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Etnicidade

Em colaboração com Tomas Martin Ossowicki

ETHNICITY (In: Roland Robertson & Jan Aart Scholte (eds.). New Encyclopedia of Globalization. The Moschovitis Group, New York) Marcio Goldman T. Martin Ossowicki O termo etnicidade é relativamente novo no discurso das ciências sociais, tendo sido introduzido nas primeiras décadas do século XX no contexto dos problemas levantados pela imigração européia para os Estados Unidos. No entanto, até meados da década de 1970 parece ter sido empregado sem uma definição conceitual precisa. A partir de então, passou a ocupar um lugar central e abrangente não apenas em disciplinas acadêmicas como a antropologia, a sociologia, a ciência política ou os estudos culturais, mas também na vida cotidiana e nos discursos oficiais de todos os níveis. Ainda que recente, o termo deriva etimológica e historicamente do grego clássico ethnos, que significa aproximadamente “nação”, mas também de ethnikos, que serviu para designar os “pagãos” no vocabulário dos Padres da Igreja. De forma consistente com essa origem, o termo tem marcado teorias e representações que pressupõem que os seres humanos agrupam-se ou podem ser classificados em entidades sociais ou culturais distintas, baseadas na percepção de uma origem comum que seria responsável por diferenças culturais, sociais, físicas ou comportamentais, e que 2 serviriam de base para o pertencimento dos indivíduos aos grupos assim determinados. O termo tem sido assim aplicado em geral a fenômenos distintos daqueles tidos como próprios a essa ordem sociopolítica que uma ideologia ocidental, o nacionalismo, supõe ser a forma superior de organização das sociedades: o Estado-Nação. É nesse sentido que as comunidades indígenas espalhadas pelo mundo são chamadas de “grupos étnicos”, ou que o carnaval em Londres pode ser “étnico”. Mas é nesse sentido também que as guerras e massacres na antiga Iugoslávia ou em Ruanda são denominados “conflitos étnicos”. Apesar disso, é fundamental observar que se etnicidade costuma remeter para o não ou pré-estatal, é sob o modelo do Estado-Nação que os grupos ou movimentos qualificados de étnicos são compreendidos: unidades discretas, dotadas de fronteiras nítidas, reunindo em seu interior um certo número de indivíduos. Nada a estranhar, portanto, no fato de o conceito ter sido amplamente empregado no estudo de temas como nation-building, aculturação e assimilação cultural, políticas de identidade e minorias, racismos e migrações transnacionais. E mesmo o cenário contemporâneo de enorme diversidade de grupos com origem diversa coexistindo a distâncias muito próximas tende a ser traduzido como “polietnicidade” ou “multiculturalismo”. Ou seja, uma simples justaposição de etnias ou culturas coexistindo em espaços definidos pelos Estados-Nação. 3 Cinco Linhas de Investigação Desde sua emergência como conceito central nas ciências sociais, uma grande quantidade de definições e conceptualizações da etnicidade vêm sendo elaboradas. No entanto, apesar das diferenças que separam essas abordagens, elas parecem compartilhar alguns acordos fundamentais. Assim, mesmo na ausência de um consenso em torno de sua classificação, é possível discernir ao menos cinco pontos de vista sobre como o fenômeno poderia (ou deveria) ser entendido. Essas perspectivas tendem, ao mesmo tempo, a se aproximar sobre determinados planos e a se afastar em outros. As três formas mais comuns de abordagem da questão costumam ser conhecidas como primordialismo, instrumentalismo (ou circunstancialismo) e construtivismo. Considerada ultrapassada pela maior parte dos cientistas sociais, a abordagem primordialista sustenta que alguns dados culturais, ou mesmo biológicos, estariam na raiz dos sentimentos e das identificações étnicas. Uma listagem de traços é elaborada tendo em vista a construção da morfologia cultural de uma sociedade ou grupo, a qual explicaria as diferenças entre essa unidade e outros grupos étnicos, servindo também para estruturar as relações políticas entre eles. Os dados que compõem essas listagens costumam incluir, entre outros, a religião, a linguagem, e, por vezes, características raciais (Keyes 1976). O parentesco, pensado como código natural que faz com que as pessoas privilegiem seus parentes em detrimento dos demais, é uma espécie de versão sociobiológica dessa perspectiva. Por outro lado, é importante observar que muitas 4 teorias locais sobre identidade e pertencimento são formuladas em termos francamente primordialistas (van der Bergh 1981). No pólo oposto, a posição instrumentalista encara a etnicidade como um fenômeno historicamente criado, construído e manipulado nos processos de competição pelo poder