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FUNARI, P. P. A. . Arqueologia e Patrimônio. Erechim: Habilis, 2007. 168p .
LINGÜÍSTICA E ARQUEOLOGIA
Pedro Paulo Abreu FUNARI (Universidade Estadual de Campinas)
ABSTRACT: This retrospective paper will shed light on the relations between Linguistics
and Archaeology by drawing special attention to the history of Archaeology and the
influence of Linguistic models for the development of archaeological interpretive
frameworks. Reference will be made to culture history theoreticians, like Gordon Childe,
to processual archaeologists influenced by Structuralism and to post-processual discourse
analysis. The paper will conclude stressing the importance of Linguistics to archaeological
thought.
Key-words: Culture History, Historical Linguistics, Structuralism, Processual Archaeology;
Post-Processual Archaeology, Discourse Analysis.
Palavras-chave: Histórico Cultural, Lingüística Histórica, Estruturalismo, Arqueologia
Processual, Arqueologia Pós-Processual, Análise de Discurso.
Introdução
A Arqueologia é uma disciplina cuja multiplicidade de enfoques e especializações dificulta
que se possam tecer generalizações a seu respeito. Uma primeira grande questão refere-se à sua posição em
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relação às outras ciências, pois alguns a consideram uma técnica, enquanto outros preferem considerá-la uma
ciência. Alguns consideram-na uma disciplina auxiliar de uma ciência interpretativa maior, como a
Antropologia ou a História, outros rejeitam essa dicotomia. Um grande número considera que ela estuda o
passado, embora outros admitam que pode tratar, também, do presente. Todos têm como ponto em comum, no
entanto, o fato de a Arqueologia construir seu conhecimento, principalmente, a partir da cultura material (cf.
Funari, 1998: 9-16).
Este preâmbulo fazia-se necessário para que se pudesse introduzir a discussão sobre a
relação entre a Lingüística e a Arqueologia de forma adequada. De fato, a Arqueologia engloba uma série de
disciplinas, mais específicas, cujos pontos de contato podem não ser numerosos, como a Pré-História e a
Arqueologia Histórica, a paleografia e a paleobiologia, a Arqueologia Clássica e a os estudos líticos, para
mencionar apenas uma fração das especializações correntes. Neste contexto, meus objetivos neste ensaio não
pretendem abarcar, diretamente, as relações entre a Lingüistica e a Arqueologia em todos os campos desta
última e em todas as variedades teórico-metodológicas, mas, de maneira mais modesta, destacar as relações
históricas e estruturais entre ambas. Na medida em que se estará buscando as origens dessas ligações, far-se-á
uso do aporte da Filologia e, no que se refere ao século XX, a Lingüistica será tomada em sentido igualmente
amplo.
A Língüística romântica e o nascimento da Arqueologia
A língua, para os românticos, era uma preocupação central, e as línguas estariam ligadas a
determinados locais, paisagens e clima, expressões individuais de povos específicos, a serem guardados
ciosamente. Isto levou ao desenvolvimento da Filologia histórica com seus dois modelos principais, tronco e
famílias lingüísticas. Na Lingüística histórica, os pressupostos de origens simples, seguidos de ramificações e
divergências, identificáveis a posteriori, tornaram-se ubíquos na disciplina. Os modelos de tronco e família
lingüísticas não favoreciam a concepção de misturas ou convergências, reforçando o axioma inicial de que
cada língua teria uma essência cujos contatos históricos não alterariam nunca. Neste contexto, no final do
século XVIII, o interesse pela Índia, em geral, e pelo sânscrito, em particular, levou à constatação de que a
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afinidade, tanto de raízes verbais, como de formas gramaticais, entre o sânscrito e as línguas européias devia
explicar-se por uma origem comum. Tais povos e línguas originais foram logo designados como indoeuropeus, por franceses e ingleses, e Indogermanisch pelos cientistas de língua alemã. Uma raça, ariana, seria
a portadora dessa língua e esse povo foi logo considerado superior por fatores lingüísticos. Assim, foram
distinguidos dois tipos de língua, as línguas nobres, flexionadas, de origem espiritual, que permitiam o
desenvolvimento da inteligência e o pensamento abstrato e universal, como as línguas indo-européias, e as
línguas não-flexionadas, de tipo animalesco, como todas as outras.
É notável como os principais lingüístas, em particular na Alemanha, como Humboldt,
estabeleceram as bases tanto das modernas ciências humanas como do novo sistema universitário (Reill,
1994: 365). Humboldt estabeleceu a superioridade cultural dos gregos, resultado de sua análise da perfeição
lingüística do grego antigo, resultado, como o próprio alemão, da sua autenticidade e pureza, não
contaminadas por elementos estrangeiros. Os lingüistas, ao relacionarem o grego ao sânscrito e ao criarem a
noção de indo-europeus, elevaram, paralelamente, a Philologie ao estatudo de ciência exata (Wissenschaft),
acima da necessidade de evidências históricas externas que validassem seus esquemas interpretativos,
fundados na migração de povos portadores de línguas. A origem lingüística da vida social pode ser avaliada
por uma passagem de Ernst Curtius, datada de meados do século passado:
“O povo que soube, de uma maneira tão peculiar, desenvolver o tesouro comum da língua
indo-germânica foi o heleno. O primeiro feito histórico foi o desenvolvimento desta língua, feito já artístico.
Entre suas irmãs, o grego deve ser considerado uma obra de arte, a tal ponto que, se dos helenos só nos
restasse sua gramática, seria já um testemunho integral e válido dos dotes extraordinários e naturais deste
povo. A língua toda parece o corpo de um atleta treinado, no qual cada músculo e cada tendão desenvolve-se,
plenamente, sem materia inerte, tudo é poder e vida” (Curtius, citado em Bernal, 1991: 334-5).
Estabelecida a equação entre língua e raça, no contexto evolucionista do século passado,
logo buscou-se no difusionismo a explicação para o desenvolvimento da civilização nos diferentes rincões
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(sobre a continuidade do uso do conceito de difusionismo, consulte-se Ruiz, 1996). Flinders Petrie, embora
viesse de uma área técnica, com sua base na engenharia, pode ser considerado, a justo título, um dos
fundadores da moderna Arqueologia, ainda que seja conhecido, em geral, como egiptólogo. Petrie dirigiu-se
ao Egito, em 1880, para verificar se o que diziam sobre as pirâmides era verdade, tendo comprovado os
diversos avanços técnicos dos egípcios e desenvolvido um método de classificação tipológica para ordenar os
diferentes estilos da cerâmica local. Essa tipologia, uma das bases fundamentais de toda a Arqueologia,
fundava-se em uma analogia com a classificação lingüística, que se utilizava de termos como “troncos e
famílias” lingüísticas, substituindo-se, apenas, a língua pela forma dos artefatos. Sir Flinders Petrie inventou a
chamada “datação por seqüência” (sequence dating), no início deste século, ao classificar uma série de
tumbas egípcias, de acordo com uma seqüência cronológica. Sua classificação partiu da cerâmica encontrada
nas tumbas, que foram colocadas em uma ordem, de maneira que as diferenças eram vistas como o resultado
de uma série lógica de mudanças. Por exemplo, as alças de um pote tornavam-se progressivamente menores,
até serem reduzidas a uma simples linha pintada na lateral do vaso, na posição antes ocupada pela alça
saliente. Classificando os potes de acordo com a progressiva diminuição do tamanho da alça obtém-se uma
datação relativa da série de artefatos. A inspiração lingüística desta classificação é clara: assim como a
lingüistica histórica pode reconstruir a seqüência est (latim), *es, é (português), também o arqueólogo propôs
classificar os artefatos (Deetz, 1967: 32). Os desdobramentos desta analogia lingüística seriam múltiplos e
pode dizer-se que toda a Arqueologia do século XX fundou-se, como veremos adiante, nesta matriz.
A relação entre língua, raça e cultura material seria outro passo decisivo na constituição da
Arqueologia. Esta equação surgiu, de maneira sintomática, na obra de um filólogo e pré-historiador alemão,
Gustav Kossina (1911), cuja preocupação era determinar elementos da cultura material que correspondessem
a um povo conhecido e definido por sua língua, os germanos (Jones, 1997). Partia-se do axioma que em
todos os períodos, áreas culturais arqueológicas coincidem com povos ou tribos reconhecíveis, com a
ocupação de um dado território e com uma língua, ou dialeto, próprios. Procurava-se distinguir, assim, os
grande grupos língüísticos, e portanto étnicos, dos germanos, eslavos e celtas, na Pré-História, bem como
culturas individuais, que corresponderiam a dialetos lingüisticos, como é o caso dos vândalos ou dos
lombardos (Trigger, 1989: 165). Teríamos o seguinte esquema lógico:
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Línguas Germânicas
Célticas
Eslavas
Povos
Germânicos
Celtas
Eslavos
Territórios
Germânicos
Celtas
Eslavos
Celta
Eslava
Cultura material Germânica
Na Pré-História, caberia ao arqueólogo fazer o caminho inverso à lógica formal, que parte
da existência da língua, identificando um conjunto de artefatos, que se distribuem por um território e que
corresponde, necessariamente, a um povo e a uma língua, ainda que não tenhamos acesso direto a esta última.
O grande divulgador desta teoria, que viria a ser conhecida como “histórico-cultural”, foi Gordon Childe, cuja
advertência de que “a cultura, entretanto, se não representa necessariamente um grupo lingüístico, representa
geralmente um grupo local que ocupa uma área geográfica contínua” (Childe,1960: 17-18), não deixa dúvida
quanto ao paradigma língüístico de sua concepção de cultura:
“Sendo a linguagem um veículo tão importante na formação e transmissão da tradição
social, o grupo assinalado pela posse de uma ‘cultura’ distinta provavelmente falará também uma linguagem
distinta...cada língua é produto de uma tradição social
e age sobre outras formas tradicionais de
comportamento e pensamento. Menos familiar é o processo pelo qual as divergências de tradição atingem até
a cultura material.... ‘next Friday’, na Inglaterra, transforma-se em ‘Friday first’ na Escócia...Na Irlanda e no
País de Gales os trabalhadores rurais usam pás de cabos longos, ao passo que na Inglaterra e na Escócia os
cabos são muito mais curtos. O trabalho realizado é, em cada caso, o mesmo, embora o manuseio do
instrumento seja, evidentemente, diverso. As divergências são puramente convencionais...As divergências
lingüísticas devem ser tão velhas quanto as divergências culturais identificáveis no registro arqueológico”
(Childe, 1960: 15-17).
A influência da Lingüística de Saussure (1955) aparece na adaptação à cultura material de
conceitos desenvolvidos para a língua. Assim, a regularidade absoluta das modificações fonéticas transformase em mudanças regulares na forma dos artefatos, a Lingüística geográfica, que procura explicar a dispersão
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das línguas e sua possível concomitância em um mesmo lugar fornece à Arqueologia um modelo de
causalidade das extensões geográficas das chamadas “culturas” arqueológicas. No entanto, a leitura
arqueológica de Saussure poderia ser definida como seletiva, instrumental, como se o modelo estrutural da
Lingüística fosse antes um fato do que uma interpretação. Desta forma, as considerações prudentes de
Saussure sobre a questão da relação entre língua, raça e mentalidade foram deixadas de lado, o que acarretaria
uma separação muito nítida entre a Língüística e a Arqueologia. Assim, Saussurre alertava que língua e raça
não coincidem e que a cultura, o modo de pensar, chamado de “mentalidade”, não deriva da língua utilizada e,
de forma explícita, negava a existência de uma mentalidade semita e outra indoeuropéia (Saussurre, 1995:
311). Em outros termos, o caráter radicalmente arbitrário da língua, ressaltado por Saussure, foi
negligenciado, a favor de uma leitura culturalista e racial.
Childe derivava, pois, o conceito de cultura, usado na Arqueologia, daquele formulado pela
Lingüística e sua leitura dos axiomas correntes na Lingüística histórica (Harris, 1994), prevalecente até o
pós-guerra, fazia com que também propusesse a existência de línguas e, portanto, povos e culturas, superiores,
sempre a partir do critério língüístico, como transparece, de forma mais notável, no seu livro sobre “Os
arianos”, publicado em 1926: “as línguas indo-européias e sua pressuposta língua de origem foram, sempre,
excepcionalmente, instrumentos delicados e flexíveis do pensamento...pelo que se pode supor que os arianos
foram dotados de dotes mentais excepcionais, senão do usufruto de uma alta cultura material” (Childe, 1926:
4).
O período posterior à Segunda Guerra Mundial viria a desvalorizar os aspectos mais
claramente racistas destas teorias, como reação explícita à manipulação nazista desta identificação entre raça,
língua e um ethos imutável. No entanto, não caiu totalmente em desuso algo que havia sido popularizado pela
Arqueologia no meio século anterior: a confecção de mapas das migrações de povos, falantes de certas
línguas e portadores de uma cultura material específica. Assim, um mapa de supostas expansões territoriais de
povos de língua germânica, feito por um arqueólogo nazista, Hans Reinerth, continuou a ser contraposto a
mapas de outras expansões, como a migração de povos de fala eslava, feito por um polonês, Konrad
Jazdzewski, sendo, talvez, o exemplo mais recente e elaborado aquele proposto por Colin Renfrew (1987 a);
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uma crítica consistente encontra-se em Kohl, 1992, 169-173). Em outros termos, a busca dos indo-europeus,
por parte da Arqueologia (cf. Dolukhanov, 1995; Häusler, 1995; crítica em Funari, 1996), e a aceitação de
uma relação direta entre língua, povo e evidência material continua sendo atual (cf. crítica em Jones e GravesBrown, 1995: 7) e suas ligações com a lingüística histórica são diretas. Na América do Sul (Brochado, 1984),
a Pre-História também tem buscado identificar línguas, povos e artefatos, sempre a partir dos esquemas de
filiação lingüística, como no caso das línguas tupis, e procurando identificar migrações de povos, com suas
línguas e artefatos, estes últimos os únicos preservados arqueologicamente. A dispersão lingüística continua a
servir de modelo para a difusão de formas de objetos, como no caso dos vasos da tradição Pedra do Caboclo
(cf. discussão de um caso recente, em Neves, 1998). Pode concluir-se que grande parte da Arqueologia
contemporânea continua a usar os modelos da língüística de pré-guerra, sendo, provavelmente, o exemplo
mais elaborado o livro de Colin Renfrew sobre “Arquelogia e Língua” (Renfrew, 1987b; cf. crítica em Huld,
1993).
Lingüística estrutural, análise de discurso e Arqueologia
O período do pós-guerra testemunhou o surgimento de outras influências de
desenvolvimentos da Lingüística nas demais ciências, que se somaram às anteriores, em particular na
Arqueologia. A Lingüística estrutural viria a ter um impacto muito forte na Arqueologia, em particular a partir
da década de 1960. Contudo, isto não significa que se tenha abandonado a analogia com a Lingüística
histórica, pelo contrário, esta continou a servir de modelo, em especial no que se refere à classificação e
seriação tipológica dos artefatos.
Aceitando-se a noção de que a língua passa por um nascimento,
crescimento, apogeu, declinío e substituição por outra, aplicou-se o mesmo aos artefatos:
LATIM ARCAICO
ESTILO INICIAL
LATIM PRÉ-CLÁSSICO
ESTILO EM CRESCIMENTO
LATIM CLÁSSICO
ÁPICE
LATIM PÓS-CLÁSSICO
DECLÍNIO DO ESTILO
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LÍNGUA ROMÂNICA
NOVO ESTILO
Este método, chamado de seriação, parte do pressuposto de que os artefatos passam por um
ciclo analógico àquele de uma língua e caberia, assim, ao arqueólogo que encontra um artefato, colocá-lo na
correta posição, relacionando uma suposta regra universal que afetaria línguas, artefatos e povos. Embora o
esquema de nascimento, crescimento, apogeu, declínio e fim seja, de maneira direta, emprestado à vida, não à
língua, sua adoção como método com estatuto de discurso científico derivou da segurança científica da
análise lingüística histórica. No entanto, a seriação em Arqueologia levou a uma prática tautológica, pois a
colocação dos elementos em uma ordem deriva deste ciclo a priori, não de datações externas independentes
que mostrassem, ao arqueólogo, que o esquema proposto estava, sempre, correto. No entanto, a generalização
do uso da seriação, ainda que esta se baseie em axiomas não verificáveis, explica-se, em grande parte, pelo
caráter científico da análise lingüística que estava na base do método arqueológico.
Depois disso, na década de 1960, com o desenvolvimento da chamada Arqueologia
Processual, a Lingüística estruturalista exerceu uma influência determinante na formulação de uma
metodologia arqueológica estritamente “lingüística”.
Segundo essa perspectiva, os artefatos, como as
palavras, seriam os produtos da atividade motora humana, por meio da ação dos músculos e sob uma
orientação mental. A forma resultante de qualquer artefato consistiria de uma combinação de unidades
estruturais -- os atributos -- que, com determinada combinação, produz um objeto com função específica na
cultura que o produziu. Se mudarmos qualquer atributo, sua significação funcional mudará, se a mudança for
suficiente para alterar sua significação. Em outras palavras, haveria unidades estruturais, nos artefatos,
correspondentes aos fonemas e morfemas na linguagem, o que demonstraria, muito mais do que uma simples
analogia, uma identidade de estrutura essencial entre a língua e os objetos. Um exemplo, apresentado por
James Deetz (1967: 83-101), permite avaliar o grau de adequação do modelo lingüístico para a análise
arqueológica. Ao classificarmos pontas de flecha provenientes de um determinado sítio, encontramos três
tipos. Um tipo tem base e laterais retas, com uma chanfradura perto da base; outro é semelhante, mas tem
base denteada; o terceiro tem lados e base retos e não tem chanfradura. Esta classificação funda-se em três
atributos -- chanfradura na lateral, na base e na forma dos lados.
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Se aceitarmos que as chafraduras nas laterais ou na base têm algum sentido funcional,
pontas de flecha idênticas, exceto pela presença ou ausência de chanfraduras nas laterais, formariam um par
mínimo, distingüíveis com base em um único elemento estrutural, assim como as palavras mata e bata
formam um par lingüístico mínimo. Igualmente, as pontas de flecha que são idênticas, exceto pela presença
ou ausência de chanfraduras na base, formariam, também, um par mínimo, se servissem a diferentes
propósitos. Esta chanfradura é, normalmente, um fator na colocação de um cabo, a maneira como a ponta da
flecha era ligada à flecha, pelo que é razoável supor a existência de uma diferença funcional. Chanfradura das
laterais poderia ser, portanto, considerada como equivalente a um fonema, tendo Deetz proposto o uso do
neologismo factema para se referir a isso. A definição de factema seria, então, a classe mínima de atributos
que afeta a significação funcional do artefato. As chanfraduras poderiam variar consideravelmente de forma,
contanto que a significação funcional da ponta de flecha não fosse alterada por essa variação, sendo estas
variantes do factema consideradas como alofatos. A origem deste raciocínio na Lingüística estrutural é clara,
pois a variação alofônica deriva, em parte, das imperfeições ou variações no aparelho produtor da fala e
algumas variações nos factemas são o resultado de expressões imperfeitas do mundo mental para aquele
material.
Os morfemas da Língüística foram renomeados, chamados de formemas da cultura material,
a classe mínima de objetos que tem significação funcional. Neste contexto, as pontas de flecha formam
morfemas, que combinam com outros morfemas para produzir outros artefatos. Continuando no exemplo da
flecha, poderíamos dizer que se constitui de cinco formemas: haste, cabeça, penas, cimento de encaixe e
pintura ou desenho na haste. Cada um desses formemas pode aparecer em outros contextos, mas juntos
formam algo específico. O estruturalismo lingüístico, levado, talvez, a suas últimas conseqüências por Deetz,
seria adotado, de forma mais genérica e menos literal pela Arqueologia daquele período, em geral (cf.
Carandini, 1979). Em alguns casos, como no estudo de petroglifos, alguns arqueólogos utilizaram o modelo
da evolução lingüística para interpretar a transformação estilística, como no exemplo de uma evolução a partir
de uma linha reta coroada com um ponto, ou a partir de um ângulo ou de um círculo (Porras, 1992). De uma
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forma ou de outra, assim, este modelo, inspirado no estruturalismo lingüístico, continua a ser um dos mais
fortes referenciais para a interpretação arqueológica.
Já na década de 1970 podia afirmar-se que “a preocupação central das ciências do homem é
a linguagem” (Vogt, 1989: 62). A Lingüística, no entanto, passou a incorporar outras abordagens, em
particular introduzindo uma noção sócio-histórica de discurso, de maneira que se entende que as condições
sociais determinam mesmo as propriedades do discurso (Fairclough, 1990: 17; 155). A introdução das classes
sociais e dos contextos históricos específicos (Kress e Hodge, 1979) e a valorização do exosemiótico, para
usar um termo de Lagopoulos (1986: 234), representou uma nova onda de influência lingüística, a partir de
autores como Rossi-Landi (1975; 1986). Para a Arqueologia Pós-Processual, iniciada na década de 1980, a
cultura material poderia ser considerada como um sistema de sinais em código que constitui sua própria
língua material, ligada à produção e ao consumo. Esta linguagem, entretanto, não reflete, de forma direta, as
estruturas significativas de uma língua em outra forma, como se, a cada passo, a analogia entre sistema de
linguagem verbal e material devessem corresponder rigorosamente. Como a língua, a cultura material é uma
prática, práxis simbólica com produto de significado determinado e específico, que precisa ser situado e
compreendido em relação à estrutura global do social (Shanks e Tilley, 1987: 101).
Se, para Saussurre, a relação entre significante e significado era inteiramente arbitrária
então, e seguindo os passos de Derrida (1976; 1978), Barthes (1977) e Foucault (1981), as oposições e
diferenças poderiam ser estendidas indefinidamente. Na medida em que o significado é dado pela diferença,
mais do que pela identidade, a linguagem não pode ser um sistema fechado. Os sentidos dos sinais são sempre
ambíguos, pois se um sinal é constituído pelo que não é, pela diferença, com relação aos outros, não pode
haver uma relação fixa entre um significante e um significado, já que o significado é, imediatamente, o
significante de um outro significado. O sentido, portanto, é o resultado de um jogo sem fim de significantes.
Na esteira destas preocupações, pode considerar-se a cultura material como um discurso material estruturado
e silencioso, ligado às práticas sociais e às estratégias de poder, interesse e ideologia. Se a própria Lingüística
é uma empreitada que não dispensa a pluralidade de pontos-de-vista (Barthes, 1966:84), uma ideologia
(Rajagopalan, 1996), a mesma subjetividade passou a ser elemento central da Lingüística apropriada pelas
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outras ciências humanas (Iggers, 1995: 560). Os fundamentos semióticos das ciências (Grzybek, 1994)
implicavam em considerar a própria textualidade do discurso acadêmico.
Na Arqueologia, há dois discursos a serem analisados: aquele da cultura material e sua
representação, em forma de texto, sobre a cultura material. A discursividade da cultura material, objeto de
atenção básica da Arqueologia, tem merecido particular consideração. A cultura material pode ser concebida
como constituída por uma série de signos metacríticos, signos cujo sentido mantém-se radicalmente disperso
por uma cadeia aberta de significantes-significados. O sentido do registro arqueológico, nesta perspectiva,
não se reduz aos seus elementos constitutivos mas o que se busca são as estruturas, e os princípios que
compõem essas estruturas, subjacentes à tangibilidade visível da cultura material. A análise visa, assim,
descobrir o que está oculto nas presenças observáveis, levar em conta as ausências, as co-presenças e coausências, as semelhanças e diferenças que constituem o padrão da cultura material em uma contexto espacial
e temporal específico. Os princípios que regem a forma, natureza e conteúdo deste padrão encontram-se tanto
em termos de micro-relações (como um conjunto de desenhos em um vaso cerâmico) quanto de macrorelações (como o conjunto de relações entre assentamentos e enterramentos), estando sempre
inextricavelmente ligados.
Segundo estas abordagens, a cultura material não significa tanto uma relação entre as
pessoas e a natureza, como relações entre grupos, relações de poder, portanto. A forma das relações sociais
fornece uma rede na qual a força sígnica da cultura material permite definir, redefinir, organizar e transformar
essa mesma red (grid). As próprias relações sociais articulam-se em um campo de significado parcialmente
estruturado pelo pensamento e pela linguagem, sendo capaz de reforçar os sentidos reificados e inscritos na
cultura material. A cultura material como constituída por cadeias de significantes-significados não deve ser
tratada de forma simplista, como se representasse algo em particular, como, por exemplo, se o uso do
vermelho estivesse sempre a indicar o sangue ou se vasos de certa forma fossem considerados de uso
feminino, e outros de uso masculino. A força sígnica da cultura material depende da estrutura das suas interrelações e o sentido de qualquer artefato específico está sempre interseccionado pelo sentido de outros
artefatos. Os artefatos, assim, formam elos em uma cadeia de objetos, em um campo aberto de signos. De
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acordo com estas leituras da Lingüística aplicadas à Arqueologia, seria falso considerar que a cultura material
expressa exatamente o que se exprime na língua, com uma simples mudança de forma (da voz para a matéria).
A importância da cultura material como força sígnica consiste na sua diferença em relação à linguagem, ainda
que esteja envolvida na comunicação de sentidos. Os sentidos podem ser comunicados por meio de ações,
falas e artefatos, mas o meio altera a natureza e a efetividade da mensagem (Shanks e Tilley, 1987: 102-117).
A cultura material revela sua estrutura e princípios subjacentes por meio da repetição.
Como um discurso comunicativo, ela solidifica, codifica e reifica as relações sociais nas quais ela viceja e das
quais deriva, a um só tempo. A ação social é o produto do discurso e deste surgem tanto a ação como a cultura
material, que menos significam as relações sociais do que as estabelecem e fixam. Pode afirmar-se, em
conseqüência, que os artefatos constituem um código de signos que se trocam. A produção, utilização e
consumo de cultura material, por parte do indivíduo, pode ser considerada como um ato de bricolagem. A
partir desta perspectiva, uma série de estudos têm sido feitos, marcando, provavelmente, uma inflexão o livro
de Ian Hodder (1982), significativamente intitulado “Símbolos em ação”. Pode comparar-se a abordagem
proposta, a partir dos anos 1980, com aquelas que estudamos nas páginas precedentes deste ensaio, a partir do
exemplo da análise da cerâmica Dangwara, da Índia (Miller, 1985). Miller representa o quadro simbólico
formal que sumariza a variabilidade da cerâmica na sociedade dangwara, estabelecida ao relacionar as formas
dos potes, as cores e os usos às categorias culturais e aos códigos, como comidas, gênero e casta. As
diferentes classificações das categorias cerâmicas, de acordo com a cor, rótulo semântico e função, foram
relacionando o código cerâmico a outros códigos ou sistemas de classificação.
Esta Arqueologia “intérprete” parte do pressuposto que o mundo social é polissêmico
(Shanks e Hodder, 1995: 8) e que, como qualquer outra disciplina, a Arqueologia constrói seu objeto por meio
de um discurso e possui, portanto, um caráter narrativo (Munslow, 1997: 5). Caracterizado o arqueólogo
como um storyteller (Shanks e McGuire, 1996: 82), um segundo nível discursivo passou a ser objeto de
atenção: o próprio discurso da Arqueologia. Um clássico desta nova inflexão pode ser considerado o estudo
de Christopher Tilley (1989) sobre “Discurso de poder: o gênero da conferência inaugural de Cambridge”.
Desde que a cátedra de Arqueologia foi fundada por John Disney, em 1851, em Cambridge, sucederam-se dez
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catedráticos, sendo que os últimos quatro discursos de posse da cátedra, por Dorothy Garrod (1938), Grahame
Clarck (1952), Glyn Daniel (1974) e Colin Renfrew (1981), foram analisados como um gênero literário
dotado de uma retórica própria. A aula inaugural, encarada como um rito de passagem, possui alguns
princípios típicos desse gênero literário: referência aos catedráticos anteriores, citações das conferências
inaugurais anteriores, a importância de Cambridge, seu internacionalismo, um estilo erudito, com referências
abundantes e em línguas estrangeiras. Uma linha de investigação importante da Arqueologia da ultima
década, portanto, passou a ser o estudo do discurso dos próprios arqueólogos, não apenas, nem
principalmente, em escritos programáticos, como as conferências inaugurais, mas em sua produção quotidiana
sobre os mais variados temas. Assim, a identificação de grupos étnicos, no registro arqueológico, passou a ser
investigada, justamente, como uma construção textual que constitui tradições discursivas arqueológicas sobre
o tema (Jones, 1997). Não se trata mais de tentar “descobrir” os vestígios dos “germanos”, mas de entender
como se constrói um discurso sobre grupos étnicos a partir da cultura material.
Os exemplos poderiam ser multiplicados e não se imagine que essas preocupações
discursivas restrinjam-se a um grupo reduzido de estudiosos, pois a própria produção de divulgação da
Arqueologia para o grande público, a seu modo, incorporou essas novas abordagens. Assim, o manual de
Rahtz (1986: 109-110), um best seller já traduzido para o português, incorpora, de forma jocosa, esse caráter
inevitavelmente discursivo do escrito arqueológico, por mais objetivo, empírico e factual que se pretenda.
Apresenta um engraçado guia para a leitura e decifração dos áridos relatos de escavação que merece ser
citado: quando se lê “é razoável sugerir que...”, leia-se “não é razoável, mas seria ótimo se fosse assim...”; ou
então, “não pode haver dúvida que...” deve ser entendido como “qualquer um que não concorde se sentirá um
tolo...”. Em outros termos, as certezas empíricas das décadas passadas foram substituídas por um saudável
alerta que, também o arqueólogo, está a produzir um texto a ser analisado enquanto tal.
Pode concluir-se que a Arqueologia, umbelicalmente ligada à Lingüística, continua a
receber seus influxos e, em certo sentido, a construir-se como ciência tendo a Lingüística como referencial
maior. A História da própria disciplina vincula-se à Lingüística e, nos últimos anos, tem-se, com mais e mais
freqüência, voltado para uma introspecção que inclui a análise metalingüística do próprio discurso
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arqueológico (Tilley, 1989: 62). A Arqueologia, como disciplina crítica e criativa, continuará a dialogar, de
forma muito intensa, com a Lingüística, em suas mais variadas manifestações.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Rajangapolan Kanavilil o convite para que escrevesse este ensaio e aos
seguintes colegas, que me ajudaram de diferentes maneiras: Martin Bernal, Siân Jones, Philip L. Kohl,
Alexandros-Phaidon Lagopoulos, Randall McGuire, Eduardo Goes Neves, Michael Shanks, Bruce G. Trigger.
Os comentários de dois referees anônimos ao manuscrito permitiu-me diminuir suas deficiências, mas aquelas
que permanecem são de minha responsabilidade.
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RESSUMO: A retrospectiva lançará luz sobre as relações entre a Lingüística e a Arqueologia, chamando
atenção para a História da Arqueologia e a influência dos modelos lingüísticos para o desenvolvimento dos
esquemas interpretativos da Arqueologia. Será feita referência a teóricos histórico-culturais, como Gordon
Childe, a arqueólogos processuais influenciados pelo Estruturalismo e à análise de discurso pós-processual. O
artigo concluirá ressaltando a importância da Lingüística para o pensamento arqueológico.
Título em Inglês: Linguistics and Archaeology.
A Arqueologia Histórica em uma perspectiva mundial
Pedro Paulo A. Funari1
A Arqueologia Histórica tem se desenvolvido, nos últimos anos, de forma cada vez
mais intensa e dinâmica. Nesta ocasião, retomarei reflexões tecidas há algum tempo, em
1
Departamento de História, IFCH-UNICAMP, C.Postal 6110, Campinas, 13081-970, SP, Brasil,
[email protected].
18
fóruns no exterior e no Brasil e que resultaram na organização do volume, co-editado com
Martin Hall e Siân Jones, Historical Archaeology, Back from the edge (Londres, Routledge,
1999). Em parte, minhas considerações retomam questões discutidas no capítulo
“Introduction: archaeology in history”, escrito a seis mãos, com Siân Jones e Martin Hall,
mas incorpora, também, aspectos que tenho tratado em outras publicações, elencadas ao
final deste paper. Por isso mesmo, não apresentarei referências bibliográficas, encontradas
nos trabalhos publicados e referidos ao final. Minha releitura da disciplina parte, portanto,
da experiência compartida não apenas com os dois colegas, como com uma pletora de
estudiosos que se têm questionado sobre a Arqueologia Histórica.
