ETHNICITY
(In: Roland Robertson & Jan Aart Scholte (eds.). New Encyclopedia of
Globalization. The Moschovitis Group, New York)
Marcio Goldman
T. Martin Ossowicki
O termo etnicidade é relativamente novo no discurso das ciências
sociais, tendo sido introduzido nas primeiras décadas do século XX no
contexto dos problemas levantados pela imigração européia para os
Estados Unidos. No entanto, até meados da década de 1970 parece
ter sido empregado sem uma definição conceitual precisa. A partir de
então, passou a ocupar um lugar central e abrangente não apenas em
disciplinas acadêmicas como a antropologia, a sociologia, a ciência
política ou os estudos culturais, mas também na vida cotidiana e nos
discursos oficiais de todos os níveis.
Ainda que recente, o termo deriva etimológica e historicamente
do grego clássico ethnos, que significa aproximadamente “nação”,
mas também de ethnikos, que serviu para designar os “pagãos” no
vocabulário dos Padres da Igreja. De forma consistente com essa
origem,
o
termo
tem
marcado
teorias
e
representações
que
pressupõem que os seres humanos agrupam-se ou podem ser
classificados em entidades sociais ou culturais distintas, baseadas na
percepção
de
uma
origem
comum
que
seria
responsável
por
diferenças culturais, sociais, físicas ou comportamentais, e que
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serviriam de base para o pertencimento dos indivíduos aos grupos
assim determinados.
O termo tem sido assim aplicado em geral a fenômenos distintos
daqueles tidos como próprios a essa ordem sociopolítica que uma
ideologia ocidental, o nacionalismo, supõe ser a forma superior de
organização das sociedades: o Estado-Nação. É nesse sentido que as
comunidades indígenas espalhadas pelo mundo são chamadas de
“grupos étnicos”, ou que o carnaval em Londres pode ser “étnico”.
Mas é nesse sentido também que as guerras e massacres na antiga
Iugoslávia ou em Ruanda são denominados “conflitos étnicos”.
Apesar disso, é fundamental observar que se etnicidade costuma
remeter para o não ou pré-estatal, é sob o modelo do Estado-Nação
que
os
grupos
ou
movimentos
qualificados
de
étnicos
são
compreendidos: unidades discretas, dotadas de fronteiras nítidas,
reunindo em seu interior um certo número de indivíduos. Nada a
estranhar, portanto, no fato de o conceito ter sido amplamente
empregado no estudo de temas como nation-building, aculturação e
assimilação cultural, políticas de identidade e minorias, racismos e
migrações transnacionais. E mesmo o cenário contemporâneo de
enorme diversidade de grupos com origem diversa coexistindo a
distâncias muito próximas tende a ser traduzido como “polietnicidade”
ou “multiculturalismo”. Ou seja, uma simples justaposição de etnias
ou culturas coexistindo em espaços definidos pelos Estados-Nação.
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Cinco Linhas de Investigação
Desde sua emergência como conceito central nas ciências sociais,
uma
grande
quantidade
de
definições
e
conceptualizações
da
etnicidade vêm sendo elaboradas. No entanto, apesar das diferenças
que separam essas abordagens, elas parecem compartilhar alguns
acordos fundamentais. Assim, mesmo na ausência de um consenso
em torno de sua classificação, é possível discernir ao menos cinco
pontos de vista sobre como o fenômeno poderia (ou deveria) ser
entendido. Essas perspectivas tendem, ao mesmo tempo, a se
aproximar sobre determinados planos e a se afastar em outros.
As três formas mais comuns de abordagem da questão costumam
ser
conhecidas
como
primordialismo,
instrumentalismo
(ou
circunstancialismo) e construtivismo. Considerada ultrapassada pela
maior parte dos cientistas sociais, a abordagem primordialista
sustenta que alguns dados culturais, ou mesmo biológicos, estariam
na raiz dos sentimentos e das identificações étnicas. Uma listagem de
traços é elaborada tendo em vista a construção da morfologia cultural
de uma sociedade ou grupo, a qual explicaria as diferenças entre essa
unidade e outros grupos étnicos, servindo também para estruturar as
relações políticas entre eles. Os dados que compõem essas listagens
costumam incluir, entre outros, a religião, a linguagem, e, por vezes,
características raciais (Keyes 1976). O parentesco, pensado como
código natural que faz com que as pessoas privilegiem seus parentes
em detrimento dos demais, é uma espécie de versão sociobiológica
dessa perspectiva. Por outro lado, é importante observar que muitas
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teorias locais sobre identidade e pertencimento são formuladas em
termos francamente primordialistas (van der Bergh 1981).
