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Liberalismo, Governamentalidade e Seguridade

2018, Ítaca

Pós-doutorando PPGFIL/UERJ, doutor pelo IFCS/UFRJ RESUMO: O texto abarca uma análise crítica da governamentalidade e da seguridade a partir da perspectiva foucaultiana. Abordarei como certas estratégias de exercício do poder sobre o corpo social são utilizadas no contexto econômico e político liberal, a exemplo das técnicas de gerenciamento e controle da população, com uso da estatística e da probabilidade. Veremos como indivíduos precisam ser regulados, assujeitados, encancerados ou até excluídos, em prol de uma segurança que garanta a existência da própria sociedade, afiançada por uma terapêutica liberal. Neste processo dois cursos serão fundamentais, o Sécurité, territoire, population e o Naissance de la biopolitique.

Ítaca 32 ISSN 1679-6799 Liberalismo, Governamentalidade e Seguridade Liberalismo, Governamentalidade e Seguridade Liberalism, Governmentality and Safety André Pereira de Almeida Pós-doutorando PPGFIL/UERJ, doutor pelo IFCS/UFRJ RESUMO: O texto abarca uma análise crítica da governamentalidade e da seguridade a partir da perspectiva foucaultiana. Abordarei como certas estratégias de exercício do poder sobre o corpo social são utilizadas no contexto econômico e político liberal, a exemplo das técnicas de gerenciamento e controle da população, com uso da estatística e da probabilidade. Veremos como indivíduos precisam ser regulados, assujeitados, encancerados ou até excluídos, em prol de uma segurança que garanta a existência da própria sociedade, afiançada por uma terapêutica liberal. Neste processo dois cursos serão fundamentais, o Sécurité, territoire, population e o Naissance de la biopolitique. PALAVRAS-CHAVE: GOVERNAMENTALIDE; SEGURIDADE; LIBERALISMO; POPULAÇÃO; FOUCAULT. ABSTRACT: The text covers a critical analysis of governmentality and security from the foucaultian perspective. I will discuss how certain strategies of exercising power over the social body are used in the liberal economic and political context, such as the forms of population management and control, using statistics and probability. We will see how individuals need to be regulated, subjected, imprisoned or even excluded, in favor of a security that guarantees the existence of the own society, secured by a liberal therapy. In this process two courses will be fundamental, the Sécurité, territoire, population e o Naissance de la biopolitique. KEY-WORDS: GOVERNMENTALITY; SAFETY; LIBERALISM; POPULATION; FOCAULT. INTRODUÇÃO A problematização da governamentalidade e da seguridade no último Foucault é uma contribuição importante para o pensar filosófico e político contemporâneo. Amplamente presente no curso de 1977-78, denominado Segurança, Território, População, o questionamento da governamentalidade também aparece no curso subsequente de 1978-79, chamado de Nascimento da Biopolítica. Contudo, sustento que a questão da governamentalidade e da seguridade está mais bem implicada no curso Segurança, Território e População. O curso Nascimento da Biopolítica é mais focado no estudo do nascimento e tematização do liberalismo em seu aspecto André Pereira de Almeida 23 Ítaca 32 ISSN 1679-6799 Liberalismo, Governamentalidade e Seguridade primitivo e em suas versões contemporâneas (alemã e norteamericana), quando o liberalismo aparece como condição de inteligibilidade da biopolítica. Para efeito deste artigo vou me basear prioritariamente nos cursos: Segurança, Território, População e Nascimento da Biopolítica, mas também vou utilizar textos presentes na coletânea de textos Dits et écrits, publicada em 1994, com destaque para o curso La governamentalità. O questionamento foucaultiano de governamentalidade e consequentemente o de seguridade, já que também se governa para manter o “nível desejável” de segurança e busca-se uma seguridade que possibilite governar, surge com a abordagem que Foucault faz do biopoder, que é uma importante ferramenta conceitual para analisar, diagnosticar e compreender as crises políticas da sociedade contemporânea, assim como seus antecedentes históricos. O biopoder corresponde a uma estratégia mais ampla que engloba a própria biopolítica, expressão que aparece inicialmente em 1974, em uma conferência proferida por Foucault na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, intitulada O Nascimento da Medicina Social1. Dois anos depois, em 1976, Foucault retorna ao termo no último capítulo do