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Arqueologia e Patrimônio

This retrospective paper will shed light on the relations between Linguistics and Archaeology by drawing special attention to the history of Archaeology and the influence of Linguistic models for the development of archaeological interpretive frameworks. Reference will be made to culture history theoreticians, like Gordon Childe, to processual archaeologists influenced by Structuralism and to post-processual discourse analysis. The paper will conclude stressing the importance of Linguistics to archaeological thought.

1 FUNARI, P. P. A. . Arqueologia e Patrimônio. Erechim: Habilis, 2007. 168p . LINGÜÍSTICA E ARQUEOLOGIA Pedro Paulo Abreu FUNARI (Universidade Estadual de Campinas) ABSTRACT: This retrospective paper will shed light on the relations between Linguistics and Archaeology by drawing special attention to the history of Archaeology and the influence of Linguistic models for the development of archaeological interpretive frameworks. Reference will be made to culture history theoreticians, like Gordon Childe, to processual archaeologists influenced by Structuralism and to post-processual discourse analysis. The paper will conclude stressing the importance of Linguistics to archaeological thought. Key-words: Culture History, Historical Linguistics, Structuralism, Processual Archaeology; Post-Processual Archaeology, Discourse Analysis. Palavras-chave: Histórico Cultural, Lingüística Histórica, Estruturalismo, Arqueologia Processual, Arqueologia Pós-Processual, Análise de Discurso. Introdução A Arqueologia é uma disciplina cuja multiplicidade de enfoques e especializações dificulta que se possam tecer generalizações a seu respeito. Uma primeira grande questão refere-se à sua posição em 2 relação às outras ciências, pois alguns a consideram uma técnica, enquanto outros preferem considerá-la uma ciência. Alguns consideram-na uma disciplina auxiliar de uma ciência interpretativa maior, como a Antropologia ou a História, outros rejeitam essa dicotomia. Um grande número considera que ela estuda o passado, embora outros admitam que pode tratar, também, do presente. Todos têm como ponto em comum, no entanto, o fato de a Arqueologia construir seu conhecimento, principalmente, a partir da cultura material (cf. Funari, 1998: 9-16). Este preâmbulo fazia-se necessário para que se pudesse introduzir a discussão sobre a relação entre a Lingüística e a Arqueologia de forma adequada. De fato, a Arqueologia engloba uma série de disciplinas, mais específicas, cujos pontos de contato podem não ser numerosos, como a Pré-História e a Arqueologia Histórica, a paleografia e a paleobiologia, a Arqueologia Clássica e a os estudos líticos, para mencionar apenas uma fração das especializações correntes. Neste contexto, meus objetivos neste ensaio não pretendem abarcar, diretamente, as relações entre a Lingüistica e a Arqueologia em todos os campos desta última e em todas as variedades teórico-metodológicas, mas, de maneira mais modesta, destacar as relações históricas e estruturais entre ambas. Na medida em que se estará buscando as origens dessas ligações, far-se-á uso do aporte da Filologia e, no que se refere ao século XX, a Lingüistica será tomada em sentido igualmente amplo. A Língüística romântica e o nascimento da Arqueologia A língua, para os românticos, era uma preocupação central, e as línguas estariam ligadas a determinados locais, paisagens e clima, expressões individuais de povos específicos, a serem guardados ciosamente. Isto levou ao desenvolvimento da Filologia histórica com seus dois modelos principais, tronco e famílias lingüísticas. Na Lingüística histórica, os pressupostos de origens simples, seguidos de ramificações e divergências, identificáveis a posteriori, tornaram-se ubíquos na disciplina. Os modelos de tronco e família lingüísticas não favoreciam a concepção de misturas ou convergências, reforçando o axioma inicial de que cada língua teria uma essência cujos contatos históricos não alterariam nunca. Neste contexto, no final do século XVIII, o interesse pela Índia, em geral, e pelo sânscrito, em particular, levou à constatação de que a 3 afinidade, tanto de raízes verbais, como de formas gramaticais, entre o sânscrito e as línguas européias devia explicar-se por uma origem comum. Tais povos e línguas originais foram logo designados como indoeuropeus, por franceses e ingleses, e Indogermanisch pelos cientistas de língua alemã. Uma raça, ariana, seria a portadora dessa língua e esse povo foi logo considerado superior por fatores lingüísticos. Assim, foram distinguidos dois tipos de língua, as línguas nobres, flexionadas, de origem espiritual, que permitiam o desenvolvimento da inteligência e o pensamento abstrato e universal, como as línguas indo-européias, e as línguas não-flexionadas, de tipo animalesco, como todas as outras. É notável como os principais lingüístas, em particular na Alemanha, como Humboldt, estabeleceram as bases tanto das modernas ciências humanas como do novo sistema universitário (Reill, 1994: 365). Humboldt estabeleceu a superioridade cultural dos gregos, resultado de sua análise da perfeição lingüística do grego antigo, resultado, como o próprio alemão, da sua autenticidade e pureza, não contaminadas por elementos estrangeiros. Os lingüistas, ao relacionarem o grego ao sânscrito e ao criarem a noção de indo-europeus, elevaram, paralelamente, a Philologie ao estatudo de ciência exata (Wissenschaft), acima da necessidade de evidências históricas externas que validassem seus esquemas interpretativos, fundados na migração de povos portadores de línguas. A origem lingüística da vida social pode ser avaliada por uma passagem de Ernst Curtius, datada de meados do século passado: “O povo que soube, de uma maneira tão peculiar, desenvolver o tesouro comum da língua indo-germânica foi o heleno. O primeiro feito histórico foi o desenvolvimento desta língua, feito já artístico. Entre suas irmãs, o grego deve ser considerado uma obra de arte, a tal ponto que, se dos helenos só nos restasse sua gramática, seria já um testemunho integral e válido dos dotes extraordinários e naturais deste povo. A língua toda parece o corpo de um atleta treinado, no qual cada músculo e cada tendão desenvolve-se, plenamente, sem materia inerte, tudo é poder e vida” (Curtius, citado em Bernal, 1991: 334-5). Estabelecida a equação entre língua e raça, no contexto evolucionista do século passado, logo buscou-se no difusionismo a explicação para o desenvolvimento da civilização nos diferentes rincões 4 (sobre a continuidade do uso do conceito de difusionismo, consulte-se Ruiz, 1996). Flinders Petrie, embora viesse de uma área técnica, com sua base na engenharia, pode ser considerado, a justo título, um dos fundadores da moderna Arqueologia, ainda que seja conhecido, em geral, como egiptólogo. Petrie dirigiu-se ao Egito, em 1880, para verificar se o que diziam sobre as pirâmides era verdade, tendo comprovado os diversos avanços técnicos dos egípcios e desenvolvido um método de classificação tipológica para ordenar os diferentes estilos da cerâmica local. Essa tipologia, uma das bases fundamentais de toda a Arqueologia, fundava-se em uma analogia com a classificação lingüística, que se utilizava de termos como “troncos e famílias” lingüísticas, substituindo-se, apenas, a língua pela forma dos artefatos. Sir Flinders Petrie inventou a chamada “datação por seqüência” (sequence dating), no início deste século, ao classificar uma série de tumbas egípcias, de acordo com uma seqüência cronológica. Sua classificação partiu da cerâmica encontrada nas tumbas, que foram colocadas em uma ordem, de maneira que as diferenças eram vistas como o resultado de uma série lógica de mudanças. Por exemplo, as alças de um pote tornavam-se progressivamente menores, até serem reduzidas a uma simples linha pintada na lateral do vaso, na posição antes ocupada pela alça saliente. Classificando os potes de acordo com a progressiva diminuição do tamanho da alça obtém-se uma datação relativa da série de artefatos. A inspiração lingüística desta classificação é clara: assim como a lingüistica histórica pode reconstruir a seqüência est (latim), *es, é (português), também o arqueólogo propôs classificar os artefatos (Deetz, 1967: 32). Os desdobramentos desta analogia lingüística seriam múltiplos e pode dizer-se que toda a Arqueologia do século XX fundou-se, como veremos adiante, nesta matriz. A relação entre língua, raça e cultura material seria outro passo decisivo na constituição da Arqueologia. Esta equação surgiu, de maneira sintomática, na obra de um filólogo e pré-historiador alemão, Gustav Kossina (1911), cuja preocupação era determinar elementos da cultura material que correspondessem a um povo conhecido e definido por sua língua, os germanos (Jones, 1997). Partia-se do axioma que em todos os períodos, áreas culturais arqueológicas coincidem com povos ou tribos reconhecíveis, com a ocupação de um dado território e com uma língua, ou dialeto, próprios. Procurava-se distinguir, assim, os grande grupos língüísticos, e portanto étnicos, dos germanos, eslavos e celtas, na Pré-História, bem como culturas individuais, que corresponderiam a dialetos lingüisticos, como é o caso dos vândalos ou dos lombardos (Trigger, 1989: 165). Teríamos o seguinte esquema lógico: 5 Línguas Germânicas Célticas Eslavas Povos Germânicos Celtas Eslavos Territórios Germânicos Celtas Eslavos Celta Eslava Cultura material Germânica Na Pré-História, caberia ao arqueólogo fazer o caminho inverso à lógica formal, que parte da existência da língua, identificando um conjunto de artefatos, que se distribuem por um território e que corresponde, necessariamente, a um povo e a uma língua, ainda que não tenhamos acesso direto a esta última. O grande divulgador desta teoria, que viria a ser conhecida como “histórico-cultural”, foi Gordon Childe, cuja advertência de que “a cultura, entretanto, se não representa necessariamente um grupo lingüístico, representa geralmente um grupo local que ocupa uma área geográfica contínua” (Childe,1960: 17-18), não deixa dúvida quanto ao paradigma língüístico de sua concepção de cultura: “Sendo a linguagem um veículo tão importante na formação e transmissão da tradição social, o grupo assinalado pela posse de uma ‘cultura’ distinta provavelmente falará também uma linguagem distinta...cada língua é produto de uma tradição social e age sobre outras formas tradicionais de comportamento e pensamento. Menos familiar é o processo pelo qual as divergências de tradição atingem até a cultura material.... ‘next Friday’, na Inglaterra, transforma-se em ‘Friday first’ na Escócia...Na Irlanda e no País de Gales os trabalhadores rurais usam pás de cabos longos, ao passo que na Inglaterra e na Escócia os cabos são muito mais curtos. O trabalho realizado é, em cada caso, o mesmo, embora o manuseio do instrumento seja, evidentemente, diverso. As divergências são puramente convencionais...As divergências lingüísticas devem ser tão velhas quanto as divergências culturais identificáveis no registro arqueológico” (Childe, 1960: 15-17). A influência da Lingüística de Saussure (1955) aparece na adaptação à cultura material de conceitos desenvolvidos para a língua. Assim, a regularidade absoluta das modificações fonéticas transformase em mudanças regulares na forma dos artefatos, a Lingüística geográfica, que procura explicar a dispersão 6 das línguas e sua possível concomitância em um mesmo lugar fornece à Arqueologia um modelo de causalidade das extensões geográficas das chamadas “culturas” arqueológicas. No entanto, a leitura arqueológica de Saussure poderia ser definida como seletiva, instrumental, como se o modelo estrutural da Lingüística fosse antes um fato do que uma interpretação. Desta forma, as considerações prudentes de Saussure sobre a questão da relação entre língua, raça e mentalidade foram deixadas de lado, o que acarretaria uma separação muito nítida entre a Língüística e a Arqueologia. Assim, Saussurre alertava que língua e raça não coincidem e que a cultura, o modo de pensar, chamado de “mentalidade”, não deriva da língua utilizada e, de forma explícita, negava a existência de uma mentalidade semita e outra indoeuropéia (Saussurre, 1995: 311). Em outros termos, o caráter radicalmente arbitrário da língua, ressaltado por Saussure, foi negligenciado, a favor de uma leitura culturalista e racial. Childe derivava, pois, o conceito de cultura, usado na Arqueologia, daquele formulado pela Lingüística e sua leitura dos axiomas correntes na Lingüística histórica (Harris, 1994), prevalecente até o pós-guerra, fazia com que também propusesse a existência de línguas e, portanto, povos e culturas, superiores, sempre a partir do critério língüístico, como transparece, de forma mais notável, no seu livro sobre “Os arianos”, publicado em 1926: “as línguas indo-européias e sua pressuposta língua de origem foram, sempre, excepcionalmente, instrumentos delicados e flexíveis do pensamento...pelo que se pode supor que os arianos foram dotados de dotes mentais excepcionais, senão do usufruto de uma alta cultura material” (Childe, 1926: 4). O período posterior à Segunda Guerra Mundial viria a desvalorizar os aspectos mais claramente racistas destas teorias, como reação explícita à manipulação nazista desta identificação entre raça, língua e um ethos imutável. No entanto, não caiu totalmente em desuso algo que havia sido popularizado pela Arqueologia no meio século anterior: a confecção de mapas das migrações de povos, falantes de certas línguas e portadores de uma cultura material específica. Assim, um mapa de supostas expansões territoriais de povos de língua germânica, feito por um arqueólogo nazista, Hans Reinerth, continuou a ser contraposto a mapas de outras expansões, como a migração de povos de fala eslava, feito por um polonês, Konrad Jazdzewski, sendo, talvez, o exemplo mais recente e elaborado aquele proposto por Colin Renfrew (1987 a); 7 uma crítica consistente encontra-se em Kohl, 1992, 169-173). Em outros termos, a busca dos indo-europeus, por parte da Arqueologia (cf. Dolukhanov, 1995; Häusler, 1995; crítica em Funari, 1996), e a aceitação de uma relação direta entre língua, povo e evidência material continua sendo atual (cf. crítica em Jones e GravesBrown, 1995: 7) e suas ligações com a lingüística histórica são diretas. Na América do Sul (Brochado, 1984), a Pre-História também tem buscado identificar línguas, povos e artefatos, sempre a partir dos esquemas de filiação lingüística, como no caso das línguas tupis, e procurando identificar migrações de povos, com suas línguas e artefatos, estes últimos os únicos preservados arqueologicamente. A dispersão lingüística continua a servir de modelo para a difusão de formas de objetos, como no caso dos vasos da tradição Pedra do Caboclo (cf. discussão de um caso recente, em Neves, 1998). Pode concluir-se que grande parte da Arqueologia contemporânea continua a usar os modelos da língüística de pré-guerra, sendo, provavelmente, o exemplo mais elaborado o livro de Colin Renfrew sobre “Arquelogia e Língua” (Renfrew, 1987b; cf. crítica em Huld, 1993). Lingüística estrutural, análise de discurso e Arqueologia O período do pós-guerra testemunhou o surgimento de outras influências de desenvolvimentos da Lingüística nas demais ciências, que se somaram às anteriores, em particular na Arqueologia. A Lingüística estrutural viria a ter um impacto muito forte na Arqueologia, em particular a partir da década de 1960. Contudo, isto não significa que se tenha abandonado a analogia com a Lingüística histórica, pelo contrário, esta continou a servir de modelo, em especial no que se refere à classificação e seriação tipológica dos artefatos. Aceitando-se a noção de que a língua passa por um nascimento, crescimento, apogeu, declinío e substituição por outra, aplicou-se o mesmo aos artefatos: LATIM ARCAICO ESTILO INICIAL LATIM PRÉ-CLÁSSICO ESTILO EM CRESCIMENTO LATIM CLÁSSICO ÁPICE LATIM PÓS-CLÁSSICO DECLÍNIO DO ESTILO 8 LÍNGUA ROMÂNICA NOVO ESTILO Este método, chamado de seriação, parte do pressuposto de que os artefatos passam por um ciclo analógico àquele de uma língua e caberia, assim, ao arqueólogo que encontra um artefato, colocá-lo na correta posição, relacionando uma suposta regra universal que afetaria línguas, artefatos e povos. Embora o esquema de nascimento, crescimento, apogeu, declínio e fim seja, de maneira direta, emprestado à vida, não à língua, sua adoção como método com estatuto de discurso científico derivou da segurança científica da análise lingüística histórica. No entanto, a seriação em Arqueologia levou a uma prática tautológica, pois a colocação dos elementos em uma ordem deriva deste ciclo a priori, não de datações externas independentes que mostrassem, ao arqueólogo, que o esquema proposto estava, sempre, correto. No entanto, a generalização do uso da seriação, ainda que esta se baseie em axiomas não verificáveis, explica-se, em grande parte, pelo caráter científico da análise lingüística que estava na base do método arqueológico. Depois disso, na década de 1960, com o desenvolvimento da chamada Arqueologia Processual, a Lingüística estruturalista exerceu uma influência determinante na formulação de uma metodologia arqueológica estritamente “lingüística”. Segundo essa perspectiva, os artefatos, como as palavras, seriam os produtos da atividade motora humana, por meio da ação dos músculos e sob uma orientação mental. A forma resultante de qualquer artefato consistiria de uma combinação de unidades estruturais -- os atributos -- que, com determinada combinação, produz um objeto com função específica na cultura que o produziu. Se mudarmos qualquer atributo, sua significação funcional mudará, se a mudança for suficiente para alterar sua significação. Em outras palavras, haveria unidades estruturais, nos artefatos, correspondentes aos fonemas e morfemas na linguagem, o que demonstraria, muito mais do que uma simples analogia, uma identidade de estrutura essencial entre a língua e os objetos. Um exemplo, apresentado por James Deetz (1967: 83-101), permite avaliar o grau de adequação do modelo lingüístico para a análise arqueológica. Ao classificarmos pontas de flecha provenientes de um determinado sítio, encontramos três tipos. Um tipo tem base e laterais retas, com uma chanfradura perto da base; outro é semelhante, mas tem base denteada; o terceiro tem lados e base retos e não tem chanfradura. Esta classificação funda-se em três atributos -- chanfradura na lateral, na base e na forma dos lados. 9 Se aceitarmos que as chafraduras nas laterais ou na base têm algum sentido funcional, pontas de flecha idênticas, exceto pela presença ou ausência de chanfraduras nas laterais, formariam um par mínimo, distingüíveis com base em um único elemento estrutural, assim como as palavras mata e bata formam um par lingüístico mínimo. Igualmente, as pontas de flecha que são idênticas, exceto pela presença ou ausência de chanfraduras na base, formariam, também, um par mínimo, se servissem a diferentes propósitos. Esta chanfradura é, normalmente, um fator na colocação de um cabo, a maneira como a ponta da flecha era ligada à flecha, pelo que é razoável supor a existência de uma diferença funcional. Chanfradura das laterais poderia ser, portanto, considerada como equivalente a um fonema, tendo Deetz proposto o uso do neologismo factema para se referir a isso. A definição de factema seria, então, a classe mínima de atributos que afeta a significação funcional do artefato. As chanfraduras poderiam variar consideravelmente de forma, contanto que a significação funcional da ponta de flecha não fosse alterada por essa variação, sendo estas variantes do factema consideradas como alofatos. A origem deste raciocínio na Lingüística estrutural é clara, pois a variação alofônica deriva, em parte, das imperfeições ou variações no aparelho produtor da fala e algumas variações nos factemas são o resultado de expressões imperfeitas do mundo mental para aquele material. Os morfemas da Língüística foram renomeados, chamados de formemas da cultura material, a classe mínima de objetos que tem significação funcional. Neste contexto, as pontas de flecha formam morfemas, que combinam com outros morfemas para produzir outros artefatos. Continuando no exemplo da flecha, poderíamos dizer que se constitui de cinco formemas: haste, cabeça, penas, cimento de encaixe e pintura ou desenho na haste. Cada um desses formemas pode aparecer em outros contextos, mas juntos formam algo específico. O estruturalismo lingüístico, levado, talvez, a suas últimas conseqüências por Deetz, seria adotado, de forma mais genérica e menos literal pela Arqueologia daquele período, em geral (cf. Carandini, 1979). Em alguns casos, como no estudo de petroglifos, alguns arqueólogos utilizaram o modelo da evolução lingüística para interpretar a transformação estilística, como no exemplo de uma evolução a partir de uma linha reta coroada com um ponto, ou a partir de um ângulo ou de um círculo (Porras, 1992). De uma 10 forma ou de outra, assim, este modelo, inspirado no estruturalismo lingüístico, continua a ser um dos mais fortes referenciais para a interpretação arqueológica. Já na década de 1970 podia afirmar-se que “a preocupação central das ciências do homem é a linguagem” (Vogt, 1989: 62). A Lingüística, no entanto, passou a incorporar outras abordagens, em particular introduzindo uma noção sócio-histórica de discurso, de maneira que se entende que as condições sociais determinam mesmo as propriedades do discurso (Fairclough, 1990: 17; 155). A introdução das classes sociais e dos contextos históricos específicos (Kress e Hodge, 1979) e a valorização do exosemiótico, para usar um termo de Lagopoulos (1986: 234), representou uma nova onda de influência lingüística, a partir de autores como Rossi-Landi (1975; 1986). Para a Arqueologia Pós-Processual, iniciada na década de 1980, a cultura material poderia ser considerada como um sistema de sinais em código que constitui sua própria língua material, ligada à produção e ao consumo. Esta linguagem, entretanto, não reflete, de forma direta, as estruturas significativas de uma língua em outra forma, como se, a cada passo, a analogia entre sistema de linguagem verbal e material devessem corresponder rigorosamente. Como a língua, a cultura material é uma prática, práxis simbólica com produto de significado determinado e específico, que precisa ser situado e compreendido em relação à estrutura global do social (Shanks e Tilley, 1987: 101). Se, para Saussurre, a relação entre significante e significado era inteiramente arbitrária então, e seguindo os passos de Derrida (1976; 1978), Barthes (1977) e Foucault (1981), as oposições e diferenças poderiam ser estendidas indefinidamente. Na medida em que o significado é dado pela diferença, mais do que pela identidade, a linguagem não pode ser um sistema fechado. Os sentidos dos sinais são sempre ambíguos, pois se um sinal é constituído pelo que não é, pela diferença, com relação aos outros, não pode haver uma relação fixa entre um significante e um significado, já que o significado é, imediatamente, o significante de um outro significado. O sentido, portanto, é o resultado de um jogo sem fim de significantes. Na esteira destas preocupações, pode considerar-se a cultura material como um discurso material estruturado e silencioso, ligado às práticas sociais e às estratégias de poder, interesse e ideologia. Se a própria Lingüística é uma empreitada que não dispensa a pluralidade de pontos-de-vista (Barthes, 1966:84), uma ideologia (Rajagopalan, 1996), a mesma subjetividade passou a ser elemento central da Lingüística apropriada pelas 11 outras ciências humanas (Iggers, 1995: 560). Os fundamentos semióticos das ciências (Grzybek, 1994) implicavam em considerar a própria textualidade do discurso acadêmico. Na Arqueologia, há dois discursos a serem analisados: aquele da cultura material e sua representação, em forma de texto, sobre a cultura material. A discursividade da cultura material, objeto de atenção básica da Arqueologia, tem merecido particular consideração. A cultura material pode ser concebida como constituída por uma série de signos metacríticos, signos cujo sentido mantém-se radicalmente disperso por uma cadeia aberta de significantes-significados. O sentido do registro arqueológico, nesta perspectiva, não se reduz aos seus elementos constitutivos mas o que se busca são as estruturas, e os princípios que compõem essas estruturas, subjacentes à tangibilidade visível da cultura material. A análise visa, assim, descobrir o que está oculto nas presenças observáveis, levar em conta as ausências, as co-presenças e coausências, as semelhanças e diferenças que constituem o padrão da cultura material em uma contexto espacial e temporal específico. Os princípios que regem a forma, natureza e conteúdo deste padrão encontram-se tanto em termos de micro-relações (como um conjunto de desenhos em um vaso cerâmico) quanto de macrorelações (como o conjunto de relações entre assentamentos e enterramentos), estando sempre inextricavelmente ligados. Segundo estas abordagens, a cultura material não significa tanto uma relação entre as pessoas e a natureza, como relações entre grupos, relações de poder, portanto. A forma das relações sociais fornece uma rede na qual a força sígnica da cultura material permite definir, redefinir, organizar e transformar essa mesma red (grid). As próprias relações sociais articulam-se em um campo de significado parcialmente estruturado pelo pensamento e pela linguagem, sendo capaz de reforçar os sentidos reificados e inscritos na cultura material. A cultura material como constituída por cadeias de significantes-significados não deve ser tratada de forma simplista, como se representasse algo em particular, como, por exemplo, se o uso do vermelho estivesse sempre a indicar o sangue ou se vasos de certa forma fossem considerados de uso feminino, e outros de uso masculino. A força sígnica da cultura material depende da estrutura das suas interrelações e o sentido de qualquer artefato específico está sempre interseccionado pelo sentido de outros artefatos. Os artefatos, assim, formam elos em uma cadeia de objetos, em um campo aberto de signos. De 12 acordo com estas leituras da Lingüística aplicadas à Arqueologia, seria falso considerar que a cultura material expressa exatamente o que se exprime na língua, com uma simples mudança de forma (da voz para a matéria). A importância da cultura material como força sígnica consiste na sua diferença em relação à linguagem, ainda que esteja envolvida na comunicação de sentidos. Os sentidos podem ser comunicados por meio de ações, falas e artefatos, mas o meio altera a natureza e a efetividade da mensagem (Shanks e Tilley, 1987: 102-117). A cultura material revela sua estrutura e princípios subjacentes por meio da repetição. Como um discurso comunicativo, ela solidifica, codifica e reifica as relações sociais nas quais ela viceja e das quais deriva, a um só tempo. A ação social é o produto do discurso e deste surgem tanto a ação como a cultura material, que menos significam as relações sociais do que as estabelecem e fixam. Pode afirmar-se, em conseqüência, que os artefatos constituem um código de signos que se trocam. A produção, utilização e consumo de cultura material, por parte do indivíduo, pode ser considerada como um ato de bricolagem. A partir desta perspectiva, uma série de estudos têm sido feitos, marcando, provavelmente, uma inflexão o livro de Ian Hodder (1982), significativamente intitulado “Símbolos em ação”. Pode comparar-se a abordagem proposta, a partir dos anos 1980, com aquelas que estudamos nas páginas precedentes deste ensaio, a partir do exemplo da análise da cerâmica Dangwara, da Índia (Miller, 1985). Miller representa o quadro simbólico formal que sumariza a variabilidade da cerâmica na sociedade dangwara, estabelecida ao relacionar as formas dos potes, as cores e os usos às categorias culturais e aos códigos, como comidas, gênero e casta. As diferentes classificações das categorias cerâmicas, de acordo com a cor, rótulo semântico e função, foram relacionando o código cerâmico a outros códigos ou sistemas de classificação. Esta Arqueologia “intérprete” parte do pressuposto que o mundo social é polissêmico (Shanks e Hodder, 1995: 8) e que, como qualquer outra disciplina, a Arqueologia constrói seu objeto por meio de um discurso e possui, portanto, um caráter narrativo (Munslow, 1997: 5). Caracterizado o arqueólogo como um storyteller (Shanks e McGuire, 1996: 82), um segundo nível discursivo passou a ser objeto de atenção: o próprio discurso da Arqueologia. Um clássico desta nova inflexão pode ser considerado o estudo de Christopher Tilley (1989) sobre “Discurso de poder: o gênero da conferência inaugural de Cambridge”. Desde que a cátedra de Arqueologia foi fundada por John Disney, em 1851, em Cambridge, sucederam-se dez 13 catedráticos, sendo que os últimos quatro discursos de posse da cátedra, por Dorothy Garrod (1938), Grahame Clarck (1952), Glyn Daniel (1974) e Colin Renfrew (1981), foram analisados como um gênero literário dotado de uma retórica própria. A aula inaugural, encarada como um rito de passagem, possui alguns princípios típicos desse gênero literário: referência aos catedráticos anteriores, citações das conferências inaugurais anteriores, a importância de Cambridge, seu internacionalismo, um estilo erudito, com referências abundantes e em línguas estrangeiras. Uma linha de investigação importante da Arqueologia da ultima década, portanto, passou a ser o estudo do discurso dos próprios arqueólogos, não apenas, nem principalmente, em escritos programáticos, como as conferências inaugurais, mas em sua produção quotidiana sobre os mais variados temas. Assim, a identificação de grupos étnicos, no registro arqueológico, passou a ser investigada, justamente, como uma construção textual que constitui tradições discursivas arqueológicas sobre o tema (Jones, 1997). Não se trata mais de tentar “descobrir” os vestígios dos “germanos”, mas de entender como se constrói um discurso sobre grupos étnicos a partir da cultura material. Os exemplos poderiam ser multiplicados e não se imagine que essas preocupações discursivas restrinjam-se a um grupo reduzido de estudiosos, pois a própria produção de divulgação da Arqueologia para o grande público, a seu modo, incorporou essas novas abordagens. Assim, o manual de Rahtz (1986: 109-110), um best seller já traduzido para o português, incorpora, de forma jocosa, esse caráter inevitavelmente discursivo do escrito arqueológico, por mais objetivo, empírico e factual que se pretenda. Apresenta um engraçado guia para a leitura e decifração dos áridos relatos de escavação que merece ser citado: quando se lê “é razoável sugerir que...”, leia-se “não é razoável, mas seria ótimo se fosse assim...”; ou então, “não pode haver dúvida que...” deve ser entendido como “qualquer um que não concorde se sentirá um tolo...”. Em outros termos, as certezas empíricas das décadas passadas foram substituídas por um saudável alerta que, também o arqueólogo, está a produzir um texto a ser analisado enquanto tal. Pode concluir-se que a Arqueologia, umbelicalmente ligada à Lingüística, continua a receber seus influxos e, em certo sentido, a construir-se como ciência tendo a Lingüística como referencial maior. A História da própria disciplina vincula-se à Lingüística e, nos últimos anos, tem-se, com mais e mais freqüência, voltado para uma introspecção que inclui a análise metalingüística do próprio discurso 14 arqueológico (Tilley, 1989: 62). A Arqueologia, como disciplina crítica e criativa, continuará a dialogar, de forma muito intensa, com a Lingüística, em suas mais variadas manifestações. AGRADECIMENTOS Agradeço a Rajangapolan Kanavilil o convite para que escrevesse este ensaio e aos seguintes colegas, que me ajudaram de diferentes maneiras: Martin Bernal, Siân Jones, Philip L. Kohl, Alexandros-Phaidon Lagopoulos, Randall McGuire, Eduardo Goes Neves, Michael Shanks, Bruce G. Trigger. Os comentários de dois referees anônimos ao manuscrito permitiu-me diminuir suas deficiências, mas aquelas que permanecem são de minha responsabilidade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARTHES, Roland. (1968). Elementi di Semiologia. Linguistica e scienza delle significazioni. Turim: Bonomi. BARTHES, Roland. (1997). Image, music, text. Nova Iorque: Hill and Wang. BERNAL, Martin. (1991). Black Athena, The Afroasianic Roots of Classical Civilization, volume I, The Fabrication of Ancient Greece, 1785-1985. Londres: Vintage Press. BROCHADO, José Proenza. (1984). An ecological model of the spread of pottery and agriculture into Eastern South America. Urbana, PhD Thesis. CARANDINI, Andrea. (1979). “Linguaggio dei manufatti: dagli strumenti alle arti”. In: Andrea Carandini, Archeologia e cultura materiale, dai ‘lavori senza gloria’ nellántichità a una politica dei beni culturali. 