A Arqueologia das sociedades com escrita tem uma grande tradição na disciplina,
em particular no estudo das grandes civilizações fundadoras do “Ocidente”, como as
Arqueologias Clássica, Bíblica, Egípcia e Médio Oriental. Contudo, o termo “Arqueologia
Histórica” tem sido usado, em particular na América do Norte, para referir-se ao estudo de
um período histórico específico, o moderno (sensu anglico, i.e. do século XV em diante),
em geral nas Américas. O termo Arqueologia Histórica, com tal definição, não é usado na
Europa e na Ásia, já que se entende por históricas diversas arqueologias, como a Clássica e
a Egípcia, para mencionar apenas duas delas.
A Arqueologia Histórica como o estudo das sociedades com escrita incorpora,
assim, tanto a disciplina homônima norte-americana, como as diversas disciplinas que
lidam com sociedades com documentação escrita. Tem-se buscado mostrar que ela não é
uma simples ancilla, serva ou auxiliar da documentação escrita e da ciência da História,
pois a cultura material pode não só complementar as informações textuais, como fornecer
19
informações de outra forma não disponíveis e até mesmo confrontar-se às fontes escritas.
Nas últimas duas décadas, preocupados com a análise da sociedade, os arqueólogos
históricos têm, cada vez mais, focalizado sua atenção nos mecanismos de dominação e
resistência e, em particular, nas características materiais do capitalismo.
A Arqueologia Histórica liga-se, de forma umbilical, às noções de identidade,
tratando de sociedades, de uma forma ou de outra, relacionadas ao arqueólogo. Na Europa,
a Arqueologia é encarada como o estudo de nossa própria civilização, sejam elas as grandes
civilizações que formariam o legado ocidental, sejam as anteriores à escrita, mas ainda
assim históricas, porque inseridas numa narrativa das fontes escritas, como é o caso, por
exemplo, da Arqueologia dos celtas (ou de Hallstadt e La Tene). Nos Estados Unidos, a
disjunção com a Pré-História estabelece, à sua maneira, essa ligação da Arqueologia
Histórica com a sociedade americana, às expensas dos indígenas, encarados como o
“outro”, o selvagem contraposto à “civilização”, como ressaltou Thomas Patterson.
As dinjunções entre letrado/iletrado, mito/história, primitivo/civilizado têm sido, de
forma crescente, criticadas por separarem elementos discursivos interligados, de forma a
evitar, por exemplo, que sítios indígenas não sejam objeto da Arqueologia Histórica,
mesmo se contemporâneos àqueles europeus. Outra dicotomia criticada tem sido aquela que
divide o mundo moderno, dominado pelo capitalismo, dos períodos anteriores. Em primeiro
lugar, porque grande parte das estruturas mentais e materiais modernas derivam e mantém,
ainda que de forma alterada, características de outras épocas e civilizações. O capitalismo
moderno funda-se no feudalismo, até mesmo naquilo que tem de contrastivo, as estruturas
sociais modernas construíram-se a partir de contextos medievais e antigos, tanto derivados
20
do chamado ocidente, como do chamado oriente. Em segundo lugar, mesmo quando não
haja ligações genéticas entre realidades modernas e as outras, a comparação entre situações
pode fornecer elementos úteis para o conhecimento tanto da cultura material antiga, como
moderna, tanto do Oriente, como do Ocidente, de qualquer maneira, criações discursivas,
antes que realidades efetivamente separadas, como alerta Said.
Neste contexto, tem se propugnado que a Arqueologia Histórica abranja seja o
estudo do mundo moderno, seja de todas as sociedades com escrita. Seria o caso de manter
uma Arqueologia Histórica específica e, neste caso, qual sua especificidade diante da
Arqueologia pré-histórica? Ainda que o contato com os estudos da cultura material de
sociedades sem escrita seja importante, em termos do estudo da cultura material em seus
aspectos mais amplos, parece-nos que se deve reconhecer as particularidades
metodológicas do estudo de sociedades com escrita e com documentos, examinando os
papéis históricos e singulares que a escrita possui na comunicação, representação e na
própria construção discursiva da disciplina Arqueologia. A presença de documentos
caracteriza e define as sociedades em que diferentes sistemas de escrita são utilizados.
Em seguida e talvez ainda mais importante, a História como narrativa escrita sobre
o passado, a Historie dos alemães, o gênero literário histórico, assim como as decorrentes
tendências historiográficas, acabam por fornecer os quadros discursivos sobre o passado e
que conformam, de uma ou outra maneira, a própria definição do contexto histórico usado
pelo arqueólogo no estudo das sociedades históricas. Conceitos como Arqueologia romana
ou colonial assumem periodizações e definições derivadas da tradição historiográfica e só
nesse contexto adquirem sentido. A Arqueologia, contudo, pode transcender os quadros
21
estritos da historiografia assentada nas fontes escritas, cujo viés de classe constitui sua
própria essência e a cultura material pode tratar de temas simplesmente ausentes ou
ignorados pela documentação, como no caso das grandes maiorias, da vida rural e do
quotidiano. Os discursos verbal e artefatual entrecruzam-se, de diferentes modos, nas
sociedades históricas e o desenvolvimento de técnicas para tratar de tais interrelacionamentos permanece uma questão fundamental no seio da disciplina.
Entre as questões contemporâneas mais recorrentes na disciplina, devem mencionarse os estudos sobre relações de poder, expressas na dominação e resistência, na
desigualdade, em colonizadores e colonizados, dentre outros temas abordados na última
década. O estudo da cultura material histórica permite, assim, conhecer as tensões sociais e
a variedade de situações sociais vivenciadas. De forma crescente, contata-se uma
insatisfação com os modelos normativos de cultura, cujos pressupostos de homogeneidade
social não parecem encontrar respaldo nem nos estudos da cultura material, nem na teoria
social contemporânea. Neste contexto, o capitalismo mesmo não consegue uniformizar a
cultura material e as mentes e conceitos derivados da noção de “aculturação” têm sido
postos em dúvida, pela homogeneidade que está a implicar. A europeização, primeiro, e a
americanização, depois, do mundo, foram também chamadas de globalização, um conceito
normativo e homogeneizador, e, por isso, passaram a ser vistas como apenas um lado da
medalha, pois a diversidade social não se conforma a seus ditames. A fortiori passam a ser
questionados os conceitos modernos, derivados do imperialismo, aplicado a sociedades do
passado assimiladas discursivamente ao Ocidente, como no caso da “romanização” ou da
“helenização”.
22
De forma cada vez mais acentuada, portanto, tem-se estudado o próprio campo
discursivo da disciplina e da formação de conceitos modernos que moldam, de maneira
invisível, os discursos possíveis. Multiplicam-se os estudos sobre a invenção de quadros
interpretativos, com ênfase na História das Arqueologias, como procedimento heurístico
indispensável para a crítica das práticas discursivas, no interior da disciplina. Um exemplo
merece ser citado, por paradigmático: a Arqueologia da Mesopotâmia, também conhecida
como Assiriologia. O Oriente, surgido como invenção contraposta ao Ocidente, fundou
uma Arqueologia em busca da “civilização”, passada como uma tocha para gregos,
romanos e, ao final, para os modernos imperialistas. O caráter imperialista, militar mesmo,
dessa Arqueologia imprimiu feições à disciplina que, para serem descontruídos, exigem
uma exegese da própria ciência. Da mesma forma e pelos mesmos motivos, todas as
Arqueologias Históricas só adquirem pleno sentido a partir desse olhar histórico disciplinar.
No início deste artigo, ressaltei que se tratava de colocar a Arqueologia Histórica
em um contexto mundial e este é o último, essencial, aspecto a discutir. Por muito tempo,
as tradições disciplinares levaram ao isolamento das Arqueologias Históricas e esse
ensimesmamento em muito contribuiu para as dificuldades enfrentadas pelos estudiosos,
em particular de contextos periféricos como na América do Sul, mas não só aí. A
Arqueologia Bíblica, por exemplo, um projeto tão claramente ideológico, tão
comprometido com o ideário conservador religioso, manteve-se como um campo científico,
em grande parte, devido a seu isolamento do restante da Arqueologia. Nos últimos anos,
contudo, os contatos entre os estudiosos de diferentes países e horizontes culturais
mostraram a importância do diálogo com a ciência mundial, com outros pontos de vista,
com a diversidade. Uma Arqueologia mundial significa uma variedade de interesses e
23
sujeitos em confronto, com a introdução de agentes sociais, como as mulheres e os grupos
étnicos e sociais, de diferentes ideologias, de uma heterogeneidade que está no presente e
leva à busca dessa mesma diversidade no passado. Em última instância, essa, talvez, a
maior mensagem das pesquisas, em termos mundiais, na Arqueologia Histórica, pois a
pluralidade e a conseqüente convivência da variedade passou a constituir aspecto central da
disciplina, em um mundo também ele caracterizado pelas diferenças.
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1. A PRIMEIRA REUNIÃO INTERNACIONAL DE TEORIA ARQUEOLÓGICA
NA AMÉRICA DO SUL: UM MARCO NA HISTÓRIA DA ARQUEOLOGIA
BRASILEIRA
A partir da década de sessenta, a Arqueologia internacional passou a incorporar uma
preocupação reflexiva com os problemas relativos à teoria e ao método no desenvolvimento da disciplina.
Nos últimos anos, em diferentes contextos, surgiram fóruns dedicados à reflexão crítica sobre a Arqueologia,
como o Theoretical Archaeology Group (TAG), na Grã-Bretanha e, em termos mundiais, a fundação do
World Archaeological Congress, em 1986 representou uma tomada de posição, por parte de muitos
arqueólogos, quanto à epistemologia e à ética da práxis arqueológica. Neste contexto, a América do Sul, em
geral, e o Brasil, em particular, testemunharam um grande desenvolvimento da reflexão crítica, nestes últimos
anos, após duas décadas de obscurantismo, resultante de regimes ditatoriais. Assim, o World Archaeological
Congress e a Associação de Antropologia Brasileira uniram-se na iniciativa de propor, no quadro da 21 ª
Reunião da ABA, em Vitória (ES, Brasil), de 6 a 9 de abril de 1998, a realização de uma Primeira Reunião
Internacional de Teoria Arqueológica na América do Sul. A proposta começou a tomar forma em 1996, por
27
iniciativa de Alejandro Haber2 e Pedro Paulo Abreu Funari3, quando se encontravam ambos em solo britânico
para o trabalhos arqueológicos em Cambridge e Southampton, respectivamente, tendo recebido o incentivo de
Ian Hodder e Peter Ucko. A partir destes primeiros entendimentos, e já com o apoio institucional do World
Archaeological Congress, manifestado pelo secretário Julian Thomas, marcou-se para outubro de 1996 um
encontro, na Argentina, para organizar uma proposta acadêmica mais detalhada. Em outubro, reuniões
preparatórias foram realizadas em Catamarca 4, quando se definiu um programa inicial e uma comissão
executiva5 e uma comissão científica de apoio6.
A organização do evento exigiu diversas outras reuniões iniciais 7, tendo-se apliado o apoio
institucional8 ao evento e a composição das comissões executivas 9 e científicas10. A Reunião contou com o
aporte financeiro de diversas instituições científicas e de fomento à pesquisa 11, tendo contado com duas
conferências e vinte e cinco papers, agrupados em quatro grandes temas. As conferências, a cargo de Julian
Thomas, sobre “A História e a política do WAC”, e de Randall McGuire, sobre “Uma Arqueologia dos
trabalhadores americanos”, abriram o primeiro e o último dia do evento, respectivamente. A apresentação de
Thomas permitiu que o público presente tomasse contato com a História do WAC, cujas políticas de reflexão
2
Professor da Escuela de Arqueología, Universidad Nacional de Catamarca, Argentina.
Estada financiada pelo World Archaeological Congress, em Janeiro de 1996.
4
Funari contou com um auxílio-viagem da FAPESP para participar das II Jornadas de Etnolingüística y
Antropología, em Rosário, Argentina e a Universidad de Catamarca forneceu subsídios para que se pudesse
efetuar reuniões de organização do evento.
5
A primeira comissão executiva contava com Alejandro Haber, P.P.A Funari (representante sênior da
América do Sul no Conselho Executivo do Congresso Mundial de Arquelogia), Irina Podgorny (representante
júnior perante o mesmo Conselho) e Norberto Luiz Guarinello (Departamento de História, FFLCH-USP,
Brasil).
6
A primeira comissão científica era composta, além dos membros executivos, do Presidente do WAC, Bassey
Andah, do Secretário, Julian Thomas, e Peter Ucko.
7
Em particular, em Londres e Southampton, em fevereiro de 1997, com apoio do CNPq, quando se
consolidaram os entendimentos com a direção do WAC e em maio do mesmo ano, quando, com apoio dos
Departamentos de História da UNICAMP e da USP, a Profa. Podgorny participou de reuniões com Funari e
Guarinello.
8
A Sociedade de Arqueologia Brasileira, na gestão de Paulo Tadeu de Albuquerque e Sheila Mendonça,
apoiou e divulgou o evento; a Associação de Antropologia Brasileira propôs a realização encontro no quadro
da reunião regular da ABA; o Fórum Interdisciplinar para o Avanço da Arqueologia, na gestão de Eduardo
Goes Neves, associou-se à proposta e a divulgou.
9
Eduardo Goes Neves passou a integrar a comissão executiva.
10
A Comissão Científica passou a contar, também, com a Presidente da ABA, Mariza Correa e com
Haiganuch Sarian (MAE-USP, Brasil).
11
World Archaeological Congress, CAPES, FAPESP, IFCH-UNICAMP e MAE-USP.
3
28
crítica sobre o papel social e acadêmico do arqueólogo permitiram enquadrar todo o encontro. No primeiro
dia, a discussão girou em torno de “Teoria e Método”, com a apresentação de sete papers:
Julian Thomas12, University of Southampton, Recontextualizing materiality and the social;
Michael J. Heckenberger, Museu Nacional (UFRJ), Hierarquia e economia política na Amazônia: a
construção da diferença e da desigualdade em sociedades ameríndias;
Gustavo Politis, Universidad de La Plata, Cultura Material e crianças entre os Nukaks;
José Luis Lanata, Universidad de La Plata, The Archaeology of Hunters and Gatherers in South America:
recent history;
Erika Marion Robrhan-Gonzáles13, MAE-USP, A cerâmica em estudos de interação e mudança cultural na
região centro-oeste brasileira; e
Benjamin Alberti14, University of Southampton, Gender Archaeology: a case study.
As apresentações e as discussões que se seguiram, em três línguas, inglês, português e
espanhol, contaram com tradução simultânea trilíngüe. Confrontaram-se, nas discussões, as abordagens
contextuais, ou pós-processuais, de Thomas e Alberti, que enfatizaram o caráter de construção discursiva da
lide arqueológica, e enfoques mais ou menos informados no processualismo, de uma forma ou de outra
representados pelos outros panelistas. Lanata e Heckenberger referiram-se, em suas palestras, a modelos
genéricos explicativos, assim como Prous esboçou um análise crítica dos estudos sobre as pinturas rupestres.
Politis gerou grande interesse e admiração pela pesquisa etno-arqueológica de campo e suas ilações sobre o
papel das crianças foi particularmente instigante. Robrahn-Gonzáles relacionou o estudo da cerâmica com a
dinâmica social no Brasil Central, tendo levado a troca de idéias com diversos colegas, em particular com
Irmhild Wüst. A mediação de Irina Podgorny organizou o debate, que se prolongou pelo início da noite.
O segundo dia centrou-se no tema “Arqueologia e Etnicidade”, mediado por Eduardo Goes
Neves, tendo contado com seis apresentações:
12
Com apoio financeiro do WAC.
Com apoio financeiro da FAPESP.
14
Com apoio financeiro do WAC.
13
29
Francisco Noelli, Universidade Estadual de Maringá, Repensando os rótulos sobre os Jê do sul do Brasil: pelo
compassamento entre algumas noções básica da Arqueologia e da Etnologia;
Scott Allen, Universidade Federal de Alagoas/Brown University, Etnicidade e Arqueologia Histórica do
Quilombo dos Palmares;
Stephen Shennan15, Insitute of Archaeology, Londres, Concepts of ethnicity in the past and present;
Carlos Magno Guimarães, FAFICH-UFMG, Arqueologia e grupos étnicos: os quilombos;
María Ximena Senatore, Universidad de Buenos Aires, Arqueología del contacto europeo-americano.
Discusión teórica y modelos de análisis en áreas marginales; e
Irmhild Wüst, Universidade Federal do Goiás, Continuidades e descontinuidades: Arqueologia e
Etnoarqueologia no coração do território Bororo oriental, Mato Grosso.
A etnicidade foi tratada, pelos diversos expositores, a partir de diferentes ângulos, gerando
debates entre os panelistas e entre estes e os outros participantes. Noelli desenvolveu uma crítica dos modelos
vigentes na Arqueologia Brasileira em geral, e quanto ao sul do Brasil, em particular, propondo, em seu lugar,
uma análise que tente integrar os dados arqueológicos àqueles históricos, etnográficos e lingüísticos. Os
problemas de tal pretensão foram aventados por Funari, em particular no contexto das discussões mais
recentes sobre Arqueologia e Etnicidade. Estas formaram o cerne do paper de Wüst, cujo endosso das
literatura mais atualizada (e.g. Siân Jones) acabou gerando discussões diversas. Shennan somou-se, em sua
apresentação, a Wüst ao demonstrar como a Etnicidade é antes construção complexa que busca de traços de
origem. Allen e Senatore, com estudos de casos específicos, juntaram-se àqueles que propugnam pela
complexidade das relações étnicas e pelos decorrentes desafios de seu estudo a partir da cultura material.
Talvez a apresentação mais controversa tenha sido a de Guimarães, sobre a identificação arqueológica de
quilombos para fins de demarcação de terras. Diversos antropólogos presentes divergiram das propostas de
Guimarães sobre a chamada “ressemantização” do conceito de quilombo, tal como proposto por um grupo de
trabalho da ABA.
15
Com apoio financeiro do WAC.
30
O terceiro dia foi organizado, por Funari, em torno da discussão da “Paisagem, cultura
material e patrimônio”, tendo contado com seis apresentações:
Andrés Zarankin, Universidad de Buenos Aires/UNICAMP16, Arqueología de la Arquitectura: un modelo
teórico metodológico para su abordaje;
Cristina Bruno17, MAE-USP, A importância dos processos museológicos para a preservação do patrimônio;
Elizabete Tamanini18, Museu Arqueológico de Sambaqui de Joinville/UNICAMP, Arqueologia e Educação:
teoria e prática;
Eduardo Goes Neves19, MAE-USP, Mito, História e Arqueologia na Bacia do Alto Rio Negro, Amazônia;
Marisa Lazzari, Universidad de Buenos Aires, Objetos viajeros e imágines espaciales: relaciones de
intercambio y la producción del espacio social; e
Felix Acuto, Universidad de Buenos Aires, Paisages cambiantes: la ocupación inka en el Valle del Caclhaqui
Norte, Argentina.
As discussões centraram-se, por um lado, nas apropriações da cultura material, objeto de
estudo do arqueólogo, por parte da sociedade em geral. Bruno e Tamanini apresentaram reflexões sobre como
o trabalho arqueológico envolve, necessariamente, considerações sobre a transformação destes artefatos em
patrimônio, acadêmico e extra-acadêmico. Houve grande discussão a este respeito, pois muitos arqueólogos
dissociam seu trabalho, propriamente arqueológico, da patrimonização da cultura material. Por outro lado,
Zarankin, Neves, Lazzari e Acuto utilizaram-se de estudos de caso para apresentar propostas de uso da teoria
arqueológica. Zarankin discutiu a relação entre os modelos arquitetônicos e a Arqueologia, enquanto, ainda no
campo interdisciplinar, Neves relacionou História, Mito e Arqueologia. A paisagem foi tratada de forma
original por Lazzari e Acuto, destacando-se a preocupação daquela com os movimentos dos objetos e deste
último com a diacronia no assentamento humano.
16
Doutorando da UNICAMP, contou com apoio financeiro do CONICET (Argentina).
Com apoio financeiro da FAPESP.
18
Doutoranda da UNICAMP, contou com apoio financeiro da CAPES.
19
Com apoio financeiro da FAPESP.
17
31
O quarto dia começou com uma conferência de McGuire, uma muito oportuna introdução à
mesa que se seguiria. Em sua apresentação McGuire tratou dos excluídos da História dos Estados Unidos, os
trabalhadores, e mostrou um projeto de pesquisa arqueológica dos vestígios de um grupo de trabalhadores em
greve, no início do século. Destacou, ainda, a transformação dessas evidências em patrimônio e demonstrou,
de forma clara, seu propósito de engajar a Arqueologia na luta pela liberdade e na rejeição de uma
Arqueologia que, ao se querer neutra e ahistórica, mostra-se conservadora e pouco capaz de explicar sua
própria prática e teoria. A mesa-redonda que se seguiu, sobre Arqueologia latino-americana: teoria e História,
mediada por Goes, mostrou-se particularmente fértil em suscitar debates e compôs-se de seis papers:
Bernd Fahmel Beyer, Instituto de Investigaciones Arqueológicas, UNAM, México, Academy and culture in
Mesoamerica: two realities?;
Cristiana Barreto20, University of Pittsburg, A Arqueologia no Brasil e na América Latina;
Haiganuch Sarian21, MAE-USP, Arqueologia Clássica no Brasil: fronteiras e horizontes;
Irina Podgorny, Universidad de La Plata, The reception of New Archaeology in Argentina: boundaries,
contexts and power;
Pedro Paulo A Funari22, UNICAMP, A importância da teoria arqueológica internacional para a Arqueologia
Brasileira; e
Randall MacGuire, Binghamton University, Radical theory in Anglo-American and Hispanic archaeology.
Todos os papers trataram da História da Arquelogia, a partir de estudos de caso e pontos de
vistas diferentes. Beyer, Podgorny e Funari ressaltaram, ao estudar a América Central, a Argentina e o Brasil,
respectivamente, as relações entre o contexto histórico e as práticas e teorias arqueológicas. Barreto procurou
contrapor-se a tais contextualizações, tratando dos avanços da Arqueologia no Brasil como desenvolvimentos
no interior da ciência. Sarian, embora tenha tratado da Arqueologia Clássica, apenas um dos campos de
investigação no Brasil, ressaltou os efeitos cientificamente destacáveis dessa área. McGuire forneceu uma
visão ampla, contrapondo a Arqueologia americana à hispano-americana, com destaque para a Arqueologia
20
Com apoio financeiro da FAPESP.
Com apoio financeiro da FAPESP.
22
Com apoio financeiro da FAPESP.
21
32
Social Latino-Americana. As discussões centraram-se no grau de autonomia da ciência arqueológica e nas
suas relações com a sociedade abrangente.
Ao final, Goes e Funari mediaram uma plenária sobre o evento. Diversos participantes
ressaltaram a importância e inovação de um encontro deste tipo, baseado na troca de idéias. Ressaltou-se que,
em um contexto ainda marcado pelos conflitos, até mesmo de caráter pessoal, a apresentação de papers e sua
discussão marcou uma nova etapa, em reuniões arqueológicas na América do Sul. Em seguida, foi enfatizada
a importância da inserção da Arqueologia sul-americana na Arqueologia Mundial. Surgiu a proposta de
realizar-se o segundo encontro, tendo sido formada uma comissão provisória 23 para encaminhar o evento, que
está planejada para outubro ou novembro de 1999. A publicação dos papers foi sugerida e solicitou-se o envio
dos textos, até fins de julho de 1998, para que sejam publicados. Neves apresentou à Comissão de Publicações
do MAE-USP o projeto de publicar um volume com as atas, em português, e Funari e Podgorny, em reunião
do executivo do WAC, em maio de 1998, na Croácia24, apresentaram o projeto de publicar um World
Archaeological Bulletin, em inglês, para divulgação internacional, tendo obtido o apoio formal do executivo.
O público, além dos panelistas, compreendeu arqueólogos, antropólogos e outros
interessados de diferentes instituições, em particular MAE-USP, UNICAMP, UFES, UFMG, MASJ,
Universidade Estácio de Sá (RJ), UFRJ, Universidade Estadual de Blumenau e Museu Nacional. Tomaram
parte estudiosos do Brasil, Argentina, Estados Unidos, Grã-Bretanha e França. Os intelectuais envolvidos, os
papers apresentados, as discussões de alto nível, a proposta de continuidade com um segundo encontro e as
propostas, já encaminhadas, de publicação, no Brasil e no exterior, dos textos apresentados, estão a
demonstrar a importância do evento para a Arqueologia Latino-Americana e pode-se estar seguro que se
abrem novas perspectivas para a História da Arqueologia no continente.
AGRADECIMENTOS:
23
Composta por Irina Podgorny, Gustavo Politis, Andrés Zarankin, Felix Acuto, Marisa Lazzari, Ximena
Senatore, Eduardo Goes Neves, Cristiana Barreto, Bernd Beyer.
24
Com apoio financeiro do WAC e Fundación Antorchas.
33
Agradeço a todos os colegas mencionados do decorrer do texto, pois sua colaboração foi
imprescindível para o êxito do evento. Devo mencionar, ainda, o apoio da FAPESP (processo 97/13975-5),
IFCH-UNICAMP, Secretaria da ABA, Cynthia de Ávila, Celso Perota e os demais organizadores locais, em
Vitória.
2. A IMPORTÂNCIA DA TEORIA ARQUEOLÓGICA INTERNACIONAL PARA A ARQUEOLOGIA
SUL-AMERICANA: O CASO BRASILEIRO
Existe teoria arqueológica no Brasil? A resposta a esta questão depende, é claro, da
definição do termo “teoria”. Embree (1989:37) considera que “a Arqueologia histórica, em sentido amplo,
inclui a meta-Arqueologia e como a pesquisa substantiva inclui metodologias de coleta de dados e, também, a
análise da teorização dos modelos explicativos”. A ausência, no Brasil, de postos explicitamente voltados
para a metodologia ou a teoria arqueológicas (Faria 1989:35) estaria a indicar que há uma falta de teoria na
Arqueologia Brasileira, como acontece em outros países (Kotsakis 1991:69; Thomas 1995). Além disso, é
ainda muito comum desprezar artigos interpretativos como sendo “muito teóricos” (MacDonald 1991:830; cf.
Cooney 1995). A teoria é considerada, às vezes, como “esotérica, subversiva, anárquica – algo que deveria ser
evitado por uma questão de higiene intelectual” (Harlan 1989:583).
É possível, no entanto, qualquer trabalho de campo sem teoria? É possível separar ação
(poesis) e teoria (praxis) (Croce, s.d.: 41)? Não é difícil concluir que não há meio de praticar uma disciplina
acadêmica, como a Arqueologia, sem quadros analíticos. A teoria nada mais é do que “visão, contemplação”,
34
theoria significando, em primeiro lugar, a observação visual (thea) e, com conseqüência, “especulação”, um
“conjunto de idéias”. Se considerarmos que “a História não é um grupo de fatos sobre o passado mas, ao
contrário, um conjunto de idéias sobre o passado, no presente” (Wright & Mazel 1991: 59), então torna-se
claro que não há prática arqueológica sem fundo teórico. É precisamente nestes termos que podemos dizer
que há teoria arqueológica no Brasil, não como um quadro aberto e explícito de assertivas sobre a ontologia
do conhecimento arqueológico, mas como uma hermenêutica subjacente que informa tanto atividades de
campo e seus relatos, como artigos em geral. Desentranhar esta perspectiva teórica das atividades e discursos
arqueológicos é, entretanto, uma tarefa ingrata, considerando as múltiplas mediações que ligam as atividades
empíricas aos seus suportes conceituais. Além disso, generalizações sobre disciplinas acadêmicas exigem
alguma ousadia, pois novos materiais ou descobertas, ainda que de campos específicos, podem invalidá-las e,
assim, a melhor maneira de evitar incompreensões, consiste em explicitar os critérios usados para estudar o
tema. Desta maneira, é possível entender os liames propostos, neste trabalho, entre o explícito e o implícito na
Arqueologia brasileira.
O conhecimento, como uma relação social entre pessoas e entre pessoas e coisas (Tilley
1992: 176), é um processo histórico e político de interpretação e ação no mundo. A Arqueologia, como
disciplina acadêmica, não está livre de elos sociais e políticos (Champion 1991: 144) e os arqueólogos estão,
sempre, trabalhando sob a pressão das questões levantadas por suas próprias épocas e sociedades (Burguière
1982: 437). “Qualquer tentativa de compreender a presente configuração da disciplina deve, portanto, ser
fundada em uma análise sistemática e empírica de sua História e de sua prática” (Pinsky 1989: 91) e, neste
processo, o arqueólogo necessita reconhecer, em detalhe, a extensão das circunstâncias e padrões, sempre em
mudança, em diferentes contextos históricos (Burckhardt 1958: xi). Todas os modos de prática e escrita
arqueológicas entram em contato com diversos grupos sociais, em épocas diferentes e em constante mutação
(La Capra 1992: 439). Isto significa que se tem que estudar, por um lado, a História da sociedade brasileira
como um todo (e, em particular, sua História intelectual) e, por outro, o contexto internacional interagente
com a sociedade brasileira. Não se pretende, aqui, apresentar um relato exaustivo, a respeito da Arqueologia
Brasileira mas, ao contrário, partem-se de dois critérios explícitos: mencionam-se, apenas e tão somente,
aqueles trabalhos que tenham alguma preocupação teórico-metodológico, cujo impacto possa ser avaliado por
35
publicações. Por isso mesmo, a simples introdução de autores estrangeiros em cursos, ainda que possa ter sido
importante para a abertura de horizontes para diversos pesquisadores, não representa produção própria. Nesta
ocasião, não tratarei da período pré-formativo, pré-disciplinar da Arqueologia no Brasil, até a década de 1950
(tratado em Funari 1995a), focalizando os desenvolvimentos teóricos desde sua introdução como disciplina
acadêmica, nos últimos quarenta anos.
A Arqueologia, desde o século passado, havia sido explorada por estudiosos, em geral
ligados aos Museu Nacional do Rio de Janeiro, Museu Histórico Nacional e Museu Paulista. Enquanto
trabalhos empíricos eram levados adiante por diretores de museus sob os auspícios de um sistema de
patrocínio de elite, o humanista Paulo Duarte estava no exílio por sua oposição ao Estado Novo e, ao retornar,
introduziu a Arqueologia como disciplina acadêmica (De Blasis & Piedade 1991: 167) e seu papel como
defensor do patrimônio arqueológico estava em claro contraste com o padrão tradicional predominante. Seu
humanismo baseava-se em uma abordagem ética, para com a sociedade e, por isso, pôde propor duas medidas
revolucionárias: o desenvolvimento de instituições arqueológicas acadêmicas e a proteção do patrimônio. Os
diretores de museus e os arqueólogos tradicionais, ligados aos sistema de compadrio dominante no país,
nunca iriam propor tais medidas, que, inevitavelmente, desafiavam o nepotismo e as relações de clientela,
infensos ao mérito e aos direitos igualitários (Da Matta 1991b: 399). A democracia propugnada por Duarte,
baseado no mérito, era, pois, estranha à sociedade hierarquizada nacional; seu humanismo, de estilo francês,
era o suficiente para romper com práticas patronais arbitrárias de longa tradição (Funari 1992a: 8).
A intervenção militar de abril de 1964 (Cammack 1991: 35) marcou um período não apenas
de repressão generalizada, como de reforço do clientelismo e do compadrio, agora organizado por um regime
de força. Logo após o golpe, um acordo foi firmado entre a United States Agency for Inter-American
Development e o Ministério da Educação e Cultura do Brasil (Funari 1996e), que gerou a reorganização de
todo o sistema universitário nacional (Sebe 1984: 72), sob a égide da ideologia de “segurança nacional” (Ortiz
1985: 85). A ação dos Estados Unidos era o resultado do fato que “por toda a comunidade acadêmica norteamericana, esforços foram envidados para mobilizar o Ocidente, em uma luta ideológica global, enquanto, ao
mesmo tempo, esposava-se uma objetividade desinteressada, como um dos valores e instituições
36
característicos deste mesmo Ocidente” (Novick 1988: 16; Klappenber 1989: 1014). Esta abordagem
positivista estava por detrás das atividades de alguns arqueólogos americanos ligados ao establishment
americano (Roosevelt 1991: 106) e aos militares sul-americanos.
Logo depois do golpe, aqui estiveram Clifford Evans e Betty Meggers e, já em outubro de
1964, organizaram o que chamaram “um seminário intensivo para ensinar teoria e metodologia arqueológicas,
classificicação e interpretação cerâmica” para pupilos brasileiros (Evans 1967: 7). Imediatamente após o
seminário, Evans e Meggers usaram o mês de novembro de 1964 para viajar por onze Estados brasileiros,
visitando reitores e diretores de museus, agora afinados com o novo regime de força. Um positivismo ingênuo
estava no centro da sua abordagem arqueológica. Meggers (1979: 13) ensinou e treinou uma geração de
praticantes brasileiros sob a bandeira da objetividade em busca dos fatos: “espero que as pessoas entenderão
que a verdade é mais interessante do que a ficção”.
