obra do escritor mineiro Murilo Rubião, apontada por muitos críticos como escritor fantástico, mas objeto de inúmeras celeumas teórico-metodológicas. O curso, semelhantemente ao anterior, transcorreu nas dependências da FFP, durante o primeiro semestre de 2007, tomando os três tempos iniciais de aulas de uma tarde. Do mesmo modo que antes, desse curso emergiu o II Painel “Reflexões sobre o Insólito na narrativa ficcional”: O insólito na narrativa rubiana – Reflexões sobre o insólito na obra de Murilo Rubião, realizado de 7 a 9 de agosto de 2007, também nas 5 (Hhttp://www.dialogarts.uerj.br/avulsos/livro_insolito.pdfH). INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 8 dependências da FFP. Diferentemente do evento anterior, deste não participaram somente alunos do curso e bolsistas. Somava-se, ao projeto de pesquisa, Marcello de Oliveira Pinto, focalizando, em polo oposto ao de Flavio García, a recepção do insólito, bem como inscreveram-se participantes externos. Parte dos trabalhos apresentados encontra-se publicada sob o título Murilo Rubião e a narrativa do insólito6 . O grupo crescia com novas adesões e a aglutinação de outros projetos e bolsistas em seu entorno, reunindo projetos de EIC – Estágio Interno Complementar –,BICFAPERJ – Bolsa de Incentivo à Graduação – e Extensão. A esse crescimento, correspondeu o fortalecimento do SePEL.UERJ e do Grupo de Pesquisa Estudos Literários: Literatura; outras linguagens; outros discursos, representado pela unidade que ora se compunha entre Flavio García – dedicado às reflexões acerca do insólito na construção da narrativa –, Marcello de Oliveira Pinto – dedicado às reflexões acerca do insólito na recepção da narrativa – e Regina Michelli – dedicada às reflexões acerca do insólito na literatura infanto-juvenil. Não se tratava de um projeto de um pesquisador, mas de um projeto de grupo, com diferentes enfoques, conduzindo dentro de um Grupo de Pesquisa orgânico e articulado por um projeto de extensão produtivo. No segundo semestre de 2007, seria oferecido, ainda nas dependências da FFP e nos mesmos moldes dos cursos anteriores, um terceiro curso de extensão, focalizando a manifestação do insólito na narrativa de ficção, em suas vertentes literária e fílmica. A partir desse curso, organizou-se o III Painel “Reflexões sobre o Insólito na narrativa ficcional”: o insólito na Literatura e no Cinema, último evento realizado nas dependências da FFP, de 8 a 10 de janeiro de 2008. O III Painel contou com maciça participação de público externo, tanto na apresentação de trabalhos quanto na assistência, podendo ser considerado o primeiro ápice climático do projeto. Os resumos dos trabalhos foram publicados e dão mostra do que foi o evento 7 . Os trabalhos apresentados durante sua realização, incluindo comunicações, conferências e palestras, aparecem publicados em Narrativas do Insólito: passagens e paragens 8 , Poéticas do Insólito 9 e III Painel... – Comunicações 10 . 6 (Hhttp://www.dialogarts.uerj.br/avulsos/MuriloRubiao/LIVRO_RUBIAO.pdfH) 7 (Hhttp://www.dialogarts.uerj.br/avulsos/CadernodeResumos/CADERNODERESUMOS.pdfH) 8 (Hhttp://www.dialogarts.uerj.br/avulsos/insolito/narrativasdoinsolito.pdfH) 9 (Hhttp://www.dialogarts.uerj.br/avulsos/insolito/Poeticas_do_Insolito.pdfH) 10 (Hhttp://www.dialogarts.uerj.br/avulsos/insolito/Comunicacoes_III_Painel.pdfH) Julio França (org.) 9 Novo curso viria a ser oferecido, ainda nas dependências da FFP e ainda nos mesmos moldes dos cursos anteriores, tendo sido esse o último curso lá oferecido, igualmente àquele último Painel. O curso percorreu narrativas curtas do mineiro Murilo Rubião, retomando experiências de curso anterior, e se dedicou à leitura críticointerpretativa de obras do escritor português Mário de Carvalho, podo em tensão a apreensão do sólito/insólito no universo narrativo e nos atos de leituras. Seguindo uma mesma tendência já apontada, logo após o curso foi promovido o IV Painel “Reflexões sobre o Insólito na narrativa ficcional”: tensões entre o sólito e o insólito, de 22 a 24 de setembro de 2008, mas, dessa vez, no Instituto de Letras da UERJ, no campus Maracanã. Prejudicado pela longa greve que assolou a Universidade, o evento esteve parcialmente esvaziado, porém, ainda assim, dele participaram personalidades externas, do Estado e de fora dele, com absoluta e ampla integração de todos os docentes e discentes, de graduação e de pós-graduação, envolvidos no projeto de pesquisa, no projeto de extensão e no grupo de pesquisa. Nessa ocasião, foi publicado um Cd Rom com sete títulos já publicados digitalmente pelo projeto, em parceria com o Publicações Dialogarts. Do IV Painel, encontram-se publicados IV Painel... – Caderno de resumos11 ; Comunicações Livres 12 ; e Comunicações Coordenadas13 . Durante o V Painel, foram publicados em CD Rom, juntamente com o Caderno de Resumos, os textos integrais das Comunicações Livres e da Coordenadas daquele IV Painel. Enfim, o I Painel dedicou-se às reflexões sobre os mecanismos de construção do Fantástico na narrativa; o II Painel, à manifestação do insólito na narrativa rubiana; o III Painel, às construção e recepção do insólito nas narrativas literária e fílmica; o IV Painel, às tensões entre o sólito e o insólito. O V Painel, coincidente com a realização de um I Encontro Nacional O Insólito como Questão na Narrativa Ficcional, refletiu sobre o insólito como questão na narrativa de ficção, ampliando os conceitos de narrativa e debruçando-se sobre o insólito como uma questão-problema central para a continuidade das pesquisas. 11 (Hhttp://www.dialogarts.uerj.br/avulsos/insolito/Cadernos_de_Resumos_IV_Painel.pdfH) 12 Hhttp://www.dialogarts.uerj.br/avulsos/Comunicacoes_Livres_IV_Painel.pdfH) 13 (Hhttp://www.dialogarts.uerj.br/avulsos/Comunicacoes_Coordenadas_IV_Painel.pdfH). INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 10 O VII Painel, coincidente com o II Encontro Nacional O Insólito como Questão na Narrativa Ficcional, teve por focalização temática as relações e Insólito, Mitos, Lendas, Crenças. O evento apóia-se nas pesquisas em desenvolvimento na célula mãe do Grupo, envolvendo, principalmente, os interesses primários de Flavio García (UERJ/ UNISUAM) – a construção do insólito na narrativa –, Marcello Pinto (UERJ/ UNIRIO) – a recepção do insólito – e Regina Michelii (UERJ/ UNISUAM) – o insólito na literatura infanto-juvenil. Este volume reúne os textos integrais das apresentações orais realizadas nas sessões dos diferentes Simpósios promovidos durante o evento, enviados à coordenação dentro dos prazos estipulados e em conformidade com as normas básicas definidas para a publicação. O teor dos textos aqui publicados é de inteira responsabilidade de seus autores, e a revisão lingüístico-gramatical procurou respeitar, ao máximo, opções de estilo e uso da língua. Outro volume reúne textos integrais apresentados nas sessões dos simpósios promovidos ao longo do evento. Prof. Dr. Flavio García Prof. Dr. Marcello Pinto Prof.ª Dr.ª Regina Michelli Julio França (org.) SIMPÓSIO Omedo como prazer estético: Oinsólito, o horror e o sublime nas narrativas ficcionais 12 Sob o signo de Plutão: digressão sobre os limites do horror e do terror Anderson Pires da Silva * A literatura européia no século XIX ajudou a consagrar uma variante mais perversa da narrativa fantástica: o horror. Nesse sentido, propomos uma reflexão sobre o sobrenatural e como o cinema, adaptando obras icônicas do gênero (Drácula, Frankenstein, Histórias extraordinárias, entre outras), transformou o conto de horror em filme de terror. A distinção básica entre horror e terror consiste no primeiro ser da ordem do psicológico e o segundo da ordem física. Enquanto um gênero literário, o horror ficou escondido desde a Antiguidade até o final do século das luzes, foi uma invenção da modernidade. Em sua Poética, Aristóteles argumentava que a tragédia deveria provocar “compaixão e terror”. Ao assistir o espetáculo trágico, o espectador purgava essas emoções através dessa forma pré-freudiana de sublimação chamada catarse. O “terror”, baseado na visão de cenas chocantes, não estava relacionado com a sensação de medo, mas com uma espécie de indignação moral. Até o Renascimento, a “narrativa de horror” estava mesclada ao épico e ao trágico, assim como depois estará misturada aos contos folclóricos. Muitos autores recorrerão a elementos fantásticos, sem que necessariamente tenham o objetivo de provocar medo. Hamlet é assombrado por um fantasma. Porém, ninguém (infelizmente) teve a ousadia de dizer que a tragédia de Shakespeare fosse um “teatro de horror”. E menos de um século depois, o fantasmagórico se tornará um subgênero do conto fantástico. O mesmo pode ser dito a respeito dos contos folclóricos, afinal serão deles que sairão as figuras do “lobisomem” e do “vampiro”. O conceito de “grotesco” foi um dos principais movimentos de particularização do horror dentro do vasto terreno do fantástico. O termo “grotesco” (do italiano grotta > gruta) foi cunhado para designar uma série de pinturas desconhecidas encontradas em escavações na Itália no final do século XV. Depois foi aplicada às pinturas delirantes de * Doutor em letras (Puc-Rio). INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 13 Bosch. Em literatura, Edgar A. Poe a empregou como título da reunião de seus contos noturnos: Tales from grotesque and arabesque 14 . Segundo Wolfgang Kayser, Poe empregou a palavra grotesco em dois sentidos: “para designar uma situação concreta, na qual a ordem do mundo saiu fora dos eixos, e para designar o teor de estórias inteiras, onde se narra o horripilante inconcebível, o noturno inexplorável e, às vezes, o fantasticamente bizarro” (KAYSER, 1986, p. 78). Edgar Allan Poe, em grande parte dos seus contos grotescos, e também no famoso poema “O corvo”, trata do homem vivendo isolado. O solitário é um dos seus personagens prediletos. A solidão pode tanto resultar de uma tragédia particular (o viúvo do poema) quanto de um modo misantropo de viver. A abertura do conto “Manuscrito encontrado numa garrafa” ilustra bem essa condição: “De minha pátria e de minha família, pouco tenho a dizer. A má conduta e a passagem dos anos afastaramme de ambas” (POE, 1981, p. 69). Outra particularidade dos personagens de Poe é o caráter racional. Nesse ponto, há duas ramificações em sua obra - a narrativa arabesca dos contos policiais e a narrativa grotesca dos contos sobrenaturais. No primeiro caso, a astúcia do detetive se impõe sobre o desconhecido. Em “Os crimes da rua Morgue” é preciso que Dupin, com seu incrível poder de dedução, desfaça todo o cenário inexplicável do crime. Aquilo que a razão não oferece uma resposta satisfatória é o primeiro passo a aceitação do sobrenatural. Por isso, no segundo caso, após perderem a base racional das coisas, os personagens cedem à loucura e à violência. Eis o relato do narrador de “O gato negro”, após a revelação de que havia assassinato a esposa: Quanto aos meus pensamentos, é loucura falar. Durante um instante, o grupo de policiais deteve-se na escada, imobilizado pelo terror. [...]. O cadáver, já em adiantado estado de decomposição, e coberto de sangue coagulado, apareceu ereto, aos olhos dos presentes. Sobre sua cabeça, com a boca vermelha dilatada e o único olho chamejante, achava-se pousado o animal odioso, cuja astúcia me levou ao assassínio e cuja voz reveladora em entrega ao carrasco. (POE, 1981, p. 51). Para Baudelaire, nenhum escritor havia, até então, escrito com “maior magia sobre as exceções da vida humana e da natureza”, sobre a alucinação que dá lugar à dúvida, sobre a histeria dominando a vontade e a contradição entre nervos e espírito: “Ele analisa o que há de mais fugaz, sopesa o imponderável e descreve, naquela maneira 14 No Brasil, o livro foi traduzido como Histórias extraordinárias, seguindo a tradução francesa feita por Charles Baudelaire. Julio França (org.) 14 minuciosa e científica cujos efeitos são terríveis, todo este imaginário que paira em torno do homem hipersensível e o conduz ao mal” (BAUDELAIRE, 1989, p. 110). Nos contos de Poe estão mapeados os lugares da cartografia do horror do século XIX: anti-sociabilidade, casas assombradas, neuroses, delírios. Progressivamente, as esses temas se somaram outros, através de escritores como Theóphile Gautier, que ingressaram em uma visão absolutamente fantástica sobre a existência, ou Lautréamont, que criou um imaginário puramente macabro e herético. Tal diversidade levou Todorov a classificar a narrativa fantástica em quatro subgêneros: estranho-puro, fantásticoestranho, fantástico-maravilhoso e maravilhoso-puro. Segundo Todorov, o fantástico ocupa um tempo de incerteza, a dúvida se é regida por forças desconhecidas. Em um extremo há o estranho, como se verifica nos contos de Poe, o evento fora do comum emerge de uma situação cotidiana (de um cenário realista), para se configurar como estranha a ela. Em outro, há o maravilhoso, como em Gautier, em que predomina uma visão puramente sobrenatural da existência. A literatura fantástica se desenvolveu como uma sombra da literatura realista, como um lugar muito escuro até para as luzes do esclarecimento. Ou como Todorov define: “uma má consciência desse século XIX positivista” (TODOROV, 2008, p. 166). De certo, a literatura fantástica, em qualquer uma de suas variantes, não se submete facilmente ao mesmo instrumental crítico aplicado às obras realistas, em qualquer uma de suas variantes. O comentário de Antonio Candido sobre Noite na taverna, de Álvares de Azevedo, é revelador nesse sentido: “É como se o autor tivesse conseguido elaborar, em atmosfera fechada, um mundo artificial e coerente, um jogo estranho, mas fascinador, cujas regras aceitamos” (CANDIDO, 2008, p. 504). Muitos autores brasileiros se exercitaram em uma ou outra linha da narrativa gótica, porém sempre vigorou uma forte tendência realista em nossa literatura. O próprio Candido a explica como um sintoma do empenho dos escritores brasileiros em pensar a literatura como meio de reflexão sobre a realidade brasileira, o que impediu maiores vôos da imaginação. Além disso, o repertório gótico, com seus vampiros e animais demoníacos, se adotado, significava imitação servil do estilo europeu, uma espécie de “satanismo provinciano”. Grande parte da desqualificação da escrita de Azevedo deriva de sua excessiva dependência a Byron. Noite na taverna ignora solenemente o nacionalismo romântico e, ao mesmo tempo, tenta se inserir no panorama internacional. É um texto moderno e polifônico. Cada capítulo é narrado por um personagem, que destaca aspectos diferentes do cenário INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 15 macabro. Ao final, Álvares de Azevedo realiza um inventário dos principais temas da narrativa gótica: a necrofilia, a devassidão sexual, o incesto e a heresia. Não nos parece que os escritores do século XIX estivessem muito interessados em uma distinção entre horror e terror, já que ambos eram variantes do gênero fantástico. No entanto, Henry James, na obra A volta do parafuso (1898) se preocupa em distingui-los, logo na abertura da novela: Ouvimos a história ao redor da lareira, com a respiração suspensa; mas, afora a observação de que era horripilante, tal como necessariamente devem ser os estranhos casos relatados em um casarão antigo, na véspera de natal, não lembro de nenhum outro comentário até o momento em que alguém, por fim, disse ser este o único caso que conhecia em que aparições como aquela afligiram uma criança. [...]. Ainda posso ver Douglas diante do fogo: “ninguém até hoje ouviu a história, salvo eu. É horripilante demais!”. Em termos de terror? – lembro de ter perguntando. Ele pareceu dizer não, não era assim tão simples: “De horrível... de horror”! (JAMES, 2008, p. 12). Segundo essa concepção, o terror é menos complexo do que o horror. O prólogo serve para Henry James criar um jogo intertextual entre aquele que apresenta a história e o enredo propriamente dito: o diário da governanta. Através da leitura do diário, nos é errado uma clássica história de fantasma e possessão espiritual. O que interessa a James não é a possessão em si, ou até mesmo a existência de fantasmas, mas sim o lento processo de desagregação mental e sentimentos ambíguos da governanta com relação ao menino Miles. A experiência do horror – para ficarmos na definição de Poe, como algo que “vem da alma” – envolve a convivência com algo fora do normal (aparição de mortos, a demência, os pensamentos macabros) que provoca uma inexplicável sensação de medo. É algo que se sente de dentro para fora. Não por acaso, nos contos de Poe são abundantes os monólogos. Por outro lado, a concepção de terror envolve uma ameaça externa, algo que vem de fora e é parcial ou inteiramente desconhecido – daí a derivação terrorismo. Mais do que isso, a experiência do terror envolve as fobias (em particular aranhas e cobras), a tortura e a violência explícita. Talvez por isso, o terror encontrou no cinema um terreno muito mais fértil do que na literatura. É uma experiência de impacto visual. No entanto, se fosse buscar um antecedente na literatura, não hesitaria em apontar O inferno de Dante, principalmente por causa das ilustrações de Gustave Doré. Julio França (org.) 16 Segundo Jorge Luis Borges, o inferno de Dante é antes de tudo uma câmara de tortura. Essa diferenciação aparece em seu estudo sobre o pesadelo, outro elemento pertencente à semântica do horror. Para Borges, os sonhos são uma atividade estética, da ordem do dramático, sendo o pesadelo uma sensação do horror 15 . Na abertura do poema, Dante já menciona como a imagem da “floresta negra” enche o seu peito arfante de “horror” e “medo”. Essa sensação, à medida que atravessa os círculos do inferno, deixa de ser algo interno para ser algo externo, isto é, a visão das torturas atrozes submetidas aos condenados que provoca outra sensação, a de terror. Daí entendemos porque Borges afirma que “o inferno não é um pesadelo” (BORGES, 1992, p. 52). A sensação de terror nasce do choque visual. Não foi por acaso, as primeiras obras clássicas do cinema do horror surgiram no cinema expressionista alemão, como por exemplo, Nosferatu, de Murnau. Aliás, a primeira adaptação da novela de Bram Stoker, e também a primeira versão não autorizada da obra.. No cinema havia uma distinção, não muito clara, sutil, entre “horror” e “terror”. O primeiro sugere, o segundo explicita. Por exemplo, em O bebê de Rosemary, de Roman Polanski, a atmosfera de “terror e compaixão” é mostrada através da degradação física e psicológica da mãe, mas a grande revelação final, a aparência do bebê nascido da cópula com o demônio, não é revelado. Toda a sensação de pavor advém de uma repulsa moral à atitude do marido que, por ambição, negocia o corpo da própria esposa com o diabo. O ponto de transição de um cinema de horror, baseado na sugestão, e de um cinema de terror, baseada na exposição, foi O exorcista. Assim como em Polanski, o filme de William Friedkin segue uma trilha traçada pela literatura gótica: o satanismo. Quando o filme foi exibido, muitas pessoas passaram mal na sala de exibição. Conta-se que um representante da Igreja da Escócia chegou a declarar que “preferia tomar um banho em excremento de porco a ver esse filme” (BISKIND, 2009, p. 233). As cenas mais chocantes, como a da menina possuída se masturbando com o crucifixo, apostavam na junção entre heresia e deformação corporal. Segundo Peter Biskind, o filme é “repleto de nojo pelo corpo da mulher e suas funções”, por isso está “inundado de pânico menstrual”. 15 “Tendríamos en los sueños, pues, la más antigua de las actividades estéticas; muy curiosa porque es de orden dramático. […]. Y tuvo la sensación de horror que es la pesadilla, porque la pesadilla es, ante todo, la sensación del horror ”. (BORGES, 1992, p. 47-8). INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 17 O cinema irá criar e aprofundar uma experiência de medo baseada mais no terror físico do que no horror psicológico. Filmes como O bebê de Rosemary ou O exorcista ainda estão próximos da noção de horror gótico, tanto que se aproveitam dos mesmos temas: seitas satânicas, pactos com o diabo, sacrifícios, heresias. A violência é implícita. O exorcista já investe na degradação física, porém o que há de explícito nele serve muito mais para demonstrar a força do diabo, ou seja, a sensação de medo deriva de nossas crenças nos dogmas católicos, por isso uma das cenas mais fortes do filme é a da menina possuída se masturbando com cruz. Outro filme a se aproveitar do tema satanista foi A profecia, de Richard Donner. O tema da criança prometida ao demônio é retomado em outra chave. Agora, os estereótipos de inocência presentes na imagem infantil são substituídos pela crueldade. O vilão do filme é Damien, o filho da besta. A criança era o personagem central da novela de Henry James. A oposição entre o comportamento infantil, portanto ingênuo, do menino Miles se contrapunha à maldade do espírito possessor de Quint. O horror, então, derivava dessa espécie de corrupção espiritual da criança. Já no filme de Donner, a criança já nasce má, e isso que provoca o medo: a perversão da inocência. Porém, A profecia aponta para um elemento que irá predominar nos filmes de terror: a matança. Ao contrário de O bebê de Rosemary e O exorcista, em que não há muitas mortes, a história de Damien é repleta de assassinatos. Uma parte da criatividade dos roteiristas foi investida em imaginar mortes violentas. O filme que consagra o terror físico no cinema é Halloween, de John Carpenter. A partir dele, o psicopata é o personagem central da trama de terror. Trata-se, então, de violência explícita, uma exibição contínua de corpos dilacerados, cabeças cortadas, enfim, jogos mortais. Quase sempre, pensemos também no Jason de Sexta-feira 13, o psicopata é motivado por algum trauma na infância. No entanto, a cada seqüência, a motivação para o mal interessa menos ao espectador do que a variedade das formas de assassinato e tortura. Os motivos que levaram o psicopata a ser tornar um personagem carismático nos últimos anos - ele é o herói da série Dexter - ainda serão estudados a fundo pela psicologia. A sensação que o filme de terror provoca, uma sensação física, é de ordem diferente à provocada pelo horror. O horror alcança seu pleno efeito quando mergulha o leitor/espectador no mundo desajustado de suas personagens, o lento e gradual processo de desagregação mental que elas representam. Nesse sentido, uma das personagens mais dramáticas, é a mãe da Julio França (org.) 18 menina Regan em O exorcista. Interpretada pela atriz Ellen Burstyn, a personagem Chris Macneil é a representação da mulher emancipada: profissional, divorciada, mãe. Há uma ambigüidade no nome “Chris”, também pode ser usado no masculino, traz um implícito “Chris(t)”. No início do filme predomina o seu sorriso jovial, ao final, às cenas mais fortes, são os closes em seu rosto enrugado e o olhar dolorido. É através do seu olhar que somos carregados para um universo de dor. O horror é dramático. O terror é espetacular. O personagem principal é o adolescente. È o período da descoberta do corpo, da perda da virgindade. Ele é a vítima predileta do psicopata. Em quase todos os filmes do gênero, alguém é assassinado no momento da relação sexual. Prazer e morte. Há algo de casto. É como se houvesse alerta: não vá transar na floresta escura, minha filha, porque você irá morrer. Não é por acaso que o psicopata, nos anos 80, no auge da aids, tornou-se uma celebridade. O terror atinge seu efeito quando o espectador levanta da cadeira, fecha os olhos ou aperta as mãos. Ele não provoca medo, mas sustos. Aterrorizar significa assustar. Quando vemos em uma cena um braço sendo cortado por uma serra elétrica, nos levamos instintivamente as mãos ao nosso braço. A sensação de terror deriva da dor física. Aparentemente, o terror é amoral, por isso não precisa se preocupar com questões de “bom tom”. Essa concepção de medo derivado da tortura física – uma fórmula de sucesso – tornou-se a principal caracterização do terror no cinema. Um exemplo final é a presença de 120 dias em Sodoma, de Passolini, incluído na lista de filmes de terror reunidos no livro 1001 filmes para se ver antes de morrer. O que levou os críticos a categorizá-lo como uma película de terror? Quando vemos o filme, a resposta é óbvia: a tortura física as quais os padres submetem os jovens, indo desde o dilaceramento até a sodomia. Portanto, o filme de terror pretende provocar no espectador não uma sensação de medo, mas sim certo desconforto, uma agressão ao olhar, por isso, é comum os espectadores não acostumados com essas produções fechar os olhos. REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Arte poética. São Paulo: Ediouro, s/d. AZEVEDO, Álvares. Noite na taverna. São Paulo: 3 livros, 1984. BAUDELAIRE, Charles. Edgar Poe: sua vida e obra. In: Poe desconhecido. Porto Alegre: L&PM, 1989. INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 19 BISKIND, Peter. Como a geração sexo-drogas e rock’n roll salvou Hollywood. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2009. BORGES, Jorge Luis. Siete noches. Mexico: Tierra firme, 1992. CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2007. JAMES, Henry. A volta do parafuso. Porto Alegre: L&PM, 2008. KAYSER, Wolfgang. O grotesco. São Paulo: Perspectiva, 1986. POE, Edgar Allan. Histórias extraordinárias. São Paulo: Abril cultural, 1981. TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 2008. Julio França (org.) 20 Otema da travessia: não tema, no portal está o poético Célia Regina de Barros Mattos 16 Poderíamos buscar os germes do nosso século na Revolução Científicofilosófica do século XVII, na qual o modelo de Newton, instalando a visão mecanicista do universo, cria um sobredeterminismo responsável pela alienação do homem do nosso tempo. Essa alienação significa o homem completamente apartado do universo, um ser que em nada participa da sua dinâmica porque as leis que o regem estão de tal modo determinadas e fixas que independem de sua atuação. Aliada a Newton, a Filosofia Cartesiana o isola do todo, fazendo-o esquecer-se da experiência com o uno primordial, tornando-o impotente. Se percorrêssemos a trilha deixada por Foucault, em busca dos mecanismos e dispositivos de controle, utilizados pela burguesia, mascaradamente em nome da moral, poderíamos avaliar o quanto o homem distanciou-se e a que ponto, mecanismos tão poderosos fragmentaram esse homem e a sua realidade, desvelando conflitos e inquietações, até então latentes, que eclodem como o grande desmascaramento dos mecanismos de poder da burguesia. Também o advento da Psicanálise concorre para que o século XX se manifeste como ruptura e transformação. Pensadores como Heidegger, Sartre, Nietzsche e outros apontam para a crise de valores que caracteriza o estar-no-mundo do homem deste século. Por essas considerações podemos imprimir, no início do século XX, a marca de uma revolução cultural que mudará radicalmente os caminhos da arte. Em todos os pontos do mundo ocidental surgiram movimentos vanguardistas experimentando novos processos de criação. Os "ismos" se sucedem numa lista interminável, sobressaindo-se o surrealismo que, rompendo com as estruturas do pensamento lógico burguês, propõe um mergulho no mundo dos sonhos, buscando encontrar ali uma realidade que ultrapasse a superfície das aparências, realidade que revele estruturas míticas e arquetípicas presentes no inconsciente coletivo. 