No pólo oposto, a posição instrumentalista encara a etnicidade
como um fenômeno historicamente criado, construído e manipulado
nos processos de competição pelo poder político ou econômico. Ou,
de forma mais sofisticada, como engendrada por grupos de interesse
em situações de competição por recursos tidos como escassos. Os
símbolos, valores e práticas culturais tendem, assim, a ser vistos
como meios arbitrários para a mobilização das pessoas e para a
criação de limites grupais etnicamente definidos. E por mais que
esses limites possam ser ultrapassados por alguns indivíduos, ou
mesmo por grupos, quando uma mudança em sua identificação étnica
parece ser de seu interesse, permanece o fato de que a realidade das
unidades étnicas seria puramente diferencial, na medida em que cada
uma só existe enquanto distinta e oposta a outras da mesma
natureza (Barth 1969).
A abordagem construtivista superpõe-se à instrumentalista na
medida em que também sustenta que os grupos e identidades étnicas
são construídos sob condições sociais especificas como parte de
processos históricos que ao mesmo tempo estruturam e dependem de
suas relações recíprocas. A etnicidade seria assim uma forma de
organização sustentada pela criação e manipulação de limites e
identidades sociais em contextos específicos — sendo que o EstadoNação tem sido um dos contextos percebidos como centrais por essa
linha de investigação. Se o instrumentalismo, em oposição ao
primordialismo, sublinha o caráter relacional dos pertencimentos
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étnicos, o construtivismo radicaliza essa posição, chamando a atenção
para o fato de que essas relações se dão em situações ou contextos
heterogêneos e cambiantes. Reconhece-se, assim, a existência de
múltiplas posições subjetivas e de identidade, que podem ser
ocupadas
pela
mesma
pessoa
ou
grupo,
o
que
conduz
ao
reconhecimento do caráter fundamental das categorias indígenas de
classificação e dos aspectos subjetivos dos pertencimentos étnicos
(Clifford 1988; Cohen 1978).
Uma quarta linha de investigação tende a focalizar sua análise
nos efeitos produzidos pelo colonialismo — e por sua superação —
sobre a constituição de identidades e a criação de fronteiras. Esses
estudos têm mostrado como a expansão do sistema mundial envolve
processos globais responsáveis pela construção de muitos dos grupos
considerados étnicos, o que realça seu caráter contingente e sua
origem histórica recente (Wallerstein and Balibar 1996).
Finalmente, uma abordagem mais ligada à antropologia social ou
cultural, baseada em pesquisas de campo etnográficas intensivas,
vem concentrando sua atenção nos processos de diferenciação e
identificação culturais, buscando atingir as categorias indígenas e sua
significação em contextos específicos de sentido e ação social. Essa
abordagem, que se pretende também comparativa, tem posto em
questão a idéia da etnicidade como um modo universal, ou mais
fundamental,
de
estruturação
da
percepção
de
diferenças
e
identidades. Ao contrário, esses estudos têm enfatizado o caráter
contingente da própria noção de etnicidade, pondo em xeque o
pressuposto de que todas as etno-teorias sobre a diversidade humana
seriam necessariamente teorias da etnicidade (Handler 1994; Herzfeld
1996).
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Globalização e Etnicidade
O estudo dos múltiplos processos históricos condensados sob o
termo globalização tem testemunhado uma explosão de novas, e por
vezes violentas, reivindicações formuladas em termos de identidades
étnicas. Comunidades transnacionais de migrantes e populações na
diáspora nas principais cidades do mundo podem organizar suas
atividades — ou serem suspeitas de organizá-las — e estabelecer
conexões por meio de filiações étnicas que desafiam as fronteiras
nacionais
e
as
hegemonias
políticas
estabelecidas.
E
mesmo
atividades como a indústria cultural, a mídia e o turismo empregam o
termo etnicidade como parte de estratégias de marketing, tema de
análises políticas ou apelos para novas e exóticas experiências
destinadas a viajantes cosmopolitas.
Sem dúvida, esses processos fizeram com que os cientistas
sociais se tornassem mais sensíveis aos limites das categorias que
vinham empregando há muito tempo. A etnicidade não escapou dessa
autocrítica, e se o conceito encontra-se no centro de muitas
discussões
contemporâneas
isso
está
relacionado
ao
fato
do
fenômeno parecer crucial para a compreensão de eventos históricos
importantes.
Pode-se
supor,
é
claro,
que
as
transformações
acarretadas pela globalização transformaram o mundo a tal ponto que
uma noção tão dependente de idéias como as de grupo e limites não
poderia sobreviver às novas realidades marcadas por fronteiras
abertas e movimentos incessantes. Ou que o reforço de certas formas
de identidade étnica seria apenas uma espécie de reação aos efeitos
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transformadores da globalização. Mas pode-se também imaginar que
essas transformações simplesmente revelaram com mais clareza
potencialidades preexistentes que a noção de etnicidade não era
capaz de analisar satisfatoriamente. De toda forma, o conceito parece
ter perdido boa parte de sua aparente estabilidade.