A Arqueologia, como ciência experimental (Miller 1975: 7), foi interpretada como estranha
às questões históricas, em claro contraste com as Humanidades. Este tipo de empirismo contrapunha-se à
abordagem humanista proposta por Paulo Duarte, acusada, pelos empiristas, de ser algo alheio à cultura
nacional. Este empirismo anti-histórico, importado dos Estados Unidos, foi introduzido em uma sociedade
completamente diversa da americana, na qual o empirismo, a competição, os direitos individuais e o
capitalismo, dentro e fora da academia, constituem um quadro cultural consistente. O empirismo, no Brasil,
serviria a outros propósitos. O sistema social brasileiro baseia-se em princípios não-capitalistas (Faoro 1976:
736), como a hierarquia (Da Matta 1980: 16), o compadrio (Leal 1949: 23; Telarolli 1977: 16), o nepotismo
(Da Matta 1991a: 14), o amigismo, o familismo e o favor (S. Schwartz 1988: 237). Desde o período colonial,
amizades (Pastore 1991: 12), clientelas, ideologia corporativa e paternalismo têm sido elementos centrais da
vida social brasileira (Lara 1988: 110): “o favor é nossa mediação quase universal” (Schwartz 1988: 76).
Vianna (1987: 13) estava propenso a definir este sistema como feudal. “No Brasil, graças a raízes históricas
profundas, pessoas indicadas são os governantes: as pessoas no poder indicam parentes e amigos. Educação,
competência e qualidade são critérios estranhos à nossa cultura de privilégio” (Castro 1991: 2). Há, pois, um
claro desequilíbrio entre os princípios capitalistas, individualistas, por detrás do positivismo, nos Estados
37
Unidos, e a mesma abordagem, quando aplicada em um contexto social baseado em valores não-igualitários e
clientelísticos. Isto fica evidente nas Arqueologias dos dois países. O principal objetivo do trabalho de campo
empírico consiste em coletar artefatos e classificá-los. Esta abordagem considera os depósitos dos museus
como contas bancárias: devem ser preenchidas com dados (dinheiro) recolhidos pelo estudioso (ou
capitalista). A evidência coletada pelos arqueólogos deveria ser classificada e transformada em fatos e
números (cf. Shor 1986: 422). Isto é o que almejam os empiristas, nos Estados Unidos, e podem ser muito
bem sucedidos, em seus próprios termos. Contudo, este não é o caso do Brasil. O objetivo de espalhar
trabalhadores de campo por todo o país, coletando artefatos em grande quantidade, armazenando-os em
museus, constituindo corpora que seriam, ao final, classificados como matéria prima, não foi completado.
Porquê?
Desde a década de 1960, os brasileiros foram treinados, pelos empiristas americanos, como
trabalhadores de campo, sob a égide de um determinismo ecológico não-histórico.
“Seus métodos de escavação e análise misturava materiais de períodos diferentes,
artificialmente comprimindo a seqüência arqueológica. Esta abordagem norte-americana, entretanto,
influenciou, de maneira decisiva, os estudiosos brasileiros, graças aos acordos entre instituições brasileiras e
americanas e ao estabelecimento de uma rede de colegas e alunos” (Roosevelt 1991: 107; ênfase
acrescentada).
Este grupo de praticantes não se desenvolveu, como seria o caso em outros lugares, como
um simples “feudo acadêmico” (Levine 1992: 218) mas, em uma sociedade clientelística, como a brasileira, e
sob direto comando autocrático da ditadura, este grupo tornou-se o único legítimo. Passaram a perseguir ou
impedir as atividades daqueles que não concordavam com a abordagem empirista ecológica e com sua
organização e ponto de vista politicamente despótico (Chaui 1992: 6). Duarte e outros foram expulsos da vida
universitária, o projeto humanista foi eliminado no nascedouro e o establishment arqueológico, que estava
sendo criado, foi dominado por um grupo de empiristas autoritários. A própria cassação de Paulo Duarte, pela
ditadura, não deixou de representar um episódio paradigmático, pois o duro golpe ao projeto acadêmico foi
38
acompanhado da tentativa de destruição do Instituto de Pré-História, por Duarte fundado, pois “o conceito de
Pré-História é inaplicável ao caso americano”, segundo um dos beneficiários daquele período de exceção,
Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses (Duarte 1994: 176). À inexistência da Pré-História, propunha-se que “a
Arqueologia, por sua natureza de ciência auxiliar da História, está longe, bem longe, de ser um fim em si
mesmo”, nas palavras do mesmo autor (Meneses 1965: 22), o que inviabilizaria qualquer desenvolvimento,
seja da Pré-História, seja da Arqueologia.
Este grupo formou uma confraria (Meggers 1992) que passaria a controlar escavações,
financiamentos, publicações, postos arqueológicos e em museus, e, não menos importante, a limitar a difusão
de perspectivas diversas. Mesmo estudiosos americanos, que tivessem posições interpretativas diferentes,
históricas, foram sistematicamente impedidos de trabalhar. Como ressaltou Anna Roosevelt:
“Ainda que muitos estudiosos tivessem encontrado evidências <em oposição à abordagem
ecológica>, as pessoas da escola determinista, com freqüência, não permitiam a publicação de descobertas
dissonantes, como “datações muito antigas” ou assentamento pré-históricos complexos” (Roosevelt 1991:
107).
A constituição de um grupo que tentava tudo controlar explica porque o empirismo, no
Brasil, não conseguiu atingir seus próprios objetivos de coletar dados, estabelecer corpora e, finalmente,
classificar o material em larga escala. Como é comum em sistemas autoritários, não era possível desenvolver
discursos e práticas alternativas e não havia, pois, qualquer necessidade, para aqueles que controlavam o
establishment, de serem competentes em seus próprios termos epistemológicos. Graças à ditadura, foi
possível reestabelecer práticas clientelísticas por meio do poder arbitrário, usando o empirismo, antes de mais
nada, como uma justificativa de poder. Este período foi descrito, por um de seus ativos participantes, Tânia
Andrade Lima (1998: 25) como “uma fase muito dinâmica, com muito trabalho de campo”, o que está a
sugerir que o isolamento não fazia os perceber que o fim do monopólio discursivo já chegara.
39
De fato, Walter Neves (1988: 245), logo depois da restauração do regime
civil, reconhecia que “no Brasil, salvo raras excepções, continuamos a fazer levantamentos
oportunísticos e escavações injustificáveis e as instituições de ensino, lamentavelmente,
perpetuam o modelo epistemológico, ainda vigente na Arqueologia no Brasil”. A maioria
das atividades e publicações arqueológicas continuavam a ser meramente descritivas
(Scatamacchia 1984: 198). No entanto, a abertura política tornaria possível a emergência de
uma pluralidade de abordagens. Apesar da cassação, o legado de Paulo Duarte pode ser
identificado na influência francesa (Laming Emperaire, Emperaire, Prous, Vialou, Guidon,
entre outros), cuja importância, como alternativa ao modelo dominante, naqueles anos
difíceis, não pode ser subestimada. Papel particularmente relevante foi exercido pela
Arqueologia Clássica (Funari 1997), ao inserir a Arqueologia brasileira no contexto
internacional. Pela primeira vez, arqueólogos brasileiros publicavam livros no exterior (e.g.
Funari 1992b; 1996b; Carreras & Funari 1998), estabeleciam contatos e intercâmbios,
livravam
a
Arqueologia
dos
esquemas
clientelísticos,
formavam
pesquisadores
independentes e ao corrente da Arqueologia Mundial. Livros atualizados de Arqueologia,
produzidos no Brasil, chegaram às escolas, com autores como Maria Beatriz Florenzano
(1997). Assim, destaque-se a publicação do primeiro manual para escolas primárias sobre a
Pré-História brasileira, escrito pelo arqueólogo clássico Norberto Luiz Guarinello (1994),
cuja excelência levou a que fosse adotado pelo Ministério de Educação do Brasil, sendo
distribuído aos milhares e constituindo-se no livro mais vendido sobre Arqueologia PréHistórica, em toda a História (cf. Funari 1996 ; Faversani 1997). Outros arqueólogos,
trabalhando com temas pré-históricos, como Eduardo Góes Neves e Walter Alves Neves, e
históricos (cf. Funari, Jones & Hall 1998 a e b), passaram a inserir-se na ciência
internacional, afastando-se do provincianismo e do compadrio local. Diversas dissertações
40
e teses de Arqueologia foram desenvolvidas em São Paulo (USP e UNICAMP), Rio
Grande do Sul (UFRGS e PUCRS), Pernambuco (UFPE) e Rio de Janeiro (UFRJ), assim
como no exterior, ainda que muito ainda esteja inédito e que poucos trabalhos se aventurem
a questionamentos teóricos mais amplos.
Mais recentemente, tem havido um interesse crescente na teoria
arqueológica, no Brasil, principalmente por parte das novas gerações. A Arqueologia
crítica, apresentada como uma crítica da ideologia dominante no presente, que aparece
como normativa e ahistórica (Handsman & Leone 1989: 119), juntamente com a
consciência pós-processual ou contextual da subjetividade da disciplina (Thomas 1990: 67),
constituem temas em discussão. Artigos, por exemplo, sobre o efeito do colonialismo e do
nacionalismo na Arqueologia africana (Rodrigues 1991), demonstram um interesse
crescente pela Arqueologia mundial e pela teoria arqueológica. Tal interesse reflete,
também, uma maior atenção prestada àqueles que têm formulado a teoria arqueológica
internacional, sendo lidos, em particular, Binford, Courbin, Deetz, Gardin, Hodder, Orser,
Shanks, Tilley, Trigger, entre outros. Seguindo as idéias de Stephen (1989: 267) e Hodder
(1991: 10), mais atenção tem sido dada aos grupos subordinados (Trigger 1998: 16), por
oposição ao culto às elites, como ainda propugnado entre nós (e.g. Lima 1994) como os
escravos (e.g. Guimarães 1992; Funari 1996d), e esforços têm sido envidados para apoiálos em sua luta contra a marginalização. Isto explica o estudo dos índios que viviam em
Missões (Kern 1989: 112), a “História da resistência à dominação” (Leone 1986: 431), da
antigüidade (Guarinello 1989) ao período colonial (Funari 1991).
41
Também artigos têm sido publicados sobre a teoria arqueológica stricto
sensu (e.g. Funari 1989; Kern 1991; Serra 1994; Funari 1995a; 1995b; 1996 a; 1996f ;
1998a; 1998b). Multiplicam-se as publicações de fundo teórico, tratando de temas como
“Hipóteses sobre a origem e expansão dos tupis”, que mereceu um dossiê na Revista de
Antropologia da USP, a partir de um texto de Francisco Noelli (1996), cujas hipóteses
encontram suas origens em trabalhos inéditos de José P. Brochado. Também o dossiê sobre
“Surgimento do homem na América”, com textos interpretativos de Marta Lahr, Walter
Neves, André Prous, entre outros, demonstra as preocupações teórico-metodológicas em
curso. Ainda no estudo da Pré-História, as discussões sobre a ocupação da Amazônia têm
contado come estudos informados na teoria arqueológica, como é o caso da obra de
Eduardo Góes Neves e a inserção da Arqueologia brasileira no contexto internacional
amplia-se, em especial com a participação de brasileiros nos conselhos de revistas como
Latin American Antiquity (Irmhild Wüst), International Journal of Historical Archaeology
e Material Culture (P.P. A Funari). No campo da Arqueologia Histórica, os próprios rumos
da disciplina têm sido debatidos, com decisiva participação brasileira, com a organização
de uma sesssão em WAC 3 e de um volume de One World Archaeology (Funari, Jones &
Hall 1998 a e b) em um contexto mundial (Funari 1996c; 1998 a; Funari, Jones & Hall 1998
a e b), superando, assim, o provincianismo e o culto às elites, prevalecente em produções
paroquiais. Também a realização do Simpósio Internacional sobre Teoria e Método em
Arqueologia, no Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, em agosto de 1995, mostra a
crescente atenção prestada à epistemologia arqueológica.
Pode concluir-se que o desenvolvimento da teoria arqueológica, importante
como pode ser na Europa e na América do Norte, é algo absolutamente fundamental para o
42
futuro da Arqueologia no Brasil. No contexto de uma Arqueologia ainda dominada por
relações de compadrio, muitas vezes infensa, até mesmo, ao empirismo que busca seguir
padrões internacionais de qualidade, a teoria tem um papel crucial em impulsionar os
arqueólogos ao pensamento crítico, à interpretação e análise e, não menos importante, a
desafiar as idéias e práticas estabelecidas. A despeito da reação daqueles que usufruem de
um poder burocrático, sem fundamentação em prestígio científico reconhecido fora da
província, sua tentativa de suprimir as vozes discordantes está fadada ao fracasso, em uma
sociedade pluralista. Por meio da leitura da teoria arqueológica, alguns arqueólogos
brasileiros têm sido capazes de confrontar dificuldades que, de outra forma, seriam
insuperáveis. A teoria arqueológica, assim, ajuda a transformar a Arqueologia brasileira de
uma maneira vital e, ainda que refletir sobre ela não seja suficiente, é algo, entretanto,
indispensável para mudá-la.
AGRADECIMENTOS
Este texto representa uma reelaboração de palestra, apresentada em
Southampton, em 1992, no encontro anual da Theoretical Archaeology Group (EuroTAG),
em sessão organizada por Peter Ucko e publicada em Theory in Archaeoloy, A world
perspective, Londres, Routledge, 1995, 236-250. Agradeço aos seguintes colegas, que
forneceram artigos (alguns inéditos) e me ajudaram de diversam maneira: Fábio Faversani,
Martin Hall, Siân Jones, Carlos Magno Guimarães, Arno Álvarez Kern, Mark P. Leone,
Eduardo Góes Neves, Walter Alves Neves, Francisco Noelli, Charles E. Orser, Jr., Anna C.
Roosevelt, Bruce G. Trigger, Peter Ucko. Este trabalho contou com o apoio do World
Archaeological Congress , FAPESP e CAPES
43
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OS DESAFIOS DA DESTRUIÇÃO E CONSERVAÇÃO DO PATRIMÓNIO CULTURAL NO BRASIL
Pedro Paulo A. Funari25
RESUMO:
O artigo trata da destruição e conservação do património cultural no Brasil, a começar pela própria definição
dos termos em questão. Menciona-se a preservação e a destruição dos edifícios colonais, o descaso na
manutenção de cultura material histórica, o que se relaciona à sociedade brasileira e sua clivagens. Preservamse mais os vestígios da elite, mas mesmo estes sofrem pelo descaso. Os vestígios indígenas, afro-brasileiros e
humildes, em geral, são pouco valorizados. A comunicação entre os arqueólogos e o público é exemplificado
com o caso da Arqueologia de um estado rebelde, Palmares. O artigo conclui-se com a proposta de maior
atenção dos arqueólogos para com a preservação cultural.
Palavras-chave: Património cultural; vestígios materiais; preservação.
Os desafios da destruição e conservação do património cultural no Brasil são,
provavelmente, pouco conhecidos do público académico português e este artigo visa apresentar alguns
aspectos dessas questões aos estudiosos lusitanos. Antes de discutir a experiência brasileira, cabe explorar os
diferentes sentidos ligados ao conceito mesmo de “património cultural”. As línguas românicas usam termos
derivadas do latim patrimonium para se referir à “propriedade herdada do pai ou dos antepassados, uma
herança”. Os alemães usam Denkmalpflege, “o cuidado dos monumentos, daquilo que nos faz pensar”,
enquanto o inglês adotou heritage, na origem restrito “àquilo que foi ou pode ser herdado” mas que, pelo
25
Departamento de História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas,
C. Postal 6100, Campinas, 13081-970, SP, Brasil, fax 55 19 289 33 27,
[email protected].
51
mesmo processo de generalização que afectou as línguas românicas e seu uso dos derivados de patrimonium,
também passou a ser usado como uma referência aos monumentos herdados das gerações anteriores. Em
todas estas expressões, há sempre uma referência à lembrança, moneo (em latim, “levar a pensar”, presente
tanto em patrimonium como em monumentum), Denkmal (em alemão, denken significa “pensar’) e aos
antepassados, implícitos na “herança”. Ao lado destes termos subjectivos e afectivos, que ligam as pessoas
aos seus reais ou supostos precursores, há, também, uma definição mais económica e jurídica, “propriedade
cultural”, comum nas línguas românicas (cf. em italiano, beni culturali), o que implica um liame menos
pessoal entre o monumento e a sociedade, de tal forma que pode ser considerada uma “propriedade”. Como a
própria definição de “propriedade” é política, “a propriedade cultural é sempre uma questão política, não
teórica”, ressaltava Carandini (1979: 234).
Há não muito tempo, Joachim Hermann (1989: 36) sugeriu que “uma consciência histórica é
estreitamente relacionada com os monumentos arqueológicos e arquitectónicos e que tais monumentos
constituem importantes marcos na transmissão do conhecimento, da compreensão e da consciência
históricos”. Não há identidade sem memória, como diz uma canção catalã: “aqueles que perdem suas origens,
perdem sua identidade também”(Ballart 1997: 43). Os monumentos históricos e os restos arqueológicos são
importantes portadores de mensagens e, por sua própria natureza como cultura material, são usados pelos
actores sociais para produzir significado, em especial ao materializar conceitos como identidade nacional e
diferença étnica. Deveríamos, entretanto, procurar encarar estes artefactos como socialmente construídos e
contestados, em termos culturais, antes que como portadores de significados inerentes e ahistóricos,
inspiradores, pois, de reflexões, mais do que de admiração (Potter s.d.). Uma abordagem antropológica do
próprio património cultural ajuda a desmascarar a manipulação do passado (Haas 1996). A experiência
brasileira, a esse respeito, é muito clara: a manipulação oficial do passado, incluindo-se o gerenciamento do
património, é, de forma constante, reinterpretada pelo povo. Como resumiu António Augusto Arantes (1990:
4): “o património brasileiro preservado oficialmente mostra um país distante e estrangeiro, apenas acessível
por um lado, não fosse o fato de que os grupos sociais o reelaboram de maneira simbólica”. Esses estratos são
os excluídos do poder e, assim, da preservação do património.
52
No Brasil, houve, sempre, uma falta de interesse, por parte dos arqueólogos, em interagir
com a sociedade em geral – como é o caso, na verdade, alhures na América Latina, como nota Gnecco (1995:
19) – e o património foi deixado para “escritores, arquitectos e artistas, os verdadeiros descobridores do
património cultural no Brasil, não historiadores ou arqueólogos” (Munari 1995). A preservação dos edifícios
de igrejas coloniais poderia ser considerado, no Brasil e no resto da América Latina (García 1995: 42), como
o mais antigo manejo patrimonial. É interessante notar que a importância da Igreja Católica na colonização
ibérica do Novo Mundo explica a escolha estratégica de se preservar esses edifícios, sejam templos
construídos sobre os restos de estruturas indígenas (cf. o exemplo maia, em Alfonso & García s.d.: 5), sejam
as igrejas nas colinas que dominavam a paisagem, como foi o caso na América portuguesa. Contudo, nem
mesmo as igrejas foram bem preservadas no Brasil, com importantes excepções, e isto pode ser explicado
pelo anseio das elites, nos últimos cem anos, de “progresso”, não por acaso um dos dois termos na bandeira
nacional surgida da Proclamação da República, em 1889, “ordem e progresso”. Desde então, o país tem
buscado a modernidade e qualquer edifício moderno é considerado melhor do que um antigo. Houve muitas
razões para mudar-se a capital do Rio de Janeiro para uma cidade criada ex nouo, Brasília, em 1961, mas,
quaisquer que tenham sido os motivos económicos, sociais ou geopolíticos, apenas foi possível porque havia
um estado d’alma favorável à modernidade. A melhor imagem da sociedade brasileira não deveria ser os
edifícios históricos do Rio de Janeiro, mas uma cidade moderníssima e mesmo os mais humildes sertanejos
deveriam preterir seu património, em benefício de uma cidade sem passado (Funari, a sair).
Talvez o exemplo mais claro dessa luta contra a lembrança materializada seja São Paulo,
essa megalópolis, cujo crescimento não encontra paralelos. Ainda que fundada em 1554, continuou a ser uma
cidadezinha até fins dos século XIX, até tornar-se, nestes últimos cem anos, a maior cidade do hemisfério sul.
Nesse processo, restos antigos sofreram constantes degradações ideológicas e físicas, sendo construídos novos
edifícios para criar uma cidade completamente nova. Os edifícios históricos, se assim se pode falar, são a
Catedral e o Parque Modernista do Ibirapuera, planejado por Niemeyer, ambos inaugurados em 1954 para
comemorar os quatrocentos anos da cidade. Os principais prédios públicos, como o Palácio dos Bandeirantes,
sede do governo do Estado de São Paulo ou o Palácio Nove de Julho, que abriga a Assembléia Legislativa do
Estado, são, também, muito recentes e a mais importante avenida, a Paulista, fundada em fins do século XIX
53
como um bastião de mansões aristocráticas, foi totalmente remodelada na década de 1970. Mesmo em cidades
coloniais, algumas delas bem conhecidas no exterior, como Ouro Preto, declarada Património da
Humanidade, a modernidade está sempre presente, por desejo de seus habitantes. Guiomar de Grammont
(1998: 3) descreve esta situação com palavras fortes:
“A distância entre as autoridades e o povo é a mesma daquela entre a sociedade civil e o
passado, devido à falta de informação, ainda que os habitantes das cidades coloniais dependam do turismo
para sua própria sobrevivência. Quem são os maiores inimigos da preservação dessas cidades coloniais? Em
primeiro lugar, a própria administração municipal, não afectada pelos problemas sociais e ignorante das
questões culturais em geral mas, às vezes, os moradores também, inconscientes da importância dos
monumentos, contribuem para a deformação do quadro urbano. Novas janelas, antenas parabólicas, garagens,
telhados e casas inteiras bastam para transformar uma cidade colonial em uma cidade moderna, uma mera
sombra de uma antiga cidade colonial, como é o caso de tantas delas”.
É fácil entender que as pessoas estejam interessadas em ter acesso à infraestrutura moderna
mas, como notam os europeus quando visitam as cidades coloniais, se os edifícios medievais podem ser
completamente reaparelhados, sem danificar os prédios, não haveria porque não fazê-lo no Brasil. Outra
ameaça ao património arqueológico das cidades coloniais é o roubo, já que os ladrões são muito atuantes,
havendo mais de quinhentas igrejas e museus locais coloniais (Rocha 1997; cf. um caso semelhante na
República Tcheca, Calabresi 1998). Um problema mais prosaico é a deterioração dos monumentos devido à
falta de manutenção e abrigo, mesmo no interior de edifícios (Lira 1997; Sebastião 1998). Estes três perigos
para a manutenção dos bens culturais, aparentemente não relacionados, revelam uma causa subjacente
comum: a alienação da população, o divórcio entre o povo e as autoridades, a distância que separa as
preocupações corriqueiras e o ethos e políticas oficiais. Houve uma “política de património que preservou a
casa-grande, as igrejas barrocas, os fortes militares, as câmaras e cadeias como as referências para a
construção de nossa identidade histórica e cultural e que relegou ao esquecimento as senzalas, as favelas e os
bairros operários” (Fernandes 1993: 275).
54
Para o povo, há, pois, um sentimento de alienação, como se sua própria cultura não fosse, de
modo algum, relevante ou digna de atenção. Tradicionalmente, havia dois tipos de casa no Brasil: as moradas
de dois ou mais andares, chamados de “sobrados”, onde vivia a elite, e todas as outras formas de habitação,
como as “casas” e “casebres”, “mocambos” (derivado do quimbundo, mukambu, “fileira”), “senzalas” (locais
da escravaria), “favelas” (tugúrios) (Reis Filho 1978: 28). O resultado de uma sociedade baseada na
escravidão, desde o início houve sempre dois grupos de pessoas no país, os poderosos, com sua cultura
material esplendorosa, cuja memória e monumentos são dignos de reverência e preservação e os vestígios
esquálidos dos subalternos, dignos de desdém e desprezo. Como enfatizou o grande sociólogo brasileiro,
Octávio Ianni (1988: 83), o que se considera património é a Arquitetura, a música, os quadros, a pintura e
tudo o mais associado às famílias aristocráticas e à camada superior em geral. A Catedral, frequentada pela
“gente de bem”, deve ser preservada, enquanto a Igreja de São Benedito, dos “pretos da terra”, não é
protegida e é, com frequência, abandonada. Os monumentos considerados como património pelas instituições
oficiais, de acordo com Eunice Durham (1984: 33), são aqueles relacionados à “história das classes
dominantes, os monumentos preservados são aqueles associados aos feitos e à produção cultural dessas
classes dominantes. A História dos dominados é raramente preservada”.
Devemos concordar com Byrne (1991: 275) quando afirma que é comum que os grupos
dominantes usem seu poder para promover seu próprio património, minimizando ou mesmo negando a
importância dos grupos subordinados, ao forjar uma identidade nacional à sua própria imagem, mas o grau de
separação entre os setores superiores e inferiores da sociedade não é, em geral, tão marcado quanto no Brasil.
Neste contexto, não é de surpreender que o povo não preste muita atenção à protecção cultural, sentida como
se fora estrangeira, não relacionada à sua realidade. Há uma expressão no português do Brasil que demonstra,
com clareza, esta alienação das classes: “eles, que são brancos, que se entendam”. Note-se que esta frase é
usada também por brancos para se referirem às autoridades em geral. A mesma distância afecta o património,
pois os edifícios coloniais são considerados como “problema deles, não nosso”. Poderíamos dizer, assim, que
a busca da modernidade, mesmo sem levar em conta a destruição dos bens culturais, poderia bem ser
interpretada como um tipo de luta não apenas por melhores condições de vida, mas contra a própria
lembrança do sofrimento secular dos subalternos.
55
O património arqueológico stricto sensu poderia deixar de ser afectado por esta falta de
interesse na preservação da cultura material da elite, na medida em que a Arqueologia produz evidência de
indígenas e dos humildes em geral (cf. Trigger 1998: 16). Entretanto, há muitos factores que inibem um
engajamento activo da gente comum na protecção patrimonial. Em primeiro lugar, há falta de informação e de
educação formal sobre o tema. Indígenas, africanos e pobres são raramente mencionados nas lições de
História e, na maioria das vezes, as poucas referências são negativas, ao serem representados como
preguiçosos, uma massa de servos atrasados incapazes de alcançar a civilização. Os índios eram considerados
ferozes inimigos, dominados por séculos e isso pleno iure. Em famoso debate, no início do século XX, Von
Ihering, então diretor do Museu Paulista, propôs o extermínio dos índios Kaingangs que, segundo ele,
estavam a atravancar o progresso do país (Schwarcz 1989: 59) e, mesmo que tenha sido desafiado por outros
intelectuais, principalmente do Museu Nacional do Rio de Janeiro, sua atitude era e ainda é muito sintomática
da baixa estima dos indígenas, mesmo na academia. Basta lembrar que o material indígena proveniente do
oeste do Estado de São Paulo, coletado há oitenta anos, à época de Von Ihering, apenas agora está sendo
exposto, graças a um projecto inovador da Universidade de São Paulo (Cruz 1997): antes tarde do que nunca!
Os negros, por sua parte, foram considerados como bárbaros ameaçadores ou, como disse,
há pouco, um eminente e renomado historiador brasileiro, Evaldo Cabral de Mello (Leite 1996): “Não é
possível negar o que era o Quilombo dos Palmares: era uma república negra, foi destruída e eu prefiro, para
ser franco, que assim tenha sido. Por uma razão muito simples. Se Palmares tivesse sobrevivido, teríamos no
Brasil um Bantustão, um Estado independente e sem sentido”. Assim, um importante historiador ainda se
sente ameaçado pelos negros e parece mirar-se em Catão: delenda Palmares! Ser capaz de dizer tais
disparates ex cathedra revela muito sobre a doutrinação, cheia de preconceitos que, de uma outra ou de outra
maneira, acaba por atingir o próprio povo (Funari 1996 a: 150 et passim).
Por fim, mas não menos importante, há uma falta de comunicação entre o mundo
académico, em particular a comunidade arqueológica, e o povo. Os arqueólogos deveriam agir com a
comunidade, não para ela (Rússio 1984: 60), dando ao povo uma melhor compreensão do passado e do
56
mundo (Hudson 1994: 55). Para atingir esses objectivos, pesquisas de largo fôlego não deveriam levar à
diversão (Durrans 1992: 13), mas à integração de processos, como é o resgate de edifícios históricos e a
escavação de sítios arqueológicos, e produtos, como a publicização do trabalho científico por meio de
diferentes media (Merriman 1996: 382). Um bom exemplo é o destino de um sítio arqueológico
particularmente importante no Brasil: o quilombo do século XVII, conhecido como Palmares. Desde a
década de 1970, começou-se a suspeitar que o famoso quilombo, que resistiu por quase um século ao sistema
escravista, se localizava no interior do Estado de Alagoas, na Serra da Barriga. Ativistas negros encontraram
restos de superfície na colina e conseguiram, depois de uma campanha sem precedentes, fazer com que as
autoridades declarassem a área património nacional, em 1985. Contudo, devido ao pouco caso do
establishment arqueológico, controlado por forças conservadoras ligados ao regime militar (Funari 1995b:
238-245), o sítio ficou nas mãos das autoridades locais. O resultado foi o uso de tractores para nivelar uma
parte importante do sítio, o que permitiu que as autoridades promovessem festas e, desta forma, conseguissem
o apoio eleitoral.
No início da década de 1990, quando o trabalho arqueológico começou na Serra, um dos
principais objectivos foi actuar com a comunidade local e com os activistas negros, de modo que se pudesse
compreender o sítio e sua importância e se pudesse almejar, para o lugar, mais do que o destino de local de
festas. O poder obtido por aqueles que estão, normalmente, excluídos dos processos de decisão (Jones 1993:
203) seria apenas possível por meio da divulgação científica e na mídia da pesquisa arqueológica. Nos últimos
anos, os arqueólogos encarregados do estudo do sítio, Charles E. Orser, Jr. (1992;1993;1994;1996) e este
autor (Funari 1991;1994a;1995a;1995c;1996a;1996b;1996c;1996e;1996f; Orser e Funari 1992) publicaram três
livros, integral ou parcialmente, dedicados a Palmares, mais de dez artigos científicos em revistas académicas
brasileiras e estrangeiras, assim como Scott Allen (1997; 1999) produziu um mestrado e um doutorado sobre
o sítio, além de estudo de Michael Rowlands (1999), a partir do mesmo sítio. Além disso, diversos artigos em
revistas e jornais, tanto no Brasil como no exterior, foram publicados. É provável que isto não seja suficiente
para mudar, de forma radical, a atitude subjectiva dos brasileiros comuns para com essas evidências humildes
de um quilombo, pois o contexto mais amplo no Brasil não seria alterado por uma actividade académica
isolada, mas, mesmo assim, muito mais gente, agora, sabe da existência do sítio e de sua possível importância.
57
De facto, quinze anos atrás, no final do regime militar, Olympio Serra (1984:108) propôs
uma interpretação ousada de Palmares, como um possível modelo de sociedade não-autoritária: “deveria ser
possível recriar a experiência de uma sociedade pluralista, como era a República de Palmares. E se você olha
esta mais atraente fase da História do Brasil, vai ver que, em Palmares, não havia apenas negros, mas também
índios, judeus, em outras palavras, todos os discriminados pela ordem colonial, todos que eram diferentes”.
Alguns anos depois, o trabalho arqueológico na Serra da Barriga produziu evidência material que pode
substanciar esta abordagem humanista. Palmares deve seu crescimento, sobrevivência e destruição ao papel
que teve no comércio entre a costa e o interior, pois os interesses mercantis e Palmares se opunham àqueles da
nobreza e dos latifundiários, que triunfaram, ao fim, devido à força dos grupos nobiliárquicos, em Portugal e
na colónia. A destruição desta tendência pluralista explica a persistência de um discurso racista e elitista, já
mencionado, e o trabalho arqueológico de resgate da cultura material do quilombo, assim como sua
preservação como património cultural, passa a ter um papel não desprezável na promoção de uma consciência
crítica, dentro e fora do mundo académico.