16 Professor Adjunto da Faculdade de Letras da UFRJ Pós-doutoranda do IEL - Instituto de Linguística Aplicada da UNICAMP Pesquisador colaborador do CNPq de Maria José Coracini em Análise do Discurso INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 21 Poderíamos resumir a revolução que se impôs ao mundo ocidental com um único ponto comum a todos os movimentos que propunham mudanças - a cisão com o mundo burguês e seus valores ultrapassados. É esse, exatamente, o eixo que sustenta a criação das obras que apresentaremos a seguir. O texto cinematográfico O Anjo Exterminador de Luis Buñuel, guardadas as devidas peculiaridades discursivas, revela em sua estrutura, marcas que o aproximam da proposta neofantástica de Júlio Cortázar, presente em seus contos. Sensivelmente influenciado pela vanguarda europeia, Cortázar inaugura um novo estilo e sabe que, para expressar uma nova realidade com possibilidade de exploração do mundo interior e onírico, dos pesadelos e obsessões e das zonas do imaginário onde os vasos comunicantes entre a realidade e o sonho, o ordinário e o maravilhoso, a aparência e a essência, anulam os opostos, para expressar essa realidade sabe que necessita dominar o universo simbólico surrealista, recorrente em sua obra e brilhantemente presente no filme O Anjo Exterminador, de tal modo que permitiu-nos cotejá-lo com “Casa tomada”, conto de Cortázar. Um casal de irmãos solteiros e maduros vive, num casarão em Buenos Aires, uma vida insípida, submissos a uma rotina de trabalhos domésticos rigorosamente marcada pelo relógio, criando hábitos cumpridos pontualmente: acordavam às 7, faziam a limpeza pela manhã, almoçavam ao meio dia "siempre puntuales”. São remanescentes de uma família de classe média que “por muitas gerações ocupara o casarão”. A descrição detalhada da casa e a enumeração das tarefas diárias denotam um vazio preenchido por um fazer mecânico, repetitivo. "Irene era una chica nacida para no molestar a nadie, aparte de su actividad matinal se pasaba el resto del día tejiendo en el sofá de su dormitorio". São burgueses enclausurados num espaço tão impregnado de hábitos, costumes, manias e neuroses, resultantes de regras socioculturais tão fortes que os impede de viver produtiva e criativamente. "no necesitábamos ganarnos la vida, todos los meses llegaba la plata de los campos y el dinero aumentaba". Um dia, algo anormal acontece que altera o ordinário. Uma das atividades de rotina é cortada por um som surdo que vem da sala de jantar, como uma cadeira que cai, ao que responde imediatamente o irmão com o gesto brusco de fechar a porta e trancá-la com chave, fato que naturalmente informa à irmã "han tomado la parte del fondo". Julio França (org.) 22 Tal acontecimento se repete e o resto da casa é tomado, deixando-os no saguão. Mais uma parte é trancada pelos irmãos que abandonam a casa com o cuidado de trancarem bem a porta e livrarem-se da chave, para que não entrasse nenhum ladrão na casa tomada. Ao instalar-se o insólito tão naturalmente, o objetivo é cobrar de seus moradores uma revisão dos valores aos quais estavam submetidos e um rompimento da cadeia de hábitos aos quais estavam condicionados, experiência a que se negam,quando optam pelo abandono da casa, escravos do relógio, elemento carregado de sentido no universo burguês: "como me quedaba el reloj pulsera, vi que eran las doce de la noche. rodeé con ml brazo la cintura de Irene y salimos así a la calle". O conto é encerrado tendo o relógio como personagem principal, funcionando como marca de submissão e manutenção do status quo. Os irmãos não enfrentam a casa tomada para não terem de ingressar numa nova ordem. A submissão ao tempo cronológico denuncia a mudança só de espaço físico. O filme O Anjo Exterminador apresenta estrutura bem mais complexa: Um grupo de pessoas de classe média é convidado para jantar em casa de amigos depois de um espetáculo de ópera. A partir do convite que está dentro do previsível, as cenas tomam dois cursos: umas seguem o curso natural e outras aparecem entrecortadas por situações que indicam sinais de alteração da normalidade. Ao mesmo tempo em que as últimas providências para o jantar são tomadas e chegam os convidados, um movimento compulsivo de abandono da casa, invade o espaço da criadagem. Sente-se no ar, uma necessidade imperiosa de deixar a casa, como se algo os empurrasse. Só os ricos devem ficar, é o que se depreende inicialmente. Seguem-se outros índices de alteração como a inversão de pratos, o tombo do garçom – uma brincadeira intencionalmente preparada pela anfitriã que provoca risos e descontração –, o aparecimento de um urso negro e um bando de carneiros na cozinha, situação a qual Luzia, a anfitriã, está perfeitamente integrada, o que provoca no espectador, estranheza. Essa soma de incidentes deixa clara a sensação de incômodo, que cresce em proporções significativas e o jantar transcorre com marcas que caracterizam uma classe determinada. Com seus hábitos, atitudes e condicionamentos os convidados traduzem a ordem fixa e fechada dos valores sociais burgueses: 1) Chegam em bando, movidos pelo convite que aceitam fiéis às determinações INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 23 cerimoniosas da etiqueta, determinações que normatizam o tratamento e a convivência no grupo social. Tudo isso o fazem sem consulta prévia ao interior de si mesmos, o que indica incapacidade de serem seus próprios guias e senhores. 2) Observa-se também, desgaste nas instituições família/casamento. Estes se sustentam apenas na superfície da aparência, ocos e corroídos no interior, onde o amor, a cumplicidade e o respeito são desconhecidos pelos parceiros. Ao contrário de projetos de vida comum, o que se revela é mentira e hipocrisia nas relações conjugais, sem que a máscara do disfarce e a segurança contratual sejam sequer ameaçadas. Luzia, a anfitriã, tem encontros íntimos com seu amante em sua própria casa. Um marido revela à mulher, seu conhecimento do romance que mantém com o professor de seus filhos. 3) A entrada em grupo é marcada pela aparência de riqueza, opulência, felicidade e bem-estar. Vestem-se de forma sofisticada deixando evidente que o fazem dentro dos padrões da moda, sem a presença marcante da criatividade, ressaltando o toque pessoal. 4) Comunicam-se por clichês, demonstrando conhecimento superficial, vazio de sentido. Conversam sobre o universo da arte e da cultura de forma puramente discursiva, distanciados do que lhes é essencial. Suas falas não passam de fragmentos que demonstram o estar-em-dia com as curiosidades; às vezes entrecortadas por maledicências e outras chegando ao sem-sentido: "o que é pátria? é um conjunto de rios que vão dar no mar. O que é morrer? sim, morrer pela pátria”. 5) As imagens e símbolos vão descrevendo a esterilidade do mundo burguês, cheio de elementos inúteis, representados, por exemplo, pelos pés-de-galinha, na bolsa de uma convidada. Adaptados ao texto cinematográfico cinema, Buñuel lança mão dos mesmos recursos técnicos propostos por Cortázar, presentes em seus contos: Para ressaltar os pontos que deseja enfocar, ilumina, reforça através da repetição, dizendo o mesmo de várias formas, procedimentos que deixam clara sua proposta surrealista. Julio França (org.) 24 O recurso técnico de repetição das cenas tem função primordial no desenvolvimento do tema - o ritmo mecânico da vida burguesa, condicionada a um cotidiano estéril de hábitos. Nesse clima, arrasta-se o jantar e termina, sem que, inexplicavelmente, nenhum convidado se retire. Fica claro que um grupo específico foi selecionado por algum poder superior para vivenciar tal experiência. Isso se conclui pelo movimento em sentido inverso que, também, inexplicavelmente, afastou os criados. Esse grupo escolhido é o protagonista - o homem burguês. Por isso não há hierarquia na ordenação dos personagens – tudo o que um expressa poderia ser expresso por outro. Cada personagem traduz um aspecto da vida burguesa, daí as tomadas de cena em plano geral e uma forte atuação em conjunto. Impossibilitados de sairei são lançados na aventura. As situações-limite, que têm que enfrentar os personagens, são produzidas com a utilização da técnica surrealista do enfocamento que enfocando o trivial, obriga a agudeza, faz saltar o maravilhoso, metamorfoseia a realidade. À medida que vão sendo pressionados pelas / limitações, situações prosaicas do cotidiano como o pequeno espaço de uma sala, sem água nem comida, dividindo a vida privada no espaço público, zonas embrutecidas, até então, são ativadas, cobrando superação e, o simples comentário "adoro as coisas que saem da rotina", dito por um personagem, evolui em observações de mal-estar, reclamações, grosserias, xingamentos, choro, lamentos, ataques histéricos, delírios, sonhos, pesadelos, medo, lascívia, vício até a agressão física que culmina com ameaça de morte. Os pés inchados e o mau cheiro – aquelas mazelas íntimas3socialmente escondidas –, emergem com violência, obrigando-os a verem-se uns nos outros. O outro se torna matriz especular da verdade que cada um precisa enfrentar. É importante incluir neste ponto o papel daqueles animais, inexplicavelmente instalados na cozinha. No auge do desespero, quando já está instalado o caos, entrem eles em cena, representando o bestial escondido no homem. Um urso negro, símbolo das forças elementares, dos instintos da fase inicial da evolução do homem, emblema da selvageria e da brutalidade e carneiros brancos, símbolo da pureza, da clareza da consciência – o cordeiro de Deus, atualizador do contato do religare. A presença dos animais acelera o movimento de superação. Não podem enfrentar-se cara a cara com o mais baixo e monstruoso de si mesmos. Temos aí um dado que referenda o processo psicanalítico. Com os mesmos processos da psicanálise, INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 25 o texto surrealista desnuda o homem da falsa roupagem que lhe veste a cultura e a sociedade. Iluminando aquela zona oculta e obscura, tornando conhecido o desconhecido, abre ao homem as portas da consciência e o consequente resgate da unidade perdida. Com esses elementos, Buñuel desvenda os mistérios da ambivalência humana terra/céu ou pagã/cristã, se os transpusermos para a simbologia bíblica. Este é o espaço neofantástico. É nessa zona de trânsito que se instala o insólito, subvertendo a ordem imposta pelo exacerbado uso da razão, pela submissão ao estabelecido e institucionalizado, pela tradição que impede a instauração do novo. É exatamente aí que todos se submetem, em grupo, ao rito de passagem. Abrirei parêntesis para caracterizar o neofantástico: Aquilo que no fantástico tradicional era considerado sobrenatural porque, violando a ordem estabelecida causava medo e calafrio, ingressa agora no texto de forma nova. O neofantástico não precisa de seres extraordinários para instalar-se. Sua marca essencial é a naturalidade: Assim, com naturalidade, irrompe a nova ordem, dentro da ordem fundada; de forma trivial e prosaica, sem preparação, advertências ou premonições. É Sartre que, em incursões no texto da “Metamorfose” de Kafka, oferece subsídios que abrem a Todorov novas ideias sobre o fantástico. Dentre os elementos do surrealismo francês resgatados por Cortázar no neofantástico, selecionamos a mulher por sua importância fundamental no texto de Buñuel Como a mulher surrealista ela é inspirada e inspiradora, é vidente e intercessora entre a realidade concreta/racional e a zona mágica. Comunica-se com o absoluto sem esforço. É uma mulher, Walquíria, que no filme realiza o ritual de sacrifício do cordeiro, mensagem recebida nas tentativas de contato com poderes superiores, para remissão dos pecados. "e preciso sacrificar o cordeiro, é preciso sangue inocente”. É uma mulher, Walquíria, quem, inicialmente quebra, de maneira inexplicável, um vidro da janela, oferecendo-nos um índice de sua atuação final já que o vidro é um elemento que, por sua transparência, favorece a passagem de uma realidade à outra. É Walquíria que é virgem e é ela ainda que, iluminada pela intuição, recebe a grande revelação – o sentido da experiência vivida lhe é revelado bem como a saída lhe é apontada, no clímax da situação limite. Vemos aí outro elemento transportado do surrealismo, presente no neofantástico – a intuição e outros estados de expansão da mente, contrapondo-se à razão. No filme, Julio França (org.) 26 todas as vias de controle e equilíbrio racionais foram improdutivas para a superação da experiência do insólito. A criativa e inspiradora intuição vence a razão. Acrescentaremos, ainda, a forte marcação simbólica do referente bíblico: Como no filme o que se vive é uma experiência religiosa, um perfeito rito de passagem, o texto é uma alegoria pascal. O símbolo mais significativo é a mesa e os comensais, símbolo da Santa-Ceia, onde Cristo, ao lavar os pés e dar o corpo para ser comido, institui o sacrifício eucarístico que é a missa. Da mesma forma que a ceia de Cristo, esta também não teve criados para servir. A burguesia que sempre muito bem vestida exibiu-se, transformou a missa em repetição mecânica, sem viver o mito, insensível à linguagem simbólica da ritualística. Isso porque sempre experimentaram o rito da missa como cerimônia que fria e distante. Agora, a experiência obriga que se viva a missa como celebração de uma presença. "todas as vezes que fizerdes isto, fazei em memória de mim, a minha carne será verdadeiramente comida e meu sangue verdadeiramente bebido". Os personagens atravessam uma longa noite de agonia, padecimento e morte, período que representa a paixão e morte de Cristo e, como no domingo de Páscoa, atualizam o ritual da comunhão, quando a fome os obriga a vivenciar experiências que tocam os fundamentos e verdades originais. A fome os obriga a estabelecer contato direto com o alimento: matam o carneiro e servem-se a si próprios, comendo até papel símbolo inquestionável da hóstia que é servido em prato pequeno como a pátena da missa. Como Moisés que com a vara extraiu água do rochedo para salvar seu povo do cativeiro, com o mesmo gesto, arrebentam o cano e fazem jorrar água em forma bruta, original. A água só adquire valor simbólico, exatamente porque não sai da torneira, de forma convencional. A casa está localizada na Rua da Providência, índice que antecipa o desfecho: Depois de exorcizado o urso pela palavra mágica maçônica, manifesta-se a "grande esperança" na figura do carneiro que é sacrificado. A imolação do cordeiro de Deus os liberta da longa noite de agonia, na aurora do domingo de páscoa. Também em “Casa Tomada” encontramos uma paráfrase que a aproxima da história bíblica da queda: Os irmãos, expulsos da casa por um mandato irreversível, lembram a expulsão de Adão e Eva do paraíso. Concluindo, nos perguntaríamos: Que identidade há entre os dois textos, o literário e o cinematográfico? Que mensagem querem transmitir seus autores? Há quatro pontos comuns fundamentais: INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 27 1) A escolha do protagonista - a classe média burguesa. 2) Uma ordem rígida e fechada a qual estão condicionados e que os faz atuar frente à vida de forma mecânica e estereotipada, completamente afastados de sua essência. 3) Um acontecimento insólito que, de forma violenta instala nova ordem, obrigando-os a encarar-se a si mesmos, colocando-os em situações limite, sentindo intimamente suas fragilidades e feras escondidas, negadas ao longo da vida pela absorção fria e inquestionável de verdades impostas socialmente, apartando-os da verdade essencial. 4) A utilização de procedimentos afins, guardadas as respectivas peculiaridades, que aproxima o filme de Buñuel da proposta neofantástica de Cortázar. Em “Casa Tomada” e O Anjo Exterminador, Cortázar e Buñuel, mergulhando na fonte geradora, descendo até o abismal, desmascarando o ethos social e acionando o dâimon elementar, atualizando mitos e arquétipos, tocam o absoluto e experimentam a grande aventura de reviver a linguagem e dar-lhe sentido. E o medo, onde está? É a partir daí que propomos o salto. Um mesmo salto visto de dois ângulos. O primeiro nos libera do que até agora vinha sustentando este trabalho: do historicismo acadêmico, do estilo, da época; com esse gesto ousado, ultrapassamos o surrealismo, o neofantástico, Cortázar e Buñuel. Este salto dispensa Cronos e seu arsenal histórico-psicofilosófico e seu dados explicativos, nos quais se apoia e justifica o poético. Mas o poético em nada se apoia nem se justifica. O poético é. É porque é originário; isso o aproxima do sagrado. Sagrado e poético são da mesma ordem. Mas, insistimos, como se justifica o medo do sagrado se, comprovadamente, o mundo divino não cessa de nos fascinar: o sonho, a imaginação, o mito, a magia sinalizam a necessidade de o homem dar forma intelectual a uma nostalgia. Não só a criança que, segundo Piaget, entre uma explicação racional e outra maravilhosa, escolhe fatalmente a maravilhosa, o selvagem, o bêbado, o velho e o louco apreendem o mundo fora da lógica racional, acenando com vivências sagradas. Julio França (org.) 28 Como explicaríamos a recusa ao sagrado por parte do homem comum? O que é o sagrado, onde está, como o encontramos? Não está em outro lugar senão em nós mesmos. Mas no “nós” que em nós é desconhecido. O desconhecido, aí reside a essência do medo – aquilo que, fazendo parte do homem, tanto fascina como repele. O medo que o impede de dar o salto pelo terror da morte – o terror do salto mortal que, se por um lado o lança ao desconhecido, o coloca rumo ao vazio de si mesmo, que ainda não sendo, aguarda ser. É desse homem que falamos, do homem moderno sujeito aos limites das paredes de uma casa: uma casa que o aprisiona outra que o expulsa, um homem involucrado dentro dos limites aceitos pela ciência moderna, que implicam sempre limitação, um homem imune ao divino. Desse modo enfocamos o medo – o mais ameaçador dos medos que obstaculiza a vivência do sagrado sem, contudo, impedir que se realize pela leitura, a vivência do poético. REFERÊNCIAS: CORTÁZAR, J. “Casa Tomada”. In: Bestiario. Buenos Aires: Sudamericana, 1971. INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 29 Medo e estranhamento na literatura infantil: estratégias narratológicas e recursos estéticos para arrepiar os leitores Daniela BUNN ∗ ... nem só de lobos vivem os medos A presença do medo é recorrente em muitas histórias da tradição oral que tinham como intuito ensinar uma lição, assustar ou mesmo alertar as crianças sobre situações de perigo. Madrastas, bruxas, lobos ou ogros devoradores de crianças completavam o círculo sobre os medos do escuro, das sombras, de crescer, de morrer, de não ter o que comer ou de falar com estranhos. Bruno Bettelheim (1980, p. 203) ressalta que a estratégia de Charles Perrault nos contos compilados era a de produzir histórias admonitórias, para ameaçar deliberadamente as crianças a partir de finais, como afirma, produtores de ansiedade. Mesmo assim, segundo Maria Tatar (2004), tanto Perrault como os irmãos Grimm se empenharam em eliminar os elementos grotescos e obscenos dos contos originais camponeses, sendo que em alguns a Chapeuzinho, por exemplo, come os restos do lobo saboreando a carne e bebendo vinho. Nas versões contemporâneas o medo e o pavor causado tanto pelo lobo como por outros personagens são subvertidos, pois em algumas o lobo acaba se casando com a vovó ou mesmo com a Chapeuzinho. Os adultos durante muito tempo foram (e ainda são) especialistas em amedrontar as crianças. Quem não se lembra de algum personagem folclórico ou de uma lenda urbana que assombrava a infância: o boi-da-cara-preta, o homem do saco, o bichopapão, as bonecas que matavam crianças. Sandra Corazza ao traçar um percurso sobre a história da infância, em seu livro Infância e Educação (2002, p. 71), afirma que “as gentes novas, agora ‘indefesas’, começaram a ter medo das coisas e, para incrementar mais ainda este medo, o Indivíduo criou um exército de personagens perigosos, como o bicho-papão, [...] a cigana que roubava crianças, [...] a madrasta perversa, vampiros, [...] predadores, homenzinhos verdes [...]” e colocou tudo isso nos meios de comunicação e de entretenimento (como os gibis, revistas, filmes, desenhos animados), criando, ao ∗ Mestre em Literatura e professora do Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Catarina. Texto apresentado no VII Painel Reflexões sobre o Insólito na Narrativa Ficcional e II Encontro Nacional O Insólito como Questão na Narrativa Ficcional/UERJ, 2010. Julio França (org.) 30 mesmo tempo, heróis idealizados pelas crianças: Tarzan, Mandrake, Zorro, SuperHomem, He-Man, Robocop, Jaspion, Tartarugas Ninjas até os mais recentes (p. 72). Atualmente, na literatura infantil, escritores e ilustradores - de forma lúdica, realista, surreal, fantástica ou nonsense - proporcionam sensações peculiares de medo e de estranhamento utilizando estratégias narratológicas e variados recursos estéticos. O medo como prazer estético apresenta-se de forma diferenciada das primeiras compilações e podemos ver claramente a linha divisória entre amedrontar e superar os medos. Foco a análise em dois personagens: o lobo e a Chapeuzinho Vermelho. Chico Buarque, em Chapeuzinho Amarelo (1979), apresentou uma protagonista amarelada de medo, tinha medo de tudo (inclusive do lobo): "Tinha medo de trovão. Minhoca, pra ela, era cobra. E nunca apanhava sol porque tinha medo da sombra." Maria Antonieta Antunes da Cunha, em Literatura Infantil (1985), faz uma minuciosa análise do livro de Buarque iniciando pelo título, observando a mudança de cor e a carga semântica do amarelo - sorriso amarelo, amarelo de susto, amarelo de medo. Porém, quando a menina depara-se com o lobo, o medo passa e ela fica só com o lobo. O lobo desestrutura-se com tal atitude e para manter sua fama de malvado, tenta assustar a menina e inutilmente grita “lobo” inúmeras vezes para que o medo volte. Num jogo de palavras, Buarque embaralha as letras praticando uma metamorfose em seu lobo, ou melhor, uma alimentomorfose (roubdo conceitos outros ao modo de Deleuze e este, para quem se lembra, assemelha-se ao “sapomorfose” de Cora Rónai) bem marcada pela passagem do lobo ao bolo: LOBOLOBOLOBOLOBOLOBOLOBOLO O lobo vira bolo mostrando uma inversão entre o ser que come e o que deveria ser comido, porém a Chapeuzinho não o devora. O leitor, que espera a situação conhecida entre a menina inocente e o lobo gentil e sedutor, estranha 17 . O lobo na história de Buarque tenta ser mau mostrando seus dentes pontiagudos e seus olhos vermelhos, como podemos ver nas ilustrações de Ziraldo para a edição de 2005 (Figura 1), porém a imagem que prevalece é a de um lobo desestruturado e decepcionado, sentado no chão vestindo seu paletó vermelho, sua gravata azul, um colete xadrez e uma 17 Por meio de estranhamentos, segundo as propostas de Rodari (1982), pequenos elementos subvertidos ou incluídos na história servem para despertar no leitor um interesse sobre os novos rumos da história ou um olhar diferenciado, no caso em estudo, sobre seus medos. Ideias aprofundadas na Gramática da Fantasia (1982, p. 172). INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 31 calçaa amarela (F Figura 2), seguida pelaa imagem naa qual o lobbo “já não eera mais um m LOBO. Era um BO O-LO. Um bolo de lobbo fofo, trem mendo que nem pudim m, com med do da Chappeuzim. Com m medo de ser comido com vela e tudo, inteirrim” (Figurra 3). Figura 1: lobo tentandoo assustar ; Figuura 2: lobo deseestruturado; Figgura 3: lobo tenntando assustar ( (ilustrações de Ziraldo, 2005) Um vãoo de mais de trezenttos anos de d história, de avançoos tecnológ gicos, mudaanças cultuurais instala--se entre ass ilustraçõess de Maxfieeld Parrish,, Walter Crrane e Gusttave Doré do d século XIX X e as apenas a exem mplificadass: da meninna assustada das xiloggravuras anttigas à mennina que veence seus medos m “maiss medonhoss”. Ao penssar na imaggem da Chhapeuzinho na contem mporaneidad de percebemos váriaas mudançaas de fisionnomia: criaança, adolesscente, joveem ou idosaa, sendo moorena, ruivaa, loira ou negra n (usanndo chapéuus de todas as cores), demonstraada por exccesso de caaricaturizaçãão ou simpplesmente por p garatujjas. Para o lobo, o principal aspecto dee mudança é a antroopomorfizaçção ao longo dos tempos: um lobo o com feiçõões animalizzadas e grottescas cede espaço a um u lobo orra satirizadoo ora vestid do elegantemente, sem mpre bípide – do lobo pop-star de d Ana Marria Machadoo ao lobo-b bolo de Buaarque. Mesm mo os lobos que aindaa encontram m as Chapeuuzinhos na floresta são o ilustrados com paletóós e muitas vezes v gravaatas e gannham as passarelas p d moda no da n imagináário dos illustradores com vestiimentas quee dão (assim m como as botas ao Gato) G statuss, um estaddo humanizaado e requiintado. O inglêss Tony Rosss, em O menino m quee gritava ollha o lobo (2009), naarra a históória de um menino quue, como o próprio títtulo desvennda, vive ggritando “O Olha o lobo!” e quandoo gritava todos fugiam m de medo. O lobo dessa história é também muito m a moçar elegaante e educado (“para um lobo”) e sempre atravessava as montanhhas para alm Julio FFrança (org.) 32 vestiido de gala. Depois de tantas menttiras, ningu uém mais coonfiava no m menino até que o verdaadeiro lobo apareceu e decidiu coomer todos os adultos deixando d o menino de lado, mas depois muddou de ideiia e comeu-o no jantaar: “acontece, fazer o qquê?” (frasee que fechaa a história)). Na ilustraação a seguuir, é possív vel perceberr a glamourrização pelaa qual passoou a imageem do lobo,, desestrutuurado ou ain nda assustaador, os lobbos ficaram, sem dúvidda, mais eleegantes. Figura 4: lobo elegantemente vestidoo para comer. Do loboo à meninaa: Matilde Rosa R Araújjo apresentta um chappeuzinho de cor meira diferrenciada. O Chapeuzinnho Cinzennto (2008) é uma hisstória narraada em prim pessooa sobre o envelhecim mento. Em meio m às refflexões e memórias m dee um chapéu u que não é mais verm melho, uma voz trêmulla, rouca, su urda, paira a presença de um lobo o que camiinha manso para não assustá-la, a l lambe doceemente as mãos m da vellha que sorrri em uma versão quee fala da morte, m do ennvelhecimen nto e das relações r fam miliares. Ricardo Azevvedo em Coontos de engganar a morrte (2005) afirma a que é um grandee erro consiiderar a moorte como asssunto proibbido ou inaddequado para crianças,, o importannte é que a morte m esteja simbolicaamente preseente tanto no n texto com mo nas imaggens. O medo da morte, por p exemploo, está preseente no connto originalm mente conh hecido comoo “Irmãozinnho e Irmãzzinha”. Na quarta q ediçãão de “Contoos de infânccia e do lar””, dos irmãoos Grimm, em 1840, os pais biiológicos foram fo substtituídos porr um pai e uma madrrasta que acabara por p se tornnar a verrdadeira viilã da histtória, morrrendo INSÓLLITO, MITOS,, LENDAS, CRE ENÇAS – Sim mpósios 2 – Dialogarts – ISB BN 978- 85- 8688 37- 81- 4 33 inexpplicavelmennte no fim, o que atribuui a alguns críticos c umaa certa ligaçção entre a bruxa b e a madrasta m (TA ATAR: 20004). De quallquer formaa, a fome, prrincipal mote dessa hisstória, leva o pai, incitado pela figgura feminina a abando onar os filhhos na floressta. E como o nem só dee lobos viveem os medoos, não poderia deixar de lado, tom mando o gaancho da história menccionada, as bruxas. Arden Druce D em Brruxa, Bruxaa venha à minha m Festaa (1995) ussa uma exceelente q colocaa a criança num lim miar entre estranham mento, estraatégia narraatológica que expectativa e meedo, estratéégia compleementada peelas ilustraçções de Patrricia Ludlow w que abalaam o expecttador, geram m ansiedadee e, ao mesmo tempo, um silêncioo pensante. Uma sériee de seres assustadores a s são conviddados por uma u bruxa a participarr de uma feesta e cada convidadoo só confirm ma sua preesença desd de que um outro comppareça. A trama t amarrra o convitte à presençça de seres horrendos h (exemplifica ( ados nas Fiiguras 5) co omo a bruxa, o gato, o espantalhoo, a coruja, a árvore, o duende, d o dragão, d o pirrata, o tubarrão, a cobraa, o unicórnnio, o fantassma, o babuuíno, o lobo o com uma touca t (e aquui já começçamos a verr faces maiss aliviadas) e por fim, a Chapeuzinho Vermeelho, personnagem no qu ual os expectadores lannçam sua ânncora (enfim m, ufa!, um personagem m conhecidoo). Figura 5: o babuíno, b a bruuxa e o pirata Márcio SeligmannS Silva (20055) relembraa que na peerspectiva dda teoria po oética clásssica, mais precisament p te com Arisstóteles, o abalo a prom movido por cenas choccantes que geram g no expectador e sensações de d pena ou de medo, pode p ter um ma consequ uência tantoo prazerosa como útil. Não à toaa a atração o por cenass de violênncia ou trag gédias incitaam a curiossidade e fazeem com quee um aglom merado de geente se desloque perantte um cadávver, um acidente de trânsito t ou perante a cena c de um m crime. Em m “Do deliicioso horroor sublime ao abjeto e à escrituraa do corpo”” (p. 31-45), Seligmannn-Silva traçça um Julio FFrança (org.) 34 panorama sobre a teoria e os conceitos de sublime e a crise no paradigma sobre o belo e mais ainda sobre o “horror deleitoso” que, segundo Burker (1993, apud SELIGMANNSILVA: 2005), proporciona deleite quando são atenuadas ou em nosso caso, residem apenas no imaginário. O sublime, o indescritível, apresenta-se, por exemplo, no filme A bruxa de Blair (1999), pois a bruxa não aparece em nenhuma das cenas, apenas o clima de suspense paira no ar. O filme brinca com o medo: o medo de bruxa, de monstros que nós mesmos criamos, o medo de ficar perdido numa floresta escura. O filme aguça a imaginação do expectador que não sabe com quem está lidando e nos lembra muito bem do fantasma, do bicho-papão, do vulto no quarto, do medo de ter alguém em baixo da cama ou do boi-da-cara-preta, seres que povoam o imaginário. Talvez seja pelo caráter inominável que as crianças confundam, no livro a Bruxa, bruxa, o horrível unicórnio azul com um simples cavalo, o tenebroso babuíno por um simples macaco, o tubarão por uma baleia e o fantasma (ser sem forma) por um capitão, por um pirata ou até pelo Barba Azul. A surpresa é revelada na última página do livro quando vemos um fila de crianças fantasiadas indo em direção ao castelo e associamos os convites realizados a uma festa à fantasia. De qualquer forma, as crianças sabem (ou acabam aprendendo) o limite entre a imaginação e a possibilidade do real, sentem medo sim, estranham sim, pois nossos escritores e ilustradores usam artifícios bem convincentes e assustadores para arrepiar os leitores, mais no fim da história, as crianças encontram conforto em personagens bem conhecidos como o lobo, a Chapeuzinho, o contador da história ou simplesmente fechando o livro. REFERÊNCIAS BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2004. BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fada. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. BUARQUE, Chico. Chapeuzinho amarelo. Ilustrações de Ziraldo. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 2005. BUNN, Daniela. Da história oral ao livro infantil. In: Revista Estação Literária. Vagão1 v. Curitiba: [s.n.], 2008, pp. 50-57. CORAZZA, Sandra. Infância e Educação. Petrópolis: Vozes, 2002, pp. 57-77. INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 35 CUNHA, Maria Antonieta Antunes. Literatura Infantil - Teoria e Prática. São Paulo: Ática, 1985. DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 1998. SELIGMNN-SILVA, Márcio. “Do delicioso horror sublime ao abjeto e à escritura do corpo”. In: O local da diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução. São Paulo: Ed. 34, 2005, pp. 31-45. TATAR, Maria. Contos de Fadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. Julio França (org.) 36 Entre devires e afetos: o terror como impossibilidade da escrita em Rubens Figueiredo Gabriel Cid de Garcia 18 Produtor cultural – UFRJ Doutorando em Literatura Comparada – UERJ O conto contemporâneo pode ser entendido como uma forma literária capaz de afastar-se dos revestimentos da representação. Se nas literaturas de outrora pudemos demarcar um lugar específico para o sujeito em uma obra literária, assim como uma função delimitada para o narrador, este solo de definições se torna cada vez mais fluido na literatura contemporânea. O narrador não está preocupado com a verdade que possa advir de sua narrativa, se existe um respaldo real para o narrado que possa garantir para ele a certeza a respeito daquilo que se conta. De acordo com Nádia Batella Gotlib (2002), o conto pode ser considerado antes um problema teórico do que um gênero literário. Este furtar-se às classificações bem delineadas, racionalmente fundamentadas, reflete os diferentes desdobramentos que a busca de um elemento comum para o conto teve que sofrer ao longo da história, onde cada conto, em si mesmo, seria desde sempre problemático, caso teórico por excelência, imune à generalização. Esta particularidade do conto, sua qualidade de inclassificável enquanto gênero, associada à pluralidade de estilos que comporta, explicita a aproximação do fazer literário à ideia de devir, de vir a ser, a um fluxo permanente e ininterrupto que possibilita as mudanças que dissolvem qualquer remissão a identidades e essências. Livre de ideologias que buscam representar a realidade ou um determinado estado de alma, o conto inauguraria uma relação com o mundo que não se diferencia da criação artística, onde a vida e a ficção se tornam indiscerníveis. Não se trata mais de relacionar o narrado a alguma verdade ou a alguma essência que se situe para além do texto, como um significado último a se alcançar. O narrado passa a questionar-se enquanto tal, apontando para uma compreensão diferenciada do sujeito, não mais preso aos ditames cartesianos que o elevaram a um patamar desde o 18 Doutorando em Literatura Comparada pela UERJ, mestre em Literatura Portuguesa pela mesma instituição, bacharel e licenciado em Filosofia pela UFRJ. Produtor cultural da UFRJ. Professor substituto de Estética do Departamento de Teoria e História da Arte, do Instituto de Artes da UERJ. Organizador do livro ‘Ciência em foco: o olhar pelo cinema’ (Garamond, 2008). Membro dos grupos de pesquisa ‘Imagem, corpo e subjetividade’ (UFF) e ‘Dionysos’ (UERJ), vinculados ao CNPq. Atua na interface entre a arte e a filosofia. INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 37 qual poderia conhecer a si mesmo e ao mundo metódica e racionalmente. É contra qualquer possibilidade de método e ultrapassando a compreensão da tradição ocidental acerca da razão, que a literatura contemporânea parece se deslocar. De acordo com Deleuze, “escrever é um devir, escrever é atravessado por estranhos devires que não são devires-escritor, mas devires-rato, devires-inseto, devires-lobo, etc.” (Deleuze, 2004, p. 21). Para todos os propósitos, podemos dizer que o conto Alguém dorme nas cavernas, de Rubens Figueiredo, nos interessa. É por meio dele que uma certa concepção de literatura pode mostrar-se associada a uma dimensão impessoal que problematiza a instância identitária do homem, e por extensão, do narrador. Partimos do pressuposto de que o conto apresenta propriamente aquilo que Gilles Deleuze chamou de registro de devires, uma vez que o filósofo francês relaciona o devir à componente fragmentária dos contos. Para sustentar tal pressuposição, analisaremos alguns aspectos pontuais do conto, sobretudo a presença do devir-animal no personagem Simão, explicitando sua importância para se pensar a arte desvinculada de qualquer relação com a verdade em termos de identidade, correspondência ou adequação aos princípios transcendentes que por muito tempo pautaram a tradição do pensamento ocidental. Em sua obra Mil Platôs (2004), em conjunto com Félix Guattari, Deleuze coloca a questão que nos incita a pesquisar o conto rubiniano: comparados a fragmentos de contos, como poderia haver um registro próprio dos devires? A questão inicialmente nos apresenta uma propriedade destes devires: o que eles designam não pode ser aprisionado por meio de significações, tampouco descrito de forma pontual, pois desta forma suporíamos uma certa imutabilidade em seus processos. Podemos somente grafá-los em sua dispersão, construir gráficos que permitam supor a leitura de seu funcionamento. Assinalando suas componentes, algo sobre sua natureza pode daí ser inferido. A possibilidade de compreensão do devir deve, portanto, afastar-se de qualquer análise que privilegie associações com modelos de identificação universalizantes, que busque significados simbólicos e estruturais, verdades ocultas no texto. Acercando-se do rigor diante daquilo que é singular, que não poderia ser compreendido senão por meio de relações, um conto e, em específico, o conto de Rubens Figueiredo, pode apresentar propriamente, com toda sua fragmentação, o registro destes devires. Logo no início do conto, somos apresentados à Casa construída no meio da Floresta, em pleno território dos lobos. É na apresentação do hábito de se alimentar os lobos, à noite, que uma diferença na relação que lobos e homens mantêm com o espaço Julio França (org.) 38 pode ser evidenciada: “Param a qualquer sinal de movimento e quando não se sentem seguros recuam, ainda que só alguns centímetros. Criam um espaço vital onde antes havia apenas chão, capim, terra.” (FIGUEIREDO, 1994, p. 27). Esta descrição do movimento dos lobos é também uma descrição enviesada dos homens. Porém, o espaço que os homens criam para sobreviver não é o mero espaço selvagem, natural, mas a Casa, a civilização, construída igualmente sobre o chão, sobre o capim e sobre a terra, ou seja, a criação de uma forma sobre o informe. Segundo Deleuze, toda sociedade é atravessada por determinados fenômenos que, desprovidos de lei, aparecem como irredutíveis a qualquer captura significante. É por meio destas sugestões que o conto nos introduz nesta atmosfera de indefinição e escamoteio que marca a condição mesma do que o filósofo conceitua como o devir-animal. Sendo um personagem que oscila entre o mundo dos lobos e o mundo dos homens, apresentando características de ambos, não seria correto afirmar que Simão se transforma em um homem-lobo, um lobisomem. O que existe é a tensão entre os dois mundos efetuada a partir da presença de um devir-animal, que não designa a transformação gradual do homem em animal, mas antes, se coloca como condição suficiente do entrelaçamento irredutível de ambos, alcançando uma dimensão impessoal que não diz respeito mais a uma ou outra espécie determinada 19 . De acordo com Deleuze, “um devir não é uma correspondência de relações. Mas tampouco é ele uma semelhança, uma imitação e, em última instância, uma identificação.” (DELEUZE, 2004, p. 18). Se esta definição negativa do devir vem a explicitar o que ele não é, na passagem que se segue, Deleuze esmiúça a consistência própria do conceito: Os devires-animais não são sonhos nem fantasmas. Eles são perfeitamente reais. Mas de que realidade se trata? Pois se o devir animal não consiste em se fazer de animal ou imitá-lo, é evidente também que o homem não se torna “realmente” animal, como tampouco o animal se torna “realmente” outra coisa. O devir não produz outra coisa senão ele próprio. É uma falsa alternativa que nos faz dizer: ou imitamos, ou somos. O que é real é o próprio devir, o bloco de devir, e não os termos supostamente fixos pelos quais passaria aquele que se torna. O devir pode e deve ser qualificado como devir-animal sem ter um termo que seria o animal que se tornou. (Ibid., p. 18). 19 José Gil afirma ser uma constante na história o interesse dos homens por monstros, caracterizado pelo desejo de se buscar uma imagem estável da própria humanidade. Porém, o que faz com que, ainda que repulsivo, o monstro provoque atração, é seu posicionamento em uma zona fronteiriça entre a humanidade e a inumanidade do homem. A este respeito, ver Gil, 2006, p. 125. Ainda que não se torne um monstro, Simão apresenta características que fazem com que o jogo entre humanidade e inumanidade seja recorrente no conto. INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 39 É por isso que afirmamos que Simão, ao longo de sua metamorfose, não se torna propriamente lobo, ou qualquer criatura que admitiria uma repartição igualitária das identidades tanto do homem como do lobo. O que existe é um campo de indefinição onde homem devém lobo, sem haver uma complementação ou um telos para o processo. Ainda segundo Deleuze, O devir-animal do homem é real, sem que seja real o animal que ele se torna; e, simultaneamente, o devir-outro do animal é real sem que esse outro seja real. É este ponto que será necessário explicar: como um devir não tem sujeito distinto de si mesmo; mas também como ele não tem termo, porque seu termo por sua vez só existe tomado num outro devir do qual ele é o sujeito, e que coexiste, que faz bloco com o primeiro. É o princípio de uma realidade própria ao devir (a idéia bergsoniana de uma coexistência de “durações” muito diferentes, superiores ou inferiores à “nossa”, e todas comunicantes). (Ibid., p. 18). O devir forma blocos que desterritorializam os termos antes pautados pela ideia de identidade e unidade, apresentando em si sua imbricação em uma dimensão impessoal. O devir-animal é, portanto, perfeitamente real, e irrompe em Simão como um clamor desejante que o atravessa e o faz buscar a efetuação de uma potência de matilha. Esta potência impessoal contrapõe-se à vida na Casa, já que esta se ocupa da disciplinarização dos ímpetos do exterior. É neste sentido que os ameaçadores lobos do conto mantêm com a Casa uma relação singular. Temos na Casa a presença de habitantes que vivem radicalmente de acordo com os desígnios da Bíblia (dentre eles, o vegetarianismo), sendo a própria Casa um local dedicado à preparação dos jovens para o sacerdócio. Por outro lado, temos na Floresta a imagem de tudo aquilo que a própria Casa tem como função domesticar: a selvageria, a Natureza em sua nudez originária. Simão é o narrador que nos conta sua experiência de ter sido enviado a esta Casa por ter o comportamento de um menino selvagem, irrequieto, indisciplinado. O fato importante a se notar é que esta mesma fúria incontrolável presente no menino Simão é apresentada por ele como sendo um mecanismo de defesa: Mentia a respeito de tudo, coisas importantes ou ninharias. Dava gritos esganiçados, fechava os olhos e tapava os ouvidos se alguém me flagrasse numa mentira. Em desespero, eu defendia alguma coisa dentro de mim que não podia ser tocada por ninguém. (FIGUEIREDO, 1994, p. 29) Este estado natural de Simão foi sendo acalmado pela presença de Gregório, o bibliotecário surdo e mudo que o apresentara ao mundo dos livros. É Gregório quem Julio França (org.) 40 percebe algo de diferente em Simão, e resolve preparar seu caminho a partir de sugestivas leituras escolhidas a dedo na biblioteca, e até mesmo por meio de marcações em diversos livros, que Simão viria a descobrir após a morte do bibliotecário. Uma curiosidade acerca de Gregório é que ele nunca conseguia organizar totalmente a biblioteca após o incêndio que aconteceu na Casa: “[...] todos sabiam que se Gregório conseguia pôr em ordem um setor da biblioteca era sempre ao preço da desordem em prateleiras que já havia arrumado antes.” (Ibid., p. 29). Talvez haja aqui uma referência ao Princípio da Incerteza, de Werner Heisenberg, que afirma ser impossível, para um observador, lançar um olhar para uma coisa sem modificar também esta coisa observada. Qualquer totalização acerca do saber, qualquer ideia de acabamento ou fim voltada ao conhecimento, seria já ilusória e utópica face à complexidade e pluralidade dos elementos matizados do real, todos interdependentes. Ainda neste cenário de incertezas, Simão descreve o rosto de Gregório como algo que parece estar em constante mutação, cuja aparência se assemelha à água, com uma superficial transparência revelando uma abissal profundidade. Este mistério que envolve Gregório também o aproxima de uma relação particular com os lobos20. Recorrente na obra de Rubens Figueiredo, a água adquire neste conto também um papel fundamental. É por meio dela que mais uma vez podemos estabelecer a relação de continuidade e pertencimento entre a Casa e a Floresta. Muitas vezes a água é trazida ao texto para dar a ver o fluxo natural e impessoal que constitui tanto a Casa como a Floresta. A Casa, no entanto, recebe a água e a organiza, distribuindo-a pelos aposentos através dos canos que se originam lá onde ela é armazenada, no tanque que se localiza nos fundos da Casa. Esta ideia reforça nossa suspeita de que toda a Casa se configura em um esforço para se domesticar a Natureza. Além da água, a carne também exerce um importante papel na narrativa. Inicialmente já entendida como um interdito em uma comunidade de vegetarianos e religiosos, onde ela simbolicamente adquire um sentido alusivo à tentação e ao desejo, a carne é trazida à Casa para saciar a vontade dos visitantes e servir de alimento também aos lobos, no espetáculo que Estevão arquiteta todas as 20 As leituras sugeridas por Gregório a Simão mereceriam um capítulo à parte. Repleto de referências clássicas às metamorfoses de homens e lobos, uma destas passagens nos relata uma lenda grega que diz que uma transformação ocorrerá ao homem se o lobo o olhar antes daquele conseguir vê-lo. A lenda, curiosamente, possui duas versões: em uma, o homem se transformaria em lobo; na outra, o homem ficaria surdo. Estas duas versões podem sugerir a condição tanto de Simão como de Gregório. Ver FIGUEIREDO, 1994, p. 35-36. INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 41 noites. Furtivamente, no entanto, Simão consegue experimentar a carne crua, forçando seu corpo a assimilar aquele alimento tão estranho: Tubos e câmaras dentro de mim resistiam como se fosse uma invasão, queriam rejeitar, expelir, a própria carne se agarrava às paredes internas do meu corpo no empenho de não ser engolida. Carne contra carne. Mas eu forçava, e um pedaço depois do outro foi deslizando dentro de mim. Eu sufocava um pouco, a respiração entrecortada. Arfava e gemia sem querer. Eu queria, mas meu corpo não. (Ibid., p. 48) A água da Casa e da Floresta, de coloração escura avermelhada, se mostrava contaminada pela carne que lhe conferia propriedades nutritivas. Esta associação da água com a carne explicita de forma mais enfática o co-pertencimento entre o interior da Casa e seu exterior, ou ainda, mais precisamente, aquela componente que não se deixa organizar ou domesticar, tornando a água notável, palpável, quase concreta, sólida, trazendo a vivacidade para quem a bebe. De acordo com a narração de Simão, Raquel “contemplava o copo cheio erguido contra a luz, mastigava um pouco o líquido, estalava os lábios. Era um beijo. Era carne. Mas eu ainda não sabia” (Ibid., p. 33). Este último desconhecimento de Simão não se apresenta como algo pontual no conto. A narrativa é permeada de indeterminações quanto à origem de diversos anseios e desejos de Simão. Passagens como “Não sei quando [...]” (Ibid., p. 30), “Sem que eu percebesse, [...]” (Ibid., p. 32), “Não sei quando começou.” (Ibid., p. 34), são recorrentes, questionando a possibilidade de uma demarcação inicial para tais processos, que desde sempre estavam em atuação, embora não se possa precisar quando eles se apresentaram à consciência. Foi desta forma que se iniciou a relação de Simão com os lobos. Após o horário destinado à alimentação dos lobos, quando o personagem Estevão jogava pedaços de carne para alegria dos visitantes que costumavam assistir ao espetáculo, Simão passou a esperar os lobos exatamente no ponto onde termina o jardim e começa a Floresta. Por si só, este ponto marca a indeterminação entre a civilização e a selvageria. No início os lobos estranhavam mas logo passaram a demorar mais tempo perto de Simão, por perceberem nele algo especial: Não sei quando comecei a me mover perto deles. Devo ter ficado pelo menos um ano sem me mexer, plantado no final do jardim, noite após noite, uma árvore sem raízes. Ninguém na Casa sabia disso. Com Estevão, os lobos eram espetáculo. Comigo, a convivência era diferente. Não havia cálculo, não havia interesse. Não sei o que havia. (Ibid., p. 34). Julio França (org.) 42 Posteriormente, o elo entre Simão e os lobos vai se intensificando, até o ponto destes não mais o estranharem, permitindo a ele se tornar um membro a mais da matilha: “corremos juntos, eu e eles, para dentro da Floresta. O mato não fazia ruído nos meu pés.” (Ibid., p. 54). Este elo firmado entre Simão e os lobos vai desafiando a outra vida vivida por ele na Casa, influenciado também pelo fascínio causado pela jovem espeleóloga Raquel, hóspede ocupada em estudar as cavernas da região. A acolhida de Simão pela matilha nos oferece novos insumos para a teorização que nos propomos. O estado de Simão, unindo-se de vez aos lobos, não poderia ser pensado como uma evolução. A evolução, nos moldes tradicionais, supõe uma passagem de um estado de indiferenciação para um estado de diferenciação. Este esquema apresentaria problemas ao assumir que qualquer evolução só poderia se dar, tendo em vista a seleção natural, por filiação ou hereditariedade. Deleuze pensa de outra maneira: O neo-evolucionismo parece-nos importante por duas razões: o animal não se define mais por características (específicas, genéricas, etc.), mas por populações, variáveis de um meio para outro ou num mesmo meio; o movimento não se faz mais apenas ou sobretudo por produções filiativas, mas por comunicações transversais entre populações heterogêneas. (DELEUZE, 2004, p. 19). Com a capacidade de se estabelecerem em grupos, não só restritos aos animais da mesma espécie ou gênero, as populações de animais prefigurariam uma maneira heterogênea de perseverar, diferencial, à medida que podem ocasionar mudanças no ambiente e entre si muito mais rapidamente do que nos períodos estipulados para a evolução tradicional. Se o neo-evolucionismo afirmou sua originalidade, é em parte em relação a esses fenômenos nos quais a evolução não vai de um menos diferenciado a um mais diferenciado, e cessa de ser uma evolução filiativa hereditária para tornar-se antes comunicativa ou contagiosa. Preferimos então chamar de “involução” essa forma de evolução que se faz entre heterogêneos, sobretudo com a condição de que não se confunda a involução com uma regressão. O devir é involutivo, a involução é criadora. Regredir é ir em direção ao menos diferenciado. Mas involuir é formar um bloco que corre seguindo sua própria linha, “entre” os termos postos em jogo, e sob as relações assinaláveis. (Ibid., p. 19) O contágio entra em cena como uma forma de evolução que substitui, em eficácia, a evolução por filiação, justamente por colocar em jogo elementos heterogêneos. As epidemias, as catástrofes e – no caso da literatura –, o vampiro, são INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 43 exemplos de catalisadores de mudanças que se efetuam colocando em circuito diferentes elementos de diversas ordens, podendo oferecer uma mudança muito mais radical e drástica no ambiente, apenas pela união de diversos fatores, alheios a qualquer relação homogênea dada por hereditariedade. Simão involui ao deixar sua identidade dissolver-se neste entre-lugar que não é nem homem nem lobo, mas que é suficientemente o lugar de irrupção e troca de devires, expressões impessoais 21 . Notemos que esta involução ocorre por baixo das relações que podem sofrer algum tipo de demarcação. Talvez por isso ele tenha provado a ignorância quanto aos processos vividos e sentidos por ele anteriormente, que se presentificavam na forma de expressões que traziam a incerteza quanto ao narrado. É naquilo que Deleuze define como uma paticipação anti-natureza que a involução existe e por meio do sujeito, no caso, Simão, vem à superfície, mas somente para evidenciar, por meio dela, a profundidade ou o semfundo desde onde fala. Por esta aliança, Deleuze quer marcar a oposição diante das teorias tradicionais da biologia, a capacidade de contato e bi-implicância entre espécies, gêneros e elementos diferentes, que desafiam a ordem natural: formar uma matilha ou um bando, um agregado que possa fortalecer-se pela dissolução da primazia da unidade. É antes de se constituir como um sujeito que Simão comporta o devir-animal, fenômeno que nele sempre atuou em estado de latência, cujos efeitos se produziram como impaciência e insatisfação com a ordem estabelecida, já que, “num devir-animal, estamos sempre lidando com uma matilha, um bando, uma população, um povoamento, em suma, com uma multiplicidade.” (Ibid., p.19) Designando esta dimensão exterior, o que é próprio à Floresta, por multiplicidade, Deleuze enfatiza o afastamento de qualquer tipo de tentativa de perceber alguma unidade, alguma identidade ou essência no deviranimal, pois afinal, Devir não é certamente imitar, nem identificar-se; nem regredirprogredir; nem corresponder, instaurar relações correspondentes; nem produzir, produzir uma filiação, produzir por filiação. Devir é um verbo tendo toda sua consistência; ele não se reduz, ele não nos 21 Estas expressões impessoais podem ser chamadas de hecceidades, que são processos que atuam entre os sujeitos ou entre os termos da relação, mas que são eles mesmos desprovidos de função e forma. O próprio Deleuze já afirmou que os contos comportam hecceidades, e por isso poderiam encarnar de forma própria a metamorfose que atua sobre as coisas e os sujeitos. Ver DELEUZE, 2004, p. 47. O conceito medieval de hecceidade, introduzido por João Duns Escoto no século XIII, difere das doutrinas platônica e aristotélica ao estabelecer que as coisas singulares são cognoscíveis em sua própria singularidade, entendendo a inteligibilidade destas mesmas coisas como atributo de sua singularidade, e não mais de uma ideia e uma forma universal. Para a relação deste conceito a uma teoria do conto, ver GARCIA, 2005. Julio França (org.) 44 conduz a “parecer”, nem “ser”, nem “equivaler”, nem “produzir”. (Ibid., p. 19) Tal consistência é a que podemos notar no conto de Rubens Figueiredo. Dotado de suficiência, devir é um verbo intransitivo que designa um processo que vem à expressão no devir-animal, o qual desterritorializa tanto Simão quanto os lobos. Não sendo da ordem da filiação, o devir nasce formando alianças, de bando, matilhas, justamente por colocar em jogo diferentes seres, de escalas e reinos totalmente diferentes, que adquirem um novo estatuto à medida que são capazes de produzirem suas simbioses. Percebemos aqui que a matilha não apenas designa, no conto, o bando a que Simão passa a pertencer, mas antes todo o domínio do real, com suas séries e domínios heterogêneos, que se furtam à fixidez das significações e produzem suas relações anômalas. É a respeito da escrita que o próprio conto fala, ao mesmo tempo em que os conceitos trabalhados por Deleuze também se associam ao fazer literário. A condição lupina de Simão, seu desejo de fundir-se aos lobos, era algo que ele procurava compartilhar com Raquel. As descrições de Simão que envolvem Raquel não hesitam em aproximá-la igualmente de algo selvagem, em perfeita harmonia com as coisas naturais. Simão chega a afirmar que ela era “uma espécie de bicho” (Ibid., p. 33). Por perceber nela esta afinidade com uma dimensão