Ítaca 32
ISSN 1679-6799
Liberalismo, Governamentalidade e Seguridade
Liberalismo, Governamentalidade e Seguridade
Liberalism, Governmentality and Safety
André Pereira de Almeida
Pós-doutorando PPGFIL/UERJ, doutor pelo IFCS/UFRJ
RESUMO: O texto abarca uma análise crítica da governamentalidade e da seguridade a
partir da perspectiva foucaultiana. Abordarei como certas estratégias de exercício do
poder sobre o corpo social são utilizadas no contexto econômico e político liberal, a
exemplo das técnicas de gerenciamento e controle da população, com uso da estatística e
da probabilidade. Veremos como indivíduos precisam ser regulados, assujeitados,
encancerados ou até excluídos, em prol de uma segurança que garanta a existência da
própria sociedade, afiançada por uma terapêutica liberal. Neste processo dois cursos serão
fundamentais, o Sécurité, territoire, population e o Naissance de la biopolitique.
PALAVRAS-CHAVE: GOVERNAMENTALIDE; SEGURIDADE; LIBERALISMO;
POPULAÇÃO; FOUCAULT.
ABSTRACT: The text covers a critical analysis of governmentality and security from
the foucaultian perspective. I will discuss how certain strategies of exercising power over
the social body are used in the liberal economic and political context, such as the forms
of population management and control, using statistics and probability. We will see how
individuals need to be regulated, subjected, imprisoned or even excluded, in favor of a
security that guarantees the existence of the own society, secured by a liberal therapy. In
this process two courses will be fundamental, the Sécurité, territoire, population e o
Naissance de la biopolitique.
KEY-WORDS: GOVERNMENTALITY; SAFETY; LIBERALISM; POPULATION;
FOCAULT.
INTRODUÇÃO
A problematização da governamentalidade e da seguridade
no último Foucault é uma contribuição importante para o pensar
filosófico e político contemporâneo. Amplamente presente no curso de
1977-78, denominado Segurança, Território, População, o
questionamento da governamentalidade também aparece no curso
subsequente de 1978-79, chamado de Nascimento da Biopolítica.
Contudo, sustento que a questão da governamentalidade e da
seguridade está mais bem implicada no curso Segurança, Território e
População. O curso Nascimento da Biopolítica é mais focado no
estudo do nascimento e tematização do liberalismo em seu aspecto
André Pereira de Almeida
23
Ítaca 32
ISSN 1679-6799
Liberalismo, Governamentalidade e Seguridade
primitivo e em suas versões contemporâneas (alemã e norteamericana), quando o liberalismo aparece como condição de
inteligibilidade da biopolítica. Para efeito deste artigo vou me basear
prioritariamente nos cursos: Segurança, Território, População e
Nascimento da Biopolítica, mas também vou utilizar textos presentes
na coletânea de textos Dits et écrits, publicada em 1994, com destaque
para o curso La governamentalità.
O questionamento foucaultiano de governamentalidade e
consequentemente o de seguridade, já que também se governa para
manter o “nível desejável” de segurança e busca-se uma seguridade que
possibilite governar, surge com a abordagem que Foucault faz do
biopoder, que é uma importante ferramenta conceitual para analisar,
diagnosticar e compreender as crises políticas da sociedade
contemporânea, assim como seus antecedentes históricos. O biopoder
corresponde a uma estratégia mais ampla que engloba a própria
biopolítica, expressão que aparece inicialmente em 1974, em uma
conferência proferida por Foucault na Universidade Estadual do Rio de
Janeiro, intitulada O Nascimento da Medicina Social1. Dois anos
depois, em 1976, Foucault retorna ao termo no último capítulo do
volume I da História da Sexualidade - A vontade de saber, denominado
Direito de morte e poder sobre a vida. No mesmo ano ele é
desenvolvido no curso em Em Defesa da Sociedade. Posteriormente,
em 1978-79 no curso Nascimento da Biopolítica, ele aborda a
tematização do biopoder e da biopolítica, articulando-os com os temas
de biogenética e governo econômico de populações, quando o
liberalismo econômico aparece como a moldura geral da biopolítica.