volume I da História da Sexualidade - A vontade de saber, denominado Direito de morte e poder sobre a vida. No mesmo ano ele é desenvolvido no curso em Em Defesa da Sociedade. Posteriormente, em 1978-79 no curso Nascimento da Biopolítica, ele aborda a tematização do biopoder e da biopolítica, articulando-os com os temas de biogenética e governo econômico de populações, quando o liberalismo econômico aparece como a moldura geral da biopolítica. Finda a curta digressão, importante para introduzir o tema da governamentalidade, já que o próprio Foucault, partindo das conclusões que retira acerca do biopoder e da biopolítica no curso de 1976, se propõe a expandir e aprofundar seu deslocamento teórico; adentro na problematização da governamentalidade. Foucault sustentou que a governamentalização do Estado foi um fenômeno fundamental na história do ocidente, de forma que vivemos na era da governamentalidade, já descoberta no século XVIII. Mas como e por que isso surgiu? Em livros, cursos e entrevistas, Foucault anuncia que o biopoder funciona de forma intrinsecamente diversa, tanto da Publicado no Brasil, em 1979, na coletânea de textos denominada Microfísica do Poder, organizado por Roberto Machado e retomado pelos organizadores de Dits et écrits, em 1994. 1 André Pereira de Almeida 24 Ítaca 32 ISSN 1679-6799 Liberalismo, Governamentalidade e Seguridade soberania, quanto dos mecanismos disciplinares. Enquanto a soberania se preocupava prioritariamente com a manutenção do território e a disciplina buscava domesticar corpos, o biopoder e sua “irmã menor” a biopolítica possuem como objeto primordial a própria população. População que precisa ser gerenciada ou governada, a partir do conhecimento de suas regularidades específicas, de forma a manter a “segurança” da sociedade, mostrando assim a indissociabilidade entre as estratégias de governo com as tecnologias de segurança, ou melhor, a não separação entre a governamentalidade e a seguridade. Tudo isso complexificado pelo fato de que, como já ocorria com as técnicas disciplinares, tanto a governamentalidade, quanto a seguridade lidam com multiplicidades, com acontecimentos e com o aleatório. GOVERNAMENTALIDADE Na aula de 1º de fevereiro de 1978, do curso Segurança, Território, População, Foucault faz uma curiosa e intrigante crítica à obra O Príncipe, de Maquiavel. Ao abordar o problema da governamentalidade, Foucault denuncia que a teoria política hegemônica e seus interlocutores, como: os filósofos, sociólogos ou cientistas políticos, por exemplo, veem cometendo erros sistemáticos. Os interlocutores falham ao não perceberem que estratégias do exercício do poder, válidos para principados, perdem força e sentido ao serem aplicados nos governos modernos. Há uma passagem do Estado de justiça, da idade média feudal, para o Estado administrativo, que surge nos séculos XV e XVI. Posteriormente o Estado administrável foi “aperfeiçoado” e deu origem ao Estado governamental, que perdura até hoje. Principalmente na sua forma mais disseminada e abrangente, a forma do Estado liberal. De acordo com o rastro apontado por Foucault, a teoria política hegemônica falha sempre que percebe mal no que a arte de governar muda e assume diferentes facetas, não atentando para a desvalorização da soberania no Estado moderno. O soberano estava preocupado com a manutenção do poder e da soberania. O grande medo do Príncipe era ser rejeitado e perder o seu lugar. É esse principado como relação do Príncipe com seus súditos e seu território, é isso que se trata de proteger, e não diretamente, ou imediatamente, ou fundamentalmente, ou primeiramente, o território e seus habitantes. É esse vínculo frágil do príncipe com André Pereira de Almeida 25 Ítaca 32 ISSN 1679-6799 Liberalismo, Governamentalidade e Seguridade seu principado que a arte de governar, a arte de ser príncipe apresentada por Maquiavel deve ter como objetivo. (FOUCAULT, 2009, p. 122- 123) Nos governos das sociedades modernas, a arte de governar passa a ser outra coisa, atua por meio de diferentes estratégias e técnicas. O problema passa a ser administrar bem as coisas, mas gerir o quê, quais coisas? Basicamente gerir a população e com isso governamentalizar o próprio Estado, que sai do topo do processo, para fazer parte de uma tessitura social muito mais complexa, com estratégias mais interessantes e sofisticadas, a exemplo da distribuição perene de poder presente na governamentalidade. O que o pensamento político predominante não percebeu