No Brasil, o cuidado do património sempre esteve a cargo da elite, cujas prioridades têm
sido tanto míopes como ineficazes. Edifícios de alto estilo arquitectónico, protegidos por lei, são deixados nas
mãos do mercado e o comércio ilegal de obras de arte é amplamente tolerado. Recentemente, Christie’s
vendeu uma obra-prima de Aleijadinho (Blanco 1998a; 1998b). A imprensa está sempre a noticiar a respeito,
sem que se faça algo a respeito (cf. Leal 1998; Verzignasse 1998; Werneck 1998). Arqueólogos de boa cepa
não escondem sua ligação com antiquários (e.g. Lima 1995). A gente comum sente-se alienada tanto em
relação ao património erudito quanto aos humildes vestígios arqueológicos, já que são ensinados a desprezar
índios, negros, mestiços, pobres, em outras palavras, a si próprios e a seus antepassados. Neste contexto, a
tarefa académica a confrontar os arqueólogos e aqueles encarregados do património, no Brasil, é
particularmente complexa e contraditória. Devemos lutar para preservar tanto o património erudito, como
popular, a fim de democratizar a informação e a educação, em geral. Acima de tudo, devemos lutar para que o
povo assuma seu destino, para que tenha acesso ao conhecimento, para que possamos trabalhar, como
58
académicos e como cidadãos, com o povo e em seu interesse. Como cientistas, em primeiro lugar, deveríamos
buscar o conhecimento crítico sobre nosso património comum. E isto não é uma tarefa fácil.
Agradecimentos
Agradeço a diversos colegas, que contribuíram de diferentes maneiras, para que este artigo
fosse escrito: Scott Allen, Jopep Ballart, Brian Durrans, Juan Manuel García, Siân Jones, Vítor Oliveira Jorge,
Robert Layton, Charles E. Orser, Jr., Parker Potter, Michael Rowlands, Bruce G. Trigger, Peter Ucko. A
responsabilidade pelas idéias restringe-se ao autor. Devo mencionar, ainda, os apoios institucionais do
Congresso Mundial de Arqueologia, Instituto de Arqueologia (Londres), CNPq, Universidade de Barcelona e
Universidade Estadual de Campinas.
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Contradições e esquecimentos nas imagens do passado26
Pedro Paulo A. Funari27
Gostaria de começar agradecendo aos organizadores do CEDEM da UNESP, em especial à
Professora Anna Maria Martínez Corrêa, o convite de participar, hoje, deste debate, em torno do livro da
Professora Marly Rodrigues, estudiosa que há muito admiro e que tanto nos tem ensinado sobre o patrimônio
em nosso país. Começarei por citar algumas passagens do capítulo conclusivo do volume e que servem como
reflexões surgidas ao cabo de um percurso, como se olhasse para a História do cuidado com o patrimônio
Participação em Mesa-Redonda no CEDEM- UNESP,DOCUMENTAÇÃO E MEMÓRIA,TESES EM DEBATE, “IMAGENS DO
PASSADO, A INSTITUIÇÃO DO PATRIMÔNIO EM SÃO PAULO, 1969/1987”, Marly Rodrigues, Condephaat e Faap, expositora.
Pedro Paulo Funari, UNICAMP, Walter Pires, SMC/SP, Debatedores. Célia R. Camargo, UNESP. Moderadora. Dia 11 de setembro de
2001, às 18:00h. Praça da Sé, 108, 1º andar, tel 252 05 10. Discussão sobre o livro de Marly Rodrigues.
26
27
Departamento de História,
[email protected].
IFCH-UNICAMP,
C.
Postal
6110,
Campinas,
SP,
13081-970,
62
com o devido distanciamento, já a enxergar não mais as pedrinhas, mas o mosaico resultante dos documentos
compulsados e criados pela autora, na forma de entrevistas com os próceres administrativos. Assim, Marly
Rodrigues descreve o primeiro período da instituição estadual de patrimônio, de 1969 a 1982, em pleno
arbítrio de um regime de força:
“Em um período de ascensão do conservadorismo, como os treze primeiros anos de atuação do
Condephaat, a evocação do bandeirante e do grande cafeicultor atenderia quer à distinção de segmentos
paulistas, quer às abordagens comemorativas e cívicas da cultura e da educação...Consagradores de um tempo
passado, entendido como um tempo sem contradições, as representações bandeiristas, cafesistas e da
colonização remetiam à nostalgia da vida rural” (pp. 148-9, grifo acrescentado).
De fato, a autora remonta a Taunay as origens dessas imagens idealizadas do passado e demonstra
sua força no período de ápice da ditadura, mas sua força ideológica consiste, como bem ressalta Marly
Rodrigues, na ênfase na ausência de contradições, na visão idílica de um passado em que todos seríamos
bandeirantes. Tal concepção continua, quase vinte anos depois, a dominar as representações materiais do
nosso passado, como atesta, de forma exuberante e indecente, o Museu Paulista, in primis, mas não apenas,
pois o inventário dos bens tombados continua a privilegiar essas imagines maiorum.
A restauração das liberdades formais viria a permitir a emergência, no seio da sociedade, de
múltiplas vozes e interesses o que, em parte, se refletiu, na ampliação do universo cultural representado no
patrimônio (Meneguello 2001). No entanto, Marly Rodrigues conclui seu balanço de forma muito clara, ao
enfatizar as permanências seculares do discurso da exclusão. Segundo a autora:
“Do conjunto de bens tombados no Estado de São Paulo, fazem parte poucas memórias de negros, de
imigrantes e de trabalhadores. Os remanescentes de sedes de fazenda e ricas mansões urbanas sombreiam os
de senzala, dos cortiços e dos bairros operários. Desse modo, o patrimônio paulista se apresenta não apenas
como perpetuador da memória, mas também do esquecimento oficial. A exclusão atinge não apenas os
excluídos, mas remete toda sociedade à idealização do passado como um tempo desprovido de contradições e
63
diferenças. Além disso, não permite a reflexão sobre as relações hoje vigentes na sociedade, dessa forma
reafirmando igualdades idealizadas e camuflando conflitos, o que subtrai dos homens a idéia de possibilidade
de transformação, razão mesma da memória, da retenção e socialização da experiência vivida” (p. 151, grifo
acrescentado).
Não se trata de particularidades, de idiossincrasias das políticas patrimoniais paulistas, mas de
características intrínsecas do preservacionismo nacional, inserido, portanto, em uma sociedade secularmente
patriarcal, hierarquizada, fundada na obediência, infensa à liberdade e à cidadania ativas (cf. obras de Funari,
nas referências). Como enfatizou o grande sociólogo, Octávio Ianni (1988: 83), o que se considera patrimônio
é a Arquitetura, a música, os quadros, a pintura e tudo o mais associado às famílias aristocráticas e à camada
superior em geral. A Catedral, frequentada pela “gente de bem”, deve ser preservada, enquanto a Igreja de
São Benedito, dos “pretos da terra”, não é protegida e é, com frequência, abandonada. Os monumentos
considerados como patrimônio pelas instituições oficiais, de acordo com Eunice Durham (1984: 33), são
aqueles relacionados à “história das classes dominantes, os monumentos preservados são aqueles associados
aos feitos e à produção cultural dessas classes dominantes. A História dos dominados é raramente
preservada”.
Marly Rodrigues nota que não se trata, apenas, de excluir as maiorias e as minorias, mas de construir
um passado homogêneo, isento de tensões, contradições e variedade. A sociedade é vista como um conjunto
harmônico de pessoas, uma koinonia, no sentido já proposto por Aristóteles (Politica 1252a7), a viver
segundo normas sociais compartilhadas e aceitas. Neste modelo normativo, a dissensão, a variedade e a
diferença aparecem como desvios da norma, exceções que confirmariam a regra. Essa concepção de
sociedade cria o conceito de identidade partilhada, de características iguais (de onde se origina a própria
palavra identidade, de idem, “o mesmo”, em latim), como se todos, portanto, pertencêssemos à confraria. Este
o conceito normativo de pertença, belonging, tão caro aos modelos de sociedade sem conflitos, sem
diversidade.
64
Epur, como lembra Marly Rodrigues, a ausência de conflitos e diferenças não passa de idealização
do passado, uma visão idílica dos donos do poder, daqueles que controlam a preservação da cultura material,
acostumados com o exercício do mando e com a expectativa de obediência por parte daqueles que devem
fazê-lo e que são, segundo sua ótica, simples néscios. Contudo, Marly Rodrigues menciona contradições e
diferenças que não se sujeitam à lógica do discurso da homogeneização opressiva, pois a resistência consiste
em desconstruir, no sentido literal e figurado, essas memórias materiais repressoras. A alienação da população
e o divórcio entre o povo e as autoridades distanciam e separam as preocupações corriqueiras das pessoas
comuns e o ethos e políticas oficiais. Houve uma “política de patrimônio que preservou a casa-grande, as
igrejas barrocas, os fortes militares, as câmaras e cadeias como as referências para a construção de nossa
identidade histórica e cultural e que relegou ao esquecimento as senzalas, as favelas e os bairros operários”
(Fernandes 1993: 275).
Para o povo, há, pois, um sentimento de alienação, como se sua própria cultura não fosse, de
modo algum, relevante ou digna de atenção. Tradicionalmente, havia dois tipos de casa no Brasil: as moradas
de dois ou mais andares, chamados de “sobrados”, onde vivia a elite, e todas as outras formas de habitação,
como as “casas” e “casebres”, “mocambos” (derivado do quimbundo, mukambu, “fileira”), “senzalas” (locais
da escravaria), “favelas” (tugúrios) (Reis Filho 1978: 28). O resultado de uma sociedade baseada na
escravidão, desde o início houve sempre dois grupos de pessoas no país, os poderosos, com sua cultura
material esplendorosa, cuja memória e monumentos são dignos de reverência e preservação e os vestígios
esquálidos dos subalternos, dignos de desdém e desprezo.
Marly Rodrigues considera que essa invenção de um passado homogêneo e harmônico inibe a
reflexão sobre as relações sociais odiernas e tende a subtrair dos homens seu potencial de transformação
social. A preservação patrimonial insere-se, neste contexto, em uma luta pela preservação do status quo e das
iniqüidades vigentes. Essas tentativas de imobilização dos agentes sociais, entretanto, sempre encontram seus
limites na própria práxis social, que escapa aos ditames dos administradores da sociedade e da gestão
patrimonial. Marly Rodrigues conclui sua obra com palavras fortes sobre a deotologia do preservacionismo,
sobre sua tarefa:
65
“A busca desse sentido (sc. de democratização das práticas públicas de proteção da memória social)
implicaria o interesse em favorecer a emergência de uma consciência política que absorvesse o presente como
um tempo historicamente constituído, no qual o passado é projetado como reflexão sobre a diferença, o outro,
o conflito e a resistência, elementos constituintes da ininterrupta luta pelos direitos sociais” (p. 152).
O preservacionista sempre tem uma pergunta em mente: preservar para quê? Há alguns anos, quando
de uma homenagem póstuma ao obstinado defensor do patrimônio e humanista Paulo Duarte – personagem
do capítulo de Marly Rodrigues “Passado, reflexo do presente”-, Maria Cristina Bruno (1991) evocava uma
bela imagem sobre a preservação:
“Patrimônio, para Paulo Duarte, era visto com muita abrangência. Sinônimo de qualidade de
vida, pesquisa e ensino, erudito e popular, antigo e moderno e, acima de tudo, preservação para a
informação”.
Informação, criação de consciência, ação no mundo, transformação, eis as metas da
preservação (Funari 1992/3:18-19). Seria, até mesmo, o caso de propor que se deva preservar para
transformar a sociedade, pois
o conhecimento não é apanágio de classe ou grupo e qualquer ação
preservacionista pode levar à reflexão crítica. Abrir a cabeça, talvez a meta maior da preservação (Hudson
1994: 55). A começar por uma política que se contraponha à alienação da moda e à descontextualização
derivada da mercantilização generalizada dos objetos e dos edifícios em nossa sociedade pós-moderna
(Durrans 1992: 14), que contribua para a autonomia do público (aquilo que os ingleses tão bem definem como
empowerment, cf. Giroux & McLaren 1986: 238). O passado, em forma de patrimônio material, serve ao
presente (Luc 1986: 118).
A luta por direitos sociais, propugnada por Marly Rodrigues, consiste em batalhar por um
preservacionismo que dê conta das contradições, dos conflitos, da heterogeneidade (cf. Rodrigues 2001: 17).
Tal luta não se pode restringir à esfera dos órgãos de patrimônio, pois são as forças sociais a permitir, em
66
última instância, a contestação das exclusões já consolidadas. A ação conjunta com os agentes constitui, pois,
o meio privilegiado de ação por uma preservação libertadora. O belo livro de Marly Rodrigues, de forma
muito sintomática, conclui-se com uma convocação à ação, com um brado por uma política pluralista que
contribua para transformar nossa sociedade. Cabe a todos nós contribuirmos para isso.
Agradecimentos
Agradeço a Cristina Bruno, Brian Durrans, Octavio Ianni, Robert Layton, Cristina Meneguello e
Marly Rodrigues. Devo, ainda, mencionar o apoio institucional do World Archaeological Congress. A
responsabilidade pelas idéais restringe-se ao autor.
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Teoria e métodos na Arqueologia contemporânea: o contexto da Arqueologia
Histórica28
Pedro Paulo A. Funari
A Arqueologia possui diversas correntes teóricas, cujos paradigmas epistemológicos não são, às
vezes, bem conhecidos. Neste contexto, procuro apresentar um quadro geral das posturas mais recorrentes e
relaciono essas abordagens à prática contemporânea da Arqueologia Histórica (Funari, Hall e Jones 1999,
com bibliografia sobre o tema).
28
Considerações apresentadas em eventos acadêmicos sobre os campos conceituais na Arqueologia das
sociedades históricas.
69
A Arqueologia só pode ser entendida em seu contexto histórico e social, como alertava Michael
Shanks há algum tempo. Desde seu surgimento, diversas teorias desenvolveram-se e, de certa forma, todas
elas continuam até hoje sendo utilizadas. Herdeira do nacionalismo do século XIX, a Arqueologia tem no
modelo histórico-cultural sua teoria mais difundida. A partir da noção de que cada nação seria composta de
um povo (grupo étnico, definido biologicamente), um território delimitado e um cultura (entendida como
língua e tradições sociais), formou-se o conceito de cultura arqueológica. Esta seria um conjunto de artefatos
semelhantes, de determinada época, e que representaria, portanto, um povo, com uma cultura definida e que
ocupava um território demarcado. Este modelo está calcado em suas origens filológicas e históricas e surgiu
no contexto da busca das origens pré-históricas dos povos europeus, tendo surgido na Alemanha, com Gustav
Kossina, e se generalizado graças à genialidade de Vere Gordon Childe. Childe retirou os pressupostos
racistas do modelo original e desenvolveu o conceito de cultura arqueológica, acoplando-o ao evolucionismo
materialista de origem marxista.
O modelo histórico-cultural parte do pressuposto que a cultura seja homogênea e que as tradições
passem de geração a geração. Desta forma, seria possível tentar determinar os antepassados dos germanos ou
dos guaranis. Este modelo, ainda que tenha sofrido muitas críticas, como veremos, continuar a ser o mais
utilizado em Arqueologia, em suas múltiplas variantes e formas.
O primeiro assalto consistente a esse paradigma viria daqueles que não praticavam a Arqueologia de
cunho filológico e histórico, à maneira européia. No contexto da Arqueologia antropológica norte-americana,
surgiu um movimento, na década de 1960, que se auto-denominava de New Archaeology ou Arqueologia
Processual, capitaneada por Lewis Binford. Começou-se com o grito de guerra de que “a Arqueologia é
Antropologia ou não é nada”, em claro desafio ao caráter histórico da Arqueologia histórico-cultural. A
História estaria em busca dos eventos e das culturas singulares, enquanto a Antropologia americana ressaltava
que haveria regularidades no comportamento humano. Buscavam-se, pois, leis transculturais de
comportamento. Partia-se do pressuposto que os homens maximizam os resultados e minimizam os custos,
em qualquer época e lugar. Assim, estudar o assentamento humano há dez mil anos na Mesopotâmia ou na
China deveria partir dos mesmos pressupostos e pouco importavam as características históricas específicas. A
70
Arqueologia processual refletia bem uma visão capitalista do passado humano, privilegiando uma
interpretação materialista pouco preocupada com as diversidades culturais. Surgida no contexto da Guerra
Fria e tendo atingido seu ápice na década de 1970, ela continua bastante difundida, ainda que nunca tenha
conseguido suplantar, em popularidade acadêmica, o modelo histórico-cultural.
A partir da década de 1980, começaram a surgir críticas mais contundentes ao processualismo. Nas
Ciências Humanas, em geral, difundia-se o pós-modernismo e as críticas à idéia de verdade científica. A partir
da noção de que as ciências são construções discursivas, inseridas em contextos sociais, desmontou-se a
lógica do processualismo: os homens não foram sempre e em toda parte capitalistas! Alguns, como Ian
Hodder, começaram a ressaltar que havia uma dimensão simbólica na cultura que não podia ser deixada de
lado, já no início da década de 1980, mas foi a publicação de Re-Constructing Archaeology, por Michael
Shanks e Christopher Tilley, em 1987, que marcou o processo de reconstrução da Arqueologia. Os autores
uniram as vertentes filológicas, históricas e filosóficas da crítica social às reflexões da Antropologia
contextual, em um ataque devastador aos pressupostos histórico-culturais e processuais, caracterizados como
discursos a serviço das potências imperialistas e da exploração. Já antes disso, Bruce G. Trigger constatava
que a New Archaeology era uma forma de Arqueologia imperialista. A Arqueologia pós-processual ou
contextual introduziu, de forma explícita, a dimensão política da disciplina, sua importância na luta dos povos
pelo seu próprio passado e por seus direitos.
Foi neste contexto que surgiu o World Archaeological Congress (Congresso Mundial de
Arqueologia), em 1986, congregando arqueólogos e outros estudiosos, assim como indígenas,
preocupados com as dimensões sociais da Arqueologia. Shanks e Tilley constataram que o próprio
nome da disciplina pode ser interpretado como o “conhecimento do poder”, retomando um dos
sentidos da palavra arque, em grego. A partir da década de 1990, esse engajamento levou a um
crescente dinamismo da chamada Arqueologia Pública (public archaeology), entendida como toda a
pletora de implicações públicas da disciplina, do cuidado pelo patrimônio aos direitos humanos.
71
A partir do final da década de 1990, há um crescente pluralismo
interpretativo na Arqueologia. Os modelos fundados no histórico-culturalismo
continuam muito difundidos, tanto por serem os que mais cedo surgiram e terem
continuado a desenvolver-se, como por responderem a inquietações históricas
concretas, como é o caso da busca das origens pré-históricas de povos como os tupis
ou os guaranis. A partir da década de 1960, uma vertente histórico-cultural
importante em certos países latino-americanos foi a Arqueologia Social LatinoAmericana, teoria fundada em Childe e que se aplicou bem à reconstrução das
grandes civilizações pré-colombianas, como a maia, inca e asteca, que estariam na
base das modernas nacionalidades de países com forte presença indígena, como o
México e o Peru.
O processualismo, por sua parte, continua importante, em particular por fornecer esquemas
interpretativos aplicáveis a qualquer contexto histórico. Assim, o estudo da captação de recursos e
dos padrões de assentamento tem se beneficiado das ferramentas interpretativas da New
Archaeology, sendo seus métodos mais usados em certos países, como na Europa Oriental ou na
Argentina, ou em determinadas instituições de pesquisa. A Arqueologia contextual, em suas mais
variadas manifestações, tornou-se conhecida em toda parte e assumiu a vanguarda em países como a
Inglaterra e em diversas instituições pelo mundo afora, em primeiro lugar no mundo anglo-saxão,
mas também alhures. A convivência de diferentes e, às vezes, contraditórias teorias em Arqueologia
constitui uma salutar característica da disciplina na atualidade.
Neste contexto, pode afirmar-se que a Arqueologia Histórica é uma disciplina ainda muito jovem,
tendo se institucionalizado há apenas quarenta anos, nos Estados Unidos. No Brasil, sua prática tem-se
ampliado, principalmente, a partir da década de 1980, em parte como resultado da restauração paulatina das
72
liberdades públicas e do declínio do arbítrio, primeiro com a anistia (1979), o relaxamento da censura e, ao
cabo, com a passagem a um regime civil em 1985.
A primeira questão epistemológica a ser abordada refere-se àquela mais central e que se
encontra no cerne de todo engenho da disciplina: seu estatuto ontológico. A Arqueologia, surgida em solo
europeu herdeira da tradição ocidental renascentista, teve algumas de suas bases assentadas na História da
Arte, na Arquitetura acadêmica, no mundo das formas. Este período pré-histórico da Arqueologia marcou
profundamente a disciplina, em busca das grandes estátuas gregas, da aisthesis, da percepção das etéreas
linhas da beleza marcadas no mármore e noutros materiais nobres. Quando o século XVIII testemunhou o
avanço das Luzes e uma nova universidade tomou forma, a Filologia passou a erigir-se como fundamento
último da humanidade e o próprio estudo das formas, já multissecular, passou a ser apresentado à semelhança
das línguas. A nascente Filologia já se havia inspirado na Biologia para decompor as línguas em troncos e
filiações, assim como para apresentá-las, à maneira dos seres vivos, com nascimento, crescimento, ápice,
declínio e desaparecimento e tais metáforas foram passadas, mutatis mutandis, para a cultura material. Neste
contexto, a Arqueologia não podia deixar de ser filológica e, portanto, histórica.
Muito diversa a Arqueologia surgida do outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos. Ao
lado de uma Arqueologia européia logo implantada nas universidades e museus americanos, tão bem
representada pelas Arqueologia Clássica, Bíblica, do Egito e da Mesopotâmia, surgia outra, a Arqueologia
pré-histórica. As Arqueologias surgidas no Velho Mundo estudavam a civilização européia e suas origens,
voltavam-se para as próprias sociedades em que se inseriam. Nos Estados Unidos, surgia uma disciplina
voltada para aqueles que não faziam parte da civilização ocidental, a Antropologia interessada no substrato
humano dos diversos povos. Para tanto, era necessário conhecer as línguas indígenas (Lingüística), as tribos
existentes (Etnologia) e aquelas extintas (conhecidas pela cultura material e estudadas pela Arqueologia préhistórica).
O estudo da cultura material recente das sociedades ocidentais demorou, portanto, a surgir e
quando o fez encontrou-se na encruzilhada de diversas origens e abordagens. Na Europa, o estudo
73
arqueológico destes últimos séculos, por vezes chamada de Arqueologia Pós-Medieval, continua a ser prática
minoritária, mas sempre vinculada à lógica narrativa das origens históricas e, com freqüência, na esteira de
um discurso das formas eruditas e das elites. Nos Estados Unidos, onde a disciplina se desenvolveu com
grande êxito, as raízes antropológicas da Arqueologia Histórica permitiram que se criassem narrativas críticas,
ainda que prevaleça a lógica das nobres origens da nação. As tensões epistemológicas no interior da
Arqueologia Histórica, nos Estados Unidos, refletem sua dupla face: por um lado, a suntuosidade material da
civilização euro-americana forma a base de uma narrativa dominante conservadora e que justifica o domínio
do mundo. Por outro lado, ao poder voltar-se sobre si mesma como se estudasse uma outra humanidade, à
maneira da Antropologia, podem surgir os conflitos, as maiorias silenciadas, a materialidade da opressão e da
resistência.
Neste contexto mais amplo, a Arqueologia Histórica brasileira não deixa de compartilhar
das aporias e contradições inerentes a este campo de pesquisa. Na origem da Arqueologia Histórica no Brasil,
está o patrimônio, bem material de alto valor monetário e eo ipso símbolo da vitória da apropriação do
trabalho alheio. Patrimônio é aquilo que poucos têm, é o cabedal a ser passado de pai para filho, de
proprietário a proprietário, apanágio de poucos. Deste sentido jurídico de patrimônio deriva o uso cultural do
termo. Trata-se, pois, de bens que demonstram a proprietários e não proprietários seu devido lugar na ordem
social. Também em nosso meio, pois, a disciplina surge como reforço material de narrativas hegemônicas,
ainda que os discursos dominantes sejam diversos daqueles prevalecentes nos Estados Unidos ou na Europa.
Para uns o individualismo capitalista da América, para outros a tradição aristocrática européia, enquanto no
Brasil as narrativas dominantes fundam-se no patriarcalismo escravista. Nos Estados Unidos, a Arqueologia
constrói ou desconstrói um individualismo capitalista, na cultura material quotidiana de capitalistas ou de
trabalhadores, à porcelana de aparato se opõe a cerâmica dos operários, a grande arquitetura erudita à
construção vernacular. Uns falam da grandeza dos antepassados, outros ressaltam as lutas dos humildes
trabalhadores. Na Europa, ao culto à tradição aristocrática, opõe-se o quotidiano de camponeses e
trabalhadores. No Brasil, não há individualismo capitalista nem tradição aristocrática que resistam à
escravidão e à exclusão social de amplas maiorias, ademais heterogêneas ao extremo: de negros a indígenas,
de pobres imigrantes a judeus errantes, de sertanejos a seringueiros.
74
As conseqüências epistemológicas dessas particularidades brasileiras não podem ser
subestimadas. A ciência periférica caracteriza-se pela importação de discursos dos centros hegemônicos e,
neste caso, como encontrar o individualismo burguês ou a tradição aristocrática, os camponeses ou os
operários, tais como aparecem nos estudos da Inglaterra e da Nova Inglaterra? Os discurso dominante de
elogio da tradição ou do individualismo burguês adapta-se mal aos trópicos, artificial quando aplicado a
sociedade tão pouco burguesa ou aristocrática sensu stricto. O contra-discurso, por sua parte, não pode
inventar, senão de forma caricata, a resistência pelo consumo capitalista, como se faz nos Estados Unidos,
nem propugnar a criação de uma consciência de classe no quotidiano das lutas fabris e camponesas, como no
Velho Mundo. Os sujeitos sociais fragmentados da Arqueologia Histórica no Brasil são mais ambivalentes e
contraditórios, a começar de uma elite patriarcal predatória e truculenta, pouco instruída, infensa a qualquer
liberdade: pouco aristocrática e em nada burguesa, a despeito do uso de porcelana e perfumes que, alhures
seriam sinal de uma coisa ou de outra. Do outro lado, os sujeitos são heterogêneos por definição: indígenas,
negros, mulatos, libertos, pobres, caboclos, sertanejos, num elencar sem fim de lutadores que não eram
tampouco indivíduos como seus congêneres dos centros hegemônicos americanos e europeus. Não é por acaso
que a Arqueologia Histórica engajada e pública volta-se, precisamente, para resgatar as vozes, os vestígios e
os direitos de nativos, negros e de todos os outros excluídos das narrativas dominantes. Essas tendências, cada
vez mais importantes no contexto mundial, tornam-se, da mesma forma, mais e mais conhecidas e praticadas
no Brasil, inserindo nossa Arqueologia nas práticas internacionais.
Referência:
Funari, P.P.A., Hall, M., Jones, S. (eds). 1999 Historical Archaeology, Back from the edge. Londres,
Routledge, 1999.
A coleção de ânforas do MAE-USP: vasos e inscrições29
Pedro Paulo A. Funari
29
Artigo publicado em inglês, MAE-USP amphora collecton: vessels and incriptions, Revista do Museu de
Arqueologia e Etnologia, 11, 2001, 275-282. Traduzido do original em inglês por Pedro Paulo A. Funari.
75
Ânforas eram uma importante forma de comércio no mundo antigo. Eram usadas para o transporte de
líquidos, normalmente vinho, azeite e salações. Eram usadas, em primeiro lugar, como recipientes de
abastecimento e comércio a longa distância. As ânforas fornecem-nos evidência direta da movimentação de
alimentos, algo importante tanto por razões econômicas e culturais. O estudo desses vasos torna-se mais fácil,
também, pela existência de um grupo substancial de informação epigráfica, pois muitas ânforas possuíam
inscrições incisas nas ânforas antes da cocção e/ou inscrições pintadas depois do cozimento (Peacock e
Williams 1986: 2). Ânfora, em grego "um vaso para transporte com duas alças" (Funari 1987), foi usado, pela
primeira vez, na Palestina, no século XV a.C. O vaso cananeu foi exportado para fora da região, logo
alcançando a Grécia. A forma bicônica do vaso cananeu foi usado nos períodos minóico e micênico, mas a
Grécia não adotaria a forma típica da ânfora até o século VII a.C. Ânforas de diferentes cidades
desenvolveram formas próprias, o que permitia sua fácil identificação (cf. Funari 1985 a).
As alças das ânforas gregas eram, com freqüência, estampilhadas, referindo-se a fazendas produtoras,
nomes de éforos e meses, sendo certificados de capacidade, garantia de peso dos conteúdos para cobrança de
impostos e para informação ao consumidor (Grace 1949). A evidência dos selos indica que as ânforas de
Rodes e Cnidos foram exportadas desde essas cidades até colônias e assentamentos no Mediterrâneo. Cidades
e comércio dos gregos na sul da Itália e na Sicília levaram ao desenvolvimento, em meados do IV século a.C.,
das chamadas ânforas greco-itálicas (Will 1982). A pasta da maioria das ânforas costuma ser simples, com
inclusões de minerais e pedras. Vasos grandes eram, em geral, construídos em partes, mas os pequenos eram
feitos de uma só vez. Todas as ânforas precisavam ter suas bocas fechadas, sendo usuais os tampões vegetais
ou de argila.
Os estudos anfóricos desenvolveram-se desde o século XIX mas, em grande escala, a partir da
década de 1970 (Funari 1985b). As principais áreas de especialização são a classificação e tipologia,
petrografia e epigrafia, de tipos específicos de ânforas. O estudo das ânforas tem sido importante para a
interpretação econômica e social do mundo antigo, na medida em que as ânforas fornecem uma pletora de
dados sobre a economia, sociedade, hábitos e cultura antigos. As ânforas dão informações únicas sobre temas
76
como a movimentação de mercadorias e os hábitos culturais, relacionando-se à identidade cultural. Os estudos
anfóricos contribuíram para um melhor conhecimento da economia do mundo antigo (Garlan 1986: 7), em
particular, graças aos catálogos de olarias (Empereur e Picon 1986), de inscrições (Empereur 1982; Empereur
e Guimier-Sorbets 1986; cf. Funari 1997: 85-86) e a outros esforços para publicar e estudar corpora (Funari
1994). Desta maneira, é possível tecer análises bem fundamentadas da sociedade antiga (Wellskopp 1998:
182).
O objetivo deste artigo consiste em fornecer um catálogo de ânforas e selos anfóricos no acervo do
Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. O Museu guarda duas ânforas greco-itálicas, uma ânfora grega e
cinco selos anfóricos, quatro de Rodes e um de Cnidos.
Selos de Rode se Cnidos
O vinho era uma importante mercadoria durante o período helenístico (Grace 1961: 14) e os vinhos
de Rodes e Cnidos eram exportados em quantidade, por serem baratos. Esses vinhos eram importados em
muitos mercados, sendo de Cnidos 65% das mais de 40 mil selos de ânforas encontrados em Atenase ródias
mais de 85% dos selos anfóricos de Alexandria. Em Delos, selos de Cnidos eram muito comuns (mais de
60%) e os de Rodes não eram poucos (mais de 20%). Alcançavam também os mercados da península itálica
em quantidade. A maioria das ânforas não era estampilhada e é difícil saber a proporção de estampilhadas
para não estampilhadas. Em geral, selos ródios e de Cnidos apresentam dois nomes, um que se refere ao
proprietário e outro a um magistrado epônimo, datando a ânfora e o vinho. As ródias costumavam possuir
dois selos, no topo de cada alça, com os seguintes dados: uma data dada pelo nome do magistrado epônimo
(epi+nome no genitivo), nome do mês ródio (depois de 275 a.C.), outro nome no genitivo, que se refere, com
probabilidade, ao produtor autorizado. O selo é circular, com o símbolo da cidade, uma rosa, com outras
imagens também possíveis (Grace 1961: 12; Grace e Savvatiano-Petropoulakou 1970: 279, 293; Van der
Werff 1977: 34; Debidour 1979: 271). Selos de Cnidos levam o nome de um magistrado e de um produtor
autorizado (Grace 1961: 12). Estampilhas de ambas as cidades mudam após 146 a.C., quando os romanos
introduziram os nomes de dois funcionários controladores (Grace 1961: 20).
77
Catálogo de selos
1.
e....a
daliou
Tamanho do selo: 5,0 x 1.8 cm.
Forma: retangular
Pasta: marron.
Data: depois de 275 a.C.
Número de tombo: MAE-USP 64/11.18, doado pelo governo italiano.
Área de produção: Rodes.
Local de achado: Itália.
Descrição do fragmento: alça de ânfora ródia. O diâmetro do lábio é de cerca 12,8 cm e o ângulo do selo em
relação ao pescoço é de 21 graus (Fig.1).
A referência ao mês ródio dalios, no genitivo, indica que o selo foi produzido depois de 275 a.C.,
quando os meses foram introduzidos nas ânforas ródias.
2.
[a]ris[to]klaeus
Segunda marca: P (1 x 1 cm)
Tamanho: 3,2 cm.