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Funari1 A Arqueologia Histórica tem se desenvolvido, nos últimos anos, de forma cada vez mais intensa e dinâmica. Nesta ocasião, retomarei reflexões tecidas há algum tempo, em 1 Departamento de História, IFCH-UNICAMP, C.Postal 6110, Campinas, 13081-970, SP, Brasil, [email protected]. 18 fóruns no exterior e no Brasil e que resultaram na organização do volume, co-editado com Martin Hall e Siân Jones, Historical Archaeology, Back from the edge (Londres, Routledge, 1999). Em parte, minhas considerações retomam questões discutidas no capítulo “Introduction: archaeology in history”, escrito a seis mãos, com Siân Jones e Martin Hall, mas incorpora, também, aspectos que tenho tratado em outras publicações, elencadas ao final deste paper. Por isso mesmo, não apresentarei referências bibliográficas, encontradas nos trabalhos publicados e referidos ao final. Minha releitura da disciplina parte, portanto, da experiência compartida não apenas com os dois colegas, como com uma pletora de estudiosos que se têm questionado sobre a Arqueologia Histórica. A Arqueologia das sociedades com escrita tem uma grande tradição na disciplina, em particular no estudo das grandes civilizações fundadoras do “Ocidente”, como as Arqueologias Clássica, Bíblica, Egípcia e Médio Oriental. Contudo, o termo “Arqueologia Histórica” tem sido usado, em particular na América do Norte, para referir-se ao estudo de um período histórico específico, o moderno (sensu anglico, i.e. do século XV em diante), em geral nas Américas. O termo Arqueologia Histórica, com tal definição, não é usado na Europa e na Ásia, já que se entende por históricas diversas arqueologias, como a Clássica e a Egípcia, para mencionar apenas duas delas. A Arqueologia Histórica como o estudo das sociedades com escrita incorpora, assim, tanto a disciplina homônima norte-americana, como as diversas disciplinas que lidam com sociedades com documentação escrita. Tem-se buscado mostrar que ela não é uma simples ancilla, serva ou auxiliar da documentação escrita e da ciência da História, pois a cultura material pode não só complementar as informações textuais, como fornecer 19 informações de outra forma não disponíveis e até mesmo confrontar-se às fontes escritas. Nas últimas duas décadas, preocupados com a análise da sociedade, os arqueólogos históricos têm, cada vez mais, focalizado sua atenção nos mecanismos de dominação e resistência e, em particular, nas características materiais do capitalismo. A Arqueologia Histórica liga-se, de forma umbilical, às noções de identidade, tratando de sociedades, de uma forma ou de outra, relacionadas ao arqueólogo. Na Europa, a Arqueologia é encarada como o estudo de nossa própria civilização, sejam elas as grandes civilizações que formariam o legado ocidental, sejam as anteriores à escrita, mas ainda assim históricas, porque inseridas numa narrativa das fontes escritas, como é o caso, por exemplo, da Arqueologia dos celtas (ou de Hallstadt e La Tene). Nos Estados Unidos, a disjunção com a Pré-História estabelece, à sua maneira, essa ligação da Arqueologia Histórica com a sociedade americana, às expensas dos indígenas, encarados como o “outro”, o selvagem contraposto à “civilização”, como ressaltou Thomas Patterson. As dinjunções entre letrado/iletrado, mito/história, primitivo/civilizado têm sido, de forma crescente, criticadas por separarem elementos discursivos interligados, de forma a evitar, por exemplo, que sítios indígenas não sejam objeto da Arqueologia Histórica, mesmo se contemporâneos àqueles europeus. Outra dicotomia criticada tem sido aquela que divide o mundo moderno, dominado pelo capitalismo, dos períodos anteriores. Em primeiro lugar, porque grande parte das estruturas mentais e materiais modernas derivam e mantém, ainda que de forma alterada, características de outras épocas e civilizações. O capitalismo moderno funda-se no feudalismo, até mesmo naquilo que tem de contrastivo, as estruturas sociais modernas construíram-se a partir de contextos medievais e antigos, tanto derivados 20 do chamado ocidente, como do chamado oriente. Em segundo lugar, mesmo quando não haja ligações genéticas entre realidades modernas e as outras, a comparação entre situações pode fornecer elementos úteis para o conhecimento tanto da cultura material antiga, como moderna, tanto do Oriente, como do Ocidente, de qualquer maneira, criações discursivas, antes que realidades efetivamente separadas, como alerta Said. Neste contexto, tem se propugnado que a Arqueologia Histórica abranja seja o estudo do mundo moderno, seja de todas as sociedades com escrita. Seria o caso de manter uma Arqueologia Histórica específica e, neste caso, qual sua especificidade diante da Arqueologia pré-histórica? Ainda que o contato com os estudos da cultura material de sociedades sem escrita seja importante, em termos do estudo da cultura material em seus aspectos mais amplos, parece-nos que se deve reconhecer as particularidades metodológicas do estudo de sociedades com escrita e com documentos, examinando os papéis históricos e singulares que a escrita possui na comunicação, representação e na própria construção discursiva da disciplina Arqueologia. A presença de documentos caracteriza e define as sociedades em que diferentes sistemas de escrita são utilizados. Em seguida e talvez ainda mais importante, a História como narrativa escrita sobre o passado, a Historie dos alemães, o gênero literário histórico, assim como as decorrentes tendências historiográficas, acabam por fornecer os quadros discursivos sobre o passado e que conformam, de uma ou outra maneira, a própria definição do contexto histórico usado pelo arqueólogo no estudo das sociedades históricas. Conceitos como Arqueologia romana ou colonial assumem periodizações e definições derivadas da tradição historiográfica e só nesse contexto adquirem sentido. A Arqueologia, contudo, pode transcender os quadros 21 estritos da historiografia assentada nas fontes escritas, cujo viés de classe constitui sua própria essência e a cultura material pode tratar de temas simplesmente ausentes ou ignorados pela documentação, como no caso das grandes maiorias, da vida rural e do quotidiano. Os discursos verbal e artefatual entrecruzam-se, de diferentes modos, nas sociedades históricas e o desenvolvimento de técnicas para tratar de tais interrelacionamentos permanece uma questão fundamental no seio da disciplina. Entre as questões contemporâneas mais recorrentes na disciplina, devem mencionarse os estudos sobre relações de poder, expressas na dominação e resistência, na desigualdade, em colonizadores e colonizados, dentre outros temas abordados na última década. O estudo da cultura material histórica permite, assim, conhecer as tensões sociais e a variedade de situações sociais vivenciadas. De forma crescente, contata-se uma insatisfação com os modelos normativos de cultura, cujos pressupostos de homogeneidade social não parecem encontrar respaldo nem nos estudos da cultura material, nem na teoria social contemporânea. Neste contexto, o capitalismo mesmo não consegue uniformizar a cultura material e as mentes e conceitos derivados da noção de “aculturação” têm sido postos em dúvida, pela homogeneidade que está a implicar. A europeização, primeiro, e a americanização, depois, do mundo, foram também chamadas de globalização, um conceito normativo e homogeneizador, e, por isso, passaram a ser vistas como apenas um lado da medalha, pois a diversidade social não se conforma a seus ditames. A fortiori passam a ser questionados os conceitos modernos, derivados do imperialismo, aplicado a sociedades do passado assimiladas discursivamente ao Ocidente, como no caso da “romanização” ou da “helenização”. 22 De forma cada vez mais acentuada, portanto, tem-se estudado o próprio campo discursivo da disciplina e da formação de conceitos modernos que moldam, de maneira invisível, os discursos possíveis. Multiplicam-se os estudos sobre a invenção de quadros interpretativos, com ênfase na História das Arqueologias, como procedimento heurístico indispensável para a crítica das práticas discursivas, no interior da disciplina. Um exemplo merece ser citado, por paradigmático: a Arqueologia da Mesopotâmia, também conhecida como Assiriologia. O Oriente, surgido como invenção contraposta ao Ocidente, fundou uma Arqueologia em busca da “civilização”, passada como uma tocha para gregos, romanos e, ao final, para os modernos imperialistas. O caráter imperialista, militar mesmo, dessa Arqueologia imprimiu feições à disciplina que, para serem descontruídos, exigem uma exegese da própria ciência. Da mesma forma e pelos mesmos motivos, todas as Arqueologias Históricas só adquirem pleno sentido a partir desse olhar histórico disciplinar. No início deste artigo, ressaltei que se tratava de colocar a Arqueologia Histórica em um contexto mundial e este é o último, essencial, aspecto a discutir. Por muito tempo, as tradições disciplinares levaram ao isolamento das Arqueologias Históricas e esse ensimesmamento em muito contribuiu para as dificuldades enfrentadas pelos estudiosos, em particular de contextos periféricos como na América do Sul, mas não só aí. A Arqueologia Bíblica, por exemplo, um projeto tão claramente ideológico, tão comprometido com o ideário conservador religioso, manteve-se como um campo científico, em grande parte, devido a seu isolamento do restante da Arqueologia. Nos últimos anos, contudo, os contatos entre os estudiosos de diferentes países e horizontes culturais mostraram a importância do diálogo com a ciência mundial, com outros pontos de vista, com a diversidade. Uma Arqueologia mundial significa uma variedade de interesses e 23 sujeitos em confronto, com a introdução de agentes sociais, como as mulheres e os grupos étnicos e sociais, de diferentes ideologias, de uma heterogeneidade que está no presente e leva à busca dessa mesma diversidade no passado. Em última instância, essa, talvez, a maior mensagem das pesquisas, em termos mundiais, na Arqueologia Histórica, pois a pluralidade e a conseqüente convivência da variedade passou a constituir aspecto central da disciplina, em um mundo também ele caracterizado pelas diferenças. Obras do autor em que se tratam de temas abordados neste artigo, com referências bibliográficas: Livros: 1. 1998 Cultura Material e Arqueologia Histórica, organizado por P.P.A. Funari. Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, coleção “Idéias” 1, 317 pp, ISBN 85-86572-04-7. 2. 1999 P.P. A. Funari, M. Hall & S. Jones, Historical Archaeology, Back from the edge, Londres, Routledge, 1999, 350pp, ISBN0-415-11787-9. Artigos: 1. 1993 Memória Histórica e cultura material, Revista Brasileira de História, 13, 25/26, (set.92/ago.93), 1731. 2. 1994 South American Historical Archaeology, Historical Archaeology in Latin America, 3, 1-14. 3. 1994 La cultura material y la arqueología en el estudio de la cultura africana en las Américas, América Negra, Bogotá, 8, 33-47. 4. 1994 Rescuing ordinary people's culture: museums, material culture and education in Brazil, in Peter G. Stone & Brian L. 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Nos últimos anos, em diferentes contextos, surgiram fóruns dedicados à reflexão crítica sobre a Arqueologia, como o Theoretical Archaeology Group (TAG), na Grã-Bretanha e, em termos mundiais, a fundação do World Archaeological Congress, em 1986 representou uma tomada de posição, por parte de muitos arqueólogos, quanto à epistemologia e à ética da práxis arqueológica. Neste contexto, a América do Sul, em geral, e o Brasil, em particular, testemunharam um grande desenvolvimento da reflexão crítica, nestes últimos anos, após duas décadas de obscurantismo, resultante de regimes ditatoriais. Assim, o World Archaeological Congress e a Associação de Antropologia Brasileira uniram-se na iniciativa de propor, no quadro da 21 ª Reunião da ABA, em Vitória (ES, Brasil), de 6 a 9 de abril de 1998, a realização de uma Primeira Reunião Internacional de Teoria Arqueológica na América do Sul. A proposta começou a tomar forma em 1996, por 27 iniciativa de Alejandro Haber2 e Pedro Paulo Abreu Funari3, quando se encontravam ambos em solo britânico para o trabalhos arqueológicos em Cambridge e Southampton, respectivamente, tendo recebido o incentivo de Ian Hodder e Peter Ucko. A partir destes primeiros entendimentos, e já com o apoio institucional do World Archaeological Congress, manifestado pelo secretário Julian Thomas, marcou-se para outubro de 1996 um encontro, na Argentina, para organizar uma proposta acadêmica mais detalhada. Em outubro, reuniões preparatórias foram realizadas em Catamarca 4, quando se definiu um programa inicial e uma comissão executiva5 e uma comissão científica de apoio6. A organização do evento exigiu diversas outras reuniões iniciais 7, tendo-se apliado o apoio institucional8 ao evento e a composição das comissões executivas 9 e científicas10. A Reunião contou com o aporte financeiro de diversas instituições científicas e de fomento à pesquisa 11, tendo contado com duas conferências e vinte e cinco papers, agrupados em quatro grandes temas. As conferências, a cargo de Julian Thomas, sobre “A História e a política do WAC”, e de Randall McGuire, sobre “Uma Arqueologia dos trabalhadores americanos”, abriram o primeiro e o último dia do evento, respectivamente. A apresentação de Thomas permitiu que o público presente tomasse contato com a História do WAC, cujas políticas de reflexão 2 Professor da Escuela de Arqueología, Universidad Nacional de Catamarca, Argentina. Estada financiada pelo World Archaeological Congress, em Janeiro de 1996. 4 Funari contou com um auxílio-viagem da FAPESP para participar das II Jornadas de Etnolingüística y Antropología, em Rosário, Argentina e a Universidad de Catamarca forneceu subsídios para que se pudesse efetuar reuniões de organização do evento. 5 A primeira comissão executiva contava com Alejandro Haber, P.P.A Funari (representante sênior da América do Sul no Conselho Executivo do Congresso Mundial de Arquelogia), Irina Podgorny (representante júnior perante o mesmo Conselho) e Norberto Luiz Guarinello (Departamento de História, FFLCH-USP, Brasil). 6 A primeira comissão científica era composta, além dos membros executivos, do Presidente do WAC, Bassey Andah, do Secretário, Julian Thomas, e Peter Ucko. 7 Em particular, em Londres e Southampton, em fevereiro de 1997, com apoio do CNPq, quando se consolidaram os entendimentos com a direção do WAC e em maio do mesmo ano, quando, com apoio dos Departamentos de História da UNICAMP e da USP, a Profa. Podgorny participou de reuniões com Funari e Guarinello. 8 A Sociedade de Arqueologia Brasileira, na gestão de Paulo Tadeu de Albuquerque e Sheila Mendonça, apoiou e divulgou o evento; a Associação de Antropologia Brasileira propôs a realização encontro no quadro da reunião regular da ABA; o Fórum Interdisciplinar para o Avanço da Arqueologia, na gestão de Eduardo Goes Neves, associou-se à proposta e a divulgou. 9 Eduardo Goes Neves passou a integrar a comissão executiva. 10 A Comissão Científica passou a contar, também, com a Presidente da ABA, Mariza Correa e com Haiganuch Sarian (MAE-USP, Brasil). 11 World Archaeological Congress, CAPES, FAPESP, IFCH-UNICAMP e MAE-USP. 3 28 crítica sobre o papel social e acadêmico do arqueólogo permitiram enquadrar todo o encontro. No primeiro dia, a discussão girou em torno de “Teoria e Método”, com a apresentação de sete papers: Julian Thomas12, University of Southampton, Recontextualizing materiality and the social; Michael J. Heckenberger, Museu Nacional (UFRJ), Hierarquia e economia política na Amazônia: a construção da diferença e da desigualdade em sociedades ameríndias; Gustavo Politis, Universidad de La Plata, Cultura Material e crianças entre os Nukaks; José Luis Lanata, Universidad de La Plata, The Archaeology of Hunters and Gatherers in South America: recent history; Erika Marion Robrhan-Gonzáles13, MAE-USP, A cerâmica em estudos de interação e mudança cultural na região centro-oeste brasileira; e Benjamin Alberti14, University of Southampton, Gender Archaeology: a case study. As apresentações e as discussões que se seguiram, em três línguas, inglês, português e espanhol, contaram com tradução simultânea trilíngüe. Confrontaram-se, nas discussões, as abordagens contextuais, ou pós-processuais, de Thomas e Alberti, que enfatizaram o caráter de construção discursiva da lide arqueológica, e enfoques mais ou menos informados no processualismo, de uma forma ou de outra representados pelos outros panelistas. Lanata e Heckenberger referiram-se, em suas palestras, a modelos genéricos explicativos, assim como Prous esboçou um análise crítica dos estudos sobre as pinturas rupestres. Politis gerou grande interesse e admiração pela pesquisa etno-arqueológica de campo e suas ilações sobre o papel das crianças foi particularmente instigante. Robrahn-Gonzáles relacionou o estudo da cerâmica com a dinâmica social no Brasil Central, tendo levado a troca de idéias com diversos colegas, em particular com Irmhild Wüst. A mediação de Irina Podgorny organizou o debate, que se prolongou pelo início da noite. O segundo dia centrou-se no tema “Arqueologia e Etnicidade”, mediado por Eduardo Goes Neves, tendo contado com seis apresentações: 12 Com apoio financeiro do WAC. Com apoio financeiro da FAPESP. 14 Com apoio financeiro do WAC. 13 29 Francisco Noelli, Universidade Estadual de Maringá, Repensando os rótulos sobre os Jê do sul do Brasil: pelo compassamento entre algumas noções básica da Arqueologia e da Etnologia; Scott Allen, Universidade Federal de Alagoas/Brown University, Etnicidade e Arqueologia Histórica do Quilombo dos Palmares; Stephen Shennan15, Insitute of Archaeology, Londres, Concepts of ethnicity in the past and present; Carlos Magno Guimarães, FAFICH-UFMG, Arqueologia e grupos étnicos: os quilombos; María Ximena Senatore, Universidad de Buenos Aires, Arqueología del contacto europeo-americano. Discusión teórica y modelos de análisis en áreas marginales; e Irmhild Wüst, Universidade Federal do Goiás, Continuidades e descontinuidades: Arqueologia e Etnoarqueologia no coração do território Bororo oriental, Mato Grosso. A etnicidade foi tratada, pelos diversos expositores, a partir de diferentes ângulos, gerando debates entre os panelistas e entre estes e os outros participantes. Noelli desenvolveu uma crítica dos modelos vigentes na Arqueologia Brasileira em geral, e quanto ao sul do Brasil, em particular, propondo, em seu lugar, uma análise que tente integrar os dados arqueológicos àqueles históricos, etnográficos e lingüísticos. Os problemas de tal pretensão foram aventados por Funari, em particular no contexto das discussões mais recentes sobre Arqueologia e Etnicidade. Estas formaram o cerne do paper de Wüst, cujo endosso das literatura mais atualizada (e.g. Siân Jones) acabou gerando discussões diversas. Shennan somou-se, em sua apresentação, a Wüst ao demonstrar como a Etnicidade é antes construção complexa que busca de traços de origem. Allen e Senatore, com estudos de casos específicos, juntaram-se àqueles que propugnam pela complexidade das relações étnicas e pelos decorrentes desafios de seu estudo a partir da cultura material. Talvez a apresentação mais controversa tenha sido a de Guimarães, sobre a identificação arqueológica de quilombos para fins de demarcação de terras. Diversos antropólogos presentes divergiram das propostas de Guimarães sobre a chamada “ressemantização” do conceito de quilombo, tal como proposto por um grupo de trabalho da ABA. 15 Com apoio financeiro do WAC. 30 O terceiro dia foi organizado, por Funari, em torno da discussão da “Paisagem, cultura material e patrimônio”, tendo contado com seis apresentações: Andrés Zarankin, Universidad de Buenos Aires/UNICAMP16, Arqueología de la Arquitectura: un modelo teórico metodológico para su abordaje; Cristina Bruno17, MAE-USP, A importância dos processos museológicos para a preservação do patrimônio; Elizabete Tamanini18, Museu Arqueológico de Sambaqui de Joinville/UNICAMP, Arqueologia e Educação: teoria e prática; Eduardo Goes Neves19, MAE-USP, Mito, História e Arqueologia na Bacia do Alto Rio Negro, Amazônia; Marisa Lazzari, Universidad de Buenos Aires, Objetos viajeros e imágines espaciales: relaciones de intercambio y la producción del espacio social; e Felix Acuto, Universidad de Buenos Aires, Paisages cambiantes: la ocupación inka en el Valle del Caclhaqui Norte, Argentina. As discussões centraram-se, por um lado, nas apropriações da cultura material, objeto de estudo do arqueólogo, por parte da sociedade em geral. Bruno e Tamanini apresentaram reflexões sobre como o trabalho arqueológico envolve, necessariamente, considerações sobre a transformação destes artefatos em patrimônio, acadêmico e extra-acadêmico. Houve grande discussão a este respeito, pois muitos arqueólogos dissociam seu trabalho, propriamente arqueológico, da patrimonização da cultura material. Por outro lado, Zarankin, Neves, Lazzari e Acuto utilizaram-se de estudos de caso para apresentar propostas de uso da teoria arqueológica. Zarankin discutiu a relação entre os modelos arquitetônicos e a Arqueologia, enquanto, ainda no campo interdisciplinar, Neves relacionou História, Mito e Arqueologia. A paisagem foi tratada de forma original por Lazzari e Acuto, destacando-se a preocupação daquela com os movimentos dos objetos e deste último com a diacronia no assentamento humano. 16 Doutorando da UNICAMP, contou com apoio financeiro do CONICET (Argentina). Com apoio financeiro da FAPESP. 18 Doutoranda da UNICAMP, contou com apoio financeiro da CAPES. 19 Com apoio financeiro da FAPESP. 17 31 O quarto dia começou com uma conferência de McGuire, uma muito oportuna introdução à mesa que se seguiria. Em sua apresentação McGuire tratou dos excluídos da História dos Estados Unidos, os trabalhadores, e mostrou um projeto de pesquisa arqueológica dos vestígios de um grupo de trabalhadores em greve, no início do século. Destacou, ainda, a transformação dessas evidências em patrimônio e demonstrou, de forma clara, seu propósito de engajar a Arqueologia na luta pela liberdade e na rejeição de uma Arqueologia que, ao se querer neutra e ahistórica, mostra-se conservadora e pouco capaz de explicar sua própria prática e teoria. A mesa-redonda que se seguiu, sobre Arqueologia latino-americana: teoria e História, mediada por Goes, mostrou-se particularmente fértil em suscitar debates e compôs-se de seis papers: Bernd Fahmel Beyer, Instituto de Investigaciones Arqueológicas, UNAM, México, Academy and culture in Mesoamerica: two realities?; Cristiana Barreto20, University of Pittsburg, A Arqueologia no Brasil e na América Latina; Haiganuch Sarian21, MAE-USP, Arqueologia Clássica no Brasil: fronteiras e horizontes; Irina Podgorny, Universidad de La Plata, The reception of New Archaeology in Argentina: boundaries, contexts and power; Pedro Paulo A Funari22, UNICAMP, A importância da teoria arqueológica internacional para a Arqueologia Brasileira; e Randall MacGuire, Binghamton University, Radical theory in Anglo-American and Hispanic archaeology. Todos os papers trataram da História da Arquelogia, a partir de estudos de caso e pontos de vistas diferentes. Beyer, Podgorny e Funari ressaltaram, ao estudar a América Central, a Argentina e o Brasil, respectivamente, as relações entre o contexto histórico e as práticas e teorias arqueológicas. Barreto procurou contrapor-se a tais contextualizações, tratando dos avanços da Arqueologia no Brasil como desenvolvimentos no interior da ciência. Sarian, embora tenha tratado da Arqueologia Clássica, apenas um dos campos de investigação no Brasil, ressaltou os efeitos cientificamente destacáveis dessa área. McGuire forneceu uma visão ampla, contrapondo a Arqueologia americana à hispano-americana, com destaque para a Arqueologia 20 Com apoio financeiro da FAPESP. Com apoio financeiro da FAPESP. 22 Com apoio financeiro da FAPESP. 21 32 Social Latino-Americana. As discussões centraram-se no grau de autonomia da ciência arqueológica e nas suas relações com a sociedade abrangente. Ao final, Goes e Funari mediaram uma plenária sobre o evento. Diversos participantes ressaltaram a importância e inovação de um encontro deste tipo, baseado na troca de idéias. Ressaltou-se que, em um contexto ainda marcado pelos conflitos, até mesmo de caráter pessoal, a apresentação de papers e sua discussão marcou uma nova etapa, em reuniões arqueológicas na América do Sul. Em seguida, foi enfatizada a importância da inserção da Arqueologia sul-americana na Arqueologia Mundial. Surgiu a proposta de realizar-se o segundo encontro, tendo sido formada uma comissão provisória 23 para encaminhar o evento, que está planejada para outubro ou novembro de 1999. A publicação dos papers foi sugerida e solicitou-se o envio dos textos, até fins de julho de 1998, para que sejam publicados. Neves apresentou à Comissão de Publicações do MAE-USP o projeto de publicar um volume com as atas, em português, e Funari e Podgorny, em reunião do executivo do WAC, em maio de 1998, na Croácia24, apresentaram o projeto de publicar um World Archaeological Bulletin, em inglês, para divulgação internacional, tendo obtido o apoio formal do executivo. O público, além dos panelistas, compreendeu arqueólogos, antropólogos e outros interessados de diferentes instituições, em particular MAE-USP, UNICAMP, UFES, UFMG, MASJ, Universidade Estácio de Sá (RJ), UFRJ, Universidade Estadual de Blumenau e Museu Nacional. Tomaram parte estudiosos do Brasil, Argentina, Estados Unidos, Grã-Bretanha e França. Os intelectuais envolvidos, os papers apresentados, as discussões de alto nível, a proposta de continuidade com um segundo encontro e as propostas, já encaminhadas, de publicação, no Brasil e no exterior, dos textos apresentados, estão a demonstrar a importância do evento para a Arqueologia Latino-Americana e pode-se estar seguro que se abrem novas perspectivas para a História da Arqueologia no continente. AGRADECIMENTOS: 23 Composta por Irina Podgorny, Gustavo Politis, Andrés Zarankin, Felix Acuto, Marisa Lazzari, Ximena Senatore, Eduardo Goes Neves, Cristiana Barreto, Bernd Beyer. 24 Com apoio financeiro do WAC e Fundación Antorchas. 33 Agradeço a todos os colegas mencionados do decorrer do texto, pois sua colaboração foi imprescindível para o êxito do evento. Devo mencionar, ainda, o apoio da FAPESP (processo 97/13975-5), IFCH-UNICAMP, Secretaria da ABA, Cynthia de Ávila, Celso Perota e os demais organizadores locais, em Vitória. 2. A IMPORTÂNCIA DA TEORIA ARQUEOLÓGICA INTERNACIONAL PARA A ARQUEOLOGIA SUL-AMERICANA: O CASO BRASILEIRO Existe teoria arqueológica no Brasil? A resposta a esta questão depende, é claro, da definição do termo “teoria”. Embree (1989:37) considera que “a Arqueologia histórica, em sentido amplo, inclui a meta-Arqueologia e como a pesquisa substantiva inclui metodologias de coleta de dados e, também, a análise da teorização dos modelos explicativos”. A ausência, no Brasil, de postos explicitamente voltados para a metodologia ou a teoria arqueológicas (Faria 1989:35) estaria a indicar que há uma falta de teoria na Arqueologia Brasileira, como acontece em outros países (Kotsakis 1991:69; Thomas 1995). Além disso, é ainda muito comum desprezar artigos interpretativos como sendo “muito teóricos” (MacDonald 1991:830; cf. Cooney 1995). A teoria é considerada, às vezes, como “esotérica, subversiva, anárquica – algo que deveria ser evitado por uma questão de higiene intelectual” (Harlan 1989:583). É possível, no entanto, qualquer trabalho de campo sem teoria? É possível separar ação (poesis) e teoria (praxis) (Croce, s.d.: 41)? Não é difícil concluir que não há meio de praticar uma disciplina acadêmica, como a Arqueologia, sem quadros analíticos. A teoria nada mais é do que “visão, contemplação”, 34 theoria significando, em primeiro lugar, a observação visual (thea) e, com conseqüência, “especulação”, um “conjunto de idéias”. Se considerarmos que “a História não é um grupo de fatos sobre o passado mas, ao contrário, um conjunto de idéias sobre o passado, no presente” (Wright & Mazel 1991: 59), então torna-se claro que não há prática arqueológica sem fundo teórico. É precisamente nestes termos que podemos dizer que há teoria arqueológica no Brasil, não como um quadro aberto e explícito de assertivas sobre a ontologia do conhecimento arqueológico, mas como uma hermenêutica subjacente que informa tanto atividades de campo e seus relatos, como artigos em geral. Desentranhar esta perspectiva teórica das atividades e discursos arqueológicos é, entretanto, uma tarefa ingrata, considerando as múltiplas mediações que ligam as atividades empíricas aos seus suportes conceituais. Além disso, generalizações sobre disciplinas acadêmicas exigem alguma ousadia, pois novos materiais ou descobertas, ainda que de campos específicos, podem invalidá-las e, assim, a melhor maneira de evitar incompreensões, consiste em explicitar os critérios usados para estudar o tema. Desta maneira, é possível entender os liames propostos, neste trabalho, entre o explícito e o implícito na Arqueologia brasileira. O conhecimento, como uma relação social entre pessoas e entre pessoas e coisas (Tilley 1992: 176), é um processo histórico e político de interpretação e ação no mundo. A Arqueologia, como disciplina acadêmica, não está livre de elos sociais e políticos (Champion 1991: 144) e os arqueólogos estão, sempre, trabalhando sob a pressão das questões levantadas por suas próprias épocas e sociedades (Burguière 1982: 437). “Qualquer tentativa de compreender a presente configuração da disciplina deve, portanto, ser fundada em uma análise sistemática e empírica de sua História e de sua prática” (Pinsky 1989: 91) e, neste processo, o arqueólogo necessita reconhecer, em detalhe, a extensão das circunstâncias e padrões, sempre em mudança, em diferentes contextos históricos (Burckhardt 1958: xi). Todas os modos de prática e escrita arqueológicas entram em contato com diversos grupos sociais, em épocas diferentes e em constante mutação (La Capra 1992: 439). Isto significa que se tem que estudar, por um lado, a História da sociedade brasileira como um todo (e, em particular, sua História intelectual) e, por outro, o contexto internacional interagente com a sociedade brasileira. Não se pretende, aqui, apresentar um relato exaustivo, a respeito da Arqueologia Brasileira mas, ao contrário, partem-se de dois critérios explícitos: mencionam-se, apenas e tão somente, aqueles trabalhos que tenham alguma preocupação teórico-metodológico, cujo impacto possa ser avaliado por 35 publicações. Por isso mesmo, a simples introdução de autores estrangeiros em cursos, ainda que possa ter sido importante para a abertura de horizontes para diversos pesquisadores, não representa produção própria. Nesta ocasião, não tratarei da período pré-formativo, pré-disciplinar da Arqueologia no Brasil, até a década de 1950 (tratado em Funari 1995a), focalizando os desenvolvimentos teóricos desde sua introdução como disciplina acadêmica, nos últimos quarenta anos. A Arqueologia, desde o século passado, havia sido explorada por estudiosos, em geral ligados aos Museu Nacional do Rio de Janeiro, Museu Histórico Nacional e Museu Paulista. Enquanto trabalhos empíricos eram levados adiante por diretores de museus sob os auspícios de um sistema de patrocínio de elite, o humanista Paulo Duarte estava no exílio por sua oposição ao Estado Novo e, ao retornar, introduziu a Arqueologia como disciplina acadêmica (De Blasis & Piedade 1991: 167) e seu papel como defensor do patrimônio arqueológico estava em claro contraste com o padrão tradicional predominante. Seu humanismo baseava-se em uma abordagem ética, para com a sociedade e, por isso, pôde propor duas medidas revolucionárias: o desenvolvimento de instituições arqueológicas acadêmicas e a proteção do patrimônio. Os diretores de museus e os arqueólogos tradicionais, ligados aos sistema de compadrio dominante no país, nunca iriam propor tais medidas, que, inevitavelmente, desafiavam o nepotismo e as relações de clientela, infensos ao mérito e aos direitos igualitários (Da Matta 1991b: 399). A democracia propugnada por Duarte, baseado no mérito, era, pois, estranha à sociedade hierarquizada nacional; seu humanismo, de estilo