animalizada, Simão não hesita em buscar meios de aproximá-los, seja convidando-a para o limite do jardim para experimentar a companhia dos lobos, seja passeando pelas trilhas que levam às cavernas. Sua relação com Raquel, no entanto, pode ser entendida como a tensão existente entre a curiosidade natural e a captura exercida pelo saber científico, que admitiria uma certa frieza no lidar com as cavernas. É neste ponto que o interesse de Raquel por Simão encontra um impasse: o interesse de Raquel não poderia nunca se afinar com aquele de Simão, pois o dela seria sempre ainda mediado pela objetividade científica. É por isso que no desfecho, após a morte de Raquel nas cavernas, Simão venha a constatar a impossibilidade de compartilhar seu segredo: “Ela queria o meu segredo e o meu segredo não lhe serviu para nada. Talvez fosse isso que ela queria. O que não se pode possuir, tem que ser destruído. Meu erro foi não entender que era melhor ficar sozinho.” (Ibid., p. 58). O segredo de Simão, seu devir-animal, não estaria acessível para Raquel caso ela se ocupasse dele apenas de forma objetiva, pragmática, utilitarista. Seu segredo não seria passível de nenhuma leitura, ou nenhuma compreensão real, caso esta fosse lançada desde um solo que não o da dimensão impessoal lá onde ele [o segredo] se INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 45 oculta. Qualquer compreensão objetiva seria considerada tardia, um acréscimo inócuo que não compreenderia o fenômeno, mas apenas o produto de sua redução formal. Mesmo alijado do mundo dos homens, instalado neste entre-lugar, Simão ainda escreve. É porque existe o registro da palavra de Simão que o conto pode também existir. O registro de devires é exercido pelo próprio Simão, no limiar de sua consciência, no esfacelar de seu corpo, que se recusa a adaptar-se à nova condição. Este mesmo registro de Simão se dá não de forma linear, mas de forma fragmentada, apresentando-se, o próprio conto, como uma resposta consistente à questão inicial proposta por Deleuze. É através dos últimos escritos de Simão, apresentados ao longo do conto, que podemos voltar (talvez sem nunca ter saído) ao tema da escrita, agora já munidos de um ferramental conceitual adequado. Para mim é difícil escrever. Não por alguma emoção ou escrúpulo próprio, como os que os autores gostam de alegar, disfarçando de dor o que não passa de presunção. Para mim é difícil escrever porque só tenho este caderno amarrotado e sempre úmido, apoiado na terra ou na pedra de superfície desigual. E para segurar a caneta só posso contar com os dentes e com o que me resta da mão. (Ibid., p. 28) A primeira parte desta passagem, possivelmente a que mais ressoa com a totalidade do conto, é um ataque direto à imagem do narrador herdada da tradição metafísica ocidental. É como se Simão nos dissesse que não se trata, neste conto, de um narrador com características iluministas ou românticas, onde a consciência tem um papel fundamental e a certeza sobre o que é narrado diz respeito ou à verdade do mundo exterior ou à verdade interior do próprio narrador. A sequência final, que explicita as causas da dificuldade de escrever, não oferecem nenhuma justificativa elegante, apresentando a crua justificativa da dificuldade de Simão – e do narrador contemporâneo. A umidade do papel, o estado deplorável do caderno, a superfície de pedra, desigual, tudo alude à concretude do mundo e sua anterioridade em relação aos sujeitos constituídos. A unidade do conhecimento, tributária da ideia de verdade, é perturbada pela potência de matilha formada pelos devires, que destituem a razão de suas propriedades universais, dando lugar a afetos que não se confundem com sentimentos pessoais ou localizáveis. Temos, portanto, uma condição híbrida e impessoal para o homem, tributária da insuficiência de parâmetros que garantam, para um sujeito fragmentado, qualquer certeza. Por esta via, é inevitável pensar que a condição de Simão não só espelha a da sociedade ocidental, como lhe é constitutiva. A selvageria não é algo exterior que reside num lugar além da razão. Ao contrário, a Julio França (org.) 46 própria razão já pode ser considerada como um efeito produzido a partir deste estado selvagem que lhe é imanente. Neste cenário onde as referências se desestabilizam, a literatura viria a cumprirse como uma escrita lupina, como lobiferação, para usar a terminologia de Deleuze: um esforço para destruir a ordenação significante e se instaurar no limiar entre a convenção e a destruição desta mesma convenção, dissolvendo as posturas predicativas que ao longo da tradição privilegiaram o verbo ser em detrimento do devir. Como afirma Simão, “onde estou, escrever é quase uma aberração. Não é coisa deste mundo nem do outro. Não é o que eu sou, não parece com o que eu fui.” (Ibid., p. 44) Desta forma, rompe-se com o regime de interioridade do sujeito, desprovido já de qualquer essência formal, eterna, universal. O que existe é apenas a capacidade engendradora de fluxos impessoais pré-individuais que confundem conteúdo e expressão, tomando conta do narrador, que deixa de possuir qualquer certeza e domínio sobre o narrado, a ponto de evidenciar, por fim, a própria incapacidade de escrever. Os contos, traduzindo o movimento do devir a partir de seus registros, apresentam com maior intensidade e propriedade a possibilidade de um conhecimento radical sobre o real. O homem opera seus devires-animais nos agenciamentos que estabelece com as multiplicidades de termos heterogêneos, e o registro destes devires, destes recônditos inauditos de uma dimensão inumana do homem, podem ser apresentados por meio da arte. A estética vem a substituir, de forma sutil, a metafísica. A partir de fluxos impessoais, o sujeito pode adquirir e admitir diversas configurações. É o que afirma Deleuze, quando explicita que a matilha não cessa de trabalhar por baixo e perturbar de fora as grandes construções identitárias ocidentais, como a família e o Estado. A Floresta, a terra, a pedra, ou antes a potência de matilha vislumbrada nestes elementos selvagens, se mantém como o outro da Casa, sua dimensão não domesticada, mas que também a engloba e a condiciona, e a perverte por dentro, mantendo-se à espreita, até o momento onde se vê aflorar o devir-animal que faz com que se retorne à inumanidade, sempre presente. Em seu estudo sobre monstros, José Gil nos explicita este co-pertencimento da humanidade à inumanidade: Qualquer coisa em nós, no mais íntimo de nós – no nosso corpo, na nossa alma, no nosso ser – nos ameaça de dissolução e caos. Qualquer coisa de imprevisível e pavoroso, de certo modo pior do que uma doença e do que a morte (pois é não-forma, não-vida na vida), permanece escondido mas pronto a manifestar-se. A fronteira para além da qual se desintegra a nossa identidade humana está traçada dentro de nós, e não sabemos onde. (GIL, 2006, p. 125-126). INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 47 É esta peculiar capacidade de pertencer desde sempre à inumanidade, de perceber sua proximidade no humano, o que provoca ao mesmo tempo pavor e atração. Os elemento terríveis da narrativa contribuem para a evidenciação dos limites entre o humano e o inumano, donde advém o medo gerado pela implosão dos fundamentos que garantiam até então a razão e a ordem. Entendendo o conto como uma forma de acesso ao caos, a experiência literária do medo que ele propicia pode ser pensada como um modo suficiente de se viver concretamente o que é expresso na ficção, visto que é próprio da linguagem da ficção – de acordo com Maurice Blanchot (1997) – colocar o leitor em contato com uma não-realidade capaz de presentifica as coisas e o mundo por meio da consistência das palavras. Esta propriedade da ficção faz com que o leitor seja capaz de sentir atração pelo desconhecido. No conto, é também uma atração que leva Simão a conceder atenção às montanhas, à carne, aos lobos, enfim, a tudo que se antecipa à ordem humana. Simão gostava de se aventurar pelas cavernas. Assim como Gregório, ele conhecia seus segredos, suas entradas e saídas, suas nuances. A caverna é, para Simão, uma outra biblioteca. Ela detém o silêncio no qual ele pode mergulhar para devir-lobo. A biblioteca, entretanto, pode ser vista também como uma caverna, assim como a própria Casa. Em ambas, a diferença reside apenas no modo de se lidar com a terra, com a pedra, que vai admitir formas mais ou menos trabalhadas, que podem ou não se afastar de seu estado bruto. Esta relação entre a caverna e a Casa, a caverna e a biblioteca, evidencia a mesma relação entre o silêncio e a palavra, perfeitamente encarnada em Gregório, cuja inevitável omissão da palavra faz com que sua presença seja ainda mais intensa. A mesma relação é a que o próprio conto evidencia, o registro de devires que ele apresenta, o embate entre sua forma e aquilo que o corrói por dentro, fragmentando-o, fazendo com que seus elementos se apresentem ao mesmo tempo como familiares e estranhos, problematizando o próprio contar, à medida que a palavra, a linguagem, é posterior ao ruído, ao uivo, ou ainda, ela é o próprio ruído domesticado, disciplinado, ordenado. É mesclando os domínios da razão e da desrazão, do pessoal e do impessoal, que a literatura, enfim, pode tornar visíveis os devires inauditos no homem, que perscrutam e contestam sua natureza. A ficção brasileira contemporânea, com este belo exemplo do conto de Rubens Figueiredo, é um convite a se instalar no limiar entre a Casa e a Floresta, perturbando-nos de fora contra qualquer indicio de remissão à identidade, à conformidade a modelos privilegiados, no interstício entre o uivo e a Julio França (org.) 48 palavra, a forma e o informe, a caverna e a Casa, o humano e o inumano, o caos e a ordem, sem deixar margem para qualquer decisão. Escrever não pode mais deixar de ser, em nossa época, uma tarefa dos lobos. São eles que nos permitem tomar por ilusórias as pretensões humanas. REFERÊNCIAS: BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Trad. Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. 4 v. Trad. Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 2004. FIGUEIREDO, Rubens. O livro dos lobos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. GARCIA, Gabriel Cid. “A continuidade inesgotável da literatura: o conto comportando uma hecceidade”. In: Cadernos do IL (UFRGS), nº 30, Jun. 2005, p. 63-89. GIL, José. Monstros. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2006. GOTLIB, Nádia B. Teoria do conto. Rio de Janeiro: Ática, 2002. INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 49 Medo e miséria em “Crianças à venda. Tratar aqui”. Jorge Amaral 22 RESUMO: A partir da análise do conto “Crianças à venda. Tratar aqui”, do livro Sete ossos e uma maldição, de Rosa Amanda Strausz, este trabalho pretende desenvolver reflexões acerca do medo enquanto resultado de um meticuloso processo de construção literária. Como, no conto analisado, a atmosfera do medo é estabelecida pela manipulação de elementos capazes de sugerir a possibilidade de existência de forças que escapam à lógica aparente da realidade material, este trabalho busca demonstrar como o insólito e o temor pelo desconhecido podem chegar à consciência do receptor também como objeto estético, e não apenas como simples mecanismos de suscitação efeitos sensoriais. No entanto, além dessas reflexões, será demonstrado que toda essa atmosfera que caracteriza a possibilidade da presença do insólito se ergue a partir de uma realidade que talvez seja ainda mais assustadora do que a supostamente sobrenatural, uma vez que diz respeito às deploráveis ações a que o indivíduo é capaz, após atingir um elevado grau na escala de miserabilidade social. PALAVRAS-CHAVE: Horror; Medo; Sobrenatural; Insólito; Miséria. Em “Crianças à venda. Tratar aqui”, conto que abre o livro Sete ossos e uma maldição, de Rosa Amanda Strausz, o que logo salta aos olhos é a força com que o signo da miséria conduz a movimentação dos personagens. Marialva, uma mulher muito pobre, vivendo em “Um casebre miserável, perdido numa curva do rio, sem eletricidade, sem comida, sem dinheiro, sem remédio, sem nada”, e sem a mínima condição econômica de dar conta da criação de seus filhos, encontra na comercialização de sua prole a forma ideal para a melhora de sua qualidade de vida. Quando Marialva decide vender os filhos, estavam vivos apenas cinco dos nove que teve, os outros quatro haviam morrido em consequência das condições de misérias a que estavam expostos. Curiosamente, o ato cruel de converter os filhos em mercadoria provinha não apenas no anseio de ascensão social, mas também do medo de que os que ainda estavam vivos pudessem também ser entregues ao mesmo triste destino dos irmãos mortos. No início, então, o conto apresenta a morte como uma consequência inevitável do processo de degradação social. No entanto, como resultado desse processo de extrema miserabilidade, o medo da morte que assola a personagem não é compartilhado também pelo leitor. Este, antes, é tomado pelo sentimento de repulsa, causado tanto pelo quadro 22 Mestre em Literatura Brasileira (UFRJ) Julio França (org.) 50 de miséria que foi desenhado, quanto pela radical atitude da mãe. Aqui, o leitor é atingido não apenas no âmago de seus códigos morais, mas também no cerne de sua estrutura emocional. Diante, então, dessa atitude (que para o leitor pode soar fria e desumana, mas para a personagem reflete nada mais que o instinto de autopreservação), Marialva começa a vender os filhos e a se convencer de que esse é realmente o caminho mais eficaz para se distanciar definitivamente do mau agouro da miséria perene. O primeiro filho vendido, Tião, comprado por uma família dos Estados Unidos, é um exemplo de que fizera a coisa certa. Pois, um mês depois da viagem do filho, ela recebe uma foto do menino, “limpo e sorridente, bem vestido e já mais gordinho, no meio de brinquedos e livros novos, e abraçado a seus novos pais”. Ao ver a foto, o contraste entre o cenário no qual o filho vendido é apresentado e o quadro em que ela se encontra ajuda a tornar sua atitude mais amena aos olhos leitor, que é levado a repensar seus códigos éticos, tornando-se de algum modo, digamos, mais “corruptível”. E com a venda dos outros filhos Francineide e Ronivon, o texto torna ainda mais aguda a justificação do ato de Marialva, sobretudo quando nos explicita o destino que o dinheiro da venda das crianças rendeu à matriarca, ou seja, “uma cabra, três galinhas, um cobertor para as noites frias, sabão de tomar banho e uma panela nova”. A venda do próximo filho, Fabiojunio, ocorreu sem problemas para Marialva. No entanto, quando a família compradora manda as fotos do menino para a mãe, novos elementos são inseridos na trama. Ao contrário do que ocorrera com os primeiros três filhos vendidos, este não demonstrava a mesma felicidade. Na verdade, Marialva não percebera nenhuma diferença, sobretudo porque a foto viera acompanhada de uma nova soma em dinheiro, o que reforçava sua convicção de que efetuara um grande negócio. Quem, na verdade, nos alerta para a estranheza da foto é Simara, a filha mais velha, que só não foi vendida porque já passara da idade, já completara 10 anos, ficando, assim com a tarefa de ajudar a mãe nos afazeres domésticos. Ao contrário dos outros irmãos, Simara percebe no desenho um outro cenário, no qual o menino “Estava sozinho, de pé, com os braços estendidos ao longo do corpo, no meio daquele jardim imenso. Parecia triste”. Este é um quadro aparentemente corriqueiro, que poderia simplesmente refletir o estado de espírito do garoto, que poderia estar triste em face ao distanciamento da família, por exemplo. No entanto, para o leitor, que já se aproximara do texto com a consciência aberta para a possibilidade de eventos insólitos, isso parece ser já um indício da ocorrência de algo mais significativo. A cada foto enviada, acompanhada de INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 51 certa quantia em dinheiro, Marialva ficava mais feliz, ao mesmo tempo em que Simara percebia uma maior estranheza no aspecto cada vez mais cadavérico do irmão. Assim, ao mesmo tempo em que a matriarca sente-se cada vez mais feliz, pensando em comprar um fogão e ter “comida todos os dias”, o aspecto do filho vai ficando cada vez mais soturno, preocupando cada vez mais a pequena Simara. Na última vez em que recebera a carta, no entanto, Simara decide olhar a foto mais detalhadamente, e percebe, estarrecida, que seu irmão estava mutilado, pois no lugar de seus olhos, estavam apenas dois pequenos buracos fundos e negros. Quando ela vai à igreja procurar ajuda, os aspectos sobrenaturais já começam a se desenhar com mais nitidez, não propriamente pela aparência macabra do menino, mas pela atitude do padre que, procurado por Simara, a acompanha até cidade em que reside a família compradora, e leva uma pesada cruz de prata e um vidro de água benta. A atitude do padre nos fornece indicações de que algo localizado além do plano físico pode já estar atuando. Quando vai procurar o pároco da igreja da cidade, é registrada a primeira indicação explícita da atuação do sobrenatural, pois, segundo o texto, “As fotos diziam claramente que se tratava de um caso de bruxaria”. Aqui, o texto atinge um estágio bastante significativo, impulsionado pelos sentimentos de estranhamento e incerteza, baseados na possibilidade de atuação de forças de um mundo comandado por leis desconhecidas. Sob o ponto de vista do leitor, essa mesma sensação, acompanhada por sentimentos igualmente desconfortáveis, como a expectativa da ocorrência de fatos que podem comprometer sua integridade física, encontra-se numa espécie de encruzilhada paradoxal. Pois, da mesma forma que o desconforto é causado pelo medo de que algo de maligno possa atingir os personagens, o prazer é o produto da absoluta certeza de que esse mesmo leitor está totalmente imune às consequências do contato de tais forças maléficas. Como afirmam nomes ligados ao gênero, como Lovecfart, na recepção de uma obra, na qual o resultado do processo de realização estética é sobretudo incitar a sensação de medo, está a certeza que esse mesmo medo pode ser algo extremamente agradável para a consciência do leitor, uma vez que já está implícita a segurança de se estar completamente imune às ações dos sujeitos causadores desse medo. Essa inclinação ao prazer do medo, de certa forma, pode ser entendida, a partir da afirmação de Lovecraft, na qual o medo é “A emoção mais antiga e mais forte da humanidade...”. Sensações como a dor ou o receio de que algo terrível possa nos acontecer podem nos fazer entrar em contato com os campos mais sensíveis de nossa consciência. Esse tipo de sentimento pode ser, segundo Edmund Burke, muito mais Julio França (org.) 52 poderoso e significativo que sensações prazerosas. E uma obra de arte literária, por exemplo, pode nos pôr em contato com essas sensações por intermédio de arranjos estéticos, dos quais podemos tirar proveito dos sentimentos mais tenebrosos, sem o risco de sermos vítimas desses atores. Neste sentido, quando Simara e o padre (munido de cruz a água benta, sob a certeza de que se trata de um caso de bruxaria) vão em busca de algo ainda totalmente encoberto pelo véu da incerteza, passamos a estar diante do tipo de medo, segundo Lovecraft, mais antigo e poderoso, ou seja, o “o medo do desconhecido”. Se a menina e o padre fossem em busca do menino desaparecido, com a certeza de que se tratasse de alguma ação de sádicos que tinham por diversão arrancar os olhos de crianças, ou de uma gangue que atuasse no ramo de comercialização de órgãos, por exemplo, essa mesma sensação de medo não atingiria o auge de sua magnitude, pois os caminhos aí já estariam traçados, limitados pela realidade não menos cruel da violência urbana. Mas os personagens, além de não saberem o que os espera, ainda estão envolvidos pelo temor da atuação de forças sobrenaturais. Aqui, o medo do desconhecido é oriundo da possibilidade de se tratar de algo que escape à realidade imediata, algo situado no além-matéria que é imune às formas físicas de defesas. No entanto, tal sensação de incerteza experimentada pelos personagens vai se concretizando em terror quando, ao chegar à igreja da cidade, descobrem que o endereço da família compradora não existe. Aqui, a relação entre a foto de Fabiojunio em uma casa que já não mais existe aproxima ainda mais os personagens da ação de um elemento sobrenatural. Afinal, como alguém poderia tirar uma foto em um lugar que já não mais existe? Obviamente, nossa inclinação para ir ao encontro de explicações lógicas nos leva a acreditar que a misteriosa família pode ter fotografado o garoto em outro lugar que não a do endereço declarado. No entanto, uma afirmação do padre local trata de dissolver essa possibilidade lógica. Ao verificar o endereço e perceber o ar aflito em que se encontra a menina, ele afirma: “Seu irmão está morto.” E arremata, estabelecendo de vez a atmosfera de terror, antes apenas sugerida por uma cadeia de possibilidades: “Preparem-se para ver uma coisa terrível.” Na literatura, ao contrário de veículos audiovisuais, como o cinema, por exemplo, o elemento causador do susto só pode ser construído a partir de um encadeamento de signos verbais que, em determinado ponto, atingem o ápice da sensação de terror. No cinema, há o recurso do súbito, sobretudo pela possibilidade de as imagens já estarem condicionadas apenas ao seu próprio poder de autossignificação. Na literatura, tais imagens só chegam à consciência do leitor por meio de um INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 53 encadeamento de palavras. Assim, o horror oriundo de uma obra literária é munido de uma característica singular, na qual não há a possibilidade do súbito. Assim, o susto, que numa obra audiovisual pode ser conseguido por meio do aparecimento repentino de uma imagem impactante, num texto, é sempre construído de acordo com a forma com que o enunciado estruturado. Ao falar acerca de questões relacionadas ao prazer do medo, o cineasta Alfred Hitchcock acaba adotando uma postura bastante particular (mas ainda sim digna de menção) sobre a diferença entre o terror e o suspense. Como sua principal área de atuação foi o audiovisual, Hitchcock acaba estabelecendo bem a distinção entre a construção do medo produzido para as telas daquela feita para as páginas. Para ele, a diferença entre suspense e terror estaria exatamente no caráter súbito com o qual a cena é construída. Segundo o cineasta, não há a possibilidade de existência de terror se não houver a presença do súbito. Assim, o terror está necessariamente ligado à ideia de estarrecimento em relação a algo ocorrido repentinamente. Qualquer movimentação que escape a essa regra, já estaria inserido no universo do suspense. É claro que não poderemos aplicar esse princípio ao discurso literário, exatamente pela sua incapacidade de construção do súbito, consequência da própria natureza do discurso verbal. Assim, se aplicarmos a teoria de Hitchcock à realidade literária, chegaríamos à equivocada conclusão de que seria impossível existir literatura de terror. Na verdade, a natureza do discurso literário de terror é proveniente de uma outra ordem. E a consciência receptiva do leitor, de alguma forma, já se aproxima de uma obra literária de terror com a consciência alerta para essas diferenças de linguagem. Um leitor de horror já se aproxima do texto envolvido pela expectativa do desconforto, do medo, e até de estarrecimento, mas não do susto. A obra literária sugere uma forma de recepção mais particular, na qual a mais súbita das cenas estaria, ainda sim, sujeita à inevitável vagarosidade do encadeamento lógico de palavras. Neste sentido, embora estejam intimamente ligados pelas emoções que compartilham, leitor e personagens experimentam sensações distintas de terror. O súbito da imagem presenciada pelo personagem chega à consciência do leitor de outra forma. E é nessa posição que estão Simara e o leitor, quando ela constata que o casarão no qual seu irmão tirara a foto na semana anterior é, na verdade, um casarão abandonado havia anos: “Ao olhar para a cena, Simara deu um grito. Reconheceu, ao longe, o casarão abandonado. No entanto, à sua frente, erguia-se uma ruína, abandonada havia anos meio ao terreno desolado”. Para reforçar o estarrecimento da personagem, o texto não deixa dúvida de se tratar Julio França (org.) 54 realmente do mesmo local: “Não havia dúvida nenhuma, era a casa da foto. Ou era a casa como teria sido muitas décadas atrás.” O objetivo do texto é mostrar a perplexidade da menina ao constatar que uma força misteriosa poderia estar agindo naquele episódio. Ao perceber a possibilidade da ação de forças desconhecidas, sacramenta-se e presença daquilo que Lovecraft chamou de “medo cósmico”. O sentimento resultante da ameaça de algo situado no exterior do imediatamente explicável. O mistério supramaterial do maligno. E é diante desses quadros, cuidadosamente expostos por meio de uma sucessão arranjos verbais, que o mistério do horror se estabelece. Mas curiosamente, mesmo com o estabelecimento de toda essa atmosfera, o medo não chega a tingir nossa pequena heroína. Embora a narrativa tenha incitado o sentimento do medo no leitor, em Simara o que se sobressai é a esperança de encontrar seu irmão, mesmo diante dos cada vez mais evidentes traços de atuação do elemento sobrenatural. Simara “não tinha medo”, diz o texto, “não sentia nada além de uma urgência imensa e de uma esperança meio improvável de ainda encontrar o irmão”. Mas é exatamente a ausência desse sentimento que vai sacramentar o fim das esperanças de nossa pequena heroína, quando ela avista um antigo cemitério com nove tumbas, duas delas em que estão as fotos do casal que levara seu irmão, com a data da morte, ocorrida cinquenta anos antes, e mais sete pequenos jazigos. No último, a foto de seu irmão, a mesma foto que lhe fora enviada na semana anterior. No entanto, como se trata de uma heroína de apenas 10 anos, é importante afirmar, portanto, que estamos diante de um indivíduo com a consciência ainda em formação, na qual não há ainda muito espaço para a surpresa do insólito. Ao mesmo tempo em que as fronteiras emocionais estão ainda bastante indefinidas, a sensibilidade de uma criança ainda está aberta a possibilidades da ocorrência de fatos que estejam em desacordo com a lógica racional de um adulto. Assim, da mesma forma que o medo deu lugar à coragem para buscar seu irmão, agora, ao presenciar aquele estranho fato, e consciente da impossibilidade de salvar o irmão, Simara não se estarrece, e nem tenta traçar um caminho intelectual que possa dar sentido àquela sucessão de acontecimentos absurdos. Na verdade, como afirma o texto, “tudo o que Simara queria era voltar para casa e contar para a mãe o que tinha descoberto.” Para ela, não pesa o estranho fato de seu irmão estar morto e enterrado, ao mesmo tempo em que aparece em uma foto numa casa que não já existe. Para ela, o que importa, sobretudo, é a perda do irmão. Ao retornar para casa, no entanto, a figura da mãe traz de volta à cena a força do signo da miséria. Ao chegar em casa, a expectativa se encontrar uma mãe preocupada, INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 55 devido ao zelo que deveria ter pelos filhos, logo é quebrada, pois “A velha senhora estava radiante quando abriu a porta para a filha.” E aqui acrescenta-se à história um novo elemento insólito, quando a mãe se dirige à filha, tranqüila e contente: “Porque você não disse que ia visitar seu irmão? Perguntou a mulher com um sorriso.” E antes que a menina esboce qualquer reação em relação à estranha declaração de Marialva, esta lhe mostra um envelope com uma foto. O parágrafo referente é bem significativo, pois representa um outro ponto de virada na narrativa, na qual nossa heroína converte-se em mais uma vítima dessas misteriosas forças do mal: Simara avançou para o envelope. A primeira coisa que viu foi a foto. Uma foto dela, vestida com roupas elegantes e antiquadas, de pé, braços estendidos ao longo do corpo, no pátio dos fundos da casa, onde havia o cemitério, embora a foto não mostrasse cemitério algum. Só um bonito jardim, com o gramado muito bem cuidado e árvores frondosas ao fundo. Inexplicavelmente, a heroína agora passava a vítima da mesma força maligna e misteriosa a que tinha sido vítima o seu irmão, indicando, com isso, que o desconhecido continuava atuando, mesmo quando o elemento narrativo não apontava para tal. A única ponte de ligação dos fatos é a mãe. As forças malignas representadas pelo estranho casal lançaram mão da força da miséria da mãe para tomar posse das crianças. Ou seja, o insólito, o sobrenatural, o maligno, o além-matéria, aqui, atuam tendo o aspecto social, ou seja, a miséria, como o seu grande veículo de realização. A mãe não abre espaço para explicações. Suas pretensões de ascensão de status (sejam sejam essas pretensões acompanhadas pela preocupação com a qualidade de vida dos filhos ou não) não abrem espaço para conjecturas sobre forças extramateriais. E antes que sua filha, estarrecida, falasse algo, suas palavras selam o destino de nossa pequena heroína, agora vítima: “Leu a carta? Eles ficaram encantados com você! E completou: “E vêm buscá-la hoje mesmo, à noitinha. Você nem imagina como me pagaram bem!”