Forma: circular.
Pasta: cinza.
Data: início do segundo século a.C.
Número de tombo: MAE-USP 64/11.32, doado pelo governo italiano.
Área de produção: Rodes.
Local de achado: Itália.
78
Descrição do fragmento: alça de ânfora ródia. O diâmetro do lábio era de cerca 11,6 cm. E o ângulo em
relação ao colo de 21 graus (Fig.2).
O selo refere-se ao produtor ródio Arístocles, ativo nos últimos cinqüenta anos anos do domínio
romano, o que permite datar o selo na primeira metade do século II a.C.
3.
[s]o[kr]ateus
Tamanho: 3,4 cm.
Forma: circular.
Pasta: cinza, com superfície esbranquiçada, avermelhado no centro.
Data: entre 275-180 a.C.
Número de tombo: MAE-USP 75/1.41, doado por U.T.B. Meneses.
Área de produção: Rodes.
Local de achado: Delos.
Descrição do fragmento: alça ródia. O diâmetro do lábio era de cerca 13,4 cm. e o ângulo da alça em relação
ao colo é de 15 graus (Fig. 3).
Conhecemos dois produtores ródios chamados Sócrates, um ativo entre 275 e 180 e outro entre 146 e
fins do século primeiro. Considerando o ângulo da alça, propõe-se uma data mais antiga (Grace 1952: 530;
Grace e Savvatianou-Patropoulakou 1970: 302).
4.
Epitpatrophan
Panamou
Tamanho: 3,9 x 1,9 cm.
Forma: retangular.
Pasta: cinza, esbranquiçado na superfície, avermelhado ao centro.
Data: entre 220 e 180 a.C.
79
Número de tombo: MAE-USP 75/1.42, doado por U.T.B. Meneses.
Área de produção: Rodes.
Local de achado: Delos.
Descrição do fragmento: alça ródia, ângulo da alça em relação colo de 11 graus (Fig. 4).
Um produtor ródio de nome Pratophanes é bem conhecido entre 220-180 a.C. (Grace 1952: 529;
Grace e Savvatianou-Petropoulakou 1970: 294).
5.
Agathinou
Knidin
Ânfora
Tamanho: 5,6 x 1,6 cm.
Forma: retangular, com um desenho de ânfora de Cnidos.
Pasta: avermelhada.
Data: meados do século II a.C.
Número de tombo: MAE-USP 75/1.43, doado por U.T.B. Meneses.
Área de produção: Cnidos.
Local de achado: Delos.
Descrição do fragmento: alça de ânfora de Cnidos. O ângulo da alça em relação ao colo é de 10 graus (Fig.5).
O produtor Agathinos estava ativo antes e depois da intervenção romana de 146 a.C. (Grace 1952:
530; Grace e Savvatianou-Patropoulakou 1970: 294).
Catálogo de ânforas vinárias
1.
Ânfora greco-itálica
Tamanho: altura, 40 cm; diâmetro, 14 cm.; colo, 7 cm., diâmetro de 8,5 cm.; largura do corpo, 21 cm.
Forma do vaso: piriforme.
80
Pasta: cinza.
Data: 350-250 a.C.
Número de tombo: MAE-USP 64/9.5, doado pelo governo italiano.
Área de produção: Itália.
Local de achado: Castiglioncello (Livorno, Itália).
Descrição do vaso: lábio triangular, colo cilíndrico e ombro marcado, alças ovóides ligadas abaixo do lábio e
no alto da pança, corpo piriforme, com ponta curta e maciça (Fig.6).
2.
Ânfora greco-itálica
Tamanho: altura, 48 cm.; diâmetro, 12 cm.; alça, 12 cm., diâmetro, 8,4 cm., largura do corpo, 19,8 cm.
Forma do vaso: piriforme.
Pasta: marron.
Data: 350-250 a.C.
Número de tombo: MAE-USP 64/9.6, doado pelo governo italiano.
Área de produção: Itália.
Local de achado: Toscanella, tumba dos Velinii (Itália).
Descrição do vaso: lábio triangular, colo cilíndrico, ombro marcado, alças ovóides ligadas abaixo do lábio e
ao alto da pança, corpo piriforme com ponta curta e maciça.
3.
Ânfora grega (fragmento)
Tamanho: altura, 69,5 cm; diâmetro do colo, 12 cm; altura da ponta, 10,5 cm.
Forma do vaso: corpo cilíndrico.
Pasta: avermelhada.
Data: séculos V-IV a.C.
Número de tombo: MAE-USP 64/11.3, doado pelo governo italiano.
Área de produção: Grécia.
Local de achado: Palermo, necrópole púnica (Itália).
Descrição do vaso: corpo cilíndrico com ombro arredondado e alças compridas, ponta curta (Fig. 8).
81
As ânforas greco-itálicas também são conhecidas como Republicaine 1, Lamboglia 4 e Peacock e
Williams classe 2 (Peacock e Williams 1986: 84-85; crítica do termo 'greco-itálica' em Manacorda 1986). As
ânforas greco-itálicas são, a um só tempo, greco-helenísticas e romanas e são o resultado do encontro dos
mundos romano e helenístico e da expansão dos mercados de produtos de consumo de massa. Os objetos
comercializados tornaram-se estandardizados e as ânforas vinárias foram produzidas em várias partes do
Mediterrâneo no período entre o fim do quarto século a.C. e meados do segundo século a.C. (Will 1982). As
duas ânforas greco-itálicas do MAE-USP representam dois padrões diversos, ambos incluídos entre os
recipientes menores desse tipo de ânfora.
Conclusões
As poucas ânforas e estapilhas armazenadas no MAE-USP constituem uma pequena amostra do
artefato arqueológico mais encontrado no Mediterrâneo. Os selos provêm de cidades gregas e são uma clara
indicação da importância, durante o período helenístico tardio, do controle municipal da produção e comércio
de vinho. Revelam a importância das instituições políades até a intervenção romana em 146 a.C. A ânfora de
estilo grego em contexto púnico é uma indicação de que, a despeito das rivalidades, o comércio de vinho era,
desde tempos antigos, fator de contatos culturais. As ânforas pan-mediterrâneas de tipo greco-itálico
representam uma nova fase no desenvolvimento do comércio e da manufatura, produzidas em muitas áreas no
Mediterrâneo, com volumes estandardizados. Testemunham as mudanças econômicas, sociais e culturais no
Mediterrâneo e, com sua materialidade, essas ânforas são evidências únicas da vida social no mundo antigo.
Agradecimentos
Agradeço aos seguintes colegas: Jean-Yves Empereur, Haiganuch Sarian, J.A. Van der Werff, Elizabeth
Lyding-Will, David Williams e Célia Marai Cristina de Martini. As idéias são minhas e sou o único
responsável.
82
RESUMO: O Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo possui um acervo de cinco
selos anfóricos e três ânforas. Após uma introdução geral, há um catálogo de selos (quatro de Rodes e um de
Cnido) e de ânforas (duas greco-itálicas e uma grega). O artigo conclui-se com um comentário sobre estas
ânforas como evidência arqueológica.
UNITERMOS: Ânforas – selos – Rodes – Cnido – ânforas greco-itálicas.
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CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROFISSIONAL DE MUSEU E SUA FORMAÇÃO
Pedro Paulo A. Funari30
A multiplicidade de situações dos museus pode parecer, à primeira vista, um
empecilho a qualquer generalização sobre a formação do profissional de museu. De fato, há
museus científicos, como os há de pequenas localidades, há museus de arte, como os há de
rua. Nesta variedade de situações, multiplicam-se os profissionais de museus, de curadores
a restauradores, de educadores a biólogos. E pur, há algumas questões genéricas que se
referem ao cerne da atividade em museus, aquilo que diz respeito à essência da ação
patrimonial. No umbral do terceiro milênio, os desafios dos profissionais de museus podem
ser resumidos a cinco grandes temas, interrelacionados:
30
O PLURALISMO;
Livre-Docente do Departamento de História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Estadual de Campinas, C. Postal 6110, Campinas, 13081-970, SP, fax 55 19 289 33 27,
[email protected].
85
-
A RELAÇÃO COM A COMUNIDADE NA CRIAÇÃO DE CONHECIMENTO DE
INTERESSE SOCIAL;
-
A RELAÇÃO NECESSÁRIA ENTRE O PROFISSIONAL DE MUSEU E AS
CIÊNCIAS;
-
A LUTA PELO SABER CONTRA AS HIERARQUIAS BUROCRÁTICAS.
Os museus representam o mundo como parte da ordem social (Fyfe 1998: 326),
sua taxonomia refletindo, de forma mediada, a táksis da própria sociedade. Não é casual
que uma palavra-chave na organização dos museus seja, precisamente, taxonomia,
“ordenação segundo uma regra”31, pois tudo no museu é classificado e ordenado. Os
setores, da reserva técnica à exposição, cada um subdividido e classificado. Esta concepção
acompanha os museus ab origine, desde sua própria fundação, refletindo a própria
hierarquia social na qual surgiu. No entanto, no umbral do terceiro milênio, mais do que
uma única ordenação e taxonomia, o mundo pós-moderno caracteriza-se pelo mais radical
pluralismo32, programa explícito da proposta do Aktives Museum. O tema central do
trabalho didático do Museu Ativo consiste em transformar os consumidores de
conhecimento em produtores. As visitas guiadas deveriam, sempre que possível, serem
dissolvidas em participação ativa, um meio para que a confrontação com o mundo material
gere o sentimento inesperado, a indignação e a curiosidade (e.g. Fahmel-Beyer 1993). Em
uma sociedade aberta, há uma pluralidade de opiniões e deveria, pois, haver diferentes
relatos do mundo material exposto no museu (Baker 1991: 58-59). Este pluralismo implica
Cf. Platão, Leis, 925b, katà tèn táksin tõu nómou, “segundo a ordenação de uma regra”. Taxonomia deriva
de táksis, “arranjo”, do verbo tássein, “arranjar”, originalmente, os soldados para uma batalha; cf. Heródoto,
8, 86: katà táksin, “ordem de batalha”.
32
Cf. Lorenz (1998: 619): Postmodernismus ist deshalb immer eine radikale Version des Pluralismus (ênfase
no original).
31
86
em subverter o discurso da autoridade que prevalece na exposição de uma única versão, a
verdade dos que controlam o poder (Potter n.d.:3-7).
O pluralismo não se restringe à exposição e à ploliferação de narrativas33,
mas estende-se às proprias divisões do saber no interior do museu. A segmentação dos
setores reproduz uma separação artificial entre os profissionais do museu, como se fosse
possível dissociar exposição e reserva, programa educativo e pesquisa de campo, reflexão
pedagógica e científica, reproduzindo dicotomias estranhas à prática crítica. Não se trata de
adorar o acervo, mas pensar sobre ele (Potter n.d.: 39)34. Não se trata de isolar especialistas,
cujo conhecimento hermético deveria ser preservado, mas é no confronto de perspectivas
que se produz conhecimento (Funari 1997, com bibliografia anterior). Assim, no interior da
instituição museu, nada justifica a falta de diálogo entre os diversos profissionais, senão a
acomodação. A produção de conhecimento35 implica na disposição a aprender com os
outros, sejam os profissionais colegas de instituição, seja o público em geral. Ainda “é
tempo de fazer museu com a comunidade e não para a comunidade”, como dizia, há quinze
anos Waldísia Rússio (1984: 60). A busca de um museu gerido com a comunidade é uma
tarefa que implica romper as
barreiras
disciplinares
e as
formalidades
das
compartimentações acadêmicas (Oliveira 1999), bem como superar o modelo do museu
desligado da sociedade, mera “Torre de Observação”, como propõe uma abordagem elitista
Keine Ausstellung ohne Erzählungen, como se propõe na concepção do Museu Ativo (“não há exposição
sem narrativas).
34
Cf. Potter (n.d.: 39): If we can encourage ourselves (sc. museum professionals) and our visitors to see the
objects in our museums as ‘fragile’ – as culturally constructed and a culturally contested rather than as selfevidently important and in possession of inherent meanings – then perhaps we all will begin to treat those
objects better, thinking about them rather than worshiping them.
35
Cf. Haiganuch Sarian (1999:34): “Produção e reprodução do saber se expressariam nos Museus
Universitários, por meio de responsabilidades inerentes à natureza de um Museu, de tal modo que os
Professores destas instituições fossem igualmente Curadores – Curator-Professors -, para lembrar a
designação americana”.
33
87
(Meneses 1993: 218). Para produzir conhecimento impõe-se interagir com o educando
(Giroux & McLaren 1986: 234) e o público está muito mais aberto a essa interação do que,
normalmente, se supõe (McKee & Thomas 1998: 7).
A comunidade não é, por sua parte, uma unidade, um conjunto homogêneo.
Este modelo normativo de cultura já tem sido bastante criticado e não se pode idealizar a
comunidade (Jones 1997, com literatura a respeito), composta de heterogêneos interesses.
No entanto, pode afirmar-se que, de maneira sistemática, são excluídos dos processos de
decisão, na sociedade e, por conseqüência, nos museus, todos os que não estão no poder, de
favelados a judeus, de negros a nordestinos (Jones 1993: 203-15). Esses diversos públicos
compõem uma comunidade também ela plural e pouco afeita a generalizações que possam
dar conta de sua heterogeneidade. Os profissionais de museu não podem ignorar essa
diversidade, nem deixar de reconhecer no museu um instrumento a serviço dos que estão
fora do poder (Vargas & Sanoja 1990: 53), sob a pena de continuarem a ser servos desse
mesmo poder (Funari 1996: 18). Para que o profissional de museu consiga atingir esse
público e com ele interagir, “é necessário tomar o seu universo cultural como ponto de
partida, permitindo que ele se reconheça como possuidor de uma identidade cultural
específica e importante”, nas palavras de Paulo Freire (em entrevista a McLaren 1988:
224). Nessa diversidade da comunidade, destaque-se o público infantil, tanto por se tratar
dos futuros cidadãos, como pela necessidade de tomar-se em conta o caráter lúdico a ser
adotado pelo museu (Oliveira 1999).
O profissional de museu sempre tem uma pergunta em mente: preservar para
quê? Há alguns anos, quando de uma homenagem póstuma ao obstinado defensor do
88
patrimônio e humanista Paulo Duarte, Maria Cristina Bruno (1991) evocava uma bela
imagem sobre a preservação:
“Patrimônio, para Paulo Duarte, era visto com muita abrangência. Sinônimo
de qualidade de vida, pesquisa e ensino, erudito e popular, antigo e moderno e,
acima de tudo, preservação para a informação”.
Informação, criação de consciência, ação no mundo, transformação, eis as
metas da preservação (Funari 1992/3:18-19). Seria, até mesmo, o caso de propor que se
deve preservar para transformar a sociedade, pois o conhecimento não é apanágio de classe
ou grupo e qualquer museu pode levar à reflexão crítica. Abrir a cabeça, talvez a meta
maior de um museu (Hudson 1994: 55). A começar por uma exposição que se contraponha
à alienação da moda e à descontextualização derivada da mercantilização generalizada dos
objetos em nossa sociedade pós-moderna (Durrans 1992: 14), que contribua para a
autonomia do público (aquilo que os ingleses tão bem definem como empowerment, cf.
Giroux & McLaren 1986: 238). O passado, conservado no Museu em forma de patrimônio,
serve ao presente (Luc 1986: 118). Mas não é apenas na exposição, que se busca
transformar, nem só na superação das barreiras entre os setores do museu: há que se
insurgir contra a separação entre o museu e as ciências, divisão oitocentista artificial e
pouco afeita à atual busca de integração das disciplinas36.
36
Ainda que alguns dos grandes museus brasileiros, voltados para as Ciências Naturais, no século XIX,
tenham atuado na pesquisa científica (cf. Lopes 1997).
89
As Wissenschaften surgidas na criação da moderna Universidade, em fins do
oitocentos, acostumaram-se a relacionar-se com o museu e seus profissionais de forma
instrumental e analógica à taxonomia social. Assim como há os que pensam e os que
trabalham, os que mandam e os que obedecem, assim, também, o cientista se relaciona com
o museu. Como se o museu fosse um local a serviço dos verdadeiros cientistas, como se os
profissionais de museu fossem servos, à maneira dos gregos, definidos como instrumentos
a serviço dos cientistas. No entanto, os cientistas que trabalham em museus são, também,
profissionais de museus! A dicotomia, de toda forma, tende a permanecer, sob o manto
diáfano da clivagem entre os pesquisadores científicos e os outros profissionais. Nem todos
os museus possuem cientistas em seus quadros, ainda que todos tenham, por definição,
profissionais de museus. Em qualquer dos casos, a clivagem existe, seja interna, seja
externa, ao corpo funcional do museu. Esta dicotomia separa dois aspectos indissociáveis
do conhecimento: teoria e prática, mundo das idéias e prática quotidiana. O conhecimento
científico é essencial, em especial naquilo que tem de propriamente científico, que é o
desafio às idéias recebidas e ao senso-comum, para vivificar o museu. Por outro lado, não
se pode esquecer que o museu pode fornecer um manancial de desafios práticos que apenas
podem servir para o avanço do conhecimento acadêmico (cf. Haas 1996: S1-S11; Jones
1993: 203).
Neste contexto mais amplo, como se pode situar a formação do profissional
de museu e qual museu será por ele criado?
Em primeiro lugar, há que se superar
concepções estreitas e rígidas do que seja e, principalmente, do que deva ser o museu. A
formação do profissional de museu não pode prescindir de um amplo e variado contato
com as ciências, em geral, e do homem, em particular. Um conhecimento crítico da História
90
dos museus pode ser o ponto de partida para a reflexão sobre os fundamentos pedagógicos
que devem estar subjacentes a uma educação patrimonial (Tamanini 1998). A formação
deste profissional não se pode furtar ao internacionalismo e ao cosmopolitismo, pois há
uma imensa experiência estrangeira , que vai dos eco-museus aos museus de rua, cujo
conhecimento é imprescindível.
A formação do profissional inclui um conhecimento, de primeira mão, das
diversas ciências
envolvidas com o patrimônio e os museus, tão numerosas que,
provavelmente, apenas uma amostra poderá ser estudada pelo futuro profissional de
museu37. Estas disciplinas seriam melhor agrupadas por grandes eixos, deixando, ainda,
que o estudante pudesse escolher áreas de maior interesse e vocação. Tendo em vista a
disparidade de situações, importante atenção deve ser dada à variedade de museus e ao seu
gerenciamento igualmente variado. O estágio torna-se, neste sentido, uma experiência
prática que permite ao estudante tomar contato com uma gama de instituições, de diferentes
tipos, do grande museu universitário ao simples museu local. O relacionamento com a
comunidade e as formas de interação com os grupos sociais também devem ser objeto de
atenção. A patrimonialização dos bens individuais e coletivos das comunidades insere-se na
dinâmica de integração do museu na coletividade e, para tanto, são necessários estudos
específicos, incluindo aspectos técnicos (como o registro de relatos orais e a preservação de
fotografias) e teóricos (como tudo que se refere à criação de memórias populares).
37
Museologia, História, História da Arte, Arqueologia, Antropologia, Etnologia, Biologia, Geografia,
Etnologia, Estudos da Cultura Material, Folclore, Geologia, Botânica, História Oral, Iconografia, Semiótica,
entre outras.
91
A legislação de proteção do patrimônio e tudo que diz respeito aos aspectos
jurídicos da preservação incluem-se no necessário cabedal do profissional de museu. Este
aspecto da sua formação conduz ao grande âmbito das implicações sociais do museu. Em
qual museu atuará o profissional? Este museu será o resultado da ação do próprio
profissional. No presente, os museus, como a própria academia, encontra-se eivada de
relações de poder, de estruturas burocráticas cuja finalidade, muitas vezes, pouco tem a ver
com o conhecimento e a sociedade38. Esta é uma situação que resulta de séculos de uma
estrutura social hierárquica, patriarcal, autoritária e voltada para a conservação do status
quo (cf. Funari 1996, com literatura). Naturalmente, os museus, como órgãos burocráticos
do Estado, em sua maioria, reproduzem estas relações iníquas e inibem tanto a reflexão
como a ação crítica. Os profissionais de museus, como também os cientistas, aliás, são
incentivados ao conformismo, à aceitação das verdades correntes, tão pouco verdades, mas
tão correntes. As estruturas burocráticas dos museus, ainda mais do que aquelas acadêmicas
stricto sensu, são infensas ao mérito e à dedicação ao conhecimento e à sua socialização.
Isto se explica pela importância política, no sentido pequeno da palavra, associada aos
cargos, a começar da direção das grandes instituições de Estado. Há até, como se sabe,
museus criados para indivíduos dirigirem! Além deste caráter político da direção, e como
decorrência, seguem-se cargos, chefias e eminências pardas que vicejam nos museus,
naquilo que se chama de atividades de corredor e de bastidores. Não é de estranhar que,
ainda mais que na academia, nos museus a convivência pessoal seja tão pouco profissional.
Cf. M.C. Bruno, C. Rizzi e M.X. Cury (1999: 46): “apesar do grande esforço, muitos museus estão longe da
consciência do equilíbrio entre o cuidado com os acervos e a atenção com as expectativas das sociedades”.
38
92
Neste contexto, o profissional de museu deve, necessariamente, lutar pela
transformação do próprio museu, à luz do que se faz e discute no mundo, a este respeito,
mas, também, na interação com a comunidade que deve dar vida ao museu. Não se trata de
tarefa fácil, nem a luta se mostra ligeira. No entanto, cabe ao próprio profissional de museu,
já em atividade e, a fortiori, em formação, buscar a profissionalização da atuação no
museu. Isto implica atuar para que o mérito suplante o compadrio, a busca do conhecimento
supere a inércia burocrática que pode, senão matar o museu, inviabilizar sua efetiva função
científica e crítica. Para isto, impõe-se a instituição de um plano de carreira, baseado na
titulação, com hierarquias fracas e coletivos acadêmicos fortes, sempre a partir de critérios
científicos. Para o profissional de museu em formação, este é um aspecto essencial: a
deontologia associada à prática em museus. A dura realidade dos museus pode induzir ao
desânimo e ao conformismo, se não houver, na formação do profissional, um projeto
crítico e acadêmico que permita a transformação da própria instituição. Neste sentido, a
situação do futuro profissional de museu assemelha-se muito àquela do futuro professor,
pois, em ambos os casos, apenas uma luta pela transformação da estrutura burocrática e de
seus objetivos permite antever um futuro criativo.
A formação do profissional de museu, portanto, não se restringe ao saber
técnico, nem, menos ainda, ao domínio das artimanhas do micro-poder. O desafio que se
impõe é formar profissionais que sejam autônomos, críticos, infensos à inercia, propensos à
luta pela transformação. Aparente paradoxo, que se busque a transformação, em uma
profissão voltada para a preservação. No entanto, para que se possa, efetivamente,
preservar, é necessário transformar uma realidade que contribui para destruir o patrimônio.
93
O primeiro e decisivo passo é formar profissionais autônomos, independentes e
transformadores do mundo.
AGRADECIMENTOS
Agradeço à Professora Maria Cristina Bruno, cujo convite para participar
deste encontro sobre “O Profissional de Museu no umbral do Terceiro Milênio” incentivoume a escrever este texto. Devo mencionar ainda os seguintes colegas: Dione Bandeira,
Brian Durrans, Bernd Fahmel-Beyer, Siân Jones,
Parker B. Potter, Jr., Nanci Vieira
Oliveira, Brian W. Thomas, Elizabete Tamanini. As idéias apresentadas são, naturalmente,
de responsabilidade exclusiva do autor.
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96
Desaparecimento e emergência dos grupos subordinados na
Arqueologia brasileira.*
Pedro Paulo Funari
Departamento de História,
IFCH/UNICAMP, C. Postal 6110, Campinas, SP, 13081-970,
[email protected].
The disappearance and emergence of subordinate people in Brazilian archaeology
Abstract
This paper explores the ways subordination has been sidelined in the archaeological interpretation of the
evidence, in both prehistoric and historical archaeologies, and the recent, less restrictive, developments in the
discipline in Brazil and how national identity has been shaped by material culture study and display. It deals
with an Imperial discourse on the origins of civilisation, followed by the demise of Imperial archaeology and
the early twentieth century and the scholarly archaeology from the 1940s.
Key words: archaeology and subordination; Imperial discourse; scholarship.
Resumo
Este artigo trata das maneiras como a subordinação foi deixada em segundo plano na interpretação da
evidência, tanto na Arqueologia História como Pré-Histórica, e das mudanças recentes, menos restritas, na
disciplina no Brasil e como a identidade nacional foi marcada pelo estudo da cultura material e sua
apresentação. Trata-se do discurso imperial sobre as origens da civilisação, seguido de um estudo do ocaso da
Arqueologia imperial e das primeiras décadas do século XX, assim como da Arqueologia acadêmica, a partir
da década de 1940.
Palavras chave: Arqueologia e subordinação; discurso imperial; academia.
*
Originalmente publicado em (...). Versão portuguesa de Fábio Adriano Hering; revisado pelo autor.
97
A Arqueologia tem uma longa tradição no Brasil, tendo iniciado como uma prática acadêmica logo
após a independência, em 1822, sob a tutela financeira da Corte Imperial. A transferência da Corte
Portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808, como uma estratégia diante das conquistas napoleônicas, acabou
resultando na implantação, em terras tropicais, de uma elite típica do Antigo Regime europeu, que impôs um
discurso imperial a respeito das origens nobres do poder colonial. Indivíduos subordinados, como a maioria
da população escrava, estiveram fora deste discurso sobre a origem (Ursprung) e as raízes civilizadas dos
“bravos” conquistadores portugueses. Depois da Independência, esta mesma elite dominante portuguesa
continuou mantendo sob seu controle os arcanos do poder imperial e aditou ao seu discurso uma imagem
idealizada dos nativos sul-americanos, começando desta forma, em um certo sentido, a Arqueologia Préhistórica brasileira. Os africanos continuaram ausentes no discurso arqueológico, enquanto que os indígenas
desempenharam um papel subordinado. Apenas a partir da década de 1890, e com o fim da escravidão e da
monarquia, é que o discurso imperial passou paulatinamente a veicular discursos menos homogeneizantes a
respeito do passado. Mesmo assim, levaram ainda algumas décadas para que a Arqueologia se tornasse uma
disciplina acadêmica. Estudos sobre os “nativos” ou sobre a pré-história apenas ganharam proeminência
depois da Segunda Guerra Mundial, quando uma Arqueologia de traço humanista buscou enfatizar a
importância de se ver os indígenas como seres humanos, possuidores de culturas dignas de serem estudadas e
preservadas. Tal abordagem foi silenciada pelo longo governo ditatorial (1964-1985), e mais uma vez os
indivíduos subordinados foram suprimidos do discurso arqueológico. Nas últimas duas décadas, entretanto,
tem havido um incremento nas atividades arqueológicas e, pela primeira vez, os grupos subordinados, tanto os
de descendência africana ou miscigenada como os de extração social mais pobre, têm aparecido nos discursos
arqueológicos. É com relação a este contexto que se delineia o objetivo principal do presente artigo: investigar
como tem se apresentado a questão da subordinação na interpretação arqueológica brasileira – tanto no
discurso da Arqueologia pré-histórica como no da histórica – avaliando, então, de que maneira os
desenvolvimentos mais recentes, e menos excludentes, desta disciplina, no Brasil, tem contribuído para mudar
este panorama.
Um discurso Imperial nas origens da civilização
O Brasil foi governado por Portugal, nos moldes de um Estado Absolutista, desde o século dezesseis
até a independência (Handelmann 1987:826). A base do sistema social era, então, escravista e senhorial, com
uma enorme influência dominadora das antigas linhagens patriarcais dos proprietários de terra (Velho 1986).
Tal estado de coisas foi mais marcado no início da colonização, quando se formou, então, um sistema social
altamente hierarquizado (Da Matta 1991: 399), dominado, principalmente, pelos grupos senhoriais. Os
grandes proprietários de terra governavam como verdadeiros senhores despóticos, cada qual como um pater
famílias em seus “domínios feudais” particulares e agindo, conjuntamente, como uma elite autocrática (Arraes
1972: 23-26). A independência, em 1822, entretanto, não provocou mudanças significativas na estrutura
social em geral, e a Família Real Portuguesa continuou a governar o Brasil até 1889. Embora fosse um recém
fundado Estado nacional independente, o Brasil manteve a mesma elite dirigente autoritária de seu passado
colonial, o que se refletiu no próprio Estado: definido não como uma República, mas como um Império. Desta
forma, enquanto outros Estados nacionais modernos eram construídos como novas nações, as elites brasileiras
buscavam inspiração em organizações políticas pré-modernas, como o velho Império português e os Impérios
Britânico e dos Habsbugo. Distintamente dos outros novos países independentes, como nas repúblicas
fundadas sobre o princípio da igualdade de direitos entre todos os cidadãos (tendo em conta, entretanto, que
tal princípio excluísse os não-cidadãos, como as mulheres e os escravos), no Brasil, foram preservadas as
distinções, obedecendo a uma hierarquia fundada na posição social ou na titulação nobiliárquica dos
indivíduos.
O discurso imperial, entretanto, é inaugurado mesmo antes da independência, quando a Corte
portuguesa (tendo vindo para o Rio de Janeiro para fugir do perigo representado pelo avanço de Napoleão)
estabeleceu um Museu Real na então capital do Império, em 1818. O Rio se tornara, dessa forma, por abrigar
a elite dirigente portuguesa, a capital do Império Luso, que se estendia desde sua porção americana até a
África e a Ásia. O Museu Real, por sua parte, buscava, de uma forma similar ao Museu Britânico, ser um
museu do poder colonial, reunindo material dos territórios portugueses na Europa, na América, na África e na
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Ásia. Tal preocupação foi explicitada em um documento, publicado logo após o estabelecimento do museu:
“Instruções para os viajantes e os funcionários civis nas colônias a respeito dos procedimentos para o
recolhimento, conservação e remessa de objetos da História Natural”, que instruía os governadores de cada
província brasileira a organizar coleções de todos os produtos de seus territórios e enviá-los para o Rio de
Janeiro. Estas instruções eram igualmente válidas para todos os governadores das possessões portuguesas,
inclusive os do próprio território português na Europa. O Museu também estabeleceu contatos oficiais com
seus parceiros nas principais capitais coloniais, principalmente Paris e Londres (Lopes 1997: 25-71).
A independência não alterou o caráter imperial tanto do discurso oficial quanto do Museu em si,
apesar de seu nome ter sido mudado para Museu Nacional. Em 1838, foi publicado o primeiro catálogo
completo do museu, a Lista de objetos reunidos no Museu Nacional desta Corte. É digna de nota a maneira
como o material foi dividido em seções: zoológica, botânica, mineral, de Belas Artes, e de Objetos
relacionados às artes, hábitos e costumes de diversos povos. Na seção de Belas Artes estavam incluídos
moedas, medalhões, esculturas, pinturas, mas também instrumentos de Física e máquinas. A categoria
“Objetos relacionados com diversos povos” incluía antiguidades egípcias e européias, assim como aquelas
relacionadas com os “povos ignorantes”: nativos da África, Ásia, Nova Zelândia, Ilhas Sandwich e Brasil.
Como Lopes (1997: 70) tem afirmado, embora os estudiosos fiquem atormentados com a presença de múmias
egípcias no Museu, a organização global do material foi inspirada pelos museus imperiais europeus, e
conseqüentemente os materiais egípcios e europeus eram incluídos como uma lembrança das origens nobres
das elites. A coleção de material “selvagem”, de diversas origens, por outro lado, era uma maneira de
reafirmar que não era mera coincidência o fato dos africanos serem escravizados e os nativos massacrados no
Brasil, pois este povos eram considerados como animais a serem domados. As coleções de História Natural
eram também um meio de enfatizar o poder da elite governante, por meio da acumulação e assimilação do
conhecimento. O Museu Nacional como um todo era, desta forma, um imenso discurso material a respeito da
exclusão de grupos subordinados – africanos, nativos, pessoas comuns – e uma exaltação do poder
discricionário da nobreza e das velhas classes senhoriais em geral.