político ou econômico. Ou, de forma mais sofisticada, como engendrada por grupos de interesse em situações de competição por recursos tidos como escassos. Os símbolos, valores e práticas culturais tendem, assim, a ser vistos como meios arbitrários para a mobilização das pessoas e para a criação de limites grupais etnicamente definidos. E por mais que esses limites possam ser ultrapassados por alguns indivíduos, ou mesmo por grupos, quando uma mudança em sua identificação étnica parece ser de seu interesse, permanece o fato de que a realidade das unidades étnicas seria puramente diferencial, na medida em que cada uma só existe enquanto distinta e oposta a outras da mesma natureza (Barth 1969). A abordagem construtivista superpõe-se à instrumentalista na medida em que também sustenta que os grupos e identidades étnicas são construídos sob condições sociais especificas como parte de processos históricos que ao mesmo tempo estruturam e dependem de suas relações recíprocas. A etnicidade seria assim uma forma de organização sustentada pela criação e manipulação de limites e identidades sociais em contextos específicos — sendo que o EstadoNação tem sido um dos contextos percebidos como centrais por essa linha de investigação. Se o instrumentalismo, em oposição ao primordialismo, sublinha o caráter relacional dos pertencimentos 5 étnicos, o construtivismo radicaliza essa posição, chamando a atenção para o fato de que essas relações se dão em situações ou contextos heterogêneos e cambiantes. Reconhece-se, assim, a existência de múltiplas posições subjetivas e de identidade, que podem ser ocupadas pela mesma pessoa ou grupo, o que conduz ao reconhecimento do caráter fundamental das categorias indígenas de classificação e dos aspectos subjetivos dos pertencimentos étnicos (Clifford 1988; Cohen 1978). Uma quarta linha de investigação tende a focalizar sua análise nos efeitos produzidos pelo colonialismo — e por sua superação — sobre a constituição de identidades e a criação de fronteiras. Esses estudos têm mostrado como a expansão do sistema mundial envolve processos globais responsáveis pela construção de muitos dos grupos considerados étnicos, o que realça seu caráter contingente e sua origem histórica recente (Wallerstein and Balibar 1996). Finalmente, uma abordagem mais ligada à antropologia social ou cultural, baseada em pesquisas de campo etnográficas intensivas, vem concentrando sua atenção nos processos de diferenciação e identificação culturais, buscando atingir as categorias indígenas e sua significação em contextos específicos de sentido e ação social. Essa abordagem, que se pretende também comparativa, tem posto em questão a idéia da etnicidade como um modo universal, ou mais fundamental, de estruturação da percepção de diferenças e identidades. Ao contrário, esses estudos têm enfatizado o caráter contingente da própria noção de etnicidade, pondo em xeque o pressuposto de que todas as etno-teorias sobre a diversidade humana seriam necessariamente teorias da etnicidade (Handler 1994; Herzfeld 1996). 6 Globalização e Etnicidade O estudo dos múltiplos processos históricos condensados sob o termo globalização tem testemunhado uma explosão de novas, e por vezes violentas, reivindicações formuladas em termos de identidades étnicas. Comunidades transnacionais de migrantes e populações na diáspora nas principais cidades do mundo podem organizar suas atividades — ou serem suspeitas de organizá-las — e estabelecer conexões por meio de filiações étnicas que desafiam as fronteiras nacionais e as hegemonias políticas estabelecidas. E mesmo atividades como a indústria cultural, a mídia e o turismo empregam o termo etnicidade como parte de estratégias de marketing, tema de análises políticas ou apelos para novas e exóticas experiências destinadas a viajantes cosmopolitas. Sem dúvida, esses processos fizeram com que os cientistas sociais se tornassem mais sensíveis aos limites das categorias que vinham empregando há muito tempo. A etnicidade não escapou dessa autocrítica, e se o conceito encontra-se no centro de muitas discussões contemporâneas isso está relacionado ao fato do fenômeno parecer crucial para a compreensão de eventos históricos importantes. Pode-se supor, é claro, que as transformações acarretadas pela globalização transformaram o mundo a tal ponto que uma noção tão dependente de idéias como as de grupo e limites não poderia sobreviver às novas realidades marcadas por fronteiras abertas e movimentos incessantes. Ou que o reforço de certas formas de identidade étnica seria apenas uma espécie de reação aos efeitos 7 transformadores da globalização. Mas pode-se também imaginar que essas transformações simplesmente revelaram com mais clareza