Finda a curta digressão, importante para introduzir o tema da
governamentalidade, já que o próprio Foucault, partindo das conclusões
que retira acerca do biopoder e da biopolítica no curso de 1976, se
propõe a expandir e aprofundar seu deslocamento teórico; adentro na
problematização da governamentalidade. Foucault sustentou que a
governamentalização do Estado foi um fenômeno fundamental na
história do ocidente, de forma que vivemos na era da
governamentalidade, já descoberta no século XVIII. Mas como e por
que isso surgiu? Em livros, cursos e entrevistas, Foucault anuncia que
o biopoder funciona de forma intrinsecamente diversa, tanto da
Publicado no Brasil, em 1979, na coletânea de textos denominada Microfísica do Poder,
organizado por Roberto Machado e retomado pelos organizadores de Dits et écrits, em
1994.
1
André Pereira de Almeida
24
Ítaca 32
ISSN 1679-6799
Liberalismo, Governamentalidade e Seguridade
soberania, quanto dos mecanismos disciplinares. Enquanto a soberania
se preocupava prioritariamente com a manutenção do território e a
disciplina buscava domesticar corpos, o biopoder e sua “irmã menor” a
biopolítica possuem como objeto primordial a própria população.
População que precisa ser gerenciada ou governada, a partir
do conhecimento de suas regularidades específicas, de forma a manter
a “segurança” da sociedade, mostrando assim a indissociabilidade entre
as estratégias de governo com as tecnologias de segurança, ou melhor,
a não separação entre a governamentalidade e a seguridade. Tudo isso
complexificado pelo fato de que, como já ocorria com as técnicas
disciplinares, tanto a governamentalidade, quanto a seguridade lidam
com multiplicidades, com acontecimentos e com o aleatório.
GOVERNAMENTALIDADE
Na aula de 1º de fevereiro de 1978, do curso Segurança,
Território, População, Foucault faz uma curiosa e intrigante crítica à
obra O Príncipe, de Maquiavel. Ao abordar o problema da
governamentalidade, Foucault denuncia que a teoria política
hegemônica e seus interlocutores, como: os filósofos, sociólogos ou
cientistas políticos, por exemplo, veem cometendo erros sistemáticos.
Os interlocutores falham ao não perceberem que estratégias do
exercício do poder, válidos para principados, perdem força e sentido ao
serem aplicados nos governos modernos. Há uma passagem do Estado
de justiça, da idade média feudal, para o Estado administrativo, que
surge nos séculos XV e XVI. Posteriormente o Estado administrável foi
“aperfeiçoado” e deu origem ao Estado governamental, que perdura até
hoje. Principalmente na sua forma mais disseminada e abrangente, a
forma do Estado liberal. De acordo com o rastro apontado por Foucault,
a teoria política hegemônica falha sempre que percebe mal no que a arte
de governar muda e assume diferentes facetas, não atentando para a
desvalorização da soberania no Estado moderno. O soberano estava
preocupado com a manutenção do poder e da soberania. O grande medo
do Príncipe era ser rejeitado e perder o seu lugar.
É esse principado como relação do Príncipe com seus
súditos e seu território, é isso que se trata de proteger,
e não diretamente, ou imediatamente, ou
fundamentalmente, ou primeiramente, o território e
seus habitantes. É esse vínculo frágil do príncipe com
André Pereira de Almeida
25
Ítaca 32
ISSN 1679-6799
Liberalismo, Governamentalidade e Seguridade
seu principado que a arte de governar, a arte de ser
príncipe apresentada por Maquiavel deve ter como
objetivo. (FOUCAULT, 2009, p. 122- 123)
Nos governos das sociedades modernas, a arte de governar
passa a ser outra coisa, atua por meio de diferentes estratégias e
técnicas. O problema passa a ser administrar bem as coisas, mas gerir o
quê, quais coisas? Basicamente gerir a população e com isso
governamentalizar o próprio Estado, que sai do topo do processo, para
fazer parte de uma tessitura social muito mais complexa, com
estratégias mais interessantes e sofisticadas, a exemplo da distribuição
perene de poder presente na governamentalidade. O que o pensamento
político predominante não percebeu é que não há Estado moderno
soberano. Se o soberano governava para manter o território, hoje se
governa para regular as populações. Defendo que se há uma soberania,
esta é a do mercado e não a do Estado.
O próprio Estado é efeito da governamentalidade e não o
contrário. É um equívoco pensar que o governo é fruto do Estado, como
concluem alguns discípulos de Maquiavel. De forma diversa, parto do
pressuposto que o Estado corresponde a uma consequência das forças
sociais, o efeito móvel de um regime de governamentalidades
múltiplas. O Estado não é um poder soberano, principesco,
maquiavélico ou autônomo. Ele age muito mais como interventor e
administrador de coisas geridas por si mesmas. O grande mandante é o
mercado, que marca a constante valorização da governamentalidade
liberal.