francês, era o suficiente para romper com práticas patronais arbitrárias de longa tradição (Funari 1992a: 8). A intervenção militar de abril de 1964 (Cammack 1991: 35) marcou um período não apenas de repressão generalizada, como de reforço do clientelismo e do compadrio, agora organizado por um regime de força. Logo após o golpe, um acordo foi firmado entre a United States Agency for Inter-American Development e o Ministério da Educação e Cultura do Brasil (Funari 1996e), que gerou a reorganização de todo o sistema universitário nacional (Sebe 1984: 72), sob a égide da ideologia de “segurança nacional” (Ortiz 1985: 85). A ação dos Estados Unidos era o resultado do fato que “por toda a comunidade acadêmica norteamericana, esforços foram envidados para mobilizar o Ocidente, em uma luta ideológica global, enquanto, ao mesmo tempo, esposava-se uma objetividade desinteressada, como um dos valores e instituições 36 característicos deste mesmo Ocidente” (Novick 1988: 16; Klappenber 1989: 1014). Esta abordagem positivista estava por detrás das atividades de alguns arqueólogos americanos ligados ao establishment americano (Roosevelt 1991: 106) e aos militares sul-americanos. Logo depois do golpe, aqui estiveram Clifford Evans e Betty Meggers e, já em outubro de 1964, organizaram o que chamaram “um seminário intensivo para ensinar teoria e metodologia arqueológicas, classificicação e interpretação cerâmica” para pupilos brasileiros (Evans 1967: 7). Imediatamente após o seminário, Evans e Meggers usaram o mês de novembro de 1964 para viajar por onze Estados brasileiros, visitando reitores e diretores de museus, agora afinados com o novo regime de força. Um positivismo ingênuo estava no centro da sua abordagem arqueológica. Meggers (1979: 13) ensinou e treinou uma geração de praticantes brasileiros sob a bandeira da objetividade em busca dos fatos: “espero que as pessoas entenderão que a verdade é mais interessante do que a ficção”. A Arqueologia, como ciência experimental (Miller 1975: 7), foi interpretada como estranha às questões históricas, em claro contraste com as Humanidades. Este tipo de empirismo contrapunha-se à abordagem humanista proposta por Paulo Duarte, acusada, pelos empiristas, de ser algo alheio à cultura nacional. Este empirismo anti-histórico, importado dos Estados Unidos, foi introduzido em uma sociedade completamente diversa da americana, na qual o empirismo, a competição, os direitos individuais e o capitalismo, dentro e fora da academia, constituem um quadro cultural consistente. O empirismo, no Brasil, serviria a outros propósitos. O sistema social brasileiro baseia-se em princípios não-capitalistas (Faoro 1976: 736), como a hierarquia (Da Matta 1980: 16), o compadrio (Leal 1949: 23; Telarolli 1977: 16), o nepotismo (Da Matta 1991a: 14), o amigismo, o familismo e o favor (S. Schwartz 1988: 237). Desde o período colonial, amizades (Pastore 1991: 12), clientelas, ideologia corporativa e paternalismo têm sido elementos centrais da vida social brasileira (Lara 1988: 110): “o favor é nossa mediação quase universal” (Schwartz 1988: 76). Vianna (1987: 13) estava propenso a definir este sistema como feudal. “No Brasil, graças a raízes históricas profundas, pessoas indicadas são os governantes: as pessoas no poder indicam parentes e amigos. Educação, competência e qualidade são critérios estranhos à nossa cultura de privilégio” (Castro 1991: 2). Há, pois, um claro desequilíbrio entre os princípios capitalistas, individualistas, por detrás do positivismo, nos Estados 37 Unidos, e a mesma abordagem, quando aplicada em um contexto social baseado em valores não-igualitários e clientelísticos. Isto fica evidente nas Arqueologias dos dois países. O principal objetivo do trabalho de campo empírico consiste em coletar artefatos e classificá-los. Esta abordagem considera os depósitos dos museus como contas bancárias: devem ser preenchidas com dados (dinheiro) recolhidos pelo estudioso (ou capitalista). A evidência coletada pelos arqueólogos deveria ser classificada e transformada em fatos e números (cf. Shor 1986: 422). Isto é o que almejam os empiristas, nos Estados Unidos, e podem ser muito bem sucedidos, em seus próprios termos. Contudo, este não é o caso do Brasil. O objetivo de espalhar trabalhadores de campo por todo o país, coletando artefatos em grande quantidade, armazenando-os em museus, constituindo corpora que seriam, ao final, classificados como matéria prima, não foi completado. Porquê? Desde a década de 1960, os brasileiros foram treinados, pelos empiristas americanos, como trabalhadores de campo, sob a égide de um determinismo ecológico não-histórico. “Seus métodos de escavação e análise misturava materiais de períodos diferentes, artificialmente comprimindo a seqüência arqueológica. Esta abordagem norte-americana, entretanto, influenciou, de maneira decisiva, os estudiosos brasileiros, graças aos acordos entre instituições brasileiras e americanas e ao estabelecimento de uma rede de colegas e alunos” (Roosevelt 1991: 107; ênfase acrescentada). Este grupo de praticantes não se desenvolveu, como seria o caso em outros lugares, como um simples “feudo acadêmico” (Levine 1992: 218) mas, em uma sociedade clientelística, como a brasileira, e sob direto comando autocrático da ditadura, este grupo tornou-se o único legítimo. Passaram a perseguir ou impedir as atividades daqueles que não concordavam com a abordagem empirista ecológica e com sua organização e ponto de vista politicamente despótico (Chaui 1992: 6). Duarte e outros foram expulsos da vida universitária, o projeto humanista foi eliminado no nascedouro e o establishment arqueológico, que estava sendo criado, foi dominado por um grupo de empiristas autoritários. A própria cassação de Paulo Duarte, pela ditadura, não deixou de representar um episódio paradigmático, pois o duro golpe ao projeto acadêmico foi 38 acompanhado da tentativa de destruição do Instituto de Pré-História, por Duarte fundado, pois “o conceito de Pré-História é inaplicável ao caso americano”, segundo um dos beneficiários daquele período de exceção, Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses (Duarte 1994: 176). À inexistência da Pré-História, propunha-se que “a Arqueologia, por sua natureza de ciência auxiliar da História, está longe, bem longe, de ser um fim em si mesmo”, nas palavras do mesmo autor (Meneses 1965: 22), o que inviabilizaria qualquer desenvolvimento, seja da Pré-História, seja da Arqueologia. Este grupo formou uma confraria (Meggers 1992) que passaria a controlar escavações, financiamentos, publicações, postos arqueológicos e em museus, e, não menos importante, a limitar a difusão de perspectivas diversas. Mesmo estudiosos americanos, que tivessem posições interpretativas diferentes, históricas, foram sistematicamente impedidos de trabalhar. Como ressaltou Anna Roosevelt: “Ainda que muitos estudiosos tivessem encontrado evidências <em oposição à abordagem ecológica>, as pessoas da escola determinista, com freqüência, não permitiam a publicação de descobertas dissonantes, como “datações muito antigas” ou assentamento pré-históricos complexos” (Roosevelt 1991: 107). A constituição de um grupo que tentava tudo controlar explica porque o empirismo, no Brasil, não conseguiu atingir seus próprios objetivos de coletar dados, estabelecer corpora e, finalmente, classificar o material em larga escala. Como é comum em sistemas autoritários, não era possível desenvolver discursos e práticas alternativas e não havia, pois, qualquer necessidade, para aqueles que controlavam o establishment, de serem competentes em seus próprios termos epistemológicos. Graças à ditadura, foi possível reestabelecer práticas clientelísticas por meio do poder arbitrário, usando o empirismo, antes de mais nada, como uma justificativa de poder. Este período foi descrito, por um de seus ativos participantes, Tânia Andrade Lima (1998: 25) como “uma fase muito dinâmica, com muito trabalho de campo”, o que está a sugerir que o isolamento não fazia os perceber que o fim do monopólio discursivo já chegara. 39 De fato, Walter Neves (1988: 245), logo depois da restauração do regime civil, reconhecia que “no Brasil, salvo raras excepções, continuamos a fazer levantamentos oportunísticos e escavações injustificáveis e as instituições de ensino, lamentavelmente, perpetuam o modelo epistemológico, ainda vigente na Arqueologia no Brasil”. A maioria das atividades e publicações arqueológicas continuavam a ser meramente descritivas (Scatamacchia 1984: 198). No entanto, a abertura política tornaria possível a emergência de uma pluralidade de abordagens. Apesar da cassação, o legado de Paulo Duarte pode ser identificado na influência francesa (Laming Emperaire, Emperaire, Prous, Vialou, Guidon, entre outros), cuja importância, como alternativa ao modelo dominante, naqueles anos difíceis, não pode ser subestimada. Papel particularmente relevante foi exercido pela Arqueologia Clássica (Funari 1997), ao inserir a Arqueologia brasileira no contexto internacional. Pela primeira vez, arqueólogos brasileiros publicavam livros no exterior (e.g. Funari 1992b; 1996b; Carreras & Funari 1998), estabeleciam contatos e intercâmbios, livravam a Arqueologia dos esquemas clientelísticos, formavam pesquisadores independentes e ao corrente da Arqueologia Mundial. Livros atualizados de Arqueologia, produzidos no Brasil, chegaram às escolas, com autores como Maria Beatriz Florenzano (1997). Assim, destaque-se a publicação do primeiro manual para escolas primárias sobre a Pré-História brasileira, escrito pelo arqueólogo clássico Norberto Luiz Guarinello (1994), cuja excelência levou a que fosse adotado pelo Ministério de Educação do Brasil, sendo distribuído aos milhares e constituindo-se no livro mais vendido sobre Arqueologia PréHistórica, em toda a História (cf. Funari 1996 ; Faversani 1997). Outros arqueólogos, trabalhando com temas pré-históricos, como Eduardo Góes Neves e Walter Alves Neves, e históricos (cf. Funari, Jones & Hall 1998 a e b), passaram a inserir-se na ciência internacional, afastando-se do provincianismo e do compadrio local. Diversas dissertações 40 e teses de Arqueologia foram desenvolvidas em São Paulo (USP e UNICAMP), Rio Grande do Sul (UFRGS e PUCRS), Pernambuco (UFPE) e Rio de Janeiro (UFRJ), assim como no exterior, ainda que muito ainda esteja inédito e que poucos trabalhos se aventurem a questionamentos teóricos mais amplos. Mais recentemente, tem havido um interesse crescente na teoria arqueológica, no Brasil, principalmente por parte das novas gerações. A Arqueologia crítica, apresentada como uma crítica da ideologia dominante no presente, que aparece como normativa e ahistórica (Handsman & Leone 1989: 119), juntamente com a consciência pós-processual ou contextual da subjetividade da disciplina (Thomas 1990: 67), constituem temas em discussão. Artigos, por exemplo, sobre o efeito do colonialismo e do nacionalismo na Arqueologia africana (Rodrigues 1991), demonstram um interesse crescente pela Arqueologia mundial e pela teoria arqueológica. Tal interesse reflete, também, uma maior atenção prestada àqueles que têm formulado a teoria arqueológica internacional, sendo lidos, em particular, Binford, Courbin, Deetz, Gardin, Hodder, Orser, Shanks, Tilley, Trigger, entre outros. Seguindo as idéias de Stephen (1989: 267) e Hodder (1991: 10), mais atenção tem sido dada aos grupos subordinados (Trigger 1998: 16), por oposição ao culto às elites, como ainda propugnado entre nós (e.g. Lima 1994) como os escravos (e.g. Guimarães 1992; Funari 1996d), e esforços têm sido envidados para apoiálos em sua luta contra a marginalização. Isto explica o estudo dos índios que viviam em Missões (Kern 1989: 112), a “História da resistência à dominação” (Leone 1986: 431), da antigüidade (Guarinello 1989) ao período colonial (Funari 1991). 41 Também artigos têm sido publicados sobre a teoria arqueológica stricto sensu (e.g. Funari 1989; Kern 1991; Serra 1994; Funari 1995a; 1995b; 1996 a; 1996f ; 1998a; 1998b). Multiplicam-se as publicações de fundo teórico, tratando de temas como “Hipóteses sobre a origem e expansão dos tupis”, que mereceu um dossiê na Revista de Antropologia da USP, a partir de um texto de Francisco Noelli (1996), cujas hipóteses encontram suas origens em trabalhos inéditos de José P. Brochado. Também o dossiê sobre “Surgimento do homem na América”, com textos interpretativos de Marta Lahr, Walter Neves, André Prous, entre outros, demonstra as preocupações teórico-metodológicas em curso. Ainda no estudo da Pré-História, as discussões sobre a ocupação da Amazônia têm contado come estudos informados na teoria arqueológica, como é o caso da obra de Eduardo Góes Neves e a inserção da Arqueologia brasileira no contexto internacional amplia-se, em especial com a participação de brasileiros nos conselhos de revistas como Latin American Antiquity (Irmhild Wüst), International Journal of Historical Archaeology e Material Culture (P.P. A Funari). No campo da Arqueologia Histórica, os próprios rumos da disciplina têm sido debatidos, com decisiva participação brasileira, com a organização de uma sesssão em WAC 3 e de um volume de One World Archaeology (Funari, Jones & Hall 1998 a e b) em um contexto mundial (Funari 1996c; 1998 a; Funari, Jones & Hall 1998 a e b), superando, assim, o provincianismo e o culto às elites, prevalecente em produções paroquiais. Também a realização do Simpósio Internacional sobre Teoria e Método em Arqueologia, no Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, em agosto de 1995, mostra a crescente atenção prestada à epistemologia arqueológica. Pode concluir-se que o desenvolvimento da teoria arqueológica, importante como pode ser na Europa e na América do Norte, é algo absolutamente fundamental para o 42 futuro da Arqueologia no Brasil. No contexto de uma Arqueologia ainda dominada por relações de compadrio, muitas vezes infensa, até mesmo, ao empirismo que busca seguir padrões internacionais de qualidade, a teoria tem um papel crucial em impulsionar os arqueólogos ao pensamento crítico, à interpretação e análise e, não menos importante, a desafiar as idéias e práticas estabelecidas. A despeito da reação daqueles que usufruem de um poder burocrático, sem fundamentação em prestígio científico reconhecido fora da província, sua tentativa de suprimir as vozes discordantes está fadada ao fracasso, em uma sociedade pluralista. Por meio da leitura da teoria arqueológica, alguns arqueólogos brasileiros têm sido capazes de confrontar dificuldades que, de outra forma, seriam insuperáveis. A teoria arqueológica, assim, ajuda a transformar a Arqueologia brasileira de uma maneira vital e, ainda que refletir sobre ela não seja suficiente, é algo, entretanto, indispensável para mudá-la. AGRADECIMENTOS Este texto representa uma reelaboração de palestra, apresentada em Southampton, em 1992, no encontro anual da Theoretical Archaeology Group (EuroTAG), em sessão organizada por Peter Ucko e publicada em Theory in Archaeoloy, A world perspective, Londres, Routledge, 1995, 236-250. Agradeço aos seguintes colegas, que forneceram artigos (alguns inéditos) e me ajudaram de diversam maneira: Fábio Faversani, Martin Hall, Siân Jones, Carlos Magno Guimarães, Arno Álvarez Kern, Mark P. Leone, Eduardo Góes Neves, Walter Alves Neves, Francisco Noelli, Charles E. Orser, Jr., Anna C. Roosevelt, Bruce G. Trigger, Peter Ucko. Este trabalho contou com o apoio do World Archaeological Congress , FAPESP e CAPES 43 REFERÊNCIAS Burckhardt, J. 1958 On history and historians. Nova Iorque, Harper and Row. Burguière, A 1982 The fate of the history of mentalités in the Annales, Comparative Studies in Society and History, 24, 424-427. C. Carreras & P.P.A Funari1998 Britannia y el Mediterraneo. 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A comunicação entre os arqueólogos e o público é exemplificado com o caso da Arqueologia de um estado rebelde, Palmares. O artigo conclui-se com a proposta de maior atenção dos arqueólogos para com a preservação cultural. Palavras-chave: Património cultural; vestígios materiais; preservação. Os desafios da destruição e conservação do património cultural no Brasil são, provavelmente, pouco conhecidos do público académico português e este artigo visa apresentar alguns aspectos dessas questões aos estudiosos lusitanos. Antes de discutir a experiência brasileira, cabe explorar os diferentes sentidos ligados ao conceito mesmo de “património cultural”. As línguas românicas usam termos derivadas do latim patrimonium para se referir à “propriedade herdada do pai ou dos antepassados, uma herança”. Os alemães usam Denkmalpflege, “o cuidado dos monumentos, daquilo que nos faz pensar”, enquanto o inglês adotou heritage, na origem restrito “àquilo que foi ou pode ser herdado” mas que, pelo 25 Departamento de História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, C. Postal 6100, Campinas, 13081-970, SP, Brasil, fax 55 19 289 33 27, [email protected]. 51 mesmo processo de generalização que afectou as línguas românicas e seu uso dos derivados de patrimonium, também passou a ser usado como uma referência aos monumentos herdados das gerações anteriores. Em todas estas expressões, há sempre uma referência à lembrança, moneo (em latim, “levar a pensar”, presente tanto em patrimonium como em monumentum), Denkmal (em alemão, denken significa “pensar’) e aos antepassados, implícitos na “herança”. Ao lado destes termos subjectivos e afectivos, que ligam as pessoas aos seus reais ou supostos precursores, há, também, uma definição mais económica e jurídica, “propriedade cultural”, comum nas línguas românicas (cf. em italiano, beni culturali), o que implica um liame menos pessoal entre o monumento e a sociedade, de tal forma que pode ser considerada uma “propriedade”. Como a própria definição de “propriedade” é política, “a propriedade cultural é sempre uma questão política, não teórica”, ressaltava Carandini (1979: 234). Há não muito tempo, Joachim Hermann (1989: 36) sugeriu que “uma consciência histórica é estreitamente relacionada com os monumentos arqueológicos e arquitectónicos e que tais monumentos constituem importantes marcos na transmissão do conhecimento, da compreensão e da consciência históricos”. Não há identidade sem memória, como diz uma canção catalã: “aqueles que perdem suas origens, perdem sua identidade também”(Ballart 1997: 43). Os monumentos históricos e os restos arqueológicos são importantes portadores de mensagens e, por sua própria natureza como cultura material, são usados pelos actores sociais para produzir significado, em especial ao materializar conceitos como identidade nacional e diferença étnica. Deveríamos, entretanto, procurar encarar estes artefactos como socialmente construídos e contestados, em termos culturais, antes que como portadores de significados inerentes e ahistóricos, inspiradores, pois, de reflexões, mais do que de admiração (Potter s.d.). Uma abordagem antropológica do próprio património cultural ajuda a desmascarar a manipulação do passado (Haas 1996). A experiência brasileira, a esse respeito, é muito clara: a manipulação oficial do passado, incluindo-se o gerenciamento do património, é, de forma constante, reinterpretada pelo povo. Como resumiu António Augusto Arantes (1990: 4): “o património brasileiro preservado oficialmente mostra um país distante e estrangeiro, apenas acessível por um lado, não fosse o fato de que os grupos sociais o reelaboram de maneira simbólica”. Esses estratos são os excluídos do poder e, assim, da preservação do património. 52 No Brasil, houve, sempre, uma falta de interesse, por parte dos arqueólogos, em interagir com a sociedade em geral – como é o caso, na verdade, alhures na América Latina, como nota Gnecco (1995: 19) – e o património foi deixado para “escritores, arquitectos e artistas, os verdadeiros descobridores do património cultural no Brasil, não historiadores ou arqueólogos” (Munari 1995). A preservação dos edifícios de igrejas coloniais poderia ser considerado, no Brasil e no resto da América Latina (García 1995: 42), como o mais antigo manejo patrimonial. É interessante notar que a importância da Igreja Católica na colonização ibérica do Novo Mundo explica a escolha estratégica de se preservar esses edifícios, sejam templos construídos sobre os restos de estruturas indígenas (cf. o exemplo maia, em Alfonso & García s.d.: 5), sejam as igrejas nas colinas que dominavam a paisagem, como foi o caso na América portuguesa. Contudo, nem mesmo as igrejas foram bem preservadas no Brasil, com importantes excepções, e isto pode ser explicado pelo anseio das elites, nos últimos cem anos, de “progresso”, não por acaso um dos dois termos na bandeira nacional surgida da Proclamação da República, em 1889, “ordem e progresso”. Desde então, o país tem buscado a modernidade e qualquer edifício moderno é considerado melhor do que um antigo. Houve muitas razões para mudar-se a capital do Rio de Janeiro para uma cidade criada ex nouo, Brasília, em 1961, mas, quaisquer que tenham sido os motivos económicos, sociais ou geopolíticos, apenas foi possível porque havia um estado d’alma favorável à modernidade. A melhor imagem da sociedade brasileira não deveria ser os edifícios históricos do Rio de Janeiro, mas uma cidade moderníssima e mesmo os mais humildes sertanejos deveriam preterir seu património, em benefício de uma cidade sem passado (Funari, a sair). Talvez o exemplo mais claro dessa luta contra a lembrança materializada seja São Paulo, essa megalópolis, cujo crescimento não encontra paralelos. Ainda que fundada em 1554, continuou a ser uma cidadezinha até fins dos século XIX, até tornar-se, nestes últimos cem anos, a maior cidade do hemisfério sul. Nesse processo, restos antigos sofreram constantes degradações ideológicas e físicas, sendo construídos novos edifícios para criar uma cidade completamente nova. Os edifícios históricos, se assim se pode falar, são a Catedral e o Parque Modernista do Ibirapuera, planejado por Niemeyer, ambos inaugurados em 1954 para comemorar os quatrocentos anos da cidade. Os principais prédios públicos, como o Palácio dos Bandeirantes, sede do governo do Estado de São Paulo ou o Palácio Nove de Julho, que abriga a Assembléia Legislativa do Estado, são, também, muito recentes e a mais importante avenida, a Paulista, fundada em fins do século XIX 53 como um bastião de mansões aristocráticas, foi totalmente remodelada na década de 1970. Mesmo em cidades coloniais, algumas delas bem conhecidas no exterior, como Ouro Preto, declarada Património da Humanidade, a modernidade está sempre presente, por desejo de seus habitantes. Guiomar de Grammont (1998: 3) descreve esta situação com palavras fortes: “A distância entre as autoridades e o povo é a mesma daquela entre a sociedade civil e o passado, devido à falta de informação, ainda que os habitantes das cidades coloniais dependam do turismo para sua própria sobrevivência. Quem são os maiores inimigos da preservação dessas cidades coloniais? Em primeiro lugar, a própria administração municipal, não afectada pelos problemas sociais e ignorante das questões culturais em geral mas, às vezes, os moradores também, inconscientes da importância dos monumentos, contribuem para a deformação do quadro urbano. Novas janelas, antenas parabólicas, garagens, telhados e casas inteiras bastam para transformar uma cidade colonial em uma cidade moderna, uma mera sombra de uma antiga cidade colonial, como é o caso de tantas delas”. É fácil entender que as pessoas estejam interessadas em ter acesso à infraestrutura moderna mas, como notam os europeus quando visitam as cidades coloniais, se os edifícios medievais podem ser completamente reaparelhados, sem danificar os prédios, não haveria porque não fazê-lo no Brasil. Outra ameaça ao património arqueológico das cidades coloniais é o roubo, já que os ladrões são muito atuantes, havendo mais de quinhentas igrejas e museus locais coloniais (Rocha 1997; cf. um caso semelhante na República Tcheca, Calabresi 1998). Um problema mais prosaico é a deterioração dos monumentos devido à falta de manutenção e abrigo, mesmo no interior de edifícios (Lira 1997; Sebastião 1998). Estes três perigos para a manutenção dos bens culturais, aparentemente não relacionados, revelam uma causa subjacente comum: a alienação da população, o divórcio entre o povo e as autoridades, a distância que separa as preocupações corriqueiras e o ethos e políticas oficiais. Houve uma “política de património que preservou a casa-grande, as igrejas barrocas, os fortes militares, as câmaras e cadeias como as referências para a construção de nossa identidade histórica e cultural e que relegou ao esquecimento as senzalas, as favelas e os bairros operários” (Fernandes 1993: 275). 54 Para o povo, há, pois, um sentimento de alienação, como se sua própria cultura não fosse, de modo algum, relevante ou digna de atenção. Tradicionalmente, havia dois tipos de casa no Brasil: as moradas de dois ou mais andares, chamados de “sobrados”, onde vivia a elite, e todas as outras formas de habitação, como as “casas” e “casebres”, “mocambos” (derivado do quimbundo, mukambu, “fileira”), “senzalas” (locais da escravaria), “favelas” (tugúrios) (Reis Filho 1978: 28). O resultado de uma sociedade baseada na escravidão, desde o início houve sempre dois grupos de pessoas no país, os poderosos, com sua cultura material esplendorosa, cuja memória e monumentos são dignos de reverência e preservação e os vestígios esquálidos dos subalternos, dignos de desdém e desprezo. Como enfatizou o grande sociólogo brasileiro, Octávio Ianni (1988: 83), o que se considera património é a Arquitetura, a música, os quadros, a pintura e tudo o mais associado às famílias aristocráticas e à camada superior em geral. A Catedral, frequentada pela “gente de bem”, deve ser preservada, enquanto a Igreja de São Benedito, dos “pretos da terra”, não é protegida e é, com frequência, abandonada. Os monumentos considerados como património pelas instituições oficiais, de acordo com Eunice Durham (1984: 33), são aqueles relacionados à “história das classes dominantes, os monumentos preservados são aqueles associados aos feitos e à produção cultural dessas classes dominantes. A História dos dominados é raramente preservada”. Devemos concordar com Byrne (1991: 275) quando afirma que é comum que os grupos dominantes usem seu poder para promover seu próprio património, minimizando ou mesmo negando a importância dos grupos subordinados, ao forjar uma identidade nacional à sua própria imagem, mas o grau de separação entre os setores superiores e inferiores da sociedade não é, em geral, tão marcado quanto no Brasil. Neste contexto, não é de surpreender que o povo não preste muita atenção à protecção cultural, sentida como se fora estrangeira, não relacionada à sua realidade. Há uma expressão no português do Brasil que demonstra, com clareza, esta alienação das classes: “eles, que são brancos, que se entendam”. Note-se que esta frase é usada também por brancos para se referirem às autoridades em geral. A mesma distância afecta o património, pois os edifícios coloniais são considerados como “problema deles, não nosso”. Poderíamos dizer, assim, que a busca da modernidade, mesmo sem levar em conta a destruição dos bens culturais, poderia bem ser interpretada como um tipo de luta não apenas por melhores condições de vida, mas contra a própria lembrança do sofrimento secular dos subalternos. 55 O património arqueológico stricto sensu poderia deixar de ser afectado por esta falta de interesse na preservação da cultura material da elite, na medida em que a Arqueologia produz evidência de indígenas e dos humildes em geral (cf. Trigger 1998: 16). Entretanto, há muitos factores que inibem um engajamento activo da gente comum na protecção patrimonial. Em primeiro lugar, há falta de informação e de educação formal sobre o tema. Indígenas, africanos e pobres são raramente mencionados nas lições de História e, na maioria das vezes, as poucas referências são negativas, ao serem representados como preguiçosos, uma massa de servos atrasados incapazes de alcançar a civilização. Os índios eram considerados ferozes inimigos, dominados por séculos e isso pleno iure. Em famoso debate, no início do século XX, Von Ihering, então diretor do Museu Paulista, propôs o extermínio dos índios Kaingangs que, segundo ele, estavam a atravancar o progresso do país (Schwarcz 1989: 59) e, mesmo que tenha sido desafiado por outros intelectuais, principalmente do Museu Nacional do Rio de Janeiro, sua atitude era e ainda é muito sintomática da baixa estima dos indígenas, mesmo na academia. Basta lembrar que o material indígena proveniente do oeste do Estado de São Paulo, coletado há oitenta anos, à época de Von Ihering, apenas agora está sendo exposto, graças a um projecto inovador da Universidade de São Paulo (Cruz 1997): antes tarde do que nunca! Os negros, por sua parte, foram considerados como bárbaros ameaçadores ou, como disse, há pouco, um eminente e renomado historiador brasileiro, Evaldo Cabral de Mello (Leite 1996): “Não é possível negar o que era o Quilombo dos Palmares: era uma república negra, foi destruída e eu prefiro, para ser franco, que assim tenha sido. Por uma razão muito simples. Se Palmares tivesse sobrevivido, teríamos no Brasil um Bantustão, um Estado independente e sem sentido”. Assim, um importante historiador ainda se sente ameaçado pelos negros e parece mirar-se em Catão: delenda Palmares! Ser capaz de dizer tais disparates ex cathedra revela muito sobre a doutrinação, cheia de preconceitos que, de uma outra ou de outra maneira, acaba por atingir o próprio povo (Funari 1996 a: 150 et passim). Por fim, mas não menos importante, há uma falta de comunicação entre o mundo académico, em particular a comunidade arqueológica, e o povo. Os arqueólogos deveriam agir com a comunidade, não para ela (Rússio 1984: 60), dando ao povo uma melhor compreensão do passado e do 56 mundo (Hudson 1994: 55). Para atingir esses objectivos, pesquisas de largo fôlego não deveriam levar à diversão (Durrans 1992: 13), mas à integração de processos, como é o resgate de edifícios históricos e a escavação de sítios arqueológicos, e produtos, como a publicização do trabalho científico por meio de diferentes media (Merriman 1996: 382). Um bom exemplo é o destino de um sítio arqueológico particularmente importante no Brasil: o quilombo do século XVII, conhecido como Palmares. Desde a década de 1970, começou-se a suspeitar que o famoso quilombo, que resistiu por quase um século ao sistema escravista, se localizava no interior do Estado de Alagoas, na Serra da Barriga. Ativistas negros encontraram restos de superfície na colina e conseguiram, depois de uma campanha sem precedentes, fazer com que as autoridades declarassem a área património nacional, em 1985. Contudo, devido ao pouco caso do establishment arqueológico, controlado por forças conservadoras ligados ao regime militar (Funari 1995b: 238-245), o sítio ficou nas mãos das autoridades locais. O resultado foi o uso de tractores para nivelar uma parte importante do sítio, o que permitiu que as autoridades promovessem festas e, desta forma, conseguissem o apoio eleitoral. No início da década de 1990, quando o trabalho arqueológico começou na Serra, um dos principais objectivos foi actuar com a comunidade local e com os activistas negros, de modo que se pudesse compreender o sítio e sua importância e se pudesse almejar, para o lugar, mais do que o destino de local de festas. O poder obtido por aqueles que estão, normalmente, excluídos dos processos de decisão (Jones 1993: 203) seria apenas possível por meio da divulgação científica e na mídia da pesquisa arqueológica. Nos últimos anos, os arqueólogos encarregados do estudo do sítio, Charles E. Orser, Jr. (1992;1993;1994;1996) e este autor (Funari 1991;1994a;1995a;1995c;1996a;1996b;1996c;1996e;1996f; Orser e Funari 1992) publicaram três livros, integral ou parcialmente, dedicados a Palmares, mais de dez artigos científicos em revistas académicas brasileiras e estrangeiras, assim como Scott Allen (1997; 1999) produziu um mestrado e um doutorado sobre o sítio, além de estudo de Michael Rowlands (1999), a partir do mesmo sítio. Além disso, diversos artigos em revistas e jornais, tanto no Brasil como no exterior, foram publicados. É provável que isto não seja suficiente para mudar, de forma radical, a atitude subjectiva dos brasileiros comuns para com essas evidências humildes de um quilombo, pois o contexto mais amplo no Brasil não seria alterado por uma actividade académica isolada, mas, mesmo assim, muito mais gente, agora, sabe da existência do sítio e de sua possível importância. 