Cruzadas editoriais no Brasil e na Argentina:
o desenho industrial na perspectiva das revistas
Habitat e Mirante das Artes,&tc, nueva visión e
Summa [1950–1969]
Patricia Amorim
Tese de doutorado apresentada
ao Programa de Pós-Graduação em Design
da Universidade Federal de Pernambuco,
sob orientação da Profa. Dra. Virginia Cavalcanti.
Área de concentração
Design, Tecnologia e Cultura
Linha de pesquisa
Contextualização de Artefatos
Recife, fevereiro de 2015
1
Catalogação na fonte
Bibliotecária Maria Valéria Baltar de Abreu Vasconcelos, CRB4-439
S586c
Silva, Patricia Amorim Costa
Cruzadas editoriais no Brasil e na Argentina: o desenho industrial na
perspectiva das revistas Habitat e Mirante das Arts, & tc, nueva visión e
Summa [1950-1969] / Patricia Amorim Costa Silva. – Recife: O Autor,
2015.
241 f.: il.
Orientador: Virginia Pereira Cavalcanti.
Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco, CAC.
Design, 2015.
Inclui referências.
1. Desenho industrial. 2. Desenho (Projetos). 3. Publicações de
periódicos – Brasil. 4. Publicações de periódicos – Argentina. 5. Editores e
edição. 6. Desenho de revistas. I. Cavalcanti, Virginia Pereira (Orientador).
II. Titulo.
745.2
CDD (22.ed.)
UFPE (CAC 2015-88)
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESIGN
PARECER DA COMISSÃO EXAMINADORA
DE DEFESA DE TESE DE
DOUTORADO ACADÊMICO DE
Patricia Amorim Costa Silva
“Cruzadas editoriais no Brasil e na Argentina: o desenho industrial na perspectiva
das revistas Habitat e Mirante das Artes,&tc, Nueva Visión e Summa [1950–1969].”
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: Planejamento e Contextualização de Artefatos.
A comissão examinadora, composta pelos professores abaixo, considera o(a) candidato(a)
Patricia Amorim Costa Silva _______________.
Recife, 10 de fevereiro de 2015.
Profª. Kátia Medeiros de Araújo (UFPE)
Prof. Hans da Nóbrega Waechter (UFPE)
Prof. Laura Bezerra Martins (UFPE)
Profª. Ângela Freire Prysthon (UFPE)
Profª. Rejane de Moraes Rego (UFPE)
RESUMO
Cruzadas editoriais no Brasil e na Argentina:
o desenho industrial na perspectiva das revistas
Habitat e Mirante das Artes,&tc, nueva visión e Summa [1950–1969]
Esta tese procura contribuir com os estudos sobre a história do design no contexto
sul-americano, com foco no recorte regional que engloba Argentina e Brasil. Tendo
como objeto de estudo as revistas culturais brasileiras Habitat (1950–1965) e Mirante
das Artes,&tc (1967–1968), e as argentinas nueva visión (1951–1957) e Summa (1963–
1969), esta investigação observa como o tema desenho industrial foi abordado nos artigos dessas publicações, ao longo das décadas de 1950 e 1960, período de emergência
e institucionalização dessa atividade nesses países. Nesse sentido, com base nos métodos dialético, histórico e comparativo, elaborou-se um panorama de antecedentes
históricos, sociais, culturais e econômicos que conduziram à emergência do desenho
industrial no Brasil e na Argentina; levantou-se a trajetória individual de cada revista, com foco em seus artigos publicados sobre o tema desenho industrial, considerando os aspectos conceitual, educacional, profissional e institucional dessa atividade; e
comparou-se essas abordagens, no intuito de identificar os principais tópicos levantados. Acredita-se que mais do que captar, reportar, comentar e analisar os fatos e
questões relacionados ao desenvolvimento do desenho industrial nesses países, essas
publicações exerceram papel ativo na própria configuração desse campo.
Palavras-chave
Desenho industrial; design; revista; Brasil; Argentina; história do design.
3
RESUMEN
Cruzadas editoriales en Brasil y la Argentina:
diseño industrial desde la mirada de las revistas
Habitat y Mirante das Artes,&tc, nueva vision y Summa [1950-1969]
Esta tesis intenta contribuir a los estudios sobre la historia del diseño en el contexto
de América del Sur, centrándose en el marco regional que incluye a Argentina y
Brasil. Habiendo elegido como objeto de estudio las revistas culturales brasileñas
Habitat (1950–1965) y Mirante das Artes,&tc (1967–1968), y las argentinas nueva visión (1951–1957) y Summa (1963–1969), esta investigación analiza cómo el tema del
diseño industrial se abordó en los artículos de estas publicaciones, en las décadas de
1950 y 1960, período de la emergencia y la institucionalización de esta actividad en
estos países. En este sentido, con base en los métodos dialéctico, histórico y comparativo, se elaboró un resumen de los antecedentes históricos, sociales, culturales y económicos que llevaron a la aparición del diseño industrial en Brasil y la Argentina; se
examinó la trayectoria individual de cada revista, centrándose en sus artículos publicados sobre el tema del diseño industrial, teniendo en cuenta los aspectos conceptuales, educativos, profesionales e institucionales de esta actividad; y se comparó estos
enfoques con el fin de identificar los principales temas planteados. Se cree que más
de la captura, el informe, la revisión y el análisis de los hechos y las cuestiones relacionadas con el desarrollo del diseño industrial en estos países, estas publicaciones
han tenido un papel activo en la propia conformación de este campo.
Palabras clave
Diseño industrial; diseño; revista; Brasil; Argentina; historia del diseño.
4
ABSTRACT
Editorial crusades in Brazil and Argentina:
industrial design and magazines Habitat and Mirante das Artes,&tc,
nueva visión and Summa [1950–1969]
This thesis aims to contribute to the studies on the history of design in South America, focusing on a regional framework set by Argentina and Brazil. The objects of
study here are Brazilian cultural magazines Habitat (1950–1965) and Mirante das
Artes,&tc (1967–1968), and the Argentine nueva visión (1951–1957) and Summa
(1963–1969). The purpose of this investigation is to evaluate how the subject industrial design was addressed in the articles published by these periodicals, over the
1950s and 1960s, period of emergency and institutionalization of this activity in these countries. In that sense, based on the dialectical, historical and comparative
methods, an overview of historical, social, cultural and economic factors that led to
the emergence of industrial design in Brazil and Argentina was elaborated. The individual trajectory of each magazine – focusing on your articles published on the
subject industrial design, considering the conceptual, educational, professional and
institutional aspects of this activity – was drawn. And, finally, these approaches
were compared in order to identify the main topics raised. It is believed that more
than capture, report, review and analyze the facts and issues related to this subject
in these countries, these magazines have had an active role in shaping the very own
industrial design field.
Keywords
Industrial design; design; magazine; Brazil; Argentina; design history.
5
LISTA DE SIGLAS
AACI Asociación Arte Concreto-Invención
ABDI Associação Brasileira de Desenho Industrial
ADIA Asociación Diseñadores Industriales Argentinos
AICA Associação Internacional de Críticos de Arte
CeDInCI Centro de Documentación e Investigación de la Cultura de Izquierdas
en la Argentina
CIAM Congresso Internacional de Arquitetura Moderna
CIDI Centro de Investigación de Diseño Industrial
DPHAN Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
ENBA Escola Nacional de Belas Artes
ESDI Escola Superior de Desenho Industrial
ESPM Escola Superior de Propaganda e Marketing
FAAP Fundação Armando Álvares Penteado
FADU UBA Facultad de Arquitectura, Diseño y Urbanismo de la UBA
FAU UBA Facultad de Arquitectura y Urbanismo de la UBA, atualmente FADU UBA
FAU USP Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP c
FIESP Federação das Indústrias do Estado de São Paulo
HfG–Ulm Hochschule für Gestaltung Ulm
IAB Instituto de Arquitetos do Brasil
IAC Instituto de Arte Contemporânea
ICSID International Council of Societies of Industrial Design
INTI Instituto Nacional de Tecnología Industrial
IPHAN Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
MAC Museu de Arte Contemporânea
MAM–RJ Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro
MAM–SP Museu de Arte Moderna de São Paulo
MAMB Museu de Arte Moderna da Bahia
MASP Museu de Arte de São Paulo
MIAR Movimento Italiano para a Arquitetura Racional
MoMA Museu de Arte Moderna de Nova York
OAM Organización de Arquitectura Moderna
OEA Organização dos Estados Americanos
SCA Sociedad Central de Arquitectos de Buenos Aires
SPHAN Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
UBA Universidad de Buenos Aires
UCR Unión Cívica Radical
UD Feira de Utilidades Domésticas
UNCuyo Universidad Nacional de Cuyo
UNLP Universidad Nacional de La Plata
USP Universidade de São Paulo
YPF Yacimientos Petrolíferos Fiscales
9
SUMÁRIO
015 CRONOLOGIA COMPARADA DAS REVISTAS
016
INTRODUÇÃO
034 CAPÍTULO 1 Argentina e Brasil: modernos na periferia do mundo
082 CAPÍTULO 2 Habitat (1950–1965): paixão raciocinada para a forma
142 CAPÍTULO 3 Mirante das Artes,&tc (1967–1968): uma revista anormal
166
CAPÍTULO 4
nueva visión (1951–1957): síntese das artes e desenho industrial
195
CAPÍTULO 5
Summa (1963–1969): nuevas formas para tiempos nuevos
221
CAPÍTULO 6
Revistas em diálogo: versões e interpretações
232 CONSIDERAÇÕES FINAIS
236
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
14
INTRODUÇÃO
A pulsão de modernidade instalada no Brasil e na Argentina, na primeira metade
do século xx, revirou corações e mentes ao incitar novas ideias e novos modos de
percepção. O mundo das formas, por sua vez, respondeu generosamente a esses estímulos, tornando essa modernidade palpável e sensível aos olhos através de projetos em concreto, aço e vidro, e também de tinta sobre papel. Essas construções modernas – os edifícios e as revistas – foram, e continuam sendo, emblemas de uma
vida desenhada para ser melhor. Décadas depois, mesmo na vigência de outras novas ideias e percepções, e na certeza de que o que se pensou moderno no passado
nem sempre resultou proveitoso, muitas dessas construções persistem. Em sua materialidade, denunciam a passagem do tempo e a obsolescência de suas convicções,
mas ao serem abertos, a despeito do brise-soleil1 empoeirado ou da lombada carcomida, ainda exalam a potência de suas linhas. Vasculhemos, portanto, nas páginas
de Habitat e nueva visión2, Mirante das Artes,&tc e Summa, os registros de uma ideia
que, a partir dos anos 1950, nesses dois países sul-americanos, seria uma das epítomes da vontade modernista: o desenho industrial.
1
2
Dispositivo arquitetônico utilizado para impedir a incidência direta de radiação solar nos interiores de um edifício.
Nesta tese, o nome da revista nueva visión é escrito em minúsculas, de acordo com sua grafia original.
16
Do Capibaribe ao Río de la Plata
A origem desta pesquisa decorre da minha3 experiência no mestrado no Departamento de Design da ufpe, concluído em 2007, onde busquei investigar a representação jornalística do design no Brasil elaborada por uma revista de atualidades4,
também sob orientação da professora Virginia Cavalcanti. Esse interesse foi reflexo
de minha atuação profissional, com foco na área editorial, direcionada pela formação acadêmica que tive em jornalismo e em design gráfico.
Desde então, acompanhar o comentário sobre o design brasileiro na imprensa,
dentro e fora do país, tornou-se um hábito para mim. Além disso, passei a colaborar
com a revista Continente e o suplemento cultural Pernambuco, escrevendo sobre o
tema.
A intenção de estudar o design no Brasil tendo como pano de fundo a América
do Sul, entretanto, surgiu ao descobrir o jornal argentino Página 12, o qual veicula
semanalmente um suplemento dedicado ao design e à arquitetura, o m2. Em sua
edição de 15 de novembro de 2008, foi publicada a matéria Visiones pernambucanas,
assinada pela jornalista Luján Cambariere, a respeito dos eventos Revela Design
2008 e o Pernambuco Design do mesmo ano.
Esta semana, Recife, capital de Pernambuco, se mostrou ao Nordeste. Dois eventos
coincidiram – Revela Design 2008 e a abertura do Salão Pernambuco Design 2008 –
para direcionar o olhar a uma região que, há algum tempo, começa a brilhar também
por seu design. Muito, ao que parece, tem a ver com um passado adornado pela herança de grandes gráficos, patrimônio histórico do qual se orgulha toda a América Latina, com ícones como Aloisio Magalhães. Tem a ver também com um contexto explorado de mil maneiras, tal como interações entre designers e artesãos em uma das
regiões com as mais virtuosas comunidades indígenas e quilombolas (comunidades
remanescentes de escravos fugidos) do Brasil. E por um presente que se afirma na
convicção e decisão do Estado de que o design é uma ferramenta-chave para o desenvolvimento. E aí se dá mais um fato insólito para nós, já que João Roberto Peixe, designer gráfico de renome, é nada menos que o Secretário de Cultura, o qual, durante o
período do evento, foi visto sentado entre o público, reafirmando uma política cultural caracterizada pela reflexão e o debate, que vai muito além da simples promoção
de atividades ou a mesquinha saudação para a foto no dia da abertura. Para aprender
e copiar. Sim, aqui vale (a cópia, eu digo).5
3
O discurso em primeira pessoa é empregado nesta parte da Introdução como forma de melhor contextualizar o amadurecimento da problemática investigada nesta pesquisa, processo também relacionado à minha trajetória pessoal.
4
[AMORIM COSTA] SILVA, Patricia. Irritando Philippe Starck: a representação jornalística do design no Brasil contemporâneo. Recife, UFPE, 2007. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Design.
5
“Esta semana se mostró Recife, capital de Pernambuco, al nordeste. Dos eventos coincidieron – Revela Design 2008 y la
inauguración del Salón de Diseño de Pernambuco PE Design 2008 – para posar la mirada sobre una región que de un tiem-
17
Surpreendida, na época, com a disposição do jornal portenho em conhecer e divulgar o design pernambucano – hábito pouco frequente entre os periódicos locais e
menos ainda entre os do eixo Rio-São Paulo – percebi ali indícios de uma ponte entre Argentina e Brasil, a meu ver, pouco contemplada por pesquisas acadêmicas no
âmbito do design.
O fato é que em 2010, ao ingressar no doutorado em design na ufpe, propus
estudar comparativamente a crítica de design nesses dois países num recorte contemporâneo. Em pouco tempo, entretanto, ao tentar levantar uma bibliografia a
respeito de uma possível história do relato jornalístico e da crítica de design no Brasil e na Argentina, me deparei com pouquíssimos dados, pulverizados em textos dedicados a explorar outras questões. Diante dessa lacuna, em concordância com minha orientadora, dei início à reconfiguração dos objetivos da pesquisa, os quais passaram a considerar o momento de instalação do design nesses dois países e a identificação de periódicos que tivessem acompanhado esse processo em seus artigos. Desse modo, esperava-se reunir subsídios para se começar a delinear, dentro de uma
perspectiva histórica, uma narrativa do design elaborada por impressos editoriais
que levasse em conta esse específico contexto regional dentro da América Latina, e
não apenas o Brasil ou a Argentina isoladamente.
O refinamento desses objetivos foi possibilitado por várias experiências. Ainda
em abril de 2010, visitei Buenos Aires pela primeira vez, onde, na Facultad de Arquitectura y Urbanismo da Universidad de Buenos Aires (fadu uba), conversei com
a professora Verónica Devalle, autora do livro La travesía de la forma: emergencia y
consolidación del diseño gráfico (1948-1984). Este trabalho, publicado em 2009, é
um estudo exaustivo da origem e desenvolvimento do design gráfico na Argentina,
com espaço para uma análise de conteúdo da revista nueva visión. Nosso encontro,
bem como informações em seu livro, reforçaram a pertinência do novo recorte temporal estabelecido para a pesquisa – os anos 1950 e 1960 – assim como enfatizaram a
ocorrência de interações e colaborações entre artistas e críticos de arte brasileiros e
argentinos, em torno do processo de instauração do design moderno nesses países.
Tal processo incluiu a criação de revistas e a publicação de textos abordando os dipo a esta parte empieza a brillar también por su diseño. Mucho, parece, tiene que ver un pasado engalanado con la herencia
de grandes gráficos, patrimonio histórico del que se enorgullece toda Latinoamérica con íconos como Aloísio Magalhaes.
También por un contexto aprovechado de mil maneras, como es el caso de los cruces entre diseñadores y artesanos en una de
las regiones con las comunidades más virtuosas de aborígenes y quilombolas (ex comunidades de esclavos) de todo Brasil. Y
por un presente que se afirma en la convicción y decisión del Estado de que el diseño es una herramienta clave para el desarrollo. Donde se da otro hecho insólito para nosotros, que es que nada menos que el secretario de Cultura, Joao Roberto Peixe,
sea un reconocido diseñador gráfico, a quien, mientras duró el evento, se lo pudo ver sentado como uno más entre el público,
reafirmando una política cultural caracterizada por la reflexión y el debate, que va mucho más allá de la simple promoción
de actividades o el mezquino saludo para la foto el día de la inauguración. Para aprender y copiar. Sí, acá vale (la copia,
digo).” CAMBARIERE, Luján. Visiones pernambucanas. Página 12. m2. Buenos Aires. 15 nov. 2008. Disponível em:
http://www.pagina12.com.ar/diario/suplementos/m2/10-1536-2008-11-15.html. Acesso em: 15 dez. 2008.
18
versos aspectos dessa nova atividade vinculada à produção industrial e sua pertinência frente às necessidades das metrópoles emergentes que eram Buenos Aires e São
Paulo naquele período.
As revistas, desde o início, constituiriam o objeto desta pesquisa, as quais,
também por conta de sua periodicidade espaçada, costumam agregar à transmissão
de notícias funções de análise e reflexão sobre fatos e assuntos.6 Nelas, portanto,
acreditava-se que seria possível encontrar um acompanhamento mais detido e sistemático a respeito do tema, diferentemente dos jornais, de escopo amplo e pautados pela urgência dos acontecimentos. Assim, com base na literatura que advoga a
relação ancestral entre arquitetura e design7, elaborei uma sondagem de revistas
próximas ou ligadas a essas áreas de projeto que circularam no Brasil e na Argentina nas décadas de 1950 e 1960. Esse agrupamento prévio foi constituído dos seguintes títulos: Acrópole (1938–1971), bac Brasil: Arquitetura Contemporânea (1953–
1958), Módulo (1955–1965), Habitat (1950–1965), ad Arquitetura e Decoração
(1953–1958), Arquitetura e Engenharia (1946–1965), Brasília (1957–1961), Arquitetura (1961–1968), ac Arquitetura e Construção (1966–1967) e Mirante das Artes,&tc
(1967–1968). A essas, somaram-se as revistas argentinas Nuestra Arquitectura (1929–
1986), nueva visión (1951–1957), Summa (1963–1992), a&p Arquitectura y Planeamiento (1963–1968), Cuadernos summa-nueva visión (1967–1975). Entretanto, mesmo
tendo a arquitetura como tema essencial, essa era uma seleção de revistas bastante
heterogênea e ampla, o que demandou uma melhor compreensão do problema da
pesquisa para a definição dos títulos a serem analisados em definitivo.
Em julho de 2011, já tendo me transferido para São Paulo – onde continuei a
atuar como professora de História do Design –, fiz uma segunda viagem a Buenos
Aires, dessa vez com a intenção de mapear arquivos para a realização da pesquisa de
campo e reunir bibliografia sobre o desenho industrial na Argentina. Nessa ocasião,
visitei o Centro de Documentación e Investigación de la Cultura de Izquierdas en la
Argentina (cedinci), onde pude folhear e fotografar os nove números da revista nueva visión, estabelecendo assim contato com parte do material selecionado. Em São
Paulo, seguia em paralelo com a leitura exploratória das revistas brasileiras nas bibliotecas da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo
(fau usp) e do Museu de Arte de São Paulo (masp). Este contato inicial e extremamente rico, com todas essas revistas, deixou claro que o termo chave a ser emprega6
SCALZO, Marília. Jornalismo de revista. São Paulo: Contexto, 2004.
PEVSNER, Nikolaus. Origens da arquitetura moderna e do design. São Paulo: Martins Fontes, 2001; DROSTE, Magdalena. Bauhaus 1919–1933. Berlin: Taschen, 2004; FRAMPTON, Kenneth. História crítica da arquitetura moderna. São
Paulo: Martins Fontes, 2008.
7
19
do nesta investigação seria “desenho industrial”, com o equivalente “diseño industrial” nas publicações argentinas, dada a forma recorrente com que eram utilizados
para se referirem ao que, até então, eu preliminarmente denominava “design moderno”.
Também contribuíram para o amplo entendimento dessa problemática, o curso que fiz no Museu da Casa Brasileira, Arquitetura Moderna Brasileira e Cultura
Urbana no Século XX, ministrado por Guilherme Wisnik, em outubro de 2011. Já no
segundo semestre de 2012, cursei como aluna ouvinte a disciplina História Social do
Design no Brasil, na pós-graduação da fau usp, lecionada pelo professor Marcos da
Costa Braga. Ali, pude aprofundar o estudo sobre as relações entre design e arquitetura no Brasil, bem como sobre procedimentos de pesquisa em História do Design.
Também naquele ano, publiquei as primeiras ideias relativas a esta investigação no
International Conferences on Design History and Studies – icdhs 20128 e no Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design – p&d 20129.
Em dezembro de 2012, em busca de referências metodológicas para o estudo
de revistas concebidas dentro do espírito modernista, assisti à conferência Modernist
Magazines in the Americas: Points of Departure, no Rothermere American Institute
da Universidade de Oxford, na Inglaterra. O evento conciliou, em vários painéis,
pesquisadores do Reino Unido e dos Estados Unidos, dedicados à investigação de
revistas modernistas, a maioria delas literárias, publicadas entre o final do século
xix e início do século xx. Nesse encontro, além de ter acesso à antologia de ensaios
The Oxford Critical and Cultural History of Modernist Magazines, conheci o livro
Modernism in the magazines10, de Robert Scholes e Clifford Wulfman, o qual posteriormente eu utilizaria como um dos suportes ao aparato metodológico desta pesquisa.
À medida que esse processo avançava, as revistas brasileiras Módulo, Habitat,
ad Arquitetura e Decoração e Mirante das Artes,&tc, e as argentinas nueva visión e
Summa, emergiam como potenciais objetos de estudo. Tanto em função da ocorrência de artigos publicados sobre desenho industrial/diseño industrial, observada nas
leituras exploratórias, quanto das informações obtidas sobre essas revistas a partir
de trabalhos já publicados a seu respeito.
8
AMORIM, Patricia ; CAVALCANTI, Virginia. Modern design meets latin America: the role of pioneering design magazines Habitat and nueva visión in Brazil and Argentina. In: ICDHS 2012 - 8th Conference of the International
Committee for Design History & Design Studies, 2012, São Paulo. Design Frontiers - Territories, Concepts and Technologies. São Paulo: Blucher, 2012.
9
AMORIM, Patricia; CAVALCANTI, Virginia. Origens da crítica de design no Brasil e na Argentina: um panorama das
revistas especializadas em artes e arquitetura (1920-1950). In: 10 P&D Design Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design, 2012, São Luís. 2012.
10
SCHOLES, Robert; WULFMAN, Clifford. Modernism in the magazines: an introduction. Yale University, 2012.
20
Assim, em abril de 2013, em mais uma viagem a Buenos Aires11, concentreime em fotografar os exemplares de Summa, de 1963 a 1969, nas bibliotecas da fadu
uba e da Sociedad Central de Arquitectos (sca). Nesta oportunidade também tive
acesso a exemplares da revista Ulm, editada entre 1958 e 1968, pela Hochschule für
Gestaltung (hfg–ulm). Meses depois, tive a grata surpresa de poder adquirir, de um
casal de arquitetos argentinos, 23 edições de Summa, incluindo os números 2 a 15,
que demarcam o recorte de 1964 a 1969, em perfeito estado de conservação. Condição bem diferente do que encontrei em algumas das bibliotecas visitadas, onde muitas das revistas estão danificadas, sem a capa, a quarta capa ou páginas internas, às
vezes refiladas e encadernadas em grupo. Esse mesmo problema também foi levantado pelos pesquisadores reunidos na conferência de Oxford. Mais do que bemvinda será a digitalização desses materiais impressos e sua disponibilização online,
de modo a preservar os exemplares físicos, possibilitando a realização de futuras
pesquisas.
O traçado desta investigação
Com o desenrolar desse percurso, ganhou nitidez a problemática a ser investigada.
O desenvolvimento do desenho industrial no Brasil e na Argentina iniciou-se nos
anos 1950, em função do processo de industrialização em curso nos dois países, associado à propagação do projeto moderno na região. Essa afirmação baseia-se na sobreposição das perspectivas de diversos autores que estudaram o contexto argentino
e o brasileiro separadamente.12
Foram fatos importantes na trajetória do desenho industrial nesses dois países,
considerando também a década de 1960, o surgimento de estúdios e escritórios de
desenho industrial, a criação de escolas especializadas, a incorporação de parte desses profissionais nas indústrias locais, bem como a fundação de associações de classe
e de agência governamental de fomento. Nesse sentido, na década de 1950, compreendida aqui como período de emergência do desenho industrial na Argentina e no
Brasil, predominaram as primeiras iniciativas produtivas na área, com destaque para a atuação de arquitetos e artistas na confecção de mobiliário moderno. Já a década de 1960 testemunhou a criação de cursos superiores, o ingresso de profissionais
com formação especializada no mercado e a fundação de entidades classistas, carac11
Ao total, foram feitas seis viagens a Buenos Aires, entre 2010 e 2014, para a realização de pesquisas de campo e entrevistas.