é que não há Estado moderno soberano. Se o soberano governava para manter o território, hoje se governa para regular as populações. Defendo que se há uma soberania, esta é a do mercado e não a do Estado. O próprio Estado é efeito da governamentalidade e não o contrário. É um equívoco pensar que o governo é fruto do Estado, como concluem alguns discípulos de Maquiavel. De forma diversa, parto do pressuposto que o Estado corresponde a uma consequência das forças sociais, o efeito móvel de um regime de governamentalidades múltiplas. O Estado não é um poder soberano, principesco, maquiavélico ou autônomo. Ele age muito mais como interventor e administrador de coisas geridas por si mesmas. O grande mandante é o mercado, que marca a constante valorização da governamentalidade liberal. Recorro agora ao Dits et écrits, no curso La governamentalità, de 1978, para melhor ilustrar a questão da governamentalidade. Nesse curso Foucault procurou inventariar o problema do governo, ou melhor, as técnicas de governo no espaço real da luta e dos torneios políticos. O próprio Estado só sobreviveu devido à governamentalização do Estado. Governamentalidade interior e exterior ao Estado, que serve como base de compreensão da sobrevida e limites do Estado. A partir da noção de Estado, Foucault mais uma vez reconstituiu as três grandes formas de economia de poder no ocidente, são elas: o Estado de justiça corresponde a uma sociedade da lei com todo um jogo de engajamento e litígio, proveniente de uma territorialidade feudal. Em seguida vem o Estado administrativo, este corresponde a uma sociedade de regulamentos e disciplinas, e surge no período entre os séculos XV e XVII em uma territorialidade do tipo André Pereira de Almeida 26 Ítaca 32 ISSN 1679-6799 Liberalismo, Governamentalidade e Seguridade fronteiriça e não mais feudal; por fim há o Estado de governo que já não é mais definido pela territorialidade, pela superfície ocupada, mas pela massa da população, com seu volume e densidade, o território é apenas um componente. A população não aparece mais como a potência do soberano, mas como instrumento e objeto último do governo, a partir do momento que a finalidade do governo não é governar, mas o de melhorar o destino, aumentar as riquezas, a duração da vida e a saúde das populações. Nasce assim uma arte de governar, uma governamentalidade que age diretamente e indiretamente sobre a população, visto que esta é simultaneamente sujeito de necessidades e objeto de manipulação para o governo. É um “Estado” de governo ancorado na população, que acima de tudo almeja regulá-la. E esse Estado de governo que se apoia essencialmente sobre a população e que se refere e utiliza a instrumentação do saber econômico, corresponde a uma sociedade controlada pelos dispositivos de segurança. (FOUCAULT, 2001, p. 657). Mas como regular as populações? Por meio de estratégias e tecnologias do poder provenientes da economia, da administração, das ciências humanas, sociais e biomédicas, entre outras, mas sobremaneira da estatística e da probabilidade, que se infiltram nos demais campos de saberes. Tudo em prol de uma “segurança”, ou melhor, seguridade que seria capaz de manter ou fazer viver a própria população. Mas o que se pode entender por seguridade? A seguridade funciona como uma “terapêutica normativa” para a sociedade, ela pode ser pensada como uma forma de fazer com que as pessoas se permitam serem assujeitadas. Hoje, o mundo está em vias de evoluir para um modelo hospitalar e o governo adquire uma função terapêutica. A função dos dirigentes é adaptar os indivíduos ao processo de desenvolvimento, conforme uma verdadeira ortopedia social. O mundo é um grande hospício, no qual os governantes são os psicólogos e o povo os pacientes. A cada dia que passa, o papel desempenhado pelos criminologistas, pelos psiquiatras e todos os que estudam o comportamento mental do homem, aumenta mais. Eis porque o poder politico está em vias de adquirir uma nova função, que é a terapêutica. (FOUCAULT, 2001, p. 1301-1302) André Pereira de Almeida 27 Ítaca 32 ISSN 1679-6799 Liberalismo, Governamentalidade e Seguridade Destarte, há uma seguridade terapêutica que passa por mecanismos de normalização e assujeitamento, adequação de pessoas ao padrão de desenvolvimento social, com o objetivo de manter uma “normalidade comportamental” do indivíduo e da população. Para assegurar tal estratégia de normalização são utilizadas uma série de tecnologias de segurança que passam