. E o conto termina sem explicações definitivas, mas com as portas abertas para um vasto campo de possibilidades. As questões sobrenaturais evidentes, a diferença entre a casa da foto e a que Simara conhecera, o cemitério com as sepulturas de um casal morto há cinquenta anos, mas que foi à casa de Simara comprar seu irmão e, posteriormente, a ela mesma, são todas questões não elucidadas, que fazem parte do arranjo construtivo do conto, e que reforçam ainda mais a atmosfera misteriosa da trama. Julio França (org.) 56 CONCLUSÃO Apesar de não se mostrar explicitamente, mesmo com algumas indicações de texto, o elemento sobrenatural é latente no desenvolvimento do conto. No entanto, podemos observar que, mesmo tratando do medo cósmico, do medo do desconhecido, este não é o veículo impulsionador do texto. Na verdade, o grande motor de desenvolvimento da trama é o processo de degradação social a que pode chegar o ser humano. É ele o grande trampolim para o desenvolvimento do elemento sobrenatural. Na verdade, o conto é um grande duelo de forças entre o horror sobrenatural, caracterizado pelo misterioso casal, e a deterioração social, caracterizada pela extrema miséria de Marialva. Os momentos finais do conto são bastante representativos nesse aspecto. Ao voltar para casa, ainda consternada pelos terríveis e misteriosos acontecimentos que vitimaram seu irmão, Simara não encontra uma mãe aflita, pronta para compartilhar com ela e o leitor, os inexplicáveis acontecimentos. Sua mãe, que já havia perdido quatro de seus nove filhos para a miséria, entregava de bom grado os dois últimos de sua prole para o macabro. No entanto, esse mesmo elemento macabro que parecera tão incômodo aos olhos do leitor, representava para ela, a mãe, um promissor sinal de ascensão social, um alívio do implacável e lancinante fardo da pobreza. Para ela, medo é oriundo do instinto de autopreservação da morte social. A degradação social, para Marialva parece muito mais amedrontador que o elemento macabro, causador do medo cósmico. Por isso, ela não percebe a evolução do aspecto cadavérico de seu filho com os constantes envios das cartas do casal misteriosos. Exatamente porque, acompanhada dessas cartas, estava certa quantia em dinheiro, que a aliviava de algo para ela bem mais maligno, exatamente por ser mais imediato. Assim, esse entroncamento de forças é um bom exemplo de como uma obra pode funcionar como cenário de batalha entre dois segmentos. Se por um lado, temos um aspecto do horror sobrenatural capaz de fazer com que o leitor, por intermédio do prazer sublime do desconforto, se desgarre da realidade física de sua vida cotidiana, por outro, temos a força da miséria social puxando-o de volta, como que o alertando para o fato de que, em alguns momentos, a urgência das mazelas humanas, causadas pela degradação social, pode parecer bem mais assustadora, uma vez que diz respeito a uma realidade mais fiel à nossa, parecendo, então, muito mais sólida, muito mais cruel. INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 57 REFERÊNCIAS: CAUSO, Roberto de Souza. Ficção cientifica, fantasia e horror no Brasil: 1875 a 1950. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. FRANÇA, Julio. “O horror na ficção literária; reflexão sobre o ‘horrível’ como uma categoria estética.” In:______. Anais do XI Congresso Internacional da Abralic. São Paulo, 2008 [no prelo]. GOTTLIEB, SIDNEY (org.). Hitchcock por Hitchcock: coletâneas de textos e entrevistas. Rio de Janeiro: Imago. 1998. KING, Stephen. Dança macabra: o fenômeno do horror no cinema, na literatura e na televisão dissecado pelo mestre do gênero. Tradução de Louisa Ibañez. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. LOVECRAFT, Howard Phillips. O horror sobrenatural em Literatura. Tradução de Celso M. Paciornik. Apresentação de Oscar Cesarotto. São Paulo: Iluminuras, 2007. STRAUSZ, Rosa Amanda. Sete ossos e uma maldição. Rio de Janeiro: Rocco, 2006. TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2007. Julio França (org.) 58 Fontes e sentidos do medo como prazer estético Júlio FRANÇA 23 1. INTRODUÇÃO O simpósio “O medo como prazer estético: o insólito, o horror e o sublime nas narrativas ficcionais”, realizado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, nos dias 29, 30 e 31 de março de 2010, no âmbito do II Encontro nacional do insólito como questão na narrativa ficcional, pretendeu, a partir da leitura de narrativas ficcionais, refletir sobre o medo como uma emoção estética produzida pela criação literária. Inerente à natureza humana, o medo está intimamente ligado aos mecanismos de proteção contra o perigo. Sendo uma emoção relacionada aos nossos instintos de sobrevivência, a experiência humana do medo vem quase sempre acompanhada pela consciência de nossa mortalidade. O medo atávico em relação ao nosso derradeiro destino é a garantia da atração e da universalidade de uma longa tradição de narrativas que tematizam o mistério da morte – sua insondabilidade, sua inexorabilidade. No presente ensaio, pretendemos refletir sobre os sentidos extraliterários do medo e sobre suas relações com o que chamaremos aqui de literatura do medo – aquelas narrativas ficcionais que o senso comum agrupa sob termos concorrentes e sobrepostos, tais como “horror”, “gótico”, “dark fantasy”, “sobrenatural”, “terror”, entre outros, mas que manteriam, como elemento comum, uma reconhecida capacidade e/ou intenção de produzir esse efeito característico. 2. SENTIDOS DO MEDO “O medo é a coisa de que mais medo tenho no mundo”, diz Michel de Montaigne (1991, p. 40) no ensaio Do medo, em que reflete sobre a referida emoção. Chamava-lhe a atenção como o medo seria capaz de nos arremessar para fora da área de controle do bom-senso. Ao citar o poeta latino Ênio – “o pavor expulsa então de meu coração toda sabedoria” (apud ibidem, p. 41) –, Montaigne revela-nos sua admiração – e 23 Doutor em Literatura Comparada (UFF). Professor Adjunto de Teoria da Literatura (UERJ). INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 59 temor – por um sentimento capaz de alterar nossas crenças morais, nosso senso do dever, nossas cognições e nossas percepções da realidade. Para Montaigne, as causas do medo são secundárias. A força dessa emoção residiria exatamente na possibilidade de ela aflorar, independentemente da racionalidade, razoabilidade e justeza das suas causas 24 . Isso porque o medo é uma experiência passiva, algo que experimentamos à revelia de nossa vontade. Não é, porém, neutro como as sensações: é uma emoção, e como tal, carregada de afetos. O medo não é uma pura informação sobre o mundo à nossa volta, mas o resultado de um juízo que fazemos sobre o mundo – sobre o quão ameaçadores objetos, seres ou eventos podem ser. O medo é uma emoção negativa e associada a um sofrimento singular: sofre-se não por algo que esteja ocorrendo no presente, mas que poderá vir a ocorrer. Em seus extremos estão a incerteza e o desespero: a primeira acompanha o medo de algo que é incerto; o segundo, de algo que é inexoravelmente fatal. Sendo um sentimento negativo, provocado por uma idéia de que sofreremos no futuro, muitos filósofos o trataram como uma dor ilusória, uma paixão inútil, que nos faz sofrer duas vezes: na antecipação da dor e na dor propriamente dita. O medo não é, contudo, desprovido de um lado positivo. Ele está intimamente ligado aos mecanismos de autopreservação. Não apenas os seres humanos, também os animais experimentam o medo quando expostos a situações que representem riscos às suas vidas. As reações dos animais às ameaças foram descritas e nomeadas por Walter Bradford Cannon 25 com a já célebre expressão fight or flight response. O biólogo observou que, em situações de ameaça, os mamíferos em geral apresentavam um conjunto de alterações fisiológicas provocadas pelo sistema nervoso simpático: aceleração ou diminuição dos batimentos cardíacos, respiração muito rápida ou muito lenta, o aumento da pressão arterial, descargas de adrenalina, paralisação ou exteriorização violenta etc. Mais recentemente, pesquisadores 26 ampliaram a descrição 24 Como na frase célebre de Franklin Delano Roosevelt, no seu “Discurso de Posse”, em 1933: “So, first of all, let me assert my firm belief that the only thing we have to fear is fear itself – nameless, unreasoning, unjustified terror which paralyzes needed efforts to convert retreat into advance.” (In: ROSENMAN, Samuel, ed. The Public Papers of Franklin D. Roosevelt, Volume Two: The Year of Crisis, 1933. Nova Iorque: Random House, 1938). 25 In: CANNON, Walter Bradfor. Bodily Changes in Pain, Hunger, Fear and Rage: an account of recent researches into the function of emotional excitement. Nova York: Appleton, 1915. 26 Ver GRAY, Jeffrey Alan. The Psychology of Fear and Stress, 2nd ed. Cambridge, Cambridge University Press, 1988. Julio França (org.) 60 das reações possíveis de medo diante das ameaças e propuseram a expressão expandida "freeze, flight, fight, or fright response". Além da fuga e da luta, outras duas reações distintas a situações aterradoras foram acrescentadas: o freeze response – correspondente a um processo de hiperatenção e de alerta, em que o indivíduo concentra-se, “parando, olhando e escutando”, para perceber os sinais da ameaça à sua volta – e a fright response, o momento em que a presa “finge-se de morta”, em uma imobilidade tônica muito similar aos sintomas de pânico observados em casos de stress pos-traumático em humanos 27 . A íntima relação entre o medo humano e nossos instintos mais primitivos de sobrevivência leva-nos a lembrar que a experiência do medo vem quase sempre acompanhada da consciência de nossa finitude. Contudo, apenas nós, humanos, estamos cientes de que a morte é inevitável 28 . A consciência da morte garante-nos poder temê-la, mesmo quando nossas vidas não se encontram sob ameaça imediata: eis o mais humano de todos os medos, algo que Hughes Lagrange (1996, p. 173) chamaria de medo derivado, a noção que temos de nossa vulnerabilidade e de estarmos sempre suscetíveis a perigos que não se manifestam claramente. Essa tão humana sensação de insegurança interfere em nossa vida e em nossas escolhas, e é consequência da própria consciência da inevitabilidade de nossa morte e do reconhecimento da instabilidade de nossa existência. Tal sentimento de desproteção é alimentado continuamente pela memória de ameaças passadas, por relatos de experiências de risco alheias, por nossas convicções sobre os perigos a que estamos submetidos etc. 3. FONTES DO MEDO Outro aspecto singular do medo humano está diretamente relacionado ao fato de ele prescindir da “presença” de sua causa: muitas vezes, sequer somos capazes de objetificar a origem de nosso medo. Nesses casos, somos tomados pelo que costumamos chamar de angústia 29 – a experiência do medo onipresente, tão comum em nossa 27 Cf. BRACHA, H. Stefan et al. Does "Fight or Flight" need updating? In: Psychosomatics 45:448-449, October 2004. Disponível em: http://psy.psychiatryonline.org/cgi/content/full/45/5/448. Acesso em 08 de março de 2010. 28 Para Hegel, o homem era o animal mortal que deixa de ser animal quando se entende mortal (apud WOLFF, 2007, p.19) 29 Falamos aqui em “angústia” não no sentido utilizado por Freud, em sua análise do aparelho psíquico, que denominava de “angústia” ao conflito entre a vontade do Id e a repressão do Superego, mas em um sentido aproximado ao empregado por Soren Kierkegaard, para quem a necessidade humana de projetar INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 61 sociedade contemporânea. Citando Craig Brown, Zygmunt Bauman comenta sobre como temos sido submetidos a um inventário de perigos constantemente renovados: Por toda parte, houve um aumento das advertências globais. A cada dia surgiam novas advertências globais sobre vírus assassinos, ondas assassinas, drogas assassinas, icebergs assassinos, carne assassina, vacinas assassinas, assassinos assassinos e outras possíveis causas de morte iminente (Craig Brown apud BAUMAN, 2008, p. 12). O homem contemporâneo é bombardeado pelo alardeamento constante de que o mundo é um lugar perigoso. Independentemente da efetiva letalidade dessas inúmeras ameaças (bugs do milênio, ácaros de tapete, vítimas da doença da vaca louca, fatalidades por causa de alimentos geneticamente modificados, atos terroristas, balas perdidas), elas são tantas, tão disseminadas e tão pouco controláveis por nós que, na ocasião em que nos defrontamos com uma fonte explícita do medo, experimentamos, como comenta Bauman (2008, p.7), um tipo de alívio que sucede ao desconforto e à ansiedade de não se reconhecer o perigo real. Diante de uma ameaça visível e material podemos, ao menos, refletir sobre nossas possibilidades de superá-la. O medo é mais assustador quando difuso, disperso, indistinto, desvinculado, desancorado, flutuante, sem endereço nem motivo claros; quando nos assombra sem que haja uma explicação visível, quando a ameaça que devemos temer pode ser vislumbrada em toda parte, mas em lugar algum se pode vê-la. “Medo” é o nome que damos a nossa incerteza: nossa ignorância da ameaça e do que deve ser feito (...) (ibidem, p. 8). Para Bauman, aquilo que não conseguimos administrar nos é desconhecido e tudo o que é desconhecido nos é assustador. “Medo”, diz ele, “é outro nome que damos a nossa indefensabilidade” (ibidem, p. 125). Muitos autores de ficção de horror compartilham da ideia de que o desconhecido é uma fonte de medo. H. P. Lovecraft (2007), por exemplo, defendia a existência de uma relação fundamental entre a ficção de horror e as origens primitivas de nossas crenças em realidades sobrenaturais. Enquanto os aspectos positivos do desconhecido teriam sido, desde muito cedo na história do homem, capitalizados e formalizados pelos rituais religiosos convencionais, o lado mais sombrio e maligno dos mistérios cósmicos acabaria encampado pelas narrativas populares e folclóricas. incessantemente o futuro e se deparar, no limite, com a morte era a causa desse sentimento de ameaça imprecisa e indeterminada. Julio França (org.) 62 Incerteza e perigo seriam as catalisadoras das narrativas sobrenaturais populares. O desconhecido representaria uma fonte constante de possibilidades perigosas e malévolas. A combinação entre a sensação do perigo, a intuição do mal, o inevitável encanto do maravilhoso e a curiosidade possuiria uma vitalidade inerente à própria raça humana. Lovecraft dava ênfase a um certo tipo de narrativa de horror – a “literatura de medo cósmico”, cuja característica principal é estar relacionada com os resquícios de nossa consciência primitiva, sempre suscetível a crenças em realidades obscuras, desconhecidas e à margem daquilo que entendemos por natural. Ele avaliava como esteticamente superiores as narrativas de horror que tomam como tema o desconhecido ou eventos que estejam para além das leis naturais e que privilegiam os efeitos do medo “cósmico” no leitor, em detrimento dos efeitos do medo “físico” 30 . Em sua História do medo no Ocidente, Jean Delumeau (2001, p. 14-5) demonstrou como, tradicionalmente, sentir medo sempre foi visto como algo vergonhoso. Indicaria tibieza de caráter, origem plebéia e ausência de virilidade, e realçaria o contraste entre a coragem heróica do nobre e a covardia do homem comum. Quando, porém, a fonte do medo é o desconhecido, covardes e corajosos parecem se igualar. Nas palavras do personagem sem nome do conto “O medo”, de Guy de Maupassant: O medo (e os homens valentes podem sentir medo) é algo terrível, uma sensação atroz, uma espécie de dilaceramento da alma, um tremendo espasmo da inteligência e do coração, cuja simples lembrança nos faz estremecer de angústia. Mas quando se é corajoso, isso não acontece diante de um ataque, nem diante da morte inevitável, nem diante de qualquer das formas conhecidas do perigo; isso acontece em determinadas circunstâncias anormais, sob determinadas influências misteriosas e diante de riscos vagos (MAUPASSANT, 1997, p. 28). O potencial fóbico do desconhecido residiria tanto em sua imprevisibilidade quanto em nossa incapacidade de enfrentá-lo de modo racional. Não é por acaso, portanto, que os temas sobrenaturais são uma constante na ficção do medo. Mas as fontes de temor são mais vastas e diversificadas. Freud, em “Civilization and its discontents”, enumera três possíveis fontes do sofrimento e, por extensão, do medo: O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode 30 Cf. FRANÇA, Julio. Fundamentos estéticos da literatura de horror; a influência de Edmund Burke em H. P. Lovecraft. In: GARCIA, Flávio (org.) Cadernos do Seminário Permanente de Estudos Literários. (no prelo). INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 63 dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com os outros homens. O sofrimento que provém dessa última fonte talvez nos seja mais penoso do que qualquer outro. Tendemos a encará-lo como uma espécie de acréscimo gratuito, embora ele não possa ser menos fatidicamente inevitável do que o sofrimento oriundo de outras fontes (FREUD, 1974, p. 95). Bauman desdobra o pensamento freudiano e procura categorizar nossa relação com o medo a partir do grau de previsibilidade dos perigos. A ciência contribuiu e contribui cada vez mais decisivamente para prever, amenizar e conter as ameaças provindas de nosso próprio corpo e da Natureza – embora, no segundo caso, tenhamos acompanhado a disseminação de crenças na reação do planeta às desregradas intervenções humanas, através de catástrofes naturais cada vez mais frequentes. Mas a percepção de nossa sociedade sobre os riscos representados pelos outros homens é a de que a aleatoriedade da ação humana atingiu níveis de indeterminação jamais experimentados 31 . Parecemos convencidos de que nossos pares são capazes de produzir males “tão cruéis, insensíveis, empedernidos, aleatórios e impossíveis de prever (muito menos cortar pela raiz) quanto o foram o terremoto, o incêndio e o maremoto de Lisboa” 32 (Bauman, 2008, p. 85). A modernidade e o canto eufórico do progresso podem ter trazido ao homem a falsa expectativa de um presente livre das causas do medo. Bauman (2008, p. 170) comenta que embora aqueles que vivam hoje na parte “desenvolvida” do mundo sejam, estatisticamente, “o povo mais seguro da história da humanidade”, a sensação de medo dos outros seres humanos é crescente. Para o sociólogo polonês, pelo menos desde o julgamento dos criminosos nazistas – cujos testes psicológicos revelavam serem homens comuns, apenas cumprindo suas obrigações – aprendemos que monstruosidades não são cometidas apenas por “monstros”: A lição mais devastadora de Auschwitz, do Gulag ou de Hiroshima, do ponto de vista moral, não é que poderíamos ser postos atrás do arame farpado ou enviados à câmara de gás, mas que (nas condições 31 Bauman (2008, p. 79), baseado nos trabalhos de Susan Neiman (Evil in modern thought: an alternative history of philosophy. Princeton University Press, 2002) e de Jean-Pierre Dupuy (Petite métaphysique des tsunamis. Seuil, 2005), comenta que os filósofos modernos separaram a aleatoriedade dos desastres naturais da intencionalidade ou premeditação dos males morais. 32 Por outro lado, lembra Bauman (2008, p. 106), os desastres naturais parecem cada vez mais “seletivos”, isto é, suas principais vítimas são quase sempre aqueles alijados dos benefícios do mundo contemporâneo: “é (...) gritante que a aparente seletividade dos desastres ‘naturais’ deriva de uma ação humana moralmente pregnante”. Julio França (org.) 64 adequadas) poderíamos ficar de sentinela ou espargir cristais brancos em chaminés. E não que uma bomba atômica pudesse cair sobre nossas cabeças, mas que (nas condições adequadas) nós poderíamos lançá-la sobre as cabeças de outras pessoas (ibidem, p. 89). Nas condições ideais, cada um de nós é capaz de se transformar em um monstro. A literatura do medo explora continuamente essa apavorante ideia: tome-se, por exemplo, o recorrente topos do “duplo”, em que a contemplação de um “outro eu” encerra o terror de descobrir sermos quem somos – como em The strange case of Dr. Jekill and Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson. Pelo menos desde as últimas décadas do século XX, o medo gerado por eventos produzidos por causas humanas se faz muito presente nesse gênero de ficção. Não parece ser acidental, portanto, que o sucesso de um escritor como Stephen King seja apontado pela crítica literária como consequência de sua escolha por ambientar suas histórias de horror na vizinhança de seu leitor e por procurar nas trivialidades do cotidiano os gatilhos do medo. Em O iluminado, romance exemplar de sua carreira, nenhuma ameaça sobrenatural equipara-se ao horror da violência familiar. 4. O MEDO ARQUETÍPICO Embora o medo do outro pareça ser a variante hegemônica em nossa sociedade, o desconhecido ainda desempenha um papel fundamental na ficção do medo. Ele é a mola mestra de narrativas que exploram uma região da experiência humana sobre a qual a ciência, o discurso da verdade logicamente demonstrada, pouco tem a dizer. Os desvãos entre a fé religiosa e o conhecimento científico parecem ser o habitat ideal dessas histórias que aproveitam o fato de que as respostas da Ciência à inevitabilidade da morte ainda soem, muita vezes, tão precárias quanto as do Mito. O próprio Freud traçava paralelos entre o comportamento humano em relação ao medo da morte e as antigas concepções animistas do universo: É como se cada um de nós houvesse atravessado uma fase de desenvolvimento individual correspondente a esse estágio animista dos homens primitivos, como se ninguém houvesse passado por essa fase sem preservar certos resíduos e traços dela, que são ainda capazes de se manifestar, e que tudo aquilo que agora nos surpreende como “estranho” satisfaz a condição de tocar aqueles resíduos de atividade mental animista dentro de nós e dar-lhes expressão (FREUD: 1996, p. 257-8). INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 65 Para Freud, em nosso desenvolvimento como indivíduos vivenciaríamos uma fase, especificamente na infância, em que nossas atividades mentais se aproximariam das do homem primitivo: idéias de que o mundo é povoado por espíritos, crenças nas mais diversas técnicas mágicas, o assombro contínuo diante de um mundo repleto de proibições e ameaças. Através de um processo racional de educação, tais resquícios ancestrais foram sendo gradativamente reprimidos, mas permaneceriam latentes e suscetíveis a serem ativados nas circunstâncias ideais: Todas as pessoas supostamente educadas cessaram oficialmente de acreditar que os mortos podem tornar-se visíveis como espíritos, e tornaram tais aparições dependentes de condições improváveis e remotas (ibidem, p. 259-60). Freud estava ciente de que uma das principais fontes do medo eram as experiências de algum modo relacionadas à morte – cadáveres, suposto retorno dos mortos, espíritos, fantasmas etc. Isso se deveria à limitada evolução do nosso conhecimento sobre tais assuntos: “Dificilmente”, diz ele, “existe outra questão (...) em que as nossas idéias e sentimentos tenham mudado tão pouco desde os primórdios dos tempos (...) como a nossa relação com a morte” (ibidem, p. 258). Para o ensaísta, a combinação entre “a força da nossa reação emocional original à morte e a insuficiência do nosso conhecimento científico a respeito dela” (ibidem) era a principal responsável pela intensidade peculiar das experiências que envolviam o sentimento do medo: A biologia não conseguiu ainda responder se a morte é o destino inevitável de todo ser vivo ou se é apenas um evento regular, mas ainda assim talvez evitável, da vida. É verdade que a afirmação “Todos os homens são mortais” é mostrada nos manuais de lógica como exemplo de uma proposição geral; mas nenhum ser humano realmente a compreende, e o nosso inconsciente tem tão pouco uso hoje, como sempre teve, para a idéia da sua própria mortalidade. (...) Uma vez que quase todos nós ainda pensamos como selvagens acerca desse tópico, não é motivo para surpresa o fato de que o primitivo medo da morte é ainda tão intenso dentro de nós e está sempre pronto a vir à superfície por qualquer provocação (ibidem, p. 259). As idéias relacionadas à morte seriam o gatilho perfeito para ativar nossas crenças primitivas reprimidas. Os grandes autores da literatura do medo – Edgar Allan Poe, H. P. Lovecraft, Stephen King, entre outros – conhecem bem essa máxima. O temor relacionado à morte talvez seja o mais disseminado dos medos. Não por acaso, entre as invenções culturais mais universais estão a negação da morte como um fim e a suposição de inúmeras outras formas de sobrevivência a ela. Julio França (org.) 66 Não poucos filósofos esforçaram-se para demonstrar que o medo da morte é irracional, visto que a morte só é vivenciada como uma experiência de segundo grau – como quando do falecimento de alguém próximo. É, contudo, o trabalho da imaginação que faz com que eu possa imaginar a mim mesmo morto, privado das potencialidades da vida, interrompido em meu desejo de vida eterna. No medo da morte, desdobramo-nos imaginariamente. Existe aquele que sou, atualmente, aquele que sente medo, que está vivo, e aquele que imagino, a mim morto, e é isso, é ele, sou eu, aquele eu que me assusta (Wolff, 2007, p. 35). O medo produzido pela imaginação do sujeito, que projeta e sofre com seu “eu morto”, parece-nos bastante semelhante aos mecanismos de identificação entre leitor e personagem nas narrativas ficcionais do medo. Em outras palavras, o processo que conduz à experiência de nosso medo mais primitivo, universal e intenso – o medo da morte – é similar ao que nos leva, no ambiente ficcional, a sentirmos medo sem efetivamente corrermos risco. 