Recorro agora ao Dits et écrits, no curso La
governamentalità, de 1978, para melhor ilustrar a questão da
governamentalidade. Nesse curso Foucault procurou inventariar o
problema do governo, ou melhor, as técnicas de governo no espaço real
da luta e dos torneios políticos. O próprio Estado só sobreviveu devido
à governamentalização do Estado. Governamentalidade interior e
exterior ao Estado, que serve como base de compreensão da sobrevida
e limites do Estado. A partir da noção de Estado, Foucault mais uma vez
reconstituiu as três grandes formas de economia de poder no ocidente,
são elas: o Estado de justiça corresponde a uma sociedade da lei com
todo um jogo de engajamento e litígio, proveniente de uma
territorialidade feudal. Em seguida vem o Estado administrativo, este
corresponde a uma sociedade de regulamentos e disciplinas, e surge no
período entre os séculos XV e XVII em uma territorialidade do tipo
André Pereira de Almeida
26
Ítaca 32
ISSN 1679-6799
Liberalismo, Governamentalidade e Seguridade
fronteiriça e não mais feudal; por fim há o Estado de governo que já não
é mais definido pela territorialidade, pela superfície ocupada, mas pela
massa da população, com seu volume e densidade, o território é apenas
um componente. A população não aparece mais como a potência do
soberano, mas como instrumento e objeto último do governo, a partir
do momento que a finalidade do governo não é governar, mas o de
melhorar o destino, aumentar as riquezas, a duração da vida e a saúde
das populações. Nasce assim uma arte de governar, uma
governamentalidade que age diretamente e indiretamente sobre a
população, visto que esta é simultaneamente sujeito de necessidades e
objeto de manipulação para o governo. É um “Estado” de governo
ancorado na população, que acima de tudo almeja regulá-la.
E esse Estado de governo que se apoia essencialmente
sobre a população e que se refere e utiliza a
instrumentação do saber econômico, corresponde a
uma sociedade controlada pelos dispositivos de
segurança. (FOUCAULT, 2001, p. 657).
Mas como regular as populações? Por meio de estratégias e
tecnologias do poder provenientes da economia, da administração, das
ciências humanas, sociais e biomédicas, entre outras, mas sobremaneira
da estatística e da probabilidade, que se infiltram nos demais campos de
saberes. Tudo em prol de uma “segurança”, ou melhor, seguridade que
seria capaz de manter ou fazer viver a própria população. Mas o que se
pode entender por seguridade? A seguridade funciona como uma
“terapêutica normativa” para a sociedade, ela pode ser pensada como
uma forma de fazer com que as pessoas se permitam serem assujeitadas.
Hoje, o mundo está em vias de evoluir para um
modelo hospitalar e o governo adquire uma função
terapêutica. A função dos dirigentes é adaptar os
indivíduos ao processo de desenvolvimento,
conforme uma verdadeira ortopedia social.
O mundo é um grande hospício, no qual os
governantes são os psicólogos e o povo os pacientes.
A cada dia que passa, o papel desempenhado pelos
criminologistas, pelos psiquiatras e todos os que
estudam o comportamento mental do homem,
aumenta mais. Eis porque o poder politico está em
vias de adquirir uma nova função, que é a terapêutica.
(FOUCAULT, 2001, p. 1301-1302)
André Pereira de Almeida
27
Ítaca 32
ISSN 1679-6799
Liberalismo, Governamentalidade e Seguridade
Destarte, há uma seguridade terapêutica que passa por
mecanismos de normalização e assujeitamento, adequação de pessoas
ao padrão de desenvolvimento social, com o objetivo de manter uma
“normalidade comportamental” do indivíduo e da população. Para
assegurar tal estratégia de normalização são utilizadas uma série de
tecnologias de segurança que passam pela: criminalidade, escassez
alimentar, educação, trabalho, previdência, natalidade, mortalidade,
longevidade, biotecnologia (que pode modificar o próprio destino
biológico da espécie humana), encarceramento e até a exclusão.