57 De facto, quinze anos atrás, no final do regime militar, Olympio Serra (1984:108) propôs uma interpretação ousada de Palmares, como um possível modelo de sociedade não-autoritária: “deveria ser possível recriar a experiência de uma sociedade pluralista, como era a República de Palmares. E se você olha esta mais atraente fase da História do Brasil, vai ver que, em Palmares, não havia apenas negros, mas também índios, judeus, em outras palavras, todos os discriminados pela ordem colonial, todos que eram diferentes”. Alguns anos depois, o trabalho arqueológico na Serra da Barriga produziu evidência material que pode substanciar esta abordagem humanista. Palmares deve seu crescimento, sobrevivência e destruição ao papel que teve no comércio entre a costa e o interior, pois os interesses mercantis e Palmares se opunham àqueles da nobreza e dos latifundiários, que triunfaram, ao fim, devido à força dos grupos nobiliárquicos, em Portugal e na colónia. A destruição desta tendência pluralista explica a persistência de um discurso racista e elitista, já mencionado, e o trabalho arqueológico de resgate da cultura material do quilombo, assim como sua preservação como património cultural, passa a ter um papel não desprezável na promoção de uma consciência crítica, dentro e fora do mundo académico. No Brasil, o cuidado do património sempre esteve a cargo da elite, cujas prioridades têm sido tanto míopes como ineficazes. Edifícios de alto estilo arquitectónico, protegidos por lei, são deixados nas mãos do mercado e o comércio ilegal de obras de arte é amplamente tolerado. Recentemente, Christie’s vendeu uma obra-prima de Aleijadinho (Blanco 1998a; 1998b). A imprensa está sempre a noticiar a respeito, sem que se faça algo a respeito (cf. Leal 1998; Verzignasse 1998; Werneck 1998). Arqueólogos de boa cepa não escondem sua ligação com antiquários (e.g. Lima 1995). A gente comum sente-se alienada tanto em relação ao património erudito quanto aos humildes vestígios arqueológicos, já que são ensinados a desprezar índios, negros, mestiços, pobres, em outras palavras, a si próprios e a seus antepassados. Neste contexto, a tarefa académica a confrontar os arqueólogos e aqueles encarregados do património, no Brasil, é particularmente complexa e contraditória. Devemos lutar para preservar tanto o património erudito, como popular, a fim de democratizar a informação e a educação, em geral. Acima de tudo, devemos lutar para que o povo assuma seu destino, para que tenha acesso ao conhecimento, para que possamos trabalhar, como 58 académicos e como cidadãos, com o povo e em seu interesse. Como cientistas, em primeiro lugar, deveríamos buscar o conhecimento crítico sobre nosso património comum. E isto não é uma tarefa fácil. Agradecimentos Agradeço a diversos colegas, que contribuíram de diferentes maneiras, para que este artigo fosse escrito: Scott Allen, Jopep Ballart, Brian Durrans, Juan Manuel García, Siân Jones, Vítor Oliveira Jorge, Robert Layton, Charles E. Orser, Jr., Parker Potter, Michael Rowlands, Bruce G. Trigger, Peter Ucko. A responsabilidade pelas idéias restringe-se ao autor. Devo mencionar, ainda, os apoios institucionais do Congresso Mundial de Arqueologia, Instituto de Arqueologia (Londres), CNPq, Universidade de Barcelona e Universidade Estadual de Campinas. Referências Allen, S.J. 1999. Africanims, mosaics, and creativity: the historical archaeology of Palmares. In Cultura Material e Arqueologia Histórica, P.P.A. Funari (ed.) Cultura Material e Arqueologia Histórica, P.P.A. Funari (ed.), pp. 141-178. Campinas: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Allen, S.J. 1997. The ethnogenesis of the Palmarino: preliminary directions in the historical archaeology of a seventeenth-century Brazilian quilombo. Revista de História da Arte e Arqueologia 3, forthcoming. Arantes, A.A. 1990. La Preservación delPatrimonio como Práctica Social. Campinas: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP. Ballart, Josep. 1997. El Patrimonio Histórico y Arqueológico: valor y uso. Barcelona: Ariel. Byrne, D. 1991. Western hegemony in archaeological heritage management. History and Anthropology 5: 269-276. Carandini, A. 1979. Archeologia e Cultura Materiale. Dai ‘lavori senza gloria’ nell’antichità a una politica dei beni culturali. Bari: De Donato. Cruz, M. 1997. Após 80 anos, achado comporá acervo de museu; guardados por décadas em armário, fragmentos arqueológicos ficarão expostos em Chavantes. O Estado de São Paulo, November the 11th, A, p. 22. 59 Durham, E. 1984. Texto II. In Produzindo o Passado, Estratégias de construção do patrimônio cultural, A.A. Arantes (Ed.), 23-58. São Paulo: Brasiliense. Durrans, B. 1992. Behind the scenes. Museums and selective criticism. Anthropology Today, 8, 4, 11-15. Fernandes, J. R. O. 1993. Educação patrimonial e cidadania: uma proposta alternativa para o ensino de História. Revista Brasileira de História 13 (25/26), 265-276. Funari, P.P.A. 1991. A Arqueologia e a cultura africana nas Américas. Estudos Ibero-Americanos 17, 61-71. Funari, P.P.A. 1994a. La cultura material y la Arqueología en el estudio de la cultura africana en las Américas. America Negra 8: 33-47. Funari, P.P.A. 1994b. Rescuing ordinary people’s culture: museums, material culture and education in Brazil. 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Contradições e esquecimentos nas imagens do passado26 Pedro Paulo A. Funari27 Gostaria de começar agradecendo aos organizadores do CEDEM da UNESP, em especial à Professora Anna Maria Martínez Corrêa, o convite de participar, hoje, deste debate, em torno do livro da Professora Marly Rodrigues, estudiosa que há muito admiro e que tanto nos tem ensinado sobre o patrimônio em nosso país. Começarei por citar algumas passagens do capítulo conclusivo do volume e que servem como reflexões surgidas ao cabo de um percurso, como se olhasse para a História do cuidado com o patrimônio Participação em Mesa-Redonda no CEDEM- UNESP,DOCUMENTAÇÃO E MEMÓRIA,TESES EM DEBATE, “IMAGENS DO PASSADO, A INSTITUIÇÃO DO PATRIMÔNIO EM SÃO PAULO, 1969/1987”, Marly Rodrigues, Condephaat e Faap, expositora. Pedro Paulo Funari, UNICAMP, Walter Pires, SMC/SP, Debatedores. Célia R. Camargo, UNESP. Moderadora. Dia 11 de setembro de 2001, às 18:00h. Praça da Sé, 108, 1º andar, tel 252 05 10. Discussão sobre o livro de Marly Rodrigues. 26 27 Departamento de História, [email protected]. IFCH-UNICAMP, C. Postal 6110, Campinas, SP, 13081-970, 62 com o devido distanciamento, já a enxergar não mais as pedrinhas, mas o mosaico resultante dos documentos compulsados e criados pela autora, na forma de entrevistas com os próceres administrativos. Assim, Marly Rodrigues descreve o primeiro período da instituição estadual de patrimônio, de 1969 a 1982, em pleno arbítrio de um regime de força: “Em um período de ascensão do conservadorismo, como os treze primeiros anos de atuação do Condephaat, a evocação do bandeirante e do grande cafeicultor atenderia quer à distinção de segmentos paulistas, quer às abordagens comemorativas e cívicas da cultura e da educação...Consagradores de um tempo passado, entendido como um tempo sem contradições, as representações bandeiristas, cafesistas e da colonização remetiam à nostalgia da vida rural” (pp. 148-9, grifo acrescentado). De fato, a autora remonta a Taunay as origens dessas imagens idealizadas do passado e demonstra sua força no período de ápice da ditadura, mas sua força ideológica consiste, como bem ressalta Marly Rodrigues, na ênfase na ausência de contradições, na visão idílica de um passado em que todos seríamos bandeirantes. Tal concepção continua, quase vinte anos depois, a dominar as representações materiais do nosso passado, como atesta, de forma exuberante e indecente, o Museu Paulista, in primis, mas não apenas, pois o inventário dos bens tombados continua a privilegiar essas imagines maiorum. A restauração das liberdades formais viria a permitir a emergência, no seio da sociedade, de múltiplas vozes e interesses o que, em parte, se refletiu, na ampliação do universo cultural representado no patrimônio (Meneguello 2001). No entanto, Marly Rodrigues conclui seu balanço de forma muito clara, ao enfatizar as permanências seculares do discurso da exclusão. Segundo a autora: “Do conjunto de bens tombados no Estado de São Paulo, fazem parte poucas memórias de negros, de imigrantes e de trabalhadores. Os remanescentes de sedes de fazenda e ricas mansões urbanas sombreiam os de senzala, dos cortiços e dos bairros operários. Desse modo, o patrimônio paulista se apresenta não apenas como perpetuador da memória, mas também do esquecimento oficial. A exclusão atinge não apenas os excluídos, mas remete toda sociedade à idealização do passado como um tempo desprovido de contradições e 63 diferenças. Além disso, não permite a reflexão sobre as relações hoje vigentes na sociedade, dessa forma reafirmando igualdades idealizadas e camuflando conflitos, o que subtrai dos homens a idéia de possibilidade de transformação, razão mesma da memória, da retenção e socialização da experiência vivida” (p. 151, grifo acrescentado). Não se trata de particularidades, de idiossincrasias das políticas patrimoniais paulistas, mas de características intrínsecas do preservacionismo nacional, inserido, portanto, em uma sociedade secularmente patriarcal, hierarquizada, fundada na obediência, infensa à liberdade e à cidadania ativas (cf. obras de Funari, nas referências). Como enfatizou o grande sociólogo, Octávio Ianni (1988: 83), o que se considera patrimônio é a Arquitetura, a música, os quadros, a pintura e tudo o mais associado às famílias aristocráticas e à camada superior em geral. A Catedral, frequentada pela “gente de bem”, deve ser preservada, enquanto a Igreja de São Benedito, dos “pretos da terra”, não é protegida e é, com frequência, abandonada. Os monumentos considerados como patrimônio pelas instituições oficiais, de acordo com Eunice Durham (1984: 33), são aqueles relacionados à “história das classes dominantes, os monumentos preservados são aqueles associados aos feitos e à produção cultural dessas classes dominantes. A História dos dominados é raramente preservada”. Marly Rodrigues nota que não se trata, apenas, de excluir as maiorias e as minorias, mas de construir um passado homogêneo, isento de tensões, contradições e variedade. A sociedade é vista como um conjunto harmônico de pessoas, uma koinonia, no sentido já proposto por Aristóteles (Politica 1252a7), a viver segundo normas sociais compartilhadas e aceitas. Neste modelo normativo, a dissensão, a variedade e a diferença aparecem como desvios da norma, exceções que confirmariam a regra. Essa concepção de sociedade cria o conceito de identidade partilhada, de características iguais (de onde se origina a própria palavra identidade, de idem, “o mesmo”, em latim), como se todos, portanto, pertencêssemos à confraria. Este o conceito normativo de pertença, belonging, tão caro aos modelos de sociedade sem conflitos, sem diversidade. 64 Epur, como lembra Marly Rodrigues, a ausência de conflitos e diferenças não passa de idealização do passado, uma visão idílica dos donos do poder, daqueles que controlam a preservação da cultura material, acostumados com o exercício do mando e com a expectativa de obediência por parte daqueles que devem fazê-lo e que são, segundo sua ótica, simples néscios. Contudo, Marly Rodrigues menciona contradições e diferenças que não se sujeitam à lógica do discurso da homogeneização opressiva, pois a resistência consiste em desconstruir, no sentido literal e figurado, essas memórias materiais repressoras. A alienação da população e o divórcio entre o povo e as autoridades distanciam e separam as preocupações corriqueiras das pessoas comuns e o ethos e políticas oficiais. Houve uma “política de patrimônio que preservou a casa-grande, as igrejas barrocas, os fortes militares, as câmaras e cadeias como as referências para a construção de nossa identidade histórica e cultural e que relegou ao esquecimento as senzalas, as favelas e os bairros operários” (Fernandes 1993: 275). Para o povo, há, pois, um sentimento de alienação, como se sua própria cultura não fosse, de modo algum, relevante ou digna de atenção. Tradicionalmente, havia dois tipos de casa no Brasil: as moradas de dois ou mais andares, chamados de “sobrados”, onde vivia a elite, e todas as outras formas de habitação, como as “casas” e “casebres”, “mocambos” (derivado do quimbundo, mukambu, “fileira”), “senzalas” (locais da escravaria), “favelas” (tugúrios) (Reis Filho 1978: 28). O resultado de uma sociedade baseada na escravidão, desde o início houve sempre dois grupos de pessoas no país, os poderosos, com sua cultura material esplendorosa, cuja memória e monumentos são dignos de reverência e preservação e os vestígios esquálidos dos subalternos, dignos de desdém e desprezo. Marly Rodrigues considera que essa invenção de um passado homogêneo e harmônico inibe a reflexão sobre as relações sociais odiernas e tende a subtrair dos homens seu potencial de transformação social. A preservação patrimonial insere-se, neste contexto, em uma luta pela preservação do status quo e das iniqüidades vigentes. Essas tentativas de imobilização dos agentes sociais, entretanto, sempre encontram seus limites na própria práxis social, que escapa aos ditames dos administradores da sociedade e da gestão patrimonial. Marly Rodrigues conclui sua obra com palavras fortes sobre a deotologia do preservacionismo, sobre sua tarefa: 65 “A busca desse sentido (sc. de democratização das práticas públicas de proteção da memória social) implicaria o interesse em favorecer a emergência de uma consciência política que absorvesse o presente como um tempo historicamente constituído, no qual o passado é projetado como reflexão sobre a diferença, o outro, o conflito e a resistência, elementos constituintes da ininterrupta luta pelos direitos sociais” (p. 152). O preservacionista sempre tem uma pergunta em mente: preservar para quê? Há alguns anos, quando de uma homenagem póstuma ao obstinado defensor do patrimônio e humanista Paulo Duarte – personagem do capítulo de Marly Rodrigues “Passado, reflexo do presente”-, Maria Cristina Bruno (1991) evocava uma bela imagem sobre a preservação: “Patrimônio, para Paulo Duarte, era visto com muita abrangência. Sinônimo de qualidade de vida, pesquisa e ensino, erudito e popular, antigo e moderno e, acima de tudo, preservação para a informação”. Informação, criação de consciência, ação no mundo, transformação, eis as metas da preservação (Funari 1992/3:18-19). Seria, até mesmo, o caso de propor que se deva preservar para transformar a sociedade, pois o conhecimento não é apanágio de classe ou grupo e qualquer ação preservacionista pode levar à reflexão crítica. Abrir a cabeça, talvez a meta maior da preservação (Hudson 1994: 55). A começar por uma política que se contraponha à alienação da moda e à descontextualização derivada da mercantilização generalizada dos objetos e dos edifícios em nossa sociedade pós-moderna (Durrans 1992: 14), que contribua para a autonomia do público (aquilo que os ingleses tão bem definem como empowerment, cf. Giroux & McLaren 1986: 238). O passado, em forma de patrimônio material, serve ao presente (Luc 1986: 118). A luta por direitos sociais, propugnada por Marly Rodrigues, consiste em batalhar por um preservacionismo que dê conta das contradições, dos conflitos, da heterogeneidade (cf. Rodrigues 2001: 17). Tal luta não se pode restringir à esfera dos órgãos de patrimônio, pois são as forças sociais a permitir, em 66 última instância, a contestação das exclusões já consolidadas. A ação conjunta com os agentes constitui, pois, o meio privilegiado de ação por uma preservação libertadora. O belo livro de Marly Rodrigues, de forma muito sintomática, conclui-se com uma convocação à ação, com um brado por uma política pluralista que contribua para transformar nossa sociedade. Cabe a todos nós contribuirmos para isso. Agradecimentos Agradeço a Cristina Bruno, Brian Durrans, Octavio Ianni, Robert Layton, Cristina Meneguello e Marly Rodrigues. Devo, ainda, mencionar o apoio institucional do World Archaeological Congress. A responsabilidade pelas idéais restringe-se ao autor. 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Rodrigues, M. 2001 Preservar e consumir: o patrimônio histórico e o turismo, in Turismo e Patrimônio Cultural, P.P.A. Funari & J. Pinsky (orgs), São Paulo, Contexto, 13-24. Teoria e métodos na Arqueologia contemporânea: o contexto da Arqueologia Histórica28 Pedro Paulo A. Funari A Arqueologia possui diversas correntes teóricas, cujos paradigmas epistemológicos não são, às vezes, bem conhecidos. Neste contexto, procuro apresentar um quadro geral das posturas mais recorrentes e relaciono essas abordagens à prática contemporânea da Arqueologia Histórica (Funari, Hall e Jones 1999, com bibliografia sobre o tema). 28 Considerações apresentadas em eventos acadêmicos sobre os campos conceituais na Arqueologia das sociedades históricas. 69 A Arqueologia só pode ser entendida em seu contexto histórico e social, como alertava Michael Shanks há algum tempo. Desde seu surgimento, diversas teorias desenvolveram-se e, de certa forma, todas elas continuam até hoje sendo utilizadas. Herdeira do nacionalismo do século XIX, a Arqueologia tem no modelo histórico-cultural sua teoria mais difundida. A partir da noção de que cada nação seria composta de um povo (grupo étnico, definido biologicamente), um território delimitado e um cultura (entendida como língua e tradições sociais), formou-se o conceito de cultura arqueológica. Esta seria um conjunto de artefatos semelhantes, de determinada época, e que representaria, portanto, um povo, com uma cultura definida e que ocupava um território demarcado. Este modelo está calcado em suas origens filológicas e históricas e surgiu no contexto da busca das origens pré-históricas dos povos europeus, tendo surgido na Alemanha, com Gustav Kossina, e se generalizado graças à genialidade de Vere Gordon Childe. Childe retirou os pressupostos racistas do modelo original e desenvolveu o conceito de cultura arqueológica, acoplando-o ao evolucionismo materialista de origem marxista. O modelo histórico-cultural parte do pressuposto que a cultura seja homogênea e que as tradições passem de geração a geração. Desta forma, seria possível tentar determinar os antepassados dos germanos ou dos guaranis. Este modelo, ainda que tenha sofrido muitas críticas, como veremos, continuar a ser o mais utilizado em Arqueologia, em suas múltiplas variantes e formas. O primeiro assalto consistente a esse paradigma viria daqueles que não praticavam a Arqueologia de cunho filológico e histórico, à maneira européia. No contexto da Arqueologia antropológica norte-americana, surgiu um movimento, na década de 1960, que se auto-denominava de New Archaeology ou Arqueologia Processual, capitaneada por Lewis Binford. Começou-se com o grito de guerra de que “a Arqueologia é Antropologia ou não é nada”, em claro desafio ao caráter histórico da Arqueologia histórico-cultural. A História estaria em busca dos eventos e das culturas singulares, enquanto a Antropologia americana ressaltava que haveria regularidades no comportamento humano. Buscavam-se, pois, leis transculturais de comportamento. Partia-se do pressuposto que os homens maximizam os resultados e minimizam os custos, em qualquer época e lugar. Assim, estudar o assentamento humano há dez mil anos na Mesopotâmia ou na China deveria partir dos mesmos pressupostos e pouco importavam as características históricas específicas. A 70 Arqueologia processual refletia bem uma visão capitalista do passado humano, privilegiando uma interpretação materialista pouco preocupada com as diversidades culturais. Surgida no contexto da Guerra Fria e tendo atingido seu ápice na década de 1970, ela continua bastante difundida, ainda que nunca tenha conseguido suplantar, em popularidade acadêmica, o modelo histórico-cultural. A partir da década de 1980, começaram a surgir críticas mais contundentes ao processualismo. Nas Ciências Humanas, em geral, difundia-se o pós-modernismo e as críticas à idéia de verdade científica. A partir da noção de que as ciências são construções discursivas, inseridas em contextos sociais, desmontou-se a lógica do processualismo: os homens não foram sempre e em toda parte capitalistas! Alguns, como Ian Hodder, começaram a ressaltar que havia uma dimensão simbólica na cultura que não podia ser deixada de lado, já no início da década de 1980, mas foi a publicação de Re-Constructing Archaeology, por Michael Shanks e Christopher Tilley, em 1987, que marcou o processo de reconstrução da Arqueologia. Os autores uniram as vertentes filológicas, históricas e filosóficas da crítica social às reflexões da Antropologia contextual, em um ataque devastador aos pressupostos histórico-culturais e processuais, caracterizados como discursos a serviço das potências imperialistas e da exploração. Já antes disso, Bruce G. Trigger constatava que a New Archaeology era uma forma de Arqueologia imperialista. A Arqueologia pós-processual ou contextual introduziu, de forma explícita, a dimensão política da disciplina, sua importância na luta dos povos pelo seu próprio passado e por seus direitos. Foi neste contexto que surgiu o World Archaeological Congress (Congresso Mundial de Arqueologia), em 1986, congregando arqueólogos e outros estudiosos, assim como indígenas, preocupados com as dimensões sociais da Arqueologia. Shanks e Tilley constataram que o próprio nome da disciplina pode ser interpretado como o “conhecimento do poder”, retomando um dos sentidos da palavra arque, em grego. A partir da década de 1990, esse engajamento levou a um crescente dinamismo da chamada Arqueologia Pública (public archaeology), entendida como toda a pletora de implicações públicas da disciplina, do cuidado pelo patrimônio aos direitos humanos. 71 A partir do final da década de 1990, há um crescente pluralismo interpretativo na Arqueologia. Os modelos fundados no histórico-culturalismo continuam muito difundidos, tanto por serem os que mais cedo surgiram e terem continuado a desenvolver-se, como por responderem a inquietações históricas concretas, como é o caso da busca das origens pré-históricas de povos como os tupis ou os guaranis. A partir da década de 1960, uma vertente histórico-cultural importante em certos países latino-americanos foi a Arqueologia Social LatinoAmericana, teoria fundada em Childe e que se aplicou bem à reconstrução das grandes civilizações pré-colombianas, como a maia, inca e asteca, que estariam na base das modernas nacionalidades de países com forte presença indígena, como o México e o Peru. O processualismo, por sua parte, continua importante, em particular por fornecer esquemas interpretativos aplicáveis a qualquer contexto histórico. Assim, o estudo da captação de recursos e dos padrões de assentamento tem se beneficiado das ferramentas interpretativas da New Archaeology, sendo seus métodos mais usados em certos países, como na Europa Oriental ou na Argentina, ou em determinadas instituições de pesquisa. A Arqueologia contextual, em suas mais variadas manifestações, tornou-se conhecida em toda parte e assumiu a vanguarda em países como a Inglaterra e em diversas instituições pelo mundo afora, em primeiro lugar no mundo anglo-saxão, mas também alhures. A convivência de diferentes e, às vezes, contraditórias teorias em Arqueologia constitui uma salutar característica da disciplina na atualidade. Neste contexto, pode afirmar-se que a Arqueologia Histórica é uma disciplina ainda muito jovem, tendo se institucionalizado há apenas quarenta anos, nos Estados Unidos. No Brasil, sua prática tem-se ampliado, principalmente, a partir da década de 1980, em parte como resultado da restauração paulatina das 72 liberdades públicas e do declínio do arbítrio, primeiro com a anistia (1979), o relaxamento da censura e, ao cabo, com a passagem a um regime civil em 1985. A primeira questão epistemológica a ser abordada refere-se àquela mais central e que se encontra no cerne de todo engenho da disciplina: seu estatuto ontológico. A Arqueologia, surgida em solo europeu herdeira da tradição ocidental renascentista, teve algumas de suas bases assentadas na História da Arte, na Arquitetura acadêmica, no mundo das formas. Este período pré-histórico da Arqueologia marcou profundamente a disciplina, em busca das grandes estátuas gregas, da aisthesis, da percepção das etéreas linhas da beleza marcadas no mármore e noutros materiais nobres. Quando o século XVIII testemunhou o avanço das Luzes e uma nova universidade tomou forma, a Filologia passou a erigir-se como fundamento último da humanidade e o próprio estudo das formas, já multissecular, passou a ser apresentado à semelhança das línguas. A nascente Filologia já se havia inspirado na Biologia para decompor as línguas em troncos e filiações, assim como para apresentá-las, à maneira dos seres vivos, com nascimento, crescimento, ápice, declínio e desaparecimento e tais metáforas foram passadas, mutatis mutandis, para a cultura material. Neste contexto, a Arqueologia não podia deixar de ser filológica e, portanto, histórica. Muito diversa a Arqueologia surgida do outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos. Ao lado de uma Arqueologia européia logo implantada nas universidades e museus americanos, tão bem representada pelas Arqueologia Clássica, Bíblica, do Egito e da Mesopotâmia, surgia outra, a Arqueologia pré-histórica. As Arqueologias surgidas no Velho Mundo estudavam a civilização européia e suas origens, voltavam-se para as próprias sociedades em que se inseriam. Nos Estados Unidos, surgia uma disciplina voltada para aqueles que não faziam parte da civilização ocidental, a Antropologia interessada no substrato humano dos diversos povos. Para tanto, era necessário conhecer as línguas indígenas (Lingüística), as tribos existentes (Etnologia) e aquelas extintas (conhecidas pela cultura material e estudadas pela Arqueologia préhistórica). O estudo da cultura material recente das sociedades ocidentais demorou, portanto, a surgir e quando o fez encontrou-se na encruzilhada de diversas origens e abordagens. Na Europa, o estudo 73 arqueológico destes últimos séculos, por vezes chamada de Arqueologia Pós-Medieval, continua a ser prática minoritária, mas sempre vinculada à lógica narrativa das origens históricas e, com freqüência, na esteira de um discurso das formas eruditas e das elites. Nos Estados Unidos, onde a disciplina se desenvolveu com grande êxito, as raízes antropológicas da Arqueologia Histórica permitiram que se criassem narrativas críticas, ainda que prevaleça a lógica das nobres origens da nação. As tensões epistemológicas no interior da Arqueologia Histórica, nos Estados Unidos, refletem sua dupla face: por um lado, a suntuosidade material da civilização euro-americana forma a base de uma narrativa dominante conservadora e que justifica o domínio do mundo. Por outro lado, ao poder voltar-se sobre si mesma como se estudasse uma outra humanidade, à maneira da Antropologia, podem surgir os conflitos, as maiorias silenciadas, a materialidade da opressão e da resistência. Neste contexto mais amplo, a Arqueologia Histórica brasileira não deixa de compartilhar das aporias e contradições inerentes a este campo de pesquisa. Na origem da Arqueologia Histórica no Brasil, está o patrimônio, bem material de alto valor monetário e eo ipso símbolo da vitória da apropriação do trabalho alheio. Patrimônio é aquilo que poucos têm, é o cabedal a ser passado de pai para filho, de proprietário a proprietário, apanágio de poucos. Deste sentido jurídico de patrimônio deriva o uso cultural do termo. Trata-se, pois, de bens que demonstram a proprietários e não proprietários seu devido lugar na ordem social. Também em nosso meio, pois, a disciplina surge como reforço material de narrativas hegemônicas, ainda que os discursos dominantes sejam diversos daqueles prevalecentes nos Estados Unidos ou na Europa. Para uns o individualismo capitalista da América, para outros a tradição aristocrática européia, enquanto no Brasil as narrativas dominantes fundam-se no patriarcalismo escravista. Nos Estados Unidos, a Arqueologia constrói ou desconstrói um individualismo capitalista, na cultura material quotidiana de capitalistas ou de trabalhadores, à porcelana de aparato se opõe a cerâmica dos operários, a grande arquitetura erudita à construção vernacular. Uns falam da grandeza dos antepassados, outros ressaltam as lutas dos humildes trabalhadores. Na Europa, ao culto à tradição aristocrática, opõe-se o quotidiano de camponeses e trabalhadores. No Brasil, não há individualismo capitalista nem tradição aristocrática que resistam à escravidão e à exclusão social de amplas maiorias, ademais heterogêneas ao extremo: de negros a indígenas, de pobres imigrantes a judeus errantes, de sertanejos a seringueiros. 74 As conseqüências epistemológicas dessas particularidades brasileiras não podem ser subestimadas. A ciência periférica caracteriza-se pela importação de discursos dos centros hegemônicos e, neste caso, como encontrar o individualismo burguês ou a tradição aristocrática, os camponeses ou os operários, tais como aparecem nos estudos da Inglaterra e da Nova Inglaterra? Os discurso dominante de elogio da tradição ou do individualismo burguês adapta-se mal aos trópicos, artificial quando aplicado a sociedade tão pouco burguesa ou aristocrática sensu stricto. O contra-discurso, por sua parte, não pode inventar, senão de forma caricata, a resistência pelo consumo capitalista, como se faz nos Estados Unidos, nem propugnar a criação de uma consciência de classe no quotidiano das lutas fabris e camponesas, como no Velho Mundo. Os sujeitos sociais fragmentados da Arqueologia Histórica no Brasil são mais ambivalentes e contraditórios, a começar de uma elite patriarcal predatória e truculenta, pouco instruída, infensa a qualquer liberdade: pouco aristocrática e em nada burguesa, a despeito do uso de porcelana e perfumes que, alhures seriam sinal de uma coisa ou de outra. Do outro lado, os sujeitos são heterogêneos por definição: indígenas, negros, mulatos, libertos, pobres, caboclos, sertanejos, num elencar sem fim de lutadores que não eram tampouco indivíduos como seus congêneres dos centros hegemônicos americanos e europeus. Não é por acaso que a Arqueologia Histórica engajada e pública volta-se, precisamente, para resgatar as vozes, os vestígios e os direitos de nativos, negros e de todos os outros excluídos das narrativas dominantes. Essas tendências, cada vez mais importantes no contexto mundial, tornam-se, da mesma forma, mais e mais conhecidas e praticadas no Brasil, inserindo nossa Arqueologia nas práticas internacionais. Referência: Funari, P.P.A., Hall, M., Jones, S. (eds). 1999 Historical Archaeology, Back from the edge. Londres, Routledge, 1999. A coleção de ânforas do MAE-USP: vasos e inscrições29 Pedro Paulo A. Funari 29 Artigo publicado em inglês, MAE-USP amphora collecton: vessels and incriptions, Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, 11, 2001, 275-282. Traduzido do original em inglês por Pedro Paulo A. Funari. 