pela: criminalidade, escassez alimentar, educação, trabalho, previdência, natalidade, mortalidade, longevidade, biotecnologia (que pode modificar o próprio destino biológico da espécie humana), encarceramento e até a exclusão. Tecnologias adaptáveis e maleáveis que permeiam todo o tecido social, que sofrem as influências da inevitabilidade do aleatório. Aleatório que paradoxalmente traz consigo as práticas de resistência ao biopoder, mas que sem ele, as próprias relações de poder pereceriam. Aleatório presente nos grandes e pequenos acontecimentos, que formam e modificam a tessitura social a todo o momento. Aleatório dos pequenos fenômenos, que singularmente eram empregados por Foucault, como chaves para leituras filosóficas e políticas. O particular é que explica o universal e são as questões aparentemente pequenas, que podem ter um alcance universal. Está aí a importância política de sempre olhar para o lado, para o fragmento. Falo a seguir do economicismo liberal, que sobrevaloriza a seguridade e a governamentalidade, mas também é o que mais sofre os efeitos do aleatório, visto sua necessidade intrínseca da velocidade, fruto do mercado e do capitalismo conexionista. LIBERALISMO No curso Nascimento da Biopolítica, Foucault faz uma incursão no campo da história contemporânea ao estudar duas das grandes escolas liberais do século XX, o ordoliberalismo2 alemão e neoliberalismo da Escola de Chicago3. Para tanto ele faz um É uma doutrina econômica, adotada principalmente na Alemanha do pósguerra, que se autodenomina uma "terceira via" entre o socialismo e o capitalismo. Baseia-se em três pontos fundamentais: criação uma "ordem" (ordo) que remedie as falhas dos mercados; organização da economia com mercados eficientes e competitivos; e essa "ordem" forte deve assegurar uma economia justa numa economia social de mercado. 3 É uma escola de pensamento econômico que defende o mercado livre e que foi disseminada por alguns professores da Universidade de Chicago. Suas idéias são associadas à teoria neoclássica da formação de preços e ao liberalismo econômico, refutando e rejeitando o Keynesianismo em favor do monetarismo, (até 1980, quando 2 André Pereira de Almeida 28 Ítaca 32 ISSN 1679-6799 Liberalismo, Governamentalidade e Seguridade diagnóstico, um plano de análise possível da dita “razão governamental”, isto é, dos tipos de racionalidade que são postos em ação nos procedimentos pelos quais o comportamento dos homens é conduzido e controlado por meio de uma administração estatal. Em ambas as escolas o liberalismo se apresentou como uma crítica da irracionalidade própria do excesso de governo, que apresentou racionalidades políticas próprias, no interior da qual foram postos os problemas específicos da vida e da população. Foucault procurou analisar o liberalismo como prática, em detrimento de outras perspectivas usuais, como: teoria, ideologia ou maneira de a sociedade se representar. O liberalismo seria então uma “maneira de fazer” orientada por objetivos e regulada por uma reflexão contínua, seria um princípio e método de racionalização do exercício do governo. Entendido que o governo, não diz respeito à instituição “governo”, mas a atividade que rege a conduta dos homens num quadro e com instrumentos estatais. O liberalismo rompeu com a “razão do Estado”, que desde o fim do século XVI, havia procurado na existência e no fortalecimento do Estado o fim capaz de justificar uma governamentalidade crescente e de regular seu desenvolvimento. Destarte, o liberalismo é atravessado pelo princípio de que “sempre se governa demais”, ou no mínimo deve-se suspeitar disto. Não é aceitável exercer a governamentalidade sem uma crítica, que leva a seguinte problemática: já que se governa demais, por que então é preciso governar? Por causa da sociedade, eis a resposta da reflexão liberal. O liberalismo não parte da existência do Estado que encontra no governo a sua própria finalidade. Ele parte da sociedade, esta está situada numa relação complexa de interioridade e exterioridade com o Estado. Em outras palavras, é em nome da sociedade que se vai procurar saber o porquê da necessidade de um governo, e em que se pode prescindir dele e quando é inútil ou prejudicial que ele intervenha. Destarte a ideia de sociedade possibilita desenvolver uma tecnologia de governo baseada no princípio de que ele já é excessivo. Tanto no ordoliberalismo alemão, quanto no neoliberalismo da Escola de Chicago, a “irracionalidade” inerente ao excesso