O estabelecimento do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1838, deu à Arqueologia uma
nova presença oficial institucionalizada. As reuniões do Instituto tinham lugar no Museu Nacional, e as duas
instituições compartilhavam das mesmas preocupações. O ano seguinte à fundação do Instituto assistiu a
publicação do primeiro volume de seu periódico, a Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Também em 1839 houve uma “investigação arqueológica” na Pedra da Gávea, no Rio de Janeiro, em busca de
uma suposta inscrição “fenícia”. As investigações foram cuidadosamente registradas, e a expedição concluiu
que tais inscrições eram tão importantes quanto os hieróglifos egípcios ou as inscrições cuneiformes
mesopotâmicas (Langer 2000: 68). Como Ferreira observou (1999: 18), o Instituto buscou também produzir
seu próprio Champolion ou Schliemann, ao enviar um padre, o cônego Benigno José de Carvalho, com a
missão de descobrir cidades perdidas e inscrições. Ao mesmo tempo, os nativos brasileiros foram
gradualmente idealizados de acordo com a teoria do bon sauvage – como fossem heróis nacionais distantes,
que, na visão do Instituto, estavam já extintos. Desta forma, a Etnografia e a Arqueologia foram introduzidas
como disciplinas mutuamente implicadas, como parte do mesmo esforço na busca desta espécie idealizada de
nativo. Os estudiosos brasileiros estavam em estreito contato com as teorias arqueológicas então
desenvolvidas na Europa, principalmente na França e na Dinamarca, e, por várias décadas, a explicação mais
recorrente para a ocupação da América era que os nativos descendiam de povos bíblicos que, como o passar
dos anos, degeneraram no Novo Mundo.
A Arqueologia praticada no Instituto tem sido apropriadamente rotulada como “nobiliária”, dadas
suas umbilicais ligações com a elite brasileira, que usou o passado indígena, pré-histórico, em seu favor,
reclamando para si o legado cujos verdadeiros herdeiros eram, de direito, os povos de descendência nativa
(Ferreira 1999: 28). De maneira mais específica, uma mistura entre a teoria dos cataclismas de Cuvier e o
Criacionismo buscava então explicar o desaparecimento das antigas gerações de possíveis colonizadores
mediterrâneos que, pensavam os estudiosos do Instituto, teriam originalmente trazido a civilização para os
trópicos. Prováveis cataclismas é que teriam posto um fim a estas migrações transcontinentais, conduzindo a
uma degeneração das sociedades nativas, como podia ser provado por meio das evidências materiais dos
restos humanos e fósseis colecionados pelo Museu.
Os estudiosos do Império estavam, também, em estreito contato como os mais importantes teóricos
sociais do período, tais como Gobineau e Renan, e estavam afinados com o tom cada vez mais racista das
idéias do período. Cuvier, por sua parte, inspirou os intelectuais brasileiros com sua tese da suposta
inferioridade dos povos africanos:
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“a raça negra, é marcada pela cor escura, cabelo duro ou enrolado, crânio
comprimido e nariz achatado. A projeção das partes inferiores da face dos
indivíduos desta raça, assim como seus lábios grossos, aproximam-nos às
tribos dos macacos: que tem sempre permanecido no mais completo estado
de barbarismo” (Cuvier 1831:53).
Os asiáticos não eram avaliados de maneira muito mais positiva. Os semitas, por exemplo, eram descritos por
Renan como incapazes de desenvolverem habilidades intelectuais: “o pensamento abstrato é desconhecido
entre eles, e o metafísico, impossível. Em tudo neles há uma completa falta de complexidade, sutileza ou
sensibilidade” (1885: 13). Já para John Stuart Mill o Oriente era o reino do despotismo e da estagnação: “lá o
costume é a palavra final, em todos os assuntos; a justiça e o direito estão à mercê dele; ninguém, a não ser
um tirano intoxicado com o poder, cogita resistir ao argumento do costume” (Mill [1895] 1985: 136).
A maneira como a elite compreendia sua própria superioridade racial resultou em uma infinidade de
diferentes classificações, como ocorreu nos Estados Unidos, onde os protestantes anglo-saxões sustentaram
sua superioridade com relação a todos os outros grupos, principalmente no que diz respeito aos africanos, mas
também no que concerne aos mexicanos e aos católicos irlandeses (Patterson 1997: 112). Em outras palavras,
a Etnografia contribuiu para retratar o colonizado como um selvagem, cuja cultura deveria ser esquecida e ao
qual deveria ser ministrada a educação européia. Foi de acordo com estes termos que tanto a Arqueologia do
período quanto suas práticas correlatas forneceram uma maneira apropriada de mapear o passado das terras
colonizadas (Bahraini 1998: 168). Mesmo os críticos do capitalismo, como Karl Marx (e.g. 1978: 434),
aceitaram esta pintura geral da civilização ocidental, tomando-a em contraste com o suposto atraso do resto do
mundo (cf. Funari 1999a).
Neste contexto geral, a Arqueologia brasileira não foi muito mais excludente do que a prática
acadêmica geralmente levada a termo na Europa. A estrutura social brasileira, por outro lado, marcada pelo
modelo do Antigo Regime europeu, contribuiu sobremaneira para caracterizar de uma maneira singular este
discurso de exclusão, mas promovendo, em contrapartida, a detração da grande maioria dos habitantes do
país. Em outros lugares, os bretões, franceses e alemães eram considerados superiores aos bárbaros
estrangeiros, fossem eles semitas, chineses, indianos ou africanos. No Brasil, entretanto, não havia cidadãos
brasileiros, apenas nobres, antigas linhagens familiares, e uma imensa maioria da população dependente e
subordinada, formada por vários povos indígenas e pelo numeroso grupo dos descendentes de africanos.
O esgotamento da Arqueologia imperial e o início do século XX
As duas últimas décadas do Império (os anos 1870 e 1880) testemunharam o ápice das instituições
acadêmicas ligadas à Corte Imperial, tais como o Museu Nacional e o Instituto Histórico e Geográfico.
Durante este período, a Arqueologia desempenhou um papel central na formação da ideologia da Corte:
fundada em uma imagem ideal e enobrecida dos nativos, que, nas palavras do Diretor do Museu Nacional,
Ladislau Neto, estava “na iminência de desaparecer” (1889: 26). Durante o mesmo período, dois outros
museus foram estabelecidos nas províncias – o Museu Paraense (1866), em Belém do Pará, e o Museu
Paranaense (1876), em Curitiba. Ambos se voltavam para a coleção de artigos da História Natural, assim
como artefatos arqueológicos e etnográficos. O fim do regime levou a um declínio abrupto na abordagem
imperial para com o passado, tendo então ocorrido uma mudança do cenário de poder do Rio de Janeiro para
São Paulo. O Antigo Regime era uma coalizão de aristocratas das províncias, na sua maioria proprietários de
grandes plantações de base escrava, cujos interesses eram defendidos pela Corte, na cidade do Rio de Janeiro,
então capital do Império. A emancipação dos escravos em 1888 foi logo seguida pelo golpe republicano de
1889. Os militares foram influenciados pelo Positivismo e o novo centro econômico do país trasladou-se para
o Estado de São Paulo, ao Sul do Rio de Janeiro, que já vinha empregando, há algum tempo, o trabalho
assalariado nas plantações de café.
O então novo movimento republicano tem sido caracterizado como um regime oligárquico, pois o
país continuou a ser governado por uma ínfima minoria, que continuou a empregar os métodos tradicionais do
patronato, do favorecimento e da autoritária repressão das pessoas comuns. Ideologicamente, entretanto, as
novas elites não tinham interesse em manter o aspecto tanto do mundo da Corte quanto de suas representações
do passado. Enquanto que as elites imperiais preferiam retratar-se como uma mistura das antigas linhagens de
proprietários de escravos com as raízes nativas míticas, celebradas pela sua nobreza idealizada, os novos
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proprietários capitalistas, por sua parte, não tinham esse mesmo interesse pela nobreza, fosse ela européia ou
indígena. As novas elites rejeitaram as mais estimadas imagens criadas pelas velhas elites, para o espanto da
ainda orgulhosa elite da capital no Rio de Janeiro. Carlos Gomes, o renomado compositor de óperas de
Campinas, em São Paulo, foi um dos melhores representantes da abordagem de Corte nos anos finais do
Império. Ele compôs várias óperas em italiano, sendo Il Guarany a mais importante na popularização do mito
do “nobre índio”. Embora Gomes fosse de São Paulo, o novo regime ignorou seu trabalho e substituiu a
ideologia (Anschauung) do Estado Imperial (Ortiz 1985) por novas formas de cultura material que pudessem
simbolizar sua posição social e a dos grupos subalternos.
Nos últimos anos do Império, a Corte decidiu construir um monumento em São Paulo, às margens de
um regato, o Ipiranga, onde Pedro I teria proclamado a Independência do Brasil, em 1822. Depois do colapso
da monarquia, em 1889, as novas elites paulistas decidiram transformar tal monumento em um museu, o
Museu Paulista, que deveria ser, como posto em seus estatutos de 1894, “um museu sul-americano, voltado ao
estudo do reino animal, da Zoologia, da História Natural e da História Cultural do homem” (Regulamento
1894: 4). O estudioso alemão Herman von Ihering foi o Diretor principal do Museu de 1894 a 1915. Tendo
chegado ao Brasil em 1880, este estudioso trabalhou, antes de se tornar diretor do Museu Paulista, como um
explorador naturalista para o Museu Nacional. Ele organizou o Museu Paulista principalmente como uma
instituição de História Natural, mas também com seções dedicadas aos artefatos históricos e às “coleções
etnográficas e arqueológicas relacionadas aos indígenas brasileiros” (1894: 5).
Von Ihering estudou em Göttingen, onde obteve seu PhD em Medicina, em 1873, e, em 1876, outro
em Filosofia. Tornou-se, então, Privatdozent em Zoologia da Universidade de Leipzig, em 1878, antes de
partir para os trópicos, em 1880, onde adquiriu a cidadania brasileira, em 1882 (Losano 1992). Von Ihering
estava bem informado sobre o discurso acadêmico de seu tempo, especialmente no que diz respeito às teorias
científicas de fundo racista, como as especulações acerca do caráter racialmente hereditário da inteligência,
sobre o caráter também hereditário do comportamento, e sobre as teorias eugênicas. Estas então chamadas
novas abordagens científicas da vida social estavam em sintonia com as novas preocupações da elite em
classificar as pessoas não pela posição social, como era o caso durante o período imperial, mas por supostos
critérios científicos. Desta forma, o direito da elite em governar não era mais justificado em termos de
privilégios de nascimento, mas por distinções “científicas” e “acadêmicas” ente os que estão de acordo com as
normas e os que não estão, entre as pessoas que governam e as que são governadas (ou oprimidas). O mítico e
idealizado índio guarani, cultuado pelo discurso imperial, foi deixado de lado, sendo substituído por uma
forma de abordagem mais racional, simpática aos proprietários capitalistas e “de acordo com a propriedade
privada”. Von Ihering publicou, em 1908, uma impetuosa justificação da política de exterminação dos
nativos, em um famoso artigo publicado no Jornal do Museu Paulista, intitulado “A questão dos indígenas no
Brasil”. Seu argumento provocou considerável oposição de vários intelectuais do Rio de Janeiro, surpresos
pela inversão de papeis que se promovia. Os indígenas brasileiros, que tinham sido estimados como fossem
nobres ancestrais (mesmo se de acordo com uma origem distante e mítica), eram agora retratados como um
obstáculo ao avanço dos proprietários de terra capitalistas, que deviam extermina-los. Havia uma lógica de
ferro por detrás da abordagem acadêmica de Von Ihering: era de importância capital garantir a propriedade
privada da terra e o desenvolvimento das atividades de extração dos recursos naturais, tarefas que seriam
impossibilitadas caso os indígenas não fossem eliminados; a coleta de material arqueológico e etnográfico dos
grupos indígenas era, então, apenas uma maneira de se tomar posse da cultura material de um povo na
iminência da extinção. O Museu Paulista e seu diretor ganharam o Grande Prêmio da Exposição Nacional, no
Rio de Janeiro, em 1908, pela apresentação de artefatos indígenas. Na época, tal coleção de cultura material
indígena era inédita, e foi decerto mais abrangente que o conjunto de todas as coleções levadas a termo
durante o regime Imperial.
De diversas formas, o trabalho de Von Ihering expressava o novo ponto de vista científico e a
abordagem capitalista para com as populações indígenas brasileiras – que deveriam ser preservadas apenas na
forma de suas relíquias materiais. Este estudioso também exerceu uma influência significativa sobre o
desenvolvimento da Arqueologia no país, de forma que ao adotarem sua abordagem, muitos estudiosos
começaram a assumir que seu conhecimento especializado e cientificamente objetivo a respeito da cultura
indígena autorizava-os a lidar com os nativos e com seus vestígios materiais da forma que melhor lhes
aprouvesse. No final das contas, a destruição das culturas nativas foi considerada como fato inevitável – para
alguns, praticamente uma necessidade. Nativos, negros e imigrantes das chamadas “raças inferiores” (inclusos
aí os judeus, árabes, italianos, espanhóis e portugueses), em suma, todos que estavam chegando em números
cada vez maiores ao país, foram representados pela nova elite capitalista como não civilizados, graças a
intelectuais como Von Ihering. Ironicamente, Von Ihering teve um destino inglório, pois foi demitido do
101
Museu Paulista em 1916 e retornou à Alemanha em 1920. Vários comentadores relacionam sua desgraça ao
fato do Brasil estar em guerra com a Alemanha, e sugerem que alguma espécie de sentimento anti-germânico
tenha contribuído para sua queda. Entretanto, a razão oficial para sua demissão foi uma acusação de uso
indevido de dinheiro público. Algumas versões chegam a afirmar que ele tenha dirigido o Museu como fosse
seu “domínio feudal” particular (como era comum, e ainda o é, no Brasil), tendo empregado seu próprio filho,
Rodolfo, como diretor-associado. Qualquer que tenha sido o caso, com a demissão de Von Ihering, seu
discurso científico, fundado sobre a justificação arqueológica da exterminação dos indígenas, foi substituído
por um outro discurso a respeito dos grupos subordinados.
O sucessor de Von Ihering, Affonso d’E. Taunay, foi um dos principais proponentes de uma nova
forma de inventar o passado no Brasil. São Paulo tinha estado na linha de frente do poder econômico e
político desde a queda da monarquia, com os proprietários das plantações de café fornecendo os sustentáculos
para o novo regime. Estes plantadores, entretanto, também começaram a investir seus capitais na cidade de
São Paulo e na sua industrialização, que, em contrapartida, estimulou um significativo influxo de migrações
transoceânicas. A maioria destas migrações era de italianos: em 1901, 90% de todos os trabalhadores de São
Paulo eram italianos, e mesmo em 1920 o número destes indivíduos chegava próximo aos 40%. Outros
vinham de lugares mais distantes, incluindo o Japão, e de outras regiões às margens do Mediterrâneo. Muitos
lojistas e varejistas, por exemplo, eram pessoas de origem judaica ou árabe provenientes do Império
Otomano, conhecidos simplificadamente como “turcos”. Em reação a estas mudanças sociais, o discurso da
elite mudou, a ponto do termo “selvagem” ser utilizado não apenas para os indígenas das terras ainda não
exploradas, mas também para os trabalhadores nas plantações e para o proletariado urbano. A indicação de
Taunay para o Museu Paulista coincide com este período de mudança social, e suas atividades na
reformulação do Museu foram instrumentais na criação de uma nova imagem material do passado.
Especificamente, Taunay foi encarregado de remontar a exibição do Museu, preparando-o para a
comemoração do centésimo aniversário da Independência, que ocorreria em 1922. Taunay dispensou a
exibição acadêmica desenhada por Von Ihering e substituiu todo o material original por um grupo
completamente novo, glorificando uma recém criada figura histórica, o pioneiro bandeirante. Taunay e outros
intelectuais da elite forjaram o termo como uma maneira de distinguir as antigas famílias paulistas dos outros
habitantes do Estado.
Os bandeirantes foram imaginados nos moldes daqueles heróicos caçadores de escravos que lutaram
pela expansão das fronteiras do oeste brasileiro, combatendo indiferentemente indígenas, africanos e
espanhóis, e tornando-se, desta forma, os responsáveis por multiplicação do território português na América
do Sul (Love 1982; Abud 1986). Taunay descreveu-os nos moldes dos antigos fundadores de Roma, como
fossem eles patres patriae (“os pais da nação”) ou ditadores romanos (Taunay 1929: 107, 115). A elite
bandeirante de São Paulo deveria guiar o país, e não ser guiada, como no dito latino non ducor, duco, adotado
pela cidade de São Paulo na onda de comemorações do centenário da Independência, em 1822. Parafraseando
Cícero, poderíamos dizer que as elites consideravam que “bandeirante seruire fas non est, quem dii
immortales omnibus gentibus imperare uoluerunt” (“não é permitido aos bandeirantes serem governados, pois
as divindades imortais destinaram-nos a governar sobre todas as outras pessoas”). A invenção do próprio
nome bandeirante esta na dependência da invenção de um objeto, da recorrência a um elemento da cultura
material (cf. McGuire e Walker 1999: 162), de uma bandeira – como uma insígnia militar que representasse a
tradição dos bandeirantes. Não é uma referência distante buscar a origem deste mito nas leituras da mesma
literatura latina que inspirara Taunay, e no seu uso do uexillum (estandarte) como uma referência tanto à
bandeira militar quanto às tropas pertencentes a uma unidade (cf. César, De bello gallico 2, 20 e Tácito,
Historiae 1, 70).
Os bandeirantes foram inventados por intelectuais como Ellis (1926) e Alcântara Machado (1926),
mas foi Taunay quem os materializou na exposição do Museu Paulista (Rodrigues 1999: 147). Na antecâmara
do Museu, as imensas estátuas dos bandeirantes de Taunay saudavam os visitantes. Cada região do país era
representada como se tivesse sido conquistada pelos bandeirantes, também com o recurso de esculturas,
pinturas e outros itens materiais que eram usados para guiar o público. A fundação da primeira cidade na
colônia portuguesa (“A Fundação de São Vicente, em São Paulo”) foi retratada com os primeiros
colonizadores representados como os bravos descobridores, com bandeiras nas mãos, como se estivessem na
iminência de conquistar o continente. O simbolismo implicava que estes colonizadores não eram mais
portugueses, mas, ao contrário, já pertenciam ao interior do novo mundo e olhavam na direção das fronteiras
do oeste como se a imaginar um futuro glorioso. Uma outra pintura (“A partida dos exploradores do rio”),
mostra uma expedição bandeirante partindo para conquistar as terras longínquas. Nestas pinturas, grupos
subalternos são retratados apenas como servos obedientes. Eles também estão ausentes da maioria das outras
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galerias que, mesmo oitenta anos mais tarde, estão hoje ocupadas com doses maciças de cultura material da
elite. Estão, por exemplo, entre este material, as liteiras usadas pela elite. Curiosamente, como em tantos
outros casos análogos, os grupos subalternos que as carregavam, os escravos, adquirem, nestes contextos, uma
surpreendente invisibilidade. Não existe referência a eles, eles não pertencem ao mundo material que povoa a
maioria dos principais museus brasileiros (Funari 1994; 1995).
Arqueologia Acadêmica da década de 1940
A primeira universidade brasileira foi fundada em São Paulo na década de 1930, mas a Arqueologia
como uma atividade acadêmica foi introduzida apenas depois da Segunda Guerra Mundial, principalmente
devido à pioneira condução política e intelectual de Paulo Duarte, amigo de vários eminentes arqueólogos
franceses. Duarte foi um humanista sem igual e um defensor dos grupos subalternos, ainda mais se tivermos
em conta que ele mesmo fez parte da antiga elite liberal paulista – um verdadeiro “bandeirante”. Duarte,
entretanto, no início de sua carreira, foi um defensor aguerrido do patrimônio, como ele mesmo tornou claro
em um discurso que proferiu na Assembléia Legislativa de São Paulo, quando propôs a criação de um
Departamento Estadual do Patrimônio, apenas alguns dias antes do golpe fascista de 1937 (Duarte 1937).
Duarte combateu o governo ditatorial que se instalara (1937-1945) e foi para o exílio na França. Lá se
interessou pelos estudos que os franceses vinham fazendo a respeito do engenho humano (vista como uma
capacidade de toda a humanidade), assim como pelos estudos de pré-história, levados a termo em uma
perspectiva dilatada: desde os primeiros hominídeos até o presente, e em todas as partes do mundo. O
conceito chave era “l’homme”, o ser humano e sua capacidade de criar, um conceito diretamente associado
com a luta pelos direitos humanos (les droits de l’homme), em uma Europa pós Segunda Guerra Mundial que
colocava o nazismo no esquecimento.
Devido à sua amizade com Paul Rivet, então diretor do Musée de l’Homme em Paris, Duarte criou a
Comissão de Pré-história da Universidade de São Paulo, em 1952; trouxe arqueólogos profissionais franceses,
J. Emperaire e A. Laming (Emperaire & Laming 1956; 1958) para trabalhar nesta instituição; e começou a
treinar brasileiros na área (López Mazz 1999). Pela primeira vez na história brasileira, material pré-histórico
foi considerado um patrimônio humano, digno de ser preservado e estudado. Preocupado com “l’homme
américain” (“o homem nativo da América”), Duarte defendeu a idéia de se instituir uma proteção legal para o
patrimônio pré-histórico brasileiro (Duarte 1958). Como um resultado de seus esforços, o Congresso
brasileiro promulgou uma lei federal (Lei No. 3942) em 1961, protegendo os vestígios arqueológicos – que
permanece ainda hoje como o único item da legislação nacional a respeito do assunto (Morais 2001). Duarte
(1952; 1955; 1968; 1969) estudou e lutou em favor da proteção dos sambaquis, amplamente usados pelas
empresas construtoras para pavimentar estradas e rodovias. Como uma conseqüência, restos humanos até
então tomados como de pouca importância – resultado da ação milenar do homem em determinados contextos
– foram pela primeira vez considerados dignos de atenção (Bruno 1991; Funari 1999b). Os “nativos”, por
muito tempo subordinados, foram introduzidos não apenas nas discussões acadêmicas mas na sociedade de
uma maneira geral.
Estes esforços humanistas sofreram um severo revés em 1964, quando ocorreu um golpe militar que
colocou o país sob um governo autoritário nos vinte e um anos seguintes. Logo depois do golpe, o Instituto
Smithsonian e as autoridades militares começaram um plano arqueológico, que duraria cinco anos, para
reformular a ainda incipiente Arqueologia brasileira. Cliffor Evans e Betty Meggers, do Smithsonian,
organizaram o Projeto Nacional de Pesquisa Arqueológica, mais conhecido pela sigla PRONAPA. Como este
chamado programa nacional (sic) fosse controlado por Washington, a Arqueologia humanista foi inicialmente
desestimulada e, mais tarde, ativamente perseguida. Duarte e seus colegas pesquisadores, interessados nos
nativos, sofreram restrições de verbas. Como um ato final, Duarte foi expulso da vida universitária pelas
autoridades, ajudadas por alguns oportunistas, como ele mesmo recordou em um documento publicado depois
de sua morte (1994). Sua última publicação foi “Fontes para a pesquisa pré-histórica” (1970), que nunca foi
distribuída, pois foi censurada por aqueles que, primeiro, o perseguiram e, mais tarde, sucederam-no no
comando do Instituto de Pré-história (Caldarelli 2000). Neste artigo em questão, Duarte refere-se ao regime
de governo que conduziu sua expulsão como ditatorial, ressalta que os indígenas, em particular, estavam
experimentando a destruição de seu patrimônio, e critica abertamente os novos “invasores bandeirantes do
século XX” (Duarte 1970: 371, 379 e 381).
Passou a ser impossível tomar os grupos subordinados como objeto de estudo
arqueológico, assim como de qualquer outra disciplina acadêmica. Gradualmente, a partir
103
da década de 1970, o regime militar permitiu algumas liberdades, mas a Arqueologia não
foi logo beneficiada, pois estava ainda sob o controle dos partidários dos militares. Apenas
em 1985, com a saída de cena do governo ditatorial, é que os arqueólogos se viram mais
uma vez livres para comprometer-se com os grupos subalternos. Mais uma vez uma
abordagem humanista foi, também, possível, mais uma vez “l’homme américain” foi
trazido para o centro das discussões por vários arqueólogos. Por todo o país, vários estados
e municípios introduziram artigos em suas legislações, buscando proteger os vestígios
arqueológicos. Pela primeira vez, também, a Arqueologia começou a ser usada para estudar
os grupos de descendência africana, como é o caso da Arqueologia dos grupos “mulatos”
(Orser e Funari 1992; 2001; Funari 1999c, com referências anteriores; Allen 1999). Da
mesma maneira, a Arqueologia foi usada para se lidar com vestígios de “desaparecidos”,
daqueles que assassinados e enterrados em valas comuns pelo governo ditatorial (Oliveira,
com.pess.). O estudo dos sitos relacionados com os povos de origem e descendência
africana é uma maneira de compreender o racismo e as formas de resistência desenvolvidas
contra ele (Paynter 1990: 60), assim como o estudo da opressão foi e é uma maneira de
fazer oposição ao governo autoritário.
Talvez o mais importante ganho da Arqueologia, no últimos anos, tenha sido o engajamento dos seus
profissionais com o público (cf. Funari 2000b). Vários arqueólogos continuam perpetuando a longa tradição
de se estudar o passado a partir do ponto de vista das classes altas, celebrando abertamente as finas louças
usadas pelas elites, defendendo que certas peças arqueológicas possam ser vendidas em lojas de Antigüidade
(e.g. Lima 1995; criticism in Trigger 1998: 16) e mesmo promovendo a expulsão dos índios, dos “negros” e
das pessoas comuns em geral das áreas ocupadas pelas elites (veja exemplos em Funari 2001b). Tal postura
não é surpreendente se considerarmos a natureza da estrutura social brasileira e a tumultuada história da
disciplina arqueológica durante o recente passado ditatorial. É sempre difícil ouvir a voz dos grupos
subordinados (Spivak 1988), mas a Arqueologia pode desempenhar um papel central na tarefa de torná-la
mais fácil de ser ouvida (Hall 1999). O ato de examinar a evidência material dos grupos subordinados oferece
uma oportunidade de se ter um acesso mais abrangente a comunidades que tradicionalmente não são
representadas (cf. Guimarães 1990), tanto no passado histórico quanto no pré-histórico (Saitta 1995: 385;
McGuire 1999: 830).
Se a sociedade é caracterizada por contradições sociais, lutas e conflitos de interesse, então os
membros dos grupos subalternos e dos grupos dominantes estarão sempre em oposição, e cada arqueólogo
terá de decidir do lado de qual se colocará. Neste contexto, o engajamento com a sociedade é um aspecto
definidor do trabalho do arqueólogo, principalmente daquele que busca manter uma posição crítica no que
concerne às condições sociais do país onde trabalha (Trigger 1990: 785; McGuire 1999: 828). Em 1999, os
10% que representam a camada mais rica da população do Brasil detinham 52% da riqueza do país, enquanto
que os 50%, que representam a cada mais pobre, detinham apenas 10% da riqueza do país (Marin 2001). As
pessoas de descendência africana representam 45% da população, mas apenas 2% destes são estudantes
universitários (Beting 2001), e existem mais de 40 milhões de brasileiros com alguma ascendência indígena.
Arqueólogos em sociedades deste tipo são necessariamente parte da elite, e a Arqueologia pode ser usada
ideologicamente para reforçar o discurso de exclusão por meio da manipulação da cultura material (Rodrigues
1999: 151; Skidmore 2000: 572). Provavelmente a melhor maneira de combater esta tendência é o
engajamento com a sociedade; já que, na sua grande maioria, os indivíduos de uma sociedade são claramente
aquilo que Walter Benjamin (1974: 352) denominou de geknechteten, “subalternos” – termo que engloba
todos aqueles destinados a servir os outros (cf. Funari 1998: 109; Felman 1999: 12-14). Tal caminho abre a
oportunidade para os arqueólogos confrontarem suas evidências de uma perspectiva crítica, observando as
contradições tanto no passado quanto no presente (Tilley 1982: 37; Spriggs 1983: 3; Leone 1986). As críticas
mais agudas feitas a respeito da Arqueologia da dita camada superior provém, atualmente, dos arqueólogos do
terceiro e do quarto mundo, assim como das mulheres e das minorias étnicas no ocidente (Durrans 1989: 73).
A Arqueologia dos grupos subalternos é, desta forma, uma maneira de escrutinar os contextos – tanto do
passado quanto do presente – em que os discursos arqueológicos a respeito do passado são produzidos e
reproduzidos. A Arqueologia fornece acesso , indiferentemente, à dominação e á resistência a ela, às elites e
aos subordinados (Paynter e McGuire 1991: 13; Frazer 1999: 5). A Arqueologia do gênero (Cavicchioli 2002;
Freitas 1999), o resgate dos direitos das comunidades indígenas (Baeta 2000; Noelli 1998; 2000; Nunes 2002;
104
Oliveira 1996), a luta por museus mais democráticos (Gomes 2001; Rodrigues 2001; Tamanini 1999), a
política patrimonial (Juliani 1995; Caldarelli 1999; Cali 2001), e o crescimento da análise crítica da disciplina
(Neves 1988; Reis 2002) são todos passos importantes da Arqueologia brasileira em suas novas preocupações
com os grupos subalternos. A Arqueologia brasileira tem, hoje, uma oportunidade sem igual de se engajar na
recuperação dos grupos subalternos, e de lutar por liberdade.
Agradecimentos
Este artigo foi, originalmente, escrito em inglês e traduzido para o português por Fábio Adriano Hering, a
quem agradeço. O artigo em inglês será publicado em livro em breve. Agradeço, ainda, aos seguintes colegas:
Scott Joseph Allen, Dione Bandeira, Cristina Bruno, Solange Caldarelli, Marina Regis Cavicchioli, Brian
Durrans, Lúcia Juliani, Leandro Karnal, Luciana Freitas, Johnni Langer, Mark P. Leone, Maria Margaret
Lopes, José Maria López Mazz, Randall McGuire, José Luiz de Morais, Walter Alves Neves, Francisco Silva
Noelli, Solange Nunes, Nanci Vieira Oliveira, Charles E. Orser, Renato Ortiz, Ana Piñon, Jr., Jaime Pinsky,
Marly Rodrigues, Thomas C. Patterson, Maria Isaura Pereira de Queiroz, Dean J. Saitta, Thomas Skidmore,
Elizabete Tamanini, Bruce G. Trigger. Devo mencionar, ainda, o apoio institucional do Núcleo de Estudos
Estratégicos da UNICAMP, FAPESP e CNPq. A responsabilidade pelas idéias restringe-se ao autor.
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111
A "REPÚBLICA DE PALMARES" E A ARQUEOLOGIA DA SERRA DA BARRIGA
PEDRO PAULO A. FUNARI
A idéia de desenvolver um projeto de pesquisa arqueológica sobre a República de Palmares
(1) amadureceu quando da visita do Professor Charles E. Orser Jr., da Illinois State University, em 1991, ao
Brasil. Orser, pesquisador norte-americano renomado, especialista no estudo da cultura material afroamericana (2), estava interessado em aplicar as modernas técnicas do trabalho arqueológico ao estudo da
cultura africana em liberdade, nos quilombos, e conjuntamente pudemos propor uma Projeto de Pesquisa para
o estudo de Palmares. Contando, ainda, com a ajuda do africanista britânico Michael Rowlands (University
College London), submetemos nosso projeto de prospecção arqueológica da área a instituições científicas
internacionais, tendo obtido financiamento para duas etapas de campo, em 1992 e 1993 (3).
O objetivo mais amplo do Projeto Arqueológico Palmares, como foi denominado, consiste
em adquirir informação sobre a vida quotidiana em Palmares, principalmente por meio dos vestígios
materiais. Quase tudo que se sabe sobre Palmares deriva de documentos escritos por aqueles que, de uma
forma ou de outra, combatiam o quilombo, o que acaba por gerar uma visão distorcida daquela sociedade. Até
aquele momento, não havia sido efetuada nenhuma pesquisa arqueológica na área do antigo quilombo. Nada
se sabia sobre a cultura material de Palmares e o Projeto Arqueológico Palmares procura, em primeiro lugar,
obter informações detalhadas, e de primeira mão, sobre os tipos de arfefatos feitos e usados em Palmares. A
partir desses dados concretos, pode-se almejar obter informações a respeito da organização ideológica, social,
econômica e política. De início, planejamos realizar duas etapas de campo de caráter prospectivo, visando
localizar sítios arqueológicos em superfície e realizar algumas trincheiras e/ou quadrículas, apenas na Serra da
Barriga, único local seguramente identificado como parte do antigo quilombo (4).
112
A República de Palmares compunha-se de diversos mocambos, cujos nomes, transmitidos
pelos documentos da época, possuem etimologia africana, tupi e portuguesa (5). A capital, conhecida, na
época, como Cerca Real do Macaco ou Serra da Barriga, localiza-se no município de União dos Palmares (5).
A metodologia da etapa de campo consistiu, basicamente, em um levantamento ou prospecção pedestre,
visando localizar vestígios materiais arqueológicos superficiais. Tendo identificado artefatos na superfície,
planejamos realizar alguns testes com pás, a fim de determinar a profundidade e grau de preservação do
material. Esse procedimentos básicos permitiram mapear os sítios arqueológicos e avaliar as possibilidades de
trabalhos arqueológicos futuros mais extensos e demorados.
