revista política social e desenvolvimento #07
ASSISTÊNCIA SOCIAL:
AVANÇOS E DESAFIOS PARA
A UNIVERSALIZAÇÃO DA CIDADANIA
Barbara Cobo
Denise Colin
Juliana Pereira
Rodrigo Coelho
ANO 02_Outubro 2014
plataforma política social
Código ISSN: 2358-0690
Índice
04
Apresentação
Eduardo Fagnani e homas Conti
06
Os sentidos do
Sistema Único de
Assistência Social
Rodrigo Pereyra de Souza Coelho
26
Desaios da Seguridade Social:
Breves considerações sobre a organização,
controle social e inanciamento da assistência
social no Brasil
Denise Ratmann Arruda Colin e
Juliana Maria Fernandes Pereira
38
A atual estratégia de combate
à pobreza no Brasil no contexto
das conquistas sociais de 1988:
Desaios à inclusão de cidadãos
e erradicação da miséria
Barbara Cobo
apresentação
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
Eduardo Fagnani
Professor do
Instituto de Economia
da Unicamp, pesquisador
do Centro de Estudos
Sindicais e do Trabalho
(Cesit) e coordenador da
rede Plataforma Política
Social - Agenda para o
Desenvolvimento
homas Victor Conti
[email protected] | www.thomasconti.blog.br
A presente edição trata da questão da Assistência Social,
que se vem consolidando desde a Constituição de 1988
como componente da Seguridade Social. Em meados da
década passada, esse árduo processo foi impulsionado
pela institucionalização do Sistema Único de Assistência
Social (SUAS).
Em Os sentidos do Sistema Único de Assistência Social,
Rodrigo Pereyra de Souza Coelho retoma esse longo
percurso histórico até o SUAS, caracterizado pela tensão
entre a estrutura social extremamente desigual e as
práticas desorganizadas e clientelistas que dominaram o
setor durante parte signiicativa da história brasileira.
4
Mestrando em
desenvolvimento
econômico pelo
Instituto de
Economia da
Unicamp
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
No artigo Desaios da Seguridade Social: Breves
Considerações sobre a Organização, Controle Social e
Financiamento da Assistência Social no Brasil, Denise
Ratmann Arruda Colin e Juliana Maria Fernandes
Pereira analisam mais de perto como foi construído o
SUAS, seus princípios norteadores e as diversas frentes
de atuação planejadas para atacar os problemas das
populações marginalizadas.
Em A atual estratégia de combate à pobreza no Brasil
no contexto das conquistas sociais de 1988: desaios à
inclusão de cidadãos e erradicação da miséria, Barbara
Cobo discute alguns principais empecilhos que ainda
restam para o avanço do SUAS. Na parte inal do artigo, a
autora faz uma análise cuidadosa das diferentes propostas
disponíveis para que esses problemas tenham uma solução
encaminhada no sentido da progressiva universalização
da assistência social e a garantia desta como um direito
constitucional à proteção contra a pobreza e a miséria.
Em conjunto, esta edição da revista sintetiza contribuições
centrais para que possamos entender o tamanho e a
complexidade da construção de um Sistema Universal de
Assistência Social. Estamos certos de que todos interessados
na garantia dos direitos do cidadão no Brasil têm muito a
ganhar acompanhando a linha destes especialistas no tema.
Boa leitura!
5
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
Os sentidos do Sistema Único
de Assistência Social
Rodrigo Pereyra de Sousa Coelho
1. Introdução
O Sistema Único de Assistência Social
(SUAS) começou a ser desenhado na
Conferência Nacional de Assistência
Social de dezembro de 2003. A partir
desta Conferência foi formulada uma
nova Política Nacional de Assistência
Social (PNAS) e diversas Normas
Operacionais Básicas foram editadas; o
investimento em assistência social cresceu nas três esferas de governo; e novos
programas, serviços, projetos e equipamentos foram criados.
O SUAS é um sistema que se insere
dentro do projeto social inscrito na
6
Doutor em Desenvolvimento
pelo Instituto de Economia
da Unicamp, professor da
Faculdade Santa Lúcia e
pesquisador-associado do
NEPP/Unicamp
Constituição Federal de 1988. Esta
Constituição reconheceu e formalizou a
assistência social como política pública
de seguridade social, no mesmo patamar das políticas de saúde e de previdência social. Ela buscou fortalecer
uma perspectiva cidadã para a ação do
Estado, não só no âmbito das políticas
sociais, mas também na forma de relacionamento entre Estado e sociedade e
entre as três esferas de governo.
Porém, nos 15 anos seguintes à
promulgação da Constituição, diversas estratégias foram utilizadas para
postergar a concretização destes ideais.
Somente com o início do Governo Lula,
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
em 2003, a área de assistência volta a se
estruturar de acordo com este projeto
progressista, retomando os conceitos de
1988 que foram aprimorados ao longo
de década e meia de debates entre os
stakeholders do setor.
Neste contexto, o SUAS chega para
transformar profundamente a política de assistência social, criando formas
de organização e gestão que trazem
um espírito absolutamente novo para o
setor, rompendo com práticas e ideologias que persistiram desde os primórdios da assistência social como política
pública na década de 1930. Por conta
disto, quando a implementação de um
novo paradigma da política se inicia,
ela entra em conlito com as formas
tradicionais de organização do setor, o
que traz fortes desaios para gestores e
trabalhadores do SUAS e para a sociedade civil em geral.
Este artigo busca discutir os desaios
colocados para a implementação do
SUAS no Brasil a partir da necessidade
de se ter uma unidade entre a teoria que
sustenta o Sistema e as ações que lhe dão
forma concreta. Para isto, ele está dividido em 4 partes, incluindo esta introdução. No próximo tópico montaremos
uma evolução estilizada dos conceitos
que norteiam a política de assistência
social desde seus primórdios até 2003.
Em seguida, vamos procurar entender
os sentido pretendidos para a política de
assistência social a partir da formulação
do SUAS. E por im, algumas considerações apontam para a necessidade de
novas pesquisas e indagações.
2. Os difíceis caminhos da política de
assistência social antes do SUAS
Grosso modo, até a Assembleia
Nacional Constituinte, em 1987, vigorou
uma política de assistência social que
tinha como marcas principais o assistencialismo e o clientelismo. Desde sua
oicialização como ação governamental,
no inal da década de 1930, a assistência
social consistia num conjunto de ações
e programas desenvolvidos por diversos
órgãos públicos sem qualquer mecanismo de articulação. Nos anos 1940,
surge a Legião Brasileira de Assistência
que avança de sua missão de atender
às famílias dos soldados que estavam
na Europa, com a entrada do Brasil na
Segunda Guerra Mundial, para uma
atuação mais ampla de assistência social.
Também na década de 1940, é criado o
Serviço de Assistência ao Menor (SAM).
O SAM tinha como missão amparar,
socialmente, os menores carentes abandonados e infratores, centralizando a
execução de uma política de atendimento, de caráter corretivo-repressivo-assistencial em todo território nacional. Na
verdade, o SAM foi criado, para cumprir
as medidas aplicadas aos infratores pelo
Juiz, tornando-se mais uma administradora de instituições do que, de fato,
uma política de atendimento ao infrator
(LIBERATI, 2002: 60). Em 1 de dezembro de 1964, a Fundação Nacional do
Bem Estar do Menor (Funabem) passou
a atuar no lugar do extinto SAM.
Tanto a Funabem quanto a LBA atuavam com base em estruturas muito
7
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
centralizadas, que estabeleciam convênios e parcerias diretamente entre
Brasília e as inúmeras entidades sociais
espalhadas pelo país deixou um legado
marcado por algumas características que
apontam para a ineiciência da política adotada no período. Segundo NEPP
(1987), Sposati et alli (1987) e Teixeira
(1989), os principais problemas deste
modelo de atuação foram:
Fragmentação
institucional,
com
superposição de ações e de públicos
atendidos;
Excesso de experiências-piloto que não
se generalizam;
Excessiva centralização e burocratização das ações;
Baixo valor para o financiamento das
ações e irregularidade no repasse de
verbas;
Obscura relação entre Governo e entidades sociais, marcada pela falta de
controle público, utilização clientelística
e eleitoreira dos recursos e desvio de
verbas;
Insuficiência de recursos humanos, aliada
à sua baixa qualificação e remuneração;
Ausência de mecanismos de controle,
monitoramento e avaliação dos programas desenvolvidos.
Esta situação se manteve sem maiores
questionamentos até a segunda metade dos
anos 1970. A partir de então, a organização
de setores ligados ao serviço social começa
a questionar vigorosamente o caráter
8
assistencialista e clientelista desta política social. O período ditatorial ampliou
quantitativamente o número de assistentes
sociais em atividade, incorporando especialmente os membros de novas camadas
médias urbanas. A Reforma Universitária
promovida em 1968 legitimou o Serviço
Social no âmbito acadêmico e propiciou
o início de uma produção que reletia
sobre os rumos e o sentido da proissão
(NETTO, 2006). Num plano mais restrito
aos aspectos proissionais dos trabalhadores da área, estava em crescimento o
Movimento de Reconceituação do Serviço
Social que discutia as práticas da proissão
em toda a América Latina desde meados
dos anos 70.
Toda esta movimentação desaguou no
III Congresso Brasileiro de Assistência
Social (1979), quando um novo projeto
político para a proissão começou a ganhar
força. Este Congresso, conhecido como o
Congresso da Virada, seguiu repercutindo
na reforma curricular do curso de serviços social ocorrida em 1982, na mudança de foco das entidades de classe como o
Conselho Federal de Assistência Social e a
Associação Brasileira de Ensino de Serviço
Social.
Porém, este crescimento da mobilização
dos proissionais e acadêmicos do setor
não encontrou uma contrapartida efetiva
na mudança de rumo das políticas federais
praticadas nos últimos anos da ditadura
militar, tal como observado junto a outros
grupos de pressão progressistas. A assistência social era, ainda no início da década
de 80, um conjunto de ações e programas
desenvolvidos por diversos órgãos públicos
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
sem qualquer mecanismo de articulação,
com um caráter pontual e descontínuo, e
grande instabilidade e insuiciência no seu
inanciamento.
Conforme dito no início deste tópico,
este caráter conservador da assistência
social perde espaço durante a Assembleia
Nacional Constituinte (1987-1988). A
Constituinte foi o desaguadouro dos
debates, propostas e reivindicações que,
desde a virada da década de 1970 para
1980, vinham repercutindo com intensidade cada vez maior na sociedade.
No tocante à política social, a
Constituição de 1988 representou uma
verdadeira revolução, inclusive trazendo pela primeira vez um Título especíico para este tema – o Título VIII (Da
Ordem Social).
A nova Constituição do Brasil altera signiicativamente o quadro social da nação rumo
à conquista dos plenos direitos de cidadania:
amplia o escopo dos direitos sociais, modiica
o peril das relações trabalhistas no país e
deine um novo padrão descentralizado de
intervenção pública na área social, envolvendo importantes alterações na estrutura
tributária e nas atribuições e responsabilidades do Estado (NEPP, 1989: 17).
Dentre as diversas inovações do texto
constitucional, um ponto central no
projeto progressista é o conceito de
Seguridade Social, que “compreende um
conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade,
destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência
social”, conforme escrito no artigo 194 da
Constituição. Com este conceito, o texto
quebra o vínculo contributivo que era
a base do sistema de proteção social até
então existente. Toda a sociedade tornase responsável pelo inanciamento destas
políticas. Em outras palavras, a Seguridade
Social “redeine os limites da própria cidadania” (NEPP, 1989, p.23).
Ainda pensando no inanciamento das
políticas, a Carta Magna idealizou um
orçamento especíico para a Seguridade
Social. O Orçamento da Seguridade
Social (OSS) continha potencial para
produzir alguns impactos que o tornava importante para o novo desenho de
proteção social planejado na Constituição.
Primeiramente, ele permitiria um maior
controle sobre os recursos destinados à
área; em segundo lugar, haveria uma estabilidade de recursos com fontes deinidas
e diversiicadas; o OSS também exigiria
um planejamento integrado das áreas que
integravam a Seguridade Social no sentido de elaborar um orçamento único –
abrindo espaço para uma importante ação
intersetorial (FAGNANI, 2005).
As novas políticas sociais desenhadas pela Constituição, entretanto, ainda
precisavam ser regulamentadas e contar
com apoio federal em seus processos de
implantação. Grandes obstáculos, porém,
surgiram no caminho. No aspecto econômico, o inal do Governo Sarney caminhava rapidamente para uma hiperinlação e
para a total desorganização do inanciamento do setor público. Politicamente, a
reorganização das forças conservadoras
durante o processo Constituinte mudou
9
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
“Tanto Ivanete Boschetti
(2006) quanto Eduardo
Fagnani (2005) ressaltam que a continuidade
da assistência social como
campo de “relações obscuras” da sociedade com o
Governo e o fortalecimento da concepção clientelística e assistencialista das
ações atendiam aos interesses das camadas conservadoras que apoiaram o
inal do Governo Sarney e
o Governo Collor.”
o tom do governo, que assumiu seu lado
mais retrógrado. E cabia a este governo implementar um sistema de proteção
social indesejado pelas forças que tinham
conseguido se aglutinar em torno do
Centrão e que agora davam sustentação
política ao Presidente 1.
É nesta conjuntura adversa que avança
a regulamentação dos artigos que tratam
10
da Seguridade Social. Os Ministérios da
Saúde, da Previdência e do Planejamento
(neste, mais especiicamente, o IPEA) icaram com a missão de elaborar os projetos
de regulamentação. Diversas visões de
mundo se chocaram durante o processo de
regulamentação da política de assistência
social.
O Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre
Políticas Públicas/UnB elaborou, em
parceria com o IPEA, um projeto que se
inspirava em princípios que balizavam a
construção do Sistema Único de Saúde –
SUS (PEREIRA, 1996). Havia, ao mesmo
tempo, outro projeto em discussão, este
elaborado pela Associação Nacional de
Servidores da LBA (Anasselba), cujo
principal objetivo era evitar o desmonte
da estrutura da Fundação LBA, por meio
da manutenção de um organismo federal
com atribuição de executar a política (e
não apenas deinir diretrizes). Por im,
mais um projeto alternativo foi apresentado pela Secretaria Nacional de Assistência
Social do MPAS. “Como esse pré-projeto
foi elaborado no âmbito da MPAS, parece
que ele seguiu a orientação dos especialistas em técnicas atuariais previdenciárias:
reduzir ao mínimo o campo assistencial,
para que este não absorvesse recursos da
previdência” (BOSCHETTI, 2006, p. 199).
Assim, o objetivo deste pré-projeto era
reduzir ao máximo o tamanho da assistência social, principalmente por meio do
estreitamento de regras para concessão de
benefícios assistenciais.
As discussões sobre a regulamentação
da área não chegaram a um bom termo
no governo Sarney. Durante o mandato de
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
Collor, o Poder Legislativo chegou a aprovar o Projeto de Lei 3.099/89, mas em 17
de setembro deste ano, o Presidente Collor
vetou na íntegra o projeto recém aprovado. Durante o período pós Constituinte,
o Poder executivo federal se empenhou
o quanto pode para retardar as transformações progressistas que estavam sendo
demandadas para esta política social.
Tanto Ivanete Boschetti (2006) quanto
Eduardo Fagnani (2005) ressaltam que a
continuidade da assistência social como
campo de “relações obscuras” da sociedade com o Governo e o fortalecimento da
concepção clientelística e assistencialista
das ações atendiam aos interesses das
camadas conservadoras que apoiaram
o inal do Governo Sarney e o Governo
Collor. Assim, a ação da LBA e a concessão indiscriminada de certiicados de entidade ilantrópica (que permitia acesso a
recursos públicos e isenção de impostos)
foram instrumentos de coesão e idelização de uma base de apoio político ao
Executivo Federal.
Particularmente, a gestão de Rosane
Collor frente à LBA foi desastrosa. A
primeira-dama assumiu a função de
presidente, como era tradição, e assumiu também as tarefas de direção
11
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
administrativa da instituição, o que não
era de praxe.
Sob sua gestão, a LBA seguiu duas
linhas de ação que reaproximaram a
assistência social da caridade privada.
Primeiramente, (...) de instituição pública que deveria materializar os direitos
assistenciais com recurso público, ela
assumiu postura de instituição ilantrópica e passou a empreender verdadeiras
e amplas campanhas de arrecadação de
doações junto à sociedade. (...)
Em segundo lugar, sob a justiicativa
de concretizar a descentralização e a
participação popular previstas constitucionalmente, a LBA começou a transferir
suas ações, programas e serviços (...)
a associações ilantrópicas e/ou associações comunitárias ou de moradores
(BOSCHETTI, 2006: 215).
Além do aprofundamento da visão de
assistência social como ilantropia e caridade, a LBA de Rosane Collor viu diminuir o total de recursos investidos em seus
programas, e consequentemente o número
de usuários. A LBA do período também
foi foco de denúncias de desvio de verbas
e corrupção.
Com o impeachment do Presidente
Collor, o breve governo de Itamar Franco
traz uma nova guinada na condução da
política de assistência social, recolocando
-a nos trilhos propostos pela Constituição
de 1988. Além da promulgação da Lei
Orgânica de Assistência Social (LOAS),
que regulamentou o setor, o governo
12
ainda implantou o Conselho Nacional de
Assistência Social (CNAS) com vistas a
cumprir a diretriz de controle social da
política estabelecida pelos Constituintes.
Com a LOAS em vigor e com o CNAS
instalado, poderia parecer que a estruturação da política de assistência social estava
em um caminho sem volta. Os oito anos
dos dois mandatos do Presidente Fernando
Henrique Cardoso, entretanto, mostraram
uma realidade bem diferente. O Governo
FHC pretendeu adotar um modelo de
subsidiariedade, onde o protagonismo das
ações de assistência social coube à sociedade civil, cabendo ao Estado apenas um
papel subsidiário.