12
NIEMEYER, Lucy. Design no Brasil: origens e instalação. Rio de Janeiro: 2AB, 2000; FERNÁNDEZ, Silvia &
BONSIEPE, Gui. Historia del diseño en América Latina y el Caribe: industrialización y comunicación visual para la
autonomia. São Paulo: Blucher, 2008; DEVALLE, Verónica. La travessia de la forma. Emergencia y consolidación del
diseño gráfico (1948–1984). Buenos Aires: Paidós, 2009; DE PONTI, Javier. Diseño industrial y comunicación visual en
Argentina. Entre la Universidad, la empresa y el Estado (1950–1970). Rosario: Prohistoria, 2012.
21
terizando-se como uma etapa de institucionalização do desenho industrial nesses
países. Exerce forte influência sobre esses desdobramentos na América do Sul, a
hfg–ulm, escola alemã de arquitetura e desenho industrial, em funcionamento entre 1953 e 1968, a qual, em sua origem, buscava inspiração no ensino de orientação
técnico-artística da Bauhaus, e que a partir do final da década de 1950 dirigiu-se a
uma abordagem cientificista.
No Brasil e na Argentina – com base principalmente em cidades como São
Paulo, Rio de Janeiro e Buenos Aires – revistas ligadas à arquitetura e às artes repercutiram e debateram esse fenômeno, constituindo um valioso repertório de fontes sobre o desenho industrial em fase de emergência e institucionalização. A importância desses impressos é ressaltada inclusive por conta da escassez, na época, de
livros publicados sobre o tema em tais países, e a força dos periódicos na circulação
de informações num instante em que, por exemplo, a televisão ainda dava seus
primeiros passos. Assim, a partir desse universo editorial, considerando o levantamento preliminar efetuado, quatro revistas se sobressaíram como ricas possibilidades de investigação em conjunto: Habitat e Mirante das Artes,&tc, no Brasil, e nueva
visión e Summa, na Argentina.
Habitat foi fundada em 1950, pelo jornalista e crítico de arte Pietro Maria
Bardi e sua esposa arquiteta Lina Bo Bardi, ambos de origem italiana, então líderes
intelectuais do imberbe masp. A revista fez parte do projeto de modernização cultural implementado pelo casal no país, o qual tinha o museu e as escolas ali criadas
como núcleo, dentre elas o Instituto de Arte Contemporânea (iac).13 Lá funcionou o
pioneiro curso de desenho industrial de orientação moderna no Brasil, dirigido por
Lina.14
nueva visión, contemporânea de Habitat, na Argentina, também refletiria as
expectativas a respeito da emergência dessa atividade projetual ligada à indústria
naquele país, a reboque da efervescente cena vanguardista portenha, animada pela
arte concreta.15 Essa publicação seria criada em 1951, pelo artista Tomás Maldonado,
em parceria com o pintor Alfredo Hlito e o então estudante de arquitetura Carlos
Méndez Mosquera.
O casal Bardi desvinculou-se de Habitat em 1954. Eles contribuiriam textos
esporadicamente até o encerramento do periódico, em 1965, o qual era conduzido
por Rodolfo Klein e Geraldo Serra. Durante seus 14 anos de existência, a revista,
13
STUCHI, Fabiana. Revista Habitat: um olhar moderno sobre os anos 50 em São Paulo. Dissertação de mestrado. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Universidade de São Paulo. São Paulo, 2007.
14
LEON, Ethel. IAC – Primeira escola de design do Brasil. São Paulo: Blucher, 2014.
15
DEVALLE, op.cit.
22
com foco editorial na arquitetura, manteve contato com diversas questões relacionadas ao desenho industrial no Brasil. nueva visión, por sua vez, deixou de circular
em 1957, época em que Maldonado – personagem central na evolução do campo do
desenho industrial na Argentina – já havia se estabelecido na Alemanha, como integrante do corpo docente da hfg–ulm.
Essas revistas surgiram em meio a articulações mais amplas de cariz modernista, contexto no qual as artes, a arquitetura e o desenho industrial desempenharam papel crucial. Seus fundadores, para além da concretização dessas empreitadas
editoriais, ocuparam posições determinantes no deslanche da trajetória dessa nova
atividade projetual em seus países, como se verá em detalhe mais adiante. Tais publicações inclusive chegaram a fazer menção uma à outra, aceno que pode ser entendido como um testemunho do intercâmbio entre artistas e intelectuais argentinos e brasileiros em torno de debates a respeito da forma na era industrial, no início
dos anos 1950.
Essas características, a meu ver, já as habilitariam a um estudo comparativo.
Entretanto, na década de 1960, duas novas revistas – Mirante das Artes,&tc e Summa – compartilhariam importantes vínculos com Habitat e nueva visión, suas predecessoras correspondentes, e ainda abordariam em seus textos o tema do desenho
industrial, então num momento posterior de assimilação nesses países.
Mirante das Artes,&tc também foi fundada por Pietro Maria Bardi, diretor do
masp. A revista circulou entre 1967 e 1968, mas não como uma publicação vinculada
ao museu, e sim à galeria de arte particular que Bardi mantinha desde 1966. Interessada na crítica cultural de amplo espectro – pintura, escultura, arquitetura, fotografia, cinema, música – Mirante das Artes,&tc fez das vicissitudes do desenho industrial no Brasil objeto de suas agudas considerações e provocações.
Em 1963, na Argentina, apareceria Summa. Carlos Méndez Mosquera, que na
década anterior havia integrado a equipe inicial de nueva visión, e que àquela altura
dividia-se entre a condução da agência de publicidade Cícero, a editora especializada Infinito e a atividade como docente universitário, lança a revista junto a um
grupo do qual também fazia parte sua esposa, a arquiteta Lala Méndez Mosquera. A
partir de 1966, Lala passaria a dirigir a publicação, cujo interesse na crônica da arquitetura argentina e latino-americana também abarcaria uma relevante cobertura
sobre o “diseño industrial” naquele país. Salienta-se ainda que, em pouco tempo,
antigos membros de nueva visión também integrariam esta redação.
Assim, o quadro analítico dessa pesquisa definiu-se. Ele consideraria não apenas os aspectos intrínsecos de cada revista – referente à publicação de artigos sobre o
23
tema do desenho industrial – mas também da consanguinidade entre esses dois pares de projetos editoriais, justificada, a princípio, pela presença em comum de alguns de seus principais integrantes. Personagens como Pietro Maria e Lina Bo Bardi, Tomás Maldonado, Carlos e Lala Méndez Mosquera, por exemplo, cada um a
seu modo, contribuíram nas dimensões projetual, educacional e do pensamento sobre o desenho industrial em seus países, e isso, em minha perspectiva, reveste essas
publicações com mais uma camada de significância. Habitat, nueva visión, Summa e
Mirante das Artes,&tc nasceram pelas mãos não só de observadores autorizados do
campo, mas de verdadeiros agentes que, por diferentes meios, ajudaram a dar sentido e forma ao percurso do desenho industrial durante boa parte dessas duas décadas
em questão.
Importa deixar claro que atualmente existem vários estudos notáveis a respeito da evolução do design moderno e industrial no Brasil e na Argentina, os quais
foram fundamentais para a realização deste trabalho. Entretanto, análises que se
apoiem nos conteúdos editoriais publicados por revistas16, enquadrando-as como objeto de estudo e não como mais uma das fontes de dados utilizadas, principalmente
sob um viés comparativo, não são tão frequentes se considerarmos o tema aqui proposto. Menos ainda sob um recorte onde periódicos que trataram discursivamente
do desenho industrial, a partir de distintos países latino-americanos, são postos em
diálogo. É nesse sentido, portanto, que esta tese busca contribuir: ao eleger o enfoque regional para a leitura dessa experiência comum entre Argentina e Brasil, colaborar para que possam melhor compreender um ao outro e também a si próprios.
O objetivo geral desta pesquisa é então assim enunciado: investigar como o
tema desenho industrial foi abordado por revistas culturais brasileiras e argentinas,
nas décadas de 1950 e 1960, tendo como objeto de estudo as publicações Habitat
(1950–1965) [fig.01], Mirante das Artes,&tc (1967–1968) [fig.02], nueva visión (1951–
1957) [fig.03] e Summa (1963–1969) [fig.04]. Em função dessa meta, foram estabelecidos os seguintes objetivos específicos: a) traçar um panorama de antecedentes históricos, sociais, culturais e econômicos que conduziram à emergência do desenho
industrial no Brasil e na Argentina no início da década de 1950; b) investigar a trajetória individual de cada revista, com foco em seus artigos publicados sobre o tema
desenho industrial, considerando os aspectos conceitual, educacional, profissional e
institucional dessa atividade; c) e comparar essas abordagens entre si, no intuito de
identificar os principais tópicos levantados por essas revistas em relação ao desenho
16
Destaca-se o trabalho de Milene Cara, que trata de definir historicamente a construção do campo do design no Brasil,
utilizando como uma das fontes a imprensa especializada. Ver CARA, Milene. Do desenho industrial ao design no Brasil:
uma bibliografia crítica para a disciplina. São Paulo: Blucher, 2010.
24
[fig.01] Revista Habitat, No 1, 1950. Fonte: Biblioteca
da FAU/USP. Reprodução: P. Amorim.
[fig.02] Revista Mirante das Artes,&tc, No 1, 1967.
Fonte: coleção particular. Reprodução: P. Amorim.
[fig.03] Revista nueva visión, No 1, 1953. Fonte:
CeDInCI. Reprodução: P. Amorim.
[fig.04] Revista Summa, No 1, 1963. Fonte: SCA. Reprodução: P. Amorim.
25
industrial na Argentina e no Brasil nas décadas de 1950 e 1960.
Em decorrência, as hipóteses aqui aventadas são as de que, nesses dois países
em questão, as quatro revistas introduziram e debateram fundamentos do desenho
industrial, educando sobre o tema em aspectos relacionados à formação e à prática
profissional, bem como apresentaram interesse e relataram sobre os desenvolvimentos do desenho industrial no país vizinho.
Os pressupostos conceituais
A problemática sobre a qual se debruça esta investigação evoca alguns conceitos
centrais, dentre eles a ideia de modernidade. De acordo com Harvey, ela envolve
tanto uma “implacável ruptura com todas e quaisquer condições históricas precedentes, como é caracterizada por um interminável processo de rupturas e fragmentações internas inerentes”17. O chamado “projeto da modernidade”, como denominou Jürgen Habermas, emerge na Europa durante o século xviii, alicerçado na fé
iluminista que pregava o domínio científico sobre a natureza, a ideia de progresso e
de emancipação humana, nutrida por doutrinas de igualdade, liberdade e razão
universal. No início do século xx, segundo Harvey, o avançar dessa condição irá implicar em reações culturais incitadas por fatores como a mecanização e a urbanização, os novos sistemas de transportes e comunicações, o consumo de massa, a moda e
a publicidade. Mais adiante, no segundo pós-guerra, esses modernismos serão assimilados pelo establishment, e o ideal de progresso e emancipação humana passam a
fazer parte da ordem político-econômica capitalista corporativa.
A crença “no progresso linear, nas verdades absolutas e no planejamento racional de
ordens sociais ideais” sob condições padronizadas de conhecimento e de produção era
particularmente forte. Por isso, o modernismo resultante era “positivista, tecnocêntrico e racionalista”, ao mesmo tempo que era imposto como a obra de uma elite de
vanguarda formada por planejadores, artistas, arquitetos, críticos e outros guardiães
do gosto refinado. A “modernização” de economias europeias ocorria velozmente, enquanto todo o impulso da política e do comércio internacionais era justificado como o
agente de um benevolente e progressista “processo de modernização” num Terceiro
Mundo atrasado.18
Planejamento e industrialização em larga escala foram algumas das soluções capitalistas para a reestruturação política econômica do segundo pós-guerra. Nesse sentido, a arquitetura exerceu papel de destaque, assim como o design moderno e indus-
17
18
HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992, p. 22.
Ibidem, p. 42.
26
trial. Com origem na necessidade de melhoria da qualidade estético-funcional da
produção industrializada no final do século xix, o design desenvolveu-se em paralelo à Nova Arquitetura, sendo também influenciado por correntes artísticas vanguardistas.19
A propósito, o termo “desenho industrial” aqui empregado – e seu equivalente em espanhol, “diseño industrial” –, justifica-se, de partida, como já dito, por ser a
nomenclatura predominante nas revistas pesquisadas. De acordo com a primeira
definição oficial elaborada pelo International Council of Societies of Industrial Design (icsid), de 1959, o desenho industrial dizia respeito à atividade profissional responsável por “determinar materiais, mecanismos, formas, cores, acabamentos e decoração de objetos reproduzidos em quantidade através de processos industriais”20.
Assim, para evitar mal-entendidos conceituais, nas poucas vezes em que a nomenclatura “design” aparece nos capítulos seguintes desta tese, ela é empregada como
um sinônimo do termo “desenho industrial”.
Sobre o tema da modernidade, é fundamental observar ainda suas características no contexto da América Latina. Achugar informa que importantes teorizações
sobre as modernidades latino-americanas buscam determinar sua especificidade
como periférica ou tardia. Nesse sentido, a natureza dessas modernidades estaria
relacionada à dependência colonial ou à “defasagem própria das realidades situadas
fora do perímetro central”. 21
De acordo com García Canclini, as ondas de modernização que atuaram sobre
os países dessa região podem ser sintetizadas da seguinte forma:
No final do século xix e início do xx, impulsionadas pela oligarquia progressista, pela
alfabetização e pelos intelectuais europeizados; entre os anos 20 e 30 deste século
[sic], pela expansão do capitalismo e ascensão democratizadora dos setores médios e
liberais, pela contribuição de migrantes e pela difusão em massa da escola, pela imprensa e pelo rádio; desde os anos 40, pela industrialização, pelo crescimento urbano,
pelo maior acesso à educação média e superior, pelas novas indústrias culturais.22
Para ele, é entre as décadas de 1950 e 1970 que a modernização socioeconômica na
América Latina se torna mais palpável, tanto pela acentuação do cenário acima des19
BRAGA, Marcos. ABDI e APDINS-RJ: história das associações pioneiras de design do Brasil. São Paulo: Blucher Acadêmico, 2011.
20
“An industrial designer is one who is qualified by training, technical knowledge, experience and visual sensibility to determine the materials, mechanisms, shapes, color, surfaces finishes and decoration of objects which are reproduced in quantity by industrial processes”. Disponível em: http://www.icsid.org/about/about/articles33.htm. Acesso: 20 jan 2013.
21
ACHUGAR, Hugo. Culpas e memórias nas modernidades locais: divagações a respeito de “O Flâneur” de Walter Benjamim. In: SOUZA, Eneida; MARQUES, Reinaldo. (Org.). Modernidades alternativas na América Latina. Belo Horizonte: UFMG, 2009, p. 15.
22
GARCÍA CANCLINI, Néstor. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: EDUSP,
2011, p. 67.
27
crito, quanto pela introdução de novos aparatos de comunicação que irão estimular
o consumo de carros e de eletrodomésticos, por exemplo, produtos “modernos” agora também fabricados na região. Essas transformações, ainda que de modo atribulado, conduzirão a modificações no acesso às novidades das grandes cidades, favorecendo à democratização do cosmopolitismo e à disseminação dos padrões de consumo associados à vida moderna: “Os fascículos culturais e as revistas de moda ou decoração vendidas em bancas de jornais e supermercados levam as inovações literárias, plásticas e arquitetônicas aos que nunca visitam as livrarias nem os museus”.23
As revistas argentinas e brasileiras aqui analisadas nasceram dentro desse contexto de modernização socioeconômica e cultural latino-americana e seu papel ali
desempenhado pode ser reconhecido na reflexão de Tarcus:
[...] a produção de revistas atravessa todos os níveis de cultura, porque foram (e continuam sendo) os veículos privilegiados através dos quais se expressam os grupos humanos, sejam políticos, literários, artísticos, científicos ou filosóficos. As revistas expressam um grupo, dão-lhe coesão e contribuem para forjar sua identidade. Permitelhes ir além de si mesmos, inscrevendo o grupo em uma rede de leitores e colaboradores, de anunciantes e vendedores. Tornam-se moeda de troca com outras revistas, as
quais publicam outros grupos, constituindo assim redes tanto locais quanto internacionais. E por meio de discussões frequentes entre revistas – porque são veículos privilegiados de debate cultural – se configura um campo de forças onde diferentes grupos
lutam pela hegemonia cultural e reconfiguram incessantemente suas identidades.24
Ainda segundo esse autor, cada revista constrói sua identidade e busca alinhar-se a
um determinado campo intelectual, integrando uma genealogia. Sendo, por definição, programáticas, elas interferem nos debates culturais do presente, traçando uma
opinião sobre um tópico em específico ou impondo sua própria agenda.
As revistas são a forma privilegiada da militância cultural e sua vida é a implantação
periódica de um programa coletivo. Muitas vezes, nascem como um manifesto programático e geralmente morrem quando esse programa se realiza. Mas também podem desaparecer prematuramente, seja por dificuldades econômicas, por censura ou
23
Ibidem, p. 88.
“Es que la producción de revistas atraviesa todos los órdenes de la cultura, porque las revistas han sido (y siguen siendo)
los vehículos privilegiados a través de los cuales se expresan los colectivos humanos, ya sean políticos, literarios, artísticos,
científicos o filosóficos. Las revistas expresan a un grupo, les dan cohesión y contribuyen a forjar su identidad. Les permiten
ir más allá de sí, inscribiendo al grupo en una red de lectores y colaboradores, de avisadores y de vendedores. Se convierten
en moneda de cambio con otras revistas que editan otros colectivos, constituyéndose así redes de revistas, tanto locales como
internacionales. Y a través de los debates frecuentes entre las revistas — porque las revistas son los vehículos privilegiados
del debate cultural— se configura un campo de fuerzas donde los distintos colectivos luchan por la hegemonía cultural y
reconfiguran incesantemente sus identidades.” TARCUS, Horacio. (Org.). 3/ Catálogo de revistas culturales argentinas
(1890-2006). Buenos Aires: CeDInCI, 2007. Disponível em: http://www.cedinci.org/catalogos/intro_CCA.pdf. Acesso
em: 26 jun. 2013.
24
28
repressão, ou devido disputas internas que fazem romper um coletivo editorial.25
Em concordância com o pensamento de Tarcus, Habitat, nueva visión, Mirante das
Artes,&tc e Summa são aqui compreendidas, antes de tudo, como revistas culturais.
Para além de sua afinidade, em maior ou menor grau, com o tema da arquitetura,
elas levaram a cabo cruzadas editoriais mais amplas, muitas vezes em conexão com
as artes e a tecnologia. Suas páginas, ao contrário de restringirem-se à descrição técnica de projetos arquitetônicos, urbanísticos ou de produtos – fossem eles artesanais
ou industrializados –, esforçaram-se em observar os desdobramento dessas obras em
outras dimensões que configuram a relação entre os homens e seu entorno. Assim, é
na classificação “revista cultural” que este trabalho identifica o meio mais adequado de tratá-las.
As escolhas metodológicas
O método dialético orientou, de forma mais ampla, a pesquisa aqui realizada. Seus
fundamentos26 estabelecem que um fenômeno pode ser compreendido e explicado a
partir das condições que o determinam. Além disso, estando continuamente em processo, ele também seria objeto de constante transformação, denominada “mudança
dialética”. Essas mudanças, mais graduais ou bruscas, encontrariam motivação nas
próprias contradições internas que dão unidade a esse fenômeno.
Como métodos de procedimento foram utilizados o histórico e o comparativo.
O primeiro diz respeito à investigação de fenômenos do passado para verificar sua
influência no presente, visto que alcançaram sua forma atual em função de alterações ocorridas ao longo do tempo, influenciadas pelo contexto de cada época. Em
complementariedade, foi empregado o método comparativo, que a partir da análise
do dado concreto, deduz “os elementos constantes, abstratos e gerais”27. Ou seja, ao
realizar comparações, se propõe identificar semelhanças e discrepâncias entre fenômenos observados. A adequação desses métodos a este trabalho justifica-se por
conta de seu objetivo em analisar, num recorte temporal que engloba as décadas de
1950 e 1960, a produção do pensamento sobre o desenho industrial elaborada por
quatro revistas. Em termos práticos, a orientação desses métodos reflete-se tanto no
panorama socioeconômico e cultural aqui alinhavado, relacionando Argentina e
Brasil, a partir de uma perspectiva histórica e comparativa, quanto no confronto estabelecido entre as publicações e suas visões sobre o desenho industrial.
25
“Las revistas constituyen la forma privilegiada de la militancia cultural y su vida es el despliegue periódico de un programa colectivo. Suelen nacer con un manifiesto programático y normalmente mueren cuando ese programa se consuma.
Pero también pueden desaparecer antes de tiempo, ya sea por penurias económicas, a causa de la censura o la represión, o con
motivo de rencillas internas que hacen estallar un colectivo editor.” Ibidem.
26
MARCONI, Marina; LAKATOS, Eva. Fundamentos de metodologia científica. São Paulo: Atlas, 2010.
27
Ibidem, p. 89.
29
A técnica de pesquisa bibliográfica foi essencial para fundamentar o quadro
teórico dividido em três eixos principais: história do Brasil, história da Argentina e
história do desenho industrial nesses dois países. Desse conjunto, destaca-se, entre
outros, os trabalhos de Lopez & Mota, Fausto & Devoto e Fernández & Bonsiepe.28
Especificamente a respeito das revistas analisadas, forem de grande importância o
estudo de Stuchi29 sobre os 15 primeiros números de Habitat, com foco na arquitetura moderna; os trabalhos de Devalle30 e de Deambrosis31 sobre nueva visión; e a pesquisa de Corti32, sobre edições iniciais de Summa. A maioria das informações colhidas a respeito de Mirante das Artes,&tc foi encontrada em pequenas doses, espalhadas em investigações acadêmicas33 cujo cerne eram outros assuntos. Comparada à
Habitat, percebe-se que a última revista editada por Bardi tem recebido menos
atenção dos pesquisadores. Inclusive, em depoimentos de alguns dos entrevistados
neste trabalho, ficou clara uma certa rejeição a essa publicação – de entonação bastante crítica e debochada – (des)qualificada como “menor”, “feia” e “caquética”, o
que a tornou um objeto de análise ainda mais intrigante.
Assim, a técnica de entrevista também foi utilizada como instrumento para a
coleta de informações. A conversa com o designer Alexandre Wollner girou em torno de sua convivência com Bardi e Lina, sua formação no iac e na hfg–ulm e a revista Mirante das Artes,&tc, da qual, entretanto, pouco lembrava. A pesquisadora e
crítica de arte Aracy Amaral, o jornalista e escritor Ignácio de Loyola Brandão, e o
designer e professor Auresnede Pires Stephan (Eddy) também contribuíram no sentido de contextualizar o cenário artístico, editorial e do design em São Paulo nos
anos 1960.
De crucial importância para esta pesquisa foi a entrevista realizada com a diretora da revista argentina Summa, Lala Méndez Mosquera. Ao contrário da abundância de informações a respeito da trajetória profissional de seu ex-marido Carlos
Méndez Mosquera, falecido em 2009, são raros e breves – embora sempre elogiosos
28
LOPEZ, Adriana; MOTA, Carlos. História do Brasil: uma interpretação. São Paulo: Senac São Paulo, 2008; FAUSTO,
Boris; DEVOTO, Fernando. Brasil e Argentina: um ensaio de história comparada (1850-2002). São Paulo: Ed. 34, 2004;
FERNÁNDEZ, Silvia. BONSIEPE, Gui. Historia del diseño en América Latina y el Caribe: industrialización y comunicación visual para la autonomia. São Paulo: Blucher, 2008.
29
STUCHI, op.cit.
30
DEVALLE, Verónica. La travessia de la forma. Emergencia y consolidación del diseño gráfico (1948–1984). Buenos
Aires: Paidós, 2009.
31
DEAMBROSIS, Federico. Nuevas visiones: revistas, editoriales, arquitectura y arte en la Argentina de los años cincuenta.
Buenos Aires: Infinito, 2011.
32
CORTI, Laura. Discursos del diseño: la revista Summa y el desarrollo de campo disciplinar del diseño gráfico en la
Argentina (1963–1993). Seminário de crítica. Instituto de Arte Americano e Investigaciones Esteticas. n. 178. set. 2012.
Disponível em: http://www.iaa.fadu.uba.ar/publicaciones/critica/0178.pdf. Acesso em: 23 dez. 2012.
33
Por exemplo: LOBÃO, Luna. A missão artística do primeiro masp: um estudo da concepção de Pietro Maria Bardi para o
masp em seus primeiros 20 anos. VII ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE. UNICAMP. 2011; RUBINO, Silvana. Rotas
da modernidade: trajetória, campo e história na atuação de Lina Bo Bardi, 1947–1968. Campinas, UNICAMP, 2002. Tese
de doutorado apresentada ao Departamento de Antropologia.
30
– os comentários publicados sobre sua liderança editorial, a despeito da grande contribuição que deu ao campo da arquitetura na Argentina. Nesse sentido, é um privilégio contar também com sua voz no capítulo aqui dedicado à publicação que conduziu por quase trinta anos.
A pesquisa documental, realizada nos arquivos da Biblioteca do masp, do Instituto Lina e P. M. Bardi e da Biblioteca do Museo Nacional de Bellas Artes de Buenos Aires, também possibilitou o contato com documentos, publicações e iconografia, os quais contribuíram dados valiosos. A esse respeito, vale registrar, entretanto,
que os arquivos de Bardi, localizados no Instituto, não estavam disponíveis para
consulta ao longo da realização desta investigação. Segundo informado, esse material ainda aguarda sistematização, o que, deseja-se, aconteça em breve.
Por fim, empreendeu-se o estudo das quatro revistas selecionadas. Foram analisados os 84 números de Habitat, publicados entre 1950 e 1965. Aí estão incluídos
não só as 15 edições iniciais da publicação, as quais contaram com a liderança do casal Bardi e que constituem o conjunto de exemplares mais recorrentemente utilizado em pesquisas, principalmente sob a ótica da arquitetura, quanto a etapa seguinte,
dirigida por Geraldo Serra e editada por Rodolfo Klein. Acredita-se que esta tese é
um dos primeiros estudos a considerar a totalidade das edições de Habitat enfocando o tema do desenho industrial.