de governo é criticada. A crítica ao excesso de governamentalidade dos dois sistemas tem um inimigo comum, um adversário maior que é passou a defender a teoria das expectativas racionais) e rejeição total da regulamentação dos negócios, em favor de um laissez-faire quase absoluto. André Pereira de Almeida 29 Ítaca 32 ISSN 1679-6799 Liberalismo, Governamentalidade e Seguridade Keynes4 e suas doutrinas de economia dirigida, planificação e intervencionismo de Estado sobre as quantidades globais. Contudo, Foucault identificou racionalidades políticas próprias em cada sistema econômico. O primeiro tentou uma elaboração do liberalismo dentro de um marco institucional e jurídico que mantivesse a liberdade de mercado, sem produzir distorções sociais. No ordoliberalismo a gesellschaftspolitik (política social) não pode atrapalhar a política econômica, nem pode ser definida como compensação aos efeitos dos processos econômicos. Ele se ancora num momento histórico singular que envolve a República de Weimar 5, a crise de 1929, o desenvolvimento e crítica do nazismo e a reconstrução do pós-guerra. Em 1948 a Europa sofreu com políticas econômicas comandadas por uma série de exigências, são elas: a exigência de reconstrução, a de planificação, e a de socialização ou objetivos sociais. A exigência de reconstrução foi fruto da necessidade de converter uma economia de guerra, numa de paz. Foi preciso reconstituir um potencial econômico destruído e incorporar novos dados tecnológicos, demográficos e geopolíticos, resultantes da guerra. A exigência de planificação foi decorrente da reconstrução, visto que ela foi o principal instrumento de reconstrução, requerida por necessidades internas e pressões externas. Pensem na política externa dos EUA pós segunda guerra mundial e no Plano Marshall6, que implicava uma planificação de cada país e certa coordenação dos diferentes planos. A terceira exigência de socialização surge por fobia, ou medo de que o fascismo e o nazismo voltassem a acontecer. Para evitá-los elabora-se uma série de objetivos sociais considerados politicamente indispensáveis, que foram elaborados na França pelo CNR7. Todas as três exigências implicaram John Maynard Keynes (1883-1946) foi um dos mais influentes economistas do século XX, de origem britânica, defendeu o papel regulatório do Estado na economia, através de medidas de políticas, monetárias e fiscais, para mitigar os efeitos adversos dos ciclos econômicos - recessão, depressão e booms econômicos. É considerado um dos pais da moderna teoria macroeconômica. 5 Instaurada na Alemanha logo após a Primeira Guerra Mundial, se baseou no modelo parlamentarista democrático como sistema de governo. O presidente da república nomeava um chanceler que seria responsável pelo poder executivo. Já o poder legislativo era constituído por um parlamento. 6 Programa de reconstrução europeia proposto em 1947 pelo secretário de estado americano G. Marshall, adotado em 1948 por 16 países da Europa Ocidental. 7 Conselho Nacional de Resistência. Foi constituído em 1943 para unificar diversos movimentos de resistência, que estavam politicamente divididos. Tinha um programa social e econômico ousado, que reclamava um plano completo de seguridade social, 4 André Pereira de Almeida 30 Ítaca 32 ISSN 1679-6799 Liberalismo, Governamentalidade e Seguridade numa economia política keynesiana plena, voltada para a intervenção. Abrangia a alocação de recursos, o equilíbrio dos preços, o nível de poupança, as opções de investimento e uma estratégia de pleno emprego. Apesar da atmosfera intervencionista e keynesiana da Europa, e muito provavelmente, por causa desse ambiente, Ludwig Erhard8 defende que é preciso libertar a economia das injunções estatais. Somente um Estado que estabeleça ao mesmo tempo a liberdade e a responsabilidade dos cidadãos poderia falar em nome do povo. Trata-se simplesmente de dizer que um Estado que comete abusos de poder na ordem econômica e de maneira geral na ordem da vida política, viola direitos fundamentais, que, por conseguinte, esse Estado afeta liberdades essenciais e, por isso mesmo, perde de certo modo seus próprios direitos. Um Estado não pode exercer legitimamente se viola a liberdade dos indivíduos. (FOUCAULT, 2008, p. 111) Erhard é escutado na Alemanha e uma política de liberação, sustentada pelos estadunidenses, é implementada. Socialistas alemãs resistem e fazem uma greve geral em 1948. Eles são favoráveis à volta da economia dirigida, contra a política econômica de Erhard. A greve fracassa e a liberação dos preços prospera. Foi dentro dessa moldura histórica que o neoliberalismo alemão tomou corpo. Assim o ordoliberalismo trata-se de uma nova programação da governamentalidade liberal. Uma reorganização interna, que mais uma vez, não pergunta ao Estado que liberdade você vai dar à economia, mas pergunta à economia: como sua liberdade vai poder ter uma função e um papel de visando assegurar a todos os cidadãos os meios de subsistência, no caso em que não sejam capazes de obtê-los pelo trabalho, com gestão bipartida, parte dos interessados e parte do Estado. 