Em 1995, durante o Governo FHC, a
LBA e a Funabem foram inalmente extintas, deixando um grande espólio: mais de
8 mil servidores; 3 mil voluntários; 9.575
convênios estabelecidos em 4 mil municípios. E tudo isto foi abruptamente extinto
no dia 1º de janeiro, por meio da Medida
Provisória (MP) 813/1995. Com isto,
pretendia-se enterrar simbolicamente os
anos de assistencialismo que eram características destes órgãos.
Esta mesma MP criou o Programa
Comunidade Solidária. Mais do que um
programa, o Comunidade Solidária foi
pensado como um modelo de governança de ações voltadas para segmentos mais
pobres da sociedade. Assim, as ações do
Comunidade Solidária eram executadas em parceria entre Estado, sociedade
civil e iniciativa privada, inclusive com
forte parcela de inanciamento privado.2
Segundo os gestores do Comunidade
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
Solidária, o desenho adotado permitiria
maior agilidade no processo de descentralização das ações, na medida que a sociedade civil e os empresários teriam uma
capacidade de resposta mais ágil do que
o serviço público (SCHOLZ, 2002). Os
formuladores do Comunidade Solidária
apresentavam como uma inovação o fato
de haver uma preocupação permanente
com a avaliação e o monitoramento das
ações. Também havia a determinação de
que “qualquer recurso inanceiro deve ser
distribuído por meio de mecanismos de
competição.3 Por im, havia uma ênfase
no trabalho voluntário como um dos fatores de êxito das ações (CARDOSO, 2000;
OLIVEIRA, 2000).
As críticas vieram fortes por parte
dos atores envolvidos com a implementação da política de assistência social.4
Efetivamente, acompanhando a evolução
desta política, cujo retrato mais recente era a LOAS, o Comunidade Solidária
signiicou uma obstrução ao processo. As
principais críticas foram:
A opção pela focalização, mesmo baseada em critérios objetivos, contrariava o
desenho que estava se criando para a
assistência social. Pelo critério adotado
para a determinação de quais municípios deveriam ser beneficiados, foram
selecionados pouco menos de 2.000
cidades. Apesar dos conceitos de focalização e de universalização não serem
necessariamente excludentes5, é claro
que a exclusão da população pobre
das demais cidades do acesso ao
Comunidade Solidária afronta o artigo
203 da Constituição (que determina
que a assistência social será prestada a
quem dela necessitar) e o segundo inciso
do Artigo 4º da LOAS (que estabelece a
universalização dos direitos sociais como
um princípio desta política);
Havia uma pulverização institucional
(nove ministérios envolvidos com 20
programas) que remete às debilidades
do sistema de proteção social que foram
apontadas em diagnósticos realizados
ainda nos anos 1980;
Falando em problemas já diagnosticados nos anos 80, também havia no
Comunidade Solidária uma ênfase na
experimentação e em projetos-piloto,
mesmo com reconhecida dificuldade
em disseminar estas experiências para
uma grande escala, conforme reconhecia a Presidente do Conselho do CS
(CARDOSO, 2000);
O destaque dado à ação voluntária e
ao financiamento privado acaba por
reforçar o caráter de benemerência e
filantropia do qual a área de assistência
social lutava para se livrar.
13
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
Ou seja, apesar das transformações nos
nomes das instituições, das mudanças
de programas e serviços, nas adaptações
evidentemente necessárias de uma política pública ao longo de quase 60 anos,
diversos aspectos tradicionais presentes
no modelo assistencialista continuaram
norteando as ações da assistência social
entre 1942 e 2003, da criação da LBA até
o Comunidade Solidária. Os momentos
de construção progressistas tiveram, até
então, um caráter efêmero – e mais voltado
para questionamento de práticas e construção de novas propostas do que para a
consolidação de um novo paradigma de
atuação na área. No início do Governo
Lula, ainda são desaios a fragmentação
14
institucional, o excesso de projetos pilotos
e o caráter de ilantropia que se mantiveram ligados à política pública ao longo de
todo o período.
3. O Sistema Único de Assistência Social:
organização formal e diretrizes
O SUAS organiza a política de assistência
social tendo por objetivo a proteção social,
a garantia da vida, a redução de danos e a
prevenção da incidência de riscos sociais.
Somado a este objetivo, a política de assistência social busca fortalecer territorialmente a capacidade protetiva das famílias
e prevenir a ocorrência de vulnerabilidades, de ameaças, de vitimizações e danos.
Também é meta da política a defesa de
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
direitos e a garantia do pleno acesso ao
conjunto das provisões socioassistenciais
(LOAS, 2011: art. 2º).
Para atingir a estes objetivos, há diversas inovações na estrutura da política que
buscam romper com os traços conservadores que tradicionalmente são associados a esta política setorial. As ações públicas passam a ser hierarquizadas em duas
modalidades, a saber, as ações de proteção
social básica e as ações de proteção social
especial, sendo que esta se divide em
média e em alta complexidade. A proteção
social básica tem um caráter preventivo,
buscando fortalecer vínculos familiares e
comunitários como forma de evitar situações de risco e vulnerabilidades. Já a proteção social especial é destinada à reparação
de uma violação de direito, seja por situação de risco pessoal ou social. Como é
direcionada para casos mais complexos,
este tipo de proteção abarca um conjunto
de serviços, programas e projetos que tem
por objetivo contribuir para a reconstrução de vínculos familiares e comunitários.
Tanto a Proteção Social Básica quanto
a Especial contam com equipamentos públicos especíicos – outra inovação para a forma de operar da área. Na
Básica, trata-se do Centro de Referência
de Assistência Social (CRAS). O CRAS
é um equipamento que deve servir de
porta de entrada aos cidadãos que necessitem de assistência social. Os CRAS
podem ter capacidades diferenciadas
de atendimento de famílias (entre 2.500
e 5.000 famílias referenciadas e entre
500 e 1.000 famílias efetivamente atendidas durante o ano), o que se relete
no tamanho da equipe técnica mínima
necessária para o seu funcionamento.
De maneira análoga, a Proteção Social
Especial de Média Complexidade conta
com o Centro de Referência Especializado
de Assistência Social (CREAS). Segundo
as Orientações Técnicas para o Centro de
Referência Especializado de Assistência
Social, divulgado pelo SNAS/MDS em
2011,6 os CREAS podem ter abrangência
local ou regional, de acordo com o porte
populacional e a demanda dos municípios. Independente das características e
peculiaridades locais, todos os CREAS
devem ofertar o Serviço de Proteção e
Atendimento Especializado a Famílias e
Indivíduos (PAEFI). Os demais serviços
de média complexidade podem ser ofertados ou não, dependendo do diagnóstico e
do planejamento local.
Todos estes equipamentos e muitos
serviços essenciais contam com uma
equipe mínima de referência padronizada. Há uma Norma Operacional Básica
voltada apenas para a questão dos recursos humanos (editada em 2006), além de
haverem especiicações em outros documentos de referência.
Ou seja, o SUAS inaugura um novo
“léxico conceitual”7 para a assistência
social ao se balizar por ideias como defesa
de direitos, vigilância socioassistencial,
territorialização, proteção social básica
ou especial, equipamentos públicos de
assistência social, equipes mínimas de
referência. Esta forma de organização
exige uma estrutura material inédita no
setor. Assim, conforme esta estrutura foi
15
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
se constituindo, os recursos investidos na
política cresceram substancialmente.
O Gráico 1 mostra um impressionante crescimento nos recursos investidos na
assistência social entre 2004 e 2010. Nestes
sete anos, os recursos cresceram 125% no
caso de estados, 140% no caso dos municípios e 180% para a União.
Esses dados positivos, porém, devem
ser analisados com certa cautela. O crescimento orçamentário da União se liga
diretamente com a transferência de benefícios monetários, como o BPC ou o Bolsa
Família. O inanciamento dos serviços,
programas e projetos de assistência social,
por parte da União, cresceu de R$ 2,1
bilhões em 2004 para R$ 3,2 bilhões em
2010 (MDS, 2011: 16). Assim, o inanciamento destes serviços é bancado majoritariamente pelos municípios.
De qualquer forma, é evidente que o
SUAS teve êxito na disseminação de uma
estrutura material de execução da política
de assistência social no país. Este sucesso pode ser medido pelos números do
Censo SUAS 2012: no Brasil, são elevados os números de centros de referência, tanto CRAS (7.725) quanto CREAS
(2.167); o mesmo pode ser dito em relação ao número de trabalhadores da área
(243.136 trabalhadores em municípios e
mais 18.433 trabalhadores em governos
estaduais) ou com relação ao número de
conselhos municipais de assistência social
(5.178), além do incremento do orçamento
iscal já citado no Gráico 1.
Porém, uma política pública não é
composta apenas de sua estrutura material (ou seus aspectos objetivos). Pressman
e Wildavsky (1973) defendem que toda
política tem que ter, lhe dando sustentação,
Gráico 1: Evolução dos Recursos Orçamentários dos três níveis de governo nas despesas de assistência social, R$ bilhões, Brasil, 2004 – 2010.
Fonte: MDS (2011: 43), a partir de dados do SIAFI e SISTN.
16
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
uma teoria implícita ou explícita sobre
como promover os impactos sociais desejados. Ela deve contemplar um sentido,
que no caso do SUAS transparece na forma
de diretrizes fundamentais que orientam
todas as suas ações. Segundo o artigo 5º da
LOAS, a organização da assistência social
tem como base as seguintes diretrizes:
I – descentralização político-administrativa para os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios, e comando único das ações em
cada esfera de governo;
II – participação da população, por meio
de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações
em todos os níveis;
III – primazia da responsabilidade do
Estado na condução da política de assistência social em cada esfera de governo.
Cada uma destas diretrizes encerra
conceitos amplos que devem ser observados e incorporados à prática cotidiana de
planejamento, gestão e execução das ações
do SUAS. A seguir vamos revisar sucintamente cada uma destas diretrizes.
3.1. Descentralização político-administrativa para os Estados, o Distrito Federal
e os Municípios, e comando único das ações
em cada esfera de governo
A descentralização surge como um
desdobramento do conceito de federalismo, que organiza a convivência entre
entes federativos heterogêneos, sem estabelecer, a priori, uma relação de hierarquia entre eles. Como diz Rodden (2005:
17), “(...) o contrato federal original é um
acordo sobre a composição e os poderes
“Porém, uma política
pública não é composta
apenas de sua estrutura
material (ou seus aspectos objetivos). Pressman e
Wildavsky (1973) defendem que toda política tem
que ter, lhe dando sustentação, uma teoria implícita ou explícita sobre como
promover os impactos
sociais desejados.”
do governo central, bem como as ‘regras
do jogo’ que estruturarão as futuras interações entre esse governo e as unidades
que o compõem”. O federalismo busca
um equilíbrio politicamente aceitável
entre autonomia de cada nível de governo e a dependência entre as unidades que
compõem a federação para a execução
bem sucedida de políticas públicas.
Logo, o processo de descentralização
implica transferência de tarefas, recursos e
poder da União para estados e municípios,
17
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
garantindo cooperação e coordenação sem
ferir a autonomia dos entes da federação.
A intensidade destas transferências é decisiva para se avaliar o grau de descentralização. Cada um dos componentes a serem
transferidos pode ser visto em separado:
Recursos: O grau de descentralização
fiscal pode ser medido pela distribuição
das despesas e receitas entre os diferentes níveis de governo. Qual a porcentagem
da carga tributária que cabe a cada esfera
de governo e qual a participação de cada
esfera de governo no financiamento das
políticas são indicadores muito utilizados
nestas análises. Rodden (2005) considera
igualmente importante avaliar a estrutura regulatória das finanças subnacionais,
considerando a capacidade de arrecadação de receitas próprias (fixação de alíquotas e definição de fontes de arrecadação), de endividamento, de financiamento
do déficit (inclusive por meio de unidades
bancárias de propriedade subnacional);
Fernando Luiz Abrúcio aponta questões
que colocam obstáculos ao bom desempenho das ações descentralizadas. São
elas as grandes desigualdades econômicas entre as unidades da federação, o foco
exclusivo na ação restrita ao município
– sem considerar os problemas existentes em níveis regionais (esta questão é
agravada pela acelerada metropolização
do país) e a sobrevivência de “resquícios
culturais e políticos antirrepublicanos
no plano municipal” (ABRÚCIO, 2005).
18
Tarefas: A transferência para estados e
municípios da responsabilidade pela implementação e gerência de políticas públicas
é a face mais explícita do processo de
descentralização. Entretanto, esta transferência não aponta inequivocamente
para uma descentralização – é possível
que haja uma mera administração local de
políticas definidas centralizadamente no
nível federal;
Poder: Por fim, há a descentralização ou
centralização de poder, entendido como
a possibilidade de definir autonomamente
políticas e programas prioritários, ou ainda
de estabelecer localmente diretrizes e os
mecanismos de gestão a serem adotados
para as políticas nacionais. Para exercer
esta autonomia, porém, não basta vontade, mas é necessária uma capacidade
técnica das equipes dos governos municipais e estaduais e que “haja condições
mais globais que dão suporte à transformação do papel do governo no nível municipal” (ABRÚCIO e COUTO, 1996, p. 41). 8
3.2. Participação da população, por meio de
organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em
todos os níveis
Os novos espaços participativos se
consolidam como uma reação ao fato da
democracia representativa tradicional
começar a perder a capacidade de fazer a
intermediação entre as instâncias decisórias e as demandas da população. Dentre
alguns aspectos que marcam o enfraquecimento da democracia representativa, temos a crescente burocratização
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
da atividade política,9 a incapacidade da
representação política atender a todos os
anseios de todos os seus representados10 e
o crescente poder e mobilidade do capital,
que impõe limites à ação do estado.11
Somada a estas diiculdades da democracia representativa, há uma série
de questões que permitem idealizar a
ampliação da participação social como
um instrumento que qualiica e fortalece a democracia. Um primeiro aspecto é
vinculado à descentralização das políticas públicas. A descentralização pretende, pela “aproximação com o cidadão”,12
aumentar o grau de democratização
da formulação e execução das políticas públicas. Entretanto, dada a tradição
latino-americana, um perigo real seria o
fortalecimento do coronelismo regional.
Portanto, o pretendido aumento do grau
de democratização somente seria factível se houvesse instâncias que estimulem
e permitam a participação social – o que
não é algo que tende a acontecer de forma
espontânea. Em outras palavras, a descentralização das políticas públicas precisa
ser combinada a estímulos à participação
social para, efetivamente, aprofundar os
mecanismos democráticos da sociedade.
Com estes estímulos, a sociedade pode
“controlar” o governo, controle este entendido como acompanhamento de ações,
gastos, resultados. E pode, também, deinir
diretrizes, prioridades, planos para a ação
estatal. Ou seja, diversas ações públicas
não seriam decididas e controladas apenas
pelos atores políticos tradicionais (parlamentares, Poder Judiciário, imprensa), mas
também pela “sociedade civil organizada”.
19
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
Um outro argumento em favor da participação social relaciona-se com sua a
função educativa. Carlos A. Guimarães,
(2007: 159) chega a irmar que “a principal
função da participação na teoria participativa é educativa”. As discussões sobre políticas públicas podem assumir um caráter
técnico altamente especíico, o que pode –
a princípio – trazer diiculdades para aqueles que não conhecem a fundo os aspectos
técnicos e burocráticos das discussões
em pauta, especialmente os representantes de usuários. Porém, a superação deste
desnível somente será superada com mais
e melhor participação da sociedade civil e
com a disseminação de informações para
toda a sociedade.
Num contexto de grande importância da
função educativa da participação, a transparência e a prestação de contas tornam-se
decisivas no fortalecimento de uma cultura participativa. A circulação de informações – qualiicadas e acessíveis ao entendimento – é um componente central para o
desenvolvimento desta cultura.
Em suma, a defesa de novas formas de
participação da sociedade na formulação
e acompanhamento das políticas sociais
parte do princípio de que a democracia
representativa apresenta sérios limites; que
a participação social tem vínculos com a
proposta de democratização da política
via descentralização; que a sociedade deve
controlar o governo; e que a participação
tem um caráter educativo importante.
3.3 Primazia da responsabilidade do
Estado na condução da política de assistência social em cada esfera de governo
20
A literatura especializada sobre a natureza e o papel do Estado é bastante extensa e
retomar esta discussão, mesmo que sucintamente, está fora do escopo deste artigo.13
Entretanto, há um aspecto que creio que
tenha bastante inluência na determinação
da terceira diretriz da Política Nacional
de Assistência Social: a inluência das
análises referentes ao Welfare State que
colocavam os diversos regimes de proteção social da Europa como um ideal a
ser perseguido. Liana Aureliano e Sonia
Draibe, ao levantarem uma revisão sobre
o tema, apontam que o Welfare State é
visto por acadêmicos como um ideal que
se opõe às características “imperfeitas”
da proteção social brasileira.
Em tais circunstâncias, não é de se
estranhar que os estudos e debates sobre
as políticas sociais no Brasil tenham
adquirido forte tonalidade negativa,
referidos a um oposto – o Welfare State –
tomado, supostamente, como um monopólio da realidade nórdica e inglesa,
como um ilho dileto da social-democracia europeia e, no plano da literatura,
como especialidade anglo-saxã no campo
da social policy. O ‘caso brasileiro’ e as
rarefeitas referências a países da região
latino-americana assumem, então,
as características de casos de um não
desenvolvimento do Estado de Bem Estar
Social ou, na melhor das hipóteses, de
casos particulares, ‘anômalos’, dotados
de tal especiicidade, que diicilmente
poderiam ser tomados como variantes de
tendências gerais (...) (AURELIANO e
DRAIBE, 1989: 7).