Antes de iniciarmos os trabalhos de campo, partimos dos documentos escritos para
entendermos como os colonizadores compreenderam e combateram esse estado rebelde (6). Já em 1612, há
referências a uma comunidade de escravos fugidos na Zona da Mata e em 1640 os holandeses consideram-na
um sério perigo (7). Baro comandou um ataque holandês em 1644 que teria vitimado cem pessoas e capturado
31 quilombolas, de um total de seis mil que viviam no principal acampamento (8). A rivalidade entre
portugueses e holandeses seguramente contribuiu para o crescimento de Palmares e, com a retirada desse
últimos, os ataques aos assentamentos, que já eram nove, intensificaram-se no período entre 1654 e 1667. A
partir de 1670 ofensivas quase anuais visavam destruir o Estado rebelde, governado por Ganga Zumba, entre
1670 e 1687 (9). Acusado de colaboracionismo, Ganga Zumba foi morto e sucedido por seu sobrinho Zumbi,
rei entre 1687 e 1694, iniciando um período de guerras mais intensas, que culmiram com a expedição
comandada pelo paulista Domingos Jorge Velho (10). Em fevereiro de 1694, após um sítio de 42 dias,
Macaco foi tomada e Domingos Jorge Velho reivindicou o botim, tendo vitimado 200 quilombolas e
aprisionado 500, a serem vendidos fora da capitania (11). Duzentos teriam fugido, entre os quais Zumbi,
capturado e morto em 20 de novembro de 1695.
Nas duas campanhas de prospecção, em 1992 e 1993, foi possível identificar 14 sítios
arqueológicos na Serra da Barriga, apenas um deles posterior ao quilombo dos Palmares (12). Os outros sítios
puderam ser datados pela presença de majólica ou cerâmica vidrada, caracterizada por um brilho opaco que
113
contém óxido de estanho. A localização dos sítios não parece ser fortuita pois, à exceção do sítio 11, datado
do século XIX, os sítios restantes situam-se na parte superior ou na face sul, com um possível alinhamento de
sítios de observação nos costados a sudeste. Os sítios 10, 13, 8, 6, 9, 7 e 5 formam uma linha leste/oeste, ao
sul da Serra, defronte ao rio Mundaú. Ainda que seja prematuro aventar hipóteses sobre a funcionalidade dos
sítios, cuja densidade de ocupação ainda não é possível determinar, os futuros trabalhos poderão melhor
relacionar esse alinhamento e a estrutura geral do assentamento quilombola.
A cerâmica vidrada encontrada no sítio pode ser enquadrada no amplo espectro denominado
de majólica. A majólica foi, provavelmente, introduzida na Península Ibérica pelos mouros, tornando-se
popular apenas com a Reconquista, a partir do século XIII (13). Cerâmicas relacionadas são as faianças
francesas, holandesas e inglesas (delft). Os fragmentos provenientes da Serra da Barriga não podem ser
considerados comparáveis à majólica fina da época, devendo ser encarada como um material utilitário e
derivado (14). Um dos fragmentos apresenta duas faixas paralelas avermelhadas, com fundo verde amarelado,
enquanto outras peças, de diferentes formas, possuem um vidrado que varia do amarelado ao esverdeado. Este
tipo cerâmico, associado à cerâmica comum encontrada na Serra da Barriga, confirma a ocupação da área no
século XVII (15).
De um total de 2.448 artefatos coletados, mais de noventa por cento são objetos de cerâmica
(16). Um grande vaso, encontrado enterrado há 15 centímetros de profundidade, merece alguns comentários.
Havíamos traçado dois transeptos, ou linhas norte/sul e leste/oeste, e testávamos, a cada dez metros, com uma
pá, a área imediatamente à frente dos monumento a Zumbi, quando encontramos, no teste de 40 metros norte,
um grande vaso enterrado em época colonial (17). No topo do vaso, em sua parte exterior, encontramos dois
machados líticos com seus fios para baixo, apoiados nas bordas do vaso. Ambos encontravam-se in situ e não
apresentavam sinais de uso, o que sugere um caráter ritual ou apotropaico. Na parte superior interna do vaso,
encontramos um segundo vasilhame, fragmentado mas completo, escuro, de paredes finas (0,54 cm), com
diâmetro, na boca, de 36 cm. No fundo do grande vaso encontramos 31 fragmentos diminutos de cerâmica.
114
A interpretação desse achado não é simples. Uma primeira hipótese poderia relacionar o
vaso aqueles de tipologia tupinambá (18). Poderia tratar-se, seguindo uma tradição de cemitérios indígenas
pré-cabralinos, de uma urna funerária, na medida em que toda a área circundante apresenta abundantes
vestígios superficiais de vasos desse tipo. Entretanto, a presença dos machados, do vaso no topo e dos
fragmentos cerâmicos no fundo sugerem outras possibilidades. Poderia tratar-se de um depósito de grãos ou
outros materiais, o que explicaria o vaso no topo e os fragmentos ao fundo (19). Os machados serviriam,
nesse caso, para proteger o vaso e seu conteúdo. A própria forma do vaso pode ser relacionada à África, pois
os Mbundu, em Angola, utilizam recipientes muito semelhantes (20). Talvez fosse possível aventar a hipótese
de que as índias tivessem produzido esses vasos, usados no assentamento quilombola, segundo sua técnica
tradicional tupinambá, mas cuja forma não era estranha aos africanos e cujo uso poderia ser mais próximo dos
costumes bântus do que ameríndios (21). De qualquer forma, a presença de cerâmica indígena em
assentamentos coloniais não devia ser excepcional e o caso da cidade espanhola de Santa Fé La Vieja, no
nordeste da Argentina, ocupada de 1573 a 1660 parece indicar que uso de cerâmica local não-hispânica, de
tipo tupi-guarani, era bastante difundida. Não se estranharia tendência semelhante no quilombo de Palmares
(22).
Os resultados preliminares das prospecções arqueológicas na Serra da Barriga indicam que o
tema crucial para a compreensão do quilombo relaciona-se com a etnicidade dessa comunidade. Stuart
Schwartz talvez tenha sido o historiador que melhor tenha desenvolvido a tese de que Palmares era ma
sociedade muito claramente africana:
"As tradições de Angola claramente predominaram. Os residentes referiam-se a Palmares
como angola janga (pequena Angola)...O ki-lombo, uma sociedade a qual qualquer homem podia pertencer
por meio do treinamento e iniciação, servia àquele propósito. Encontra-se, pois, uma instituição designada
para a guerra, a qual podia incorporar grande número de estranhos desprovidos de ancestrais comuns a um
poderoso culto guerreiro...Uma figura fundamental no ki-lombo era o nganga a zumba, um sacerdote cuja
responsabilidade era tratar com o espírito dos mortos. O ganga zumba de Palmares era provavelmente o
115
detentor desse cargo....Devemos considerar os aspectos africanos de Palmares não como "sobreviventes"
desincorporados de seu meio cultural original, mas como um uso muito mais dinâmico e talvez intencional de
uma instituição africana na forma especificamente designada para criar uma comunhão entre povos de orígens
díspares e fornecer uma organização militar eficiente. Certamente os escravos fugidos do Brasil adequam-se a
essa descrição"(23).
Essa interpretação segue uma tradição de associar-se os costumes de Palmares com aqueles
de Angola (24). Contudo, a assimilação do ki-lombo angolano com o quilombo de Palmares parece, à luz dos
estudos de africanistas, insustentável. De fato, o termo quilombo só foi usado no Brasil em 1691, segundo
Schwartz, estando ausente dos documentos anteriores que se referem a Palmares. O ki-lombo angolano, por
sua parte, foi um movimento guerreiro muito específico e efêmero, datado do segundo quartel do século XVII
(25), posterior, portanto, ao início de Palmares. Por outro lado, John Thornton tem ressaltado que os contatos
culturais, na própria África, entre europeus e africanos era muito mais intensos do que se costuma admitir (26)
e sugere que, nas Américas, "os escravos não eram militantes culturamente nacionalistas, que procuravam
preservar tudo que fosse africano mas, ao contrário, mostravam grande flexibilidade para adotar e mudar sua
cultura" (27). Em geral, portanto, pode afirmar-se que os africanos, na América, passavam a forjar culturas
especificamente americanas, diversas das africanas (28).
Nesse contexto, não é de se estranhar as referências ao catolicismo em Palmares, nem à
presença de mouros, brancos e índios no quilombo, presenças cuja inserção no ki-lombo imbangala seria
impensável. Segundo diversos estudiosos, as perseguições coloniais fariam com que Palmares pudesse atrair
uma pletora de grupos marginalizados pela ordem vigente (29). O trabalho arqueológico em Palmares,
embora ainda muito inicial, já demonstra que, apenas a partir da cerâmica, pode supor-se que ali conviviam
pessoas de diversas origens étnicas e culturais. Este caráter multiétnico deriva, em parte, da situação histórica
e estratégica de Palmares. Os quilombos estabeleceram-se em uma região circundada por nativos, a oeste, por
moradores e fazendeiros, na costa e, entre 1630 e 1654, os holandeses a nordeste. Os mocambos sobreviveram
não apenas em confronto com esses grupos como, necessariamente, em interação. Na verdade, faziam parte de
116
um contexto internacional ainda mais amplo, pois a própria escravidão colonial era o resultado do capitalismo
mercantil europeu (30).
A continuidade do trabalho arqueológico na Serra da Barriga, prevista para os próximos
anos, permitirá passar das proscpeções, efetuadas nas duas primeiras etapas de campo, para escavações. Os
primeiros resultados indicam que há ainda muito a fazer, mas as perspectivas são, também, bastante amplas.
O interesse por Palmares, tanto no Brasil como no exterior, tem sido acentuado, em parte graças às
prospecções arqueológicas (31). Seu prosseguimento deverá trazer dados inéditos que permitam repensar esse
grande Estado rebelde (32).
Pedro Paulo A. Funari é professor do Departamento de História da Unicamp.
NOTAS
1. O nome "república", utilizado nos documentos do século XVII é uma tradução, ao vernáculo, do termo
latino então corrente, res publica, usado para designar qualquer Estado; cf. Édison Carneiro, O Quilombo de
Palmares, São Paulo, 1988, p.33. Termos de origem africana, como mocambo e quilombo, foram
introduzidos posteriormente, em geral com conotações pejorativas. Nos documentos que se referem a
Palmares, o assentamento rebelde é chamado de mocambo, "esconderijo", segundo R.P. Kent, "Palmares: an
African State in Brazil, in R. Price (org), Maroon societies, Baltimore, 1979, p.174.
2. Ver o volume organizado por Orser, Historical Archaeology on Southern Plantations and Farms, Ann
Arbor, 1990, com bibliografia anterior.
117
3. Obtivemos fundos da Illinois State University, National Geographic Society, National Science
Foundation, Joint Committe on Latin American Studies of the Social Science Research Council,
American Council of Learned Societies, National Endowment for the Humanities, Ford Foundation e
apoio institucional do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal de Alagoas, Museu Théo
Brandão (Maceió), da prefeitura de União dos Palmares e do Estado de Alagoas; a participação, na etapa de
campo, de Michael Rowlands foi financiada pelo British Research Council.
4. A localização dos outros mocambos ou aldeias não é segura, como fica claro ao compararmos os mapas
apresentados por Décio Freitas, Palmares: A Guerra dos Escravos, Porto Alegre, 1984 e por Zezito de
Araújo, Serra da Barriga: Exposição de Motivos para o Tombamento, Maceió, 1985.
5. Kent, op.cit., pp.180-1 relaciona os nomes Aqualtene, Dombrabanga, Zumbi, Andalaquituche a idiomas
bântus; Subupira e Tabocas são topônimos tupis, segundo Teodoro Sampaio, em seu dicionário O Tupi na
Geografia Nacional, São Paulo, 1987; a capital, Macaco, conhecida nos documentos da época como Oiteiro
da Barriga (hoje, Serra da Barriga), pode ser português ou uma má interpretação do termo bântu mococo;
Amaro é de origem portuguesa.
5. A Serra da Barriga localiza-se, aproximadamente, a 9 graus 10'00" Sul e 36 graus 05'00" Oeste, medindo
cerca de 4.000 metros de leste a oeste e 500 a 1.000 metros de norte a sul. A altitude varia de 150 a 560
metros acima do nível do mar; cf. Charles E. Orser Jr., In Search of Zumbi: Preliminary Archaeological
Research at the Serra da Barriga, State of Alagoas, Brazil, Normal, Illinois State University, 1992, pp.1415 et passim.
6. Sempre levando em conta que "toda sociedade deixa registros que procuram apresentar suas próprias visões
e respostas que se ajustem a um ambiente político específico", segundo John Thornton, "The Correspondence
of the Kongo Kings, 1614-35, Problems of Internal Written Evidence on a Central African Kingdom",
Paideuma, 33, 1987, p.420.
118
7. Gaspar Barleus, em seu História dos feitos recentemente practicados durante oito anos no Brasil, Belo
Horizonte, 1974 (originalmente publicado em 1647), p.253, refere-se a que "certo Bartolomeu Lintz vivera
entre eles para que, depois de ficar-lhes conhecendo os lugares e o modo de vida, atraiçoasse os antigos
companheiros".
8. É difícil avaliar a veracidade desses números, que poderiam estar inflados. De qualquer forma, dos 31
quilombolas capturados, sete eram índios e alguns crianças mulatas.
9. Há muitas evidências da religiosidade associada ao poder, tanto na África como em Palmares. O título
nganga era usado para designar "sacerdote", tanto nas religiões tradicionais bântus como no catolicismo
africano, segundo Jean Nsondé, "Christianisme et religion traditionelle au pays Koongo aux XVII-XVIIIe.
siècles", Cahiers d'Études Africainnes, 128, 23, 4, pp.705-711. A importância da ligação entre o exercício
do poder e o controle do sagrado na África bântu tem sido ressaltada por Michael Rowlands, "From Tribe to
State in West Central Africa", Symposium at Cascais on Critical Approaches in Archaeology: Natural
Life, Meaning, and Power, manuscrito inédito, p.29 e Michael Rowlands e Jean Pierre Warnier, "Sorcery,
Power, and the Modern State in Cameroon", Man (NS), 23, 1992, pp.118-132. Sobre o título nzumbi, ver
Tulu Kia Mpansu Buakasa, "Croyances et connaissances", em Théophile Obenga e Simão Souindoula (orgs),
Racines Bantu, Libreville, 1991, p.179.
10. O termo nzumbi possui conotações militares e religiosas a um só tempo.
11. Segundo o preceito romano reconhecido à época: iuste possidet, qui auctore praetore possidet.
12. Sítio número 11, com majólica, creamware, pearlware, whiteware, stoneware, material datado entre
fins do século XVIII e início do XIX; cf. Charles E. Orser Jr., In Search of Zumbi, The 1993 Season,
Normal, 1993, pp.3-6 e Pedro Paulo A. Funari, "The Archaeolgy of Palmares and its Contribution to the
119
Understanding of the History of African-American Culture", Historical Archaeology in Latin America, 7,
1994, p.30.
13. Cf. Florence C. Lister e Robert H. Lister, A Descriptive Dictionary of 500 Years of Spanish-Tradition
Ceramics: 13th through 18th Centuries, California, 1976, pp.1-2.
14. Os fragmentos podem associar-se à majólica portuguesa ou, talvez mais provavelmente, àquela holandesa,
pois a semelhança da coloração com o material daquela proveniência, encontrado na América do Norte, pode
ser observada; cf. Charlotte Wilcoxen, Dutch Trade and Ceramics in America in the Seventeenth
Century, Nova Iorque, 1987, prancha 5 et passim). Compare-se com a majólica contemporânea em África,
em James Kirkman, Fort Jesus: A Portuguese Fortress on the East African Coast, Oxford, 1974, pp.119121.
15. Pré-historiadores, tanto no Brasil como no exterior, têm dificuldade em admitir a presença concomitante,
em sítios históricos, de cerâmicas de tipo indígena misturadas com cerâmica colonial. Há quem proponha
tratar-se de duas ocupações sucessivas, pré-histórica e colonial. Essas hipóteses revelam, contudo,
desconhecimento das características dos sítios coloniais, cuja cultura material apresenta elementos europeus,
indígenas e mesclas, associados. Desconhecem, também, os documentos históricos que se referem aos sítios
coloniais e que, se lidos, permitem constatar que artefatos "pré-históricos" eram usados nos assentamentos
colonais. Estas considerações surgiram de conversas com Susan Alcock e Carla Sinopoli a respeito da reação
de alguns pré-historiadores quando de uma palestra sobre os trabalhos na Serra da Barriga, em agosto de
1995, em Simpósio organizado pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo.
Infelizmente, as características da Arqueologia História ainda são largamente desconhecidas pelos préhistoriadores, induzindo a erros crassos de julgamento.
16. 91% cerâmica comum, 4,5% cerâmica trabalhada, 1,3% líticos, 0,6% vidro, 0,1% metal e 1,9% outros
materiais variados.
120
17. O objetivo desses transeptos era averiguar os danos arqueológicos causados pelo uso de um trator, por
alguns anos sucessivos, a fim de "limpar" a área, tornando-a um local mais aprazível para os festejos do dia da
consciência negra, 20 de novembro. Como era esperado, toda a área (sítio 1) diante do monumento foi muito
afetada pela remoção dos vestígios.
18. Cf. José Joaquim Justiniano Proenza Brochado, An Ecologial Model of the Spread of Pottery and
Agriculture into Eastern South America, Urbana, Tese de Doutoramento inédita, figura 16 et passim.
19. Merran McCulloch refere-se a tais vasos entre os Mbundu (Ovimbundu), em Angola, em seu The
Ovimbundu of Angola, Londres, 1952, p.15.
20. Wilfred D. Hambly, The Ovimbundu of Angola, Chicago, 1934, p.368 e prancha XIV.
21. Assim, um vaso de tipo indígena poderia ser reapropriado pela população mestiça do quilombo como um
recipiente de armazenamento.
22. Andrés Zarankin, "Arqueologia Histórica urbana en Santa Fe La Vieja: el final del principio", Historical
Archaeology in Latin America, 10, 1995, p.56, figuras 13 e 14; cf. p.94: el sistema español implantado en
America Latina, a diferencia del Británico en América del Norte, fue relativamente flexible en lo que
repecta a la integración de diferentes grupos étnicos a la sociedad colonial. Ello se refleja en que, desde
los primeros tiempos, el colonizador Hispánico acostumbró tomar como servientes, concubinas, o
esposas a integrantes de la población indígena local.
23. "Mocambos, Quilombos e Palmares: a resistência escrava no Brasil colonial", Estudos Econômicos, 17,
1987, pp.84-86.
121
24. E.g. Charles Ralph Boxer, The Dutch in Brazil, 1624-1654, Oxford, 1973, p.140.
25. Joseph C. Miller apresenta, em seu Kings and Kinsmen, Early Mbundu States in Angola, Oxford,
1976, pp.160-260 et passim, um estudo detalhado das origens, características e transformações do ki-lombo.
Sua inserção no contexto local impossibilitaria sua "exportação" para a realidade do mundo colonial
americano, dominado pela escravidão colonial e pelos ameríndios, inexistentes em África.
26. A respeito do Kongo, ver John Thornton, "Early Kongo-Portuguese Relations: a New Interpretation",
History in Africa, 8, 1981, 183-202.
27. John Thornton, Africa and Africans in the Making of the Atlantic World, 1400-1680, Cambridge,
1992, p.206.
28. Cf. Jonathon Glassman, "The Bondsman's New Clothes: the Contradictory Consciousness of Slave
Resistance on the Swahili Coast", Journal of African History, 32, 1991, p.278 et passim.
29. Por exemplo, José Flávio Sombra Saraiva, "Silencio y ambivalencia: el mundo de los negros en Brasil",
América Negra, 6, 1993, p.46; Eugene D. Genovese, From Rebellion to Revolution. Afro-American Slave
Revolts in the Making of the Modern World, Baton Rouge, 1981, p.62.
30. Cf. Fernando A. Novais, "Brazil and the Old Colonial System", in R. Graham (org), Brazil and the
World System, Austin, 1991, pp.11-56.
31. No exterior, a mídia tem dado grande destaque ao trabalho; cf. David Keys, "South America's lost African
Kingdom", The Independent, Oct.19th, 1993, p.23; Brian Fagan, "Brazil's Little Angola", Archaeology,
July/August, 46, 1993, pp.14-19; Anver Versi, "The Lost Kingdom", Nes African Life, December 1993, p.9;
Entrevista de P.P.A. Funari à British Broadcast Corporatiom, 24/10/1993. No Brasil, diversos órgão de
122
imprensa tem publicado artigos, entre os quais, Ricardo Bonalume Neto, "O Pequeno Brasil de Palmares",
Folha de São Paulo, 4/6/95, 5-16; Pablo Pereira, "Arqueologia tenta desvendar vida em Palmares", O Estado
de São Paulo, 25/6/95, A28.
32. Devo agradecer a diversos colegas que, de diferentes modos, ajudaram na elaboração desse artigo, embora
a responsabilidade pelas idéais seja somente minha: Zezito de Araújo, José Proença Brochado, Jonathon
Glassman, Joseph Miller, Charles E. Orser Jr., Michael Rowlands e John Thornton.
FIGURAS
1. Localização de Palmares, em relação a outros grupos, no Nordeste.
2. Possível localização de assentamentos de Palmares, segundo Décio Freitas.
3. Possível localização de assentamentos de Palmares, segundo Zezito de Araújo
4. Serra da Barriga, Rio Mundaú e União dos Palmares.
5. Localização dos 14 sítios arqueológicos prospectados.
6. Cachimbos de barro, encontraso pela população local.
7. Transeptos no sítio 1 e localização, a 40 m norte, do grande vaso cerâmico.
8. Perfil do vaso de tupinambá.
9. Perfil da borda do vaso encontrado no topo do pote tupipambá.
10. Pequeno machado lítioc encontrado sobre o vaso tupinambá.
11. Grande machado lítico encontrado sobre o vaso tupinambá.
12. Cerâmica comum encontrada no sítio 1.
13. Cerâmica comum encontrada no sítio 2.
14. Cerâmica comum encontrada no sítio 3.
15. Cerâmica comum encontrada no sítio 3.
16. Majólica encontrada no sítio 3.
123
COMO SE TORNAR ARQUEÓLOGO NO BRASIL
PEDRO PAULO A. FUNARI39
INTRODUÇÃO
Para que se possa tratar da formação do arqueólogo, é necessário, antes, definir a identidade
do arqueólogo. Em um contexto mais amplo, pode afirmar-se que o estudo da Arqueologia varia muito, em
diferentes tradições universitárias. Nos Estados Unidos, a maioria dos arqueólogos é constituída de
antropólogos, já que a Antropologia, normalmente, ali incorpora áreas como a Lingüística e a Arqueologia.
Isto significa uma formação básica em Antropologia, voltada para o estudo do outro, os antropólogos
estudando os índios vivos e os arqueólogos os mortos. Nos próprios Estados Unidos, contudo, há também
arqueólogos com outras formações, como é o caso dos arqueólogos clássicos, que estudam as civilizações
grega e romana, cujo estudo liga-se às letras clássicas, à História e à História da Arte, em medidas variadas,
segundo a tradição de cada instituição. Há, ainda, os arqueólogos oriundos da orientalística (egiptólogos,
assiriólogos), dos estudos bíblicos (a chamada “Arqueologia Bíblica”) ou das mais variadas disciplinas, como
a Biologia ou a Geologia (cf. Taylor 1948: 11). A outra grande vertente produtora de arqueólogos, a escola
européia, é ainda mais multifacetada. Em termos gerais, os arqueólogos europeus, pré-historiadores,
classicistas ou medievalistas formam-se na tradição histórico-filológica de origem alemã. Em alguns centros,
a Arqueologia é parte da História da Arte, em outras relaciona-se à História ou às línguas, raramente fazem
parte da Antropologia. Os britânicos foram os que levaram mais adiante a independência epistemológica da
disciplina, criando diversos cursos de graduação em Arqueologia, exceção tanto mais notável quanto, tanto na
Europa como nos Estados Unidos, costuma-se reservar-se à formação em Arqueologia o caráter de uma
especialização, após uma educação universitária mais genérica.
A formação do arqueólogo no Brasil insere-se, pois, no contexto mais amplo esboçado. Não
há uma única tradição acadêmica universal e tampouco, no Brasil, haveria que buscar uma unidade que
39
Pedro Paulo A. Funari é professor livre-docente do Departamento de História da UNICAMP e autor e
organizador de, entre outros diversos livros, Historical Archaeology, Back from the edge (Londres/Routledge,
1999), co-organizado com M. Hall e S. Jones.
124
alhures inexiste. Não se pode, entretanto, fazer um balanço da formação do arqueólogo no país sem analisar,
ainda que brevemente, a História da disciplina em nosso meio e o ambiente acadêmico no qual ela se
desenvolve (Funari 1997). A Arqueologia acadêmica brasileira é recentíssima, o número de arqueólogos
profissionais reduzidíssimo e os centros de formação pouco numerosos. Além de descrever as vicissitudes da
formação de arqueólogos no Brasil, hoje, pretende-se contribuir para a discussão do seu aprimoramento,
visando inserir a Arqueologia brasileira no âmbito mais amplo da Arqueologia mundial.
A ARQUEOLOGIA NO QUADRO DA ACADEMIA BRASILEIRA
A sociedade brasileira, patriarcal, dominada por uma estrutura social hierárquica secular,
produziu muito tardiamente a universidade, séculos depois das primeiras congêneres hispano-americanas. A
universidade brasileira, desenvolvendo-se a partir da década de 1930, viria a ter algumas características
estruturais, derivadas do próprio caráter restritivo à liberdade intelectual da sociedade nacional, ainda
presentes entre nós. Florestan Fernandes, um dos nossos primeiros acadêmicos, advertia, antes do golpe
militar de 1964, que “o intelectual se torna, literalmente, um escravo do poder. Se ele tentar o contrário, corre
o risco de sofrer pressões muito violentas e de ser eliminado da arena intelectual” (Fernades1975: 85).
Segundo outro decano da ciência nacional, Milton Santos, “buscar o novo é perigoso”, resultado da falta de
valorização do mérito intelectual propriamente dito:
“Eu acho que o meio intelectual no Brasil é, até certo ponto, opaco, no sentido de que a vida
acadêmica não se caracteriza pela existência de um mercado acadêmico. As pessoas nascem, crescem,
evoluem e morrem no mesmo universo. Então, a idéia de competição se compromete e o sistema de
referências é igualmente doméstico. É muito autocentrado e funciona, com freqüência, em detrimento de uma
emulação mais ampla” (Santos 1998: 6).
O compadrio, generalizado, chega aos editoriais dos jornais (Folha de São
Paulo 1997a), levando a que as pesquisas confirmem o discurso do poder, tanto das
autoridades políticas como acadêmicas, perpetuando, de forma acrítica, aquilo que Pierre
125
Bourdieu (1988: 777) chama da senso comum acadêmico.
Predomina um sistema
universitário dominado por um mandarinato autocrático e medíocre, a busca desenfreada
pelo micropoder dos cargos por parte daqueles que nada sabem, como se expressava Theo
Santiago (1990). A palavra corporação aparece em quase todas as análises críticas da
academia brasileira (e.g. Comparato 1993; Miceli 1995: 3) e criam-se neologismos para
descrever essa realidade: “os buroprofessores, quer dizer, aqueles indivíduos que, sai um,
entra outro, mas é o mesmo grupo, que são pessoas inúteis porque esses pró-reitores, quase
todos, são pessoas inúteis, um estorvo à produção intelectual” (Milton Santos 1999: 25). A
dissociação entre progressão na carreira e a competência, que inclui titulação, mas não se
limita a ela (Goldemberg 1992), compõe um quadro pouco alentador de uma época “hostil
à crítica e ao dissenso” (Barros e Silva 1997). Neste contexto, quando mais da metade das
bolsas concedidas pelo CNPq não resultam em defesas de tese, não há surpresa (Folha de
São Paulo 1997b).
A academia brasileira padece, portanto, de deficiências estruturais, de origem histórica
clara. Um sistema universitário surgido no seio de uma sociedade tão hierarquizadora e infensa à liberdade de
oportunidades não poderia deixar de refletir essas características dominantes (Funari 1997a, com literatura).
Durante o período de jugo militar, em particular, os aspectos mais deletérios de uma academia servil ao poder
produziram resultados que ainda nos atormentam. O compadrio, associado a um poder discricionário, pôde
levar o controle discursivo ao paroxismo, instituindo, em algumas áreas, uma limitação severa ao
desenvolvimento da ciência. Com a abertura e, em especial, com o restabelecimento dos civis ao poder, a
liberdade acadêmica rediviva logo começou a produzir reflexões críticas e menos acomodadas (Batista 1997).
Este pano de fundo permite, agora, refletir sobre o desenvolvimento da Arqueologia, em
nosso meio. A Arqueologia pré-acadêmica tem longa trajetória no Brasil, desde seus primórdios no Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, no século passado. Contudo, apenas no pós-Segunda Guerra ensaia-se o
126
início da Arqueologia acadêmica, graças às iniciativas de Paulo Duarte, fundador da Universidade de São
Paulo, político, intelectual e humanista, sob cuja égide surge a Comissão de Pré-História que se transformaria
no Instituto de Pré-História, à imitação do IPH de Paris. Assim, ab initio, a Arqueologia começa a penetrar o
espaço universitário como atividade de pós-graduação, ao menos no sentido de que se trataria de atividade a
ser desenvolvida pelo pesquisador após sua formação universitária, em área, de algum modo, ligada à
Arqueologia. Nesse primeiro momento, com a chegada dos franceses, com Madame Emperaire à frente,
enfatizavam-se as técnicas de campo e laboratório, como se a Arqueologia fosse pouco mais do que uma
tekhné, à maneira francesa, muito distante, pois, das Wissenschaften que compunham o saber (Wissen)
acadêmico. Um primeira conseqüência dessa formação inicial foi a dissociação entre pesquisa empírica e
interpretação. Assim, ainda que bem intencionada, a Arqueologia humanista ressentia-se da falta de ambições
epistemológicas que lhe dessem espessura acadêmica no interior tanto da universidade brasileira como,
principalmente, internacional.
Estes primeiros arqueólogos acadêmicos formados no Brasil foram logo acompanhados por
uma nova leva, resultado da incursão, pós-golpe militar de 1964, de Betty Meggers e Clifford Evans e a
constituição de um programa nacional de pesquisas arqueológicas (PRONAPA). Não seria o caso, nesta
ocasião, de retomar as discussões sobre o imbricamento do esquema pronapiano com o regime de força (cf.
Funari 1995; Funari 1998), mas de ressaltar o tipo de formação arqueológica que estava sendo introduzido no
país1. Os clássicos da literatura arqueológica norte-americana não eram conhecidos, assim como os
desenvolvimentos mais recentes. Walter W. Taylor (1948: 44) e sua busca da autonomia da Arqueologia
havia sido ignorado, como tinha sido o apelo, então recente, de Binford (1962), em direção a uma
Arqueologia processual. Prevalecia, na formação desses arqueólogos, a constatação devastadora de Binford
(1984: 15) de que o “arqueólogo de campo escavador fica a discutir o teor alcoólico da pinga nos bares das
redondezas” (cf. Funari 1987), o que foi interpretado pelos seus epígonos como treinamento orgânico,
fomentador de centros de pesquisa, um período de ouro da Arqueologia nacional (e.g. Schmitz 1989: 47; Dias
1995: 35; Lima 1998: 25)2. A formação intelectual propugnada pela equipe de Meggers não bebia do imenso
manancial americano3, que poderia ter aberto os horizontes daqueles que seriam considerados, às expensas
dos arqueólogos formados pelos franceses, os fundadores da Arqueologia universitária nacional. Os
127
resultados dessa formação foram muitos, da falta de autocrítica (Prous 1994:11) à despreocupação com
publicações (Neves 1998: 628)4, da ausência de corpora (cf. Wheeler 1956: 211)5 à execução de
levantamentos oportunísticos e escavações injustificadas, sem planejamento (Neves 1988: 204).