Mirante das Artes,&tc, cuja circulação aconteceu nos anos 1967 e 1968, também
teve seus 12 números analisados, assim como nueva visión, publicada entre 1951 e
1957, a qual acumulou nove edições. O caso de Summa, portanto, é aqui o único onde
foi considerado um período específico: os 15 primeiros números, lançados entre 1963
e 1969. Tendo em vista que a 15a edição dedica-se ao registro de vinte anos de “diseño industrial” na Argentina, e que partir do número 16 Summa passa a concentrar-se cada vez mais no problema arquitetônico34, optou-se pela referida seleção.
Vale ressaltar que, se cronologicamente o início da década de 1950 e o final da
de 1960 englobam o que entendemos como etapas de emergência e institucionalização pioneira do desenho industrial nos dois países em questão, tematicamente essas
revistas delimitam um recorte inaugurado por Habitat, com a divulgação do iac, no
Brasil, e concluído por Summa, com o balanço de vinte anos dessa atividade profissional no contexto argentino. Além disso, a geografia da problemática em pauta fica
ancorada nas cidades de São Paulo e Buenos Aires.
As bibliotecas da fau usp, do masp, da fadu uba, do sca e o cedinci foram os
locais frequentados para o estudo dessas quatro publicações. Num estágio mais
avançado da pesquisa, a quase totalidade dos exemplares de Mirante das Artes,&tc e
34
CORTI, op.cit.
31
Summa puderam ser adquiridos.
A análise de conteúdo dessas revistas seguiu o roteiro proposto por Franco35.
Inicialmente efetuou-se a leitura exploratória ou “flutuante” desse conjunto de 120
exemplares, com a intenção de tomar contato e formular as primeiras impressões
sobre o material. Em seguida, definiu-se a seleção dos artigos publicados que tratassem do tema, tendo como critério de escolha a ocorrência do termo “desenho industrial” ou “diseño industrial”. O trabalho com a amostra final de artigos implicou a
identificação de menções nos textos relacionadas aos seguintes tópicos: conceitual (o
termo e definições, orientação teórico-projetual), educacional (formação especializada), profissional (função, atuação na indústria e no mercado, projetos e produtos),
institucional (entidades de classe e de fomento). Foram identificados também artigos afins, mesmo sem ocorrência do termo desenho industrial. Quando pertinente,
esses escritos foram utilizados para ajudar a esclarecer ou complementar um determinado tópico. Em paralelo, seguindo a sugestão de Scholes & Wulfman, buscou-se
reunir dados sobre as quatro publicações relativos à periodicidade, preço, período de
circulação, local da sede da redação, formato, tamanho, fundadores e editores, colaboradores, anunciantes e impressão. Esse universo de informações, obtidos através
das técnicas de pesquisa descritas, conformaram a base para a consecução desta pesquisa, a qual ganha forma nos capítulos que se seguem.
O encadeamento da tese36
O Capítulo 1, Argentina e Brasil: modernos na periferia do mundo, descreve um sintético panorama histórico-comparativo da formação desses dois países, desde o período colonial aos anos 1950, levando em conta aspectos econômicos, sociais e culturais que contribuíram para a emergência do desenho industrial nesses dois países.
Essa recuperação histórica que tem como ponto de partida o século XVI pode, a
princípio, parecer excessiva. Sua intenção, no entanto, é nutrir a leitura dos capítulos seguintes com um repertório sobre a Argentina e o Brasil, o qual pode soar óbvio
ou bastante conhecido, mas que ao ser visto de perto é mais revelador e surpreendente do que se presume.
O Capítulo 2, Habitat (1950–1965): paixão raciocinada para a forma, relata a
trajetória de 14 anos dessa revista – tendo como ponto de partida as carreiras profissionais de Pietro e Lina Bo Bardi na Itália –, a qual testemunharia em primeira
mão as primeiras iniciativas em torno do ensino do desenho industrial no Brasil.
Até meados da década de 1960, entretanto, Habitat registraria vários debates sobre o
35
FRANCO, Maria Laura. Análise de conteúdo. Brasília: Líber, 2005.
Neste trabalho, são de minha responsabilidade as versões em português das citações originais em espanhol ou inglês.
Todos os excertos em idioma estrangeiro, contudo, podem ser consultados nas notas de rodapé.
36
32
desenvolvimento dessa atividade no país, como a função social desse profissional e
os desafios de sua incorporação nos quadros da indústria local. Em função da longevidade dessa publicação, este capítulo é o único em que a construção narrativa se dá
de forma temática, e não cronológica, como nos demais.
No Capítulo 3, Mirante das Artes,&tc (1967–1968): uma revista anormal, o caráter polêmico e crítico desta última aventura editorial de Bardi como líder de um
periódico é analisado nos momentos em que sua artilharia se volta para o campo do
desenho industrial. A revista não deixaria de apontar as dificuldades de consolidação dessa área no Brasil, questionando também a abordagem desse ensino projetual
no país.
O Capítulo 4, nueva visión (1951–1957): síntese das artes e desenho industrial,
põe em foco a Argentina. Nessa publicação é possível acompanhar um olhar que
privilegia as conexões entre desenho industrial e o campo artístico, em especial com
a corrente concretista. Tópicos como o Good Design norte-americano e a gute form
suíço-alemã – esta última também discutida em Habitat – constituirão o cerne de
alguns de seus artigos.
Em seguida, o Capítulo 5, Summa (1963–1969): nuevas formas para tiempos
nuevos, observa como a revista, cuja aproximação com a arquitetura é uma das mais
fortes entre as publicações aqui analisadas, relata uma condição mais avançada da
atividade do desenho industrial naquele país, lastreada pelo funcionamento de cursos superiores e instituições classista e de fomento.
O Capítulo 6, Revistas em diálogo: versões e interpretações, concentra o cruzamento das abordagens elaboradas pelas quatro revistas, buscando dar relevo às semelhanças e distinções entre elas. Contudo, no interior dos capítulos precedentes,
algumas relações entre as publicações já são estabelecidas. Esta parte dá ainda ensejo para que, de forma conclusiva, as hipóteses sejam retomadas nas Considerações
Finais.
33
CAPÍTULO 2
Habitat (1950–1965): paixão raciocinada para a forma
O italiano entendeu por que diziam que se tratava de um homem exótico.
Ele mal o conhecera e já o convidava para mudar-se de país e dirigir um
projeto megalomaníaco. Bardi pediu tempo para pensar. Já no dia seguinte,
porém, Chateaubriand batia em seu quarto de hotel não com um convite,
mas com uma imposição, como se o outro fosse seu empregado:
– Domani noi andaimo a São Paulo.
Mas por que São Paulo?, quis saber Bardi. Chateaubriand explicou que
uma galeria como a que ele imaginava tinha de estar instalada onde estivesse o dinheiro – e no Brasil o dinheiro estava em São Paulo:
– Perché a São Paulo c’é il café!
O dono dos Associados contou que a nova sede de seus jornais na capital
paulista estava prestes a ser inaugurada e todo o seu primeiro andar poderia
abrigar a galeria:
– Acho bom o senhor levar sua mulher junto, porque, já que ela é arquiteta, ficará responsável pelo projeto de utilização desse andar.
Bardi ainda tentou dizer que, embora tivesse visitado muitos museus em
sua vida, nada entedia de museologia – não sabia onde começar e como terminar um museu –, mas Chateaubriand permaneceu irredutível:
– Mi confido di lei.
Como resistir àquele homenzinho elétrico que um dia depois de conhecêlo dizia com toda a convicção que confiava nele? No dia seguinte o Jagunço
decolava do Rio levando Lina, Pietro Bardi e Assis Chateubriand com destino à maior e mais polêmica aventura das artes brasileiras: a criação do Museu de Arte de São Paulo.
Fernando Morais. Chatô: o rei do Brasil [1994]
O projeto de modernização cultural realizado por Lina e Pietro Maria Bardi 1
[fig.40] no Brasil, a partir de São Paulo, é também consequência das trajetórias pessoais e profissionais de ambos, cuja origem está na Itália. As revistas Habitat e Mirante das Artes,&tc, criadas respectivamente nas décadas de 1950 e 1960, estão entre
os vários empreendimentos no campo da cultura iniciados no país pelo casal. Assim,
para se compreender o perfil editorial dessas publicações e, em consequência, o modo como elas abordaram o tema do desenho industrial, faz-se necessário levar em
conta as experiências pregressas de seus fundadores. Começaremos, portanto, visitando brevemente o passado de Lina e Bardi na Europa, a fim de identificarmos
centelhas que, mais adiante, iluminariam o nascimento dessas duas revistas nos trópicos.
1
Pietro Maria Bardi nasceu na cidade de La Spezia, no Golfo de Gênova, em 21 de fevereiro de 1900. Casou-se com
Gemma Tartarolo, sua primeira esposa, em 1924, ano em que nasceu sua filha Elisa, seguida, em 1928, por Fiorella.
Achillina di Enrico Bo nasceu em Roma, em 5 de dezembro de 1914, e casou-se com Bardi, em San Marino, em 1946. Em
viagem de lua de mel, chegaram ao Rio de Janeiro em 17 de outubro daquele mesmo ano. Lina faleceu em São Paulo, em
20 de março de 1992, e Bardi em 10 de outubro de 1999, na mesma cidade.
Bardi: no front da arte, da arquitetura e da imprensa na Itália fascista
No início do século xx, a Itália era um país periférico em relação ao restante da Europa. Marcada pelas disparidades econômicas e culturais entre o norte desenvolvido
e o sul rural, lá a industrialização ocorreu com atraso, impactando fortemente uma
sociedade indecisa entre progresso e conservadorismo. Após a Primeira Guerra, o
país se viu desestruturado economicamente, com problemas de ordem social, greves
e a mobilização de trabalhadores industriais e do campo em torno do anarcosindicalismo e do Partido Comunista.
Em combate às articulações de esquerda, surgiu o Partido Nacional Fascista,
fundado por Benito Mussolini, em 1920, o qual, dois anos depois, instalaria na Itália
um projeto político autoritário e centralizador, em defesa de um Estado corporativo.
Os partidos políticos – à exceção do Fascista – foram extintos e os órgãos de imprensa fechados ou passaram a funcionar sob o controle do Escritório de Imprensa e
Propaganda. No campo econômico, visando o estancamento do processo inflacionário, investiu-se na produção industrial e agrícola e em obras públicas.
O regime contou ainda, na esfera da cultura, com o movimento racionalista
italiano como aliado. Essa vanguarda artística, integrada por arquitetos que rejeitavam a tradição neoclássica e suas imitações do passado, acabaria por fornecer as novas formas, modernas, adequadas às pretensões revolucionárias do Estado fascista.
Foi também na turbulenta Itália de 1922 – ano em que Mussolini tornou-se
primeiro-ministro – que teve início a carreira jornalística2 de Bardi, na província de
Bérgamo, onde fazia a cobertura de assuntos variados, inclusive da vida artística local. Em 1924, transferiu-se para Milão, tornando-se redator dos jornais Il Secolo e
Corrieri della Sera. Em 1926, começou a atuar como marchand3, ao adquirir a Galleria dell’Esame, logo renomeada Galleria Micheli.
No final da década de 1920, inaugurou dois empreendimentos de maior projeção: a Galleria Bardi S/A, em 1928, e no ano seguinte, o jornal de arte Belvedere,
que em italiano significa “mirante”. Curiosamente, quatro décadas depois, em São
Paulo, “Mirante das Artes” seria o nome de uma galeria de arte de sua propriedade
e também da última revista que iria fundar e dirigir. Insinua-se aqui um apego nutrido por Bardi, ao longo da vida, à ideia de um ponto de vista superior, privilegiado, de longo alcance, capaz de detectar e comunicar com antecipação tendências e
movimentações que se avizinham.
À frente de Belvedere, Bardi escreve em tom cordial em relação ao regime fascista. Defende a sindicalização da arte – “a Itália fascista o elimina [o problema da
2
Nos primeiros anos como jornalista, Bardi trabalhou para o Gionalle di Bergamo, a Gazetta di Genova, o Indipendente, a
Rivista di Bergamo e o Popolo di Bergamo.
3
Negociante de obras de arte.
83
arte] por meio da organização sindical, criada para disciplinar e valorizar a atividade dos artistas”4 – e faz a cobertura das mostras dos pintores do grupo Novecento5.
Por outro lado, protesta contra a discriminação burguesa sofrida pelos artistas modernistas e contemporâneos e põe em foco seu maior interesse: a arquitetura, combatendo o academicismo e em favor do racionalismo. Polêmica que ganharia corpo
nos confrontos que travou, por escrito, com os arquitetos Marcelo Piacentini e Cesare Bazzani, entre outros.
Essa arrojada empreitada jornalística seria ainda calibrada pelo tom irônico
característico de seus textos, o qual, décadas depois, ainda permaneceria pulsante
em Habitat e Mirante das Artes,&tc:
[...] seu particularíssimo estilo: essencialmente conciso, numa época em que tantos
jornalistas (os quais ele ridiculariza) se alongavam com pompa e circunstância; irônico o suficiente para irritar profundamente seus inimigos, mas também divertir seus
leitores”.6
É nesse período que Bardi cria laços com arquitetos de várias regiões da Itália, dentre eles Giuseppe Terragni, de quem foi um grande entusiasta, Agnoldomenico Pica, Alberto Sartoris e Pier Luigi Nervi, ligados à cultura racionalista.
Em 1930, Bardi deixa Milão para assumir a direção da Galleria D’Arte di Roma, implantada pelo Sindicato Nacional Fascista de Belas Artes, posição que o faz
integrar o círculo de conselheiros mais próximos de Mussolini. Tentori argumenta
que Bardi, registrado no Partido Nacional Fascista (pnf) desde 1926, se “chocaria
progressivamente com um fascismo sempre menos ‘movimento revolucionário’ e
sempre mais ditadura”.7
É sob sua direção, em 1931, que a Galleria D’Arte di Roma inaugura a segunda
mostra do miar, reunindo 150 trabalhos entre projetos, maquetes e fotografias de
obras realizadas de acordo com os preceitos racionalistas. A exposição, por sinal, desagradou aos arquitetos acadêmicos e aos reformistas, dentre eles os dirigentes do
Sindicato Fascista dos Arquitetos. Um dos principais motivos teria sido o Tavolo degli Orrori [Mesa dos Horrores]8 [fig.41], cuja autoria é atribuída a Bardi, Giuseppe
Pagano e Carlo Belli: uma mesa revestida por uma colagem em estilo dadaísta com
exemplos da arquitetura acadêmica misturados a recortes de letreiros e vestimentas
4
TENTORI, Francesco. P.M. Bardi: com as crônicas artísticas do “L’Ambrosiano” 1930-1933. São Paulo: Instituto Lina Bo
e P. M. Bardi: Imprensa Oficial do Estado, 2000, p. 35.
5
O Novecento italiano surgiu em Milão em 1922, movimento que reuniu os artistas ligados à Galeria Pesaro, como Anselmo Bucci e Mario Sironi. Desenvolveu-se nos anos 1920 e 1930, com a intenção de representar a arte nacional italiana,
e chegou a ser apadrinhado pelo fascismo.
6
TENTORI, op.cit., p. 14.
7
TENTORI, op.cit., p.102.
8
A polêmica mesa foi enviada à exposição de Buenos Aires, em 1933, onde se extraviou.
84
arcaicos, em resumo, uma miscelânea de referências estéticas e culturais as quais a
arquitetura fascista deveria rejeitar.
Em 1933, as atividades da Galleria D’Arte foram encerradas, tanto em função
de questões financeiras quanto do enfraquecimento político de Bardi. De toda forma, é evidente nessa experiência sua preocupação em privilegiar, no planejamento
de exposições, não apenas as Belas Artes, mas também os chamados “produtos da
modernidade”, incluindo-se aí o desenho industrial. Visão a qual se manteria fiel,
vinte anos depois, na direção do masp.
A partir de 1930, em paralelo às atividades na Galleria, Bardi iria exercer a
função de redator do jornal L’Ambrosiano, defendendo a arquitetura racionalista
em inflamados artigos, sendo demitido em 1933, em função de críticas que fez a
projetos de interesse da política milanesa. Em 1931, é designado correspondente na
Itália da revista francesa L’Architecture d’Aujourd’hui, para quem escreve “Un fascista al paese dei soviet” [Um fascista no país dos sovietes], após visita à região. Nesse período, engata também colaborações para o jornal Il Lavoro Fascista e o semanário artístico-literário Quadrivio.
Em 1933, como já mencionado no Capítulo 1, Bardi funda, em parceria com o
escritor Massimo Bontempelli, a revista Quadrante [fig.42], em torno da qual inúmeros arquitetos gravitariam como colaboradores. Um brasileiro, o jornalista Mário
da Silva Brito, também contribuiria artigos para essa publicação. De acordo com
Rifkind, o periódico advogou, como nenhum outro no país, uma arquitetura de Estado representativa dos valores e aspirações do regime fascista, em intensa articulação com o racionalismo italiano.
O círculo de Quadrante concebia a missão da revista em termos ousados: definir as características da arquitetura moderna, defender o modernismo contra críticas reacionárias e conservadoras, situar a arquitetura moderna num amplo projeto interdisciplinar de regeneração cultural, e por fim, lutar nacionalmente pela adoção do racionalismo como arquitetura oficial do Estado fascista. Para os racionalistas, e especialmente para os membros de formação politécnica de Quadrante, o termo “anticulturalista” combinava o autoproclamado “antielitismo” de Mussolini com as frequentes
exortações de Le Corbusier contra a prática da arquitetura “acadêmica”.9
O fato de reunir diversos intelectuais introduzidos no ambiente cultural europeu,
9
RIFKIND, David. Pietro Maria Bardi, Quadrante and the Architecture of Fascist Italy. The Italians in the Centers of
South-American Modernism. 9-11 Abr. 2013. Museu de Arte Contemporanêa. Universidade de São Paulo. 2013. “The
Quadrante circle conceived the journal’s mission in bold terms: to define the characteristics of modern architecture, to defend
modernism against the criticism of reactionaries and conservatives, to situate modern architecture within a broader interdisciplinary project of cultural palingenesis, and, ultimately, to campaign for Rationalism’s adoption throughout the nation as
the official architecture of the fascist state. For the Rationalists, and especially for the polytechnic-trained members of the
Quadrante circle, the term “anti- culturalist” combined Mussolini’s self-proclaimed “anti-elitism” with Le Corbusier’s frequent exhortations against the “academic” practice of architecture”.
85
[fig.40] Bardi e Lina desembarcando
no aeroporto de Congonhas (1947).
Fonte: TENTORI, Francesco. P.M.
Bardi: com as crônicas artísticas do
“L’Ambrosiano” 1930-1933. São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi:
Imprensa Oficial do Estado, 2000.
[fig.41] Tavolo degli Orrori. Fonte: TENTORI, Francesco. P.M. Bardi: com as
crônicas artísticas do “L’Ambrosiano” 1930-1933. São Paulo: Instituto Lina Bo e P.
M. Bardi: Imprensa Oficial do Estado, 2000.
[fig.42] Revista Quadrante (1935). Fonte:
TENTORI, Francesco. P.M. Bardi: com as crônicas
artísticas do “L’Ambrosiano” 1930-1933. São Paulo:
Instituto Lina Bo e P. M. Bardi: Imprensa Oficial do
Estado, 2000.
[fig.43] Revista A – Cultura della Vita (1945). Fonte:
BO BARDI, Lina. Lina Bo Bardi. São Paulo: Instituto
Lina Bo e P. M. Bardi, Imprensa Oficial, 2008.
86
sobretudo na França, onde já estavam presentes focos de apoio ao fascismo, fez com
que, de início, Quadrante recebesse autorização de funcionamento e apoio do Escritório de Imprensa e Propaganda italiano. Segundo Tentori, os editores Bardi e Bontempelli eram vistos pelo regime como “embaixadores oficiosos” da cultura moderna, italiana e fascista no exterior – o primeiro, nas viagens para a União Soviética,
para o congresso do 4˚ciam e à Buenos Aires, o segundo, nas viagens para a América do Sul, Escandinávia e Romênia, por exemplo.
Entretanto, a controversa política que a revista travaria ao longo de seus quase
quatro anos de existência tanto para a afirmação de “um certo tipo” de fascismo,
quanto da arquitetura racionalista, seria frustrada. A partir de 1936, ano em que
Quadrante parou de circular, o regime substituiria a ideia da revolução fascista pela
ideia do império italiano10, inclusive aliando-se ao nazismo. Na arquitetura, o estilo
moderno daria lugar ao estilo imperial e os tradicionalistas assumiriam o controle.
Entre 1936 e 1938, Bardi ainda continuou sua militância pela arquitetura racionalista no jornal Meridiano de Roma, até ser impedido pelo regime de registrar a
autoria de seus textos: “São os tempos em que eu, tendo saído do partido por acontecimentos que seria longo dizer e que não lhes interessam, cesso a minha atividade
polêmica, sou forçado a não assinar textos com meu nome”.11
Mesmo com o início da Segunda Guerra, Bardi permanece atuando no campo
jornalístico, em revistas voltadas à arquitetura. De 1938 a 1943, seria responsável
pela direção e paginação da revista mensal Il Vetro, dando continuidade ao trabalho
com diagramação e criação eventual de fotomontagens, ilustrações e caricaturas que
já tinha desenvolvido em Quadrante. Em 1941, dirigiu a revista La Vetrina, ao
mesmo tempo em que colaborou, até 1943, com as publicações Tempo e Lo Stile, esta
última editada pelo arquiteto Gio Ponti, um dos mentores de Lina Bo.
Além da intensa atividade jornalística e da articulação de eventos em torno do
tema – como as conferências de Le Corbusier, em 1934, em Roma e Milão – Bardi
chegou ainda a conceber alguns projetos arquitetônicos. Um deles com Guido Fiorini, em 1935, para um prédio de exposições, e outro, em 1940, com Pier Luigi Nervi, para o Palazzo della Civilità Italiana, parte integrante do complexo da Exposição
Universal de Roma, prevista para ocorrer em 1942, mas nunca realizada.
Logo após o fim do conflito, em 1945, Bardi inaugurou o Studio d’Arte Palma,
em Roma. Além de promover exposições e palestras sobre arte, arquitetura e artes
gráficas, o espaço contava com uma oficina de restauro e serviço de diagnóstico e
atribuição de obras. Ali, em pouco tempo, teria conhecido Lina Bo.
10
11
Em 1935, a Itália iniciou sua política expansionista na África, invadindo a Etiópia.
TENTORI, op.cit., p. 131.
87
Lina Bo: arquitetura e reportagem
Filha do casal Enrico e Giovanna Bo, ele, engenheiro, e ela, dona de casa, Lina estudou no Liceu Artístico de Roma. Em 1939, graduou-se na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Roma, onde predominavam as disciplinas históricoarquitetônicas e a observação dos monumentos antigos. O curso era então dirigido
pelos renomados arquitetos acadêmicos Gustavo Giovannoni e Marcello Piacentini,
os quais tiveram papel determinante na condução do planejamento urbano da cidade durante o regime fascista. Capital da República, importante centro urbano e foco
das tensões políticas da época, Roma modernizou-se a partir dos anos 1920, em decorrência de investimentos infraestruturais e simbólicos implementados pelo comando mussoliniano.
Em busca de uma cidade mais aberta política e culturalmente, após a formatura Lina transferiu-se para a industrial Milão. Lá trabalhou no escritório do arquiteto moderno Gio Ponti, paladino da valorização do artesanato italiano e diretor das
trienais de Milão. Em 1928, Ponti havia fundado a Domus e, em 1941, a Lo Stile, revistas que tiveram papel central na promoção do design, do mobiliário e da arquitetura moderna na Itália. Com ele, Lina trabalhou anonimamente, sem assinar, em
projetos que envolviam design de utensílios, cadeiras, moda, urbanismo e a organização de trienais. Colaborou também na redação das revistas: “Assim entrei em contato direto com os problemas da profissão”.12
Lina chegou a manter um escritório particular em Milão. No entanto, a escassa demanda por projetos em função da guerra fez com que trabalhasse como ilustradora. Entre 1941 e 1943, colaborou com as publicações Tempo, Grazia, Vetrina e
Ilustrazione Italiana. Editou ainda, ao lado de Carlo Pagani, a coleção Quaderni de
Domus, onde pesquisou sobre artesanato e desenho industrial. Em 1943, durante a
ocupação alemã e o colapso do fascismo, Lina – que havia entrado para a Resistência13 com o Partido Comunista clandestino – assumiu a direção de Domus, em Bérgamo, organizando as edições da revista até a sua suspensão. Mesmo com o fim da
guerra em 1945, seu trabalho com o jornalismo especializado em arquitetura persistiu.
Poucos dias após o armistício, junto a um repórter e um fotógrafo, realizei uma reportagem nas zonas tocadas pela guerra. Viajei recolhendo dados em toda a Itália. Sentíamos que era preciso fazer alguma coisa para tirar a arquitetura do pântano. Começamos a pensar, então, sobre uma revista ou um jornal que estivesse ao alcance de todos e que pautasse sobre os erros típicos dos italianos... Levar o problema da arquite-
12
BO BARDI, Lina. Lina Bo Bardi. São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, Imprensa Oficial, 2008, p. 9.
A Resistência italiana foi um movimento armado de oposição ao fascismo e à ocupação da Itália pela Alemanha nazista.
13
88
tura ao viver de cada um, de modo que cada um pudesse chegar a se dar conta da casa
na qual deveria viver, da fábrica onde deveria trabalhar, das ruas onde deveria caminhar.14
No ano seguinte, seria lançada a revista A – Cultura della Vita [fig.43], impressa em
papel jornal e dirigida ao público leigo, resultante da parceria entre Lina, o crítico
de arquitetura Bruno Zevi, o arquiteto Carlo Pagani e o escritor Raffaele Carrieri.