potencialidades preexistentes que a noção de etnicidade não era capaz de analisar satisfatoriamente. De toda forma, o conceito parece ter perdido boa parte de sua aparente estabilidade. Ao lado da integração e da interdependência econômicas que produz ao incrementar padrões de consumo mundiais e fluxos de pessoas que viajam e migram, a globalização é freqüentemente percebida como causa de uma maior homogeneização social e cultural. Mas se é verdade que a mídia e a Internet literalmente conectam uma incalculável massa de pessoas independentemente de sua localização física, não é menos verdadeiro que uma série de novos movimentos identidades, sociais inclusive envolvendo étnicas, reivindicações tradicionais ou locais emergentes de tem eclodido por toda a parte. De modo algo paradoxal, a etnicidade e as separações étnicas passaram a constituir um discurso global de identidades políticas. É nesse sentido que se costuma argumentar que a globalização é simultaneamente um multiplicador de processos de homogeneização e de heterogeneização nos quais grupos e indivíduos tornam-se mais parecidos e mais diferentes à medida em que se encontram e criam relações, mas também se confrontam. Além disso, muitas lealdades étnicas se espalham através de antigas fronteiras e comunidades outrora interconectando-se alinhamentos sociais. fechadas, com outras Estados-Nação formas de e continentes, identificação e 8 Os cientistas sociais assumiram diferentes posições face a essas transformações na economia da política e da cultura. Alguns argumentam que os confrontos culturais são inevitáveis na medida em que chocam-se no cenário mundial demandas incompatíveis, apoiadas sobre reivindicações efetuadas em nome da tradição e da cultura (Huntington 1996). Outros preferem argumentar que os processos contemporâneos e os novos equilíbrios de poder — incluindo uma variedade de pós-colonialismos, migrações transnacionais e novas formas de diáspora — criam sem cessar novas formas de etnicidade e cultura caracterizadas sobretudo pela hibridização, criolização ou sincretização de tradições diferentes (Hall 1997). Uma terceira linha de argumentação sustenta ainda que o poder das identificações e vínculos étnicos estaria em declínio, como resultado das forças históricas em ação. Posição apoiada sobre o diagnóstico de uma crise dos Estados-Nação e sobre seu questionamento como forma dominante de organização política no mundo contemporâneo (Appadurai 1997; Hannerz 1996). A verdade é que a maior parte dos estudos sobre etnicidade sempre esteve apoiado sobre um equacionamento entre EstadoNação e sociedade, fazendo do primeiro a arena ou o horizonte no qual se desenrolariam todos os dramas relativos a demandas e conflitos étnicos e culturais. Os processos de globalização podem, nesse sentido, ser encarados como forças de erosão das identidades nacionais, étnicas e culturais, na medida em que fragmentam subjetividades, grupos e nações, levando a novas formas de identificação que seguem linhas distintas daquelas que se supunha seguir a etnicidade. É nesse sentido que mesmo os indivíduos não podem mais ser encarados como uma unidade bem delimitada, 9 membros de um grupo, sociedade ou cultura igualmente dotados de fronteiras sólidas. Assim, ao lado do desafio imposto pelas mudanças no panorama mundial, fazendo com que primordialismo, instrumentalismo e construtivismo não pareçam mais satisfatórios para a apreensão dos fenômenos ligados à etnicidade, é preciso também reconhecer que as teorias sobre as relações entre globalização e etnicidade desempenham seu papel na construção da imagem de um mundo que seria radicalmente distinto do que era há apenas algumas décadas. Um pouco de cautela talvez seja necessária aqui. Pois afinal de contas, mesmo que as mudanças globais estejam distribuídas por todo o mundo, é difícil acreditar que afetem da mesma forma elites urbanas e secularizadas, consumidoras dos novos bens e serviços que circulam pelo globo, e populações desprovidas dos meios básicos de subsistência. conceitual E das é difícil ciências acreditar sociais igualmente só que encontremos no estoque modelos de diferenciação social e de formas de comunidade baseados na “ficção” do Estado-Nação. Nesse sentido, e na medida em que os discursos sobre a etnicidade continuam a proliferar, torna-se possível reconsiderar mais profundamente as próprias categorias com que operamos, empregando-as quando esclarecedoras, abandonando-as e substituindo-as quando necessário. See also Borders; Cultural Globalization; Diasporas; Hybridity; Identity; Migration; Multiculturality; National Identity; Polyethnicity; Race; Transnationality 10 Bibliography Appadurai, Arjun. 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