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
Tendo por base esta visão, o esforço
dos atores sociais comprometidos com
a justiça social deveria ser desenvolver
um Estado que garantisse proteção social
à população nos moldes europeus. O
Welfare State ajudou, no pós II Guerra
Mundial, a diminuir a pobreza, diminuir a desigualdade social, dinamizar a
economia, aumentar a produtividade,
aumentar o consumo das classes trabalhadoras, entre outros efeitos benéicos.
Apesar de ser tratado genericamente
de forma padronizada, o Welfare State
está longe de se constituir num conjunto uniforme de políticas e programas de
proteção social. Há particularidades que
variam de país para país: as diferenças
são marcadas pela diferente capacidade dos movimentos de trabalhadores de
construir alianças com a classe média em
âmbito nacional; marcadas pela diferença
de recursos direcionados para o inanciamento do Estado; marcadas pela convicção da sociedade quanto ao peso ideal da
interferência do Estado na economia e
na sociedade (BRIGGS, 2000; ESPINGANDERSEN, 1991).
Frente a estas considerações, cabe
uma pergunta: por que deveria caber ao
Estado a garantia da proteção e segurança social dos indivíduos? O motivo é que
o Estado é a instituição capaz de domar o
“moinho satânico” do mercado. Segundo
Karl Polanyi, as livres forças do mercado tendem a desorganizar a sociedade.
E este processo de desorganização se dá
concomitante ao esforço da sociedade
para se defender – o que ela faz por meio
do Estado (POLANYI, 2000).
No último quarto do século XX, foi se
desenvolvendo a noção de que o setor
público não governamental tem um papel
importante na defesa da coesão social e na
busca de alternativas eicientes de atenção
às demandas da população (BRESSER
PEREIRA, 1995). Na área de assistência
social, o Censo SUAS de 2012, aponta
que mais de 16 mil entidades sociais estão
com inscrições já deferidas no cadastro de
SNAS, sendo que a maioria delas encontra-se na região sudeste do país (53%).
Porém, existe uma diferença substantiva entre a condição de política pública e
o processo de gestão referido ao estatuto privado de uma organização social. É
obrigatório para a gestão pública considerar a demanda por uma dada atenção, na
medida em que ela deve ser orientada pela
isonomia advinda do direito a igualdade
entre os cidadãos. O não atendimento de
uma demanda por parte do poder público vem a se caracterizar como uma grave
omissão. Já as organizações sociais são
referidas a uma missão, o que a abstém da
obrigação de buscar a universalidade, sem
ser com isso omissa. Assim sendo, as organizações sociais podem ter um papel auxiliar na garantia dos direitos da população,
mas não se apresentam de forma alguma
como substitutos da primazia estatal em
garantir estes direitos.
4. Considerações Finais
Parafraseando Caio Prado Jr., airmamos que toda política social tem na sua
evolução um certo “sentido”. Este não se
percebe nos pormenores de sua história, mas no conjunto de intenções, nexos
21
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
explícitos ou não, articulados aos fatos e
acontecimentos essenciais que a constituem num largo período de tempo.
As intenções formais do SUAS englobam
trabalhar pela cooperação e complementaridade da ação federativa, tanto em termos
de tarefas e responsabilidades quanto em
termos de recursos; garantir a participação e o controle popular, superando os
entraves a esta participação; fazer com
que o Estado assuma a responsabilidade
pela coordenação e condução da política,
cabendo às organizações sociais um papel
complementar à ação estatal.
Estas diretrizes são frontalmente contrárias às características que nortearam as
políticas de assistência social anteriores ao
SUAS, tanto no período predominantemente mais assistencialista quanto no período mais marcado pela subsidiariedade
da ação estatal em relação a entidades da
sociedade civil. Apesar destas diferenças,
em ambos os casos era patente características como a fragmentação institucional, a
centralização excessiva de ações, o protagonismo de entidades sociais não estatais
na condução da política com ênfase no
caráter caritativo das ações.
Da mesma forma, a ausência de um
padrão de serviços e equipamentos públicos pré-2003 garantia uma imprecisão
conceitual à política setorial, abrindo
espaço para improvisos e soluções voluntariosas, e tornando desnecessário um
inanciamento regular das ações.
Também neste aspecto o SUAS inova
ao estabelecer uma estrutura material
mínima necessária para operacionalizar
22
“Os novos equipamentos públicos não devem
ser um lócus de práticas
antiquadas, assistencialistas ou clientelistas.
À mudança no espaço
físico, na constituição
das equipes e em toda a
estrutura do setor, deve
corresponder uma nova
forma de planejamento,
gestão e ação.”
as ações. Esta estrutura contempla equipamentos públicos especíicos (com regras
de organização do espaço e de organização do atendimento), equipes técnicas de
referência mínima composta por proissionais de diversas áreas, um conjunto de
legislações e normas que regulam quais
os serviços devem ser oferecidos em quais
situações, para qual público, com qual
resultado esperado, em qual jornada, entre
outras orientações. Como consequência
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
destas exigências, o volume de recursos
inanceiros destinados à política de assistência social apresenta um crescimento
contínuo desde 2003. Da soma de seu
sentido (objetivos e diretrizes) com sua
estrutura material é que surge a nova
política de assistência social idealizada
para o SUAS.
Entretanto, se teoricamente o SUAS
apresenta uma grande coerência interna
no desenho da política, o desaio colocado para seus trabalhadores e gestores
é, na sua ação cotidiana, internalizar os
conceitos que devem orientar a execução
da política. Os novos equipamentos públicos não devem ser um lócus de práticas
antiquadas, assistencialistas ou clientelistas. À mudança no espaço físico, na constituição das equipes e em toda a estrutura do setor, deve corresponder uma nova
forma de planejamento, gestão e ação.
Planejamento, gestão e ação que sejam
integradores, participativos, democráticos e públicos, sem os quais o SUAS não
consegue se efetivar plenamente.
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NOTAS
1. “Nesse contexto, a estratégia de distinguir as políticas emergenciais das reformas estruturais foi rapidamente apropriada pela presidência da República e pelas
forças mais conservadoras de sustentação do governo:
os planos emergenciais ganharam força e ênfase crescentes, dado que estes programas eram mais adaptáveis à
barganha clientelista e podiam ser manipulados em favor
de resultados eleitorais mais imediatos” (Castro e Faria,
1989: 212).
2. Neste sentido, o programa foi abertamente inluenciado pelas ações do Movimento Ação da Cidadania
Contra a Fome, a Miséria e pela Vida, que em 1993
empreendeu um esforço de mobilização nacional no
tocante à questão da fome no Brasil. Ver Scholz, 2002.
3. Esta determinação era referente á seleção de ONGs
parceiras, não se aplicando a municípios que receberiam os recursos. Estes eram determinados com base em
indicadores objetivos estabelecidos pela coordenação do
Programa (CARDOSO, 2000: 10).
4. Silva e Silva (2001) traz um apanhado de argumentos contrários ao Comunidade Solidária.
5. Este argumento é explicado em Draibe, 2003;
Boschetti, 2003; e Kerstenetzky, 2005.
6. Há uma versão preliminar editada, em 2006, para
consulta pública. Na versão de 2011, muitos conceitos e
deinições do documento inicial foram alterados.
7. Conforme expressão cunhada por Castro (2008).
8. A crescente burocratização da atividade política,
que ocorre sob um manto de neutralidade técnica, passa
a tratar cidadãos como clientes das políticas desenvolvidas de forma centralizada. Isto acaba por afastar a
“máquina partidária” da população (Ofe, 1984).
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
9. Os autores referem-se mais especiicamente à
transferência de recursos inanceiros e, principalmente,
de mecanismos que estimulem a cooperação entre as
unidades federativas.
10. O escopo de temas debatidos pela representação
política vem-se ampliando bastante, na medida em que
novos temas são incorporados à agenda pública – e nem
sempre é possível que os representantes falem sobre
todos os temas, de acordo com as preferências de seus
eleitores. Assim, por exemplo, o representante é eleito
por suas posições econômicas, mas é chamado a legislar
também sobre a área ambiental, sobre patentes industriais ou sobre política social.
11. Ohmae (1999) e Chesnais (1996) apresentam
perspectivas distintas para este fenômeno.
12. Deve-se atentar que o poder local não é, por si,
mais próximo do cidadão. Ele apenas trata de questões
mais concretas. Mas o impacto de políticas nacionais e
estaduais sobre a vida cotidiana dos cidadãos é igualmente “próximo”.
13. Dois exemplos de livros que procuram condensar alguns ramos teóricos sobre esta discussão são os de
Adam Przeworski (1995) e Martin Carnoy (2005).
25
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
Desafios da Seguridade Social:
Breves Considerações sobre a Organização, Controle Social
e Financiamento da Assistência Social no Brasil
Denise Ratmann Arruda Colin
Psicóloga pela Universidade de
São Paulo (USP) e mestre em
Psicologia pela Universidade de
Brasília (UnB). Analista em Ciência
& Tecnologia, do Ministério da
Ciência, Tecnologia e Inovação
(MCTI) e Assessora da Secretaria
Nacional de Assistência Social.
1. Introdução
No presente artigo temos como objetivo tecer breves comentários a respeito
dos avanços observados no campo da
Assistência Social desde a Constituição
Federal, abordando a estruturação da
área como política pública, com atribuições e inanciamento especíicos e
controle social exercido pelos respectivos
26
Titular da Secretaria Nacional de
Assistência Social do Ministério
do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome; Assistente social
pela PUC-PR; Mestre e doutora
em Sociologia pela Universidade
Federal do Paraná (UFPR);
Assistente Social do Ministério
Público do Estado do Paraná.
Juliana Maria Fernandes Pereira
conselhos. Este percurso foi deinitivamente marcado pela consolidação da
política de assistência social no Brasil,
com a inalidade de garantir proteção
social e direitos socioassistenciais.
Inserida no campo da Seguridade
Social brasileira, a assistência social é
política pública não contributiva, voltada ao cidadão que dela necessitar. Este
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
reconhecimento no âmbito constitucional demarcou avanço importante, pois
ampliou o campo da Seguridade Social
para além da concepção restritiva de
seguro, superando a lógica de mercado.
Assim, o ordenamento jurídico brasileiro passou a assimilar a proteção social
desvinculada de contribuições prévias,
beneiciando cidadãos que mais diicilmente acessam políticas, direitos e o
mundo do trabalho. É justamente por
meio da Assistência Social que se reconhece a responsabilidade do Estado em
ofertar atenção à população em situação
de vulnerabilidade e risco pessoal e/ou
social, assegurando-lhe mínimos sociais
e a ampliação do acesso a direitos, bens
e serviços públicos.
Nessa perspectiva, o Estado adotou a
concepção de que pobreza não é simplesmente sinônimo de ausência de renda e
que políticas efetivas de enfrentamento
devem conjugar garantia de renda com
um conjunto de medidas voltadas à redução da desigualdade social e à melhoria das condições de vida e bem-estar
da população. Esta ótica denota um
rompimento com o legado da cultura do
assistencialismo e do clientelismo, que
marcou a área por séculos no país, e a
instituição de uma vertente transformadora no espectro da assistência social,
organizada por meio do Sistema Único
de Assistência Social – SUAS.
2. Sistema Único de Assistência Social
(SUAS)
Instituído pela Política Nacional de
Assistência Social, de 2004, a partir de
deliberação da IV Conferência Nacional
de Assistência Social, o SUAS é um sistema de gestão descentralizado e participativo, que organiza no Brasil os serviços,
programas, projetos e benefícios da política de assistência social, com comando
único e primazia da responsabilidade do
Estado, articulando oferta pública estatal
com pública não governamental.1
De modo geral, a organização do SUAS
em formato de sistema compreende:
Legislações e normativos próprios
que dispõem sobre a especiicidade
da assistência social e regulam a organização da política em âmbito nacional, assegurando-lhe comando único e
possibilidades de adequação às diversidades regionais:
Com um legado histórico ligado à
ilantropia, a Constituição Federal e a
Lei Orgânica de Assistência Social –
LOAS (Lei nº 8.742, de 07 de dezembro de 1993) foram basilares para os
avanços no campo normativo e legislativo na última década, dentre os quais
podemos citar: a Política Nacional de
Assistência Social – PNAS, de 2004;
as Normas Operacionais Básicas do
SUAS – NOB/SUAS, de 2005 e 2012; a
Norma Operacional Básica de Recursos
Humanos do SUAS – NOB-RH/SUAS, de
2006; a Tipiicação Nacional de Serviços
Socioassistenciais, de 2009; o Protocolo
de Gestão Integrada de Serviços,
Benefícios e Transferências de Renda
no âmbito do SUAS, de 2009; a Política
Nacional de Educação Permanente do
SUAS, de 2012; e a aprovação da Lei
27
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
nº 12.435, de 07 de dezembro de 2011
e da Lei nº 12.101, de 27 de novembro
de 2009.2 Estas conquistas foram fundamentais para esclarecer o papel da política de assistência social, deinir suas
especiicidades e reairmar sua institucionalidade no país.
Deinição de responsabilidades especíicas e corresponsabilidades dos entes:
Os entes federados são corresponsáveis pela condução e inanciamento da
política de assistência social. No que
diz respeito às responsabilidades especíicas, em linhas gerais, à União cabe
a formulação, normatização, regulação,
articulação e coordenação da política em
âmbito nacional. A União é responsável,
ainda, pelo apoio técnico e acompanhamento sistemático do DF e pela gestão,
inanciamento e operacionalização do
Benefício de Prestação Continuada.
Aos Estados compete o apoio técnico e
28
inanceiro e o acompanhamento sistemático aos municípios, além da oferta
de serviços regionalizados, quando for o
caso. Aos municípios e DF, por sua vez,
cabe a responsabilidade pela execução
direta dos serviços e programas, com a
correspondente implantação das unidades, composição das equipes e oferta de
atendimento à população. Finalmente,
quanto aos benefícios eventuais, os
Estados são responsáveis pelo coinanciamento e os municípios por sua
regulamentação, concessão e coinanciamento, observados os dispositivos
relacionados da LOAS, do Decreto nº
6.307, de 09 de dezembro de 2010, e da
Resolução CNAS nº 39/2010.
É importante destacar que a organização do SUAS está consubstanciada no pacto federativo brasileiro, que
comporta a descentralização político
-administrativa, conferindo aos entes
responsabilidades próprias e comuns
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
na condução da política de assistência
social, assegurada a cooperação e a articulação interfederativa, tanto no nível da
gestão e inanciamento quanto no nível
político-decisório.
Mecanismos participativos que asseguram transparência, pactuação interfederativa e controle social:
Com base nos princípios democráticos,
os Conselhos de Assistência Social e as
conferências constituem espaços privilegiados para o debate sobre a política de
assistência social, envolvendo representações governamentais e da sociedade civil
(prestadores, trabalhadores e usuários).
Os Conselhos têm competência deliberativa e de controle social, exercendo
uma função essencial para a garantia dos
processos democráticos e participativos
na condução da política de assistência
social no Brasil. Além dos Conselhos, o
SUAS também conta com a Comissão
Intergestores Tripartite3 e as Comissões
Intergestores Bipartites.4 Estas Comissões,
cujas competências estão deinidas na
NOB/SUAS, asseguram o debate interfederativo transparente, fundamental para
o direcionamento da política, considerando as distintas realidades de um país
de dimensão continental. Em oito anos de
implementação, as instâncias de pactuação e de deliberação do SUAS têm contribuído, de forma decisiva, para a transformação de uma área marcada por uma
história de clientelismo, assistencialismo,
pulverização e fragmentação. A destinação de recursos públicos passou a adotar
critérios pactuados de forma interfederativa, pública, republicana e transparente,
a partir de planejamentos baseados em
diagnósticos, dados e indicadores, que
consideram a realidade nacional e as
diversidades regionais, rompendo deinitivamente com a tradição de troca
de favores e benesses. A estruturação e
funcionamento de Conselhos, Planos e
Fundos de Assistência Social constitui,
inclusive, requisito previsto na LOAS para
o repasse de recursos do coinanciamento
federal.
Instrumentos
e
mecanismos
próprios para planejamento, monitoramento e avaliação da política de
Assistência Social:
Considerando as normativas nacionais, os entes devem fazer seus planejamentos, incluindo proposta orçamentária anual, Planos Plurianuais e Planos
de Assistência Social, a serem obrigatoriamente submetidos à apreciação e
aprovação dos Conselhos de Assistência
Social de cada esfera. Há ainda instrumentos que possibilitam o monitoramento e a avaliação em âmbito nacional,
dentre os quais se destaca o Censo SUAS,
o Pacto de Aprimoramento e as Metas e
Prioridades Nacionais, pactuadas com
base nos dispositivos da NOB/SUAS
2012. Estes instrumentos também subsidiam o planejamento, a organização e a
execução de medidas voltadas ao aprimoramento da gestão e qualiicação do
atendimento, a partir da realidade identiicada em âmbito nacional, sem prejuízo
de estratégias locais de monitoramento
e avaliação – as quais devem necessariamente observar as normativas nacionais.
Após oito anos de implantação do SUAS
29
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
no Brasil, o Sistema avança de um estágio de estruturação para o de melhoria
da gestão, do trabalho, de serviços e
benefícios e inanciamento das ofertas
à população, expresso na NOB/SUAS
2012, contexto no qual o planejamento
e o monitoramento passam a ser estratégicos e estruturantes.
Vigilância Socioassistencial:
Nos termos da Lei nº 12.435/2011, a
“vigilância socioassistencial é um dos
instrumentos das proteções da assistência social que identiica e previne
as situações de risco e vulnerabilidade
social e seus agravos no território.” As
informações que a compõem abrangem,
por um lado, as vulnerabilidades e riscos
que incidem sobre as famílias e indivíduos e, por outro, as ofertas disponibilizadas pela rede socioassistencial em
um determinado território. Conjugando
estas perspectivas, a vigilância socioassistencial permite estruturar estratégias
preventivas, analisar a compatibilidade
entre demandas e ofertas em um dado
território e subsidiar o planejamento da
gestão quanto às prestações, incluindo
a busca ativa e a qualiicação do atendimento prestado à população, com a integração entre acesso a serviços, transferência de renda e benefícios.