De curta duração, este seria um periódico politizado nos anos pós-guerra e de reconstrução do país, abordando a arquitetura, a mecanização do lar e até mesmo temas mais delicados para a época, como o planejamento familiar.15
Em 1945, Lina conhece Bardi, figura pública a quem admirava desde os tempos de adolescente. Existem diferentes versões de como teria se dado esse encontro16: em Roma, no Studio d’Arte Palma, ou em Milão. O fato é que se casam no ano
seguinte, em San Marino, logo após Bardi obter o divórcio de seu primeiro matrimônio. “Pietro era importante, moderno, promovia as artes, era o maior jornalista
italiano. Namoramos, casamos. Nesse ano, viagem para a América do Sul, já conhecida por Pietro”.17
Para ambos, sair da Itália e viver no Brasil, ou na Argentina, significava, naquele momento, a possibilidade de desbravar novos e promissores mercados. Significava deixar para trás um ambiente desfavorável tanto para este jornalista e galerista cuja trajetória se confundia com a caótica política cultural do regime de Mussolini, quanto para esta jovem arquiteta, cuja prática profissional via poucas perspectivas imediatas numa Itália em ruinas.
Assim, chega ao Brasil, em 17 outubro de 1946, e precisamente à cidade do Rio
de Janeiro, a bordo do navio Almirante Jaceguay, este casal de imigrantes detentores de grande capital cultural, munidos de sua coleção de obras de arte e de sua extensa biblioteca. Ele, 14 anos mais velho, cuja carreira fora forjada ao longo de duas
décadas na linha de frente de agressivos embates na imprensa italiana, do comércio
da arte e das articulações em prol da arquitetura racionalista no período fascista.
Ela, aos 32 anos incompletos, comprometida com a arquitetura moderna e sua vocação social, a qual, entretanto, havia praticado mais através dos textos do que da
prancheta e do canteiro de obras.
Ao aproximarem-se da costa carioca, viram acenar ao longe o prédio do Ministério da Educação e Saúde, emblema da já internacionalmente conhecida arquitetura brasileira, imagem posteriormente evocada por Lina em várias ocasiões.
14
BO BARDI, op.cit., 2008, p. 11.
RUBINO, Silvana. A escrita de uma arquiteta. In: RUBINO, Silvana; GRINOVER, Marina. Lina por escrito. Textos
escolhidos de Lina Bo Bardi. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
16
Ver RUBINO, op.cit., 2002.
17
BO BARDI, op.cit., 2008, p. 12.
15
89
Quando eu aqui cheguei, vi do navio o branco e azul do Ministério da Educação e Saúde, navegando sobre o mar em céu azul-claro. Era começo da tarde, e eu me senti feliz... Porque eu via uma coisa realizada. Na Europa ainda não havia começado a retomada das construções, era necessário primeiro sanar muitas coisas, especialmente as
condições econômicas. A maioria dos países estava praticamente na miséria, tinha dificuldades que começavam a aparecer, dificuldades do passado que, como já dissemos,
eram os cursos e decursos da história. Mas no Brasil não era assim. Eu conheci os arquitetos importantes brasileiros, Lucio Costa, Niemeyer, uma porção de jovens pintores inteligentes como Portinari, Di Cavalcanti. Era um mundo completamente diferente do que eu estava acostumada.18
Se ainda em Roma haviam sido encorajados a respeito do Brasil pelo embaixador
Pedro de Moraes Barros, no Rio de Janeiro foram recebidos pelo jornalista Mário da
Silva Brito, conhecido de Bardi desde a época em que colaborou para Il Lavoro Facista e Quadrante. As atividades de exposição do acervo de obras de arte do casal iniciaram-se de imediato. Em novembro, Bardi inaugurou, no salão nobre do prédio do
Ministério da Educação e Saúde, a Exposição de Pintura Italiana Antiga; em dezembro, no Hotel Copacabana Palace, apresentou a Exposição de Objetos de Arte
para Decoração de Interiores; e em maio de 1947, retornou ao Ministério com uma
nova mostra, a Exposição de Pintura Italiana Moderna.
O jornalista e empresário paraibano Assis Chateaubriand teria visitado a primeira das mostras de Bardi no Rio de Janeiro, com o interesse de adquirir alguns
dos quadros. Proprietário, entre outros empreendimentos milionários, de uma cadeia de rádio, jornais e revistas, os Diários Associados, Chateaubriand possuía trânsito e influência nas altas rodas da política brasileira, o que lhe garantia acesso até
mesmo ao presidente da república. Àquela altura, o magnata acalentava a ideia de
criar um grande museu brasileiro – para o qual utilizava o termo “galeria de arte”.
O convite que fez a Bardi para que capitaneasse a direção da “galeria” e à Lina para que assumisse como arquiteta as instalações foram inclusive romanceados,
segundo o excerto de abertura deste Capítulo. Muito provavelmente, como apontam
Tentori, Rubino e Morais, em função de contatos com alguns brasileiros em posições importantes no circuito político e cultural do país, Bardi, de antemão, teria conhecimento das ambições museológicas de Chateaubriand. Este, por sua vez, também deveria estar bem informado sobre o recém-chegado jornalista e marchand italiano e sua esposa arquiteta. As negociações prosseguiram e o projeto se definiu: o
museu não funcionaria na capital do país e sim na cidade de São Paulo, ao alcance
dos investimentos da poderosa classe empresarial e industrial paulista.
18
BO BARDI, Lina. Conferência no XIII Congresso Brasileiro de Arquitetos. In: RUBINO, Silvana; GRINOVER, Marina. Lina por escrito. Textos escolhidos de Lina Bo Bardi. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p. 180.
90
O mítico e controverso método empregado por Chateaubriand na formação da
pinacoteca do masp – tendo Bardi como seu escudeiro – aproveitava a oferta de
obras de arte a preços competitivos no mercado internacional, em função da alquebrada economia europeia do pós-guerra. Para a aquisição dessas obras, contava com
o financiamento obtido, geralmente, em decorrência de constrangimentos impingidos a milionários brasileiros. Aqueles que por ventura se negassem a contribuir com
o museu tornavam-se alvo de chacota nos jornais de Chateaubriand no dia seguinte.
Por outro lado, o recebimento dos valores para o pagamento das obras, sua conversão em moeda estrangeira e o envio de vultosas remessas ao exterior contaram com
a ajuda da contabilidade dos Diários Associados e a vista grossa do governo federal.19
Em 1951, já com o museu em funcionamento e em vista da disputa cada vez
mais acirrada pela compra dos quadros com concorrentes internacionais, principalmente os norte-americanos, Chateaubriand publicou, na edição número 2 de Habitat, um apelo no sentido de arregimentar novos investidores para sua empreitada:
Dá pena que as autoridades do Brasil não se dêm [sic] conta do momento fulminante
em que nos achamos para selecionar alguma coisa, e levar para dentro de nossa pátria. Não dispõem os nossos pobres museus senão de uma medíocre ferramenta, a fim
de poder ensinar à juventude o segredo das artes plásticas, artes das quais a Europa e
os Estados Unidos e já um pouco o Japão e o México, têm o que o gênio humano produziu ou está produzindo de mais perfeito ou de melhor. [...] É preciso que os brasileiros se convençam de que temos apenas esta última chance. Ou fazemos agora um supremo esforço para ficar com alguma coisa, quando se desfazem as últimas grandes
coleções particulares da Europa, ou quando acordamos [sic] será tarde.20
Em pouco tempo, a polêmica em torno da criação do acervo do museu tornou-se
pauta nos jornais, principalmente entre os desafetos de Chateaubriand, dentro e fora da imprensa, surgindo aí os primeiros críticos da instituição. No dia 2 de outubro
de 1947, entretanto, às vésperas de completarem um ano de residência no Brasil,
Bardi e Lina protagonizariam, ao lado de Chateubriand, a inauguração do Museu
de Arte de São Paulo [fig.44], no edifício ainda em obras do grupo Diários Associados21, na rua Sete de Abril, no centro da capital paulista.
19
O assédio por parte de Chateaubriand aos empresários brasileiros e as transações comerciais e financeiras com vistas à
formação do acervo do masp são detalhadas por MORAIS, op.cit.
20
CHATEAUBRIAND, Assis. Agora, ou nunca mais. Habitat, São Paulo, n. 2., jan. fev. mar. 1951. s. p.
21
Na inauguração do masp, o edifício Guilherme Guinle, projetado pelo arquiteto Jacques Pilon, não estava concluído,
mas apenas o andar que hospedava a pinacoteca. O elevador não funcionava e o acesso ao mezanino se dava por uma
escada de madeira de pedreiro; para absorver a umidade, caixas de cal foram colocadas entre as paredes e os painéis de
fundo dos quadros. TENTORI, op.cit.
91
O masp e sua missão educativa
Convicto de que não fazia sentido classificar a arte como antiga ou moderna – ideia
defendida em artigos que escreveu para Belvedere e inspirada no pensamento do
poeta e pintor futurista Ardengo Soffici – Bardi decidiu pelo nome “Museu de Arte”, sem adjetivos. Sua concepção para o masp em nada tentaria imitar o formato
dos tradicionais museus europeus, mas buscaria inspirar-se em instituições norteamericanas como o moma, que, em sua visão, compreendiam melhor a função educativa desses aparelhos culturais. No trecho a seguir, é o próprio Bardi que expõe
detalhadamente sua abordagem museológica:
Nós queríamos a arte guardada não num velho museu do século xviii, do jeito que
nós todos conhecemos, mas num museu escola de vida, onde as coisas da arte deveriam ser representadas pelo que elas contêm de clássico, ou seja, de verdadeiro, de persuasivo, de moderno, de eterno. Um museu para todo mundo, que interesse a todos,
não somente para os especialistas estudiosos e para a distração dos turistas. O extraordinário conjunto de ensinamentos que a arte passada e em desenvolvimento contêm
em si mesma deveria chegar a desempenhar um papel preponderante na educação
moral de cada cidadão.22
O “caráter didático” seria então o principal atributo do masp sob a batuta de Bardi e
com o respaldo de Chateaubriand. Qualidade a qual defendia desde os tempos da
imprensa italiana, ao criticar novos museus que preferiam repetir os antigos estilos
arquitetônicos e formatos curatoriais. “Não podemos esperar reformas desta Europa
assim dividida, assim incapaz de gestos audazes e renúncias generosas”23, observava.
No Brasil, entretanto, com o masp, uma oportunidade nesse sentido se descortinava. Afinal, o país era ainda terreno pouco explorado no âmbito da atividade museológica, até então restrita a um reduzido número de instituições de perfil celebrativo ou enciclopédico.24 Acrescente-se a isso, o baixo nível educacional da população,
as limitadas condições de urbanização das cidades brasileiras e o provincianismo das
elites locais, o que, para Bardi e Lina, implicava a necessidade incontornável de
construção de repertório e renovação do gosto25.
Sobre esse aspecto, é importante observar que a contribuição para a difusão do
gosto moderno sempre esteve no cerne das atividades de ambos desde a Itália. Bardi, em sua (infrutífera) militância pela arquitetura racionalista como estilo oficial
22
Ibidem, p.189.
Ibidem, p.191.
24
JULIÃO, Letícia. Apontamentos sobre a história do museu. Caderno de Diretrizes Museológicas 1. Brasília: Ministério
da Cultura / Instituto do Patrimônio Historico e Artístico Nacional/ Departamento de Museus e Centros Culturais, Belo
Horizonte: Secretaria de Estado da Cultura/ Superintendência de Museus, 2006.
25
De acordo com Lionello Venturi, gosto é um “conjunto de preferências no mundo da arte da parte de um artista ou
conjunto de artistas”, condensados em um estilo. Ver ANELLI, Renato. Gosto moderno: o design da exposição e a exposição do design. Arquitexto, Porto Alegre, PROPAR/UFRGS, n. 14, p. 93.
23
92
do estado fascista, e Lina, nas páginas das revistas com as quais colaborou, alertando
contra a decoração e a arquitetura historicista, repleta de excessos e desconectada da
realidade social e tecnológica de então. Nesse sentido, lidar com a renovação do gosto, num ambiente muitas vezes refratário a essas inovações, não seria uma novidade
para o casal no Brasil. De acordo com Anelli, “a construção do novo estilo passa pela
construção de um novo gosto comum, compatível com a nova época, mas não expressão automática dela”26. Assim, como se verá adiante, a educação do público brasileiro para esse “novo gosto comum”, essa sensibilidade moderna, se manifestaria
no museu através de diversos meios. Uma tarefa nem um pouco fácil – como também não havia sido na Itália –, da qual a própria Habitat seria testemunha.
No primeiro número da revista, lançado ao final de 1950, três anos após a fundação do masp, Lina reconfirmaria:
Nos países de cultura em início, desprovidas de um passado, o público, aspirando a
instruir-se, preferirá a classificação elementar e didática. É neste novo sentido social
que se constituiu o Museu de Arte de S. Paulo, que se dirige especificamente à massa
não informada, nem intelectual, nem preparada.27 [grifo original.]
Assim, logo após sua inauguração, ainda em 1947, as primeiras iniciativas de cunho
pedagógico do museu foram implementadas: a Exposição Didática de História da
Arte; o curso de História da Arte para os monitores do masp; e a Vitrine das Formas
[fig.45]. Esta última consistia num setor da área expositiva que separava a mostra
permanente das temporárias, e que apresentava o design dos objetos através dos séculos, dentre eles peças artesanais e de desenho industrial. Uma inesperada coleção
que causou estranhamento a muitos visitantes, já que alguns dos artefatos exibidos,
vinculados a situações de uso cotidiano – como uma máquina de escrever Olivetti
ou uma máquina de costura – pareciam corpos estranhos no recinto de um museu.
Em 1948, Lina montou a Exposição de Cadeiras, contemplando a evolução
desta peça de mobiliário desde o século xv até os modelos projetados por Le Corbusier. O masp hospedou também exposições de Flávio de Carvalho, Alexander Calder
e Portinari. Ainda naquele ano, German Bazin, diretor do Louvre, e o crítico de arte
argentino Jorge Romero Brest, deram conferências sobre arte contemporânea, ainda
que para um público reduzido.
Em 1949, foram criados o Clube Infantil de Arte, para crianças de 5 a 12 anos,
e a Escola de Cinema. Em 1950, destacaram-se na programação do museu a exposição de Le Corbusier, o Primeiro Salão de Propaganda e o Curso Livre de Desenho,
ministrado pelo arquiteto e pintor italiano Roberto Sambonet, autor do primeiro
26
27
Ibidem, p. 93.
BO BARDI, Lina. Função social dos museus. Habitat, São Paulo, n. 1. out. nov. dez. 1950, p. 17.
93
cartaz do masp [fig.46]. O ano seguinte contaria com um desfile da coleção do estilista francês Christian Dior, com as exposições de Paul Klee, Lasar Segall e Max
Bill, e a mostra de Cartazes Suíços.
Esse período de deslanche do museu seria ainda marcado pela implementação
de ousados projetos que o auxiliariam em sua missão educativa e de modernização
cultural: a criação da revista Habitat, no final de 195028, do Instituto de Arte Contemporânea (iac) e da Escola de Propaganda, ambos em 195129. Nesse contexto, Habitat teria como uma de suas principais funções promover as agendas do masp e de
suas escolas, estimulando a formação de público para as exposições e os cursos ofertados, contribuindo para a atualização cultural na cidade.
O sentido de Habitat
De acordo com Stuchi, correspondências entre Bardi e Sigfried Gideon, secretáriogeral do ciam, no final da década de 1940, mostram que o projeto inicial de Habitat
previa o engajamento do arquiteto Oscar Niemeyer, de Eduardo Kneese de Mello,
diretor do Instituto dos Arquitetos do Brasil (iab), do pintor Candido Portinari, de
Lina e também de seu colega e conterrâneo, o arquiteto Giancarlo Palanti30, o qual
vivia no Brasil desde 1946.31 Em um texto da década de 1960, Lina recorda conversas com Niemeyer em torno dessa possível parceria editorial:
Nas andanças pela velha Lapa, pelo velho Rio, com os “velhos amigos” à procura de
uma tipografia que pudesse imprimir uma revista de Arquitetura, ponte Rio–São
Paulo (como estávamos projetando), [Niemeyer] repetia: “Você chega da Europa, você complica demais”. E o veredicto final dele e dos “velhos amigos”: “Esta aliança
Rio–São Paulo não tem sentido, cada um vae (sic) ficar no seu lugar”. Assim nasceram duas revistas: Habitat, feita por nós em São Paulo (documento de Cultura Brasileira, mesmo no seu português de importação), e Módulo, feita por eles no Rio, (importante e primeiro esforço de revista de Arquitetura no Brasil).32
Ao ser lançada em 1950, apenas Palanti se confirmaria como um dos colaboradores
da publicação, ao lado de Lina e Bardi, levando-se em consideração o grupo reunido
28
Circulavam no Brasil, quando nascia Habitat, as seguintes revistas especializadas em arquitetura: Acrópole (1938–1971)
e Arquitetura e Engenharia (1946–1965).
29
O iac (1951–1953) era voltado ao desenho industrial, tendo oferecido cursos de História da Arte, escultura, pintura,
desenho artístico, música, dança, fotografia, teatro, cinema, tecelagem e moda. A Escola de Propaganda, primeira da área
no Brasil, manteve-se vinculada ao masp até 1955, quando mudou-se para instalações próprias. Em 1971, mudou o nome
para Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), mantido até hoje.
30
Giancarlo Palanti pertenceu à segunda geração de arquitetos racionalistas italianos, formado em Milão em 1929. Tinha
experiência em projetos arquitetônicos e urbanísticos e no design de mobiliário e interiores. Colaborou para revistas na
Itália e foi professor do Politécnico de Milão (1935–1946). No Brasil, tornou-se sócio dos Bardi no Studio de Arte Palma e
integrou o corpo docente do iac.
31
STUCHI, op.cit.
32
STUCHI, op.cit., p. 58.
94
[fig.44] Bardi e Chateaubriand durante a cerimônia de inauguração do
MASP. Fonte: TENTORI, Francesco. P.M. Bardi: com as crônicas artísticas do
“L’Ambrosiano” 1930-1933. São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi: Imprensa Oficial do Estado, 2000.
[fig.45] Seção da Vitrine das Formas. Fonte:
LEON, Ethel. IAC – Primeira escola de design do Brasil. São Paulo: Blucher, 2014.
[fig.46] Cartaz Visite o Museu de Arte de São
Paulo, de Roberto Sambonet (1951). Fonte:
MELO, Chico Homem de; RAMOS, Elaine.
Linha do tempo do design gráfico no Brasil. São
Paulo: Cosac Naify, 2011.
95
na fase embrionária do projeto da revista.
Com amplo interesse na produção das mais diversas áreas da cultura no Brasil,
Habitat se propunha a divulgar e debater a arquitetura, as artes plásticas, a fotografia, o cinema, a música, o desenho industrial e a publicidade. Segundo Stuchi, Habitat atuaria também “como meio de ampliar os limites e alterar o gosto estabelecido,
ultrapassando as fronteiras culturais da classe dirigente”33. Seu discurso de modernidade, baseado nos valores, expectativas e também nas frustrações vividas desde as
experiências pregressas de Lina e Bardi na Itália, encontraria na arquitetura seu
principal veículo. E isso fica claro no trecho do editorial do primeiro número da revista, o qual seria reafirmado na edição 57, em comemoração ao aniversário de dez
anos da publicação:
(“Habitat” significa ambiente, dignidade, conveniência, moralidade de vida, e portanto espiritualidade e cultura: é por isso que escolhemos para título desta nossa revista uma palavra intimamente ligada à arquitetura, à qual damos um valor e uma interpretação não apenas artística, mas uma função artisticamente social.)34
A escolha da palavra “habitat” remete ainda ao artigo “Na Europa a casa do homem ruiu”, publicado em fevereiro de 1947, na revista Rio. Nele, Lina vislumbrava
a reconstrução da Itália no pós-guerra em favor da simplicidade e funcionalidade
dos objetos e da moradia e afirmava “que a casa é quem a habita [grifo meu], é ‘ele
mesmo’”. Possivelmente, esta identificação e harmonia entre o ambiente e aquele
que o ocupa, entre a construção e quem dela faz uso, também tenha sido válida para
a relação estabelecida entre a própria revista e seus fundadores e colaboradores, no
momento em que a publicação preparava-se para levar ao público brasileiro sua
concepção de vida moderna.
O longo percurso
Habitat, cuja redação também funcionou no prédio dos Diários Associados durante
a maior parte de sua existência35, circulou por 14 anos e teve 84 números publicados,
entre outubro de 1950 e julho 1965, encerrando suas atividades logo após a instalação do regime militar no país. Ao longo desse período, a liderança do corpo editorial
– que reuniu arquitetos, artistas e jornalistas entre seu variado grupo de colaboradores, geralmente integrantes do círculo de amizades do casal Bardi – poucas vezes se
alterou.
Do primeiro ao nono número, entre outubro de 1950 e dezembro de 1952, a
33
STUCHI, op.cit., p. 14.
PREFÁCIO. Habitat, São Paulo, n.1. out. nov. dez. 1950, p. 1.
35
A partir da edição 66, de 1961, a redação, administração e publicidade da revista passou a funcionar no endereço da
gráfica Habitat Editora, na rua dos Lavapés, 540, São Paulo.
34
96
revista contou com a direção geral de Lina Bo Bardi. Nas edições 10 a 13, entre janeiro e outubro de 1953, Flávio Motta, ex-diretor do Jornal Artes plásticas, assistente de Bardi no museu e professor do iac, assumiu temporariamente a posição, ele
que era uma dos principais colaboradores da revista. Nos números 14 e 15, durante o
primeiro semestre de 1954, Lina retornou, compartilhando o cargo com seu marido.
Foi neste momento que o casal afastou-se definitivamente do comando da
equipe editorial de Habitat, alegando demandas urgentes do masp36. Em editorial
intitulado Declaração, publicado no número 15 da revista, eles assim informaram
seu desligamento:
Passados já agora quatro anos da fundação desta revista, cujo escopo foi proporcionar
ao Brasil uma lide onde os muitos problemas das artes pudessem ser apresentados e
debatidos tendo sempre em vista a necessidade indispensável da crítica, os seus diretores e editores podem se comprazer, hoje, com o longo e profícuo caminho percorrido
e com o fato de na esteira de Habitat terem aparecido tantas outras revistas de arquitetura e arte. Mas qualquer esforço ou labor verdadeiramente apaixonado não pode
prosseguir até o infinito, principalmente no campo das artes onde a atividade deveras
séria subentende uma polêmica. Ora, a nossa polêmica não pode perdurar mais, pois
teríamos que repetir o que já foi dito e repetido, e acabaríamos nos tornando monótonos,
deixando assim de interessar aos leitores.37 [Grifo meu.]
Para além das ocupações com as viagens internacionais do acervo do museu como
motivo oficial para o afastamento do casal da condução da revista, o editorial assinado por ambos expressa uma sensação de esgotamento das discussões promovidas
ao longo dos quatro anos iniciais da publicação e o risco iminente da monotonia.
Sobre esse aspecto, talvez caiba lembrar as ideias de Berman sobre a modernidade
como aventura e a modernidade como rotina. Segundo ele, se a aventura modernista – marcada pela eterna construção de caminhos, “não importa aonde levem” – se
convertesse em rotina, a modernização se transmutaria numa “sentença de morte
para o espírito”38. Para os Bardi, desvencilhar-se de Habitat pode ter sido, portanto,
uma maneira de preservar essa “aventura modernista própria”, transferindo-a a
novos desbravadores.
O momento da saída dos fundadores da publicação coincide também com a
36
Em função do questionamento da autenticidade das obras do museu por parte de alguns órgãos de imprensa locais, em
1953 a coleção do masp foi enviada à França para verificação. Após certificação de legitimidade, peças do acervo foram
exibidas no Musée de L’Orangerie, em Paris, e depois em outros museus na Europa e nos Estados Unidos, numa turnê
que seguiu até 1957. Em entrevista a Fabiana Stuchi, Luiz Hossaka, ex-aluno do iac e secretário de Bardi no masp, apresentou, em sua opinião, outros dois motivos que teriam levado o casal Bardi a se afastar da revista: a imposição de um
novo projeto gráfico por parte do editor Rodolfo Klein e o forte caráter crítico da publicação, que nem sempre era bem
aceito socialmente. Ver STUCHI, op.cit.
37
DECLARAÇÃO. Habitat, São Paulo, n. 15. mai. jun. 1954, p. 1.
38
BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia da Letras, 2007, p. 284.
97
conclusão de sua etapa inaugural. Período no qual foi talhado o caráter de Habitat e
quando foram postos em evidência temas considerados prioritários no campo da arte e da arquitetura no Brasil naquele momento.
Acreditamos que os quinze volumes da Habitat contém em si todo um panorama bem
como a perspectiva de bom movimento artístico brasileiro entendido sob o ponto de
vista da avaliação dos seus artífices; procuramos defender as verdadeiras personalidades que operam no supradito panorama; diferenciamos sempre a arte da mundanidade; jamais incensamos qualquer indivíduo que, sem cultura e sem ideias, tenha tratado dos problemas da arte como assunto de botequim; nunca comparticipamos de excessivos otimismos sobre a grandeza de certos arquitetos elevados a monumentos nacionais; jamais outorgamos diplomas a artistas após quinze lições; e assim por diante.39
Ainda neste mesmo texto, o então editor Rodolfo Klein assegurava a preservação da
herança deixada pelos fundadores: “Habitat, não sofrerá de solução de continuidade: prosseguirá independente como tem sido, com sua crítica sempre construtiva e
seu apoio aos reais valores nos vários setores onde atua e penetra”40. Vale ressaltar
que, a partir da edição 46, publicada em janeiro de 1958, Bardi retornaria como colaborador esporádico.
Na edição 17, o cargo de diretor geral é extinto e Habitat passa a funcionar sob
o gerenciamento de diretores de seção. O arquiteto carioca Abelardo de Souza, veterano colaborador da revista, professor na fau usp e sócio de um escritório em São
Paulo com os arquitetos Hélio Duarte e Zenon Lotufo, ficou à frente da direção de
arquitetura durante as edições 16 a 24, ou seja, entre maio de 1954 e outubro de
1955. A direção de artes plásticas foi confiada a José Geraldo Vieira desde a edição
16 e, entre os números 19 e 21, Ruggero Jacobbi chefiou a direção de teatro e Maria
de Lourdes Teixeira, a de literatura.