75 Ânforas eram uma importante forma de comércio no mundo antigo. Eram usadas para o transporte de líquidos, normalmente vinho, azeite e salações. Eram usadas, em primeiro lugar, como recipientes de abastecimento e comércio a longa distância. As ânforas fornecem-nos evidência direta da movimentação de alimentos, algo importante tanto por razões econômicas e culturais. O estudo desses vasos torna-se mais fácil, também, pela existência de um grupo substancial de informação epigráfica, pois muitas ânforas possuíam inscrições incisas nas ânforas antes da cocção e/ou inscrições pintadas depois do cozimento (Peacock e Williams 1986: 2). Ânfora, em grego "um vaso para transporte com duas alças" (Funari 1987), foi usado, pela primeira vez, na Palestina, no século XV a.C. O vaso cananeu foi exportado para fora da região, logo alcançando a Grécia. A forma bicônica do vaso cananeu foi usado nos períodos minóico e micênico, mas a Grécia não adotaria a forma típica da ânfora até o século VII a.C. Ânforas de diferentes cidades desenvolveram formas próprias, o que permitia sua fácil identificação (cf. Funari 1985 a). As alças das ânforas gregas eram, com freqüência, estampilhadas, referindo-se a fazendas produtoras, nomes de éforos e meses, sendo certificados de capacidade, garantia de peso dos conteúdos para cobrança de impostos e para informação ao consumidor (Grace 1949). A evidência dos selos indica que as ânforas de Rodes e Cnidos foram exportadas desde essas cidades até colônias e assentamentos no Mediterrâneo. Cidades e comércio dos gregos na sul da Itália e na Sicília levaram ao desenvolvimento, em meados do IV século a.C., das chamadas ânforas greco-itálicas (Will 1982). A pasta da maioria das ânforas costuma ser simples, com inclusões de minerais e pedras. Vasos grandes eram, em geral, construídos em partes, mas os pequenos eram feitos de uma só vez. Todas as ânforas precisavam ter suas bocas fechadas, sendo usuais os tampões vegetais ou de argila. Os estudos anfóricos desenvolveram-se desde o século XIX mas, em grande escala, a partir da década de 1970 (Funari 1985b). As principais áreas de especialização são a classificação e tipologia, petrografia e epigrafia, de tipos específicos de ânforas. O estudo das ânforas tem sido importante para a interpretação econômica e social do mundo antigo, na medida em que as ânforas fornecem uma pletora de dados sobre a economia, sociedade, hábitos e cultura antigos. As ânforas dão informações únicas sobre temas 76 como a movimentação de mercadorias e os hábitos culturais, relacionando-se à identidade cultural. Os estudos anfóricos contribuíram para um melhor conhecimento da economia do mundo antigo (Garlan 1986: 7), em particular, graças aos catálogos de olarias (Empereur e Picon 1986), de inscrições (Empereur 1982; Empereur e Guimier-Sorbets 1986; cf. Funari 1997: 85-86) e a outros esforços para publicar e estudar corpora (Funari 1994). Desta maneira, é possível tecer análises bem fundamentadas da sociedade antiga (Wellskopp 1998: 182). O objetivo deste artigo consiste em fornecer um catálogo de ânforas e selos anfóricos no acervo do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. O Museu guarda duas ânforas greco-itálicas, uma ânfora grega e cinco selos anfóricos, quatro de Rodes e um de Cnidos. Selos de Rode se Cnidos O vinho era uma importante mercadoria durante o período helenístico (Grace 1961: 14) e os vinhos de Rodes e Cnidos eram exportados em quantidade, por serem baratos. Esses vinhos eram importados em muitos mercados, sendo de Cnidos 65% das mais de 40 mil selos de ânforas encontrados em Atenase ródias mais de 85% dos selos anfóricos de Alexandria. Em Delos, selos de Cnidos eram muito comuns (mais de 60%) e os de Rodes não eram poucos (mais de 20%). Alcançavam também os mercados da península itálica em quantidade. A maioria das ânforas não era estampilhada e é difícil saber a proporção de estampilhadas para não estampilhadas. Em geral, selos ródios e de Cnidos apresentam dois nomes, um que se refere ao proprietário e outro a um magistrado epônimo, datando a ânfora e o vinho. As ródias costumavam possuir dois selos, no topo de cada alça, com os seguintes dados: uma data dada pelo nome do magistrado epônimo (epi+nome no genitivo), nome do mês ródio (depois de 275 a.C.), outro nome no genitivo, que se refere, com probabilidade, ao produtor autorizado. O selo é circular, com o símbolo da cidade, uma rosa, com outras imagens também possíveis (Grace 1961: 12; Grace e Savvatiano-Petropoulakou 1970: 279, 293; Van der Werff 1977: 34; Debidour 1979: 271). Selos de Cnidos levam o nome de um magistrado e de um produtor autorizado (Grace 1961: 12). Estampilhas de ambas as cidades mudam após 146 a.C., quando os romanos introduziram os nomes de dois funcionários controladores (Grace 1961: 20). 77 Catálogo de selos 1. e....a daliou Tamanho do selo: 5,0 x 1.8 cm. Forma: retangular Pasta: marron. Data: depois de 275 a.C. Número de tombo: MAE-USP 64/11.18, doado pelo governo italiano. Área de produção: Rodes. Local de achado: Itália. Descrição do fragmento: alça de ânfora ródia. O diâmetro do lábio é de cerca 12,8 cm e o ângulo do selo em relação ao pescoço é de 21 graus (Fig.1). A referência ao mês ródio dalios, no genitivo, indica que o selo foi produzido depois de 275 a.C., quando os meses foram introduzidos nas ânforas ródias. 2. [a]ris[to]klaeus Segunda marca: P (1 x 1 cm) Tamanho: 3,2 cm. Forma: circular. Pasta: cinza. Data: início do segundo século a.C. Número de tombo: MAE-USP 64/11.32, doado pelo governo italiano. Área de produção: Rodes. Local de achado: Itália. 78 Descrição do fragmento: alça de ânfora ródia. O diâmetro do lábio era de cerca 11,6 cm. E o ângulo em relação ao colo de 21 graus (Fig.2). O selo refere-se ao produtor ródio Arístocles, ativo nos últimos cinqüenta anos anos do domínio romano, o que permite datar o selo na primeira metade do século II a.C. 3. [s]o[kr]ateus Tamanho: 3,4 cm. Forma: circular. Pasta: cinza, com superfície esbranquiçada, avermelhado no centro. Data: entre 275-180 a.C. Número de tombo: MAE-USP 75/1.41, doado por U.T.B. Meneses. Área de produção: Rodes. Local de achado: Delos. Descrição do fragmento: alça ródia. O diâmetro do lábio era de cerca 13,4 cm. e o ângulo da alça em relação ao colo é de 15 graus (Fig. 3). Conhecemos dois produtores ródios chamados Sócrates, um ativo entre 275 e 180 e outro entre 146 e fins do século primeiro. Considerando o ângulo da alça, propõe-se uma data mais antiga (Grace 1952: 530; Grace e Savvatianou-Patropoulakou 1970: 302). 4. Epitpatrophan Panamou Tamanho: 3,9 x 1,9 cm. Forma: retangular. Pasta: cinza, esbranquiçado na superfície, avermelhado ao centro. Data: entre 220 e 180 a.C. 79 Número de tombo: MAE-USP 75/1.42, doado por U.T.B. Meneses. Área de produção: Rodes. Local de achado: Delos. Descrição do fragmento: alça ródia, ângulo da alça em relação colo de 11 graus (Fig. 4). Um produtor ródio de nome Pratophanes é bem conhecido entre 220-180 a.C. (Grace 1952: 529; Grace e Savvatianou-Petropoulakou 1970: 294). 5. Agathinou Knidin Ânfora Tamanho: 5,6 x 1,6 cm. Forma: retangular, com um desenho de ânfora de Cnidos. Pasta: avermelhada. Data: meados do século II a.C. Número de tombo: MAE-USP 75/1.43, doado por U.T.B. Meneses. Área de produção: Cnidos. Local de achado: Delos. Descrição do fragmento: alça de ânfora de Cnidos. O ângulo da alça em relação ao colo é de 10 graus (Fig.5). O produtor Agathinos estava ativo antes e depois da intervenção romana de 146 a.C. (Grace 1952: 530; Grace e Savvatianou-Patropoulakou 1970: 294). Catálogo de ânforas vinárias 1. Ânfora greco-itálica Tamanho: altura, 40 cm; diâmetro, 14 cm.; colo, 7 cm., diâmetro de 8,5 cm.; largura do corpo, 21 cm. Forma do vaso: piriforme. 80 Pasta: cinza. Data: 350-250 a.C. Número de tombo: MAE-USP 64/9.5, doado pelo governo italiano. Área de produção: Itália. Local de achado: Castiglioncello (Livorno, Itália). Descrição do vaso: lábio triangular, colo cilíndrico e ombro marcado, alças ovóides ligadas abaixo do lábio e no alto da pança, corpo piriforme, com ponta curta e maciça (Fig.6). 2. Ânfora greco-itálica Tamanho: altura, 48 cm.; diâmetro, 12 cm.; alça, 12 cm., diâmetro, 8,4 cm., largura do corpo, 19,8 cm. Forma do vaso: piriforme. Pasta: marron. Data: 350-250 a.C. Número de tombo: MAE-USP 64/9.6, doado pelo governo italiano. Área de produção: Itália. Local de achado: Toscanella, tumba dos Velinii (Itália). Descrição do vaso: lábio triangular, colo cilíndrico, ombro marcado, alças ovóides ligadas abaixo do lábio e ao alto da pança, corpo piriforme com ponta curta e maciça. 3. Ânfora grega (fragmento) Tamanho: altura, 69,5 cm; diâmetro do colo, 12 cm; altura da ponta, 10,5 cm. Forma do vaso: corpo cilíndrico. Pasta: avermelhada. Data: séculos V-IV a.C. Número de tombo: MAE-USP 64/11.3, doado pelo governo italiano. Área de produção: Grécia. Local de achado: Palermo, necrópole púnica (Itália). Descrição do vaso: corpo cilíndrico com ombro arredondado e alças compridas, ponta curta (Fig. 8). 81 As ânforas greco-itálicas também são conhecidas como Republicaine 1, Lamboglia 4 e Peacock e Williams classe 2 (Peacock e Williams 1986: 84-85; crítica do termo 'greco-itálica' em Manacorda 1986). As ânforas greco-itálicas são, a um só tempo, greco-helenísticas e romanas e são o resultado do encontro dos mundos romano e helenístico e da expansão dos mercados de produtos de consumo de massa. Os objetos comercializados tornaram-se estandardizados e as ânforas vinárias foram produzidas em várias partes do Mediterrâneo no período entre o fim do quarto século a.C. e meados do segundo século a.C. (Will 1982). As duas ânforas greco-itálicas do MAE-USP representam dois padrões diversos, ambos incluídos entre os recipientes menores desse tipo de ânfora. Conclusões As poucas ânforas e estapilhas armazenadas no MAE-USP constituem uma pequena amostra do artefato arqueológico mais encontrado no Mediterrâneo. Os selos provêm de cidades gregas e são uma clara indicação da importância, durante o período helenístico tardio, do controle municipal da produção e comércio de vinho. Revelam a importância das instituições políades até a intervenção romana em 146 a.C. A ânfora de estilo grego em contexto púnico é uma indicação de que, a despeito das rivalidades, o comércio de vinho era, desde tempos antigos, fator de contatos culturais. As ânforas pan-mediterrâneas de tipo greco-itálico representam uma nova fase no desenvolvimento do comércio e da manufatura, produzidas em muitas áreas no Mediterrâneo, com volumes estandardizados. Testemunham as mudanças econômicas, sociais e culturais no Mediterrâneo e, com sua materialidade, essas ânforas são evidências únicas da vida social no mundo antigo. Agradecimentos Agradeço aos seguintes colegas: Jean-Yves Empereur, Haiganuch Sarian, J.A. Van der Werff, Elizabeth Lyding-Will, David Williams e Célia Marai Cristina de Martini. As idéias são minhas e sou o único responsável. 82 RESUMO: O Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo possui um acervo de cinco selos anfóricos e três ânforas. Após uma introdução geral, há um catálogo de selos (quatro de Rodes e um de Cnido) e de ânforas (duas greco-itálicas e uma grega). O artigo conclui-se com um comentário sobre estas ânforas como evidência arqueológica. UNITERMOS: Ânforas – selos – Rodes – Cnido – ânforas greco-itálicas. Referências DEBIDOUR, M. 1979 Reflexions sur les timbres amphoriques thasiens. Thasiaca Suppl. 5: 269-314. EMPEREUR, J.-Y. 1982 Les anses d’amphores timbrées et les amphores: aspects quantitatifs. Bulletin de Correspondence Héllenique 106: 219-233. EMPEREUR, J.-Y. 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No umbral do terceiro milênio, os desafios dos profissionais de museus podem ser resumidos a cinco grandes temas, interrelacionados: 30 O PLURALISMO; Livre-Docente do Departamento de História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, C. Postal 6110, Campinas, 13081-970, SP, fax 55 19 289 33 27, [email protected]. 85 - A RELAÇÃO COM A COMUNIDADE NA CRIAÇÃO DE CONHECIMENTO DE INTERESSE SOCIAL; - A RELAÇÃO NECESSÁRIA ENTRE O PROFISSIONAL DE MUSEU E AS CIÊNCIAS; - A LUTA PELO SABER CONTRA AS HIERARQUIAS BUROCRÁTICAS. Os museus representam o mundo como parte da ordem social (Fyfe 1998: 326), sua taxonomia refletindo, de forma mediada, a táksis da própria sociedade. Não é casual que uma palavra-chave na organização dos museus seja, precisamente, taxonomia, “ordenação segundo uma regra”31, pois tudo no museu é classificado e ordenado. Os setores, da reserva técnica à exposição, cada um subdividido e classificado. Esta concepção acompanha os museus ab origine, desde sua própria fundação, refletindo a própria hierarquia social na qual surgiu. No entanto, no umbral do terceiro milênio, mais do que uma única ordenação e taxonomia, o mundo pós-moderno caracteriza-se pelo mais radical pluralismo32, programa explícito da proposta do Aktives Museum. O tema central do trabalho didático do Museu Ativo consiste em transformar os consumidores de conhecimento em produtores. As visitas guiadas deveriam, sempre que possível, serem dissolvidas em participação ativa, um meio para que a confrontação com o mundo material gere o sentimento inesperado, a indignação e a curiosidade (e.g. Fahmel-Beyer 1993). Em uma sociedade aberta, há uma pluralidade de opiniões e deveria, pois, haver diferentes relatos do mundo material exposto no museu (Baker 1991: 58-59). Este pluralismo implica Cf. Platão, Leis, 925b, katà tèn táksin tõu nómou, “segundo a ordenação de uma regra”. Taxonomia deriva de táksis, “arranjo”, do verbo tássein, “arranjar”, originalmente, os soldados para uma batalha; cf. Heródoto, 8, 86: katà táksin, “ordem de batalha”. 32 Cf. Lorenz (1998: 619): Postmodernismus ist deshalb immer eine radikale Version des Pluralismus (ênfase no original). 31 86 em subverter o discurso da autoridade que prevalece na exposição de uma única versão, a verdade dos que controlam o poder (Potter n.d.:3-7). O pluralismo não se restringe à exposição e à ploliferação de narrativas33, mas estende-se às proprias divisões do saber no interior do museu. A segmentação dos setores reproduz uma separação artificial entre os profissionais do museu, como se fosse possível dissociar exposição e reserva, programa educativo e pesquisa de campo, reflexão pedagógica e científica, reproduzindo dicotomias estranhas à prática crítica. Não se trata de adorar o acervo, mas pensar sobre ele (Potter n.d.: 39)34. Não se trata de isolar especialistas, cujo conhecimento hermético deveria ser preservado, mas é no confronto de perspectivas que se produz conhecimento (Funari 1997, com bibliografia anterior). Assim, no interior da instituição museu, nada justifica a falta de diálogo entre os diversos profissionais, senão a acomodação. A produção de conhecimento35 implica na disposição a aprender com os outros, sejam os profissionais colegas de instituição, seja o público em geral. Ainda “é tempo de fazer museu com a comunidade e não para a comunidade”, como dizia, há quinze anos Waldísia Rússio (1984: 60). A busca de um museu gerido com a comunidade é uma tarefa que implica romper as barreiras disciplinares e as formalidades das compartimentações acadêmicas (Oliveira 1999), bem como superar o modelo do museu desligado da sociedade, mera “Torre de Observação”, como propõe uma abordagem elitista Keine Ausstellung ohne Erzählungen, como se propõe na concepção do Museu Ativo (“não há exposição sem narrativas). 34 Cf. Potter (n.d.: 39): If we can encourage ourselves (sc. museum professionals) and our visitors to see the objects in our museums as ‘fragile’ – as culturally constructed and a culturally contested rather than as selfevidently important and in possession of inherent meanings – then perhaps we all will begin to treat those objects better, thinking about them rather than worshiping them. 35 Cf. Haiganuch Sarian (1999:34): “Produção e reprodução do saber se expressariam nos Museus Universitários, por meio de responsabilidades inerentes à natureza de um Museu, de tal modo que os Professores destas instituições fossem igualmente Curadores – Curator-Professors -, para lembrar a designação americana”. 33 87 (Meneses 1993: 218). Para produzir conhecimento impõe-se interagir com o educando (Giroux & McLaren 1986: 234) e o público está muito mais aberto a essa interação do que, normalmente, se supõe (McKee & Thomas 1998: 7). A comunidade não é, por sua parte, uma unidade, um conjunto homogêneo. Este modelo normativo de cultura já tem sido bastante criticado e não se pode idealizar a comunidade (Jones 1997, com literatura a respeito), composta de heterogêneos interesses. No entanto, pode afirmar-se que, de maneira sistemática, são excluídos dos processos de decisão, na sociedade e, por conseqüência, nos museus, todos os que não estão no poder, de favelados a judeus, de negros a nordestinos (Jones 1993: 203-15). Esses diversos públicos compõem uma comunidade também ela plural e pouco afeita a generalizações que possam dar conta de sua heterogeneidade. Os profissionais de museu não podem ignorar essa diversidade, nem deixar de reconhecer no museu um instrumento a serviço dos que estão fora do poder (Vargas & Sanoja 1990: 53), sob a pena de continuarem a ser servos desse mesmo poder (Funari 1996: 18). Para que o profissional de museu consiga atingir esse público e com ele interagir, “é necessário tomar o seu universo cultural como ponto de partida, permitindo que ele se reconheça como possuidor de uma identidade cultural específica e importante”, nas palavras de Paulo Freire (em entrevista a McLaren 1988: 224). Nessa diversidade da comunidade, destaque-se o público infantil, tanto por se tratar dos futuros cidadãos, como pela necessidade de tomar-se em conta o caráter lúdico a ser adotado pelo museu (Oliveira 1999). O profissional de museu sempre tem uma pergunta em mente: preservar para quê? Há alguns anos, quando de uma homenagem póstuma ao obstinado defensor do 88 patrimônio e humanista Paulo Duarte, Maria Cristina Bruno (1991) evocava uma bela imagem sobre a preservação: “Patrimônio, para Paulo Duarte, era visto com muita abrangência. Sinônimo de qualidade de vida, pesquisa e ensino, erudito e popular, antigo e moderno e, acima de tudo, preservação para a informação”. Informação, criação de consciência, ação no mundo, transformação, eis as metas da preservação (Funari 1992/3:18-19). Seria, até mesmo, o caso de propor que se deve preservar para transformar a sociedade, pois o conhecimento não é apanágio de classe ou grupo e qualquer museu pode levar à reflexão crítica. Abrir a cabeça, talvez a meta maior de um museu (Hudson 1994: 55). A começar por uma exposição que se contraponha à alienação da moda e à descontextualização derivada da mercantilização generalizada dos objetos em nossa sociedade pós-moderna (Durrans 1992: 14), que contribua para a autonomia do público (aquilo que os ingleses tão bem definem como empowerment, cf. Giroux & McLaren 1986: 238). O passado, conservado no Museu em forma de patrimônio, serve ao presente (Luc 1986: 118). Mas não é apenas na exposição, que se busca transformar, nem só na superação das barreiras entre os setores do museu: há que se insurgir contra a separação entre o museu e as ciências, divisão oitocentista artificial e pouco afeita à atual busca de integração das disciplinas36. 36 Ainda que alguns dos grandes museus brasileiros, voltados para as Ciências Naturais, no século XIX, tenham atuado na pesquisa científica (cf. Lopes 1997). 89 As Wissenschaften surgidas na criação da moderna Universidade, em fins do oitocentos, acostumaram-se a relacionar-se com o museu e seus profissionais de forma instrumental e analógica à taxonomia social. Assim como há os que pensam e os que trabalham, os que mandam e os que obedecem, assim, também, o cientista se relaciona com o museu. Como se o museu fosse um local a serviço dos verdadeiros cientistas, como se os profissionais de museu fossem servos, à maneira dos gregos, definidos como instrumentos a serviço dos cientistas. No entanto, os cientistas que trabalham em museus são, também, profissionais de museus! A dicotomia, de toda forma, tende a permanecer, sob o manto diáfano da clivagem entre os pesquisadores científicos e os outros profissionais. Nem todos os museus possuem cientistas em seus quadros, ainda que todos tenham, por definição, profissionais de museus. Em qualquer dos casos, a clivagem existe, seja interna, seja externa, ao corpo funcional do museu. Esta dicotomia separa dois aspectos indissociáveis do conhecimento: teoria e prática, mundo das idéias e prática quotidiana. O conhecimento científico é essencial, em especial naquilo que tem de propriamente científico, que é o desafio às idéias recebidas e ao senso-comum, para vivificar o museu. Por outro lado, não se pode esquecer que o museu pode fornecer um manancial de desafios práticos que apenas podem servir para o avanço do conhecimento acadêmico (cf. Haas 1996: S1-S11; Jones 1993: 203). Neste contexto mais amplo, como se pode situar a formação do profissional de museu e qual museu será por ele criado? Em primeiro lugar, há que se superar concepções estreitas e rígidas do que seja e, principalmente, do que deva ser o museu. A formação do profissional de museu não pode prescindir de um amplo e variado contato com as ciências, em geral, e do homem, em particular. Um conhecimento crítico da História 90 dos museus pode ser o ponto de partida para a reflexão sobre os fundamentos pedagógicos que devem estar subjacentes a uma educação patrimonial (Tamanini 1998). A formação deste profissional não se pode furtar ao internacionalismo e ao cosmopolitismo, pois há uma imensa experiência estrangeira , que vai dos eco-museus aos museus de rua, cujo conhecimento é imprescindível. A formação do profissional inclui um conhecimento, de primeira mão, das diversas ciências envolvidas com o patrimônio e os museus, tão numerosas que, provavelmente, apenas uma amostra poderá ser estudada pelo futuro profissional de museu37. Estas disciplinas seriam melhor agrupadas por grandes eixos, deixando, ainda, que o estudante pudesse escolher áreas de maior interesse e vocação. Tendo em vista a disparidade de situações, importante atenção deve ser dada à variedade de museus e ao seu gerenciamento igualmente variado. O estágio torna-se, neste sentido, uma experiência prática que permite ao estudante tomar contato com uma gama de instituições, de diferentes tipos, do grande museu universitário ao simples museu local. O relacionamento com a comunidade e as formas de interação com os grupos sociais também devem ser objeto de atenção. A patrimonialização dos bens individuais e coletivos das comunidades insere-se na dinâmica de integração do museu na coletividade e, para tanto, são necessários estudos específicos, incluindo aspectos técnicos (como o registro de relatos orais e a preservação de fotografias) e teóricos (como tudo que se refere à criação de memórias populares). 37 Museologia, História, História da Arte, Arqueologia, Antropologia, Etnologia, Biologia, Geografia, Etnologia, Estudos da Cultura Material, Folclore, Geologia, Botânica, História Oral, Iconografia, Semiótica, entre outras. 91 A legislação de proteção do patrimônio e tudo que diz respeito aos aspectos jurídicos da preservação incluem-se no necessário cabedal do profissional de museu. Este aspecto da sua formação conduz ao grande âmbito das implicações sociais do museu. Em qual museu atuará o profissional? Este museu será o resultado da ação do próprio profissional. No presente, os museus, como a própria academia, encontra-se eivada de relações de poder, de estruturas burocráticas cuja finalidade, muitas vezes, pouco tem a ver com o conhecimento e a sociedade38. Esta é uma situação que resulta de séculos de uma estrutura social hierárquica, patriarcal, autoritária e voltada para a conservação do status quo (cf. Funari 1996, com literatura). Naturalmente, os museus, como órgãos burocráticos do Estado, em sua maioria, reproduzem estas relações iníquas e inibem tanto a reflexão como a ação crítica. Os profissionais de museus, como também os cientistas, aliás, são incentivados ao conformismo, à aceitação das verdades correntes, tão pouco verdades, mas tão correntes. As estruturas burocráticas dos museus, ainda mais do que aquelas acadêmicas stricto sensu, são infensas ao mérito e à dedicação ao conhecimento e à sua socialização. Isto se explica pela importância política, no sentido pequeno da palavra, associada aos cargos, a começar da direção das grandes instituições de Estado. Há até, como se sabe, museus criados para indivíduos dirigirem! Além deste caráter político da direção, e como decorrência, seguem-se cargos, chefias e eminências pardas que vicejam nos museus, naquilo que se chama de atividades de corredor e de bastidores. Não é de estranhar que, ainda mais que na academia, nos museus a convivência pessoal seja tão pouco profissional. Cf. M.C. Bruno, C. Rizzi e M.X. Cury (1999: 46): “apesar do grande esforço, muitos museus estão longe da consciência do equilíbrio entre o cuidado com os acervos e a atenção com as expectativas das sociedades”. 38 92 Neste contexto, o profissional de museu deve, necessariamente, lutar pela transformação do próprio museu, à luz do que se faz e discute no mundo, a este respeito, mas, também, na interação com a comunidade que deve dar vida ao museu. Não se trata de tarefa fácil, nem a luta se mostra ligeira. No entanto, cabe ao próprio profissional de museu, já em atividade e, a fortiori, em formação, buscar a profissionalização da atuação no museu. Isto implica atuar para que o mérito suplante o compadrio, a busca do conhecimento supere a inércia burocrática que pode, senão matar o museu, inviabilizar sua efetiva função científica e crítica. Para isto, impõe-se a instituição de um plano de carreira, baseado na titulação, com hierarquias fracas e coletivos acadêmicos fortes, sempre a partir de critérios científicos. Para o profissional de museu em formação, este é um aspecto essencial: a deontologia associada à prática em museus. A dura realidade dos museus pode induzir ao desânimo e ao conformismo, se não houver, na formação do profissional, um projeto crítico e acadêmico que permita a transformação da própria instituição. Neste sentido, a situação do futuro profissional de museu assemelha-se muito àquela do futuro professor, pois, em ambos os casos, apenas uma luta pela transformação da estrutura burocrática e de seus objetivos permite antever um futuro criativo. A formação do profissional de museu, portanto, não se restringe ao saber técnico, nem, menos ainda, ao domínio das artimanhas do micro-poder. O desafio que se impõe é formar profissionais que sejam autônomos, críticos, infensos à inercia, propensos à luta pela transformação. Aparente paradoxo, que se busque a transformação, em uma profissão voltada para a preservação. No entanto, para que se possa, efetivamente, preservar, é necessário transformar uma realidade que contribui para destruir o patrimônio. 93 O primeiro e decisivo passo é formar profissionais autônomos, independentes e transformadores do mundo. AGRADECIMENTOS Agradeço à Professora Maria Cristina Bruno, cujo convite para participar deste encontro sobre “O Profissional de Museu no umbral do Terceiro Milênio” incentivoume a escrever este texto. Devo mencionar ainda os seguintes colegas: Dione Bandeira, Brian Durrans, Bernd Fahmel-Beyer, Siân Jones, Parker B. Potter, Jr., Nanci Vieira Oliveira, Brian W. Thomas, Elizabete Tamanini. As idéias apresentadas são, naturalmente, de responsabilidade exclusiva do autor. REFERÊNCIAS Baker, F. 1991 Archaeology, Habermas and the pathologies of modernity, in F. Baker & J. Thomas (eds), Writing the Past in the Present, Lampeter, University Press, 54-62. Bruno, C. 1991 Por um mundo mais justo, Jornal da Tarde, Caderno de Sábado, 16/11/91, p.3. Bruno, M.C., M.X. Cury, M.C.S.L. Rizzi 1999 Difusão científica, musealização e processo curatorial: uma rede de possibilidades e desafios para os museus brasileiros, in Anais I Semana dos Museus da Universidade de São Paulo, São Paulo, USP, 45-50. 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Key words: archaeology and subordination; Imperial discourse; scholarship. Resumo Este artigo trata das maneiras como a subordinação foi deixada em segundo plano na interpretação da evidência, tanto na Arqueologia História como Pré-Histórica, e das mudanças recentes, menos restritas, na disciplina no Brasil e como a identidade nacional foi marcada pelo estudo da cultura material e sua apresentação. Trata-se do discurso imperial sobre as origens da civilisação, seguido de um estudo do ocaso da Arqueologia imperial e das primeiras décadas do século XX, assim como da Arqueologia acadêmica, a partir da década de 1940. Palavras chave: Arqueologia e subordinação; discurso imperial; academia. * Originalmente publicado em (...). Versão portuguesa de Fábio Adriano Hering; revisado pelo autor. 97 A Arqueologia tem uma longa tradição no Brasil, tendo iniciado como uma prática acadêmica logo após a independência, em 1822, sob a tutela financeira da Corte Imperial. A transferência da Corte Portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808, como uma estratégia diante das conquistas napoleônicas, acabou resultando na implantação, em terras tropicais, de uma elite típica do Antigo Regime europeu, que impôs um discurso imperial a respeito das origens nobres do poder colonial. Indivíduos subordinados, como a maioria da população escrava, estiveram fora deste discurso sobre a origem (Ursprung) e as raízes civilizadas dos “bravos” conquistadores portugueses. Depois da Independência, esta mesma elite dominante portuguesa continuou mantendo sob seu controle os arcanos do poder imperial e aditou ao seu discurso uma imagem idealizada dos nativos sul-americanos, começando desta forma, em um certo sentido, a Arqueologia Préhistórica brasileira. Os africanos continuaram ausentes no discurso arqueológico, enquanto que os indígenas desempenharam um papel subordinado. Apenas a partir da década de 1890, e com o fim da escravidão e da monarquia, é que o discurso imperial passou paulatinamente a veicular discursos menos homogeneizantes a respeito do passado. Mesmo assim, levaram ainda algumas décadas para que a Arqueologia se tornasse uma disciplina acadêmica. Estudos sobre os “nativos” ou sobre a pré-história apenas ganharam proeminência depois da Segunda Guerra Mundial, quando uma Arqueologia de traço humanista buscou enfatizar a importância de se ver os indígenas como seres humanos, possuidores de culturas dignas de serem estudadas e preservadas. Tal abordagem foi silenciada pelo longo governo ditatorial (1964-1985), e mais uma vez os indivíduos subordinados foram suprimidos do discurso arqueológico. Nas últimas duas décadas, entretanto, tem havido um incremento nas atividades arqueológicas e, pela primeira vez, os grupos subordinados, tanto os de descendência africana ou miscigenada como os de extração social mais pobre, têm aparecido nos discursos arqueológicos. É com relação a este contexto que se delineia o objetivo principal do presente artigo: investigar como tem se apresentado a questão da subordinação na interpretação arqueológica brasileira – tanto no discurso da Arqueologia pré-histórica como no da histórica – avaliando, então, de que maneira os desenvolvimentos mais recentes, e menos excludentes, desta disciplina, no Brasil, tem contribuído para mudar este panorama. Um discurso Imperial nas origens da civilização O Brasil foi governado por Portugal, nos moldes de um Estado Absolutista, desde o século dezesseis até a independência (Handelmann 1987:826). A base do sistema social era, então, escravista e senhorial, com uma enorme influência dominadora das antigas linhagens patriarcais dos proprietários de terra (Velho 1986). Tal estado de coisas foi mais marcado no início da colonização, quando se formou, então, um sistema social altamente hierarquizado (Da Matta 1991: 399), dominado, principalmente, pelos grupos senhoriais. Os grandes proprietários de terra governavam como verdadeiros senhores despóticos, cada qual como um pater famílias em seus “domínios feudais” particulares e agindo, conjuntamente, como uma elite autocrática (Arraes 1972: 23-26). A independência, em 1822, entretanto, não provocou mudanças significativas na estrutura social em geral, e a Família Real Portuguesa continuou a governar o Brasil até 1889. Embora fosse um recém fundado Estado nacional independente, o Brasil manteve a mesma elite dirigente autoritária de seu passado colonial, o que se refletiu no próprio Estado: definido não como uma República, mas como um Império. Desta forma, enquanto outros Estados nacionais modernos eram construídos como novas nações, as elites brasileiras buscavam inspiração em organizações políticas pré-modernas, como o velho Império português e os Impérios Britânico e dos Habsbugo. Distintamente dos outros novos países independentes, como nas repúblicas fundadas sobre o princípio da igualdade de direitos entre todos os cidadãos (tendo em conta, entretanto, que tal princípio excluísse os não-cidadãos, como as mulheres e os escravos), no Brasil, foram preservadas as distinções, obedecendo a uma hierarquia fundada na posição social ou na titulação nobiliárquica dos indivíduos. O discurso imperial, entretanto, é inaugurado mesmo antes da independência, quando a Corte portuguesa (tendo vindo para o Rio de Janeiro para fugir do perigo representado pelo avanço de Napoleão) estabeleceu um Museu Real na então capital do Império, em 1818. O Rio se tornara, dessa forma, por abrigar a elite dirigente portuguesa, a capital do Império Luso, que se estendia desde sua porção americana até a África e a Ásia. O Museu Real, por sua parte, buscava, de uma forma similar ao Museu Britânico, ser um museu do poder colonial, reunindo material dos territórios portugueses na Europa, na América, na África e na 98 Ásia. Tal preocupação foi explicitada em um documento, publicado logo após o estabelecimento do museu: “Instruções para os viajantes e os funcionários civis nas colônias a