A busca ativa tem como objetivo
alcançar aqueles brasileiros que vivem
em contextos mais isolados, de maior
complexidade geográica e de mais
difícil acesso, visando sua inclusão no
Cadastro Único para Programas Sociais
do Governo Federal e a ampliação do
30
acesso a direitos, benefícios e serviços das diversas políticas e o acompanhamento familiar no SUAS. As equipes volantes e as lanchas da assistência
social são elementos fundamentais para
se atingir este objetivo.
Gestão do Trabalho e Educação
Permanente:
Área estratégica para o rompimento com práticas assistencialistas e
promoção da efetiva proissionalização, incluindo a realização de concursos públicos, a capacitação e a educação permanente, elementos essenciais
para a consolidação da assistência
social como política pública de proteção
social, garantidora de direitos de cidadania. Constituem marcos importantes
para a Gestão do Trabalho e Educação
Permanente do SUAS: a aprovação
pelo Conselho Nacional, em 2006, da
Norma Operacional Básica de Recursos
Humanos do SUAS – NOB-RH/SUAS;
a aprovação da Lei nº 12.435/2011, que
alterou a LOAS, reconhecendo a Gestão
do Trabalho e a Educação Permanente
dentre os principais objetivos do SUAS
e autorizando a utilização de recursos
do coinanciamento federal para pagamento de proissionais concursados
que compõem as equipes de referência do SUAS, assunto já regulamentado pelo CNAS, por meio da Resolução
CNAS nº 32, de 28 de novembro de
2011; a Resolução CNAS nº 17, de 20
de junho de 2011, que deine as categorias proissionais de nível superior
que preferencialmente podem atender as especiicidades dos serviços
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
socioassistenciais; a Política Nacional de
Educação Permanente; a Rede Nacional
de Capacitação e Educação Permanente
do SUAS; e o Programa CapacitaSUAS.
Financiamento da
Assistência Social:
política
de
Foi a partir da NOB SUAS/2005 que
o inanciamento federal da assistência
social passou a ser operacionalizado por
meio de repasses regulares, automáticos
e continuados, diretamente do Fundo
Nacional de Assistência Social – FNAS
para os fundos estaduais, do DF e municípios. Esta mudança nos mecanismos
de repasse e coinanciamento federal foi
estruturante para a área.
Os entes federados são corresponsáveis pelo inanciamento da política de
Assistência Social. No que diz respeito ao
coinanciamento federal, considerando o
peril e a realidade dos entes federativos,
os valores de referência para o repasse
são pactuados pela CIT, aprovados pelo
CNAS e publicizados por ato normativo.
Com este mecanismo de gestão inanceira, os entes podem ter a previsão do
montante a receber e a que se destina.
Isso facilita os processos de gestão em
nível local, propiciando condições favoráveis ao planejamento, à implementação e à oferta ininterrupta de serviços à
população, além de melhorias no atendimento ofertado, identiicadas a partir
das ações de monitoramento e avaliação.
A aprovação da Lei nº 12.435/2011
e do Decreto nº 7.788, de 15 de agosto
de 2012, representou conquista recente
importante na esfera do inanciamento
da política de Assistência Social, com
destaque para a previsão de utilização
de recursos do coinanciamento federal
para pagamento de proissionais concursados que compõem as equipes de referência das unidades do SUAS e o repasse fundo a fundo, de forma automática,
para despesas de natureza de investimento voltadas à estruturação da rede
de serviços socioassistenciais.
Organização das ofertas por níveis
de Proteção:
De acordo com a LOAS e a PNAS, os
serviços, programas, projetos e benefícios socioassistenciais são organizados
por tipos de proteção:
Proteção Social Básica (PSB): reúne
um conjunto de serviços, programas,
projetos e benefícios da assistência
social voltados à prevenção de situações de vulnerabilidade e risco social.
Destina-se à população que vive em situação de vulnerabilidade social decorrente de situações como pobreza, ausência
de renda, acesso precário ou nulo aos
serviços públicos, fragilização de vínculos afetivos e comunitários ou discriminações (etárias, étnicas, de gênero ou
por deiciências), com prioridade para
o atendimento a famílias beneiciárias
do Programa Bolsa Família (PBF) e de
beneiciários do Benefício de Prestação
Continuada (BPC). A unidade pública
-estatal de referência nos territórios para
oferta de atenção da proteção básica é
o Centro de Referência da Assistência
Social – CRAS. Todo CRAS deve ofertar o Serviço de Proteção e Atendimento
31
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
Integral à Família – PAIF, responsável
pelo acompanhamento familiar na PSB.
Constituem, ainda, serviços da PSB, o
Serviço de Convivência e Fortalecimento
de Vínculos e o Serviço de Proteção
Social Básica no Domicílio para Pessoas
com Deiciência e Idosas, os quais podem
ser ofertados por entidades de assistência social referenciadas ao CRAS. Além
dos serviços socioassistenciais e projetos, destaca-se que compõem a proteção social básica, o Programa Acessuas
Trabalho e os benefícios, dentre os quais
se destaca o BPC.
Proteção Social Especial: organiza a
oferta de serviços, programas e projetos de caráter especializado, destinado
32
a famílias e indivíduos em situação
de risco pessoal e social, com violação
de direitos (violência física, psicológica, sexual, abandono, cumprimento
de medidas socioeducativas etc.). Tem
como objetivo principal a prevenção
de agravamentos, o fortalecimento
das relações familiares e comunitárias
ou construção de novas referências,
quando for o caso, a potencialização
da autonomia e a ampliação de acessos,
visando à superação da situação vivenciada e melhoria das condições de vida.
Considerando os níveis de agravamento,
a natureza e a especiicidade do atendimento ofertado, a atenção na Proteção
Social Especial organiza-se em Média e
Alta Complexidade.
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
Proteção Social Especial de Média
Complexidade: O CREAS é a unidade
pública estatal de referência nos territórios para a atenção na PSE de Média
Complexidade e deve ofertar, obrigatoriamente, o Serviço de Proteção e
Atendimento Especializado a Famílias
e Indivíduos – PAEFI, responsável pelo
acompanhamento familiar especializado
no SUAS. Além deste Serviço, o CREAS,
dependendo das demandas identiicadas
no território, oferta ainda o Serviço de
Proteção Social para Adolescentes em
Cumprimento de Medida Socioeducativa
de Liberdade Assistida e de Prestação
de Serviços à Comunidade, o Serviço
Especializado em Abordagem Social e o
Serviço de Proteção Social Especial para
Pessoas com Deiciência, Idosas e suas
Famílias, podendo estes dois últimos
ser executados por entidades de assistência social referenciadas ao CREAS.
No caso do Serviço de Proteção Social
Especial para Pessoas com Deiciência,
em situação de Dependência, e suas
Famílias, este pode ser ofertado pelo
Centro-Dia, unidade responsável referenciada ao CREAS. Integram a PSE de
Média Complexidade, ainda, o Centro
de Referência Especializado para
População em Situação de Rua – Centro
POP, unidade pública estatal responsável pela oferta do Serviço Especializado
para Pessoas em Situação de Rua, e o
Programa de Erradicação do Trabalho
Infantil – PETI.
Proteção Social Especial de Alta
Complexidade: Visa garantir proteção integral a indivíduos ou famílias
em situação de risco pessoal e social,
com vínculos familiares rompidos ou
extremamente fragilizados, que necessitem de acolhimento provisório fora
de seu núcleo familiar de origem. Estes
serviços são organizados considerando
o ciclo de vida dos usuários atendidos
e as legislações relacionadas e devem
garantir acolhimento em ambiente
com infraestrutura e recursos humanos
adequados, primar pela preservação,
fortalecimento ou construção de novas
referências familiares e/ou comunitárias
e buscar o desenvolvimento da autonomia dos usuários. Constituem serviços
da Alta Complexidade, os Serviços de
Acolhimento Institucional, em República
e em Família Acolhedora e o Serviço de
Proteção em Situações de Calamidades
Públicas e de Emergências.
O acompanhamento familiar corresponde ao conjunto de intervenções
desenvolvidas de forma continuada
nos serviços da proteção social básica e
especial do SUAS com esta competência.5 Visa a proporcionar às famílias um
espaço de escuta e relexão sobre sua
realidade, a construção novos projetos
de vida, a transformação das relações –
sejam elas familiares ou comunitárias – e
a ampliação do acesso a direitos, serviços, programas e benefícios das diversas políticas públicas, assegurando-se,
sempre que necessário, encaminhamento para a inclusão no Cadastro Único e
acesso ao BPC. Deve partir da compreensão contextualizada das situações de
vulnerabilidade social e risco pessoal
e/ou social vivenciadas pelas famílias,
33
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
“A Assistência Social
alcançou avanços importantes na última década.
Após uma fase inicial de
estruturação do SUAS,
a área ganhou novos
contornos, com uma rede
signiicativa já presente
no país, apesar de poucos
anos de implantação,
e uma maior integração com outras políticas
(saúde, educação, trabalho e renda).”
de suas demandas e potencialidades e
ser orientado por princípios éticos, de
respeito à dignidade e não discriminação. Conduzido por proissionais de
nível superior, deve ser norteado por um
Plano de Acompanhamento Familiar –
construído de forma participativa com
as famílias – que considere os objetivos a
serem alcançados e a periodicidade dos
encontros. Requer o estabelecimento de
34
vínculos e compromissos entre as famílias usuárias e o Serviço, bem como a
avaliação conjunta do processo e dos
resultados atingidos.
3. Política de Assistência Social: breves
considerações sobre os avanços recentes
Feita uma breve apresentação da organização do SUAS no país, cabe destacar
que sua estruturação e implementação
foram, sem dúvida, avanços importantes,
acompanhadas da ampliação progressiva do inanciamento federal, observada tanto no que diz respeito ao PBF
e BPC, quanto a Serviços, Programas,
Projetos e Gestão. Foi na última década
que a Assistência Social entrou deinitivamente para a agenda pública brasileira
e transitou da ótica do assistencialismo e
clientelismo para a da garantia de direitos e proteção social. De implantação
mais recente no país quando comparada às demais políticas que compõem o
Sistema de Seguridade Social brasileiro,
a Assistência Social foi a que apresentou
a maior taxa de crescimento no inanciamento no período de 2002 a 2012. De R$
6,5 bilhões, os recursos destinados à área
saltaram para R$ 56,5 bilhões em 2012.6
No período de 2004 a 2011 o inanciamento federal da Assistência Social
saltou de 0,71% do PIB para 1,10%.7
Este resultado se deve, por um lado, às
alterações do PBF e à crescente ampliação do acesso ao BPC e, por outro, à
organização do SUAS a partir de 2005.
A expansão do coinanciamento federal assegurou ao governo federal apoiar
um conjunto de serviços voltados ao
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
trabalho com famílias na Assistência
Social e o aprimoramento da gestão
pública dos municípios, Distrito Federal
e estados, por meio do índice de Gestão
Descentralizada do SUAS – IGDSUAS,
do Índice de Gestão Descentralizada do
Programa Bolsa Família – IGD/PBF e do
Programa CapacitaSUAS.
A partir de 2011, com o Plano Brasil
sem Miséria, além da ampliação do coinanciamento da política que possibilitou
a expansão e ampliação da cobertura
signiicativa dos serviços socioassistenciais, os Programas no SUAS também
ganharam uma nova conformação, com
estratégias intersetoriais mais deinidas e
coinanciamento federal mais condizente com suas inalidades. Foi o que aconteceu com o Programa de Erradicação
do Trabalho Infantil – recentemente
redesenhado para maior aderência à
realidade do trabalho infantil no contexto atual – e com outros programas recém
criados, Programa Acessuas Trabalho,
CapacitaSUAS, BPC na Escola e BPC
Trabalho. Além disso, a discussão integrada com a saúde ganhou novos contornos com os Planos Nacionais (Viver
Sem Limite e Crack, É Possível Vencer),
lançados nos últimos anos, particularmente no que diz respeito à construção
integrada de serviços de saúde e assistência social que devem necessariamente
trabalhar de forma articulada na ponta.
A ampliação do coinanciamento federal no período foi acompanhada também
de uma modernização nos processos de gestão inanceira e orçamentária, que conferiram maior agilidade e
continuidade aos repasses. Porém, constituem desaios ainda as desigualdades no
inanciamento pelos entes e sua melhor
compatibilização, considerando custos
e demandas especíicas dos territórios.
Outro desaio é o dimensionamento dos
impactos que as mudanças no contexto
demográico no Brasil trarão até 2050.
Considerando estes desaios, a vigilância socioassistencial constitui função
essencial do SUAS e os debates integrados com saúde e previdência social se
tornam ainda mais necessários, numa
conjuntura que exigirá não só visão integrada entre as áreas, mas debates e medidas convergentes.
4. Considerações Finais
A Assistência Social alcançou avanços
importantes na última década. Após uma
fase inicial de estruturação do SUAS, a
área ganhou novos contornos, com uma
rede signiicativa já presente no país,8
apesar de poucos anos de implantação,
e uma maior integração com outras
políticas (saúde, educação, trabalho e
renda). Há ainda uma trajetória a ser
percorrida tanto para a modernização
da gestão, quanto para o aprimoramento
e qualiicação do atendimento prestado
à população.
O inanciamento também atingiu, em
poucos anos, uma robustez que expressa
a prioridade conferida à área. Porém, é
necessário instituir estratégias que assegurem o debate integrado no campo
da Seguridade Social, considerando
as áreas de Saúde, Assistência Social
e Previdência, sobre as perspectivas
35
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
econômicas e a dinâmica da população
brasileira nas próximas décadas. A trajetória do desenvolvimento econômico
brasileiro, a capacidade de inanciamento público e as mudanças já identiicadas no peril e demandas da população
trarão desaios também ao campo da
Assistência Social, quer seja pelo papel
que assume junto a segmentos mais
vulneráveis, quer seja pelo impacto que a
manutenção da estabilidade econômica e
as mudanças no contexto trarão também
a esta política.
Para além da Seguridade Social, os
debates sobre a redução da desigualdade
socioeconômica e a melhoria das condições de acesso a bens, direitos e serviços
públicos também têm relexo direto na
sua conformação. A adoção de modelo
que atrele desenvolvimento econômico
com redução de desigualdades, distribuição de renda, inclusão e justiça social
é uma agenda de interesse para a política
de assistência social no Brasil.
BIBLIOGRAFIA
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Tipiicação Nacional de Serviços Socioassistenciais.
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nº 8. Brasília, 2012.
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Combate à Fome (MDS). Política Nacional de Assistência
Social (PNAS). Brasília: MDS, 2004.
_______. Ministério do Desenvolvimento Social e
36
Combate à Fome (MDS). Norma Operacional Básica do
Sistema Único de Assistência Social. Brasília: MDS, 2005.
_______. Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome (MDS). Norma Operacional Básica
de Recursos Humanos do Sistema Único de Assistência
Social. Brasília: MDS, 2006.
_______. Ministério do Desenvolvimento Social
e Combate à Fome (MDS). Tipiicação Nacional dos
Serviços Socioassistenciais. Brasília: MDS, 2006.
_______. Ministério do Desenvolvimento Social
e Combate à Fome (MDS). Comissão Intergestores
Tripartite. Protocolo de gestão integrada de serviços,
benefícios e transferências de renda no âmbito do Sistema
Único de Assistência Social (Suas). Brasília: MDS, 2010.
_______. Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome (MDS). Financiamento da Assistência
Social no Brasil – Nota Técnica de Monitoramento.
Brasília: MDS, 2012.
_______. Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome (MDS). Norma Operacional Básica do
Sistema Único de Assistência Social. Brasília: MDS, 2012.
NOTAS
1. A oferta pública não estatal é operacionalizada no
SUAS por meio das entidades e organizações de assistência social, nos termos do artigo 3º da LOAS.
2. A Lei nº 12.435/2011 inseriu o SUAS na LOAS, e
a Lei nº 12.101/2009 assegurou que a certiicação das
entidades beneicentes com preponderância nas áreas
de saúde e educação fosse, deinitivamente, transferida
às pastas competentes, função, até então, assumida pelo
Conselho Nacional de Assistência Social.
3. A Comissão Intergestores Tripartite (CIT) é
composta de representantes da União, Estados, DF e
municípios. Com uma perspectiva transparente e de
coordenação interfederativa, a CIT tem dinâmica de
trabalho que comporta, além da disseminação de informações, a apreciação e pactuação sobre assuntos diversos (parâmetros normativos, partilha de recursos do
coinanciamento federal, direção dos avanços do SUAS
etc.), inclusive aqueles que exigem posterior aprovação
pelo CNAS.
4. Reúnem representações das gestões estaduais e
municipais.
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
5. O acompanhamento familiar no SUAS é desenvolvido pelos seguintes serviços: Serviço de Proteção e
Atendimento Integral à Família, PAIF, ofertado pelos
Centros de Referência de Assistência Social, CRAS;
Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a
Famílias e Indivíduos, PAEFI, ofertado pelos Centros de
Referência Especializado de Assistência Social, CREAS; e
Serviço Especializado para Pessoas em Situação de Rua,
ofertado no Centro de Referência Especializado para
População em Situação de Rua, Centro POP.
6. BRASIL (2012). Fonte: SIAFI. Valores nominais.
Lei+Créditos, em 30.06.2012.