Tecnologias adaptáveis e maleáveis que permeiam todo o tecido social,
que sofrem as influências da inevitabilidade do aleatório. Aleatório que
paradoxalmente traz consigo as práticas de resistência ao biopoder, mas
que sem ele, as próprias relações de poder pereceriam. Aleatório
presente nos grandes e pequenos acontecimentos, que formam e
modificam a tessitura social a todo o momento. Aleatório dos pequenos
fenômenos, que singularmente eram empregados por Foucault, como
chaves para leituras filosóficas e políticas.
O particular é que explica o universal e são as questões
aparentemente pequenas, que podem ter um alcance universal. Está aí
a importância política de sempre olhar para o lado, para o fragmento.
Falo a seguir do economicismo liberal, que sobrevaloriza a seguridade
e a governamentalidade, mas também é o que mais sofre os efeitos do
aleatório, visto sua necessidade intrínseca da velocidade, fruto do
mercado e do capitalismo conexionista.
LIBERALISMO
No curso Nascimento da Biopolítica, Foucault faz uma
incursão no campo da história contemporânea ao estudar duas das
grandes escolas liberais do século XX, o ordoliberalismo2 alemão e
neoliberalismo da Escola de Chicago3. Para tanto ele faz um
É uma doutrina econômica, adotada principalmente na Alemanha do pósguerra, que se
autodenomina uma "terceira via" entre o socialismo e o capitalismo. Baseia-se em três
pontos fundamentais: criação uma "ordem" (ordo) que remedie as falhas dos mercados;
organização da economia com mercados eficientes e competitivos; e essa "ordem" forte
deve assegurar uma economia justa numa economia social de mercado.
3
É uma escola de pensamento econômico que defende o mercado livre e que foi
disseminada por alguns professores da Universidade de Chicago. Suas idéias são
associadas à teoria neoclássica da formação de preços e ao liberalismo econômico,
refutando e rejeitando o Keynesianismo em favor do monetarismo, (até 1980, quando
2
André Pereira de Almeida
28
Ítaca 32
ISSN 1679-6799
Liberalismo, Governamentalidade e Seguridade
diagnóstico, um plano de análise possível da dita “razão
governamental”, isto é, dos tipos de racionalidade que são postos em
ação nos procedimentos pelos quais o comportamento dos homens é
conduzido e controlado por meio de uma administração estatal. Em
ambas as escolas o liberalismo se apresentou como uma crítica da
irracionalidade própria do excesso de governo, que apresentou
racionalidades políticas próprias, no interior da qual foram postos os
problemas específicos da vida e da população.
Foucault procurou analisar o liberalismo como prática, em
detrimento de outras perspectivas usuais, como: teoria, ideologia ou
maneira de a sociedade se representar. O liberalismo seria então uma
“maneira de fazer” orientada por objetivos e regulada por uma reflexão
contínua, seria um princípio e método de racionalização do exercício
do governo. Entendido que o governo, não diz respeito à instituição
“governo”, mas a atividade que rege a conduta dos homens num quadro
e com instrumentos estatais. O liberalismo rompeu com a “razão do
Estado”, que desde o fim do século XVI, havia procurado na existência
e no fortalecimento do Estado o fim capaz de justificar uma
governamentalidade crescente e de regular seu desenvolvimento.
Destarte, o liberalismo é atravessado pelo princípio de que “sempre se
governa demais”, ou no mínimo deve-se suspeitar disto. Não é aceitável
exercer a governamentalidade sem uma crítica, que leva a seguinte
problemática: já que se governa demais, por que então é preciso
governar? Por causa da sociedade, eis a resposta da reflexão liberal.
O liberalismo não parte da existência do Estado que
encontra no governo a sua própria finalidade. Ele parte da sociedade,
esta está situada numa relação complexa de interioridade e
exterioridade com o Estado. Em outras palavras, é em nome da
sociedade que se vai procurar saber o porquê da necessidade de um
governo, e em que se pode prescindir dele e quando é inútil ou
prejudicial que ele intervenha. Destarte a ideia de sociedade possibilita
desenvolver uma tecnologia de governo baseada no princípio de que ele
já é excessivo.
Tanto no ordoliberalismo alemão, quanto no neoliberalismo
da Escola de Chicago, a “irracionalidade” inerente ao excesso de
governo é criticada. A crítica ao excesso de governamentalidade dos
dois sistemas tem um inimigo comum, um adversário maior que é
passou a defender a teoria das expectativas racionais) e rejeição total da regulamentação
dos negócios, em favor de um laissez-faire quase absoluto.