A partir da edição 25 [fig.47], lançada em dezembro de 1955, até o fechamento
da revista, dez anos depois, a direção de arquitetura – a qual o tema do desenho industrial estava vinculado – foi ocupada pelo escritor, jornalista e crítico de arte Geraldo Ferraz. Integrante do movimento modernista brasileiro, Ferraz havia sido secretário da Revista de Antropofagia e fundador dos periódicos Correio da Tarde e
Vanguarda Socialista.41
Ainda nessa ocasião, ao ser publicado seu 25o número42, Habitat comemorou
39
DECLARAÇÃO. Habitat, São Paulo, n. 15. mai. jun. 1954, p. 1.
Ibidem, p.1.
41
MERLLI, Giovanna; CAPPELLO, Maria Beatriz. Geraldo Ferraz na revista Habitat: a discussão político-social. Horizonte Científico. Universidade Federal de Uberlândia, Vol. 5, n. 2, 2011.
42
Também a partir do número 25, os cargos de diretor responsável e redator-chefe de Habitat foram acumulados por
Geraldo Serra. De acordo com Stuchi, entretanto, Serra aparecia no expediente como diretor responsável já que Rodolfo
40
98
seis anos de existência, passando a circular mensalmente. Em seu editorial, um
“novo” programa de trabalho era apresentado, com foco na arquitetura, no urbanismo e nas artes, além de demonstrar um claro entusiasmo com a perspectiva de
uma etapa de desenvolvimento e industrialização no país, aventada com a chegada
de Juscelino Kubitscheck à Presidência da República naquele mesmo ano.
Inspira-nos a certeza de que, desta maneira, estaremos dando novo impulso e maior
objetividade à aspiração do equipamento urbano, atenta à dinâmica de um progresso
que já deixa de ser adstrito ao plano da subsistência, para alçar-se a uma industrialização habilitada a dispensar importações onerosas de instrumentos de trabalho, proporcionando-nos breve, a possibilidade de um surto de autossuficiência, o grande espaço econômico, do sul do nosso hemisfério.43
Na edição 57, ao completar dez anos em circulação, a revista confirmava sua busca,
apesar dos inúmeros desafios, em “espelhar a vitalidade esplêndida dos que trabalham e se sentem inspirados por estabilizar em formas e instituições, em iniciativas
de ideias, a arte brasileira”44:
Se o papel de pioneiros ainda deve ser evocado, inauguramos a segunda parte do século xx no Brasil com uma publicação que não possuía público, acústica e compreensão.
Hoje, essas condicionantes já se fazem sentir; entretanto dificuldades econômicas e
financeiras, no processo de crescimento do país, apresentaram-se com um cortejo de
obstáculos, aos quais nos sobrepomos sempre, cuidando do futuro que emerge destas
semeaduras.45
Publicada em julho de 1965, a última edição de Habitat [fig.48], entretanto, se mostraria abatida pelas dificuldades e obstáculos que continuaram a se impor. Se no cenário político Brasília e o país sucumbiam ao regime militar, no campo da arquitetura e do desenho industrial as notícias não eram melhores. Na capa, a revista
anunciava a saída de cena de grandes mestres: De luto a arquitetura mundial: desaparecem Rino Levi e Le Corbusier46. E em seu último editorial lia-se: Falta de perspectiva profissional47, em referência à insatisfação de alunos da fau usp diante das
poucas oportunidades para o desenvolvimento da carreira. Lamentava-se a reduzida
participação de arquitetos na construção de prédios na cidade, a ausência de um
plano piloto urbanístico em São Paulo e a não regulamentação da profissão. “No
Klein, proprietário da Habitat Editora e agora redator da revista, era impossibilitado pela legislação brasileira de assumir
a posição oficialmente por ser estrangeiro.
43 o
6 ANO. Habitat, São Paulo, n. 25. dez. 1955, p. 1.
44
HABITAT, ano décimo. Habitat, São Paulo, n. 57. nov. dez. 1959, p. 1.
45
Ibidem, p.1.
46
FERRAZ, Geraldo. De luto a arquitetura mundial: desaparecem Rino Levi e Le Corbusier. Habitat, São Paulo, n. 84.
jul. ago. set. out. nov. dez. 1965, p. 17-8.
47
FALTA de perspectiva profissional. Habitat, São Paulo, n. 84. jul. ago. set. out. nov. dez. 1965, p. 14.
99
Plano Nacional de Habitação, o concurso de arquitetos que deveria ser o máximo
possível, foi irrisório e no campo da produção industrial, no Brasil que é o maior
produtor de café, não existe cafeteira com desenho nacional”48, observava Habitat.
A área do desenho industrial, problematizada, nesse caso, a partir de uma crise
no mercado de trabalho dos arquitetos, lidava com entraves como a compra de projetos concebidos no exterior: “a indústria também não os utiliza [os arquitetos] na
racionalização da produção ou na melhora da aparência dos seus produtos e prefere
pagar ‘royalties’ a desenhos vindos de outras partes”49.
A revista despedia-se. Era evidente seu raquitismo editorial (matérias em tom
burocrático), gráfico (formato reduzido e diagramação engessada) e comercial (uso
de calhaus50 da Gráfica Habitat e reduzida quantidade de anúncios pagos) se comparada ao vigor dos primeiros anos. O ciclo de Habitat havia se consumado, ficando
ainda irrealizadas muitas das expectativas que, 14 anos atrás, haviam alimentado
seu surgimento.
A forma gráfica de Habitat
A publicação teve periodicidade variada, alternando temporadas de circulação trimestral, bimestral e mensal.51 Sua distribuição também oscilou ao longo dos anos,
embora mantivesse representação no Rio de Janeiro e, eventualmente, em outros
pontos do país, como Salvador, Porto Alegre, Recife e Belo Horizonte, o que ampliava seu alcance a outras regiões. No exterior, Habitat contou com representantes na
Argentina, no Uruguai, em Portugal e nos Estados Unidos. Em atenção ao público
leitor internacional, a revista publicou, mesmo com frequência irregular, pequenos
resumos em inglês de suas principais matérias.
O aspecto gráfico de Habitat é um tema rico e complexo, merecedor de estudos específicos, e que ultrapassa os limites desta pesquisa. De modo geral, entretanto, pode-se afirmar que a revista adotou, até o início da década de 1960, recursos típicos do layout modernista, como páginas arejadas por generosas áreas em branco, a
valorização da fotografia, muitas vezes utilizada em grandes formatos e o uso da
fonte tipográfica Futura. Embora a autoria do projeto gráfico não conste no expediente da revista, é visível, nesta fase inicial a influência estética de Domus, uma das
publicações para as quais Lina colaborou ainda na Itália.
Suas dimensões originais, 23 cm x 31,5 cm (formato fechado), foram reduzidas
em junho de 1963, na edição 72 [fig.49], passando para 21cm x 28,5 cm, ocorrendo aí
48
Ibidem, p. 14.
Ibidem, p. 14.
50
No jargão jornalístico, calhau é um anúncio do próprio periódico usado para ocupar espaço publicitário ou de texto não
utilizado conforme previsão.
51
A periodicidade da Habitat comportou-se da seguinte forma: edições 1 a 13, trimestrais; 14 a 25, bimestrais; 25 a 39,
mensais; 40 a 63, bimestral; e 64 a 84, trimestral.
49
100
[fig.47] Habitat No 25. Fonte: Biblioteca
FAU/USP. Reprodução: P. Amorim.
[fig.48] Habitat No 84. Fonte: Biblioteca
FAU/USP. Reprodução: P. Amorim.
[fig.49] Habitat No 84. Fonte: Biblioteca
FAU/USP. Reprodução: P. Amorim.
[fig.50] Abertura da seção Ambiente
desenho industrial. Habitat No 79.
Fonte: Biblioteca FAU/USP. Reprodução: P. Amorim.
[fig.51] Anúncio Móveis Bloch. Habitat
No 2. Fonte: Biblioteca do MASP.
101
também reformulação na diagramação interna. O miolo era impresso em preto e
branco, salvo raras exceções – inicialmente usava-se o papel couché, substituído em
seguida por papel offset e, nas últimas edições, o papel jornal. A capa era composta,
geralmente, a partir de um fundo colorido de cor chapada, sobre o qual eram aplicadas fotos de pinturas, esculturas ou ilustrações. Outra característica gráfica da revista era o uso de papéis especiais no expediente, nos resumos em inglês e na demarcação de conteúdo específico, como em aberturas da seções [fig.50], por exemplo.
Entre seus anunciantes [fig.51] figuravam empresas como General Motors,
Antárctica, Eternit, Air France, Elevadores Atlas, Tintas Sherwin Williams, além
de bancos e indústrias de equipamentos e materiais de construção. O setor de decoração incluía lojas de tecidos, antiquários e serviços afins. Dentre os fabricantes de
móveis modernos constavam, entre outros, Móveis Zanine, Branco e Preto, Móveis
Teperman, Joaquim Tenreiro e Ambiente, este último um dos poucos a seguir como
anunciante da revista até sua última edição.
Batizada como “Habitat – Revista das artes no Brasil”, seu subtítulo seria ajustado periodicamente, sinalizando aos leitores afinações ocorridas na abordagem editorial da publicação, em decorrência da seleção de novos temas em destaque.
No caso específico do termo “desenho industrial”, este seria incorporado ao
subtítulo de Habitat em duas épocas distintas. A primeira, ao longo das edições 14 a
24, onde lia-se, no topo da página do editorial, “Revista de cultura contemporânea,
dedicada à arquitetura, pintura, escultura, desenho industrial e artes visuais” [grifo
meu]. Foi assim entre janeiro de 1954 e dezembro de 1955, período marcado pela
despedida do casal Bardi da direção da revista e pela gerência de Abelardo de Souza
na seção de arquitetura. Esse foi também o momento posterior ao encerramento das
atividades do iac, fato que, pelo visto, não desencorajou a inclusão do termo desenho industrial à descrição da publicação, embora, curiosamente, nesse mesmo período, a publicação de matérias relativas ao tema tenha sido inexistente.
Dez anos depois, entre março de 1964 e julho de 1965, nas edições 76 a 84, ciclo
final de Habitat, o subtítulo da publicação diria, também na página do editorial,
“Revista brasileira de arquitetura, artes plásticas, decoração interna, paisagismo,
ambiente, mosaico e desenho industrial”[grifo meu]. Nessa época, meados da década
de 1960, o campo do desenho industrial no país já se apresentava mais organizado e
articulado, através de iniciativas de natureza educacional e profissional. Assim, pode-se compreender a incorporação do termo ao subtítulo de Habitat, nesse período,
também como reflexo desse novo momento da atividade no Brasil.
Cronologicamente, observa-se a concentração de matérias e artigos relacionados ao desenho industrial em Habitat entre as edições 1 a 15, publicadas entre 1950 e
102
1954; entre as edições 46 e 58, publicadas entre 1958 e 1960; e entre as edições 69 a
81, publicadas entre 1962 e 1964. Os principais traços da comunicação promovida pela revista a respeito desse tema são comentados a seguir.
O escrito fundacional: Max Bill e a beleza como função
Publicado na edição número 2 de Habitat, de janeiro/fevereiro/março de 1951, o
ensaio Beleza provinda da função e beleza como função52 [fig.52], do artista concreto,
arquiteto e designer Max Bill, inaugura – e estabelece as coordenadas para – a reflexão sobre a problemática do desenho industrial na revista. Um dos principais teóricos e propagadores na Alemanha do conceito da gute form, ou boa forma53, Bill
apresenta nesse texto as noções estéticas que deveriam balizar a concepção e a produção dos objetos industrializados nas sociedades modernas, o papel do desenhista
industrial nesse contexto e como deveria se dar a formação técnica e cultural desse
novo profissional. Essas ideias iriam ecoar nos números seguintes de Habitat – a
qual, naquele momento, dedicava-se a divulgar o início das atividades do iac.
Nesse sentido, observa-se, naquele momento, a ascendência intelectual de
Max Bill sobre a revista nas questões contemporâneas da forma, reflexo da ampla
aceitação de suas ideias, inclusive pelo casal Bardi54 e, consequentemente, pelo
masp. Internacionalmente reconhecido, Bill recebeu, em 1951, o Grande Prêmio de
escultura da Bienal de Arte de São Paulo e o Grande Prêmio da Bienal de Veneza. A
abertura de sua exposição retrospectiva no masp, que vinha sendo articulada desde
1949, foi planejada para coincidir com a própria inauguração do iac, onde posteriormente viria a proferir uma palestra, em visita ao Brasil. Vale ressaltar que esses
fatos foram determinantes para a inscrição da arte concreta no panorama latinoamericano, dada a importância de Bill nessa vertente artística.
Max Bill era ainda o ex-aluno da Bauhaus que então se preparava para liderar
o projeto educacional da Hochschule für Gestaltung (hfg–ulm)55, na cidade de
Ulm, no sul da Alemanha, uma espécie de atualização da pioneira escola surgida no
52
Acreditamos que este artigo seja baseado na conferência beauty as function and based on function, proferida por Max
Bill, em 1948, na Werkbund suíça. SPITZ, René. hfg ulm: the view behind the foreground. Stutgart, London: Axel Menges, 2002.
53
A gute form ou boa forma foi um conceito central do neofuncionalismo na Alemanha, a partir dos anos 1950. Rechaçava o mau design e estava em oposição a modismos com fins comercias. Dizia respeito a “uma forma simples, funcional e
com material adequado, de validade atemporal e alto valor de uso, longa vida útil, boa compreensibilidade, processamento e tecnologia, adaptação ergonômica e sustentabilidade ecológica”. SCHNEIDER, Beat. Design – uma introdução: o
design no contexto social, cultural e econômico. São Paulo: Blucher, 2010, p. 114.
54
Pietro Maria Bardi e Max Bill conheceram-se no I Congresso de Reconstrução, em Milão, em 1945. GARCÍA, Maria
Amália. Ações e contatos regionais da arte concreta. Intervenções de Max Bill. Bill em São Paulo em 1951. Revista USP,
São Paulo, n.79, set. nov. 2008.
55
Também conhecida no Brasil como Escola Superior da Forma ou Escola de Ulm e na Argentina como Escuela Superior
de Diseño de Ulm.
103
[fig.52] Artigo Beleza provinda da função e beleza como função. Habitat No 2. Fonte:
Biblioteca do MASP.
104
primeiro pós-guerra, em Weimar. Portanto, não é por acaso que um escrito seu, publicado logo na segunda edição de Habitat, figure como pièce de résistence a respeito
da forma e do desenho industrial, o qual, em seu primeiro parágrafo, assumia de
modo irrevogável: “nós temos o dever de fabricar produtos úteis, com material adequado, facilmente substituíveis, recorrendo aos meios melhores de que dispomos e
cumprindo responsabilidades sociais”56. Discurso que encontrava ressonância na
ideia da arquitetura de função artisticamente social defendida por Lina e Bardi no
primeiro editorial da revista, e no próprio iac.
De acordo com Bill, novas formas “surgem por toda a parte e não do puro senso de responsabilidade em relação ao futuro consumidor”57. Para ele, no entanto, a
consideração aos aspectos sociais deveria estar na base da concepção estética dos objetos. E nesse sentido, não se deveria buscar atribuir a eles a “beleza em conformidade ao gosto da época”. Ao contrário, inspirado no racionalismo da engenharia e
no conceito de “beleza de conformidade à razão”, proposto por Henry van de Velde,
Bill daria um passo adiante, defendendo a “beleza entendida como função”: “Para
nós já é óbvio que não se trata mais de desenvolver a beleza partindo somente da
função; nós concebemos a beleza como unida à função, se é que também ela é uma
função”58.
Ao abordar aos problemas contemporâneos da forma, Bill não poupou nem
mesmo a figura do desenhista industrial, o qual, em sua perspectiva, também carregava uma parcela de responsabilidade desse estado de coisas.
Nestes últimos anos se delineou cada vez mais uma nova profissão, a do “projetista
industrial”, o industrial designer, como é chamada nos países anglo-saxônicos, onde
medrou mais que entre nós. Se nós examinamos os produtos de tais projetistas (que
em parte se desenvolveram em iniciativas gigantescas) devemos constatar que alguns
são modernos somente de maneira superficial, que revelam muitas vezes deficiências,
índices de uma leviandade culpável, e que a bela fachada muitas vezes esconde imperfeições técnicas.59
Também seria criticado por Bill o styling60 norte-americano – estética industrial
caracterizada pelo emprego de formas aerodinâmicas –, símbolo da “beleza em conformidade com o gosto da época”, funcionando como estímulo ao consumo.
De tal maneira se alastrou também um novo estilo, aplicado em produções de massa:
56
BILL, Max. Beleza provinda da função e beleza como função. Habitat, São Paulo, n. 2. jan. fev. mar. 1951, p. 61.
Ibidem, p. 61.
58
Ibidem, p. 61.
59
Ibidem, p. 62.
60
O vitrinista francês emigrado para os Estados Unidos, Raymond Loewy, foi pioneiro do styling. Ele estilizava os produtos a partir de linhas aerodinâmicas, dando a eles aparência de novos e bonitos, estimulando assim as vendas.
SCHNEIDER, op.cit.
57
105
a assim chamada linha aerodinâmica. Esta, adotada hoje para o chassis dos automóveis, é em muitos casos um puro formalismo, e as noções que foram por muitos anos
desprezadas, mesmo depois de terem sido patenteadas por Jaray em sua forma mais
pura, são agora desfrutadas por razões de moda. Assim se constroem para os automóveis enormes caixas que diminuem da maneira mais desagradável nossas ruas e pontos de estacionamento. Nestas circunstâncias é óbvio que se aplique a linha aerodinâmica também aos aparelhos caseiros, carrinhos de bebê, rádios, e podemos considerar-nos afortunados por não ter esta epidemia ainda invadido todos os ramos da indústria.61
A importância do desenhista industrial na adoção da abordagem da “beleza entendida como função”, entretanto, não era desconsiderada por Bill. Ao contrário, caberia a esse profissional promover essa atualização estética a qual não estaria a serviço
da moda e do consumo desenfreado.
Consideremos ainda uma vez porque julgamos desejável o industrial designer: a produção em massa dos bens de consumo deve ser moldada de tal maneira, que delas
surja não somente uma beleza relativa, mas que esta beleza se torne pela mesma função. Os bens de consumo para as massas serão futuramente a medida para o nível cultural de um País. Os projetistas de tais bens terão pois, em última análise, a responsabilidade de grande parte de nossa cultura visual, assim como os arquitetos devem julgar aquela do sadio desenvolvimento de nossas cidades e residências.62
Essa responsabilidade do desenhista industrial – contribuir para a melhora do padrão de vida da população ao promover o acesso democratizado aos bens de consumo de alta qualidade estético-funcional – surgiria como tema ainda mais pertinente
e renovado por ocasião da construção de Brasília, no Congresso Internacional Extraordinário de Críticos de Arte, realizado em 1959, no Brasil. Evento repercutido por
Habitat e que será comentado mais adiante.
Para Bill, no entanto, era necessário antes superar o “problema educativo”,
visto que, segundo ele, não havia, em qualquer parte, escolas capazes de formar pessoal capacitado para a atuação na indústria com o domínio dessa abordagem estética. E assim, a hfg–ulm surgia como uma esperança. De acordo com Bill, a preparação do desenhista industrial deveria abarcar a prática artesanal, o contato com os
novos materiais, os conhecimentos sobre modelagem, história, mecânica, física, cálculo, além de atividades laboratoriais. “Em poucas palavras, na base de uma inicial
formação artezã [sic], chegar a uma completa cultura artística, técnica e espiritual”63, resumiu. Em sua conclusão, Bill reafirmou seus compromissos nesse sentido.
61
Ibidem, p. 62.
Ibidem, p. 64.
63
Ibidem, p. 64.
62
106
Todavia hoje nossos esforços devem seguir duas direções: uma, a de colaborar com os
produtores; a outra de formar uma jovem geração de projetistas industriais idôneos,
os quais, utilizando sua própria experiência, os próprios conceitos, o próprio senso de
responsabilidade saibam dar uma forma a estas coisas que usamos diariamente, e a
toda hora, do alfinete à mobília da casa; saibam moldar de conformidade com a beleza que se desprende da função e que por sua própria beleza cumpre uma função própria.64
Anexo a este ensaio publicado em cinco páginas e ilustrado por imagens de esculturas e quadros concebidos pelo autor, uma ressentida e irônica nota – bem ao estilo
da lavra bardiana – foi acrescentada pela revista, a respeito da recente exposição de
Bill no masp65 e da mínima repercussão do evento na imprensa brasileira:
Talvez esta exposição tenha sido prematura para o nosso público, pois os problemas
da arte atuais ainda não foram expostos e debatidos. (...) A assim chamada crítica (crítico é aquela pessoa que, defrontando uma obra de arte, se sente num momento crítico), demonstrou mais uma vez a sua inexistência. E foi uma sorte, pois qual teria sido
o palavrório em frente da obra de Max Bill, que para ser entendida exige um preparo
histórico e cultural geral. Entretanto, o Museu de Arte registrou mais uma vez um
acontecimento de caráter internacional, do qual vão falar as grandes revistas estrangeiras de arte.66
Apesar dos esforços do museu em apresentar experiências atuais no âmbito das artes
e do design no cenário internacional, a fraca ressonância entre os frequentadores da
instituição naquele momento fazia com que essa tarefa assumisse, por vezes, tons de
árdua catequese cultural, como demonstrado no trecho acima. O processo de construção do gosto moderno empreendido pelo masp esbarrava então na limitada capacidade de fruição das obras por parte não só do público como também da crítica, que
segundo a revista, era “inexistente”67. Sem falar no boicote às ações do museu por
parte dos jornais concorrentes dos Diários Associados, os quais não se engajavam
nesse tipo de divulgação. Restaria, portanto, ao masp, aguardar o reconhecimento de
sua atuação por parte da imprensa especializada internacional. É interessante notar,
nesse sentido, que o papel da revista na divulgação das ações do museu e na difusão
do gosto moderno se dava tanto pela via da entusiasmada promoção institucional
64
Ibidem, p. 64.
Foram apresentadas mais de sessenta obras e trinta fotografias, plantas arquitetônicas e desenhos. Ver GARCÍA, op.cit..
66
Ibidem, p. 65.
67
Segundo Wollner, “para se ter ideia de como era o interesse cultural dos críticos de arte da época, nenhuma nota, análise ou comentário foi publicado nos jornais sobre a exposição deste antigo aluno da Bauhaus e um dos artistas mais influentes da nova geração”. Ver WOLLNER, Alexandre. Alexandre Wollner: design visual 50 anos. São Paulo: Cosac Naify,
2003, p. 53.
65
107
quanto pela amarga exposição de seus insucessos. A aventura de modernização nos
trópicos não aconteceria livre de solavancos, e os desabafos, como visto, também estariam presentes desde os primeiros números de Habitat.
O iac e o ensino do desenho industrial
Inequivocamente, o acontecimento que introduziu o tema do desenho industrial aos
leitores de Habitat foi a criação e o funcionamento do iac, como já observado. Na
primeira edição da revista, no artigo A função social dos museus, Lina anunciava:
“Para completar o caráter didático do Museu de Arte, foi criado o Instituto de Arte
Contemporânea, que se dedicará particularmente ao desenho industrial e às artes
aplicadas”68. Nesse mesmo número, na espirituosa coluna coletiva Crônicas – reunião de pequenas notas e depoimentos, redigidos em tom irônico e crítico pela equipe
da revista, sob a alcunha “Alencastro” – foi transcrito o panfleto de divulgação do
curso. Ali eram enunciados os benefícios dos quais São Paulo desfrutaria a partir da
atuação de profissionais formados pelo iac.
Nas casas tomarão naturalmente seu lugar os móveis simples, cômodos, proporcionados, isto é; os móveis estudados e desenhados; nas vitrinas ver-se-ão objetos que adornam e se pensará que sua origem está no bom desenho, executado por alguém que estudou, compreendeu, percebeu; sobre as paredes veremos cartazes agradáveis, vivos,
expressivos; e assim a própria rua, sala de recepção da cidade, terá seus aspectos melhorados.69
A nota é entusiástica, afinal, não só a própria Habitat acaba de dar início a sua missão, mas a nova escola do masp também se prepara para entrar em funcionamento.
É preciso convencer a respeito da importância de se formar pessoal capacitado para
atuar no crescente setor industrial, especialmente em São Paulo, em sintonia com os
preceitos modernistas defendidos internacionalmente. É preciso, também, arregimentar candidatos para o preenchimento das vagas do curso. Na segunda edição da
revista, de janeiro/fevereiro/março de 1951, a mesma seção insistiria no tema, publicando a nota Desenho Industrial.
Está se fazendo em São Paulo uma experiência de um certo interesse para o assim
chamado desenho industrial, termo aliás errado para a indicação do gosto e da contemporaneidade da forma dos produtos manufaturados e fabricados em série. A experiência têm [sic] como centro o Museu de Arte, e mais especificamente o Instituto de
Arte Contemporânea, escola experimental onde 25 alunos frequentam cursos de desenho, de estudos dos materiais, técnicos, a fim de formar uma mentalidade, ou me68
69
BO BARDI, op.cit., 1950, p. 17.
DESENHO industrial. Habitat, São Paulo, n. 1. out. nov. dez. 1950, p. 94-5.
108
lhor, uma paixão raciocinada para a forma. Estes alunos, embora procedentes de escolas de arte ou arquitetura, recomeçam ex-novo, devem esquecer quanto aprenderam e
considerá-lo como experiência negativa; isto porque, na maioria dos casos o ensino teve seus epicentros nas imitações de modelos antigos, no culto dos professores que desconhecem os novos mestres. Uma escola de desenho industrial que está em início, não
pode prescindir da realidade do Bauhaus e do afamado Instituto de Chicago, para
mencionar só dois fatores decisivos. Temos certeza do resultado deste Instituto ser
grande benefício numa cidade onde há viva ansiedade para iniciar um novo ciclo de
história artística.70
Em mais esta aposta do museu no sentido de promover uma educação com vistas à
modernização local, a revista abraça a causa do desenho industrial desde seu primeiro número, comprometendo-se a acompanhar os desenvolvimentos da área no país:
“precisa-se lançar as bases para um novo espírito, para o novo clima, e é neste sentido que se está trabalhando. Habitat sentir-se-á satisfeita em anotar e divulgar todos
os esforços informados por este intuito”71.