7. BRASIL (2012).
8. Em dezembro de 2012, o MDS já destinava recursos
do coinanciamento federal para apoiar a oferta de serviços em: 7.446 CRAS, 2.216 CREAS, 153 Centros POP,
19 Centros Dia, 40 Residências Inclusivas, 1.205 equipes
volantes, 19.525 vagas de Serviços de Acolhimento para
População em Situação de Rua, 40.520 vagas em serviços
de acolhimento para crianças/adolescentes/idosos.
37
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
A atual estratégia de combate à
pobreza no Brasil no contexto das
conquistas sociais de 1988:
Desaios à inclusão de cidadãos e erradicação da miséria
Barbara Cobo
1. Contextualização
A formulação de políticas públicas de
inclusão e promoção de cidadania social
daqueles considerados mais vulneráveis
passa, inexoravelmente, pela discussão
acerca do desenho e institucionalidade
do sistema de proteção social vigente em
cada país. Nos países pioneiros na implementação do Estado de Bem-Estar Social
38
Doutora em Economia pelo Instituto de
Economia da UFRJ, professora do curso de
pós-graduação Especialização em Políticas
Públicas no mesmo Instituto e trabalha na
área de Indicadores Sociais do Instituto
Brasileiro de Geograia e Estatística.
Ganhadora do prêmio Haralambos
Simeonidis da ANPEC de melhor tese de
economia do ano de 2011 e autora do livro
“Políticas Focalizadas de Transferência de
Renda: Contextos e Desaios”.
(Alemanha, França, Inglaterra e países
nórdicos), a preocupação com a coesão
social e redução das desigualdades é
norteadora do desenho dos seus sistemas
de proteção. As transferências de renda,
sejam elas universais (extensivas a todos
os cidadãos) ou focalizadas em determinados grupos sociais que atendam as
características que lhes conferem o direito
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
ao recebimento do benefício (situação
socioeconômica, idade, ser portador de
deiciência, etc.), quando combinadas a
uma série de serviços de caráter universal (como aqueles providos por sistemas
públicos de saúde e educação, associados ou não a medidas socioassistenciais),
atuam de forma preventiva, protegendo famílias e indivíduos da ocorrência
de riscos diversos que podem provocar ruptura de seus padrões de vida em
função de incapacidade para o trabalho
(doença, velhice, deiciência), desemprego
e pobreza. Tais riscos, inerentes ao grau
de incerteza associado ao sistema capitalista dominante, fazem com que a proteção social assuma papel fundamental na
desmercantilização1 de bens e serviços,
reduzindo, assim, os efeitos das oscilações
do mercado sobre o bem-estar das pessoas, equalizando oportunidades e reduzindo desigualdades.
No entanto, nem todos os Estados de
Bem-Estar Social se desenvolveram dessa
forma, conforme apontam alguns estudos
clássicos, como Titmuss (1958), EspingAndersen (1990, 2002), Gilbert (2002),
Glennerster (2003) e Barr (2004). Em países
como Estados Unidos e os latino-americanos, por exemplo, os sistemas de proteção
social coniguraram-se ao longo dos anos
como de natureza essencialmente contributiva meritocrática, (voltado apenas para
aqueles com capacidade contributiva e
maior força política), de baixa cobertura,
limitados em escopo e pouco uniformes.
Como agravante, nas últimas duas décadas, os programas de combate à pobreza nesses países tornaram-se substitutos
de uma política de proteção social mais
ampla, conforme apontam os estudos de
Lo Vuolo (2004), Lavinas (2007, 2013),
entre outros. Nesse contexto, os programas focalizados de transferência de renda,
que sempre tiveram um papel residual nos
sistemas de proteção social mais complexos e completos, se tornam “o ‘quase tudo’
em termos de acesso para as populações
mais vulneráveis e excluídas” (LAVINAS,
2007). A adoção de um único instrumento
de combate à pobreza, não integrado institucionalmente às demais formas de transferência de renda e de bens e serviços para
manutenção de “mínimos sociais”, confere
aos sistemas focalizados implementados
nesses países, toda a responsabilidade pela
melhoria das condições de vida dos indivíduos e suas famílias, revertendo completamente sua lógica e desenho institucional
original, que é o de servir apenas como
uma “rede” para “capturar” tão somente
aqueles indivíduos que, mesmo beneiciados pelas demais políticas sociais, permanecem na condição de pobreza (COBO,
2012).
A grande expansão dos programas de
transferência de renda condicionados
na América Latina e, em particular, no
Brasil, a partir dos nos 90, trouxe em si a
inovação institucional de se garantir uma
renda mínima àqueles mais destituídos
e historicamente excluídos de qualquer
medida protetiva por parte do Estado. As
primeiras experiências dessa natureza,
no Brasil, se deram no nível municipal, a
partir da implementação dos programas
do tipo Renda Mínima, como o BolsaEscola, cuja transferência de renda era
39
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
condicionada à permanência das crianças na escola e outras contrapartidas
secundárias, como atendimento regular
à saúde, retirada de crianças do trabalho
infantil, presença dos pais nas reuniões
escolares, etc. Duas experiências locais –
Campinas e Distrito Federal – merecem
destaque porque serviram de inspiração
para outros municípios e para o programa
Bolsa-Escola nacional, implementado em
2001. O desenho institucional desses dois
programas municipais foi replicado em
mais de cem municípios brasileiros, não
exatamente com as mesmas características
ou valor de benefício (que era equivalente
a um salário mínimo), uma vez que havia
que se considerar a capacidade inanceira
e administrativa de cada localidade. Para
Lavinas e Barbosa (2000, p.6), sobre o
programa adotado no Distrito Federal em
1995, “pela primeira vez, um programa
40
social alcançava escala e cobertura capazes
de gerar impacto efetivo junto à população
carente e desprezada pelas políticas públicas”.2 Entretanto, dada sua condicionalidade diretamente relacionada à frequência
escolar no ensino fundamental, acabava
por excluir as famílias pobres sem ilhos
ou aquelas somente com ilhos menores
de 7 anos. O Bolsa-Escola em escala nacional foi formulado respeitando a diversidade dos programas municipais existentes, constituindo-se um instrumento de
participação inanceira da União a esses
programas de garantia de renda mínima
associados a ações socioeducativas.3
Na esteira dos programas Bolsa-Escola,
diversos outros programas de transferência de renda, com diferentes condicionalidades para recebimento dos benefícios,
foram implementados em nível nacional,
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
como o Programa de Erradicação do
Trabalho Infantil – PETI (1996); Bolsa
Alimentação (2001); Auxílio-Gás (2002); e
Cartão-Alimentação (2003). O Programa
Bolsa Família (PBF), implementado no
primeiro Governo Lula, uniicou todos
esses programas em uma mesma estrutura administrativa e programática, adotando critérios e condicionalidades únicos e
uniformizando os benefícios.4 Os diversos cadastros sociais foram integrados
ao Cadastro Único do Governo Federal
(CadÚnico), que passou a gerir de forma
centralizada as informações sobre a população institucionalmente reconhecida pelo
governo federal como vulnerável (famílias
com renda per capita de até meio salário
mínimo). O entendimento dominante
era que o alívio da pobreza – por meio
do repasse monetário às famílias – era
uma estratégia de curto prazo, enquanto o cumprimento das condicionalidades
(frequência escolar das crianças e adolescentes, carteira de vacinação atualizada das
crianças, consultas pré-natal para gestantes
e de acompanhamento de saúde de nutrizes e crianças), assim como a participação
não obrigatória nos chamados programas
complementares (geração de trabalho e
renda, alfabetização de adultos, de fornecimento de registro civil e demais documentos), seriam estratégias de saída dessas
famílias da condição de pobreza no médio
e longo prazos.
Observa-se, então, uma clara inlexão
na forma de condução dos programas
sociais de transferência de renda, onde o
governo federal passa a assumir o papel
de protagonista da gestão dos mesmos, ao
contrário do que ocorria nos programas de
renda mínima locais, onde os municípios
tinham esse protagonismo. Não obstante o
cadastramento das famílias no CadÚnico
tenha ocorrido no nível local (com estratégias diferenciadas de identiicação dos
vulneráveis), o processamento das informações, seleção, habilitação e descredenciamento dos beneiciários passaram a
ser ações centralizadas no Ministério de
Desenvolvimento Social e Combate à Fome
(MDS) e na Caixa Econômica Federal.
Em paralelo, o período é também marcado pela institucionalização do Sistema
Único de Assistência Social (SUAS), com
base na Política Nacional de Assistência
Social (PNAS) e na Lei Orgânica de
Assistência Social (LOAS), responsável
por organizar os serviços, programas e
benefícios da assistência social. A PNAS
foi aprovada pelo Conselho Nacional
de Assistência Social em 2004 e o SUAS
começou a ser implementado em julho de
2005. Assim, embora sancionado somente em 2011 (Lei nº 12.435), na prática, o
SUAS, por meio da PNAS e resoluções do
CNAS, já estabelecia os princípios organizativos da Assistência Social há alguns
anos, prevendo a gestão integrada da política assistencial, com operacionalização
participativa e descentralizada nos municípios. Nesse contexto, o PBF, mesmo de
natureza claramente socioassistencial, foi
implementado de forma paralela à implementação do SUAS e demais políticas de
Assistência Social, inclusive com gestores diferenciados: a gestão do CadÚnico
e do PBF icou sob a responsabilidade da
Secretaria Nacional de Renda e Cidadania
(SENARC), enquanto os esforços de implementação do SUAS, manteve-se a cargo
41
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
da Secretaria de Assistência Social (SAS),
ambas no MDS.
Em junho de 2011, o governo federal
lançou o Programa Brasil Sem Miséria
(BSM), com ações focalizadas em um
segmento do público-alvo do PBF (famílias extremamente pobres, com rendimento familiar per capita de até R$ 70,00). O
principal compromisso do governo Dilma
passou a ser o de erradicar a extrema
pobreza até 2014 e, para tal, estruturou o
BSM de forma a implementar instrumentos de busca ativa da população em situação de miséria, inseri-los na rede de proteção social por meio do acesso a serviços
públicos e desenvolver ações e programas
de capacitação e inclusão produtiva. A
concepção do BSM já traz em si a incorporação de algumas críticas e sugestões
advindas dos diversos estudos, pesquisas,
e avaliações sobre o PBF, sendo a principal, o reconhecimento de que este não foi
capaz de atingir uma parcela signiicativa
dos mais destituídos. Pesquisas e estudos com base na Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios (PNAD, do IBGE)
já evidenciavam essa ineiciência horizontal do PBF,5 fato exposto pelos resultados
do Censo Demográico 2010, que evidenciou existir ainda cerca de 16 milhões de
pessoas com renda mensal per capita inferior a R$ 70. É igualmente reconhecido
que o combate às diversas dimensões da
pobreza em que o PBF busca atuar por
meio do cumprimento de condicionalidades esbarra na baixa intersetorialidade
de gestão das áreas de Saúde, Educação
e Assistência Social, característica que é
marcante da formulação e operação de
42
políticas públicas pelo Estado Brasileiro.
Como resposta aos recorrentes anseios
de minimização dos gastos públicos e
maior efetividade no alcance da população pobre, a lógica excludente da focalização permaneceu na concepção do
BSM. Embora os mecanismos de busca
ativa da população tentem minimizar os
custos de inconveniência dos potenciais
beneiciários para acessar o programa,
“A perspectiva multidimensional de análise da
pobreza requer ir além da
seleção de pobres e miseráveis por uma medida
unidimensional arbitrária (renda) e, a partir
desta, realizar intervenções especíicas e, mais
uma vez, focalizadas nas
áreas de saúde, educação,
geração de renda, etc.”
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
a autofocalização6 foi e continua sendo a
principal estratégia de cadastramento de
famílias no CadÚnico. O problema desse
tipo de estratégia (cadastramento por
demanda) é que as famílias mais vulneráveis são penalizadas não só pelos custos
de transporte até o local de cadastramento
(cujo peso é signiicativo em se tratando
de famílias de baixa renda), como também
pelos custos muitas vezes necessários
em termos de cuidado com as crianças
pequenas, enquanto o responsável adulto
se desloca para cadastramento (principalmente para as famílias monoparentais),
além das assimetrias de informação.
Ademais, o PBF e o BSM não são direitos,
estando condicionados às possibilidades
orçamentárias. Conforme ressaltam Soares
e Sátyro (2009, p.11), “ao contrário de uma
aposentadoria, um seguro-desemprego
ou o pagamento de um título da dívida
pública, o Bolsa Família é um programa
de orçamento deinido. Uma vez esgotada a dotação orçamentária, ninguém mais
pode passar a receber o benefício, pelo
menos até que haja crédito suplementar”.
Ao estabelecer inserções e institucionalidades diferenciadas para o conjunto dos
pobres da população (vide as lógicas de
funcionamento do Benefício de Prestação
Continuada – BPC, que é um direito assegurado, em comparação ao PBF e BSM),
será que não estamos contribuindo para
agravar a departamentalização das políticas públicas e criando mais desigualdades,
com evidentes impactos negativos sobre a
universalidade, preconizada constitucionalmente, de diversos serviços e benefícios
de proteção social?
A perspectiva multidimensional de
análise da pobreza requer ir além da seleção de pobres e miseráveis por uma medida
unidimensional arbitrária (renda) e, a
partir desta, realizar intervenções especíicas e, mais uma vez, focalizadas nas áreas
de saúde, educação, geração de renda, etc.
A seleção propriamente dita já deveria
abarcar todas essas dimensões, cujos déicits são reconhecidamente relacionados
à pobreza. Ademais, não se pode correr
o risco de focalizar o que é, por direito,
universal. Skocpol (1995, p.252) ressalta
ainda os fatores políticos que envolvem
o apoio aos programas focalizados, argumentando que seus defensores raramente tratam da questão política e falham
ao não conseguir responder às famílias
trabalhadoras que estão logo acima da
linha de pobreza (e que frequentemente
deparam-se com diiculdades socioeconômicas similares aos considerados pobres)
por que elas devem inanciar programas
que somente atendem a pessoas abaixo da
linha de pobreza.
Esse é o caso que Lo Vuolo chama de
“zona de vulnerabilidade”, “um espaço
social instável onde se conjuga precariedade do trabalho e fragilidade das redes
de sociabilidade e de proteção social” (LO
VUOLO, 2004). Em outras palavras, pobres
e não pobres, situados próximos à linha
divisória arbitrária baseada na renda familiar, partilham de condições de vida muito
similares. Os estudos de Skocpol para a
realidade americana mostram que quando
os esforços antipobreza direcionaram políticas focalizadas somente aos pobres, estes
não tiveram sustentação política, além de
43
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
marginalizar, estigmatizar e humilhar seus
beneiciários. De fato, pesquisa sobre o
grau de aversão à desigualdade na sociedade brasileira, realizada pelo Instituto de
Economia da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (IE/UFRJ) sob a coordenação
da Prof. Lena Lavinas mostrou que “os
maiores coeicientes de apoio à intervenção do Estado foram registrados para os
grupos de menor renda e regiões menos
desenvolvidas. Ou seja, quanto maior a
renda, menor o apoio à intervenção do
Estado em prol da redistribuição. Temos,
portanto, uma visão de classe claramente
manifesta” (LAVINAS et all, 2012).7
Se o objetivo for a inclusão dos mais
vulneráveis por uma perspectiva de alcance de cidadania social, isso diicilmente se
44
dará sem que o PBF e o BSM se conigurem
em um direito social; estejam pautados e
alinhados às conquistas sociais presentes
na Constituição de 1988; e integrados ao
SUAS e às demais políticas socioeconômicas em vigor no país. Sem isso, corremos
o risco de estarmos tratando de inclusão
de consumidores, ao invés de inclusão de
cidadãos. As características e raízes históricas que moldam e permeiam a pobreza
no Brasil passam por dimensões que a
transferência de renda per se não soluciona. “Giving money directly to poor people
works surprisingly well. But it cannot
deal with the deeper causes of poverty”
é a chamada de recente matéria sobre os
programas de transferência de renda aos
mais pobres na revista he Economist,
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
que ressalta, em outra parte do texto que
“giving money away pulls people out of
poverty, with or without conditions”.8 No
meio acadêmico, os brasileiros Fagnani e
Lavinas vêm igualmente chamando atenção para essa questão:
“Além do ajuste iscal, as políticas focalizadas como ‘estratégia única’ [de combate
à pobreza] abrem as portas para a privatização dos serviços sociais básicos. A ideologia prega que ao Estado cabe somente
cuidar dos “pobres” eleitos pelas agências
internacionais (quem recebe até US$ 2
por dia). Os demais precisam comprar
serviços sociais no mercado” (FAGNANI,
2013).
“Poverty is a priority under the new
market-oriented social protection regime
because it presents a major threat to the
expansion of global markets – the overriding form of contemporary capitalism – for
it heightens market failures and negative
externalities. Neo-liberal policymakers
and theorists are very much concerned by
poverty, not for reasons of social justice or
equity – which would entail surmounting
the status divide reproduced by double
standards – but primarily for reasons
of economic eiciency. As emphatically
claimed by an IMF representative in a
Friedrich-Ebert-Stitung (FES)/ILO Seminar in Berlin, ‘there is no vibrant economy if there are no consumers’ [quotation
from Elliot Harris, FES-ILO Seminar
on the Social Protection Floor, Friedrich-Ebert-Stitung/ILO. Berlin, November 2012]” (LAVINAS, 2013).