5. O MEDO ARTÍSTICO Tanto nossas crenças e convicções quanto nossa imaginação podem dar origem ao medo. De algum modo, portanto, o medo que experimento ao me imaginar morto assemelha-se ao que sinto, por exemplo, colocando-me no lugar de um personagem ficcional em uma cena aterrorizadora. Porém, as emoções relativas à autopreservação são dolorosas quando estamos expostos às suas causas, mas quando experimentamos sensações de perigo sem que estejamos realmente sujeitos aos riscos, isto é, quando a fonte do medo não representa um risco real a quem o experimenta, entramos no campo das emoções estéticas e de prazeres peculiares (catarse, sublimidade, horror artístico etc.), sobre os quais os Estudos Literários vêm refletindo há séculos. No plano artístico, devemos entender o “medo” como um efeito de recepção e estamos interessados em compreender os mecanismos responsáveis por sua produção. Mais do que uma questão de subjetivismos e idiossincrasias, o medo como efeito estético é por nós considerado o resultado de um planejamento, isto é, o fruto de processos construtivos relacionados à criação da obra literária. Ao nos referirmos à categoria do “medo artístico”, não pensamos em um efeito contingente de recepção, mas no resultado produzido por um artefato (a obra literária) concebido para suscitar essa emoção específica. INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 67 Fazendo uso de uma metáfora poeana, a consideração da composição artística como uma maquinaria da produção de efeitos permite-nos considerar o medo tanto em sua dimensão textual – a elaboração artesanal – quanto em sua dimensão ligada à recepção – os sentidos culturais do medo. Além disso, abre espaço para a integração do autor nesse processo, como alguém capaz de manipular ao menos alguns dos elementos constitutivos da produção de sentidos na literatura. REFERÊNCIAS : BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente: 1300 – 1800. Tradução de Maria Lucia Machado. Tradução de notas de Heloísa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. FREUD, Sigmund. O estranho. In:______. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud; edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. XVII. Tradução de Eudoro Augusto Macieira de Souza. Rio de Janeiro: Imago, 1996. pp. 233-269. ______. O Mal estar na civilização; edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. XXI. Tradução de Eudoro Augusto Macieira de Souza. Rio de Janeiro: Imago, 1974. LAGRANGE, Hugues. La civilité à l’épreuve. Crime et sentiment d’insecurité. Paris: PUF, 1996. LOVECRAFT, Howard Phillips. O Horror Sobrenatural em Literatura. Tradução de Celso M. Paciornik. Apresentação de Oscar Cesarotto. São Paulo: Iluminuras, 2007. MAUPASSANT, Guy de. O medo. In:______. Contos Fantásticos; "O Horla" & outras histórias. Seleção e tradução de José Thomaz Brum. Porto Alegre: L&PM, 1997. MONTAIGNE, Michel de. Ensaio XVIII – Do medo. In:______. Ensaios. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (p. 39-40). WOLFF, Francis. Devemos temer a morte? In: NOVAES, Adauto (org.). Ensaios sobre o medo. São Paulo: Editora SENAC SP / SESC SP, 2007. (p. 17-38) Julio França (org.) 68 Medo e morte em Álvares de Azevedo, Guy de Maupassant e Edgar Allan Poe Karla Menezes Lopes NIELS 33 RESUMO: “O medo é a coisa de que mais medo tenho no mundo” disse Montaigne em um de seus ensaios (MONTAIGNE,1991, p. 40). O medo do desconhecido é um sentimento inerente à constituição humana e o gênero de horror é caracterizado pela capacidade de explorar essa característica. Entretanto, a literatura insólita em geral, fantástica ou de horror, produz um medo que pode emanar de qualquer tema desde que provoque um desconforto no leitor que o atraia à leitura. Sobretudo os temas relacionados à morte e à sobrevida causam efeitos singulares. Refletindo sobre tais aspectos, propomos uma análise comparativa entre os contos “Genaro” de Álvares de Azevedo, “Gato Preto” de Edgar Allan Poe e “Aparição” de Guy de Maupassant, procurando estabelecer relações entre eles. Para tanto, consideraremos os pontos de hesitação dessa obras, tomando como base os estudos de Lovecraft, de Todorov e de King. PALAVRAS CHAVES: Medo, Morte, Insólito, Álvares de Azevedo, Edgar Allan Poe, Guy de Maupassant. INTRODUÇÃO “O medo é a coisa de que mais medo tenho no mundo” disse Montaigne em um de seus ensaios. E o medo do desconhecido é um sentimento inerente à constituição humana. Esse sentimento, capaz de alterar nossas crenças e nossa percepção da realidade, tem sido explorado pela literatura de horror, tanto que tal gênero pode ser caracterizado pela capacidade de produzir tal emoção. Entretanto, a literatura insólita em geral produz um medo que pode emanar de qualquer tema, desde que provoque um desconforto no leitor, atraindo-o a esse tipo de literatura, enfeitiçando-o através de um mundo possivelmente sobrenatural. Tais temas quando relacionados à morte e à sobrevida causam efeitos singulares, pois, o mistério envolto em tudo que se refere à morte eleva a imaginação humana à sua máxima capacidade. O ficcionista contemporâneo Stephen King, no prefácio de Sombras da Noite, diz que “o medo nos cega e nós tateamos com toda a ávida curiosidade do autointeresse, tentando construir um todo a partir de uma centena de pedaços (...). E a 33 Autor: Karla Menezes Lopes NIELS, graduanda. Universidade do estado do Rio de Janeiro (UERJ, FAPERJ). [email protected] INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 69 grande atração da ficção de horror através dos tempos é o fato de se prestar como um ensaio para a nossa própria morte” (KING, 1978, p. 17). O medo é assim visto como um fator de educação sentimental – o leitor entende a sua vulnerabilidade através da vulnerabilidade do personagem. Posteriormente o romancista no ensaio Dança Macabra levanta a intrigante questão: por que as narrativas que lidam com horror e medo atraem as pessoas? A resposta estaria relacionada ao medo como um efeito de leitura. O ensaísta acentua esse fato ao dizer que: (...) inventamos horrores para nos ajudar a suportar horrores verdadeiros. Contando com a infinita criatividade do ser humano, nos apoderamos dos elementos mais polêmicos e destrutivos e tentamos transformá-los em ferramentas – para desmantelar estes mesmos elementos. O temo catarse é tão antigo quanto o drama na Grécia (...), mas, mesmo assim, ele tem seu uso (...). (KING, 2007, p. 24) O horror ficcional apresenta-nos uma resolução momentânea, que ameniza, por um curto tempo, nossos horrores mais profundos, ou seja, podemos experimentar sensações de perigo sem que a fonte do medo represente um risco real. A força da narrativa de horror residiria exatamente nesse sentimento de reintegração que poderia emanar de um gênero especializado em morte, medo e monstruosidades. Relacionado a isso, Montaigne fala do medo como um sentimento que pode nos dar “asas” ou nos imobilizar, e, “principalmente quando sob a sua influência recobramos a coragem que ele nos tirara contra o que o dever e a honra determinavam, que o medo revela sua ação mais intensa” (MONTAIGNE,1991, p. 40). É justamente a experiência advinda desse sentimento o que impulsiona o processo catártico no ato de leitura. Entramos, portanto, no campo das emoções estéticas, pois a experimentação de tais sensações é capaz de produzir esse prazer peculiar que Aristóteles denominara catarse. O conceito aristotélico está relacionado à produção e à expurgação das emoções através da ficção, o que é de suma importância para a consideração dos efeitos de recepção. A esse respeito, convem lembrar que os temas relacionados com a morte e com a sobrevida têm gerado uma infinidade de narrativas que produzem esse efeito receptivo muito particular: o medo. Tais narrativas – fantásticas, de terror ou de horror – requerem temas que possibilitem “acontecimentos estranhos” e manifestações do “efeito fantástico” – hesitação advinda de acontecimentos ambíguos (cf. TODOROV, p. 100) – para que o efeito receptivo esperado seja realmente atingido. Ou seja, é preciso que haja Julio França (org.) 70 acontecimentos que levem tanto narrador como leitor a se questionarem sobre a coerência e a veracidade dos fatos, e a duvidarem também da própria sanidade. Refletindo sobre tais aspectos, propomos, no presente artigo, uma análise comparativa entre os contos “Genaro” de Álvares de Azevedo, “Gato Preto” de Edgar Allan Poe e “Aparição” de Guy de Maupassant. Tal análise abarca autores do séc. XIX, de diferentes momentos e de diferentes nacionalidades, para assim, tentar demonstrar a amplitude desse sentimento. Para tanto, consideraremos os pontos de hesitação dessa obras, estabelecendo como base os estudos de Lovecraft, de Todorov e de King, procurando estabelecer relações entre essas obras cuja interseção será o medo e a morte. MORTE E SOBREVIDA Para King (2003, p. 110), as narrativas ligadas ao horror procuram “aqueles medos pessoais enraizados” na mente humana, em especial os relacionados à morte. “A morte e a decomposição tornam-se inevitavelmente horríveis e inevitavelmente um tabu” (ibidem, p. 111), se consideramos o fato que para grande maioria da humanidade ela é um mistério e, portanto, o perfeito ponto de pressão “psicológica” a ser explorado por narrativas que pretendem amedrontar seus leitores. É como se tudo que fosse velado, no caso a morte, despertasse interesse no público leitor. O leitor se apavora, mas busca o estranho prazer advindo da sua experiência com a morte através da leitura. Os contos tomados como objeto de estudo desse artigo, “Aparição”, “Gato preto” e “Genaro” tematizam a questão da vida após a morte e a influência dos mortos sobre os vivos. Portanto, as nossas considerações focarão especificamente as aproximações e os distanciamentos dessas narrativas no que tange a essa temática e ao efeito receptivo produzido. No conto “Aparição”, o velho marquês de la Tour-Samuel, durante uma reunião íntima em uma antiga mansão, conta uma história sobre um fato que denomina “estranho”, acontecido com ele em sua juventude. Antes de iniciar o relato diz que aquele dia deixou-lhe “uma marca, uma cicatriz do medo” e prossegue dizendo que a “noite” lhe dá medo” (MAUPASSANT, 1997, p. 36). Nesse ponto, o narrador começa a criar uma atmosfera bastante propícia, pois, relaciona o medo com elementos como a noite. A noite remonta à escuridão; e quem não sente medo do escuro? A estratégia narrativa aqui usada é crucial para fazer com que os ouvintes do marquês, bem como os leitores, fiquem apreensivos com o que há de vir. INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 71 Prossegue, então, dizendo que em julho de 1827, quando passeava pelo cais, encontrou-se com um amigo que há muito tempo não via. Esse lhe contou sobre a calamidade que lhe sucedera – a morte de sua mulher apenas um ano após o casamento. Como ele deixara o castelo em que moravam logo após o enterro, pediu ao narrador que fosse à sua antiga residência buscar, no antigo quarto do casal, alguns papéis de que precisava. O marquês não recusou prestar-lhe o favor e dirigiu-se para o castelo no dia seguinte. Ao chegar à mansão, o narrador a descreve como algo que parecia estar abandonado há cerca de vinte anos. Ao descrição em estilo gótico contribui para aumentar a ansiedade irracional dos ouvintes daquele narrador, bem como do leitor. Finalmente, quando chega ao quarto da morta, tenta abrir as janelas para iluminar o ambiente, mas sem êxito. Pouco depois, enquanto procurava pelos documentos, diz ter julgado “ouvir, ou melhor, sentir um leve roçar” atrás de si. O medo começa a se apoderar dele que, entretanto, tenta racionalizar o fato, até que diz que “um grande e doloroso suspiro, soltado junto ao meu ombro, fez-me dar um salto louco de dois metros” (idem, p. 41-2). O medo do desconhecido é trabalhado de maneira magistral. O protagonista volta-se e dá de encontro com o espectro de uma mulher. Tomado de pavor, diz que não pensara em nada no momento da aparição, pois, “tinha medo” (ibidem). Vejamos que apesar da tentativa de racionalização por parte do narrador, a perda dos sentidos e do bom senso cede espaço à irracionalidade do medo. O sentimento passa a ser acompanhado de incerteza e desespero – sensações também experimentadas pelo leitor –, levando o narrador a não mais pensar na lógica dos acontecimentos. Seu pavor é tão grande que as suas ações subsequentes serão mecânicas. Quando a aparição pede que lhe penteie os cabelos, ele o faz sem refletir. Ao voltar a si, é invadido por um “desejo febril” de fuga, e, foge. No conto homônimo, Genaro relata que morava na casa de Godofredo Walsh, cuja filha, Laura, que sustentava uma paixão pouco correspondida por ele, engravidou e morreu em consequência dessa paixão. Após o falecimento da moça, seu pai é levado à loucura com a traição de Genaro e de sua esposa Nauza. Num dado até o momento em que a louca sede de vingança de Godofredo é extrema, o narrador dirá ter sentido que: (...) um tremor, um calafrio se apoderou de mim [dele, o narrador]. Ajoelhei-me, e chorei lágrimas ardentes. Confessei tudo: parecia-me que “era ela que o mandava, que era Laura que se erguia de entre os lençóis de seu leito, e me acendia o remorso, e no remorso me rasgava o peito” (AZEVEDO, 2000, p.585 – grifo nosso) Julio França (org.) 72 Ao dizer que “um calafrio” se apoderara dele, o narrador expõe todo o terror e toda a pressão fóbica que sentiu naquele momento. O medo que sentira foi tanto que o levou a chorar “lágrimas ardentes” e a confessar tudo ao seu algoz. O medo da morta é descrito como mais intenso do que o medo de morrer. Quando Genaro reflete sobre sua situação de forma coerente e finaliza dizendo friamente que teve “medo”. Apesar de ser uma emoção relacionada aos instintos humanos de sobrevivência, ela vem acompanhada da consciência do fim. O medo, portanto, não se apoderou dele como ocorrera quando pressentiu a presença da Laura morta. Como podemos verificar abaixo: Eu estava ali pendente junto à morte. Tinha só a escolher o suicídio ou ser assassinado. Matar o velho era impossível. Um luta entre mim e ele fora insana. Ele era robusto, a sua estatura alta, seus braços musculosos me quebrariam como o vendaval rebenta um ramo seco. Demais, ele estava armado. Eu – era uma criança débil: ao primeiro passo ele me arrojaria da pedra em cujas bordas eu estava.... Só me restaria morrer com ele – arrasta-lo na minha queda, mas para quê? E curvei-me no abismo: tudo era negro: o vento lá gemia embaixo nos ramos desnudados, nas urzes, nos espinhais ressequidos, e a torrente lá chocalhava no fundo escumado nas pedras. Eu tive medo. (idem, p. 586-7) O trecho acima mostra-nos que Genaro tem mais medo daquilo cuja origem ignora – daquela que supõe estar morta – do que da perda da própria alma. O personagem não teme a morte, mas tudo o que alegoricamente ela significa, e, principalmente, teme a crença babilônica 34 da imortalidade da alma. Assim como no caso de “Genaro”, no conto “O gato preto” há a influência dos mortos sobre os vivos e essa idéia apavora seu protagonista. O narrador possuía um gato todo negro, do qual arrancou um dos olhos em um dia em que estava embriagado e furioso pelo bichano ter-lhe arranhado a mão. A perversidade do narrador aumentava dia a dia, até levá-lo a enforcar o animal sem motivo aparente. Nesse mesmo dia, a sua casa é incendiada, restando em pé somente a parede do quarto, onde se via estampada a imagem de um “gato gigantesco” (POE, 1993, p. 48) com uma corda envolvendo-lhe o pescoço. Apesar de racionalizar esse acontecimento, o 34 Segundo o The Religion of Babylonia and Assyria (JASTROW, Jr., 1898, p. 556), Babilônia era um lugar muito religioso com mais de 50 templos dedicados aos mais diversos deuses. Os babilônios acreditavam na imortalidade da alma humana. Apesar da evidência da crença de outros povos na sobrevida à morte, acredita-se que a crença – como conhece o mundo Ocidental – tenha se difundido a partir muros dos babilônicos após a sua queda. INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 73 narrador fica apavorado e é atormentado pela sua consciência. O pavor é de tal ordem que o conduz ao desespero! No entanto, para amenizar sua culpa e esquecer o acontecimento sobrenatural, adota um gato muito parecido ao que assassinara, a não ser por uma pequena mancha branca no pescoço que, dia após dia, diminuía até parecer uma marca de corda – algo que o narrador descreve como “a imagem da coisa odiosa, abominável: a imagem da forca! Oh, lúgubre e terrível máquina de horror e de crime, de agonia e de morte!” (idem). Nesse ponto da narrativa o medo toma conta do nosso protagonista. A simples ideia de um gato reencarnado que volta para vingar-se do seu assassino leva-o à extrema loucura e a tornar-se assassino de sua própria esposa. Pressionado pelos tormentos que a presença daquele gato inspirava, o narrador tenta matar o novo gato, mas, por engano mata sua esposa, cravando-lhe uma foice no crânio. Para livrar-se do corpo, empareda-o na adega do porão do prédio em que agora morava. Por engano, acaba sepultando junto o gato que, três dias depois, através de um “uivo agudo, um grito agudo, metade de horror, metade de triunfo, como somente poderia ter surgido do inferno” (idem, p. 51) acaba por delatar aos policiais o lugar onde jazia o corpo, frustrando o crime perfeito. Ou seja, parece que em cada momento o gato retornava para atormentá-lo e vingar a sua morte. O medo do sujeito morto é levado ao extremo neste conto. A ambientação da narrativa confere as condições ideais de pressão fóbica para que o protagonista se transforme num monstro. Diferentemente dos contos anteriores, ele perde todo o senso racional, e toma atitudes que só alguém tomado de pavor é capaz de tomar. Voltemos à declaração de Montaigne: “O medo é a coisa de que mais tenho medo no mundo”. Como nos foi demonstrado pelo texto poeano, o medo é capaz de propiciar as atitudes mais ignominiosas. Quando temos medo, agimos por impulso e por instinto, às vezes da mesma maneira que fariam os animais acuados. O MEDO E A HESITAÇÃO Lovecraft no seu longo ensaio monográfico sobre o tema, O horror sobrenatural em literatura,fala-nos do medo do desconhecido como sendo algo inerente à constituição humana. E, como já dissemos, as “literaturas de horror” estão justamente relacionadas a esse sentimento de medo físico ou psicológico – um desconforto que determinados temas podem despertar no leitor, como o medo do desconhecido ou a ocorrência de eventos sobrenaturais, que serão chamados pelo ensaísta de “medo Julio França (org.) 74 cósmico”. Um medo relacionado com os resquícios da primitiva consciência humana, suscetível a crenças em realidades obscuras, desconhecidas e à margem do que se entende por natural. E, sua produção requer “uma certa atmosfera inexplicável e empolgante de pavor de forças externas do homem” (LOVECRAFT: 2007, p. 17). King, por sua vez, apresenta para as narrativas de horror três níveis de medo – em função do caráter mais ou menos explícito dos elementos utilizados para a produção das emoções relacionadas ao medo, a saber: “Terror”, Horror” e “Repulsa”. Desses, o terror é visto por ele como um movimento artístico que estimula uma pressão fóbica, relacionado com tudo aquilo que a mente humana é capaz de imaginar sem a necessidade da percepção sensorial do objeto causador do medo. Nesse nível há apenas uma sugestão de algo ruim ou sobrenatural, num processo de participação criativa do leitor. Para nós trata-se de um efeito receptivo mais próximo ao gênero fantástico 35 e ao medo cósmico de Lovecraft (2007, p. 13), justamente por exigir do leitor certo grau de imaginação e distanciamento da vida cotidiana para que construa o sentido sugerido pelo texto. Assim como em relação ao medo cósmico, nesse nível do medo há apenas uma sugestão de algo ruim ou sobrenatural, num processo de intervenção ev participação criativa do leitor – sua imaginação, portanto, precisa entrar em ação e construir o sentido sugerido. Apesar de as obras por nós analisadas fazerem diferentes percursos por esses níveis “medonhos” ao explorarem a temática da morte e de os conceitos apresentados se aproximarem quando vistos em relação ao desconforto que produzem, prenderemos à nossa atenção sobretudo à premissa Lovecraftiniana, por entendemos ser o conceito mais próximo aos efeitos de recepção aqui analisados. Quando consideramos o conto de a Noite na Taverna a partir dessas premissas, observamos que a obra de Azevedo privilegia o que pelo ensaísta foi chamado de “medo físico” ou “horrível vulgar” 36 (LOVECRAFT: 2007, p. 16), uma produção superficial e inferior ao “medo cósmico” – desconforto gerado pelo medo do desconhecido ou da ocorrência de eventos sobrenaturais–, pois valoriza aspectos físicos a sobrenaturais. No 35 A segunda condição para a concepção do gênero fantástico, segundo Todorov, tem a ver com a identificação do leitor com o personagem. Claro que o ensaísta de vertente estruturalista julga tal condição como não essencial, mas para a consideração de efeitos de leitura a catarse torna-se fundamental. 36 O simples assassinato ou apelos violentos em que o maior medo gerado não é somente o medo do desconhecido ou do obscuro, mas o medo da morte e da dor física. INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 75 entanto, o ensaísta afirma haver a possibilidade de somente uma parte do texto ser capaz de produzir tal tipo elevado de medo: (...) boa parte da obra fantástica mais seleta é inconsciente, aparecendo em fragmentos memoráveis espalhados por material cujo efeito geral pode ser de molde muito diferente. (ibidem, p. 17) Em consonância com isso, encontramos em “Genaro”, como nos demais contos, alguns pontos de incerteza em que os protagonistas e o leitor são submetidos à experiência do “medo cósmico”. Após o falecimento de Laura, seu pai é levado à loucura e o narrador-personagem conclui que parecia que era ela, a morta, “(...) que o [o pai] mandava, que era Laura que se erguia de entre os lençóis de seu leito, e me acendia o remorso (...)” (AZEVEDO, 2001, p.585). O uso do verbo “parecer” no pretérito imperfeito do indicativo “introduz uma distância entre a personagem e o narrador” (TODOROV, 2007, p. 44) mesmo se tratando de um narrador-personagem. Portanto, a modalização propicia uma sugestão de sobrenatural, ao se insinuar a influência de Laura sobre seu pai após seu falecimento. Uma modalização verbal que pede a intervenção do leitor para que preencha a lacuna ali deixada. O verbo, portanto, introduz uma sugestão que não se aprofunda no decorrer do conto, fazendo-se necessário que o sujeito participe na construção do sentido do que é sugerido. Para um leitor cético a sugestão passa por alto e a leitura encaminha-se para a solução natural. Já um leitor com determinadas crenças religiosas direcionaria provavelmente sua leitura para uma solução sobrenatural. As crenças e a imaginação – além da incerteza e do perigo – tornam-se, nesse caso, potencializadores e catalisadores do medo. A sensação de sobrenatural experimentada pelo narrador pode ser entendida, portanto, como um leve medo cósmico advindo da incerteza que Todorov chama de “efeito fantástico”, uma hesitação que é produzida somente “durante uma parte da leitura” e que conduz narrador e leitor a duvidar da natureza dos acontecimento e conduzindo o leitor à experimentar a sensação da catarse (TODOROV, 2007, p. 48). Em “Gato preto” a dúvida do narrador quanto à aparição da figura do gato na parede do quarto após o incêndio é bastante explícita na narrativa: “Logo que vi tal aparição – pois não podia considerar como sendo outra coisa –, o assombro e terror que se me apoderaram foram extremos. Mas finalmente, a reflexão veio em meu auxílio” (POE, 1993, p.45). Tal reflexão leva-o a uma conclusão que explica o fato naturalmente, apesar de o fato ser, no mínimo, bastante singular. Julio França (org.) 76 É digno de nota que os narradores de “Gato Preto” e de “Genaro” sempre racionalizem os acontecimentos, hesitando em encará-los como sobrenaturais. Mas o narrador de “Gato preto” difere do de “Genaro” em um pequeno ponto. Para o narrador do conto de Poe, a crença relativa à sobrevida é muito clara, em que a ausência de verbos no pretérito imperfeito não condiciona à duplicidade de sentidos externos à narrativa. Mas, que dizer de “Aparição”? No conto, parece não haver tal hesitação entre uma explicação ou outra, o que temos é a produção do medo explicito no protagonista do início ao fim da narrativa. Não há tentativas por parte do narrador de racionalizar os acontecimentos. A princípio, ele duvida dos acontecimentos, mas não tenta trazê-los para um mundo científico-natural. A hesitação, portanto, jaz no momento em que o narrador sente a presença da morta atrás de si. Nesse momento especificamente ele não tem plena certeza que se trata de uma aparição apesar de estar inclinado – por causa do seu medo – à crer que havia ali um espectro. Em linhas gerais, podemos arrazoar que a ambiguidade – a hesitação gerada pelo ápice de cada um dos contos – são os principais catalisadores do medo, mais do que o espectro, mais do que a visão, mais do que a sensação. As dúvidas do narrador e do leitor criam um momento intercessor recheado de suspense – a atmosfera ideal da literatura fantástica e de horror. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os contos analisados se assemelham ao sugerirem a possibilidade de uma sobrevida após a morte, bem como pelo terror expresso pelos narradores em face de acontecimentos de cunho sobrenatural. A forma pela qual tais temas são apresentados no decorrer das narrativas causa um tipo curioso de hesitação – um incômodo oriundo da contemplação de determinadas cenas, capaz de causar tanto ao narrador como ao leitor um “desconforto” que gera medo, emoção fundamental na recepção da literatura de horror. Pudemos perceber que em todos os exemplos analisados, quer o narrador, o personagem, ou o leitor foram levados a titubear entre duas soluções: estar diante de uma manifestação do mundo dos vivos ou do mundo dos mortos. O que nos mostra um momento intercessor entre o real e o imaginário, entre o natural e o sobrenatural que pressupõem a geração do medo. INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 77 O gênero de horror, como vimos, é caracterizado pela capacidade de produzir medo. Tal sentimento pode dar-se de duas formas no interior da narrativa: (1) explicitamente (o “medo físico” e o “horrível vulgar” de Lovecraft, e a “repulsa” de King) e (2) implicitamente (o “medo cósmico” de Lovecraft, o horror e o terror de King). E o medo é a força motriz do imaginário do leitor. Um sentimento que é enfatizado pelos movimentos de leitura que levam o leitor a crer que vivencia a própria história que está lendo. E, é enfatizado não só pelos acontecimentos, mas, sobretudo, por um narrador em 1ª pessoa – um narrador capaz de transmitir os seus medos interiores ao leitor. Assim, o prazer estético do medo tem o papel de deslocar o leitor para dentro da narrativa, levando-o a vivenciar seus medos sem correr riscos efetivos, expurgar suas emoções, e conhecer a si mesmo O fato de hesitar entre uma explicação natural ou sobrenatural tem a ver não somente com a construção da narrativa, mas, sobretudo, com quão crédulo é o leitor. Falamos de um leitor empírico e não um engendrado pelo texto. Claro que o medo, como posto no decorrer do artigo, se manifesta principalmente nos personagens e é nesses que prendemos nossa atenção, tendo em vista que o trabalho com o leitor empírico pode, em muitos casos, ser inviável dado à sua subjetividade. Portanto, entender como o medo atua no leitor empírico serve para compreender as questões levantadas por King em Dança Macabra comentadas no início deste artigo: Por que nós gostamos de “horrores ficcionais”? Por que esse prezar mórbido em vivenciar no texto literário o infortúnio e a morte? REFERÊNCIAS: AZEVEDO, Álvares de, 1831-1852. Obra completa: volume único. Alexei Bueno (org.). Textos críticos de Jaci Monteiro et al. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000. JASTROW, Jr., Morruis. The religiopn of Babylonia and Assyria. Boston, EUA, 1898. Disponível em: <http://www.scribd.com/doc/3084351/The-Religion-of-Babylonia-andAssyria-by-Jastrow>. LOVECRAFT, Howard Phillips. O Horror Sobrenatural em Literatura. Tradução de Celso M. Paciornik. Apresentação de Oscar Cesarotto. São Paulo: Iluminuras, 2007. MAUPASSANT. Guy de. Contos Fantásticos: O horla e outras histórias. Seleção e tradução de José Thomaz Brum. Porto Alegre: L&PM Editores, 1997. MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo: Nova Cultural, 1991. São Paulo: Nova Cultural, 1991. Julio França (org.) 78 KING, Stephen. Dança macabra; o fenômeno do horror no cinema, na literatura e na televisão dissecado pelo mestre do gênero. Tradução de Louisa Ibañez. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. KING, Stephen. Sombras da noite. Tradução de Luiz Horácio da Matta. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1978. POE, Edgar Allan Poe. Histórias Extraordinárias. Trad. De Brenno Silveira e outros. São Paulo, 1993. TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Trad. Maria Clara Correa Castello. São Paulo: Pespectiva, 2007. INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 79 Vitimas e algozes do medo no conto “FelizAno Novo”, de Rubem Fonseca Luciano CABRAL 37 Todos nós sentimos medo; uns mais, outros menos. O fato é que sempre reagimos de alguma forma quando diante de um perigo iminente. Biologicamente, esta reação é um mecanismo natural de preservação e, assim sendo, nós a compartilhamos com os animais e reagimos tal como eles reagem. Contudo, o medo não é inato; ele é construído a partir de experiências de risco. Ao nos depararmos com algo (um predador, um criminoso, uma situação perigosa, um local perigoso) que faça com que lembremos de experiências de risco anteriores, é esta lembrança, esta proteção contra o sofrimento, que nos faz reagir. Se quando generalizamos o medo nós nos aproximamos dos animais, quando o detalhamos nos afastamos deles drasticamente. Os medos humanos, tanto os que objetivam preservação da espécie quanto os que produzem prazer estético, são mais variados e complexos. Em “Civilization and its discontents”, Sigmund Freud aponta três fontes de “ameaças de sofrimento”: (i) do nosso próprio corpo – pela nossa fragilidade, susceptibilidade a doenças e ao envelhecimento; (ii) do mundo externo – pelo destrutivo e incontrolável poder da natureza e pelos desastres que ela provoca; e (iii) da nossa relação com outros homens. E continua: O sofrimento proveniente dessa última fonte talvez seja mais doloroso que qualquer outro. Tendemos a encará-lo como um tipo de acréscimo gratuito, embora ele não possa ser menos decisivamente inevitável do que o sofrimento oriundo de outras fontes (FREUD, 1974, p. 95). Apesar de termos conseguido, de certo modo, minimizar a ação do tempo sobre o nosso corpo, sua inegável fragilidade lembra-nos a todo o momento da nossa mortalidade, da nossa finitude. Ainda que tentemos prever a ação da natureza, munidos de aparatos sofisticadíssimos e altamente confiáveis, sua força destrutiva está longe de ser controlada. Daí tomarmos estas duas fontes de ameaça como fatalidades, de modo a amenizarmos nosso sofrimento. Porém, quando se trata da terceira mencionada por Freud, a nossa relação com outros homens, cada vez mais efêmera, distante, insegura e imprevisível, já não nos sentimos confortáveis. E se localizamos esta relação numa 37 Graduando (UERJ), orientado pelo Prof. Dr. Julio França. Julio França (org.) 80 metrópole, o desconforto tende a ser muito maior. O presente ensaio discute a brutal relação urbana entre os homens e o inevitável encontro de duas classes antagônicas, os abastados e os desprovidos, no conto “Feliz Ano Novo”, de Rubem Fonseca. Os dois parágrafos iniciais do conto já prenunciam antagonismos. No primeiro, o protagonista vê pela televisão – em um aparelho que ele afirma, e comprova, que comprou – a notícia de que as “lojas bacanas” estão vendendo rápida e facilmente seus produtos de réveillon para as “madames” (FONSECA, 1998, p. 13). A televisão, ao mesmo tempo em que o aproxima da classe consumista (afinal, ele pôde comprá-la), o afasta desta mesma classe, ao mostrar que sua condição é absurdamente limitada e que os “artigos finos para comer e beber” (IBID., p. 13) são, para ele, inatingíveis. No segundo parágrafo, a “cachaça”, a “galinha morta” e a “farofa dos macumbeiros” (IBID.), ainda que tenha que esperar até o dia seguinte para obtê-las, estão bem mais próximo da realidade do protagonista. Abastados e desprovidos estão colocados, logo de início, nos seus devidos lugares. Os antagonismos, ao longo do conto, não são apenas econômicos, mas também físicos e culturais. O personagem Pereba “não tem dentes, é vesgo, preto e pobre” (IBID., p.14); o protagonista refere-se a Dona Candinha como “preta velha” (IBID., p.15). Além disso, o grau de escolaridade do protagonista autoriza-o a não ser supersticioso: “Pereba sempre foi supersticioso. Eu não. Tenho ginásio, sei ler, escrever e fazer raiz quadrada. Chuto a macumba que quiser” (IBID., p. 13). Saber ler e escrever autoriza-o, inclusive, a contar a historia. Os participantes da festa de réveillon, por outro lado, não são descritos pelas características físicas, mas somente pelas econômicas – suas vestimentas e posses: “(...) uma mulher toda enfeitada, de vestido longo vermelho” (IBID., p. 17); “Toda penteada, aquele cabelão armado, pintado de louro, de roupa nova, rosto encarquilhado (...) (IBID., p. 18); “Usava um lenço de seda colorida em volta do pescoço” (IBID., p. 19); e ainda: “O quarto da gordinha tinha as paredes forradas de couro. A banheira era um buraco quadrado grande, de mármore branco (...). A parede toda de espelhos. Tudo perfumado” (IBID., p. 18). Estes contrastes reafirmam o que Zygmunt Bauman diz sobre a terceira fonte de sofrimento de Freud: “a miséria de origem social”. Para ele, a “supervalorização”, na terminologia de Robert Castel 38 , do individuo e sua consequente “fragilidade e vulnerabilidade” (as duas “reviravoltas” simultâneas que se iniciaram na 38 Cf. CASTEL, Robert. L’Insecurite sociale: que’est-ce qu’etre protege?, Paris, Seuil, 2003, p.5. INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 81 Europa da era moderna), são as causas da constante sensação de insegurança que temos hoje, por já não estarmos mais atrelados aos vínculos sociais que antes nos protegiam. Uma vez estabelecida, esta supervalorização do indivíduo torna-se inversamente proporcional aos benefícios e proteções coletivos oferecidos, pois as regras impostas para que ela permaneça impedem que os benefícios sejam universais: quanto mais individualmente nos posicionamos, menos protegidos nos sentimos. Bauman completa: Por isso, se a proteção de fato disponível e as vantagens que desfrutamos não estão totalmente à altura de nossas expectativas; se nossas relações ainda não são aquelas que gostaríamos de desenvolver; se as regras não são exatamente como deveriam, e a nosso ver, poderiam ser; tendemos a imaginar maquinações hostis, complôs, conspirações de um inimigo que se encontra em nossa porta ou embaixo de nossa cama. Em suma, deve haver um culpado, um crime ou uma intenção criminosa (BAUMAN, 2009, p. 15). De fato, as regras vigentes não valem para todos, nem valem da mesma maneira para todos. Os benefícios e proteções oferecidos, não sendo universais, formam uma massa de desprotegidos ávidos por se valerem dos mesmos benefícios e proteções dos que são protegidos pelas regras impostas. A supervalorização do indivíduo transformounos, obrigatoriamente, em competidores (afundados até o pescoço em uma sociedade baseada no mérito), fora de qualquer vínculo social que pudesse trazer segurança. Inseguros, resta-nos apenas desconfiar de todos e temer tudo que venha dos outros – suas ações, suas intenções, sua posição geográfica, social e econômica. Passamos, assim, a temer constantemente a imprevisibilidade dos outros e seus potenciais atos criminosos. Segundo Bauman, esta pode ser a origem da insegurança moderna: Poderíamos dizer que a insegurança moderna, em suas varias manifestações, é caracterizada pelo medo dos crimes e dos criminosos. Suspeitamos dos outros e de suas intenções, nos recusamos a confiar (ou não conseguimos fazê-lo) na constância e na regularidade da solidariedade humana (IBID., p. 16). Amedrontados por sermos incapazes de prever os atos alheios, nós nos valemos de câmeras, códigos, alarmes, cofres e senhas; apavorados por não reconhecermos os outros 39 como nossos semelhantes escolhemos viver rodeados por cercas, muros, fechaduras, correntes, cadeados e chaves, porque “manter-se à distância parece a única 39 Os outros são aqui entendidos não como o faz Bauman – como estranhos, anônimos, os sem face com que nós cruzamos todos os dias nas ruas ou mesmo os que estão em torno das cidades grandes – mas como aqueles que carregam características diferentes das que consideramos positivas para nós, sejam elas físicas, étnicas, geográficas, culturais e, acima de tudo, econômicas. Julio França (org.) 82 forma razoável de proceder” (BAUMAN, 2008, p.92). Este desejo de distanciamento cada vez maior fez com que a arquitetura das zonas urbanas fosse transformada de tal forma que o crescente número de condomínios fechados (áreas de vigilância feroz que possuem, dentro delas, os mesmos serviços oferecidos em uma metrópole, ainda que em menores proporções) não surpreende. O medo do imprevisível, da imprevisibilidade dos outros, trouxe outro sentido para os termos “norte” e “sul”, hoje sendo pouco empregados com o sentido cartográfico que os originaram. Estes termos referem-se a áreas econômicas brutalmente antagônicas e trazem a confirmação de que os benefícios e proteções, de fato, não são para todos. Em Feliz Ano Novo, os personagens conseguem distinguir facilmente o norte e o sul. O protagonista declara que assaltou “um supermercado no Leblon” (FONSECA, 1989, p. 14), enquanto o personagem Zequinha, relembrando seus amigos mortos por policiais, diz sobre um deles: “O Minhoca! Crescemos juntos em Caxias (...)” (IBID., p. 14). Em uma metrópole como o Rio de Janeiro – que não se comporta de maneira muito diferente de qualquer outra –, estes locais têm seu prestigio ou seu demérito marcados pelo fator econômico. O conto localiza sem dificuldades as áreas em questão: o leitor percebe que assim como Caxias está para o “norte”, Leblon está para o “sul”. O norte é a origem dos algozes, dos pobres, dos criminosos – dos imprevisíveis. No sul, estão vítimas, os ricos, os abastados – aqueles de quem esperamos um comportamento regular e, por isso, previsível. Esta divisão separa não apenas Caxias e Leblon, mas também Nilópolis e São Conrado. O primeiro é o local rejeitado pelo protagonista: “Tás querendo que eu vá morar em Nilópolis?” (IBID., p. 20); o segundo é o bairro nobre carioca escolhido pelo grupo para cometer o assalto: “Puxamos um Opala. Seguimos para os lados de São Conrado (IBID., p. 17). Se a supervalorização do individuo tornou frágeis e vulneráveis os vínculos sociais e se a distância entre o norte e o sul cresce a cada dia, esperamos ansiosos o momento de podermos construir uma fronteira intransponível, uma barreira extremamente eficaz contra qualquer ato imprevisível dos outros. Mais intolerantes e mais apavorados, nós os empurramos para “espaços marginais, off-limits, nos quais não podem viver nem se fazer ver” (BAUMAN, 2009, p.26). Sendo o lucro o objetivo capitalista, e já que, para aumentá-lo, é preciso obter os mesmos (ou melhores) resultados procurando diminuir cada vez mais os custos do trabalho realizado, os que INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 83 foram empurrados para os espaços marginais não são mais, como aponta Castel 40 , os “temporariamente excluídos”. São, como afirma Bauman, os “supérfluos e excluídos de modo permanente” (IBID, p. 22). Os espaços marginais são, e serão, ocupados pelos desempregados, todos descartados em prol da lógica do capitalismo. Ainda diz Bauman: A exclusão do trabalho é vivida mais como uma condição de “superfluidade” (...); equivale a ser recusado, marcado como supérfluo, inútil, inábil para o trabalho e condenado a permanecer “economicamente inativo”. Ser excluído do trabalho significa ser eliminável (e talvez já eliminado definitivamente), classificado como descarte de um “progresso econômico” (...) (IBID., p. 23-4). Uma vez empurrados definitivamente para a margem e não gozando dos benefícios oferecidos pelas regras vigentes, os desempregados misturam-se e confundem-se com os criminosos 41 porque “não menos sutil é a linha que separa os “supérfluos” dos criminosos (...)”. Estes distinguem-se daqueles “mais pela classificação oficial e pelo tratamento que recebem que por suas atitudes e comportamentos” (IBID., p. 24). Não importa nem um pouco o nome pelo qual os tratamos ou se há uma diferença, ainda que sutil entre eles; apenas queremos todos para sempre longe dos nossos olhos. Ainda que tentemos permanecer distantes de desconhecidos, as cidades atraem um ir e vir constante de pessoas que nunca vimos antes: “A cidade é um espaço em que os estrangeiros existem e se movem em estreito contato” (IBID., p. 36). Elas oferecem oportunidades que nenhum outro espaço atualmente consegue oferecer: emprego, moradia, serviços de saúde, produtos e serviços diversos e entretenimento. Porém, novamente é preciso ser dito: nem todos têm acesso aos mesmos benefícios. As cidades buscam mão-de-obra ao mesmo tempo em que a rejeitam. Então, qual outro lugar se pode ir que ofereça as mesmas oportunidades? As oportunidades na cidade são oferecidas para os que estão dentro dela e ali podem, de algum modo, permanecer. O protagonista do conto irrita-se com a observação que o personagem Zequinha faz do prédio enquanto os dois sobem “pelas escadas imundas e arrebentadas” (FONSECA, 1989, p. 20): “Fudido, mas é Zona Sul, perto da praia” (IBID.). Morar no Rio de Janeiro, e mais especificamente, na zona sul, é usufruir, pelo menos, alguns desses benefícios seletivos. A favela é o avesso das casas 40 Cf. Castel, R.L’Insecurite sociale: que’ est-ce qu’etre protégé?, Paris, Seuil, 2003, p. 47. 41 Para Bauman (2009, p. 24), os criminosos são pessoas que estão destinadas à prisão, já estão presas, vigiadas pela policia ou simplesmente fichadas. Julio França (org.) 84 de São Conrado, mas ainda assim, encravada na parte nobre da cidade, carrega o prestigio local. Preto, vesgo e pobre, faminto, sem fumo, sem cachaça e sem farofa, oriundo da zona norte, excluído permanentemente do (e pelo) regime capitalista e empurrado para os espaços marginais, o personagem Pereba, ao mesmo tempo, percebe e recusa sua condição miserável quando nega: “E frango de macumba eu não como” (IBID., p. 15). Bauman (2008, p. 9), com base nos estudiosos do comportamento animal, afirma que todos os animais oscilam entre duas alternativas de reação quando na presença imediata do perigo: fuga ou agressão. Pereba, Zequinha e o protagonista do conto de Fonseca decidem pela segunda alternativa. Ao invadirem a festa de réveillon em São Conrado, os três personagens não mostram compaixão alguma, ou qualquer outro sentimento positivo, para com seus participantes. Quando se depara com a dona da casa morta no quarto, o protagonista comenta: “Pra que ficou de flozô e não deu logo? O Pereba tava atrasado. Além de fudida, mal paga” (FONSECA, 1989, p. 18); ao tentar retirar um anel do dedo da mãe da dona da casa, também morta, ele diz ter sentido “nojo” (ibidem). Ele também observa minuciosamente o quarto e o banheiro, descrevendo as paredes, os materiais e os tecidos. Toda aquela ostentação deve ser manchada por ele, deve ser suja, pois é uma ostentação que perpetua a segregação, o exclui e o empurra para a margem. Calmamente, o protagonista arruma a colcha de cetim na cama e defeca sobre ela. Outro ponto brutal – de um conto inteiramente brutal – é a maneira como o protagonista e o personagem Zequinha confirmam sua “teoria”. Relembrando o que dissera o último sobre seu desejo de matar um policial usando a carabina doze, uma arma de grosso calibre e forte poder de fogo, “pra jogar o puto de costas na parede e deixar ele pregado lá” (IBID., p. 16), o protagonista atira em um participante da festa e o impacto do tiro o arremessa contra a parede. Querendo mostrá-lo que, para ter sucesso no seu intento, seria preciso atirar em alguém que estivesse próximo à porta: “Tem que ser na madeira, numa porta. Parede não dá (...)” (IBID., p. 19), Zequinha faz o mesmo com outro participante e o resultado comove o protagonista: Vê como esse vai grudar. Zequinha atirou. O cara voou, os pés saíram do chão, foi bonito, como se ele tivesse dado um salto para trás. Bateu com estrondo na porta e ficou ali grudado. Foi pouco tempo, mas o corpo do cara ficou preso pelo chumbo grosso na madeira (IBID., p. 20). INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 85 A sociedade moderna concluiu, aludindo aos especialistas em cálculo de risco citados por Bauman, que todos somos suscetíveis ao mal; todos nós, sem exceção, somos perfeitamente capazes de cometer tanto um pequeno delito quanto um crime hediondo – todos nós somos monstros em potencial. Após estudar e analisar o julgamento de Eichmann em Jerusalém, o sociólogo polonês alerta: A lição mais devastadora de Auschwitz, do Gulag ou de Hiroshima, do ponto de vista moral, não é que poderíamos ser postos atrás do arame farpado ou enviados a câmara de gás, mas que (nas condições adequadas) nós poderíamos ficar de sentinela ou espargir cristais brancos em chaminés. E não que uma bomba atômica pudesse cair sobre nossas cabeças, mas que (nas condições adequadas) nós poderíamos lançá-la sobre as cabeças de outras pessoas (BAUMAN, 2008, p. 89). Somos vítimas quando estamos amontoados em campos de concentração ou recebendo bombas atômicas sobre a cabeça; também o somos quando estamos acuados como reféns de sequestradores ou servindo de cobaias para patéticas “teorias” de assaltantes durante um réveillon. Mas também somos algozes quando apoiamos o lucro ou desenvolvemos armas de destruição em massa; somos algozes quando nos supervalorizamos individualmente e competimos entre nós, contra nós mesmos, e empurramos os excluídos para espaços marginais ou quando nos trancamos em condomínios fechados de segurança máxima por total medo da imprevisibilidade dos outros – um medo causado pela diferença e pela indiferença; um medo gerado pelo fim dos vínculos sociais. Com isso, os antagonismos tornam-se cada vez mais profundos e cada vez mais duradouro é o medo. Os ricos e os pobres, os artigos finos e as oferendas religiosas, as madames e os bandidos, os úteis e os supérfluos, os consumistas e os limitados, os abastados e os desprovidos, nesse contexto, serão os eternos opostos que compõem o cenário urbano. Embora pareça haver uma distinção clara entre eles, vítimas e os algozes são duas partes do mesmo monstro. REFERÊNCIAS: BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. ______. Medo líquido. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. FONSECA, Rubem. Feliz ano novo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. Julio França (org.) 86 FREUD, Sigmund. O Mal estar na civilização. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. XXI. Tradução de Eudoro Augusto Macieira de Souza. Rio de Janeiro: Imago, 1974. MERRIAN-WEBSTER’s encyclopedia of literature. Springfield/Massachussetts: Merrian-Webster, 1995. INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 87 Odetalhe como ornatus e o medo do outro em "Ocoração denunciador" Paloma LIMA ∗ Esse trabalho resulta da minha dissertação de mestrado defendida no início deste mês na UFES, intitulada “Flores do medo: o trabalho do ornamental em histórias fantásticas de Edgar Allan Poe”. Vou tratar aqui especificamente do conto, “The telltale heart”, “O coração denunciador” e alguns dos conceitos-chaves de minha dissertação: ornatus, detalhe e medo. O campo nocional relativo ao termo ornatus, diferentemente do que ocorre hoje na maior parte das discussões acerca do fazer literário, ocupou quase sempre – e desde Aristóteles – um lugar de grande relevo como qualidade do discurso ou como elemento a ele relacionado. Ornamento relaciona-se tanto com o que é concreto na cena, vestimentas, cores, elementos de mobília e decorativos, quanto com aquilo que não é palpável. O que é ornamental, portanto, nesse sentido, está relacionado a um certo arranjo intencional, a uma forma proposital de organização, mais que aos elementos que ordena. O que orna também persuade e, embora esse sentido de ornamento tenha caído em desuso na idéia hoje corrente de literatura, ele possuía papel de grande relevo na retórica antiga. Do ponto de vista da elocutio, por exemplo, o discurso deveria possuir determinadas qualidades ou virtudes, responsáveis pela excelência do dizer, dentre as quais a ornamentação (LAUSBERG: 1966, p. 9-11, § 453-460), entendida como elegância de estilo. Ela é também a virtude responsável pelo agrado que o discurso produz e a impressão positiva que deixa no ouvinte. O ornatus é uma virtude decisiva para a constituição da microestrutura do discurso retórico, e é de todas a mais cobiçada, observa H. Lausberg (LAUSBERG: 1966, p. 50, § 538). Articulado na teia da argumentação com o fim de deleitar, instruir e mover à ação, segundo Lausberg, o ornamento é um elemento decisivo para o cumprimento da complexa finalidade do discurso retórico, pois é elaboração artística da prova e proporciona ao discurso retórico uma capacidade de desautomatização da comunicação que substancialmente o diferencia das demais formas de discurso. O ornamento é assim ∗ Mestre em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo. Julio França (org.) 88 compreendido pela retórica clássica. Para refletir sobre a natureza narrativa dos contos poeanos em minha dissertação e também especificamente no conto que hoje examino, porém, quando optei por uma reflexão de viés retórico, desejei manter em vista estas idéias, sem me limitar a elas. Com Wellbery e Bender, prefiro pensar em termos de retoricidade, ou seja, a retórica "não mais como título de uma doutrina e uma prática, nem forma de memória cultural" (WELLBERY e BENDER: 1998, p. 32), mas como uma condição de realização de todo metadiscurso. Minha intenção aqui, portanto, não é a de buscar no conto de Edgar Allan Poe um exame de categorias retóricas clássicas relativas ao ornamento, considerando que não é possível reavivá-las em nosso tempo, nem tampouco buscar componentes formais e temáticos fixos nos textos poeano, mas observar o labor simbólico do texto, suas operações persuasivas. Na obra de Edgar Poe, ornamentos concretos e abstratos se arranjam de modo a dar credibilidade ao narrador e à história que compartilha, ainda que esta seja a história de sua loucura. O ornatus, sobretudo ao aparecer como detalhe da narrativa, investe-se de verossimilhança: uma história contada através dos detalhes, do mundo concreto do personagem e de sua forma de expressão, suscita a impressão de um arranjo natural, que por sua vez, aliado à natureza temática dos contos, inclusive daquele selecionado para esta comunicação, inspiram o medo. Do mesmo modo que a noção clássica de retórica atualiza-se, também o modo de pensar o ornamento transforma-se. O tema tem sido analisado de modo menos categórico e apriorístico, menos em termos de funções, que pressupõe causa e consequência, e mais em razão dos modos de funcionamento do ornatus. Nesse sentido, podemos pensar a palavra ornamento em termos de motivos, ou conforme a definição de Jean-Claude Bonne, "d’unités essentiallement formelles, éventuellement répertoriables à l’intérieur d’une tradition artistique (ou transférables de l’une à l’autre)" (BONNE: 1997, p. 103-118). Essas unidades, segundo Bonne, se formam por repetição, variações, ou combinações diversas e se inscrevem em composições de objetos, imagens ou monumentos. Mais que a um procedimento esse funcionamento do ornatus corresponde a uma mentalidade, ornamentalité, um modo de pensar que cria verdades a partir de marcas. O trabalho do ornamental é uma verdade criada a partir do ornamento e é também o modo de criá-la. Esse duplo movimento conceitual rompe os fundamentos da noção da existência de uma linguagem a-retórica ou mesmo de uma observação aretórica. Logo, o que passarei a observar em "O coração denunciador" são modos INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 89 possíveis de persuasão através de uma ornamentalidade que se constitui em domínios retóricos e que, em lugar de classificar para ensinar, artisticamente organiza-se à luz da negociação de realidades, tendo sempre em vista que aquilo que é apenas o é porque poderia ser de outro modo. No conto, os detalhes organizam-se de modo ornamental, como pilar e encrustação da narrativa, criando as circunstâncias do medo. Em "O coração denunciador", fragmentos e detalhes arranjam-se de modo a criar as verdades responsáveis pelo medo no conto: sucessivas transferências e substituições, por proximidade de sentido, relação de semelhança ou por outras implicações mútuas tranformam-no em um conto denunciador também no sentido de revelar artifícios retóricos e ornamentos em ação, em pleno trabalho do ornamental. Poe inicia a narrativa falando do estado de espírito em que se encontra o personagem. 42 O depoimento convoca o leitor a acompanhar a história não de um louco, mas a de um aflito. Essa distinção com que o narrador inicia o conto nos parece importante: embora anuncie que algum tipo de doença tenha lapidado seus sentidos, aguçando-os, o narrador faz questão de afirmar que essa doença não dilapidou sua percepção do mundo. É a história de uma aflição, portanto. Aqui, como em outros de seus contos 43 , logo no primeiro parágrafo já se sabe que algo quase inacreditável aconteceu. Não há qualquer razão objetiva para a idéia fixa que se forma na mente do narrador – a de matar seu vizinho idoso – a não ser o pálido olho azul do homem velho, doente de catarata. O olho, nesse caso, é fragmento e é detalhe. Não se trata, porém, de um recorte neutro na imagem do vizinho, já que é esse fragmento que dá início ao desejo de tirar a vida do "velho abutre". O historiador da arte Daniel Arasse propõe duas categorias de detalhe: o detalhe-particular (détailparticolare) e o detalhe-detalhe (détail-dettaglio), que não se opõem entre si, ao contrário, podem guardar, em determinadas obras, um sentido de complementaridade. Para ele, o particolare é uma pequena parte de uma figura, objeto ou de um conjunto (ARASSE: 1996, p. 11). Arasse observa, porém, que tudo seria muito simples se o detalhe não fosse também, além de um tipo de particular ou de fragmento, dettaglio no 42 “TRUE! — nervous — very, very dreadfully nervous I had been, and am; but why will you say that I am mad? The disease had sharpened my senses — not destroyed — not dulled them. Above all was the sense of hearing acute. I heard all things in the heaven and in the earth. I heard many things in hell. How, then, am I mad? Hearken! and observe how healthily — how calmly I can tell you the whole story.” (POE: 2002, p. 313). 