respeito dos procedimentos para o recolhimento, conservação e remessa de objetos da História Natural”, que instruía os governadores de cada província brasileira a organizar coleções de todos os produtos de seus territórios e enviá-los para o Rio de Janeiro. Estas instruções eram igualmente válidas para todos os governadores das possessões portuguesas, inclusive os do próprio território português na Europa. O Museu também estabeleceu contatos oficiais com seus parceiros nas principais capitais coloniais, principalmente Paris e Londres (Lopes 1997: 25-71). A independência não alterou o caráter imperial tanto do discurso oficial quanto do Museu em si, apesar de seu nome ter sido mudado para Museu Nacional. Em 1838, foi publicado o primeiro catálogo completo do museu, a Lista de objetos reunidos no Museu Nacional desta Corte. É digna de nota a maneira como o material foi dividido em seções: zoológica, botânica, mineral, de Belas Artes, e de Objetos relacionados às artes, hábitos e costumes de diversos povos. Na seção de Belas Artes estavam incluídos moedas, medalhões, esculturas, pinturas, mas também instrumentos de Física e máquinas. A categoria “Objetos relacionados com diversos povos” incluía antiguidades egípcias e européias, assim como aquelas relacionadas com os “povos ignorantes”: nativos da África, Ásia, Nova Zelândia, Ilhas Sandwich e Brasil. Como Lopes (1997: 70) tem afirmado, embora os estudiosos fiquem atormentados com a presença de múmias egípcias no Museu, a organização global do material foi inspirada pelos museus imperiais europeus, e conseqüentemente os materiais egípcios e europeus eram incluídos como uma lembrança das origens nobres das elites. A coleção de material “selvagem”, de diversas origens, por outro lado, era uma maneira de reafirmar que não era mera coincidência o fato dos africanos serem escravizados e os nativos massacrados no Brasil, pois este povos eram considerados como animais a serem domados. As coleções de História Natural eram também um meio de enfatizar o poder da elite governante, por meio da acumulação e assimilação do conhecimento. O Museu Nacional como um todo era, desta forma, um imenso discurso material a respeito da exclusão de grupos subordinados – africanos, nativos, pessoas comuns – e uma exaltação do poder discricionário da nobreza e das velhas classes senhoriais em geral. O estabelecimento do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1838, deu à Arqueologia uma nova presença oficial institucionalizada. As reuniões do Instituto tinham lugar no Museu Nacional, e as duas instituições compartilhavam das mesmas preocupações. O ano seguinte à fundação do Instituto assistiu a publicação do primeiro volume de seu periódico, a Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Também em 1839 houve uma “investigação arqueológica” na Pedra da Gávea, no Rio de Janeiro, em busca de uma suposta inscrição “fenícia”. As investigações foram cuidadosamente registradas, e a expedição concluiu que tais inscrições eram tão importantes quanto os hieróglifos egípcios ou as inscrições cuneiformes mesopotâmicas (Langer 2000: 68). Como Ferreira observou (1999: 18), o Instituto buscou também produzir seu próprio Champolion ou Schliemann, ao enviar um padre, o cônego Benigno José de Carvalho, com a missão de descobrir cidades perdidas e inscrições. Ao mesmo tempo, os nativos brasileiros foram gradualmente idealizados de acordo com a teoria do bon sauvage – como fossem heróis nacionais distantes, que, na visão do Instituto, estavam já extintos. Desta forma, a Etnografia e a Arqueologia foram introduzidas como disciplinas mutuamente implicadas, como parte do mesmo esforço na busca desta espécie idealizada de nativo. Os estudiosos brasileiros estavam em estreito contato com as teorias arqueológicas então desenvolvidas na Europa, principalmente na França e na Dinamarca, e, por várias décadas, a explicação mais recorrente para a ocupação da América era que os nativos descendiam de povos bíblicos que, como o passar dos anos, degeneraram no Novo Mundo. A Arqueologia praticada no Instituto tem sido apropriadamente rotulada como “nobiliária”, dadas suas umbilicais ligações com a elite brasileira, que usou o passado indígena, pré-histórico, em seu favor, reclamando para si o legado cujos verdadeiros herdeiros eram, de direito, os povos de descendência nativa (Ferreira 1999: 28). De maneira mais específica, uma mistura entre a teoria dos cataclismas de Cuvier e o Criacionismo buscava então explicar o desaparecimento das antigas gerações de possíveis colonizadores mediterrâneos que, pensavam os estudiosos do Instituto, teriam originalmente trazido a civilização para os trópicos. Prováveis cataclismas é que teriam posto um fim a estas migrações transcontinentais, conduzindo a uma degeneração das sociedades nativas, como podia ser provado por meio das evidências materiais dos restos humanos e fósseis colecionados pelo Museu. Os estudiosos do Império estavam, também, em estreito contato como os mais importantes teóricos sociais do período, tais como Gobineau e Renan, e estavam afinados com o tom cada vez mais racista das idéias do período. Cuvier, por sua parte, inspirou os intelectuais brasileiros com sua tese da suposta inferioridade dos povos africanos: 99 “a raça negra, é marcada pela cor escura, cabelo duro ou enrolado, crânio comprimido e nariz achatado. A projeção das partes inferiores da face dos indivíduos desta raça, assim como seus lábios grossos, aproximam-nos às tribos dos macacos: que tem sempre permanecido no mais completo estado de barbarismo” (Cuvier 1831:53). Os asiáticos não eram avaliados de maneira muito mais positiva. Os semitas, por exemplo, eram descritos por Renan como incapazes de desenvolverem habilidades intelectuais: “o pensamento abstrato é desconhecido entre eles, e o metafísico, impossível. Em tudo neles há uma completa falta de complexidade, sutileza ou sensibilidade” (1885: 13). Já para John Stuart Mill o Oriente era o reino do despotismo e da estagnação: “lá o costume é a palavra final, em todos os assuntos; a justiça e o direito estão à mercê dele; ninguém, a não ser um tirano intoxicado com o poder, cogita resistir ao argumento do costume” (Mill [1895] 1985: 136). A maneira como a elite compreendia sua própria superioridade racial resultou em uma infinidade de diferentes classificações, como ocorreu nos Estados Unidos, onde os protestantes anglo-saxões sustentaram sua superioridade com relação a todos os outros grupos, principalmente no que diz respeito aos africanos, mas também no que concerne aos mexicanos e aos católicos irlandeses (Patterson 1997: 112). Em outras palavras, a Etnografia contribuiu para retratar o colonizado como um selvagem, cuja cultura deveria ser esquecida e ao qual deveria ser ministrada a educação européia. Foi de acordo com estes termos que tanto a Arqueologia do período quanto suas práticas correlatas forneceram uma maneira apropriada de mapear o passado das terras colonizadas (Bahraini 1998: 168). Mesmo os críticos do capitalismo, como Karl Marx (e.g. 1978: 434), aceitaram esta pintura geral da civilização ocidental, tomando-a em contraste com o suposto atraso do resto do mundo (cf. Funari 1999a). Neste contexto geral, a Arqueologia brasileira não foi muito mais excludente do que a prática acadêmica geralmente levada a termo na Europa. A estrutura social brasileira, por outro lado, marcada pelo modelo do Antigo Regime europeu, contribuiu sobremaneira para caracterizar de uma maneira singular este discurso de exclusão, mas promovendo, em contrapartida, a detração da grande maioria dos habitantes do país. Em outros lugares, os bretões, franceses e alemães eram considerados superiores aos bárbaros estrangeiros, fossem eles semitas, chineses, indianos ou africanos. No Brasil, entretanto, não havia cidadãos brasileiros, apenas nobres, antigas linhagens familiares, e uma imensa maioria da população dependente e subordinada, formada por vários povos indígenas e pelo numeroso grupo dos descendentes de africanos. O esgotamento da Arqueologia imperial e o início do século XX As duas últimas décadas do Império (os anos 1870 e 1880) testemunharam o ápice das instituições acadêmicas ligadas à Corte Imperial, tais como o Museu Nacional e o Instituto Histórico e Geográfico. Durante este período, a Arqueologia desempenhou um papel central na formação da ideologia da Corte: fundada em uma imagem ideal e enobrecida dos nativos, que, nas palavras do Diretor do Museu Nacional, Ladislau Neto, estava “na iminência de desaparecer” (1889: 26). Durante o mesmo período, dois outros museus foram estabelecidos nas províncias – o Museu Paraense (1866), em Belém do Pará, e o Museu Paranaense (1876), em Curitiba. Ambos se voltavam para a coleção de artigos da História Natural, assim como artefatos arqueológicos e etnográficos. O fim do regime levou a um declínio abrupto na abordagem imperial para com o passado, tendo então ocorrido uma mudança do cenário de poder do Rio de Janeiro para São Paulo. O Antigo Regime era uma coalizão de aristocratas das províncias, na sua maioria proprietários de grandes plantações de base escrava, cujos interesses eram defendidos pela Corte, na cidade do Rio de Janeiro, então capital do Império. A emancipação dos escravos em 1888 foi logo seguida pelo golpe republicano de 1889. Os militares foram influenciados pelo Positivismo e o novo centro econômico do país trasladou-se para o Estado de São Paulo, ao Sul do Rio de Janeiro, que já vinha empregando, há algum tempo, o trabalho assalariado nas plantações de café. O então novo movimento republicano tem sido caracterizado como um regime oligárquico, pois o país continuou a ser governado por uma ínfima minoria, que continuou a empregar os métodos tradicionais do patronato, do favorecimento e da autoritária repressão das pessoas comuns. Ideologicamente, entretanto, as novas elites não tinham interesse em manter o aspecto tanto do mundo da Corte quanto de suas representações do passado. Enquanto que as elites imperiais preferiam retratar-se como uma mistura das antigas linhagens de proprietários de escravos com as raízes nativas míticas, celebradas pela sua nobreza idealizada, os novos 100 proprietários capitalistas, por sua parte, não tinham esse mesmo interesse pela nobreza, fosse ela européia ou indígena. As novas elites rejeitaram as mais estimadas imagens criadas pelas velhas elites, para o espanto da ainda orgulhosa elite da capital no Rio de Janeiro. Carlos Gomes, o renomado compositor de óperas de Campinas, em São Paulo, foi um dos melhores representantes da abordagem de Corte nos anos finais do Império. Ele compôs várias óperas em italiano, sendo Il Guarany a mais importante na popularização do mito do “nobre índio”. Embora Gomes fosse de São Paulo, o novo regime ignorou seu trabalho e substituiu a ideologia (Anschauung) do Estado Imperial (Ortiz 1985) por novas formas de cultura material que pudessem simbolizar sua posição social e a dos grupos subalternos. Nos últimos anos do Império, a Corte decidiu construir um monumento em São Paulo, às margens de um regato, o Ipiranga, onde Pedro I teria proclamado a Independência do Brasil, em 1822. Depois do colapso da monarquia, em 1889, as novas elites paulistas decidiram transformar tal monumento em um museu, o Museu Paulista, que deveria ser, como posto em seus estatutos de 1894, “um museu sul-americano, voltado ao estudo do reino animal, da Zoologia, da História Natural e da História Cultural do homem” (Regulamento 1894: 4). O estudioso alemão Herman von Ihering foi o Diretor principal do Museu de 1894 a 1915. Tendo chegado ao Brasil em 1880, este estudioso trabalhou, antes de se tornar diretor do Museu Paulista, como um explorador naturalista para o Museu Nacional. Ele organizou o Museu Paulista principalmente como uma instituição de História Natural, mas também com seções dedicadas aos artefatos históricos e às “coleções etnográficas e arqueológicas relacionadas aos indígenas brasileiros” (1894: 5). Von Ihering estudou em Göttingen, onde obteve seu PhD em Medicina, em 1873, e, em 1876, outro em Filosofia. Tornou-se, então, Privatdozent em Zoologia da Universidade de Leipzig, em 1878, antes de partir para os trópicos, em 1880, onde adquiriu a cidadania brasileira, em 1882 (Losano 1992). Von Ihering estava bem informado sobre o discurso acadêmico de seu tempo, especialmente no que diz respeito às teorias científicas de fundo racista, como as especulações acerca do caráter racialmente hereditário da inteligência, sobre o caráter também hereditário do comportamento, e sobre as teorias eugênicas. Estas então chamadas novas abordagens científicas da vida social estavam em sintonia com as novas preocupações da elite em classificar as pessoas não pela posição social, como era o caso durante o período imperial, mas por supostos critérios científicos. Desta forma, o direito da elite em governar não era mais justificado em termos de privilégios de nascimento, mas por distinções “científicas” e “acadêmicas” ente os que estão de acordo com as normas e os que não estão, entre as pessoas que governam e as que são governadas (ou oprimidas). O mítico e idealizado índio guarani, cultuado pelo discurso imperial, foi deixado de lado, sendo substituído por uma forma de abordagem mais racional, simpática aos proprietários capitalistas e “de acordo com a propriedade privada”. Von Ihering publicou, em 1908, uma impetuosa justificação da política de exterminação dos nativos, em um famoso artigo publicado no Jornal do Museu Paulista, intitulado “A questão dos indígenas no Brasil”. Seu argumento provocou considerável oposição de vários intelectuais do Rio de Janeiro, surpresos pela inversão de papeis que se promovia. Os indígenas brasileiros, que tinham sido estimados como fossem nobres ancestrais (mesmo se de acordo com uma origem distante e mítica), eram agora retratados como um obstáculo ao avanço dos proprietários de terra capitalistas, que deviam extermina-los. Havia uma lógica de ferro por detrás da abordagem acadêmica de Von Ihering: era de importância capital garantir a propriedade privada da terra e o desenvolvimento das atividades de extração dos recursos naturais, tarefas que seriam impossibilitadas caso os indígenas não fossem eliminados; a coleta de material arqueológico e etnográfico dos grupos indígenas era, então, apenas uma maneira de se tomar posse da cultura material de um povo na iminência da extinção. O Museu Paulista e seu diretor ganharam o Grande Prêmio da Exposição Nacional, no Rio de Janeiro, em 1908, pela apresentação de artefatos indígenas. Na época, tal coleção de cultura material indígena era inédita, e foi decerto mais abrangente que o conjunto de todas as coleções levadas a termo durante o regime Imperial. De diversas formas, o trabalho de Von Ihering expressava o novo ponto de vista científico e a abordagem capitalista para com as populações indígenas brasileiras – que deveriam ser preservadas apenas na forma de suas relíquias materiais. Este estudioso também exerceu uma influência significativa sobre o desenvolvimento da Arqueologia no país, de forma que ao adotarem sua abordagem, muitos estudiosos começaram a assumir que seu conhecimento especializado e cientificamente objetivo a respeito da cultura indígena autorizava-os a lidar com os nativos e com seus vestígios materiais da forma que melhor lhes aprouvesse. No final das contas, a destruição das culturas nativas foi considerada como fato inevitável – para alguns, praticamente uma necessidade. Nativos, negros e imigrantes das chamadas “raças inferiores” (inclusos aí os judeus, árabes, italianos, espanhóis e portugueses), em suma, todos que estavam chegando em números cada vez maiores ao país, foram representados pela nova elite capitalista como não civilizados, graças a intelectuais como Von Ihering. Ironicamente, Von Ihering teve um destino inglório, pois foi demitido do 101 Museu Paulista em 1916 e retornou à Alemanha em 1920. Vários comentadores relacionam sua desgraça ao fato do Brasil estar em guerra com a Alemanha, e sugerem que alguma espécie de sentimento anti-germânico tenha contribuído para sua queda. Entretanto, a razão oficial para sua demissão foi uma acusação de uso indevido de dinheiro público. Algumas versões chegam a afirmar que ele tenha dirigido o Museu como fosse seu “domínio feudal” particular (como era comum, e ainda o é, no Brasil), tendo empregado seu próprio filho, Rodolfo, como diretor-associado. Qualquer que tenha sido o caso, com a demissão de Von Ihering, seu discurso científico, fundado sobre a justificação arqueológica da exterminação dos indígenas, foi substituído por um outro discurso a respeito dos grupos subordinados. O sucessor de Von Ihering, Affonso d’E. Taunay, foi um dos principais proponentes de uma nova forma de inventar o passado no Brasil. São Paulo tinha estado na linha de frente do poder econômico e político desde a queda da monarquia, com os proprietários das plantações de café fornecendo os sustentáculos para o novo regime. Estes plantadores, entretanto, também começaram a investir seus capitais na cidade de São Paulo e na sua industrialização, que, em contrapartida, estimulou um significativo influxo de migrações transoceânicas. A maioria destas migrações era de italianos: em 1901, 90% de todos os trabalhadores de São Paulo eram italianos, e mesmo em 1920 o número destes indivíduos chegava próximo aos 40%. Outros vinham de lugares mais distantes, incluindo o Japão, e de outras regiões às margens do Mediterrâneo. Muitos lojistas e varejistas, por exemplo, eram pessoas de origem judaica ou árabe provenientes do Império Otomano, conhecidos simplificadamente como “turcos”. Em reação a estas mudanças sociais, o discurso da elite mudou, a ponto do termo “selvagem” ser utilizado não apenas para os indígenas das terras ainda não exploradas, mas também para os trabalhadores nas plantações e para o proletariado urbano. A indicação de Taunay para o Museu Paulista coincide com este período de mudança social, e suas atividades na reformulação do Museu foram instrumentais na criação de uma nova imagem material do passado. Especificamente, Taunay foi encarregado de remontar a exibição do Museu, preparando-o para a comemoração do centésimo aniversário da Independência, que ocorreria em 1922. Taunay dispensou a exibição acadêmica desenhada por Von Ihering e substituiu todo o material original por um grupo completamente novo, glorificando uma recém criada figura histórica, o pioneiro bandeirante. Taunay e outros intelectuais da elite forjaram o termo como uma maneira de distinguir as antigas famílias paulistas dos outros habitantes do Estado. Os bandeirantes foram imaginados nos moldes daqueles heróicos caçadores de escravos que lutaram pela expansão das fronteiras do oeste brasileiro, combatendo indiferentemente indígenas, africanos e espanhóis, e tornando-se, desta forma, os responsáveis por multiplicação do território português na América do Sul (Love 1982; Abud 1986). Taunay descreveu-os nos moldes dos antigos fundadores de Roma, como fossem eles patres patriae (“os pais da nação”) ou ditadores romanos (Taunay 1929: 107, 115). A elite bandeirante de São Paulo deveria guiar o país, e não ser guiada, como no dito latino non ducor, duco, adotado pela cidade de São Paulo na onda de comemorações do centenário da Independência, em 1822. Parafraseando Cícero, poderíamos dizer que as elites consideravam que “bandeirante seruire fas non est, quem dii immortales omnibus gentibus imperare uoluerunt” (“não é permitido aos bandeirantes serem governados, pois as divindades imortais destinaram-nos a governar sobre todas as outras pessoas”). A invenção do próprio nome bandeirante esta na dependência da invenção de um objeto, da recorrência a um elemento da cultura material (cf. McGuire e Walker 1999: 162), de uma bandeira – como uma insígnia militar que representasse a tradição dos bandeirantes. Não é uma referência distante buscar a origem deste mito nas leituras da mesma literatura latina que inspirara Taunay, e no seu uso do uexillum (estandarte) como uma referência tanto à bandeira militar quanto às tropas pertencentes a uma unidade (cf. César, De bello gallico 2, 20 e Tácito, Historiae 1, 70). Os bandeirantes foram inventados por intelectuais como Ellis (1926) e Alcântara Machado (1926), mas foi Taunay quem os materializou na exposição do Museu Paulista (Rodrigues 1999: 147). Na antecâmara do Museu, as imensas estátuas dos bandeirantes de Taunay saudavam os visitantes. Cada região do país era representada como se tivesse sido conquistada pelos bandeirantes, também com o recurso de esculturas, pinturas e outros itens materiais que eram usados para guiar o público. A fundação da primeira cidade na colônia portuguesa (“A Fundação de São Vicente, em São Paulo”) foi retratada com os primeiros colonizadores representados como os bravos descobridores, com bandeiras nas mãos, como se estivessem na iminência de conquistar o continente. O simbolismo implicava que estes colonizadores não eram mais portugueses, mas, ao contrário, já pertenciam ao interior do novo mundo e olhavam na direção das fronteiras do oeste como se a imaginar um futuro glorioso. Uma outra pintura (“A partida dos exploradores do rio”), mostra uma expedição bandeirante partindo para conquistar as terras longínquas. Nestas pinturas, grupos subalternos são retratados apenas como servos obedientes. Eles também estão ausentes da maioria das outras 102 galerias que, mesmo oitenta anos mais tarde, estão hoje ocupadas com doses maciças de cultura material da elite. Estão, por exemplo, entre este material, as liteiras usadas pela elite. Curiosamente, como em tantos outros casos análogos, os grupos subalternos que as carregavam, os escravos, adquirem, nestes contextos, uma surpreendente invisibilidade. Não existe referência a eles, eles não pertencem ao mundo material que povoa a maioria dos principais museus brasileiros (Funari 1994; 1995). Arqueologia Acadêmica da década de 1940 A primeira universidade brasileira foi fundada em São Paulo na década de 1930, mas a Arqueologia como uma atividade acadêmica foi introduzida apenas depois da Segunda Guerra Mundial, principalmente devido à pioneira condução política e intelectual de Paulo Duarte, amigo de vários eminentes arqueólogos franceses. Duarte foi um humanista sem igual e um defensor dos grupos subalternos, ainda mais se tivermos em conta que ele mesmo fez parte da antiga elite liberal paulista – um verdadeiro “bandeirante”. Duarte, entretanto, no início de sua carreira, foi um defensor aguerrido do patrimônio, como ele mesmo tornou claro em um discurso que proferiu na Assembléia Legislativa de São Paulo, quando propôs a criação de um Departamento Estadual do Patrimônio, apenas alguns dias antes do golpe fascista de 1937 (Duarte 1937). Duarte combateu o governo ditatorial que se instalara (1937-1945) e foi para o exílio na França. Lá se interessou pelos estudos que os franceses vinham fazendo a respeito do engenho humano (vista como uma capacidade de toda a humanidade), assim como pelos estudos de pré-história, levados a termo em uma perspectiva dilatada: desde os primeiros hominídeos até o presente, e em todas as partes do mundo. O conceito chave era “l’homme”, o ser humano e sua capacidade de criar, um conceito diretamente associado com a luta pelos direitos humanos (les droits de l’homme), em uma Europa pós Segunda Guerra Mundial que colocava o nazismo no esquecimento. Devido à sua amizade com Paul Rivet, então diretor do Musée de l’Homme em Paris, Duarte criou a Comissão de Pré-história da Universidade de São Paulo, em 1952; trouxe arqueólogos profissionais franceses, J. Emperaire e A. Laming (Emperaire & Laming 1956; 1958) para trabalhar nesta instituição; e começou a treinar brasileiros na área (López Mazz 1999). Pela primeira vez na história brasileira, material pré-histórico foi considerado um patrimônio humano, digno de ser preservado e estudado. Preocupado com “l’homme américain” (“o homem nativo da América”), Duarte defendeu a idéia de se instituir uma proteção legal para o patrimônio pré-histórico brasileiro (Duarte 1958). Como um resultado de seus esforços, o Congresso brasileiro promulgou uma lei federal (Lei No. 3942) em 1961, protegendo os vestígios arqueológicos – que permanece ainda hoje como o único item da legislação nacional a respeito do assunto (Morais 2001). Duarte (1952; 1955; 1968; 1969) estudou e lutou em favor da proteção dos sambaquis, amplamente usados pelas empresas construtoras para pavimentar estradas e rodovias. Como uma conseqüência, restos humanos até então tomados como de pouca importância – resultado da ação milenar do homem em determinados contextos – foram pela primeira vez considerados dignos de atenção (Bruno 1991; Funari 1999b). Os “nativos”, por muito tempo subordinados, foram introduzidos não apenas nas discussões acadêmicas mas na sociedade de uma maneira geral. Estes esforços humanistas sofreram um severo revés em 1964, quando ocorreu um golpe militar que colocou o país sob um governo autoritário nos vinte e um anos seguintes. Logo depois do golpe, o Instituto Smithsonian e as autoridades militares começaram um plano arqueológico, que duraria cinco anos, para reformular a ainda incipiente Arqueologia brasileira. Cliffor Evans e Betty Meggers, do Smithsonian, organizaram o Projeto Nacional de Pesquisa Arqueológica, mais conhecido pela sigla PRONAPA. Como este chamado programa nacional (sic) fosse controlado por Washington, a Arqueologia humanista foi inicialmente desestimulada e, mais tarde, ativamente perseguida. Duarte e seus colegas pesquisadores, interessados nos nativos, sofreram restrições de verbas. Como um ato final, Duarte foi expulso da vida universitária pelas autoridades, ajudadas por alguns oportunistas, como ele mesmo recordou em um documento publicado depois de sua morte (1994). Sua última publicação foi “Fontes para a pesquisa pré-histórica” (1970), que nunca foi distribuída, pois foi censurada por aqueles que, primeiro, o perseguiram e, mais tarde, sucederam-no no comando do Instituto de Pré-história (Caldarelli 2000). Neste artigo em questão, Duarte refere-se ao regime de governo que conduziu sua expulsão como ditatorial, ressalta que os indígenas, em particular, estavam experimentando a destruição de seu patrimônio, e critica abertamente os novos “invasores bandeirantes do século XX” (Duarte 1970: 371, 379 e 381). Passou a ser impossível tomar os grupos subordinados como objeto de estudo arqueológico, assim como de qualquer outra disciplina acadêmica. Gradualmente, a partir 103 da década de 1970, o regime militar permitiu algumas liberdades, mas a Arqueologia não foi logo beneficiada, pois estava ainda sob o controle dos partidários dos militares. Apenas em 1985, com a saída de cena do governo ditatorial, é que os arqueólogos se viram mais uma vez livres para comprometer-se com os grupos subalternos. Mais uma vez uma abordagem humanista foi, também, possível, mais uma vez “l’homme américain” foi trazido para o centro das discussões por vários arqueólogos. Por todo o país, vários estados e municípios introduziram artigos em suas legislações, buscando proteger os vestígios arqueológicos. Pela primeira vez, também, a Arqueologia começou a ser usada para estudar os grupos de descendência africana, como é o caso da Arqueologia dos grupos “mulatos” (Orser e Funari 1992; 2001; Funari 1999c, com referências anteriores; Allen 1999). Da mesma maneira, a Arqueologia foi usada para se lidar com vestígios de “desaparecidos”, daqueles que assassinados e enterrados em valas comuns pelo governo ditatorial (Oliveira, com.pess.). O estudo dos sitos relacionados com os povos de origem e descendência africana é uma maneira de compreender o racismo e as formas de resistência desenvolvidas contra ele (Paynter 1990: 60), assim como o estudo da opressão foi e é uma maneira de fazer oposição ao governo autoritário. Talvez o mais importante ganho da Arqueologia, no últimos anos, tenha sido o engajamento dos seus profissionais com o público (cf. Funari 2000b). Vários arqueólogos continuam perpetuando a longa tradição de se estudar o passado a partir do ponto de vista das classes altas, celebrando abertamente as finas louças usadas pelas elites, defendendo que certas peças arqueológicas possam ser vendidas em lojas de Antigüidade (e.g. Lima 1995; criticism in Trigger 1998: 16) e mesmo promovendo a expulsão dos índios, dos “negros” e das pessoas comuns em geral das áreas ocupadas pelas elites (veja exemplos em Funari 2001b). Tal postura não é surpreendente se considerarmos a natureza da estrutura social brasileira e a tumultuada história da disciplina arqueológica durante o recente passado ditatorial. É sempre difícil ouvir a voz dos grupos subordinados (Spivak 1988), mas a Arqueologia pode desempenhar um papel central na tarefa de torná-la mais fácil de ser ouvida (Hall 1999). O ato de examinar a evidência material dos grupos subordinados oferece uma oportunidade de se ter um acesso mais abrangente a comunidades que tradicionalmente não são representadas (cf. Guimarães 1990), tanto no passado histórico quanto no pré-histórico (Saitta 1995: 385; McGuire 1999: 830). Se a sociedade é caracterizada por contradições sociais, lutas e conflitos de interesse, então os membros dos grupos subalternos e dos grupos dominantes estarão sempre em oposição, e cada arqueólogo terá de decidir do lado de qual se colocará. Neste contexto, o engajamento com a sociedade é um aspecto definidor do trabalho do arqueólogo, principalmente daquele que busca manter uma posição crítica no que concerne às condições sociais do país onde trabalha (Trigger 1990: 785; McGuire 1999: 828). Em 1999, os 10% que representam a camada mais rica da população do Brasil detinham 52% da riqueza do país, enquanto que os 50%, que representam a cada mais pobre, detinham apenas 10% da riqueza do país (Marin 2001). As pessoas de descendência africana representam 45% da população, mas apenas 2% destes são estudantes universitários (Beting 2001), e existem mais de 40 milhões de brasileiros com alguma ascendência indígena. Arqueólogos em sociedades deste tipo são necessariamente parte da elite, e a Arqueologia pode ser usada ideologicamente para reforçar o discurso de exclusão por meio da manipulação da cultura material (Rodrigues 1999: 151; Skidmore 2000: 572). Provavelmente a melhor maneira de combater esta tendência é o engajamento com a sociedade; já que, na sua grande maioria, os indivíduos de uma sociedade são claramente aquilo que Walter Benjamin (1974: 352) denominou de geknechteten, “subalternos” – termo que engloba todos aqueles destinados a servir os outros (cf. Funari 1998: 109; Felman 1999: 12-14). Tal caminho abre a oportunidade para os arqueólogos confrontarem suas evidências de uma perspectiva crítica, observando as contradições tanto no passado quanto no presente (Tilley 1982: 37; Spriggs 1983: 3; Leone 1986). As críticas mais agudas feitas a respeito da Arqueologia da dita camada superior provém, atualmente, dos arqueólogos do terceiro e do quarto mundo, assim como das mulheres e das minorias étnicas no ocidente (Durrans 1989: 73). A Arqueologia dos grupos subalternos é, desta forma, uma maneira de escrutinar os contextos – tanto do passado quanto do presente – em que os discursos arqueológicos a respeito do passado são produzidos e reproduzidos. A Arqueologia fornece acesso , indiferentemente, à dominação e á resistência a ela, às elites e aos subordinados (Paynter e McGuire 1991: 13; Frazer 1999: 5). A Arqueologia do gênero (Cavicchioli 2002; Freitas 1999), o resgate dos direitos das comunidades indígenas (Baeta 2000; Noelli 1998; 2000; Nunes 2002; 104 Oliveira 1996), a luta por museus mais democráticos (Gomes 2001; Rodrigues 2001; Tamanini 1999), a política patrimonial (Juliani 1995; Caldarelli 1999; Cali 2001), e o crescimento da análise crítica da disciplina (Neves 1988; Reis 2002) são todos passos importantes da Arqueologia brasileira em suas novas preocupações com os grupos subalternos. A Arqueologia brasileira tem, hoje, uma oportunidade sem igual de se engajar na recuperação dos grupos subalternos, e de lutar por liberdade. Agradecimentos Este artigo foi, originalmente, escrito em inglês e traduzido para o português por Fábio Adriano Hering, a quem agradeço. O artigo em inglês será publicado em livro em breve. Agradeço, ainda, aos seguintes colegas: Scott Joseph Allen, Dione Bandeira, Cristina Bruno, Solange Caldarelli, Marina Regis Cavicchioli, Brian Durrans, Lúcia Juliani, Leandro Karnal, Luciana Freitas, Johnni Langer, Mark P. Leone, Maria Margaret Lopes, José Maria López Mazz, Randall McGuire, José Luiz de Morais, Walter Alves Neves, Francisco Silva Noelli, Solange Nunes, Nanci Vieira Oliveira, Charles E. Orser, Renato Ortiz, Ana Piñon, Jr., Jaime Pinsky, Marly Rodrigues, Thomas C. Patterson, Maria Isaura Pereira de Queiroz, Dean J. Saitta, Thomas Skidmore, Elizabete Tamanini, Bruce G. Trigger. Devo mencionar, ainda, o apoio institucional do Núcleo de Estudos Estratégicos da UNICAMP, FAPESP e CNPq. A responsabilidade pelas idéias restringe-se ao autor. Referências Abud, K.M. O Sangue Intimorato e as Nobilíssimas Tradições: A construção de um símbolo paulista. São Paulo: tese de doutoramento, 1986. Alcântara Machado, J. Vida e Morte do Bandeirante. São Paulo, 1926. Allen, S. J. 