Nesse contexto, as seções seguintes
trazem uma análise dos programas de
transferência de renda na atual estratégia
de combate à pobreza do país, ressaltando
eventuais limites e possibilidades de efetivação desse objetivo. Algumas propostas e
pontos de discussão considerados relevantes são colocados de forma a evidenciar
aquilo que se consideram elementos-chave
da construção de uma sociedade mais justa
e igualitária: 1) a expansão dos serviços de
proteção social universais; 2) a efetivação
do acesso ao PBF e BSM como direito
reconhecido a todos os cidadão que deles
necessitarem e que atendam aos critérios
estabelecidos, assim como ocorre com o
Benefício de Prestação Continuada; 3) o
aumento da linha de pobreza monetária
em vigor, com o estabelecimento de mecanismos de ajuste de seus valores e incorporação das multidimensionalidade como
mecanismo de elegibilidade; e 4) a prática
efetiva da intersetorialidade para atendimento integrado ao cidadão e, em particular, aquele mais vulnerável, principalmente
nas áreas de saúde, educação, geração de
renda e assistência social, por meio de uma
efetiva incorporação à estrutura do SUAS).
2. Programas de transferência de renda e
alívio da pobreza
No âmbito de um sistema de proteção social, as transferências monetárias
cumprem o papel de assegurar um nível
de renda para as pessoas por meio de três
formas fundamentais: seguros sociais (em
caso de desemprego, doença ou incapacidade laboral), concessão de aposentadorias (suavização de consumo e sustentação
de padrão de vida na inatividade) e alívio
45
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
da pobreza. Os programas de transferência
de renda, como o PBF, encaixam-se nesta
última categoria. O exame da efetividade desses benefícios no alívio da pobreza
perpassa questões importantes e deve ser
avaliada à luz da sua correlação com outras
esferas importantes do sistema de proteção
social, como os benefícios previdenciários, saúde e educação. Barr (2004, p.216)
airma que, no caso do alívio da pobreza,
alguns critérios adicionais precisam ainda
ser considerados, como:
O nível dos benefícios (o valor repassado
confere aos beneficiários um padrão de
vida socialmente aceitável, ou seja, alivia
a pobreza de fato? O pagamento realizado permite que as pessoas comprem
uma cesta de consumo adequada?
Dado qualquer nível de benefícios, as
pessoas se sentem estigmatizadas em
recebê-los?
A focalização e aspectos que envolvem a
eficiência vertical (quando os benefícios
só vão para quem precisa deles) e horizontal (quando todos os pobres recebem o benefício) do esquema proposto;
e
Os “custos”, que abarcam tanto o
montante total dos benefícios propriamente ditos, quanto os custos administrativos do programa.
A integração dos mecanismos de alívio
da pobreza instituídos no Brasil (PBF e
BSM) com áreas importantes da proteção
social será tratada na seção 3. O questionamento acerca do nível dos benefícios, por
sua vez, traz implicitamente a discussão
46
sobre os valores de linha de pobreza e a
estrutura atual de benefícios praticados
pelo PBF e BSM e será discutido na seção
a seguir.
2.1 Benefícios e linhas de pobreza: ajustar
para avançar
A Tabela 1 mostra as alterações que
a estrutura de benefícios do PBF sofreu
desde sua implementação em 2003. Com
o advento do BSM em 2011, houve um
reajuste de cerca de 45% no valor do benefício variável (BV) e ampliação do limite de
três para cinco BVs por família, passando
a incluir, além das crianças até 15 anos,
gestantes e nutrizes. A princípio, o valor
máximo pago, hoje, a uma família beneiciária é de R$ 336,00, se esta for uma
família extremamente pobre (recebendo o
benefício básico) e izer jus ao recebimento de 5 BVs e 2 BVJs (benefício variável
jovem pago a adolescentes de 16 e 17 anos
frequentando escola). O valor médio do
benefício, no entanto, era de R$ 153,00 em
junho de 2013 (MDS, 2013a). O aumento
do valor médio do benefício desde 2010
acompanha a ampliação do número de
benefícios variáveis ocorrida em junho
de 2011 e a Ação Brasil Carinhoso, que
busca garantir que as famílias extremamente pobres tenham rendimento familiar
per capita mínimo de R$ 77 (inicialmente
implementado para famílias com crianças
até 6 anos, o Brasil Carinhoso foi ampliado
para famílias com crianças até 15 anos no
inal de 2012). Ou seja, ao valor máximo
pago por família pode haver uma parcela
extra de forma que o rendimento familiar
per capita mínimo seja aquele deinido
pelo Programa.
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
Ora, se o PBF considerava, desde 2009,
como extremamente pobres as famílias
com até R$ 70,00 per capita e se o BSM
veio em 2011 com o objetivo de erradicar a miséria no país, garantir que todas
as famílias, com ou sem ilhos, atinjam,
no mínimo, esse patamar de renda após
recebimento do benefício (Eixo Garantia
de Renda) deveria ser, desde sempre,
resultado primordial do Programa. Se
a transferência de renda não é capaz
sequer de fazer com que famílias consideradas pobres e extremamente pobres
possam icar acima da linha de pobreza
monetária estabelecida pelos programas,
urge fazer uma reavaliação dos valores
desses benefícios. O governo federal,
por meio da Secretaria Extraordinária de
Superação da Extrema Pobreza (SESEP)
e SENARC, buscam fazer pactuações
junto às Unidades da Federação para
complementação do valor do benefício a
im de que as famílias atinjam o patamar
mínimo de rendimento per capita, além
das ações do Brasil Carinhoso. Ao inal de
2011, apenas 9 unidades haviam aderido
à proposta (MDS, 2013).
Vale ressaltar ainda que não estão
previstos mecanismos regulares de atualização monetária para os valores praticados pelo Programa, seja dos benefícios,
seja das linhas de pobrezas. Estas últimas
sofreram o efeito da inlação acumulada
em quase cinco anos (2009 a 2014), período que permaneceu com os valores congelados. Atualizados pelo valor do INPC de
maio de 2014, data do último reajuste, os
valores das linhas seriam de R$ 92,96 e
R$ 185,92, valores superiores, portanto,
aos estabelecidos no último reajuste (R$
77,00 e R$ 154,00, respectivamente). De
acordo com Lavinas e Fonseca (2011), o
reajuste de valores do BF (e, por conseguinte, do BSM) manteve-se subjugado
à discricionariedade dos Ministérios da
Fazenda e Planejamento e, nesse sentido,
“diferencia-se de outros benefícios (BPC
e benefícios previdenciários) que estão
sujeitos a um critério de atualização do seu
Tabela 1: Estrutura de Benefícios do Programa Bolsa Família
47
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
valor, anualmente [via reajuste do salário
mínimo]. Instituem-se, assim, critérios que
discriminam benefícios e, com isso, classes
de beneiciários – ser beneiciário do PBF
dá condições e status distintos daqueles
reconhecidos ao beneiciário do BPC”.
Ademais, as autoras ressaltam que a renda
média brasileira tem aumentado, bem
como os rendimentos do trabalho. Logo,
“se a linha da pobreza extrema continua
extremamente baixa, ela não acompanha
tal evolução e, portanto, tende a reduzir o
contingente de pessoas vivendo na miséria, omitindo a real dimensão da destituição aguda”. Esse é o problema de se adotar
linhas de pobreza absolutas sem critérios
estabelecidos de revisão de valores.
A discussão sobre a revisão das linhas
de pobreza é fundamental e possui impactos diretos na seleção dos beneiciários. O
BSM manteve os critérios adotados pelo
PBF e habilita as famílias ao recebimento dos benefícios conforme sua renda
declarada. A não exigência de documentos comprobatórios de rendimentos
é importante no contexto de alta informalidade, precariedade e instabilidade
da inserção dos pobres e miseráveis no
mercado de trabalho. Todavia, a adoção
única do critério absoluto da “renda” não
trata da multidimensionalidade da pobreza, mascara iniquidades e aparta a população pobre ao não fazer com que suas
necessidades acompanhem o aumento da
renda média da população e do padrão
de vida prevalecente. A linha de extrema pobreza atualmente em vigor de R$
77,00 per capita é extremamente baixa e
não guarda nenhuma relação com qualquer outra medida de bem-estar ou cestas
48
“Entre aqueles institucionalmente
reconhecidos como extremamente
pobres e pobres, o acesso a
saneamento básico, posse
de bens duráveis e níveis de
escolaridade variam muito
pouco e reforçam que as
carências da população
pobre vão muito além da
perspectiva monetária.”
mínimas, nacionais ou regionalizadas, de
consumo. O que o MDS advoga é que essa
linha equivale, aproximadamente, à linha
de extrema pobreza de US$ 1,25 (pelo
poder de paridade de compra) adotada
pelo Banco Mundial e pelos Objetivos do
Milênio (JANNUZZI, 2013). No entanto, o primeiro Relatório Nacional de
Acompanhamento dos ODM, divulgado
pelo IPEA/IBGE em 2004, já ressaltava
que os indicadores com base nesta linha
“devem ser analisados com cautela, sob
pena de se considerar, precipitadamente,
a questão da pobreza mais aguda como
um problema superado no Brasil” (IPEA/
IBGE, 2004).9
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
A necessidade de ampliação da linha é
reforçada quando se comparam diversos
indicadores sociais a partir de diferentes
cortes de rendimento domiciliar per capita
com base no Censo Demográico 2010
(Tabela 2). Entre aqueles institucionalmente reconhecidos como extremamente
pobres e pobres, o acesso a saneamento
básico, posse de bens duráveis e níveis de
escolaridade variam muito pouco e reforçam que as carências da população pobre
vão muito além da perspectiva monetária. Os resultados mostram também que
o acesso prioritário a serviços públicos
para famílias com renda per capita de até
R$70,00,10 como preconiza as atuais iniciativas no âmbito do BSM, não se justiica.
O que de fato diferencia esses segmentos
populacionais, principalmente aqueles
que transitam nas chamadas “zonas de
vulnerabilidade” (LO VUOLO, 2004), cuja
instabilidade da renda familiar e condições
de vida não os distancia muito dos considerados pobres? Além disso, qual o papel
das demais dimensões da pobreza nesse
contexto e como traduzi-las em indicador de elegibilidade, ampliando o acesso
àqueles pobres que, mesmo com renda per
capita acima do corte estabelecido, vivem
em moradias indignas, sem participação
social, com escolaridade aquém do mínimo
necessário às demandas da vida moderna
entre outras carências importantes?
Na literatura, advoga-se que a análise de
pobreza por meio de linhas de indigência
absolutas acaba por “apartar” essa população da sociedade, tratando-a de forma
estanque e isolada. Ao delimitar o valor
ixo de x como limite máximo de renda
segundo o qual um indivíduo é considerado pobre, se o padrão de vida médio
ou mediano da população como um todo
melhora, essa população não se apropria
desses benefícios. Isso engendra ainda
outros questionamentos em termos de
que tipo de integração ou inclusão social
se quer em relação aos pobres. Se o padrão
de vida médio de determinada população
remete a existência de determinados bens
em seu domicílio (TV em cores, aparelhos
de DVD, freezer, computador) ou acesso
a determinados serviços (internet, saúde,
educação), por que não considerar como
Tabela 2: Proporção de pessoas por diferentes cortes de renda domiciliar per capita, segundo indicadores selecionados
49
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
pobres aqueles que não têm acesso a essa
qualidade de vida média ou mediana?
Embora ainda de forma reducionista
por tratar-se de medida exclusivamente
monetária, o EUROSTAT, por exemplo,
adota como “linha de pobreza” o patamar
de 60% do rendimento familiar/domiciliar per capita mediano. Nessa perspectiva,
uma das propostas apreciadas, porém não
adotada, para o BSM foi feita por Lavinas
(2011, mimeo), a pedido da Coordenação
do Programa na época. A linha de extrema
pobreza sugerida, com base no conceito de
pobreza relativa, equivalia a 40% do rendimento mediano rural:
“Explico tal escolha. A PNAD 2009
estampa uma enorme disparidade
entre os valores mensais da renda domiciliar per capita mediana urbana (R$
492,00) e os da rural (R$ 275,00). A
meu ver, tamanho hiato impede que se
considere a renda domiciliar mediana
per capita agregada (R$ 465,00) como
a referência para se calcular o valor
da linha de indigência que, nesse caso,
seria equivalente a R$ 186,00 mensais (40%). Dado o gap urbano-rural,
devemos tomar como referência para
a nova linha de indigência nacional o valor de R$ 110,00 (40% de
R$ 275,00), o que garante ao menos
eliminar a indigência nas áreas rurais,
onde, em termos monetários ela é mais
severa (baixo nível de monetização de
muitas famílias)” (LAVINAS, 2011).
O rendimento domiciliar per capita
mediano atualizado pela PNAD 2012 foi
50
da ordem de R$ 533,00, sendo o urbano
R$ 600,00 e R$ 287,00 para as áreas rurais.
Nesse caso, a linha de extrema pobreza,
conforme proposta por Lavinas, seria de R$
114,80 reais per capita (40% de R$ 287,00).
A linha de pobreza, equivalente a 60% da
mediana, seria em torno de R$172,20. A
PNAD passará a ser contínua a partir de
2014, com um espalhamento maior da
amostra, e, por conseguinte, maior penetração em municípios menores e rurais,
onde a extrema pobreza se concentra. É
uma fonte segura de informações sobre
rendimentos, disponível anualmente, que
pode balizar a discussão sobre a ampliação da linha de extrema pobreza. Para
2014/2015 está também prevista a realização de uma nova Pesquisa de Orçamentos
Familiares (POF), base de atualização da
composição das cestas básicas e de linhas
pobreza a partir do consumo observado
das famílias, cujos estudos podem aprofundar o debate em termos de padrões
de vida mínimo, médio e mediano das
famílias brasileiras. Ainda tratando-se das
fontes de dados para estudos de pobreza,
o Brasil carece de pesquisas longitudinais
sobre condições de vida, que permitam
acompanhar ao longo do tempo a persistência da pobreza e desemprego em determinadas famílias e a evolução do padrão
de vida médio da população.
Independentemente do valor acordado,
é fundamental que as linhas de extrema
pobreza e pobreza hoje em vigor sejam
ampliadas e tenham uma regra deinida de reajuste de seus valores. Mais além,
o valor do benefício repassado deve ser
tal que faça todas as famílias beneiciárias ultrapassarem o patamar de pobreza
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
estabelecido. Não se podem discutir portas
de saída sem que se solucionem as portas
de entrada. O que de fato tira as pessoas
da miséria e da pobreza é a estabilidade da
sua renda e das suas condições de vida, de
modo a que contingências não os levem a
perder bem-estar, economias e seu patrimônio, seja ele capital humano, social ou
inanceiro. Permitir que o benefício se
mantenha por um período determinado, mesmo quando a renda da família se
eleva para além do patamar estabelecido
para a linha de pobreza, garante um período de reorganização da família, pagamento de dívidas, adequação de padrão
de vida, tempo para reestruturação. Note
que a proposta aqui apresentada difere
do “retorno garantido”, estabelecido no
âmbito do PBF em outubro de 2012 e que
assegura às famílias beneiciárias a segurança de que terão algum apoio inanceiro
caso percam o emprego ou sofram algum
outro tipo de infortúnio.11 A ideia aqui não
é substituir imediatamente uma renda pela
outra, mas permitir que ambas se complementem e que a retirada do benefício seja
gradual dentro de um período pré-estabelecido. Algo na linha dos “working credits”
amplamente utilizados em países como
Estados Unidos, França e Reino Unido,
de forma que o valor pago às famílias se
reduza na mesma proporção do aumento
da renda bruta familiar.
Em paralelo, iniciativas que deem
conta da multidimensionalidade da
pobreza devem ser consideradas como
formas de identiicação de famílias em
situação de vulnerabilidade. Mais do
que a construção e replicação de índices
sintéticos (diversos coexistem hoje, como
os criados pelo PNUD – Índice de Pobreza
Multidimensional; o próprio IDH; o
Índice de Desenvolvimento Familiar – IDF
utilizado pelo MDS como medida auxiliar
de acompanhamento das famílias, entre
outros), é importante que nos debrucemos sobre metodologias que abarquem as
destituições acumuladas pela população
pobre, territorializando-as e permitindo a
elaboração de políticas públicas especíicas
e destinadas as diversas carências sociais.
O México, por exemplo, aprovou, em
2004, sua Ley General de Desarrollo
Social (LGDS), que criou um organismo independente (Consejo Nacional de
Evaluación de la Política de Desarrollo
Social – CONEVAL), com autonomia
técnica e de gestão, para medir a pobreza
em nível nacional, estadual e municipal.
A LGDS assinala que a pobreza deve ser
medida utilizando oito dimensões e não
somente a renda. Ou seja, a pobreza é
multidimensional por força de lei. As oito
dimensões consideradas possuem conexão com direitos sociais garantidos constitucionalmente à população (efetivação
de direitos sociais básicos) e referem-se,
além da renda monetária, ao atraso educacional dos indivíduos, acesso à saúde,
acesso à seguridade social, qualidade e
espaços das moradias, acesso a serviços
básicos no domicílio, acesso à alimentação
e grau de coesão social. Para a elaboração
desta metodologia realizou-se uma ampla
consulta com experts nacionais e internacionais, assim como com instituições
decisórias como o Congresso, o Executivo
e entes federativos (CONEVAL, 2013).12
51
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
Dessa forma, são considerados pobres,
aqueles que têm ao menos uma das carências sociais (dimensões) apontadas e renda
inferior ao custo das necessidades básicas
calculadas para o país.