Ao lado da integração e da interdependência econômicas que
produz ao incrementar padrões de consumo mundiais e fluxos de
pessoas que viajam e migram, a globalização é freqüentemente
percebida como causa de uma maior homogeneização social e
cultural. Mas se é verdade que a mídia e a Internet literalmente
conectam uma incalculável massa de pessoas independentemente de
sua localização física, não é menos verdadeiro que uma série de
novos
movimentos
identidades,
sociais
inclusive
envolvendo
étnicas,
reivindicações
tradicionais
ou
locais
emergentes
de
tem
eclodido por toda a parte. De modo algo paradoxal, a etnicidade e as
separações étnicas passaram a constituir um discurso global de
identidades políticas. É nesse sentido que se costuma argumentar que
a globalização é simultaneamente um multiplicador de processos de
homogeneização e de heterogeneização nos quais grupos e indivíduos
tornam-se mais parecidos e mais diferentes à medida em que se
encontram e criam relações, mas também se confrontam. Além disso,
muitas lealdades étnicas se espalham através de antigas fronteiras e
comunidades
outrora
interconectando-se
alinhamentos sociais.
fechadas,
com
outras
Estados-Nação
formas
de
e
continentes,
identificação
e
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Os cientistas sociais assumiram diferentes posições face a essas
transformações
na
economia
da
política
e
da
cultura.
Alguns
argumentam que os confrontos culturais são inevitáveis na medida
em que chocam-se no cenário mundial demandas incompatíveis,
apoiadas sobre reivindicações efetuadas em nome da tradição e da
cultura (Huntington 1996). Outros preferem argumentar que os
processos contemporâneos e os novos equilíbrios de poder —
incluindo
uma
variedade
de
pós-colonialismos,
migrações
transnacionais e novas formas de diáspora — criam sem cessar novas
formas
de
etnicidade
e
cultura
caracterizadas
sobretudo
pela
hibridização, criolização ou sincretização de tradições diferentes (Hall
1997). Uma terceira linha de argumentação sustenta ainda que o
poder das identificações e vínculos étnicos estaria em declínio, como
resultado das forças históricas em ação. Posição apoiada sobre o
diagnóstico
de
uma
crise
dos
Estados-Nação
e
sobre
seu
questionamento como forma dominante de organização política no
mundo contemporâneo (Appadurai 1997; Hannerz 1996).
A verdade é que a maior parte dos estudos sobre etnicidade
sempre esteve apoiado sobre um equacionamento entre EstadoNação e sociedade, fazendo do primeiro a arena ou o horizonte no
qual se desenrolariam todos os dramas relativos a demandas e
conflitos étnicos e culturais. Os processos de globalização podem,
nesse sentido, ser encarados como forças de erosão das identidades
nacionais, étnicas e culturais, na medida em que fragmentam
subjetividades,
grupos
e
nações,
levando
a
novas
formas
de
identificação que seguem linhas distintas daquelas que se supunha
seguir a etnicidade. É nesse sentido que mesmo os indivíduos não
podem mais ser encarados como uma unidade bem delimitada,
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membros de um grupo, sociedade ou cultura igualmente dotados de
fronteiras sólidas.
Assim, ao lado do desafio imposto pelas mudanças no panorama
mundial,
fazendo
com
que
primordialismo,
instrumentalismo
e
construtivismo não pareçam mais satisfatórios para a apreensão dos
fenômenos ligados à etnicidade, é preciso também reconhecer que as
teorias
sobre
as
relações
entre
globalização
e
etnicidade
desempenham seu papel na construção da imagem de um mundo que
seria radicalmente distinto do que era há apenas algumas décadas.
Um pouco de cautela talvez seja necessária aqui. Pois afinal de
contas, mesmo que as mudanças globais estejam distribuídas por
todo o mundo, é difícil acreditar que afetem da mesma forma elites
urbanas e secularizadas, consumidoras dos novos bens e serviços que
circulam pelo globo, e populações desprovidas dos meios básicos de
subsistência.
conceitual
E
das
é
difícil
ciências
acreditar
sociais
igualmente
só
que
encontremos
no
estoque
modelos
de
diferenciação social e de formas de comunidade baseados na “ficção”
do Estado-Nação. Nesse sentido, e na medida em que os discursos
sobre
a
etnicidade
continuam
a
proliferar,
torna-se
possível
reconsiderar mais profundamente as próprias categorias com que
operamos, empregando-as quando esclarecedoras, abandonando-as e
substituindo-as quando necessário.
See also
Borders;
Cultural
Globalization;
Diasporas;
Hybridity;
Identity;
Migration; Multiculturality; National Identity; Polyethnicity; Race;
Transnationality
10
Bibliography
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