43 Como, por exemplo, em "O barril de Amontillado"; "O caso do Sr. Valdemar"; "O enterramento prematuro", entre outros (POE: 1965, p. 224; 303; 290). Julio França (org.) 90 sentido italiano do termo, ou seja, o resultado ou o traço da ação daquele que "fez o detalhe", seja ele o pintor ou o espectador. Nesse sentido, para Arasse, o detalhe pressupõe um sujeito que "talha" um objeto. Ou, como sugere Omar Calabrese, a produção de detalhes depende da ação de um sujeito sobre um objeto. A palavra detalhe manifesta um programa de ação. Sua configuração depende do ponto de vista do "détaillant" (CALABRESE: 1985, p. 75-77). No conto de Edgar A. Poe, parece-nos que o entalhe deixa sua marca no quadro da narrativa. O personagem, completamente tomado pelos sentimentos que o olho do velho lhe inspira, deseja ardentemente arrancar aquele particular de seu contexto. A história desse conto, portanto é, em grande parte, o conteúdo do que Calabrese denomina "programa de ação" do detalhe. Duas modalidades de detalhe estão presentes no conto: a pequena parte de um objeto foi detalhada (entalhada segundo um desejo) para obter sua significação no conto. Por outro lado, quando a vemos, leitores do texto, ela se faz notar outra vez, é novamente marcada (re-marquée) (ARASSE: 1996, p. 12), entalhada pelo nosso olhar. Observemos, então, que há pelo menos, três níveis de detalhes em "O Coração Denunciador": aquele feito pela mão do autor, através de artífícios de pensamento e linguagem, o entalhe literal feito no interior da obra, pelo narrador-personagem, e, por fim, aquele que o olhar dos leitores refaz ao notar esses percursos. Logo, o medo do olho do vizinho, medo que faz gelar o sangue do narrador, que o paralisa e, ao mesmo tempo, é causa do movimento que dá origem ao enredo, é medo do outro, mas é também medo de si. Existe um conflito diante do fragmento, mas também do olhar que o detalhou, nesse caso, não o olhar do velho, mas o do próprio personagem. Notemos que a palavra "eye", em inglês, soa, inclusive, de modo semelhante a "I". O medo do olhar do outro é, ambivalentemente, também o medo de si. A respeito dessas ambivalências, Schor observa que, em sua tese de interpretação dos sonhos, Freud anui a existência de um certo trajeto de associações em que a forte carga psíquica de um evento passa a outro evento aparentemente insignificante. A esse movimento, Freud chama "déplacement", deslocamento (SCHOR: 1994, p. 109). O deslocamento seria, então, uma estratégia que visa a disfarçar um detalhe censurado pelo inconsciente através de uma banalização. Schor explica que para Freud, diversos males a que se dedica a psicanálise, como a histeria, a paranóia e a obsessão nervosa, são doenças do detalhe (SCHOR: 1994, p. 110). Assim, os detalhes possuem INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 91 um status provilegiado na teoria freudiana, já que são os eventos ou objetos aparentemente frívolos que recebem a carga dos outros "hiper-semantizados" (SCHOR: 1994, p. 109). Os eventos-índices passam a ter tamanha autonomia que ganham a aparência de serem independentes na elaboração de sua carga psíquica, quando são, no fundo, usurpadores de significações. Tal como os percebemos, os ornamentos são um tipo de detalhe na medida em que possuem uma aparente insignificância, mas carregam em si e no modo como se organizam no texto, múltiplas significações, como fragmento e como dettaglio. Embora concordemos com os termos do processo de deslocamento como descrito por Freud, é importante ressaltar que, ao contrário do que ele propõe para a interpretação dos sonhos, no texto literário não cabe pensar os detalhes, ou ornamentos, como usurpadores de sentidos. De nossa perspectiva, a escolha de um detalhe e não de outro, possui significação genuína. Essa escolha comunica-se com os demais elementos e opções feitas na narrativa, dando uma infinita carga de sentidos ao texto poeano. Esses sentidos, para serem investigados, não podem ser destacados do que representam, ao contrário, devem ser observados tal como se encontram, em seu trabalho ornamental. Assim, no conto, tendo sido arrebatado pelo olho do velho, e decidido a matá-lo por conta desse fragmento e detalhe, o personagem passa a espreitar sua vítima em busca da ocasião de concretizar o crime. A despeito, porém, do cuidado com que realizava cada uma de suas ações, o personagem era impedido de atingir o desejado desfecho fatal de seu plano por conta de um detalhe: sempre que chegava aos aposentos da vítima e conseguia lançar sobre seu olho um único raio de luz que o atingisse de modo estratégico, o olho estava fechado. Com o olho fechado, faltava o impulso de matar o velho, pois não era a integridade do homem a razão do incômodo, mas exclusivamente aquele seu particular. Não bastava para o assassino ver o olho do seu vizinho, mas era necessário ter a sensação de ser visto por ele. Essa minúcia do olho aberto, nos lembra o que diz o teórico da arte Georges Didi-Huberman no primeiro capítulo de seu livro "O que vemos, o que nos olha": “O que vemos só vale – só vive – em nossos olhos pelo que nos olha. Inelutável porém é a cisão que separa dentro de nós o que vemos daquilo que nos olha” (DIDI-HUBERMAN: 1998, p. 29). O olho precisa estar aberto para ser lido, detalhe e signo. Ao mesmo tempo, na obra poeana, o olho precisa estar aberto para ser novamente fechado. Didi-Huberman lembra que em Joyce, a perda da mãe de Stephen Dedalus faz que tudo que se apresenta a ver seja olhado pelo prisma dessa perda. Assim também, o personagem poeano precisa Julio França (org.) 92 fechar definitivamente o olhar daquele velho para que possa "tocar" seu medo, sua aflição diante daquele detalhe que o angustia de modo físico e inefável. Na madrugada do crime, pé ante pé, o personagem penetra o quarto e observa o velho que se sente observado. Ambos sentiam a iminência da morte, o velho agitava-se e gemia. Sabendo-se visto, tendo sido tocado pelo olhar do velho, e incitado pelas as batidas do coração de sua vítima, como que pelas batidas de um tambor,o narrador, finalmente, consegue matá-lo. Por fim, o olho não incomodaria mais. Após a morte do velho, é esse o primeiro pensamento do narrador. Uma complexa trama de sensações atinge seu ponto máximo, o olho fora definitivamente cerrado, com o que, assim esperava o assassino, seu problemas também terminariam. Após o feito, o personagem esquarteja a vítima e oculta os pedaços de seu corpo sob três tábuas do piso de madeira do quarto do defunto, escondendo assim, todas as evidências do crime. Algum vizinho, porém, tendo ouvido gritos, chama a polícia. Três oficiais chegam ao prédio. É então que começa a segunda parte do tormento do narrador. Com seus modos perfeitos, ele convence os oficiais de que tudo estava calmo e que nada de extraordinário teria acontecido ali, naquela noite. Apesar de certo de ter cometido um crime perfeito, um barulho começa a inquietá-lo, um som que aparentemente os policiais não ouviam. O bater do coração era tão alto, tão intenso, que o personagem não consegue acreditar que os oficiais não podiam ouvi-lo. Acha-se vítima de uma zombaria. Ao mesmo tempo, o coração do morto insistia em denunciar a angústia do personagem, batendo cada vez mais alto, cada vez mais forte. O processo de deslocamento ou sinédoque, assim, fica ainda mais claro porque a aflição do personagem não se encerra com o fechar do olho. Ele escolhe outra parte do todo para representar sua angústia, desta vez, o coração. O que se perde ali, o vazio que persegue o personagem, que o olha, seja ele materializado no próprio olhar cego ou em um coração morto que ainda pulsa, é o verdadeiro tema do conto, o medo do outro, do objeto externo, que é medo de si, medo do próprio entalhe que realiza no mundo, dos próprios cortes de que é capaz. O personagem não suporta a angústia e, por fim, mostra aos oficiais de onde vem o ruído ensurdecedor – do coração que pulsa sob a madeira. O coração é, por fim, completamente exposto, aos olhos dos oficiais. É preciso que eles também vejam, que eles também "toquem com os olhos", que saibam o que aconteceu. Lendo Joyce, Didi-Huberman revira a sugestão que está em Ulisses, "fechemos os olhos para ver", dizendo, sobre o trabalho visual que se dá quando vemos o mar, uma obra de INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 93 arte ou alguém que morre, que é preciso que "abramos os olhos para experimentar o que não vemos" (DIDI-HUBERMAN: 1998, p. 34). No texto poeano, esse é um trabalho do ornatus: como detalhe da narrativa. Especialmente, assumindo a forma de detalhes metonímicos, o trabalho do ornamental materializa vazios, ajudando-nos a ver o invisível, mostrando, através da perda e da destruição dos corpos, outras lacunas que não podemos adivinhar. Podemos, sim, por outro lado, concluir que o outro a quem o personagem teme personifica essas lacunas. Pensando que a palavra angústia e a palavra angina possuem a mesma raiz latina, angor (DELUMEAU: 1989, p. 25), podemos compreender porque Edgar Poe fez a opção pelo coração denunciador no desfecho do conto: a dor no peito do assassino pulsa no coração de sua vítima. O detalhe que se destaca na visão do outro denuncia o próprio personagem: na história poeana, podemos dizer, the eye tells the tale of the "I", confirmando a afirmação de Schor, de que para Freud os detalhes são o destino (SCHOR: 1994, p. 103) – caminho, contingência e ponto de chegada. REFERÊNCIAS : ARASSE, Daniel. Le Détail. Pour une histoire rapprochée de la peinture. Paris: Flammarion, 1996. BONNE, Jean-Claude. « De l’ornement à l’ornamentalité. La mosaïque absidiale de San Clemente de Rome. » In: L’ornement dans la peinture murale. Colloque Saint-Lizier. Poitiers: Université de Poitiers, 1997. p. 103-118. CALABRESE, Omar. L’età neo-barroca. Rome-Bari: Laterza, 1985. DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente 1300-1800. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Trad. Paulo Neves.São Paulo: 34, 1998. LAUSBERG, Heinrich. Manual de Retórica Literaria. Trad. José Pérez Riesco. Madrid: Gredos, 1966. POE, Edgar Allan. Tales of Mistery and Imagination. London: Everyman, 2002. Ed. Graham Clarke. ______. Ficção completa, poesia e ensaios. Org. e trad. Oscar Mendes e Milton Amado. Rio de Janeiro: Aguilar, 1965. SCHOR, Naomi. Lectures du détail. Paris: Nathan, 1994. WELLBERY, David E. e BENDER, John. Retoricidade: Sobre o retorno modernista da retórica. In: WELLBERY, David E. Neo-Retórica e Desconstrução. Trad. Angela Melim. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998, p. 11-47. Julio França (org.) 94 Os reflexos do medo nas personagens de “Obloqueio”, de Murilo Rubião e “Medo da eternidade”, de Clarice Lispector. Thalita Martins Nogueira 44 Paradoxalmente, a existência nega a lógica e o racional. A lucidez existe somente num momento único, o momento de saber existencial, o momento que pode coincidir com a morte. (JOSEF: 2006, p. 207 - 208) O medo é uma das inquietações humanas mais intrigantes e complexas, uma vez que provoca no ser humano sensações e reações diversas. Tal perturbação é em geral desencadeada pela experienciação de situações que ofereçam perigo tanto físico como psíquico, acarretando na perda de segurança e equilíbrio interno do indivíduo. É com base na definição acima proposta que o presente trabalho se justifica, já que se buscará compreender os reflexos que esse medo produz em personagens de narrativas curtas de Clarice Lispector e Murilo Rubião. É relevante dizer que os sentimentos de medo que serão analisados na narrativa clariciana “Medo da Eternidade”, bem como no conto rubiano “O bloqueio” apresentam-se de maneira bastante diversa, confirmando assim a notável diferença na construção narrativa de ambos os autores e no modo de abordagem do tema em questão, apesar da grande proximidade conservada por eles no que diz respeito às inúmeras aflições que perturbam suas personagens. As personagens dos autores em questão configuram-se como prenunciadoras das sensações de agonia e desespero trazidas pelo período histórico desintegrador no qual vive o homem. Em um ambiente de desesperança em relação às descobertas científicas, explicações de cunho religioso e/ou qualquer tipo de explicação alternativa, o homem se vê impotente diante das questões que se colocam à sua frente, assim como de si mesmo, uma vez que sua questão identitária já não demonstra o equilíbrio esperado, devido à fragmentação do sujeito cartesiano bem delimitado. Segundo Stuart Hall, um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no final do século XX. Isso está fragmentando 44 Especializanda UERJ e Mestranda UFF. INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 95 as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a idéia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Esta perda de um “sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento – descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos – constitui uma “crise de identidade” para o indivíduo. (HALL: 2005, p. 9) Assim, o homem se torna incapaz de dar respostas plausíveis aos questionamentos que surgem, estando impossibilitado de lidar de maneira coerente e racional com as sensações diversas que acompanham esse período de transformação, sendo uma delas o medo. Bauman coloca em pauta a questão do medo dizendo que ele é mais assustador quando difuso, disperso, indistinto, desvinculado, desancorado, flutuante, sem endereço nem motivo claros; quando nos assombra sem que haja uma explicação visível, quando a ameaça que devemos temer pode ser vislumbrada em toda parte, mas em lugar algum se pode vê-la. “Medo” é o nome que damos a nossa incerteza: nossa ignorância da ameaça e do que deve ser feito – do que pode e do que não pode – para fazê-la parar ou enfrentá-la, se cessá-la estiver além do nosso alcance. (BAUMAN: 2008, p. 8) É esse tipo de ameaça sem ancoragem bem definida e, por vezes, desencadeada por aquilo que é, de certa forma, “irreal” ou inconcebível, que assombra as personagens claricianas e rubianas em questão. O medo é um elemento vivo e de grande constância nesse tipo de narrativa em que a condição humana é posta em cheque, fazendo com que a condição de amedrontamento vivenciada domine as ações das personagens de modo a configurar-se como companhia do desespero do qual o humano não consegue se dissociar. Bauman afirma que, no ambiente líquido-moderno, contudo, a luta contra os medos se tornou tarefa para a vida inteira, enquanto os perigos que os deflagram – ainda que nenhum deles seja percebido como inadministrável – passaram a ser considerados companhias permanentes e indissociáveis da vida humana. Nossa vida está longe de ser livre do medo, e o ambiente líquido-moderno em que tende a ser conduzida está longe de ser livre de perigos e ameaças. A vida inteira é agora uma longa luta, e provavelmente impossível de vencer, contra o impacto potencialmente incapacitante dos medos e contra os perigos, genuínos ou supostos, que nos tornam temerosos. (BAUMAN: 2008, p. 15) Julio França (org.) 96 Observa-se que o medo acompanha o processo de transformação do homem. O medo do indivíduo relaciona-se a diversos fatores históricos que ao longo dos tempos colaboraram para delinear a condição líquido-moderna do homem tais como desesperança em relação à ciência, sensação de impotência e incapacidade de resposta diante dos questionamentos que surgem, e a consequente fragmentação identitária, que corroboram na aparição de sensações de agonia e desespero que se ligam diretamente ao medo. Na crônica “Medo da eternidade”, de Clarice Lispector, a personagem principal, que se incumbe de narrar uma de suas experiências de infância, expõe sua sublime sensação de medo ao leitor, a partir de uma arguciosa analogia a um chicle de bola. Ao experimentar pela primeira vez um chicle que sua irmã lhe dera, a personagem autodiegética narra seu fascinante contato com a sensação de eternidade. Afinal minha irmã juntou dinheiro, comprou e ao sairmos de casa para a escola me explicou: – Tome cuidado para não perder, porque esta bala nunca se acaba. Dura a vida inteira. – Como não acaba? – Parei um instante na rua, perplexa. – Não acaba nunca e pronto. Eu estava boba: parecia-me ter sido transportada para o reino de histórias de príncipes e fadas. Peguei a pequena pastilha cor-de-rosa que representava o elixir do longo prazer. (LISPECTOR: 1999, p. 290) Nota-se que, nesse primeiro momento, a personagem fica maravilhada com aquilo que desconhece, fantasiando em seu imaginário o possível prazer que tal elemento ignoto proporcionaria a ela. E eis-me com aquela coisa cor-de-rosa, de aparência tão inocente, tornando possível o mundo impossível do qual eu já começara a me dar conta. Com delicadeza terminei afinal pondo o chicle na boca. – E agora o que eu faço? – Perguntei para não errar no ritual que certamente deveria haver. (LISPECTOR: 1999, p. 290) Assim que sua irmã explica como deveria ela saborear o chicle cor-de-rosa, ratificando seu caráter eterno, que só poderia ser perdido caso ela perdesse a bala, a menina se vê espantada. INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 97 Perder a eternidade? Nunca. O adocicado do chicle era bonzinho, não podia dizer que era ótimo. E, ainda perplexa, encaminhávamo-nos para a escola. – Acabou-se o docinho. E agora? – Agora mastigue para sempre. (LISPECTOR: 1999, p. 290) No entanto, quando a personagem se depara com a verdadeira sensação proporcionada por aquele chicle e a conseqüente reflexão trazida pela sua representação imaginária, ela se frustra. Assustei-me, não saberia dizer por quê. Comecei a mastigar e em breve tinha na boca aquele puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha gosto de nada. Mastigava, mastigava. Mas me sentia contrafeita. Na verdade eu não estava gostando do gosto. E a vantagem de ser bala eterna me enchia de uma espécie de medo, como se tem diante da idéia de eternidade ou de infinito. Eu não quis confessar que não estava à altura da eternidade. Que só me dava era aflição. (LISPECTOR: 1999, p. 290) É interessante perceber que a representação do medo na narrativa clariciana não se configura como uma ameaça real, isto é, cujo elemento de reprodução encontre-se descrito nas marcas textuais como algo pertencente ao plano fatual vivenciado pela personagem. O elemento que produz o medo, apesar de estar presente no imaginário da personagem, oculta sua face. Valendo-se das palavras de Bauman, pode-se então dizer que o sentimento de impotência – o impacto mais assustador do medo – reside, contudo, não nas ameaças percebidas ou imaginadas em si, mas no espaço amplo, embora abominavelmente mobiliado, que se estende entre as ameaças de que emanam os medos e nossas reações – as disponíveis e/ou consideradas realistas. (BAUMAN: 2008, p. 32) Na contemporaneidade as fontes de prazer estético do medo na literatura ultrapassaram o campo do sobrenatural e atingiram o campo do sublime, do que é indizível, encontrando seu espaço no silêncio reflexivo que inquieta o ser humano. Tal viés do medo é experimentado pela personagem de Clarice Lispector, já que esse sentimento não é da ordem de algo concreto, situação real de perigo que afronta diretamente a personagem, mas por uma contradição apavorante que povoa apenas o imaginário da mesma, fazendo com que ela se veja impossibilitada de encontrar possíveis respostas aos questionamentos. Julio França (org.) 98 Outra questão relevante a respeito da escritura clariciana e conseqüentemente da crônica em questão, é a originalidade com que a autora coloca temas que desafiam o sujeito humano, colocando sua existência em cheque de modo a engendrar situações que impossibilitam um fechamento das questões discutidas. Afinal, como bem afirma Bella Josef “As personagens de Clarice vivem num caos e lutam para compreender sua razão de existir”. (JOSEF: 2006, p. 208). A respeito do medo na narrativa rubiana, pode-se dizer que ele se constitui como uma ameaça real para a personagem, à medida que é desencadeada por fatores externos e, especificamente no conto em questão, pela destruição misteriosa do prédio onde a personagem se encontra hospedada. Nesse contexto, a sensação de medo é provocada pela situação insólita a que a personagem está submetida, além de não se configurar simplesmente como algo fruto das reflexões da mesma, mas de ser absolutamente legítimo na realidade vivenciada por ela, já que tal narrativa utiliza-se de marcas textuais que apontam para uma natureza concreta do objeto responsável pelo desencadeamento da sensação de pavor na personagem. “O bloqueio”, de Murilo Rubião, apresenta uma personagem que se encontra hospedada em um edifício recém-construído, sendo ela a única hóspede do mesmo. No entanto, ela não estranha a situação de ser a única moradora, nem de ver o prédio ser direcionado a uma completa destruição, já que ela permanece no edifício. Ligou para a portaria. Tinha pouca esperança de receber esclarecimentos satisfatórios sobre o que estava ocorrendo. O próprio síndico atendeu-o: – Obras de rotina. Pedimos-lhe desculpas, principalmente sendo o senhor nosso único inquilino. Até agora, é claro. – Que raio de rotina é essa de arrasar o prédio todo? – Dentro de três dias estará tudo acabado – disse, desligando o aparelho. – Tudo acabado. Bolas. Encaminhou-se à minúscula cozinha, boa parte dela tomada por latas vazias. Preparou sem entusiasmo o jantar, enfarado de conservas. (RUBIÃO: 2008, p. 247) Antes de realizar a ligação para a portaria do prédio para obter possíveis esclarecimentos a respeito do barulho no edifício, a personagem Gérion é despertada de seu sono pelo trabalho de uma máquina de construção civil. Acordou em pânico: uma poderosa serra exercitava os seus dentes nos andares de cima, cortando material de grande resistência, que se estilhaçava ao desintegrar-se. INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 99 Ouvia, a espaços, explosões secas, a movimentação de uma nervosa britadeira, o martelar compassado de um pilão bate-estaca. Estariam construindo ou destruindo? De temor à curiosidade, hesitou entre verificar o que estava acontecendo ou juntar os objetos de maior valor e dar o fora antes do desabamento final. (RUBIÃO: 2008, p. 245-246) Mesmo estando ciente de uma possível destruição, a personagem se vê imersa em seus pensamentos sobre os motivos que o levaram a se hospedar naquele prédio, bem como sobre a falta de motivação da mesma para retornar ao seu ambiente familiar. Entretanto, no momento em que ela provavelmente decide render-se à necessidade de retorno, vê-se impossibilitada de deixar o edifício, pois a construção começa a se desintegrar diante dela. Gérion descia a escada indeciso quanto a necessidade do sacrifício. Oito andares abaixo, a escada terminou abruptamente. Um pé solto no espaço, retrocedeu transido de medo, caindo para trás. Transpirava, as pernas tremiam. Não conseguia levantar-se, pregado ao degrau. Foi demorada a recuperação. Passada a vertigem, viu embaixo o terreno limpo, nem parecendo ter abrigado antes uma construção. Nenhum sinal de estacas, pedaços de ferro, tijolos, apenas o pó fino amontoado nos cantos do lote. Voltou-se ao apartamento ainda sob o abalo do susto. Deixou-se cair no sofá. Impedido de regressar a casa, experimentou o gosto da plena solidão. (RUBIÃO: 2008, p. 248-249) A personagem de Murilo Rubião vê na possibilidade de sua destruição física o cessar das perturbações que a acometem. Nesse contexto, existe uma clara diferença entre o conto rubiano e a narrativa clariciana no que tange à questão do medo, uma vez que não há na narrativa de Clarice um direcionamento para a destruição física e/ou psicológica da personagem. Em “Medo da eternidade”, o medo encontra seu espaço na possibilidade de transporte do leitor para a esfera do intangível, daquilo que está para além do entendimento humano, legitimando dessa forma a característica existencialista tão cara à obra da autora em questão. Em Murilo Rubião, pode-se dizer também que há certo fascínio por aquilo que amedronta, além de haver uma expectativa da personagem para que atinja a condição de não-existência na realidade fatual em que se encontra. A par do desejo de enfrentá-la, descobrir os segredos que a tornavam tão poderosa, tinha medo do encontro. Enredava-se, entretanto, em seu fascínio, apurando o ouvido para captar os sons que àquela hora se Julio França (org.) 100 agrupavam em escala cromática no corredor, enquanto na sala penetravam os primeiros focos de luz. (RUBIÃO: 2005, p. 250) Ao fim da narrativa, Gérion hesita entre ir ao encontro da máquina, experimentando assim a destruição, e esperar que ela venha até ele para cumprir seu intento. Repetiu a experiência, mas a máquina persistia em se esconder, não sabendo ele se por simples pudor ou se porque ainda era cedo para mostrar-se, desnudando seu mistério. No ir e vir da destruidora, as suas constantes fugas redobravam a curiosidade de Gérion, que não suportava a espera, a temer que ela tardasse em aniquilá-lo ou jamais o destruísse. (RUBIÃO: 2008, p. 251) A partir do que foi exposto pode-se vislumbrar que o elemento insólito presente em ambas as narrativas é parte essencial na construção narrativa das mesmas, uma vez que as situações insólitas vivenciadas pelas personagens, devido ao estranhamento que causam, têm como conseqüência o medo, que é o foco dos questionamentos apresentados ao longo das análises empreendidas. É interessante observar que, já em 1989, Antonio Candido observou a proximidade e a relação existentes entre a literatura clariciana e rubiana, principalmente no que diz respeito à inauguração de uma literatura inovadora no Brasil. Mas chegando à última fase da ficção brasileira, que se manifesta nos anos 60 e 70, devemos voltar atrás para registrar a obra de alguns inovadores, como Clarice Lispector, Guimarães Rosa e Murilo Rubião, que produziram um toque novo, percebido desde logo, nos três casos, por um crítico de grande acuidade — Álvaro Lins; mas que, sobretudo quanto aos dois últimos, só muito mais tarde seria captado pelo público e a maioria da crítica. (CANDIDO: 1989, p. 206) Analisando o medo em ambas as narrativas é possível perceber que o prazer estético do mesmo funciona de modo a transferir para o leitor as possíveis sensações experienciadas pelas personagens das mesmas, de modo a, através do efeito catártico, retirar o leitor de seu ponto de equilíbrio e lançá-lo em reflexões a respeito do papel da criação artística na sociedade em que está inserido, à medida que uma das possíveis intenções da produção literária de uma sociedade é deslocar o pensamento crítico do leitor. Como exemplos vivos de uma escrita de excelência na literatura brasileira do século XX, Murilo Rubião e Clarice Lispector constroem narrativas que entregam ao INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS – Simpósios 2 – Dialogarts – ISBN 978- 85- 86837- 81- 4 101 leitor personagens que se configuram como reflexos do dilaceramento do indivíduo contemporâneo dominados pelo medo originário de sua própria constituição humana. REFERÊNCIAS BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Trad. de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. CANDIDO, Antonio. A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Editora Ática, 1989. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. JOSEF, Bella. A máscara e o enigma - A modernidade: da representação à transgressão. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora, 2006. LISPECTOR, Clarice. “Medo da eternidade”. In:______. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.289-291. RUBIÃO, Murilo. “O bloqueio”. In:______. Contos reunidos. São Paulo: Ática, 2005, p.245-251. Julio França (org.)