Um primeiro exercício dessa natureza,
com base na metodologia mexicana, pode
ser observado na Síntese de Indicadores
Sociais do IBGE, que traz um estudo sobre
a identiicação de pessoas vulneráveis por
renda (população com rendimento abaixo
de 60% da mediana) e por algumas carências sociais (considerando a efetivação de
direitos como escolaridade mínima, qualidade das moradias e inserção no sistema
de proteção social. O acesso à saúde e à
alimentação não foi considerado por não
terem sido investigados no Censo 2010
nem na PNAD 2011). A análise da pobreza pela ótica da pobreza relativa em termos
monetários, nos dá um indicador de cerca
de 30% da população nessa condição. Já
pela perspectiva da efetivação de direitos, 2/3 da população tem ao menos uma
carência social, com destaque para as
dimensões atraso educacional e acesso a
serviços básicos. Ou seja, em pelo menos
2/3 dos lares brasileiros, algum membro
familiar ou era analfabeto, ou não frequentava escola, se estivesse em idade escolar,
ou não tinha no mínimo 8 anos de escolaridade (fundamental completo), ou ainda,
não tinha acesso a rede de água, esgoto ou
coleta de lixo, ou morava em domicílios
com alta densidade de moradores. Esse
exercício deve ser debatido e estendido a
bases de dados não cobertas pelo IBGE,
assim como sua metodologia melhor
adaptada à realidade brasileira e disponibilidade de dados. Mas, sem dúvida, é
52
um avanço na forma de se medir pobreza
pela ótica multidimensional. Essa questão
merece um esforço conjunto dos poderes
executivo, legislativo e órgãos de estatísticas associados, em particular, o IBGE,
principalmente quando o objetivo primordial é construir um indicador que permita
o acompanhamento da promoção da cidadania social.
2.2 Focalização, eiciência horizontal e
acesso aos benefícios
Diversos estudos e pesquisas se debruçam sobre a análise da eiciência da
focalização do PBF.13 A focalização relaciona-se diretamente com a questão da
identiicação dos beneiciários, sendo
que existe hoje uma grande variedade de
instrumentos utilizados para selecionar e
classiicar os indivíduos que atendem aos
critérios de entrada nos programas sociais
dessa natureza. Tais instrumentos incluem
mecanismos de avaliação da família ou
indivíduo, procedimentos de elegibilidade categórica (focalização geográica, por
exemplo) e de autofocalização, sendo que
muitos programas apresentam estratégias
mistas com uso combinado de diferentes
instrumentos. No desenho institucional do
PBF, o município é a instância responsável
por essa identiicação. A habilitação das
famílias para recebimento dos benefícios
do PBF e BSM é feita, portanto, por meio
de estratégias municipais de cadastramento de potenciais beneiciários, dentro dos
limites de renda estabelecidos. O último
Relatório de Informações do Bolsa Família
e Cadastro Único disponível informa que
existiam, em março de 2013, cerca de 25,4
milhões de famílias inscritas no Cadastro
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
(equivalente a 81,8 milhões de pessoas
cadastradas). A distribuição dessas famílias, segundo o nível de renda familiar per
capita (RFPC), encontra-se na Tabela 3 e
a análise foi feita antes do último reajuste
de maio de 2014. Das famílias cadastradas, 13,5 milhões recebiam benefício do
Bolsa Família. Ainda segundo esse mesmo
Relatório, estima-se, com base no Censo
2010, que existam 13,7 milhões de famílias pobres (“peril Bolsa Família”, até R$
140 per capita) e 20 milhões de famílias
de “baixa renda” (“peril Cadastro Único”,
até meio salário mínimo per capita). O
número de famílias cadastradas com esses
peris é um pouco maior (18,5 milhões e
23 milhões, respectivamente).
Diferenças entre registros administrativos, como o CadÚnico, e pesquisas domiciliares, como o Censo Demográico, são
esperados por consistirem formas distintas de captação das informações. Ainda
assim, é importante analisar essa diferença
de quase 5 milhões de famílias observada
entre as famílias cadastradas com renda
até R$ 140 (passíveis, portanto de inclusão
no programa) e o atual número de famílias
beneiciárias, mesmo que o atual contingente de beneiciários esteja condizente
com a estimativa do Censo 2010. Tal diferença pode abranger uma ampla variedade
de motivos, que vai desde o maior número
de famílias que declararam renda dentro
dos parâmetros do Programa visando a
obtenção do benefício (incentivo adverso
do cadastramento com base na renda autodeclarada); famílias que foram cortadas do
PBF mas que permanecem no CadÚnico;
famílias não alcançadas pelo Programa
(ineiciência horizontal); além da diferença temporal das informações da renda
(a base de referência do Censo é julho de
2010 e a do CadÚnico varia em função
da última atualização dos cadastros).
Numa perspectiva de ampliação da linha
de pobreza adotada, conforme defendido
na seção anterior, o CadÚnico já possui
uma margem de busca ativa de quase 10
milhões de famílias com RFPC de até meio
salário mínimo passíveis de serem incluídas no programa.
No caso do BSM, a ineiciência horizontal
Tabela 3: Famílias com Peril Cadastro Único e Peril Bolsa Família, Famílias Cadastradas e Beneiciárias no Cadastro
Único do governo federal
53
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
“Os dados da Tabela 2
mostram que mesmo se
incluir no programa as
famílias com renda até
R$ 140 per capita, estas
ainda apresentam diversas características que
coniguram estado de
pobreza aguda.”
é mais importante de se combater que a
vertical, considerando que o alívio da miséria urge acima de qualquer outro objetivo,
não se podendo correr o risco de deixar
aqueles que atendem aos critérios de elegibilidade de fora do programa. Os dados da
Tabela 2 mostram que mesmo se incluir no
programa as famílias com renda até R$ 140
per capita, estas ainda apresentam diversas
características que coniguram estado de
pobreza aguda. A opção da “busca ativa”
de novos beneiciários foi um reconhecimento público da ineiciência horizontal
do PBF em alcançar justamente as pessoas
mais destituídas. A estratégia adotada por
grande parte dos municípios brasileiros
para cadastramento das famílias foi “por
demanda”, ou seja, as pessoas voluntariamente e na medida em que possuíam
54
condições para tal se deslocavam para os
postos de cadastramento. De fato, uma
enquete realizada pelo MDS em 2007 junto
a 2.633 municípios revelou que somente
26% realizaram cadastramento por meio
de visitas domiciliares, principalmente os
municípios de médio porte, e cerca de 25%
estruturaram postos de cadastramento em
CRAS, escolas ou postos volantes (MDS,
2007, p.22). Tal estratégia, que se repete
em períodos de atualização dos cadastros,
gera uma série de custos de inconveniência às famílias, culminando na sua exclusão do Programa. Esses custos são reconhecidos na teoria e atestados na prática.
Em recente entrevista à Folha de S.Paulo,
o antropólogo norte-americano Gregory
Duf Morton, que estuda o impacto do
Bolsa Família nas relações de poder entre
homens e mulheres, numa das regiões
mais pobres do sertão da Bahia, defende a
grande heterogeneidade entre os beneiciários do Programa (desigualdade entre os
pobres) e expõe sobre os custos de inconveniência por ele observados:
“Quando a gente impõe critérios mais
rígidos, a gente acaba excluindo os mais
pobres. E por quê? Porque justamente são os
mais pobres que têm as maiores diiculdades administrativas, que não têm uma boa
leitura, que não sabem viajar até a cidade.
Então esse é um dos dados mais importantes
que eu achei. Entre os mais pobres, o acesso
é mais limitado. São eles os que têm maior
diiculdade para interagir com os aspectos
burocráticos do programa”
“Até hoje os critérios seguem sendo bastante abertos. E o governo Dilma [Roussef]
está tentando fazer um processo de busca
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
ativa para incluir os mais excluídos. Mas
esse processo não está bom. Não teve um
êxito total. Por exemplo: em Vitória da
Conquista, até hoje parte das pessoas cadastradas não está recebendo os benefícios. São
10 mil famílias sem receber, pois o município já atingiu seu limite. Isso ocorre em
muitos outros municípios, cada um tem um
limite. Então tem 10 mil na lista de espera.
Eles se encaixam nos critérios do programa,
mas icam esperando disponibilidade de
uma vaga”.
“Que eu saiba, o governo federal até hoje
não colocou critérios mais rigorosos. Mas
acontece que, em certos municípios, os
governantes locais estão exigindo processos
mais burocráticos para a concessão do benefício. Em Vitória da Conquista, para receber o Bolsa Família você precisa fazer três
consultas na Secretaria de Desenvolvimento
Social do município. Esse procedimento é
complicado para quem mora na zona rural.
As pessoas que moram nos povoados que eu
pesquisei estão a cerca de 100 quilômetros do
centro da cidade. Cada visita [ao centro da
cidade] custa R$ 20. Para quem está vivendo com R$ 100 mensais, gastar R$ 20 três
vezes é muito complicado. Então é esse tipo
de obstáculo que está impedindo o acesso dos
mais pobres. São [necessárias] três visitas
[à Secretaria de Desenvolvimento Social] a
cada dois anos. O município mudou várias
vezes esse sistema. Antes eram dias abertos
de cadastro, a pessoa tinha um intervalo
para ir. Mas eu quero colocar bem claramente que essa parte da administração do
programa varia muito de município para
município. Está muito na mão do gestor
municipal”.
A busca ativa implementada no BSM
é realizada por meio da rede de atendimento socioassistencial nos municípios
(CRAS, CREAS e Centros POP)14 e pode
se conigurar em um importante passo
para uma maior integração ao SUAS e
alcance efetivo da população excluída
dos programas. Dados da Sesep mostram
que, de junho de 2011 (implementação do
55
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
BSM) a janeiro de 2013, a busca ativa foi
responsável pela inclusão de 806.712 famílias no PBF (MDS, 2013d). São três estratégias complementares que compõem esse
processo (MDS, 2013c): (1) busca ativa
para inclusão no Cadasto Único (localizar
as famílias extremamente pobres, incluí
-las no CadÚnico e manter suas informações sempre atualizadas); (2) busca ativa
para acessar benefícios (incluir no Bolsa
Família, no Bolsa Verde, no Fomento a
Atividades Produtivas, no Programa de
Erradicação do Trabalho Infantil e no
Benefício de Prestação Continuada todas
as famílias que atendam os critérios de
elegibilidade); (3) busca ativa para acessar
serviços (nesse caso, o Estado assegura que
as famílias extremamente pobres tenham
acessos aos serviços sociais básicos de
saúde, saneamento, educação, assistência
social, trabalho e segurança alimentar e
nutricional, entre outros).
Todavia, “o relativo êxito da busca ativa
não deve ocultar o fato de que não existe
um número exato de famílias indigentes
a ser alcançado” (LAVINAS e FONSECA,
2011). A proclamada “universalização dos
pobres” nunca será atingida, nem deveria
ser um objetivo programático, dada a dinâmica da condição de pobreza. Erradicar a
miséria idem. A pobreza e a miséria são
fenômenos dinâmicos, um risco social
passível de acometer qualquer indivíduo
ou família, alguns com maior probabilidade que outros, dadas suas histórias de
exclusão, marginalização e destituições
acumuladas. Logo, “não se trata de identiicar um número (estoque) de pessoas
a serem alcançadas e integradas ao Bolsa
Família e ao BSM, senão dispor de um
56
sistema que atende de forma permanente a
todas as demandas que se colocam.
A questão da eiciência horizontal
perpassa o questionamento feito por Barr
(2004) de que os benefícios do programa
de alívio da pobreza devem estar disponíveis a todos que forem identiicados
como elegíveis. Questões orçamentárias,
cotas, custos de inconveniência e mecanismos de busca ativa mostram que isso
não é ainda uma realidade. E isso ocorre
porque, além das assimetrias de informação, o Bolsa Família não é um direito
assegurado, embora tenha espaço para tal.
Ainal, “diferentemente dos nossos pares
latino-americanos, a institucionalidade da
seguridade social brasileira permite que o
combate à pobreza seja legitimado como
política de Estado prioritária dentro de um
amplo sistema de proteção social inclusivo e abrangente” (COBO, 2012). Sua equiparação ao BPC, que igualmente foca a
população pobre e vulnerável, porém com
linha de pobreza e desenho institucional
distinto, é fundamental para o tratamento
igualitário e justo das populações vulneráveis e fortalecimento da institucionalidade do SUAS. O BPC possui estrutura de
funcionamento dissociada dos mecanismos do PBF e BSM e foi instituído como
direito pela Constituição de 1988 e regulado pela Lei Orgânica de Assistência Social
(LOAS, de 1993). O benefício é não contributivo, no valor de um salário mínimo
nacional (R$ 678,00 em 2013) e direcionado às pessoas portadoras de deiciência e
idosos (65 anos ou mais) com RFPC de até
¼ do valor do salário mínimo (R$169,50,
em 2013), que comprovem não prover de
meios de subsistência. O BPC beneicia
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
hoje 3,86 milhões de pessoas (2,08 milhões
de pessoas com deiciência e 1,78 milhão
de idosos), com crescente cobertura (MDS,
2013a).
Programas Brasil Sorridente, Saúde da
Família, Olhar Brasil, Saúde na Escola,
Distribuição de Medicamentos e Rede
Cegonha.
3. Universalidade, Intersetorialidade e
Direitos
Ao priorizar a expansão dos serviços de
saúde, educação, assistência social e trabalho para as populações em extrema pobreza, o desaio que se coloca é evitar a “focalização da universalização”, cujo duplo efeito
negativo seria a desistência de incorporação das classes médias às políticas universais e o abandono de outras faixas de renda
quase tão pobres quanto o público alvo
do BSM ao mercado. O direito à saúde
e educação são conquistas importantes
dentro dos princípios universalistas que
regem a Constituição Brasileira de 1988.
Por se direcionarem a todos, combatem
iniquidades, promovem coesão social,
equiparam oportunidades.
O debate sobre universalidade e direitos já se colocava como contraponto na
discussão sobre as condicionalidades do
PBF, considerando que, no Brasil, educação e saúde são direitos universais, constitucionalmente garantidos, e, portanto, não
deveriam ser condicionantes de recebimento de benefícios. O BSM, ao estruturar
um eixo de acesso aos serviços públicos,
reaviva esse debate. As ações pertinentes a esse campo (documentação, assistência social, saúde, educação, segurança
alimentar, acesso à iluminação elétrica,
entre outros) são executadas privilegiando as pessoas inscritas no Cadastro Único
e beneiciárias do programa. Na área de
Educação, há as ações do Programa Brasil
Alfabetizado (voltado para a alfabetização
de adultos, preferencialmente nos municípios com altas taxas de analfabetismo) e
do Programa Mais Educação (“escola em
tempo integral”, cujos recursos são repassados prioritariamente para escolas com
maior número de beneiciários do PBF).
Na mesma lógica das ações de educação,
a saúde vem também utilizando os critérios do BSM para deinir a ampliação de
suas metas de atendimento, redirecionando suas ações para beneiciar municípios
com maior concentração de população em
extrema pobreza (MDS, 2013b). As ações
referem à construção de novas unidades
básicas de saúde – UBS; ampliação dos
“A Constituição de 1988 representou
uma etapa fundamental da viabilização
do projeto das reformas socialmente
progressistas. Com ela, desenhou-se pela
primeira vez um sistema de proteção
social inspirado nos valores do Estado
de Bem-Estar Social. Seu âmago são
os princípios da universalidade (em
contraposição à focalização exclusiva),
da seguridade social (em contraposição
ao seguro social) e da compreensão
da questão social como um direito da
cidadania (em contraposição ao assistencialismo)” (FAGNANI, 2013a).
Não se trata aqui de ignorar os imensos
vazios assistenciais no território brasileiro, em particular na área da saúde. Má
57
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
distribuição de médicos e de recursos,
problemas de gestão e de pactuação de
responsabilidades entre os entes federativos resultam em diiculdades de acesso,
mal atendimento e baixa resolutividade.
E essa penalização tem recaído justamente sobre a população mais pobre, com
maiores diiculdades de acesso. Porém, a
solução de mercado tampouco funciona
de forma eiciente nesse caso. Pela teoria
econômica pode-se argumentar que a
natureza do setor da saúde, com suas assimetrias de informação, externalidades
e diiculdades técnicas que envolvem os
seguros e planos de saúde causam problemas sérios pelo lado da demanda e afastam o setor dos pressupostos da eiciência de mercado (BARR, 2004, p.289). Por
outro lado, como garantir atendimento em
segmentos considerados “pouco lucrativos”, seja geograicamente, seja em especialidades médicas que demandam poucos
exames complementares caros, como o
atendimento pediátrico ambulatorial? Há,
portanto, fortes indícios de que um mercado de saúde privado irrestrito será altamente ineiciente e, também, incompatível
com a noção amplamente aceita de justiça
social. Eiciência, aqui, requer, no mínimo,
regulação pesada e inanciamento público
(BARR, 2004, p.290).
Evidentemente, a expansão dos serviços
universais de saúde deve se dar de forma
a preencher esses vazios, focalizando ações
especíicas quando necessárias (surtos de
doenças ou epidemias geograicamente
localizadas, campanhas), mas envolvendo toda a sociedade no fortalecimento do
Sistema Único de Saúde nos moldes em
que ele foi concebido. Vale lembrar que
58
são princípios e diretrizes regentes do SUS
(Lei nº 8.080 de 19/09/1990, Capítulo II),
dentre outros, a universalidade de acesso
aos serviços de saúde em todos os níveis
de assistência; a integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e
contínuo das ações e serviços preventivos
e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de
complexidade do sistema; a igualdade da
assistência à saúde, sem preconceitos ou
privilégios de qualquer espécie; e o direito
à informação, às pessoas assistidas, sobre
sua saúde.
No caso da Educação, no Brasil, o ensino
fundamental obrigatório e gratuito, associado a políticas diversas de suporte e
incentivo à frequência escolar, colocaram
todas as crianças em idade escolar em
estabelecimentos de ensino municipais
de ensino fundamental. Gargalos importantes permanecem na educação infantil e
no ensino médio, principalmente entre os
mais pobres. Pela PNAD 2012, enquanto
98,2% das crianças de 6 a 14 anos estavam
na escola, esta proporção cai para 84,2%
para os jovens de 15 a 17 anos, 72,2% para
as crianças de 4 a 5 anos e 21,2% para as
crianças de 0 a 3 anos. A ampliação do
ensino obrigatório para a faixa etária de 4
a 17 anos, tornando obrigatórios os níveis
de ensino pré-escolar e médio, além do
fundamental (Emenda Constitucional nº
59, de 11/11/2009) é um importante passo
para a superação desses gargalos e engendra novos desaios e limites ao controle das
condicionalidades.