Divulgado o curso – cujas inscrições ocorreram ao longo do ano de 1950, passando a funcionar em 1o de março de 1951 – enfatizou-se a abordagem de ensino inspirada em duas reconhecidas instituições internacionais, o Institute of Design de
Chicago, fundado em 1937 por Lazlo Moholy-Nagy, e a própria Bauhaus. Na mesma
medida, continuou-se a explicar a atividade do desenho industrial e como atuava o
“artesão do século xx”. Na terceira edição de Habitat, de abril/maio/junho de 1951,
esses tópicos foram contemplados na matéria intitulada Instituto de Arte Contemporânea [fig.53]:
A palavra Desenho – na atividade do Desenho Industrial – não significa apenas o ato
físico de desenhar – significa pelo contrário um conjunto de atividades, principiando
pelo estudo do problema a ser resolvido – atividade crítica e analítica, e terminando
pelo projeto da solução técnico-artística. O desenhista industrial é responsável pelo
projeto de todos os objetos – utensílios, móveis, etc, que nos cercam – que são produzidos industrialmente e que forma o ambiente em que vivemos diariamente, seja em
casa, na rua ou no local de trabalho. Não é portanto um exagero afirmar que o desenhista industrial é uma das personalidades mais importantes da vida moderna, porquanto é de sua capacidade e formação que depende todo o aspecto físico de nossa civilização.72 [grifo meu.]
O protagonismo desse profissional no desenvolvimento das sociedades industrializadas – e por consequência, no Brasil, que então vivenciava esse processo com intensidade, principalmente em São Paulo – é, assim, enfaticamente ressaltado pela revis70
DESENHO industrial. Habitat, São Paulo, n. 2. jan. fev. mar. 1951.
DESENHO industrial. Habitat, São Paulo, n. 1. out. nov. dez. 1950, p. 94-5.
72
INSTITUTO de arte contemporânea. Habitat, São Paulo, n. 3. abr. mai. jun. 1951, p. 62.
71
109
[fig.53] Artigo Instituto de Arte Contemporânea. Habitat No 3. Fonte: Biblioteca
FAU/USP. Reprodução: P. Amorim.
110
ta, atitude também presente no já mencionado artigo escrito por Max Bill.
Importa lembrar ainda uma outra componente cultural vinculada a essa ideia:
o movimento de arte concreta que, nos anos 1950, “teve o poder de modificar o
comportamento dos artistas, fazendo-os participar de projetos a serviço de necessidades comunitárias, transformando-os em designers”73. Alunos do iac como Maurício Nogueira Lima, Antônio Maluf, Emilie Chamie e Alexandre Wollner, por
exemplo, foram alguns dos participantes desse movimento, os quais viriam a se tornar pioneiros no campo do design moderno no país.74
Para além do detalhamento das disciplinas e da matriz curricular do iac,
chama a atenção a realçada afinidade entre o desenhista industrial e o arquiteto, o
que reflete não apenas a visão dos fundadores do curso e da revista em relação à
ideia da arquitetura total, mas favorece ainda a compreensão da natureza desse novo profissional, seja por parte dos leitores leigos ou daqueles ligados à área projetual. As credenciais da arquitetura, uma área consagrada no país, eram, portanto, utilizadas de forma a tornar o desenho industrial um pouco mais familiar – e talvez
menos ameaçador, em termos de disputa de mercado.
E, de fato, nesse sentido o desenhista industrial é um arquiteto: ele não projeta prédios, mas projeta rádios, automóveis, geladeiras, etc. – com o mesmo respeito pelos
materiais, pela função e pela técnica, como aquele que o arquiteto emprega em seus
projetos. E é justamente isso que o IAC visa: – a formação de desenhistas industriais
com a mentalidade de arquitetos.75
Em dezembro daquele mesmo ano, na primeira edição da revista argentina nueva
visión, dirigida por Tomás Maldonado, seria publicado o texto Diseño Industrial en
São Paulo, assinado por Pietro Maria Bardi. Essa seria uma forma de dar visibilidade ao curso, e ao masp, no país vizinho, já visitado por Bardi décadas atrás. Habitat,
por sua vez, anunciaria em sua sexta edição, de janeiro/fevereiro/março de 1952, na
seção Crônicas, o surgimento da revista portenha, sem deixar de mencionar o artigo
ali publicado de autoria do diretor do Museu de Arte a respeito do iac.
Apareceu em Buenos Aires uma nova revista de cultura visual dirigida por Tomás
Maldonado. Vai ser publicada cada três meses e por nosso lado auguramos que encontre grande número de leitores no Brasil. O sumário do primeiro número é testemunho do interesse para com os problemas das artes visuais de hoje; compreende vários
ensaios, entre os quais se destacam um de autoria de Ernesto N. Rogers sôbre a Unidade de Max Bill, outros de Cesar Jannello, Julio Pizzatti, Tomás Maldonado, Juan C.
73
WOLLNER, op.cit., 2003, p. 59.
LEON, Ethel; MONTORE, Marcello. Brasil. In: FERNÁNDEZ, Silvia. BONSIEPE, Gui. Historia del diseño en América Latina y el Caribe: industrialización y comunicación visual para la autonomia. São Paulo: Blucher, 2008.
75
Ibidem, p. 62.
74
111
Paz, Edgar Bayley, além dum artigo inédito de P. M. Bardi sobre o desenho industrial
em São Paulo e quanto vem sendo realizado no sentido de conquistar o gôsto das massas.76
Em 1953, entretanto, apenas dois anos após o início de seu funcionamento, o iac encerrou suas atividades. De acordo com Leon, diferentemente do que ocorreu com o
Institute of Design de Chicago, patrocinado pelo meio empresarial, a escola do masp
não contou com o necessário respaldo e investimento do setor industrial paulista, o
que acabou contribuindo para a sua extinção.77 Contudo, o fim do iac não excluiu
das páginas de Habitat o tema da necessidade de implantação do ensino do desenho
industrial moderno no país. Ainda na edição de outubro/novembro/dezembro de
1952, por exemplo, no artigo Artesanato e indústria, refletiu-se sobre o papel desses
dois modos de produção na sociedade contemporânea, insistindo na importância da
promoção da educação específica na área do desenho industrial.
Na América do Norte, centro do industrialismo moderno de que consiste a indústria
de hoje, o problema está encaminhado para uma solução: a iniciativa das escolas, museus, universidades, para exercitar e acostumar a mente ao desenho das formas belas
enquanto úteis, e úteis porque belas; esta iniciativa em pleno desenvolvimento.78 [grifo
meu.]
Além de, mais uma vez, fazer referências à Bauhaus e a posteriores experiências de
ensino semelhantes nos Estados Unidos, o texto remete, de forma indireta, e especialmente no trecho grifado, às teorias do escritor e artista britânico John Ruskin. Defensor da união da arte e do trabalho a serviço da sociedade, Ruskin havia inspirado
o movimento reformista inglês Arts & Crafts, na segunda metade do século xix,
sendo valorizado também, mais adiante, por modernistas como Walter Gropius.
Em sua conclusão, o artigo defende, novamente, a criação de uma instituição
de ensino no Brasil, de enfoque modernista, responsável pela formação de profissionais habilitados a articular conhecimentos técnicos e estéticos, como parte essencial
da estratégia de desenvolvimento industrial do país.79
O que é preciso é uma escola nacional de desenho industrial, capaz de formar artistas
modernos. Modernos no sentido de conhecer os materiais, suas propriedades e possibilidades, e portanto as formas úteis e expressivas que requerem. Novas ligas metálicas,
materiais plásticos, sintéticos, estão paulatinamente substituindo os velhos materiais,
76
MALDONADO. Habitat, São Paulo, n. 6. jan. fev. mar. 1952, p. 83.
LEON, Ethel. IAC – Primeira escola de design do Brasil. São Paulo: Blucher, 2014.
78
ARTESANATO e indústria. Habitat, São Paulo, n. 9. out. nov. dez. 1952, p. 86.
79
Essa demanda apareceria ainda no editorial da edição 33 de Habitat, publicada em agosto de 1956. Ver AS ARTES do
desenho. Habitat, São Paulo, n. 33. ago. 1956, p. 1.
77
112
madeira, bronze, barro. Transferir as formas que dignificaram os grandes materiais
do passado, significa traí-las. E continuando pelo caminho antigo, não será possível
encontrar o novo. Desde tempo estamos repetindo: não formando, a própria indústria,
seus novos artistas, não conseguirá basear-se sobre alicerces firmes e apropriados.80
Em foco: apresentando os antecedentes históricos
Além de dedicar-se às questões contemporâneas do desenho industrial, Habitat
também vasculhou sua história, investigando estilos do passado. Dentre os conteúdos publicados sob esse viés, destaca-se aqui a matéria São Paulo e o “art nouveau”,
publicada na edição 10, de janeiro/fevereiro/março de 1953. Temos aqui um dossiê
de 15 páginas, fartamente ilustrado com imagens da arquitetura, do mobiliário, de
objetos decorativos e utilitários, além de impressos como caricaturas, anúncios publicitários e de moda relacionados ao Art Nouveau, no Brasil e em outros países. A
autoria é de Flávio Motta, professor de História da Arte do iac e que então ocupava
a direção de Habitat por conta da já mencionada ausência dos Bardi.
De acordo com Motta, o assunto vinha à tona em função do desamparo que
sofriam as poucas construções em estilo Art Nouveau ainda existentes em São Paulo, tendo em vista que, à época, o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (sphan)81 ocupava-se apenas da preservação e do estudo dos monumentos barroco-coloniais. Como gancho para o desenvolvimento do tema, Motta escolheu a
Vila Penteado, que então funcionava como sede da fau usp, e ainda conservava
muitas das características formais do estilo. No dossiê, fotografias e desenhos das
áreas externas e internas do palacete, construído pelo arquiteto sueco Carlos Ekman,
em 1902, por encomenda do Conde Antônio Álvares Penteado, eram acompanhados
de comentários que detalhavam elementos da fachada, dos ambientes internos, e
dos trabalhos de marcenaria, serralharia e pintura.
Motta contextualizou o estilo – que no Brasil também ficou conhecido na época como “floreal” –, apresentando suas origens na Europa, seus precursores, como
Victor Horta e Henri van de Velde, e o papel das exposições internacionais em sua
difusão. Contudo, a importância do Art Nouveau na sociedade paulista do início do
século xx não seria menosprezada em seu texto.
O “art nouveau” representava então, mais um gesto de clarividência e confiança.
Acompanharia a valorização do café no seu roteiro, desde o vale do Paraíba, até Ribeirão Preto, nas residências das fazendas, nos coretos dos jardins públicos, nas esta-
80
Ibidem, p. 86.
O arquiteto Lúcio Costa foi diretor da Divisão de Estudos e Tombamentos (det) do sphan, desde sua criação, em 1937,
até 1972, quando aposentou-se. As relações entre a arquitetura do período colonial brasileiro e a arquitetura moderna
definidas por ele orientaram, em grande medida, a atuação do sphan. Ver WISNIK, Guilherme. Lucio Costa. São Paulo:
Cosac Naify, 2001.
81
113
ções de estradas de ferro, nos quartéis e nos grupos escolares. O “modern style” ou o
“new style” – como também era conhecido – representava, a última palavra, o coroamento espiritual na vida daquela gente que se enriquecia com o café e se iniciava na
vida industrial.82
Além de Ekman, os arquitetos Ramos de Azevedo e Victor Dubugras também se
notabilizaram pelas construções Art Nouveau na cidade. Dentre os artesãos que dominaram o estilo, Motta cita Antonio Chiocca e Adolfo Borione, destacando a proficiência do Liceu de Artes e Ofícios como centro de irradiação do Art Nouveau em
São Paulo.
Qualquer artífice ou mestre de valor que chegava do estrangeiro, era conquistado para o Liceu. Fizemos boas peças. Basta dizer que obtivemos, segundo o diploma que está na parede, o primeiro prêmio, medalha de ouro na Exposição Universal de St.
Louis, em 1904, com umas vitrinas giratórias estilo “art nouveau”.83
Na conclusão desse documento, Motta lamenta mais uma vez o descaso para com o
Art Nouveau, que outrora havia sido a marca visual de uma época de progresso encabeçada pela elite cafeeira paulista. Sendo um estilo importado e ornamental, parece ter ficado à margem da proteção do sphan, então liderado por Lúcio Costa, em
favor do barroco-colonial tido como antepassado legítimo da moderna arquitetura
brasileira.
Apesar dos benefícios que trouxe, com a rebelião às formas superadas, com o incentivo às artes aplicadas, como coroamento de um instante de progresso e prosperidade,
ele acabaria esquecido e superado, porque deixaria à margem um dos imperativos
fundamentais da vida moderna: a sujeição à forma de caráter impessoal que a máquina impôs às artes aplicadas.84
Outro conteúdo que viria somar aos textos publicados por Habitat voltados ao esclarecimento da gênese da profissão é de autoria do historiador da arte italiano Enrico
Crispolti. Lá são apresentados paralelos entre artesanato e desenho industrial, entre
obra única e produção seriada e estandardizada, entre estética e funcionalidade, para, a partir daí, discorrer sobre os desdobramentos da produção industrializada na
Europa, do século xviii às primeiras décadas do século xx.
Publicado em dois excertos, nas edições número 50 e 51, ocupando dez páginas
no total, o material é parte do livro de Crispolti, também lançado em 1958, Premesse storiche dell’industrial design. Incluindo várias imagens ilustrativas, o texto fun82
MOTTA, Flávio. São Paulo e o “art nouveau”. Habitat, São Paulo, n. 10. jan. fev. mar. 1953, p. 6.
Ibidem, p. 6.
84
Ibidem, p. 8.
83
114
ciona, em Habitat, como uma introdução à história do design europeu, estruturada
de acordo com a narrativa consagrada por Nikolaus Pevsner: da crise do artesanato
na Europa no século xix à Bauhaus, passando por William Morris, pelo Art Nouveau e pela Wiener Werkstätte85.
Esta mesma edição de Habitat, de novembro/dezembro de 1958, teria sua veia
historiográfica enfatizada com a publicação de uma homenagem [fig.54] ao arquiteto e designer belga Henry van de Velde, falecido no ano anterior. Em um perfil de
quatro páginas86, ilustrado com imagens de seus trabalhos em pintura, arquitetura,
mobiliário e utensílios para o lar, relatava-se o início de sua formação na Academia
da Antuérpia. Ali, por influência do pensamento dos líderes do Arts & Crafts, Huskin e Morris, desenvolveu interesse pelo campo projetual:
A produção daqueles anos, de Van de Velde, de alta qualidade artística, deixavam entrever um grande futuro para o jovem pintor. Mas ele escolheu outro rumo: a leitura
de John Huskin e William Morris convenceram-no da necessidade de purificar o
mundo das forças que se originam no feio, e nisto encontrou sua grande missão. Van
de Velde havia compreendido que devia criar, não no campo da pintura, novos ambientes para os homens – móveis, objetos, roupas, interiores.87
Um dos trechos mais relevantes desse material, no entanto, apesar do tom exageradamente elogioso, é uma breve reflexão a respeito da filosofia estética do arquiteto.
Tais ideias constituiriam o pilar de sua prática profissional tanto no âmbito do projeto em arquitetura e interiores quanto no do ensino das artes aplicadas, influenciando ainda Walter Gropius e Max Bill, entre outros.
Van de Velde possuía uma dupla formação intelectual: o talento artístico criador, ou
melhor, o gênio, e a alta capacidade de raciocínio. A ideologia acompanhava, paralela, o trabalho artístico. Não seria possível conceber um sem o outro: as qualidades intuitivas da criação e as racionais se entrosam continuamente. As pressuposições e o
impulso para a visão ideológica têm como base a inteligência fora do comum de Van
de Velde, que tendia constantemente para o conhecimento e a indagação. Partia disto, e da humanidade espontânea do seu temperamento, de sua crença no fator humano no sentido mais elevado, a orientação socialista de Van de Velde. Sob este signo,
ele empreendeu a luta contra o feio – “contre la ledeur” – como tarefa ética. Disse
ele: “Ruskin e Morris esforçaram-se para afugentar o feio do coração dos homens; eu
prego de extirpá-lo de seu espírito”. Van de Velde via a natureza humana através de
uma simplificação extrema – o feio tem uma influência perniciosa, a beleza, pelo
contrário, traz consigo a bondade. Ele próprio viveu em obediência a este conceito,
85
A Wiener Werkstätte [Oficina Vienense] foi uma cooperativa de artes e ofícios criada em 1903, como consequência do
movimento artístico de Secessão. Sua linguagem formal caracterizava-se pelos ângulos retos e linhas de traçado rígido.
Teve entre seus principais artistas Koloman Moser e Josef Hoffman. Ver SCHNEIDER, op.cit.
86
HENRY van de Velde. Habitat, São Paulo, n. 51. nov. dez. 1958, p. 24-7.
87
Ibidem, p. 24.
115
[fig.54] Artigo Henri van de Velde. Habitat No 51. Fonte: Biblioteca FAU/USP.
Reprodução: P. Amorim.
116
em que havia a identidade do belo e do bom, da moral óptica e espiritual – como costumava dizer.88
Preocupado com a qualidade estética dos produtos industrializados acessíveis às
massas, Henri van de Velde, membro da Deutscher Werkbund, fundou, em 1901, na
cidade de Weimar, na Alemanha, a Escola de Artes e Ofícios, a qual, segundo ele,
seria “a primeira cidadela de uma nova pedagogia artística”89. Depois da Primeira
Guerra, a instituição acabaria incorporada à Academia de Belas Artes de Weimar,
nascendo assim a Bauhaus, dirigida por Walter Gropius, amigo de Van de Velde e
por ele recomendado para o cargo. Este perfil de Habitat, portanto, além de celebrar
o arquiteto, não deixa de reconhecê-lo como herdeiro intelectual dos arautos do Arts
& Crafts e como alguém que teria aberto o caminho para a renovação no ensino da
arte e da técnica na Alemanha e, em consequência, para a própria Bauhaus. Linhagem da qual, pelo que mostram os textos publicados em Habitat, buscavam aproximação a própria revista e o iac.
Projeto e objeto: da vitrine à cadeira
O escopo da investigação de Habitat no âmbito do desenho industrial compreendeu
ainda os projetos e objetos resultantes dessa atividade. Assim, receberam destaque
nas matérias e artigos publicados em seus primeiros números, o design de vitrines,
as quais, no ambiente urbano, representavam uma oportunidade de contato mais
próximo entre os artefatos postos à venda e os transeuntes.
Na edição número 5, de outubro/novembro/dezembro de 1951, o desenhista
gráfico polonês Leopoldo Haar, integrante do ateliê de propaganda da empresa italiana Olivetti em São Paulo e professor do iac, alertava: “as banais, impróprias e
sobrecarregadas vitrinas dos últimos 50 anos, hoje cedem lugar às conquistas da arte, da ciência, da psicologia, etc. – exigências estéticas do homem que usa geladeira,
conhece as sulfas e é contemporâneo de Max Bill”90.
De acordo com Lina, as vitrines se caracterizariam ainda como um dos elementos identitários de uma cidade.
As vitrinas são o espelho imediato, a denúncia rápida da personalidade duma cidade,
e não somente da personalidade, como do caráter mais profundo. A vitrina é o
“meio” para vender o produto, é algo muito apegado ao dinheiro, é uma luva de veludo que sob a aparência decorativa e indiferente esconde as garras complicadas de
cálculos de “custos”, “margens”, “lucros”, colunas de cifras frias.91
88
Ibidem, p. 25.
Ibidem, p. 25.
90
HAAR, Leopold. Plásticas novas. Habitat, São Paulo, n. 5. out. nov. dez. 1951, p. 57.
91
BO BARDI, Lina. Vitrinas. Habitat, São Paulo, n. 5. out. nov. dez. 1951, p. 60.
89
117
Esta edição de Habitat, portanto, comenta a paisagem urbana como espaço de atuação do arquiteto e do desenhista industrial, a partir das ideias de Haar e Lina a respeito do projeto contemporâneo de vitrines, tema o qual tanto ela quanto Bardi já
vinham discutindo desde a Itália, em suas colaborações para a revista Vetrina. Naquele país, a propósito, o projeto de lojas e vitrines comerciais era pensado, desde os
anos 1930, por nomes como Edoardo Persico, Marcello Nizzoli e Giancarlo Palanti.92
Considerando os aspectos técnicos da concepção desses espaços em favor de vitrines
mais eficientes e atualizadas esteticamente, Haar recomendava:
Psicologicamente apresentado, o produto que figura na vitrina, acentua e justifica a
própria vitrina. O uso da madeira, do vidro, de metais leves, a aplicação de vários
“patterns”, a mistura de materiais e contrastes para o fim puramente decorativo, o
uso apropriado e feliz dos mais importantes fatores como a luz, resultam num ambiente onde o produto surge e automaticamente vende-se sozinho.93
Além das preocupações de natureza projetual, enfatizou-se também o papel das vitrines na orientação do gosto moderno à população, visto que elas constituíam um
cenário de alto poder persuasivo no que se referia à disseminação de referenciais
estéticos. Alarmada com as combinações aleatórias de estilos arcaicos nas vitrines de
São Paulo naquele início dos anos 1950, Lina reforçava a necessidade de se modernizar não só o objeto utilitário em si, mas o entorno no qual eles seriam expostos aos
possíveis compradores.
As multidões de manequins, a elegância reduzida a capitoné e brazoes (sic) de papel,
denunciam desta forma o gosto mesquinho, de pequeno burguês, burguês e “nouveau
riche”, alimentando vícios antigos e velhos hábitos, com uma força quase invencível
pela violenta capacidade de contato imediato e difusão pública da vitrina, não comparável ao trabalho persuasivo dos artigos, das salas de exposições, dos livros, que devem
ser procuradas. As vitrines da cidade podem destruir anos de trabalho feitos no sentido de corrigir e dirigir o gosto.94
Por sua vez, artefatos como eletrodomésticos e utensílios para o lar, geralmente de
procedência estrangeira, foram mostrados na revista, tanto em matérias fotográficas, quanto em artigos discutindo seus aspectos formais e funcionais. Em Novas
formas e novas utilidades [fig.55], matéria publicada na edição 79, de setembro/outubro de 1964, os leitores puderam conhecer alguns objetos utilitários fabricados na Alemanha. Além de remeter à relação entre desenho industrial e formação
92
ANELLI, op.cit.
HAAR, op.cit., p57.
94
BO BARDI, Lina. Vitrinas. Habitat, São Paulo, n. 5. out. nov. dez. 1951, p. 60.
93
118
[fig.55] Artigo Novas formas e novas utilidades. Habitat No 79. Fonte: Biblioteca
FAU/USP. Reprodução: P. Amorim.
119
do gosto moderno, o texto não deixa de mencionar o problema da cópia de produtos
importados por parte da indústria brasileira. Questão que estaria no centro dos debates sobre o desenho industrial no país nos anos 1960, constando na pauta de Habitat em outras ocasiões.
Desde a série de copos, passando pelo ferro de engomar, a batedeira de bolo, até móveis necessários ao guarnecimento de uma casa ou de um escritório, o bom gosto, a
funcionalidade e a praticidade, convidam a uma nova maneira de viver, notadamente
nos países onde a aura de progresso, de modernização, já atingiu alto grau. No Brasil,
em grandes faixas urbanas, o povo já aceita como parte integrante de suas vidas, tais
objetos e tais utilidades. Oxalá assim continue, sem se esquecerem, contudo, que somente a boa forma é que vale, pois a contrafação e o conceito do moderno a qualquer
preço, não poderá, nunca, prevalecer.95
Várias eram as razões que levavam à cópia e comercialização do produto industrializado estrangeiro por parte do empresariado brasileiro em detrimento da melhoria
de seu equivalente nacional. Como visto no Capítulo 1, a cópia era uma prática corrente no país desde o surgimento das primeiras indústrias, as quais muitas delas
maquiavam sua produção a partir dos similares importados. Por outro lado, tendo,
ao longo de sua história, desempenhado o papel de exportador de commodities e de
consumidor dos manufaturados estrangeiros, o Brasil pouco incentivou o desenvolvimento de sua indústria e de uma cultura empresarial inovadora.
Mais adiante, quando a industrialização se colocou como uma prioridade econômica no país, a ausência de capital interno adequado implicou a aquisição de empréstimos no exterior, facilitados mediante a importação de equipamentos e tecnologia estrangeiros.96 Ou seja, o conhecimento tecnológico de ponta permanecia sob o
controle do investidor, sendo transferidas para cá operações de baixa complexidade,
como montagem e acabamentos. Somam-se a isso os riscos financeiros envolvidos
no desenvolvimento do projeto do produto nacional (criação de matrizes e testes
com protótipos em tempo hábil para competir comercialmente com outros países97),
diante dos quais o caminho da cópia parecia menos imprevisível.
Sob esse aspecto, de acordo com o arquiteto João Carlos Cauduro, em entrevista a Braga, até grandes indústrias brasileiras, nos anos 1960, tinham que considerar
aspectos artesanais na produção: “Havia falta de uma oferta diversificada e adequada de ferragens e peças, o que obrigava, em certas ocasiões, a projetar até parafusos
apropriados ao produto em desenvolvimento. E isso encarecia o processo produtivo”98. De acordo com Wollner, a ausência de uma cultura empresarial para inves95
NOVAS formas e novas utilidades. Habitat, São Paulo, n. 79. set. out. 1964, p. 51.
FURTADO, op.cit.
97
BRAGA, op.cit.
98
Ibidem, p. 97.
96
120
timentos em pesquisas de produtos no Brasil também era um obstáculo, associada
ainda à eventual inabilidade de negociação dos próprios desenhistas industriais.