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Contando, ainda, com a ajuda do africanista britânico Michael Rowlands (University College London), submetemos nosso projeto de prospecção arqueológica da área a instituições científicas internacionais, tendo obtido financiamento para duas etapas de campo, em 1992 e 1993 (3). O objetivo mais amplo do Projeto Arqueológico Palmares, como foi denominado, consiste em adquirir informação sobre a vida quotidiana em Palmares, principalmente por meio dos vestígios materiais. Quase tudo que se sabe sobre Palmares deriva de documentos escritos por aqueles que, de uma forma ou de outra, combatiam o quilombo, o que acaba por gerar uma visão distorcida daquela sociedade. Até aquele momento, não havia sido efetuada nenhuma pesquisa arqueológica na área do antigo quilombo. Nada se sabia sobre a cultura material de Palmares e o Projeto Arqueológico Palmares procura, em primeiro lugar, obter informações detalhadas, e de primeira mão, sobre os tipos de arfefatos feitos e usados em Palmares. A partir desses dados concretos, pode-se almejar obter informações a respeito da organização ideológica, social, econômica e política. De início, planejamos realizar duas etapas de campo de caráter prospectivo, visando localizar sítios arqueológicos em superfície e realizar algumas trincheiras e/ou quadrículas, apenas na Serra da Barriga, único local seguramente identificado como parte do antigo quilombo (4). 112 A República de Palmares compunha-se de diversos mocambos, cujos nomes, transmitidos pelos documentos da época, possuem etimologia africana, tupi e portuguesa (5). A capital, conhecida, na época, como Cerca Real do Macaco ou Serra da Barriga, localiza-se no município de União dos Palmares (5). A metodologia da etapa de campo consistiu, basicamente, em um levantamento ou prospecção pedestre, visando localizar vestígios materiais arqueológicos superficiais. Tendo identificado artefatos na superfície, planejamos realizar alguns testes com pás, a fim de determinar a profundidade e grau de preservação do material. Esse procedimentos básicos permitiram mapear os sítios arqueológicos e avaliar as possibilidades de trabalhos arqueológicos futuros mais extensos e demorados. Antes de iniciarmos os trabalhos de campo, partimos dos documentos escritos para entendermos como os colonizadores compreenderam e combateram esse estado rebelde (6). Já em 1612, há referências a uma comunidade de escravos fugidos na Zona da Mata e em 1640 os holandeses consideram-na um sério perigo (7). Baro comandou um ataque holandês em 1644 que teria vitimado cem pessoas e capturado 31 quilombolas, de um total de seis mil que viviam no principal acampamento (8). A rivalidade entre portugueses e holandeses seguramente contribuiu para o crescimento de Palmares e, com a retirada desse últimos, os ataques aos assentamentos, que já eram nove, intensificaram-se no período entre 1654 e 1667. A partir de 1670 ofensivas quase anuais visavam destruir o Estado rebelde, governado por Ganga Zumba, entre 1670 e 1687 (9). Acusado de colaboracionismo, Ganga Zumba foi morto e sucedido por seu sobrinho Zumbi, rei entre 1687 e 1694, iniciando um período de guerras mais intensas, que culmiram com a expedição comandada pelo paulista Domingos Jorge Velho (10). Em fevereiro de 1694, após um sítio de 42 dias, Macaco foi tomada e Domingos Jorge Velho reivindicou o botim, tendo vitimado 200 quilombolas e aprisionado 500, a serem vendidos fora da capitania (11). Duzentos teriam fugido, entre os quais Zumbi, capturado e morto em 20 de novembro de 1695. Nas duas campanhas de prospecção, em 1992 e 1993, foi possível identificar 14 sítios arqueológicos na Serra da Barriga, apenas um deles posterior ao quilombo dos Palmares (12). Os outros sítios puderam ser datados pela presença de majólica ou cerâmica vidrada, caracterizada por um brilho opaco que 113 contém óxido de estanho. A localização dos sítios não parece ser fortuita pois, à exceção do sítio 11, datado do século XIX, os sítios restantes situam-se na parte superior ou na face sul, com um possível alinhamento de sítios de observação nos costados a sudeste. Os sítios 10, 13, 8, 6, 9, 7 e 5 formam uma linha leste/oeste, ao sul da Serra, defronte ao rio Mundaú. Ainda que seja prematuro aventar hipóteses sobre a funcionalidade dos sítios, cuja densidade de ocupação ainda não é possível determinar, os futuros trabalhos poderão melhor relacionar esse alinhamento e a estrutura geral do assentamento quilombola. A cerâmica vidrada encontrada no sítio pode ser enquadrada no amplo espectro denominado de majólica. A majólica foi, provavelmente, introduzida na Península Ibérica pelos mouros, tornando-se popular apenas com a Reconquista, a partir do século XIII (13). Cerâmicas relacionadas são as faianças francesas, holandesas e inglesas (delft). Os fragmentos provenientes da Serra da Barriga não podem ser considerados comparáveis à majólica fina da época, devendo ser encarada como um material utilitário e derivado (14). Um dos fragmentos apresenta duas faixas paralelas avermelhadas, com fundo verde amarelado, enquanto outras peças, de diferentes formas, possuem um vidrado que varia do amarelado ao esverdeado. Este tipo cerâmico, associado à cerâmica comum encontrada na Serra da Barriga, confirma a ocupação da área no século XVII (15). De um total de 2.448 artefatos coletados, mais de noventa por cento são objetos de cerâmica (16). Um grande vaso, encontrado enterrado há 15 centímetros de profundidade, merece alguns comentários. Havíamos traçado dois transeptos, ou linhas norte/sul e leste/oeste, e testávamos, a cada dez metros, com uma pá, a área imediatamente à frente dos monumento a Zumbi, quando encontramos, no teste de 40 metros norte, um grande vaso enterrado em época colonial (17). No topo do vaso, em sua parte exterior, encontramos dois machados líticos com seus fios para baixo, apoiados nas bordas do vaso. Ambos encontravam-se in situ e não apresentavam sinais de uso, o que sugere um caráter ritual ou apotropaico. Na parte superior interna do vaso, encontramos um segundo vasilhame, fragmentado mas completo, escuro, de paredes finas (0,54 cm), com diâmetro, na boca, de 36 cm. No fundo do grande vaso encontramos 31 fragmentos diminutos de cerâmica. 114 A interpretação desse achado não é simples. Uma primeira hipótese poderia relacionar o vaso aqueles de tipologia tupinambá (18). Poderia tratar-se, seguindo uma tradição de cemitérios indígenas pré-cabralinos, de uma urna funerária, na medida em que toda a área circundante apresenta abundantes vestígios superficiais de vasos desse tipo. Entretanto, a presença dos machados, do vaso no topo e dos fragmentos cerâmicos no fundo sugerem outras possibilidades. Poderia tratar-se de um depósito de grãos ou outros materiais, o que explicaria o vaso no topo e os fragmentos ao fundo (19). Os machados serviriam, nesse caso, para proteger o vaso e seu conteúdo. A própria forma do vaso pode ser relacionada à África, pois os Mbundu, em Angola, utilizam recipientes muito semelhantes (20). Talvez fosse possível aventar a hipótese de que as índias tivessem produzido esses vasos, usados no assentamento quilombola, segundo sua técnica tradicional tupinambá, mas cuja forma não era estranha aos africanos e cujo uso poderia ser mais próximo dos costumes bântus do que ameríndios (21). De qualquer forma, a presença de cerâmica indígena em assentamentos coloniais não devia ser excepcional e o caso da cidade espanhola de Santa Fé La Vieja, no nordeste da Argentina, ocupada de 1573 a 1660 parece indicar que uso de cerâmica local não-hispânica, de tipo tupi-guarani, era bastante difundida. Não se estranharia tendência semelhante no quilombo de Palmares (22). Os resultados preliminares das prospecções arqueológicas na Serra da Barriga indicam que o tema crucial para a compreensão do quilombo relaciona-se com a etnicidade dessa comunidade. Stuart Schwartz talvez tenha sido o historiador que melhor tenha desenvolvido a tese de que Palmares era ma sociedade muito claramente africana: "As tradições de Angola claramente predominaram. Os residentes referiam-se a Palmares como angola janga (pequena Angola)...O ki-lombo, uma sociedade a qual qualquer homem podia pertencer por meio do treinamento e iniciação, servia àquele propósito. Encontra-se, pois, uma instituição designada para a guerra, a qual podia incorporar grande número de estranhos desprovidos de ancestrais comuns a um poderoso culto guerreiro...Uma figura fundamental no ki-lombo era o nganga a zumba, um sacerdote cuja responsabilidade era tratar com o espírito dos mortos. O ganga zumba de Palmares era provavelmente o 115 detentor desse cargo....Devemos considerar os aspectos africanos de Palmares não como "sobreviventes" desincorporados de seu meio cultural original, mas como um uso muito mais dinâmico e talvez intencional de uma instituição africana na forma especificamente designada para criar uma comunhão entre povos de orígens díspares e fornecer uma organização militar eficiente. Certamente os escravos fugidos do Brasil adequam-se a essa descrição"(23). Essa interpretação segue uma tradição de associar-se os costumes de Palmares com aqueles de Angola (24). Contudo, a assimilação do ki-lombo angolano com o quilombo de Palmares parece, à luz dos estudos de africanistas, insustentável. De fato, o termo quilombo só foi usado no Brasil em 1691, segundo Schwartz, estando ausente dos documentos anteriores que se referem a Palmares. O ki-lombo angolano, por sua parte, foi um movimento guerreiro muito específico e efêmero, datado do segundo quartel do século XVII (25), posterior, portanto, ao início de Palmares. Por outro lado, John Thornton tem ressaltado que os contatos culturais, na própria África, entre europeus e africanos era muito mais intensos do que se costuma admitir (26) e sugere que, nas Américas, "os escravos não eram militantes culturamente nacionalistas, que procuravam preservar tudo que fosse africano mas, ao contrário, mostravam grande flexibilidade para adotar e mudar sua cultura" (27). Em geral, portanto, pode afirmar-se que os africanos, na América, passavam a forjar culturas especificamente americanas, diversas das africanas (28). Nesse contexto, não é de se estranhar as referências ao catolicismo em Palmares, nem à presença de mouros, brancos e índios no quilombo, presenças cuja inserção no ki-lombo imbangala seria impensável. Segundo diversos estudiosos, as perseguições coloniais fariam com que Palmares pudesse atrair uma pletora de grupos marginalizados pela ordem vigente (29). O trabalho arqueológico em Palmares, embora ainda muito inicial, já demonstra que, apenas a partir da cerâmica, pode supor-se que ali conviviam pessoas de diversas origens étnicas e culturais. Este caráter multiétnico deriva, em parte, da situação histórica e estratégica de Palmares. Os quilombos estabeleceram-se em uma região circundada por nativos, a oeste, por moradores e fazendeiros, na costa e, entre 1630 e 1654, os holandeses a nordeste. Os mocambos sobreviveram não apenas em confronto com esses grupos como, necessariamente, em interação. Na verdade, faziam parte de 116 um contexto internacional ainda mais amplo, pois a própria escravidão colonial era o resultado do capitalismo mercantil europeu (30). A continuidade do trabalho arqueológico na Serra da Barriga, prevista para os próximos anos, permitirá passar das proscpeções, efetuadas nas duas primeiras etapas de campo, para escavações. Os primeiros resultados indicam que há ainda muito a fazer, mas as perspectivas são, também, bastante amplas. O interesse por Palmares, tanto no Brasil como no exterior, tem sido acentuado, em parte graças às prospecções arqueológicas (31). Seu prosseguimento deverá trazer dados inéditos que permitam repensar esse grande Estado rebelde (32). Pedro Paulo A. Funari é professor do Departamento de História da Unicamp. NOTAS 1. O nome "república", utilizado nos documentos do século XVII é uma tradução, ao vernáculo, do termo latino então corrente, res publica, usado para designar qualquer Estado; cf. Édison Carneiro, O Quilombo de Palmares, São Paulo, 1988, p.33. Termos de origem africana, como mocambo e quilombo, foram introduzidos posteriormente, em geral com conotações pejorativas. Nos documentos que se referem a Palmares, o assentamento rebelde é chamado de mocambo, "esconderijo", segundo R.P. Kent, "Palmares: an African State in Brazil, in R. Price (org), Maroon societies, Baltimore, 1979, p.174. 2. Ver o volume organizado por Orser, Historical Archaeology on Southern Plantations and Farms, Ann Arbor, 1990, com bibliografia anterior. 117 3. Obtivemos fundos da Illinois State University, National Geographic Society, National Science Foundation, Joint Committe on Latin American Studies of the Social Science Research Council, American Council of Learned Societies, National Endowment for the Humanities, Ford Foundation e apoio institucional do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal de Alagoas, Museu Théo Brandão (Maceió), da prefeitura de União dos Palmares e do Estado de Alagoas; a participação, na etapa de campo, de Michael Rowlands foi financiada pelo British Research Council. 4. A localização dos outros mocambos ou aldeias não é segura, como fica claro ao compararmos os mapas apresentados por Décio Freitas, Palmares: A Guerra dos Escravos, Porto Alegre, 1984 e por Zezito de Araújo, Serra da Barriga: Exposição de Motivos para o Tombamento, Maceió, 1985. 5. Kent, op.cit., pp.180-1 relaciona os nomes Aqualtene, Dombrabanga, Zumbi, Andalaquituche a idiomas bântus; Subupira e Tabocas são topônimos tupis, segundo Teodoro Sampaio, em seu dicionário O Tupi na Geografia Nacional, São Paulo, 1987; a capital, Macaco, conhecida nos documentos da época como Oiteiro da Barriga (hoje, Serra da Barriga), pode ser português ou uma má interpretação do termo bântu mococo; Amaro é de origem portuguesa. 5. A Serra da Barriga localiza-se, aproximadamente, a 9 graus 10'00" Sul e 36 graus 05'00" Oeste, medindo cerca de 4.000 metros de leste a oeste e 500 a 1.000 metros de norte a sul. A altitude varia de 150 a 560 metros acima do nível do mar; cf. Charles E. Orser Jr., In Search of Zumbi: Preliminary Archaeological Research at the Serra da Barriga, State of Alagoas, Brazil, Normal, Illinois State University, 1992, pp.1415 et passim. 6. Sempre levando em conta que "toda sociedade deixa registros que procuram apresentar suas próprias visões e respostas que se ajustem a um ambiente político específico", segundo John Thornton, "The Correspondence of the Kongo Kings, 1614-35, Problems of Internal Written Evidence on a Central African Kingdom", Paideuma, 33, 1987, p.420. 118 7. Gaspar Barleus, em seu História dos feitos recentemente practicados durante oito anos no Brasil, Belo Horizonte, 1974 (originalmente publicado em 1647), p.253, refere-se a que "certo Bartolomeu Lintz vivera entre eles para que, depois de ficar-lhes conhecendo os lugares e o modo de vida, atraiçoasse os antigos companheiros". 8. É difícil avaliar a veracidade desses números, que poderiam estar inflados. De qualquer forma, dos 31 quilombolas capturados, sete eram índios e alguns crianças mulatas. 9. Há muitas evidências da religiosidade associada ao poder, tanto na África como em Palmares. O título nganga era usado para designar "sacerdote", tanto nas religiões tradicionais bântus como no catolicismo africano, segundo Jean Nsondé, "Christianisme et religion traditionelle au pays Koongo aux XVII-XVIIIe. siècles", Cahiers d'Études Africainnes, 128, 23, 4, pp.705-711. A importância da ligação entre o exercício do poder e o controle do sagrado na África bântu tem sido ressaltada por Michael Rowlands, "From Tribe to State in West Central Africa", Symposium at Cascais on Critical Approaches in Archaeology: Natural Life, Meaning, and Power, manuscrito inédito, p.29 e Michael Rowlands e Jean Pierre Warnier, "Sorcery, Power, and the Modern State in Cameroon", Man (NS), 23, 1992, pp.118-132. Sobre o título nzumbi, ver Tulu Kia Mpansu Buakasa, "Croyances et connaissances", em Théophile Obenga e Simão Souindoula (orgs), Racines Bantu, Libreville, 1991, p.179. 10. O termo nzumbi possui conotações militares e religiosas a um só tempo. 11. Segundo o preceito romano reconhecido à época: iuste possidet, qui auctore praetore possidet. 12. Sítio número 11, com majólica, creamware, pearlware, whiteware, stoneware, material datado entre fins do século XVIII e início do XIX; cf. Charles E. Orser Jr., In Search of Zumbi, The 1993 Season, Normal, 1993, pp.3-6 e Pedro Paulo A. Funari, "The Archaeolgy of Palmares and its Contribution to the 119 Understanding of the History of African-American Culture", Historical Archaeology in Latin America, 7, 1994, p.30. 13. Cf. Florence C. Lister e Robert H. Lister, A Descriptive Dictionary of 500 Years of Spanish-Tradition Ceramics: 13th through 18th Centuries, California, 1976, pp.1-2. 14. Os fragmentos podem associar-se à majólica portuguesa ou, talvez mais provavelmente, àquela holandesa, pois a semelhança da coloração com o material daquela proveniência, encontrado na América do Norte, pode ser observada; cf. Charlotte Wilcoxen, Dutch Trade and Ceramics in America in the Seventeenth Century, Nova Iorque, 1987, prancha 5 et passim). Compare-se com a majólica contemporânea em África, em James Kirkman, Fort Jesus: A Portuguese Fortress on the East African Coast, Oxford, 1974, pp.119121. 15. Pré-historiadores, tanto no Brasil como no exterior, têm dificuldade em admitir a presença concomitante, em sítios históricos, de cerâmicas de tipo indígena misturadas com cerâmica colonial. Há quem proponha tratar-se de duas ocupações sucessivas, pré-histórica e colonial. Essas hipóteses revelam, contudo, desconhecimento das características dos sítios coloniais, cuja cultura material apresenta elementos europeus, indígenas e mesclas, associados. Desconhecem, também, os documentos históricos que se referem aos sítios coloniais e que, se lidos, permitem constatar que artefatos "pré-históricos" eram usados nos assentamentos colonais. Estas considerações surgiram de conversas com Susan Alcock e Carla Sinopoli a respeito da reação de alguns pré-historiadores quando de uma palestra sobre os trabalhos na Serra da Barriga, em agosto de 1995, em Simpósio organizado pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. Infelizmente, as características da Arqueologia História ainda são largamente desconhecidas pelos préhistoriadores, induzindo a erros crassos de julgamento. 16. 91% cerâmica comum, 4,5% cerâmica trabalhada, 1,3% líticos, 0,6% vidro, 0,1% metal e 1,9% outros materiais variados. 120 17. O objetivo desses transeptos era averiguar os danos arqueológicos causados pelo uso de um trator, por alguns anos sucessivos, a fim de "limpar" a área, tornando-a um local mais aprazível para os festejos do dia da consciência negra, 20 de novembro. Como era esperado, toda a área (sítio 1) diante do monumento foi muito afetada pela remoção dos vestígios. 18. Cf. José Joaquim Justiniano Proenza Brochado, An Ecologial Model of the Spread of Pottery and Agriculture into Eastern South America, Urbana, Tese de Doutoramento inédita, figura 16 et passim. 19. Merran McCulloch refere-se a tais vasos entre os Mbundu (Ovimbundu), em Angola, em seu The Ovimbundu of Angola, Londres, 1952, p.15. 20. Wilfred D. Hambly, The Ovimbundu of Angola, Chicago, 1934, p.368 e prancha XIV. 21. Assim, um vaso de tipo indígena poderia ser reapropriado pela população mestiça do quilombo como um recipiente de armazenamento. 22. Andrés Zarankin, "Arqueologia Histórica urbana en Santa Fe La Vieja: el final del principio", Historical Archaeology in Latin America, 10, 1995, p.56, figuras 13 e 14; cf. p.94: el sistema español implantado en America Latina, a diferencia del Británico en América del Norte, fue relativamente flexible en lo que repecta a la integración de diferentes grupos étnicos a la sociedad colonial. Ello se refleja en que, desde los primeros tiempos, el colonizador Hispánico acostumbró tomar como servientes, concubinas, o esposas a integrantes de la población indígena local. 23. "Mocambos, Quilombos e Palmares: a resistência escrava no Brasil colonial", Estudos Econômicos, 17, 1987, pp.84-86. 121 24. E.g. Charles Ralph Boxer, The Dutch in Brazil, 1624-1654, Oxford, 1973, p.140. 25. Joseph C. Miller apresenta, em seu Kings and Kinsmen, Early Mbundu States in Angola, Oxford, 1976, pp.160-260 et passim, um estudo detalhado das origens, características e transformações do ki-lombo. Sua inserção no contexto local impossibilitaria sua "exportação" para a realidade do mundo colonial americano, dominado pela escravidão colonial e pelos ameríndios, inexistentes em África. 26. A respeito do Kongo, ver John Thornton, "Early Kongo-Portuguese Relations: a New Interpretation", History in Africa, 8, 1981, 183-202. 27. John Thornton, Africa and Africans in the Making of the Atlantic World, 1400-1680, Cambridge, 1992, p.206. 28. Cf. Jonathon Glassman, "The Bondsman's New Clothes: the Contradictory Consciousness of Slave Resistance on the Swahili Coast", Journal of African History, 32, 1991, p.278 et passim. 29. Por exemplo, José Flávio Sombra Saraiva, "Silencio y ambivalencia: el mundo de los negros en Brasil", América Negra, 6, 1993, p.46; Eugene D. Genovese, From Rebellion to Revolution. Afro-American Slave Revolts in the Making of the Modern World, Baton Rouge, 1981, p.62. 30. Cf. Fernando A. Novais, "Brazil and the Old Colonial System", in R. Graham (org), Brazil and the World System, Austin, 1991, pp.11-56. 31. No exterior, a mídia tem dado grande destaque ao trabalho; cf. David Keys, "South America's lost African Kingdom", The Independent, Oct.19th, 1993, p.23; Brian Fagan, "Brazil's Little Angola", Archaeology, July/August, 46, 1993, pp.14-19; Anver Versi, "The Lost Kingdom", Nes African Life, December 1993, p.9; Entrevista de P.P.A. Funari à British Broadcast Corporatiom, 24/10/1993. No Brasil, diversos órgão de 122 imprensa tem publicado artigos, entre os quais, Ricardo Bonalume Neto, "O Pequeno Brasil de Palmares", Folha de São Paulo, 4/6/95, 5-16; Pablo Pereira, "Arqueologia tenta desvendar vida em Palmares", O Estado de São Paulo, 25/6/95, A28. 32. Devo agradecer a diversos colegas que, de diferentes modos, ajudaram na elaboração desse artigo, embora a responsabilidade pelas idéais seja somente minha: Zezito de Araújo, José Proença Brochado, Jonathon Glassman, Joseph Miller, Charles E. Orser Jr., Michael Rowlands e John Thornton. FIGURAS 1. Localização de Palmares, em relação a outros grupos, no Nordeste. 2. Possível localização de assentamentos de Palmares, segundo Décio Freitas. 3. Possível localização de assentamentos de Palmares, segundo Zezito de Araújo 4. Serra da Barriga, Rio Mundaú e União dos Palmares. 5. Localização dos 14 sítios arqueológicos prospectados. 6. Cachimbos de barro, encontraso pela população local. 7. Transeptos no sítio 1 e localização, a 40 m norte, do grande vaso cerâmico. 8. Perfil do vaso de tupinambá. 9. Perfil da borda do vaso encontrado no topo do pote tupipambá. 10. Pequeno machado lítioc encontrado sobre o vaso tupinambá. 11. Grande machado lítico encontrado sobre o vaso tupinambá. 12. Cerâmica comum encontrada no sítio 1. 13. Cerâmica comum encontrada no sítio 2. 14. Cerâmica comum encontrada no sítio 3. 15. Cerâmica comum encontrada no sítio 3. 16. Majólica encontrada no sítio 3. 123 COMO SE TORNAR ARQUEÓLOGO NO BRASIL PEDRO PAULO A. FUNARI39 INTRODUÇÃO Para que se possa tratar da formação do arqueólogo, é necessário, antes, definir a identidade do arqueólogo. Em um contexto mais amplo, pode afirmar-se que o estudo da Arqueologia varia muito, em diferentes tradições universitárias. Nos Estados Unidos, a maioria dos arqueólogos é constituída de antropólogos, já que a Antropologia, normalmente, ali incorpora áreas como a Lingüística e a Arqueologia. Isto significa uma formação básica em Antropologia, voltada para o estudo do outro, os antropólogos estudando os índios vivos e os arqueólogos os mortos. Nos próprios Estados Unidos, contudo, há também arqueólogos com outras formações, como é o caso dos arqueólogos clássicos, que estudam as civilizações grega e romana, cujo estudo liga-se às letras clássicas, à História e à História da Arte, em medidas variadas, segundo a tradição de cada instituição. Há, ainda, os arqueólogos oriundos da orientalística (egiptólogos, assiriólogos), dos estudos bíblicos (a chamada “Arqueologia Bíblica”) ou das mais variadas disciplinas, como a Biologia ou a Geologia (cf. Taylor 1948: 11). A outra grande vertente produtora de arqueólogos, a escola européia, é ainda mais multifacetada. Em termos gerais, os arqueólogos europeus, pré-historiadores, classicistas ou medievalistas formam-se na tradição histórico-filológica de origem alemã. Em alguns centros, a Arqueologia é parte da História da Arte, em outras relaciona-se à História ou às línguas, raramente fazem parte da Antropologia. Os britânicos foram os que levaram mais adiante a independência epistemológica da disciplina, criando diversos cursos de graduação em Arqueologia, exceção tanto mais notável quanto, tanto na Europa como nos Estados Unidos, costuma-se reservar-se à formação em Arqueologia o caráter de uma especialização, após uma educação universitária mais genérica. A formação do arqueólogo no Brasil insere-se, pois, no contexto mais amplo esboçado. Não há uma única tradição acadêmica universal e tampouco, no Brasil, haveria que buscar uma unidade que 39 Pedro Paulo A. Funari é professor livre-docente do Departamento de História da UNICAMP e autor e organizador de, entre outros diversos livros, Historical Archaeology, Back from the edge (Londres/Routledge, 1999), co-organizado com M. Hall e S. Jones. 124 alhures inexiste. Não se pode, entretanto, fazer um balanço da formação do arqueólogo no país sem analisar, ainda que brevemente, a História da disciplina em nosso meio e o ambiente acadêmico no qual ela se desenvolve (Funari 1997). A Arqueologia acadêmica brasileira é recentíssima, o número de arqueólogos profissionais reduzidíssimo e os centros de formação pouco numerosos. Além de descrever as vicissitudes da formação de arqueólogos no Brasil, hoje, pretende-se contribuir para a discussão do seu aprimoramento, visando inserir a Arqueologia brasileira no âmbito mais amplo da Arqueologia mundial. A ARQUEOLOGIA NO QUADRO DA ACADEMIA BRASILEIRA A sociedade brasileira, patriarcal, dominada por uma estrutura social hierárquica secular, produziu muito tardiamente a universidade, séculos depois das primeiras congêneres hispano-americanas. A universidade brasileira, desenvolvendo-se a partir da década de 1930, viria a ter algumas características estruturais, derivadas do próprio caráter restritivo à liberdade intelectual da sociedade nacional, ainda presentes entre nós. Florestan Fernandes, um dos nossos primeiros acadêmicos, advertia, antes do golpe militar de 1964, que “o intelectual se torna, literalmente, um escravo do poder. Se ele tentar o contrário, corre o risco de sofrer pressões muito violentas e de ser eliminado da arena intelectual” (Fernades1975: 85). Segundo outro decano da ciência nacional, Milton Santos, “buscar o novo é perigoso”, resultado da falta de valorização do mérito intelectual propriamente dito: “Eu acho que o meio intelectual no Brasil é, até certo ponto, opaco, no sentido de que a vida acadêmica não se caracteriza pela existência de um mercado acadêmico. As pessoas nascem, crescem, evoluem e morrem no mesmo universo. Então, a idéia de competição se compromete e o sistema de referências é igualmente doméstico. É muito autocentrado e funciona, com freqüência, em detrimento de uma emulação mais ampla” (Santos 1998: 6). O compadrio, generalizado, chega aos editoriais dos jornais (Folha de São Paulo 1997a), levando a que as pesquisas confirmem o discurso do poder, tanto das autoridades políticas como acadêmicas, perpetuando, de forma acrítica, aquilo que Pierre 125 Bourdieu (1988: 777) chama da senso comum acadêmico. Predomina um sistema universitário dominado por um mandarinato autocrático e medíocre, a busca desenfreada pelo micropoder dos cargos por parte daqueles que nada sabem, como se expressava Theo Santiago (1990). A palavra corporação aparece em quase todas as análises críticas da academia brasileira (e.g. Comparato 1993; Miceli 1995: 3) e criam-se neologismos para descrever essa realidade: “os buroprofessores, quer dizer, aqueles indivíduos que, sai um, entra outro, mas é o mesmo grupo, que são pessoas inúteis porque esses pró-reitores, quase todos, são pessoas inúteis, um estorvo à produção intelectual” (Milton Santos 1999: 25). A dissociação entre progressão na carreira e a competência, que inclui titulação, mas não se limita a ela (Goldemberg 1992), compõe um quadro pouco alentador de uma época “hostil à crítica e ao dissenso” (Barros e Silva 1997). Neste contexto, quando mais da metade das bolsas concedidas pelo CNPq não resultam em defesas de tese, não há surpresa (Folha de São Paulo 1997b). A academia brasileira padece, portanto, de deficiências estruturais, de origem histórica clara. Um sistema universitário surgido no seio de uma sociedade tão hierarquizadora e infensa à liberdade de oportunidades não poderia deixar de refletir essas características dominantes (Funari 1997a, com literatura). Durante o período de jugo militar, em particular, os aspectos mais deletérios de uma academia servil ao poder produziram resultados que ainda nos atormentam. O compadrio, associado a um poder discricionário, pôde levar o controle discursivo ao paroxismo, instituindo, em algumas áreas, uma limitação severa ao desenvolvimento da ciência. Com a abertura e, em especial, com o restabelecimento dos civis ao poder, a liberdade acadêmica rediviva logo começou a produzir reflexões críticas e menos acomodadas (Batista 1997). Este pano de fundo permite, agora, refletir sobre o desenvolvimento da Arqueologia, em nosso meio. A Arqueologia pré-acadêmica tem longa trajetória no Brasil, desde seus primórdios no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, no século passado. Contudo, apenas no pós-Segunda Guerra ensaia-se o 126 início da Arqueologia acadêmica, graças às iniciativas de Paulo Duarte, fundador da Universidade de São Paulo, político, intelectual e humanista, sob cuja égide surge a Comissão de Pré-História que se transformaria no Instituto de Pré-História, à imitação do IPH de Paris. Assim, ab initio, a Arqueologia começa a penetrar o espaço universitário como atividade de pós-graduação, ao menos no sentido de que se trataria de atividade a ser desenvolvida pelo pesquisador após sua formação universitária, em área, de algum modo, ligada à Arqueologia. Nesse primeiro momento, com a chegada dos franceses, com Madame Emperaire à frente, enfatizavam-se as técnicas de campo e laboratório, como se a Arqueologia fosse pouco mais do que uma tekhné, à maneira francesa, muito distante, pois, das Wissenschaften que compunham o saber (Wissen) acadêmico. Um primeira conseqüência dessa formação inicial foi a dissociação entre pesquisa empírica e interpretação. Assim, ainda que bem intencionada, a Arqueologia humanista ressentia-se da falta de ambições epistemológicas que lhe dessem espessura acadêmica no interior tanto da universidade brasileira como, principalmente, internacional. Estes primeiros arqueólogos acadêmicos formados no Brasil foram logo acompanhados por uma nova leva, resultado da incursão, pós-golpe militar de 1964, de Betty Meggers e Clifford Evans e a constituição de um programa nacional de pesquisas arqueológicas (PRONAPA). Não seria o caso, nesta ocasião, de retomar as discussões sobre o imbricamento do esquema pronapiano com o regime de força (cf. Funari 1995; Funari 1998), mas de ressaltar o tipo de formação arqueológica que estava sendo introduzido no país1. Os clássicos da literatura arqueológica norte-americana não eram conhecidos, assim como os desenvolvimentos mais recentes. Walter W. Taylor (1948: 44) e sua busca