É importante, mas não suiciente, estar
na escola. As crianças e jovens precisam
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
concluir os níveis cursados de forma satisfatória, o que coloca a discussão da qualidade do ensino e redução do abandono
escolar precoce como itens fundamentais
na agenda pública. A escola integral é uma
demanda que se impõe não apenas em
função do desenvolvimento das crianças,
mas também pela ótica de gênero, uma
vez que ainda cabe às mães prioritariamente o cuidado com as crianças e, no
caso em análise, são elas as responsáveis
pela gestão do benefício do Bolsa Família.
Crianças na escola permitem que as mães
se (re)insiram no mercado de trabalho ou
retornem à escola. Se em tempo integral,
maior a chance dessa inserção se dar em
ocupações mais qualiicadas que gerem
maiores rendimentos e, por conseguinte, melhoria da vida familiar. Estudos
são controversos quanto à promoção da
autonomia das mulheres ao serem elas
as titulares dos benefícios. Para Morton
(2013), “em domicílios rurais que recebem
Bolsa Família no sertão da Bahia, observamos uma relação: as mulheres mais
pobres associam o dinheiro com a família
e o marido, e as mulheres relativamente
prósperas associam o benefício com um
discurso de autonomia pessoal”. A heterogeneidade e a desigualdade, mesmo entre
os mais pobres, deve ser considerada em
qualquer análise de efeitos e impactos do
Programa.
O acompanhamento que hoje se faz
das condicionalidades do PBF ainda é o
máximo de monitoramento “integrado”
que se faz das ações sobre os beneiciários do PBF, mais com ins de controle e
punição, que propriamente de promoção
social. O combate à pobreza e erradicação
da miséria não está dada como prioridade para todos os Ministérios envolvidos,
de acordo com Lavinas e Fonseca (2011):
“é igualmente baixo o protagonismo de
inúmeros Ministérios, parceiros em ações
estratégicas, que não conseguem tomar
para si as metas do Plano nem as executar dentre as suas prioridades. Sua adesão
nas ações cruzadas (apesar de centrais ao
PBSM não ganham visibilidade) é marginal, por não estarem adequadamente
envolvidos com a formulação, operacionalização e monitoramento”. Dessa forma, a
intersetorialidade prevista nas diretrizes e
ações do Programa não se efetiva.
Afora esse esforço político e institucional de fazer com que todas as partes envolvidas nas ações do Plano incorporem as
metas do BSM como suas, e não apenas
da Sesep, existem outros encaminhamentos que podem facilitar a integralidade e
monitoramento das ações desenvolvidas.
59
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
O governo federal possui grandes e robustos bancos de dados nas áreas de Saúde
(Datasus), Educação (Censos Escolares),
Previdência Social (Dataprev) e o próprio
CadÚnico, que pouco conversam entre si.
O esforço interinstitucional para a integração dessas bases de dados deveria ser uma
meta a ser atingida, em prol de um melhor
acompanhamento das famílias, beneiciárias ou não de programas de transferência
de renda, e sua inserção nos diversos serviços públicos. Uma base de dados integrada
poderia ser atualizada cada vez que o cidadão fosse retirar alguma documentação,
acessar serviços de saúde ou da previdência social, matricular-se em um estabelecimento de ensino, comparecer a um CRAS
ou mesmo empregar-se por meio do SINE.
A ausência de um número único de identiicação social, a exemplo do Social Security
Number do Estados Unidos, não permite o
cruzamento dessas informações e o efetivo
alcance integrado das distintas políticas de
proteção e promoção social do país, duplicando custos e esforços de monitoramento e acompanhamento, muitas vezes, de
uma mesma população, como é o caso da
população pobre e vulnerável. Porém, tal
esforço só resultará em maior efetividade
das políticas sociais se estiver associado
à concepção de um sistema de proteção
social amplo, com formulação de políticas
integradas, que se somam no esforço de
tornar cidadãos os vulneráveis, reletindo
o acesso justo e igualitário aos diversos
serviços públicos.
É também reconhecido que o objetivo
de incluir no BSM um eixo de inclusão
produtiva vai de encontro aos anseios de
reinserção dessas famílias no mercado de
60
trabalho com vistas à superação da situação de vulnerabilidade (econômica) por
meio da (re)qualiicação proissional. As
estratégias adotadas são diferenciadas para
o meio rural (ações de assistência técnica, fomento e sementes e Programa Água
para todos) e urbano (oferta de qualiicação socioproissional e intermediação
de mão de obra, de apoio a microempreendedores e a cooperativas de economia
solidária). Para tal, o BSM se articula com
o Pronatec (Programa Nacional de acesso
ao Ensino Técnico e Emprego), o Sistema
Nacional de Empregos (SINE), Serviço
Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas
Empresas (Sebrae) e Secretaria Nacional
de Economia Solidária (SNAES).
Lavinas e Martins (2013) argumentam
que “a perspectiva de que formar o público-alvo do Programa Brasil Sem Miséria,
capacitá-lo e proissionalizá-lo vá pavimentar quase de imediato a rota de superação deinitiva da miséria parece meta
pouco factível”. Segundo as autoras, esta
abordagem “renova a visão equivocada e
preconceituosa de que pobres são pobres
por estarem fora do mercado de trabalho ou nele inseridos precariamente em
razão notadamente de sua baixa empregabilidade”, sugerindo que o problema está,
também, no modo de funcionamento do
mercado de trabalho:
“Ora, se o emprego formal vem excluindo do seu horizonte de contratações
trabalhadores sem fundamental completo,
o desaio não está apenas em desenvolver
as habilidades e capacidades daqueles que
vivem na extrema pobreza, mas ampliar
o foco e forjar, no médio e longo prazo,
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
alternativas de formação sustentada
para um conjunto expressivo de trabalhadores que, muito possivelmente, trocam
de posições entre si com relativa frequência, em particular pobres e vulneráveis”
(LAVINAS e MARTINS, 2013).
Ademais, segundo dados do Painel
Situacional da População 20% mais Pobre
do MDS, a partir de dados da PNAD/
IBGE, a taxa de desocupação dessa população, economicamente ativa e acima de 16
anos, foi da ordem de 20% em 2011 (MDS,
2013c). Dados mais recentes da Síntese de
Indicadores Sociais 2013, do IBGE, conirmam a elevada taxa de ocupação dos adultos nas famílias mais pobres, em torno de
80% (IBGE, 2013). A inserção produtiva
urbana torna-se, portanto, uma questão
a ser entendida e enfrentada considerando que cerca de 80% estão ocupados.
Qual a qualidade desses postos de trabalho? Tendo em vista ainda os dados do
Relatório Peril das Famílias Beneiciadas
pelo Programa Bolsa Família – 2009, o
qual apontava que 16,7% dos beneiciários
eram analfabetos e 65,4% tinham o ensino
fundamental incompleto (MDS, 2010),
será que os cursos de educação continuada não aportariam mais conhecimentos
às pessoas que requaliicações técnicas? E,
dado o baixo limite que deine atualmente os pobres, conforme questionam mais
uma vez Lavinas e Martins (2013), numa
abordagem próxima a Sen (1999), será que
os pobres com tais características estruturantes “dispõem de meios de transformar
oportunidades – ou recursos acessíveis –
em algum bem-estar”?
Por im, as ações de apoio e fomento ao
empreendedorismo no âmbito do BSM
vêm na esteira da abordagem de “social
-risk management” do Banco Mundial,
segundo a qual a posse de ativos permitiria aos indivíduos lidar com a volatilidade
do luxo de renda familiar poupando ou
tomando empréstimos ou ainda acumulando ou vendendo ativos, e, nesses casos,
ganham força, os programas de microcrédito e de concessão de titulação de propriedade. Duas questões adicionais emergem
dessa abordagem. Primeiramente, ao invés
de “desmercantilizar” bens e serviços à
população pobre, tornando-os menos
dependentes das lutuações e incertezas
de mercado, premissa básica da proteção
social, transfere-se aos já destituídos a
responsabilidade de gerenciar seus riscos
de forma individualizada, via mercado.
Segundo, de uma forma geral, é difícil
imaginar que o nível de destituição em que
vivem os extremamente pobres no país
permita que estes transformem suas moradias precárias em lócus de empreendedorismo e negócios.
4. Conclusões
O diagnóstico e as propostas colocadas
nesse texto nem de longe abarcam toda
a complexidade que envolve a inclusão
dos vulneráveis com promoção da cidadania social. No Brasil, a questão assume
contornos ainda mais dramáticos pelo
elevado contingente de pessoas e famílias
historicamente marginalizadas, invisível
ao Estado e longe do alcance das políticas
públicas. A expansão dos programas focalizados de transferência de renda pôde,
pela primeira vez no Brasil, trazer luz sobre
61
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
esse contingente, mas não basta. O acesso
à renda, seja na forma de transferência
condicionada seja via acesso a microcrédito, conforme proposto por Holzmann and
Jorgensen (2000) na abordagem de gestão
social dos riscos, não é suiciente se o objetivo for tornar os vulneráveis cidadãos,
protegê-los de riscos que estão fora de seu
espectro de ação individual e garantir-lhes
inserção integral na sociedade. O acesso à
renda é importante no alívio imediato da
pobreza, mas deve ser entendido como
uma forma de os pobres buscarem no
mercado as respostas para tantas demandas que permeiam a reconhecida e propalada multidimensionalidade da pobreza.
Ademais, embora importantes na redução da intensidade da pobreza extrema,
tais transferências não são suicientes para
promover a convergência e coesão social,
tampouco permitem uma reestruturação
integrada da política social de forma a
promover uma sociedade mais igualitária
a longo prazo, conforme ressalta documento da CEPAL de 2006:
“La focalización, en cambio, tiene
efectos redistributivos a corto plazo
pero, en caso de prolongarse indeinidamente, no es la mejor opción para
avanzar hacia sociedades más igualitarias. El mayor riesgo es que termine
instituyendo un régimen segmentado
en cuanto a la calidad de las prestaciones (educación para pobres y para
el resto, salud para pobres y para el resto), con lo que se refuerzan desigualdades de trayectoria y de resultado
entre los pobres y los demás, por más
que se igualen las oportunidades de
acceso” (CEPAL, 2006, p.36).
62
Uma pesquisa sobre o grau de aversão
da população brasileira à desigualdade,15
realizada em 2012, mostrou que o brasileiro médio era favorável à intervenção do
Estado na promoção do bem-estar, reconhecia nele papel de destaque na superação da pobreza e da desigualdade, porém,
este mesmo cidadão não se mostrou
comprometido com uma provisão pública universal, denotando que a perspectiva
de coesão social é pouco reconhecida e
entendida como um objetivo a ser perseguido pelo Estado e sociedade. O brasileiro médio reconheceu ainda que o valor
da linha de indigência adotada no Bolsa
Família era baixa, tal como era pequeno
o valor do benefício médio assegurado às
famílias beneiciárias, julgou que o Estado
poderia acabar com a miséria se assim o
desejasse, porém não aprovava que os mais
pobres e menos favorecidos fossem tratados de forma igual, com base em direitos.
Todavia, os recentes protestos e clamores
sociais que tomaram o país em meados
de 2013 ainda são também de interpretação difusa, mas parece ter deixado claro
que a população, em particular a chamada
“nova classe média”, beneiciada pelos anos
de crescimento econômico e estímulo ao
consumo, encontra-se insatisfeita e clama
por uma atuação mais efetiva do Estado na
prestação de serviços públicos de qualidade e transparência das ações públicas em
todas as frentes. Sem dúvida, podemos
avançar muito na cobertura daqueles não
só destituídos de renda, mas carentes de
efetivação de direitos sociais e humanos
básicos. Para tal, correções de rota fazemse necessárias. O benefício monetário deve
ser um direito assegurado a todos aqueles
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
que cumprirem com os pré-requisitos de
seleção, assim como é o BPC. A provisão pública universal de serviços, que no
Brasil tem a enorme vantagem de ser um
direito constitucionalmente assegurado,
é uma importante via de equalização de
acesso e oportunidades, degrau fundamental na construção de uma sociedade
mais justa e igualitária.
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NOTAS
* Agradecimentos especiais pela leitura e comentários
realizados por Lena Lavinas, Ana Fonseca e Eduardo
Fagnani.
1.“A desmercantilização ocorre quando um serviço é
assegurado na qualidade de direito e quando uma pessoa
pode manter um modo de vida sem depender do mercado” (Esping-Andersen, [1990]2000:157).
2. Ainda segundo os autores, “o benefício mensal no
valor de um salário mínimo – transferência direta de
renda monetária e de valor elevado para os padrões da
política assistencial brasileira, tradicionalmente assentada na distribuição de alimentos in natura e “proteção”
clientelista – permitiu retirar da pobreza aguda mais de
10 mil famílias, contribuiu para focalizar o gasto social
em ações de combate à pobreza, ampliando seu impacto redistributivo (...), reduziu a zero a taxa de evasão
escolar entre os alunos bolsistas bem como jogou sua
taxa de repetência para níveis inferiores à média da capital da República. Tudo isso, comprometendo menos de
1% da receita orçamentária anual do Distrito Federal”
(LAVINAS e BARBOSA, 2000. p.6). Um estudo detalhado das experiências municipais encontra-se no livro
organizado por Ana Lobato (IPEA, 2008), em especial
o artigo Programas de Renda Mínima para Famílias
Carentes: levantamento das experiências e metodologia de avaliação (DRAIBE, Sonia; FONSECA, Ana;
MONTALI, Lilia. pp. 203-251). Outros estudos sobre
avaliações de impacto dos programas Bolsa-Escola
municipais podem ser Alves e Pires (2008), Lavinas e
Varsano (1997); Silva, Yabek e Giovanni (2006); Caccia
Bava et al. (1999); Fonseca (2001).
[ revista política social e desenvolvimento #07 ]
3. A participação da União compreendia o pagamento, diretamente à família beneiciária, do valor mensal de
R$ 15,00 (quinze reais) por criança, até o limite máximo
de três crianças por família.
4. A integração do PETI foi mais recente, em 2005
(PORTARIA N.666, DE 28 DE DEZEMBRO DE 2005)
5. Impactos do Bolsa-Família e da BPC/LOAS na
reconiguração dos arranjos familiares, das assimetrias de gênero e na individuação das mulheres, Recife
(2007); Lavinas, Cobo e Veiga (2012); Oliveira (2010),
Comunicado IPEA (2011).
6. A autofocalização funciona a partir da construção
de um sistema de incentivos sob o qual apenas os realmente interessados acessem determinado programa
social. As práticas que reforçam a autofocalização consistem na elevação dos custos de inconveniência, como a
formação de ilas para recebimento, tempo de espera e
comprovação da situação de vulnerabilidade que rompe
com critérios de privacidade (BARR, 2004, p.217).
7. O survey “Grau de Aversão à Desigualdade da
População Brasileira”, de âmbito nacional, teve por
objetivo apreender a percepção da população brasileira
adulta, de 16 anos ou mais, sobre a recente redução da
miséria, da pobreza e da desigualdade no país. À imagem
de outras pesquisas internacionais similares, esta pesquisa tratou do tema a partir da concordância ou discordância com um conjunto de valores consagrados na literatura sobre bem-estar, política social e políticas públicas
em geral, como favoráveis à redistribuição e à igualdade.
O questionário contemplou um total de 54 perguntas
fechadas, subdivididas em oito módulos.
voluntariamente seu desligamento do Bolsa Família
poderão, por um prazo de três anos contados a partir da
data de desligamento, demandar seu retorno imediato
ao Programa. Assim, têm segurança para deixar o PBF
sem medo de, no caso de virem a perder toda ou parte
da renda do trabalho no futuro, icarem sem acesso aos
benefícios do Programa” (MDS, 2013d).
12.
http://www.coneval.gob.mx/Informes/Med_
Pobreza/Como_se_mide_la_pobreza_en%20Mexico.pdf
13. Ver, por exemplo, relatórios de pesquisas de
avaliação do PBF e Textos de Discussão do IPEA: Soares,
S.; Ribas, R. e Soares, Fábio (TD 1396, 2009); Barros, R.;
Carvalho, M.; Franco, S.; Mendonça, R. (2008).
14. Centros de Referência de Assistência Social
(Proteção Social Básica), Centros de Referência
Especializados de Assistência Social e Centros de
Referência Especializados para Pessoas em Situação de
Rua.
15. O survey “Grau de Aversão à Desigualdade da
População Brasileira”, de âmbito nacional, teve por
objetivo apreender a percepção da população brasileira
adulta, de 16 anos ou mais, sobre a recente redução da
miséria, da pobreza e da desigualdade no país. Foram
realizadas cerca de 2.200 entrevistas, sendo garantida
representatividade nacional. Foi realizada pelo Instituto
de Economia da UFRJ a partir de um convênio com a
Finep e coordenada pela Prof. Lena Lavinas (LAVINAS
et al., 2012).
8. Disponível em: http://www.economist.com/news/
international/21588385-giving-money-directly-poor
-people-works-surprisingly-well-it-cannot-deal.
9. Em outras palavras, é uma linha de valor extremamente baixo, equivalente, hoje, a cerca de 10% do salário
mínimo nacional. Analisando-se por outros parâmetros,
a linha de R$ 70,00 per capita oscila entre 20,5% e 29,1%
do valor da cesta básica para o mês de maio de 2013
para as cidades de São Paulo e Aracaju, respectivamente
(DIEESE, 2013); ou ainda, não chega a 18% do rendimento domiciliar per capita mediano observado para o
Brasil no Censo Demográico 2010.
10. O valor de R$70,00 per capita foi aqui mantido, porque era a linha em vigor por ocasião do Censo
Demográico 2010.
11.
“As
famílias
que
venham
a
requerer
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