Em 1959, trabalhamos para a indústria de embalagens industriais Ibesa. Inicialmente, abordamos o programa de identidade visual da empresa e de um de seus produtos:
as geladeiras Gelomatic. Sempre que possível, discutíamos sobre a viabilidade de desenhar as geladeiras produzidas pela indústria. Bergmiller assumiu o projeto. Foi desenvolvida uma linha de sete modelos retilíneos, que visavam inclusive a economia
na produção industrial com o uso de ferramentas preexistentes. Por dificuldades com
a incompreensão dos empresários e pouca experiência do fominform, o projeto não foi
adiante.99
Na área de mobiliário, no entanto, a adaptação ao projeto moderno foi menos problemática, setor bastante acompanhado pela revista Habitat. Dos artigos publicados
a respeito, o texto A habitação, o móvel e a vida, escrito por Robert Miocque, cumpriria a função de dissertar, de forma bastante didática, sobre o convívio entre o
homem e o móvel no ambiente doméstico.
As construções humanas não passam de um reflexo das obras da natureza. Elas se edificam com o auxílio de materiais e de processos semelhantes. O mesmo se dá com o
móvel, que apresenta um dos aspectos mais típicos de uma construção humana, seguindo os princípios celulares tão constantes no universo. Fatalmente, o homem deverá imprimir a esse objeto, junto ao qual vive constantemente, esses princípios celulares que estão na base das construções animais e pelos quais as abelhas se esmeram
nas aplicações que chegam quase à perfeição. O contato permanente dos homens com
o móvel explica a sua ambição de lhe proporcionar dimensões e formas harmoniosas,
um equilíbrio, uma simetria, relações de volumes e cores dentro do que, muitas vezes,
se manifestam num alto grau os dados da estética.100
Miocque – que em 1960 publicaria o livro Cidades Experimentais – prossegue neste
artigo comunicando o leitor sobre noções ergonômicas, funcionais e estéticas relacionada à construção e à anatomia dos móveis.
A ossatura dos móveis e, principalmente, das cadeiras, deve ser realizada com a preocupação de manter o corpo na posição mais saudável para nosso organismo de vertebrado. O móvel não deve levar a nenhuma posição desgraciosa, nem ser obstáculo às
funções essenciais do corpo (circulação do sangue, respiração, etc.). Assim, o móvel
humanizado atinge seu objetivo funcional. É então que ele encontra o equilíbrio funcional à sua beleza e pode tornar-se um objeto de arte com o concurso do artista. O
aspecto decorativo do móvel deve fazer pensar na expressão de uma fisionomia... de
99
WOLLNER, op.cit., p. 127.
MIOCQUE, Robert. A habitação, o móvel e a vida. Habitat, São Paulo, n. 46. jan. fev. 1958, p. 27.
100
121
uma fisionomia alegre, simpática e bela. Mas, tais qualidades não podem pertencer a
uma fisionomia dependente de um corpo desproporcionado. O arranjo de ornamento
sobre os móveis não pode jamais chegar a corrigir as falhas de gosto nas formas nem a
feiura nas proporções dos volumes.101
O tema do mobiliário esteve em pauta na Habitat desde sua primeira edição, quando um dos objetos tidos como mais intrigantes para designers e arquitetos, a cadeira,
concentrou a atenção de dois artigos. Em Frei Lodoli e a cadeira102, fez-se menção ao
pensamento do religioso italiano Carlo Lodoli (1690–1761), cujas ideias sobre a produção artesanal teriam inspirado a arquitetura racional. No texto seguinte, Móveis
novos, os antecedentes do fabrico do mobiliário moderno no país foram observados
no contexto da produção arquitetônica no Brasil a partir dos anos 1930.
Enquanto a arquitetura brasileira assumia notável desenvolvimento, o mesmo não se
poderia dizer do mobiliário; os arquitetos, ocupadíssimos no trabalho construtivo mais
urgente, febril, neste país que cresce com uma prodigiosa rapidez, não puderam empregar-se com tempo suficiente, no estudo de uma cadeira, estudo que requer um
técnico, como de fato o é o arquiteto, e não uma senhora que busca distrair-se ou um
tapeceiro, como muitos acreditam.103
Em seguida, foi destacada a iniciativa pioneira do Studio de Arte Palma, criado por
Lina Bo e Giancarlo Palanti, cujo período de funcionamento deu-se entre 1948 e
1950. Segundo Habitat, o ateliê teria introduzido o desenho de arquitetura de interiores no país “com uma compreensão absolutamente contemporânea”, ou seja, aliando princípios modernistas às condições climáticas e materiais locais.
O Studio Palma, fundado em 1948, particularmente se dedicando ao desenho industrial, abrangia uma seção de planejamento com oficina de produção: uma marcenaria
equipada com moderníssimo maquinário e uma oficina mecânica. Buscou ali criar tipos de móveis (em especial cadeiras e poltronas), adaptados ao clima e à terra, eliminando estofamento exagerado e usando o mais possível, os tecidos e o couro distendido, estofo baixo e delgado.104
Na edição 46, de janeiro/fevereiro de 1958, onde havia sido publicado o já referido
artigo de Miocque, Habitat insistiria no tema do desenvolvimento do mobiliário
moderno no país com o texto Problemas da arquitetura de interiores. Nele, reforçava-se o pioneirismo do Studio de Arte Palma, ressaltando que sua experiência havia
101
Ibidem, p. 27.
FREI Lodoli e a cadeira. Habitat, São Paulo, n. 1. out. nov. dez. 1950.
103
MÓVEIS novos. Habitat, São Paulo, n. 1. out. nov. dez. 1950, p. 53.
104
Ibidem, p. 53.
102
122
[fig.56] Artigo Estudos de marcas e
logotipos. Habitat No 73. Fonte: Biblioteca FAU/USP. Reprodução: P.
Amorim.
123
sido bem sucedida, tendo em vista inclusive as cópias feitas de muitas das peças criadas pelo Studio e da venda dessas imitações para várias partes do país. Habitat reconhecia ainda que, na cidade de São Paulo, em finais da década de 1950, existiam
“pelo menos meia dúzia de indústrias de onde saem móveis cujo nível merece consideração”105. Por fim, uma outra passagem desse artigo antecipa a reflexão a respeito da “arquitetura de interiores” em Brasília, tema que figuraria, como será
mencionado a seguir, na edição 58, de 1960, enquanto um dos assuntos tratados no
Congresso Internacional de Críticos de Arte.
Mas um país que tem a coragem de construir até uma nova capital onde antes havia
só deserto, deverá enfrentar quanto antes um problema completamente novo, justamente no campo da arquitetura de interiores. (...) como solucionar a arquitetura dos
interiores desses edifícios grandiosos, destinados a colher a presidência do Conselho,
os centros culturais, e mesmo as residências, pois tudo é construído pelo Estado? (...)
Uma cidade e por conseguinte, a sua arquitetura, não vive somente do fato externo,
da aparência exterior, da harmonia entre as massas e os vazios. A cidade, e tanto mais
uma capital, viverá muito em função de seus interiores.106
Colocava-se em evidência, portanto, a necessidade de ser projetar mobiliário e interiores em consonância com o espírito arquitetônico moderno da nova capital, o que,
em tese, deveria significar oportunidades para os profissionais do desenho industrial.
Ao contrário dos projetos de móveis, detalhados com certa frequência nas páginas de Habitat, apenas um projeto de identidade visual teve seu memorial publicado pela revista. Tratou-se do elogiado sistema desenvolvido pelo designer Ruben
Martins para a Casa Almeida Irmãos [fig.56], revendedor de roupas e tecidos finos
para casa.107 O documento relata todo o processo de construção gráfica da marca,
bem como sua aplicação em embalagens e papéis administrativos, sendo um dos
raros materiais a informar em detalhes, aos leitores da revista, as implicações de um
projeto dessa natureza.
O desenho industrial e a cidade nova
No final da década de 1950, um importante evento envolvendo intelectuais de várias áreas acabaria tornando-se fonte de textos relevantes sobre o papel do desenho
industrial no país, os quais Habitat não desconsideraria. Trata-se do Congresso Internacional Extraordinário de Críticos de Arte, batizado de A Cidade Nova – Síntese
das Artes, ocorrido em setembro de 1959, em Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro. O
105
PROBLEMAS da arquitetura de interiores. Habitat, São Paulo, n. 46. jan. fev. 1958, p. 30.
Ibidem, p. 30.
107
MARTINS, Rubem. Estudos de marcas e logotipos. Habitat, São Paulo, n. 73. set. out. nov. 1963, p. 67-70.
106
124
evento resultou de uma iniciativa da delegação brasileira da Associação Internacional de Críticos de Arte (aica), liderada por Mário Pedrosa, pioneiro da crítica de
arte moderna no Brasil.
A intenção do congresso era discutir a “cidade nova” – “construída de alto a
baixo, em uma totalidade, para os homens”108 –, cujo exemplo naquele instante seria Brasília, a partir do tema da síntese das artes109. O debate se daria num momento
particularmente estimulante, visto que, por um lado, vivia-se a grande expectativa
em torno da construção da nova capital do país, e, por outro, buscava-se soluções para os problemas da arquitetura e da cidade em função do enfraquecimento das tendências racionalistas na Europa.
Habitat publicou as teses defendidas no congresso da aica. Dentre elas, no entanto, quatro iriam abordar de forma mais explícita o desenho industrial dentro da
problemática da síntese das artes. De autoria do crítico Mário Barata, o texto Totalidade artística e posição das artes industriais e artesanato na cidade nova, publicado
na edição 57 de Habitat, de novembro/dezembro de 1959, discutiria dois dos papéis
fundamentais atribuídos ao “industrial-design” no contexto da cidade nova: a formação do gosto e o (não) lugar do artesanato no cenário urbano moderno.
Sobre o primeiro aspecto, Barata ressalta que nessa cidade, cuja configuração
do urbanismo e da arquitetura estavam sob o “controle dos arquitetos”, e cuja criação de espaços convenientes e confortáveis para seus futuros habitantes deveria ser
efetuada, o projeto do equipamento ambiental e do mobiliário significaria uma
“oportunidade para que se melhore o padrão coletivo de gosto e da civilização material, no país, a partir da futura capital”. Ou seja, Brasília poderia tornar-se instrumento para se promover a tão almejada reforma no gosto da população, irradiando sua influência moderna e modernizante enquanto núcleo político do país.
Mais adiante, Barata defende: “o ideal é que na cidade nova só pudesse existir
um equipamento novo, como concepção, realização e função”110, para então detalhar como a presença do artesanato deveria se processar nessa cidade projetada tendo em vista “condições estéticas perfeitas”.
É verdade que produtos de artesanato ou do passado podem criar pela sua beleza e suas relações de significado, fatores de enriquecimento da vida humana que não se podem desprezar numa totalidade moderna. Eles seriam submetidos, porém, a um critério de adequação que lhes desse a posição exata dentro do dinamismo ambiental que
108
BARATA, Mário. Totalidade artística e posição das artes industriais e artesanato na cidade nova. Habitat, São Paulo,
n. 57. nov. dez. 1959, p. 19.
109
A ideia de síntese das artes, oriunda do pensamento de Le Corbusier, estabelece que “as obras de arte [pintura e escultura] devem estar presentes no espaço da arquitetura e da cidade em uma relação de mútua interferência”. Ver
GONSALES, Célia. Síntese das artes: sentidos e implicações na obra arquitetônica. Arquitextos, ano 12. Mai. 2012. Disponível em:< http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/12.144/4351>. Acesso em: 17. mar. 2014.
110
BARATA, op.cit., p. 19.
125
cerca o homem.111
Na perspectiva de Barata, fica evidente que essa cidade nova, racional – que com
Brasília ganhava concretude – deveria começar do zero, culturalmente asséptica,
modernamente esterilizada, onde a convivência com artefatos portadores de referências históricas ou da tradição seria cuidadosamente supervisionada.
O pintor e crítico de arte italiano Gillo Dorfles, que em 1963 publicaria o livro
Introduzione al Disegno Industriale, foi o relator geral do tema das artes industriais
no Congresso. Em seu texto As artes industriais na cidade nova, publicado por Habitat na edição 58, de janeiro/fevereiro de 1960, Dorfles também insiste na correlação
entre formação e modernização do gosto e o objeto industrial.
Sou de opinião – e muitas vezes o afirmei – que a estética industrial tem hoje papel
de primeiro plano na formação do gosto de um povo. É preciso ir mais além: os objetos industriais são quase os únicos que estejam ao alcance das camadas mais vastas da
população. É por isso que cabe a estes últimos, mais do que aos quadros e às estátuas,
a tarefa de influenciar o gosto do cidadão e de formar um “estilo” novo.112
Em seguida, Dorfles dedica-se a esboçar brevemente algumas das principais características das artes industriais naquele momento: a influência recíproca entre objeto
de arte e objeto industrial; a liberdade formal do objeto industrial; o fator positivo
da obsolescência dos objetos; o elemento simbólico-informativo do objeto industrial;
a mutualidade formal do objeto industrial; e a importância da estreita colaboração
entre arquitetura e artes industriais.
Embora Dorfles não aprofunde a discussão desses seis aspectos, temos aqui um
conjunto de ideias já bem dissonantes do pensamento de Max Bill, o qual era predominante no contexto do neofuncionalismo dez anos atrás. À essa altura, entretanto, Bill já havia deixado a hfg–ulm em função de discordâncias a respeito da orientação pedagógica da instituição, a qual, de acordo com professores como Tomás
Maldonado e Otl Aicher, deveria apoiar-se em princípios de base científica e não
artística. Para estes jovens docentes, de acordo com a análise de García, a ideia da
forma como articuladora da função e da beleza, advogada por Bill, já não atendia
aos desafios inerentes à produção de objetos industriais num mundo capitalista, e
por isso o modelo ulmiano deveria ser repensado.113
Assim, Dorfles defende, por exemplo, que “A relação entre a forma e a função
de um objeto é hoje apenas parcial. Há, nos nossos dias, liberdade formal suficiente
111
Ibidem, p. 19.
DORFLES, Gillo. As artes industriais na cidade nova. Habitat, São Paulo, n. 58. jan. fev. 1960, p. 5.
113
GARCÍA, María Amalia. El arte abstracto: intercâmbios culturales entre Argentina y Brasil. Buenos Aires: Siglo Veitiuno, 2011.
112
126
para permitir ao desenhista criar uma obra não só técnica mas artística”114. Ele
também considera positiva certa rapidez de envelhecimento dos objetos, no sentido
de promover a “invenção de formas novas”, atualizando o produto, e com isso mantendo o interesse dos consumidores. Ou seja, mesmo em colocações breves, é possível perceber na fala de Dorfles a manifestação de proposições distintas às pregadas
pela gute form em relação ao desenho industrial.
A urgente questão da ordenação dos fluxos e deslocamentos na cidade moderna também não passou despercebida pelos congressistas. Um dos fundadores e professor da hfg–ulm desde 1954, Otl Aicher abordou a linguagem visual nas cidades
em seu texto A cidade nova e seu grafado de sinalização, também publicado na edição 58 de Habitat, ressaltando a importância de investimentos em projetos de sinalização, da regulamentação de anúncios no ambiente urbano e do desenvolvimento
da sinalização do tráfego.
A cidade não é um sistema social completo e restrito como, por exemplo, uma fábrica
onde o comportamento de cada um é fixado de antemão. O traço básico de uma cidade é a variedade de suprimento – a oportunidade de escolha. As diversas unidades
que a compõem têm, entre si, apenas ligeiros contatos daí a necessidade de um esforço especial no sentido da comunicação.115
Esta mesma edição de Habitat publicou ainda o escrito de Tomás Maldonado, então
membro da direção colegiada da hfg–ulm116, que como já mencionado se reorientava para a cientificidade e a metodologia. Em sua tese apresentada no congresso da
aica, A educação artística e as novas perspectivas científicas e pedagógicas, levantou a
questão da crise no ensino da educação artística. Para ele, as academias de belasartes, as escolas de artes aplicadas e os museus de arte haviam entrado em crise desde o advento dos movimentos artísticos modernos, do declínio do artesanato e da
separação cada vez mais profunda entre a “arte dos museus e a ‘arte’ do homem do
povo”. De acordo com Maldonado, as soluções aventadas até então para a atualização dessas entidades se mostraram ineficazes.
A solução não pode consistir em suprimir instituições, nem apenas em “modernizar”
as suas fachadas. Não é bastante abrir as portas ao abstracionismo e ao informalismo
para a educação artística conseguir sanar suas dificuldades atuais. A crise é de estrutura e não somente de orientação.117
114
Ibidem, p. 5.
AICHER, Otl. A cidade nova e seu grafado de sinalização. Habitat, São Paulo, n. 58. jan. fev. 1960, p. 5.
116
Tomás Maldonado integrou a direção colegiada da hfg-ulm de 1956 a 1959, ao lado de Otl Aicher e Hanno Kesting.
Ver SOUZA, Pedro. Esdi: biografia de uma ideia. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1996.
117
MALDONADO, Tomás. A educação artística e as novas perspectivas científicas e pedagógicas. Habitat, São Paulo, n.
58. jan. fev. 1960, p. 6.
115
127
Em sua perspectiva, os métodos científicos como a Semiótica e a Teoria da Informação, por exemplo, poderiam contribuir significativamente nessa questão.
A educação artística terá que usar todos os recursos científicos e tecnológicos da nossa
civilização, sem ajuda do que, nenhuma solução será possível. No terreno pedagógico,
as escolas de “design”(com os seus setores: Comunicação e Produto) são, por enquanto, as únicas aptas a enfrentar a nova tarefa. Nelas devemos depositar todas as esperanças.118
Como reflexo dessas ideias, além das disciplinas acima mencionadas, a cibernética,
a ergonomia e cursos sobre epistemologia da ciência foram alguns dos novos conteúdos introduzidos no currículo da hfg–ulm.
A propósito, a participação dos ulmianos Aicher e Maldonado no congresso da
aica foi apenas uma das atividades por eles desenvolvidas no Brasil naquele ano.
Ambos ainda ministraram um curso de Comunicação Visual, no Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro (mam–rj), nos meses de agosto e setembro de 1959119, o
qual viria a contribuir para a ideia de uma escola de desenho industrial na cidade, a
ser concretizada anos depois com a fundação da Escola Superior de Desenho Industrial (esdi).
À serviço da Olivetti
Uma indústria em particular apareceu com destaque em matérias da Habitat: a
companhia italiana de máquinas de datilografar e calculadoras Olivetti. A empresa
iniciou suas operações no Brasil no final dos anos 1950, quando construiu uma fábrica na cidade de Guarulhos. Para planejar a arquitetura de interiores de seus novos
escritórios, na região do Anhangabaú, em São Paulo, contratou os arquitetos Giancarlo Palanti – que ao lado de Lina Bo, no final da década de 1940, havia fundado o
Studio de Arte Palma – e Henrique Mindlin. Habitat, na edição 49, de julho/agosto
de 1958, dedicou ao projeto uma detalhada e apologética matéria de capa [fig.57]
assinada por Pietro Maria Bardi. Ao longo de 12 páginas, o texto era acompanhado
por plantas, fotografias de vários ambientes, desenhos técnicos de peças de mobiliário e divisórias das salas, além de imagens de cartazes publicitários da empresa.
Os laços de amizade entre Bardi, Palanti e a Olivetti datavam desde os anos
1930 na Itália e, nos primeiros parágrafos, o jornalista tratou de deixar claras essas
longevas relações. Assim, a matéria celebra a chegada da companhia ao mercado
brasileiro e realça o talento arquitetônico de Palanti.
118
119
Ibidem, p. 6.
NIEMEYER, Lucy. Design no Brasil: origens e instalação. Rio de Janeiro: 2AB, 2000.
128
[fig.57] Algumas páginas do artigo Uma arquitetura de interiores
para a Olivetti. Habitat No 49. Fonte: Biblioteca FAU/USP. Reprodução: P. Amorim.
129
O arquiteto Palanti tem desenhado, especialmente para este fim, uma série de móveis
para os vários usos, segundo a sua própria linha, uma linha que nasce como consequência do antigo slogan de Sullivan, às vezes por demais esquecido: “Form follows
function” (A forma segue a função). Se os arquitetos soubessem restringir seu trabalho à essas palavras, tudo correria melhor. [...] Esses escritórios constituem talvez a
melhor arquitetura de interiores feita no Brasil nestes últimos anos, em virtude da
simplicidade com que cada problema foi solucionado. Publicar estas instalações é para nós grata satisfação, também por ter-nos dado uma oportunidade de falar de um
dos mais sérios e preparados arquitetos de nossa época.120
Possíveis impactos econômicos em função dos empreendimentos da empresa italiana no Brasil, cuja força também estava associada ao incremento na área do desenho
industrial, não deixaram de ser apontados por Bardi.
A Olivetti no Brasil, como entidade produtora, além de contribuir ao progresso industrial e econômico de uma maneira sem dúvida benéfica, representa um passo decisivo
na atualização, neste país, do desenho industrial ainda por demais deixado de lado ou
então reproduzido de onde quer que seja.121
De acordo com Bardi, a “meticulosa atenção à criação das formas” típica da companhia, cujo direcionamento estético nos âmbitos da arquitetura, do desenho industrial e gráfico era preocupação constante do presidente Adriano Olivetti122, constituía a
identidade da empresa e era um dos fatores de sustentação para seu posicionamento
no mercado internacional.
Ao lado da perfeição das famosas máquinas de escrever e de calcular, conseguidas
graças a uma organização que pode ser tomada para modelo em qualquer parte do
mundo, o eng. Olivetti cuidou também do elemento visual, o que hoje é designado
com a palavra genérica de industrial design; foi este um dos fatores que levaram à expansão e à aceitação do produto em todos os países.123
Bardi também não deixou de mencionar a presença de um dos modelos das máquinas Olivetti, desenhado por Marcelo Nizolli, na polêmica Vitrine das Formas, con120
BARDI, Pietro Maria. Uma arquitetura de interiores para a Olivetti. Habitat, São Paulo, n. 49. jul. ago. 1958, p. 3-4.
Ibidem, p. 3.
122
Sobre o empresário italiano, Anelli comenta: “Adriano Olivetti investe no design dos seus produtos, reestruturando a
linha de produção de suas fábricas; contrata os melhores arquitetos para os projetos das suas instalações produtivas e de
suporte social aos seus operários; em duas ocasiões encomenda planos urbanísticos para a cidade de Ivrea onde se localiza
suas principais instalações e chega a investir na elaboração de planos de desenvolvimento regionais para o Vale d’Aosta.
A formulação original do paradigma do design – da colher à cidade – encontra nesse importante empresário um adepto
que a instrumentaliza para uma concepção social de vida comunitária”. ANELLI, op.cit., p. 105.
123
Ibidem, p. 3.
121
130
cebida pelo masp, episódio já aqui comentado. E como era frequente em seus textos,
houve ainda espaço para uma alfinetada, desta vez direcionada ao moma.
Alguns anos atrás nós próprios tínhamos exposto a nova máquina “Lexikon” na “Vitrina das formas” do Museu de Arte de São Paulo, como exemplo do surgir de uma
“obra” maravilhosa; para o registro da história, isto deu-se vários meses antes que a
máquina de escrever fosse apresentada também nas salas do Museu de Arte Moderna
de Nova York, ao qual ocorreu a mesma ideia sem saber naturalmente da nossa iniciativa.124
Na edição seguinte de Habitat, de setembro/outubro de 1958, uma matéria de quatro páginas repercutiria novamente a Olivetti, dessa vez em função de uma exposição sobre a empresa hospedada no mam–rj. Palanti, Mindlin e Bramante Buffoni –
pintor responsável pelos painéis dos escritórios da Olivetti em São Paulo – foram
encarregados do projeto expográfico e, os textos, de autoria de Bardi. De acordo com
Habitat, a mostra “fez o observador penetrar num problema de arte através da criação de formas de objetos utilitários”125.
O importante é que o público teve contato com um dos problemas básicos da arte contemporânea, através da Olivetti que é certamente uma organização que no campo do
“industrial design” conseguiu um nível de primeira ordem. Num dos próprios painéis
da exposição podia-se ler a seguinte justificação: “Esta exposição quer apresentar alguns problemas que existem entre a arte e a indústria, indicados com o nome de desenho industrial; problemas que são constantemente estudados pela Olivetti não só
em relação à produção de suas máquinas, como também em relação à propaganda e a
tudo quanto está em conexão. Os resultados disso são conhecidos pelo mundo afora”.126
É, portanto, inegável a extrema dedicação de Habitat em dar visibilidade à Olivetti.
Fundamentada no real porte e na experiência internacional dessa empresa no segmento do desenho industrial e, principalmente, nas já referidas relações de amizade, Habitat promoveu com afinco as iniciativas de instalação daquela indústria no
Brasil. Por sua vez, na década seguinte, a Olivetti seria um dos principais anunciantes da revista Mirante das Artes,&tc a ser fundada por Bardi em 1967.
Mostras e premiações
Além de divulgar eventos relacionados ao desenho industrial na seção Crônicas,
Habitat deu espaço, em matérias, a exposições, premiações e concursos. Uma mostra
124
Ibidem, p. 3.
DESENHO Industrial. Habitat, São Paulo, n. 50. set. out. 1958, p. 22.
126
Ibidem, p. 22.
125
131
de projetos de mobiliário e desenho de interiores concebidos pelo estúdio argentino
harpa, no Museu de Arte Moderna de Buenos Aires, foi relatada na edição 76, de
março/abril de 1964.127 Esta é essencialmente uma matéria fotográfica. O enxuto
texto introdutório é de autoria do próprio estúdio, ficando assim pendente um comentário mais elaborado da publicação a respeito dessa exposição.