André Pereira de Almeida
29
Ítaca 32
ISSN 1679-6799
Liberalismo, Governamentalidade e Seguridade
Keynes4 e suas doutrinas de economia dirigida, planificação e
intervencionismo de Estado sobre as quantidades globais. Contudo,
Foucault identificou racionalidades políticas próprias em cada sistema
econômico. O primeiro tentou uma elaboração do liberalismo dentro
de um marco institucional e jurídico que mantivesse a liberdade de
mercado, sem produzir distorções sociais. No ordoliberalismo a
gesellschaftspolitik (política social) não pode atrapalhar a política
econômica, nem pode ser definida como compensação aos efeitos dos
processos econômicos. Ele se ancora num momento histórico singular
que envolve a República de Weimar 5, a crise de 1929, o
desenvolvimento e crítica do nazismo e a reconstrução do pós-guerra.
Em 1948 a Europa sofreu com políticas econômicas
comandadas por uma série de exigências, são elas: a exigência de
reconstrução, a de planificação, e a de socialização ou objetivos sociais.
A exigência de reconstrução foi fruto da necessidade de converter uma
economia de guerra, numa de paz. Foi preciso reconstituir um potencial
econômico destruído e incorporar novos dados tecnológicos,
demográficos e geopolíticos, resultantes da guerra. A exigência de
planificação foi decorrente da reconstrução, visto que ela foi o principal
instrumento de reconstrução, requerida por necessidades internas e
pressões externas. Pensem na política externa dos EUA pós segunda
guerra mundial e no Plano Marshall6, que implicava uma planificação
de cada país e certa coordenação dos diferentes planos. A terceira
exigência de socialização surge por fobia, ou medo de que o fascismo e
o nazismo voltassem a acontecer. Para evitá-los elabora-se uma série de
objetivos sociais considerados politicamente indispensáveis, que foram
elaborados na França pelo CNR7. Todas as três exigências implicaram
John Maynard Keynes (1883-1946) foi um dos mais influentes economistas do século
XX, de origem britânica, defendeu o papel regulatório do Estado na economia, através de
medidas de políticas, monetárias e fiscais, para mitigar os efeitos adversos dos ciclos
econômicos - recessão, depressão e booms econômicos. É considerado um dos pais da
moderna teoria macroeconômica.
5
Instaurada na Alemanha logo após a Primeira Guerra Mundial, se baseou no modelo
parlamentarista democrático como sistema de governo. O presidente da república
nomeava um chanceler que seria responsável pelo poder executivo. Já o poder legislativo
era constituído por um parlamento.
6
Programa de reconstrução europeia proposto em 1947 pelo secretário de estado
americano G. Marshall, adotado em 1948 por 16 países da Europa Ocidental.
7
Conselho Nacional de Resistência. Foi constituído em 1943 para unificar diversos
movimentos de resistência, que estavam politicamente divididos. Tinha um programa
social e econômico ousado, que reclamava um plano completo de seguridade social,
4
André Pereira de Almeida
30
Ítaca 32
ISSN 1679-6799
Liberalismo, Governamentalidade e Seguridade
numa economia política keynesiana plena, voltada para a intervenção.
Abrangia a alocação de recursos, o equilíbrio dos preços, o nível de
poupança, as opções de investimento e uma estratégia de pleno
emprego. Apesar da atmosfera intervencionista e keynesiana da Europa,
e muito provavelmente, por causa desse ambiente, Ludwig Erhard8
defende que é preciso libertar a economia das injunções estatais.
Somente um Estado que estabeleça ao mesmo tempo a liberdade e a
responsabilidade dos cidadãos poderia falar em nome do povo.
Trata-se simplesmente de dizer que um Estado que
comete abusos de poder na ordem econômica e de
maneira geral na ordem da vida política, viola direitos
fundamentais, que, por conseguinte, esse Estado afeta
liberdades essenciais e, por isso mesmo, perde de certo
modo seus próprios direitos. Um Estado não pode
exercer legitimamente se viola a liberdade dos
indivíduos. (FOUCAULT, 2008, p. 111)
Erhard é escutado na Alemanha e uma política de liberação,
sustentada pelos estadunidenses, é implementada. Socialistas alemãs
resistem e fazem uma greve geral em 1948. Eles são favoráveis à volta
da economia dirigida, contra a política econômica de Erhard. A greve
fracassa e a liberação dos preços prospera. Foi dentro dessa moldura
histórica que o neoliberalismo alemão tomou corpo. Assim o
ordoliberalismo trata-se de uma nova programação da
governamentalidade liberal.