da autonomia da Arqueologia havia sido ignorado, como tinha sido o apelo, então recente, de Binford (1962), em direção a uma Arqueologia processual. Prevalecia, na formação desses arqueólogos, a constatação devastadora de Binford (1984: 15) de que o “arqueólogo de campo escavador fica a discutir o teor alcoólico da pinga nos bares das redondezas” (cf. Funari 1987), o que foi interpretado pelos seus epígonos como treinamento orgânico, fomentador de centros de pesquisa, um período de ouro da Arqueologia nacional (e.g. Schmitz 1989: 47; Dias 1995: 35; Lima 1998: 25)2. A formação intelectual propugnada pela equipe de Meggers não bebia do imenso manancial americano3, que poderia ter aberto os horizontes daqueles que seriam considerados, às expensas dos arqueólogos formados pelos franceses, os fundadores da Arqueologia universitária nacional. Os 127 resultados dessa formação foram muitos, da falta de autocrítica (Prous 1994:11) à despreocupação com publicações (Neves 1998: 628)4, da ausência de corpora (cf. Wheeler 1956: 211)5 à execução de levantamentos oportunísticos e escavações injustificadas, sem planejamento (Neves 1988: 204). Uma terceira vertente arqueológica surgia, àquela época. A Arqueologia clássica, surgida por iniciativa do Professor Eurípides Simões de Paula (Duarte 1994: 163-4), diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, no quadro de um plano mais amplo de expansão da Faculdade, em geral, e das línguas clássicas em particular. De início encarada como mera “ciência auxiliar da História, longe, bem longe de ser um fim um si mesmo”, parte da História da Arte (Meneses 1965: 22), a Arqueologia Clássica assumiu uma importância insuspeitada de início. A inserção da Arqueologia Clássica brasileira na ciência universal significou uma formação intelectual abrangente. A formação de quadros nesse campo da Arqueologia permitiu que, pela primeira vez, arqueólogos brasileiros dirigissem projetos de pesquisa internacionais, publicassem livros e artigos no exterior, dando uma visibilidade internacional à Arqueologia brasileira (cf. Funari 1997). A formação menos restrita desses arqueólogos acabou por resultar em que a própria Arqueologia de temas americanos fosse desenvolvida por arqueólogos de formação clássica, cujo melhor exemplo, ao menos em termos de divulgação científica da Arqueologia, talvez seja o volume de Norberto Luiz Guarinello (1994), o livro mais vendido sobre Arqueologia Pré-Histórica, em toda a História (cf. Funari 1996; Faversani 1997). Após essa fase inicial, que abrange o período dos anos 1950 e 1960, a Arqueologia brasileira insere-se na reforma universitária implantada pelos militares. A pós-graduação brasileira passou a seguir o sistema americano, com mestrados e doutorados e a formação em Arqueologia continuou a ser um especialização posterior à graduação, com a exceção do curso, nunca reconhecido pelo MEC, na Estácio de Sá, no Rio de Janeiro. Os arqueólogos que surgiram nas três vertentes apontadas, acrescidos de alguns estudiosos estrangeiros, como André Prous e Gabriela Martín, constituíram os quadros que estabeleceriam a formação em Arqueologia nas décadas de 1970 e 1980. Enquanto nas Ciências Humanas, em geral, buscavase uma formação intelectual menos descritiva e mais crítico-analítica (Janotti & Mesgravis 1980: 9), a Arqueologia empirista, único discurso associado ao poder, impunha, por mecanismos hierárquicos comuns às 128 sociedades patriarcais (cf. Collis 1997: 11), mas aqui levados ao paroxismo pelo regime de arbítrio, uma formação infensa a leituras interpretativas. Sempre houve quem lesse, quem buscasse sair desse marasmo, mas só podia fazê-lo por sua conta e risco (Noelli 1999). Não se pode subestimar o sufocamento das vocações, pois as hierarquias permitiam que se expulsassem da universidade aqueles que não se conformassem, como ocorreu com o notável caso de Walter Neves e Solange Caldarelli (reportado em Prous 1994: 12; e em Funari 1999), nem a institucionalização de uma hierarquia infensa ao mérito facilitou a formação de novos arqueólogos6. Na maioria dos casos, bastava algo muito mais insidioso, a internalização da submissão, pois se sabia que “à volta de um grande e frondoso carvalho, nada cresce”, nas palavras de Norberto Luiz Guarinello (1999), a respeito de um dos mandarins da Arqueologia. Não se buscou criar massa crítica, formando novos estudiosos, o que explica, em parte, que muitos dos pais fundadores pronapianos tenham tido tão poucos alunos, sendo que, ainda hoje, “na maioria das instituições brasileiras há um processo de sufocamento de novas vocações”, nas palavras de Francisco Noelli (1999) 7. As duas últimas décadas testemunharam transformações radicais em um quadro que parecia pouco promissor para a Arqueologia brasileira. Warwick Bray (1994: 6), quando discursou ao assumir a cátedra de Arqueologia Americana no Instituto de Arqueologia de Londres, ressaltou que os melhores resultados acadêmicos derivam do incentivo à variedade de linhas de pesquisa e à não aceitação do discurso da autoridade do intelectual sem obra e, no caso brasileiro, a multiplicidade resultante da democracia só teve resultados positivos (Lafer 1996: 9)8. Os centros de formação de arqueólogos multiplicaram-se pelo país, entendendo-se formação em seu sentido pleno, como Bildung. De fato, o empirismo que esteve subjacente à primeira leva de arqueólogos acadêmicos fez com que se igualasse Arqueologia e escavação. Entenda-se escavação no sentido de trabalho de campo, não todo o processo que começa com um problema, que se desenvolve em um projeto de intervenção no campo, que gera artefatos a serem estudados, que implica em publicações, que, enfim, produz conhecimento. Este sentido de escavação, como parte de um processo de conhecimento (Welterkentniss), não pode prescindir de aspirações interpretativas. Por outro lado, como ressaltaram, recentemente, dois grandes arqueólogos da atualidade, Michael Shanks e Randal McGuire (1996: 79), Gordon Willey e V. Gordon Childe, dois dos mais influentes arqueólogos de todos os tempos, 129 rarissimamente escavaram, o que está a demonstrar que a formação do arqueólogo não pode descuidar da reflexão. Já se disse que os arqueólogos são pouco numerosos no Brasil, talvez trezentos, para uma país de dimensões continentais, de população elevada, com centenas de milhares de estudantes universitários. Isto se explica, em parte, pelo fato de a Arqueologia não ser um curso oferecido na graduação, com uma única exceção. O graduação em Arqueologia oferece as vantagens de uma especialização precoce mas pode ser uma armadilha, caso o curso não esteja bem articulado a áreas de conhecimento afins, em particular a História, a Antropologia, mas também a Geografia, a Biologia ou, até mesmo, a Literatura, a Fotografia (e.g. Olivier 1999a), o Jornalismo (e.g. Cotter 1999: 8), para mencionar apenas algumas. Os bons cursos de graduação em Arqueologia no exterior não deixam de inserir-se nas ciências afins e o mesmo princípio é válido para o Brasil. Em geral, no entanto, a formação do arqueólogo dá-se na pós-graduação. Neste caso, há duas grandes vertentes, a majoritária inclui a Arqueologia em um curso de História, de Antropologia ou de outra ciência. Na tradição européia, predomina a ligação com a História, em direta ligação com a herança de Childe (cf. Trigger 1984: 295; Funari 1997c)9. Desta forma, o arqueólogo, seguindo a tradição dominante, tanto na Europa como nos Estados Unidos, toma contato com uma pletora de áreas, já que a própria Arqueologia é multidisciplinar (Ucko 1994: xiv). A outra vertente, minoritária, forma arqueólogos em programa de pósgraduação próprio. Os programas de pós-graduação majoritários, que acolhem a formação em Arqueologia, permitem que os arqueólogos tomem contato direto com a epistemologia de uma outra ciência, o que pode revelar-se muito produtivo. Há, naturalmente, duas deficiências estruturais: uma tendência a incorporar a Arqueologia como ciência auxiliar de outra, o que lhe tira a especificidade, e a falta de um estudo mais direcionado para a variedade de áreas com as quais a Arqueologia se relaciona (Funari 1998). Assim, corre-se o risco de termos arqueólogos que nunca deixaram de serem geólogos ou historiadores, risco tanto maior quanto, às vezes, as únicas leituras e práticas do educando se restringiram, desde a graduação, àquela área de estudo. Perde-se, assim, a necessária consciência de que a Arqueologia é, em sua essência, multidisciplinar (Silva e Noelli 1996). A pós-graduação em Arqueologia, por sua parte, possui a virtude de apresentar um 130 programa coerente de disciplinas voltadas para essa área. No entanto, uma deficiência estrutural consiste na falta de ênfase no caráter multidisciplinar da Arqueologia, pois esse seu aspecto deveria implicar em um currículo que enfatizasse o conhecimento, em primeira mão, das grandes teorias sobre o funcionamento e a transformação das sociedades, das formas de expressão, mas também do mundo físico e biológico. Na verdade, a própria compartimentação do conhecimento divide, de forma burocrática, unidades de conhecimento (McGuire 1992: 4) e poder-se-ia propugnar, como se tem feito, que o estudo da cultura material – outro nome para a Arqueologia - seja, eo ipso, multidisciplinar (Miller e Tilley 1996; e.g. Noelli 1996 a; 1996b). Os educandos não são vasos vazios a serem preenchidos com dados, mas como pensadores e agentes sociais (Shor 1986: 422) devem ser capazes de decifrar o mundo à sua volta (Tragtemberg 1985: 43) e, a fortiori, na Universidade deve-se, mais do estudar, estudar para aprender a estudar, nas palavras de Antonio Gramsci (1979: 154). Como disse, recentemente, o veterano arqueólogo norte-americano, John L Cotter (1999: 39), “os fatos qualquer um pode adquirir e aprendi que as pessoas podem ter acesso aos fatos elas mesmas, caso se interessarem o suficiente. O que se deveria fazer é tentar ajudá-las a organizar sua própria conceituação dos dados e o que farão com suas próprias vidas e carreiras, bem como abrir novas vias de pensamento”. Há pouco, Michael Shanks (1997: 395) propunha sete objetivos para a formação dos estudiosos da Arqueologia e vale a pena transcrevê-los na íntegra: “a) enfatizar a importância das ligações interdisciplinares; b) construção e debate teóricos, acompanhados de um compromisso com a prática arqueológica; c) um interesse no caráter peculiar das fontes arqueológicas; d) um interesse em algumas questões mais amplas da teoria social; e) pragmatismo e ecletismo mais valorizado do que uma suposta pureza teórica e ideológica; f) um aceitação do pluralismo; g) um forte senso de criatividade da atividade arqueológica”. As implicações de cada um desses itens para os nossos cursos de pós-graduação são claras e diretas. Os cursos devem incentivar a interdisciplinaridade, oferecendo um currículo que abranja disciplinas ligadas às diversas disciplinas formais. Os créditos obtidos no interior do curso devem ser complementados 131 com boa porcentagem de créditos externos. Não se pode dissociar a prática arqueológica da formação teórica, pelo que a prática de campo ou de laboratório nunca deveria preceder a formação mais abrangente. Os debates teóricos abrangem tanto as correntes da Arqueologia, do antiquarianismo ao pós-processualismo, passando pelos modelos histórico-culturiais e processual, esquemas de interpretação sempre ligados a momentos históricos específicos10. No que se refere à Arqueologia, a História da disciplina (Funari e Podgorny 1998: 420), no mundo e no Brasil, assim como das correntes interpretativas, deve estar no centro da preocupação (cf. Trigger 1990: 4 et passim). A especificidade das fontes materiais está a exigir um estudo próprio que, no entanto, não pode deixar de lado as reflexões de diversas ciências sobre o mundo material, da Semiótica 11 à Física (cf. Funari 1999b). A teoria social12, entendida como o imenso universo de reflexões da Sociologia, Antropologia, História, Filosofia e Lingüística, encontra-se no âmago mesmo da Arqueologia, ciência que estuda, afinal, a sociedade. Não se chega a compreender que estudiosos da sociedade nunca tenham lido Levi Strauss, Weber, Durkheim, Braudel, Foucault ou Saussure, para citar alguns pensadores apenas. Pragmatismo e ecletismo, palavras tão temidas entre aqueles que encaram a ciência como profissão de fé e formação de séquitos de cartilhas, constam, com destaque, na lista de Shanks. A ciência não se confunde com a religião, nem, menos ainda, com o partido político e, por isso mesmo, os cursos e suas linhas de pesquisa mais do que homogêneos, “coerentes” e uniformes, devem abranger um grande espectro de concepções (Funari 1999c). No caso da Arqueologia, pragmatismo e ecletismo implicam, também, adotar terminologias vigentes, já que estão em uso, sem reificá-las, como se refletissem alguma realidade inefável, reconhecendo as críticas e limites dos rótulos classificatórios. Pureza ideológica não condiz com ciência. O pluralismo parte da aceitação da diversidade de práticas e teorias (cf. Neves 1991; Funari 1992), de campos de investigação e especialização, de vocações (Funari 1996b). A criatividade do educando expressa-se, assim, em sua capacidade de criar sua própria trajetória intelectual, pelo que a formação não é um aprendizado ou adestramento (Unterrichtung), mas uma verdadeira educação (Erziehung), desenvolvimento de uma capacidade interior de reflexão e ação críticas (cf. Funari 1996). Esse abrangente programa, proposto por Shanks, insere-se na sua constatação anterior de que a Arqueologia , além do estudo do antigo (este o sentido primevo da palavra), deve ser, também, o estudo do poder, recuperando o sentido original da palavra arkhé, em grego (Shanks e Tilley 1987; cf. Funari 1990). 132 Tornar-se arqueólogo no Brasil possui, no entanto, particularidades que não foram mencionadas nos sete pontos tratados por Shanks. As especificidades da vida universitária em nosso meio, já acenadas, bem como a conturbada História recente do país e da Arqueologia, em especial, fazem com que haja aspectos ainda a serem discutidos. Talvez tudo se possa resumir à constatação de Ovídio (Heroid. 2, 85), que exitus acta probat, transformado na quintessência do mundo anglo-saxão: the proof of the pudding is in the eating13. Aqui, cabe uma digressão. Em um mundo social e acadêmico tão caracterizado pelas relações hierárquicas e tão infenso ao mérito, como é o nosso, todo tipo de distorção é possível. Já se mencionou, alhures, que o poder burocrático se concentra nas mãos dos que menos publicam (cf. Santos 1999b, em nota), que, em nossa universidade, é possível obter títulos acadêmicos “por decreto”, em triste herança dos tempos da cátedra. Neste contexto, torna-se compreensível a referência à prova dos fatos. Tornar-se arqueólogo, neste artigo, significa tornar-se arqueólogo de verdade, no sentido forte da palavra, acadêmico, não poderoso, brilhante, admirado e temido, por falar (e pouco publicar) ex auctoritate. Em outras palavras, tornar-se um acadêmico requer desligar-se do poder paroquial e inserir-se na ciência universal. Para tanto, o primeiro requisito é instrumentalizar-se lingüisticamente, em particular dominando a língua franca hodierna, o inglês 14. Alguns propugnariam que, devido aos vícios, ao compadrio e ao paroquialismo local, melhor seria enviar os interessados a estudar no exterior e apresentam como argumento exemplos de jovens PhDs cuja obra científica notabilizou-se desde cedo. De fato, não faltam exemplos de arqueólogos nesta situação, mas há que se considerar, em primeiro lugar, que nem todos aqueles que obtiveram título no exterior se notabilizaram por publicarem e formarem pesquisadores, quando voltaram ao Brasil, quando mais não fosse porque o sistema burocrático não incentivava que o fizessem (cf. exemplos em Funari 1997b). Não se trata, pois, de obter um título no exterior, algo não tão difícil, mas ser capaz de produzir e interagir com a ciência universal e isto poucos que foram ao exterior o fizeram. Em segundo lugar, titular-se no Brasil não exclui a preocupação em atuar na ciência internacional, como diversos exemplos em nosso meio arqueológico estão a demonstrar. Ademais, a solução dos títulos obtidos no exterior, estratégia ainda adotada em diversos países, que mandam seus melhores arqueólogos para cursarem a pós fora do país, não pode abranger um grande número de estudiosos, o que 133 dificulta a formação de massa crítica, indispensável para que a ciência, de nível internacional, possa ser produzida em nosso próprio meio. Como quer que seja, objetivo primeiro dos cursos de pós-gradudação que formarão arqueólogos só pode ser inserir seus quadros profissionais e seus alunos na ciência universal, utilizando-se, entre outros recursos, das chamadas bolsas sanduíche (estágios de alguns meses no exterior), dos convênios de cooperação internacional, do patrocínio da vinda de professores estrangeiros. Neste sentido, a Arqueologia nacional avançou de forma significativa, pois não poucos arqueólogos estrangeiros têm estado em nosso país, ensinando graças ao apoio de órgãos brasileiros, como o CNPq e a FAPESP 15 e órgãos internacionais. Muitos jovens arqueólogos têm tido a oportunidade de estagiar no exterior e a inserção da Arqueologia brasileira no contexto internacional, em poucos anos, aumentou significativamente16. Após esta longa digressão, pode voltar-se à quintessência anglo-saxônica: the proof of the pudding is in the eating. Tornar-se arqueólogo, como, de resto, tornar-se um verdadeiro intelectual, em geral, depende da consciência de que nada substitui o conhecimento e que este não se confunde com poder burocrático. Os cursos de formação de arqueólogos, cada vez mais, têm tido que se adequar aos critérios de mérito, universais, como é o caso da publicação das pesquisas, seu debate nas revistas arbitradas estrangeiras. Exemplos na Arqueologia brasileira não faltam. Tornar-se arqueólogo também implica reconhecer que esta ciência tem sido reacionária, cultuando explicitamente as elites, explorando, muitas vezes, as maiorias e minorias oprimidas em benefício nada científico e puramente monetário, como é o caso, em muitas ocasiões, de bem pagas atividades de campo financiadas por grandes empresas 17. Contudo, não há pesquisa, nem mesmo pré-histórica, que esteja fora dos interesses da sociedade (Veit 1989: 50) e a Arqueologia pode ser profundamente humanista (Heckenberger, Neves e Peterson 1998: 83), particularmente relevante para uma sociedade multicultural (Giuliani 1995: 91), sempre que atue com o povo (McGuire 1994: 830). O engajamento do intelectual não lhe subtrai qualquer conhecimento, como alerta Pierre Bourdieu (1989: 59; cf. Meyer 1990: 135-6), ao contrário, pois “conhecer” é “saber com” os outros 18. Tornar-se arqueólogo inclui, assim, saber que não há trabalho arqueológico que não implique em patrimônio e em socialização do patrimônio e do conhecimento (Tamanini 1998). Tornar-se arqueólogo consiste em saber que qualquer escavação deve tornar-se uma publicação, acessível à comunidade científica. Significa saber que os artefatos não podem ficar abarrotando os depósitos, inéditos. Para tanto, em diversos países, há regulamentos públicos 134 que apenas permitem que os arqueólogos desenvolvam novos projetos se publicarem, tanto o relato da escavação, quanto o material arqueológico recolhido. Tornar-se arqueólogo implica em considerar que a patrimonialização dos objetos faz parte integrante do ofício arqueológico 19. Neste sentido, a formação do arqueólogo, em nosso meio, ainda é muito deficitária, pois pouca atenção se tem dado, em termos estruturais, a esses aspectos, considerados, às vezes, estranhos à própria disciplina, enquanto, mundo afora, a Arqueologia pública se encontra em expansão e a Arqueologia e a Educação não são mais dissociáveis (cf. Funari 1994; Funari 1996, ambos com extensa literatura). Tornar-se arqueólogo no Brasil hoje, portanto, apresenta diversos caminhos possíveis (QUADRO). Para o jovem iniciante, as perspectivas são muito variadas, de acordo com as escolhas que venha a efetuar. Tornar-se arqueólogo acadêmico, objeto primeiro deste artigo, não promete uma remuneração fabulosa, mas oferece oportunidades excepcionais para refletir sobre a sociedade, para agir com a comunidade em prol tanto da preservação do passado como para a transformação do presente (e.g. Tomazela 1999). Permite que se intervenha na Educação, fazendo com que milhões de brasileiros tenham um contato mais profundo e menos parcial com sua própria História. Incentiva os futuros arqueólogos a integrarem-se à ciência mundial, tornando seus contatos com o exterior uma experiência dinâmica. Assim, apesar dos percalços e das dificuldades, pode concluir-se que, em aceitando os seus desafios, tornar-se arqueólogo acadêmico, no Brasil, abre horizontes e oferece oportunidades únicas. QUADRO COMO TORNAR-SE ARQUEÓLOGO PROFISSIONAL NO BRASIL EM 1999 I. PRÉ-UNIVERSITÁRIO: 1.VOLUNTARIADO EM PROJETOS DE PESQUISA 2. VOLUNTARIADO EM MUSEUS E OUTRAS INSTITUIÇÕES 135 - VANTAGENS E DESVANTAGENS: DESPERTAR O GOSTO PELO ESTUDO DA CULTURA MATERIAL, MAS POSSIBILIDADE DE SE DECEPCIONAR POR DEFICIÊNCIA NA FORMAÇÃO ACADÊMICA II. UNIVERSITÁRIO: 1. GRADUAÇÃO: A. EM ARQUEOLOGIA (CURSO NÃO RECONHECIDO PELO MEC) - VANTAGENS E DESVANTAGENS: ESPECIALIZAÇÃO PRECOCE, POUCO CONTATO COM ÁREAS AFINS B. EM DISCIPLINA UNIVERSITÁRIA RELACIONADA (HISTÓRIA, ANTROPOLOGIA, BIOLOGIA, SOCIOLOGIA, GEOGRAFIA, LETRAS, ENTRE OUTRAS) - VANTAGENS E DESVANTAGENS: CONTATO COM ÁREAS RELEVANTES DA CIÊNCIA, ESPECIALIZAÇÃO MAIS TARDIA 2. PÓS-GRADUAÇÃO: A. EM ARQUEOLOGIA - VANTAGENS E DESVANTAGENS: ESPECIALIZAÇÃO, MENOR ÊNFASE NAS CIÊNCIAS AFINS B. EM PROGRAMA DE ÁREA RELACIONADA - VANTAGENS E DESVANTAGENS: CONTATO COM ÁREAS RELEVANTES DA CIÊNCIA, ESPECIALIZAÇÃO MAIS TARDIA III. PERSPECTIVAS PROFISSIONAIS: 1. NA ACADEMIA - VANTAGENS E DESVANTAGENS: PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO, POSSIBILIDADE DE DESENVOLVIMENTO DE PROJETOS DE ÂMBITO INTERNACIONAL, MAS OS SALÁRIOS NÃO SÃO ELEVADOS 2. EM MUSEUS, INSTITUIÇÕES PATRIMÔNIO E OUTRAS 136 - VANTAGENS E DESVANTAGENS: IMPORTÂNCIA SOCIAL DA ATIVIDADE DO ARQUEÓLOGO, MAS POUCO INCENTIVO À PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO E BAIXOS SALÁRIOS 3. NA CONSULTORIA (ARQUEOLOGIA DE CONTRATO) - VANTAGENS E DESVANTAGENS: RENDA ELEVADA, MAS POUCO INCENTIVO À PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO E RESTRIÇÕES À CRÍTICA SOCIAL AGRADECIMENTOS: Agradeço aos seguintes colegas: Warwick Bray, Adriana Schimdt Dias, Fábio Faversani, Norberto Luiz Guarinello, Siân Jones, Alexandros-Phaidon Lagopoulos, Randall McGuire, Daniel Miller, Walter Alves Neves, Francisco Noelli, Nanci Vieira Oliveira, Laurent Olivier, André Prous, Michael Shanks, Elizabete Tamanini, Cristopher Tilley, Bruce G. Trigger. A responsabilidade pelas idéias, naturalmente, restringe-se ao autor. 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A cassação de Paulo Duarte e seu afastamento da direção do Instituto de Pré-História, em 1969, as sucessivas reuniões de Betty Meggers e Clifford Evans e as autoridades políticas, não só acadêmicas, impostos pela ditadura, o apoio oficial de órgãos do Estado, como o 1 142 CNPq, a ascenção acadêmica, com destaque na Arqueologia, de personagens cuja vinculação com altos hierarcas do regime militar era explícita, até mesmo por laços matrimoniais, monstram que não houve politização da disciplina, mas uma explícita relação, em nada científica, entre arqueólogos e o poder político discricionário. Neste sentido, não se pode entender o uso de um adjetivo como “falsa” senão como uma tentativa de impor, apenas com recursos discursivos apodíticos, um ponto de vista que serve para “livrar a cara” daqueles que estiveram profundamente envolvidos com o arbítrio. Sobre o poder do esprit de corps de intelectuais que participaram de regimes de força, veja-se o caso de Vichy, estudado por Sonia Combe (1996), em diversos aspectos similar à situação brasileira. Suas palavras conclusivas merecem ser citadas, referindose aos intelectuais: unless they are careful, run the risk of letting themselves be guided by ‘functional imperatives serving both the production of consensus and social integration’. This was Jürgen Habermas’ warning warning to German historians. He was a non-historian, as his opponents never stopped emphasizing, whose vigilance had launched the Historikerstreit and who, on that occasion, was surprised to discover among scientists the attitudes of ‘political men engaged in conflict’ (Habermas 1988: 57). 2 Cf. Schmitz (1989: 47): “Faz pouco mais de vinte anos que a Arqueologia brasileira começou a receber verbas públicas e a desenvolver ambiciosos programas exploratórios, acompanhados de um treinamento mais orgânico do pessoal”; Dias (1995: 35): “A implantação do Programa representou um salto quantitativo e qualitativo para a Arqueologia Brasileira. Sua implementação possibilitou que, em apenas cinco anos, fossem levantados mais de 1500 novos sítios arqueológicos, enquadrados em um modelo cronológico e espacial de que carecia a Pré-História brasileira... O Pronapa também foi responsável por fomentar a multiplicação de centros de pesquisa arqueológica no país, que passaram a formar um número cada vez maior de pesquisadores qualificados”; compare-se com Lewgoy (1997: 248), Noelli (1999), neste artigo. Diversos arqueólogos engajaram-se no discurso do poder, saudando o regime militar e seu desenvolvimentismo; cf. (Meneses 1968: 43) “a importância que se vem atribuindo (sc. nos anos imediatamente anteriores a 1968) à Universidade como fator de desenvolvimento”. 3 Cf. Lewgoy (1997: 248): “Pelos depoimentos de nossos informantes, percebemos que os ensinamentos passados pelos representantes do Smithsonian resumiram-se a técnicas de coleta e interpretação de dados, tendo sido desprezados deste intercâmbio a oferta global de orientações teórico-metodológicas, bem como o espectro de problemáticas de pesquisa disponíveis nos Estados Unidos à época”. 4 Neves (1998: 628): no excavation profiles, or the actual artefact composition of each leve are presented. One has to wait the full publication of the Pronapaba reports”. Note-se que as pesquisas na Amazônia, referidas por Neves, estão completando trinta anos! 5 A importância da compilação de corpora era já bastante conhecida na Arqueologia européia, como ressalta Wheeler (1956: 211): The advantages of a scholarly corpus or yardstick need no further emphasis and the extension of the corpus-system is certainly no less urgent now than it was in Petrie’s day. Haiganuch Sarian, há anos, tem propugnado a necessidade de se publicarem corpora também para o material arqueológico préhistórico brasileiro (sobre o papel de Sarian na formação de arqueólogos brasileiros, cf. Funari 1997b). 6 Prous (1994: 20) descreve a Sociedade de Arqueologia Brasileira com palavras fortes: SAB, dont la structure hiérarchisée a permis de contrôler les destinées de l’archéologie du pays. Um tal domínio não se entenderei fora do contexto de uma sociedade hierarquizada, sob jugo de uma ditadura; cf. Pereira (1998: 64). 7 Cf. Neves (1988: 209): “É evidente que, nesse caso, os centros de formação domésticos acabam funcionando justamente ao contrário, ou seja, acabam funcionando como um instrumento vil de perpetuação do modelo epistemológico hoje vigente na Arqueologia brasileira”; sobre os limites da liberdade acadêmica no Brasil, em geral, consulte-se Funari (1999a; 1999b); cf. Funari 1988c. 8 Cf. Milton Santos (1999): “A institucionalização crescente da vida universitária acaba por forjar uma teia, cada dia mais sólida e visível, em que o trabalho rasteiro é deixado a alguns assessores, que recrutam subserviências no baixo e médio clero, editando medidas ditas saneadoras da administração e das finanças, cujo resultado final é a limitação à liberdade do pensar e do dizer, enquanto, espertamente, autoridades superiores, cada vez mais comprometidas com os meios e mais descompromissadas com as finalidades da educação, inundam o mercado com discursos eloqüentes, mas vazios”. 9 Cf. Wolfram (1986: 9): Der Begriff ‘historierende’ Archäologie zur Beziechnung der Archäologue jener Jarhzehnte (1920 bis 1968) wurde gewählte, da V. G. Childe unde seine Generation die Ansicht vertraten, die Archäologie sei Teil der Geschichtswissenschaften um Ihr Ziel die Interpretation bzw. Rekonstruktion einzelner Ereignisse in der Vergangenheit. 10 Cf. Erich Fromm (1969: 15): Ideas have their roots in the real life of society. 143 11 Um exemplo bastará: a Arqueologia espacial, iniciada, com este nome, na década de 1960 e hoje travestida de Arqueologia da paisagem muito tem a interagir com a Semiótica do espaço (cf. Lagopoulos 1998). 12 Entenda-se teoria, à maneira dos gregos, em seu sentido amplo, englobando tanto grandes quadros interpretativos, como mais prosaicas explicações, como as middle range theories; cf. crítica a estas últimas, em Wehler (1979a:17): Jedermann wird vermutlich der Meinung beipflichten können, dass das Wort ‘Theorie’ in den letzten Jahren eine inflationäre Aufblähung erlebt hat. Nicht selten ist es an die Stelle von ‘plausibler Interpretation’ getreten, hat manchmal sogar nur ‘These’ gemeint oder genau das bezeichnet, was bei Droysen eine mehr oder minder gute ‘Fragestellung’ geheissen hätte. 13 Cf. Wehler (1979b: 60): Das in der historischen Erzählung wenigstens zum Teil miteingebaute Erklärungsangebot finde ich im Vergleich mit expliziter, diskussionsfähiger historischer Theoriebildung wit unterlegen. In der Tat: the proof of the pie is in the eating. 14 Cf. Olivier (1999a): En ce qui me concerne, j’utilize l’Anglais comme ‘lingua franca’ qu’elle est désormais; o jornal da ADUSP, em seu número de julho de 1998, p. 56, reproduziu uma sintomática notícia da Nature (9/4/98), que seria bastante pertinente ao caso brasileiro e que, por isso, merece ser transcrita: “Novo sistema de avaliação reduz o poder dos ‘barões da ciência’ na Itália. O novo sistema intituído na Itália tem privilegiado a qualidade dos projetos e reduziu bastante a pulverização de recursos que gerava uma distribuição ampla e, conseqüentemente, escassa de recursos por grupo de pesquisa. Alguns nomes bem conhecidos não conseguiram, pela primeira vez, renovar seus auxílios por falta de mérito científico. Os pedidos de auxílio devem ser apresentados tanto em inglês como em italiano, de maneira a permitir a participação de consultores externos” (grifo acrescentado). 15 Um bom exemplo, recente e entre outros, refere-se à vinda de Siân Jones, com apoio da FAPESP e da British Academy, tendo ensinado na pós-graduação da UNICAMP, cujos alunos puderam tomar contato com obras suas inéditas, como seu livro, publicado em 1997, ano em que esteve aqui. Desta forma, pôde discutirse uma obra cujas qualidades fariam com que fosse, em menos de dois anos, resenhada nas principais revistas internacionais e brasileiras. 16 Em 1991, terminava artigo constatando que três passos se faziam necessários: 1. To know, debate, exchange ideas and integrate archaeology with other social sciences; 2. To integrate Brazilian archaeology with archaeology as practised everywhere else in the world; 3. To adopt a Code of Ethics...to prevent archaeology being used against indigenous minorities and other oppressed people, and to prevent the return of political persecution within or outside academic life (Funari 1991: 128; cf. em castelhano, Funari 1992: 64-65). 17 Trata-se de algo universal, como assinalaram McGuire e Walker (1999), mas cujos contornos, em uma sociedade tão desigual como a brasileira, tornam-se dramáticos. Recentemente, Noelli (e.g. 1994;1995;1996c) tem produzido diversos estudos contundentes a respeito. Em um artigo sobre a formação do arqueólogo no Brasil, não caberia desenvolver este tema, que merece uma reflexão específica. Registre-se, no entanto, que o único critério universalmente aceito para a chamada Arqueologia de Contrato consiste na produção científica que deve resultar de qualquer atividade contratada por uma empresa, o que nem sempre ocorre no Brasil. A formação de iniciantes na Arqueologia nesse ambiente pode ser, portanto, bastante inadequada, pois o que se tem que aprender é a produzir ciência, o que nem sempre é o caso na Arqueologia de Contrato. 18 Conscientia, “saber com”, implica na interação social. 19 Um dos motivos de se desconsiderar o aspecto patrimonial da Arqueologia advém da noção estreita, defendida por alguns, de que “a Arqueologia não é o estudo de objetos, de coisas” (Meneses 1980: 6), o que descaracteriza a inevitável ligação entre a Arqueologia e a apropriação dos artefatos pela sociedade.