Outro evento num país vizinho que esteve na pauta de Habitat foi a 1a Bienal
Internacional de Artes Aplicadas de Punta del Este, no Uruguai, a qual concedeu o
grande prêmio ao paisagista brasileiro Roberto Burle Marx.128
No número 76 de Habitat foi também divulgado o resultado do Prêmio Roberto Simonsen, por ocasião do concurso promovido pela vi Feira de Utilidades
Domésticas (ud), em São Paulo.129 A peça vencedora foi uma poltrona desmontável
desenhada por Norman Westwater e Michel Arnault para a indústria Mobília Contemporânea, pioneira em séries de móveis modulados no país. Além de duas imagens da cadeira, publicou-se uma descrição técnica e o laudo do júri, contemplando
os aspectos construtivos, funcionais e estéticos do móvel. Na edição 79, de setembro/outubro de 1964, divulgou-se os classificados no concurso Em busca da boa forma, que premiaria os melhores projetos para um cinzeiro, promovido pelo jornal O
Estado de S. Paulo.130
Na edição seguinte, incomodada com a qualidade gráfica de alguns rótulos de
produtos de consumo, Habitat chega a sugerir a Associação Brasileira de Desenho
Industrial (abdi), em um editorial bastante inflamado, a criação de um inusitado
concurso:
De fato, apreciaríamos que a Associação Brasileira de Desenho Industrial, de que nos
dão notícia, fizesse um concurso sobre o rótulo feio, o rótulo horroroso, ou que melhor
designação pudesse encontrar. Mas que fizesse essa demonstração com vontade crítica, de não perdoar ninguém nem ter complacências. Teríamos com esse concurso, por
certo, em sua negatividade, prestado um serviço talvez transcendental, mas por certo
muito produtivo, ao desenho industrial, à gráfica publicitária.131
Outra proposta feita pela revista em seu editorial de agosto de 1956 é a criação de
um salão, sob a tutela da Comissão Nacional de Belas Artes, “que prestigie, com au127
HARPA. Exposição de móveis contemporâneos no Museu de Arte Moderna de Buenos Aires. Habitat, São Paulo, n. 76.
mar. abr. 1964, p. 33-7.
128
FERRAZ, Geraldo. Bienal de Punta del Este. Habitat, São Paulo, n. 81. jan. fev. 1965, p. 42.
129
PRÊMIO Roberto Simonsen. Habitat, São Paulo, n. 76. mar. abr. 1964, p. 51. O prêmio foi criado por sugestão do
arquiteto Lúcio Grinover, que em 1963 se tornaria o primeiro presidente da abdi. Esta instituição ficaria responsável pela
montagem do júri das edições do Prêmio Roberto Simonsen de 1964 a 1970. Ver BRAGA, op.cit.
130
BOA forma em desenho industrial. Habitat, São Paulo, n. 79. set. out. 1964, p. 46-8. A comissão julgadora do concurso
foi composta pelo neuropediatra Antônio Branco Lefèvre, pelo desenhista industrial Décio Pignatari e pelo jornalista
José Luiz Paes Nunes.
131
MENSAGEM e crítica. Habitat, São Paulo, n. 80. nov. dez. 1964, p. 22.
132
tonomia e amplitude, abrangendo artes gráficas, industriais e estamparia, o esforço
dos artistas”132. Citando a carência, no país, de escolas primárias, secundárias e superiores informadas pelo desenho, “que é básico, indiscutivelmente, na formação técnica do homem do nosso tempo”133, o editorial evocava ainda as experiências da
Werkbund, da Bauhaus, da hfg–ulm e da escola técnica do Museu de Arte Moderna
do Rio de Janeiro134.
A profissão no Brasil no início da década de 1960
Em 1958, a profissionalização do desenho industrial no país ganhou reforço com a
fundação do fominform, em São Paulo. O primeiro escritório de desenho industrial
“sem a presença de arquitetos”135 reunia os artistas plásticos Geraldo de Barros e
Ruben Martins, ambos também com experiência em desenho de mobiliário, o publicitário e administrador Walter Macedo, e Alexandre Wollner, recém-chegado de
sua graduação na hfg. Nesse mesmo período, outros escritórios também nasceriam
na cidade, de acordo com o próprio Wollner:
No final da década de 50, começaram a surgir em São Paulo alguns escritórios de design com a intenção de seguir o modelo do forminform: Maurício Nogueira Lima
inaugurou um escritório onde atendia especialmente as feiras industriais de Caio de
Alcântara Machado; João Carlos Cauduro, depois de um estágio na Itália e outro com
Ruben Martins no forminform (após minha saída), abriu seu escritório associado a
Ludovico Martino; Willys de Castro, pintor concreto independente (que não pertenceu ao movimento Ruptura), autodidata em comunicação visual, criou alguns signos
principalmente para galerias de arte e embalagens para tintas Cil. Vale lembrar ainda a importância do pintor português radicado no Brasil Fernando Lemos, que nessa
época começava a atuar também como designer. Maurício, Ludovico e eu havíamos
sido colegas no iac; no entanto, deve-se salientar o quanto era difícil seguir aquele
modelo, pois o enfoque do forminform era estruturado programaticamente em projetos mais consistentes do que a produção de signos isolados.136
Já no Rio de Janeiro, em 1960, surge o mnp (Magalhães + Noronha + Pontual), o
qual se tornaria um dos mais importantes escritórios de programação visual do país,
reunindo inicialmente o artista plástico Aloisio Magalhães, o arquiteto Artur Lício
Pontual e o administrador Luis Fernando Noronha. Com a desvinculação de seus
dois sócios em 1963, Aloisio passa a liderar o escritório sozinho, rebatizando-o de
132
AS ARTES do desenho. Habitat, São Paulo, n. 33. ago. 1956, p. 1.
Ibidem, p. 1.
134
Em 1953, em visita ao Rio de Janeiro, Max Bill sugere a criação de uma escola de design na futura sede do mam, projetada pelo arquiteto Affonso Eduardo Reidy. O museu articulou-se nesse sentido, mas a ausência de um parceiro que
financiasse o curso impossibilitou sua realização. Ver NIEMEYER, op.cit.
135
BRAGA, op.cit., p. 37.
136
WOLLNER, op.cit., p. 131.
133
133
ampvdi (Aloisio Magalhães Programação Visual Desenho Industrial), em 1966.137
Embora rejeitasse a transplantação de ideias importadas, Aloisio reconhecia o léxico
construtivo e os métodos da hfg–ulm, buscando utilizá-los em seus projetos de identidade visual em adequação à realidade industrial local.138
O início da década de 1960, entretanto, também seria marcado pela institucionalização da atividade no âmbito do ensino e da representação de classe. Em 1962, o
curso de arquitetura da fau usp inclui uma sequência de disciplinas de desenho industrial em sua matriz curricular, em decorrência de uma reforma liderada pelo arquiteto e professor Vilanova Artigas. No ano seguinte, no Rio de Janeiro, a esdi,
buscando adotar uma filosofia semelhante à da hfg–ulm, entra em funcionamento,
sendo ali inaugurado o primeiro curso inteiramente dedicado à área, em nível superior, no Brasil.139 Também em 1963, é criada, em São Paulo, a abdi, com o objetivo
de difundir a atividade nacionalmente e promover a interação entre os profissionais
da área.
Em 1964, três artigos sintomáticos [figs.58a,b,c] desse novo momento da atividade no país seriam publicados em Habitat. Seus autores, os arquitetos João Carlos
Cauduro e Lúcio Grinover e o poeta concretista Décio Pignatari, estavam entre os
protagonistas desta cena. Cauduro e Grinover eram professores da fau usp de disciplinas da sequência de desenho industrial. Além disso, os três fizeram parte do grupo de fundadores da abdi, sendo que Grinover foi nomeado o primeiro presidente
da instituição e Pignatari, o diretor de informação. Este, por sua vez, também integraria o corpo docente da esdi.
Tendo em vista a necessidade de conscientizar o empresariado sobre o desenho industrial e assim estimular sua ampliação no mercado de trabalho, a abdi articulou várias iniciativas de divulgação. De acordo com Braga, promoveu palestras;
apoiou exposições e concursos, como o Prêmio Roberto Simonsen; organizou, em
1964, o i Seminário de Ensino de Desenho Industrial, em conjunto com a fau usp, a
esdi e a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (fiesp). Publicou, neste
mesmo ano, também com a fiesp, o livro Desenho industrial: aspectos sociais, históricos, culturais e econômicos, resultado de um evento de divulgação da profissão para
empresários com apoio do Fórum Roberto Simonsen; e criou a revista Produto e
137
LEITE, João. A herança do olhar: o design de Aloisio Magalhães. Rio de Janeiro: Artviva, 2003.
STOLARSKI, André. A identidade visual toma corpo. In: MELO, Chico Homem de. O design gráfico brasileiro: anos
60. São Paulo: Cosac Naify, 2008.
139
Após tentativas de fundação de uma escola de desenho industrial inspirada no modelo da hfg-ulm no mam-rj e no
Instituto de Belas Artes do Estado da Guanabara, a esdi foi formalmente criada em 25 de dezembro de 1962. Tinha como
base um currículo elaborado por Tomás Maldonado, a partir do qual trabalharam os designers Alexandre Wollner, Aloisio Magalhães, Karl Heinz Bergmiller e Orlando Luiz Souza Costa, aos quais se juntaram em seguida Flávio de Aquino e
Euryalo Cannabrava. A instituição foi inaugurada pelo então governador do estado da Guanabara, Carlos Lacerda, em 10
junho de 1963, no bairro da Lapa, na cidade do Rio de Janeiro, onde funciona até hoje. Ver BRAGA, op.cit. e
NIEMEYER, op.cit.
138
134
[fig.58a] Páginas iniciais
do artigo Origem e desenvolvimento do desenho
industrial no Brasil, de
João Carlos Cauduro. Habitat No 76. Fonte: Biblioteca FAU/USP. Reprodução: P. Amorim.
[fig.58b] Páginas iniciais
do artigo Desenho Industrial, de Lúcio Grinover.
Habitat No 76. Fonte:
Biblioteca FAU/USP.
Reprodução: P. Amorim.
[fig.58c] Páginas iniciais
do artigo O desenhista
industrial, de Décio Pignatari. Habitat No 77. Fonte:
Biblioteca FAU/USP.
Reprodução: P. Amorim.
135
Linguagem140, que teve três números lançados entre 1965 e 1966, e outras duas edições especiais em 1977.141
Habitat, por sua vez, cedeu espaço de suas páginas a abdi, ao veicular artigos
assinados por Cauduro, Grinover e Pignatari, nas edições 76 e 77. Segundo Braga,
tais textos também foram publicados no livro e na revista acima mencionados e baseavam-se nas conferências por eles proferidas.142
Em Origem e desenvolvimento do desenho industrial no Brasil, Cauduro esboça
uma revisão histórica da atividade no país, para assim contextualizar o surgimento
da abdi. Estabelece como marco inicial a reformulação das relações da cultura com
a indústria, empreendida, nos anos 1930, por arquitetos comandados por Lúcio Costa, no Rio de Janeiro. Menciona ainda pioneiros como Warchavchik, Flávio de Carvalho, Rino Levi e Vilanova Artigas. Dos anos 1940, cita experiências no âmbito do
desenhos de móveis em madeira recortada e compensada, realizadas por Zanine
Caldas e pelo Studio de Arte Palma; e no campo gráfico, a atuação da sucursal da
agência de publicidade Raymond Loewy Associates, que criou marcas para as indústrias Pignatari, utensílios de alumínio para a Rochedo e a linha de móveis Brafor.
No âmbito do ensino, faz referência ao masp e ao iac, e observa que no final da década de 1950, “alguns escritórios e alguns profissionais liberais surgem no mercado,
em São Paulo e no Rio de Janeiro, já com uma nova consciência da profissão de desenhista industrial”143.
Dentre as realizações mais recentes, Cauduro cita as experiências de ensino na
fau usp e na esdi; a participação do Brasil, em junho de 1963, no iii Congresso Internacional de Desenho Industrial, em Paris, promovido pelo International Council
of Societies of Industrial Design (icsid)144; e por fim, a fundação da abdi, em agosto
de 1963145. Deste modo, estava apresentada uma espécie de árvore genealógica dessa
entidade de classe, cujos cinco objetivos também foram ali expostos. Em síntese:
congregar os profissionais da área, favorecer o desenvolvimento e a qualificação da
140
DIAS, Dora; BRAGA, Marcos. A revista Produto e Linguagem: o pioneirismo e a arte gráfica de Fernando Lemos. In:
10º Congresso Brasileiro de pesquisa e desenvolvimento em Design, P&D 2012, São Luis, 2012. Anais .... São Luis, Universidade Federal do Maranhão, 2012.
141
Para detalhes da atuação da abdi, ver BRAGA, op.cit.
142
Ainda segundo Braga, em depoimento a este trabalho, “como na época eram raros os textos em português sobre o
design, o esforço dessas palestras gerou uma quantidade considerável de textos que serviu durante um tempo como referências conceituais para eles na abdi e para os empresários com quem tinham contato”.
143
CAUDURO, João. Origem e desenvolvimento do desenho industrial no Brasil. Habitat, São Paulo, n. 76. mar. abr.
1964, p. 50.
144
Motivados pela visita do então presidente do icsid a São Paulo, Misha Black, em maio de 1963, quando voltava da
Argentina para a Europa, os quatro professores da sequência de disciplinas de desenho industrial da fau usp, Abraão
Sanovitz, João Carlos Cauduro, João Rodolfo Stroeter e Lúcio Grinover, participaram do congresso da entidade em Paris.
Nessa viagem, tiveram ainda um encontro com Tomás Maldonado. Na volta ao Brasil, junto a outros profissionais, fundaram a abdi. Ver BRAGA, op.cit.
145
Neste artigo publicado em Habitat, Cauduro informa que a fundação da abdi ocorreu em agosto de 1963. De acordo
com Braga, a primeira ata de reunião da entidade tem data de 10 de setembro de 1963. Ver BRAGA, op.cit.
136
profissão, divulgar as atividades dos sócios, assessorá-los juridicamente e trabalhar
no sentido do reconhecimento e regulamentação da profissão. Em sua conclusão,
Cauduro acenava para o futuro: “O que foi realizado até agora no desenho industrial, constitui em verdade, a base que nos dá condições para doravante empreendermos aquelas tarefas que a sociedade brasileira, através de sua realidade industrial,
espera de nós”146.
Nesta mesma edição de Habitat, de março/abril de 1964, também foi publicado o artigo Desenho industrial, assinado por Lúcio Grinover. Docente da disciplina
de desenho industrial da fau usp e presidente da abdi (de 1963 a 1968), Grinover foi
também o primeiro no Brasil a defender uma tese de Livre Docência tendo o desenho industrial como tema: As implicações da ciência e do pensamento lógico no desenho industrial.147 No texto publicado em Habitat, numa linha distinta porém complementar a de Cauduro, Grinover enfatizou o papel do desenho industrial na sociedade e expôs uma definição da atividade:
O termo “Desenho Industrial”, tradução do inglês “Industrial Design” traz consigo
uma grande série de equívocos, que devemos eliminar da maneira a mais definitiva e
absoluta. Desenho Industrial não é desenho técnico. Desenho Industrial não é decoração. Desenho Industrial não é embelezamento do produto. Desenho Industrial não é
“Arte Aplicada”. Desenho Industrial é o planejamento Técnico-Formal do produto;
isto é, o projeto de objetos destinados à produção em série, visando a qualidade dos
mesmos, dentro das necessidades sociais, econômicas e culturais ditadas pela época e
pela comunidade para a qual ele atua.148
Grinover também ressalta que a atuação do desenhista industrial deveria pressupor
seu envolvimento em todas as etapas do processo, “tanto nas origens, como no desenvolvimento, concretização, produção e circulação do produto”149. Além disso, caberia a esse profissional uma importante função de mediação.
O desenhista industrial, quer como indivíduo isolado, quer como integrante de uma
equipe, é um técnico de natureza toda especial, atua efetivamente como mediador entre a indústria e o mercado consumidor, entre as exigências da produção e as necessidades práticas e culturais do consumidor.150
A questão da formação do gosto também não seria esquecida por Grinover, que reconheceria no desenho industrial a função de educação das massas: “hoje o objeto
146
CAUDURO, op.cit., p. 50.
BRAGA, op.cit.
148
GRINOVER, Lucio. Desenho industrial. Habitat, São Paulo, n. 76. mar. abr. 1964, p. 52.
149
Ibidem, p. 52.
150
Ibidem, p. 52.
147
137
industrial é considerado como resposta às necessidades atuais e contemporâneas da
funcionalidade e da economia, bem como àquelas do gosto e da cultura”151.
E por fim, conclui com uma menção que alinhava as componentes técnicas e
éticas que dão lastro à profissão:
o D.I. intervém diretamente no mundo da produção introduzindo a consciência segura de sua tarefa, fruto de uma posição correta e honesta, baseada no perfeito conhecimento da realidade e à luz dos valores éticos preconizados para a nossa civilização.152
Na edição seguinte, número 77, de maio/junho de 1964, Habitat dá continuidade à
exposição de ideias sobre o desenho industrial publicando mais um artigo de um dos
membros da diretoria da abdi, o professor de Teoria da Informação da esdi Décio
Pignatari. O texto se inicia com alguns parágrafos anteriormente publicados no escrito de Grinover153 e em seguida faz um resumo histórico da atividade, mencionando alguns de seus principais personagens e instituições internacionais.
Mais adiante, entretanto, Pignatari introduz ideias atualizadas em relação ao
desenho industrial e à sua pedagogia, como o operacionalismo científico154 de Tomás Maldonado e a crítica à boa forma de Rayner Banham, em favor de uma estética transitória para os produtos de consumo em massa. De acordo com Pignatari, a
sociedade industrial nos anos 1960 cedia terreno à sociedade da informação, e o desenho industrial não poderia deixar de levar em conta essa importante mudança.
A máquina, em nosso século, principalmente a cadeia de montagem de Ford e, agora,
com a produção automatizada, tem muito mais analogia com o sistema nervoso (comandos, mensagens, performances operacionais) do que com o sistema muscular, e
maravilha nosso tempo, não tanto pela variedade como pela quantidade de seus produtos. Hoje, mais do que para o objeto, para a coisa, volta-se para a relação entre as
coisas, para a relação entre os objetos. Falar em relação, falar em sistema nervoso, é
falar em linguagem. Entramos na era da linguagem, na era do código, na era dos signos.155
Para ele, seria possível se pensar nesses termos tanto a realidade da prática profissional quanto do ensino da atividade. Em 1965, por exemplo, Pignatari proporia uma
reformulação curricular na esdi, alegando que se “o desenhista industrial estava
151
Ibidem, p. 54.
Ibidem, p. 54.
153
De acordo com Braga, a primeira definição da profissão do desenho industrial publicada pela abdi é de autoria de
Décio Pignatari, que ocupava o cargo de diretor de informação da entidade. Ver Braga, op.cit..
154
Em 1955, Décio Pignatari visita a hfg-ulm, onde estabelece contato com Tomás Maldonado. A ideia de operacionalismo científico diz respeito a um “enquadramento rigorosamente técnico do desenhista industrial excluída em definitivo
qualquer indagação de ordem estética”. Ver PIGNATARI, Décio. O desenhista industrial. Habitat, São Paulo, n. 77. mai.
jun. 1964, p. 41.
155
PIGNATARI, op.cit., p. 41.
152
138
voltado para a produção em série, sua formação não poderia continuar a ser artesanal”156, e nesse sentido, dentre outras mudanças, defenderia a introdução dos computadores no ensino do design. Outro interessante e inusitado ponto levantado por
Pignatari – visto no conjunto dos artigos publicados por Habitat até então – é a
ideia da antropofagia, tão cara aos primeiros modernistas do país, como caminho na
busca por um desenho industrial autenticamente brasileiro.
Foi o grande poeta Oswald de Andrade quem, há 35 anos, lançou a “antropofagia”,
como a filosofia e a sociologia – melhor ainda – como a antropologia cultural mais
adequada à civilização brasileira, antropofagia que caracterizaria o pragmatismo brasileiro, um pragmatismo latino e nativo, mas não isolacionista, ao contrário: internacional, aberto para o mundo. Em defesa da criação de valores nacionais próprios de
validade internacional, com gabarito de exportação, através de deglutição e assimilação do que é útil no produto estrangeiro (seja objeto, know-how ou outra informação)
e devolução ao mercado mundial de produto nacional de qualidade, ou linguagem
(diríamos) própria.157
Em sua perspectiva, essa poderia ainda ser a chave para se estancar a ampla prática
da cópia de artefatos industrializados de origem estrangeira – ou não – vigente no
país.
[...] podemos afirmar que o desenhista industrial no Brasil já fará muito se começar
por rejeitar e combater energicamente a cópia, o plágio, a imitação e a deturpação do
produto estrangeiro. Como já dissemos, sua atitude deve ser crítica, antropofágica, a
bem da profundidade de sua atuação.158
Segundo Pignatari, esta função crítica seria de competência específica do desenhista
industrial. Ele deveria lutar por autonomia, visto que a sua atuação nos “departamentos de estilo” das indústrias era bastante limitada, já que eram desenhados ali
apenas partes ou detalhes de um objeto, geralmente importado. Para romper com
esse modelo, seria vital despertar a consciência do empresariado da necessidade de
seus serviços em todas as etapas do projeto. Divulgar-se através de revistas especializadas era uma forma de trabalhar em favor dessa conscientização do desenho industrial, e nesse sentido Habitat demonstrou-se um parceiro solícito.
Antes de tudo, uma aliada
Reconhecida como uma das mais importantes revistas culturais com foco na arquitetura que já circularam no país, é impossível não reconhecer o envolvimento mui156
BRAGA, op.cit., p. 59-60.
Ibidem, 42.
158
Ibidem, 41-2.
157
139
tas vezes intenso de Habitat nas questões do desenho industrial ao longo de sua existência.
Como parte, em seus primeiros anos, do projeto cultural encabeçado pelo
masp, ao qual também foi vinculado o iac, a revista desde o início atuou no sentido
de esclarecer a respeito dessa nova atividade projetual. Suas edições inaugurais preocuparam-se em definir o desenho industrial e em evidenciar a relevância do papel
desse novo profissional na sociedade brasileira, que então preparava-se para experimentar um surto de industrialização no país.
Enquanto porta-voz do masp e do iac, entretanto, Habitat não limitou-se a divulgar as ações dessas instituições, fundamentando o tema do desenho industrial a
partir de conteúdos que discutiam as teorias em voga na época – a gute form de Max
Bill, no início dos anos 1950, o operacionalismo científico de Tomás Maldonado, a
partir da década de 1960, e mesmo as elucubrações de Décio Pignatari, um pouco
mais adiante. Artigos e matérias levantando informações históricas a respeito da
prática do desenho industrial, tanto internacionalmente quanto no Brasil, também
fariam parte do manancial educativo que a revista formularia a respeito do assunto
ao longo dos anos.
O desenvolvimento da atividade no país também seria acompanhado de perto
por Habitat, principalmente no segmento da produção de mobiliário. A demanda
por instituições de ensino especializadas na área ou questões centrais à ampliação do
mercado de trabalho, como o problema das cópias e do pagamento de royalties por
projetos importados, também tiveram espaço na revista. Em relação ao viés cultural, Habitat colocaria em evidência a tarefa do desenho industrial na disseminação
do gosto moderno, dada sua capacidade, a princípio, de democratizar o acesso a bens
de consumo de qualidade funcional e estética.
Três tópicos, entretanto, emergem aqui como centrais na cobertura da revista
sobre o tema: a implantação do iac, gatilho para a militância editorial de Habitat
em torno do desenho industrial no início dos anos 1950, para a qual talvez não tenha
havido similar no Brasil naquele momento; o Congresso da aica, onde registrou-se
não só uma discussão internacional sobre o desenho industrial no contexto da construção de Brasília, como também o ocaso da teoria da boa forma em favor da ascensão de ideias como o operacionalismo científico e o design orientado pela semiótica
e a teoria da informação; e a institucionalização da atividade, especialmente a de
natureza classista, personificada no início da década de 1960 pela abdi, entidade que
encontraria acolhimento nas páginas de Habitat através da publicação de artigos
assinados por seus diretores.
Nesse sentido, vale observar que o foco da revista, no que diz respeito ao desenho industrial segundo as matérias e artigos analisados, esteve concentrado no ce-
140
nário paulistano. Não foi publicada, por exemplo, uma matéria sobre a fundação da
esdi. Também não houve, em Habitat, um redator que assumisse a cobertura e a
reflexão sobre o tema, pelo menos publicamente e por um período significativo. Para além dos textos assinados por Lina Bo Bardi nos primeiros números da publicação, os escritos mais extensos e/ou opinativos a respeito do desenho industrial eram
de colaboradores esporádicos ou mesmo de uma única ocasião. Assim, a postura da
revista sobre esse assunto transpareceria menos pela voz de integrantes da própria
equipe, como por exemplo o diretor de arquitetura Geraldo Ferraz, que por uma
curadoria de textos recolhidos de diferentes autores, brasileiros e estrangeiros, ao
sabor dos acontecimentos.
No espectro dessa cobertura desenvolvida ao longo de 14 anos, em maior ou
menor intensidade, é possível caracterizar de dois modos a contribuição de Habitat.
No primeiro momento, devido à instalação do iac, a revista teve o papel ativo de
apresentar, conceituar e expor os fundamentos teóricos do desenho industrial, o
qual era praticado informalmente no Brasil, até então, por arquitetos imigrantes e
artesãos. Tudo era novo. O conceito e a atividade projetual em si eram importados e
a revista – capitaneada por Lina e Bardi – sistematizou essas informações, preparando o terreno para um campo que, ainda jovem, tentava se estruturar, por exemplo, a partir da criação de uma escola, o iac.
O segundo momento viria pouco mais de uma década depois, já próximo ao
final da trajetória de Habitat. Ali a revista não mais atuava como protagonista, mas
servia como uma das plataformas disponíveis aos então oficiais representantes do
desenho industrial no país, os quais falavam em nome de uma entidade de classe, a
abdi. Naquele instante, o ensino em nível superior especializado na área era uma
realidade e escritórios e profissionais autônomos buscavam espaço no mercado de
trabalho. Esses novos agentes continuariam a elaborar e divulgar na sociedade as
ideias que davam fundamento à pratica e à pertinência do desenho industrial no
Brasil e Habitat seria uma aliada nesses esforços até seu último número.
141