Uma reorganização interna, que mais uma vez, não
pergunta ao Estado que liberdade você vai dar à
economia, mas pergunta à economia: como sua
liberdade vai poder ter uma função e um papel de
visando assegurar a todos os cidadãos os meios de subsistência, no caso em que não sejam
capazes de obtê-los pelo trabalho, com gestão bipartida, parte dos interessados e parte do
Estado.
8
Ludwig Erhard (1897-1977). Assistente e depois Diretor do Instituto de Observação
Econômica da Escola Superior de Comércio de Nuremberg, manteve-se distante do
nazismo durante o III Reich e se consagrou às suas pesquisas econômicas. Depois que as
administrações americana e britânica criaram a bizona, Erhard tornou-se diretor do
Sonderstelle Geld und Kredit, uma comissão de especialistas que preparava a reforma
monetária. Em fevereiro de 1948 ele foi eleito Diretor de Economia pelo Conselho
Econômico Bizonal. Aboliu as políticas de fixação de preços e de controle da produção
que foram tomadas pela administração militar.
André Pereira de Almeida
31
Ítaca 32
ISSN 1679-6799
Liberalismo, Governamentalidade e Seguridade
estatização, no sentido de que isto permitirá fundar
efetivamente a legitimidade de um Estado?
(FOUCAULT, 2008, p. 127).
Aparece, então, a problemática que o ordoliberalismo e o
próprio liberalismo como um todo terão que enfrentar e dirimir,
exemplificada pela questão: como tornar acessível um Estado a partir
de uma liberdade econômica que vai, ao mesmo tempo, assegurar a sua
limitação e lhe permitir existir? Como a liberdade econômica pode ser
ao mesmo tempo fundadora e limitadora, garantia e caução de um
Estado? Isso exigiu a reelaborarão de certo números de elementos
fundamentais da doutrina liberal, não tanto na teoria econômica, mas
mais no liberalismo como arte de governar. Governamentalidade ativa
que coloca o próprio mercado como realidade e não como consequência
do liberalismo, nem fruto de seu desenvolvimento. A importância do
mercado é que ele representou o papel do teste, de um espaço de
experiência privilegiada onde se pode identificar e medir os excessos
de governamentalidade. Para os neoliberais, o essencial do mercado não
está na troca (situação fictícia imaginada pelos economistas liberais do
século XVIII), mas na concorrência, como admite quase toda teoria
liberal desde o fim do século XIX. Concorrência não como
equivalência, mas a como desigualdade, que atua até na política social.
Sustento que o ordoliberalismo tentou definir o que poderia
ser uma economia de mercado organizada no interior de um quadro
institucional e jurídico, de forma que a liberdade dos processos
econômicos não produzisse distorção social. O ordoliberalismo
implicou assim numa economia de mercado por um lado e numa
gesellschaftspolitik, numa política de sociedade e de um
intervencionismo social ao mesmo tempo ativo, múltiplo, vigilante e
onipresente. Entendido que essa política social não tem por função ser
um mecanismo compensatório destinado a absorver os efeitos
destruidores da liberdade econômica na trama social. O objetivo
principal de uma política social não passava pela consideração de todas
as vicissitudes que podem ocorrer à população. O importante era não
afetar o jogo econômico, deixando a sociedade se desenvolver como
uma sociedade empresarial. Instaurar-se-ia certo número de
mecanismos de intervenção para assistir os que deles necessitam
naquele momento, mas somente naquele momento.
Apesar das diferenças específicas, o neoliberalismo
estadunidense da Escola de Chicago não atua de forma diversa, mais
André Pereira de Almeida
32
Ítaca 32
ISSN 1679-6799
Liberalismo, Governamentalidade e Seguridade
estende a racionalidade do mercado como critério para além do domínio
da economia. Domínios tradicionalmente não econômicos, como:
família, natalidade, criminalidade ou política penal, são assimilados
pela lógica econômica. Racionalidade que tem a ver com razões
históricas próprias à população estadunidense. O liberalismo norte
americano passa por toda uma maneira de ser e de pensar do seu povo.
Ele é ancorado tanto nos republicanos como nos democratas, ele não é
apenas uma opção política, mas uma exigência global e multifacetada.