8 Ludwig Erhard (1897-1977). Assistente e depois Diretor do Instituto de Observação Econômica da Escola Superior de Comércio de Nuremberg, manteve-se distante do nazismo durante o III Reich e se consagrou às suas pesquisas econômicas. Depois que as administrações americana e britânica criaram a bizona, Erhard tornou-se diretor do Sonderstelle Geld und Kredit, uma comissão de especialistas que preparava a reforma monetária. Em fevereiro de 1948 ele foi eleito Diretor de Economia pelo Conselho Econômico Bizonal. Aboliu as políticas de fixação de preços e de controle da produção que foram tomadas pela administração militar. André Pereira de Almeida 31 Ítaca 32 ISSN 1679-6799 Liberalismo, Governamentalidade e Seguridade estatização, no sentido de que isto permitirá fundar efetivamente a legitimidade de um Estado? (FOUCAULT, 2008, p. 127). Aparece, então, a problemática que o ordoliberalismo e o próprio liberalismo como um todo terão que enfrentar e dirimir, exemplificada pela questão: como tornar acessível um Estado a partir de uma liberdade econômica que vai, ao mesmo tempo, assegurar a sua limitação e lhe permitir existir? Como a liberdade econômica pode ser ao mesmo tempo fundadora e limitadora, garantia e caução de um Estado? Isso exigiu a reelaborarão de certo números de elementos fundamentais da doutrina liberal, não tanto na teoria econômica, mas mais no liberalismo como arte de governar. Governamentalidade ativa que coloca o próprio mercado como realidade e não como consequência do liberalismo, nem fruto de seu desenvolvimento. A importância do mercado é que ele representou o papel do teste, de um espaço de experiência privilegiada onde se pode identificar e medir os excessos de governamentalidade. Para os neoliberais, o essencial do mercado não está na troca (situação fictícia imaginada pelos economistas liberais do século XVIII), mas na concorrência, como admite quase toda teoria liberal desde o fim do século XIX. Concorrência não como equivalência, mas a como desigualdade, que atua até na política social. Sustento que o ordoliberalismo tentou definir o que poderia ser uma economia de mercado organizada no interior de um quadro institucional e jurídico, de forma que a liberdade dos processos econômicos não produzisse distorção social. O ordoliberalismo implicou assim numa economia de mercado por um lado e numa gesellschaftspolitik, numa política de sociedade e de um intervencionismo social ao mesmo tempo ativo, múltiplo, vigilante e onipresente. Entendido que essa política social não tem por função ser um mecanismo compensatório destinado a absorver os efeitos destruidores da liberdade econômica na trama social. O objetivo principal de uma política social não passava pela consideração de todas as vicissitudes que podem ocorrer à população. O importante era não afetar o jogo econômico, deixando a sociedade se desenvolver como uma sociedade empresarial. Instaurar-se-ia certo número de mecanismos de intervenção para assistir os que deles necessitam naquele momento, mas somente naquele momento. Apesar das diferenças específicas, o neoliberalismo estadunidense da Escola de Chicago não atua de forma diversa, mais André Pereira de Almeida 32 Ítaca 32 ISSN 1679-6799 Liberalismo, Governamentalidade e Seguridade estende a racionalidade do mercado como critério para além do domínio da economia. Domínios tradicionalmente não econômicos, como: família, natalidade, criminalidade ou política penal, são assimilados pela lógica econômica. Racionalidade que tem a ver com razões históricas próprias à população estadunidense. O liberalismo norte americano passa por toda uma maneira de ser e de pensar do seu povo. Ele é ancorado tanto nos republicanos como nos democratas, ele não é apenas uma opção política, mas uma exigência global e multifacetada. O próprio ser humano é visto como capital humano. Teoria que remonta ao