Uma terceira vertente arqueológica surgia, àquela época. A Arqueologia clássica, surgida
por iniciativa do Professor Eurípides Simões de Paula (Duarte 1994: 163-4), diretor da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, no quadro de um plano mais amplo de expansão da
Faculdade, em geral, e das línguas clássicas em particular. De início encarada como mera “ciência auxiliar da
História, longe, bem longe de ser um fim um si mesmo”, parte da História da Arte (Meneses 1965: 22), a
Arqueologia Clássica assumiu uma importância insuspeitada de início. A inserção da Arqueologia Clássica
brasileira na ciência universal significou uma formação intelectual abrangente. A formação de quadros nesse
campo da Arqueologia permitiu que, pela primeira vez, arqueólogos brasileiros dirigissem projetos de
pesquisa internacionais, publicassem livros e artigos no exterior, dando uma visibilidade internacional à
Arqueologia brasileira (cf. Funari 1997). A formação menos restrita desses arqueólogos acabou por resultar
em que a própria Arqueologia de temas americanos fosse desenvolvida por arqueólogos de formação clássica,
cujo melhor exemplo, ao menos em termos de divulgação científica da Arqueologia, talvez seja o volume de
Norberto Luiz Guarinello (1994), o livro mais vendido sobre Arqueologia Pré-Histórica, em toda a História
(cf. Funari 1996; Faversani 1997).
Após essa fase inicial, que abrange o período dos anos 1950 e 1960, a Arqueologia
brasileira insere-se na reforma universitária implantada pelos militares. A pós-graduação brasileira passou a
seguir o sistema americano, com mestrados e doutorados e a formação em Arqueologia continuou a ser um
especialização posterior à graduação, com a exceção do curso, nunca reconhecido pelo MEC, na Estácio de
Sá, no Rio de Janeiro. Os arqueólogos que surgiram nas três vertentes apontadas, acrescidos de alguns
estudiosos estrangeiros, como André Prous e Gabriela Martín, constituíram os quadros que estabeleceriam a
formação em Arqueologia nas décadas de 1970 e 1980. Enquanto nas Ciências Humanas, em geral, buscavase uma formação intelectual menos descritiva e mais crítico-analítica (Janotti & Mesgravis 1980: 9), a
Arqueologia empirista, único discurso associado ao poder, impunha, por mecanismos hierárquicos comuns às
128
sociedades patriarcais (cf. Collis 1997: 11), mas aqui levados ao paroxismo pelo regime de arbítrio, uma
formação infensa a leituras interpretativas. Sempre houve quem lesse, quem buscasse sair desse marasmo,
mas só podia fazê-lo por sua conta e risco (Noelli 1999). Não se pode subestimar o sufocamento das
vocações, pois as hierarquias permitiam que se expulsassem da universidade aqueles que não se
conformassem, como ocorreu com o notável caso de Walter Neves e Solange Caldarelli (reportado em Prous
1994: 12; e em Funari 1999), nem a institucionalização de uma hierarquia infensa ao mérito facilitou a
formação de novos arqueólogos6. Na maioria dos casos, bastava algo muito mais insidioso, a internalização da
submissão, pois se sabia que “à volta de um grande e frondoso carvalho, nada cresce”, nas palavras de
Norberto Luiz Guarinello (1999), a respeito de um dos mandarins da Arqueologia. Não se buscou criar massa
crítica, formando novos estudiosos, o que explica, em parte, que muitos dos pais fundadores pronapianos
tenham tido tão poucos alunos, sendo que, ainda hoje, “na maioria das instituições brasileiras há um processo
de sufocamento de novas vocações”, nas palavras de Francisco Noelli (1999) 7.
As duas últimas décadas testemunharam transformações radicais em um quadro que parecia
pouco promissor para a Arqueologia brasileira. Warwick Bray (1994: 6), quando discursou ao assumir a
cátedra de Arqueologia Americana no Instituto de Arqueologia de Londres, ressaltou que os melhores
resultados acadêmicos derivam do incentivo à variedade de linhas de pesquisa e à não aceitação do discurso
da autoridade do intelectual sem obra e, no caso brasileiro, a multiplicidade resultante da democracia só teve
resultados positivos (Lafer 1996: 9)8. Os centros de formação de arqueólogos multiplicaram-se pelo país,
entendendo-se formação em seu sentido pleno, como Bildung. De fato, o empirismo que esteve subjacente à
primeira leva de arqueólogos acadêmicos fez com que se igualasse Arqueologia e escavação. Entenda-se
escavação no sentido de trabalho de campo, não todo o processo que começa com um problema, que se
desenvolve em um projeto de intervenção no campo, que gera artefatos a serem estudados, que implica em
publicações, que, enfim, produz conhecimento. Este sentido de escavação, como parte de um processo de
conhecimento (Welterkentniss), não pode prescindir de aspirações interpretativas. Por outro lado, como
ressaltaram, recentemente, dois grandes arqueólogos da atualidade, Michael Shanks e Randal McGuire (1996:
79), Gordon Willey e V. Gordon Childe, dois dos mais influentes arqueólogos de todos os tempos,
129
rarissimamente escavaram, o que está a demonstrar que a formação do arqueólogo não pode descuidar da
reflexão.
Já se disse que os arqueólogos são pouco numerosos no Brasil, talvez trezentos, para uma
país de dimensões continentais, de população elevada, com centenas de milhares de estudantes universitários.
Isto se explica, em parte, pelo fato de a Arqueologia não ser um curso oferecido na graduação, com uma única
exceção. O graduação em Arqueologia oferece as vantagens de uma especialização precoce mas pode ser uma
armadilha, caso o curso não esteja bem articulado a áreas de conhecimento afins, em particular a História, a
Antropologia, mas também a Geografia, a Biologia ou, até mesmo, a Literatura, a Fotografia (e.g. Olivier
1999a), o Jornalismo (e.g. Cotter 1999: 8), para mencionar apenas algumas. Os bons cursos de graduação em
Arqueologia no exterior não deixam de inserir-se nas ciências afins e o mesmo princípio é válido para o
Brasil. Em geral, no entanto, a formação do arqueólogo dá-se na pós-graduação. Neste caso, há duas grandes
vertentes, a majoritária inclui a Arqueologia em um curso de História, de Antropologia ou de outra ciência.
Na tradição européia, predomina a ligação com a História, em direta ligação com a herança de Childe (cf.
Trigger 1984: 295; Funari 1997c)9. Desta forma, o arqueólogo, seguindo a tradição dominante, tanto na
Europa como nos Estados Unidos, toma contato com uma pletora de áreas, já que a própria Arqueologia é
multidisciplinar (Ucko 1994: xiv). A outra vertente, minoritária, forma arqueólogos em programa de pósgraduação próprio.
Os programas de pós-graduação majoritários, que acolhem a formação em Arqueologia,
permitem que os arqueólogos tomem contato direto com a epistemologia de uma outra ciência, o que pode
revelar-se muito produtivo. Há, naturalmente, duas deficiências estruturais: uma tendência a incorporar a
Arqueologia como ciência auxiliar de outra, o que lhe tira a especificidade, e a falta de um estudo mais
direcionado para a variedade de áreas com as quais a Arqueologia se relaciona (Funari 1998). Assim, corre-se
o risco de termos arqueólogos que nunca deixaram de serem geólogos ou historiadores, risco tanto maior
quanto, às vezes, as únicas leituras e práticas do educando se restringiram, desde a graduação, àquela área de
estudo. Perde-se, assim, a necessária consciência de que a Arqueologia é, em sua essência, multidisciplinar
(Silva e Noelli 1996). A pós-graduação em Arqueologia, por sua parte, possui a virtude de apresentar um
130
programa coerente de disciplinas voltadas para essa área. No entanto, uma deficiência estrutural consiste na
falta de ênfase no caráter multidisciplinar da Arqueologia, pois esse seu aspecto deveria implicar em um
currículo que enfatizasse o conhecimento, em primeira mão, das grandes teorias sobre o funcionamento e a
transformação das sociedades, das formas de expressão, mas também do mundo físico e biológico. Na
verdade, a própria compartimentação do conhecimento divide, de forma burocrática, unidades de
conhecimento (McGuire 1992: 4) e poder-se-ia propugnar, como se tem feito, que o estudo da cultura material
– outro nome para a Arqueologia - seja, eo ipso, multidisciplinar (Miller e Tilley 1996; e.g. Noelli 1996 a;
1996b).
Os educandos não são vasos vazios a serem preenchidos com dados, mas como pensadores e
agentes sociais (Shor 1986: 422) devem ser capazes de decifrar o mundo à sua volta (Tragtemberg 1985: 43)
e, a fortiori, na Universidade deve-se, mais do estudar, estudar para aprender a estudar, nas palavras de
Antonio Gramsci (1979: 154). Como disse, recentemente, o veterano arqueólogo norte-americano, John L
Cotter (1999: 39), “os fatos qualquer um pode adquirir e aprendi que as pessoas podem ter acesso aos fatos
elas mesmas, caso se interessarem o suficiente. O que se deveria fazer é tentar ajudá-las a organizar sua
própria conceituação dos dados e o que farão com suas próprias vidas e carreiras, bem como abrir novas vias
de pensamento”. Há pouco, Michael Shanks (1997: 395) propunha sete objetivos para a formação dos
estudiosos da Arqueologia e vale a pena transcrevê-los na íntegra:
“a) enfatizar a importância das ligações interdisciplinares; b) construção e debate teóricos,
acompanhados de um compromisso com a prática arqueológica; c) um interesse no caráter peculiar das fontes
arqueológicas; d) um interesse em algumas questões mais amplas da teoria social; e) pragmatismo e ecletismo
mais valorizado do que uma suposta pureza teórica e ideológica; f) um aceitação do pluralismo; g) um forte
senso de criatividade da atividade arqueológica”.
As implicações de cada um desses itens para os nossos cursos de pós-graduação são claras e
diretas. Os cursos devem incentivar a interdisciplinaridade, oferecendo um currículo que abranja disciplinas
ligadas às diversas disciplinas formais. Os créditos obtidos no interior do curso devem ser complementados
131
com boa porcentagem de créditos externos. Não se pode dissociar a prática arqueológica da formação teórica,
pelo que a prática de campo ou de laboratório nunca deveria preceder a formação mais abrangente. Os debates
teóricos abrangem tanto as correntes da Arqueologia, do antiquarianismo ao pós-processualismo, passando
pelos modelos histórico-culturiais e processual, esquemas de interpretação sempre ligados a momentos
históricos específicos10. No que se refere à Arqueologia, a História da disciplina (Funari e Podgorny 1998:
420), no mundo e no Brasil, assim como das correntes interpretativas, deve estar no centro da preocupação
(cf. Trigger 1990: 4 et passim). A especificidade das fontes materiais está a exigir um estudo próprio que, no
entanto, não pode deixar de lado as reflexões de diversas ciências sobre o mundo material, da Semiótica 11 à
Física (cf. Funari 1999b). A teoria social12, entendida como o imenso universo de reflexões da Sociologia,
Antropologia, História, Filosofia e Lingüística, encontra-se no âmago mesmo da Arqueologia, ciência que
estuda, afinal, a sociedade. Não se chega a compreender que estudiosos da sociedade nunca tenham lido Levi
Strauss, Weber, Durkheim, Braudel, Foucault ou Saussure, para citar alguns pensadores apenas.
Pragmatismo e ecletismo, palavras tão temidas entre aqueles que encaram a ciência como
profissão de fé e formação de séquitos de cartilhas, constam, com destaque, na lista de Shanks. A ciência não
se confunde com a religião, nem, menos ainda, com o partido político e, por isso mesmo, os cursos e suas
linhas de pesquisa mais do que homogêneos, “coerentes” e uniformes, devem abranger um grande espectro de
concepções (Funari 1999c). No caso da Arqueologia, pragmatismo e ecletismo implicam, também, adotar
terminologias vigentes, já que estão em uso, sem reificá-las, como se refletissem alguma realidade inefável,
reconhecendo as críticas e limites dos rótulos classificatórios. Pureza ideológica não condiz com ciência. O
pluralismo parte da aceitação da diversidade de práticas e teorias (cf. Neves 1991; Funari 1992), de campos de
investigação e especialização, de vocações (Funari 1996b). A criatividade do educando expressa-se, assim,
em sua capacidade de criar sua própria trajetória intelectual, pelo que a formação não é um aprendizado ou
adestramento (Unterrichtung), mas uma verdadeira educação (Erziehung), desenvolvimento de uma
capacidade interior de reflexão e ação críticas (cf. Funari 1996). Esse abrangente programa, proposto por
Shanks, insere-se na sua constatação anterior de que a Arqueologia , além do estudo do antigo (este o sentido
primevo da palavra), deve ser, também, o estudo do poder, recuperando o sentido original da palavra arkhé,
em grego (Shanks e Tilley 1987; cf. Funari 1990).
132
Tornar-se arqueólogo no Brasil possui, no entanto, particularidades que não foram
mencionadas nos sete pontos tratados por Shanks. As especificidades da vida universitária em nosso meio, já
acenadas, bem como a conturbada História recente do país e da Arqueologia, em especial, fazem com que
haja aspectos ainda a serem discutidos. Talvez tudo se possa resumir à constatação de Ovídio (Heroid. 2, 85),
que exitus acta probat, transformado na quintessência do mundo anglo-saxão: the proof of the pudding is in
the eating13. Aqui, cabe uma digressão. Em um mundo social e acadêmico tão caracterizado pelas relações
hierárquicas e tão infenso ao mérito, como é o nosso, todo tipo de distorção é possível. Já se mencionou,
alhures, que o poder burocrático se concentra nas mãos dos que menos publicam (cf. Santos 1999b, em nota),
que, em nossa universidade, é possível obter títulos acadêmicos “por decreto”, em triste herança dos tempos
da cátedra. Neste contexto, torna-se compreensível a referência à prova dos fatos. Tornar-se arqueólogo, neste
artigo, significa tornar-se arqueólogo de verdade, no sentido forte da palavra, acadêmico, não poderoso,
brilhante, admirado e temido, por falar (e pouco publicar) ex auctoritate. Em outras palavras, tornar-se um
acadêmico requer desligar-se do poder paroquial e inserir-se na ciência universal. Para tanto, o primeiro
requisito é instrumentalizar-se lingüisticamente, em particular dominando a língua franca hodierna, o inglês 14.
Alguns propugnariam que, devido aos vícios, ao compadrio e ao paroquialismo local, melhor seria enviar os
interessados a estudar no exterior e apresentam como argumento exemplos de jovens PhDs cuja obra
científica notabilizou-se desde cedo. De fato, não faltam exemplos de arqueólogos nesta situação, mas há que
se considerar, em primeiro lugar, que nem todos aqueles que obtiveram título no exterior se notabilizaram por
publicarem e formarem pesquisadores, quando voltaram ao Brasil, quando mais não fosse porque o sistema
burocrático não incentivava que o fizessem (cf. exemplos em Funari 1997b). Não se trata, pois, de obter um
título no exterior, algo não tão difícil, mas ser capaz de produzir e interagir com a ciência universal e isto
poucos que foram ao exterior o fizeram.
Em segundo lugar, titular-se no Brasil não exclui a preocupação em atuar na ciência
internacional, como diversos exemplos em nosso meio arqueológico estão a demonstrar. Ademais, a solução
dos títulos obtidos no exterior, estratégia ainda adotada em diversos países, que mandam seus melhores
arqueólogos para cursarem a pós fora do país, não pode abranger um grande número de estudiosos, o que
133
dificulta a formação de massa crítica, indispensável para que a ciência, de nível internacional, possa ser
produzida em nosso próprio meio. Como quer que seja, objetivo primeiro dos cursos de pós-gradudação que
formarão arqueólogos só pode ser inserir seus quadros profissionais e seus alunos na ciência universal,
utilizando-se, entre outros recursos, das chamadas bolsas sanduíche (estágios de alguns meses no exterior),
dos convênios de cooperação internacional, do patrocínio da vinda de professores estrangeiros. Neste sentido,
a Arqueologia nacional avançou de forma significativa, pois não poucos arqueólogos estrangeiros têm estado
em nosso país, ensinando graças ao apoio de órgãos brasileiros, como o CNPq e a FAPESP 15 e órgãos
internacionais. Muitos jovens arqueólogos têm tido a oportunidade de estagiar no exterior e a inserção da
Arqueologia brasileira no contexto internacional, em poucos anos, aumentou significativamente16.
Após esta longa digressão, pode voltar-se à quintessência anglo-saxônica: the proof of the
pudding is in the eating. Tornar-se arqueólogo, como, de resto, tornar-se um verdadeiro intelectual, em geral,
depende da consciência de que nada substitui o conhecimento e que este não se confunde com poder
burocrático. Os cursos de formação de arqueólogos, cada vez mais, têm tido que se adequar aos critérios de
mérito, universais, como é o caso da publicação das pesquisas, seu debate nas revistas arbitradas estrangeiras.
Exemplos na Arqueologia brasileira não faltam. Tornar-se arqueólogo também implica reconhecer que esta
ciência tem sido reacionária, cultuando explicitamente as elites, explorando, muitas vezes, as maiorias e
minorias oprimidas em benefício nada científico e puramente monetário, como é o caso, em muitas ocasiões,
de bem pagas atividades de campo financiadas por grandes empresas 17. Contudo, não há pesquisa, nem
mesmo pré-histórica, que esteja fora dos interesses da sociedade (Veit 1989: 50) e a Arqueologia pode ser
profundamente humanista (Heckenberger, Neves e Peterson 1998: 83), particularmente relevante para uma
sociedade multicultural (Giuliani 1995: 91), sempre que atue com o povo (McGuire 1994: 830). O
engajamento do intelectual não lhe subtrai qualquer conhecimento, como alerta Pierre Bourdieu (1989: 59; cf.
Meyer 1990: 135-6), ao contrário, pois “conhecer” é “saber com” os outros 18. Tornar-se arqueólogo inclui,
assim, saber que não há trabalho arqueológico que não implique em patrimônio e em socialização do
patrimônio e do conhecimento (Tamanini 1998). Tornar-se arqueólogo consiste em saber que qualquer
escavação deve tornar-se uma publicação, acessível à comunidade científica. Significa saber que os artefatos
não podem ficar abarrotando os depósitos, inéditos. Para tanto, em diversos países, há regulamentos públicos
134
que apenas permitem que os arqueólogos desenvolvam novos projetos se publicarem, tanto o relato da
escavação, quanto o material arqueológico recolhido. Tornar-se arqueólogo implica em considerar que a
patrimonialização dos objetos faz parte integrante do ofício arqueológico 19. Neste sentido, a formação do
arqueólogo, em nosso meio, ainda é muito deficitária, pois pouca atenção se tem dado, em termos estruturais,
a esses aspectos, considerados, às vezes, estranhos à própria disciplina, enquanto, mundo afora, a Arqueologia
pública se encontra em expansão e a Arqueologia e a Educação não são mais dissociáveis (cf. Funari 1994;
Funari 1996, ambos com extensa literatura).
Tornar-se arqueólogo no Brasil hoje, portanto, apresenta diversos caminhos possíveis
(QUADRO). Para o jovem iniciante, as perspectivas são muito variadas, de acordo com as escolhas que venha
a efetuar. Tornar-se arqueólogo acadêmico, objeto primeiro deste artigo, não promete uma remuneração
fabulosa, mas oferece oportunidades excepcionais para refletir sobre a sociedade, para agir com a comunidade
em prol tanto da preservação do passado como para a transformação do presente (e.g. Tomazela 1999).
Permite que se intervenha na Educação, fazendo com que milhões de brasileiros tenham um contato mais
profundo e menos parcial com sua própria História. Incentiva os futuros arqueólogos a integrarem-se à ciência
mundial, tornando seus contatos com o exterior uma experiência dinâmica. Assim, apesar dos percalços e das
dificuldades, pode concluir-se que, em aceitando os seus desafios, tornar-se arqueólogo acadêmico, no Brasil,
abre horizontes e oferece oportunidades únicas.
QUADRO
COMO TORNAR-SE ARQUEÓLOGO PROFISSIONAL NO BRASIL EM 1999
I. PRÉ-UNIVERSITÁRIO:
1.VOLUNTARIADO EM PROJETOS DE PESQUISA
2. VOLUNTARIADO EM MUSEUS E OUTRAS INSTITUIÇÕES
135
- VANTAGENS E DESVANTAGENS: DESPERTAR O GOSTO PELO ESTUDO DA CULTURA
MATERIAL, MAS POSSIBILIDADE DE SE DECEPCIONAR POR DEFICIÊNCIA NA FORMAÇÃO
ACADÊMICA
II. UNIVERSITÁRIO:
1. GRADUAÇÃO:
A. EM ARQUEOLOGIA (CURSO NÃO RECONHECIDO PELO MEC)
- VANTAGENS E DESVANTAGENS: ESPECIALIZAÇÃO PRECOCE, POUCO CONTATO COM
ÁREAS AFINS
B. EM DISCIPLINA UNIVERSITÁRIA RELACIONADA (HISTÓRIA, ANTROPOLOGIA, BIOLOGIA,
SOCIOLOGIA, GEOGRAFIA, LETRAS, ENTRE OUTRAS)
- VANTAGENS E DESVANTAGENS: CONTATO COM ÁREAS RELEVANTES DA CIÊNCIA,
ESPECIALIZAÇÃO MAIS TARDIA
2. PÓS-GRADUAÇÃO:
A. EM ARQUEOLOGIA
- VANTAGENS E DESVANTAGENS: ESPECIALIZAÇÃO, MENOR ÊNFASE NAS CIÊNCIAS AFINS
B. EM PROGRAMA DE ÁREA RELACIONADA
- VANTAGENS E DESVANTAGENS: CONTATO COM ÁREAS RELEVANTES DA
CIÊNCIA, ESPECIALIZAÇÃO MAIS TARDIA
III. PERSPECTIVAS PROFISSIONAIS:
1. NA ACADEMIA
- VANTAGENS E DESVANTAGENS: PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO, POSSIBILIDADE DE
DESENVOLVIMENTO DE PROJETOS DE ÂMBITO INTERNACIONAL, MAS OS SALÁRIOS NÃO
SÃO ELEVADOS
2. EM MUSEUS, INSTITUIÇÕES PATRIMÔNIO E OUTRAS
136
- VANTAGENS E DESVANTAGENS: IMPORTÂNCIA SOCIAL DA ATIVIDADE DO ARQUEÓLOGO,
MAS POUCO INCENTIVO À PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO E BAIXOS SALÁRIOS
3. NA CONSULTORIA (ARQUEOLOGIA DE CONTRATO)
- VANTAGENS E DESVANTAGENS: RENDA ELEVADA, MAS POUCO INCENTIVO À PRODUÇÃO
DE CONHECIMENTO E RESTRIÇÕES À CRÍTICA SOCIAL
AGRADECIMENTOS:
Agradeço aos seguintes colegas: Warwick Bray, Adriana Schimdt Dias, Fábio Faversani,
Norberto Luiz Guarinello, Siân Jones, Alexandros-Phaidon Lagopoulos, Randall McGuire, Daniel Miller,
Walter Alves Neves, Francisco Noelli, Nanci Vieira Oliveira, Laurent Olivier, André Prous, Michael Shanks,
Elizabete Tamanini, Cristopher Tilley, Bruce G. Trigger. A responsabilidade pelas idéias, naturalmente,
restringe-se ao autor.
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NOTAS
Recentemente, Cristiana Barreto (1999) considerou “falsa qualquer tentativa de caracterizar uma politização
da disciplina para este período como o faz Funari (1992b)”. A cassação de Paulo Duarte e seu afastamento da
direção do Instituto de Pré-História, em 1969, as sucessivas reuniões de Betty Meggers e Clifford Evans e as
autoridades políticas, não só acadêmicas, impostos pela ditadura, o apoio oficial de órgãos do Estado, como o
1
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CNPq, a ascenção acadêmica, com destaque na Arqueologia, de personagens cuja vinculação com altos
hierarcas do regime militar era explícita, até mesmo por laços matrimoniais, monstram que não houve
politização da disciplina, mas uma explícita relação, em nada científica, entre arqueólogos e o poder político
discricionário. Neste sentido, não se pode entender o uso de um adjetivo como “falsa” senão como uma
tentativa de impor, apenas com recursos discursivos apodíticos, um ponto de vista que serve para “livrar a
cara” daqueles que estiveram profundamente envolvidos com o arbítrio. Sobre o poder do esprit de corps de
intelectuais que participaram de regimes de força, veja-se o caso de Vichy, estudado por Sonia Combe (1996),
em diversos aspectos similar à situação brasileira. Suas palavras conclusivas merecem ser citadas, referindose aos intelectuais: unless they are careful, run the risk of letting themselves be guided by ‘functional
imperatives serving both the production of consensus and social integration’. This was Jürgen Habermas’
warning warning to German historians. He was a non-historian, as his opponents never stopped emphasizing,
whose vigilance had launched the Historikerstreit and who, on that occasion, was surprised to discover
among scientists the attitudes of ‘political men engaged in conflict’ (Habermas 1988: 57).
2
Cf. Schmitz (1989: 47): “Faz pouco mais de vinte anos que a Arqueologia brasileira começou a receber
verbas públicas e a desenvolver ambiciosos programas exploratórios, acompanhados de um treinamento mais
orgânico do pessoal”; Dias (1995: 35): “A implantação do Programa representou um salto quantitativo e
qualitativo para a Arqueologia Brasileira. Sua implementação possibilitou que, em apenas cinco anos, fossem
levantados mais de 1500 novos sítios arqueológicos, enquadrados em um modelo cronológico e espacial de
que carecia a Pré-História brasileira... O Pronapa também foi responsável por fomentar a multiplicação de
centros de pesquisa arqueológica no país, que passaram a formar um número cada vez maior de pesquisadores
qualificados”; compare-se com Lewgoy (1997: 248), Noelli (1999), neste artigo. Diversos arqueólogos
engajaram-se no discurso do poder, saudando o regime militar e seu desenvolvimentismo; cf. (Meneses 1968:
43) “a importância que se vem atribuindo (sc. nos anos imediatamente anteriores a 1968) à Universidade
como fator de desenvolvimento”.
3
Cf. Lewgoy (1997: 248): “Pelos depoimentos de nossos informantes, percebemos que os ensinamentos
passados pelos representantes do Smithsonian resumiram-se a técnicas de coleta e interpretação de dados,
tendo sido desprezados deste intercâmbio a oferta global de orientações teórico-metodológicas, bem como o
espectro de problemáticas de pesquisa disponíveis nos Estados Unidos à época”.
4
Neves (1998: 628): no excavation profiles, or the actual artefact composition of each leve are presented.
One has to wait the full publication of the Pronapaba reports”. Note-se que as pesquisas na Amazônia,
referidas por Neves, estão completando trinta anos!
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A importância da compilação de corpora era já bastante conhecida na Arqueologia européia, como ressalta
Wheeler (1956: 211): The advantages of a scholarly corpus or yardstick need no further emphasis and the
extension of the corpus-system is certainly no less urgent now than it was in Petrie’s day. Haiganuch Sarian,
há anos, tem propugnado a necessidade de se publicarem corpora também para o material arqueológico préhistórico brasileiro (sobre o papel de Sarian na formação de arqueólogos brasileiros, cf. Funari 1997b).
6
Prous (1994: 20) descreve a Sociedade de Arqueologia Brasileira com palavras fortes: SAB, dont la
structure hiérarchisée a permis de contrôler les destinées de l’archéologie du pays. Um tal domínio não se
entenderei fora do contexto de uma sociedade hierarquizada, sob jugo de uma ditadura; cf. Pereira (1998: 64).
7
Cf. Neves (1988: 209): “É evidente que, nesse caso, os centros de formação domésticos acabam
funcionando justamente ao contrário, ou seja, acabam funcionando como um instrumento vil de perpetuação
do modelo epistemológico hoje vigente na Arqueologia brasileira”; sobre os limites da liberdade acadêmica
no Brasil, em geral, consulte-se Funari (1999a; 1999b); cf. Funari 1988c.
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Cf. Milton Santos (1999): “A institucionalização crescente da vida universitária acaba por forjar uma teia,
cada dia mais sólida e visível, em que o trabalho rasteiro é deixado a alguns assessores, que recrutam
subserviências no baixo e médio clero, editando medidas ditas saneadoras da administração e das finanças,
cujo resultado final é a limitação à liberdade do pensar e do dizer, enquanto, espertamente, autoridades
superiores, cada vez mais comprometidas com os meios e mais descompromissadas com as finalidades da
educação, inundam o mercado com discursos eloqüentes, mas vazios”.
9
Cf. Wolfram (1986: 9): Der Begriff ‘historierende’ Archäologie zur Beziechnung der Archäologue jener
Jarhzehnte (1920 bis 1968) wurde gewählte, da V. G. Childe unde seine Generation die Ansicht vertraten, die
Archäologie sei Teil der Geschichtswissenschaften um Ihr Ziel die Interpretation bzw. Rekonstruktion
einzelner Ereignisse in der Vergangenheit.
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Cf. Erich Fromm (1969: 15): Ideas have their roots in the real life of society.
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Um exemplo bastará: a Arqueologia espacial, iniciada, com este nome, na década de 1960 e hoje travestida
de Arqueologia da paisagem muito tem a interagir com a Semiótica do espaço (cf. Lagopoulos 1998).
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Entenda-se teoria, à maneira dos gregos, em seu sentido amplo, englobando tanto grandes quadros
interpretativos, como mais prosaicas explicações, como as middle range theories; cf. crítica a estas últimas,
em Wehler (1979a:17): Jedermann wird vermutlich der Meinung beipflichten können, dass das Wort ‘Theorie’
in den letzten Jahren eine inflationäre Aufblähung erlebt hat. Nicht selten ist es an die Stelle von ‘plausibler
Interpretation’ getreten, hat manchmal sogar nur ‘These’ gemeint oder genau das bezeichnet, was bei
Droysen eine mehr oder minder gute ‘Fragestellung’ geheissen hätte.
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Cf. Wehler (1979b: 60): Das in der historischen Erzählung wenigstens zum Teil miteingebaute
Erklärungsangebot finde ich im Vergleich mit expliziter, diskussionsfähiger historischer Theoriebildung wit
unterlegen. In der Tat: the proof of the pie is in the eating.
14
Cf. Olivier (1999a): En ce qui me concerne, j’utilize l’Anglais comme ‘lingua franca’ qu’elle est désormais;
o jornal da ADUSP, em seu número de julho de 1998, p. 56, reproduziu uma sintomática notícia da Nature
(9/4/98), que seria bastante pertinente ao caso brasileiro e que, por isso, merece ser transcrita: “Novo sistema
de avaliação reduz o poder dos ‘barões da ciência’ na Itália. O novo sistema intituído na Itália tem
privilegiado a qualidade dos projetos e reduziu bastante a pulverização de recursos que gerava uma
distribuição ampla e, conseqüentemente, escassa de recursos por grupo de pesquisa. Alguns nomes bem
conhecidos não conseguiram, pela primeira vez, renovar seus auxílios por falta de mérito científico. Os
pedidos de auxílio devem ser apresentados tanto em inglês como em italiano, de maneira a permitir a
participação de consultores externos” (grifo acrescentado).
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Um bom exemplo, recente e entre outros, refere-se à vinda de Siân Jones, com apoio da FAPESP e da
British Academy, tendo ensinado na pós-graduação da UNICAMP, cujos alunos puderam tomar contato com
obras suas inéditas, como seu livro, publicado em 1997, ano em que esteve aqui. Desta forma, pôde discutirse uma obra cujas qualidades fariam com que fosse, em menos de dois anos, resenhada nas principais revistas
internacionais e brasileiras.
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Em 1991, terminava artigo constatando que três passos se faziam necessários: 1. To know, debate, exchange
ideas and integrate archaeology with other social sciences; 2. To integrate Brazilian archaeology with
archaeology as practised everywhere else in the world; 3. To adopt a Code of Ethics...to prevent archaeology
being used against indigenous minorities and other oppressed people, and to prevent the return of political
persecution within or outside academic life (Funari 1991: 128; cf. em castelhano, Funari 1992: 64-65).
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Trata-se de algo universal, como assinalaram McGuire e Walker (1999), mas cujos contornos, em uma
sociedade tão desigual como a brasileira, tornam-se dramáticos. Recentemente, Noelli (e.g. 1994;1995;1996c)
tem produzido diversos estudos contundentes a respeito. Em um artigo sobre a formação do arqueólogo no
Brasil, não caberia desenvolver este tema, que merece uma reflexão específica. Registre-se, no entanto, que o
único critério universalmente aceito para a chamada Arqueologia de Contrato consiste na produção científica
que deve resultar de qualquer atividade contratada por uma empresa, o que nem sempre ocorre no Brasil. A
formação de iniciantes na Arqueologia nesse ambiente pode ser, portanto, bastante inadequada, pois o que se
tem que aprender é a produzir ciência, o que nem sempre é o caso na Arqueologia de Contrato.
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Conscientia, “saber com”, implica na interação social.
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Um dos motivos de se desconsiderar o aspecto patrimonial da Arqueologia advém da noção estreita,
defendida por alguns, de que “a Arqueologia não é o estudo de objetos, de coisas” (Meneses 1980: 6), o que
descaracteriza a inevitável ligação entre a Arqueologia e a apropriação dos artefatos pela sociedade.