O próprio ser humano é visto como capital humano. Teoria que remonta
ao homo oeconomicus, não na concepção clássica de homem da troca,
mas como empresário e gestor de si mesmo. Ele próprio é seu produtor,
sua fonte de renda e seu capital. O homem econômico e a sociedade
civil comporiam o conjunto da tecnologia da governamentalidade
liberal, que é incapaz de proporcionar o bem estar social para toda a
população. Na governamentalidade liberal os problemas específicos da
vida e da população, continuamente foram abordados dentro de uma
prática governamental flexível e sutil, que produziu exclusão e morte;
dentro de uma biopolítica de assujeitamento e controle das populações
que massacra o tecido dos excluídos sociais, em prol de uma alegada
defesa da sociedade.
Dentro da análise neoliberal tanto as relações de produção,
quanto a cultura como solidificação social das diferenças econômicas,
estão integradas à economia e ao seu crescimento na forma da
constituição de capital produtivo. De forma que transmissão de
conhecimentos, educação e formação, com as respectivas contingências
fruto das desigualdades sociais, são tratadas como elementos
homogeneizáveis e centrados não numa ética ou política de trabalho,
mais numa economia do capital. O neoliberalismo americano
generaliza a forma econômica do mercado, englobando todo o corpo
social. Destarte, além das trocas monetárias que lhes são próprias,
funciona como princípio de inteligibilidade e decifração das relações
sociais e dos comportamentos individuais. O que significa que a análise
em termos de mercado é aplicada a campos não econômicos, como no
caso do capital humano da criança que reproduzirá renda, por exemplo.
Há assim o rendimento potencial do salário do infante tornado adulto e
a renda psíquica para os pais, resultante da satisfação de cuidar dos
filhos e de ver que obtiveram sucesso com seus cuidados. O
investimento educativo é analisado em termos de investimento de custo
de capital, benefício do capital investido, benefício econômico e
benefício psicológico.
André Pereira de Almeida
33
Ítaca 32
ISSN 1679-6799
Liberalismo, Governamentalidade e Seguridade
Uma das características fundamentais do neoliberalismo
estadunidense foi a definição da análise do comportamento humano
como uma das tarefas da economia, ou seja, ela analisaria a
programação estratégica da atividade e do comportamento dos
indivíduos. O foco de estudo da governamentalidade neoliberal foi a
maneira como se produzia e como se acumulava o capital humano,
pensando-se em termos do homem constituído como seu próprio
recurso. Destarte, a peculiaridade dessa governamentalidade foi a
maneira como a economia de mercado passou a ser utilizada para
decifrar relações que não são propriamente de mercado. Nesse contexto,
a rede econômica foi utilizada para decifrar relações em fenômenos
sociais diversos. Procurou-se generalizar a forma política do mercado
no corpo social como um todo. A política governamental passou a ser
submetida a um julgamento em termos da relação custo-benefício. O
mercado tornou-se o tribunal da política governamental e a economia
tornou-se uma abordagem capaz, em princípio, de dar conta da
totalidade do comportamento humano. Esse pensamento neoliberal teve
consequências para a maioria das sociedades ocidentais. Uma delas foi
a ampla difusão da noção do indivíduo como sendo uma empresa, a
noção do indivíduo que deve gerir a si próprio, como responsável total
e direto pelas suas ações, virtudes e fracassos. Ocorreu, assim, uma
capitalização do significado da vida.
Capitalização que leva à aplicação da análise econômica aos
comportamentos não econômicos, como: o casamento, a educação dos
filhos e a criminalidade; e giram em torno da generalização da noção
do homo oeconomicus enquanto modelo não só econômico, mas social,
na medida em que o individuo casa, fornece afeto e despende tempo
com os filhos. No limite, tal indivíduo comete até um crime, como
anunciado por Foucault. O homo oeconomicus é aquele que se permite
governar, o eminentemente governável. Ele é correlativo a uma
governabilidade que vai agir e modificar sistematicamente as variáveis
do meio. Entendido que a economia não corresponde à racionalidade
governamental. A ciência econômica aparece como uma ciência lateral
à arte de governar. Dentro da política neoliberal, governa-se ouvindo os
economistas, mas o conhecimento econômico não pode ser a ciência do
governo e este não pode ter por princípio, lei, regra de conduta ou
racionalidade interna. Isso levanta uma questão: se o objeto do governo
não é a totalidade do processo econômico, o quê constitui seu objeto?