homo oeconomicus, não na concepção clássica de homem da troca, mas como empresário e gestor de si mesmo. Ele próprio é seu produtor, sua fonte de renda e seu capital. O homem econômico e a sociedade civil comporiam o conjunto da tecnologia da governamentalidade liberal, que é incapaz de proporcionar o bem estar social para toda a população. Na governamentalidade liberal os problemas específicos da vida e da população, continuamente foram abordados dentro de uma prática governamental flexível e sutil, que produziu exclusão e morte; dentro de uma biopolítica de assujeitamento e controle das populações que massacra o tecido dos excluídos sociais, em prol de uma alegada defesa da sociedade. Dentro da análise neoliberal tanto as relações de produção, quanto a cultura como solidificação social das diferenças econômicas, estão integradas à economia e ao seu crescimento na forma da constituição de capital produtivo. De forma que transmissão de conhecimentos, educação e formação, com as respectivas contingências fruto das desigualdades sociais, são tratadas como elementos homogeneizáveis e centrados não numa ética ou política de trabalho, mais numa economia do capital. O neoliberalismo americano generaliza a forma econômica do mercado, englobando todo o corpo social. Destarte, além das trocas monetárias que lhes são próprias, funciona como princípio de inteligibilidade e decifração das relações sociais e dos comportamentos individuais. O que significa que a análise em termos de mercado é aplicada a campos não econômicos, como no caso do capital humano da criança que reproduzirá renda, por exemplo. Há assim o rendimento potencial do salário do infante tornado adulto e a renda psíquica para os pais, resultante da satisfação de cuidar dos filhos e de ver que obtiveram sucesso com seus cuidados. O investimento educativo é analisado em termos de investimento de custo de capital, benefício do capital investido, benefício econômico e benefício psicológico. André Pereira de Almeida 33 Ítaca 32 ISSN 1679-6799 Liberalismo, Governamentalidade e Seguridade Uma das características fundamentais do neoliberalismo estadunidense foi a definição da análise do comportamento humano como uma das tarefas da economia, ou seja, ela analisaria a programação estratégica da atividade e do comportamento dos indivíduos. O foco de estudo da governamentalidade neoliberal foi a maneira como se produzia e como se acumulava o capital humano, pensando-se em termos do homem constituído como seu próprio recurso. Destarte, a peculiaridade dessa governamentalidade foi a maneira como a economia de mercado passou a ser utilizada para decifrar relações que não são propriamente de mercado. Nesse contexto, a rede econômica foi utilizada para decifrar relações em fenômenos sociais diversos. Procurou-se generalizar a forma política do mercado no corpo social como um todo. A política governamental passou a ser submetida a um julgamento em termos da relação custo-benefício. O mercado tornou-se o tribunal da política governamental e a economia tornou-se uma abordagem capaz, em princípio, de dar conta da totalidade do comportamento humano. Esse pensamento neoliberal teve consequências para a maioria das sociedades ocidentais. Uma delas foi a ampla difusão da noção do indivíduo como sendo uma empresa, a noção do indivíduo que deve gerir a si próprio, como responsável total e direto pelas suas ações, virtudes e fracassos. Ocorreu, assim, uma capitalização do significado da vida. Capitalização que leva à aplicação da análise econômica aos comportamentos não econômicos, como: o casamento, a educação dos filhos e a criminalidade; e giram em torno da generalização da noção do homo oeconomicus enquanto modelo não só econômico, mas social, na medida em que o individuo casa, fornece afeto e despende tempo com os filhos. No limite, tal indivíduo comete até um crime, como anunciado por Foucault. O homo oeconomicus é aquele que se permite governar, o eminentemente governável. Ele é correlativo a uma governabilidade que vai agir e modificar sistematicamente as variáveis do meio. Entendido que a economia não corresponde à racionalidade governamental. A ciência econômica aparece como uma ciência lateral à arte de governar. Dentro da política neoliberal, governa-se ouvindo os economistas, mas o conhecimento econômico não pode ser a ciência do governo e este não pode ter por princípio, lei, regra de conduta ou racionalidade interna. Isso levanta uma questão: se o objeto do governo não é a totalidade do processo econômico, o quê constitui seu objeto? Foucault sustenta que é a população, no curso Segurança, Território, População, ou a sociedade civil, no curso Nascimento da Biopolítica. André Pereira de Almeida 34 Ítaca 32 ISSN 1679-6799 Liberalismo, Governamentalidade e Seguridade O homo oeconomicus e a sociedade civil são, portanto, dois elementos indissociáveis (indispensáveis). O homo oeconomicus é, digamos, o ponto abstrato, ideal e puramente econômico que povoa a realidade densa, plena e complexa da sociedade civil. Ou ainda: a sociedade civil é o conjunto concreto no interior do qual é preciso recolocar esses pontos ideais que são os homens econômicos, para poder administrá-los convenientemente. (FOUCAULT, 2008, p. 403) CONSIDERAÇÕES FINAIS Destarte o homem econômico e a sociedade civil compõem o conjunto da tecnologia da governamentalidade liberal. Foucault identifica a sociedade civil como elemento na realidade transacional da história das tecnologias governamentais. Seria nas realidades de transação, no jogo das relações de poder e do que lhes escapa, na interface dos governantes com os governados, que nasceria a sociedade civil. Sociedade que assegura sua própria síntese e que possui uma espécie de governamentalidade interna. É quando aparece mais um paradoxo para o neoliberalismo: ora se a sociedade civil é dotada de uma governamentalidade própria, que necessidade há de um governo suplementar? A sociedade seria uma benesse e já que o capitalismo prospera em condições de uma sociedade minimamente estabelecida, o governo seria intolerável, ou na melhor das hipóteses, um mal necessário. O neoliberalismo procura então regular o governo não pela racionalidade da instituição dita soberana, o Estado, mas pela racionalidade dos que são governados e assujeitados como tipos econômicos, indivíduos de interesses que não param de ser suscitados e que utilizam diversos meios para satisfazer tais interesses. Diante do diagnóstico social apresentado por Foucault, que passa pelas questões da governamentalidade, da seguridade, do economicismo, da sociedade e da população, com a característica marcante de assujeitamento e/ou exclusão dos indivíduos, é importante pensar o papel da resistência e seus desdobramentos, presentes em diversas dimensões, na trama complexa da relação de poder, seus acontecimentos históricos e suas perspectivas de êxito. O próprio Foucault defendeu que o poder está em toda parte e onde há poder há resistência, que por sua vez, não está numa relação de exterioridade em relação ao poder. “Ora, se o poder está por todo lado, então não há André Pereira de Almeida 35 Ítaca 32 ISSN 1679-6799 Liberalismo, Governamentalidade e Seguridade liberdade. Respondo: se há relações de poder em todo campo social, é porque há liberdade por todo lado. Mas há efetivamente estados de dominação.” (FOUCAULT, 2001, p. 1540) A partir do momento que há liberdade por todo o campo social, a filosofia assume um papel importante na resistência, se ela for vista como uma prática ou posição estratégica para analisar a vida e suas microrelações de poder, e não apenas como um corpo doutrinário. Destarte, há a possibilidade de vicejar indivíduos que resistam aos estados de dominação e às técnicas sutis de um forte aparelho cultural, educacional, jurídico, médico e econômico. Aparelho produtor de indivíduos assujeitados, que confiam nas regras de um jogo supostamente justo de governamentalização e seguridade, e que aceitam seu destino como mera responsabilidade própria. Defendo que o próprio Foucault rastreou estratégias e técnicas vitalistas na filosofia clássica, no final de sua vida, em cursos como: Hermenêutica do Sujeito, e Le gouvernement de soi e des autres I e II; quando ele avalia como as técnicas do cuidado de si e da parrêsia, formaram uma dupla subjetivação ética e política, importantes para pensar o limítrofe e a possibilidade do “fora”, pensar outro(s) mundo(s) possível(is) e de novas formas de subjetivação no mundo moderno. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FOUCAULT, Michel. Dits et écrits I. Paris: Galimard, 2001. _________________. Dits et écrits II. Paris: Galimard, 2001. _________________. Nascimento da Biopolítica: curso no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008. _________________. Segurança, Território e População: curso no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2009. Recebido em: 27/04/2018 Aprovado em: 07/10/2018 André Pereira de Almeida 36