Foucault sustenta que é a população, no curso Segurança, Território,
População, ou a sociedade civil, no curso Nascimento da Biopolítica.
André Pereira de Almeida
34
Ítaca 32
ISSN 1679-6799
Liberalismo, Governamentalidade e Seguridade
O homo oeconomicus e a sociedade civil são,
portanto,
dois
elementos
indissociáveis
(indispensáveis). O homo oeconomicus é, digamos, o
ponto abstrato, ideal e puramente econômico que
povoa a realidade densa, plena e complexa da
sociedade civil. Ou ainda: a sociedade civil é o
conjunto concreto no interior do qual é preciso
recolocar esses pontos ideais que são os homens
econômicos,
para
poder
administrá-los
convenientemente. (FOUCAULT, 2008, p. 403)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Destarte o homem econômico e a sociedade civil compõem
o conjunto da tecnologia da governamentalidade liberal. Foucault
identifica a sociedade civil como elemento na realidade transacional da
história das tecnologias governamentais. Seria nas realidades de
transação, no jogo das relações de poder e do que lhes escapa, na
interface dos governantes com os governados, que nasceria a sociedade
civil. Sociedade que assegura sua própria síntese e que possui uma
espécie de governamentalidade interna. É quando aparece mais um
paradoxo para o neoliberalismo: ora se a sociedade civil é dotada de
uma governamentalidade própria, que necessidade há de um governo
suplementar? A sociedade seria uma benesse e já que o capitalismo
prospera em condições de uma sociedade minimamente estabelecida, o
governo seria intolerável, ou na melhor das hipóteses, um mal
necessário. O neoliberalismo procura então regular o governo não pela
racionalidade da instituição dita soberana, o Estado, mas pela
racionalidade dos que são governados e assujeitados como tipos
econômicos, indivíduos de interesses que não param de ser suscitados
e que utilizam diversos meios para satisfazer tais interesses.
Diante do diagnóstico social apresentado por Foucault, que
passa pelas questões da governamentalidade, da seguridade, do
economicismo, da sociedade e da população, com a característica
marcante de assujeitamento e/ou exclusão dos indivíduos, é importante
pensar o papel da resistência e seus desdobramentos, presentes em
diversas dimensões, na trama complexa da relação de poder, seus
acontecimentos históricos e suas perspectivas de êxito. O próprio
Foucault defendeu que o poder está em toda parte e onde há poder há
resistência, que por sua vez, não está numa relação de exterioridade em
relação ao poder. “Ora, se o poder está por todo lado, então não há
André Pereira de Almeida
35
Ítaca 32
ISSN 1679-6799
Liberalismo, Governamentalidade e Seguridade
liberdade. Respondo: se há relações de poder em todo campo social, é
porque há liberdade por todo lado. Mas há efetivamente estados de
dominação.” (FOUCAULT, 2001, p. 1540)
A partir do momento que há liberdade por todo o campo
social, a filosofia assume um papel importante na resistência, se ela for
vista como uma prática ou posição estratégica para analisar a vida e
suas microrelações de poder, e não apenas como um corpo doutrinário.
Destarte, há a possibilidade de vicejar indivíduos que resistam aos
estados de dominação e às técnicas sutis de um forte aparelho cultural,
educacional, jurídico, médico e econômico. Aparelho produtor de
indivíduos assujeitados, que confiam nas regras de um jogo
supostamente justo de governamentalização e seguridade, e que
aceitam seu destino como mera responsabilidade própria. Defendo que
o próprio Foucault rastreou estratégias e técnicas vitalistas na filosofia
clássica, no final de sua vida, em cursos como: Hermenêutica do
Sujeito, e Le gouvernement de soi e des autres I e II; quando ele avalia
como as técnicas do cuidado de si e da parrêsia, formaram uma dupla
subjetivação ética e política, importantes para pensar o limítrofe e a
possibilidade do “fora”, pensar outro(s) mundo(s) possível(is) e de
novas formas de subjetivação no mundo moderno.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FOUCAULT, Michel. Dits et écrits I. Paris: Galimard, 2001.
_________________. Dits et écrits II. Paris: Galimard, 2001.
_________________. Nascimento da Biopolítica: curso no Collège de
France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008.
_________________. Segurança, Território e População: curso no
Collège de France (1977-1978).
São Paulo: Martins Fontes, 2009.
Recebido em: 27/04/2018
Aprovado em: 07/10/2018
André Pereira de Almeida
36